Os Precedentes na Dimensão da Segurança Jurídica
Luiz Guilherme Marinoni
Titular de Direito Processual Civil da UFPR. Pós-Doutorado na Universidade Estatal de Milão. Visiting Scholar na Columbia University. Advogado em Curitiba e em Brasília.
Sumário: 1. Estado de Direito e segurança jurídica; 2. Previsibilidade; 3. Estabilidade; 4. Duplo grau e respeito aos precedentes na dimensão da segurança jurídica; 5. Tutela da segurança jurídica e da confiança; 6. A coisa julgada e o precedente vinculante diante da tutela da segurança jurídica e da confiança; 7. Precedente e coisa julgada erga omnes
Estado de Direito e segurança jurídica
A segurança jurídica, vista como estabilidade e continuidade da ordem jurídica e previsibilidade das conseqüências jurídicas de determinada conduta, é indispensável para a conformação de um Estado que pretenda ser “Estado de Direito”.
Embora as Constituições e Cartas de direitos humanos fundamentais – como, por exemplo, a Declaração dos Direitos Humanos da ONU e a Convenção Americana de São José da Costa Rica – não aludam a um direito à segurança jurídica, o constitucionalismo dos nossos dias é consciente de que um Estado de Direito é dela indissociável. A doutrina considera a segurança jurídica como expressão do Estado de Direito, conferindo àquela a condição de subprincípio concretizador do princípio fundamental e estruturante do Estado de Direito.
Assim, a segurança jurídica assume as figuras de princípio da ordem jurídica estatal e de direito fundamental
Ingo Sarlet liga a segurança jurídica à noção de dignidade da pessoa humana: “Considerando que também a segurança jurídica coincide com uma das mais profundas aspirações do ser humano, viabilizando, mediante a garantia de uma certa estabilidade das relações jurídicas e da própria ordem jurídica como tal, tanto a elaboração de projetos de vida, bem como a sua realização, desde logo é perceptível o quanto a idéia de segurança jurídica encontra-se umbilicalmente vinculada à própria noção de dignidade da pessoa humana. (...) a dignidade não restará suficientemente respeitada e protegida em todo o lugar onde as pessoas estejam sendo atingidas por um tal nível de instabilidade jurídica que não estejam mais em condições de, com um mínimo de segurança e tranqüilidade, confiar nas instituições sociais e estatais (incluindo o Direito) e numa certa estabilidade das suas próprias posições jurídicas” (SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no direito constitucional brasileiro. Revista de Direito Constitucional, v. 57, p. 11).. A Constituição brasileira refere-se à segurança como valor fundamental, arrolando-a no caput do artigo 5º como direito inviolável, ao lado dos direitos à vida, liberdade, igualdade e propriedade. Ainda que não fale de um direito fundamental à segurança jurídica, a Constituição Federal possui inúmeros dispositivos que a tutelam, como os incisos II (princípio da legalidade), XXXVI (inviolabilidade do direito adquirido, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito), XXXIX (princípio da legalidade e anterioridade em matéria penal) e XL (irretroatividade da lei penal desfavorável) do artigo 5º.
O Estado brasileiro, além de ter o dever de tutelar a segurança jurídica, deve realizar as suas funções de modo a prestigiá-la, estando proibido de praticar atos que a reneguem.
O cidadão precisa ter segurança de que o Estado e os terceiros se comportarão de acordo com o direito e de que os órgãos incumbidos de aplicá-lo o farão valer quando desrespeitado. Por outro lado, a segurança jurídica também importa para que o cidadão possa definir o seu próprio comportamento e as suas ações. O primeiro aspecto demonstra que se trata de garantia em relação ao comportamento daqueles que podem contestar o direito e tem o dever de aplicá-lo; o segundo quer dizer que ela é indispensável para que o cidadão possa definir o modo de ser das suas atividades.
Não obstante, para que a idéia de segurança jurídica não se perca em uma extrema generalidade, convém discriminar dois elementos imprescindíveis à sua caracterização. Para que o cidadão possa esperar um comportamento ou se postar de determinado modo, é necessário que haja univocidade na qualificação das situações jurídicas. Além disso, há que se garantir-lhe previsibilidade em relação às conseqüências das suas ações
Ver CORSALE, Massimo. Certezza del diritto e crisi di legittimità. Milano: Giuffrè, 1979, p. 31 e ss.. O cidadão deve saber, na medida do possível, não apenas os efeitos que as suas ações poderão produzir, mas também como os terceiros poderão reagir diante delas. Note-se, contudo, que a previsibilidade das conseqüências oriundas da prática de conduta ou ato pressupõe univocidade em relação à qualificação das situações jurídicas, o que torna esses elementos indissociavelmente ligados
“Ad esempio colui che, trovandosi nelle condizioni previste dall’ordinamento, compia regolarmente la serie di atti che la legge prescrive per la conclusione del negozio di compravendita in qualità di acquirente, può prevedere, in un ordinamento datato di effettività, che verrà riconosciuto come proprietario della merce, e che in caso di contestazione tale qualità gli verrà riconosciuta in giudizio: l´univocità della qualificazione giuridica della sua situazione, come si vede, è strettamente connessa com la prevedibilità delle reazioni del venditore, dei terzi e dell´eventuale giudice nei confronti del suo comportamento a proposito, per esempio, del pagamento. Pertanto la previdibilità, unitamente alla qualificazione univoca delle situazioni, finisce per essere premessa indispensabile perchè si determini e sussista nella comunità il sentimento di sicurezza circa la soddisfazione effettiva della fondamentale esigenza di giustizia, ossia che il diritto prevalga sul torto. Quale sicurezza potrebbe sussistere, infatti, se fosse incerta la qualificazione delle situazioni in cui tali criteri dovrebbero operare, o se fossero imprevedibili le conseguenze giuridiche di un´azione?” (CORSALE, Massimo. Certezza del diritto e crisi di legittimità, cit., p. 32-33)..
Em outra perspectiva, a segurança jurídica reflete a necessidade de a ordem jurídica ser estável. Esta deve ter um mínimo de continuidade. E isso se aplica tanto à legislação quanto à produção judicial, embora ainda não haja, na prática dos tribunais brasileiros, qualquer preocupação com a estabilidade das decisões. Frise-se que a uniformidade na interpretação e aplicação do direito é um requisito indispensável ao Estado de Direito. Há de se perceber o quanto antes que há um grave problema num direito variável de acordo com o caso.
Previsibilidade
Para que haja previsibilidade, igualmente são necessárias algumas condições. Se é certo que não há como prever uma conseqüência se não houver acordo acerca da qualidade da situação em que se insere a ação capaz de produzi-la, também é incontestável que estas dependem, para gerar previsibilidade, da possibilidade da sua compreensão em termos jurídicos e da confiabilidade naqueles que detém o poder para afirmá-las. Em sendo assim, sustenta-se que a previsibilidade requer a possibilidade de conhecimento das normas com base nas quais a ação poderá ser qualificada. Porém, como a previsibilidade não descura da circunstância de que a norma deve ser interpretada, tornou-se necessário tocar na questão da interpretação jurídica, daí tendo naturalmente surgido a preocupação com a efetividade do sistema jurídico em sua dimensão de capacidade de permitir a previsibilidade, na medida em que o conhecimento da norma e a uniformidade da interpretação de nada adiantariam caso o jurisdicionado não pudesse contar com decisões previsíveis
CORSALE, Massimo. Certezza del diritto e crisi di legittimità, cit., p. 34..
Tais elementos, ainda que não precisem ser necessariamente admitidos como requisitos para a previsibilidade, têm importância para permitir uma discussão válida e criativa acerca do tema na dimensão dos precedentes.
O conhecimento das normas guarda relação com a Codificação ou com a pretensão de se ter Códigos capazes de regular todas as situações, eliminando quaisquer dúvidas que sobre elas pudessem pairar. Lembre-se que na tradição do civil law, em que se afirmava a supremacia do legislativo, a lei e os códigos deveriam ser tão claros e completos que não poderiam suscitar quaisquer dúvidas ao juiz
Como escreve Jürgen Habermas, “O paradigma liberal do direito expressou, até as primeiras décadas do século XX, um consenso de fundo muito difundido entre os especialistas em direito, preparando, assim, um contexto de máximas de interpretação não questionadas para a aplicação do direito. Essa circunstância explica por que muitos pensavam que o direito podia ser aplicado a seu tempo, sem o recurso a princípios necessitados de interpretação ou a ‘conceitos-chave’ duvidosos” (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1997, p. 313)..
Sabe-se, contudo, não só que a Codificação foi incapaz de dar conta ao que se propôs – tendo surgido uma hiperinflação de leis especiais e de regras processuais de conteúdo aberto, destinadas a dar aos juízes oportunidade de considerar situações imprevisíveis ao legislador –, como, também, que a idéia de que os juízes deveriam somente aplicar as leis foi rapidamente derrotada.
A verdade é que o pleno conhecimento do direito legislado não apenas é impossível, mas igualmente dispensável para a previsibilidade e para a tutela da segurança
Segundo Massimo Corsale, “se la codificazione fosse essenziale per la certezza come prevedibilità, quest`ultima non potrebbe realizzarsi in ordinamenti basati sul diritto consuetudinario, o giudiziario, o comunque non basati sul diritto legale. Ordinamenti di questo tipo sono sempre esistiti, e non sempre hanno corrisposto a fasi primitive di organizzazione sociale: i due macroscopici esempi del diritto romano e del common law ne fanno fede” (CORSALE, Massimo. Op. cit., p. 36). . Sublinhe-se que o common law, que certamente confere maior segurança jurídica do que o civil law, não relaciona a previsibilidade com o conhecimento das leis, mas sim com previsibilidade das decisões do Poder Judiciário. O advogado de common law tem possibilidade de aconselhar o jurisdicionado porque pode se valer dos precedentes, ao contrário daquele que atua no civil law, que é obrigado a advertir o seu cliente que determinada lei pode – conforme o juiz sorteado para analisar o caso – ser interpretada em seu favor ou não. A lógica desta tradição não apenas é inversa, e assim faz surgir a nítida impressão de que o direito do civil law não é tão certo quanto o direito do common law, como milita e se volta contra o próprio sistema, na medida em que estimula a propositura de ações, o aumento da litigiosidade, o acúmulo de trabalho e o aprofundamento da lentidão do Poder Judiciário.
Perceba-se que, quando há uma crise de colaboração na realização do direito material e os textos normativos encontram diversas interpretações no Judiciário, o que obviamente importa são as decisões judiciais, momento em que a dimensão normativa dos textos encontra expressão, e não o texto normativo abstratamente considerado. Ora, se a previsibilidade não depende da norma em que a ação se funda, mas da sua interpretação judicial, é evidente que a segurança jurídica está ligada à decisão judicial e não à norma jurídica em abstrato. Não é por outra razão que Massimo Corsale concluiu que, para que se possa realizar a certeza da ação através do direito, o que conta, em última análise, não é tanto a formula escrita no código, a norma abstrata, mas a dita norma individual, a concretização da regra no caso específico
Ibid., p. 34.. Da mesma forma, porque a inteligência de uma norma pode ser controvertida, é claro que a norma em abstrato não é suficiente para que o cidadão possa prever o comportamento dos terceiros que com ele podem se deparar.
Curioso é que o direito legislado, ao contrário de constituir um pressuposto, representa um obstáculo para a segurança jurídica. Isso se dá não apenas em razão da hiperinflação legislativa ou em virtude de ser impossível o pleno conhecimento das regras legais, mas substancialmente porque o sistema de direito legislado não liga a previsibilidade e a confiança a quem define o que é o direito.
Contudo, se o conhecimento das regras legais pode não ser pressuposto para a previsibilidade, o mesmo não se pode dizer em relação à univocidade de interpretação das normas. Exatamente porque as normas podem ser diferentemente analisadas, a interpretação, ao tender a um único significado, aproxima-se do ideal de previsibilidade. Isso não quer dizer que a eliminação da dúvida interpretativa é factível, mas sim que se pode e deve minimizar, na medida do possível, as divergências interpretativas acerca das normas, colaborando-se, assim, para a proteção da previsibilidade, indispensável ao encontro da segurança jurídica.
E é justamente aí que entra em jogo o terceiro dos elementos apontado no início deste tópico como imprescindível à previsibilidade. Trata-se da efetividade do sistema jurídico em sua dimensão de capacidade de permitir a previsibilidade. Massimo Corsale afirma que um ordenamento jurídico absolutamente destituído de capacidade de permitir previsões e qualificações jurídicas unívocas, e de gerar, assim, um sentido de segurança nos cidadãos, não pode sobrevir enquanto tal
Ibid., p. 40.. Ou seja, um ordenamento inidôneo a viabilizar a previsibilidade não pode ser qualificado de jurídico. Desta forma, a idéia de “certeza do direito” visivelmente representa um componente indispensável da essência do próprio direito
Anote-se que é possível distinguir certeza de previsibilidade, frisando-se que a previsibilidade implica apenas um certo grau de certeza e nunca uma certeza absoluta. Reconhecimento disso, aliás, está implícito na idéia de que o respeito aos precedentes não ignora a circunstância de que estes podem ser revogados. Ver CAMINKER, Evan H. Precedent and Prediction: The Forward-Looking Aspects of Inferior Court Decisionmaking. Texas Law Review, 1994, v. 73, p. 1-82. .
O sistema jurídico brasileiro, em tal dimensão, afigura-se completamente privado de efetividade, pois indubitavelmente não é capaz de permitir previsões e qualificações jurídicas unívocas. Há alguma preocupação, na ordem jurídica brasileira, com a previsibilidade. Neste sentido, podem ser citadas as normas constitucionais que prevêem as funções do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, respectivamente, de uniformizar a interpretação da lei federal e de “afirmar” o sentido das normas constitucionais. Deixando-se de lado a questão relacionada ao Supremo, torna-se estarrecedor perceber que a própria missão de garantir a unidade do direito federal, atribuída e imposta pela Constituição ao Superior Tribunal de Justiça, é completamente desconsiderada na prática jurisprudencial brasileira.
As decisões do Superior Tribunal de Justiça não são respeitadas nem no âmbito interno da Corte. As Turmas não guardam respeito pelas decisões das Seções e, o que é pior, entendem-se livres para decidir casos iguais de forma desigual
Sobre a mesma patologia, porém no âmbito da Corte de Cassação italiana, discorreu Fernando Santosuosso (Juiz da Corte Constitucional) em importante Congresso realizado em Florença: “Però bisogna fare um esame di coscienza, perché si è giunti a questa, non voglio dire generale, ma diffusa ribellione agli orientamenti della Cassazione? Non tanto forse per impreparazione delle nuove generazioni di avvocati e magistrati, quanto perché anche la Cassazione non ha dato il buon esempio. Ieri Mirabelli citava il numero dei contrasti fra sentenze della Cassazione, 120 contrasti pendenti innanzi alla Cassazione, il che significa che le sezioni semplici sono frequentemente in contrasto fra loro, o addirittura la stessa sezione. Perfino la mia sezione, la sezione lavoro, che lavora ogni giorno con due aule, potrebbe essere in contrasto con se stessa lo stesso giorno. E perfino l’organo chiamato a risolvere i contrasti, quello che Walter Vigiani chiamava il ‘Supremissimo Collegissimo’ e cioè le sezioni unite, talvolta, ha detto Mirabelli, per 18 volte è in contrasto con se stesso. Quindi questo sarà il mio primo auspicio, che la cassazione abbia maggiore rispetto di se stessa, e che si cambi giurisprudenza quase mai in procedura, perché voi sapete che il rito, le aspettative degli avvocati e delle parti è che le regole del gioco restino il più possibile ferme, ma anche in diritto sostanziale si cambi giurisprudenza soltanto quando veramente ci siano nuovi argomenti, nuove situazioni sociali” (SANTOSUOSSO, Fernando. L’incertezza del diritto nell’attività giurisprudenziale. In: La Certezza del Diritto: Un valore da ritrovare: Atti (Firenze, 2-3 ottobre 1992). Milano: Giuffrè, 1993, p. 96 e ss).. Resultado disso, como não poderia ser diferente, é o completo descaso dos juízes de primeiro grau de jurisdição e dos Tribunais Estaduais e Regionais Federais em relação às decisões tomadas pelo Superior Tribunal de Justiça. Isso configura um atentado contra a essência do direito e contra a efetividade do sistema jurídico. Como é óbvio, também porque a segurança jurídica é direito fundamental e subprincípio concretizador do princípio do Estado de Direito, tais decisões não podem ser ignoradas, admitindo-se a sua fácil e constante alteração no âmbito da Corte e permitindo-se que os juízes de primeiro grau e tribunais ordinários possam livremente delas discordar ou sequer considerá-las.
Já o sistema de common law, mediante o instituto do stare decisis, possui plena capacidade de garantir a previsibilidade, demonstrando grande preocupação com a segurança das relações sociais, para o que a certeza do direito é imprescindível
Ver BENDITT, Theodore M. The rule of precedent, In Precedent in Law, Oxford, Clarendon Press, 1987, p. 89 e ss.. Constitui lugar comum, na literatura inglesa e estadunidense, a afirmação de que a previsibilidade constitui razão para seguir precedentes. O stare decisis é visto como instituto disciplinado para garantir a segurança jurídica. Lembre-se que Hale disse que o stare decisis tinha como objetivo satisfazer a exigência de certeza formal. Mais do que isto, o célebre artigo de Goodhart, de 1934, apresentou a idéia de que a certeza jurídica seria a mais importante causa para a instituição do stare decisis ou para o estabelecimento de um sistema de precedentes vinculantes
GOODHART, Arthur L. Precedent in English and Continental Law. Law Quaterly Review, 1934, v. 50, p. 40 e ss. .
Interessante notar, ainda, que a previsibilidade é relacionada aos atos do Judiciário, isto é, às decisões, mas que esta previsibilidade garante a confiabilidade do cidadão nos seus próprios direitos. Um sistema incapaz de garantir a previsibilidade, assim, não permite que o cidadão tome consciência dos seus direitos, impedindo a concretização da cidadania.
E não se pense que a garantia de previsibilidade das decisões judiciais é algo que diz respeito ao sistema de common law e não ao de civil law. Ora, tanto as decisões que afirmam direitos independentemente da lei quanto as decisões que interpretam a lei, seja no common law ou no civil law, devem gerar previsibilidade aos jurisdicionados, sendo completamente absurdo supor que a decisão judicial que se vale da lei pode variar livremente de sentido sem gerar insegurança.
É nessa dimensão, aliás, que se pode falar em “ética do legalismo”, nos termos de MacCormick
De acordo com a ‘ética do legalismo’, há valores morais e sociais específicos que dependem da manutenção e suporte de uma ordem normativa institucional, para o bem da paz e previsibilidade entre os seres humanos, e como condição (mas não garantia) para manter-se a justiça entre eles (MACCORMICK, Neil. Rethoric and the Rule of Law, New York, Oxford, 2005, p. 9).. A previsibilidade das decisões, vista como legalismo, constitui valor moral imprescindível para o homem, de forma livre e autônoma, poder se desenvolver, e, portanto, estar em um Estado de Direito, ou seja, em um Estado que assegure a estabilidade do significado do Direito
MACCORMICK, Neil. The ethics of legalism. Ratio Juris, 1989, 2, p. 184-193 e ss..
Estabilidade
A segurança jurídica pode ser vista em outra perspectiva, ou seja, em uma dimensão objetiva. É preciso que a ordem jurídica, e assim a lei e as decisões judiciais, tenham estabilidade. A ordem jurídica deve ter um mínimo de continuidade, até mesmo para que o Estado de Direito não seja um Estado provisório, incapaz de se impor enquanto ordem jurídica dotada de eficácia e potencialidade de se impor aos cidadãos.
Mas o que importa, no presente contexto, é demonstrar que a estabilidade não se traduz apenas na continuidade do direito legislado, exigindo, também, a continuidade e o respeito às decisões judiciais, isto é, aos precedentes
Também é possível distinguir estabilidade de certeza e previsibilidade. Como dito em nota anterior, a previsibilidade abre oportunidade para graus de certeza, tanto é que, ainda que o sistema de precedentes garanta a previsibilidade, um determinado precedente pode estar prestes a ser revogado. Do mesmo modo, um sistema pode ser momentaneamente instável, em vista de reiteradas revogações de precedentes, ainda que dotado da previsibilidade inerente ao respeito aos precedentes..
Pouco adiantaria ter legislação estável e, ao mesmo tempo, frenética alternância das decisões judiciais. Para dizer o mínimo, as decisões judiciais devem ter estabilidade porque constituem atos de poder. Ora, os atos de poder geram responsabilidade àquele que os instituiu. Assim, as decisões não podem ser livremente desconsideradas pelo próprio Poder Judiciário.
O ponto tem relevância insuspeita. Não apenas o juiz e o órgão judicial devem respeito ao que já fizeram, ou seja, às decisões que tomaram, mas também às decisões dos tribunais que lhes são superiores, claramente quando estes decidem conferindo interpretação a uma lei ou atribuindo qualificação jurídica a determinada situação. Trata-se de algo que além de advir da mera visualização da tarefa atribuída aos tribunais superiores, decorre da percepção da lógica do sistema de distribuição de justiça e da coerência que se impõe ao discurso do Poder Judiciário.
Não há como ter estabilidade quando os juízes e tribunais ordinários não se vêem como peças de um sistema, mas se enxergam como entes dotados de autonomia para decidir o que bem quiserem. A estabilidade das decisões, portanto, pressupõe uma visão e uma compreensão da globalidade do sistema de produção de decisões, o que, lamentavelmente, não ocorre no Brasil, onde ainda se pensa que o juiz tem poder para realizar a sua “justiça” e não para colaborar com o exercício do dever estatal de prestar a adequada tutela jurisdicional, para o que é imprescindível a estabilidade das decisões.
Duplo grau e respeito aos precedentes na dimensão da segurança jurídica
Ainda que a idéia de submeter o juiz à letra da lei tenha constituído mero sonho da Revolução Francesa, não há dúvida que, em tese, a segurança jurídica seria proporcionada por um sistema judicial em que o magistrado apenas aplicasse a letra da lei. Caso fosse admitida, como hipótese, a impossibilidade de o juiz decidir fora dos traços da norma geral, a previsibilidade seria inevitável. Isto significa que é correto pensar que a ideia de submissão do juiz ao legislador colaborou para a formação de um sistema despreocupado com o respeito aos precedentes.
Porém, considerando-se esta situação, torna-se curiosa a ênfase que o civil law deu ao duplo grau de jurisdição. Ora, se o juiz apenas pode declarar as palavras da lei, não há razão para se ter dois juízos repetitivos sobre o mérito. Contudo, como os tribunais superiores nunca foram ignorados no civil law, a origem do duplo grau deve ser buscada em outro lugar.
Lembre-se que a Corte de Cassação francesa, instituída em 1790, teve o intento de limitar o poder judicial mediante a cassação das decisões destoantes da lei
Ver CALAMANDREI, Piero, La Cassazione civile, I, Storia e legislazione, Torino, 1920, p. 426 e ss; TARUFFO, Michele. Il vertice ambiguo, Saggi sulla Cassazione civile, Bologna, Il Mulino, 1991, p. 29 e ss. . Antes da Cassação, os revolucionários tentaram impedir o Judiciário de interpretar a lei instalando um órgão legislativo ao qual os juízes deveriam recorrer em caso de falta de clareza ou de dúvida acerca do direito criado pelo Legislativo. Afirmou-se que, na excepcionalidade de conflito entre normas, obscuridade ou falta de lei, o juiz deveria obrigatoriamente apresentar a questão ao legislativo para a realização da “interpretação autorizada”
A Lei Revolucionária de agosto de 1790 não só disse que “os tribunais judiciários não tomarão parte, direta ou indiretamente, no exercício do poder legislativo, nem impedirão ou suspenderão a execução das decisões do poder legislativo” (Título II, art. 10), mas também que os tribunais “reportar-se-ão ao corpo legislativo sempre que assim considerarem necessário, a fim de interpretar ou editar uma nova lei” (Título II, art. 12). “Os tribunais judiciários não tomarão parte, direta ou indiretamente, no exercício do poder legislativo, nem impedirão ou suspenderão a execução das decisões do poder legislativo” (Título II, art. 10); “reportar-se-ão ao corpo legislativo sempre que assim considerarem necessário, a fim de interpretar ou editar uma nova lei” (Título II, art. 12); “as funções judiciárias são distintas e sempre permanecerão separadas das funções administrativas. Sob pena de perda de seus cargos, os juízes de nenhuma maneira interferirão com a administração pública, nem convocarão os administradores à prestação de contas com respeito ao exercício de suas funções (Título II, art. 12). (Lei Revolucionária de agosto de 1790). Ver CAPPELETTI, Mauro. Repudiando Montesquieu? A expansão e a legitimidade da justiça constitucional, Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v. 20, p. 272..
De modo que a Cassação foi instituída como válvula de escape contra a não apresentação do caso à interpretação autorizada do legislativo, ou, o que parece ser mais razoável, em virtude da tomada de consciência da inviabilidade, até mesmo prática e concreta, de obrigar os juízes a exporem todas as suas dúvidas ao legislador
MERRYMAN, John Henry; PÉREZ-PERDOMO, Rogelio. The civil law tradition, 3ª. ed., Stanford, Stanford Press, 2007, p. 39 e ss. .
Ademais, embora chamada de corte, a Cassação, num primeiro momento, não integrou o Poder Judiciário. A natureza não jurisdicional da Cassação era compatível com a sua função de cassar ou anular as decisões judiciais que dessem à lei sentido indesejado. Ou seja, a Cassação origenariamente representou uma alternativa – mais factível – em relação à “consulta interpretativa autorizada”. Note-se que a Cassação foi instituída unicamente para cassar a interpretação incorreta, não para estabelecer a interpretação correta ou para decidir em substituição à decisão prolatada pelo juiz ordinário. A Corte não se sobrepunha ao órgão judicial ordinário por ter o poder de proferir a última decisão, mas sim por ter o poder para cassar a decisão que negou a lei produzida pelo Parlamento.
Diante disso, fica claro que o double degré de juridiction, ou mais precisamente a Corte de Cassação, partiu do pressuposto de que o juiz poderia não aplicar corretamente a lei. Para permitir a frutificação do novo regime – instalado no Parlamento – e para calar o seu rival – o Judiciário –, a Revolução Francesa quis que o juiz se limitasse a declarar as palavras da lei. Mas, exatamente porque temia o Judiciário, e assim era ciente do risco e da possibilidade de o juiz interpretar a lei de maneira desconforme às intenções do novo regime, criou a Corte de Cassação para reprimir a atuação judicial destoante.
Nesta dimensão, como é evidente, sequer seria pensável um sistema de respeito aos precedentes. Ora, se a Corte existe exatamente porque o juiz não merece respeito ou confiança, não há como construir um sistema que, para funcionar, deve partir da premissa de que o juiz respeita a Corte. Como se vê, a lógica das tradições de civil law e de common law são absolutamente contrárias. E isto é extremamente importante e sugestivo.
No direito brasileiro contemporâneo há uma absurda e curiosa não percepção da contradição existente entre a mitificação do duplo grau e a ausência de respeito às decisões dos tribunais superiores. De forma acrítica, ao mesmo tempo em que se vê na obrigatoriedade dos precedentes um atentado contra a liberdade do juiz, celebra-se o duplo grau de jurisdição como garantia de justiça. Os juízes pensam que exercem poder quando julgam como desejam, mas não percebem que não têm poder para decidir (sozinhos) sequer uma ação de despejo fundada em falta de pagamento ou uma ação ressarcitória derivada de acidente de trânsito
Se todas as sentenças que dizem respeito a matéria de fato e são marcadas pela oralidade devem ser submetidas ao tribunal, o juiz de primeiro grau, lamentavelmente, pode ser confundido com um instrutor. Um duplo juízo sobre a matéria de fato constitui sinal de afronta à oralidade e, principalmente, de desconfiança no juiz de primeiro grau. É nesta perspectiva que se anuncia que o duplo grau produz a desvalorização do juiz de primeira instância., e, além disto, que as suas sentenças, em regra, não interferem na vida dos litigantes.
A melhor doutrina italiana sustenta que o duplo grau reflete, historicamente, uma idéia hierárquico-autoritária da jurisdição e do Estado
Ver PIZZORUSSO, Alessandro. Doppio grado di giurisdizione e principi costituzionali. Rivista di Diritto Processuale, 1978, p. 33 e ss; CAPPELLETTI, Mauro. Doppio grado di giurisdizione: Parere iconoclastico n. 2, o razionalizzazione dell´iconoclastia? Giurisprudenza italiana, 1969, p. 81 e ss., além de gerar uma profunda desvalorização dos juízos de primeiro grau. Isso porque o duplo grau se assenta em um ambiente de desconfiança em relação ao juiz de primeiro grau, que não poderia ter poder para decidir, livre e solitariamente, qualquer demanda. Como demonstrou Cappelletti, o primeiro defeito essencial do duplo grau, que não está presente – especialmente no que diz respeito ao processo civil – nos países anglo-saxões, é a profunda desvalorização do juízo de primeiro grau, com a conseqüente glorificação, se assim se pode dizer, dos juízos de segundo grau
CAPPELLETTI, Mauro. Dictamen iconoclastico sobre la reforma del proceso civil italiano. In: Proceso, ideologias, sociedad (trad. Santiago Sentís Melendo e Tomás A. Banzhaf). Buenos Aires: EJEA, 1974, p. 278.. Em virtude da necessidade do segundo grau, a causa, em primeiro grau, não está ganha nem perdida
Id.; a sentença do juiz, por não ter, em regra, execução imediata, serve para pouco mais do que nada. Como afirma o professor florentino, o primeiro grau é somente uma larga fase de espera, uma extenuante e penosa ante-sala para se chegar à fase de apelação ou à verdadeira decisão, ao menos para a parte que tem condições econômicas para alcançá-la
Id..
De modo que somente uma ingenuidade indesculpável poderia sustentar a idéia de que o duplo grau de jurisdição constitui princípio fundamental de justiça, e até mesmo garantia constitucional, e, ao mesmo tempo, aprovar a tese de que o juiz de primeiro grau deve ter liberdade para decidir de forma contrária ao Superior Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal. Isto seria apenas uma ilogicidade brutal se não constituísse uma armadilha consciente e ardilmente montada para deslegitimar o poder dos juízes. Espera-se que logo se possa perceber que negar ao juiz de primeiro grau poder para decidir as causas de menor complexidade, e, ao mesmo tempo, estimulá-lo a confrontar com os tribunais superiores, nada mais é do que desconsiderar os direitos fundamentais de natureza processual e o próprio Poder Judiciário.
Saliente-se que, no common law, muito mais do que no civil law e, especialmente, do que no Brasil – que é um dos raros países no mundo em que o duplo grau ainda é endeusado –, confere-se importância e dignidade ao juiz de primeiro grau. Nos Estados Unidos, o juiz de primeiro grau goza de grande prestígio. O trial-judge, ao menos em nível federal, é considerado um magistrado que nada deve aos juízes das cortes superiores em termos de conhecimento e experiência
VIGORITI, Vincenzo. Garanzie costituzionali del processo civile. Milano: Giuffrè, 1973, p. 156.. O sistema do common law, por confiar no juiz, confere-lhe poder para julgar sozinho inúmeras demandas. Basta lembrar que, como regra, o appeal somente é admitido em hipóteses de erro de direito, consoante a idéia de limitar os poderes do juiz no review
Ver CHAYES, Abram. The role of the judge in public law litigation. Harvard Law Review, v. 89, may/1976, p. 1.281-1.315; CARPI, Federico. La provvisoria esecutorietà della sentenza. Milano: Giuffrè, 1979, p. 15..
Portanto, se é completamente contraditório sustentar a intocabilidade do duplo grau e, ao mesmo tempo, o poder de o juiz de primeiro grau decidir em desacordo com os tribunais superiores, não é necessário afirmar o duplo grau para respeitar os precedentes. Na verdade, a relativização do duplo grau e a obediência aos precedentes são elementos presentes no sistema que realmente respeita os seus juízes.
A idéia de submissão do juiz à lei tornou despiciendo o respeito aos precedentes, mas a admissão, não revelada às claras, de que o juiz pode negar a lei, além de ter criado um sistema de cassação das decisões judiciais, abriu oportunidade à mitificação do duplo grau. Todavia, a glorificação do duplo grau não foi capaz de permitir ver a contradição em se permitir ao juiz de primeiro grau contrariar as decisões dos tribunais superiores. Enquanto isso, no sistema em que não houve necessidade de limitar o poder do juiz, tornou-se natural o respeito aos precedentes para se garantir a previsibilidade que se esperava obter, no civil law, mediante a submissão do juiz aos ditados do legislador. O direito estadunidense, além de respeitar precedentes, deu ao juiz de primeiro grau real poder para decidir as questões de fato, tornando o appeal cabível apenas diante de erros de direito. Assim, o common law incorpora, coerente com a sua própria tradição de confiança na magistratura, além do respeito aos precedentes, a valorização do juiz de primeiro grau. O ponto tem grande relevância: tem o valor de demonstrar, àqueles que pensam que o respeito aos precedentes minimiza a figura do juiz ordinário, que o poder do juiz não depende da circunstância dele estar livre para decidir, mas sim da circunstância dele fazer parte de um poder que se respeita, que é respeitado e que se faz respeitar.
Tutela da segurança jurídica e da confiança
O Estado tem dever de tutelar o direito fundamental à segurança. Possui dever de tutelar a segurança mediante prestações fáticas e normativas. São inúmeras as normas infraconstitucionais e várias as prestações fáticas com que o Estado tutela a segurança – vista em sentido genérico – de direito geral à segurança.
A segurança jurídica também é tutelada mediante várias normas e prestações fáticas estatais. Visível é a norma constitucional que afirma a inviolabilidade da coisa julgada, do direito adquirido e do ato jurídico perfeito (artigo 5º, XXXVI, Constituição Federal), embora existam na Constituição outras normas que, mesmo indiretamente, tutelam a segurança jurídica, como as que garantem o contraditório e a fundamentação das decisões judiciais. No Código de Processo Civil, igualmente, encontram-se regras de tutela à segurança, como as que, por exemplo, tratam da preclusão, impedindo a decisão de questão já decidida ou a prática de ato processual fora do tempo. Além disso, a assistência jurídica, por exemplo, pode ser vista como uma prestação fática para a tutela da segurança jurídica, já que o advogado gratuito pode ser indispensável para o jurisdicionado poder ter os seus direitos protegidos em Juízo.
De qualquer forma, para que exista segurança jurídica há que se tutelar a confiança do jurisdicionado, no exato sentido de previsibilidade, como antes visto. Como escreve Canotilho, segurança jurídica e proteção da confiança andam estreitamente associadas, “a ponto de alguns autores considerarem o princípio da proteção de confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica. Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objetivos da ordem jurídica – garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito – enquanto a proteção da confiança se prende mais com as componentes subjetivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos atos dos poderes públicos”
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, Almedina, 2002, p. 257..
A previsibilidade obviamente depende da confiança
De acordo com Ingo Sarlet, “um patamar mínimo em segurança (jurídica) estará apenas assegurado quando o Direito assegurar também a proteção da confiança do indivíduo (e do corpo social com um todo) na própria ordem jurídica e, de modo especial, na ordem constitucional vigente” (SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 11).. Não há como prever sem confiar. De modo que também pode ser dito que a confiança é um requisito da previsibilidade. Portanto, como o Estado tem o dever de garantir a previsibilidade, cabe-lhe tutelar ou proteger a confiança do cidadão em relação às conseqüências das suas ações e às reações dos terceiros diante dos seus atos, assim como no que diz respeito aos efeitos dos atos do poder público.
A tutela da confiança certamente depende de normas. Lembre-se que um ordenamento destituído de capacidade de permitir previsões e qualificações jurídicas unívocas e, assim, de gerar um sentido de segurança nos cidadãos, não pode sobrevir, ao menos enquanto ordenamento “jurídico”
V. CORSALE, Massimo. Op. cit., p. 40.. A doutrina vê na norma que garante a coisa julgada exemplo de tutela da confiança. Canotilho, aliás, ao relacionar os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança aos atos normativos, jurisdicionais e administrativos, fala em “proibição de normas retroativas restritivas de direitos ou interesses juridicamente protegidos”, em “inalterabilidade do caso julgado” e em “tendencial estabilidade dos casos decididos através de atos administrativos constitutivos de direitos”
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit., p. 257., deixando de atinar para outra forma de tutela da confiança em relação aos atos jurisdicionais.
Não há dúvida que a coisa julgada é imprescindível à tutela da confiança nos atos do poder público. A coisa julgada dá ao jurisdicionado a segurança de que o seu direito não poderá mais ser contestado e de que o litígio que envolveu o seu direito não voltará a ser decidido. Contudo, a coisa julgada, embora imprescindível, não é suficiente para dar tutela à confiança e garantir a previsibilidade diante dos atos jurisdicionais. Mesmo os ordenamentos de civil law, especialmente aqueles que dão ênfase ao controle difuso de constitucionalidade, não podem dispensar o esquema dos precedentes vinculantes para garantir a segurança jurídica e dar tutela à confiança
Sobre a incidência do princípio da confiança na esfera jurisdicional, em especial a relação entre a proteção da confiança e a estabilidade das decisões judiciais, ver BLANCO, Federico Castillo. La protección de confianza en el derecho administrativo. Madrid: Marcial Pons, 1998, p. 362 e ss.
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A falta de explicitação legal de precedentes vinculantes pode ser vista como autêntica falta de tutela da segurança jurídica, verdadeira omissão do legislador. Ainda assim, o respeito aos precedentes não depende de regra legal que afirme a sua obrigatoriedade ou de sua explicitação, pois as normas constitucionais que atribuem aos tribunais superiores as funções de uniformizar a interpretação da lei federal e de afirmar o sentido da Constituição Federal são indiscutivelmente suficientes para darem origem a um sistema de precedentes vinculantes.
A coisa julgada e o precedente vinculante diante da tutela da segurança jurídica e da confiança
As funções da coisa julgada e do precedente vinculante à luz da segurança jurídica e da tutela da confiança são distintas. O respeito aos precedentes garante a previsibilidade em relação às decisões judiciais, assim como a continuidade da afirmação da ordem jurídica. A coisa julgada, por sua vez, garante que nenhuma decisão estatal interferirá de modo a inutilizar o resultado obtido pela parte com a decisão acobertada pela coisa julgada, assim como a estabilidade das decisões judiciais.
Diante da coisa julgada, não há que se falar em previsibilidade ou em continuidade de um modo de compreender – e, portanto, de afirmar – o ordenamento jurídico. A confiança que a coisa julgada confere ao jurisdicionado nada tem a ver com a expectativa de uma decisão em determinado sentido. A coisa julgada tutela a confiança do cidadão no ato estatal que decidiu o seu caso, assegurando que o benefício outorgado por este ato jamais lhe será retirado.
A coisa julgada, em tal perspectiva, também é uma garantia contra a retroatividade das decisões de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade. O fato de o Supremo Tribunal Federal afirmar a inconstitucionalidade ou a constitucionalidade da norma em que a decisão se baseou não gera, por mera conseqüência lógica, o desfazimento da coisa julgada. Esta não pode desaparecer em virtude de uma nova compreensão judicial dos fundamentos da decisão, mas apenas pode ser desconstituída em hipóteses extremas, em que vícios graves abrem oportunidade à sua rescisão (artigo 485, Código de Processo Civil).
A coisa julgada é imprescindível à afirmação do poder estatal. O discurso realizado no processo, para poder ser qualificado de discurso jurídico, ou seja, de discurso do poder acerca do direito, tem que ter um termo final a partir do qual se torne definitivo e imutável. De lado os atos jurisdicionais não preocupados com a definição dos litígios, a coisa julgada é atributo do processo jurisdicional.
De outra parte, o precedente vinculante permite ao jurisdicionado prever as conseqüências jurídicas dos seus atos e condutas, tendo o efeito de permitir confiança nas decisões já tomadas – então vistas como critérios para definir o seu comportamento – e nas decisões que podem vir a ser proferidas – compreendidas como decisões que podem atingir as suas esferas jurídicas.
Como é óbvio, mesmo olhando-se apenas para o passado, a confiança gerada pelo precedente vinculante nada tem a ver com a confiança proporcionada pela coisa julgada. Em um caso, a confiança é na orientação advinda da jurisdição; no outro, a confiança é na imutabilidade do ato do poder jurisdicional
Precedente e coisa julgada erga omnes
Mais próxima da segurança gerada pelo precedente está aquela advinda da coisa julgada erga omnes, peculiar às decisões de procedência proferidas nas ações voltadas à tutela de direitos difusos (artigo 103, inciso I, Código de Defesa do Consumidor).
Esta espécie de coisa julgada protege benefícios conferidos pela decisão a todos os membros da sociedade, titulares que são dos direitos difusos. Melhor explicando: como os direitos difusos são pertencentes, de forma generalizada, aos membros da sociedade, e, portanto, não podem ser divididos nem atribuídos isoladamente a pessoas ou grupos determinados, a legitimidade para as ações dirigidas à sua tutela é deferida a certos entes, vistos pelo legislador como capazes de representar os interesses dos membros da sociedade (artigos 81 e 82, Código de Defesa do Consumidor). Julgado procedente o pedido de tutela jurisdicional, afirma o artigo 103, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor, que a sentença produz coisa julgada erga omnes.
Nesse caso, o benefício outorgado pela sentença se estende a todos os titulares do direito difuso até então em litígio. Isso quer dizer a coisa julgada dá a todos os membros da sociedade a garantia de que a tutela do direito difuso, tal como definida pela sentença, não será alterada no futuro. Tratando-se de tutela inibitória de direito difuso, a coisa julgada garante a todos os titulares que o direito não será violado. Assim, qualquer um deles, na forma individual, poderá fazer valer a coisa julgada, impedindo a violação do direito.
Porém, a garantia de estabilidade de tutela inibitória de direito difuso obviamente não se confunde com a garantia de que o direito será tutelado em conformidade com o precedente. A coisa julgada, como técnica de proteção da segurança jurídica, tem mais força do que o respeito aos precedentes. O precedente é destinado a garantir a estabilidade da aplicação do direito, enquanto a coisa julgada garante a inalterabilidade da aplicação do direito em determinado caso concreto. Ao contrário do que ocorre em relação à coisa julgada, a estabilidade garantida pelo precedente não é absoluta, na medida em que os precedentes podem ser revogados. O judiciário pode deixar de interpretar a lei em determinado sentido, mas a interpretação da lei, cristalizada em sentença acobertada pela coisa julgada, jamais poderá ser alterada de modo a roubar o benefício outorgado àquele que obteve a tutela jurisdicional do direito.
Noutra perspectiva, a coisa julgada erga omnes tutela a segurança jurídica do cidadão em virtude de o direito lhe pertencer, ao passo que o precedente protege a segurança jurídica do cidadão enquanto mero jurisdicionado, ou melhor, como sujeito às decisões do Poder Judiciário.