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(PDF) A mensageira da alma
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A mensageira da alma

Pitágoras 500

Em algum momento no meio da década de 1960, enquanto eu vocalizava no meu estúdio, tive uma revelação que a voz poderia ter a mesma flexibilidade e gama de movimentos da espinha ou do pé, e que eu poderia construir um vocabulário para minha voz, assim como alguém cria movimentos baseados num corpo em específico. Percebi que na voz existem inúmeras personagens, paisagens, cores, texturas, modos de se produzir sons, mensagens sem palavras. Eu intuitivamente senti o poder rico e milenar do primeiro instrumento humano e, ao explorar suas possibilidades infinitas, senti que voltava ao lar de minha família e de meu sangue.

A mensageira da alma Por Meredity Monk A voz é meu(s)/minhA(s): mensAgeirA dA AlmA Previsão do temPo sAlvAção FArol mistério ConForto CAnAl sAngue CorAção Pá e PiCAretA PegAdA medidA AsAs Fluxo AgulhA PlAyground rAdAr esPelho terremoto ComPAsso veíCulo ligAção Com o desConheCido ligAção Com o todo ConheCido ligAção Com A eternidAde ligAção Com o Presente. 55 doi: 10.20396/pita.v7i2.8651453 A mensageira da alma Por Meredith Monk1 1 Tradução de Rodrigo Spina, Professor Doutor vinculado ao Departamento de Artes Cênicas da UNICAMP. Em algum momento no meio da década de 1960, enquanto eu vocalizava no meu estúdio, tive uma revelação que a voz poderia ter a mesma flexibilidade e gama de movimentos da espinha ou do pé, e que eu poderia construir um vocabulário para minha voz, assim como alguém cria movimentos baseados num corpo em específico. Percebi que na voz existem inúmeras personagens, paisagens, cores, texturas, modos de se produzir sons, mensagens sem palavras. Eu intuitivamente senti o poder rico e milenar do primeiro instrumento humano e, ao explorar suas possibilidades infinitas, senti que voltava ao lar de minha família e de meu sangue. Eu venho de uma família musical: meu bisavô era um cantor na Rússia; seu filho, meu avô, era um baixo-barítono que imigrou para Nova Iorque e juntamente com minha avó, uma pianista erudita, inauguraram um conservatório de música. Ele também se apresentava em salas de concertos, igrejas e sinagogas. Minha mãe era uma cantora profissional que cantava jingles, baladas e canções de swing na rádio e nos primórdios da televisão. Meu primeiro treinamento musical foi em Euritmia de Dalcroze, mas também aprendi a ler música antes mesmo de aprender a ler palavras. Uma das minhas memórias mais antigas era ficar cantando até a hora de dormir. Há eventos que alteram nossa vida de forma irreversível; aquele momento na metade dos anos 1960 mudou a minha. A partir daquele momento, a exploração de minha voz e o que ela poderia evocar, delinear, revelar e, finalmente doar aos outros, tornou-se a parte central de meu trabalho. Logo de início, eu estava interessada numa expressão primordial: quais foram os primeiros sons humanos? Qual seria a membrana delicada e fluídica entre a fala e a música? Eu sabia que as notas e as frases musicais não me restringiriam na exploração da voz. Como um instrumento, poderia ser universal. Eu pensava na voz como som, como Pitágoras 500, Campinas, SP. v.7, n.2 [13], p. 55-58, jul./dez. 2017. 56 um reflexo da natureza, do espaço urbano, das estrelas. Comecei a brincar sobre o que seria um gesto vocal. Como a voz poderia pular, girar, rodopiar ou cair? Como eu poderia abstrair os sons de uma risada, de um soluço, um grito, transformando-os numa frase musical? Comecei a perceber que a voz tem o poder de revelar matizes sutis dos sentidos que existem dentro do que consideremos como emoções. Poderia evocar o inominável. Vinda de uma formação musical e de trabalhos corporais, sentia-me completamente confortável e confiante numa comunicação não-verbal. Percebi profundamente que a voz é uma linguagem em si: eloquente, investigativa e capaz de comunicar diretamente ao coração. Quando comecei, minha trajetória parecia ser solitária. Eu não conhecia ninguém que trabalhava dessa maneira. Precisava acreditar nos meus instintos. E naquele momento, já me sentia privilegiada por ter construído um repertório que combinava imagens, movimentos, objetos, sons e filmes, e por isso a disciplina do trabalho diário era essencial para minha vida. Agora, poderia usar os mesmos princípios criativos e aplicá-los à minha exploração vocal. Neste momento, ficou aparente a descoberta do que seria, então, a alma de minha obra. O que era uma busca íntima e urgente tornou-se a certeza acalmada de que esse processo todo seria a minha verdade definitiva e duradoura. O método era e continua sendo a exploração de possibilidades, de qualidades e do mistério de minha voz; de escutar e acreditar no que se revela. Olhando para o passado, sou profundamente grata aos momentos de solidão. Isolada com meus próprios mecanismos, comecei um procedimento de investigação intensa conduzida por minha voz, meus ouvidos e minha sensibilidade musical. Para onde iriam? De momentos intuitivos de descoberta de materiais, passando por um processo intelectual rigoroso de refinar e construir esses materiais em composições, a aventura de fazer música expandiu meu mundo de maneira miraculosa. Nos primeiros dez anos, eu trabalhei sozinha escrevendo canções a capella e peças para voz e teclado. No meio dos anos 1970, formei um conjunto de jovens cantores que me acompanhavam em minha trajetória e me inspiraram a enriquecer as texturas, os contrapontos e as cores em minha música. Por seus vinte e poucos anos e pelo fato de não terem uma longa história na carreira musical, com expectativas ou dogmas prévios, minha linguagem e abordagem vocais pareciam-lhes próprias a si mesmos, tornando-se suas segundas naturezas. Isso nos permitiu criar uma atmosfera de experimentação concentrada e divertida, inspirando-me a compor formas complexas e cintilantes. Atualmente, a interdependência e intimidade em apresentar com esses membros radiantes e extraordinários de meu conjunto vocal continua a revelar novas camadas de percepção. Meu processo envolve grandes períodos de espera. Quando começo a trabalhar, tento permanecer aberta a qualquer coisa que possa surgir. Inicialmente, tenho que lidar com meu terror do desconhecido e com as expectativas sobre mim mesma. Em um certo ponto, depois de muita resistência e da tentativa de caminhar a passos muito curtos, minha curiosidade e interesse superam o medo. Então as perguntas, que são a base de qualquer trabalho, começam a surgir. Eu tenho a sensação de que cada peça é um mundo que já existe em outra dimensão. Minha tarefa é descobrir quais são suas leis e princípios e segui-los rigorosamente. Quando fico bloqueada, eu digo à peça: “por favor, se revele!” e tento sair de seu caminho. A experiência de se criar e se apresentar é mais próxima da meditação do que qualquer outra coisa em que eu possa pensar. A experiência de foco extremado e relaxamento livre ao que surge no instante são princípios fundamentais da meditação em pose sentada: consciência e experiência direta do momento sem o filtro das ideias. Eu sempre fui relutante em codificar ou catalogar meu vocabulário de sons vocais. Esse processo analítico parece retirar o mistério de todas nuances, impulsos, cores e dinâmicas que surgem até mesmo em apresentações individuais de canções que já interpretei muitas vezes. A mercantilização dessas “técnicas” pode se tornar uma receita que envolve cálculos mentais ao invés de um reconhecimento de mensagens inefáveis que surgem. Na trajetória de se criar, algumas peças parecem ter um certo brilho. Parecem ter uma vida própria desde o início, nascidas completas. Ouvindo-as novamente depois de muitos anos, fico impressionada com seus mistérios e sua existência. Apesar de lembrar o trabalho meticuloso e paciente de trazê-las à vida, também recordo a aparente inevitabilidade de suas formas, a clareza e a naturalidade de sua realização. Como isso acontece? Eu considero essas entidades como presentes de um domínio maior, mais sábio e os momentos de criá-las, dádivas. Pitágoras 500, Campinas, SP. v.7, n.2 [13], p. 55-58, jul./dez. 2017. 57 Na prática meditativa, a instrução básica é voltar à respiração repetidamente (sem julgamento), mesmo se a mente divague em pensamentos, fantasias e emoções. O momento do retorno é um momento de consciência. Fazer música é o mesmo processo. Consiste em começar do zero toda vez; acreditando no vazio, no espaço, na dádiva da incerteza, sem julgamentos tão rápidos; permitindo que os materiais se mantenham como eles mesmos até que surja o momento certo de tecê-los juntos em uma composição. Eu tento nunca esquecer que desfruto o privilégio de dedicar-me a uma atividade que afirma o espírito da investigação e me permite oferecer o que descobri. Sou grata por fazer parte da universo musical, pela magia da música permear minha vida. Pitágoras 500, Campinas, SP. v.7, n.2 [13], p. 55-58, jul./dez. 2017. 58








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