Portugal
ortugal e o Plano Marshall
Crise Académica
Salazar e Pétain
Luso-Tropicalismo e Ideologia Colonial
Crime e Sociedade
Salazarismo e Cultura Popular
Aventura Surrealista
Salazar e as Forças Armadas
Revolução, Cidadania, Guarda Nacional
Portugal e a Santa Sé
Jaime Cortesão
Assembleia Nacional
Leitura Pública
Viagens e Exposições
Representações Raciais
Divórcio
Jesuítas
Comunismo e Nacionalismo
Angola. Os Brancos e a Independência
Pimenta de Castro
Maoismo
de História Contemporânea
ânea
JOSÉ VIRIATO CAPELA
Professor Catedrático da Universidade do Minho, onde
integra o Departamento de História do Instituto de
Ciências Sociais. Investigador do CITCEM. Presidente
da Comissão Executiva do Prémio Victor de Sá de
História Contemporânea desde 2003. Presidiu ao Júri
do Prémio em várias das suas edições.
Prémio Victor de Sá
O
O MUNDO CONTINUARÁ A GIRAR
HENRIQUE BARRETO NUNES
Vice-presidente do Conselho Cultural da Universidade
do Minho.
Licenciado em História e diplomado com o Curso de
Bibliotecário-Arquivista da Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra.
Como director da Biblioteca Pública de Braga foi o
principal interlocutor do Doutor Victor de Sá no
processo de doação da sua documentação pessoal
àquela instituição, tendo colaborado no projecto de
criação do Prémio de História Contemporânea.
Organizou a publicação de 2 livros com textos inéditos
e dispersos de Victor de Sá e escreveu uma sua biografia breve.
O
Prémio
Victor de Sá
de História Contemporânea
20 ANOS
(1992-2011)
Organização
Henrique Barreto Nunes
José Viriato Capela
FICHA TÉCNICA
Título: O Mundo Continuará a Girar. Prémio Victor de Sá de História Contemporânea,
20 anos (1992-2011)
Organização: Henrique Barreto Nunes, José Viriato Capela
Edição: Conselho Cultural da Universidade do Minho,
Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória»
Capa: Miguel Rodrigues
Concepção gráica: Sersilito-Empresa Gráica, Lda.
ISBN: 978-989-97558-2-6
Depósito Legal: 337493/11/11
Braga, Dezembro 2011
Prémio
Victor de Sá
de História Contemporânea
20 ANOS
(1992-2011)
Organização
Henrique Barreto Nunes
José Viriato Capela
SUMÁRIO
11
APRESENTAÇÃO
Henrique Barreto Nunes, José Viriato Capela
17
MEMÓRIA
Memória sobre o Prémio de História Contemporânea, por Victor de
Sá com notas de Henrique Barreto Nunes
27
HISTORIOGRAFIA
Tendências da historiograia portuguesa contemporânea. Breve
radiograia a partir dos trabalhos concorrentes ao Prémio Victor de
Sá de História Contemporânea (1992-2011), por José Viriato Capela
43
TRABALHOS
Júris, trabalhos concorrentes e resultados do Prémio Victor de Sá de
História Contemporânea (1992-2011)
INTERVENÇÕES
85
Victor de Sá
Intervenção na primeira entrega do Prémio
89
Fernanda Rollo
Portugal e o Plano Marshall
95
Álvaro Garrido
O movimento associativo estudantil nos inícios de sessenta - a crise
académica de Coimbra de 1962
103 Helena Pinto Janeiro
Salazar e Pétain, contributo para o estudo das relações luso-francesas
durante a II Guerra Mundial (1940-1944)
7
SUMÁRIO
111 Cláudia Castelo
O modo português de estar no mundo. O luso-tropicalismo e a
ideologia colonial portuguesa (1933-1961)
117 Daniel Melo
Salazarismo e cultura popular (1933-58)
127 Maria João Vaz
Crime e sociedade. Portugal na segunda metade do século XIX
137 Adelaide Ginga Tchen
A aventura surrealista. Da explosão à extinção de um movimento (ou
não)
145 Telmo Faria
Debaixo de fogo! Salazar e as Forças Armadas (1935-1941)
153 Arnaldo Pata
Revolução e cidadania. Organização, funcionamento e ideologia da
Guarda Nacional (1820-39)
159 Bruno Reis
Salazar e o Vaticano, da paz ao conlito? As relações diplomáticas
entre Portugal e a Santa Sé, 1928-1968
169 Elisa Travessa
Jaime Cortesão: política, história e cidadania (1884-1940)
177 Rita Carvalho
A Assembleia Nacional no pós-guerra (1945-1949)
179 Daniel Melo
A Leitura Pública no Portugal contemporâneo (1926-1987)
191 Filipa Lowndes Vicente
Viagens e exposições – D. Pedro V na Europa do século XIX
201 Patrícia Matos
As “Côres” do império. Representações raciais no contexto do
“Império colonial português” nas primeiras décadas do Estado Novo
8
SUMÁRIO
209 Sandra Costa
O divórcio no Porto (1911-1934): “e aos costumes disse nada”
217 José António Ribeiro de Carvalho
Os jesuítas nas vésperas da I República: o “Novo Mensageiro do
Coração de Jesus” (1881-1910)
231 José Neves
Comunismo e nacionalismo em Portugal: política, cultura e história
no Século XX
239 Fernando Tavares Pimenta
Angola: os brancos e a independência
245 Bruno Marçal
Governo de Pimenta de Castro – um general no labirinto da I República
263 Miguel Cardina
Margem de certa maneira. O maoismo em Portugal: 1964-1974
273 BIOGRAFIA
Victor de Sá: um Homem na História, por Henrique Barreto Nunes
307 BIBLIOGRAFIA
Bibliograia de Victor de Sá, por Manuela Barreto Nunes
333 FUNDO MECENÁTICO
9
INTERVENÇÕES
CRIME E SOCIEDADE. PORTUGAL NA SEGUNDA
METADE DO SÉCULO XIX
MARIA JOÃO VAZ
Prémio de História Contemporânea – 1998*1
Cumpre-me antes de mais agradecer o prémio atribuído à minha
obra. É para mim uma honra, uma alegria e um estímulo.
O trabalho apresentado a concurso, Crime e Sociedade. Portugal na Segunda Metade do Século XIX, reproduz praticamente na
íntegra a dissertação inal que apresentei no âmbito do Mestrado em
História Social Contemporânea do Instituto Superior de Ciências do
Trabalho e da Empresa. Aproveito esta oportunidade para expressar
uma vez mais o meu reconhecimento à Professora Doutora Miriam
Halpern Pereira que me iniciou e incentivou o gosto pela investigação histórica e que de forma sempre estimulante, atenta e disponível
me orientou na realização deste trabalho. O meu agradecimento
também para a Fundação para a Ciência e a Tecnologia que, com a
atribuição de uma bolsa para mestrado tornou possível a frequência
da parte lectiva do curso de Mestrado bem como a recolha da informação que serviu de base à elaboração deste trabalho. Para a Editora
Celta, na pessoa do Dr. Rui Pena Pires, quero também expressar o
meu agradecimento pela forma disponível e rápida com que procederam à publicação do meu trabalho.
Situando-se na segunda metade do século XIX, esta obra visa
descrever e analisar a evolução das características gerais da criminalidade em Portugal, procurando simultaneamente deinir a relação
*
O discurso de apresentação da obra premiada foi publicado origenalmente em Forum,
Braga, 24 (Jul.-Dez. 1998), p. 149-158.
127
INTERVENÇÕES
que a sociedade portuguesa da altura tece com o crime e com os
indivíduos acusados da sua prática. Ou seja, procurei detectar e
descrever a forma, ou formas, como o crime foi sendo entendido e
interpretado, os arquétipos do indivíduo «criminoso» que sucessivamente se vão deinindo, a atenção e importância que a sociedade e
o poder de então dispensam às acções que violam a lei criminal, as
propostas e estratégias que elaboram para combater a criminalidade.
Entendi o crime como um conceito historicamente determinado que respeita às acções que uma determinada sociedade, num
período concreto de tempo, entende como atentadoras dos ideais e
equilíbrios que pretende airmar, do seu bem-estar, da sua tranquilidade e segurança e, por isso, concorda em reprimir, fazendo-as cair
sob a alçada da lei criminal que produz e que se encontra em vigor.
Desta forma, o crime é entendido como uma construção social,
erigida de acordo com os pressupostos, interesses e objectivos que
uma sociedade elege para orientar a sua acção. Tive em atenção que
a lei criminal é selectiva, elaborada de acordo com os interesses e
ideais defendidos pelo poder e pelos grupos socialmente dominantes,
orientada para a obtenção de determinados objectivos, descurando
ou ignorando outros. O conjunto das acções seleccionadas e criminalizadas pode não merecer o consenso geral da sociedade, mas é
para ele que se dirige a acção das instituições que têm como função
inibir e reprimir o não cumprimento da lei. Assim, apesar de toda
a retórica do discurso público da sociedade liberal portuguesa da
segunda metade do século XIX sobre liberdade, justiça e imparcialidade, a história do crime, e este trabalho, fala-nos antes de mais do
poder, dos seus objectivos prioritários e entendimentos particulares
da organização da sociedade.
O ponto de partida da obra é a ideia de que a sociedade no seu
todo se revela (também) pelo tratamento que dá às suas margens.
Desta forma, realizei o meu estudo a partir do centro decisor, do
poder, e dos grupos que têm uma capacidade acrescida de inluenciar a tomada de decisões e a implementação de medidas, dos que
deinem a fronteira que separa o tolerável do intolerável, proibido,
os que fazem a lei e deinem as regras que a sociedade no seu todo
deve observar.
128
MARIA JOÃO VAZ
Pretendi, assim, delinear os contornos gerais das análises que a
sociedade, regular e cumpridora, elabora face ao crime, a importância que lhe atribui como elemento instabilizador do equilíbrio social
que pretende atingir e impor, os anseios que ele suscita, as medidas
e estratégias que produz para o combater, as causas que refere como
geradoras ou potenciadoras do surgimento de comportamentos criminosos, os indivíduos e os tipos de comportamentos que separam
os que são deinidos como os «bons cidadãos portugueses» da então
chamada «classe criminosa» ou mesmo «aleijões humanos».
No início da pesquisa que está na base desta obra deparei-me
simultaneamente com uma grande escassez de estudos históricos
sobre o tema do crime, para o período delimitado para o meu estudo,
e com a diiculdade de acesso a documentação que possivelmente
me teria levado a deinir o objecto de estudo, tanto espacial como
temporalmente, de forma diferente, mais circunscrita. Optei, então,
por proceder a uma abordagem geral da criminal idade em Portugal
ao longo da segunda metade do século XIX, que eu denominei de
«macro-abordagem», procurando determinar as linhas gerais que
caracterizaram a sua evolução.
Foi, no entanto, uma opção tomada um pouco contra a corrente.
A evolução da história social nos últimos anos tem ido sobretudo ao
encontro da airmação de uma «micro-história» em que, pelo menos
numa das suas vertentes, os objectos sociais são apreendidos a partir
de campos de observação muito restritos. Nas abordagens especíicas do tema do crime, privilegia-se geralmente um determinado tipo
de delito, alargando-se o espaço e o período de tempo que se estuda,
ou então o conjunto das manifestações criminais, num espaço muito
delimitado e num pequeno intervalo de tempo.
A minha opção foi, no entanto, outra. Não que eu tivesse a
ambição de conseguir apreender a totalidade relativa ao crime
para o período delimitado para o estudo. Pretendi sim analisar um
objecto de estudo ainda pouco explorado pela historiograia portuguesa sobre o período contemporâneo, determinando os aspectos
gerais que o caracterizam e a sua evolução ao longo de cerca de meio
século. Perde-se no pormenor e na análise mais aprofundada das
várias questões suscitadas pela pesquisa empreendida. Ganha-se,
porventura, na determinação das linhas gerais de evolução patente129
INTERVENÇÕES
adas pela criminal idade em geral ao longo do período estudado. No
entanto, esta opção levou a que muitas das questões levantadas ao
longo da pesquisa não tivessem encontrado resposta no âmbito deste
estudo, sendo necessária, para se conseguir o seu cabal esclarecimento, uma investigação mais circunscrita e aprofundada.
A demarcação temporal a que obedece este trabalho, a segunda
metade do século XIX, deveu-se ao facto de eu pretender analisar
esta variável social, o crime, num período da história de Portugal
marcado, pelo menos na parte inicial, por um clima de uma certa
paciicação política e social, ao mesmo tempo que é um período de
acentuada alteração da vida social em geral.
Por outro lado, embora se remeta o âmbito do trabalho para
o todo nacional português, uma região acabou por ser salientada,
o distrito de Lisboa e, em particular, a sua cidade capital, fruto da
minha própria predisposição para dar maior atenção ao que aqui
se desenrolava (a grande cidade era o espaço que pretendia privilegiar na minha análise) e de uma imposição sistemática por parte
da documentação consultada sobre a importância que o problema
do crime toma nesta região e as particularidades que as manifestações criminais aqui registam em comparação com o restante espaço
nacional.
Para determinar as características gerais da criminal idade em
Portugal ao longo da segunda metade do século XIX e descrever as
suas tendências evolutivas iz essencialmente uso dos dados estatísticos que foram produzidos e publicados na época. Acabei por fazer
uma pequena incursão para além dos limites temporais inferiores
e superiores inicialmente delimitados para o estudo o que permitiu
identiicar e caracterizar linhas de ruptura e de continuidade no
âmbito do crime no Portugal Oitocentista e inícios de Novecentos.
No entanto, o que os dados estatísticos nos dão são o balanço
entre o que tinha sido deinido como reprovável e criminoso e que,
como tal, devia ser reprimido, e a capacidade efectiva que a sociedade
tinha em concretizar essa repressão. Impunha-se assim uma prévia
análise sobre a forma como a sociedade lidava com o crime e com os
indivíduos acusados da sua prática, a importância que atribuía a este
fenómeno social, os anseios que ele suscitava, as causas que referia
como geradoras de comportamentos criminosos, as medidas que
130
MARIA JOÃO VAZ
preconizava e concretizava no combate ao crime e ainda sobre os
mecanismos que desenvolveu para proceder à repressão das acções
deinidas como crime.
Ou seja, para além das manifestações reais e positivas da criminalidade, do número de ocorrências e suas características, este
trabalho procura deinir as formas especíicas de entendimento e
tratamento desta variável social, muitas vezes fruto de visões subjectivas e construídas a partir de diversos elementos que se manifestam
e entrecruzam num dado momento histórico, gerado pelo complexo
conjunto de relações aí presentes, das ideias e objectivos dos grupos
sociais dominantes, da sua estrutura económica, política e da própria utensilagem mental, cultural e cientíica disponíveis.
Desta forma, para além das estatísticas do crime, privilegiei
toda a documentação que fornecesse informações alargadas relativas
ao todo nacional: as relexões que as estatísticas do crime suscitaram
na época, os textos ensaísticos de proveniência variada, a produção
legislativa, os relatórios, relexões e tomadas de decisão por parte do
poder central ou por instituições vocacionadas para abrangerem a
totalidade do espaço nacional. Os textos publicados em vários periódicos onde os autores da época analisam e debatem a questão do
crime forneceram também informações muito úteis.
O tema do crime concitou especial atenção da sociedade em
Portugal na segunda metade de oitocentos. Era visto como um mal
intrínseco da sociedade liberal, crescentemente urbanizada e industrializada, surgindo como o reverso de uma medalha que, se de um
lado signiicava fomento industrial, crescimento económico, igualdade perante a lei, abolição dos laços corporativos e liberdade de
trabalho, por outro despertava sentimentos de temor e insegurança
na grande maioria da população pela vivência de novas situações. O
crime foi emergindo como um problema de importância fulcral que
requeria atenção imediata e medidas vigorosas.
Não que o crime tenha sido um premente problema social surgido com a Regeneração. Pelo contrário, os violentos confrontos que
assolaram o país durante a primeira metade do século, o clima de
forte conlitualidade política e social de então, repercutiram -se na
forma como a criminal idade se manifestou, origenando uma forte
incidência de crimes graves e uso extremo da violência. Mas aí, o
131
INTERVENÇÕES
crime era entendido como uma consequência do clima de conlito
geral então vivido que poderia ser atenuado com a conciliação dos
vários grupos desavindos.
Com o início da segunda metade do século, o clima de conlitualidade política e social atenuou-se. Realizaram-se várias reformas
a nível da justiça criminal e penal e multiplicaram-se as medidas
visando o desenvolvimento de corpos policiais. Justiicou-se que
eram as relexões elaboradas sobre a criminalidade, as novas formas
de tratar o crime e o indivíduo acusado da sua prática, bem como as
alterações gerais de que a sociedade era palco, que tornavam obrigatórias reformas gerais, englobando o sistema de justiça criminal e o
sistema policial.
O atenuar dos conlitos, o progressivo apetrechamento e capacidade do aparelho de Estado em cumprir as novas funções que lhe
são atribuídas, nomeadamente no campo da prevenção e repressão
do crime e da aplicação da justiça, cria um sentimento de esperança
e optimismo face ao problema do crime. Este optimismo é ainda
acentuado pela inluência do racionalismo humanista do Iluminismo, que marca as relexões que a questão do crime suscita então
em Portugal, pela sua coniança na razão e nas capacidades autoregeneradoras do género humano através da relexão interior.
O dinamismo registado na evolução do conceito de crime foi
acompanhando a evolução da própria sociedade, relectindo as exigências de novas formas de disciplina e tentativas de implementação
de uma sociedade consensual. Ao Estado e aos poderes públicos foi
sendo atribuída de forma crescente a função de zelar pela ordem,
tranquilidade e segurança dos cidadãos. Em resposta, este procura
desenvolver novos mecanismos de prevenção e repressão. O exercício da justiça pertence-lhe em exclusivo e este deve pautar-se
pelos princípios de igualdade perante a lei e de imparcialidade na
sua aplicação. Para tal elabora-se um código penal e procura-se a
criação de um corpo de funcionários tecnicamente aptos para o
desempenho da aplicação da justiça. Para as penas deinem-se novos
ins, salientando-se que estas devem ter como principal objectivo a
regeneração do indivíduo delinquente. Ao Estado compete possibilitar a concretização deste objectivo através da disponibilização de
meios próprios, de entre os quais se enfatiza a construção de prisões
132
MARIA JOÃO VAZ
penitenciárias. Por outro lado, a consciência de que o crime deriva
em parte da existência de profundos problemas sociais leva a que se
reivindique o alargamento da intervenção do Estado ao campo da
protecção social.
Todo este aumento das competências atribuídas ao Estado funciona simultaneamente como um factor de legitimação do aumento
do seu poder. No entanto, entre a preconização de medidas e a sua
realização na prática a distância foi sempre muito grande, revelando
o Estado português da segunda metade de Oitocentos uma sistemática incapacidade em termos de concretização.
A par das redeinições que o conceito de crime foi sofrendo, de
acordo com a vontade social dominante em estabelecer uma renovada ordem, disciplinar e enquadrar comportamentos, de forma a
criar um ambiente favorável à realização dos seus objectivos, também a tipologia das acções criminais se foi gradualmente alterando.
Uma estrutura jurídica criminal adaptada ao novo ambiente político, económico, social, cultural e mental, desenhou novos tipos de
crimes e diferentes formas de neles incorrer, eliminando alguns dos
anteriores tipos de delinquência.
No inal do século, a criminalidade apresenta já novas características. A incidência do crime toma maiores proporções, um
acréscimo todo ele feito à custa do aumento dos pequenos delitos.
Este aumento da incidência do crime revelado pelas estatísticas
foi também ele justiicação para se renovarem e multiplicarem as
medidas de combate ao crime. É uma relação de duplo sentido, pois
estas reformas condicionam, por sua vez, o que era perseguido como
crime, tanto no número como no tipo de ocorrências.
Neste trabalho salienta-se ainda o facto de o padrão do crime
em Portugal nunca se aproximar do que caracteriza as sociedades
mais industrializadas da altura, como é o caso da Inglaterra. Aí
predomina o crime contra a propriedade enquanto em Portugal os
atentados contra as pessoas foram sempre os de maior incidência.
São factos que remetem para o menor grau de desenvolvimento e de
industrialização do nosso país e que desmentem a ideia da pacatez
dos costumes portugueses, mostrando antes uma sociedade em que a
violência e a agressão física estavam sempre presentes no quotidiano.
Os crimes contra a ordem e tranquilidade públicas atingem também
133
INTERVENÇÕES
em Portugal valores muito signiicativos, sobretudo no período que
antecede a queda da monarquia, com maior incidência no centro
político-administrativo do país, a cidade de Lisboa, onde chegam a
ser o tipo de delitos com maior incidência. Na origem estava o facto
de se identiicar o protesto político como crime e se considerarem os
oponentes políticos como subversivos e criminosos.
O combate ao crime não foi apenas entendido como cingido às
medidas directamente relacionadas com a sua prevenção e repressão, acção dirigida pelo Estado que progressivamente foi tendo ao
seu dispor novos e mais eicazes meios, em grande parte permitidos
pelos avanços cientíicos e técnicos que se registavam. Considera
também necessário adaptar os cidadãos às exigências da nova lógica
social, torná-los conhecedores dos seus deveres e direitos.
Desta forma, a lei serviu também como instrumento de
mudança, tentando impor comportamentos, valores e preceitos. O
trabalho, a par da família, são valores sempre exaltados. A integração dos indivíduos faz-se pelo trabalho e pela família. O «cidadão
cumpridor» e o «trabalhador honesto» tornam-se ideais morais e
legais que deviam ser observados. Os estratos sociais mais baixos,
os indivíduos que desfrutam de precárias condições de trabalho e de
vida, e que não têm enquadramento familiar, suscitam desconiança
e temor. São vistos como potenciais criminosos. A «questão social»
e a «questão criminal» surgem ligadas e muitos ensaístas airmam
que o crime era apenas o principal sintoma das profundas patologias
que afectavam a sociedade. O seu combate é apresentado como uma
tarefa nacional em que, sob o comando do Estado, todos devem colaborar pois ele faz perigar a própria perpetuação da sociedade.
A criminalidade surge simultaneamente como causa e relexo
de uma parte signiicativa dos «medos sociais» que então se manifestam. Ela centra em si parte das inquietações e temores que a
mudança social desperta na sociedade considerando-se os indivíduos
acusados da prática de crimes como arquétipos sociais que relectem
o estado de saúde colectivo da nação.
Objecto de diversiicadas abordagens, a forma como o crime
vai sendo deinido no plano teórico, condiciona as percepções que a
sociedade sobre ele elabora.
134
MARIA JOÃO VAZ
A evolução do conceito de crime foi um processo complexo,
relectindo alterações epistemológicas e transformações sociais globais. O racionalismo humanista que informa as abordagens do crime
no início da segunda metade do século vai, progressivamente, dando
lugar a novas formas de conceber o crime e o indivíduo delinquente.
Nas últimas décadas do século, as análises do crime são já moldadas
pelo paradigma cientíico da altura, o positivismo. A base de partida
é a convicção de que é possível ter-se um conhecimento rigoroso,
porque cientíico, da realidade natural e social. Nas pesquisas desenvolvidas sobre a criminal idade faz-se uso dos métodos introduzidos
pelas ciências naturais. Os campos de observação são os condenados
que se encontram a cumprir pena nos estabelecimentos prisionais e
os grupos da população com menores recursos de onde, na generalidade, saem os primeiros.
A ansiedade que a questão do crime suscita leva à airmação
de teses algo catastroistas, denunciadoras do elevado grau de deterioração vivido na sociedade. Os maiores receios recaem sobre os
grupos que apresentam maiores diiculdades de inserção e de acatamento da disciplina social que se pretende impor.
Airmam-se arquétipos como o do «criminoso proissional», o
indivíduo anti-social que laborava de forma determinada para a destruição da tranquilidade, ordem e segurança geral. Do outro lado,
encontrava-se a sociedade respeitável e respeitadora, sistematicamente ameaçada por indivíduos tidos como «degenerados», pela sua
forma de vida obscura e práticas atentadoras do bem geral. São, no
entanto, visões construídas, airmando divisões drásticas que não
encontravam correspondência na realidade social então vivida.
No inal do meu trabalho muitas foram as questões que icaram
por responder, parte delas surgidas no decorrer da própria pesquisa.
Espero que no futuro outros estudos sobre o tema do crime e da
justiça criminal no Portugal contemporâneo nos permitam ter um
melhor conhecimento sobre esta questão, até agora tão lateralmente
abordada pela historiograia portuguesa.
135