Tambores na Escola: Ressonância, Escuta e Intersubjetividade
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Tambores na Escola - Maria Teresa Loduca
Sumário
CAPA
INTRODUÇÃO
1
A RESSONÂNCIA histórica do tambor nas relações intersubjetivas
1.1 VESTÍGIOS DO TAMBOR, UM CRONÓTOPO AFRICANO
1.2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRABALHO DE PESQUISA HISTÓRICA COM SONORIDADES
1.3 A ANCESTRALIDADE DO TAMBOR ANCESTRAL
1.4 FUNÇÃO DOS TAMBORES PARA OS POVOS AFRICANOS
1.5 Mitos fundantes, heróis dos povos, cerimonial, cortejos
1.6 RELATOS DE VIAJANTES SOBRE AS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS NEGRAS NO BRASIL
1.7 O SOM PROSCRITO DOS TAMBORES AFRICANOS
2
O COTIDIANO NA ESCOLA: AS VICISSITUDES DO TAMBOR COMO BASE PARA A CONSTRUÇÃO DA ESCUTA FLUTUANTE
2.1 A PROPÓSITO DA EXPERIÊNCIA NA ESCOLA DE APLICAÇÃO DA USP
2.1.1 Baixarias na escola?
2.1.2 Funk enclausurado: defesa e nova reação de cunho moral
2.1.3 20 de novembro: música negra apartada da cultura negra
2.1.4 — Eu sou preto, professora!
2.2 DOCÊNCIA COMPARTILHADA NA EMEF SATURNINO PEREIRA
2.2.1 Meu pai antigo: a emergência da tradição africana
2.2.2 Finalizando o semestre: rumo à apresentação do Quarteto de Cordas
2.2.3 Segunda etapa da docência compartilhada na aula de História
2.2.4 Novas vicissitudes: interrupção da parceria
2.2.5 Música e Língua Portuguesa
2.2.6 — Ouvi voz de gente chata
2.2.7 Seguindo a batida do líder
2.2.8 Cubo ou tubo?
2.2.9 Confecção de instrumentos
2.2.10 Leitura flutuante da questão étnico-racial na música negra
3
TAMBORES NA ESCOLA
3.1 RODA DE CONVERSA
3.2 SOM, PAUSA, SILÊNCIO, MOVIMENTO
3.3 O CAXIXI
3.4 DO IMPROVISO AO IMPROVISO
3.5 JOGANDO COM PALAVRAS
3.6 DESABAFO, TRAVA-LÍNGUAS E CRIAÇÃO
3.7 ENCONTRO DESENCONTRADO: ENTENDIMENTO E REFLEXÃO
3.8 DIAFRAGMA: INSPIRAR E RESPIRAR
3.9 O AGOGÔ
3.10 UMA FLORESTA NA SALA DE AULA
3.11 CONVERSA SOBRE A PERCEPÇÃO AUDITIVA
3.12 O TAMBOR AFRICANO NA SALA DE AULA
3.13 CONCENTRAÇÃO E ESCUTA
3.14 OS MALÊS E A ÁRVORE DO ESQUECIMENTO
3.15 VICISSITUDES AMPLIFICADAS
3.16 CHICO SCIENCE PARA DOIS
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
SOBRE A AUTORA
CONTRACAPA
Tambores na escola
Ressonância, escuta e intersubjetividade
Editora Appris Ltda.
1.ª Edição - Copyright© 2023 dos autores
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.
Catalogação na Fonte
Elaborado por: Josefina A. S. Guedes
Bibliotecária CRB 9/870
Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT
Editora e Livraria Appris Ltda.
Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês
Curitiba/PR – CEP: 80810-002
Tel. (41) 3156 - 4731
www.editoraappris.com.br
Printed in Brazil
Impresso no Brasil
Maria Teresa Loduca
Tambores na escola
Ressonância, escuta e intersubjetividade
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Mônica G. T. do Amaral, pela paciência e pela parceria intelectual na jornada de pesquisa, permeada por valiosos ensinamentos, que contribuíram tanto para meu crescimento pessoal quanto para o despertar como educadora musical.
À minha filha, Ligia, pela presença alegre nos anos de elaboração deste trabalho.
Aos funcionários da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp), sempre solícitos.
À Rute Reis, por sua sabedoria pessoal e profundo conhecimento do cotidiano das escolas públicas, por me apresentar esse instigante universo, e também ao filósofo Paul Gilroy, autor da obra Atlântico Negro¹.
À Elaine, pela serenidade em um momento de muitas dúvidas.
Aos amigos que fiz no processo de pesquisa, representados aqui pelo Mestre Valdenor Silva dos Santos, Cristiane Correia Dias e Dirce Thomaz, pelas inúmeras oportunidades que tive de compartilhar de sua arte e sabedoria, sempre presentes em suas vidas.
À Fabiana Biscaro, pelas leituras e preciosos apontamentos na elaboração deste texto.
À Selma Amaral, pela minuciosa colaboração na fase final deste livro.
À Leda Barone e Camila Carrascoza Bomfim, pelas preciosas palavras em um momento decisivo.
A todos os amigos, que souberam compreender minhas ausências, representados por Lina Noronha, Sílvia de Lucca, Yara Borges e Yolanda Barozzi.
Às escolas nas quais realizei a pesquisa empírica, especialmente aos alunos e aos professores que participaram do trabalho de campo, parceiros na construção de uma nova forma de pensar a educação permeada pela linguagem musical e pela cultura afro-brasileira nas instituições públicas.
Aos familiares, que compartilharam comigo este percurso, de longe ou de perto.
¹ GILROY, P. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes: Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.
Toque de surdo, matraca
Gonguê, prato e faca
Maraca e bongô
Guizo, pandeiro, cuíca e tambor
Caixa, chocalho, afoxé
Caxixi, xequerê
Tamborim e agogô
Rainha Bantu mandando chamar rei Nagô...
A bença, pai
Ô ritmo
A bença, mãe
Ô África...²
² AGEPÊ. Bença, Negro. In: Cultura Popular. Polygram, 1989. Faixa 2. Disponível em: http://cliquemusic.uol.com.br/discos/ver/agepe/cultura-popular. Acesso em: 13 mar. 2018.
APRESENTAÇÃO
Minha formação em música permitiu-me atuar no diálogo com a realidade complexa que envolve a introdução, na escola, das vivências ancestrais negras no campo musical, levando em consideração os embates e as tensões entre a cultura escolar e as culturas juvenis cultivadas pelos alunos afrodescendentes. Em busca de respostas para a problemática do racismo institucional, decorrente desses embates, procuramos sustentação nos textos de Munanga³, Caputo⁴ e Araújo⁵. Leituras essas que nos fizeram modificar a maneira de tratar a temática negra na escola durante o processo de pesquisa que se estendeu por três anos.
Foi fundamental perceber que o tambor, dada a sua imponente sonoridade, poderia provocar fissuras no racismo institucional reproduzido pela escola, tanto quanto naquele propagado pelas religiões neopentecostais, internalizadas por muitos dos alunos, inclusive afrodescendentes. Em nossas ações e discussões em sala de aula, era comum a associação do termo macumba ao tambor. Porém, cada vez que essa palavra era mencionada, nós dizíamos sim, vamos falar de macumba
; a cada comentário sobre os instrumentos da macumba
, nós respondíamos sim, vamos tocá-los
, no intuito de provocar uma espécie de reversão dialética do sentido pejorativo dado à palavra.
Ao longo dessa jornada, fez-se necessário vencer resistências, em um sentido bem próximo do apontado por Leite, pesquisador com formação em música semelhante à minha⁶:
Imagine-se o tamanho de meus impasses ao percorrer tantas etapas sucessivas, diversas e não raro conflitantes. Aturdido, li todo o possível sobre o negro brasileiro e o Candomblé, constatando com o tempo não estar tratando nem apenas com música nem com religião, mas sim com um foco de resistência à destruição de valores contendo multiplicidades de explicações do mundo e do homem.⁷
A formação cultural e acadêmica do professor do ensino formal, herança de um modelo de ciência positivista, leva-o a uma abordagem compactada e, muitas vezes, superficial, com ênfase na dimensão técnico-cientificista do conhecimento, da qual a escola é reprodutora. Sendo assim, como desenvolver, nesses educadores, a capacidade de superação de suas crenças, ou melhor, do conhecimento convertido em crença, perante o compromisso público com uma escola que atenda aos direitos dos alunos, especificamente dos afrodescendentes e indígenas, de terem suas culturas representadas no ensino formal, sem a interferência de convicções pessoais em sala de aula? Como criar movimentos de tensão que permitam repensar crenças e valores em direção a novas possibilidades?
³ MUNANGA, K. (org.). Superando o racismo na escola. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.
⁴ CAPUTO, S. G. Educação nos terreiros e como a escola se relaciona com as crianças do candomblé. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.
⁵ ARAÚJO, P. C. Entre ataques e atabaques: intolerância religiosa e racismo nas escolas. São Paulo: Arché Editora, 2017.
⁶ Este livro foi elaborado na primeira pessoa do plural. Há momentos, porém, em que se fez necessário, para maior clareza, o uso da primeira pessoa do singular.
⁷ LEITE, F. A questão ancestral: África negra. São Paulo: Casa das Áfricas, Palas Athena, 2008, p. 16.
PREFÁCIO
Tocar atabaque
Foi meu pai antigo que me ensinou...
Os tambores ressoam em sala de aula, animam corpos e mentes de professores, pesquisadores e ativam uma memória ancestral durante muito tempo abafada ao longo da história e da educação brasileiras, cujas narrativas e práticas se mantiveram distantes das culturas dos povos originários e afro-brasileiros, que habitam, cuidam e constroem o chão deste país.
A epígrafe faz alusão a um momento precioso da docência compartilhada conduzida por Teresa Loduca numa escola municipal na Cidade Tiradentes, bairro da zona leste de São Paulo, em que realizávamos uma pesquisa de políticas públicas⁸, cujo objetivo era produzir rupturas, transformações e ressignificações na cultura escolar da escola pública. Um momento em que um jovem estudante pode tocar o tambor com toda a força do saber ancestral que ele trazia guardado em seu corpo/memória. E que foi fundamental para promover fissuras nas tendências eurocêntricas que imperavam no currículo e práticas escolares.
Ao mesmo tempo, foi um momento chave para reorientar a escrita da pesquisadora, musicista de longa experiência, que aceitou o desafio de se apropriar da sonoridade dos instrumentos afro-ameríndios e introduzi-los em sala de aula, fazendo-os dialogar com as aulas de história e português. A docência que a autora propôs com outra pesquisadora, Cristiane Dias, dançarina de break — HipHopNagô — foi uma das experiências mais marcantes da pesquisa, em que o tambor emergiu como um marcador de resistência negra na escola. Converteu-se em um verdadeiro cronótopo, termo empregado pela autora⁹ para se referir ao tambor, como um símbolo organizador da diáspora afro-americana, enquanto memória de resistência negra, que tem sido reapropriado pelas diversas expressões estéticas do hip-hop, ao mesmo tempo que põe em circulação ideias, saberes, conhecimentos e ativismo político e cultural, como bem assinalara Gilroy (2001).
Teresa Loduca percorreu, perscrutou os tambores, não apenas em sala de aula, mas também pesquisando diversas obras, atentando-se para o sentido político, de comunicação e de resistência assumido pelas comunidades de tambor, seja nas revoltas, como a dos Malês¹⁰, em 1835, seja nos rituais do candomblé, seja na formação dada nos terreiros às novas gerações, como evidenciado pela pesquisa feita por Caputo (2012).
Seu trabalho teórico e de campo junto aos estudantes e professores da escola esteve o tempo todo permeado por essa escuta atenta dos tambores, das revoltas e da resistência negra do passado, mas que ainda se fazia presente entre os alunos e que urgia ser reavivada na escola, de maneira a reconectá-la com as inúmeras histórias e narrativas negadas, tanto na educação básica, quanto no campo acadêmico.
Para finalizar esse breve prefácio, gostaria de parabenizar a autora por sua dedicação à pesquisa de mestrado, que foi cuidadosamente revisada para esta publicação.
Mônica do Amaral
Professora associada e pesquisadora
sênior da Faculdade de Educação da USP
⁸ Pesquisa de políticas públicas: O ancestral e o contemporâneo nas escolas: reconhecimento e afirmação de histórias e culturas afro-brasileiras
(Processo Fapesp/2012: 50120-8), sob minha coordenação.
⁹ Tomando de empréstimo o termo empregado por Paul Gilroy, em sua obra O Atlântico Negro (2001), para se referir ao navio por onde trafegaram os povos da diáspora africana para as Américas, como um sistema vivo, micropolítico e microcultural.
¹⁰ Com base na importante obra de Reis, Revolta dos Malês (2003).
INTRODUÇÃO
Ao final de quase dois anos de trabalho na Escola Municipal de Ensino Fundamental Saturnino Pereira, em uma ocasião atípica no ambiente escolar, ouvimos soar o ritmo que acompanha um fragmento de letra de um antigo samba de roda. Um jovem aluno afrodescendente, tocando uma timba, fez ecoar a voz ancestral do tambor africano ao lado de dois outros estudantes, que, assim como nós, se deixaram contagiar pelo improviso do colega. A professora, titular da disciplina de História, ainda hesitante em assumir uma abordagem pedagógica afrocentrada em sala de aula, não participou da aula por estar envolvida em uma reunião de pais, a última reunião daquele ano de 2014 — o que também explica a baixa frequência dos alunos naquele dia. Assim, numa atmosfera intimista, preparada para a exploração sonora, com instrumentos artesanais¹¹ de origem africana espalhados pela sala de aula, os jovens sentiram-se à vontade para expressar livremente sua cultura na instituição.
Esse introito serve para ilustrar o contexto de desenvolvimento de nosso problema de pesquisa, que se delineou no decorrer do trabalho de campo realizado no ambiente escolar, ao observarmos reações as mais diversas diante do atabaque. Tal instrumento chamava a atenção dos alunos, num misto de curiosidade, receio, mas também de preconceito. Ao mesmo tempo, o tambor de matriz africana surgiu como objeto potencialmente capaz de romper com os estereótipos em torno do instrumento arraigados na cultura escolar, ou mesmo provocar uma ruptura dos campos do inconsciente, individual e coletivo¹². Portanto, no caso desta pesquisa, a ruptura se deu nas esferas das representações inconscientes subjacentes aos discursos e práticas do cotidiano escolar, fazendo emergir planos ocultos ou reprimidos na subjetividade docente, mas sobretudo discente, presenciadas em classe, tanto de repúdio como de aceitação do instrumento.
O momento de liberação de uma memória corpórea e musical ancestral do aluno afrodescendente deu-se em oposição ao que poderíamos chamar de indícios do racismo institucional, tal como pode ser entendido o preconceito reproduzido no universo escolar, fez parte de um conjunto de intervenções experimentais — realizadas em diferentes contextos da escola pública com alunos do 9.º, 8.º, 7.º e 6.º anos — em observância da Lei 10.639/2003, que torna obrigatória a inclusão da história e cultura afro-brasileiras no currículo das escolas públicas de ensino fundamental no Brasil. Essas experiências foram realizadas na cidade de São Paulo entre os anos de 2013 e 2016, como ações integradas ao trabalho de pesquisa vinculado a dois projetos maiores. O primeiro deles foi o projeto Rappers, os novos mensageiros urbanos na periferia de São Paulo: a contestação-estético musical que emancipa e educa, com alunos do 9.º ano da Escola de Aplicação (FEUSP) e do 6.º e 9.º anos da EMEF Desembargador Amorim Lima em 2013¹³. O segundo foi o projeto O ancestral e o contemporâneo nas escolas: reconhecimento e afirmação de histórias e culturas afro-brasileiras¹⁴, na Escola Municipal de Ensino Fundamental Saturnino Pereira, envolvendo duas classes de 7.º e 6.º anos, em 2014/2015, e, em 2016, outra classe de 8.º ano.
Nossa construção teórico-metodológica partiu da convergência de autores de diferentes áreas do conhecimento para tratar de alguns aspectos a serem enfrentados no ambiente escolar, como: o preconceito dos professores em relação às culturas urbanas, a rigidez do ensino tradicional, a resistência em relação às religiões de matriz africana e a colonização do currículo, questões que surgiram com frequência no trabalho de campo desta pesquisa. O tambor aparece tanto como objeto perturbador, capaz de provocar algumas rupturas de campo no universo escolar, quanto como objeto norteador da pesquisa a respeito da trajetória de resistência do negro no Brasil que aconteceu em torno desse instrumento. A primeira parte do conjunto das experiências que fizeram parte de nosso trabalho de campo durou um semestre. Um curto período, no qual já foi possível tomar contato com formas veladas de discriminação, conscientes ou não, diante de tudo que o tambor africano evoca em termos de ruptura com o eurocentrismo presente na cultura escolar e acadêmica. Assim, desde o início, uma questão se impôs como fundamental, decorrente de nosso problema inicial: é possível trabalhar a música negra com os jovens afrodescendentes sem abordar o modo como a questão étnico-racial é enfrentada em sala de aula?
Nossa estratégia inicial fundamentava-se em duas ferramentas didáticas valiosas para o ensino musical de qualquer natureza: a escuta e a improvisação. Inicialmente, em uma das aulas de música na Escola de Aplicação da Universidade de São Paulo (EA-USP), convidamos a professora de música, recém-contratada, a participar de uma atividade envolvendo o gênero musical rap, de forma a atender aos interesses dos próprios alunos (uma turma de 9.º ano). Embora disposta a respeitar as preferências musicais dos educandos, a docente demonstrou-se resistente à ideia de trabalhar com o gênero rap, por conter, segundo ela, termos vexatórios. Em uma segunda proposta, dessa vez dos alunos, de realizar a escuta de alguns funks, reagiu fortemente dizendo que não permitiria baixarias
na escola. Durante alguns meses de negociação, tivemos poucas oportunidades de abordar algo mais próximo do universo dos jovens. A história africana e afro-brasileira já havia sido abordada, mas a professora, regente de coral, com formação voltada para o repertório de música de concerto, não tinha conhecimento prévio do assunto. Em meio a improvisações livres e à classificação de vozes para um coral que a professora pretendia formar com a classe, pontualmente para as comemorações do dia 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra, tivemos um momento interessante, no qual apresentamos alguns instrumentos afro-indígenas, por meio dos quais os alunos negros puderam expressar seu saber musical.
Por outro lado, ante a resistência da docente aos gêneros da cultura urbana juvenil e, de modo mais amplo, a uma abordagem da cultura negra em sala de aula, foi possível identificar posições favoráveis, principalmente por parte dos alunos, que, se potencializadas, poderiam representar o enfrentamento necessário para uma mudança estrutural no próprio ensino de música no espaço escolar. Uma reação semelhante ante uma abordagem afrocentrada foi observada também na EMEF Saturnino Pereira. Nessa escola, foi apresentada a proposta de uma atividade com alunos do 8.º ano envolvendo a confecção artesanal de instrumentos musicais com material reciclável, inspirados em instrumentos de origem africana. A proposta foi feita justamente no sentido de repensar a ideia veiculada na escola de que os instrumentos de matriz africana estavam diretamente associados à macumba
. No entanto, coincidentemente, a parceria foi abandonada pela professora de História nesse momento, alegando interesse em um curso de regência de coral oferecido pela rede municipal de ensino no mesmo horário de nossa aula conjunta. No ano de 2016, consolidou-se nova parceria, com outra professora de Língua Portuguesa, numa classe de 8.º ano, cuja experiência foi bastante profícua. É preciso observar que, nesta escola, a direção e a coordenação pedagógica demonstraram engajamento e boa receptividade às ações propostas.
Foram, assim, diferentes experiências de docência compartilhada, a partir das quais esta pesquisa foi sendo estruturada, defrontando-se com resistências e aberturas por parte de professores e alunos. Conforme avançávamos nas experiências de docência compartilhada, foi ficando claro que a chave desse trabalho com a cultura negra na escola consistia nos momentos em que os jovens alunos rompiam o véu dos discursos ambíguos assumidos por muitos dos afrodescendentes e expressavam a musicalidade negra com toda a força dos tambores africanos, marca da ancestralidade esquecida. As reminiscências involuntárias vieram à tona graças ao que se pode designar como verdadeiras rupturas de campo
provocadas na racionalidade branca e eurocêntrica predominante na cultura escolar. Isso aconteceu por meio da musicalidade rítmica de matriz africana eliciada pelo toque dos tambores.
Daí a proposta de abordarmos alguns episódios propulsores de uma discussão teórica e metodológica necessária para a sua elucidação. A contribuição de Munanga¹⁵ foi essencial para essa reflexão sobre a adversidade — entendida não como constitutiva de uma humanidade superior ou