A organização do pensamento clínico na psicoterapia
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Sobre este e-book
Foi com a intenção de dar respostas a essa questão que um grupo de psicoterapeutas e pesquisadores elaborou concepções teóricas e práticas a respeito de um Modelo Metodológico aplicável à psicoterapia. O modelo é composto de fatores básicos encontrados com frequência nos atendimentos clínicos.
Também, são apresentadas as principais atitudes requeridas do profissional, além de indicações sobre os cuidados necessários em relação à sua interioridade. O livro não se limita ao contexto da psicoterapia psicodinâmica. Ele abrange psicoterapias em geral, especialmente sob as abordagens fenomenológico-existenciais, junguianas, cognitivo-comportamentais e psicanalíticas.
Assim, traz elementos para uma composição e uma síntese científicas bastante amplas. Não se trata de mais uma teoria, e sim de uma focalização metodológica de conjunto sobre os dados clínicos.
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A organização do pensamento clínico na psicoterapia - Walter Trinca
Sumário
Apresentação
Referência
PRIMEIRA PARTE - Características de um modelo
1. A concepção de um modelo de atendimento psicoterapêutico
Referências
2. O ser interior e o self
Referências
3. O contato e o distanciamento de contato com o ser interior
Referências
4. A fragilidade e a angústia de dissipação do self
Introdução
A fragilidade do self
A angústia de dissipação do self
Caso clínico
Discussão
Considerações finais
Referências
5. A sensorialidade: compreendendo a forma básica e a sua intensificação
Introdução
A natureza da sensorialidade
A sensorialidade básica
A sensorialidade básica intensificada
Da fragilidade e da angústia para a sensorialidade
Observação sobre a sensorialidade
Lidar com a sensorialidade
Discussões
Considerações finais
Referências
6. A sensorialidade de preenchimento substitutivo
Referências
7. A sensorialidade produzida pelos ataques dos objetos
Referências
8. A sensorialidade produzida por corte e exclusão
Referências
9. As implicações da pulsão de morte
Donald Woods Winnicott
André Green
Melanie Klein
Wilfred R. Bion
Walter Trinca
Observações gerais
Considerações finais
Referências
10. As relações com o ambiente e com os processos de desenvolvimento
O despertar do ser interior
As tragédias iniciais
À guisa de conclusão
Referências
11. Enfim, o que é um modelo metodológico?
Referências
12. A interioridade do psicoterapeuta no atendimento clínico
Considerações finais
Referências
SEGUNDA PARTE - Conexões e implicações
13. Atitude clínica: a livre expressão
Referências
Considerações sobre a experiência clínica
Vinhetas ilustrativas
Referências
14. A capacidade de holding e de consciência crítico-social
A capacidade de sustentação do acontecer clínico como encontro inter-humano
A capacidade de cultivo da consciência crítico-social
Referências
16. Atitude filosófica e artística: a busca de si mesmo na confluência dos campos filosófico, psicanalítico e estético
O sentido e a inspiração de uma démarche: em torno do conceito do ser interior
Entre a busca filosófica da verdade de si e o acesso ao ser interior
Jogos de eco e transferências: em contato com a realidade profunda
Referências
CONSIDERAÇÕES FINAIS
17. Psicanálise compreensiva: conceituações, reflexões e discussões
Introdução
O self
O ser interior
À guisa de conclusão, ousando direções de pesquisas
Referências
CONCLUSÕES GERAIS
Referências
ADENDO
Formas de pensamentos em psicoterapia
Introdução
Apreensão de objeto presente, dado
Identificação de objetos semelhantes aos da experiência anterior
Analogia entre partes constituintes de um mesmo objeto
Pensamento classificatório
Recorrência à teoria
Dedução
Prova de hipótese
Denominador comum
Pistas indicativas da solução
Articulação das partes entre si
Exclusão das alternativas menos verossímeis em um processo de tentativas
Visão simultânea de conjunto
Fechamento
Imagens intuitivas
O sentir, em contexto mais abrangente
Observação final
Referências
Créditos bibliográficos
Sobre os autores
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
A organização do pensamento clínico na
psicoterapia / organizador Walter Trinca. --
1. ed. -- São Paulo, SP : Vetor Editora, 2023.
Vários autores.
Bibliografia.
1. Psicologia 2. Psicoterapeuta e paciente
3. Psicoterapia I. Trinca, Walter.
23-172600 | CDD-616.8914
Índices para catálogo sistemático:
1. Psicoterapeuta e paciente : Relação clínica: Psicologia 150.195
Tábata Alves da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9253
ISBN: 978-65-5374-079-2
CONSELHO EDITORIAL
Ricardo Mattos (CEO-Diretor Executivo)
Cristiano Esteves (Gerente de Produtos e Pesquisa)
Coordenador de livros: Wagner Freitas
Ilustração da capa: Alexandre Trinca
Projeto gráfico: Patricia Figueiredo
Revisão: Daniela Medeiros e Paulo Teixeira
© 2023 – Vetor Editora Psico-Pedagógica Ltda.
É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação, por qualquer meio existente e para qualquer finalidade, sem autorização por escritodos editores
Ao mestre inesquecível,
Prof. Titular RYAD SIMON.
(In memoriam)
Apresentação
Grande parte dos psicólogos no Brasil está familiarizada com o diagnóstico psicológico de tipo compreensivo. Ele enfatiza, especialmente, as considerações de conjunto para o material clínico e a busca de compreensão psicológica globalizada do paciente, selecionando-se os aspectos centrais e nodais do atendimento. Além disso, esse tipo de diagnóstico sublinha o emprego predominante de métodos e técnicas fundamentados na associação livre, para o desvendamento da dinâmica inconsciente, mas também dos fatores ambientais e da vida pregressa do paciente, entre outros aspectos. Sob a perspectiva compreensiva, é bastante útil a abordagem das formas de pensamentos clínicos, utilizadas tanto na prática do diagnóstico psicológico quanto da psicoterapia, porque elas distinguem com clareza a natureza e a qualidade dos processos de pensar utilizados pelo profissional durante o atendimento. Algumas formas são mais comuns e incipientes, outras são complexas e sofisticadas, de modo que para se atingir uma compreensão clínica é necessário que o profissional se coloque questões referentes aos procedimentos empregados para acompanhar os casos e chegar às conclusões. Embora as formas de pensamentos sejam necessárias, é preciso, sem dúvida, ir além do exame das formas, a fim de que o psicoterapeuta se concentre nos conteúdos dos pensamentos clínicos. A organização dos conteúdos passa a ser o maior desafio, visto que em cada atendimento proliferam infindáveis manifestações aparentemente dispersas, variáveis e idiossincráticas, com as quais o profissional tem de se haver. Se a organização do processo diagnóstico constitui assunto importante na clínica, não menos relevante é a organização do pensamento clínico em psicoterapia.
A tarefa a que os autores deste livro se propõem é apresentar e discutir a ponte que liga o diagnóstico de tipo compreensivo à psicoterapia, mas não só. A pedra angular dessa exposição reside na descoberta e na evidência de fatores básicos, comuns à maioria das perturbações psíquicas. Eles estabelecem relações entre si, em certa ordem e disposição, resultando em configurações metodológicas favoráveis à organização do pensamento clínico. O conjunto desses trabalhos vem revelar um Modelo Geral, composto de fatores e elementos antecedentes e consequentes, que indicam os percursos de formação e de instalação pelos quais as perturbações psíquicas se manifestam em cada caso. No entanto, esses percursos só podem ser compreendidos como manifestações de sistemas gerais, aos quais se chega por verificações e acompanhamentos de inumeráveis casos clínicos, que os autores do presente livro fizeram e descreveram.
Uma das premissas consideradas é que a mente não é caótica, ela tem ordem e segue disposições estruturais e dinâmicas, mesmo quando se trata de perturbações psíquicas. Compete-nos investigar e descobrir os princípios de ordenação, pondo-os à lume. A questão aqui proposta consiste em organizar os dados com base em uma distinção básica, colocada como a existência de um ser no ser humano. Isso coincide com o fato de que o psicoterapeuta trabalha com fundamento no ser, sendo esse o seu ponto de partida e de chegada. Realizar encontros com o ser de cada paciente, eis o fulcro da questão. Um Modelo Geral de organização do pensamento clínico não ignora essa questão; ao contrário, coloca-a como aspecto central da problemática psíquica.
O estado do contato com a existência do ser, bem como a verificação do distanciamento do contato passam a ser parâmetros nos quais se baseia o psicoterapeuta, não somente para realizar os atendimentos, mas especialmente para focalizar o relacionamento do paciente consigo mesmo. Ou seja, importa o autorreconhecimento do paciente como ser e o grau de afastamento em que se encontra relativamente ao núcleo central de sua existência. Nesse caso, a tarefa terapêutica consiste em ajudar o paciente a diferenciar o que é e o que não é um contato verdadeiro, com a finalidade de se conectar ou se reconectar com seu ser.
O contato efetivamente existente ou o distanciamento de contato são condições primárias, que definem o cerne de um modelo de compreensão das perturbações psíquicas (e também da sanidade mental). Dado que há graus de distanciamento de contato, os graus mais elevados implicam, antes de tudo, diferentes níveis da angústia de passagem à inexistência ou, em outros termos, diferentes graus da angústia de dissipação do self.
Para o acompanhamento das exposições contidas nos diversos capítulos deste livro, é necessário ter em mente a discriminação entre o ser interior e o self, que são instâncias diferentes, existentes em cada pessoa. O ser interior tem a ver com a verdade e a realidade daquilo que a pessoa essencialmente é. Trata-se de um núcleo central, definido por características de unidade, autonomia, estabilidade, continuidade de existência e relativa invariância, cuja natureza é fundamentalmente não sensorial. O self, por sua vez, é uma forma de organização globalizante, cujos precipitados e produtos são relativamente variáveis, embora tenham a ver com a manutenção concreta da existência da pessoa. Nas relações entre ambas as instâncias, o ser interior exerce, em graus, influências sobre o self, que determinam diferentes formas de funcionamentos psíquicos. As interações entre essas esferas oferecem ou ocultam as noções de si mesmo, de modo a haver predominância ou afastamento das experiências de existência própria, assim como alargamentos ou estreitamentos do contato com a realidade interna e externa, além da expansão de consciência, entre outros aspectos. Do ponto de vista de um Modelo Geral, é no self distanciado da presença efetiva do ser interior que se dão as perturbações psíquicas.
Como existência, o ser interior sempre está lá, participante da interioridade. Mas é o contato com ele, variável em graus, que determinará diferentes modalidades de expressão e de funcionamento do self. Um contato suficiente implica tendência à integração e às relações significativas. Contudo, um self sujeito ao distanciamento de contato costuma resultar em comprometimentos, conflitos e, especialmente, em perturbações psíquicas. Nesse caso, há formações particulares que ocorrem em relação aos graus do distanciamento. Os graus de presença ou de afastamento do ser interior em relação ao self constituem, pois, um referencial básico para situar a pessoa perante si mesma e perante suas dificuldades emocionais. O self poderá se tornar um campo de consecução da vida da pessoa ou, pelo distanciamento do contato, ser abalado em suas estruturas internas e relacionais. Os graus elevados de contato geralmente trazem limpidez ao self, ao passo que o distanciamento de contato costuma implicar sua saturação por partículas e elementos estranhos ao ser interior. O afastamento deste em relação ao self tende a abrir espaço à presença, neste, de fragmentos e produtos originários de outras partes da mente, do organismo e do ambiente externo, que podem impor suas determinações de modo independente, como ocorre, por exemplo, com os impulsos. Por isso, a questão do contato torna-se essencial, porque revela a condição elementar de a pessoa estar no mundo e de se relacionar. Quanto maior for o contato, maior será a consciência de si, e o inverso. As noções de si mesmo são, também, determinadas pelo estado do contato (consciente, inconsciente e oclusivo), que se altera sensivelmente em cada estágio. Um mesmo fato terá significações diferentes se for experimentado sob diferentes atitudes mentais (de acordo com o estado do contato). Ao psicoterapeuta, compete lidar com o contato nesses níveis, especialmente para a verificação dos fatores responsáveis pelo distanciamento, entre os quais se coloca a pulsão de morte. Além disso, o distanciamento possui a caraterística de fazer desencadear outros fatores, em especial, a fragilidade e a angústia de dissipação do self, assim como os vários tipos de sensorialidade, como veremos em detalhes neste livro.
De modo geral, pode-se dizer que, havendo distanciamento de contato com o ser interior, a tendência geral é de se instalar a fragilidade do self. Esta comporta os níveis de enfraquecimento e de esvaziamento do self, que ocorrem em graus. São níveis que dizem respeito à debilidade, à inoperância ou à ruptura das relações com o centro de sustentação interna da personalidade, caminhando para um esgotamento crescente de energias vitais. Diferentes graus de fragilidade determinam diferentes manifestações de perturbações psíquicas. A principal angústia que aparece, nesses casos, é a angústia de dissipação do self, vivenciada em graus. Cada grau supõe a existência de elementos de dissolução e voragem do continente e dos conteúdos do self, cuja sintomatologia se expressa, por exemplo, nas crises de pânico (correspondentes a vivências de aniquilamento e de inexistência). Outros sintomas podem estar associados à personalidade fóbica; no entanto, é frequente encontrar-se a evitação, o afastamento ou a eliminação da angústia por intermédio da sensorialidade.
A sensorialidade refere-se à tendência de objetificar e de tornar factuais os dados da realidade interna e externa, sendo associada à concretude e à rigidez que se instalam na mente. Ela pode se tornar expressiva nas relações do self com as demais instâncias psíquicas, com o mundo externo, com o organismo e com os objetos internos, entre outros aspectos. De maneira geral, pode-se dizer que, sob alto grau de distanciamento de contato com o ser interior, se a fragilidade não se impuser ou não houver retorno à normalidade, o self tenderá a se tornar saturado de sensorialidade. Um elevado nível de saturação é correlativo a perturbações psíquicas de diferentes naturezas. O self que se repleta de sensorialidade é chamado de self sensorial. Sua ação é discrepante da ação do ser interior, cuja natureza é não sensorial. Esse é um aspecto que tem amplas implicações sobre o estabelecimento de um mundo humano sensorializado, em suas dimensões sociais, culturais, educacionais, civilizatórias etc. Há uma sensorialidade básica, que concerne às condições normais de existência do ser humano no mundo. Entretanto, a sensorialidade básica poderá se intensificar interiormente, dando lugar a expressões exacerbadas de emoções e de outros componentes psíquicos, como se verifica, por exemplo, na inveja, na voracidade, na competitividade mórbida e no ciúme patológico. Além desse tipo de sensorialidade, o profissional que atende em psicoterapia encontra habitualmente a sensorialidade produzida por preenchimento substitutivo, a sensorialidade produzida pelos ataques dos objetos e a sensorialidade produzida por corte e exclusão.
A sensorialidade produzida por preenchimento substitutivo é aquela que repleta o self de elementos e produtos (geralmente relacionados ao mundo externo) que se instalam de maneira relativamente consistente, formando um self vicariante, como se encontra, por exemplo, na drogadição e no falso self. Na sensorialidade produzida por corte e exclusão, a vida mental tende à neutralidade e à paralisação, em razão da recusa do paciente a participar da vida. A sensorialidade produzida pelos ataques dos objetos, por sua vez, mobiliza cargas de hostilidades dos objetos internos contra o contato com o ser interior, como se verifica, por exemplo, nos quadros depressivos graves. Uma questão a se ressaltar é que, para se chegar a qualquer das situações impregnadas de sensorialidade, há previamente um percurso do distanciamento de contato, cuja origem pode estar na pulsão de morte, aqui configurada como constelação do inimigo interno. Outros fatores têm sua importância para o distanciamento de contato, mas a constelação reúne elementos de eficácia inquestionável.
Seja qual for o percurso realizado pelo distanciamento de contato, haverá sempre déficits relativos a influência, presença e ação do ser interior sobre o self, de sorte que o estudo das configurações resultantes se torna praticamente obrigatório. Estas, muitas vezes, apresentam-se diferenciadamente, em cada paciente, sob a forma de sistemas mentais determinantes, que são padrões característicos ou focos nodais resultantes de escolhas
conscientes e inconscientes, feitas em determinadas direções, de acordo com a dinâmica dos fatores presentes. A localização desses sistemas é de grande valor para a determinação das prioridades terapêuticas.
Em uma sequência de observações clínicas, o profissional poderá encontrar, também, os níveis das atividades da estruturação inconsciente, em interação com os demais fatores. Além disso, como o estado do contato com o ser interior se coloca em um contínuo, que abrange, também, o lado sadio da personalidade, há níveis elevados de contato que são propulsores de expressões vitais, relacionadas à abertura, ao alargamento e ao aprofundamento das experiências de contato com a realidade interna e externa. Nesse caso, pode-se inserir a expansão de consciência. Um Modelo Geral tem por finalidade indicar e oferecer condições operativas aos fatores que sustentam a organização de pensamentos clínicos estruturalmente significativos. O Modelo Geral estabelece critérios para a organização dos dados na mente do profissional, com base no levantamento de questões básicas atinentes aos seres humanos em geral.
Como aliar o modelo com a prática clínica? Cada paciente tem sua maneira de selecionar e estabelecer os fatores, assim como o percurso destes, tanto para o afastamento do contato quanto para o reencontro de seu ser. Ao psicoterapeuta incumbe a tarefa de desvendar aquilo que diz respeito a cada paciente em cada atendimento, focalizando, se possível, o fato selecionado
, segundo Bion (1966). Ao utilizar o modelo, ele descobre simultaneamente que a ordem metodológica decorre da própria ordem de funcionamento geral da mente. Nesse caso, a organização do pensamento consiste em identificar, para cada caso, o lugar e a função de fatores, conteúdos e aspectos que são universais e humanos. A isso se subordinam todas as formas de psicoterapias.
Walter Trinca
Organizador
Referência
Bion, W. R. (1966). O aprender com a experiência. In W. R. Bion, Os elementos da psicanálise (J. Salomão e P. D. Corrêa, Trad., pp. 6-117). Zahar.
PRIMEIRA PARTE
CARACTERÍSTICAS
DE UM MODELO
Capítulo 1
A concepção
de um modelo de atendimento psicoterapêutico
Walter Trinca
Cada pesquisador em psicoterapia e em psicanálise tem seus pontos privilegiados de observação. Freud (1914/1996) primeiro assestou suas observações sobre o complexo de Édipo, depois sobre o narcisismo, que serviram sucessivamente como centros norteadores de suas referências teóricas e práticas. O mesmo ocorreu com Winnicott (1965/1970), que elegeu as carências e falhas do ambiente nos estágios de dependência máxima da criança. Kohut (1971/1988), como Freud, tomou por base o narcisismo. E assim cada qual foi alargando suas concepções sobre a mente. Não tenho a intenção de me comparar com nenhum grande pesquisador da mente, mas, seguindo suas pegadas, detive-me um tanto casualmente sobre as fobias e o pânico, e determinei as características da personalidade fóbica (Trinca, 1992/2006). Isso me causou grande surpresa, porque acabei por verificar que as fobias e o pânico estavam no centro da magna questão das perturbações psíquicas, tomadas como um todo.
No processo patológico das fobias e do pânico, o que tende a se desestabilizar são as noções de si mesmo. Há perdas profundas das bases da existência pessoal, ficando comprometido o lugar do contato da pessoa com seu próprio ser. Há indefinições quanto aos sentimentos de existência própria, que podem caminhar para sentimentos de que a pessoa, como ser, se dissolve em inexistência. O lugar que deveria ser ocupado pela experiência de existência se transforma em angústia de inexistência. Tudo o que deveria corresponder aos sentidos próprios da existência parece se volatilizar. A inserção da pessoa no mundo, as noções básicas, as referências norteadoras, as noções espaciais e temporais e o centro de sustentação interna tornam-se inseguros, estremecidos ou dissolvidos. Por vezes, restam somente vivências de solidão e de vazio. Nesse contexto, medra a angústia de inexistência ou angústia de dissipação do self. É uma angústia de dissolução e de ruína da individualidade, assim como um pavor do desaparecimento do ser em inexistência. Nela, uma consciência expectante assiste inermemente ao esvair-se em inexistência. A consciência assiste a esse desfazimento como um olho no espaço, completamente impotente. Se o próprio ser não está efetivo, nada resta a fazer, caindo no vácuo de um buraco negro. Quando isso acontece, resulta em pânico insuportável. Nem sempre, porém, ele ocorre, porque a angústia de dissipação do self se apresenta em graus. O pânico é apenas um estado de agravamento da personalidade fóbica. Claustrofobias e agorafobias manifestam-se como aspectos particulares desse tipo de personalidade, em graus maiores ou menores de vazios existenciais.
As fobias geralmente se associam a grande distanciamento de contato da pessoa consigo mesma, enquanto o pânico se refere a pontos culminantes e a níveis altos de dessintonia, tendentes à ruptura do contato. Em todo o processo há, em graus elevados, vivências de desproteção, falta de sustentação psíquica, invalidade dos próprios pensamentos e incomunicabilidade da pessoa consigo mesma. Tudo isso se reporta ao relacionamento distanciado da pessoa com seu ser. Como disse, tomei a questão do contato com o próprio ser e a experiência de existência própria como pedra angular do edifício que chamo de Psicanálise Compreensiva (Trinca, 2011). À primeira vista, parece simples e óbvio falar da existência do ser, mas quando ele deixa de fazer parte dos comandos da vida psíquica e, para a pessoa, cai em dissolução e inexistência, torna-se um fator basilar que não pode ser ignorado na composição das perturbações psíquicas.
É importante reafirmar que o processo patológico das fobias e do pânico se dá em graus, ou seja, não é tudo ou nada. Isso dá margem a verificações de que existem inúmeras modalidades patológicas ao longo do processo, manifestando-se como uma variável, assim como se torna possível a observação do processo como um todo, distinto de outros processos. Temos, então, o enfraquecimento do self e, a seguir, o esvaziamento do self. O enfraquecimento refere-se a graus menos elevados e o esvaziamento, a graus mais elevados de um processo único ou, se quisermos, de uma variável que, no todo, pode ser denominada fragilidade do self. Termos como esvaziamento, enfraquecimento e fragilidade dizem respeito à debilitação, ao afastamento e ao rompimento do contato da pessoa com seu próprio ser, seja em nível inconsciente, seja em nível consciente. Os diferentes graus determinam diferentes naturezas e diferentes gravidades patológicas, indo de menos graves a mais graves. Ligadas ao enfraquecimento, temos, por exemplo, as inconsistências simples ou generalizadas, os desenfoques e as dispersões; ligadas ao esvaziamento, temos, por exemplo, os esburacamentos e lacunas, os estados de alheamento, os estados de engolfamento e a ansiedade extremada que ocorre no pânico. Nesse contínuo, há movimentos fóbicos de todo tipo, inclusive claustrofóbicos e agorafóbicos, como descrevi (Trinca, 1997).
Até o momento, estamos acompanhando o nascimento de um modelo mental com base na fragilidade do self. Mas, para que a fragilidade ocorra, é necessário considerar o distanciamento de contato da pessoa com seu próprio ser, sendo essa uma noção-chave. A esse ser damos o nome de ser interior.
O ser interior constitui-se como entidade psíquica autônoma, sendo uma referência básica e elementar. Ele é o eixo psíquico e o centro de sustentação interna que, no ser humano, responde por sua forma originária de ser. Compõe os alicerces, os fundamentos e as definições daquilo que a pessoa intrinsecamente é.
Como raiz primordial, define a existência da pessoa desde os primórdios de sua vida, dando-lhe as noções de quem ela é, ou seja, as noções de sua realidade existencial primária, consistindo, na verdade, da experiência de ser, que é a experiência fundamental de ser esse ser. Essa experiência tem implicações sobre os sentimentos de autenticidade e de continuidade do ser. Na consciência, consiste na experiência de ter um ser, que é constituinte da individualidade, expressando-se como este sou eu
. Nesse sentido, separa, na experiência, o que a pessoa é do que ela não é. O ser interior é experienciado como inteiro, coeso e indiviso, sendo ao mesmo tempo singular e específico. Ele comporta a unidade e a unicidade. Por isso, oferece à pessoa feições particulares, irreplicáveis e inconfundíveis. Trata-se, pois, de um foco nuclear de existência, que é fonte de vida, perdurando enquanto perdurar essa vida. Ao mesmo tempo, é uma matriz existencial e uma correnteza de existência, que põem e mantêm viva a pessoa, respondendo pela mobilidade psíquica, pelo fluxo livre e pelo pulsar criativo. É experienciado como idêntico com respeito à identidade primária, sendo sempre o mesmo. Trabalha pela organização, pela harmonização e pela integração do conjunto. Também, é responsável pelos vínculos e pelas ligações fundamentais. Sendo um núcleo estável e estabilizador, permanece relativamente constante, apesar das mudanças pelas quais a pessoa passa durante a vida.
A noção de ser interior não se confunde com a noção de self. Este é um conceito nuclear globalizante, comportando inumeráveis constituintes, cujas funções são diversificadas e múltiplas. Remete a uma instância multifacetada e multimodal, composta de elementos díspares, desconexos e antagônicos ou, ao contrário, de formas relativamente estáveis de organização e de estruturação. Normalmente, o self é concebido como um campo variável de experiências, composto de diversas partes, cuja configuração móvel e plástica comporta ocorrências alteráveis, originárias de todas as partes da mente, do organismo e do mundo externo, que nele se depositam, se instalam e se movimentam. Ele se caracteriza como uma disposição aberta para ocorrências e como uma instância mediadora, que estabelecem um campo permeado por conflitos e embates, mas também por sínteses de diferentes elementos, fatores e forças em presença. Sua constituição e seu funcionamento permitem todo tipo de contradições, paradoxos e assimetrias. Nele, as composições são inumeráveis e as possibilidades são infinitas.