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Ensino de história & teledramaturgia
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E-book390 páginas5 horas

Ensino de história & teledramaturgia

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Sobre este e-book

Ensino de História & Teledramaturgia não é apenas uma coletânea de textos acadêmicos sobre telenovelas, séries e outros produtos televisuais: é a manifestação da paixão de seus organizadores e organizadora por um gênero ainda subestimado e amado/odiado por todo o Brasil nos últimos 74 anos! De Sua vida me pertence (TV Tupi, 1951-1952) a Terra e Paixão (Rede Globo, 2023-2024), passando por inúmeras produções estrangeiras, a teledramaturgia mobiliza gentes de todas as classes sociais, gêneros, cores e etnias.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento2 de dez. de 2024
ISBN9788546228638
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    Pré-visualização do livro

    Ensino de história & teledramaturgia - Giovani José Da Silva

    PREFÁCIO

    Foi com grande honra que recebi o convite para prefaciar uma obra da relevância de Ensino de História & Teledramaturgia. Não é de hoje que a telenovela brasileira é reconhecida como um registro legítimo e fidedigno dos costumes da nossa sociedade. Tal reconhecimento, porém, não encontra ainda um volume de produção literária/ acadêmica correspondente, o que evidencia a importância de um trabalho como esse. Para se compreender uma obra da magnitude de uma telenovela é preciso decompô-la, identificar seus processos de criação e de produção, bem como observar as interseções entre realidade e ficção, e como essas dimensões se auto influenciam.

    O conceito de novela de época, por exemplo, é mais abrangente do que se supõe. Nesse gênero televisivo, certamente o mais consumido no Brasil, uma extensa pesquisa costuma ser feita pela direção de arte, figurino, maquiagem e, claro, cenografia, para garantir o realismo visual das cenas. A trilha sonora, quando original, também pretende ser adequada à época. Atores e atrizes precisam aprender novos vocábulos e gestuais. Nenhum esforço é poupado para que o público seja transportado, sem desconfianças, para aquele universo situado em algum lugar de um passado distante, ou nem tão distante assim. A representação precisa ser perfeita.

    Não é bem assim, contudo.

    O que se vê na ficção é algo bem distante da realidade. Refiro-me especificamente ao texto e à interpretação de atrizes e atores. A despeito da diligência para adequar expressões idiomáticas, gírias, prosódias etc., à época em que se passa a história, a linguagem precisa ser atualizada sob o risco de o público não suportar diálogos excessivamente formais ou indecifráveis. Ou seja, as personagens precisam falar de maneira contemporânea sob um verniz de época. A solução – mesmo que involuntária – funciona como ponte entre as épocas, sem a qual a novela de época não conseguiria se apresentar palatável e conquistar o grande público.

    É justamente a naturalidade que permite a identificação do espectador e da espectadora com as personagens. Aquelas pessoas precisam ser reais no contexto da época da obra e da época atual, caso contrário a ilusão não funcionaria. Da mesma maneira, o modo como os relacionamentos amorosos se estabelecem e evoluem não tem nada de fidedigno à época, ou alguém acredita que um casal de namorados no século XIX se beijaria na boca com tamanha naturalidade e frequência?

    Escrava Isaura, obra de Bernardo Guimarães, de 1875, adaptada para a TV Globo por Gilberto Braga, com estreia em 1976, é um marco na dramaturgia nacional. Cem anos separam o romance de sua primeira adaptação televisiva, e quase cinco décadas se passaram desde sua estreia até os dias atuais. Em 2004, mais uma adaptação foi feita por Tiago Santiago (com os colaboradores Anamaria Nunes e Altenir Silva) para a TV Record. E, quem sabe, outras mais existirão no futuro. Supondo que uma nova versão seja feita nos dias de hoje, certamente as personagens não agiriam e falariam como nas versões anteriores. Porque a época mudou. Não a da novela, mas a época atual. Se assistirmos à versão de 1976, nos depararemos com falas mais duras, muito menos naturais do que deveríamos encontrar numa nova versão.

    A novela de época, com o passar do tempo, se torna, ela própria, um registro de época, uma novela da época. Até mesmo o ritmo narrativo muda com o passar dos anos. Não é raro termos a sensação de que novelas antigas parecem mais lentas – resultado de cenas mais longas com diálogos esparsos, às vezes redundantes, tempos mortos, edição frouxa. Mais uma vez, é preciso criar uma ponte entre as épocas para que o público se conecte de forma plena, respeitando o compasso de seu próprio tempo. A empatia – necessária para que as personagens se tornem reais – tem lá suas exigências para se estabelecer, e essas são algumas delas. A novela de época tem, portanto, três épocas: aquela em que se passa a história, o momento em que é adaptada (escrita/ gravada) e a época em que é consumida.

    E uma novela que se passa nos tempos atuais? Nesse caso, o(a) autor(a) precisa escrever da forma como as pessoas falam ao seu redor, utilizando um vocabulário corriqueiro, gírias da moda e os devidos desvios linguísticos – esforço que, por sua vez, não prescinde de uma acurada pesquisa. Há também que se representar o timing de seu próprio tempo: relações se estabelecem e findam velozmente, informações circulam num piscar de olhos, comunicação e tecnologia fazem parte do cotidiano. É preciso que o público se reconheça facilmente – também a despeito de figurinos, perucas, caracterizações etc. – afinal, olha-se para um espelho, mas um espelho que, ao mesmo tempo que reflete, captura, guardando dentro de si o retrato fiel da mesma sociedade que pretende entreter.

    Uma última questão, porém, não menos importante é como a novela se torna, ela própria, um registro social único, consequência de uma característica peculiar: o folhetim televisivo se constrói como uma obra aberta (há exceções). Os números da audiência, a opinião do público e de críticos, matérias em revistas e jornais, tudo isso retroalimenta a narrativa, sugerindo soluções diante das centenas de encruzilhadas com as quais o/ a novelista se depara. Personagens queridas crescem em suas tramas, ganham fôlego, enquanto outras sucumbem. A obra, indiretamente, se constrói com a colaboração dos espectadores – manifestações de seus desejo e (des)afetos – constituindo, portanto, um documento histórico dinâmico e interativo. A novela, do seu jeito popular ou sofisticado, melodramático, apelativo, ousado ou conservador, provocativo é, em essência, a narrativa da nossa vida como ela nos parece ser.

    Daniel Adjafre

    Autor de telenovelas

    APRESENTAÇÃO

    Ensino de História & Teledramaturgia, coletânea organizada por professores(a) da Educação Básica e do Ensino Superior e noveleiros assumidos, espera contribuir para os debates sobre usos (e abusos) da teledramaturgia nas salas de aula de História. As telenovelas existem no Brasil há pouco mais de 70 anos e nessas sete décadas transformaram-se em febre nacional, produto de exportação, vitrine de modismos, além de retrato (nem sempre fiel) de épocas e costumes. Herança das antigas radionovelas que, por sua vez, surgiram a partir de folhetins de jornais, ainda do século XIX, a teledramaturgia seriada faz parte da cultura brasileira e se revigora a cada velha-nova obra lançada. Assim, ao longo de 13 capítulos, autores e autoras dos mais diferentes rincões do país apresentam olhares diversos sobre a TV e seus principais produtos televisuais.

    No primeiro capítulo, Giovani José da Silva trata teoricamente do gênero televisual mais bem acabado, mais bem sucedido e de maior sucesso da TV no país ao longo dos anos, a partir da segunda metade do século XX: a Telenovela. Ainda que a função principal desse espelho mágico seja a venda/ o consumo de bens e serviços (como o sabão em pó do título), a Telenovela não deixa de ser obra de arte: uma arte que se não traduz o mundo, tal como ele seja, fabrica/ constrói mundos outros. Desvendá-los/ Revelá-los é, também, uma tarefa de professores e professoras de História, em parceria com seus estudantes, seja na sala de aula ou em qualquer ambiente onde haja um aparelho de televisão/ um celular/ um computador transmitindo sonhos em capítulos.

    Marcus Bomfim, no Capítulo 2, problematiza contribuições que as telenovelas, em suas forma e conteúdo, podem oferecer ao ensino de História, partilhando do entendimento da arte como potência e força vital, como reflexão sobre o tempo histórico desprovido dos aspectos positivista e mecânico. O autor o faz puxando o fio da narrativa e divide a argumentação em duas partes: a primeira com foco na problematização do debate, no âmbito do campo das teorizações sociais (com destaque para a Teoria da História), sobre os eixos ficção/ verdade/ realidade e história/ tempo/ afeto; a segunda com foco na proposição de uma articulação entre as formas e conteúdos assumidos pelas telenovelas brasileiras na atualidade e o ensino escolar de História. Defende-se a potência do caráter de obra aberta e obra de autor das telenovelas como forma de advogar que, percebida como obra aberta, a História escolar está por ser feita, não estando condenada a ser eurocêntrica, teleológica, binária, disciplinada, narcísica, e que docentes dessa disciplina usem a imaginação, a fabulação, a ficção, o afeto, a estética, a ética e o que mais lhes for considerado pertinente para a tessitura da intriga, a seleção do enredo e a organização da trama temporal que serão utilizados para ensinar História.

    O terceiro capítulo, de autoria de Paula Halperin, refere-se à adaptação do romance de Bernardo Guimarães (1875), a telenovela Escrava Isaura, transmitida pela Rede Globo de Televisão entre 11 de outubro de 1976 e 5 de fevereiro de 1977, com grande repercussão na mídia, na esfera pública e altos índices de audiência. Escrava Isaura gerou debates acirrados na imprensa da época em torno da escravidão, do patriarcado e da identidade nacional, em tempos de ditadura civil-militar no Brasil. O texto deslinda a complexa narrativa histórica proposta pela novela e como essa estabeleceu uma leitura peculiar do passado, articulada às relações raciais, sexuais, de gênero e de classe da década de 1970.

    Edvaldo Sotana, no quarto capítulo, escreve sobre O Salvador da Pátria (1989), da TV Globo. No rescaldo da chamada redemocratização, os brasileiros esperavam ansiosamente pela eleição presidencial de 1989. Após 21 anos de ditadura civil-militar, se escolheria o primeiro presidente da República pelo voto direto e a temática eleitoral figurava no centro dos debates políticos, gerando expectativas e alimentando acalorados embates. Também figurava em produções televisivas de diferentes tipologias como a telenovela referida. A despeito da diversidade e da profundidade estéticas com que as personagens foram construídas na trama de Lauro César Muniz, interessa à discussão a candidatura e a vitória eleitoral do Salvador da Pátria, sem, contudo, desconsiderar a trama do produto televisivo, seu processo de elaboração, o momento de produção e o meio de comunicação em que foi veiculado, apontando-se algumas possibilidades para o ensino de História.

    O texto de Vitória Azevedo da Fonseca é o quinto capítulo do livro. No jogo dos tempos, presentes criam futuros que buscam passados, tempos que se distinguem no devir e criam diferentes temporalidades. Assim tem sido com a Xica da Silva e com a Chica da Silva: duas personagens que se dividem no tempo a partir das ações de sujeitos dos presentes ao escolherem, a partir de circunstâncias diversas, a criação de narrativas que aguçam curiosidades, espantos, incertezas e visualidades. No texto, a autora, a partir de jogos de referências, propõe uma análise da telenovela Xica da Silva (1996-1997), da TV Manchete, que se soma a uma gama de visualidades, inclusive cinematográficas, dessa intrigante personagem.

    No sexto capítulo, de Ingrid Oyarzábal Schmitz, a partir de sua monografia de conclusão de curso, discute-se a telenovela Lado a Lado (2012-2013), da TV Globo, sobre representações de gênero, protagonismos negros e eventos relevantes para a história do Brasil, tais como a Revolta da Vacina, abordados na trama de João Ximenes Braga, Claudia Lage e colaboradores. A autora questiona se a televisão aberta ainda era um recurso utilizado pela população, pensando sobre o acesso que alunos e alunas teriam a essas discussões, que podem ser tomadas como disparadores no ensino de História, bem como buscas do presente nas representações sobre o passado.

    Daniel Lopes Saraiva e Daniel Gonzaga Miranda são os autores do sétimo capítulo, dividido em duas partes e que aborda o processo de censura sofrido pela série de TV Ciranda Cirandinha, transmitida pela Rede Globo em 1978. Originalmente planejada com 15 episódios, a Censura Federal limitou sua exibição a apenas sete deles foram ao ar, todos com muitos cortes. A série explorava o cotidiano de quatro jovens que compartilhavam um apartamento no Leblon, Rio de Janeiro, expondo seus dramas e conflitos. A documentação da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) evidencia os cortes aplicados aos episódios, impactando a versão final. A segunda parte do capítulo analisa a reação de alunos do 9.º ano do Ensino Fundamental de uma escola pública, particularmente em relação ao episódio Porque hoje é sábado, após aulas sobre a ditadura civil-militar e a censura.

    O capítulo de Ana Heloísa Molina e Helena Ragusa Granado é o oitavo da coletânea. Ambas exploram questões sobre a Inquisição e a judeidade no Brasil colonial, a partir do enredo da minissérie A Muralha, baseada no romance de Dinah Silveira de Queiroz e adaptada por Maria Adelaide Amaral e colaboradores. Transmitida em 2000, pela Rede Globo, em rememoração aos 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil, aborda diversos temas, tais como a ação dos jesuítas na catequização, o bandeirantismo, a ocupação do território brasileiro e a implantação de estruturas administrativas na época colonial. O foco das autoras é a representação da Inquisição e da judeidade na série – usando, por exemplo, cenas e diálogos das personagens Mestre Davidão, Dona Ana Cardoso e D. Jerônimo –, temas ainda pouco explorados na Educação Básica, em geral, e no ensino de História, em particular.

    As autoras Allana Carolyne Silva de Aquino e Juliana Alves de Andrade escrevem o capítulo 9 e nele discutem que a cultura das séries tem desempenhado um papel importante no entretenimento e na educação contemporâneos. O capítulo destaca as potencialidades pedagógicas de uma série ficcional, Cursed – A lenda do lago, produzida pela Netflix em 2020, e a representação do feminino em tempos medievais. O estudo observa que as séries são formas narrativas sofisticadas, que estimulam diversas faixas etárias a se engajar criticamente e a discutir temas, especialmente devido à ampla circulação em plataformas tecnológicas. Cursed promove, portanto, interação e debates na comunidade, ampliando o repertório cultural e contribuindo para a educação histórica, ao oferecer narrativas híbridas que atualizam conteúdos e expandem as complexidades narrativas contemporâneas.

    O capítulo 10, de autoria de Natasha Piedras, tematiza a obra de Dias Gomes (1922-1999). Ex-militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e casado com a também novelista Janete Clair, Gomes foi testemunha e participou de uma significativa transformação nas telenovelas brasileiras entre o final dos anos 1960 e o início da década de 1970. A narrativa, gradualmente, abandonou o estilo melodramático para abordar, de maneira crítica, a realidade brasileira. No mesmo período, dramaturgos como ele se destacaram nesse processo, embora sempre acompanhado por polêmicas. Algumas de suas novelas, tais como Verão Vermelho, Bandeira 2, O Bem-Amado e Roque Santeiro, trouxeram discussões sobre a sociedade da época, mesclando elementos tradicionais dos dramas familiares com as condições históricas e sociais vividas pelas personagens.

    O antepenúltimo capítulo, de autoria de Fabiano Cabral de Lima e Zora Zanuzo, mostra como é possível discutir História, fantasiando-se com personagens de telenovelas mexicanas nas redes sociais. Os autores, a partir do recurso da autonetnografia, investigam seus próprios perfis de redes sociais (antigos), em que interagiam com o público, utilizando-se das facetas de personagens diversas, tais como Soraya Montenegro (Maria do Bairro, 1995-1996) e Rubí (Rubí, 2004). Assim, é possível trazer temas históricos a partir do uso dessas personagens em formato de memes, discutindo-se a História de forma bem-humorada. O capítulo se encerra com uma pergunta, que ainda hoje é um mistério existente na internet.

    O capítulo de Renata Rodrigues de Freitas, penúltimo da coletânea, discute práticas de ensino-aprendizagem em sala de aula, de como estudantes da Educação Básica podem dialogar com o ensino de História criando memes, apropriando-se, por exemplo, da Nazaré Confusa, baseada em Senhora do Destino (TV Globo, 2004). Entre os memes apareceram, de forma espontânea, imagens de telenovelas e séries de televisão adaptadas a partir de conceitos históricos/ historiográficos. Os estudantes demonstraram ser consumidores de tais mídias, revelando que telenovelas e séries de televisão estão presentes em seu cotidiano. Parte-se do pressuposto de que um meme é um fenômeno da Cibercultura, ou seja, produzido e replicado em redes sociais e contém narrativas que são construídas a cada compartilhamento, promovendo a interação entre indivíduos no chamado Ciberespaço.

    No último capítulo, Lissandra Queiroga Ramos e Marcella Albaine Farias da Costa dialogam com o tempo presente, em que as relações de cor, gênero e sexualidades são demandas políticas de representatividade. A Televisão tem se transformado ao longo dos anos e são cada vez mais presentes personagens principais negras, além de personagens gays não caricatas e mulheres representadas de forma independente, sem um homem salvador. O texto mostra como a telenovela está na realidade dos estudantes e como esses analisam comportamentos sociais dramatizados nas tramas. A representatividade de gênero nas telenovelas desempenha um papel fundamental, ao refletir a diversidade da sociedade e estabelecer conexões com o público. Ao retratar personagens com identidades de gênero diversas, as novelas não apenas quebram estereótipos, mas, também, proporcionam sensação de pertencimento para aqueles que se identificam com tais personagens. Essa representatividade permite a espectadores(as) de diferentes orientações e identidades de gênero encontrarem narrativas com as quais possam se relacionar, promovendo maior inclusão e empatia, influenciando positivamente a percepção cultural e ampliando seu alcance, ao acolher um público mais abrangente e diversificado.

    Com as devidas apresentações, observa-se a variedade de entradas possíveis e abordagens distintas para se pensar-sentir o tema das telenovelas e suas relações com o ensino de História. Essa coletânea ocupa, assim, um papel de contribuição efetiva/ afetiva para as reflexões de professores/as e pesquisadores/as, digna de ser degustada ao melhor estilo de apreciação ética/ estética, não isenta de críticas e de ações que poderão se desdobrar como cenas de próximos capítulos bibliográficos.

    Giovani José da Silva

    Marcella Albaine Farias da Costa

    Fabiano Cabral de Lima

    Organizadores

    Cachoeira Paulista (SP), Boa Vista (RR) e Rio de Janeiro (RJ), inverno de 2024.

    CAPÍTULO 1

    ENSINO, HISTÓRIA & TELENOVELA: A ARTE DE VENDER SABÃO EM PÓ ATRAVÉS DO ESPELHO MÁGICO

    Giovani José da Silva

    Considerações iniciais

    A telenovela não desfruta de um grande prestígio no mundo acadêmico. Com essa frase, o sociólogo Renato Ortiz introduzia o livro Telenovela: história e produção (Ortiz; Borelli; Ramos, 1989), escrito por ele e por Silvia Helena Simões Borelli e José Mário Ortiz Ramos. Ainda que a pioneira obra esteja perto de completar 35 anos, desde sua primeira edição, as palavras de Ortiz permanecem atuais, pelo menos no campo da História e seu ensino, uma vez que

    não [...] seria um exagero afirmar que as ciências sociais a negligenciaram [a telenovela] por um bom tempo, como se a seu desprestígio cultural correspondesse uma deficiência epistemológica. (Ortiz, 1989, p. 7) 

    Apesar disso, pode-se afirmar que a produção de teledramaturgia¹ brasileira contemporânea tem atraído não apenas a atenção internacional – além de envolver e intrigar espectadores ao redor do mundo –, como, também, a de estudiosos da cultura visual.²

    Mesmo desprestigiada, a telenovela vem sendo objeto de estudo de professores e pesquisadores da História que na última década se debruçaram sobre esse fenômeno brasileiro. Dois artigos científicos se destacam no cenário ainda pouco explorado das relações entre ensino de História e teledramaturgia: Henrique Bresciani (2012) fez uma proposta de aula-oficina a partir da primeira versão de Escrava Isaura (1976-1977), produzida pela Rede Globo de Televisão; Edvaldo Correa Sotana (2020), por sua vez, apresentou observações preliminares sobre a telenovela e o ensino do componente curricular. A esses trabalhos somam-se outros, especialmente voltados para a análise e usos de determinadas tramas televisuais e suas especificidades (por exemplo, Schmitz, 2016; Garcia, 2017).

    Quando a TV chegou ao país, em 1950, a população brasileira era predominantemente rural e analfabeta (Rossi; Faria, 2020). Se, como afirma Lúcia Santaella (2003), uma divisão das eras culturais pode ser estabelecida a partir de seis formações – as culturas oral, escrita, impressa, de massas, das mídias e digital –, não seria exagerado pensar que o país entrou na era da cultura de massas (mesmo levando-se em consideração que uma ínfima parcela dos habitantes tivesse acesso a aparelhos de televisão, na época), sem ter desenvolvido plenamente as culturas escrita e impressa. Afinal, o rádio cumpria, até então, o papel que seria desempenhado pela Televisão anos mais tarde e, atualmente, pela Internet.

    Assim, a primeira telenovela brasileira exibida entre 1951 e 1952 pela TV Tupi, de São Paulo, Sua Vida Me Pertence – escrita, dirigida e atuada por Walter Foster (1917-1996) – inaugurou uma tradição herdada das radionovelas que, por sua vez, surgiram a partir de folhetins de jornais, ainda do século XIX³. A Televisão provocou, portanto, uma reviravolta nos modos de ser (e parecer ser), além de estar em sociedade, atingindo a todos, indistintamente, atravessando gerações de diferentes camadas sociais, idades, gêneros, níveis de leitura e escrita etc. Isso porque:

    A televisão e as telenovelas podem ser consideradas como processos, capazes de ocasionar ordens e desordens, a partir do instante que entram nos lares, influenciam cotidianos, desenham novas imagens, propõem comportamentos e de alguma forma consolidam um padrão de narrativa considerado dissonante, tanto para os modelos clássicos e cultos, quanto para os populares. Pode-se dizer que [a telenovela] se trata de um dos subgêneros mais significativos da televisão brasileira, pois possui referência internacional em termos de qualidade, consolidada desde a década de 1970 como produto comercial. (Marques; Lisbôa Filho, 2012, p. 76; itálico no original)

    Tratadas como subgênero, desprezadas por muitos intelectuais, as telenovelas acompanham as vidas de brasileiros e brasileiras há, pelo menos, seis décadas. Desde 2-5499 Ocupado (TV Excelsior, 1963), milhões de gentes se veem mobilizadas/ sensibilizadas diariamente⁴ pelos dramas/ romances/ eventos exibidos pelas redes de televisão. Por que, então, tanta aversão a esse gênero televisual? Como negar suas repercussões? Como ensinar-aprender História (e outros componentes curriculares escolares) a partir das telenovelas do passado e do presente? Sem pretender oferecer respostas definitivas para tais questões, o objetivo do presente capítulo é refletir sobre os usos (e possíveis abusos) da teledramaturgia em aulas de História e apresentar perspectivas de compreensão dos produtos teledramatúrgicos como aliados dos processos de ensino-aprendizagem.

    Entre verdades e verossimilhanças

    Em um país onde se lê (ainda) muito pouco ou (bem) menos do que se deveria, a telenovela tornou-se a ficção ao alcance de todos (Campedelli, 1987, [s. p.]). De que outra maneira o público brasileiro teria acesso a obras de escritores e escritoras como Bernardo Guimarães (1825-1884), Orígenes Lessa (1903-1986), Érico Veríssimo (1905-1975), Maria Dezonne Pacheco Fernandes (1910-1988) e/ ou Lygia Fagundes Telles (1918-2022)?⁵. Graças, também, à teledramaturgia, Grande Sertão: Veredas (1985), Memorial de Maria Moura (1994), A Muralha (2000) e Dois Irmãos (2017)⁶, por exemplo, alcançaram um número expressivo de gentes espalhadas por todos os quadrantes do Brasil. Dessa forma, os mundos ficcionais propostos por autores e adaptadores adentraram as casas (e, hoje, os celulares e outros aparelhos) de espectadores ávidos por lazer/ entretenimento/ diversão/ fuga da realidade, carregando consigo as belezas da literatura brasileira, além das mazelas sociais que assolam o país há séculos.

    Um dos traços mais marcantes de qualquer telenovela é o de propor um mundo que possui sua própria coerência, sua realidade, entremeada de ficção. Na telenovela, o mundo real é matriz para a construção do mundo ficcional; porém a ficção telenovelística não se refere de modo imediato ao mundo real. Como ela é uma simulação de uma situação possível, o mundo ficcional é, então, dotado de uma realidade própria, ligada à verossimilhança, mas sem o compromisso necessário com a verdade. Trata-se, então, do verossímil, e não do verdadeiro ou falso. (Rosado, 2017, p. 101)

    As assertivas de Leonardo C. C. Rosado (2017) remetem às questões da verdade e da verossimilhança em uma obra ficcional como é a telenovela. Evidentemente, não se está a fazer referências a Dias Gomes (1922-1999) ou Aguinaldo Silva e suas tramas marcadas pelo chamado realismo mágico ou fantástico⁷. Tampouco se remete aos voos teledramatúrgicos, tomados como licença poética, de Glória Perez, por exemplo. Há, contudo, uma gama de autores e autoras que recorreram a enredos mais cotidianos/ prosaicos, como Lauro César Muniz, Vicente Sesso e Silvio de Abreu, dentre outros, com sucesso.

    Uma das críticas mais contundentes que se faz às telenovelas que não recorrem deliberadamente à fantasia⁸ é a de que há uma edulcoração da realidade, um falseamento da vida real (expressão utilizada, inclusive, em contraposição à vida de novela). As críticas podem se estender, inclusive, a sotaques apresentados por determinadas personagens, a utensílios e trajes de cena presentes nas gravações ou, até mesmo, a fartas mesas de café da manhã mostradas em casas de personagens pobres. Ocorre que, como anotado em outro texto,

    Em Televisão trabalha-se, tateia-se o tempo todo com a verossimilhança e não com a verdade, ou seja, a produção televisual se faz com o que é atribuído a uma realidade portadora de uma aparência ou de uma probabilidade de verdade, nas relações ambíguas que se estabelecem entre imagem e ideia. (José da Silva, 2021, p. 202)

    Exige-se, muitas vezes, uma verdade da telenovela – que é, sempre bom frisar, uma história inventada – algo para além dos atributos de quaisquer narrativas ficcionais⁹. A jornalista Maria Lourdes Motter (2000/ 2001, p. 79), ao investigar o cotidiano na telenovela brasileira, pergunta de maneira coerente: Por que a ansiedade de querer ver nela a descrição científica explicativa e totalizadora da sociedade brasileira? Por que cobrar dela o que não se cobra de outras ficções como o romance, por exemplo?. Quem procura verdade em telenovelas não se dá conta de que a teledramaturgia se vale de exemplos, alusões e/ ou evocações [...] que permitem indicar, sem que o texto se torne pesado, as diferenças entre as maneiras presentes e passadas de se vestir, alimentar-se, viajar, guerrear e amar (Pomian, 2003, p. 14).¹⁰

    Tal confusão ainda ocorre, em grande parte, porque com a Televisão o espectador passou a vivenciar experiências distintas daquelas proporcionadas pelo Teatro e/ ou pelo Cinema, por exemplo, uma vez que, diferentemente do que acontece em outras artes, na TV [...] não [se] escolhe uma peça ou um filme para ver: [se] vê o que já foi programado

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