1. This thesis examines the concept of Bonapartism as developed by Marxist theorists like Marx, Engels, Trotsky and Gramsci, and how it relates to analyses of Brazil's "populist period" from 1930-1964.
2. It argues that the idea of the relative autonomy of the state, a key aspect of Bonapartism, can be found in academic works on this period. It also shows connections between these works and earlier analyses by Trotskyist groups in Brazil.
3. The thesis presents the author's own historical interpretation of Brazilian politics in 1930-1964 based on the theory of Bonapartism. It aims to contribute new perspectives on the relationships between social classes
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1. This thesis examines the concept of Bonapartism as developed by Marxist theorists like Marx, Engels, Trotsky and Gramsci, and how it relates to analyses of Brazil's "populist period" from 1930-1964.
2. It argues that the idea of the relative autonomy of the state, a key aspect of Bonapartism, can be found in academic works on this period. It also shows connections between these works and earlier analyses by Trotskyist groups in Brazil.
3. The thesis presents the author's own historical interpretation of Brazilian politics in 1930-1964 based on the theory of Bonapartism. It aims to contribute new perspectives on the relationships between social classes
1. This thesis examines the concept of Bonapartism as developed by Marxist theorists like Marx, Engels, Trotsky and Gramsci, and how it relates to analyses of Brazil's "populist period" from 1930-1964.
2. It argues that the idea of the relative autonomy of the state, a key aspect of Bonapartism, can be found in academic works on this period. It also shows connections between these works and earlier analyses by Trotskyist groups in Brazil.
3. The thesis presents the author's own historical interpretation of Brazilian politics in 1930-1964 based on the theory of Bonapartism. It aims to contribute new perspectives on the relationships between social classes
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1. This thesis examines the concept of Bonapartism as developed by Marxist theorists like Marx, Engels, Trotsky and Gramsci, and how it relates to analyses of Brazil's "populist period" from 1930-1964.
2. It argues that the idea of the relative autonomy of the state, a key aspect of Bonapartism, can be found in academic works on this period. It also shows connections between these works and earlier analyses by Trotskyist groups in Brazil.
3. The thesis presents the author's own historical interpretation of Brazilian politics in 1930-1964 based on the theory of Bonapartism. It aims to contribute new perspectives on the relationships between social classes
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i
Universidade Federal Fluminense
Instituto de Cincias Humanas e Filosofia Departamento de Histria Programa de Ps-Graduao em Histria
O LONGO BONAPARTISMO BRASILEIRO (1930-1964): AUTONOMIZAO RELATIVA DO ESTADO, POPULISMO, HISTORIOGRAFIA E MOVIMENTO OPERRIO
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor. rea de concentrao: Histria Social Linha de pesquisa: Poder e sociedade Orientador: Professor Doutor Marcelo Badar Mattos
FELIPE ABRANCHES DEMIER
Niteri, 2012 ii
Felipe Abranches Demier
O longo bonapartismo brasileiro (1930-1964): autonomizao relativa do Estado, populismo, historiografia e movimento operrio
Orientador: Marcelo Badar Mattos
Niteri, 2012
iii
DEMIER, Felipe Abranches 1980 - O longo bonapartismo brasileiro (1930-1964): autonomizao relativa do Estado, populismo, historiografia e movimento operrio Niteri: [ s.n.], 2012. 506 p.
Tese (Doutorado) Universidade Federal Fluminense, Departamento de Histria. rea de concentrao: Histria Social
1. Bonapartismo Populismo cesarismo Len Trotsky I. Ttulo
iv
FELIPE ABRANCHES DEMIER
O longo bonapartismo brasileiro (1930-1964): autonomizao relativa do Estado, populismo, historiografia e movimento operrio
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor. rea de concentrao: Histria Social Linha de pesquisa: Poder e sociedade Orientador: Professor Doutor Marcelo Badar Mattos Aprovada em: __/___/___
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________ Prof. Dr. Marcelo Badar Mattos (orientador) UFF
________________________________________ Prof. Dr. Virgnia Fontes UFF/FioCruz
_________________________________________ Prof. Dr. Renato Lus do Couto Neto e Lemos - UFRJ
________________________________________ Prof. Dr. Alvaro Bianchi - UNICAMP
_________________________________________ Prof. Dr. Valrio Arcary IF/SP v
DEMIER, Felipe Abranches. O longo bonapartismo brasileiro (1930-1964): autonomizao relativa do Estado, populismo, historiografia e movimento operrio. (Tese de doutorado em Histria). Niteri: PPGH/UFF, 2012.
Resumo A finalidade deste trabalho assinalar a presena da idia de autonomizao relativa do Estado, fenmeno histrico-poltico abordado por alguns clssicos do pensamento marxista, em alguns dos destacados trabalhos cientficos que se dedicaram ao chamado perodo populista da histria nacional. Mais especificamente, buscaremos expor como o conceito de bonapartismo, tal como foi trabalhado e desenvolvido por autores como Marx, Engels, Trotsky e Gramsci, se encontra presente em uma parcela da produo bibliogrfica acadmica que visou compreenso das relaes entre classes sociais e Estado no perodo da repblica brasileira localizado entre 1930 e 1964. Ademais, este trabalho tambm objetiva evidenciar a existncia de uma relao pouco conhecida para no dizermos simplesmente ignorada entre essas interpretaes acadmicas sobre o perodo populista brasileiro e aquelas que, bem antes, no calor dos acontecimentos, haviam sido elaboradas por organizaes polticas do movimento operrio entre os anos 1930-1964. Mais especificamente, intentamos expor como pequenos agrupamentos de extrao trotskista (ou prximos ao trotskismo), como a Liga Comunista Internacionalista (LCI), o Partido Operrio Leninista (POL), o Partido Socialista Revolucionrio (PSR), o Partido Operrio Revolucionrio (POR) e a Poltica Operria (POLOP) anteciparam, em suas anlises conjunturais sobre o carter poltico assumido pela dominao de classe no pas, muitos elementos que, mais tarde, reapareceriam nas tais interpretaes acadmicas sobre o perodo populista. Alm de todas essas questes de carter historiogrfico, o presente trabalho traz tambm, ao seu final, uma proposta nossa de interpretao histrica do processo poltico brasileiro do perodo 1930-1964 realizada luz do que chamamos de uma teoria do bonapartismo.
vi
DEMIER, Felipe. Brazils long Bonapartism (1930-1964): relative autonomy of the State, populism, historiography and the labor movement. (PhD thesis in History). Niteri: PPGH/UFF. 2012.
Key-words: 1- Bonapartism; 2 populism; 3 Caesarism; 4 Leon Trotsky.
Abstract
This work highlights the idea of a relative autonomization of the State a social- political phenomenon discussed by some Marxist classics in some of the important scientific works dealing with the so-called populist period of Brazils history. It is shown how the concept of Bonapartism, as developed by authors such as Marx, Engels, Trotsky and Gramsci, is present in part of the academic production that sought to understand the relations between social classes and the State in the Brazilian republic between 1930 and 1964. In addition, evidence brought forward of a relatively unknown or perhaps ignored relation between that academic production and works produced in the 1930-1964 period by political organizations of the labour movement in the heat of the events. It is shown how small trotskyist groups (or groups close to Trotskyism) such as the Internationalist Communist League (LCI), the Leninist Labourers Party (POL), the Socialist Revolutionary Party (PSR), the Revolutionary Labourers Party (POR) and Labourer Politics (POLOP) appear to have anticipated, in their conjunctural analyses of the political character of class domination in Brazil, many of the elements which, later, would reappear in the academic interpretations of the populist period. In addition to those historiographic questions, the present work also advances a historical interpretation of the Brazilian political process in the 1930-1964 period, elaborated in the light of what is here called a theory of Bonapartism.
vii
Sumrio
Introduo geral Bonapartismo, populismo e a nossa pesquisa
O carter deste trabalho ....................................................................................................3 Temtica, objetivos e teses ..................................................................................................3 Estrutura do trabalho e disposio dos captulos ..........................................................5 Duas breves justificativas...........................................................................................10
Parte I A Teoria do Bonapartismo
Introduo primeira parte Bonapartismo e marxismo
Bonapartismo: o fenmeno e o conceito ..................................................................15 Uma proposta de sntese conceitual .................................................................................17 Bonapartismo e capitalismo ..............................................................................................22 Estado, regime e governo..............................................................................................23 Crise de hegemonia e bonapartismo..........................................................................31 O bonapartismo esvaziado de sentido: breves comentrios sobre dois autores acadmicos ............................................................................................................................35 Poulantzas e a permanente autonomia relativa do Estado........................................35 Losurdo e o bonapartismo onipresente.........................................................................39
Captulo I As origens do conceito: Marx e Engels
viii
Marx e o clssico bonapartismo francs (1848-1871).........................................47 A Revoluo de fevereiro de 1848.....................................................................................50 Uma repblica para a burguesia e a luta contra o proletariado................................52 O domnio dos republicanos burgueses e as contradies constitucionais................54 Bonaparte e o partido da ordem contra os republicanos burgueses............................58 A repblica burguesa contra a pequena-burguesia republicana...............................60 A repblica sob domnio da burguesia monrquica.....................................................62 A burguesia contra Bonaparte: Executivo x Legislativo.............................................64 A burguesia contra o seu partido: Economia x poltica..............................................70 2 de dezembro de 1851: o golpe de Estado contra (e para) a burguesia..................73 Bonapartismo e poltica de massas...................................................................................76 Um poder acima da sociedade: a autonomizao relativa do Estado.........................78 O Estado e a classe camponesa: a ideologia bonapartista.......................................81 Bonapartismo e desenvolvimento capitalista.................................................................82 Engels e o bismarckismo alemo.................................................................................84 Bonapartismo: as revolues de cima para baixo.....................................................85 Bonapartismo: uma forma excepcional de Estado........................................................88 Atraso e bonapartismo: o caso alemo.............................................................................89 Bonapartismo: um caminho poltico para a modernizao retardatria................92 Capitalismo tardio e o duplo equilbrio bonapartista................................................93 Do absolutismo ao bonapartismo......................................................................................96 Bonapartismo, corporativismo e massas populares......................................................97
Captulo II As perspectivas de dois revolucionrios do sculo XX: Trotsky e Gramsci
Len Trotsky e os vrios bonapartismos ...............................................................101 Histria e bonapartismos..................................................................................................101 O complicado bonapartismo alemo (1930-1933)..............................................104 O bonapartismo francs semiparlamentar (1934-1940)........................................112 O bonapartismo perifrico...............................................................................................121 A lei do desenvolvimento desigual e combinado: um breve histrico do conceito.....124 ix
As origens do conceito de desenvolvimento desigual e combinado....................131 A revoluo na China e o amadurecimento do conceito....................................134 Itlia, ndia, Espanha e frica do Sul: outras aplicaes do conceito...............137 A Revoluo Russa: demonstrao histrica da validade do conceito..............139 Amrica Latina: ltimo campo de observao conceitual.................................148 Totalidade e internacionalismo em Len Trotsky.............................................150 Trotsky e o papel contra-revolucionrio das burguesias atrasadas...................161 Os bonapartismos sui generis da Amrica Latina...................................................176 O bonapartismo sovitico.............................................................................................183 Antonio Gramsci e os cesarismos..............................................................................186 Crise de hegemonia, crise orgnica e cesarismo.................................................187 Cesarismo progressista e cesarismo regressista............................................................189 Revoluo passiva e cesarismo....................................................................................197
Parte II: Bonapartismo e populismo no Brasil
Introduo segunda parte Trotskismo, movimento operrio e universidade
A influncia trotskista nas cincias sociais brasileiras......................................205 Uma nova corrente no pensamento social brasileiro: a intelectualidade antidualista e antietapista........................................................................................207 As organizaes trotskistas (ou prximas ao trotskismo) no Brasil (1930- 1964).......................................................................................................................................212 A primeira gerao trotskista (LCI e POL): distantes da intelectualidade acadmica marxista dos anos 60...................................................................................................212 O PSR: Florestan Fernandes e o trotskismo................................................................215 O POR: uma experincia poltica e terica para futuros acadmicos.........................220 A POLOP: militantes, intelectuais e teoria da dependncia....................................230 A lei do desenvolvimento desigual e combinado e a intelectualidade brasileira....235 Organizaes trotskistas e pensamento social brasileiro: dois breves comentrios..........................................................................................................................248 x
Captulo III Bonapartismo e populismo: Historiografia, movimento operrio e as interpretaes sobre o perodo 1930-1964
Populismo e bonapartismo nas cincias sociais brasileiras.............................251 A teoria do populismo brasileiro....................................................................................252 Uma nova perspectiva sobre a historicidade da periferia capitalista (Amrica Latina/Brasil)...............................................................................................................253 Crise de 1929, periferia e populismo..........................................................................256 Crise de hegemonia, Revoluo de 1930, compromisso e populismo.................258 Populismo e trabalhadores: a cidadania das massas................................................266 Nacionalismo, estatismo e mobilizao de massas.....................................................269 Populismo e trabalhadores: sindicalismo e corporativismo........................................271 Populismo e trabalhadores: a questo das direes polticas da classe.......................274 A crise do populismo...................................................................................................277 Populismo: o desenvolvimento da teoria....................................................................281 Teoria do bonapartismo e teoria do populismo: convergncias..............................295 O bonapartismo nas origens do conceito de populismo: Weffort e Ianni...................295 Populismo, burocracia e bonapartismo: Dcio Saes e Armando Boito Jr...................306 Hegemonia ou revoluo passiva/cesarismo? A variante gramsciana da teoria do populismo (Rgis Andrade e Ren Dreifuss)..............................................................309 O bonapartismo no Brasil (1930-1964): outros autores..............................................312 Vises trotskistas da dominao poltica no Brasil 1930-1964: bonapartismo....323 O surgimento do bonapartismo no Brasil....................................................................323 Estado Novo e bonapartismo.......................................................................................325 Os bonapartismos ps-1945........................................................................................332 Um intermezzo para a polmica historiogrfica: o movimento de reviso do populismo (da valorizao das lutas operrias ao fetichismo do varguismo).......336 O conceito de populismo nas cordas do ringue historiogrfico: os dois campos da reviso em curso..........................................................................................................339 Populismo e luta por direitos: a corrente historiogrfica da Unicamp....................342 xi
Como era gostoso o nosso populismo: a corrente revisionista fluminense.................350 Historiadores, poltica, passado e presente: uma indagao guisa de concluso.....358 O bonapartismo ps-populista: o Golpe de 1964 e a ditadura militar...................361
Captulo IV O longo bonapartismo brasileiro: um ensaio de interpretao histrica do Brasil contemporneo (1930-1964)
A via bonapartista da modernizao capitalista do Brasil ............................369 Domnio cafeeiro e crise de hegemonia......................................................................370 A Revoluo de 1930 e a emergncia do bonapartismo.........................................377 O bonapartismo em construo: o Governo Provisrio (1930-1934)......................382 A Constituio de 1934 e a formao de um bonapartismo semiparlamentar.......393 A escalada bonapartista (1934-1937).............................................................................398 O 18 brumrio de Getlio Vargas e o fastgio bonapartista: rpidas consideraes sobre o bonapartismo semifascista do Estado Novo (1937-1945)...423 Ditadura em crise, a guerra e o incio da transmutao bonapartista (1942- 1945).......................................................................................................................................434 O semibonapartismo democrtico ou o cesarismo sem Csar (1946-1964): algumas notas para uma pesquisa futura......................................................................................442
Consideraes finais Teoria poltica, historiografia, universidade e movimento operrio
Algumas palavras guisa de concluso .................................................................467
para meus pais Elio e Cristina, pelo apoio sempre incondicional;
para minha mulher Bianca, por todo o amor e companheirismo oferecidos ao longo desta jornada;
para meu av Roberto Abranches (in memoriam) que, provavelmente, no concordaria com quase nada do que est escrito nestas pginas (mas isso nunca teve a menor importncia entre a gente)
1
A intelligentsia russa cedo me inculcara que o prprio sentido da vida consiste em participar conscientemente da realizao da histria. Quanto mais penso nisso, mais parece- me profundamente verdadeiro. Isso significa pronunciar-se ativamente contra tudo o que diminui os homens e participar de todas as lutas que tendem a libert-los e engrandec-los. Que essa participao seja inevitavelmente manchada de erros no minimiza o imperativo categrico; pior erro viver para si, segundo tradies totalmente manchadas de desumanidade. Essa convico me deu, como a um certo nmero de outros, um destino bastante excepcional; mas estvamos, estamos bem na linha do desenvolvimento histrico, agora se v que, por toda uma poca, milhes de destinos vo seguir os caminhos que fomos os primeiros a trilhar. Na Europa, na sia, na Amrica, geraes inteiras se desenraizam, engajam-se profundamente nas lutas coletivas, aprendem a violncia e o grande risco, experimentam cativeiros, constatam que o egosmo do cada um por si est caduco, que o enriquecimento pessoal no a finalidade da vida, que os conservadorismos de ontem s levam s catstrofes, sentem a necessidade de uma nova tomada de conscincia para a reorganizao do mundo
Victor Serge (1890-1947), em suas Memrias de um revolucionrio (So Paulo: Cia. das Letras, 1987, p. 426.)
2
Introduo geral: Bonapartismo, populismo e a nossa pesquisa
3
O carter deste trabalho
uma obra importante, precisamente porque nela se apresentam conjugadamente algumas das principais contribuies do pensamento dialtico. A est aplicada a teoria da luta de classes, bem como a concepo marxista do Estado. Explica-se a maneira pela qual o Exrcito se envolve na poltica e quais so os sentidos da politizao dos militares. No confronto entre diferentes concepes sobre a organizao poltica da sociedade, verificamos como se manifestam os ideais da social-democracia. Ao mesmo tempo, ficamos conhecendo a maneira pela qual a atividade dos homens, tomados individualmente e em grupo, assume significao coletiva e histrica. Ou melhor, de como as classes sociais e suas faces se apresentam nos acontecimentos, esclarecendo os seus sentidos ou incutindo- lhes novas direes. Nessa linha de reflexo, verificamos como se d a formao da conscincia, em especial como a conscincia de classe e a conscincia social individual conjugam-se e desencontram-se na produo dos acontecimentos. Alm disso, verificamos a maneira pela qual o Estado aparece representando a vontade geral e em que medida ele exprime os interesses da classe dominante. O bonapartismo, de que falam os polticos e os cientistas sociais modernos, um desenvolvimento da interpretao formulada nesta obra. Em suma, em O 18 brumrio podemos acompanhar as maneiras segundo as quais se do os encadeamentos entre as diversas esferas da existncia coletiva. Em particular, conhecemos as diferentes conexes recprocas entre o econmico e o poltico. Observamos, com preciso, as maneiras pelas quais ocorrem as transies no modo de produo s relaes de produo e s ideologias. Em outras palavras, nesta obra o pensamento dialtico rev-nos a maneira pela qual se d a produo da histria, como dialtica do real. 1
Temtica, objetivos e teses Poucos anos antes de sua morte, o intelectual e militante socialista Ruy Mauro Marini relatou que, por volta de 1962-1963, preparava sua tese de doutorado sobre o fenmeno do bonapartismo no Brasil. Segundo Marini, o texto da tese e demais materiais relativos a ela se perderam em 1964, quando da primeira invaso, pelo Exrcito, da ento recm-criada Universidade Nacional de Braslia (UNB). 2 Ainda que no intencionalmente, aquela ao truculenta da ditadura militar (uma entre milhares) acabou por gerar uma importante lacuna temtica no pensamento social brasileiro, j que no temos cincia de nenhum outro trabalho cientfico dedicado especificamente compreenso das formas bonapartistas assumidas pela dominao burguesa no Brasil. Todavia, ainda que no como objeto central de investigao histrico-sociolgica, a idia de um bonapartismo brasileiro figurou, desde o sumio do natimorto estudo de Marini, em uma significativa parcela de trabalhos cientficos realizados no pas. De forma explcita ou implcita, a categoria de bonapartismo esteve presente como um elemento estruturante em muitos conhecidos estudos sobre o Brasil Contemporneo produzidos pela academia no ps-
1 IANNI, Octavio. Apresentao in MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte [e Cartas a Kugelman]. Traduo de Leandro Konder e Renato Guimares. 4 edio. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978, p. 4-5. Grifos do autor. 2 MARINI, Ruy Mauro. Memria: por Ruy Mauro Marini (agosto de 1990) in ____. Ruy Mauro Marini. Vida e obra. TRASPADINI, Roberta e STEDILE, Joo Pedro (orgs.). So Paulo: Expresso Popular, 2005, p. 65. 4
1964. isso o que, precipuamente, este trabalho pretende apresentar e discutir. De natureza eminentemente historiogrfica, ele tem boa parte de suas pginas dedicada a expor como a noo de uma autonomia relativa do Estado em face das classes sociais ncleo central do que aqui chamamos de uma teoria do bonapartismo embasou interpretaes sobre o processo scio-poltico brasileiro do ps-1930 realizadas por autores como Lencio Martins Rodrigues, Carlos Estevam Martins, Luiz Alberto Moniz Bandeira, Carlos Nelson Coutinho, Luiz Werneck Vianna e o prprio Ruy Mauro Marini. Mais enfaticamente, procuramos demonstrar como essa noo de autonomizao relativa do Estado se constituiu tambm explcita ou implicitamente em um dos pilares centrais das anlises sociolgicas que propuseram como chave explicativa para o perodo 1930-1964 o conceito de populismo. Desse modo, nos esmeramos em expor, um tanto quanto detalhadamente, aquilo que a principal tese deste trabalho: a teoria do bonapartismo foi a base fundamental daquela que se tornaria conhecida como a teoria do populismo (brasileiro), formulada e desenvolvida, nos anos 60, 70 e 80, por autores marxistas como Francisco Weffort, Octavio Ianni, Rgis de Castro Andrade, Ren Dreifuss, Dcio Saes e Armando Boito Jr. Secundariamente, este trabalho tem por fito evidenciar a existncia de uma relao pouco conhecida para no dizermos simplesmente ignorada entre essas interpretaes acadmicas sobre o perodo populista brasileiro e aquelas que, bem antes, no calor dos acontecimentos, haviam sido elaboradas por organizaes polticas do movimento operrio entre os anos 1930-1964. Mais especificamente, intentamos expor como pequenos agrupamentos de extrao trotskista (ou prximos ao trotskismo), como a Liga Comunista Internacionalista (LCI), o Partido Operrio Leninista (POL), o Partido Socialista Revolucionrio (PSR), o Partido Operrio Revolucionrio (POR) e a Poltica Operria (POLOP) anteciparam, em suas anlises conjunturais sobre o carter poltico assumido pela dominao de classe no pas, muitos elementos que, mais tarde, reapareceriam nas tais interpretaes acadmicas sobre o perodo populista. Retomando e desenvolvendo, assim, o que j havamos discutido em nossa dissertao de mestrado, 3 apresentamos aquela que a segunda tese deste trabalho: na interpretao do populismo brasileiro, o movimento operrio antecedeu academia. Na discusso proposta, veremos como certos autores acadmicos h pouco mencionados, quando novos, integraram ou estabeleceram algum tipo de relao perifrica com algumas dessas organizaes trotskistas (ou prximas ao trotskismo) que, entre a Revoluo de 1930 e o Golpe de 1964, lutaram encarniadamente contra a ordem burguesa no Brasil. Tal elemento ser apresentado como um possvel fator explicativo para essa espcie de convergncia analtica entre militantes trotskistas pr-1964 e acadmicos
3 DEMIER, Felipe. Do movimento operrio pra universidade: Len Trotsky e os estudos sobre o populismo brasileiro. (dissertao de mestrado). Niteri: PPGH/UFF, 2008. 5
marxistas ps-1964 acerca do que teriam sido os aspectos centrais do processo poltico populista. Mostraremos, tambm, como tal convergncia pode ser vista como expresso de outra comunho epistemologicamente mais ampla entre os grupos em questo: tanto as tais pequenas organizaes trotskistas (ou prximas ao trotskismo) quanto aqueles acadmicos marxistas realizaram suas anlises da formao social brasileira reconhecendo nela a existncia de uma historicidade particular, resultante de sua prpria natureza atrasada, perifrica e dependente. Como veremos, no s os trotskistas militantes, como tambm os acadmicos marxistas com os quais trabalharemos realizaram suas interpretaes do processo poltico brasileiro contemporneo tendo por base a chamada lei do desenvolvimento desigual e combinado, de autoria de Len Trotsky. Alm de todas essas questes de carter historiogrfico, o presente material traz tambm, ao seu final, uma proposta nossa de interpretao histrica do processo poltico brasileiro do perodo 1930-1964, realizada luz da teoria do bonapartismo. Aproveitando- nos de aportes tericos oferecidos ao longo do trabalho, e retomando questes e discusses j ento anunciadas nas pginas dos captulos anteriores, realizamos uma sinttica anlise da dinmica poltica que, dialeticamente, acompanhou e produziu a retardatria modernizao industrial do pas sob o perodo populista. 4 Abordando os diversos momentos e configuraes especficas da autonomizao relativa do Estado face s classes sociais existente ao longo de todo o populismo, lanaremos a ltima tese deste trabalho: a transformao do secular Brasil agrrio-exportador em um moderna nao urbano-industrial se fez por um caminho bonapartista, isto , percorreu os trilhos do que chamamos de uma via bonapartista da modernizao capitalista.
Estrutura do trabalho e disposio dos captulos Por questes de mtodo de exposio que, sempre vale lembrar, no deve ser confundido com mtodo de investigao optamos por organizar nosso trabalho em duas partes centrais, a saber, A teoria do bonapartismo (parte I) e Bonapartismo e populismo no Brasil (parte II).
4 Ao longo deste trabalho, utilizamos o termo modernizao no sentido de desenvolvimento das foras produtivas e relaes sociais capitalistas, isto , como o desenvolvimento das formas de explorao do trabalho. Como procuraremos apresentar no decorrer destas pginas, nos pases perifricos do sistema capitalista esse desenvolvimento se processou (processa) de um modo em que o chamado atraso constantemente reproduzido, acompanhando e estimulando sempre os elementos modernos. Assim, no tomamos a idia de modernizao tal como os chamados tericos da modernizao, para quem esta se apresenta como uma verdadeira panacia para as naes retardatrias. Como tambm veremos, mesmo algumas correntes marxistas, adeptas de concepes dualistas e etapistas do desenvolvimento histrico, partilharam dessa viso neutra e apologtica da modernizao capitalista. 6
Parte I) A teoria do bonapartismo Essa primeira parte, como seu prprio nome j antecipa, dedicada apresentao do que decidimos chamar de uma teoria do bonapartismo. Realizamos nessa parte, portanto, uma detalhada exposio crtica daquilo que pensamos ser as principais contribuies para o surgimento e desenvolvimento de um corpus terico-analtico acerca do objeto bonapartismo. Dispostas cronologicamente, as anlises produzidas por destacados intelectuais marxistas do movimento operrio referentes ao fenmeno histrico do bonapartismo ocupam as pginas dessa primeira parte.
Em uma Introduo (esta) primeira parte (Bonapartismo e marxismo), aps alguns importantes comentrios inaugurais, propusemos uma sntese do conceito de bonapartismo a partir da bibliografia trabalhada nos dois captulos subseqentes. O carter antecipatrio dessa sntese se justifica, sobretudo, pela significativa escassez de discusses acerca do prprio conceito, o que nos impede, pensamos, de prescindir de esclarecimentos prvios sobre ele em um trabalho desta natureza. Resultado de uma pesquisa acerca das principais apreenses j feitas sobre o fenmeno bonapartista, essa sntese , tambm, uma proposta nossa de interpretao do fenmeno bonapartista. Em seguida, de modo breve e ainda guisa de esclarecimento, discutimos a relao do bonapartismo com os distintos nveis das estruturas polticas (Estado, regime e governo), como tambm as conexes entre sua emergncia e a situao histrico-social conhecida como crise de hegemonia. Por fim, fizemos um breve debate em torno das elaboraes sobre o bonapartismo produzidas por dois marxistas acadmicos contemporneos: Nicos Poulantzas e Domenico Losurdo. Apontando os importantes subsdios oferecidos por estes autores discusso do fenmeno, mostramos, entretanto, como suas concepes mais gerais sobre ele se distanciam daquelas formuladas por aqueles que aqui nomeamos de tericos do bonapartismo (e as quais corroboramos).
Captulo I) O primeiro captulo propriamente dito, intitulado As origens do conceito: Marx e Engels, aborda, primeiramente, as pioneiras elaboraes de Marx sobre o fenmeno da autonomizao relativa do Estado em face das classes sociais. Contidas, principalmente, nos ricos textos do autor sobre o processo poltico francs de 1848-1871, essas elaboraes foram trabalhadas de um modo que as vinculasse ao momento histrico de seu surgimento, o que nos levou a reconstituir resumidamente a dinmica daquele prprio processo poltico. Entretanto, mostramos como Marx, ao se debruar sobre uma situao poltica concreta na qual a burguesia abdicava de seu poder poltico para preservar seu poder social , acabou por 7
lanar as bases de uma teoria do bonapartismo, de alcance temporal mais geral. Na seqncia, nos detivemos sobre os tambm pioneiros escritos de Friedrich Engels sobre o bonapartismo, destacando, especialmente, o que se constituiu, a nosso ver, na sua maior contribuio para o estudo do fenmeno: as sugestivas interpretaes sobre o regime poltico institudo por Otto Von Bismarck na Alemanha em unificao, concebido por Engels como uma variante, dotada de especificidades, do bonapartismo francs de Lus Bonaparte.
Captulo II) Neste segundo captulo, denominado As perspectivas de dois revolucionrios do sculo XX: Trotsky e Gramsci, procuramos apresentar o desenvolvimento da teoria do bonapartismo a partir das valiosas contribuies a ela feitas por esses dois sofisticados tericos e militantes de filiao bolchevique. Iniciando o captulo com a contribuio de Trotsky, trabalhamos com alguns dos muitos momentos da obra do revolucionrio russo nos quais a questo do bonapartismo foi tratada de um modo mais destacado. Nessa empresa, observamos suas anlises sobre o que teriam sido distintas formas de regime bonapartista presentes ao longo da primeira metade do sculo XX, como, por exemplo, o bonapartismo alemo pr-hitlerista (1930-1933), o bonapartismo semiparlamentar francs (1934-1940) e o bonapartismo estalinista da Unio Sovitica ps-revolucionria. Com especial ateno, nos detivemos tambm sobre as caracterizaes de Trotsky acerca dos bonapartismo sui generis da Amrica Latina nos anos 30 do sculo XX, as quais, como acreditamos, possuem muitos aspectos em comum com a chamada teoria do populismo latino-americano (e brasileiro em particular). Nossa discusso acerca desses contraditrios bonapartismos perifricos est precedida de uma sistematizada apresentao da lei do desenvolvimento desigual e combinado formulada por Trotsky, instrumental terico que embasou suas anlises sobre as estruturas polticas dos pases atrasados. Findado nosso trabalho com a produo de Trotsky, procedemos a uma exposio analtica das elaboraes de Antonio Gramsci acerca do bonapartismo, fenmeno que o marxista sardo optou (na maioria das vezes) por chamar de cesarismo. Observamos, assim, as diferenas existentes entre o que Gramsci caracterizou como sendo cesarismos progressivos e regressivos, ambos oriundos, segundo o autor, de situaes de crise de hegemonia e crise orgnica. Em seguida, discutimos tambm as conexes existentes entre os regimes polticos cesaristas e os processos histricos denominados por Gramsci como revolues passivas.
Parte II) Bonapartismo e populismo no Brasil 8
De natureza fundamentalmente historiogrfica, esta segunda parte tem por objetivo primordial demonstrar a forte presena (explcita ou implcita) da teoria do bonapartismo em muitas das clssicas interpretaes acadmicas sobre o processo histrico-poltico brasileiro situado entre a Revoluo de 1930 e o Golpe de 1964. Fazendo um uso farto de fontes bibliogrficas, mostramos, particularmente, como muitos dos aspectos definidores do conceito de bonapartismo encontram-se presentes na teoria do populismo. Procuramos indicar tambm nessa parte do trabalho os j anunciados vnculos entre as interpretaes acadmicas do processo poltico brasileiro do 1930-1964 e aquelas realizadas por organizaes polticas de matriz trotskista (ou prxima ao trotskismo). Em um segundo momento dessa segunda parte, esboamos, a partir da teoria do bonapartismo (j ento discutida), uma proposta interpretativa sobre determinados momentos do processo poltico brasileiro compreendido entre 1930-1964.
Na Introduo (esta) segunda parte (Trotskismo, Movimento Operrio e Universidade), apresentamos um pouco do contexto intelectual brasileiro (dcadas de 1960 e 1970) no qual se situaram alguns dos intelectuais acadmicos com os quais aqui trabalhamos, em especial aqueles mais diretamente ligados teoria do populismo. Assim, aps a exposio do que consideramos ter sido uma corrente antidualista e antietapista do pensamento social brasileiro, traamos um breve histrico das organizaes polticas esquerda do PCB 5 (LCI, PSR, POR, POLOP etc.) que, assim como alguns intelectuais componentes da referida corrente, propuseram leituras dialticas da complexa realidade scio-poltica nacional e chamaram a ateno para a formatao bonapartista assumida pelo Estado no ps-1930. Nesse breve histrico das organizaes trotskistas (ou prximas ao trotskismo), indicamos tambm os expressivos contatos polticos estabelecidos com estas por parte de alguns dos membros daquela corrente antidualista e antietapista do pensamento social brasileiro (normalmente em suas militncias de juventude). Por fim, expusemos os vnculos (explcitos ou implcitos) das organizaes polticas e intelectuais acadmicos em questo com a lei do desenvolvimento desigual e combinado de Trotsky a qual, como veremos, encontra-se subjacente teoria do populismo brasileiro, sendo um de seus pressupostos tericos constituintes.
5 O partido comunista aqui fundado em maro de 1922 levou o nome de Partido Comunista do Brasil (PCB), seo brasileira da Internacional Comunista (IC). Em 1961, com o intuito de reaver seu registro eleitoral cassado pelo TSE em 1947 que, entre outros argumentos, alegou ser o partido uma ramificao de um partido internacional com sede em Moscou, o que era () proibido pela legislao eleitoral do pas , o partido alterou, em 1961, seu nome para Partido Comunista Brasileiro, preservando a sigla PCB. Em 1962, uma ruptura sada alguns anos antes do PCB, adotou a linha chinesa (maosta) e fundou o Partido Comunista do Brasil, tendo por sigla PC do B. 9
Captulo III) O terceiro captulo, Bonapartismo e populismo: historiografia, movimento operrio e as interpretaes sobre o perodo 1930-1964, iniciado com uma resumida apresentao do caminho interpretativo populista do perodo 1930-1964, tal como foi proposto pelos cientistas sociais Francisco Weffort e Octavio Ianni, e desenvolvido por autores como Dcio Saes, Armando Boito Jr., Rgis de Castro Andrade e Ren Dreifuss. Essa apresentao dos principais alicerces da teoria do populismo abre caminho para a demonstrao de nossa tese central, isto , a de que muitos desses alicerces so derivados justamente da teoria do bonapartismo. Seguindo em nossos objetivos demonstrativos, fizemos uma breve exposio de algumas anlises de conjuntura feitas pelas organizaes esquerda do PCB no perodo 1930-1964, nas quais a noo de bonapartismo apareceu como um elemento central na caracterizao das formas de dominao poltica ento vigentes no pas. Na seqncia, adentramos rapidamente o atual debate historiogrfico sobre o populismo, tecendo algumas poucas consideraes acerca das recentes propostas de reviso interpretativa do perodo histrico 1930-1964 (a chamada reviso do populismo). Prosseguindo na demonstrao da relao entre teoria do bonapartismo e a intelectualidade brasileira, mostramos como aquela foi utilizada tambm por autores que se debruaram sobre a natureza do sistema poltico brasileiro configurado a partir do Golpe de 1964. Em poucas pginas, apresentamos as caracterizaes bonapartistas da ditadura militar antipopulista (1964-1985) propostas por autores como Carlos Estevam Martins e Mrio Pedrosa, o que indicar ao leitor a vasta amplitude da idia de bonapartismo no trato de nossa histria republicana.
Captulo IV) Se ao longo do captulo anterior nos encarregamos de apresentar a marca bonapartista em conhecidos trabalhos dedicados ao processo poltico do 1930-1964, neste ltimo captulo, intitulado O longo bonapartismo brasileiro: um ensaio de interpretao histrica do Brasil Contemporneo (1930-1964), procuramos mostrar como a teoria do bonapartismo pode ser, de fato, um profcuo instrumental de anlise para o perodo em questo. Centrando- nos no balizamento temporal 1930-1945, mas nos estendendo at a derrubada do populismo em 1964, discutimos o que acreditamos ter sido uma via bonapartista da modernizao capitalista do Brasil.
Consideraes finais) Em nossa breve concluso (Teoria poltica, historiografia, movimento operrio e universidade), procedemos a uma exposio do caminho traado pela pesquisa na busca de 10
confirmao de nossas hipteses, assim como apontamos aspectos parciais que certamente ainda carecem de desenvolvimento. Tentamos, tambm, indicar, de modo um tanto breve, alguns dos motivos que podem ajudar a explicar o silncio quase total por parte da historiografia quanto ntima relao entre as elaboraes bonapartistas oriundas do movimento operrio e aquelas produzidas por uma parcela expressiva da produo acadmica brasileira voltada para o perodo 1930-1964.
Duas breves justificativas 1) Desde praticamente o seu nascimento, o pensamento social brasileiro produziu muitas reflexes marcadas por concepes tericas que tomavam (tomam) Estado e sociedade como entidades abstratas e estanques. Em conhecidos e importantes trabalhos informados pela perspectiva weberiana, o Estado brasileiro, grosso modo, apresentado como uma gigantesca deformidade burocrtica, resultante, segundo alguns autores, do prprio processo de colonizao portuguesa, que teria deixado em nossa formao social e, consequentemente, em nossas instituies pblicas (quando no nas mentalidades do povo brasileiro), as marcas patrimonialistas do alm-mar. Produtor e produto de uma cultura nacional autoritria, o Estado brasileiro, ao longo do sculo XX, teria se mantido como uma instituio permeada por interesses particulares daqueles indivduos que ocupavam seus postos de comando, o que teria tornado a mquina pblica do pas distinta do modelo de um aperfeioado Estado moderno, compatvel com uma forma de dominao racional-legal. Nessa linha de raciocnio, ao invs de terem servido sociedade, os membros do corpo estatal, desprovidos de uma conduta impessoal no trato da coisa pblica, teriam representado e continuariam a faz-lo, segundo alguns analistas , somente eles prprios (Estado cartorial) cabe assinalar que existe nessa perspectiva uma ntida inspirao da chamada teoria das elites. Numa leitura esquerda, tpica do perodo de redemocratizao dos anos 1980, tal tese patrimonialista/weberiana foi traduzida como privatizao do Estado, apresentando como anomalia o que , de fato, a marca do Estado moderno, sua representao de interesses especficos de classes e fraes de classe. Agigantado, ultra-burocratizado e guiado por regras prprias, esse tipo de Estado estaria contraposto a e, ao mesmo tempo, seria tambm fruto de uma sociedade fraca, incapaz de construir formas associativas e representativas verdadeiramente enraizadas no tecido social, e que, por isto mesmo, no teria logrado construir uma formatao estatal compatvel com uma ordem social competitiva (urbano-industrial capitalista). Com forte influncia at os dias de hoje (sobretudo entre os adeptos da escola neoliberal), essa linhagem interpretativa da formao social brasileira apresentava (apresenta) um Estado forte em 11
contraposio a uma sociedade fraca. Tal dicotomia, segundo alguns estudiosos, teria sido preservada e at mesmo acentuada sob o processo de modernizao industrial retardatria do pas, realizada, em grande parte, sob os anos da chamada Era Vargas. O Estado varguista e sua herana burocrtica e paternalista seriam fiis expresses desse carma que atingiria secularmente a histria nacional. 6
A nosso ver, esse tipo de perspectiva, sobretudo em funo dos limites impostos por suas prprias referncias tericas, no chegou a captar mais do que a superfcie do problema. Pode-se dizer, talvez, que captou a aparncia da coisa, mas esteve (est) longe de apreender sua essncia. Coube, ento, a outros autores brasileiros, filiados melhor tradio do marxismo no-oficial, avanar nas anlises da formao social brasileira e dar passos importantes para a descoberta da verdadeira natureza das relaes entre Estado e sociedade no pas. So alguns desses autores que perfilam nas pginas deste trabalho. Tomando o aparelho estatal como a representao poltica dos interesses de algumas pequenas partes da sociedade contra os interesses de outra(s) parte(s) dessa mesma sociedade (Estado de classe), esses autores marxistas 7 perceberam que, em funo da prpria dinmica do desenvolvimento capitalista brasileiro, o Estado desempenhava funes e assumia aqui formas polticas distintas daquelas presentes no mundo ocidental democrtico-burgus. Devido correlao de foras entre as classes sociais em luta, responsvel, desde fins da dcada de 1920, por uma duradoura crise de hegemonia, o aparelho estatal brasileiro, ainda que representante dos interesses do conjunto da classe dominante (e, portanto, voltado politicamente contra as classes dominadas), teria adquirido em face daquela uma significativa autonomia relativa, produzindo, assim, uma (falsa) idia de si prprio como um corpo burocrtico absolutamente (e no relativamente) autnomo em relao s classes sociais. Tal caminho interpretativo, como j anunciamos, encontra-se baseado no que chamamos de uma teoria do bonapartismo. Em nosso entendimento, resgatar esse caminho e seus principais construtores intelectuais pode vir a ser de grande valia em um momento no qual o pensamento social brasileiro (hegemonicamente conservador) atravessa uma de suas fases mais decadentes, sobretudo no que diz respeito anlise das relaes entre Estado e sociedade: no s ambos continuam a ser concebidos como entidades abstratas estanques, como agora so reconciliados pela mais nova vertente da historiografia revisionista, a qual, sob a alegao de que a sociedade (tomada em bloco) sempre compactua de alguma forma com o Estado
6 Um balano crtico dessa perspectiva weberiana de interpretao do Estado brasileiro pode ser encontrado em: SAES, Dcio. A evoluo do Estado no Brasil (uma interpretao marxista) in ____. Repblica do Capital. Capitalismo e processo poltico no Brasil. So Paulo: Boitempo, 2001, p. 93-105. 7 Alguns deles se utilizando, vale ressaltar, tambm de aportes tericos weberianos. 12
(liberalmente visto como o representante geral da nao), vem impudentemente reabilitando fenmenos como o populismo e mesmo at a ditadura militar. 2) Assumidamente dmod, este um trabalho sobre regimes polticos em perspectiva marxista. Mais especificamente, trata-se de um estudo sobre o chamamos de o longo bonapartismo brasileiro. Esperamos, assim, dar alguns passos para que a lacuna temtica deixada pelo desparecimento da j mencionada tese de doutorado de Ruy Mauro Marini (dedicada especificamente ao bonapartismo no Brasil) possa comear a ser suprida. Nesse sentido, estas pginas so, de certa forma, tambm uma homenagem a Marini, intelectual cuja trajetria a prova cabal de que o pensamento crtico, mesmo quando produzido nos espaos acadmicos, no pode ser feito apartadamente das lutas sociais levadas a cabo pelos trabalhadores. Certamente, a homenagem que o presente estudo sobre o bonapartismo brasileiro pretende prestar a Marini est muito aqum da que um intelectual e militante do seu porte mereceria. Mas uma homenagem. Do sumio da tese de Marini, em 1964, at os dias de hoje, muitos outros estudiosos estiveram mais habilitados do que ns para realizar uma pesquisa sobre a temtica em questo. Atualmente, muitos outros tambm o esto. Contudo, j disse certa vez o historiador polons Isaac Deutscher que a histria opera atravs do material humano que [se] encontra disponvel, 8 ainda que este material no seja o mais apropriado pra a realizao das tarefas que a histria exige.
8 DEUTSCHER, Isaac. Ironias da histria. Ensaios sobre o comunismo contemporneo. Rio de Janeiro: Civilizao brasileira, 1968, p. 53. Aproveitamos a insero deste colchete para comunicar ao leitor que, ao longo deste trabalho, todos os colchetes (e seus respectivos contedos, inclusive as reticncias que indicam pulo no texto) presentes em meio a citaes de outros autores so de nossa autoria. J o que estiver entre parnteses (inclusive as reticncias) foi inserido pelos prprios autores das citaes. 13
Parte I
A Teoria do Bonapartismo
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Introduo primeira parte: Bonapartismo e Marxismo
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Bonapartismo: o fenmeno e o conceito
O concreto concreto porque a sntese de muitas determinaes, isto , unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como o processo da sntese, como resultado, no como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida tambm da intuio e da representao. 9
Naturalmente que os doutrinrios no se satisfaro com uma definio to vaga; desejariam frmulas categricas: sim, sim e no, no. As questes de sociologia seriam bem mais simples se os fenmenos sociais tivessem sempre um carter acabado. Mas nada mais perigoso do que eliminar, no desenvolvimento de uma preciso lgica, os elementos que contrariam os nossos esquemas e que, amanh, os podem refutar. 10
De resto, o cesarismo uma frmula polmico-ideolgica e no um cnone de interpretao histrica. 11
Na ampla e heterognea literatura marxista de cunho mais propriamente poltico, o vocbulo bonapartismo e suas variantes (bonapartista, bonapartistas, semibonapartismo, filobonapartismo etc.) apresentam uma frequncia perceptvel, ainda que, diferentemente de outros tantos mencionados porfia e indiscriminadamente, no possam ser tomados propriamente como termos batidos. Suas no to correntes aparies nos permitem, entretanto, perceber que distintos tratos, alguns cuidadosos e sofisticados, outros nitidamente reducionistas e imprecisos, j foram (so) dispensados a este conjunto terminolgico. Um tpico uso que se encaixa no segundo caso aquele no qual a adjetivao bonapartista imputada a qualquer governo ou regime mais ou menos ditatorial, cujo teor repressivo, ainda que elevado, no chega a justificar, segundo a lgica do autor, a sua caracterizao como fascista. Nesse raciocnio, muitas vezes sub-reptcio, o que define o regime ou governo bonapartista nica e simplesmente o seu grau coercitivo, o nvel de violncia do qual lana mo o aparelho de Estado contra seus adversrios polticos; tal raciocnio, muito comum em apressados documentos polticos de organizaes de esquerda, parece ser embasado pela seguinte frmula algbrica: pouca violncia = democracia burguesa; muita violncia = fascismo; mdia violncia = bonapartismo. Em ltima anlise, essa forma de proceder no expe seno uma verso um pouco mais detalhada da tipologia utilizada pelos Partidos Comunistas estalinizados, os quais, desde o fim dos anos 20 do sculo XX,
9 MARX, K. Introduo crtica da economia poltica in ____. Os pensadores (Marx). So Paulo: Nova cultural, 1999, p. 39-40. 10 TROTSKY, L. A revoluo trada. O que e para onde vai a URSS. 2 edio. So Paulo: Jos Lus e Rosa Sundermann, 2005, p. 228. 11 GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. (Caderno 13). 3 edio. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2007,volume III, p. 77. 16
passaram a definir qualquer regime poltico capitalista que se distanciasse em especial, pelo uso abusivo da violncia da forma democrtico-burguesa como fascista. 12
Lembremos aqui tambm da costumeira idia, presente em certos ramos eclticos da cincia e histria polticas, a qual associa o bonapartismo presena de um governante (lder) nacional que, dotado de fortes traos carismticos, postar-se-ia como um rbitro neutro face s pugnas sociais e polticas internas sociedade, buscando garantir a harmonia da nao. Nessa perspectiva, o contedo de classe (burgus) da dominao poltica bonapartista, o qual se encontra, na realidade, mediado e embuado pela autonomia relativa do aparelho estatal, fica encoberto tambm pelas linhas desses analistas polticos, os quais confundem a aparncia do fenmeno (Estado neutro) com sua verdadeira essncia (Estado burgus). Vale mencionar ainda a qualificao de bonapartista aplicada a certos governos e regimes pelo simples fato de possurem um Poder Executivo hipertrofiado, ou mesmo graas ao poderoso peso exercido pela burocracia e/ou as Foras Armadas (FFAA) na conduo da vida poltica nacional. Findando nossa exemplificao dessas utilizaes pouco apuradas do corpo conceitual em questo, assinalamos que, alm de ser empregado para designar regimes e governos, o adjetivo bonapartista tambm alocado ao lado do substantivo Estado, o que deixa entender que bonapartista podem ser no s o regime e o governo, mas igualmente o Estado capitalista em si. Os exemplos acima so pertencentes a uma espcie de senso comum do bonapartismo se que se pode assim dizer e, como tais, no deixam de encerrar aspectos verdadeiros quanto ao seu objeto. Todavia, pecando pela superficialidade e, sobretudo, pela parcialidade, no chegam a apreender o fenmeno bonapartista em sua totalidade, ou pelo menos naquilo que lhe essencial. Decerto, os regimes bonapartistas so marcantes pelo seu aspecto violento e, de fato, seus teores coativos so usualmente maiores que os registrados sob as democracias burguesas e menores que os atingidos sob os fascismos. Entretanto, no fazendo uso de um medidor de violncia que se deve buscar apreender a verdadeira natureza repressiva dos regimes polticos, e sim atentando para a qualidade e seletividade da prpria atividade repressiva; mais precisamente, de que modo e a que classes, fraes de classe e grupos polticos a mquina policial-militar e seus eventuais colaboradores para-estatais endeream suas armas. Correto tambm dizer que o Estado no regime bonapartista, perseguindo a integridade nacional, tende a desempenhar, por intermdio de um lder quase
12 Sob o risco de nos desviarmos de nosso curso, no poderemos adentrar o debate travado no seio da Internacional Comunista (IC) em fins da dcada de 1920 e ao longo da de 1930 acerca da caracterizao do fenmeno fascista. Contudo, alguns aspectos relacionados a tal debate sero brevemente abordados por ns mais frente na parte destinada s elaboraes de Len Trotsky sobre o bonapartismo. Quanto s polmicas no interior da IC acerca da natureza poltica do fascismo, ver POULANTZAS, Nicos. Fascismo e Ditadura. A III Internacional face ao fascismo. Porto: Portucalense, 1972, 2v.
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sempre carismtico e solerte, um papel arbitral; contudo, pode-se dizer que profundamente equivocado tomar como politicamente neutro tal juiz. Do mesmo modo, verdade que sob os regimes bonapartistas tanto o Poder Executivo apresenta-se hipertrofiado, quanto a burocracia e as Foras Armadas tm seu papel poltico-institucional realado, embora a existncia de FFAA e burocracia atuantes, assim como de um Executivo forte, no confira automaticamente ao regime um carter bonapartista. Por fim, observamos que se a adjetivao bonapartista pode ser bem empregada para qualificar regimes (principalmente) e governos (no caso daqueles que funcionam dentro, e sejam adeptos, das estruturas do regime bonapartista), seu uso para a caracterizao de Estados , no mnimo, inapropriado.
Uma proposta de sntese conceitual Procurando ir alm desse senso comum sobre o fenmeno bonapartista, um bom caminho investigativo adentrar na sofisticada produo terica a ele dedicada, a qual designamos, sem muito rigor epistemolgico, de uma teoria do bonapartismo. Trabalhando, assim, com as anlises de autores como Marx, Engels, Trotsky e Gramsci, e absorvendo delas o que h de comum e mais genrico no que concerne aos aspectos definidores do bonapartismo, possvel propormos uma sntese que tenha por finalidade expor sucintamente aos leitores como a melhor tradio marxista o concebeu. 13 Embora no possa tocar nas particularidades de cada autor no que tange caracterizao terica do fenmeno, tal como nas concretas especificidades apresentadas por cada uma de suas distintas manifestaes histricas, uma sntese dessa natureza, acreditamos, pode fazer as vezes de prembulo s anlises dos autores mencionados, as quais o leitor encontrar logo em breve. Iniciando, ento, nossa empreitada sinttica do conceito (que no deixa de ser uma interpretao nossa do prprio conceito), assinalamos que o bonapartismo se exprime, fundamentalmente, pelo fenmeno da chamada autonomizao relativa do Estado diante das classes e demais segmentos sociais em presena. Em determinadas conjunturas de exacerbao da luta de classes, nas quais o proletariado se apresenta como uma ameaa (real ou potencial) ao domnio do capital, e nenhuma das fraes da classe dominante possui as condies de impor um projeto poltico sociedade, de dirigi-la segundo seus interesses e preceitos particulares, instaura-se aquilo que se convencionou chamar de crise de
13 Esclarecemos, assim, que entendemos por teoria do bonapartismo o conjunto das elaboraes sobre o fenmeno bonapartista realizadas por tericos como Marx, Engels, Trotsky e Gramsci. A partir de agora, dispensaremos as aspas para se referir a essa teoria, assim como aos seus formuladores (os tericos do bonapartismo). Desse modo, alertamos que ao falar de uma teoria do bonapartismo e de seus autores (tericos do bonapartismo) no nos referimos a uma teoria produzida pelos regimes bonapartistas e aos seus criadores, preferindo usar, nestes casos, respectivamente, as denominaes de ideologia do bonapartismo (ou ideologia bonapartista) e idelogos do bonapartismo (ou idelogos bonapartistas).
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hegemonia. Nessa situao de aguda diviso social, de impasse poltico, enfim, de equilbrio de foras e incapacidade hegemnica, o aparelho de Estado se ingurgita, eleva-se por sobre os grupos conflitantes e, apregoando a unidade nacional a qual ele prprio afirma encarnar, impe pela fora a paz social e salvaguarda a ordem capitalista em xeque. Essa elevao do aparelho estatal acima das partes contenciosas expressa justamente a autonomia relativa adquirida pelo Estado, ou, mais precisamente, pelo seu ncleo fundamental (em especial, Poder Executivo, aparato repressivo e burocracia), face s distintas fraes do capital e suas representaes polticas. Adquirindo uma ingente fora poltica prpria, o aparelho estatal j no a expresso, o instrumento, de nenhuma dessas fraes em particular; precisamente para desempenhar o papel de mantenedor do que h de comum a todas elas, a saber, a propriedade capitalista, o Estado, enquanto novo ordenador da vida social, necessita submet-las sua direo e ditames polticos de jaez essencialmente burocrtico. Assim, sob o bonapartismo, o Estado, relativamente autnomo frente s fraes burguesas, coloca-se como representante dos interesses de conjunto da burguesia, e o faz mesmo a despeito desta ltima. Tal fato no significa, entretanto, que no haja sempre uma ou mais fraes do capital privilegiadas pelas polticas estatais sob o bonapartismo. Configura-se, ento, uma formatao particular assumida pelo Estado capitalista em momentos de crise, um tipo de regime poltico caracterizado por uma dominao poltica indireta da burguesia sobre as demais classes sociais. O aparelho estatal, funcionando como uma espcie de rbitro do jogo poltico e pacificando o cenrio social litigioso, ganha a aparncia de uma fora descolada, acima e independente da sociedade. Ao longo do bonapartismo, os governos vigentes, em especial os que so afinados com a arquitetura institucional do regime, tendem, eles tambm, a encerrar um carter mais ou menos autnomo em relao aos partidos e demais ajuntamentos polticos contudo, em alguns casos (no raros), todas as formas de organizao poltica provenientes da sociedade civil so sumariamente extintas pelo regime. O bonapartismo mostra-se, ento, no s como um regime poltico, mas ainda como uma modalidade de governo, na qual a classe dominante no tem acesso direto s rdeas do Estado. nesse sentido que o fenmeno bonapartista se refere a um dialtico processo pelo qual a burguesia abdica das funes de domnio poltico da nao para ver mantida sua dominao econmica no interior da mesma. Originado de uma situao politicamente instvel gerada pela exasperao do confronto social, o regime bonapartista, colimando preservar as bases da dominao de classe burguesa, lana-se em uma luta fsica e ideolgica pela reintegrao e harmonizao da sociedade burguesa ento dilacerada. Destarte, direciona suas foras repressivas contra os perturbadores da ordem. 19
Prioritariamente, ataca violentamente aquele que o fundamento primeiro do temor burgus: o movimento operrio organizado. Proibindo, fechando ou mesmo destruindo as organizaes sindicais, polticas e culturais dos trabalhadores, o regime bonapartista intenta desmontar a vanguarda da classe que, pela sua prpria existncia, coloca em risco a manuteno da explorao social. Assim, na qualidade de indivduos atomizados e desprovidos de uma conscincia emancipatria, os trabalhadores podem passar a funcionar como base e sustentculo de massas da nova ordem poltica capitaneada pelo prprio Estado; so justamente essas massas populares, um novo sujeito social e poltico nascido dos processos de urbanizao e industrializao, as quais o bonapartismo v-se impingido e nisso reside grande parte de sua prpria razo de ser a incorporar, controlada e subalternamente, esfera poltica. Nessa engenhosa empresa, a direo bonapartista pode vir a colocar em movimento certas camadas marginalizadas da sociedade, o chamado lumpem- proletariado, direcionando-as tanto para o apoio efusivo ao regime, quanto para o esmagamento da resistncia operria. Em certas ocasies, elementos agrrios pequeno- burgueses (campesinato), temerosos do avano poltico do proletariado, fornecem uma legitimidade socialmente reacionria ao poder bonapartista. Entretanto, secundariamente, o regime bonapartista volta suas baterias tambm contra os elementos revis da classe dominante, adestrando ou mesmo suprimindo suas recalcitrantes representaes polticas, sejam elas partidos, lideranas classistas, crculos ideolgicos ou jornais panfletrios. Assim, o Estado burgus, sob a forma bonapartista, priva a prpria burguesia de sua ampla liberdade poltica, embora o nvel de tal privao seja infinitamente inferior ao que imposto classe trabalhadora. Essa nova, complexa e contraditria relao estabelecida entre o aparelho de Estado e ambas as classes sociais fundamentais determinante na montagem institucional que vertebra o regime bonapartista. Almejando eliminar o clima politicamente radicalizado e tenso que o produziu, o novo regime se edifica promovendo a extino das instncias e elementos jurdico-politicos do regime anterior, os quais, segundo os construtores bonapartistas, teriam permitido a instalao do embate poltico em propores socialmente insuportveis. Desse modo, muitas das chamadas liberdades democrticas, algumas delas defendidas pela prpria burguesia em seu alvorecer revolucionrio, so, em um quadro de contra-revoluo poltica, suspensas sob a alegao de serem perigosas e socialistas. Liberdades de expresso, reunio e organizao, entre outros princpios democrtico-burgueses, do lugar, no bonapartismo, vigncia quase constante e ordinria de expedientes os quais, no regime democrtico, existem apenas na qualidade de mecanismos excepcionais e temporrios (permisso para priso sem mandato judicial, suspenso do direito ao habeas corpus, 20
suspenso do direito inviolabilidade do lar e de correspondncia etc.). O sufrgio universal, baluarte-mor da democracia burguesa, tende a assumir, nas vezes em que preservado (ou institudo), uma conotao plebiscitria. Outros direitos constitucionais mais propriamente democrticos, como o de greve, impostos burguesia pelas lutas operrias dos sculos XIX e XX, podem ser tratados de vrios modos (porm essencialmente iguais) pelo poder bonapartista: em circunstncias relativamente amainadas do confronto social, sua manuteno se vincula ao enxerto de ardilosos aditamentos jurdicos os quais, na prtica, dificultam ou inviabilizam seu exerccio prtico; j em momentos de maior radicalizao poltica, tais direitos democrticos costumam ser simplesmente suspensos ou despudoradamente banidos. Opera-se, portanto, uma clara mudana de regime no Estado burgus, limitando demasiadamente a mobilidade das foras sociais na cena poltica. Passa a vigorar uma espcie de estado de stio permanente. 14
A especfica desproporo de foras entre os poderes estatais no regime bonapartista , tambm, um de seus precpuos aspectos definidores. Encarregado de salvar a nao ameaada por suas fissuras e lutas intestinas, o Executivo torna-se praticamente onipotente, concentrando em suas estruturas constitutivas, sobretudo na figura do chefe de Estado, um quantum de poder exorbitantemente desproporcional em relao aos demais poderes de Estado. Nesse movimento, verifica-se tambm uma fortssima centralizao poltica do pas, por meio da qual a instncia central desse fortalecido Poder Executivo (Unio, Imprio etc.) impe-se quase que integralmente tambm sobre todos os poderes de natureza regional e local (governos estaduais, prefeituras municipais, chefes polticos distritais, assemblias estaduais, cmaras municipais, tribunais e fruns locais etc.). Essa fora do Executivo diretamente proporcional fraqueza do Legislativo e do Judicirio. Vistas como as arenas, por excelncia, do exacerbado e aziago embate travado entre as representaes polticas no regime anterior, as instncias parlamentares so tratadas como uma das principais fontes da discrdia que fraturou o pas. Com a finalidade de manter a ordem e a paz, o regime bonapartista procura desfazer as conexes entre as vrias fraes e segmentos sociais beligerantes e a esfera poltica institucional-representativa. Ao Parlamento, consequentemente, reservado um papel absolutamente secundrio ou inexistente: por vezes colocado sob ntido controle do Executivo, em outras simplesmente fechado. Quanto ao Judicirio, resta- lhe capitular abertamente ao Executivo ou ser modificado por este em sua estrutura, funcionamento e pessoal. Com suas dimenses dilatadas e gozando de poderes discricionrios,
14 Uma discusso sobre as relaes entre a norma e a exceo no ordenamento jurdico dos Estados capitalistas, e mais particularmente, sobre a utilizao permanente de expedientes excepcionais pelos regimes constitucionais pode ser encontrada, entre outros trabalhos, em AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceo. So Paulo: Boitempo, 2003 e BERCOVICI, Gilberto. Constituio e estado de exceo permanente. A atualidade de Weimar. Rio de Janeiro: Azougue editorial, 2004. 21
a cpula dirigente do Executivo equilibra-se sobre os campos em luta e, subalternizando ou dispensando o Parlamento e seus partidos polticos, encontra seu apoio naquilo que , na verdade, o ncleo fundamental do aparelho de Estado: a burocracia e as Foras Armadas. Estas duas instituies extrapolam suas habituais funes exercidas sob o regime constitucional anterior e ampliam visivelmente seus domnios sobre o tecido social; no obstante se apresentarem sob um vu de neutralidade e apoliticismo, passam a desempenhar um papel protagonista na conduo da vida poltica, econmica e cultural do pas. Desmontando os tradicionais mecanismos de representao poltica da democracia burguesa, o todo-poderoso aparelho estatal trabalha na construo de uma outra forma de conexo entre o poder pblico e o corpo cvico, visando tornar este ltimo imune s exacerbadas contendas polticas verificadas no regime anterior. A relao entre governantes e governados sob o bonapartismo assume a forma de uma relao direta entre o chefe de Estado e os cidados nacionais, na qual tem lugar um imprescindvel ingrediente ideolgico de cunho pequeno-burgus. Seja ele um presidente civil, militar ou um nostlgico Imperador, o lder mximo do pas, na maioria das vezes carismtico e demaggico, se proclama o harmonizador da nao, dizendo arbitrar os interesses conflitantes provenientes de todas as partes que a constituem. A personalizao da poltica , portanto, quase sempre um ingrediente importante na receita bonapartista. Objetivando bloquear o desenvolvimento dos elementos classistas na subjetividade dos trabalhadores, o regime bonapartista trata-os, jurdica e discursivamente, como um volumoso conglomerado populacional que no seno resultado da adio de indivduos proletrios isolados. Amalgamado com estratos sociais de diferentes matizes, o proletariado se dilui pela retrica bonapartista nas manobrveis massas populares e no policlassista povo em muitos casos, isso no incompatvel com a permanncia da classe trabalhadora no lxico do regime, que pode at conceb-la como uma parcela especfica da sociedade (e que deve colaborar com as demais), mas nunca enquanto um sujeito social estruturalmente antagnico ao capital (o que colocaria em risco a integridade nacional que se persegue). com esse povo disforme e alienado que o lder Bonaparte, dispensando qualquer tipo de plataforma poltico-programtica bem definida, estabelece uma relao extremamente fetichista, dirigindo-se e sendo reconhecido por ele como seu nico e ldimo intrprete, como aquele que, investido de sabedoria e capacidade decisria, pode proteg- lo das injustias sociais e das elites gananciosas. maneira tipicamente pequeno-burguesa, o Estado tomado pelos seus cidados como um ente politicamente neutro que, pairando acima das classes sociais, mostra-se ao seu povo como uma entidade protetora, benfeitora e benevolente. Nessa astuta engrenagem ideolgica do regime, uma sofisticada 22
mquina de propaganda, declaradamente ufanista e apologeta da ordem, costuma desempenhar um destacado papel apelando para emocionalidade de amplos contingentes populacionais trazidos para a cena poltica. Por meio dessa poltica de massas, que combina ideologia, coero e, tambm, o atendimento de certas demandas populares, procura-se neutralizar ou eliminar tendncia polticas radicais (classistas) brotadas entre os setores subalternos no regime anterior. O bonapartismo , portanto, um fenmeno cuja manifestao prpria a sociedades complexas, nas quais a existncia das incontveis massas populares torna ineficazes antigas e altamente exclusivistas formas de dominao poltica burguesa (regimes aristocrticos, oligrquicos, governo dos notveis, voto censitrio etc.). Compreendido, ento, como uma modalidade particular e contempornea dessa dominao poltica burguesa, o bonapartismo , ao menos nas naes centrais do capitalismo, uma forma de regime e de governo excepcional e transitria, no obstante apresente vrias ocorrncias e, por vezes, uma significativa durao temporal. Engendrado por uma crise de hegemonia, o bonapartismo solapado ou quando esta se encerra isto , quando uma ou mais fraes da classe dominante se apresentam, finalmente, capazes de dirigir politicamente a nao , ou quando massivas mobilizaes polticas anti-regime lhe retiram sua sustentao social.
Bonapartismo e capitalismo Nesta introduo temtica bonapartista, consideramos pertinente chamar a ateno, ainda que de modo ligeiro, para duas importantes questes que permeiam o denso debate cientfico acerca da chamada autonomizao relativa do Estado. A primeira dessas questes trata dos distintos nveis de abstrao do mbito poltico da sociedade capitalista que o analista do fenmeno bonapartista deve necessariamente levar em considerao em sua empresa investigativa. Fazemos meno, mais propriamente, s diferentes ordens de grandeza imprescindveis de se observar quando das anlises sobre as estruturas polticas de determinada formao social burguesa, isto , s diferenas existentes entre Estado, regime e governo. Naturalmente, nossa abordagem dessa espinhosa problemtica se limitar apenas a pequenas consideraes as quais, esperamos, faro melhor fluir aqui a discusso da temtica bonapartista. 15 A outra questo diz respeito s dialticas conexes verificadas entre o problema da hegemonia e os variados modos de dominao poltica que o Estado capitalista pode assumir. Mais particularmente, iniciaremos nossa
15 Para alm das variadas crticas polticas e epistemolgicas que lhe foram endereadas ao longo do tempo, a maior referncia para o vital e fatigante debate acerca da natureza e tipos do Estado capitalista, assim como das distintas formas de regime e modalidades de governo que nele podem ter lugar, continua a ser a obra POULANTZAS, Nicos. Poder poltico e classes sociais. Porto: Portucalense editora, 1971, 2 v.
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discusso a qual daremos prosseguimento em outros momentos do presente trabalho com a associao que parece existir entre a j mencionada crise de hegemonia e a emergncia dos regimes bonapartistas. Passemos ento a essas questes.
Estado, regime e governo Nas pginas precedentes, mencionamos o uso indevido, porm corrente, do termo bonapartista para designar a natureza (contedo) dos Estados modernos Estado bonapartista. Alinhavando uma crtica a esse uso abusivo, indicamos em nossa sntese conceitual do bonapartismo que tal fenmeno deve ser apreendido fundamentalmente como um regime poltico que o Estado burgus pode vir a adotar em determinadas conjunturas da luta de classes. Nessa perspectiva, o bonapartismo exprimiria no a natureza (contedo) desse Estado, a qual, no interior de uma formao social capitalista, seria sempre burguesa, mas sim uma forma que, em certas vezes histrica e politicamente determinadas , assumida pelo prprio aparelho estatal. A nosso ver, portanto, o bonapartismo seria uma espcie especfica de arranjo poltico-institucional, uma formatao particular das engrenagens do Estado burgus surgida quando os meios de dominao poltica de tipo oligrquico ou democrtico- burgus mostram-se insuficientes e perigosos para a manuteno da ordem capitalista. Na mesma sntese conceitual, pde ser ainda observado que a qualificao de bonapartista adequada tambm a certos tipos de governo, isto , queles que surgem sob o regime bonapartista e portam-se como seus defensores. Ocorre, contudo, que nenhum dos tericos do bonapartismo por ns arrolados se dedicou a uma caracterizao sistemtica e detalhada do fenmeno bonapartista em si, isto , nenhum deles chegou a produzir um complexo terico-conceitual sobre o tema, uma teoria propriamente dita da chamada autonomizao relativa do Estado. 16 Na maioria das vezes, os subsdios e aportes tericos oferecidos por Marx, Engels, Trotsky e Gramsci para a sua compreenso derivam de anlises sobre processos polticos concretos, os quais, estes sim, se constituem em objetos centrais dos textos. Talvez o melhor exemplo do que acabamos de dizer seja a clssica obra marxiana O 18 brumrio de Lus Bonaparte. 17 Conquanto reconhecida, corretamente, como a me da teoria bonapartista, trata-se fundamentalmente de um arguto ensaio sobre a trama poltica francesa entre 1848-1851 (que teve por desfecho o golpe de Estado de Lus Bonaparte), estando longe de se apresentar como um compndio terico sobre a estrutura, organicidade e o funcionamento do tipo bonapartista de regime
16 E por isso que, at as ressalvas que fizemos h pouco (ver nota 2), vnhamos utilizando entre aspas o termo teoria quando fazamos meno teoria do bonapartismo. 17 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit. 24
poltico. Assim, no possvel encontrar na literatura desses autores um debate sobre as instncias polticas Estado, regime e governo voltado diretamente para a questo do bonapartismo. Em que pese o fato de que Nicos Poulantzas e Domenico Losurdo, autores mais recentes e de perfil universitrio, tenham fugido regra e produzido elaboraes mais sistemticas sobre o fenmeno, 18 nos parece que a situao apresentada pode ter contribudo, de alguma forma, para que nos meios marxistas, sobretudo nos mais militantes, o termo bonapartismo e suas variantes sejam muitas vezes empregados com uma preocupante frouxido conceitual. Desejando, portanto, limpar o terreno para a continuidade da exposio de nosso objeto, precisando-o como um tipo de regime e de governo, vale a pena recorrer aos esclarecimentos didticos feitos pelo militante argentino Nahuel Moreno, 19 concernentes s diferenas e relaes existentes justamente entre Estados, regimes e governos. 20
Para o autor, de linhagem trotskista, se o mtodo adequado para se desvendar a natureza de um Estado seria o de procurar pela classe (ou casta) que o governa, 21 o caminho para se definir um regime poltico deveria conduzir o investigador para o mbito das instituies estatais. 22 Isto seria necessrio, segundo Moreno, porque embora o Estado seja um complexo de instituies, a classe no poder no as utiliza sempre da mesma forma para governar: 23
O regime poltico a diferente combinao ou articulao das instituies estatais das quais faz uso a classe dominante (ou um setor dela) para governar: Qual a instituio fundamental de governo? Como se articulam nela as outras instituies estatais? [...] O Estado burgus deu origem a muitos regimes polticos: monarquia absoluta, monarquia parlamentar, repblicas federativas e unitrias, repblicas com uma s cmara ou com duas (uma de deputados e outra muito reacionria de senadores), ditaduras bonapartistas, ditaduras fascistas etc. Em alguns casos, so regimes com ampla democracia burguesa, que permitem at que os operrios tenham seus partidos legais e com representao parlamentar. Em outros casos, so o oposto; no h nenhum tipo de liberdades, nem sequer para os partidos burgueses. No entanto, em todos esses regimes, o Estado segue sendo burgus, porque segue no poder a burguesia, que utiliza o Estado para seguir explorando os operrios. 24
J no que se diz respeito aos governos, Moreno os entende como homens de carne e osso que, em determinado momento, encontram-se cabea do Estado e de um regime
18 POULANTZAS, Nicos. Poder poltico e classes sociais. Op. cit. e LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/ So Paulo: Ed. UNESP, 2004. Discutiremos rapidamente as vises desses autores um pouco mais frente. 19 Codinome pelo qual atendia o dirigente poltico e terico Hugo Bressano. 20 MORENO, N. Las revoluciones del siglo XX. Buenos Aires: Antdoto, 1986. 21 O Estado se define, portanto, pela casta ou classe que o utiliza para explorar e oprimir as demais classes e setores. (MORENO, N. Las revoluciones del siglo XX. Op. cit., p. 8. Traduo nossa). 22 Por intermdio de que instituies governa essa classe em determinado perodo ou etapa? (Idem, p. 9). 23 Idem. 24 Idem, p. 9-10. 25
poltico. Neste caso, a pergunta apropriada ao pesquisador poltico seria: quem governa?. 25
Oferecendo fartos exemplos de diferentes matizes de governo, o terico argentino atenta para o que deveria ser uma obviedade (ao menos entre os cientistas polticos, historiadores, socilogos e afins), a saber, que governos e regimes so coisas distintas, dado que muitos governos podem suceder-se num mesmo regime desde que o modo de articulao das instituies estatais no seja alterado. 26
Embasando-nos nas esclarecedoras consideraes de Moreno, frisamos nossa concepo do fenmeno bonapartista tanto como um tipo especfico de regime poltico do Estado capitalista, quanto como uma modalidade particular de governo (indireto) da burguesia. Destarte, entendemos que nos regimes democrtico-burgueses, podem ter lugar, entre tantas outras modalidades, governos liberais, conservadores (ambos mais ou menos reacionrios), social-democratas e de frente popular 27 (todos mais ou menos reformistas), assim como governos de aspiraes aberta ou veladamente bonapartistas (os quais intentam, normalmente por intermdio de um golpe de Estado, promover uma mudana de regime). J sob os regimes bonapartistas, observam-se governos que, pelas prprias caractersticas da conjuntura poltica em que se encontram (crise de hegemonia) e da formatao poltico-institucional na qual se inserem (especialmente, a hipertrofia do Poder Executivo, a fraqueza ou inexistncia do Legislativo, e o forte peso poltico das FFAA e da burocracia), tendem a segui-lo e a buscar refor-lo, sendo, portanto, governos arbitrais, nitidamente bonapartistas. Ocorrem tambm, episodicamente, governos no propriamente bonapartistas em meio a regimes semibonapartistas, governos at certo ponto desencaixados com o regime, pois so funcional e ideologicamente mais afinados com a democracia burguesa tal foi o caso da Frente Popular francesa, chefiada por Len Blum, que ascendeu em 1936 ao governo da nao quando esta contava com um regime predominantemente bonapartista, no qual subsistiam elementos democrticos agonizantes. 28
H registros de governos bonapartistas orientados mais direita, de perfil nitidamente reacionrio, ou mais esquerda, de colorao levemente avermelhada; desde as primeiras
25 Idem, p. 10. 26 Idem. 27 Segundo as elaboraes excessivamente generalizantes de Moreno, baseadas nas anlises concretas de Trotsky acerca das experincias das frentes populares defendidas pela Internacional Comunista (IC) na luta contra o nazi-fascismo, um governo de tipo frente popular forma-se, usualmente, pela coligao de um ou mais partidos operrios reformistas com um ou mais partidos da burguesia democrtica. Constitudo em meio a uma ascenso poltica do proletariado, o governo de frente popular tem como misso precpua afastar a classe trabalhadora do caminho revolucionrio, o que tenta fazer valendo-se de sua autoridade poltica perante o movimento de massas. O governo de frente popular, no sendo enxergado pela burguesia como o seu governo e no podendo atender s reais demandas dos trabalhadores, tende a deparar-se como uma profunda crise e tornar- se a ante-sala de um regime de tipo bonapartista semifascista ou mesmo fascista. (Ver, especialmente, TROTSKY, L. Aonde vai a Frana? So Paulo: Desafio, 1994 e MORENO, N. Os governos de frente popular na histria. So Paulo: Sunderman, 2003). 28 Ver TROTSKY, L. Aonde vai a Frana? Op. cit., p. 135. 26
dcadas do sculo XX, possvel nos depararmos tanto com os que vituperaram as idias socialistas, quanto com aqueles que as adotaram retoricamente como sua plataforma poltica. Dentre esses ltimos, identificados laudatoriamente como progressistas por certas foras de esquerda, encontram-se aqueles que estabelecem uma prestidigitadora relao com as massas populares por meio do atendimento de algumas de suas reivindicaes imediatas. Aparentando ser verdadeiramente populares, esses governos realizam manobras com a classe trabalhadora visando alcanar objetivos almejados pela cpula burocrtica estatal. Com uma incidncia localizada na periferia semicolonial do sistema capitalista mundial, esse tipo particular de governo assume, por vezes, a forma de uma especfica frente popular. 29 No custa frisar, assim, que todos os governos de natureza bonapartista, inclusive os de feio progressista, limitam-se sempre aos marcos estruturais do Estado burgus que momentaneamente dirigem, o que faz deles, em ltima anlise, governos inelutavelmente avessos emancipao socialista dos trabalhadores. Devemos assinalar tambm que, para desgosto dos politlogos taxinomistas, complexos fenmenos histrico-sociais tais como Estados, regimes e governos no costumam ser dotados de uma natureza quimicamente pura. Com efeito, Estados e, principalmente, regimes e governos encerram contedos quase sempre combinados, e a predominncia determinada pelo carter da luta entre as classes de alguns de seus componentes sobre os demais o que nos permite arriscar formulaes terico-analticas mais prximas da realidade concreta. Desse modo, regimes democrtico-burgueses, nos quais os elementos democrticos mostram-se, logicamente, majoritrios, podem, por vezes, conter elementos bonapartistas (residuais ou em levedao) em proporo inferior queles, o que possvel de ser percebido quando observamos democracias liberais que apresentam aspectos como: uma exagerada fora do Poder Executivo e da burocracia na conduo do pas; uma vida politicamente fleumtica do Parlamento e de seus partidos, uma participao quase incontinente das FFAA nos assuntos polticos; severas limitaes s atividades sindicais e polticas da classe trabalhadora, assim como restries aos grupos burgueses oposicionistas; uma postura carismtica do lder nacional perante as massas populares etc. Temos, nestes casos, regimes democrticos em que a existncia de aspectos bonapartistas, embora lhes fornea configuraes particularmente reacionrias, no chega a alterar-lhes seu sentido poltico
29 Referimo-nos aqui s frente populares sob a forma de partido, detectadas por Trotsky em suas observaes sobre o processo poltico latino-americanos em fins da dcada de 1930 (TROTSKY, L. Discusion sobre America Latina in ____. Escritos latinoamericanos. 2 edio. Buenos Aires: Centro de Estudios, Investigaciones y Publicaciones Len Trotsky [CEIP Len Trotsky], 2000, p. 124-125). 27
fundamental (democrtico-burgus) ou, segundo as palavras de Trotsky (menos ponderadas que as nossas), toda democracia burguesa tem traos bonapartistas. 30
Evidentemente e isso vlido tambm para os regimes bonapartistas dos quais falaremos logo abaixo a gradao atingida pelos elementos bonapartistas na composio qumica desses regimes democrtico-burgueses depende sempre do tipo de governo (e, mais precisamente, da linha poltica implementada por este) que, por perodos maiores ou menores, manuseia o leme do aparelho estatal. No custa lembrar que tais governos, muitas vezes, tambm no apresentam naturezas politicamente puras, sendo constitudos por alianas e acordos partidrios instveis e, por conseguinte, marcados por acalorados tensionamentos internos. Talvez por se tratarem da forma poltica por excelncia do Estado capitalista, os regimes democrtico-burgueses tentam manter sempre sob rebuos ideolgicos seus eventuais traos bonapartistas, o que provavelmente explique o porqu desses regimes, ainda quando apresentam tais traos em teor elevado, serem comumente definidos apenas como democracias liberais ou, na melhor das hipteses, como democracias liberais com Estado forte. J os regimes bonapartistas, via de regra transitrios, costumam mais frequentemente guardar traos provenientes de outras formas de dominao burguesa. Assim, salvo em suas manifestaes mais lapidadas, as quais podemos denominar de clssicas, o bonapartismo deixa facilmente transparecer seu carter combinado e por vezes hbrido. Historicamente, encontramos regimes predominantemente bonapartistas em que (contraditoriamente) o Parlamento desempenha um papel relativamente importante, para os quais a denominao mais apropriada talvez seja a de bonapartismo semiparlamentar. 31 Um bom exemplo o do h pouco citado regime poltico francs a partir de 1934 (com a formao do governo de Gaston Doumergue) at o incio da ocupao nazista em 1940 (quando teve lugar o governo colaboracionista de Vichy liderado pelo marechal Philippe Ptain). Todos os governos que se sucederam dentro desse travejamento temporal, afora a j mencionada exceo da Frente Popular de Blum, assumiram, em graus variados, um carter visivelmente bonapartista, embora ainda fizessem uso de expedientes democrticos. Temos tambm bonapartismos combinados, de apreenso terica mais complicada, como no caso do existente na Alemanha durante os anos crticos e finais da Repblica de Weimar (1930-1933), os quais prenunciavam a vitria do nazismo hitlerista (1933). Ungidos em rbitros nacionais encarregados de deter a guerra civil que se avizinhava, os reacionrios
30 TROTSKY. L. Otra vez sobre la cuestin del bonapartismo. El bonapartismo burgus y el bonapartismo sovitico. Extrado de http://www.marxists.org/espanol/trotsky/ceip/escritos/libro4/T06V203.htm. (acessado em 26/07/2011). Traduo nossa.
31 TROTSKY, L. A Frana na encruzilhada in ____. Aonde vai a Frana? Op. cit., p. 128. 28
governos de Heinrich Brning, von Papen, von Schleicher (primeiros-ministros) e Hindenburg (presidente), sobrepuseram-se aos partidos polticos e a um Reichstag profundamente dividido e desacreditado perante as massas, governando por meio de decretos- leis, do estado de stio e de represlias policialescas s organizaes operrias. A instvel e efmera sustentao poltica que obtiveram baseou-se em um equilbrio de suas cpulas burocrtico-militares por sobre os dois extremos polticos da radicalizada sociedade alem, os dois campos beligerantes daquela violenta guerra prestes a espocar: o proletariado e o fascismo. 32 Dentre esses bonapartismos de tipo preventivo ou pr-fascista, 33 encontram-se tambm governos como os de Giovanni Giolitti, Ivanoe Bonomi e Luigi Facta, os quais antecederam a chegada ao poder de Mussolini na Itlia. Em um espectro ainda mais direita, vislumbramos regimes bonapartistas extremamente burocrticos e militarizados em que a presena dos traos fascistas gritante, saltando aos olhos. Muito comuns em pases de formao capitalista tardia, imperialistas ou semicoloniais, esses regimes, abertamente repressivos em relao classe trabalhadora organizada, podem ser designados, um tanto quanto amplamente, como bonapartismos semifascistas. 34 Atentando para as especificidades de cada um dos exemplos a seguir, podemos conceber como regimes desse matiz a Turquia de Kemal Atatrk (1920-1938), a Polnia de Pilsudsky (1918-1932), o Portugal de Salazar (1926-1974), a Espanha franquista (1936-1975), a Grcia dos coronis (1967-1974), as ditaduras asiticas e africanas pr- imperialistas do ps-Segunda Guerra Mundial, assim como as ditaduras civil-militares que dominaram o Cone Sul entre meados da dcada de 1960 at mais ou menos a metade da de 1980. Em situaes muito excepcionais, esse tipo de regime pode aparecer tambm em naes de capitalismo originrio e forte tradio democrtica, como foi o caso do prprio governo Ptain na Frana (1940-1944), resultado da ocupao nazista do pas. Inclumos ainda nessa vasta e cruenta galeria de bonapartismos semifascistas uma das modalidades poltico-institucionais (sub-regimes) pelas quais podem se apresentar os regimes genericamente identificados por Trotsky como bonapartismos sui generis, 35 os quais proliferaram na Amrica Latina a partir da crise de 1929 e da consequente maior margem de manobra obtida por algumas economias do continente em relao ao centro capitalista. A modalidade (sub-regime) desses regimes bonapartistas sui generis qual nos referimos aqui se expressa por uma configurao poltica na qual o aparelho de Estado,
32 TROTSKY, L. Revoluo e contra-revoluo na Alemanha. Lisboa; Porto; Luanda: Centro do livro brasileiro, s.d. 33 TROTSKY, L. Otra vez sobre la cuestin del bonapartismo. El bonapartismo burgus y el bonapartismo sovitico. Op. cit. Traduo nossa. 34 MORENO, N. Las revoluciones del siglo XX. Buenos Aires: Antdoto, 1986, p. 19. 35 TROTSKY, L. La industria nacionalizada y la administracin obrera in ____ Escritos latinoamericanos. Op. cit., p.163. 29
percebendo uma ameaa (real ou potencial) dos setores explorados num quadro de urbanizao e complexificao social aceleradas, decide trat-los preferencialmente (e, em alguns casos, exclusivamente) pelos mtodos da represso aberta. Pressionado pela dbil e temerosa burguesia perifrica, o governo bonapartista reduz a relativa autonomia (poltica e econmica) da qual goza face ao imperialismo e, atrelando-se a ele, impe classe trabalhadora uma ditadura de tipo policial-militar, 36 a qual, em algumas casos, tem como um de seus principais pilares uma estrutura sindical de corte corporativista. Exemplos dessa modalidade de regime bonapartista podem ser encontrados nos governos de Fulgncio Batista em Cuba (1934-1944 e 1952-1959) e no de Strossner no Paraguai (1954-1989). Para os fins do presente trabalho, interessa-nos mais especialmente destacar a existncia de um outro tipo de regime bonapartista de natureza combinada, o qual exprime uma arquitetura poltica particularmente hbrida. Fazemos aluso outra modalidade (sub- regime) dos bonapartismos sui generis latino-americanos de Trotsky, na qual o Estado- rbitro, nas mesmas condies histrico-sociais descritas acima, busca conter a ameaa popular preferencialmente por mtodos reformistas, incorporando s massas esfera poltica por meio de uma poltica social que, embora bastante expressiva em seu contexto social perifrico, no pode ser equiparada implementada pela social-democracia europia. Desejando obter maior autonomia (poltica e econmica) em relao ao capital estrangeiro, os governos dessa modalidade bonapartista, sem abdicar da utilizao (moderada) de expedientes coativos e contando muitas vezes tambm com uma estrutura sindical corporativista, levam a cabo uma mobilizao controlada das massas populares e, atendendo a algumas de suas demandas bsicas, as utilizam como elemento de barganha nas negociaes com o imperialismo. Tendo essas massas como um de seus principais sustentculos poltico- sociais, esses regimes assumem um carter semibonapartista democrtico. 37 Expresses dessa variante de esquerda do bonapartismo so alguns dos regimes e governos considerados populistas, tais como o primeiro de Juan Domingo Pern na Argentina (1946- 1955), Velasco Ibarra no Equador (1934-1935; 1944-1947; 1952-1956; 1961 e 1968-1972), Paz Estensoro na Bolvia (1952-1956 e 1960-1964), Arbens na Guatemala (1951-1954) e Lzaro Crdenas no Mxico (1934-1940). Lembramos ainda que alguns bonapartismos mais duradouros podem apresentar fases e formataes polticas distintas durante sua dilatada vigncia. Tal fato pode ser observado, por exemplo, na mais clssica expresso do fenmeno: como se sabe, o diversificado regime
36 TROTSKY, Len. Los sindicatos en la era de la decadencia imperialista in ____ Escritos latino-americanos. Op. cit., p. 174. 37 TROTSKY, L. Discusion sobre America Latina. Op. cit., p. 124. Uma viso um pouco mais detalhada acerca de ambas as modalidades dos bonapartismos sui generis de Trotsky ser feita mais frente, na parte destinada s elaboraes do revolucionrio russo. 30
de Lus Bonaparte (1851-1871), a partir de 1858, amenizou seu teor coercitivo e iniciou uma etapa poltica de feio mais liberal. Assinalamos tambm que em pases perifricos, submetidos ao imperialismo, os regimes bonapartistas, por questes em que tocaremos ao longo deste trabalho, tenderam a adquirir uma maior longevidade, assumindo um carter quase estrutural nessas formaes sociais. Caminhando para o desfecho dessa espcie de tipologia bonapartista proposta por ns, consideramos que nunca demasiado ressaltar que as inmeras e complexas manifestaes histricas referentes aos diversos formatos de regimes e governos listados acima decorreram sempre, em ltima anlise, de situaes concretas da luta de classes. Por mais que seja usualmente obliterado pelo fetichismo institucionalista que impregna a cincia e a historiografia poltica atuais, precisamente o confronto poltico entre os sujeitos sociais que acaba por conferir ao Estado esta ou aquela modalidade de regime, este ou aquele tipo de governo. Portanto, a relao de foras entre as classes sociais o que envolve suas diferentes capacidades mobilizatria e organizativa, o nvel de disposio para a luta de cada uma delas, a viabilidade prtica de seus projetos, estratgicas e tticas em determinado contexto nacional/internacional, assim como a qualidade de suas direes polticas constitui-se inapelavelmente no objeto central do investigador interessado em descobrir a historicidade e o contedo da realidade poltica de certa formao social. Por fim, possvel, e at mesmo razovel, que aps as linhas acima alguns crticos venham a nos objetar argumentando que fazemos, nossa maneira, um uso tambm muito extenso e impreciso do conceito de bonapartismo, tal como havamos criticado pginas atrs. De nossa parte, advertimos apenas que categorias e conceitos, justamente por serem categorias e conceitos, encerram um significativo nvel de abstrao e, portanto, transcendem as realidades factuais e temporais a partir das quais foram criados. Assim, a questo decisiva e realmente relevante sempre saber se os fenmenos estudados pelos cientistas sociais so ou no passveis de serem trabalhados pelo arcabouo conceitual que estes escolheram/formularam, isto , se as escolhas/formulaes categoriais feitas esto ou no adequadas para o trato das realidades concretas abordadas. Nesse sentido, pensamos que cabe aqui uma pequena reflexo histrico-epistemolgica de Trotsky, a qual parece ir de encontro, avant la lettre, ao empirismo particularista que informa a perspectiva ps-moderna em voga:
Noes como a de liberalismo, de bonapartismo, de fascismo, tm um carter de generalizao. Os fenmenos histricos nunca experimentam uma repetio completa. No seria difcil mostrar-se que mesmo o governo de Napoleo III [Lus Bonaparte], comparado ao regime de Napoleo I [Napoleo Bonaparte], no era bonapartista, no s porque Napoleo III era, pelo sangue, um Bonaparte duvidoso, mas tambm porque sua atitude para com as classes, particularmente para com o campesinato e o lumpem-proletariado, era inteiramente diversa da atitude de Napoleo I. Alm disso, o bonapartismo clssico sara de uma poca de grandiosas vitrias militares que o Segundo Imprio absolutamente no conheceu. Mas, se se procurasse uma repetio de todos os traos do bonapartismo, concluir-se-ia que o 31
bonapartismo foi um fenmeno nico, impossvel de repetir-se, isto , que no existe um bonapartismo em geral, mas que houve uma vez um general Bonaparte vindo da Crsega. O caso no muito diferente em relao ao liberalismo e todas as outras noes gerais da histria. Porm, ao se falar de bonapartismo por analogia, ser preciso mostrar, consequentemente, quais so, de seus traos, os que, em condies histricas dadas, encontraram a sua expresso mais completa. 38
Crise de hegemonia e bonapartismo Em nossa definio conceitual do bonapartismo, anunciamos a existncia de um nexo causal entre uma situao de crise de hegemonia e o surgimento de regimes polticos de natureza bonapartista. O objetivo deste pequeno item consiste apenas em esclarecer rapidamente esse aspecto. Qualquer iniciado nas polmicas marxistas universitrias sabe como so inmeras e diferenciadas as utilizaes tericas e polticas j feitas da noo gramsciana de hegemonia. Densas e acaloradas contendas sobre o verdadeiro significado do conceito nos codificados escritos carcerrios de Gramsci envolvem uma pliade de intelectuais na qual se encontram revolucionrios, reformistas (aos borbotes) e at mesmos liberais envergonhados. 39 Sem querer adentrar esse interminvel debate, deixando-o para os conhecedores mais apurados da obra do comunista sardo, nos arriscaremos, entretanto, a propor aqui uma equivalncia entre a forma de dominao de tipo hegemnica, elaborada por Gramsci, e o regime poltico democrtico-burgus, o que nos permitir, acreditamos, entender melhor a relao entre crise de hegemonia e regimes bonapartistas. Como muito j foi dito, a partir de sua distino entre Ocidente e Oriente, 40
Gramsci observou que em sociedades de capitalismo avanado (ocidentais), nas quais se faziam presentes diversos segmentos sociais com suas mltiplas entidades corporativas, polticas e culturais, a burguesia, para alm de ser uma classe dominante, via-se impingida a tornar-se tambm uma classe dirigente. Nessas sociedades de massas, marcadas por uma estrutura econmica diversificada e por uma sociedade civil significativamente desenvolvida, a vigncia relativamente estvel da explorao capitalista requereria que uma ou mais fraes da burguesia conseguissem submeter ao seu projeto poltico nacional o
38 TROTSKY, L. O bonapartismo alemo in ____. Revoluo e contra-revoluo na Alemanha. Op. cit., p. 350-351. Grifos do autor. 39 Uma conhecida, porm polmica, referncia para as vrias formas possveis de interpretao da noo de hegemonia na produo literria de Gramsci ANDERSON, Perry. As antinomias de Antonio Gramsci in Crtica marxista, n. 1. So Paulo: Jorus, 1986, p. 7-74. Quanto aos diversos e opostos usos do conceito por parte do pensamento social brasileiro, ver FONTES, Virgnia. Que hegemonia? Peripcias de um conceito no Brasil in ____. Reflexes im-pertinentes. Histria e capitalismo contemporneo. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2005, p. 201-232. 40 No Oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no Ocidente, havia entre o Estado e a sociedade civil uma relao apropriada e, ao oscilar o Estado, podia-se imediatamente reconhecer uma robusta estrutura da sociedade civil. O Estado era apenas uma trincheira avanada, por trs da qual se situava uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas (GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. Volume III, p. 262.) 32
restante do conjunto social, isto , que apresentasse os seus interesses particulares como os interesses gerais da nao, segundo a clebre definio. Uma dominao de tipo hegemnica implicaria, portanto, na existncia de uma ou mais fraes burguesas que lograssem colocar sob sua direo poltica no s os demais segmentos proprietrios, como tambm, e principalmente, as ameaadoras classes subalternas em desenvolvimento. Essa capacidade hegemnica alcanada por certas fraes do capital, conferindo burguesia um papel de classe dirigente no cenrio nacional, criava, na perspectiva gramsciana, as condies para uma forma de dominao poltico-social calcada numa combinao relativamente equilibrada de elementos coercitivos e consensuais. Embora a coero ocupasse o papel determinante na estrutura de dominao hegemnica como, alis, ocorre em qualquer formatao do Estado capitalista , seria a forte dosagem consensual contida nesta que a distinguiria das formas de dominao no-hegemnicas, nas quais a violncia nitidamente predominante e, em alguns casos, quase exclusiva. 41
Na compreenso de Gramsci, a hegemonia burguesa sobre o tecido social permitia s classes dominantes erigir um tipo de domnio poltico sobre as classes exploradas em que estas, ao mesmo tempo em que se encontravam coagidas, em ltima instncia, pelo aparato repressivo estatal, ofereciam ordem instituda uma espcie de consenso ativo. Tal adeso das amplas camadas populares forma hegemnica de dominao burguesa adviria de inmeros procedimentos ideolgicos e materiais observados pelas fraes hegemnicas por intermdio tanto do seu Estado, como da sociedade civil, onde estariam localizados seus aparelhos privados de hegemonia. A nosso ver, portanto, uma situao histrico-social hegemnica o que, entre outros fatores, possibilita burguesia estabelecer sua dominao de classe por meio do regime poltico democrtico-burgus, no qual a violncia estatal, indispensvel e ininterruptamente presente (ainda que potencialmente), recebe a companhia de ingredientes de natureza consensual, os quais costumam cotidianamente aparecer em um primeiro plano. Em outras palavras, afirmamos que uma dominao capitalista de tipo hegemnica se expressa, em termos de configurao poltica das instituies estatais, na forma da democracia burguesa cujo bom funcionamento depende da coao para com os setores indmitos da classe
41 A idia de que, para Gramsci, a hegemonia se constituiria em uma relao equilibrada entre coero e consenso na qual a significativa presena do segundo no retiraria o carter fundamental da primeira pode ser encontrada, por exemplo, em BIANCHI, Alvaro. O laboratrio de Gramsci. Filosofia, histria e poltica. So Paulo: Alameda, 2008. Todavia, outros renomados especialistas em Gramsci, de linhagem eurocomunista, trabalham com a perspectiva de que uma dominao hegemnica estaria baseada fundamentalmente nos aspectos de ordem consensual. Ver, entre outros trabalhos, COUTINHO, C. N. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento poltico. Rio de Janeiro: Civilizao brasileira, 1999 e ____. Intervenes: o marxismo na batalha de idias. So Paulo: Cortez, 2006. 33
trabalhadora, como tambm dos velhos mtodos da cooptao material, parlamentar e ideolgica das lideranas populares:
O exerccio normal da hegemonia, no terreno clssico do regime parlamentar, caracteriza-se pela combinao da fora e do consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a fora suplante muito o consenso, mas, ao contrrio, tentando fazer com que a fora parea apoiada no consenso da maioria, expresso pelos chamados rgos da opinio pblica jornais e associaes , os quais, por isso, em certas situaes, so artificialmente multiplicados. Entre o consenso e a fora, situa-se a corrupo- fraude (que caracterstica de certas situaes de difcil exerccio da funo hegemnica, apresentando o emprego da fora excessivos perigos), isto , o enfraquecimento e a paralisao do antagonista ou dos antagonistas atravs da absoro de seus dirigentes, seja veladamente, seja abertamente (em casos de perigo iminente), com o objetivo de lanar a confuso e a desordem nas fileiras adversrias. 42
Alvaro Bianchi, estudioso do pensamento de Gramsci, encontrou nos famosos Cadernos do marxista sardo essa associao entre a presena de uma classe ou frao de classe hegemnica e a vigncia de um regime democrtico-parlamentar. Segundo Bianchi, Gramsci teria destacado a existncia de um processo histrico-social pelo qual a burguesia, para realizar sua hegemonia sobre toda a populao,
incorporou demandas, realizou as aspiraes da nao, assimilou economicamente grupos sociais, transformou sua cultura na cultura de toda a sociedade. O alargamento da base histrica do Estado foi, assim, acompanhado pela expanso econmica e poltica da prpria burguesia. Para Gramsci, o regime jurdico-parlamentar era o resultado desse processo de expanso, expressando a sociedade civil no interior da prpria sociedade poltica. 43
Prosseguindo, possvel depreendemos que em momentos histricos em que nenhuma das fraes do capital mostra-se em condies de exercer sua hegemonia, de colocar sob sua gide poltica o conjunto da nao, as chances de manuteno da explorao capitalista por meio da democracia parlamentar convencional tornam-se escassas. Pode-se dizer, assim, que em casos de crise de hegemonia os quais podem ocorrer ou porque a classe dirigente fracassou em algum grande empreendimento poltico para o qual pediu ou imps pela fora o consenso das grandes massas, ou porque estas ltimas passaram subitamente da passividade poltica para uma certa atividade e apresentam reivindicaes que, em seu conjunto desorganizado, constituem uma revoluo 44 as bases scio-polticas do regime democrtico-burgus, cuja existncia corresponde, normalmente, a uma situao hegemnica, tendem a rapidamente se esbarrondar. A ascenso poltico-organizativa da classe trabalhadora pode, se combinada a fissuras profundas no interior dos grupos dominantes (as quais costumam se agravar justamente em
42 GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. Op. cit., volume III, p. 95. 43 BIANCHI, Alvaro. O laboratrio de Gramsci. Op. cit., p. 259. Acerca das categorias de sociedade civil e sociedade poltica no pensamento gramsciano, ver essa mesma obra de Bianchi, particularmente o captulo Estado/sociedade civil (p. 173-198). 44 GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. Op. cit., volume III, p. 60. 34
funo da ascenso operria), conduzir a radicalizadas situaes em que o aparelho hegemnico se estilhaa e o exerccio da hegemonia torna-se permanentemente difcil e aleatrio. 45 Produzindo aquilo que comumente denominado de dissoluo do regime parlamentar, 46 a crise de hegemonia abre espao s solues de fora, atividade de potncias ocultas representadas pelos homens providenciais ou carismticos. 47 Nas sociedades de massas, nas quais o proletariado j se posta politicamente como uma fora independente, a crise do regime democrtico-burgus ou mesmo a impossibilidade de sua construo pode, em certo estgio da luta de classes, acarretar no surgimento de formas de dominao poltica no-hegemnicas, as quais, recorrendo muito mais coero do que ao consenso, aparecerem como uma soluo temporria e excepcional para a incapacidade hegemnica que acomete os prprios grupos dominantes. O regime bonapartista , portanto, uma e talvez a mais recorrente dessas formas de dominao poltica correspondentes a momentos histricos de crise de hegemonia. Vale ressaltar, assim, o vnculo histrico do fenmeno bonapartista s sociedades complexas, nas quais os processos de urbanizao e industrializao colocaram politicamente para as classes dominantes a questo da incorporao do proletariado esfera institucional do Estado, isto , colocaram historicamente a questo da hegemonia e da dominao democrtico-burguesa. Reforamos aqui a existncia de tal vnculo colimando escapar de dois equvocos interpretativos correlacionados: um deles o de classificar como democrticas as antigas formas de dominao poltica altamente exclusivistas (regimes aristocrticos, oligrquicos, governo dos notveis, voto censitrio etc.) que antecederam massificao popular das sociedades nas quais tiveram lugar; nesses casos, a necessidade mesma de uma dominao democrtico-burguesa no estava sequer colocada pelo nvel do desenvolvimento capitalista (Frana ente 1830-1848, Brasil entre 1891-1930 etc.). O outro equvoco consiste em adjetivar de bonapartista os inmeros regimes mais ou menos ditatoriais, mais ou menos militarizados, que brotaram em sociedades eminentemente agrrias, nas quais as massas populares ainda no haviam despontado como um sujeito social determinante na trama poltica (repblicas sul-americanas entre o perodo da Independncia e a crise de 1929; muitas naes da frica, sia e Amrica Central at meados do ps-Segunda Guerra etc.). Em ambos os casos (regimes aristocrticos, governo dos notveis etc., e regimes ditatoriais, militarizados etc.), trataram-se, na verdade, de formas de dominao pr-hegemnicas, nas quais, no estando a questo da hegemonia historicamente colocada, no havia
45 Idem, p. 95. 46 Idem, p. 96. 47 Idem, p. 60. 35
possibilidade ainda nem de democracia, nem de bonapartismo. 48 A preocupao com a relao histrica entre sociedades de massas e bonapartismo nos ser particularmente til na discusso que faremos (em nosso ltimo captulo) sobre a emergncia do bonapartismo brasileiro nos anos 30 do sculo XX.
O bonapartismo esvaziado de sentido: breves comentrios sobre dois autores acadmicos Nos dois captulos seguintes, componentes desta primeira parte do trabalho, procederemos (conforme anunciado) a uma exposio sistemtica da teoria do bonapartismo. Procurando acompanhar os passos de seu prprio desenvolvimento, abordaremos as elaboraes sobre o fenmeno bonapartista produzidas por Marx, Engels, Trotsky e Gramsci, a quem (como tambm j dissemos) aqui designamos de tericos do bonapartismo. Antes, porm, faz-se necessrio tecermos algumas rpidas consideraes sobre a produo de dois outros autores, de perfil mais acadmico, relativas ao nosso objeto. Bastante sugestivas, as elaboraes de Nicos Poulantzas e Domenico Losurdo apresentam elementos que nos municiam para uma melhor caracterizao do bonapartismo; contudo, por razes que agora veremos, suas concepes mais gerais sobre o fenmeno (isto , suas definies sobre o que seria essencialmente o bonapartismo) no sero por ns encampadas ao longo da presente discusso.
Poulantzas e a permanente autonomia relativa do Estado Em seu denso e supracitado estudo sobre o poder poltico na sociedade capitalista, 49
(publicado pela primeira vez, na Frana, em 1968), Poulantzas, interpretando os textos de Marx e Engels sobre o fenmeno bonapartista (os com os quais trabalharemos a seguir), argumentou que o bonapartismo, alm de uma forma concreta do Estado capitalista (um fenmeno poltico concreto de uma formao determinada), 50 deveria ser entendido tambm
48 primeira vista, o termo pr-hegemnica pode dar a impresso de encerrar uma perspectiva teleolgica, no sentido de que as formas de dominao pr-hegemnicas caminhariam inexoravelmente para se tornarem formas hegemnicas. No se trata disso. Utilizamos o conceito para, como dissemos acima, fazer meno s formas de dominao surgidas em contextos scio-histricos nos quais a questo da hegemonia derivada da emergncia do proletariado e da transformao da sociedade em uma sociedade de massas no havia ainda sido posta objetivamente. Desse modo, seria, a nosso ver, um evidente anacronismo a classificao de no-hegemnicas para estas formas de dominao, j que a necessidade mesma de uma hegemonia ainda no havia sido colocada naqueles contextos scio-histricos do mesmo modo como no faria sentido, por exemplo, denominar de no-imperial a Roma etrusca do sculo VI. Assim, optamos por chamar de no-hegemnicas apenas as formas de dominao efetivadas em formaes sociais em que a questo da hegemonia j se fazia presente, mas que, por motivos vrios, no pde (ainda ou mais) ser realizada. 49 POULANTZAS, Nicos. Poder poltico e classes sociais. Op. cit 50 Idem., p. 93. 36
como um trao terico constitutivo do Estado capitalista. 51 No raciocnio do autor, Marx e Engels, ao analisarem conjunturas polticas especficas (o bonapartismo francs do Segundo Imprio e bonapartismo alemo de Bismarck, respectivamente), teriam percebido a existncia de um aspecto que estaria sempre presente no Estado capitalista: a autonomia relativa do Estado face s classes sociais em presena. Para Poulantzas, as experincias bonapartistas (ou melhor, os escritos de Marx e Engels sobre elas) teriam desvendado o segredo do prprio Estado capitalista, isto , sua autonomia relativa em relao s classes sociais. 52
Desse modo, o que nos interessa aqui destacar que, para o filsofo marxista grego, a autonomia relativa do Estado diante das classes sociais, elemento precpuo nas definies de Marx e Engels (como tambm nas de Trotsky e Gramsci) do conceito de bonapartismo, se encontraria sempre presente em qualquer situao da luta de classes sob o capitalismo. Assim, no s em momentos de crise de hegemonia/equilbrio de foras e Poulantzas, discordando de Marx e Engels, considerou que no houvera tal equilbrio quando da emergncia dos regimes de Napoleo III e de Bismarck , 53 mas em todo e qualquer momento, em toda e qualquer conjuntura poltica, haveria um aparelho de Estado dotado de relativa autonomia diante das classes sociais. Retomando Marx, Poulantzas apontou que a forma de apropriao de excedentes do capitalismo seria responsvel por uma autonomia especfica da superestrutura jurdico- poltica face s relaes de produo, configurando, no interior daquela, uma igualdade formalista entre os agentes sociais concretos (indivduos iguais perante a lei). Segundo o autor, ao ocultar a real existncia das classes sociais por meio da figura jurdica do cidado (sujeito abstrato, definido pelo seu pertencimento comunidade poltica, representada pelo Estado), as estruturas jurdicas produziriam ideologicamente um efeito de isolamento nos agentes sociais concretos; no se entendendo como parte de uma classe social, os membros das classes sociais tenderiam a agir nos planos econmico e poltico de uma maneira individual, isolada. Elemento estrutural do modo de produo capitalista, esse efeito do isolamento dificultaria a unidade poltico-organizativa das classes sociais, inclusive da classe dominante. 54 Somados a esse fator, a prpria diviso da burguesia em vrias fraes e a capacidade do Estado de se apresentar como uma entidade neutra diante dos setores sociais
51 Idem. Grifos do autor. 52 Idem, p. 120. 53 Idem, p. 54 Esse isolamento efeito sobredeterminado, mas real vivido pelos agentes segundo o modelo da concorrncia e conduz ocultao, para esses agentes, das suas relaes como relaes de classe. Esse isolamento , alis, vlido tanto para os capitalistas-proprietrios privados como para os operrios assalariados, ainda que no se manifeste, sem dvida, da mesma maneira nas relaes sociais econmicas entre essas duas classes. (Idem, p. 112). 37
dominados (Estado representante da unidade poltica do povo-nao) 55 levariam a que a construo de hegemonia por parte de um classe ou frao de classe burguesa se fizesse sempre por meio de um aparelho estatal detentor de uma autonomia relativa diante das classes, incluindo a a classe/frao de classe hegemnica. O aparelho estatal (relativamente autonomizado) teria, assim, a dupla funo de organizar politicamente a classe dominante para o estabelecimento de sua hegemonia sobre os trabalhadores, e de desorganiz-los politicamente (colocando-os, assim, em condies de serem dominados hegemonicamente). 56
Para Poulantzas, ento, diferentemente de nossa concepo exposta no item anterior, teramos um Estado relativamente autonomizado das classes sociais mesmo em situaes de hegemonia; mais precisamente, a prpria construo de uma dominao poltica de tipo hegemnica (assim como de toda e qualquer forma de dominao poltica) implicaria justamente na existncia dessa autonomizao estatal relativa, dada a permanente incapacidade da burguesia de estabelecer sua hegemonia por meio de seus prprios partidos e representaes polticas. Sendo, portanto, a autonomia relativa do Estado uma constante para Poulantzas, o bonapartismo acabou concebido pelo autor como um tipo capitalista de Estado 57 em que tal autonomia relativa atingiria uma maior intensidade, ocupando o aparelho estatal um papel mais destacado, e talvez solitrio (sem a companhia das representaes polticas burguesas), na construo da dominao poltica:
Nos limites fixados pela relao entre as estruturas e o campo da luta de classes, essa autonomia relativa do Estado pode variar consoante as modalidades que revestem a funo que ele detm relativamente s classes dominantes, e consoante a relao concreta das foras em presena. O Estado pode, por exemplo, funcionar como fator de organizao poltica dessas classes, o que se manifesta atravs da relao complexa entre o Estado e os partidos dessas classes. Nesse caso, essa autonomia relativa ser decifrada na relao Estado-partidos, continuando esses partidos a revestir uma funo organizacional prpria. O Estado pode tambm substituir-se a esses partidos, continuando a funcionar como fator de organizao hegemnica dessas classes. Pode tambm, em certos casos, tomar inteiramente a seu cargo o interesse poltico dessas classes: trata-se do fenmeno histrico do bonapartismo francs. Neste ltimo caso, a autonomia relativa do Estado tal que as fraes dominantes parecero renunciar ao seu poder poltico, tal como Marx no-lo descreve nas suas anlises relativas ao segundo Imprio. 58
Sem deixar muito claro, por um lado, se existiria ou no uma classe/frao hegemnica sob o bonapartismo, 59 Poulantzas, entretanto, foi enftico ao considerar repetimos que a autonomia relativa do Estado face s classes sociais em luta teria lugar tambm em situaes nas quais existiria hegemonia de uma ou mais fraes burguesas. A nosso ver, o bonapartismo, ao ter, na interpretao poulantziana, seu principal trao
55 Idem, p. 114. 56 Idem, p. 127-128. 57 Idem, p. 124. 58 Idem, p. 126. Grifos do autor. 59 Contrapondo distintas passagens da obra, possvel dizermos que talvez exista mesmo uma antinomia do autor referente a essa questo. 38
caracterstico estendido s outras formas de dominao poltica (inclusive s hegemnicas), acaba por perder sua especificidade enquanto tipo de regime poltico burgus, isto , enquanto um regime no qual a burguesia no tem acesso diretamente ao leme do Estado (dada, justamente, a autonomia relativa da qual goza a mquina estatal burocrtico-militar em relao classe dominante). Assim, segundo o que entendemos, o regime bonapartista, na lgica de Poulantzas, se diferenciaria das demais formas de dominao poltica burguesa apenas em grau, no em qualidade. Tal concepo de bonapartismo isto , deste como mais uma das formas polticas assumidas por um Estado capitalista sempre autonomizado relativamente diante das classes sociais, e no como uma forma poltica de dominao burguesa que se caracteriza (entre outros aspectos) justamente por essa excepcional autonomizao relativa do aparelho estatal acaba por, em termos mais gerais, destoar da maneira pela qual trabalhamos com o conceito neste trabalho. Contudo, algumas questes trazidas pela teoria poulantziana da autonomia relativa do Estado capitalista se mostraro teis para a discusso que levaremos a cabo, mais frente, sobre bonapartismo e populismo. Uma dessas questes diz respeito capacidade desse Estado relativamente autonomizado de adotar polticas que, embora objetivem garantir os interesses fundamentais (polticos) da classe dominante ou precisamente por isso , podem colidir com os interesses econmicos de certas fraes burguesas:
Essa autonomia relativa permite-lhe [ao Estado] precisamente intervir no somente com vista a realizar compromissos em relao s classes dominadas, que, a longo prazo, se mostram teis para os prprios interesses econmicos das classes e fraes dominantes, mas tambm intervir, de acordo com a conjuntura concreta, contra os interesses a longo prazo de tal ou qual frao da classes dominante: compromissos e sacrifcios por vezes necessrios para a realizao do seu interesse poltico de classe. Basta mencionar o exemplo das chamadas funes sociais do Estado, que atualmente [1968] revestem uma importncia crescente. Se bem verdade que, atualmente, elas so conformes poltica de investimentos estatais, visando a absoro de subprodutos da produo monopolista, no menos verdade que elas foram impostas s classes dominantes pelo Estado, sob a presso da luta das classes dominadas; isto traduziu-se, frequentemente, por uma hostilidade entre o Estado e as classes dominantes. 60
Outro aporte oferecido pelo marxista grego ao nosso trabalho se refere ao papel desempenhado pela burocracia de Estado na arquitetura da dominao poltica burguesa. Definida como uma categoria especfica, a burocracia teria suas aes determinadas, primeiramente, por sua prpria condio de parte constituinte do aparelho estatal (categoria social integrada ao Estado) e, secundariamente, pela sua origem de classe propriamente dita (ou seja, pelos interesses da classe na qual recrutada). Consequentemente, a burocracia
60 POULANTZAS, Nicos. Poder poltico e classes sociais. Op. cit., p. 124. Grifos do autor. 39
estatal encerraria ela tambm uma autonomia relativa diante da classe/frao de classe dominante (mesmo dispondo esta classe/frao de classe de uma hegemonia poltica na sociedade). 61 Seguindo sua lgica, Poulantzas considerou que essa autonomia relativa da burocracia se faria presente em qualquer tipo de formatao poltico-institucional concretamente assumida pelo Estado capitalista (e mais uma vez no apenas em momentos de equilbrio de foras/crise de hegemonia): antes de qualquer outro fator, essa autonomia relativa da burocracia estatal decorreria da estrutural autonomia relativa do prprio Estado capitalista. 62
Entretanto, Poulantzas assinalou que, em situaes de bonapartismo nas quais, como vimos, ocorreria uma intensificao da autonomia relativa do Estado a permanente autonomia relativa da burocracia estatal se acentuaria, conferindo a esta categoria especfica a condio de uma fora social capaz de desempenhar uma atuao poltica independente:
As situaes [...] de um equilbrio geral das foras em presena, ou sobretudo as de um equilbrio catastrfico, operando no quadro de um Estado capitalista, criam circunstncias favorveis para a constituio da burocracia como fora social. O mesmo se passa nos casos de desorganizao poltica das classes dominantes crise de representatividade partidria na cena poltica , combinadas ou no com situaes de equilbrio; ou nos casos de constituio como foras sociais das classes da pequena produo, do campesinato mais particularmente do parcelar e da pequena-burguesia ( que, neste ltimo caso, a burocracia erige-se em fora social, funcionando como representante poltico dessas classes); o mesmo se passa, ainda, nos casos de crise geral de legitimidade numa formao. Numa palavra, trata-se ento de um conjunto de fatores que, na sua combinao sempre original no interior de uma formao, podem permitir burocracia funcionar, no simplesmente como categoria especfica com unidade prpria e autonomia relativa, mas como fora social efetiva. Essa existncia da burocracia como fora social pode ser decifrada no quadro de uma correlao com as formas de Estado capitalista. particularmente ntida nessas formas histricas particulares do Estado capitalista que so as formas cesaristas, tais como os Imprios dos dois Bonapartes em Frana. Nesses casos, a burocracia exerce a sua funo de fora social, que lhe advm da prpria conjuntura, contribuindo eficazmente para a constituio e o apoio a essas formas de Estado. A burocracia-fora social desempenha realmente, nesses casos, um papel prprio. Trata-se do apoio que d, atravs do burocratismo que caracteriza a sua legitimidade interna, a formas particulares de Estado. 63
Losurdo e o bonapartismo onipresente Intelectual marxista ainda em atividade, Domenico Losurdo talvez seja quem mais recentemente produziu um trabalho de flego sobre o fenmeno bonapartista. Em sua
61 Idem, p. 184-185. 62 [...] esses modelos de equilbrio, do mesmo modo que no bastam para explicar a autonomia relativa do Estado capitalista face s classes dominantes, no bastam para explicar a autonomia relativa da categoria especfica do aparelho de Estado face a elas. Essa autonomia relativa um trao constitutivo do tipo capitalista de Estado e portanto dessas formas concretas mesmo no caso em que no se est em presena de qualquer equilbrio de foras. Assim, na medida em que encontramos em Marx o exame (no estado prtico) da autonomia relativa do tipo capitalista de Estado face s classes dominantes, encontramos, de forma diretamente determinada, o da autonomia relativa da burocracia face a elas, mesmo no caso de uma situao concreta de no- equilbrio de foras. (Idem, p. 203). 63 Idem, p. 210. 40
instigante obra Democracia ou bonapartismo. Triunfo e decadncia do sufrgio universal 64
(publicada originalmente em 1993, na Itlia), o erudito filsofo buscou historiar a emergncia do bonapartismo no mundo contemporneo, abordando, sobretudo, o discurso terico-poltico dos seus artfices e idelogos. Debruando-se sobre a complexa dinmica das lutas de classes desde fins do sculo XVIII at as primeiras dcadas do sculo passado, Losurdo, aps expor todas as investidas da classe dominante para obstar a implementao do sufrgio universal masculino (procrastinando-o ao mximo), 65 descreveu o que, segundo ele, teria sido, no desenrolar de um contnuo processo de des-emancipao poltica, a construo de formas bonapartistas de dominao. Em linhas gerais, a tese proposta por Losurdo de que o bonapartismo, como regime poltico, teria se erigido como um modo de incorporao controlada dos setores subalternos esfera poltica, num momento em que a presso exercida por estes sobre as antigas formas exclusivistas de dominao mostrava-se incontornvel. Como uma alternativa discriminao censitria, 66 o regime bonapartista teria, assim, se apresentado tambm como um antdoto extenso do sufrgio universal. 67
Objetivando a manuteno da ordem em uma poca de crescente presso pela socializao da poltica, o bonapartismo, segundo o filsofo, procurou absorver politicamente os cada vez mais numerosos setores populares a partir da neutralizao de suas tendncias mais radicais e democrticas. Atacando as suas formas associativas e organizativas (partidos, sindicatos etc.), o projeto bonapartista, observou Losurdo, levava a cabo um processo de desarticulao poltica das classes dominadas, nica maneira de incorpor-las com relativa segurana ordem capitalista em construo. Carentes de organizaes prprias e de independncia poltica, as massas populares, atomizadas e amorfas, teriam sido conduzidas ao estabelecimento de uma relao direta sem mediaes sindicais, partidrias e programticas com os grandes lderes nacionais carismticos, os quais, no gozo de poderes discricionrios, se proclamavam (e eram proclamados) como dotados de sabedoria e representantes supremos da vontade nacional. 68 Tratadas por destacados pensadores e polticos burgueses (bonapartistas ou no, como Walter Bagehot, Granier de Cassagnac, Gustave Le Bon, entre outros) como um corpo social desprovido de
64 LOSURDO, Domenico. Op. cit. 65 Ver o primeiro captulo A luta pelo sufrgio: uma histria atormentada e ainda no concluda, no qual o autor relata vrios tipos de excluso impostas pela classe dominante ao exerccio do voto aos setores subalternos (voto censitrio, proibio do voto aos estrangeiros, aos negros, aos sem domiclio comprovado, aos analfabetos etc.) (LOSURDO, Domenico. Op. cit., p. 15-60). 66 LOSURDO, Domenico. Op. cit., p. 124. 67 Idem, p. 128. 68 Idem, p. 61-67. 41
racionalidade poltica, capaz de agir apenas guiado por juzos emocionais, a massa dos subalternos (a multido criana) 69 teria sido politicamente submetida aos ditames de um Poder Executivo forte (encarnado na figura dos carismticos chefes de Estado), cuja meta central era a da pacificao nacional mediante a suspenso dos conflitos entre as classes e faces polticas existentes:
Se havia algo que podia fazer sombra a um presidente decidido a se comportar como nico intrprete direto da nao e como lder carismtico claramente acima dos mesquinhos conflitos e rivalidades pessoais que dividiam os deputados e aspirantes a uma cadeira parlamentar, se havia algo que podia dificultar tal projeto, isto era constitudo pela existncia de partidos organizados nacionalmente e capazes de se dirigirem ao povo para convid-lo a votar no nesta ou naquela pessoa mas numa precisa plataforma programtica, colocada no centro de um debate que fosse alm de cada colgio eleitoral, rompendo assim o monoplio presidencial do apelo ao povo. Assim, o sucesso e a consolidao do projeto bonapartista pressupunham a dissoluo e a marginalizao dos partidos, bem como a liquidao de um sistema eleitoral que se baseava neles e introduzia um incmodo diafragma entre presidente, por um lado, e investidura popular, por outro. 70
Losurdo assinalou tambm o fato de que os regimes bonapartistas, embora no pudessem tolerar a organizao e atividade autnoma das classes subalternas, mostraram-se capazes, em certos casos, de efetivar algumas concesses limitadas a elas, de cima pra baixo, segundo modelo de Lus Napoleo, Disraeli [escritor e primeiro-ministro do Reino Unido em 1868] ou Bismarck. 71 Trazendo cena poltica as massas populares, fazendo-as funcionar como esteio da nova ordem, o bonapartismo se diferenciaria das pretritas formas de dominao por ser, sobretudo, um regime poltico de massas. Comparando o bonapartismo francs de Napoleo III com o que considerou ser o bonapartismo norte-americano inaugurado por George Washington (a partir do golpe de Estado dos federalistas em 1799), Losurdo observou que
A preocupao em conter as reivindicaes populares e plebias desemboca, num caso e no outro, no na reproposio do regime de notveis e sim, indo inclusive alm e fora das aspiraes e das intenes subjetivas dos protagonistas dos acontecimentos, num regime poltico novo, no mbito do qual o Executivo forte ou fortssimo encontra sua legitimao numa investidura popular que se expressa mediante o plebiscito ou mediante um sufrgio eleitoral bastante amplo e, seja como for, sensivelmente mais abrangente do que no passado. 72
Em sua narrativa histrica, Losurdo destacou tambm outros aspectos que, em sua concepo, seriam caractersticos do bonapartismo: a normalizao do estado de exceo, o militarismo, o anticomunismo, o carter plebiscitrio dos processos eleitorais, o constante apelo retrico s massas por parte dos chefes de Estado, a personalizao do poder poltico e seu correlato culto personalidade, a fora da propaganda poltica (exercida, principalmente,
69 Idem, p. 67-92. 70 Idem, p.64. 71 Idem, p. 141. 72 Idem, p. 124. 42
pelos meios de comunicao de massa), a idia de uma misso imperial a ser cumprida pela nao (conduzida por seu lder mximo) e a consequente exportao do conflito por meios beligerantes etc. 73
Como possvel perceber, a anlise sobre o fenmeno bonapartista proposta por Domenico Losurdo contm vrios elementos que informam o nosso entendimento acerca de sua natureza. Como tambm ser possvel notar a partir das prximas pginas, muitos desses elementos arrolados por Losurdo j se encontravam presentes nas elaboraes dos autores com os quais trabalharemos (Marx, Engels, Trotsky e Gramsci). Entretanto, sua concepo mais geral sobre o bonapartismo, sua definio histrico-poltica do fenmeno, nos parece distinta da que pode ser depreendida das obras destes mesmos autores, e a qual corroboramos. Na perspectiva de Losurdo, conforme vimos acima, o bonapartismo definido, fundamentalmente, como um projeto poltico que, surgido em um contexto histrico de massificao da poltica, se apresentou como uma forma de dominao capaz de absorver controladamente a presena das crescentes massas no jogo poltico, de modo a evitar que as lutas democrticas desencadeadas pela sua ao organizada pudessem obter xito. Em nossa proposta de sntese conceitual do bonapartismo, assim como nas consideraes que fizemos na sequncia, tambm relacionamos sua emergncia (assim como a da democracia burguesa) s chamadas sociedades de massas, nas quais as antigas exclusivistas formas de dominao mostram-se inviveis; ratificando o que expusemos h pouco, o bonapartismo, a nosso juzo, aparece como uma possibilidade poltica em sociedades nas quais a questo da hegemonia est colocada e no pode ser solucionada em termos hegemnicos. No havendo, portanto, a possibilidade da efetivao de uma dominao hegemnica sobre o sempre perigoso proletariado dadas, entre outros fatores, a inexistncia de uma frao burguesa capaz de se fazer hegemnica, e a fora (real ou potencial) de mobilizao dos trabalhadores , a democracia burguesa acaba por carecer de bases slidas pra se erigir ou se manter. Consequentemente, o bonapartismo, procurando bloquear a luta das classes por meio de um Estado relativamente autonomizado em face delas, se apresenta como uma sada temporria pra a crise de hegemonia, preservando a ordem social capitalista. Assim, o regime bonapartista por ns concebido como uma opo ao regime democrtico, o qual e aqui se encontra o cerne de nossa diferena com Losurdo se constituiu (e se constitui) tambm como uma forma de dominao alis, a forma de dominao preferencial do capital sobre o trabalho. Por outro vis terico-poltico, Losurdo, identificando a democracia no como uma forma poltica de dominao de classe (burguesa), e sim como um projeto poltico oriundo
73 Idem, p. 93-206. 43
dos setores subalternos, esgrimiu o argumento de que o bonapartismo teria surgido precisamente para obstar sua possvel realizao prtica (a realizao da democracia). Por conseguinte, na cuidadosa reconstituio feita pelo autor dos mecanismos de dominao engendrados pelas classes dominantes desde fins do sculo XVIII at a atualidade, a democracia, uma vez que o bonapartismo teria obtido um sucesso quase pleno em seus propsitos, foi vista no como um regime poltico que concretamente existiu, mas apenas como uma possibilidade historicamente bloqueada. A idia que vertebra toda a anlise do filsofo italiano de que, para alm das aparncias e auto-definies, quase todos os regimes polticos construdos nessa longa durao seriam, em ltima anlise, dotados de uma natureza bonapartista (massas atomizadas e desorganizadas relacionando-se diretamente com um lder supremo, carter plebiscitrio dos processos eleitorais, militarismo etc.). Na obra de Losurdo, o bonapartismo no tratado como um dos regimes dos quais lanaram mo as classes dominantes em sua permanente batalha pela des-emancipao poltica dos trabalhadores assim com a democracia foi tambm um desses regimes , e sim como praticamente o nico regime efetivamente implementado pela burguesia no transcorrer de sua trajetria poltica. Diferentemente de ser concebido, portanto, como um tipo particular de regime poltico burgus, o bonapartismo aparece como o regime burgus. Em sua trabalhosa empresa de desconstruo da abstrata noo de democracia elaborada pelo liberalismo burgus (extremamente reducionista), foi o prprio Losurdo quem, a nosso ver, acabou, ele tambm, adotando outra concepo igualmente abstrata dela (bem mais ampliada, porm menos realista). Tomada maneira da velha social-democracia de Kautsky e Bernstein, a democracia, esvaziada de seu real contedo de classe (democracia burguesa), 74 perdeu nas linhas de Losurdo toda a sua existncia objetiva ao longo da histria do capitalismo contemporneo. Na conflituosa histria das lutas de classe passada em revista pelo filsofo italiano, a democracia, reificada, parece no ocupar seno um lugar idlico e etreo (parafraseando o jovem Marx), como se nunca tivesse sido gostem ou no gostem alguns marxistas uma forma bastante real e concreta de dominao poltica utilizada pelo capital contra o trabalho. Consequentemente, na anlise do autor, o conceito de bonapartismo alcanou uma abrangncia quase ilimitada, dado que inmeros regimes democrticos existentes ao longo do capitalismo teriam sido, na verdade, regimes bonapartistas. Assim, na obra de Losurdo, no s os regimes de Napoleo I, Napoleo III, Bismarck e outros tantos caracterizados por uma autonomia relativa do Estado diante das classes sociais em disputa foram classificados como bonapartistas, mas tambm muitos outros nos quais esse elemento claramente no
74 LNIN, V. O Estado e a revoluo/ A revoluo proletria e o renegado Kautsky. (apresentao de Felipe Demier e Henrique Canary). So Paulo: Sundermann, 2005. 44
esteve presente. Tocamos aqui, por sinal, em uma (outra) possvel falha analtica do filsofo italiano: embora tenha sublinhado suficientemente o destacado papel desempenhado no bonapartismo pelo lder nacional colocado acima dos partidos e faces polticas, Losurdo pouco ou nenhum peso conferiu ao elemento da autonomizao relativa do Estado enquanto caracterstica definidora desse tipo de regime. Possivelmente, isso ajude a explicar o fato de Losurdo ter, a nosso ver, confundido o que seriam democracias com Executivo forte (democracias com traos bonapartistas, muitas vezes) com regimes bonapartistas propriamente ditos. Talvez o melhor exemplo da enorme amplitude alcanada pelo conceito de bonapartismo no trabalho do filsofo italiano seja a leitura feita por ele da histria poltica dos Estados Unidos como um extenso e contnuo desenvolvimento de um projeto bonapartista de dominao. Iniciado com o j mencionado golpe de Estado dos federalistas em 1799, ele teria se fortalecido ao longo de todo o sculo XIX, por meio da expanso para o Oeste, dos conflitos militares pela definio territorial da nao, da restrio efetiva da democracia quando da extenso do sufrgio universal etc. Dotado de uma enorme longevidade, o bonapartismo teria posteriormente se desenvolvido durante todo o sculo XX e, ao final deste, triunfado em uma verso soft, simbolizada pela figura de George W. Bush:
Assim como o sculo XX se abre com a demonstrao da superioridade do modelo americano no momento da interveno no primeiro conflito mundial e, depois, no curso do seu desenvolvimento, ele tambm se conclui com uma nova e brilhante vitria do bonapartismo soft, que tem no centro um lder, fortalecido pela sua investidura popular de tipo plebiscitrio, pelos amplssimos poderes que exerce e pode estender enormemente o estado de exceo, pela aurola sagrada que lhe deriva do fato de ser intrprete de uma misso sagrada de liberdade, pela possibilidade de dispor de um gigantesco aparelho propagandstico e de persuaso oculta. Identificar imediatamente esta vitria com a marcha da democracia significa subscrever acriticamente a ideologia da guerra e a ideologia do imprio da liberdade que acompanharam constantemente a histria dos Estados Unidos, marcando sua ascenso mundial, e que nos nossos dias consagram o triunfo do bonapartismo. 75
Cabe esclarecer que, na anlise histrica de Losurdo, essa longa durao do bonapartismo que faria dele o regime do nosso tempo 76 no explicada como decorrncia da manuteno, por um tempo prolongado, das condies que o teriam gerado (fundamentalmente, a crise de hegemonia) e, consequentemente, impedido a efetivao de regimes democrtico-burgueses em determinadas formaes sociais tal qual, por exemplo, parece ter ocorrido em alguns pases perifricos durante certos perodos histricos (como, a nosso ver, foi o caso do Brasil entre 1930 e 1964, ou at mesmo, arriscando-nos analiticamente, entre 1930-1989).
75 LOSURDO, Domenico. Op. cit., p. 300. 76 Idem, p. 92. Analisando o mundo de fins do sculo XX, Losurdo chega at mesmo a falar na existncia de uma tendncia a um bonapartismo planetrio (Idem, p. 280). 45
Na interpretao do filsofo italiano, essa quase onipresena do bonapartismo como regime poltico na contemporaneidade parece resultar do fato de que, para o autor, como dissemos, ele seria praticamente a nica forma, ou pelo menos a forma por excelncia, de dominao poltica da burguesia sobre as massas populares. Tomando a democracia como uma espcie de apangio dos setores subalternos, Losurdo parece supor que sua implementao s poderia ser obra de uma sociedade emancipada. Assim, todos aqueles regimes que, para muitos autores (marxistas ou no), foram designados de democracia (democracia liberal, democracia representativa, democracia burguesa etc.), tratar-se-iam, para Losurdo, de regimes bonapartistas. Assim parece operar a lgica analtica do filsofo italiano: no podendo ser a democracia um regime burgus, no haveria democracia burguesa, e sim bonapartismo. Todos os regimes capitalistas seriam bonapartistas. Desse modo, temos a ligeira impresso de que Losurdo, ao invs de reconhecer o verdadeiro carter da democracia sob o capitalismo uma democracia apenas para uma nfima minoria, para os ricos, inevitavelmente mesquinha, que exclui sorrateiramente os pobres e, por conseqncia, hipcrita e mentirosa 77 , prefere lhe dar outro nome: bonapartismo. Alargado ao mximo na obra de Losurdo, o conceito perde, a nosso juzo, sua validade como instrumental analtico. Se, para Poulantzas, a condio particular do bonapartismo (a autonomia relativa do Estado face s classes sociais) estaria presente em todas as formas de regime adotadas pelo Estado capitalista, para Losurdo, o bonapartismo que aparece praticamente como o nico regime implementado historicamente pelo capitalismo. Tanto em um caso como no outro, o bonapartismo parece ter seu contedo esvaziado.
Aps essas consideraes de carter preliminar, detenhamo-nos agora nas elaboraes dos nossos tericos do bonapartismo.
77 LNIN, V. O Estado e a revoluo. Op. cit., p. 94-95.
46
Captulo I
As origens do conceito: Marx e Engels
47
Marx e o clssico bonapartismo francs (1848-1871)
O regime parlamentar deixa tudo deciso das maiorias; como ento as grandes maiorias fora do parlamento no ho de querer decidir? Quando se toca msica nas altas esferas do Estado, que se pode esperar dos que esto embaixo, seno que dancem? Assim, denunciando agora como socialista tudo o que anteriormente exaltara como liberal, a burguesia reconhece que seu prprio interesse lhe ordena subtrair-se aos perigos do self-government; que, a fim de restaurar a calma no pas, preciso antes de tudo restabelecer a calma no seu parlamento burgus; que a fim de preservar intacto o seu poder social, seu poder poltico deve ser destroado; que o burgus particular s pode continuar a explorar as outras classes e a desfrutar pacatamente a propriedade, a famlia, a religio e a ordem sob a condio de que sua classe seja condenada, juntamente com as outras, mesma nulidade poltica; que, a fim de salvar sua bolsa, deve abrir mo da coroa, e que a espada que a deve salvaguardar fatalmente tambm uma espada de Dmocles suspensa sobre sua cabea. 78
Publicado em 1852, O 18 brumrio de Lus Bonaparte, de onde retiramos o trecho acima, compe, conjuntamente com As lutas de classe na Frana (1850) 79 e A guerra civil na Frana (1871), 80 o que se costuma chamar de a trilogia poltica de Marx sobre a Frana. Nesses trs magnficos trabalhos, que recobrem o perodo histrico francs de 1848 (ano que marca a Revoluo de fevereiro que ps fim monarquia constitucional de Lus Felipe a Monarquia de Julho) a 1871 (ano da Comuna de Paris, surgida na esteira da queda do Segundo Imprio, no ano anterior), encontram-se as principais reflexes de Marx sobre o fenmeno da autonomizao relativa do Estado face sociedade. Na linguagem do prprio Marx, tal fenmeno exprime-se pelo nome de bonapartismo. Embora, como j dissemos, no haja uma sistematizao terica do bonapartismo como uma forma especfica de regime e de governo capitalistas em nenhum momento da vasta obra marxiana, nesses trs supracitados livros que podemos localizar os principais aportes do autor para o que vimos chamando de uma teoria do bonapartismo a qual seria desenvolvida posteriormente pelos autores marxistas basicamente a partir desses escritos de Marx. De um modo geral, o que Marx nos oferece em tal trilogia uma refinada anlise de um processo histrico concreto no qual a burguesia francesa, profundamente dividida politicamente e temerosa do emergente proletariado revolucionrio, teria, no desenrolar dos fatos entre 1848-1851, abdicado de seu poder poltico direto sobre as demais classes sociais para, segundo as palavras contidas na citao acima, preservar intacto seu poder social sobre aquelas. Elevado acima das foras sociais em conflito, inclusive das distintas fraes da
78 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 63. Grifos do autor. 79 MARX. K. As lutas de classes na Frana (1848-1850) in ____. e ENGELS, F. Obras escolhidas, volume I. So Paulo: Alfa-mega, s. d. 80 MARX, K. La guerra civil em Francia. Moscou: Editorial Progreso, 1980. 48
burguesia, o Poder Executivo, assentado em sua burocracia e nas Foras Armadas, e gozando do apoio poltico-ideolgico dos numerosos pequenos proprietrios rurais, teria, com o golpe do 18 brumrio assestado por Lus Bonaparte ao final de 1851, aparecido ento como o guardio da ordem social burguesa numa situao em que nenhuma das representaes polticas da burguesia no Parlamento mostrava-se capaz de faz-lo. 81 Adquirindo relativa autonomia face totalidade da classe dominante, o novo regime surgido da aguda crise poltica, o regime bonapartista, teria se erigido por meio da destruio do principal instrumento do domnio poltico direto da prpria classe dominante, isto , por meio da eliminao do regime parlamentar burgus cuja vigncia colocava em risco os fundamentos da sociedade capitalista. Assim, dialeticamente, a responsabilidade pela manuteno da dominao de classe da burguesia teria ficado inteiramente a cargo de um aparelho burocrtico-militar que, agigantado e envolvido numa aura de neutralidade arbitral, deveria, para cumprir seus objetivos de mantenedor da ordem capitalista, castrar a prpria burguesia de sua liberdade poltica. Faz-se necessrio afirmar, entretanto, que tal renncia da burguesia de seu poder poltico direto sobre a nao (de seu poder parlamentar) e a consequente ascenso de um poder estatal independente 82 no podem ser reduzidas, segundo nossa interpretao das anlises de Marx, a um simples processo no qual a burguesia teria, de conjunto, optado conscientemente por um tipo de regime poltico em que ela no dominaria diretamente (o bonapartismo) em detrimento de outro em que estabeleceria seu poder por meio de suas prprias e tradicionais representaes polticas (a repblica parlamentar burguesa). Sagazmente, Marx tratou, na verdade, de um contraditrio processo poltico no qual a
81 Lembramos talvez desnecessariamente para alguns que Marx, ao chamar de 18 brumrio o golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851 aplicado por Lus Bonaparte, fez uma aluso ao golpe de Estado dado por Napoleo Bonaparte a 9 de novembro de 1799 (18 brumrio no calendrio da Revoluo Francesa), cujo resultado fora o fim da Primeira Repblica, proclamada em 1792, e o surgimento do Consulado, que logo se transformaria em Imprio (tendo Napoleo como Imperador). Lus Bonaparte, ao derrubar a repblica burguesa e instaurar o Segundo Imprio (1851-1870) proclamando-se Napoleo III, dizia estar reeditando (ou continuando) a obra de seu suposto tio, Napoleo I os vnculos sanguneos entre ambos eram duvidosos. Foi com base nessa aparente repetio dos eventos e nomes histricos que Marx, evocando Hegel, elaborou o clebre trecho que abre O 18 brumrio, no qual diz que todos os fatos e personagens de grande importncia na histria do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes [...]: a primeira vez como tragdia, a segunda como farsa. Caussidire por Danton, Lus Blanc por Robespierre, a Montanha de 1848-1851 pela Montanha de 1793-1795, o sobrinho pelo tio. E a mesma caricatura ocorre nas circunstncias que acompanham a segunda edio do Dezoito Brumrio!. (MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 17). Como interessantemente exps Paulo Barsotti, a inspirao para essa sugestiva colocao de Marx veio de uma a carta a ele endereada por Engels. Nessa missiva, considerada por Lnin como o primeiro esboo de O 18 brumrio, Engels afirmara que, na verdade, parece que o velho Hegel dirige de sua tumba a histria no papel de esprito mundial!, cuidando com a maior ateno a que todos os acontecimentos apaream duas vezes: a primeira sob a forma de tragdia e a segunda na forma miservel da farsa. Caussidire por Danton, Lus Blanc por Robespierre, Barthelemy por Saint-Just, Flocon por Carnot, e o luntico Lus Napoleo, com meia dzia de oficiais desconhecidos e cheios de dvidas em vez do pequeno cabo Napoleo I com sua turma de marechais. Estaramos, ento, j no 18 brumrio... (BARSOTTI, Paulo Engels e o bonapartismo in Novos temas (Revista do Instituto Caio Prado Jr.), n. 1. Salvador: Quarteto/ So Paulo: Instituto Caio Prado Jr., setembro de 2009, p. 95.). 82 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 123. 49
burguesia, em funo de suas lutas endgenas e, centralmente, de sua luta contra as outras classes sociais (pequena-burguesia e proletariado), teria, um tanto quanto forosamente, debilitado seu Poder Legislativo, 83 por intermdio do qual ento exercia diretamente sua dominao poltica, e, consequentemente, fortalecido o Poder Executivo que lhe era hostil, 84 e pelo qual s poderia dominar de modo indireto. Destarte, no entendimento de Marx, a dinmica da luta de classes teria impelido a burguesia a minar as bases de seu regime poltico por excelncia, a repblica parlamentar burguesa, e, simultaneamente, a alimentar o crescimento de um Poder Executivo com sua imensa organizao burocrtica e militar. 85 Agindo assim, teria fornecido as condies para a emergncia de um regime poltico no qual tambm ela, a burguesia, deveria se curvar politicamente face a um poderoso aparelho estatal relativamente autonomizado da sociedade. Na apurada perspectiva marxiana, o golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851 que pusera fim repblica parlamentar burguesa e instalara o regime bonapartista (sob forma imperial) seria resultante, portanto, de um intenso processo de luta de classes entre as diferentes fraes burguesas, e entre estas e seus adversrios pequeno-burgueses e proletrios que teria se expressado, tambm, por aguadas contradies entre as distintas estruturas constitutivas do Estado capitalista:
Seus interesses polticos [da burguesia] foravam-na a aumentar diariamente as medidas de represso e, portanto, os recursos e o pessoal do poder estatal, enquanto tinha ao mesmo tempo que empenhar-se em uma guerra ininterrupta contra a opinio pblica e receiosamente mutilar e paralisar os rgos independentes do movimento social, onde no conseguia amput-los completamente. A burguesia francesa viu-se assim compelida por sua posio de classe a aniquilar, por um lado, as condies vitais do poder parlamentar e, portanto, inclusive o seu prprio [poder parlamentar], e, por outro, a tornar irresistvel o poder executivo que lhe era hostil [...] [O] resultado imediato e palpvel [do golpe de 2 de dezembro de 1851] foi a vitria de Bonaparte sobre o parlamento, do poder executivo sobre o poder legislativo, da fora sem frases sobre a fora das frases. No parlamento a nao tornou a lei a sua vontade geral, isto , tornou sua vontade geral a lei da classe dominante. Renuncia, agora, ante o poder executivo, a toda vontade prpria e submete-se aos ditames superiores de uma vontade estranha, curva-se diante da autoridade. O poder executivo, em contraste com o poder legislativo, expressa a heteronomia da nao, em contraste com sua autonomia. A Frana, portanto, parece ter escapado ao despotismo de uma classe apenas para cair sob o despotismo de um indivduo, e, o que ainda pior, sob a autoridade de um indivduo sem autoridade. A luta parece resolver-se de tal maneira que todas as classes, igualmente impotentes e igualmente mudas, caem de joelhos diante da culatra do fuzil. 86
Essa dialtica que vertebra a anlise marxiana do coup dtat de 1851 entre a perda do poder poltico e a preservao do poder social por parte da burguesia francesa foi apontada por Hall Draper, estudioso norte-americano da obra de Marx, como a chave para o
83 Idem, p. 98. 84 Idem, p. 59. 85 Idem, p. 113. 86 Idem, p. 59-113. Grifos do autor. 50
entendimento do bonapartismo (key to bonapartism). 87 O socilogo brasileiro Emir Sader, por sua vez, interpretando os textos de Marx, considerou que o surgimento do bonapartismo representou o esmagamento da representao poltica da burguesia; porm, esse governo lhe interessava na medida em que esse esmagamento era o requisito para o reforamento do seu poder social. 88 Alm de Draper e Sader, alguns outros especialistas nos escritos polticos de Marx j se debruaram sobre sua produo concernente ao complexo fenmeno bonapartista. Embora nutrindo, em muitos casos, perspectivas tericas distintas dentro do heterogneo campo marxista, o conjunto desses especialistas tomou a tenso dialeticamente contraditria entre poder poltico e poder social burgueses como uma das linhas mestras da anlise marxiana sobre o processo histrico francs de 1848-1871. 89
Incorporando as ricas contribuies desses autores, procuraremos oferecer a partir de agora no mais do que uma ligeira apresentao das elaboraes de Marx sobre a experincia francesa em questo, procurando destacar, segundo nossa tica, os principais elementos de uma trama poltica na qual, contraditoriamente, o regime parlamentar burgus foi sistematicamente minado pelas aes empreendidas pela prpria burguesia.
A Revoluo de fevereiro de 1848 Compreender essa complexa dinmica poltica nos remete, primeiramente, Revoluo de 1848, cujo resultado foi a proclamao da repblica burguesa. Feita ou preparada pela oposio dinstica, a burguesia republicana, a pequena-burguesia democrtico-republicana e os trabalhadores social-democratas, 90 a Revoluo de Fevereiro ps fim monarquia constitucional de Lus Felipe, conhecido como o rei burgus. Implantada pela revoluo liberal-burguesa de 1830, a Monarquia de Julho havia expressado, para Marx, o domnio exclusivo da aristocracia financeira, 91 representada pela Casa dinstica dos Orlans, do mesmo modo que as monarquias absolutistas vigentes sob a
87 DRAPER, Hall. Karl Marxs theory of revolucion (volume I: State and bureaucracy. Chapter 15: The Bonaparte model). New York: Monthly Review, 1977, p. 398. 88 SADER, Emir. O Estado e a poltica em Marx. So Paulo: Cortez, 1993, p. 111 (quanto s interpretaes do autor sobre os escritos de Marx acerca do bonapartismo, ver especialmente o captulo II intitulado Bonapartismo: O Estado na poltica de Marx). 89 Citamos, por exemplo: RUBEL, Maximilien. Karl Marx devant le bonapartisme. Paris: Mouton, 1960; POULANTZAS, Nicos. Poder polticos e classes sociais. Porto: Portucalense editora, 1971, 2 v. (especialmente o captulo IV intitulado A unidade do poder e a autonomia relativa do Estado capitalista); CODATO, A. e PERISSINOTO, R. O Estado como instituio. Uma leitura das obras histricas de Marx in Crtica Marxista, n. 13. So Paulo: Boitempo, 2001, p. 9-28.; PERISSINOTO, R. A importncia do 18 brumrio de Lus Bonaparte para a teoria marxista contempornea sobre do Estado capitalista (artigo indito) e BOITO Jr., Armando. Cena poltica e interesse de classe na sociedade capitalista comentrio em comemorao ao sesquicentenrio da publicao de O dezoito brumrio de Lus Bonaparte in Crtica Marxista, n 15. So Paulo: Boitempo, 2002, p. 127-139; e ROUQUI, Alain. L hypothse bonapartiste et lemergence des systmes politiques competitifs in Revue franaise de Science Politique, n 25, 1975, p. 1077-1111. 90 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 23. 91 Idem, p. 24. 51
Restaurao teriam sido governos exclusivos da aristocracia fundiria, representada pela dinastia bourbnica. Segundo a interpretao histrica marxiana,
quem dominou sob Lus Felipe no foi a burguesia francesa, mas uma frao dela os banqueiros, os reis da bolsa, os reis das estradas de ferro, os proprietrios de minas de carvo e de ferro e de exploraes florestais e uma parte da propriedade territorial aliada a ela a chamada aristocracia financeira. Esta ocupava o trono, ditava leis nas cmaras e distribua os cargos pblicos, dos ministrios s lojas de tabaco. A burguesia industrial, propriamente dita, constitua uma parte da oposio oficial, isto , s estava representada nas cmaras como uma minoria. Sua oposio se manifestava mais decididamente medida que se desenvolvia a hegemonia exclusiva da aristocracia financeira e medida que a prpria burguesia industrial acreditava ter assegurado seu domnio sobre a classe operria, depois das revoltas de 1832, 1834 e 1839, afogadas em sangue. 92
Seguindo nossa proposta de entendimento das formas histrico-polticas de dominao de classe apresentadas por Gramsci, podemos dizer que na Frana entre 1830-1848 assistimos a uma forma de dominao de carter altamente exclusivista, um tipo de hegemonia exclusiva, nas palavras de Marx, a qual poderamos nomear de acordo com que dissemos na introduo desta primeira parte de uma dominao de natureza pr-hegemnica. Tal modo de dominao poltico-social correspondeu, a nosso ver, a uma determinada formao social que ainda no encerrava uma dimenso de massas, com um proletariado moderno politicamente independente e suas entidades sindicais, jornalsticas e culturais. Nesse caso, portanto, a inexistncia de uma hegemonia por parte da classe dominante no se deveu, supomos, a uma incapacidade desta em exercer aquela como se daria logo depois entre 1848-1851 (crise de hegemonia), provocando o golpe bonapartista mas simplesmente ao fato de que a prpria questo da hegemonia no estava ainda historicamente colocada. Alis, seria a prpria Revoluo de 1848 precisamente por marcar a entrada na cena histrica de uma classe trabalhadora organizada e consciente de seus reais interesses que acabaria por colocar burguesia francesa a necessidade de construo de uma dominao poltico-social de tipo hegemnica, na qual uma ou mais de suas fraes conseguissem dirigir politicamente a nao, incorporando tanto o restante dos estratos proprietrios, quanto, subalternamente, a pequena-burguesia e (precipuamente) o proletariado. Adquirindo celeremente um carter massivo em funo da emergncia de um sujeito social antagonista, a sociedade francesa, a partir de 1848, deparou-se com a questo da hegemonia. A dramtica histria da repblica burguesa de 1848-1851 foi, groso modo, a histria das vs tentativas da burguesia de, pelos seus prprios meios (pelos seus partidos tradicionais e pela sua poltica parlamentar) resolver essa questo. Portanto, como na Frana (a nao Ocidental por excelncia) a efetivao de uma dominao propriamente hegemnica, por intermdio de um regime democrtico-burgus, s se daria aps a queda de
92 MARX. K. As lutas de classes na Frana. Op. cit., p. 111-112. 52
um longo regime bonapartista surgido justamente da crise de hegemonia de 1848-1851 (e seguido da ecloso da Comuna de Paris), podemos dizer que, historicamente, a crise de hegemonia antecedeu a existncia de uma hegemonia propriamente dita Antecipamos aqui ao leitor que essa constatao nos permitir, em nossas consideraes finais, estabelecer um paralelo histrico com a emergncia do bonapartismo brasileiro em 1930, nascido da crise de hegemonia verificada na ltima dcada da dominao exclusivista (pr-hegemnica) da frao cafeeira (oligrquica) da classe dominante brasileira.
Uma repblica para a burguesia e a luta contra o proletariado Retomando a sequncia dos acontecimentos franceses, a monarquia burguesa de Lus Felipe foi, portanto, sucedida por uma repblica burguesa, ou seja, enquanto um setor limitado da burguesia [aristocracia financeira] havia governado em nome do rei, toda a burguesia passava a governar agora em nome do povo. 93 Para Marx, a Repblica de Fevereiro teria, assim, completado a dominao da burguesia, incorporando esfera do poder poltico, junto aristocracia financeira, todas as classes possuidoras. Ao derrubar a coroa, atrs da qual se escondia o capital, a repblica fazia com que se manifestasse nitidamente a dominao burguesa. 94
Proclamada pelo Governo Provisrio graas presso dos trabalhadores, a Repblica de Fevereiro assumiu em seus momentos iniciais um carter mais social do que o pretendido pelas foras burguesas:
Do mesmo modo que, nas jornadas de julho [1830], haviam conquistado a monarquia burguesa, por meio da luta, nas jornadas de fevereiro, os operrios, lutando, conquistaram a Repblica burguesa. E do mesmo modo que a Monarquia de Julho vira-se obrigada a apresentar-se como monarquia rodeada de instituies republicanas, a Repblica de Fevereiro viu-se obrigada a declarar-se uma repblica rodeada de instituies sociais. O proletariado de Paris obrigou tambm a que se fizesse esta concesso. 95
Representada no governo provisrio por nomes como Lus Blanc e Albert, a classe operria, aos gritos de organizao do trabalho!, exigia daquele a criao de um ministrio especial para o Trabalho. 96 Tendo conquistado a repblica de armas na mo, o proletariado imprimiu-lhe sua chancela e proclamou-a uma repblica social. 97 Entretanto, enquanto o proletariado de Paris deleitava-se ainda ante a viso de amplas perspectivas que se abriam diante de si e se entregava a discusses srias sobre os problemas sociais, reorganizavam-se
93 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 25. Grifos do autor. 94 MARX. K. As lutas de classes na Frana. Op. cit., p. 117. Grifos do autor. 95 Idem, p. 117-118. Grifos do autor. 96 Idem, p. 118. 97 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 24. Grifos do autor. 53
politicamente as velhas foras da sociedade que, depois de surpreendidas pelo levante de fevereiro, obtiveram o apoio dos camponeses e da pequena-burguesia urbana. 98
Assim, o proletariado, conquanto tivesse sido a fora motriz da derrubada da Monarquia de Julho, 99 viu-se destitudo de qualquer tipo de poder efetivo pelos resultados das eleies gerais realizadas para a formao da Assemblia Nacional Constituinte. Reunida a 4 de maio de 1848, a Assemblia, eleita majoritariamente pelo voto do enorme campesinato e da pequena-burguesia (que juntos formavam a massa da nao 100 ), assumia um feio estritamente burguesa e, por conseguinte, anti-operria.
A Repblica isto , a Repblica reconhecida pelo povo francs data de 4 de maio e no de 25 de fevereiro. No a Repblica que o proletariado de Paris imps ao Governo Provisrio; no a Repblica com instituies sociais; no o sonho dos que lutaram nas barricadas. A Repblica proclamada pela Assemblia Nacional, a nica repblica legtima, a Repblica que no representa nenhuma arma revolucionria contra a ordem burguesa. Pelo contrrio, a reconstituio poltica dessa ordem, a reconstituio poltica da sociedade burguesa, numa palavra, a Repblica burguesa [...] Na Assemblia Nacional, toda a Frana se constituiu em juiz do proletariado de Paris. A Assemblia rompeu imediatamente com as iluses sociais da revoluo de Fevereiro e proclamou de modo terminante a Repblica burguesa, e apenas a Repblica burguesa. Eliminou imediatamente da Comisso Executiva por ela nomeada os representantes do proletariado, Lus Blanc e Albert, rejeitou a proposta de um ministrio especial para do Trabalho e aclamou com gritos ensurdecedores a declarao do ministro Trelat: trata-se apenas de reduzir o trabalho s suas antigas condies 101
Somando-se a tais medidas, essa Comisso Executiva, formada pela Assemblia Nacional quando de sua instalao, promulgou uma srie de decretos que desafiavam o proletariado, como o que proibia aglomeraes populares. Do alto da tribuna da Assemblia Nacional Constituinte, relatou Marx, os operrios eram descaradamente provocados, insultados, escarnecidos. 102 Mas o verdadeiro ponto de ataque, ainda segundo Marx, foram as ordens governamentais que levaram supresso das chamadas Oficinas Nacionais. Criadas pelo prprio Governo Provisrio para abrigar trabalhadores desempregados pela crise e pela revoluo, e com um rtulo semelhante s oficinas do povo (propostas pelo socialista Blanc), as Oficinas Nacionais, no pelo seu contedo, mas pelo seu ttulo, encarnavam o protesto do proletariado contra a indstria burguesa, contra o crdito burgus e contra a Repblica burguesa. Contra elas, destacou Marx, se voltou todo o dio da burguesia. Naquelas havia o capital encontrado o ponto contra o qual podia dirigir o ataque, logo que se sentiu bastante forte para romper abertamente com as iluses de fevereiro. 103
98 Idem. 99 A Repblica de Fevereiro fora conquistada pelos operrios com a ajuda passiva da burguesia (MARX. K. As lutas de classes na Frana. Op. cit., p. 128.). 100 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 24. 101 MARX. K. As lutas de classes na Frana. Op. cit., p. 128. Grifos do autor. 102 Idem, p. 129. 103 Idem, p. 126. 54
A todos esses ataques, o proletariado parisiense respondeu violentamente com a Insurreio de Junho de 1848, at aquela poca o acontecimento de maior envergadura na histria das guerras civis da Europa, 104 uma formidvel insurreio em que se travou a primeira grande batalha entre as duas classes em que se divide a sociedade moderna [burguesia e proletariado]. Tratou-se, para Marx, de uma luta pela conservao ou o aniquilamento da ordem burguesa. Descerrou-se o vu que envolvia a Repblica. 105
Derrotados pela fora das armas do Exrcito e da Guarda Nacional, que promoveram um verdadeiro banho de sangue em Paris, os operrios seriam conduzidos para o fundo da cena revolucionria, 106 e teriam que ver o processo histrico passar por cima de suas cabeas. 107 Mesmo fora de combate, 108 entretanto, o proletariado, doravante, passaria a representar uma permanente ameaa potencial ordem social constituda, e continuaria, ao longo do perodo que se seguiria at o golpe bonapartista em dezembro de 1851, a determinar as aes dos sujeitos sociais localizados no proscnio da luta de classes. Momentaneamente, porm, no tinha mais condies de atuar como uma fora prpria e independente na conflituosa arena poltica nacional. Com a classe trabalhadora nos bastidores, puderam se desenvolver mais livremente as disputas entre as alas polticas da burguesia, e entre estas e a pequena burguesia urbana que, por sua vez, havia se agrupado quelas no combate aos operrios insurretos de junho.
O domnio dos republicanos burgueses e as contradies constitucionais Quase que como uma consequncia eleitoral natural da derrocada da monarquia e a subsequente proclamao da repblica, a maioria das cadeiras da Assemblia Nacional Constituinte (quando da sua formao) coubera ala republicana da burguesia, agrupada em torno do jornal National. Essa frao burguesa de orientao republicana, segundo a anlise nada economicista de Marx,
no era uma frao da burguesia unida por grandes interesses comuns e destacadas das outras por condies especficas da produo. Era um grupo de burgueses de idias republicanas escritores, advogados, oficiais e funcionrios de categoria que deviam sua influncia s antipatias pessoais do pas contra Lus Felipe, memria da velha repblica, f republicana de um grupo de entusiastas, e, sobretudo, ao nacionalismo francs, cujo dio aos acordos de Viena e aliana com a Inglaterra eles atiavam constantemente. 109
104 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 25. 105 MARX. K. As lutas de classes na Frana. Op. cit., p. 129. Grifo do autor. 106 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 25. 107 Idem, p. 67. Grifos do autor. 108 Idem. 109 Idem, p. 28. Grifos do autor. 55
Aps a derrota da revoluo operria em junho, os republicanos burgueses impuseram seu domnio exclusivo 110 sobre a Assemblia Nacional Constituinte, o qual duraria somente at 10 de dezembro do mesmo ano (1848), data das eleies gerais que levariam Lus Bonaparte Presidncia da Repblica, conforme veremos logo frente. Marrast, ex-redator chefe do National, foi transformado em presidente perptuo da Assemblia Nacional Constituinte e o general republicano Cavaignac, que havia reprimido cruentamente a insurreio do proletariado e colocado Paris sob estado de stio, assumiu o lugar da Comisso Executiva com poderes quase ditatoriais. 111 Os ministrios e demais postos importantes do Estado tambm ficaram sob controle dos republicanos. Sua grande tarefa enquanto fora poltica dominante foi a elaborao da nova Constituio francesa, considerada por Marx como apenas a reedio, em forma republicana, da Carta constitucional de 1830. 112
Quanto ao processo de elaborao e natureza dessa nova Constituio, pelo menos trs aspectos valem aqui serem destacados, pois expressam precisamente a dinmica de gestao dos futuros golpe e regime bonapartistas. Mais particularmente, so aspectos nos quais possvel notarmos o j mencionado processo de enfraquecimento do regime parlamentar burgus pela prpria burguesia, operado a partir de posturas e atitudes de seus representantes que desmoralizaram e debilitaram seu instrumento de exerccio direto de poder poltico, o Parlamento, e, por conseguinte, ajudaram a autonomizar e fortalecer o ncleo duro da mquina estatal, o Poder Executivo e as estruturas (burocrticas e militares) a ele ligadas. O primeiro deles se refere ao carter extremamente limitado da prpria Constituio francesa de 1848, j que todas as liberdades democrticas nela consagradas receberam a ardilosa companhia de complementos legais que buscavam restringi-las aos marcos da ordem social burguesa, a qual deveria ser legalmente protegida diante do exerccio perigoso de qualquer direito democrtico. A circunscrio dessas liberdades rbita estritamente burguesa foi exposta por Marx no elucidativo pargrafo transcrito abaixo:
O inevitvel estado-maior das liberdades de 1848, a liberdade pessoal, as liberdades de imprensa, de palavra, de associao, de reunio, de educao, de religio etc., receberam um uniforme constitucional que as fez invulnerveis. Com efeito, cada uma dessas liberdades proclamada como direito absoluto do cidado francs, mas sempre acompanhada da restrio margem, no sentido de que ilimitada desde que no esteja limitada pelos direitos iguais dos outros e pela segurana pblica ou por leis destinadas a restabelecer precisamente essa harmonia das liberdades individuais entre si e com a segurana pblica. Por exemplo: Os cidados gozam do direito de associao, de reunir-se pacificamente e desarmados, de formular peties e de expressar suas opinies, quer pela imprensa ou por qualquer outro modo. O gozo desses direitos no sofre qualquer restrio, salvo as impostas pelos direitos iguais dos outros e pela segurana pblica (Captulo II, 8, da Constituio Francesa). O ensino livre. A liberdade de ensino ser exercida dentro das condies estabelecias pela lei e sob supremo controle do Estado (Ibidem, 9). O domiclio de todos os cidados inviolvel, exceto nas condies prescritas em lei (Captulo II, 3) etc., etc. A Constituio, por conseguinte, refere-se
110 Idem, p. 30. Grifo do autor. 111 Idem, p. 29. 112 Idem, p. 30. 56
constantemente a futuras leis orgnicas que devero pr em prtica aquelas restries e regular o gozo dessas liberdades irrestritas de maneira que no colidam nem entre si, nem com a segurana pblica. E mais tarde essas leis orgnicas foram promulgadas pelos amigos da ordem e todas aquelas liberdades foram regulamentadas de tal maneira que a burguesia, no gozo delas, se encontra livre de interferncia por parte dos direitos iguais das outras classes. Onde so vedadas inteiramente essas liberdades aos outros ou permitindo o seu gozo sob condies que no passam de armadilhas policiais, isto feito apenas no interesse da segurana pblica, isto , da segurana da burguesia, como prescreve a Constituio. Como resultado, ambos os lados invocam devidamente, e com pleno direito, a Constituio: os amigos da ordem, que ab-rogam todas essas liberdades, e os democratas, que as reivindicam. Pois cada pargrafo da Constituio encerra sua prpria anttese, sua prpria Cmara Alta e Cmara Baixa, isto , liberdade na frase geral, ab-rogao da liberdade na nota margem. Assim, desde que o nome da liberdade seja respeitado e impedida apenas a sua realizao efetiva de acordo com a lei, naturalmente a existncia constitucional da liberdade permanece intacta, inviolada, por mais mortais que sejam os golpes assestados contra sua existncia na vida real. 113
O segundo aspecto para o qual gostaramos de chamar ateno a contradio manifesta na Constituio republicana entre os poderes Legislativo e Executivo. De um lado, ocupando o primeiro plano poltico, uma Assemblia Nacional incontrolvel, indissolvel e indivisvel que desfrutava de uma onipotncia legislativa, decidindo soberanamente sobre as questes que envolvem tratados comerciais, guerra e paz, anistia etc. 114 Do outro lado, um presidente com todos os atributos do poder real, com autoridade para nomear e exonerar seus ministros independentemente da Assemblia Nacional, com todos os recursos do poder executivo em suas mos, distribuindo todos os postos e tendo atrs de si todo poder das foras armadas. 115 Assim, para Marx, enquanto outorgava poderes efetivos ao Presidente da Repblica, a Constituio tratava de garantir Assemblia Nacional o poder moral. 116
Em um pargrafo com um incrvel ar de atualidade, Marx aponta como a prpria natureza do sistema eleitoral-representativo francs teria contribudo para estabelecer uma desigualdade de foras entre o Parlamento e o Executivo:
parte o fato de que impossvel criar um poder moral mediante os pargrafos de uma lei, a Constituio mais uma vez se anula ao dispor que o Presidente seja eleito por todos os franceses, atravs do sufrgio universal. Enquanto os votos da Frana so divididos entre os setecentos e cinquenta membros da Assemblia Nacional, so aqui, pelo contrrio, concentrados em nico indivduo. Enquanto cada representante do povo representa apenas este ou aquele partido, esta ou aquela cidade, esta ou aquela cabea de ponte, ou at mesma a mera necessidade de eleger algum dos setecentos e cinquenta candidatos, sem levar na devida considerao nem a causa nem o homem, ele o eleito da nao e o ato de sua eleio o triunfo que o povo soberano lana uma vez em cada quatro anos. A Assemblia Nacional eleita est em relao metafsica com a Nao ao passo que o Presidente eleito est em relao pessoal com ela. A Assemblia Nacional eleita exibe realmente, em seus representantes individuais, os mltiplos aspectos do esprito nacional, enquanto que no Presidente esse esprito nacional encontra a sua encarnao. Em comparao com a Assemblia ele possui uma espcie de direito divino; Presidente pela graa do povo. 117
113 Idem, p. 30-31. Grifos do autor. 114 Idem, p. 32. 115 Idem. 116 Idem, p. 33. 117 Idem. 57
Alm das inmeras restries, impostas pela prpria Constituio, aos direitos constitucionais (o que deixara a nu o contedo exclusivamente burgus da Repblica), e da desproporo de foras entre o Executivo e o Legislativo por aquela instituda (o que permitiria, em breve, a ofensiva do primeiro sobre o segundo), Marx tambm arrolou como um elemento importante para a futura runa da repblica parlamentar francesa o fato de que a sua fina flor, a prpria Constituio republicana, fora criada em meio a uma situao jurdica que ela mesma definia como excepcional: o estado de stio. Um tanto quanto ironicamente, portanto, a to alardeada consagrao das liberdades democrticas na Constituio republicana foi efetuada em um momento no qual o exerccio dessas mesmas liberdades encontrava-se excepcionalmente cerceado pelas baionetas que sitiavam Paris. Tratava-se, quela altura, segundo Marx, no ainda de uma ditadura do sabre sobre a sociedade burguesa, como depois se verificaria, mas simplesmente de uma ditadura da burguesia por meio do sabre. 118 O prprio Marx lembrava, entretanto, que essa ditadura burguesa temporria, essa excepcionalidade jurdico-poltica que colocava a fora das casernas acima dos sagrados direitos constitucionais, trazia sempre em si, potencialmente, a possibilidade de que a exceo viesse a se transformar em regra. Ao colocar, por meio do estado de stio, o aparelho coercitivo estatal, excepcionalmente, acima da prpria Constituio burguesa, a burguesia abria, inevitavelmente, a possibilidade que aquele deixasse de se portar como um mero instrumento seu, eventualmente utilizado em momentos de crise, e se convertesse, ele mesmo, na fora poltica dirigente da sociedade (submetendo, inclusive, a prpria burguesia). Dialeticamente, Marx sugeria que a ditadura bonapartista encontrava-se ainda que como um elemento latente que poderia ou no se manifestar inscrita na prpria dinmica poltica (sobretudo nas crises) da democracia burguesa:
Enquanto os republicanos burgueses se entretinham, na Assemblia, em criar, discutir e votar essa Constituio, fora da Assemblia Cavaignac mantinha o estado de stio em Paris. O estado de stio foi a parteira da Assemblia Constituinte em seus trabalhos de criao republicana. Se a Constituio foi subseqentemente liquidada por meio das baionetas [golpe de 2 de dezembro de 1851], preciso no esquecer que foi tambm por baionetas, e estas voltadas contra o povo, que teve que ser protegida no ventre materno e trazida ao mundo. Os precursores dos respeitveis republicanos haviam mandado seu smbolo, a bandeira tricolor, em uma excurso pela Europa. Eles prprios, por sua vez, produziam um invento que percorreu todo o Continente, mas que retornava Frana com amor sempre renovado, at que agora adquirira carta de cidadania na metade de seus departamentos o estado de stio. Um invento esplndido, empregado periodicamente em todas as crises ocorridas durante a Revoluo Francesa. O quartel e o bivaque, porm, que eram assim postos periodicamente sobre a cabea da sociedade francesa a fim de comprimir-lhe o crebro e reduzi-la passividade; o sabre e o mosqueto, aos quais era periodicamente permitido desempenhar o papel de juzes e administradores, de tutores e censores, brincar de polcia e servir de guarda-noturno; o bigode e o uniforme, periodicamente proclamados como sendo a mais alta expresso da sabedoria da sociedade e como seus guardies no deviam acabar forosamente o quartel e o bivaque, o sabre e o mosqueto, o bigode e o uniforme, tendo a idia de salvar a sociedade de uma vez para sempre, proclamando seu prprio regime como a mais alta forma de governo e libertando completamente a sociedade civil do trabalho de governar a si mesma? O
118 MARX. K. As lutas de classes na Frana. Op. cit., p. 137. 58
quartel e o bivaque, o sabre e o mosqueto, o bigode e o uniforme tinham forosamente que acabar tendo essa idia, com tanto mais razo quanto poderiam ento esperar tambm melhor recompensa por esses servios mais importantes, ao passo que atravs de um mero estado de stio peridico e de passageiros salvamentos da sociedade a pedido desta ou daquela frao burguesa, conseguiam pouca coisa de slido, exceto alguns mortos e feridos e algumas caretas amigveis por parte dos burgueses. No deveriam finalmente os militares jogar um dia o estado de stio em seu prprio interesse e em seu prprio benefcio, sitiando ao mesmo tempo as bolsas burguesas? 119
Bonaparte e o partido da ordem contra os republicanos burgueses Voltemos ao desenrolar da trama poltica. Aps ter fundado um repblica para a burguesia, expulsado do campo de luta o proletariado revolucionrio e reduzido momentaneamente ao silncio a pequena-burguesia democrtica, a ala republicana da burguesia seria rapidamente retirada do primeiro plano da cena poltica. 120 Segundo a periodizao proposta por Marx, a vitria de Lus Bonaparte nas eleies presidenciais de dezembro de 1848 marcaria o fim da dominao poltica exclusiva dos republicanos. Para derrotar o general Cavaignac no pleito eleitoral, Bonaparte teria contado, segundo Marx, com o apoio do volumoso campesinato nacional, que associava sua imagem do tio Imperador, de uma parcela significativa do proletariado e da pequena-burguesia urbana, que repudiava Cavaignac (seu algoz de junho), e mesmo da alta burguesia francesa, que saudou o sobrinho como uma ponte para a monarquia. Essa aspirao burguesa de retorno ao regime monrquico devia-se ao simples fato de que, mesmo agraciada por uma repblica que assumira, sobretudo aps a supresso da revoluo proletria de junho, um carter exclusivamente burgus, a massa da burguesia continuava a ser monrquica. 121 Tomada por um sentimento de fraqueza que a fazia recuar das condies puras do domnio de sua prpria classe e ansiar pelas antigas formas, mais incompletas, menos desenvolvidas e, portanto, menos perigosas desse domnio, 122 a burguesia, no seu grosso, posicionava-se favoravelmente restaurao da monarquia. Parte dessa massa burguesa,
os grandes latifundirios, dominara durante a Restaurao e era, portanto, legitimista. A outra parte, os aristocratas da finana e os grandes industriais, haviam dominado durante a Monarquia de Julho e era, consequentemente, orleanista. Os altos dignatrios do exrcito, da universidade, da igreja, da justia, da academia e da imprensa podiam ser encontrados dos dois lados, embora em propores vrias. Aqui, na repblica burguesa, que no ostentava nem o nome de Bourbon, nem o nome de Orlans, e sim o nome de Capital, haviam encontrado a forma de governo na qual podiam governar conjuntamente. A insurreio de junho j os unira no partido da ordem. 123
119 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 34-35. Grifos do autor. 120 Idem, p. 36. 121 Idem. 122 Idem, p. 47. 123 Idem, p. 36. 59
Marx fornece aqui a explicao-chave para a situao, aparentemente paradoxal e que perduraria at o golpe de dezembro 1851 , de uma classe social que, conquanto ideologicamente monrquica, governava por meio do regime republicano-parlamentar. Observando dialeticamente o partido da ordem (formado, conforme visto no trecho acima, em junho de 1848, e composto por legitimistas e orleanistas), 124 Marx apontava que, se cada uma de suas fraes, tomadas isoladamente, era monrquica, o produto de sua combinao qumica tinha que ser republicano; que a monarquia branca e azul tinham necessariamente que neutralizar-se na Repblica tricolor: Obrigadas pela sua oposio ao proletariado revolucionrio e s classes de transio que se iam agrupando cada vez mais em torno deste , a apelar para sua fora unificada e a conservar a organizao desta fora unificada, cada uma das duas fraes do partido da ordem tinha que exaltar diante dos apetites de restaurao e de supremacia da outra a dominao comum, isto , a forma republicana de dominao burguesa. 125
A partir do fausto eleitoral de Bonaparte, o partido da ordem, a ele aliado, passou a uma luta aberta contra os republicanos do National, ento majoritrios na Assemblia Constituinte. Liderado por Odilon Barrot, antigo lder da frao mais liberal da burguesia parlamentar durante a Monarquia de Julho, 126 o partido da ordem formou a base do ministrio nomeado por Bonaparte; tanto por meio de suas pastas ministeriais, quanto de seus deputados monarquistas, se ps a reivindicar ostensivamente a dissoluo da prpria Assemblia Constituinte, quando esta se encontrava em meio s discusses para a elaborao das leis orgnicas complementares j pronta Constituio republicana. Impacientes e desejosos de que no fossem os republicanos que elaborassem tais leis, o ministrio Barrot e o partido da ordem fizeram com que peties fossem enviadas de todos os cantos do pas Assemblia exigindo sua extino imediata o que implicaria, por conseguinte, na acelerao da posse da nova Assemblia Nacional, na qual seria majoritrio, em funo das eleies de dezembro, o mesmo partido da ordem levando, assim, as massas desorganizadas do povo luta contra a Assemblia Nacional, expresso constitucionalmente organizada do povo. Segundo Marx, a burguesia, por intermdio de seu ministrio e de seu partido, teria ensinado Bonaparte a apelar para o povo contra as
124 Talvez no seja escusado lembrarmos aqui que o partido da ordem assim como todos os demais partidos do perodo no se constitua em um partido na acepo moderna do conceito, isto , em uma entidade dotada de uma estrutura burocrtica, financeira e programtica que possibilite sua atuao organizada no cenrio poltico nacional. O partido poltico, no caso francs em tela, expressava, por assim dizer, a atitude de certos indivduos e grupos sociais diante das questes e temas colocados pela luta poltica do perodo. O partido da ordem agrupava, portanto, aqueles segmentos sociais que eram defensores da ordem estabelecida, isto , aqueles que tomavam partido que eram, portanto, partidrios da ordem burguesa. Para uma discusso sobre a historicidade dos partidos polticos, ver CERRONI, Umberto. Teoria do partido poltico. So Paulo: Livraria Editora Cincias Sociais, 1982. 125 MARX. K. As lutas de classes na Frana. Op. cit., p. 154. Grifos do autor. 126 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 37. 60
assemblias parlamentares, isto , teria mostrado ao Executivo um dos importantes ingredientes para a receita do futuro golpe de Estado, que seria assestado justamente por aquele contra o partido da ordem e seu Parlamento em dezembro de 1851. 127 A 29 de janeiro de 1849, quando finalmente a Assemblia decidiria sobre sua auto-dissoluo, o general do partido da ordem Changarnier, comandante supremo da Guarda Nacional e das tropas de linha, promoveu em Paris uma vultosa revista de tropas, enquanto os deputados monarquistas discursavam ameaando fazer uso da fora caso a Assemblia Constituinte no se decidisse logo por sua extino. 128 Despudoradamente, a burguesia e seus representantes polticos recorreram ameaa de coero fsica contra o seu prprio Parlamento, agindo a favor da desmoralizao daquela que era a principal instituio do regime democrtico-burgus. Em funo do modo como se processou, sobretudo no concernente ao papel da burguesia (partido da ordem e ministrio Barrot) face ao seu prprio Poder Legislativo, a auto-dissoluo compulsria da Assemblia Constituinte foi vista por Marx como uma espcie de verso anterior do golpe de Estado de 1851 que seria aplicado por Bonaparte contra a mesma Assemblia Nacional (daquela vez j sob domnio do partido da ordem):
Que foi o 29 de janeiro seno o golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851, realizado desta vez pelos monarquistas coligados com Bonaparte contra a Assemblia Nacional republicanas? [...] Foi assim que o prprio partido da ordem, quando no constitua ainda a Assemblia Nacional, quando era ainda apenas o ministrio, estigmatizou o regime parlamentar. E brada aos cus quando o 2 de dezembro de 1851 baniu esse regime da Frana! 129
A repblica burguesa contra a pequena-burguesia republicana Desalojados os republicanos da direo do Parlamento, a polarizao poltica principal passou a se dar entre, de um lado, a aliana Bonaparte-partido da ordem, representando a burguesia com suas aspiraes monarquistas, e, de outro, a chamada nova Montanha, expresso poltico-parlamentar da pequena-burguesia democrtica coligada com alguns lderes socialistas do retrado movimento operrio. Tambm denominada por Marx de social- democracia, essa representao poltica pequeno-burguesa com pitadas socialistas, diferentemente do socialismo revolucionrio, exigia instituies democrtico-republicanas como meio no de acabar com dois extremos, capital e trabalho assalariado, mas de enfraquecer seu antagonismo e transform-lo em harmonia. 130 Percebendo que tinha sido mal recompensada depois das jornadas de 1848 [quando apoiara a represso ao proletariado], que seus interesses materiais corriam perigo e que as garantias democrticas que deviam
127 Idem, p. 38 128 Idem, p. 38-39. 129 Idem. Grifos do autor. 130 Idem, p. 48. 61
assegurar a efetivao desses interesses estavam sendo questionadas pela contra-revoluo, a pequena-burguesia passou a uma oposio frontal ao governo Bonaparte e seus ministros monarquistas do partido da ordem. 131
Uma vez dissolvida a antiga Assemblia Constituinte e reunida a nova Assemblia Nacional, o partido da ordem, agora majoritrio, entrou em confronto com a nova Montanha, pois a burguesia sentia agora a necessidade de acabar com a pequena-burguesia democrtica, assim como h um ano atrs compreendera a necessidade de ajustar contas com o proletariado revolucionrio. 132 A isca jogada pelo partido da ordem para os montanheses foi o bombardeio de Roma pelas tropas francesas, que violava tanto o artigo 5 da Constituio, que proibia a Repblica de empregar suas foras militares contra a liberdade de outro povo, quanto o artigo 54 da mesma Carta, que negava ao Executivo qualquer declarao de guerra sem a anuncia do Legislativo. Evocando o desrespeito do presidente Constituio, Ledru- Rollin, lder da Montanha, apresentou no dia 13 de junho de 1849 ao Parlamento um pedido de impeachment contra Bonaparte e seus ministros. 133
Rejeitado tal pedido pelo Parlamento no dia seguinte, a Montanha, que pouco antes j avisara que defenderia a Constituio por todos os meios (apelando s armas, se necessrio fosse), promoveu no dia 13 de junho uma passeata da Guarda Nacional democrtica (comandada pela pequena-burguesia montanhesa) que, desarmada, dispersou-se quando se deparou com as tropas do general da ordem Changarnier. 134 Como conseqncia deste ato pblico, uma parte dos montanheses fugiu para o estrangeiro, enquanto outra foi citada pelo Supremo Tribunal de Bourges; os restantes foram submetidos por uma resoluo parlamentar vigilncia de bedel do presidente da Assemblia Nacional. Novamente, o estado de stio foi decretado em Paris, e a ala democrtica da Guarda Nacional acabou dissolvida. Eliminou-se, desse modo, a influncia da Montanha no Parlamento e a fora da pequena- burguesia parisiense. Ao extirpar mais um segmento poltico de seu interior em junho de 1849, a Assemblia Nacional perdia, consequentemente, mais uma das bases sociais que lhe forneciam legitimidade, o setor pequeno-burgus urbanizado. Alm disso, os prprios mtodos aos quais a burguesia recorreu nessa sua luta contra a pequena-burguesia parlamentar contribuam, na prtica, para o enfraquecimento de seu prprio poder poltico direto, isto , para a debilitao do seu Poder Legislativo e de sua Carta Constitucional:
131 Idem, p. 47. 132 Idem, p. 49. 133 Idem. 134 Idem. 62
A 13 de junho o partido da ordem no tinha apenas destroado a Montanha: tinha efetuado a subordinao da Constituio s decises majoritrias da Assemblia Nacional. E compreendia a repblica da seguinte maneira: que a burguesia governa aqui sob formas parlamentares, sem encontrar, como na monarquia, quaisquer barreiras tais como o veto do poder executivo ou o direito de dissolver o parlamento. Esta era uma repblica parlamentar, como a cognominou Thiers. Mas se a burguesia assegurou a 13 de junho sua onipotncia dentro do parlamento, no tornara ao mesmo tempo o prprio parlamento irremediavelmente fraco diante do poder executivo e do povo, expulsando a bancada mais popular? Entregando numerosos deputados, sem maiores formalidades, por intimao dos tribunais, ela aboliu suas prprias imunidades parlamentares. O regulamento humilhante a que submeteu a Montanha exaltava o presidente da Repblica na mesma medida em que degradava os representantes do povo. Denunciando uma insurreio em defesa da carta constitucional como um ato de anarquia visando subverso do regime, vedou a si prpria a possibilidade de recorrer insurreio no caso de o poder executivo violar contra ela a Constituio. 135
A repblica sob domnio da burguesia monrquica Eliminada a pequena-burguesia da cena poltica, e com o proletariado ainda aplastado, iniciava-se um perodo em que nunca a burguesia governou de maneira mais absoluta, nunca exibiu com maior ostentao as insgnias de seu poder. 136 Como parte de uma ofensiva contra-revolucionria, foram aprovadas uma nova lei de imprensa, que apertava ainda mais a mordaa sobre os jornais e peridicos, uma nova lei sobre o direito de associao, que, na prtica, aniquilava esse direito, e uma nova lei sobre o estado de stio, que deixava a proclamao deste a critrio do Executivo. Marx apontou, todavia, que esse perodo no se caracterizara pela explorao burguesa da vitria no terreno dos fatos, mas no terreno dos princpios; no pelas resolues da Assemblia Nacional, mas pela fundamentao dessas resolues; no pela coisa, mas pela frase; nem sequer pela frase, mas pelo acento e o gesto que a animavam: 137
A exteriorizao despudorada e sem peias das idias monrquicas, o insulto Repblica com aristocrtico desprezo, a divulgao dos desgnios de restaurao com frvola coqueteria, em uma palavra, a violao jactanciosa do decoro republicano do a este perodo o seu tom e o seu matiz peculiares [...] No se passava um dia sem que na tribuna da Assemblia Nacional se considerasse a Revoluo de Fevereiro como uma calamidade pblica, sem que qualquer fidalgote legitimista provinciano fizesse constar solenemente que jamais havia reconhecido a Repblica, sem que algum dos covardes desertores e traidores da Monarquia de Julho contasse as faanhas hericas que teria realizado oportunamente, se a filantropia de Lus Felipe ou outras incompreenses no o tivessem impedido. O que havia de admirar nas jornadas de fevereiro no era a magnanimidade do povo vitorioso, mas a abnegao e a moderao dos monrquicos, que lhe haviam consentido a vitria. 138
O partido da ordem celebrava a reconquista do poder que parecia ter-lhe escapado em 1848, apenas para voltar em 1849 sem limite algum, e celebrava-a por meio de invectivas contra a repblica e a Constituio, com maldies contra todas as revolues presentes, passadas e futuras, inclusive as organizadas por seu prprio dirigente, e por meio de leis que amordaavam a imprensa e faziam do estado de stio uma instituio regular, orgnica. 139
135 Idem, p. 53. Grifos do autor. 136 Idem, p. 60. 137 MARX. K. As lutas de classes na Frana. Op. cit., p. 164-165. Grifos do autor. 138 Idem, p. 165. Grifos do autor. 139 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 56. 63
Mostrando sua verdadeira face monrquica, a burguesia vituperava a repblica parlamentar fundada no ano anterior, atacando desairosamente o seu prprio regime poltico. Tomada pela histeria da contra-revoluo, seus representantes parlamentares passaram a considerar uma ameaa ordem social muitas das bandeiras e institutos jurdicos que pertenciam ao seu prprio arsenal ideolgico:
Quer se tratasse do direito de petio ou do imposto sobre o vinho, da liberdade de imprensa ou da liberdade de comrcio, de clubes ou da carta municipal, da liberdade individual ou da regulamentao do oramento do Estado, a senha se repete constantemente, o tema permanece sempre o mesmo, o veredito est sempre pronto e reza invariavelmente: socialismo! At o liberalismo burgus declarado socialista, o desenvolvimento cultural da burguesia socialista, a reforma financeira burguesa socialista. Era socialismo construir uma ferrovia onde j existisse um canal, e era socialismo defender- se com um porrete quando se era atacado com um florete [...] A burguesia tinha uma noo exata do fato de que todas as armas que forjara contra o feudalismo voltavam seu gume contra ela, que todos os meios de cultura que criara rebelavam-se contra sua prpria civilizao, que todos os deuses que inventara a tinham abandonado. Compreendia que todas as chamadas liberdades burguesas e rgos de progresso atacavam seu domnio de classe, e tinham, portanto, se convertido em socialistas. 140
A complexa e contraditria dinmica da luta de classes instilava na burguesia, assim, a idia de que o seu prprio regime poltico, o regime no qual ela pode exercer diretamente seu domnio poltico, em uma palavra, a repblica parlamentar democrtico-burguesa, mostrava- se, na prtica, como uma formatao poltica perigosa para a sua prpria dominao social de classe. Se em cada momento de vibrao de vida na sociedade, apontou Marx, a burguesia via a tranquilidade ameaada, como poderia ela manter frente da sociedade um regime de desassossego, seu prprio regime, o regime parlamentar, esse regime que, segundo a expresso de um dos seus porta-vozes, vive em luta e pela luta? 141 Desapegando-se, sem muitas dificuldades, de sua indumentria filosfico-poltica de outrora, a burguesia francesa substitua seu clebre lema revolucionrio Libert, galit e Fraternit pelo contra- revolucionrio adgio Infantaria, Cavalaria [e] Artilharia!. 142
Como possvel notarmos, Marx, perscrutando uma conjuntura poltica especificamente concreta, acabou tocando em um ponto crucial referente natureza histrica do fenmeno bonapartista em geral: como regime poltico, o bonapartismo emerge numa poca em que, por ocasio do surgimento do proletariado como sujeito poltico independente e de uma consequente maior socializao da esfera poltica, a burguesia passou definitivamente condio de classe social contra-revolucionria. Tornando cada vez mais fluidas e ocasionais suas relaes com seus prprios ideais liberal-democrticos e com seu prprio regime democrtico-burgus, a burguesia deixaria ntido, doravante, que no possua
140 Idem, p. 61-62. Grifos do autor. 141 Idem, p. 62. Grifos do autor. 142 Idem, p. 57. 64
nenhum compromisso de princpio, nenhum matrimnio indissolvel com a democracia burguesa. A partir da Comuna de Paris, a confuso feita pela propaganda ideolgica burguesa entre bandeiras democrticas e socialistas passaria a ser um trao sempre presente em momentos politicamente mais agitados, marcados pela ascenso do movimento de massas. Com efeito, desde 1871, as inmeras manifestaes do fenmeno bonapartista teriam quase sempre como um elemento determinante para sua ecloso/consolidao um efusivo ataque anticomunista por parte das classes dominantes a quaisquer reivindicaes populares que buscassem alargar os marcos do regime democrtico. Aps a Revoluo Russa de 1917, evidentemente, tal processo se intensificaria.
A burguesia contra Bonaparte: Executivo x Legislativo Aps o desbaratamento das foras do proletariado em junho de 1848, e da pequena- burguesia em junho de 1849, comearia, a partir de meados de outubro desse ltimo ano, o embate entre Bonaparte e o partido da ordem, entre a Presidncia da Repblica e a Assemblia Nacional. Aproveitando-se de pretextos como indecorosas declaraes de Odilon Barrot sobre supostas intrigas realizadas nos crculos presidenciais, Lus Bonaparte surpreendentemente anunciou a 1. de novembro a destituio de seu ministrio composto pelos monarquistas coligados do partido da ordem (ministrio Barrot-Falloux) e sua substituio por um novo ministrio, chefiado pelo general dHautpoul. Ao observar esse golpe lancinante aplicado por Bonaparte no partido da ordem, que fora privado do significativo controle que possua sobre as aes da mquina pblica estatal, Marx assinalou a vital importncia desta ltima para o funcionamento da dominao social burguesa. Mais uma vez, apontou tambm a real desproporo de foras existente, na arquitetura dessa dominao, entre os poderes Executivo e Legislativo, uma desproporo que se originaria, entre outros fatores, do peso social do qual goza a ingente estrutura burocrtica do Estado burgus moderno:
O ministrio Barrot-Falloux foi o primeiro e ltimo ministrio parlamentar criado por Bonaparte, sua destituio assinala, por conseguinte, uma reviravolta decisiva. O partido da ordem perdeu, assim, para nunca mais reconquistar, uma posio indispensvel para a manuteno do regime parlamentar, a alavanca do poder executivo. Torna-se imediatamente bvio que em um pas como a Frana, onde o poder executivo controla um exrcito de funcionrios que conta mais de meio milho de indivduos e, portanto, mantm uma imensa massa de interesses e de existncias na mais absoluta dependncia; onde o estado enfeixa, controla, regula, superintende e mantm sob sua tutela a sociedade civil, desde suas mais amplas manifestaes de vida at suas vibraes mais insignificantes, desde suas formas mais gerais de comportamento at a vida privada dos indivduos; onde atravs da mais extraordinria centralizao, esse corpo de parasitos adquire uma ubiqidade, uma oniscincia, uma capacidade de acelerada mobilidade e uma elasticidade que s encontra paralelo na dependncia desamparada, no carter caoticamente informe do prprio corpo social compreende-se que em semelhante pas a Assemblia Nacional perde toda a influncia real quando perde o controle das pastas ministeriais, se no simplifica ao mesmo tempo a administrao do Estado, reduz o corpo de oficiais do exrcito ao mnimo possvel e, finalmente, deixa a sociedade civil e a opinio pblica criarem rgos 65
prprios, independentes do poder governamental. Mas precisamente com a manuteno dessa dispendiosa mquina estatal em suas numerosas ramificaes que os interesses materiais da burguesia francesa esto entrelaados da maneira mais ntima. Aqui encontra postos para sua populao excedente e compensa sob a forma de vencimentos o que no pode embolsar sob a forma de lucros, juros, rendas e honorrios. 143
Destarte, fosse por estes interesses materiais (vencimentos do funcionalismo pblico), fosse por seus j mencionados interesses polticos (isto , sua luta contra as demais classes sociais, a qual s fazia reforar o aparelho coercitivo estatal), a burguesia francesa via-se impingida a submeter-se a um Poder Executivo que expunha em face dela uma relativa autonomia cada vez maior a ponto de Marx ter falado at mesmo, conforme citado pginas atrs, em um Poder Executivo hostil burguesia. Seria em meio a esse processo, a essa lgica de submisso burguesa ao ncleo duro do aparelho estatal burgus (burocracia e foras repressivas), que se daria a luta entre Bonaparte e o Parlamento da burguesia; e seria precisamente essa luta que, como j antecipamos, alimentaria ainda mais aquele processo e aquela lgica, at o momento em que, finalmente, o segundo se renderia, no sem uma boa dose de covardia, ao primeiro. Nos momentos iniciais do embate, mais amenos, a Assemblia Nacional mostrou-se totalmente improdutiva no mbito de suas questes ordinrias (Onde no reprimia ou exercia uma atuao reacionria, estava atacada de incurvel esterilidade), 144 enquanto o novo ministrio assumia em parte a iniciativa de formular leis dentro do esprito do partido da ordem, e em parte superava mesmo a violncia daquele partido na execuo e fiscalizao das mesmas. 145 J o presidente Bonaparte, por seu turno, ressaltava sua oposio Assemblia e procurava ganhar popularidade por meio de propostas tolas e infantis, 146 tais como um nfimo aumento no soldo dos suboficiais e a criao de um banco que concedesse crditos de honra aos operrios. Talvez seja possvel entrevermos aqui uma das primeiras aparies, ainda incipiente, de uma prtica e estilo governamentais que, em suas manifestaes posteriores mais desenvolvidas, seriam designados pela sociologia poltica como uma poltica de massas (muitas vezes, de cunho populista):
Dinheiro como ddiva e dinheiro como emprstimo, era com perspectivas como essas que esperava atrair as massas. Donativos e emprstimos resume-se nisso a cincia financeira do lumpem- proletariado, tanto de alto como de baixo nvel. Essas eram as nicas alavancas que Bonaparte sabia movimentar. Nunca um pretendente especulou mais vulgarmente com a vulgaridade das massas. 147
143 Idem, p. 58-59. Grifos do autor. 144 Idem, p. 63. 145 Idem. 146 Idem. 147 Idem, p. 64. Para os entusiastas do programa bolsa-famlia (sejam eles do Banco Mundial ou da esquerda renegada) que nele enxergam uma grande novidade, um grande ineditismo na rea das polticas pblicas, a observao de Marx quanto s investidas beneficentes de Bonaparte dirigidas s parcelas mais miserveis da sociedade francesa talvez apresente uma importncia particular; possivelmente, ela os leve a perceber (mas no a 66
Mal haviam comeado as rusgas entre Bonaparte e o Parlamento, e o combate teve que ser provisoriamente suspenso. Uma nova e efmera aliana entre o aventureiro de perspectivas golpistas e o partido da ordem foi estabelecida em funo do resultado das eleies suplementares de 10 de maro de 1850. Realizada com a finalidade de ocupar as cadeiras ociosas da Assemblia em virtude da priso ou exlio dos deputados montanheses, ela consagrou a vitria da social-democracia pequeno-burguesa.
Paris elegeu apenas candidatos social-democratas. Concentrou mesmo a maioria dos votos em um insurreto de junho de 1848, Deflotte. Assim, a pequena-burguesia de Paris, aliada ao proletariado, vingou-se da derrota sofrida a 13 de junho de 1849. O proletariado parecia ter-se afastado do campo de batalha na hora do perigo s para reaparecer em ocasio mais propcia com maior nmero de combatentes e um grito de guerra mais audaz. Uma circunstncia parecia ressaltar o perigo dessa vitria eleitoral. O exrcito votou em Paris a favor do insurreto de junho e contra La Hitte, ministro de Bonaparte, e nos departamentos principalmente a favor dos montagnards, que tambm aqui, embora de maneira no to decisiva como em Paris, mantinham ascendncia sobre seus adversrios. Bonaparte viu-se de repente confrontado outra vez com a revoluo. Da mesma forma que a 29 de janeiro de 1849 e a 13 de junho de 1849, tambm a 10 de maro de 1850, desapareceu atrs do partido da ordem. 148
Em mais um episdio de conspurcao do regime parlamentar burgus pela prpria burguesia, o partido da ordem, na dianteira do processo contra-revolucionrio, encarregou-se de, a 31 de maio de 1850, conseguir do Parlamento a abolio do sufrgio universal o que foi sumariamente descrito por Marx como um golpe de Estado da burguesia. A vitria eleitoral da pequena-burguesia em aliana com os trabalhadores nas eleies de maro funcionara com mais um sinal da inviabilidade de regime democrtico-burgus em uma
reconhecer, evidentemente) que o assistencialismo governamental como um meio de dispor do apoio poltico dos segmentos sociais mais pauperizados para o governante benfeitor data, justamente, dos primrdios do Estado capitalista moderno (como tambm dos primeiros momentos da democracia burguesa). Desse modo, assim como nunca [antes na Frana] um pretendente havia especulado mais vulgarmente com a vulgaridade das massas, nunca antes nesse pas [Brasil] um presidente da Repblica soube to bem cativar as massas por meio da combinao de um discurso que as infantiliza politicamente com polticas sociais que muito pouco lhes oferecem de concreto. Ainda quanto s comparaes entre as novas e velhas polticas pblicas, cabe ressaltar que tanto o assistencialismo de Bonaparte como o de Lula (que, apesar de um estilo e retrica bonapartistas, no foi, certamente, um presidente bonapartista), no encerraram de modo algum um carter universalizante, dado que no estiveram voltados para o conjunto do tecido social, e no se exprimiram juridicamente na forma de direitos. Neste aspecto, ambos os assistencialismos diferiram tanto (qualitativamente) da poltica social- democrata europia do welfare state, quanto (quantitativamente) da poltica de massas varguista no Brasil que, embora exclusse de sua alada os trabalhadores rurais, materializou-se em direitos sociais vlidos permanentemente para todos os cidados urbanos, alm de uma significativa expanso pblica e universal dos sistemas de sade e de educao. Obviamente, as diferenas substantivas entre as polticas sociais focalizadas, como o bolsa-famlia, e a poltica de massas do reformismo varguista devem-se menos aos distintos perfis polticos de governantes como Lula e Getlio do que aos diferentes momentos histricos em que estes hbeis e loquazes lderes nacionais se situaram. Enquanto o populismo bonapartista de Vargas, brotado numa etapa de significativa margem de manobra da periferia capitalista face ao centro, teve por tarefa conduzir a urbanizao, a industrializao e a modernizao social retardatrias do pas, incorporando as amplas massas populares urbanas esfera estatal (cidadania social e poltica), o lulismo no seno uma variante timorata da social-democracia latino-americana em tempos de hegemonia do capital financeiro internacional, de (contra-) reformas do Estado, de sacralizao da democracia-liberal e de crise estrutural de um capitalismo monopolista que avana celeremente rumo barbrie. 148 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 64-65. 67
conjuntura histrica marcada tanto pela ausncia de uma fora poltica dirigente e estabilizadora da ordem, quanto pela ameaa, sempre potencial, do fantasma do proletariado.
Todas as vitrias at ento conquistadas sobre a revoluo [fevereiro de 1848] tinham tido apenas um carter provisrio. Viam-se ameaadas assim que cada Assemblia Nacional saa de cena. Dependiam dos riscos de uma nova eleio geral, e a histria das eleies a partir de 1848 demonstrava irrefutavelmente que a influncia moral da burguesia sobre as massas populares ia-se perdendo na mesma medida em que se desenvolvia seu poder efetivo. A 10 de maro o sufrgio universal declarou- se diretamente contra a dominao burguesa; a burguesia respondeu pondo fora da lei o sufrgio universal. A lei de 31 de maio era, portanto, uma das necessidades da luta de classes. 149
Tendo a burguesia, a 31 de maio, liquidado temporariamente a luta de classes 150 e superado a crise revolucionria, 151 pde ser ento reiniciada a luta entre os poderes Legislativo e Executivo. Assim, doravante, a cena poltica resumir-se-ia, cada vez mais, ao conflito entre o Parlamento e Bonaparte. Este ltimo, trazendo na bagagem uma longa vida de vagabundagem aventureira, de chantagem e extorso de seus burgueses, provocava abertamente a Assemblia Nacional quela altura j completamente desmoralizada perante as massas em funo da abolio do sufrgio universal , propondo obscenas medidas como o aumento de seu prprio salrio presidencial. Armando-se para seu crescente conflito com o Legislativo, Bonaparte animou a criao da Sociedade de 10 de Dezembro (assim batizada em aluso ao dia de sua eleio presidencial), uma organizao que conglomerava uma mirade de elementos colocados margem da sociedade francesa, e que tinha por objetivo funcionar como uma espcie de tropa de choque a servio de um presidente que j no buscava governar por meio do regime republicano parlamentar. A promscua relao, descrita por Marx, entre um governante com aspiraes ditatoriais e uma organizao de agitao poltica para-estatal formada pelo lumpesinato reapareceria por diversas vezes em meio a regimes democrtico- burgueses em crise no sculo XX (sobretudo quando da emergncia do fascismo nas dcadas de 1920 e 1930), e se constituiria em um elemento caracterizador, para os analistas polticos, da emergncia de fenmenos bonapartistas. As observaes de Marx quanto a tal relao, contidas no trecho que transcrevemos abaixo, se mostrariam ainda como um dos principais aportes para socilogos e cientistas polticos (marxistas e afins) que se dedicaram s conexes entre lideranas polticas e grupos sociais marginalizados:
A pretexto de fundar uma sociedade beneficente o lumpem-proletariado de Paris fora organizado em faces secretas, dirigidas por agentes bonapartistas e sob a chefia de um general bonapartista. Lado a lado com rous decadentes, de fortuna duvidosa e de origem duvidosa, lado a lado com arruinados e aventureiros rebentos da burguesia, havia vagabundos, soldados desligados do
149 Idem, p. 67-68. 150 Idem, p. 77. 151 Idem, p. 68
exrcito, presidirios libertos, forados foragidos das gals, chantagistas, saltimbancos, Lazzaroni, punguistas, trapaceiros, jogadores, maquereaus [alcoviteiros], donos de bordis, carregadores, literati, tocadores de realejo, trapeiros, amoladores de facas, soldadores, mendigos em suma, toda essa massa indefinida e desintegrada, atirada de ceca em meca, que os franceses chamam La bohme; com esses elementos afins Bonaparte formou o ncleo da Sociedade de 10 de Dezembro. Sociedade beneficente no sentido de que todos os seus membros, como Bonaparte, sentiam necessidade de se beneficiar s expensas da nao laboriosa; esse Bonaparte, que se erige em chefe do lumpem-proletariado, que s aqui reencontra, em massa, os interesses que ele pessoalmente persegue, que reconhece nesse escria, nesse refugo, nesse rebotalho de todas as classes a nica classe em que pode apoiar-se incondicionalmente, o verdadeiro Bonaparte, o Bonaparte sans phrase [...] Em suas viagens, os destacamentos dessa sociedade, superlotando as estradas de ferro, tinham que improvisar pblico, encenar entusiasmo popular, urrar vive lEmpereur, insultar e espancar republicanos; tudo, claro, sob a proteo da polcia. Nas viagens de regresso a Paris tinham que formar a guarda avanada, impedir ou dispersar manifestaes contrrias. A Sociedade de 10 de Dezembro pertencia-lhe, era obra sua, idia inteiramente sua. 152
Assim, enquanto o Presidente da Repblica preparava-se para tornar-se Imperador, o poder do Parlamento declinava paulatinamente. O partido da ordem, a fora dominante na Assemblia Nacional, debilitava-se celeremente em funo do acirramento de suas divises e lutas intestinas. A simples e ordinria continuidade do calendrio eleitoral republicano, que previa o fim do mandato presidencial de Bonaparte para o segundo domingo de maio de 1852, fazia com que se exasperasse o enfrentamento entre as fraes orleanista e legitimista, as quais alimentavam distintos e inconciliveis projetos de restaurao monrquica. Embora lideranas conciliadoras de ambas as casas dinsticas conjecturassem uma possvel futura fuso monrquica, a monarquia legitimista jamais poderia converter-se na monarquia da burguesia industrial, do mesmo modo que a monarquia burguesa jamais poderia converter-se na monarquia da tradicional aristocracia da terra; o latifndio e a indstria no poderiam irmanar-se sob uma s coroa, quando a coroa s podia descer sobre uma cabea, a do irmo mais velho ou a do mais jovem, ou seja, a indstria no poderia chegar a algum acordo com o latifndio enquanto este no se decidisse a tornar-se industrial. 153 Conforme mencionado pginas atrs, a repblica se constitua, segundo Marx, na nica forma de regime que permitia a coexistncia de ambas as fraes dinsticas nas instncias de poder; agora, entretanto, a tentativa de realizar uma fuso de orleanistas e legitimistas [...] no s fracassara como destrura sua fuso parlamentar, sua forma comum republicana, e fragmentara o partido da ordem em seus elementos componentes. 154
Desse modo, ao mesmo tempo em que era obrigado a se chocar com os anseios monarquistas de Bonaparte, o partido da ordem era acometido por suas prprias rivalidades internas, decorrentes de seus prprios anseios restauracionistas. Tais rivalidades internas, ao mesmo tempo em que potencializavam a sempre constante ameaa proletria, pois dividiam
152 Idem, p. 71-73. Grifos do autor. 153 Idem, p. 91-92. 154 Idem, p. 93-94. 69
as classes dominantes, fortaleciam ainda mais a opo bonapartista, na medida em que enfraqueciam o prprio partido parlamentar da burguesia, incapacitando-o para garantir por seus prprios meios polticos (condensados no regime democrtico-burgus) a manuteno da ordem social burguesa. Diante de um novo contexto histrico, no qual a incontornvel presena das massas trabalhadoras na arena poltica (mesmo que momentaneamente ao fundo desta) colocava (possivelmente pela primeira vez numa sociedade de massas) a questo da hegemonia como uma forma de dominao social a ser construda pelas classes dominantes, desenhava-se uma situao em que nenhuma de suas fraes sociais e respectivas representaes polticas (republicanos, legitimistas, orleanistas etc.) mostrava-se apta para dirigir politicamente o pas, apresentando os seus interesses particulares como os interesses gerais da nao, e obtendo a estabilidade social. Em termos gramscianos, o que se verificava desde fevereiro de 1848, e que agora se aguava com a fragmentao do partido da ordem, era uma verdadeira crise de hegemonia que, como antecipamos, antecedeu, portanto, a prpria efetivao de uma dominao social de tipo hegemnica. As cises verticais e horizontais da sociedade conflitos entre os prprios grupos dominantes e conflitos entre o conjunto destes e as classes dominadas, respectivamente fazia com que se esbarrondasse gradativamente a instvel democracia parlamentar burguesa; no interior desta, se fortaleciam tendncias autoritrias e ditatoriais por parte do Executivo, as quais, consequentemente, engendravam, amide, o regime bonapartista como uma soluo poltica arbitral para a crise de hegemonia. A cada nova contenda com Bonaparte, a cada nova votao na Assemblia Nacional, o partido da ordem via sua fora diminuir. Muitos de seus deputados desertavam rapidamente, movidos pelo fanatismo da conciliao, pelo medo de lutar, pela lassido, por consideraes de famlia sobre salrios de parentes, por especulaes em torno das pastas ministeriais que tornassem vagas [...], por este vulgar egosmo, enfim, que torna o burgus comum sempre pronto a sacrificar o interesse geral de sua classe por este ou aquele interesse particular. 155
Embora estivesse em rota de coliso com o Executivo, o partido da ordem mostrava-se incapaz de travar de forma consistente uma luta contra aquele; ao invs de tomar atitudes que visassem, de fato, obstar a escalada golpista do presidente, os parlamentares burgueses limitavam-se a fazer intrigas, chicanas e proferir inofensivas declaraes verbais contra Bonaparte. O momento mais ilustrativo dessa estril conduta poltica adotada pelo partido da burguesia ocorreu quando da destituio, por Bonaparte, do general Changarnier do comando do Exrcito e da Guarda Nacional de Paris. Afrontado por Bonaparte, o partido da ordem
155 Idem, p. 85. 70
ameaou formar um exrcito parlamentar sob comando do prprio Changarnier e, juridicamente, dispunha de poderes constitucionais para isso. Entretanto, o partido da ordem ficaria s na ameaa, e nada de concreto faria para preservar seu poder militar, a no ser tentar inutilmente demover Bonaparte de sua deciso (Quando se tenta persuadir algum porque se reconhece ser ele o dono da situao, ironizou Marx): 156
O baluarte da sociedade foi despedido, e se nenhuma telha cai dos telhados por esse motivo, as cotaes da Bolsa, por outro lado, comeam a subir. Ao repelir o exrcito, que se coloca, na pessoa de Changarnier, sua disposio, e entregando- o, portanto, irremissivelmente, s mos do Presidente, o partido da ordem deixa evidente que a burguesia perdeu a capacidade de governar. J no existia um governo parlamentar. Tendo agora perdido, efetivamente, o controle sobre o exrcito e a Guarda Nacional, que foras lhe restavam para manter simultaneamente a autoridade usurpada do parlamento sobre o povo e sua autoridade constitucional contra o Presidente? Nenhuma. 157
Outro episdio demonstrativo da covarde postura da burguesia parlamentar em face de Bonaparte ocorreu no inicio do ano de 1851, por ocasio de uma moo assinada por cento e oitenta e nove membros da Montanha visando concesso de anistia a todos os envolvidos em delitos polticos. Em que pese o fato de que, quela altura, o partido da ordem estivesse em uma aliana ttica com os montanheses contra Bonaparte, a simples agitao, por parte do governo deste, do espectro da revoluo social seria suficiente para que o partido capitulasse, mais uma vez, ao Executivo. Insidiosamente, Bonaparte realizava uma hbil manobra poltica em que, jogando com o medo dos setores proprietrios, obtinha a cumplicidade tcita de alguns de seus prprios adversrios para suas medidas discricionrias:
Bastou que o ministro do Interior, um certo Vasse, declarasse que a tranquilidade era apenas aparente, que em surdina reinava uma grande agitao, que sociedades multiformes estavam sendo organizadas secretamente, que os jornais preparavam-se para reaparecer, que os relatrios provenientes dos Departamentos eram desfavorveis, que os refugiados de Genebra dirigiam uma conspirao que, atravs de Lyon, alastrava-se por todo o sul da Frana, que a Frana estava beira de uma crise industrial e comercial, que as fbricas de Roubaix haviam reduzido a jornada de trabalho, que os prisioneiros de Belle Isle [onde estavam encarcerados os revolucionrios condenados depois de 1848] estavam amotinados bastou que um simples Vasse conjurasse o fantasma vermelho para que o partido da ordem rejeitasse sem discusso uma moo que teria certamente dado imensa popularidade Assemblia Nacional e forado Bonaparte a atirar-se novamente em seus braos [tal como nas eleies suplementares de 1850]. Em vez de se deixar intimidar pelo poder executivo com a perspectiva de novos distrbios, devia ter dado luta de classes uma pequena oportunidade, a fim de manter o poder executivo na dependncia. No se sentiu, porm, capaz de brincar com fogo. 158
A burguesia contra o seu partido: Economia x poltica Na tica de Marx, para alm do medo da revoluo proletria, o partido da ordem era acometido tambm pelo temor de se afastar de sua base social (a massa burguesa),
156 Idem, p. 83. 157 Idem. 158 Idem, p. 87. 71
aparecendo a esta como um bice poltico para as aes de um governante que, insistentemente, clamava pela tranquilidade nacional (Acima de tudo, a Frana exige tranquilidade, declarava Bonaparte repetidamente): Bonaparte exigia, portanto, que o deixassem em paz para agir como lhe aprouvesse, e o partido parlamentar estava paralisado por um duplo medo, pelo medo de despertar novamente a intranquilidade revolucionria e pelo medo de aparecer ele prprio, aos olhos de sua prpria classe, aos olhos da burguesia, como o instigador da intranqilidade. 159
Medrava, doravante, um processo de ruptura poltica entre representantes e representados, no qual o grosso da burguesia francesa, em meio interminvel crise poltica, abandonava progressivamente suas lideranas e representaes poltico-parlamentares (o partido da ordem nas suas distintas fraes) e aderia vilmente opo bonapartista, encabeada pelo presidente aventureiro com pretenses imperiais. Tal desconexo entre uma base social e suas representaes polticas tradicionais, designada por Gramsci como crise orgnica, se constituiria, a nosso ver, numa das ltimas etapas da crise de hegemonia que se abrira no pas com a queda da Monarquia de julho, e que, ao final, desembocaria no golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851. 160
Marx registrou como, desde a posse do agiota Fould na pasta da Fazenda no ministrio dHautpoul, que j no mais existia desde 18 de janeiro de 1851, quando Bonaparte nomeara um ministrio dito de transio no qual no constava nenhum membro do Parlamento , a chamada aristocracia financeira j se tornara bonapartista, pois Fould no representava apenas os interesses de Bonaparte na Bolsa, representava tambm os interesses da Bolsa junto a Bonaparte. 161 Em novembro de 1851 (s vsperas do golpe), o The Economist, rgo europeu da aristocracia financeira, definiria Bonaparte como o guardio da ordem, numa clara demonstrao de apoio poltico a um Executivo que explicitamente procurava submeter o Poder Legislativo aos seus ditames: A aristocracia financeira condenava, portanto, a luta parlamentar do partido da ordem contra o poder executivo como uma perturbao da ordem, e comemorava cada vitria do Presidente sobre os supostos representantes dela como vitrias da ordem. 162 J a burguesia industrial, graas ao seu fanatismo pela ordem, irritava-se com as disputas em que o partido da ordem se empenhava no parlamento com o poder executivo. 163 A burguesia comercial, por sua vez, quando o comrcio era prspero, se enfurecia contra qualquer disputa parlamentar, temendo que o
159 Idem, p. 76. 160 Mais frente, na parte deste trabalho destinada ao pensamento de Gramsci sobre o bonapartismo, exporemos nosso entendimento acerca das relaes entre crise de hegemonia e crise orgnica. 161 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 96-97. 162 Idem, p. 97. Grifos do autor. 163 Idem. 72
comrcio viesse a ressentir-se disso; j quando o comrcio andava mal, acusava as lutas parlamentares como responsveis pela paralisao e clamava para que cessassem, a fim de que o comrcio pudesse desenvolver-se novamente. De um modo geral, portanto, a burguesia bradava por um governo forte, 164 demonstrando que a luta para manter seus interesses pblicos, seus prprios interesses de classe, seu poder poltico, s lhe trazia embarao e desgostos, pois constitua uma perturbao dos seus negcios privados. 165
Desenvolvendo uma forte alergia ao seu prprio regime parlamentar, a massa da burguesia refestelava-se com Bonaparte e afastava-se traioeiramente de seus lderes polticos habituais e porta-vozes literrios. Relegando a segundo plano seus interesses polticos, seu direito a governar, ela prpria, a nao, a burguesia francesa guiava-se, na prtica, por seus mais bsicos interesses materiais, por seus objetivos interesses econmicos. A poltica burguesa curvava-se, assim, economia burguesa:
Os arautos e escribas da burguesia, sua plataforma e sua imprensa, em suma, os idelogos da burguesia, e a prpria burguesia, os representantes e os representados, enfrentavam-se com hostilidade e no mais se compreendiam [...] De maneira ainda mais inequvoca do que o seu afastamento de seus prprios representantes parlamentares, a burguesia demonstrou sua clera contra seus representantes literrios, sua prpria imprensa. As sentenas, condenando a ruinosas multas e a descabidos perodos de encerramento, ditadas pelos jris burgueses por qualquer ataque de jornalistas burgueses contra os desejos usurpatrios de Bonaparte, por qualquer tentativa da imprensa de defender os direitos polticos da burguesia contra o poder executivo, assombravam no s a Frana, como toda a Europa. Se o partido parlamentar da ordem, com seu clamor pela tranquilidade, como demonstrei, comprometia-se a manter tranqilo, se declarava o domnio poltico da burguesia incompatvel com a segurana e a existncia da burguesia, destruindo com suas prprias mos, na luta contra as demais classes da sociedade, todas as condies necessrias ao seu prprio regime, o regime parlamentar, por outro lado, a massa extraparlamentar da burguesia, com seu servilismo para com o Presidente, com seus insultos ao parlamento, com maus tratos a sua prpria imprensa, convidava Bonaparte a suprimir e aniquilar o setor do partido que falava e escrevia, seus polticos e literatos, sua tribuna e sua imprensa, a fim de poder entregar-se ento a seus negcios particulares com plena confiana, sobre a proteo de um governo forte e absoluto. Declarava inequivocamente que ansiava por se livrar das tribulaes e perigos desse domnio. E essa massa, que j se rebelara contra a luta puramente parlamentar e literria pelo domnio de sua prpria classe e trara os dirigentes dessa luta, ousa agora, depois do caso passado [golpe de Estado de dezembro de 1851], acusar o proletariado por no ter se levantado em uma luta sangrenta, uma luta de vida ou morte, em sua defesa! Essa massa, que sacrificava a cada momento seus interesses gerais de classe, isto , seus interesses polticos, aos mais mesquinhos e mais srdidos interesses particulares, e exigia de seus representantes idntico sacrifcio, queixa-se agora que o proletariado no tenha se sacrificado aos seus interesses materiais, os interesses polticos ideais dela! 166
Esse corte de laos entre economia e poltica burguesas, descrito por Marx no trecho acima, mostrar-se-ia historicamente como um dos elementos constitutivos dos processos de crise de hegemonia que tiveram como desfecho poltico golpes de tipo bonapartista.
164 Idem, p. 88. 165 Idem, p. 98. Grifos do autor. 166 Idem, p. 96-100. Grifos do autor.
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medida que se aproximava o fim do mandato presidencial de Lus Bonaparte, crescia a incerteza quanto ao futuro poltico do pas. O partido da ordem, j profundamente dividido, perdia-se em inteis debates sobre as propostas de reforma da Constituio, as quais procuravam oferecer distintas solues antecipadas para o impasse poltico que se abriria depois do segundo domingo de maio de 1852. Do outro lado, oportunista e demagogicamente, Bonaparte apresentou Assemblia Nacional um pedido de revogao da lei de 31 de maio de 1850, o que equivaleria restaurao do sufrgio universal. Sem melindres, a Assemblia o rejeitou, confirmando, uma vez mais, o fato de que se transformara, de corpo de parlamentares livremente eleitos pelo povo, em parlamento usurpador de uma classe; reconheceu mais uma vez que cortara, ela mesma, os msculos que ligavam a cabea parlamentar ao corpo da nao. 167 Em seguida, a Assemblia Nacional passou discusso da Lei dos Questores, que versava sobre o seu direito de requisitar tropas diretamente (sem a interferncia do Executivo) e formar um exrcito parlamentar. A prpria existncia desta discusso por parte da Assemblia Nacional, segundo Marx, j demonstrava cabalmente que esta se rendia progressivamente ao ncleo duro do aparelho estatal (sobretudo s Foras Armadas) o qual continuava, em alta velocidade, seu processo de autonomizao poltica. Mais uma vez, o Parlamento burgus se auto-desmoralizava e se auto-desqualificava, deixando sem peias o caminho para o golpismo galopante do Executivo:
Colocando assim o exrcito como rbitro entre ela e o povo, entre ela e Bonaparte, reconhecendo no exrcito o poder estatal decisivo, tinha que confirmar, por outro lado, o fato de que h muito j desistira de sua pretenso de dominar esse poder. Ao debater seu direito a requisitar tropas, em vez de requisit-las imediatamente, deixava transparecer suas dvidas quanto a seus prprios poderes. Ao rejeitar a Lei dos Questores confessou publicamente sua impotncia 168
2 de dezembro de 1851: o golpe de Estado contra (e para) a burguesia Conforme o calendrio andava, as lutas parlamentares intra-burguesas se intensificavam, irritando ainda mais as fraes capitalistas de fora do parlamento. Os jornais bonapartistas, provocativamente agressivos, aventavam a possibilidade de golpe a cada nova crise parlamentar. Bonaparte, por sua vez, tramava o golpe sem sequer nutrir a preocupao de rebu-lo dos olhos da j plida e impotente Assemblia Nacional. Numa linguagem teatral, Marx descreveu o bulioso e dionisaco ambiente em que se gestara o putsch bonapartista de 2 de dezembro de 1851:
167 Idem, p. 106. 168 Idem. 74
Nas orgias que Bonaparte celebrava todas as noites com a escria de ambos os sexos, quando se aproximava a meia-noite e as copiosas libaes desatavam as lnguas e aguavam a imaginao, o golpe de Estado era marcado para a manh seguinte. Desembainhavam-se as espadas, tilintavam as taas, representantes eram atirados pelas janelas, o manto imperial caa sobre os ombros de Bonaparte, at que o romper da aurora afugentava novamente o fantasma e Paris, estupefata, tornava a inteirar-se, pelas vestais pouco dadas a reticncias e pelos paladinos indiscretos, do perigo de que tinha novamente escapado. Durante os meses de setembro e outubro os boatos de golpe de Estado sucediam-se rapidamente. Ao mesmo tempo a sombra ganhava cores, como um daguerretipo iluminado. Consultai os nmeros de setembro e outubro dos rgos da imprensa diria europia e encontrareis, palavra por palavra, intimidaes como esta: Paris est cheia de boatos sobre um golpe de Estado. Diz-se que a capital ser tomada pelas tropas durante a noite, e que na manh seguinte aparecero os decretos da dissoluo da Assemblia Nacional, declarando o Departamento do Sena sob estado de stio, restaurando o sufrgio universal e apelando para o povo. Diz-se que Bonaparte anda em busca de ministros para porem em execuo esses decretos ilegais. As correspondncias que trazem essas notcias terminam sempre com a palavra fatal: adiado. O golpe de Estado fora sempre a idia fixa de Bonaparte. Com esta idia em mente voltara a pisar o solo francs. Estava to obcecado que constantemente deixava-a transparecer. Estava to fraco que, tambm constantemente, desistia dela. A sombra do golpe de Estado tornara-se to familiar aos parisienses sob a forma de fantasma, que quando finalmente apareceu em carne e osso no queriam acreditar no que viam. O que permitiu, portanto, o xito do golpe de Estado no foi nem a reserva reticente do chefe da Sociedade de 10 de Dezembro, nem o fato de a Assemblia Nacional ter sido colhida de surpresa. Se teve xito, foi apesar da indiscrio daquele e com o conhecimento antecipado desta resultado necessrio e inevitvel de acontecimentos anteriores. 169
Nesse cenrio de incessante boataria e intranquilidade, onde os acontecimentos se precipitavam e os personagens polticos, errticos e tergiversantes, pareciam j no mais agir em consonncia com suas bases sociais, enfim, onde reinava absoluta a imprevisibilidade poltica e social, a subjetividade burguesa tornava-se ainda mais insegura, fazendo proliferar o pnico entre os crculos dominantes. Aflita, desesperada e apavorada, a burguesia, que j havia usurpado para si todo o poder da sociedade, se via agora impelida a aceitar o projeto usurpatrio de Bonaparte como um mal necessrio preservao de sua prpria ordem social:
Imaginai agora o burgus francs, o seu crebro comercialmente enfermo, torturado na agonia desse pnico comercial, girando estonteado pelos boatos de golpes de Estado e de restaurao do sufrgio universal, pela luta entre o parlamento e o poder executivo, pela guerra da Fronda entre orleanistas e legitimistas, pelas conspiraes comunistas no sul da Frana, pelas supostas Jacqueries nos Departamentos de Nivre e Cher, pela propaganda de diversos candidatos presidncia, pelas palavras de ordem dos jornais que lembravam os preges de vendedores ambulantes, pelas ameaas dos republicanos de defender a Constituio e o sufrgio universal de armas na mo, pela pregao dos emigrados heris in partibus, que anunciavam que o mundo se acabaria no segundo domingo de maio de 1852 pensai em tudo isso e compreendereis a razo pela qual em meio a essa incrvel e estrepitosa confuso de reviso, fuso, prorrogao, Constituio, conspirao, coligao, usurpao e revoluo, o burgus berra furiosamente para a sua repblica parlamentar: Antes um fim com terror, do que um terror sem fim! 170
Discursando para membros da burguesia industrial a 25 de novembro de 1851, Bonaparte lhes prometeu tranquilidade para o futuro, no que foi simplesmente ovacionado pelos presentes. Com aplausos abjetos, a classe dominante saudava, assim, avant la lettre, o golpe de Estado de 2 de dezembro, a aniquilao do parlamento, a queda de seu prprio
169 Idem, p. 104-105. Grifos do autor. 170 Idem, p. 103-104. Grifos do autor. 75
domnio, a ditadura de Bonaparte. Finalmente, no segundo dia de dezembro de 1851, Lus Bonaparte atenderia aos desejos mais ntimos (mas j no to secretos assim) da covarde burguesia francesa. Tendo atrs de si a enorme burocracia da mquina pblica, o agitado lumpem-proletariado parisiense e, mormente, a venal cpula militar bonapartista, o presidente aventureiro lanou-se de vez na sua maior aventura, e desfechou o golpe de misericrdia na esqulida democracia parlamentar burguesa. Lanando mo de analogias e comparaes histricas, Marx, com sua peculiar ironia custica, procurou, em dois pargrafos narrativos, descrever os momentos finais daquela atribulada trama poltica iniciada em 1848, na qual, ao final, o Executivo obtivera a rendio total do Legislativo:
Cromwell, quando dissolveu o Parlamento Amplo, entrou sozinho na sala de sesses, puxou o relgio a fim de que tudo acabasse no minuto exato que havia fixado e expulsou os membros do parlamento um por um com insultos hilariantes e humorsticos. Napoleo, de estatura menor que seu modelo, apresentou-se pelo menos perante o poder legislativo no Dezoito Brumrio e embora com voz embargada, leu para a Assemblia sua sentena de morte. O segundo Bonaparte, que, ademais, dispunha de um poder executivo muito diferente do de Cromwell ou de Napoleo, buscou seu modelo no nos anais da histria do mundo, mas nos anais da Sociedade de 10 de Dezembro, nos anais dos tribunais criminais. Rouba vinte e cinco milhes de francos ao Banco da Frana, compra o general Magnan com um milho, os soldados por quinze francos cada um e um pouco de aguardente, rene-se secretamente com seus cmplices, como um ladro, na calada da noite, ordena que sejam assaltadas as residncias dos dirigentes parlamentares mais perigosos e que Cavaignac, Lamoricire, Lefl, Changarnier, Charras, Thiers, Baze etc. sejam arrancados de seus leitos, que as principais praas de Paris e o edifcio do parlamento sejam ocupados pelas tropas e que cartazes escandalosos sejam colocados ao romper do dia nos muros de Paris proclamado a dissoluo da Assemblia Nacional e do Conselho de Estado, a restaurao do sufrgio universal e colocando o Departamento do Sena sob estado de stio. Da mesma maneira manda inserir depois no Moniteur um documento falso afirmando que parlamentares influentes se haviam agrupado em torno dele em um Conselho de Estado. O parlamento acfalo, reunido no edifcio da mairie do dcimo distrito e consistindo principalmente de legitimistas e orleanistas, vota a deposio de Bonaparte entre repetidos gritos de Viva a Repblica, arenga em vo a multido curiosa congregada diante do edifcio e finalmente conduzido, sob a custdia de atiradores de preciso africanos, primeiro para o quartel dOrsay e em seguida, amontoado em carros celulares, transportado para as penitencirias de Maza, Ham e Vincennes. Assim terminaram o partido da ordem, a Assemblia Legislativa e a Revoluo de Fevereiro. 171
Curvando-se a uma autoridade executiva que se tornou um poder independente e que considera sua misso salvaguardar a ordem burguesa, 172 a burguesia francesa solucionava, ao menos temporariamente, a aguda contradio entre a vigncia de sua dominao poltica direta e a manuteno de sua dominao social de classe; forosamente, abdicava da primeira para ver preservada a segunda. Depois do golpe perpetrado por Bonaparte, aliviada, gritaria veementemente: S o chefe da Sociedade de 10 de Dezembro pode salvar a sociedade burguesa! S o roubo pode salvar a propriedade; o perjrio, a religio; a bastardia, a famlia; a desordem, a ordem! 173
171 Idem, p. 108-109. Grifos do autor. 172 Idem, p. 123. 173 Idem. 76
Aps a exasperao do conflito poltico nacional aberto em fevereiro de 1848, que exaurira todos os diversos segmentos sociais nele envolvidos, a classe dominante pde, enfim, respirar de modo menos ofegante, ainda que agora o fizesse ajoelhada perante seu algoz- salvador. Com a nao sob o comando supremo e arbitral de Lus Bonaparte que, inspirando-se no tio, aboliu a repblica e se auto-proclamou Imperador (Napoleo III) , a luta de classes, como bem salientou Hal Draper, no foi abolida, mas imobilizada em equilbrio. 174 A burguesia, portanto, deixava, ela tambm, o cenrio poltico. Depois de ter, pela fora das baionetas, cerceado a liberdade poltica de todas as classes adversrias entre 1848-1851, a prpria classe dominante via-se agora, com o xito do golpe de Estado bonapartista, condenada mais silenciosa nulidade poltica, 175 submetendo-se, por completo, ao controle do aparelho burocrtico-militar de seu prprio Estado, o Estado burgus. O Segundo Imprio nada mais era, portanto, do que um fruto natural da repblica do partido da ordem. 176
A burguesia francesa rebelou-se contra o domnio do proletariado trabalhador; levou ao poder o lumpem-proletariado, tendo frente o chefe da Sociedade de 10 de Dezembro. A burguesia conservava a Frana resfolegando de pavor ante os futuros terrores da anarquia vermelha; Bonaparte descontou para ela esse futuro quando, a 4 de dezembro, fez com que o exrcito da ordem, inspirado pela aguardente, fuzilasse em suas janelas os eminentes burgueses do Bulevar Montmartre e do Bulevar dos Italiens. A burguesia fez a apoteose da espada; a espada a domina. Destruiu a imprensa revolucionria; sua prpria imprensa foi destruda. Colocou as reunies populares sob vigilncia da polcia; seus sales esto sob a vigilncia da polcia. Dissolveu a Guarda Nacional democrtica; sua prpria Guarda Nacional foi dissolvida. Imps o estado de stio; o estado de stio foi-lhe imposto. Substituiu os jris por comisses militares; seus jris so substitudos por comisses militares. Submeteu a educao pblica ao domnio dos padres; os padres submetem-na educao deles. Desterrou pessoas sem julgamento; est sendo desterrada sem julgamento. Reprimiu todos os movimentos da sociedade atravs do poder de Estado; todos os movimentos de sua sociedade so reprimidos pelo poder de Estado. Levada pelo amor prpria bolsa, rebelou-se contra seus polticos e homens de letras; seus polticos e homens de letras foram postos de lado, mas sua bolsa est sendo assaltada agora que sua boca foi amordaada e sua perna foi quebrada. A burguesia no se cansava de gritar revoluo o que Santo Arsnio gritou aos cristos: Fuge, tace, quiesce! (Foge, cala, sossega!) Agora Bonaparte que grita burguesia: Fuge, tace, quiesce! A burguesia francesa h muito encontrara a soluo para o dilema de Napoleo: Dans cinquante ans lEurope ser rpublicaine ou cosaque! [Dentro de cinquenta anos a Europa ser republicana ou cossaca!]. Encontrara a soluo na republique cossaca. 177
Bonapartismo e poltica de massas Nascido da necessidade de salvar a sociedade burguesa, o novo regime institudo pelo golpe de Estado era, evidentemente, um regime socialmente burgus; entretanto, ele o era e aqui reside o buslis do bonapartismo revelia da (e por vezes contra a) prpria burguesia, que dele se beneficiaria abundantemente, sobretudo no plano econmico. Com o
174 DRAPER, Hal. Op. Cit., p. 406. Traduo nossa. 175 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 63. 176 MARX, K. La guerra civil em Francia. Moscou.Op. cit., p. 61. Traduo nossa. 177 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 111. Grifos do autor. 77
18 brumrio de Lus Bonaparte, passaria a vigorar uma dominao poltica indireta da burguesia sobre o conjunto da sociedade, um tipo de dominao (bonapartista) na qual a classe dominante e suas tradicionais representaes polticas no se encontram mais nos principais postos de comando e direo poltica do Estado capitalista. De natureza indiscutivelmente reacionria, o novo regime, emerso num contexto de urbanizao e massificao aceleradas do pas, tinha como misso histrica encerrar, pelo alto, a desgastante luta entre suas partes constituintes (seus partidos e demais agrupamentos polticos), harmonizando, pacificando e reintegrando a nao febril. Corolrio poltico de um momento histrico em que no mais era possvel classe dominante ignorar a fora da classe trabalhadora que mesmo derrotada, calada e perseguida, continuara a influenciar tumultuosamente a cena poltica nacional at o golpe de Estado , tratando-a apenas pelos expedientes coercitivos, o bonapartismo francs inaugurou uma nova forma de relacionamento entre o Estado e as potencialmente perigosas massas populares: Hoje, o reino das castas terminou, s se pode governar com as massas, declararia Lus Bonaparte a certa altura de seu governo imperial. 178
Diferentemente dos regimes elitrios anteriores, absolutamente excludentes politicamente, o Segundo Imprio visou a uma incorporao controlada do numericamente ascendente proletariado, bloqueando suas tendncias polticas radicais, jacobinas, socialistas, comunistas etc. Assim, Bonaparte restabeleceu o sufrgio universal e levou a cabo uma poltica de massas assistencialista que j havia ensaiado antes na Presidncia ( preciso dar trabalho ao povo. Obras pblicas so iniciadas, relatou Marx), 179 ao mesmo tempo em que decapitou o movimento operrio, almejando dissolver a conscincia de classe dos trabalhadores (As unies operrias existentes so dissolvidas, mas prometem-se milagres de unio para o futuro, descreveu Marx). 180 Agora na qualidade de massa amorfa, desprovido de uma organizao poltica autnoma, o proletariado pde finalmente adentrar a esfera poltica-institucional, curvando-se ao seu nico intrprete, Lus Bonaparte. Essa dupla dimenso da incorporao subalterna das massas esfera pblica (o binmio concesses sociais coero poltica), permeada sempre pela presena ubqua de Lus Bonaparte (no papel de lder nacional), seria muitos anos mais tarde destacada pelo filsofo italiano Domenico Losurdo:
Lus Napoleo fala sempre de povo ou de massa, sem atribuir uma conotao negativa nem mesmo a este ltimo termo [...]
178 NAPOLEO III. Oeuvres. Paris: Plon-Amyot, 1861 apud LOSURDO, Domenico. Democracia ou Bonapartismo. Triunfo e decadncia do sufrgio universal. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/ So Paulo: Ed. UNESP, 2004, p. 62. 179 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 124. 180 Idem. 78
Mas qual o povo cujo apoio se quer obter? No, certamente, aquele organizado autonomamente em partidos ou sindicatos. Lus Napoleo se apresenta no como o representante de um partido, mas como o intrprete da nao e das suas melhores tradies, como aquele que pretende governar no interesse das massas e no no interesse de um partido [as palavras so do prprio Napoleo III]. J a partir de 1848, a propaganda bonapartista insiste no fato de que entre o povo e seu soberano no deve haver intermedirio que se arrogue o direito de substituir um e outro [...] s vsperas do golpe de Estado, um opsculo, de cuja redao parece ter participado Lus Napoleo em pessoa, ataca a Constituio existente pelo fato de que ele estabelece como modo de eleio o voto em lista, um modo enganador que, subtraindo ao povo toda liberdade e toda escolha, transfere aos jornais e aos comits o poder eleitoral [as palavras so do idelogo bonapartista Granier de Cassagnac]. Os partidos e os grupos polticos organizados, e os rgos de imprensa a eles ligados, so denunciados como instrumentos de coero e de sufocamento da espontaneidade do eleitorado, o qual deve ser libertado de tudo isto para se entregar relao direta, e subalterna, com o lder local e, em nvel nacional, com o lder carismtico e indiscutido da nao [...] A esta mesma lgica corresponde a atitude assumida por Napoleo III em relao ao movimento sindical. Certamente, no perodo de crise revolucionria ou de fraqueza inicial das novas instituies, o poder bonapartista o reprime duramente, colocando-se, de resto, numa linha de continuidade com a poltica seguida anteriormente pela burguesia liberal [...] Mas na sua fase liberal, quando se sente suficientemente slido e seguro, o novo regime no hesita em legalizar a greve: em vista de um protesto ou de uma reivindicao isolada, os operrios podem organizar sua ao, mas continua a ser severamente proibida uma relao associativa permanente [...] Est claro: estamos na presena de um novo modelo de controle poltico e social das massas, no mbito do qual o sufrgio universal neutralizado pela posio absolutamente eminente [...] do chefe do Executivo, que [...] busca as boas graas das classes consideradas perigosas mediante algumas concesses limitadas (realizao de obras pblicas, tabelamento dos aluguis nas grandes cidades etc.). 181
A nosso ver, esse novo modelo de controle poltico e social das massas apresentado pioneiramente pelo regime francs de Lus Bonaparte seria adotado, de um modo bastante aperfeioado, por futuros regimes tambm de natureza bonapartista, a comear pelo bismarckismo alemo, como veremos daqui a pouco.
Um poder acima da sociedade: a autonomizao relativa do Estado Em que pese a importncia de sua inovadora relao com as massas, o aspecto precpuo do novo regime francs, seu trao caracterstico e do bonapartismo em geral , seria, entretanto, a expressiva autonomia relativa alcanada pelo aparelho estatal (em especial pelo seu ncleo burocrtico-militar) face s classes sociais inclusive sobre as fraes do capital mais privilegiadas economicamente pelas polticas estatais do regime bonapartista. Forjada na crise da sociedade feudal e azeitada por dcadas de lutas da burguesia contra seus inimigos contra-revolucionrios e revolucionrios (nobreza e proletariado, respectivamente), a mquina estatal, capitaneada pelo Executivo, operaria, com o novo regime bonapartista, uma decalagem poltica em relao ao grupo social a que servia, elevando-se acima deste. Depois de anos e anos sendo produzido, ajustado e retocado, o produto, numa inverso dialtica, submeteria, finalmente, seu produtor. A burguesia rendia-se ao seu prprio Estado. A brilhante sntese histrica de Marx a esse respeito vale a pena ser reproduzida:
181 LOSURDO, Domenico. Op. Cit., p. 62-66. 79
Esse poder executivo, com sua imensa organizao burocrtica e militar, com sua engenhosa mquina do Estado, abrangendo amplas camadas com um exrcito de funcionrios totalizando meio milho, alm de mais meio milho de tropas regulares, esse tremendo corpo de parasitas que envolve como uma teia o corpo da sociedade francesa e sufoca todos os seus poros, surgiu ao tempo da monarquia absoluta, com o declnio do sistema feudal, que contribuiu para apressar. Os privilgios senhoriais dos senhores de terras e das cidades transformaram-se em outros atributos do poder de Estado, os dignatrios feudais em funcionrios pagos e o variegado mapa dos poderes absolutos medievais em conflito entre si, no plano regular de um poder estatal cuja tarefa est dividida e centralizada como em uma fbrica. A primeira Revoluo Francesa, em sua tarefa de quebrar todos os poderes independentes locais, territoriais, urbanos e provinciais a fim de estabelecer a unificao civil da nao, tinha forosamente que desenvolver o que a monarquia absoluta comeara: a centralizao, mas ao mesmo tempo o mbito, os atributos e os agentes do poder governamental. Napoleo aperfeioara essa mquina estatal. A monarquia legitimista e a monarquia de julho nada mais fizerem do que acrescentar maior diviso do trabalho, que crescia na mesma proporo em que a diviso do trabalho dentro da sociedade burguesa criava novos grupos de interesses e, por conseguinte, novo material para a administrao do Estado. Todo interesse comum (gemeinsame) era imediatamente cortado da sociedade, contraposto a ela como um interesse superior, geral (allgemeins), retirado da atividade dos prprios membros da sociedade e transformado em objeto da atividade do governo, desde a ponte, o edifcio da escola e a propriedade comunal de uma aldeia, at as estradas de ferro, a riqueza nacional e as universidades da Frana. Finalmente, em sua luta contra a revoluo, a repblica viu-se forada a consolidar, juntamente com as medidas repressivas, os recursos e a centralizao do poder governamental. Todas as revolues aperfeioaram essa mquina, ao invs de destro-la. Os partidos que disputavam o poder encaravam a posse dessa imensa estrutura do Estado como o principal esplio do vencedor. Mas sob a monarquia absoluta, durante a primeira Revoluo, sob Napoleo, a burocracia era apenas o meio de preparar o domnio de classe da burguesia. Sob a Restaurao, sob Lus Felipe, sob a repblica parlamentar, era o instrumento da classe dominante, por muito que lutasse para estabelecer seu prprio domnio. Unicamente sob o segundo Bonaparte o Estado parece tornar-se completamente autnomo. 182
Para Emir Sader, o bonapartismo representaria uma outra forma de apropriao do Estado, j que se constituiria em uma forma de governo que ressaltaria a relativa autonomia que o Estado preserva, dando-lhe possibilidade de surgir como verdadeiro unificador da sociedade como um todo. 183 Contudo, esse autonomizado e agigantado poder
182 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 113-114. Grifos do autor. 183 SADER, Emir. Op. Cit., p. 99. Embora se constitua em uma cuidadosa sntese analtica do conceito de bonapartismo em Marx, o referido trabalho de Sader possui uma tese central um tanto quanto problemtica: para o socilogo brasileiro, o bonapartismo, ao projetar a imagem de um Estado independente da sociedade e politicamente neutro, exprimiria a forma poltica mais avanada assumida pelo Estado burgus, pois corresponderia ao desenvolvimento pleno das relaes sociais de produo capitalistas, as quais geram uma separao relativa entre as esferas econmica e poltica. Superando o Estado Liberal, o bonapartismo francs seria, portanto, a expresso poltica da passagem de um capitalismo baseado na pequena-propriedade para um capitalismo de alta concentrao do capital: Enquanto o liberalismo, como ideologia adaptada s condies de uma economia de mercado, produz os setores polticos que pem em prtica uma poltica estatal do laissez-faire e burguesia isso o bastante essa separao entre posse do Estado e poder poltico social pode ser preservada. Mas, medida que as necessidades das relaes de produo burguesas solicitam maior interveno do Estado, sua forma cada vez mais centralizada j no assumida voluntariamente por nenhum setor social que pudesse ser representante da burguesia. A essa necessidade corresponde apenas o poder pessoal, o bonapartismo, que nega a democracia liberal e o parlamentarismo, na mesma medida em que a burguesia nega a pequena propriedade. Os dois mecanismos so paralelos porque o bonapartismo capta sua legitimidade a partir de um jogo em torno da afirmao de princpio da propriedade privada, e o seu combate de fato pela concentrao do capital [...] A imparcialidade buscada pelo Estado bonapartista visa a atender a esse novo carter das relaes de classe, demonstrando que as formas polticas clssicas do liberalismo no correspondiam fase de cristalizao do capitalismo, mas ao momento de sua ascenso e instaurao. O Estado bonapartista corresponde fase da hegemonia em que, ao reproduzir de forma multiplicada suas relaes de produo, o capitalismo superou o Estado liberal [...] Se o capitalismo revela a verdadeira essncia do Estado, ao dilacerar essas contradies ao mximo, o bonapartismo que a realiza em seu mais alto grau, consagrando as tarefas 80
estatal (gigantism of the state) 184 no estaria, segundo Marx, suspenso no ar, 185 e sim se apoiaria socialmente na classe mais numerosa da sociedade francesa, os pequenos (Parzellen) camponeses. 186
Jogando miticamente com a atrasada subjetividade dessa imensa massa rural, Lus Bonaparte, com sua nova roupagem de Napoleo III, apresentava-se quela como o herdeiro e sucessor de seu ancestral imperial, ainda venerado pela memria camponesa (Os Bonapartes so a dinastia dos camponeses, ou seja, da massa do povo francs). 187 Napoleo III procurou, assim, reeditar algumas das indelveis idias napolenicas (ides napoloniennes) consagradas por seu tio, tais como a defesa da pequena-propriedade agrria, a necessidade de um governo forte e absoluto 188 e a preponderncia do exrcito na vida nacional. 189
Tendo correspondido aos interesses objetivos do campesinato no pico perodo napolenico (caracterizado pela edificao/consolidao da sociedade burguesa face contra-revoluo aristocrtico-feudal europia), as idias napolenicas, no contexto histrico do Segundo Imprio (quando a pequena-propriedade rural estava sendo progressivamente arruinada pelo capital via excessivos impostos e aviltantes hipotecas), adquiriram um carter de pura farsa, de um verdadeiro engodo poltico. 190
especficas do poltico. O bonapartismo revela-se, assim, como a verdade histrica de todas as formas anteriores de Estado. (SADER, Emir. Op. Cit., p. 79-102. Grifos do autor ). A nosso ver, a tese de Sader, alm de ser, ao que consta, empiricamente equivocada pois o capitalismo industrial francs poca do golpe de Estado bonapartista (bastante atrasado em relao ao capitalismo ingls) estava longe de ter atingido sua fase de alta concentrao de capital acaba por se mostrar infrutfera para o estudo sobre o tipo bonapartista de regime poltico. Seguindo a lgica de Sader, deveramos encontrar, ento, regimes bonapartistas (ou Estados bonapartistas, segundo a terminologia do autor) em todas as formaes sociais nas quais as relaes de produo capitalistas j atingissem um nvel elevado de desenvolvimento o que, decerto, no se verifica. Assim, o bonapartismo, se nos ativermos interpretao de Sader, no poderia ser tomado como um regime poltico excepcional (de crise), oriundo de situaes da luta de classes marcadas por uma crise de hegemonia ainda que em algumas formaes sociais perifricas ele seja, por vezes, bem duradouro, dado o carter quase permanente (estrutural) das crises de hegemonia naquelas , e sim como um regime preferencial (normal) da classe dominante em todas as naes onde o capitalismo j se encontra plenamente amadurecido. Conforme j expusemos em nossa sntese do bonapartismo (ver introduo desta primeira parte), no com essa (errnea) concepo do conceito que estamos trabalhando. 184 DRAPER, Hal. Op. Cit., p. 406. 185 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 115. 186 Idem. Grifos do autor. 187 Idem. 188 Idem, p. 120. Grifos do autor. 189 Idem, p. 121. 190 Como vemos: todas as ides napoloniennes so idias da pequena propriedade, incipiente, no frescor da juventude; para a pequena propriedade na fase da velhice constituem um absurdo. No passam de alucinaes de sua agonia, palavras que so transformadas em frases, espritos transformados em fantasmas. Mas a pardia do imprio era necessria para libertar a massa da nao francesa do peso da tradio e para desenvolver em sua forma pura a oposio entre o poder do Estado e a sociedade. Com a runa progressiva da pequena propriedade, desmorona-se a estrutura do Estado erigida sobre ela. A centralizao do Estado, de que necessita a sociedade moderna, s surge das runas da mquina governamental burocrtico-militar forjada em oposio ao feudalismo (Idem, p. 122. Grifos do autor). 81
O Estado e a classe camponesa: a ideologia bonapartista Conquanto consistissem em lemas polticos em descompasso com a realidade histrica francesa da segunda metade do sculo XIX, as idias napolenicas revelaram-se extremamente funcionais para o novo regime poltico, angariando ideologicamente para este o apoio social do numeroso campesinato detentor de pequenas parcelas de terra (pequenos proprietrios rurais). Embora governando segundo os interesses mais gerais (estratgicos) da burguesia fazendo, portanto, o que essa classe j no podia fazer por si mesma , o bonapartismo de Lus Bonaparte obteve sua legitimidade social nos setores politicamente mais atrasados da pequena-burguesia rural, temerosos de qualquer tipo progressista de transformao social:
preciso que fique bem claro. A dinastia de Bonaparte representa no o campons revolucionrio, mas o conservador; no o campons que luta para escapar s condies de sua existncia social, a pequena propriedade, mas antes o campons que quer consolidar sua propriedade; no a populao rural que, ligada das cidades, quer derrubar a velha ordem de coisas por meio de seus prprios esforos, mas, pelo contrrio, aqueles que, presos por essa velha ordem em um isolamento embrutecedor, querem ver-se a si prprios e suas propriedades salvos e beneficiados pelo fantasma do Imprio. Bonaparte representa no o esclarecimento, mas a superstio do campons; no o seu bom- senso, mas o seu preconceito; no o seu futuro, mas o seu passado [...] 191
Dado que Bonaparte governava, em ltima anlise, para a burguesia ainda que a despeito desta, e por vezes politicamente contra esta , a explicao para o apoio poltico prestado ao novo Imperador pelo campesinato conservador deveria ser buscada, segundo Marx, nas prprias condies sociais de existncia desse estrato social, que o levava a projetar no Estado forte e centralizado a imagem de seu soberano e protetor. Fruto da observao de uma situao histrica concreta, a assertiva marxiana quanto existncia de uma relao causal entre o modo de vida econmico-social do campesinato francs e sua subjetividade poltica heternoma ganharia, futuramente, uma dimenso axiomtica nas anlises marxistas sobre as possibilidades e limites da pequena-burguesia na cena poltica da luta de classes:
Os pequenos camponeses constituem uma imensa massa, cujos membros vivem em condies semelhantes mas sem estabelecerem relaes multiformes entre si. Seu modo de produo os isola uns dos outros, em vez de criar entre eles um intercmbio mtuo. Esse isolamento agravado pelo mau sistema de comunicaes existente na Frana e pela pobreza dos camponeses. Seu campo de produo, a pequena propriedade, no permite qualquer diviso do trabalho para o cultivo, nenhuma aplicao de mtodos cientficos e, portanto, nenhuma diversidade de desenvolvimento, nenhuma variedade de talentos, nenhuma riqueza das relaes sociais. Cada famlia camponesa quase auto-suficiente; ela prpria produz inteiramente a maior parte do que consome, adquirindo assim os meios de subsistncia mais atravs de trocas com a natureza do que do intercmbio com a sociedade. Uma pequena propriedade, um campons e sua famlia; ao lado deles outra pequena propriedade, outro campons e outra famlia. Algumas dezenas deles constituem uma aldeia, e algumas dezenas de aldeias constituem um Departamento. A grande massa da nao francesa , assim, formada pela simples adio de grandezas homlogas, da mesma maneira por que batatas em um saco constituem um saco de batatas.
191 Idem, p. 116-117. 82
Na medida em que milhes de famlias camponesas vivem em condies econmicas que as separam umas das outras, e opem o seu modo de vida, os seus interesses e sua cultura aos das outras classes da sociedade, estes milhes constituem uma classe. Mas na medida em que existe entre os pequenos camponeses apenas uma ligao local e em que a similitude de seus interesses no cria entre eles comunidade alguma, ligao nacional alguma, nem organizao poltica, nessa exata medida no constituem uma classe. So, consequentemente, incapazes de fazer valer seu interesse de classe em seu prprio nome, quer atravs de um parlamento, quer atravs de uma conveno. No podem representar- se, tm que ser representados. Seu representante tem, ao mesmo tempo, que aparecer como seu senhor, como autoridade sobre eles, como um poder governamental ilimitado que os protege das demais classes e que do alto lhes manda o sol ou a chuva. A influncia poltica dos pequenos camponeses, portanto, encontra sua expresso final no fato de que o poder executivo submete ao seu domnio a sociedade. 192
O conhecido pargrafo acima ao lado de outros trechos j mencionados por ns nos quais Marx alinhavou consideraes sociolgicas sobre a pequena-burguesia urbana parisiense se constituiria em uma importante fonte de embasamento terico para as formulaes de autores como Lnin, Gramsci e Trotsky acerca da incapacidade da pequena- burguesia para desempenhar um papel poltico verdadeiramente independente em meio luta das classes fundamentais (burguesia e proletariado), o que a impelia sempre a ora seguir uma, ora seguir a outra as anlises de Trotsky (que veremos no captulo seguinte) concernentes aos volteis posicionamentos polticos assumidos pela pequena-burguesia alem e francesa quando da crise dos regimes democrticos e consequente ascenso do fascismo so demonstrativas desse aspecto.
Bonapartismo e desenvolvimento capitalista Nas anlises de Marx sobre o regime poltico do Segundo Imprio, encontramos, portanto, a compreenso de que o relativamente autonomizado poder poltico governamental, sob comando de uma camarilha bonapartista com traos lumpens, procurou se sustentar poltica e ideologicamente na enorme massa camponesa do pas que havia sido agraciada com a reforma agrria de Napoleo I. Entretanto, esse mesmo poder governamental, no obstante sua altissonante retrica e moderna propaganda, no teria feito mais do que dirigir politicamente o pas segundo os interesses essenciais da grande burguesia francesa: mormente, a garantia da ordem social e o desenvolvimento do capitalismo industrial. No segundo semestre de 1870, aproximadamente vinte anos aps o golpe de Estado desfechado por Lus Bonaparte contra a Assemblia Nacional, o Segundo Imprio francs, vencido militarmente pela Prssia bismarckista, desmoronaria em poucos dias, possibilitando o espocar, em 1871, da herica Comuna de Paris. Neste mesmo ano, em seu opsculo A guerra civil na Frana (dedicado quela inovadora experincia revolucionria, afogada em sangue pelo derrotado Exrcito francs), Marx, lanando um olhar retrospectivo sobre o recm findado regime bonapartista, pde constar como este, ao liberar a burguesia da rdua
192 Idem, p. 115-116. 83
tarefa de governar politicamente a nao, mostrara-se extremamente funcional para o progresso do capitalismo industrial francs. O j significativo distanciamento histrico do qual ento gozava Marx em relao ao golpe de Estado de 1851 o levaria tambm a considerar tal evento como uma expresso poltica de um momento abalizador da evoluo da sociedade burguesa. Divisor de guas na histria do sistema capitalista, o momento do surgimento do bonapartismo francs teria exprimido uma situao em que a burguesia, tendo passado condio de classe contra-revolucionria, havia perdido a capacidade de governar por conta prpria a sociedade, mas o proletariado, poca politicamente imberbe, ainda no podia colocar-se como uma classe social dirigente. O resultado de tal impasse histrico- poltico teria sido justamente a emergncia de um aparelho estatal relativamente independente das classes fundamentais em presena; jogando demagogicamente com estas, manipulando-as politicamente, essa ingurgitada mquina burocrtico-militar teria competentemente levado a cabo o desenvolvimento das foras produtivas e das relaes sociais capitalistas na Frana:
O [Segundo] Imprio, com o coup dtat por f de batismo, o sufrgio universal por sano e a espada por cetro, declarava apoiar-se nos camponeses, ampla massa de produtores no envolvida diretamente na luta entre o capital e o trabalho. Dizia que salvava a classe operria destruindo o parlamentarismo e, com ela, a descarada submisso do governo [republicano] s classes possuidoras. Dizia que salvava as classes possuidoras mantendo em p sua supremacia econmica sobre a classe operria; e, finalmente, pretendia unir todas as classes ao ressuscitar para todos a quimera da glria nacional. Na realidade, era a nica forma de governo possvel em um momento em que a burguesia havia perdido a faculdade de governar a nao e a classe operria no a havia adquirido ainda. O Imprio foi aclamado de um extremo a outro do mundo como salvador da sociedade. Sob sua gide, a sociedade burguesa, livre de todas as preocupaes polticas, alcanou um desenvolvimento que nem ela mesma esperava. Sua indstria e seu comrcio ganharam propores gigantescas; a especulao financeira celebrou orgias cosmopolitas; a misria das massas se destacava sobre a ostentao desavergonhada de um luxo suntuoso, falso e envilecido. O poder de Estado, que aparentemente flutuava por cima da sociedade, era, na verdade, o maior escndalo desta e o autntico viveiro de todas as suas corrupes. Sua podrido e a podrido da sociedade que ele tinha salvado foram postas a nu pela baioneta da Prssia, que ardia, por sua vez, em desejos de trasladar esse regime de Paris para Berlim. O imperialismo [isto , a forma imperial de governo] a forma mais prostituda e, ao mesmo tempo, a forma ltima daquele poder estatal que a sociedade burguesa nascente havia comeado a criar como meio para se emancipar do feudalismo, e que a sociedade burguesa adulta acabou transformando em um meio para a escravizao do trabalho pelo capital. 193
A conhecida definio de Marx (destacada no fragmento acima) do bonapartismo como um regime poltico resultante de uma situao peculiar da luta de classes (em que a burguesia no podia mais, e o proletariado no podia ainda) seria posteriormente associada noo de equilbrio entre as foras sociais em confronto por notrios intelectuais do movimento operrio, como Engels, Trotsky e, principalmente, Antonio Gramsci (que trabalharia com conceitos como equilbrio esttico e equilbrio catastrfico). Nessa leitura, seria precisamente esse equilbrio entre os campos beligerantes que projetaria o Estado
193 MARX, K. La guerra civil em Francia. Op. cit., p. 61-62. Traduo nossa. Grifos nossos. 84
acima da sociedade, dada a impossibilidade das classes sociais de levar adiante o exasperado conflito. De um modo geral, a arguta interpretao de Marx acerca do bonapartismo francs se tornaria modelar para as futuras elaboraes sobre o tipo bonapartista de regime poltico. Muitos de seus aspectos arrolados por Marx (ou mesmo a quase totalidade deles) se mostrariam presentes nas futuras interpretaes de conhecidos intelectuais orgnicos do proletariado (com destaque novamente para Engels, Trotsky e Gramsci) sobre as mais variadas aparies do fenmeno bonapartista nos sculos XIX e XX. isso o que veremos a partir de agora
Engels e o bismarckismo alemo
Assim, Bismarck deu o audaz passo do sufrgio universal, ainda que sem Lassalle, ainda que sem seu Lassalle. Ao que parece, depois de certa resistncia o burgus alemo se conformou com isto, pois o bonapartismo a verdadeira religio da burguesia contempornea. Cada vez mais fica claro para mim que a burguesia incapaz de governar diretamente, e por isso ali onde no existe uma oligarquia que em troca de uma boa remunerao (como se faz aqui na Inglaterra) pode-se encarregar de dirigir o Estado e a sociedade no interesse da burguesia, a forma normal a semiditadura bonapartista. Esta defende os interesses materiais essenciais da burguesia at contra sua prpria vontade, mas ao mesmo tempo, no lhe concede acesso ao poder (poltico). Do outro lado, esta mesma ditadura, por sua vez, se v obrigada, contra a sua vontade, a fazer seus os interesses materiais da burguesia. 194
Foi sob o impacto da recente emergncia de um regime bonapartista na Alemanha que ento se unificava, e da ousada instaurao por aquele do sufrgio universal masculino para as eleies do Reichstag (1866), que Engels escreveu a carta a Marx da qual retiramos o fragmento acima. A nosso ver, a sugestiva (porm hiperblica) idia trazida por aquela missiva, que diz ser o bonapartismo a religio da burguesia contempornea (isto , a forma normal de regime poltico burgus), inspirou-se no impressionante fato de que, alm da Frana, outra importante nao europia, a Alemanha na verdade, ainda em seu processo de formao nacional adotava um regime poltico no qual se destacava uma mquina estatal burocrtico-militar que surgia como uma fora independente e localizada acima da sociedade. Afora essa definio um tanto quanto impressionista do bonapartismo, 195 Engels, em termos gerais, abordaria tal fenmeno por uma perspectiva interpretativa muito similar
194 ENGELS, F. Carta de Engels a Marx (13 de abril de 1866) apud BARSOTTI, Paulo. Op. Cit., p. 108. Esta carta pode ser encontrada tambm em MARX, Carlos e ENGELS, Frederico. Correspondencia. Buenos Aires: Cartago, 1973, p. 174. 195 Embora, ao que consta, no tenha sido sequer utilizada outra vez pelo prprio Engels, essa exagerada definio do bonapartismo (religio da burguesia) embasaria, como veremos mais frente, as elaboraes de Poulantzas acerca da estrutural (permanente) autonomia relativa do Estado capitalista face s classes sociais. Do mesmo modo, como tambm veremos, essa noo do bonapartismo como a forma normal de regime poltico adotado pela burguesia contempornea parece estar tambm na base da ampla acepo do conceito 85
elaborada por Marx no caso francs. Se Marx, como expusemos, lanou as bases de uma teoria do bonapartismo a partir de uma inigualvel anlise jornalstica de uma situao histrica concreta, a trama poltica francesa de 1848-185 o que nos obrigou a descrev-la, ainda que resumidamente , Engels, por sua vez, pde aproveitar-se dos subsdios terico- analticos gerados por aquela anlise para interpretar a nova ocorrncia do fenmeno bonapartista, desta vez em terras germnicas: o regime bismarckista alemo. Indubitavelmente, a maior contribuio de Engels para o desenvolvimento de uma teoria do bonapartismo foram suas poucas, mas perspicazes, elaboraes relativas formatao poltica do Segundo Imprio alemo (Segundo Reich), arquitetada pelo chanceler de ferro Otto Von Bismarck. Nessas elaboraes, nas quais as peculiaridades da variante bonapartista alem foram habilmente percebidas e destacadas, Engels sistematizou e desenvolveu um conjunto de idias sobre o bonapartismo que Marx havia proposto em seus escritos sobre a Frana, sobretudo em O 18 brumrio. 196 Ser sobre essas fecundas e esparsas elaboraes de Engels sobre o bismarckismo que nos centraremos nas poucas pginas que restam para encerrar este primeiro captulo (dedicado s origens do conceito de bonapartismo).
Bonapartismo: as revolues de cima para baixo Antes, contudo, de passarmos a essa breve apresentao do bismarckismo tal como foi interpretado por Engels, consideramos interessante observar rapidamente outras referncias do autor ao fenmeno bonapartista, tanto algumas mais especficas, dedicadas ao clssico caso francs, quanto outras de cunho mais geral, referentes prpria natureza do bonapartismo. 197
Em sua conhecida Introduo de 1895 a As lutas de classes na Frana, Engels, em um pequeno pargrafo, captou a essncia da conjuntura poltica que desembocara no golpe de Estado de Lus Bonaparte: a existncia de uma profunda diviso poltica da burguesia em um momento no qual o proletariado aparecia como uma ameaa, ainda que potencial, ordem social (em termos gramscianos, uma verdadeira crise de hegemonia). Engels consideraria que o desfecho golpista daquela conturbada crise social e poltica aberta pela Revoluo de Fevereiro de 1848 teria marcado o encerramento das revolues democrtico-burguesas na Europa; consequentemente, se teria inaugurado na velha Europa a etapa das modernizaes
proposta por Domenico Losurdo (ainda que o filsofo italiano, diferentemente de Poulantzas, no se refira s palavras de Engels em questo). 196 Uma interessante discusso acerca dos escritos de Engels (e Marx) sobre o bismarckismo pode ser encontrada em DRAPER, Hall. Karl Marxs theory of revolucion (volume I: State and bureaucracy. Chapter 15: Bonapartism:The Bismarckian extension). Op. cit. 197 O supracitado artigo de Paulo Barsotti, de grande valia para nossa pesquisa, se constitui em um bem elaborado apanhado crtico das esparsas elaboraes de Engels sobre o fenmeno bonapartista. 86
capitalistas dirigidas pelo Estado as quais, como logo veremos, tenderiam a assumir formas bonapartistas:
Uma burguesia dividida em duas fraes monarco-dinsticas, mas que solicitava sobretudo calma e segurana para seus negcios financeiros e diante dela um proletariado vencido, verdade, mas sempre ameaador e em cuja volta agrupavam-se, cada vez mais, pequenos burgueses e camponeses; a ameaa contnua de uma explorao violenta que, apesar de tudo, no oferecia nenhuma perspectiva de soluo definitiva, tal era a situao que se podia considerar como feita especialmente para o golpe de Estado do terceiro pretendente, o pretendente pseudodemocrata Lus Bonaparte. Servindo-se do exrcito, este ps termo, a 2 de dezembro de 1851, quela situao tensa, assegurando Europa a tranqilidade interior mas presenteando-a, por outro lado, como um novo perodo de guerras. Encerrava-se momentaneamente o perodo das revolues de baixo pra cima; sucedeu-lhe um perodo das revolues de cima para baixo. 198
Bem antes, em um artigo escrito por volta de 1865 e intitulado A questo militar prussiana e o partido operrio alemo (que tinha como objeto central o regime bismarckista que ento se erigia no antigo Imprio Prussiano), Engels j havia oferecido uma ilustrativa sntese do bonapartismo francs, destacando vrios de seus aspectos constituintes, entre os quais, o forte peso poltico da burocracia, a poltica estatal de cooptao de uma parcela do proletariado, o cerceamento das liberdades democrticas e, naturalmente, a existncia de um poder governamental alocado acima das classes sociais antagnicas da sociedade moderna. Referindo-se configurao poltica do Segundo Imprio francs, afirmara:
A forma natural desta dominao era naturalmente o despotismo militar e o seu chefe natural Lus Napoleo, seu herdeiro legtimo. O bonapartismo se coloca tanto acima dos operrios quanto dos capitalistas, impedindo o choque entre eles. Dito de outro modo, defende a burguesia contra os ataques violentos dos operrios, favorece as pequenas escaramuas pacficas entre as duas classes, sempre tirando tanto de uma quanto da outra qualquer espcie de poder poltico. Nenhum direito de associao, nenhum direito de reunio, nada de liberdade de imprensa. O sufrgio universal, sob presso da burocracia, torna impossvel qualquer eleio da oposio; e um regime policial jamais atingido anteriormente, inclusive na Frana com tudo que possui de policial. Alis, uma parte da burguesia, assim como dos operrios, est diretamente comprada. Uma pelos roubos colossais do crdito, atravs dos quais o dinheiro dos pequenos capitalistas jogado no bolso dos grandes; a outra pelas grandes obras nacionais constituindo-se num proletariado artificial e imperial submetido ao governo, que se desenvolve nas grandes cidades ao lado do proletariado real e independente. Enfim, o bonapartismo ilude a coragem nacional atravs de guerras aparentemente hericas, mas que na realidade so realizadas com a autorizao da Europa contra o bode expiatrio comum no momento e em condies tais que a vitria est de antemo assegurada. 199 O principal resultado que um regime assim pode trazer aos operrios e burguesia que eles descansem da luta e que a indstria se desenvolva fortemente (se as condies se adequarem), e portanto os elementos de uma nova luta, mais violenta se desenvolvem, at que estoure assim que a necessidade do repouso desparea. O cmulo da estupidez seria esperar mais para os operrios de um regime que existe exatamente para t-los presos diante da burguesia... 200
198 ENGELS, Friedrich. Introduo (de 1895) a MARX. K. As lutas de classes na Frana (1848-1850). Op. cit., p. 99-100. Muito possivelmente, acreditamos, foi nesta conhecida e polmica Introduo de Engels que Gramsci buscou inspirao para suas formulaes tericas para hegemonia e, sobretudo, guerra de posio. 199 Provavelmente, Engels se refere aqui ao envio de tropas francesas China (1857-1860), ento em processo de partilha pelas potncias europias. Sob Napoleo III, a Frana, entre outros conflitos internacionais, participou tambm das guerras da Crimia (1854-1856), da invaso do Mxico (1862-1867) e da guerra franco-prussiana (1870-1871), a qual resultaria no fim do regime bonapartista e do Segundo Imprio (1852-1870). 200 ENGELS, F. A questo militar prussiana e o partido operrio alemo apud BARSOTTI, Paulo. Op. cit., p. 101-102. 87
Alm dos elementos presentes nesse trecho os quais j havamos antecipado acima, chamam a ateno, particularmente, dois outros: a formao de um proletariado artificial pelo regime bonapartista francs e a idia de um descanso da luta de classes sob a vigncia do bonapartismo. Quanto ao primeiro, afora uma viso talvez um pouco idealizada (positivada) do proletariado (o proletariado real e independente), consideramos que ele lana luz sobre um trao caracterstico do tipo bonapartista de regime poltico, j visto por ns anteriormente: a particular relao estabelecida pelo Estado com as massas populares. Ao impulsionar inmeras obras pblicas, que proporcionavam trabalho para os desempregados, e atendendo a pequenas demandas do proletariado, o bonapartismo francs lograva angariar o apoio poltico de uma parcela massiva dos setores sociais explorados. Conforme destacaremos mais ao final, este trao bonapartista, segundo o prprio Engels, se manifestaria tambm na Alemanha bismarckista. No que tange ao segundo elemento, pode-se dizer que Engels apreendeu o real movimento que se processava nas camadas mais profundas da sociedade francesa sob o comando arbitral de Lus Bonaparte. A percepo dialtica de uma luta de classes que, mesmo amainada temporariamente sob o bonapartismo, continuava a se desenvolver constante e silenciosamente at o momento em que irromperia novamente no tardou a se mostrar acertada: em 1871, o movimento operrio, que j vinha se reorganizando na dcada de 1860, abalaria de forma inaudita os alicerces da sociedade burguesa com o advento da Comuna de Paris, fundada sob os destroos do Segundo Imprio. Essa luta de classes congelada ou imobilizada em equilbrio, para lembrarmos as palavras de Draper (que se referiu sociedade civil sob o bonapartismo como um sociedade engessada 201 ) , como o prprio Engels assinalou ao final do ltimo trecho citado, se constituiria na base poltica para o desenvolvimento industrial capitalista da Frana. Essa relao causal entre a formatao poltica bonapartista e o progresso do capitalismo francs seria, como j pudemos observar, apontada de uma maneira mais contundente por Marx em sua A guerra civil na Frana (1871). Alis, seria justamente em uma introduo de 1891 para a terceira edio alem desta obra de Marx (portanto, vinte anos depois de sua primeira publicao) que Engels exporia novamente tal nexo entre poder bonapartista e crescimento capitalista, retomando tambm caracterizao feita poca por Marx do regime francs como expresso poltica de um momento de equilbrio entre as classes fundamentais da sociedade moderna:
201 Bonapartism: society in a plaster cast (cuja traduo mais adequada talvez seja a sociedade em um molde de gesso). DRAPER, Hal. Op. cit., p. 407. 88
Se o proletariado no estava ainda em condies de governar a Frana, a burguesia j no podia seguir governando-a. Pelo menos naquele momento, em que sua maioria era ainda de tendncias monrquicas e se encontrava dividida em trs partidos dinsticos [orleanistas, legitimistas e bonapartistas] e o quarto republicano. Suas discrdias intestinas permitiram ao aventureiro Lus Bonaparte apoderar-se de todos os postos de mando exrcito, polcia, aparato administrativo e fazer saltar, a 2 de dezembro de 1851, o ltimo baluarte da sociedade burguesa: a Assemblia Nacional. Assim comeou o Segundo Imprio, a explorao da Frana por uma quadrilha de aventureiros polticos e financeiros, mas tambm, ao mesmo tempo, um desenvolvimento industrial como jamais teria sido possvel conceber-se sob o sistema mesquinho e pusilnime de Lus Felipe, no qual a dominao exclusiva se encontrava em mos de um pequeno setor da grande burguesia. Lus Bonaparte retirou dos capitalistas o poder poltico com o pretexto de lhes defender, de defender os burgueses contra os operrios, e, por outro lado, de defender os operrios contra a burguesia; mas, ao invs disso, seu regime estimulou a especulao e as atividades industriais: em uma palavra, o auge e o enriquecimento de toda a burguesia em propores at ento desconhecidas. Certo que foram ainda maiores as propores em que se desenvolveram a corrupo e o roubo em massa, que pululavam em torno da corte imperial e retiravam bons dividendos deste enriquecimento. 202
A observao conjunta dos bonapartismos existentes nos dois lados do Reno possibilitou a Engels, abstraindo os traos comuns a ambos, forjar uma definio conceitual que extrapolasse uma experincia concreta em particular. No supracitado artigo A questo militar prussiana..., aproximando o Segundo Reich alemo do Segundo Imprio francs, apresentou uma interpretao do fenmeno bonapartista que, embora fundamentalmente baseada na situao histrica concreta analisada por Marx em O 18 brumrio, poderia ser extensiva experincia alem em curso. O bonapartismo era tomado, assim, como a forma necessria de Estado num pas onde a classe operria, ainda que tenha atingido um alto nvel de desenvolvimento nas cidades, mas numericamente inferior aos pequenos camponeses no campo, foi vencida num grande combate revolucionrio pela classe dos capitalistas, a pequena-burguesia e o exrcito. 203
Bonapartismo: uma forma excepcional de Estado Uma elaborao ainda mais genrica de Engels sobre o bonapartismo embora, como se pode facilmente notar, haja sempre aspectos gerais do fenmeno contidos nas anlises de cada bonapartismo especfico, como a do caso francs possvel de ser encontrada, por exemplo, em sua conhecida obra antropolgica A origem da famlia, da propriedade e do Estado. Num didtico pargrafo em que concebe o Estado, desde sua longnqua apario histrica at a modernidade capitalista, como um instrumento de dominao poltica controlado diretamente pela classe economicamente dominante, Engels refere-se ao absolutismo e ao bonapartismo como excees a essa paradigmtica definio conceitual o que, alis, est na base de nossa compreenso do bonapartismo como uma forma excepcional (e no normal) de regime poltico assumido pelo Estado (burgus):
202 ENGELS, F. Introduo (de 1891) a MARX, K. La guerra civil em Francia. Op. cit., p. 8-9. 203 ENGELS, F. A questo militar prussiana e o partido operrio alemo apud BARSOTTI, Paulo. Op. cit., p. 101. 89
Como o Estado nasceu da necessidade de conter o antagonismo das classes, e como, ao mesmo tempo, nasceu no seio do conflito entre elas, , por regra geral, o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante, classe que, por intermdio dele, se converte tambm em classe politicamente dominante e adquire novos meios para a represso e explorao da classe oprimida. Assim, o Estado antigo foi, sobretudo, o Estado dos senhores de escravos para manter os escravos subjugados; o Estado feudal foi o rgo de que se valeu a nobreza para manter a sujeio dos servos e camponeses dependentes, e o Estado moderno representativo o instrumento de que se serve o capital para explorar o trabalho assalariado. Entretanto, por exceo, h perodos em que as lutas de classes se equilibram de tal modo que o Poder do Estado, como mediador aparente, adquire certa independncia momentnea em face das classes. Encontrava-se nessa situao a monarquia absoluta dos sculos XVII e XVIII, que controlava a balana entre a nobreza e os cidados; do mesmo modo, o bonapartismo do primeiro imprio francs [Napoleo I], e principalmente do segundo, que jogava com os proletrios contra a burguesia e com esta contra aqueles. O mais recente caso desse gnero, em que os opressores e oprimidos aparecem igualmente ridculos, o do novo imprio alemo da nao bismarckiana: aqui, capitalistas e trabalhadores so postos na balana uns contra os outros e so igualmente ludibriados para proveito exclusivo dos degenerados junkers prussianos. 204
Aproveitando-nos das ltimas palavras acima, e passando, finalmente, s caracterizaes de Engels sobre o ( poca) mais recente caso do gnero bonapartista, imprescindvel lembrarmos que, ao contrrio da experincia francesa, o bonapartismo bismarckista foi fruto poltico direto da luta de classes em uma formao social tardia do ponto de vista do capitalismo industrial. Comparada a naes como a Inglaterra e a prpria Frana, a Alemanha de ento podia ser considerada como uma nao atrasada 205
Atraso e bonapartismo: o caso alemo Na primeira metade do sculo XIX, o chamado atraso alemo expressava-se, sobretudo, na vigncia quase plena das instituies do antigo regime, o que impunha pesados bices ao avano das relaes sociais de produo capitalistas, que, justamente por isto, desenvolviam-se lentamente. O processo de industrializao, apesar de j significativamente relevante na estrutura scio-econmica da regio, sobretudo na Prssia, encontrava-se ainda bem aqum do que nvel atingido na Frana, o qual, por sua vez, era ainda bem inferior ao que se verificava na pioneirssima Inglaterra. A partir da dcada de 1850, entretanto, a modernizao industrial ganharia flego e se desenvolveriam o comrcio, as linhas frreas, a navegao transocenica e os telgrafos. A burguesia germnica, embora visse seu peso social e econmico crescer gradativamente, encontrava-se afastada do poder poltico, ainda em posse exclusiva de uma burocracia absolutista que, com o j mencionado grau de relativa independncia sobre as classes sociais, governava centralmente para os interesses da aristocracia proprietria de terras (junkers). Assim, conquanto tivesse certas demandas
204 ENGELS, F. A origem da famlia, da propriedade e do Estado. Lisboa: Editorial Presena, s. d., p. 227-228. 205 Avisamos aos leitores que a noo de atraso histrico ser melhor exposta por ns no captulo seguinte, onde sero abordados os escritos de Len Trotsky acerca das naes que retardatariamente desenvolveram sua modernizao capitalista industrial. 90
atendidas pela casta dirigente, a burguesia no era, de modo algum, uma classe politicamente dominante. As revolues francesas de 1848 (fevereiro e junho) e suas correlatas europias que vieram em seu rastro, em especial a ocorrida em Berlim, ao trazerem cena histrica o proletariado como uma fora poltica independente, eliminariam de vez qualquer possibilidade de que a burguesia alem viesse a liderar uma revoluo democrtico- burguesa na regio. Acovardados, os industriais e grandes comerciantes, seguidos logo depois pela pequena-burguesia proprietria, abandonariam sem pestanejar o j iniciado processo revolucionrio, atirando-se nos braos de seus inimigos junkers visando conteno do avano proletrio. O pacto pelo alto com a velha classe nobilirquica, que se consubstanciava em um compromisso elitista de cunho antipopular, passou a ser, definitivamente, a opo poltica de uma burguesia que, por ter se desenvolvido tardiamente, deparou-se com seu antagonista social antes mesmo que tivesse ascendido ao poder poltico. Com efeito, o caminho de acesso da burguesia ao controle do Estado no mais poderia ser um caminho revolucionrio. Diferentemente de sua irm francesa, a burguesia alem tornou-se contra-revolucionria sem que antes tivesse desempenhado qualquer papel revolucionrio, sem que antes tivesse efetivado qualquer revoluo democrtica:
A desgraa da burguesia alem consiste no fato de, seguindo o costume favorito alemo, ter chegado demasiado tarde. O seu florescimento coincidiu com o perodo em que a burguesia dos outros pases da Europa ocidental se encontra j em declnio. Na Inglaterra, a burguesia s pde levar o seu verdadeiro representante Bright ao governo ampliando o direito eleitoral, medida cujas conseqncias devem por fim a todo o domnio burgus. Na Frana, onde a burguesia enquanto tal, enquanto classe, s pde dominar dois anos sob a repblica, 1849 e 1850, s conseguiu prolongar a sua existncia social cedendo a sua dominao poltica a Lus Bonaparte e ao exrcito. Dado o extraordinrio desenvolvimento alcanado pelas influncias recprocas entre os trs pases mais avanados da Europa, j completamente impossvel que a burguesia se possa instalar comodamente no poder na Alemanha quando na Inglaterra e na Frana esse poder caiu. A particularidade que distingue a burguesia de todas as outras classes dominantes que a precederam consiste precisamente no fato de no seu desenvolvimento existir um ponto de mudana, depois do qual todo o aumento dos seus meio de poder, e portanto dos seus capitais em primeiro lugar, apenas contribui para torn-la cada vez mais incapaz de exercer o seu domnio poltico. Atrs da grande burguesia est o proletariado. medida que a burguesia desenvolve a sua indstria, o seu comrcio e os seus meios de comunicao, ela engendra simultaneamente o proletariado. E ao atingir um determinado momento, que no o mesmo em todo o lado nem sequer obrigatrio para uma determinada fase do desenvolvimento, a burguesia acaba por dar-se conta de que o seu acompanhante inseparvel, o proletariado, comea a ultrapass-la. A partir desse momento, perde a sua capacidade de exercer o domnio poltico em exclusivo, e procura ento os seus aliados, como os quais compartilha o seu domnio, ou a quem, conforme as circunstncias, o cede por completo. Na Alemanha, esse ponto de mudana j tinha chegado para a burguesia em 1848. Se bem que seja certo que ento a burguesia alem no se assustou tanto com o proletariado alemo quanto com o proletariado francs. Os combates de junho de 1848 em Paris ensinaram-lhe aquilo que a esperava. A agitao do proletariado alemo era suficiente para lhe demonstrar que na Alemanha haviam sido lanadas as sementes capazes de dar a mesma colheita. E a partir desse momento ficou partido o fio de ao poltica da burguesia alem. Esta comeou a procurar aliados e a vender-se por qualquer preo; de ento pra c [1874] no avanou um nico passo. 206
206 ENGELS, F. Prefcio segunda edio alem (1870) de ____. As guerras camponesas na Alemanha. (coleo Assim lutam os povos, v. I). So Paulo: Expresso popular, 2008, p. 44-45. 91
A emergncia revolucionria do proletariado no cenrio poltico-social teria obrigado, assim, a revoluo burguesa alem, entendida aqui no sentido da objetivao do moderno capitalismo industrial, a se realizar por uma via no revolucionria. Embora j viesse se processando gradualmente, essa revoluo burguesa s se efetivaria plenamente sob o bonapartismo bismarckista, quando um novo e centralizado aparelho estatal, gozando de autonomia face s classes sociais, dirigiria um acelerado e vultoso processo de industrializao. Completando exitosamente a unificao nacional, Bismarck alaria a recm- formada nao condio de potncia econmica internacional com pretenses imperialistas. Dirigida por uma cpula militar-burocrtica, a revoluo burguesa alem exprimiria, em sua essncia, uma aliana entre a ascendente burguesia industrial e a nobreza latifundiria junker; impulsionada fundamentalmente pelo temor, comum a ambas, do jovem proletariado revolucionrio, essa aliana seria realizada por um Poder Executivo que se postava com relativa independncia face ao conjunto das classes proprietrias, novas e velhas. Uma clere modernizao capitalista industrial que, no entanto, preservaria a antiga estrutura fundiria prussiana, de matriz feudal, alm da forma monrquica (porm no mais absolutista), representada pela figura do Kaiser (dinastia dos Hohenzollern), apareceria como o resultado histrico desse pacto aristocrtico-burgus comandado arbitrariamente pela mo de ferro de Bismarck. 207 Ao levar a cabo essa tardia revoluo burguesa e precisamente devido ao seu carter tardio o bismarckismo seria impingido a executar tambm (e o faria com maestria) a tarefa de incorporar subalternamente esfera pblica o sempre potencialmente perigoso proletariado que, desde 1848, continuava ininterruptamente a crescer numrica e organizativamente. Por comparao clssica experincia jacobino-francesa de revoluo burguesa que, contudo, como bem alertou Thompson, seria mais a exceo do que a regra no processo histrico 208 o processo alemo em questo inspiraria a construo analtica de um modelo de passagem sociedade burguesa que receberia diversas denominaes como via prussiana (Lnin), 209 revoluo sem revoluo, revoluo-restaurao, revoluo
207 Nesse sentido, a Alemanha era o inverso da Frana: chegou mais tarde industrializao, mas com um impulso muito mais forte. Saltou a etapa das longas dcadas da Revoluo Industrial, que s conheceu de forma epidrmica em algumas partes da Saxnia e do Reno. Mas, simetricamente, a democracia surgiu organicamente frgil e sem a vitalidade republicana, ou seja, a necessidade por parte da classe dominante de aparentar um exerccio legtimo do poder, que trs revolues deixaram como herana na Frana. Em uma palavra: Na Alemanha, a democracia-liberal nasceu submetida a uma ameaa bonapartista e limitada por uma vida parlamentar inarticulada e sem substncia, enquanto o Estado se fortalecia sob a gide de da burocracia civil prussiana e a tutela de um exrcito com mentalidade imperialista e equipado com os mais modernos armamentos. (ARCARY, Valrio. Kautsky e as origens histricas do centrismo na esquerda in Outubro, n. 7, 2002, p. 83). 208 THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses in ____. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Unicamp, 2001. 209 LNIN, V. O programa agrrio da social-democracia russa na primeira revoluo russa (1905-1907). So Paulo: Livraria Editora Cincias Humanas, 1980. 92
passiva (Gramsci), 210 revoluo pelo alto e modernizao conservadora (Barrington Moore Jr.) 211 Do mesmo modo, a transio alem ao capitalismo industrial forneceria diversos elementos para a elaborao trotskista da lei do desenvolvimento desigual e combinado, sobre a qual versar uma significativa parte do prximo captulo.
Bonapartismo: um caminho poltico para a modernizao retardatria Na apreenso de Engels, o bismarckismo derivaria, portanto, de um complexo quadro social no qual trs protagonistas se fariam presentes, relacionando-se dialeticamente: a antiga aristocracia fundiria, a nova burguesia industrial e o recente proletariado fabril. Em um trabalho voltado para a questo habitacional prussiana, Engels tomaria a variante bonapartista de Bismarck como um corolrio poltico do carter tardio da formao social alem. Simultaneamente, a mquina estatal bismarckista se equilibraria entre a nobreza junker e a burguesia, e entre esta ltima e a pujante classe trabalhadora:
Na realidade, tal como existe na Alemanha, o Estado produto necessrio da infra-estrutura social que o determina. Na Prssia e, hoje, a Prssia um bom exemplo , ao lado da nobreza ainda poderosa, constituda por grandes proprietrios fundirios, existe uma burguesia relativamente jovem e particularmente covarde, que, at agora, no conquistou o poder poltico nem diretamente, como na Frana, nem mais ou menos indiretamente, como na Inglaterra. Ao lado dessas duas classes, multiplica- se rapidamente e se organiza progressivamente um proletariado que, em termos de intelectualismo, muito desenvolvido. Encontramos, pois, aqui, um duplo equilbrio: o equilbrio entre a nobreza fundiria e a burguesia, condio essencial da velha monarquia absoluta; e o equilbrio entre a burguesia e o proletariado, condio essencial do bonapartismo moderno. Mas, tanto na velha monarquia absoluta como na moderna monarquia bonapartista, o verdadeiro poder governamental est nas mos de uma casta especial de oficiais e de funcionrios que, na Prssia, recrutada, em parte, nas suas prprias fileiras; em parte na pequena nobreza de morgadio; mais raramente, na grande nobreza, e, em menor parte, na burguesia. A autonomia dessa casta, que parece estar fora e, por assim dizer, acima da sociedade, confere ao Estado a aparncia de autonomia em relao sociedade. 212
A partir da anlise de Engels em tela, pode-se inferir que o bonapartismo alemo, distintamente de seu antecessor francs, se constituiria em uma forma poltica cuja apario indicaria no s a substituio de um regime poltico (absolutismo) por outro (bonapartista) ambos caracterizados por uma visvel independncia da mquina estatal face sociedade , mas tambm, e fundamentalmente, a transformao de um tipo de Estado (feudal) em outro (burgus). 213 A adio de um novo equilbrio (entre a burguesia e o proletariado) ao outro j existente (entre a nobreza e a burguesia), conformando um duplo equilbrio, talvez tenha
210 GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. Op. cit. volume III (entre outros textos). 211 MOORE Jr., B. As origens sociais da ditadura e da democracia. So Paulo: Martins Fontes, 1983. 212 ENGELS, F. A burguesia e o problema habitacional in ____. Engels. Poltica (orgs. Jos Paulo Netto e Florestan Fernandes). So Paulo: tica, 1981, p. 133. O texto em questo (que pode ser encontrado tambm pelo nome de Como a burguesia resolve o problema da habitao) se constitui na segunda parte da obra Contribuio ao problema habitacional, de autoria do prprio Engels. (MARX, K. e ENGELS, F. Obras escolhidas, volume II. Op. cit.). 213 Endossamos aqui a definio de Perry Anderson do absolutismo como uma forma poltica do Estado feudal tardio europeu. (ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado absolutista. 3 edio. So Paulo: Brasiliense, 1998). 93
sido, se nos pautarmos pelos elementos arrolados por Engels, justamente o meio pelo qual teria se processado essa dupla transformao na Alemanha em formao: da forma de regime poltico e da natureza de classe do Estado. No fragmento transcrito acima possvel notarmos tambm outras no desprezveis diferenas entre o clssico bonapartismo francs e sua variante alem, as quais seriam bem apontadas por Paulo Barsotti em seu interessante artigo sobre Engels e o bonapartismo. 214 Na Frana, a burguesia j havia conquistado o poder poltico direto e o exercido sob a forma exemplar de repblica parlamentar, mas, dividida e temerosa diante do proletariado, teria aberto mo dele para garantir seus interesses materiais. 215 J na Alemanha, a burguesia, que ainda no havia conquistado e exercido sua dominao de classe, teria se mostrado igualmente acovardada com a presena operria e abdicado de suas pretenses de poder, conciliando seus interesses com as foras da velha sociedade como um modo de se afirmar economicamente. 216 Entretanto, segundo Barsotti,
Ambos tem em comum um relativo atraso industrial, mais acentuado no caso alemo que no francs, e sempre surgem aps um perodo de intensificao da luta de classes, onde o proletariado urbano com presena reduzida joga um papel um papel poltico limitado, enquanto o elemento agrrio torna-se politicamente decisivo. No caso clssico, sero os pequenos proprietrios do campo, classe criada pelo tio no processo de afirmao da revoluo burguesa, que levaro o sobrinho ao trono. Na variante prussiana, sero os junkers, os grandes proprietrios rurais, expresso da velha sociedade feudal que gradativamente iro se aburguesando, dando base e sustentao para o estado bismarckiano. 217
Capitalismo tardio e o duplo equilbrio bonapartista Levando em conta os apontamentos acima, supomos que talvez a experincia bonapartista francesa possa se prestar mais adequadamente a comparaes com regimes bonapartistas que tiveram lugar quando a moderna burguesia j se encontrava no comando do poder poltico em seus pases, dado que, como vimos anteriormente em Marx, Lus Bonaparte usurpou o poder que os capitalistas franceses exerciam ento por intermdio da Assemblia Nacional. O bonapartismo francs do Segundo Imprio surgiu, assim, em uma formao social na qual a revoluo burguesa, sobretudo no sentido de implementao do modo de produo capitalista, j havia se realizado, e onde a burguesia, como salientou Barsotti, j detinha as rdeas do poder poltico. Embora um grande salto na industrializao francesa viesse a ser dado sob o regime de Napoleo III, as condies bsicas para a emergncia de uma sociedade urbano-industrial j haviam sido criadas pela primeira Revoluo Francesa, na
214 BARSOTTI, P. Op. cit. 215 Idem, p. 106. 216 Idem. 217 Idem. 94
medida em que esta quebrara o poder poltico aristocrtico e eliminara os entraves ao desenvolvimento das relaes sociais e foras produtivas capitalistas. Lus Bonaparte colocou-se, assim, como um rbitro entre a dividida burguesia francesa e o ameaador proletariado, e no, como teria a necessidade de fazer Bismarck (justamente em funo do atraso alemo), entre a burguesia, o proletariado e a antiga nobreza (que na Frana de 1851 no apresentava seno um carter meramente residual). Evidentemente, o fato de haver melhores condies para se estabelecer uma comparao entre o clssico bonapartismo francs e posteriores experincias bonapartistas ocorridas em naes onde a burguesia j se fazia classe politicamente dominante no impede, de modo algum e aqui se encontra uma das razes de ser do nosso trabalho que muitos dos elementos e aspectos daquele rico processo poltico francs possam ser encontrados, com as devidas particularidades, em outros lugares nos quais os regimes bonapartistas surgiram sem que a revoluo burguesa tivesse antes se realizado, e que, no seu sentido democrtico- burgus, jamais se realizaria. Nestes casos, entretanto, seria o prprio Estado em um regime bonapartista que, dispensando o modelo jacobino e todos os seus inconvenientes traos revolucionrios, levaria a cabo a revoluo burguesa, agora estritamente no sentido de desenvolvimento capitalista industrial (revoluo sem revoluo, revoluo passiva, modernizao conservadora etc.). Aqui, a variante bonapartista alem possivelmente mostre-se mais til analogicamente. Muitos dos traos do bismarckismo parecem ter sido reeditados, com as devidas particularidades (nunca escusado lembrar), por regimes bonapartistas que representaram, eles mesmos, a forma poltica de passagem sociedade capitalista industrial, na qual a moderna burguesia poderia vir depois, dependendo das circunstncias histricas de cada pas, a alcanar diretamente o leme do Estado. A existncia, detectada por Engels, de um duplo equilbrio constitutivo do bonapartismo bismarckista encontraria, pensamos, uma equivalncia em muitos dos bonapartismos surgidos nos pases de capitalismo tardio em fins do sculo XIX, como Itlia, Japo e mesmo a Rssia (j que a velha monarquia absolutista czarista assumiu, a partir de determinado momento, o papel de condutora do processo de industrializao retardatria da atrasada nao). Tambm nestes pases, os aparelhos estatais, responsveis pelas modernizaes conservadoras, elevaram-se acima das antigas e novas classes proprietrias e, no lugar de ambas, estabeleceram, ao seu modo (autoritrio, repressivo e, por vezes, cruento) as relaes como o antagonista social em formao, o proletariado. O duplo equilbrio bismarckista permitiria tambm, a nosso ver, um paralelo com alguns regimes bonapartistas situados em meados do sculo XX nos pases atrasados de natureza colonial/semicolonial. Colocando-se concomitantemente acima das classes 95
dominantes latifundirias (embora no feudais), da dbil burguesia industrial e do jovem e crescente proletariado, aqueles bonapartismos dirigiriam o processo de transformao de suas sociedades agrrio-exportadoras em sociedades urbano-industriais ou seja, dirigiriam suas revolues burguesas. Em funo de seu carter estruturalmente dependente, esses pases de industrializao capitalista ultra-retardatria apresentariam ainda como um componente fundamental de seu complexo tecido social o capital estrangeiro que, subordinando o conjunto das classes proprietrias (porm vinculado mais diretamente aos setores latifundirios, abertamente contrrios a um modelo de industrializao nacional que secundarizasse a agricultura) se constituiria tambm em um dos pilares sobre os quais se apoiariam aqueles regimes bonapartistas perifricos de cunho modernizador. Como ser visto no prximo captulo, os regimes latino-americanos da dcada de 1930 analisados por Trotsky (os bonapartismos sui generis) teriam por base justamente uma dupla dominao imposta sobre os trabalhadores: pelo imperialismo e pela dependente burguesia local (uma camada social controlada pelo capital estrangeiro e ao mesmo tempo oposta aos operrios). 218 Dessa complexa configurao social surgiriam hbridos regimes semibonapartistas que, amparados entre o capital estrangeiro e o capital nacional, o capital estrangeiro e os trabalhadores, buscariam, via industrializao nacional, obter uma maior autonomia face ao centro imperialista. 219
Vale ressalvar, entretanto, que o fato de o bonapartismo ter-se apresentado em certas formaes sociais como a configurao poltica responsvel por suas modernizaes industriais, no significa que ele tenha, tal como no bismarckismo, expresso naquelas a passagem de um tipo de Estado a outro, dado que em muitos pases cuja industrializao s se efetivaria muito tardiamente (como os prprios latino-americanos, por exemplo) nunca havia existido feudalismo e, por conseguinte, nem classe nobilirquica, nem Estado feudal. Essa ressalva nos leva, portanto, a outra, a qual j antecipamos em um parnteses contido no pargrafo acima: a ainda poderosa classe latifundiria que teria se constitudo em uma das bases do duplo equilbrio dos bonapartismos perifricos no era, em absoluto, uma classe de natureza feudal-aristocrtica, conforme muitos autores j demonstraram. Por fim, talvez seja importante esclarecer ainda que a mesma formao social pode vir a apresentar em sua histria regimes bonapartistas localizados antes e depois de sua revoluo burguesa e de sua burguesia ter atingido a condio de classe politicamente dominante. A prpria Alemanha, aqui, talvez seja o exemplo que mais venha a calhar: praticamente quarenta anos depois do fim do governo de Bismarck como chanceler do Segundo Reich (1871-1890), um novo (e bem diferente) regime bonapartista (ao qual j
218 TROTSKY, L. Discusion sobre America Latina. Op. cit., p. 132. Traduo nossa. 219 Idem. 96
fizemos meno na introduo desta parte) surgiria nos anos finais e crticos da Repblica de Weimer (1930-1933) na qual a burguesia, fortalecida por anos de bonapartismo, ensaiara exercer diretamente seu poder poltico sobre a nao. 220
Do absolutismo ao bonapartismo Voltando s elaboraes de Engels sobre o bismarckismo, o terico alemo, tal como Marx fizera em relao ao bonapartismo francs, ressaltou tambm o quo veloz e ingente era o avano das relaes sociais capitalistas na Alemanha sob gesto do Executivo militar- burocrtica encabeada por Bismarck, fato este que acabava por conduzir a um aburguesamento de parte das velhas classes proprietrias. Segundo Engels, o novo regime, que se desenvolvia a partir da decomposio dos vetustos elementos absolutistas, estaria conduzindo a nao (a comear pelos quadros burocrticos dirigentes) em um processo de adaptao lgica mercantil e corrupta que rege toda e qualquer sociedade burguesa:
A forma de Estado que se desenvolveu na Prssia (e, de acordo com o seu modelo, na nova constituio do Imprio alemo) a partir dessas condies sociais contraditrias e como sua conseqncia necessria o pseudoconstitucionalismo essa tanto a forma atual da velha monarquia absoluta em deteriorao quanto da monarquia bonapartista. Na Prssia, esse pseudoconstitucionalismo apenas encobriu, entre1848 e 1866, o lento processo de decomposio da monarquia absoluta e tornou- se o seu veculo. Desde 1866 e, sobretudo, desde 1870, a perturbao social e, depois, a eroso do antigo Estado vo-se processando aos olhos de todos com uma rapidez que se acelera fantasticamente. O rpido desenvolvimento da indstria e, especialmente, a especulao na Bolsa arrastaram todas as classes dirigentes. A corrupo em grande escala, importada da Frana, em 1870, desenvolve-se num ritmo inacreditvel. Strousberg e Pereire [um ento conhecido empreiteiro alemo e um banqueiro bonapartista francs, respectivamente] cortejam-se reciprocamente. Os ministros, os generais, os prncipes e os condes comerciam com aes, apesar dos judeus especuladores mais astutos, e o Estado consagra a igualdade fazendo maciamente bares os especuladores judeus. A nobreza fundiria, que h muito se dedica indstria com suas fbricas de acar de beterraba e suas destilarias de aguardente, abandonou as slidas virtudes do passado e engrossou, com seus nomes, as listas dos diretores de todas as sociedades por aes, sejam elas slidas ou no. A burocracia desdenha cada vez mais o simples recurso aos vales para melhorar os seus vencimentos: abandona o Estado e anda caa de lugares infinitamente melhor remunerados na administrao das empresas industriais e aqueles que ainda permanecem nos seus postos seguem o exemplo dos chefes: especulam com aes, obtm uma participao nas ferrovias etc. H mesmo indcios de que jovens tenentes j metem as suas delicadas mos no jogo da especulao. Numa palavra: a decomposio de todos os elementos do antigo Estado e a passagem da monarquia absoluta para a monarquia bonapartista esto em plena evoluo, e, na prxima grande crise industrial e comercial, cairo por terra no s o atual movimento especulativo, mas tambm o velho Estado prussiano. 221
Nas ltimas linhas acima afora a previso um tanto quanto catastrofista do autor, e que no se confirmaria to cedo chama a ateno novamente a idia da transmutao da monarquia absolutista em monarquia bonapartista como um elemento determinante da (e determinado pela) revoluo burguesa alem. Em um prefcio de 1874 ao seu livro As
220 Este novo e complicado bonapartismo alemo (Trotsky) ser abordado por ns no prximo captulo. 221 ENGELS, F. A burguesia e o problema habitacional. Op. cit., p. 133-134. 97
guerras camponesas na Alemanha (escrito em 1850), Engels apresentaria novamente essa interpretao do processo histrico alemo, ento ainda em curso:
A premissa fundamental da monarquia, que ia se decompondo lentamente desde 1840, era a luta entre nobreza e a burguesia, luta essa em que a monarquia mantinha o equilbrio. Mas, a partir do momento em que j no se tratava de defender a nobreza da presso da burguesia, mas sim de proteger todas as classes possuidoras da presso da classe operria, a velha monarquia absoluta teve de transformar-se completamente em monarquia bonapartista, a forma de Estado especialmente elaborada para esse fim. Noutro lugar (Contribuio ao problema da habitao, 2 parte), 222 j examinei essa passagem da Prssia para o bonapartismo, se bem que ali tenha podido deixar sem o devido relevo um ponto que aqui muito especial, a saber, que essa passagem foi o maior avano feito pela Prssia desde 1848. At a tinha ficado parte do desenvolvimento moderno. A Prssia continuava a ser um Estado semifeudal, enquanto o bonapartismo apesar de tudo uma forma moderna de Estado que pressupe a eliminao do feudalismo. A Prssia deve, portanto, decidir-se a terminar com os seus numerosos vestgios de feudalismo e a sacrificar os seus junkers enquanto tais. Tudo isso vai sendo feito, naturalmente, da maneira mais suave e ao compasso da melodia preferida: Immer langsam voram (Sempre em frente, sem pressa latim) [...] Desse modo, correspondeu Prssia o destino peculiar de culminar nos finais deste sculo [XIX], e sob a forma agradvel do bonapartismo, a sua revoluo burguesa que se iniciou em 1808- 1813 e que deu um passo a frente em 1848. E se tudo correr bem, se o mundo ficar quieto e tranqilo e ns chegarmos a velhos, talvez em 1900 vejamos o governo prussiano acabar realmente com todas as instituies feudais e a Prssia alcanar finalmente a situao em que se encontrava a Frana em 1792.
A descrio feita por Engels dos caminhos prprios seguidos pela revoluo burguesa na Alemanha expressiva da perspectiva histrica que vertebrou as anlises do autor sobre o fenmeno bismarckista. Em uma palavra, o regime do Segundo Reich se constituiria em uma expresso poltica do longo atraso alemo, e estaria justamente na tentativa de sua superao (por meio de um projeto modernizante-conservador) um dos principais objetivos histricos do bonapartismo de Bismarck. De um modo semelhante, como dissemos h pouco, outras formaes tardias, como a italiana e a japonesa, buscariam realizar suas revolues burguesas nas ltimas dcadas do sculo XIX tambm por meio de regimes polticos autoritrios e centralizados embora, vale ressalvar, o xito econmico alcanado por Itlia e Japo no viesse a ser to formidvel como o obtido pela Alemanha bismarckista. Tambm nessas outras formaes sociais, um novo e encorpado aparelho estatal, de traos bonapartistas, seria o principal executor da tarefa de modernizar capitalisticamente a nao, conforme analisaremos no captulo seguinte (quando nos detivermos nas formulaes tericas de Gramsci sobre revoluo passiva e cesarismo). 223
Bonapartismo, corporativismo e massas populares Um ltimo elemento do bonapartismo alemo apontado por Engels que gostaramos de realar aqui a relao estabelecida pela casta burocrtica dirigente com as perigosas
222 O mesmo texto j trabalhado por ns (ENGELS, F. A burguesia e o problema habitacional. Op. cit.) 223 Formulaes tericas essas que, embora extradas fundamentalmente do caso italiano, tiveram certamente no bismarckismo outra importante fonte de inspirao histrica.
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massas populares. Por um vis crtico, Engels destacaria a estratgia adotada pelo novo regime para lidar com a chamada questo social, a qual j havia sido objeto de polticas pblicas no governo de Lus Bonaparte:
E esse Estado, cujos elementos no burgueses se aburguesam a cada dia, resolveria a questo social ou, ao menos, a crise habitacional? claro que no alis, a verdade precisamente o inverso. Em todas as questes econmicas, o Estado prussiano cai progressivamente nas mos da burguesia e se, desde 1866, a legislao nesse pormenor ainda no se adequou inteiramente burguesia, de quem a culpa? Da prpria burguesia, que antes de tudo demasiado covarde pra defender com energia as suas reivindicaes e, em seguida, protesta contra qualquer concesso que, ao mesmo tempo, fornea novas armas a um proletariado ameaador. E se o poder de Estado (quer dizer: Bismarck) tenta constituir um proletariado seu, ligado a seu aparelho, isso no passa de um miservel estratagema bonapartista, necessrio e j conhecido que, em relao aos trabalhadores, s obriga esse Estado a meia dzia de slogans bem intencionados ou, no mximo, a ajudas s sociedades construtoras moda de Lus Bonaparte. 224
Mesmo no resolvendo os problemas fundamentais do proletariado alemo (conforme afirmou peremptoriamente Engels no fragmento acima), o bismarckismo, no melhor estilo bonapartista, levaria a cabo (como j havamos adiantado) o j ento indispensvel processo de incorporao controlada da classe trabalhadora ao novo ordenamento scio-poltico da nao unificada. Tal como ocorrera no Segundo Imprio francs, o novo regime alemo, lanando mo de prticas assistencialistas e promovendo obras pblicas, procurou criar, como assinalou Engels, um proletariado seu (um proletariado artificial), o qual poderia lhe servir de importante sustentculo social, provendo-lhe legitimidade poltica. Habilmente, Bismarck, realizou essa complicada empresa de incluso popular de um modo ainda mais substantivo e aperfeioado do que o fizera seu congnere francs, engendrando uma arquitetura institucional de raiz corporativista que reconhecia direitos sociais classe trabalhadora muitos dos quais, alis, constavam na plataforma programtica da perseguida social-democracia alem medida que extirpava sua independncia poltica. As leis anti- socialistas (1878) e a criao da Previdncia Social (1881) talvez sejam os melhores exemplos do binmio represso-reformas que caracterizaria a poltica de massas bismarckista como, alis, a de muitos outros regimes bonapartistas, a comear, como j vimos, pelo do prprio Napoleo III. Cabe ressaltar, ainda, que o mtodo bismarckista de incorporao subalterna das massas expunha, por si mesmo, a relativa autonomia da qual gozava a cpula burocrtico- militar do regime diante das foras sociais envolvidas no processo de modernizao conservadora do pas. Nas palavras de Engels transcritas acima, pode-se encontrar a idia de que o poder de Estado (quer dizer: Bismarck) possua uma significativa capacidade de movimentao poltica prpria, o que lhe permitia, entre outras aes governamentais
224 ENGELS, F. A burguesia e o problema habitacional. Op. cit., p. 134. 99
relativamente independentes, realizar concesses ao proletariado s quais a burguesia se opunha frontalmente. J vimos que, ainda segundo Engels, o bonapartismo pode vir a estimular pequenas escaramuas pacficas entre as duas classes com a finalidade de sobrepor-se politicamente a ambas, com um rbitro. Foi talvez seguindo essa trilha analtica que Trotsky, como veremos no captulo seguinte, se referiu ao fato de que certos bonapartismos sui generis latino-americanos praticavam uma poltica de manobra como o proletariado, chegando inclusive a fazer-lhe concesses, ganhando deste modo a possibilidade de dispor de certa liberdade em relao aos capitalistas estrangeiros. 225
Por fim, guia de concluso destas linhas dedicadas a Engels, consideramos apropriado reproduzir em parte uma espcie de sntese do fenmeno bonapartista feita por Paulo Barsotti a partir das elaboraes do pensador alemo. Muitos dos aspectos e elementos nela presentes reaparecero ao longo das prximas pginas deste trabalho:
Regime ps-parlamentar, o bonapartismo se ergue como instrumento de segurana e proteo do status quo na ausncia de consenso produzida pelo dilaceramento das diversas fraes da classe dominante na disputa de seus interesses mercantis, momento de risco para a ordem e oportunidade para o questionamento das classes dominadas. Na defesa de seu interesse de classe, a burguesia autolimita seu poder poltico parlamentar para fortalecer o executivo que amplia e aperfeioa cada vez mais sua mquina burocrtico-militar direcionada represso das classes trabalhadoras e revoluo social [...] O bonapartismo funciona como elo de ligao e ponto de convergncia de todas as diferentes fraes burguesas que, aps a renncia circunstancial ao exerccio direto de sua dominao, abrem mo de seu manto democrtico parlamentar concentrando todo o poder poltico no executivo, que subordina ou manipula o poder legislativo e judicirio. Relegado a uma instituio ou a um grupo especfico chefiado por um indivduo que representa o papel de benfeitor de todas as classes, o estado bonapartista torna-se rbitro e administrador absoluto das contendas sociais, assumindo ora a forma expressamente ditatorial, ora semiditatorial, sempre assegurando e protegendo o regime de apropriao social. Esse regime ps-parlamentar, desptico e autocrtico, que se movimenta com lances de ataque e defesa, tem a sua existncia determinada enquanto cumprir com eficcia sua misso de instrumento de conteno da luta de classes e de consolidao, conservao e expanso da classe dominante. No momento em que a ordem estiver firmemente consolidada, a classe dominante pode dispensar seus prstimos e encontrar outra forma de estado compatvel com o momento. Quando no puder mais reprimir e sufocar as contradies sociais latentes, estas, acirradas, explodem e novamente a luta poltica e a revoluo social retomam a cena histrica. 226
225 TROTSKY, L. La industria nacionalizada. Op. cit., p.163-164. Traduo nossa. 226 BARSOTTI, P. Op. cit. Grifos do autor. 100
Captulo II
As perspectivas de dois revolucionrios do sculo XX: Trotsky e Gramsci
101
Len Trotsky e os vrios bonapartismos
Entendemos por bonapartismo o regime no qual a classe economicamente dominante, ainda que conte com os meios necessrios para governar com mtodos democrticos, se v obrigada a tolerar para preservar sua propriedade a dominao incontrolada do governo por um aparato militar e policial, por um salvador coroado. Esse tipo de situao se cria quando as contradies de classe se tornam particularmente agudas; o objetivo do bonapartismo prevenir as exploses. A sociedade burguesa passou mais de uma vez por uma poca assim, mas eram, por assim dizer, somente ensaios. A decadncia atual do capitalismo no somente retirou definitivamente toda base de apoio democracia, como tambm revelou que o velho bonapartismo se mostra totalmente inadequado: o fascismo o substituiu. Assim, como ponte entre a democracia e o fascismo (e em 1917, na Rssia, como ponte entre a democracia e o bolchevismo), aparece um regime pessoal que se eleva por cima da democracia e concilia com ambos os bandos, enquanto, ao mesmo tempo, protege os interesses da classe dominante: basta essa definio para que o termo bonapartismo fique totalmente esclarecido. 227
O trecho acima se encontra em um dos muitos textos nos quais a questo do bonapartismo foi observada por Len Trotsky. Tal como os demais tericos do bonapartismo por ns aqui selecionados, Trotsky no chegou a produzir algum trabalho especificamente dedicado natureza do fenmeno bonapartista em si. Entretanto, em funo dos numerosos e sugestivos escritos em que teceu anlises e comentrios sobre as suas mais variadas manifestaes concretas, Trotsky foi, dentre todos os autores marxistas do movimento operrio, aquele que mais prximo chegou da elaborao de uma teoria do bonapartismo propriamente dita. Ao longo das pginas seguintes, buscaremos oferecer aos leitores um apanhado dessa contribuio trotskista ao estudo da temtica, abordando os principais momentos da obra do revolucionrio russo dedicados compreenso dos tipos bonapartistas de regime e de governo que por vezes assumem o controle do Estado capitalista.
Histria e bonapartismos Um dos primeiros destes momentos situa-se nos anos iniciais da dcada de 1930, mais especificamente entre 1930-1932, quando elaborada e publicada sua antolgica A histria da revoluo russa. 228 No captulo intitulado Kerensky e Kornilov (Os elementos do bonapartismo na Revoluo Russa), buscando explicar os motivos do insucesso da alternativa bonapartista no processo revolucionrio russo de fevereiro-Outubro de 1917 (representada potencialmente por aqueles dois personagens), Trotsky produziu uma profcua sntese histrica do fenmeno em questo, comparando suas diferentes aparies na cena poltica europia entre as revolues francesa e russa.
227 TROTSKY. L. Otra vez sobre la cuestin del bonapartismo. El bonapartismo burgus y el bonapartismo sovitico. Op. cit. Traduo nossa. 228 TROTSKY, L. A Histria da revoluo russa. Rio de Janeiro/Guanabara: Saga, 1967, 3 volumes. O primeiro volume intitulado A queda do czarismo, o segundo, A tentativa de contra-revoluo e o terceiro, O triunfo dos soviets. 102
Na perspectiva do historiador bolchevique, o bonapartismo de Napoleo I tivera como principal fonte de sua fora poltica a emergncia histrica da sociedade burguesa, na qual a figura de um rbitro que garantisse, pelo sabre, as conquistas da revoluo (aos grandes burgueses a possibilidade de ganhar lucros, aos camponeses a posse de seus lotes, aos filhos dos camponeses e aos miserveis a possibilidade de pilhagens durante a guerra) 229 se fez politicamente necessria. Nesse momento, entretanto, ressalta Trotsky, o antagonismo entre burguesia e proletariado ainda estava longe da maturidade. Razes sociais distintas, contudo, explicariam a existncia histrica dos bonapartismos de Lus Bonaparte e de Otto Von Bismarck:
O golpe de Estado de 1848 no deu, nem podia dar, terras aos camponeses: no era uma grande revoluo que substitua um regime social por outro, era um arranjo poltico baseado no mesmo regime social. Napoleo III no trazia, aps si, um exrcito vitorioso. Os dois elementos principais do bonapartismo clssico no existiam. Havia, entretanto, outras condies propcias e no menos eficazes. O proletariado, que em cinqenta anos crescera, demonstrou em junho, sua fora ameaadora: mostrou- se, entretanto, ainda incapaz de tomar o poder. A burguesia temia tanto o proletariado quanto a vitria sangrenta conseguida contra ele. O campons proprietrio amedrontara-se perante a insurreio de Junho e desejava que o Estado o protegesse contra os que queriam levar a termo a repartio das terras. E, enfim, o poderoso progresso industrial, que durara, com certas interrupes, durante duas dezenas de anos, abria burguesia fontes jamais igualadas de enriquecimento. Essas condies foram suficientes para um bonapartismo de epgono. Na poltica de Bismarck que, ele tambm, se elevava acima das classes, houve, conforme mais de uma vez foi demonstrado, traos indubitveis de bonapartismo, se bem que sob aparncias de legitimidade. A estabilidade do regime de Bismarck estava assegurada pelo fato de que, nascido aps uma revoluo impotente, ele dera soluo, ou meia soluo, a um problema nacional to grande quanto a unidade alem, sara vitorioso em trs guerras, e contribura para um poderoso florescimento capitalista. Isso basta para uma dezena de anos. 230
Surgido em outra fase histrica, sob o imperialismo, o kerenskismo no teria gozado da mesma sorte dos bonapartismos anteriores. Localizado em momento de radicalizao da luta de classes entre proletariado e a burguesia, e em uma nao na qual sequer havia conquistas de uma revoluo burguesa a assegurar (como a terra aos camponeses e uma verdadeira unidade nacional, por exemplo), a variante bonapartista russa careceu de bases sociais slidas que lhe permitissem lograr xito:
A desgraa dos russos que posavam como candidatos a Bonaparte [alm de Kerensky, o general Kornilov, segundo Trotsky, tambm se colocou como uma eventual liderana bonapartista em meio crise do regime de dualidade de poderes inaugurado pela Revoluo de Fevereiro] no consistia, absolutamente, no fato de que eles no se pareciam nem com o primeiro Napoleo nem mesmo com Bismarck: a histria sabe fazer uso dos sucedneos. Eles tinham, contra eles, uma grande revoluo que no resolvera os prprios problemas dela nem to pouco esgotara suas foras. O campons que ainda no obtivera terra era forado, pela burguesia, a guerrear em benefcio dos domnios dos nobres. A guerra s trazia derrotas. No havia sequer um florescimento industrial: ao contrrio, a desordem ocasionava, constantemente, novas devastaes. Se o proletariado recuou foi sempre para tornar a cerrar fileiras. A classe camponesa s se punha em movimento para uma derradeira investida contra os senhores. As nacionalidades oprimidas passavam ofensiva contra o despotismo
229 Idem, p. 544 (v. II). 230 Idem. 103
russificador. Em busca da paz, o exrcito unia-se cada vez mais estreitamente aos operrios e ao Partido deles. Embaixo se concentravam enquanto que em cima se enfraqueciam. No havia, pois, equilbrio. A Revoluo permanecia em pleno verdor. E no causa, portanto, admirao o bonapartismo ter-se revelado anmico. 231
Lembrando as comparaes feitas por Marx e (sobretudo) Engels entre o fenmeno do bonapartismo e as antigas monarquias absolutas, Trotsky assinalou que nestas ltimas o papel de rbitro entre os elementos da antiga e da nova sociedade [feudal e burguesa, respectivamente] fora, em certo perodo, realizvel, na medida em que ambos os regimes de explorao [feudalismo e capitalismo] precisavam defender-se dos explorados. 232 Trotsky ressalvou, entretanto, que em se tratando de feudais e servos no poderia haver intermedirio imparcial. Lanando mo do exemplo da duradoura monarquia absolutista russa, Trotsky afirmou que ao conciliar os interesses dos proprietrios nobres e os do jovem capitalismo, a autocracia czarista agia, no que se referia aos camponeses, no como intermediria, mas como procuradora das classes exploradoras. 233 Tambm o bonapartismo, segundo Trotsky, no seria propriamente um rbitro neutro entre o proletariado e a burguesia, e sim expressaria o mais concentrado poder da burguesia exercido sobre o proletariado:
Tendo posto sua bota na nuca do pas, o Bonaparte que veio depois (Lus Bonaparte) s pode executar uma poltica protecionista em favor da propriedade, das rendas e dos lucros. As particularidades do regime no ultrapassaram os meios de proteo. O guarda no se mantm diante da porta, est sentado no pinculo; sua funo, porm, a mesma. A independncia do bonapartismo , em alto grau, s aparncia, simulacros, decoraes: tem por smbolo o manto imperial. Explorando, habilmente, o terror burgus em face dos operrios, Bismarck em todas as suas reformas polticas e sociais conservava-se, invariavelmente, como o procurador das classes possuidoras que ele jamais traiu. Em compensao, a presso crescente do proletariado permitiu-lhe, sem dvida, elevar-se acima do corpo dos junkers, acima dos capitalistas, na qualidade de insubstituvel rbitro burocrtico: s nisso consistia a funo de Bismarck. 234
No mesmo contexto temporal em que, como historiador, reconstitua a saga revolucionria russa e procurava apreender o carter poltico do efmero kerenskismo, Trotsky embrenhou-se tambm na decisiva luta poltica alem daquele conturbado incio dos anos 30 do sculo XX. Fazendo uso novamente da teoria do bonapartismo a qual ele mesmo assim desenvolvia Trotsky caracterizaria com preciso a situao da luta de classes na conturbada Alemanha pr-hitlerista, como veremos a seguir.
O complicado bonapartismo alemo (1930-1933) Alm daqueles poucos trechos contidos em A histria da revoluo russa, extensa obra de carter eminentemente historiogrfico, os outros momentos da produo bibliogrfica
231 Idem, p. 554-555. 232 Idem, p. 545. 233 Idem. 234 Idem. 104
de Trotsky dedicada ao tema do bonapartismo constituem-se em artigos, manifestos e ensaios voltados diretamente para intervenes prticas em determinadas situaes concretas da luta de classes. A primeira e talvez mais importante dessas situaes localizou-se nos anos finais da Repblica de Weimar, marcados pela decadncia do seu regime constitucional e o crescimento exponencial do movimento nacional-socialista. Entre 1930 e 1933, quando este chegaria eleitoralmente ao poder, tiveram lugar subsequentes gabinetes reacionrios sob o governo presidencial do conservador Hindenburg (Brning, von Papen, von Schleicher), os quais, negociando com as representaes burguesas tradicionais, reprimindo policialmente as movimentaes operrias e permitindo relativa liberdade aos bandos hitleristas, aspiravam, ingenuamente, arrestar a ascenso nazista. O vigoroso proletariado alemo, representado por duas massivas organizaes polticas, o Partido Social-Democrata Alemo (SPD) 235 e o Partido Comunista da Alemanha (KPD), 236 mostrava-se um tanto quanto perdido diante do aziago cenrio histrico. Apaziguadores por profisso, os chefes social-democratas consideravam ser crvel que Hindenburg, Papen e cia. pudessem bloquear o caminho do poder aos fascistas, semeando entre suas volumosas bases operrias iluses polticas em relao queles governos. No outro extremo das anlises conjunturais, a direo do KPD, por sua vez, tomava o regime poltico vigente como j dotado de um contedo fascista. 237 Na lgica interpretativa dos estalinistas alemes, praticamente desprovida de nuanas polticas, uma eventual vitria de Hitler no implicaria seno em mais um governo fascista que, tal como os precedentes, visaria salvar o capitalismo em runas no pas. Essa vulgar caracterizao da realidade poltica nacional, na qual todos os gatos eram pardos, conduzia a uma estratgia antifascista absolutamente sectria, que rejeitava a possibilidade de construo de uma frente nica operria com o SPD, definido como um partido social-fascista. 238
235 Sigla alem. 236 Idem. 237 O fascismo j triunfou, o regime de Brning j o fascismo [!!!], bradavam poca os chefes comunistas (TROTSKY, L. O nico caminho (Bonapartismo e fascismo) in ____. Revoluo e contra- revoluo na Alemanha. Op. cit., p. 282). 238 Em 1932, Trotsky assim se referiu viso dos dirigentes do KPD sobre a situao poltica alem de ento: Infelizmente, o Partido Comunista tambm foi completamente surpreendido pelos acontecimentos. A burocracia estalinista no soube prever nada. Hoje, Thaelmann, Remmele [lderes do KPD] e outros falam a cada momento do golpe de estado de 20 de julho [que conduziu von Papen posio de primeiro ministro, no lugar de Brning]. Mas, como? A princpio, afirmavam que o fascismo j era um fato, e s os trotskistas contra- revolucionrios podiam falar nele como uma coisa para o futuro. Agora, verificam que, para passar de Brning a Papen no a Hitler, mas somente a Papen foi necessrio todo um golpe de Estado. Mas o contedo de classe de Severing, Brning e Hitler, ensinavam-nos esses sbios, o mesmo. Ento, de onde vem o golpe de Estado e com que finalidade? A confuso, porm, no se limita a isso. Embora a diferena entre bonapartismo e fascismo esteja agora claramente exposta luz do dia, Thaelmann, Remmele e outros falam do golpe de Estado fascista de 20 de julho. Ao mesmo tempo, pe os operrios em guarda contra o perigo fascista que se aproxima, de um abalo hitlerista, 105
Tal posicionamento poltico, como sabido, tinha suas origens nas elaboraes sobre a conjuntura mundial produzidas pela Internacional Comunista (IC) 239 em seu VI congresso, realizado em 1928. Naquela oportunidade, a direo da IC avaliara que a relao de foras no que dizia respeito s possibilidades de uma revoluo mundial entrava em seu terceiro perodo aps a Revoluo Russa. Segundo seus prognsticos, o terceiro perodo significava a agonia final do capitalismo que inelutavelmente desembocaria em uma nova ascenso revolucionria das massas nessa periodizao, o primeiro perodo [1917-1923] havia sido marcado por uma onda revolucionria mundial seguida Revoluo de Outubro, enquanto que o segundo perodo [1924-1928] fora a fase de estabilizao do capitalismo iniciada quando das derrotas das revolues europias. Dada essa caracterizao, a IC realizou um giro ultra-esquerdista e orientou seus partidos a aplicarem uma poltica de classe contra classe, na qual no se tinha lugar para quaisquer tipos de alianas com partidos pequeno-burgueses e social-democratas. Na lgica de Stlin, a social-democracia, por apresentar uma ideologia pequeno-burguesa, era vista como uma irm gmea do fascismo. 240
Como dirigente e maior expoente da Oposio de Esquerda Internacional, 241 Trotsky ops-se frontalmente s diretrizes da IC, sobretudo no caso alemo, apregoando a necessidade de construo no pas de uma frente nica operria (que incluiria o KPD, SPD e demais organizaes polticas e sindicais do proletariado) com vistas a impedir a vitria nazista. Trotsky afirmava que os estalinistas se equivocavam profundamente ao apresentarem as coisas como se a vitria do fascismo fosse um fato consumado 242 e, que, na realidade,
isto , igualmente fascista. Finalmente, a social-democracia qualificada, agora como antes, de social-fascista. Os acontecimentos que se desenrolam reduzem-se a isso: variedades diferentes do fascismo arrebatam o poder, uma da outra, por meio de golpes de Estado fascistas. No evidente que a teoria estalinista foi criada expressamente para entupir o crebro humano?(TROTSKY, L. O nico caminho (Bonapartismo e fascismo). Op. cit., p. 283-284). 239 Tambm conhecida como Komintern ou III Internacional. 240 Essa guinada ultra-esquerdista da IC em 1928 guardava uma relao com a reorientao da poltica interna sovitica adotada no mesmo ano. Rompendo com a linha bukharinista do socialismo a passos de tartaruga, Stlin abandonara a aliana com os Kulaks (pequenos e grandes burgueses do campo) dando incio ao violento processo de coletivizao forada dos campos. Mencionaremos isso novamente um pouco mais frente, quando discutiremos o etapismo estalinista da Internacional Comunista. Quanto IC ver, entre outras obras, SAGRA, Alicia. Histria das Internacionais Socialistas. So Paulo: Editora Jos Lus e Rosa Sundermann, 2005, e BROU, Pierre. Histria da Internacional Comunista (1919-1943). Traduo de Fernando Ferrone. So Paulo: Sundermann, 2007, 2 volumes. 241 Aps ser expulso do PCUS em fins de 1927, Trotsky empenhou-se na construo da Oposio de Esquerda Internacional (OEI), que objetivava lutar pela direo tanto do PCUS quanto da Internacional Comunista. No entanto, a partir da vitria do nazismo na Alemanha em 1933, favorecida, em grande parte, pela poltica adotada pela Internacional Comunista, Trotsky decretou a falncia do PCUS e da IC e passou a trabalhar para transformar a Oposio de Esquerda Internacional em uma nova organizao de carter mundial que resgatasse os princpios do internacionalismo revolucionrio de Marx, Engels e Lnin. Assim, em 1938, foi fundada a IV Internacional, denominada tambm de Partido Mundial da Revoluo. A respeito da IV Internacional, ver SAGRA, Alicia. Op. cit. e PETIT, Mercedes. Apuntes para una historia del trotskismo. 2 edio. Buenos Aires: Ediciones El Socialista, 2005. 242 TROTSKY, L. O nico caminho (Bonapartismo e fascismo). Op. cit., p. 282. 106
aqueles governos que se sucediam no controle do aparelho estatal encerravam todos, em maior ou menor grau, um contedo bonapartista, e no fascista. A preocupao do revolucionrio russo em chamar as coisas pelo que eram, e no pelo que poderiam vir a ser, nada tinha de escolstica. Distintas caracterizaes analticas da conjuntura implicam, por suposto, em diferentes estratgias e tticas polticas
. 243 Ainda mais nefasto que o bonapartismo policial-militar do qual se via obrigada a lanar mo a assustada burguesia alem, o fascismo significaria, nas previses trotskistas, uma sanguinria catstrofe para os trabalhadores alemes e uma derrota histrica sem igual para o proletariado mundial. Conforme assinalaria mais tarde o prprio Trotsky, o tempo no de modo algum fator secundrio quando se trata de um processo histrico: em poltica, infinitamente mais perigoso confundir o presente e o futuro do que na gramtica. 244
Nos escritos de Trotsky voltados para a interveno nesse decisivo combate da classe trabalhadora alem (elaborados ainda em seu exlio turco), 245 bonapartismo e fascismo so definidos como regimes polticos correspondentes ao declnio histrico do sistema capitalista, do mesmo modo que a democracia burguesa parlamentar e suas reformas sociais so concebidas como subprodutos da sua fase ascendente e do seu florescimento:
Atravs de uma srie de etapas, consolidava a burguesia o seu poder, sob a forma da democracia parlamentar. De novo [como no jacobinismo], nem pacfica, nem voluntariamente. A burguesia manifestou o seu medo de morte do sufrgio universal. Afinal, graas combinao de medidas de violncia com as concesses, da misria com as reformas, conseguiu submeter, nos quadros da democracia formal, no s a antiga e pequena-burguesia, como tambm, em medida considervel, o proletariado, para o que se serviu da nova pequena-burguesia a burocracia operria. Em agosto de 1914, a burguesia imperialista, por meio da democracia parlamentar, pde arrastar guerra dezenas de milhes de operrios e camponeses. 246
243 Quando exigimos, insistentemente, que se diferencie o bonapartismo do fascismo, no o fazemos, em absoluto, por pedantismo terico. Os termos servem para definir conceitos; os conceitos, por sua vez, para distinguir em poltica as foras reais. (TROTSKY, L. O nico caminho (A luta de classes luz da conjuntura) in Revoluo e contra- revoluo na Alemanha. Op. cit., p. 325. Grifos do autor). 244 TROTSKY, L. A revoluo trada. O que e para onde vai a URSS. Op. cit., p. 75. 245 DEUTSCHER, Isaac. Trotski. O profeta banido (1929-1940). 2 edio. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1984. 246 Consideramos possvel encontrar neste pargrafo uma similitude com a noo gramsciana de hegemonia, sobre a qual j nos detivemos rapidamente na introduo deste captulo. Tal como o revolucionrio italiano, Trotsky atenta para um complexo processo social em que a classe dominante, por meio de uma forma de regime poltico (democracia parlamentar) na qual se combinam medidas coercitivas e concesses reformistas, logra obter a adeso/submisso dos setores sociais subalternos (pequena-burguesia e proletariado) para seus projetos polticos estratgicos (no exemplo acima, a guerra imperialista). Assim como j havia antecipado Lnin em sua idia de aristocracia operria (LNIN, V. Imperialismo: fase superior do capitalismo. So Paulo: Global, 1979), Trotsky assinala que o sucesso dessa dominao burguesa de tipo democrtica requer a participao ativa das direes sindicais e polticas da classe trabalhadora, as quais passam por um processo de aburguesamento (nova pequena-burguesia/burocracia operria). De nossa parte, achamos que esse aspecto referente ao papel desempenhado pelas direes polticas do proletariado nos quadros de uma dominao burguesa pode ser perfeitamente compreendido pelo conceito de transformismo, tambm de autoria de Gramsci. (GRAMSCI, Antonio. Cadernos do crcere. Rio de janeiro: civilizao brasileira, 2002, volume V, p.93). Por fim, cabe ressalvar, contudo, que o conceito gramsciano de hegemonia refere-se no apenas aos regimes polticos assumidos pelo Estado capitalista, mas tambm, e sobretudo, ao prprio Estado em sua dimenso integral (ou ampliada) quanto discusso de Gramsci sobre Estado ver, entre outras obras, BUCI-GLUCKSMANN, Cristinne. Gramsci e o Estado. 2 edio. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1980. 107
exatamente com a guerra que se torna clara a decadncia do capitalismo e, sobretudo, de suas formas de dominao democrticas. J no se trata, agora, de novas reformas e escolas, mas de cortar e suprimir as antigas. O domnio poltico da burguesia cai, assim, em contradio no s com as instituies da democracia proletria (sindicatos e partidos polticos), como tambm com a democracia parlamentar, em cujos quadros se formaram as organizaes operrias. Da a campanha contra o marxismo, de um lado, e contra o parlamentarismo democrtico, de outro. 247
[...] A decadncia da sociedade capitalista pe na ordem do dia o bonapartismo, ao lado do fascismo e em ligao com este. 248
Nas elaboraes de Trotsky, a opo, por parte das classes dominantes, por um ou por outro desses dois regimes de crise 249 dependeria, fundamentalmente, do quo prximo se encontra o rebentar ameaador da revoluo proletria momento este que sempre condicionado, entre outros fatores, pela capacidade de organizao, de iniciativa e de direo de cada uma das classes envolvidas na luta. Conquanto fossem ambos regimes polticos burgueses situados na etapa decadente do capitalismo, bonapartismo e fascismo se difeririam quanto s suas estruturas constitutivas em funo de se originarem de (e serem apropriados a) conjunturas politicamente diferentes da luta de classes. Arregimentando, a servio do grande capital, irascveis massas pequeno-burguesas, o fascismo expressaria a declarada e integral guerra civil contra o proletariado. Sem tergiversaes, seu destino seria inexoravelmente o esmagamento de todo e qualquer tipo de organizao genuinamente operria. De conduo pequeno-burguesa, o projeto fascista, por implicar em um turbulento e incerto processo poltico-social, apareceria no cardpio de opes polticas do grande capital apenas como a ltima destas, a ltima cartada a ser lanada somente quando nada mais parece ter condies de obstar a vitria da classe trabalhadora:
A burguesia em declnio incapaz de se manter no poder pelos meios e mtodos do Estado parlamentar que criou. 250 Recorre ao fascismo como arma de autodefesa, pelo menos nos momentos mais crticos. A burguesia, entretanto, no gosta da maneira plebia de resolver os seus problemas. Manteve-se sempre em posio hostil em relao ao jacobinismo, que lavou com sangue o caminho para o desenvolvimento da sociedade burguesa. Os fascistas esto imensamente mais prximos da burguesia em decadncia do que os jacobinos da burguesia ascendente. Entretanto, a burguesia, prudentemente, no v com bons olhos a maneira fascista de resolver os seus problemas, pois os abalos, embora provocados no interesse da sociedade burguesa, so ao mesmo tempo perigosos. Da a contradio entre o fascismo e os partidos burgueses tradicionais. A grande burguesia gosta tanto do fascismo quanto um homem com o maxilar dolorido pode gostar de arrancar um dente [...] E quando a crise comea a adquirir uma intensidade insuportvel que entra em cena um partido especial, cujo objetivo trazer a pequena burguesia a um ponto candente e dirigir o seu dio e o seu desespero contra o proletariado. Esta funo histrica desempenha hoje na
247 TROTSKY, L. O nico caminho (Burguesia, pequena-burguesia e proletariado) in ____. Revoluo e contra-revoluo na Alemanha. Op. cit., p. 289. 248 TROTSKY, L. O bonapartismo alemo. Op. cit., p. 349. 249 Uma discusso sobre os regimes de crise (regimes de exceo), tais como o fascismo, o bonapartismo e a ditadura militar (com nfase no primeiro), pode ser encontrada em POULANTZAS, Nicos. Fascismo e ditadura. Op. cit. (ver, especialmente, Proposies gerais sobre a forma de Estado de exceo, p. 101-123). 250 Levando em conta nossas consideraes iniciais sobre Estado, regime e governos, pode-se dizer que o mais apropriado aqui seria dizer regime parlamentar, e no Estado parlamentar. Entretanto, afora suas escolhas terminolgicas, perceptvel na argumentao em questo que Trotsky refere-se ao regime democrtico-burgus (parlamentar) por vezes assumido pelo Estado burgus. 108
Alemanha o nacional-socialismo, uma ampla corrente, cuja ideologia se compe de todas as exalaes ptridas da sociedade burguesa em decomposio. 251
Antes, contudo, de recorrer ao partido do desespero contra-revolucionrio, 252 de fazer uso do mal necessrio fascista, restaria ainda burguesia a possibilidade de, com seus prprios partidos e agremiaes representativas, capitular e submeter-se aos ditames de uma mquina policial-burocrtica que, investida de uma significativa autonomia poltica, assumisse as funes de manuteno da ordem e de pacificao da nao polarizada. Nesse caso, se engendraria um regime de tipo bonapartista, definido abaixo por Trotsky numa linguagem recheada de metforas:
Logo que a luta entre dois campos sociais os possuidores e os proletrios, os exploradores e os explorados atinge a mais alta tenso, estabelecem-se as condies para a dominao da burocracia, da polcia e dos militares. O governo torna-se independente da sociedade. Lembremo-nos mais uma vez o seguinte: se espetarmos, simetricamente, dois garfos numa rolha, esta pode ficar de p, mesmo sobre uma cabea de alfinete. precisamente o esquema do bonapartismo. Naturalmente, um tal governo no deixa de ser, por isso, o caixeiro dos possuidores. Mas o caixeiro est sentado sobre as costas do patro, machuca-lhe a nuca e no faz cerimnias para esfregar-lhe, se for necessrio, a bota na cara. 253
Distintamente do fascismo, um regime de guerra civil aberta contra o proletariado, 254 o bonapartismo se constituiria essencialmente em um regime da paz civil assentado sobre uma ditadura policial-militar. 255 Tendo como misso ltima salvaguardar a propriedade capitalista diante da ameaa proletria e nesse aspecto mais genrico se equivale tanto ao fascismo como democracia burguesa , seu procedimento poltico seria o de, por intermdio de um encorpado e independente aparelho de Estado, impedir justamente a ecloso dessa cruenta guerra civil apregoada pelo fascismo, poupando a sociedade burguesa de fortes e perigosas convulses internas. No obstante seu enorme peso social e a fora eleitoral-parlamentar de seus partidos, o proletariado alemo, graas, mormente, s diretrizes polticas que recebia destes ltimos, sofria, segundo Trotsky, de uma fraqueza relativa. 256 Esse elemento fazia com que, embora
251 TROTSKY, L. O nico caminho (Burguesia, pequena-burguesia e proletariado). Op. cit., p. 290-293. 252 TROTSKY, L. O perigo fascista espreita a Alemanha in MANDEL, Ernest (org.). Sobre o fascismo. Lisboa: Antdoto, 1976. 253 TROTSKY, L. O nico caminho (Bonapartismo e fascismo). Op. cit., p. 282. 254 TROTSKY, L. O nico caminho (Os 21 erros de Thaelman) in Revoluo e contra-revoluo na Alemanha. Op. cit., p. 301. 255 Idem. 256 TROTSKY, L. O bonapartismo alemo. Op. cit., p. 349. Quando se trata dos prprios fundamentos da sociedade, no a aritmtica parlamentar que decide, mas a luta. (TROTSKY, L. O nico caminho [Bonapartismo e fascismo]. Op. cit., p. 286.). As foras do proletariado alemo no esto esgotadas. Esto, porm, minadas: por sacrifcios, derrotas, decepes que principiaram em 1914; pela felonia sistemtica da social-democracia; pela auto-desmoralizao do Partido Comunista. Seis, sete milhes de desempregados amontoam-se, como uma carga pesada, aos ps do proletariado. Os decretos-leis de Brning e Papen no encontraram resistncia. O golpe de Estado de 20 de julho no encontrou resistncia (TROTSKY, L. O nico caminho (A luta de classes luz da conjuntura). Op. cit., p. 329.). 109
objetivamente colocada naquele contexto poltico alemo, a possibilidade da revoluo socialista no adquirisse um carter imediato, o que permitia s classes dominantes empreenderem a tentativa de evitar a guerra civil pela ditadura bonapartista. 257 No plo poltico diametralmente oposto ao do proletariado, posicionava-se o fascismo com sua plataforma inegocivel de aniquilao total do movimento operrio. Dessa situao erigiu-se, segundo Trotsky, uma forma particularmente complexa de bonapartismo, cujos governos buscavam apoio equilibrando-se nestes dois irreconciliveis campos da guerra civil em gestao:
Com o governo Papen, os magnatas capitalistas, os banqueiros, empreenderam a tentativa de garantir a sua causa por meio da polcia e do Exrcito regular. A idia de se entregar todo o poder a Hitler, que se apia nos bandos vidos e desenfreados da pequena-burguesia, no pode alegr-los. No duvidam, naturalmente, que Hitler seja, afinal de contas, um instrumento dcil da sua dominao. Mas isso est ligado a abalos, aos riscos de uma longa guerra civil e a enormes despesas. 258
A tarefa de von Papen-Schleicher afastar a guerra civil, disciplinando amigavelmente os nacional-socialistas e amarrando o proletariado s algemas da polcia [...] O atual bonapartismo alemo de um carter extremamente complicado e, por assim dizer, combinado. O governo Papen seria impossvel sem o fascismo. Por outro lado, o fascismo no est ainda no poder. E o governo Papen no o fascismo. Mas, o governo Papen, pelo menos em sua forma atual, seria impossvel tambm sem Hindenburg, que, apesar da derrota final da Alemanha na guerra [1914-1918], encarna na memria de largas camadas populares as grandes vitrias da Alemanha e simboliza seu Exrcito. A reeleio de Hindenburg tinha todos os sinais de um plebiscito. Por Hindenburg votaram vrios milhes de operrios, de pequeno-burgueses e de camponeses (social- democracia e partido do centro). Estavam longe de ver nele qualquer programa poltico. Queriam, antes de tudo, evitar a guerra civil, e levantaram Hindenburg sobre os ombros, como rbitro supremo da nao. justamente este o papel mais importante do bonapartismo: elevando-se por cima dos dois campos beligerantes para proteger a ordem e a propriedade, impede-a ou no permite que se reacenda. Falando-se do governo Papen, no se deve esquecer Hindenburg, sobre quem desce a beno da social- democracia. O carter combinado do bonapartismo alemo encontrou expresso no fato de que dois grandes partidos independentes desempenham, em seu lugar e a seu favor, a tarefa demaggica de conquista das massas: a social-democracia e o nacional-socialismo. Que ambos tenham ficado espantados com o resultado de seu trabalho, isso no muda em nada a questo. 259
Vale mencionarmos, entretanto, que Trotsky, simultaneamente ao seu esmero em apresentar teoricamente as diferenas entre fascismo e bonapartismo, procurou tambm evitar uma perspectiva que concebesse os dois regimes de um modo antittico. Lembrando as semelhanas e pontos em comum entre ambos estes regimes de crise, Trotsky destacou ainda a possibilidade de que o fascismo, muitas vezes derivado de um regime bonapartista, venha a se metamorfosear numa modalidade mais estvel deste ltimo:
O que temos dito demonstra suficientemente a importncia de distinguir entre a forma bonapartista e a forma fascista de poder. No obstante, seria imperdovel cair no extremo oposto, convertendo o bonapartismo e o fascismo em duas categorias logicamente incompatveis. Assim como o bonapartismo comea combinando o regime parlamentar com o fascismo, o fascismo triunfante se v obrigado a constituir um bloco com os bonapartistas e, o que mais importante, a aproximar-se cada vez mais, por suas caractersticas internas, de um regime bonapartista. impossvel a dominao
257 TROTSKY, L. O bonapartismo alemo. Op. cit., p. 352. 258 TROTSKY, L. O nico caminho (Bonapartismo e fascismo). Op. cit., p. 285 259 TROTSKY, L. O bonapartismo alemo. Op. cit., p. 349-351. Grifos nossos. 110
prolongada do capital financeiro por meio da demagogia social reacionria e do terror pequeno-burgus. Uma vez no poder, os dirigentes fascistas se vem forados a amordaar as massas que os seguem, utilizando para isso o aparato estatal. O mesmo instrumento os faz perder o apoio de amplas massas da pequena-burguesia. Destas, o aparato burocrtico assimila um reduzido setor. Outro cai na indiferena. Um terceiro passa oposio, agitando diversas bandeiras. Mas, enquanto vai perdendo sua base social massiva ao apoiar-se no aparato burocrtico e oscilar entre as classes, o fascismo se converte em bonapartismo. Tambm aqui violentos e sanguinrios episdios interrompem a evoluo gradual. A diferena do bonapartismo pr-fascista ou preventivo (Giolitti, Brning-Schleicher, Doumergue etc.), que reflete o equilbrio extremamente instvel e breve entre os bandos beligerantes, o bonapartismo de origem fascista (Mussolini, Hitler etc.), que surge da destruio, desiluso e desmoralizao de ambos os setores das massas, se caracteriza por uma estabilidade muito maior. 260
Inegavelmente, o conceito de bonapartismo , nesse caso, esticado em demasia pelo terico bolchevique, chegando a abarcar at mesmo os governos de Hitler e Mussolini a partir de determinadas fases destes. Convm ressalvar, entretanto, que, posteriormente, um dos especialistas sobre o fenmeno fascista (sobretudo em suas manifestaes alem e italiana) detectaria igualmente a existncia de diferentes etapas situadas ao longo do complexo processo de fascistizao das sociedades. Incorporando parcialmente as consideraes de Trotsky acerca da estabilidade alcanada pelo regime fascista aps o seu afastamento de sua base de massas pequeno-burguesa, Poulantzas considerou que a ltima daquelas etapas, denominada por ele de perodo de estabilizao do fascismo, comearia justamente pela depurao, feita pelo fascismo, de suas origens de classe ou, pelo menos, da ambiguidade de seus incios o que se manifesta, alis, em depuraes macias e sangrentas nas suas prprias fileiras. Dessa forma, para o marxista grego, o fascismo se desmascararia e passaria a desempenhar plena e diretamente as suas funes de classe [do grande capital monopolista]. 261
A caracterizao de Trotsky do regime poltico alemo pr-hitlerista como um regime de natureza bonapartista foi contestada tanto pelo KPD, quanto por organizaes operrias de menor expresso, como o centrista Partido Socialista dos Trabalhadores (SAP), 262 animado pelos renomados dirigentes e intelectuais Heinrich Brandler e Ernest Thalheimer. 263 A
260 TROTSKY, L. Bonapartismo y fascismo (II). Extrado de http://www.marxists.org/espanol/trotsky/ceip/escritos/libro4/T06V108.htm. (acessado em 26/07/2011). Traduo nossa. Grifos do autor. Por levar o mesmo nome de uma das partes de outro trabalho de Trotsky que vimos utilizando (O nico caminho [Bonapartismo e fascismo]), o texto agora citado recebeu de nossa parte o complemento II ao final de seu ttulo, com vistas a evitar confuses por parte dos leitores. Enquanto aquele datado de 1932 e voltado para o processo poltico alemo agora em questo, este foi escrito em julho de 1934 e direcionado diretamente para situao poltica francesa que abordaremos a seguir. 261 POULANTZAS, Nicos. Fascismo e Ditadura. Op. cit., p. 74. E prossegue Poulantzas: Se no verdade que, como afirmava Trotsky, o fascismo degenera, durante este perodo, numa vulgar ditadura militar pois no deixa, em momento algum, de apresentar as caractersticas que dela o distinguem , no deixa de ser verdade que ele se v assim livre, de forma brutal, de uma parte da carga de classe que sobre si pesa, inaugurando o perodo da sua estabilizao. (Idem). 262 Sigla em alemo. 263 Nossa utilizao do termo centrista para definir um tipo histrico de partido pertencente ao movimento operrio baseia-se, em grande parte, nas consideraes feitas pelo prprio Trotsky. Tomando como exemplo principalmente o caso do Partido Obrero Unificado Marxista (POUM), agrupamento espanhol constitudo por uma fuso de trotskistas (opositores de esquerda ao estalinismo) e de bukharinistas (opositores de direita ao 111
burocracia estalinista, como j dissemos, mostrou-se irredutvel na simplria classificao daquele regime como fascista. J os brandleristas do SAP, um pouco mais aguados teoricamente, definiam o governo Papen como uma ditadura monarquista dos senhores territoriais, e objetaram Trotsky argumentando que, diferentemente de Lus Bonaparte, os governos alemes de ento no se sustentavam no campesinato, e nem faziam uso dos mtodos da demagogia social. 264
Trotsky, redarguindo aos tericos do SAP, assinalou que, embora fosse sabido que os aristocratas bonapartistas agraciavam os junkers com presentinhos acessrios e nutriam sentimentos monarquistas, tomar como a essncia do regime poltico alemo o monarquismo dos junkers no passaria de uma insensatez liberal. 265 Reafirmando sua caracterizao, Trotsky, assim como nA histria da revoluo russa, discorreu sobre a existncia de singularidades em cada uma das manifestaes concretas do bonapartismo ao longo do tempo, oferecendo mais uma sugestiva anlise histrica do fenmeno:
Marx e Engels no escreveram s a respeito do bonapartismo dos dois Bonaparte, mas tambm a respeito de outras de suas variedades. Mais ou menos a partir do ano de 1864, eles puseram, muitas vezes, num mesmo p de igualdade, o regime nacional de Bismarck e o bonapartismo francs. E isso, apesar de Bismarck no ter sido um demagogo radical e, ao que saibamos, no ter se apoiado nos camponeses. O chanceler de ferro chegou ao poder, no por um plebiscito, mas nomeado pelo seu rei, de dinastia legtima. E, no entanto, Marx e Engels tm razo. Bismarck explorou de uma maneira bonapartista a contradio entre as classes possuidoras, entre os junkers e a burguesia, e erigiu o aparelho militar-policial acima da nao. A poltica de Bismarck precisamente essa tradio a que se referem os tericos do presente bonapartismo alemo. Todavia, Bismarck resolveu sua maneira o problema da unidade e do poder exterior da Alemanha. Papen, porm, s faz, por enquanto, prometer atingir a igualdade de direitos para a Alemanha na arena internacional. A diferena no pequena. Mas, j pensamos ns, algum dia, em dizer que o bonapartismo de Papen do mesmo calibre que o bonapartismo de Bismarck? Napoleo III, tambm, foi apenas uma pardia de seu pretenso tio [...] O bonapartismo da poca de decadncia do capitalismo distingue-se extraordinariamente do da poca de ascenso da sociedade burguesa. O bonapartismo alemo no se apia diretamente na pequena-burguesia do campo ou da cidade, e no por acaso. Foi precisamente por isso que escrevemos, em seu tempo, sobre a fraqueza do governo Papen, que s se mantinha pela neutralizao dos dois campos: o do proletariado e o do fascismo. 266
Com variaes, os mesmos motivos que haviam obstaculizado o desenvolvimento de um bonapartismo kerenskista na Rssia de 1917 mostravam-se presentes, segundo Trotsky, na conjuntura alem em foco. Apesar de destitudo de uma intrpida e temperada direo poltica como a que orientara os trabalhadores russos, o proletariado alemo, tal como aqueles antes da derrubada do governo provisrio de Kerensky, no havia descarregado por completo suas
estalinismo) que participou ativamente da revoluo espanhola, Trotsky avaliou que os partidos (por ele chamados de) centristas continham em seu interior tanto elementos revolucionrios como outros claramente reformistas e oportunistas, e, dependendo da conjuntura histrica e dos grupos que momentaneamente os hegemonizassem, estes partidos viam-se aptos a girar ora esquerda, ora direita (ver, entre outras obras, TROTSKY, Len. La revolucin espaola. S.l: El puente editorial, s.d.). No linguajar do movimento operrio, em especial o dos anos 60, os partidos desse tipo eram tambm chamados de trotskizantes. 264 TROTSKY, L. O bonapartismo alemo. Op. cit., p. 350. 265 Idem. 266 Idem, p. 352-354. Grifos do autor. 112
baterias nas lutas polticas travadas contra seus inimigos de classe. Uma situao social que combinava uma classe operria ainda no totalmente exaurida a uma burguesia insegura e histericamente apavorada comprometia a solidez do complicado bonapartismo alemo, limitando sua expectativa de vida:
O governo Papen em si e por si, apesar do aspecto de uma fora concentrada, ainda mais fraco que o seu predecessor. O regime bonapartista s pode adquirir um carter relativamente estvel e durvel no caso de fechar uma poca revolucionria [como se sucedeu com Napoleo e Lus Bonaparte]. E, quando a relao de foras j foi experimentada nas lutas, quando as classes revolucionrias j se gastaram, mas as classes possuidoras ainda no se libertaram do medo, no trar o dia seguinte novos abalos? Sem essa condio fundamental, isto , sem o esgotamento preliminar da energia das massas em luta, o regime bonapartista incapaz de desenvolver-se. 267
Confrontando-se com as linhas polticas do SPD e, sobretudo, do KPD, Trotsky as tomava como co-responsveis pela emergncia e, mormente, pela manuteno deste instvel regime bonapartista, o qual, ainda que involuntariamente, s fazia pavimentar o terreno para a contra-revoluo fascista:
Com uma direo justa do proletariado, o fascismo seria destrudo sem dificuldade e no restariam brechas para o bonapartismo. Infelizmente, a situao no essa. A fora paralisada do proletariado toma a forma enganadora de uma fora da camarilha bonapartista. Nisso consiste a frmula poltica de hoje. O governo Papen representa apenas o ponto de interseo de grandes foras histricas. O seu prprio peso nulo. 268
At o ltimo momento, a direo estalinista do KPD, inebriada pelo sectarismo do terceiro perodo, recusou-se peremptoriamente a cerrar fileiras em quaisquer mbitos da luta antifascista (organizativo, sindical, parlamentar etc.) com os chefes reformistas do SPD, o que no s a mantinha apartada das ingentes bases operrias da social-democracia, como dividia perigosamente as foras da classe trabalhadora alem numa conjuntura em que o fascismo se alastrava rapidamente nas massas pequeno-burguesas do pas. Lamentavelmente, os sombrios vaticnios de Trotsky quanto efemeridade do instvel bonapartismo alemo se verificaram, e o proletariado alemo, incluindo suas lideranas comunistas e social-democratas, aprenderia lancinantemente as diferenas entre bonapartismo e fascismo.
O bonapartismo francs semiparlamentar (1934-1940) Aps a vitria eleitoral de Hitler e a consequente instaurao do regime nazista na Alemanha, a direo da Internacional Comunista viu-se impelida a rever a poltica estratgica
267 TROTSKY, L. O nico caminho (Bonapartismo e fascismo). Op. cit., p. 284. 268 Idem, p. 285. 113
que at ento adotava face ao avano do fascismo. Dispensando qualquer tipo de autocrtica, a burocracia estalinista, a partir de fins de 1934, iniciou um abandono prtico de suas tticas esquerdistas baseadas teoricamente na linha do terceiro perodo. Em seu VII congresso, em agosto de 1935, a IC oficializou uma posio abertamente oportunista, defendendo a aliana da Unio Sovitica com os imperialismos democrticos (Frana, Inglaterra, Estados Unidos etc.) contra os imperialismos fascistas de Hitler e Mussolini. Elaborada principalmente pelo comunista blgaro George Dimitrov, a nova linha poltica orientava os PCs a realizarem frentes antifascistas no s com os partidos social-democratas de seus pases [os ex-social-fascistas!], mas tambm com todos os setores democrticos de suas burguesias, conformando as chamadas frentes populares. 269
Um dos pioneiros nessa brusca inflexo poltica do movimento comunista internacional foi o Partido Comunista Francs (PCF) que, desde meados de 1934, buscara uma aproximao sindical e poltica com a Seo Francesa da Internacional Operria (SFIO) nome pelo qual atendia o Partido Socialista, de linha social-democrata. Em consonncia com as novas diretrizes que se gestavam na IC, o PCF, liderado por Maurice Thorez e Marcel Cachin, props em outubro daquele ano que o chamado frente nica antifascista fosse alm das fileiras da classe trabalhadora e se estendesse ao Partido Radical (PR) chefiado por douard Daladier e douard Herriot, cujo contedo burgus era (mal) disfarado por uma fraseologia democrtica e pelo apoio social das classes mdias com o qual contava. A assinatura de acordos diplomticos entre Frana e Unio Sovitica e as novas diretrizes policlassitas da IC para o combate ao fascismo impunham ao PCF a adoo de posturas cada vez mais moderadas diante de um cenrio de exacerbao da luta de classes. Nas eleies de abril-maio de 1936, realizadas em meio a uma forte ascenso das lutas operrias, uma aliana entre comunistas, socialistas e radicais levaria ao poder a Frente Popular encabeada por Len Blum, sobre a qual j fizemos meno anteriormente. 270 Com as mos atadas devido aos compromissos firmados com setores burgueses, o governo de frente popular, embora tenha realizado algumas pequenas reformas socais (semana de trabalho de 40 horas, frias pagas etc.), acabou por funcionar, em ltima anlise, como um freio do intenso processo revolucionrio desencadeado naquele perodo pelo proletariado francs. 271 Desmoralizada aos olhos deste e atacada por amplas parcelas da classe dominante,
269 Ver, novamente, BROU, P. Op. cit. e SAGRA, Alicia. Op. cit. Uma sntese sobre as concepes de frente nica e frente popular defendidas pela IC pode ser vista em SENA JUNIOR, Carlos Zacarias F. de. Frente nica, frente popular e frente nacional: anotaes histricas sobre um debate presente in Anais do V colquio Marx e Engels. Campinas: Unicamp, 2007 (Cd-rom). 270 O PCF, entretanto, no entrou oficialmente no governo de Blum, embora o tenha apoiado integralmente de fora. 271 Afora a represso lanada contra algumas manifestaes pblicas da classe trabalhadora e a adoo de medidas econmicas demandadas pela burguesia, pode-se listar tambm como exemplos do carter, no mnimo, 114
a Frente Popular de Blum s resistiria por aproximadamente dois anos, sendo substituda em 1938 por um governo abertamente conservador comandado pelo prprio Daladier. 272
O abandono prtico da teoria do social-fascismo por parte do PCF e o estreitamento dos laos entre as fileiras comunistas e socialistas derivou no s da reviravolta poltica da IC aps a ento recente tragdia alem, mas tambm de uma expressiva movimentao de sentido unificador levado a cabo por amplos setores do proletariado francs. A partir de 1934, passaram a ocorrer manifestaes conjuntas e pactos de unidade e ao entre as duas centrais sindicais mais importantes da classe trabalhadora francesa: a Confdration Gnrale du Travail (CGT), dirigida pelos socialistas, e a Confdration Gnrale du Travail Unitaire (CGTU), animada pelos comunistas. No incio de 1936, essas prticas unitrias levariam fuso entre as centrais, preparando o caminho para a conformao da Frente Popular. Apesar dos equvocos e oscilaes de suas direes polticas, o proletariado francs avanava em termos subjetivos e organizativos, contribuindo para a exasperao dos conflitos sociais no pas. Em junho, aps a vitria eleitoral de Blum, mas antes de sua posse, os trabalhadores, finalmente, entraram em greve geral. 273
O impulso unitrio dos trabalhadores surgiu, em parte, como uma resposta ao crescimento poltico das foras reacionrias do pas, expresso pelas seguidas exposies pblicas de agrupamentos fascistas e monarquistas (Juventudes Patriticas, Croix de Feu, Camelots du Roi etc.). Em fevereiro de 1934, milhares de integrantes destes agrupamentos, portando revlveres, navalhas e porretes, haviam tentado invadir o Parlamento para protestar contra a demisso do chefe de polcia de Paris (Chiappe), ligado aos fascistas, deixando vrios mortos nos confrontos com as tropas policiais. A crise poltica resultou na demisso do governo Daladier e em sua substituio por um governo considerado de Unio Nacional, chefiado por Gaston Doumergue, do qual participavam nomes como Andr Tardieu, Herriot e o marechal Ptain. 274 O governo reacionrio de Doumergue e todos os que se sucederam at a posse de Blum em junho de 1936 (Flandin, Bouissson, Laval e Sarraut) procuraram governar por cima do Parlamento, fazendo uso de inmeros decretos-lei e outros expedientes
no-revolucionrio da Frente Popular o seu no reconhecimento da independncia das colnias francesas (Indochina, Arglia etc.) e sua recusa a vender armas para a repblica espanhola que lutava contra as tropas fascistas de Franco. 272 Uma interessante e rpida anlise do processo poltico francs nos agitados anos 30 do sculo passado, com nfase na questo da Frente Popular, pode ser encontrada em MERMELSTEIN, Waldo. Prefcio edio brasileira in TROTSKY, L. Aonde vai a Frana? Op. cit., p. 7-24. 273 No dia 9 de junho, foi assinado o acordo de Matignon, que garantiu a reduo da jornada de trabalho para 40 horas semanais, frias pagas, aumento geral de salrios e reconhecimento dos delegados sindicais por empresa (MERMELSTEIN, Waldo. Op. cit., p. 15.). 274 No perodo em questo, a principal instituio do sistema poltico francs era o Conselho de Ministros. Assim, considerava-se como chefe do governo aquele que ocupava o cargo de presidente deste Conselho (prsident du Conseil du Ministres), como foi o caso de Daladier e Doumergue. Usualmente, o presidente da Repblica nomeava como presidente do Conselho (conhecido extra-oficialmente como primeiro-ministro) o lder do partido (ou da coalizo) que possua maioria parlamentar. 115
discricionrios. Acobertado por esses governos, o movimento fascista desenvolvia-se celeremente, armando-se para um combate decisivo contra as foras do proletariado. Exilado na Frana entre julho de 1933 e julho de 1935, e depois na Noruega at janeiro de 1937, 275 Trotsky produziu alguns longos artigos e vrios panfletos dedicados situao poltica francesa em tela. Orientado seus adeptos a praticarem o entrismo nas fileiras do SFIO com vistas formao de uma nova organizao revolucionria no pas, 276 o revolucionrio russo condenou duramente as prticas polticas desempenhadas pelos socialistas e comunistas junto ento agitada classe operria francesa. De forma implacvel, Trotsky atacou a oportunista estratgia de frente popular levada a cabo pelo PCF em sintonia com os chefes da IC. Segundo o dissidente sovitico, longe de afugentar o inimigo fascista, a colaborao de classes propugnada pelos estalinistas, ao atrelar o proletariado burguesia imperialista do pas, s fazia conter o mpeto revolucionrio do primeiro e cimentar o caminho para a reao poltica da segunda. Mesclando reivindicaes imediatas da classe trabalhadora francesa e necessidades histricas do proletariado mundial, Trotsky e seus colaboradores apresentavam ao movimento operrio consignas como o controle do sistema financeiro, da indstria e do comrcio pelos operrios e camponeses; abolio do segredo comercial; servios pblicos para coletividade; por uma nica Assemblia (abaixo o Senado!); dissoluo da polcia; milcia popular antifascista e pelo poder operrio e campons!. 277 Rechaadas pelos estalinistas sob a alegao de que a situao no era revolucionria, muitas dessas propostas comporiam alguns anos mais tarde o Programa de Transio, documento fundacional da IV Internacional. 278
Tal como no caso alemo, Trotsky analisou a conturbada situao poltica da Frana do perodo 1934-1940 a partir da perspectiva da crise mundial do capitalismo e da correlata falncia da democracia burguesa como forma eficaz de dominao poltica de classe. Em sua perspectiva, a repblica francesa no se encontrava em hiptese alguma imunizada contra a epidemia fascista, conforme propagandeavam alguns imbecis sem esperana que, evocando
275 DEUTSCHER, Isaac. Trotski. O profeta banido (1929-1940). Op. cit. 276 Na dcada de 1930, Trotsky orientou seus seguidores em determinados pases da Europa (Frana e Espanha, por exemplo) e nos Estados Unidos a ingressar nas fileiras dos partidos social-democratas ou centristas. Tal ttica almejava, aps a construo de alas revolucionrias no interior destes partidos operrios, a captao de quadros e de setores de massas para que se pudesse formar um outro partido, revolucionrio e independente tanto da social-democracia quanto do estalinismo. De nenhum modo, Trotsky pretendia com tal ttica influenciar as decises das direes da social-democracia e do centrismo, muito menos corrigi-las. Vale lembrar que, poca, o ingresso ou reingresso dos trotskistas nos PCs constitua-se, por questes de simples sobrevivncia fsica, em uma impossibilidade prtica, o que explica, em parte, a opo pelo entrismo nas organizaes social- democratas e centristas. Como dissemos h pouco, aps o terrvel fracasso da IC e do KPD face ao nazismo em 1933, Trotsky desistiu de lutar pela regenerao dos PCs e da IC, dedicando-se a construo de uma nova internacional dos trabalhadores (a IV Internacional). 277 TROTSKY, L. Um programa de ao para a Frana in ____. Aonde vai a Frana? Op. cit., p. 159-172. 278 TROTSKY, L. Programa de Transio. A agonia do capitalismo e as tarefas da Quarta Internacional. (Cadernos Marxistas). So Paulo: Instituto Jos Lus e Rosa Sundermann, 2004. 116
a tradio secular do sufrgio universal no pas, repetiam e consolavam-se com o ingnuo adgio de que a a Frana no [era] a Alemanha. 279 Refutando-os, Trotsky afirmava que se na Frana, assim como em outras naes europias (Inglaterra, Holanda, Sua e pases escandinavos), ainda existiam parlamento, eleies, liberdades democrticas ou o que resta disso, isso apenas expunha as formas diversas e os ritmos desiguais com que se expressavam as consequncias da decrepitude e decadncia do capitalismo. Em todos esses pases, contudo, a luta de classes se exacerbava no mesmo sentido em que antes se desenvolveu na Itlia e na Alemanha, pois o pano de fundo o mesmo em todos os lados: 280
Se os meios e produo continuam em mos de um pequeno nmero de capitalistas, no h salvao para a sociedade. Ela est condenada a seguir de crise em crise, de misria em misria, de mal a pior [...] A burguesia conduziu a sociedade bancarrota. No capaz de assegurar ao povo nem o po nem a paz. precisamente por isso que no pode suportar a ordem democrtica por muito mais tempo. compelida a esmagar os operrios com a ajuda da violncia fsica. Enviar o exrcito contra o povo nem sempre possvel: frequentemente, ele comea a decompor-se e termina com a passagem de grande parte dos soldados para o lado do povo. Por isso o grande capital obrigado a criar grupos armados, especialmente treinados para atacar os operrios, como certas raas de ces so treinadas para atacar a caa.
Mais uma vez, Trotsky associava a crise capitalista utilizao de ferozes mtodos polticos por parte do grande capital. O fascismo, assim, aparecia novamente como fruto de uma aguda situao social, na qual os elementos objetivos e subjetivos referentes s classes envolvidas na pugna relacionam-se complexamente, configurando um cenrio poltico extremamente radicalizado:
O fascismo recruta seu material humano sobretudo no seio da pequena burguesia. Esta termina sendo arruinada pelo grande capital, e no existe sada para ela na presente estrutura social: porm no conhece outra. Seu descontentamento, revolta e desespero so desviados do grande capital, pelos fascistas, e dirigidos contra os operrios. Pode-se dizer do fascismo que uma operao de deslocamento dos crebros da pequena burguesia no interesse de seus piores inimigos. Assim, o grande capital arruna inicialmente as classes mdias e, em seguida, com a ajuda de seus agentes mercenrios os demagogos fascistas , dirige a pequena-burguesia submersa no desespero contra o proletariado. somente por meio de tais procedimentos que o regime burgus capaz de manter-se. 281 At quando? At que seja derrubado pela revoluo proletria. 282
Conforme j antecipamos nas pginas introdutrias desta primeira parte, Trotsky caracterizou a configurao poltico-institucional francesa vigente a partir do governo Doumergue como um regime bonapartista de tipo semiparlamentar, no qual declinantes elementos democrticos conviviam com um poder discricionrio do chefe governamental.
279 TROTSKY, L. Aonde vai a Frana? in ____. Aonde vai a Frana? Op. cit., p. 28. 280 Idem. 281 Compreendendo o sentido do raciocnio de Trotsky, e remetendo-nos (mais uma vez) nossa discusso sob as diferenas entre Estado, regime e governo, talvez possamos dizer que o mais adequado para a frase em questo seria Estado burgus, e no regime burgus. 282 TROTSKY, L. Aonde vai a Frana?. Op. cit., p. 29. 117
Reeditando a mesma perspectiva interpretativa utilizada para a Alemanha de poucos anos atrs, Trotsky tomou o bonapartismo francs como uma etapa da transio (no inexorvel) entre a democracia burguesa e o regime fascista, como pode ser percebido no sinttico trecho abaixo:
Na Frana, o movimento da democracia ao fascismo ainda est em sua primeira etapa. O parlamento existe, mas j no tem os poderes de outros tempos, e nunca mais os recuperar. Morta de medo, a maioria dos deputados recorreu, depois de 6 de fevereiro [manifestao fascista], ao poder de Doumergue, o salvador, o rbitro. Seu governo se coloca acima do Parlamento. No se apia sobre a maioria democraticamente eleita, mas direta e indiretamente sobre o aparato burocrtico, sobre a polcia e o Exrcito. 283
Em um texto posterior, Trotsky definiria o governo de Sarraut-Flandin (que antecederia o governo da Frente Popular de Blum) como uma variedade desse mesmo bonapartismo semiparlamentar, ainda que ligeiramente inclinado esquerda, ilustrando em seguida sua afirmao com um sarcstico comentrio sobre as palavras do prprio Sarraut:
Refutando a acusao de haver tomado medidas arbitrrias, [Sarraut] respondeu ao Parlamento, como se no pudesse fazer melhor: Se minhas medidas so arbitrrias, porque quero ser um rbitro. Este aforismo no ficaria fora de lugar na boca de Napoleo III. Sarraut [no] se sente [...] mandatrio de um determinado partido ou de um bloco de partidos no poder, como querem as regras do parlamentarismo, mas um rbitro acima das classes e dos partidos, como querem as leis do bonapartismo. 284
Aos olhos do escaldado observador russo, o bonapartismo francs, tal como o findado alemo, teria origem no comeo de guerra civil entre os dois campos polticos extremos, 285 a saber, o da revoluo e o da contra-revoluo. 286 O relativo equilbrio entre estes, gerador de uma temporria neutralizao mtua, explicaria, segundo Trotsky, o fato do eixo de poder ter se elevado por cima das classes e de suas representaes parlamentares: Foi necessrio buscar uma cabea de governo fora do Parlamento e fora dos partidos. 287 Embora se apresentasse como o juiz-rbitro entre os bandos em luta, o governo Doumergue no seria de modo algum dotado de neutralidade poltica:
Contudo, um governo que se eleva por cima da nao no est suspenso no ar. O verdadeiro eixo do governo atual passa pela polcia, a burocracia e a camarilha militar. Estamos enfrentando uma ditadura militar-policial superficialmente camuflada por um cenrio de parlamentarismo. Um governo de sabre como juiz-rbitro da nao: precisamente isso o que se chama de bonapartismo. O sabre no oferece por si prprio um programa independente. Ele o instrumento da ordem. chamado para salvar o que existe. O bonapartismo, ao se erigir acima das classes assim como o seu predecessor cesarismo, representa, em um sentido social, sempre e em todas as pocas, o governo do setor mais forte e firme dos exploradores. Consequentemente, o atual governo bonapartista no pode ser
283 Idem, p. 29. 284 TROTSKY, L. A Frana na encruzilhada. Op. cit., p. 129-130. 285 Idem, p. 31. 286 TROTSKY, L. Bonapartismo y fascismo (II). Op. cit. Traduo nossa. Grifos do autor. 287 Idem. 118
outra coisa seno o governo do capital financeiro, que dirige, inspira e corrompe o setor mais alto da burocracia, da polcia, da casta de oficiais e da imprensa. 288
Para Trotsky, enquanto o Exrcito e a polcia ofereceriam, pela direita, o principal apoio material a Doumergue, o Partido Radical, com sua ampla base de massas constituda pela pequena-burguesia urbana e rural, sustentaria aquele governo pela esquerda. Este apoio dos radicais ao governo Doumergue resultaria do fato de que seus chefes, como Daladier e Herriot, sob a ameaa do fascismo e, ainda mais, sob a do proletariado, haviam sido obrigados a passar do campo da democracia parlamentar para o do bonapartismo. 289 Entre outros aspectos, seria principalmente este significativo respaldo social do qual gozava Doumergue graas sua aliana com o PR o que diferiria, segundo Trotsky, a dinmica poltico-temporal do bonapartismo francs daquela que fez-se presente no frgil e efmero bonapartismo alemo. Na viso de Trotsky, o forte peso poltico das classes mdias francesas fornecia um pouco mais de flego ao bonapartismo de Doumergue e seus continuadores, o que, consequentemente, proporcionava mais tempo (mas no muito) ao proletariado francs para se armar contra o fascismo:
Se se compara a evoluo poltica da Frana com a da Alemanha, o governo Doumergue e seus possveis sucessores correspondem aos governos Brning, von Papen e von Schleicher, que preencheram o intervalo entre a Repblica de Weimar e Hitler. No entanto, h uma diferena que, politicamente, pode ter enorme importncia. O bonapartismo alemo entrou em cena quando os partidos democrticos se uniram, enquanto os nazistas cresciam com fora prodigiosa. Os trs governos bonapartistas da Alemanha, devido fraqueza de suas bases polticas, equilibravam-se numa corda estendida sobre o abismo, entre dois campos hostis: o proletariado e o fascismo. Esses trs governos caram rapidamente. O campo do proletariado estava ento dividido, no estava preparado para a luta, desorientado e trado por seus chefes. Os nazistas puderam tomar o poder quase sem luta. O fascismo francs, entretanto, ainda no representa, hoje, uma fora de massa. Em contrapartida, o bonapartismo tem um apoio, verdade que nem muito seguro nem muito estvel, porm de massa, na pessoa dos radicais. Entre esses dois fatos existe um nexo interno. Pelo carter social de sua base, o radicalismo um partido da pequena-burguesia. 290 Ora, o fascismo no pode converter-se em uma fora de massa seno conquistando a pequena-burguesia. Em outras palavras: na Frana, o fascismo pode desenvolver-se principalmente s expensas dos radicais. Esse processo j ocorre na atualidade, mas se encontra ainda em sua primeira etapa [...] Ainda h tempo para preparar a vitria [do proletariado] [...] No se trata de anos, mas de meses. Esse prazo, evidentemente, no est escrito em parte alguma. Depende da luta das foras vivas e, em primeiro lugar, da poltica do proletariado e de sua Frente nica. 291
Envidando esforos para uma caracterizao mais precisa do bonapartismo francs, Trotsky, como de hbito, recorreu novamente a clidas analogias de jaez histrico.
288 Idem. 289 TROTSKY, L. Aonde vai a Frana?. Op. cit., p. 31. Como o camelo sob o chicote do cameleiro, o radicalismo se ajoelhou para permitir reao capitalista sentar-se entre suas corcovas. Sem o apoio poltico dos radicais, o governo Doumergue seria impossvel neste momento. (Idem). 290 J a direo deste partido seria, segundo o prprio Trotsky, formada pelos agentes democrticos da grande burguesia que, de tempos em tempos, deram ao povo pequenas reformas e, mais frequentemente, frases democrticas; a cada dia o salvaram em palavras da reao e do clericalismo, mas em todas as questes importantes fizeram a poltica do grande capital (Idem, p. 31). 291 Idem, p. 31-59. Grifos do autor. 119
Escrevendo ainda sob o governo de Gaston Doumergue, Trotsky afirmou que o papel desempenhado por este estadista (ou por qualquer um de seus eventuais sucessores, como o marechal Ptain ou Tardieu) no constitua um novo fenmeno, pois seria similar ao que cumpriram Napoleo I e Napoleo III, em outras condies: A essncia do bonapartismo consiste nisso: apoiando-se na luta entre dois campos, salva a nao atravs de uma ditadura burocrtico-militar. 292 Entretanto, na perspectiva do analista russo, os trs lderes bonapartistas em questo se distinguiriam, sobretudo, em funo de suas distintas localizaes temporais no decorrer da evoluo capitalista. Enquanto o primeiro Bonaparte teria representado o bonapartismo da impetuosa juventude da sociedade burguesa, o governo de seu sobrinho corresponderia ao momento em que, na cabea da burguesia, j comeava a aparecer a calvcie. Doumergue, por sua vez, expressaria claramente o bonapartismo senil do declnio capitalista. 293
Oportuno talvez seja ressaltarmos aqui o agudo senso de historicidade contido na analogia acima. Assim como em um trecho j citado dA histria da revoluo russa, Trotsky argumenta que o bonapartismo de Lus Bonaparte se situara em um momento histrico limtrofe da sociedade burguesa. Compartilhando das tardias consideraes de Marx acerca do impasse histrico-poltico materializado no golpe de Estado de 1851 (a idia de que a burguesia no podia governar mais, e o proletariado no o podia ainda), Trotsky, em sua metfora capilar, alocou o Segundo Imprio francs em uma etapa intermediria (e divisora de guas) da histria do sistema capitalista, na qual, embora a classe burguesa j se mostrasse indubitavelmente reacionria, as foras produtivas e as relaes sociais capitalistas ainda encerrariam uma ampla capacidade de expanso e desenvolvimento, como acabou por se verificar. O senil bonapartismo contemporneo se constituiria, assim, para Trotsky, na penltima alternativa poltica para uma desesperada burguesia face ao esgotamento histrico da sociedade capitalista a ltima, como expusemos, seria o fascismo. Quanto a isso, cabe lembrar que at os comunistas franceses, sintonizados com a nova linha da IC, encamparam, sua maneira, a tese do bonapartismo esgrimida por Trotsky, o que em nada os aliviou das custicas crticas desferidas pelo revolucionrio banido. Durante o perodo Brning- Schleicher, recorda Trotsky, os dirigentes do Komintern proclamaram que o fascismo j esta[va] aqui, declarando que a teoria da etapa intermediria, bonapartista no passaria de uma tentativa de disfarar o fascismo e favorecer a poltica social-democrata do mal menor [que, como j dissemos, se constitua na colaborao do SPD com os governos bonapartistas visando impossibilitar o triunfo fascista]. quela poca, continua Trotsky,
292 Idem, p. 30. 293 Idem. 120
social-democratas, social-democratas de esquerda e trotskistas eram todos considerados como perigosos social-fascistas:
Mas agora tudo mudou. No que concerne Frana, os estalinistas no se atrevem a repetir: O fascismo est aqui!; ao contrrio, para impedir a vitria do fascismo nesse pas, tm aceitado a poltica da Frente nica, que at ontem rechaavam. Eles foram forados a diferenciar o regime de Doumergue do fascismo. Mas no chegaram a essa definio como marxistas, e sim como empiristas. Nem sequer tentaram dar uma definio cientfica do regime de Doumergue. Aquele que se move no terreno da teoria em base a categorias abstratas est condenado a capitular cegamente ante os acontecimentos. 294
E no calor destes acontecimentos que conformavam um cenrio poltico efervescente, Trotsky alinhavava vaticnios que, em essncia, aproximavam-se dos que havia pouco fizera para a Alemanha pr-hitlerista: caso o proletariado no vencesse, venceria o fascismo. No seria possvel dizer de antemo, segundo Trotsky, por quanto tempo ainda continuariam se sucedendo na Frana ministrios semiparlamentares, semibonapartistas, e por quais fases precisas passaria o pas no curso do prximo perodo. 295 Certo mesmo, para o revolucionrio, era que no haveria caminho de volta at a democracia pacfica. 296
Entretanto, contrariando as previses do revolucionrio russo, a Frana, mesmo sem ter vivido uma revoluo proletria vitoriosa o nico caminho, segundo Trotsky, para se evitar o fascismo , no conheceria o fascismo. Ainda que a classe trabalhadora francesa tenha mostrado mais disposio unidade forando suas direes a encaminharem a poltica da frente nica do que sua irm alem, no se pode dizer que se decidiu conscientemente pela luta anticapitalista como a nica maneira de evitar o fascismo. A favor do profeta Trotsky, contudo, podemos lembrar que seria somente depois da Segunda Guerra (1939-1945), isto , depois de uma catstrofe social de propores mundiais, que o regime democrtico- parlamentar voltaria a vigorar na Frana e, mesmo assim, permeado de indisfarveis traos bonapartistas, como um super-poderoso Poder Executivo o que pode ser facilmente visto durante a V Repblica gaullista. Afastada do poder a Frente Popular de Blum, a Frana seria dirigida at o final da dcada de 1930 por sucessivos gabinetes bonapartistas cada vez mais reacionrios, culminando com o governo colaboracionista de Ptain, quando o bonapartismo semiparlamentar converteu-se em um bonapartismo que podemos classificar como semifascista. Em um texto inacabado, escrito no ano de sua morte (1940), Trotsky pde perceber que, mesmo tendo sido o proletariado francs derrotado e desacreditado na dcada que se encerrava, o regime fascista diferentemente do que se verificara no caso alemo e do que ele mesmo, Trotsky, havia especulado havia poucos anos no se implantou no pas.
294 TROTSKY, L. Bonapartismo y fascismo (II). Op. cit. Traduo nossa. 295 TROTSKY, L. A Frana na encruzilhada. Op. cit., p. 135. 296 TROTSKY, L. Aonde vai a Frana?. Op. cit., p. 30. 121
Manifestando ainda seu peculiar cuidado no emprego de categorias, e sempre rigoroso analiticamente, o revolucionrio recusou-se a considerar a Frana de Vichy como um regime de tipo fascista:
Na Frana no existe fascismo no sentido real do termo. O regime do senil marechal Ptain representa uma forma senil de bonapartismo da poca do declnio imperialista. Mas esse regime s se fez possvel depois que a prolongada radicalizao da classe operria francesa, que conduziu exploso de junho de 1936 [greve geral], falhou em encontrar uma sada revolucionria. A Segunda Internacional e a Terceira [Internacional], a reacionria charlatanice das frentes populares, enganaram e desmoralizaram a classe operria. Depois de cinco anos de propaganda em favor de uma aliana das democracias e da segurana coletiva [poltica da IC de apoio aos imperialismos democrticos contra os imperialismos fascistas], depois da sbita passagem de Stlin ao bando de Hitler [pacto germano- sovitico de no-agresso firmado em agosto de 1939], a classe operria francesa se viu desprevenida. A guerra [Segunda Guerra Mundial] provocou uma terrvel desorientao e o estado de derrotismo passivo, ou dito de forma mais correta, a indiferena de um impasse. Desse emaranhado de circunstncias surgiu a catstrofe sem precedentes e, em seguida, o desprezvel regime de Ptain. Precisamente por ser o regime de Ptain um bonapartismo senil ele no contm nenhum elemento de estabilidade e pode ser derrubado muito mais cedo do que um regime fascista por um levante revolucionrio de massas. 297
Quando escreveu as linhas acima, Trotsky j se encontrava em paragens latino- americanas, mais precisamente, em terras mexicanas. Em seu ltimo exlio, voltando seus olhos para nosso perifrico continente, o velho revolucionrio russo vislumbraria nos emergentes regimes polticos ps-oligrquicos (sobretudo no de Lzaro Crdenas, no Mxico) uma nova e bem particular forma de bonapartismo, desenvolvendo ainda mais tal conceito. Suas consideraes sobre os bonapartismos sui generis da Amrica Latina so especialmente importantes para o presente trabalho, dado que, segundo cremos, representaram uma espcie de antecipao terico-analtica do modelo populista formulado e/ou seguido (em linhas gerais) por cientistas sociais brasileiros como Francisco Weffort, Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Rui Mauro Marini, Lencio Martins Rodrigues, Francisco de Oliveira, entre outros. Passemos, ento, a mais uma rica fase da produo terica bonapartista de Trotsky.
O bonapartismo perifrico Em 9 de janeiro de 1937 o petroleiro Ruth, vindo da Noruega, aportou em Tampico, no Mxico, desembarcando nessa localidade seus nicos passageiros (salvo a escolta policial norueguesa que os acompanhava): Len Trotsky e sua esposa Natlia Sedova. 298 Acossado pela GPU (polcia secreta da URSS) e a diplomacia sovitica, um dos principais lderes da
297 TROTSKY, L. Bonapartismo, fascismo y guerra (Escritos y fragmentos inconclusos). Extrado de http://www.marxists.org/espanol/trotsky/ceip/escritos/libro6/T11V236.htm (acessado em 26/07/2011). Traduo nossa. 298 DEUTSCHER, Isaac. Trotski. O profeta banido. Op. cit., p. 366-369. 122
revoluo de Outubro s encontrou asilo no pas comandado pelo general populista Lzaro Crdenas, num momento em que o mundo, segundo a conhecida frase do escritor surrealista Andr Breton, era um planeta sem visto para Len Trotsky. Recepcionado no cais por Max Shachtman e George Novack, dois trotskistas norte- americanos, e tendo como anfitrio, na Cidade do Mxico (Coyoacn), o casal de pintores mexicanos, Diego Rivera e Frida Kahlo, Trotsky deparou-se com um pas fortemente sacudido por lutas polticas e sociais. Pouco antes de sua chegada, o presidente Crdenas havia firmado um decreto que repartia alguns latifndios entre camponeses pobres e estava em vias de nacionalizar companhias petrolferas e ferrovirias americanas e britnicas. 299 Em meio a esse clima tenso e radicalizado, o anfitrio exigiu de seu hspede silncio sobre as questes polticas mexicanas, clusula aceita por um revolucionrio sem muitas escolhas e escaldado em funo de suas recentes expulses da Frana e Noruega. 300
A presena de Trotsky em um pas que vivia o auge da revoluo camponesa iniciada na dcada de 1910 301 constituiu-se em mais um elemento de instabilidade poltica para o Mxico. Os adversrios de Crdenas o acusavam de sofrer influncias de seu acolhido em suas decises polticas. Por outro lado, a Confederao dos Trabalhadores Mexicanos (CTM), que tinha frente Lombardo Toledano, aliado dos estalinistas, condenou o presidente por ter aceitado nas fronteiras do pas o chefe da vanguarda da contra-revoluo. 302 Trotsky sentia- se acuado. Na primeira pgina de seu Dirio do exlio, escrita na Frana em 7 de fevereiro de 1935, o revolucionrio russo aventava a possibilidade de que aquele caderno (dirio) pudesse ser fechado mais cedo pelo tiro, vindo de qualquer canto, de um agente de... Stlin, de Hitler, ou de seus amigos-inimigos franceses. 303 No houve motivos em sua temporada nas terras mexicanas para que Trotsky se visse livre desse temor. Ao contrrio, aps a tentativa fracassada de assassin-lo organizada pelo pintor estalinista David Alfaro Siqueiros, 304 e a gradativa piora de seu estado de sade, a morte lhe parecia a cada dia mais prxima. 305
299 Idem, p. 370. 300 O asilo concedido a Trotsky pelo Estado mexicano deveu-se, sobretudo, s presses exercidas por Diego Rivera junto ao presidente Crdenas. Quanto ao conturbado exlio poltico de Trotsky, desde a expulso das fronteiras soviticas em 1929 at a morte no Mxico em 1940, ver DEUTSCHER, Isaac. Trotski. O profeta banido. Op. cit. 301 DEUTSCHER, Isaac. Trotski. O profeta banido. Op. cit., p. 370. 302 Idem, p. 370-371. 303 TROTSKY, Len. Dirio do Exlio. 2 edio. So Paulo: Edies Populares, s.d., p. 27. 304 DEUTSCHER, Isaac. Trotski. O profeta banido. Op. cit., p. 505. 305 No Post Scriptum, de 3 de maro de 1940, ao seu Testamento, de 27 de fevereiro do mesmo ano, Trotsky faz uso das seguintes palavras: parece-me que o fim chegar de repente e, provavelmente ainda uma hiptese pessoal por uma hemorragia cerebral [o que, de fato, acabaria ocorrendo em funo do golpe desferido por seu assassino, Jacques Monard]. Nesse texto, a idia de suicdio levantada por Trotsky como uma forma de encurtar o longo processo de agonia. Entre outros locais, o Testamento e seu Post Scriptum encontram-se em TROTSKY, Len. Moral e revoluo. 2 edio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p.77-79. 123
Em um ambiente bastante tenso que marcaria o perodo de pouco mais de trs anos em que permaneceu no Mxico, Trotsky produziu diversos trabalhos a respeito dos mais variados temas que compunham a turbulenta dcada de 1930. A iminncia da Segunda Guerra e sua natureza imperialista, 306 a caracterizao sociolgica da URSS 307 e os rumos dos movimentos estticos diante do fascismo e do estalinismo 308 regimes polticos que Trotsky, em contraposio aos democratas-liberais de todo o tipo, fazia questo de diferenciar demonstrando o antagonismo social existente entre ambos foram questes, entre tantas outras, que abordou de modo muito argucioso e preciso. No obstante o acordo de no interferncia na poltica interna do Mxico, Trotsky, desde sua chegada at seu assassinato em 1940, no se furtou a realizar tambm anlises relativas aos dilemas vividos pelo Estado mexicano e o papel do proletariado nesse momento de exasperao da luta de classes. Com menos intensidade, voltou seus olhos tambm para outras experincias polticas da Amrica Latina, buscando compreend-las com partes constitutivas de uma grande realidade perifrica e atrasada do sistema capitalista mundial, o qual atravessava uma profunda crise desde 1929. Um dos principais frutos dessa ateno dedicada Amrica Latina de fins da dcada de 1930 foram suas sugestivas anlises acerca dos novos regimes polticos que ento proliferavam na regio. Resultantes da dbcle dos sistemas polticos oligrquicos que no resistiram falncia das economias agro-exportadoras no ps-1929, esses novos regimes, dotados de um ingurgitado aparelho estatal sobreposto aos diversos segmentos sociais em presena, receberam de Trotsky a denominao de bonapartismos sui generis, como j antecipamos. Nessa definio conceitual, o termo bonapartista devia-se, centralmente, ao papel protagnico e arbitral desempenhado naqueles regimes pela mquina burocrtico-militar face s classes sociais potencialmente beligerantes, como tambm exgua presena de expedientes democrtico-parlamentares em seus funcionamentos ordinrios. J a adjetivao complementar sui generis resultava, sobretudo, do carter atrasado e perifrico das
306 A entrevista concedida por Trotsky ao lder sindical argentino Mateo Fossa em 23 de setembro de 1938 constitui-se em um dos vrios documentos que explicitam as posies do revolucionrio diante da guerra que se aproximava. Essa entrevista contm importantes pontos de vista de Trotsky, em especial sua crtica idia de que a guerra seria entre um imperialismo fascista e um democrtico, caracterizao produzida pelo estalinismo e mantida at o pacto germnico-sovitico, e que conduziu o movimento operrio a alianas tticas com as burguesias das naes includas nesta segunda modalidade do imperialismo. TROTSKY, Len. La lucha antimperialista es la clave de la liberacin in ____ Escritos latinoamericanos. Op. cit., p. 106-112. 307 Os textos mais significativos acerca da natureza social da Unio Sovitica, produzidos em grande parte em meio a um debate com a minoria do Socialist Workers Party (SWP), seo norte-americana da IV Internacional, encontram-se reunidos na obra TROTSKY, Len. Em defesa do marxismo. So Paulo: Proposta Editorial, s.d. 308 O trabalho mais conhecido de Trotsky sobre os dilemas da arte neste perodo o Manifiesto por un arte revolucionario independiente, escrito conjuntamente com o surrealista Andr Breton e que pode ser encontrado em TROTSKY, Len. Literatura y revolucin y otros escritos sobre la literatura y el arte. [s.l.]: Ediciones Crux, 1989, p. 271-276. 124
formaes sociais nas quais tinham lugar aqueles regimes. O enorme retardo com o qual o capitalismo industrial se desenvolvia na Amrica Latina e a consequente dinmica desigual e combinada assumida por tal desenvolvimento estariam, segundo Trotsky, na base explicativa da particular configurao poltica entre o Estado, burguesia nativa e proletariado que se verificava em certos pases do continente. Em diversos escritos referentes s revolues em pases atrasados, Trotsky abordou como o capitalismo se desenvolvera em ritmos desiguais entre as naes que primeiramente chegaram ao capitalismo industrial e as que s o conheceram a partir de sua fase imperialista. O atraso dessas ltimas, segundo Trotsky, levaria a um desenvolvimento combinado do capitalismo nestas e, conseqentemente, designaria s suas classes sociais tarefas historicamente distintas das realizadas pelas classes das naes adiantadas. Contrapondo-se ao etapismo de Stlin, afirmou a impossibilidade de que o desenvolvimento histrico dos pases chamados civilizao em segunda, terceira ou dcima linha 309 cursasse os mesmos caminhos transcorridos por naes como Inglaterra, Frana e Estados Unidos. Dessa lei do desenvolvimento desigual e combinado, segundo Trotsky, que se deveria retirar o substrato terico para a anlise das classes sociais, do Estado e do carter da revoluo nos pases que se encontravam sob o jugo do imperialismo. Foi partindo dessa tica que Trotsky se ps a interpretar a natureza dos regimes polticos latino-americanos ps-oligrquicos. Assim, pensamos que nossa exposio das anlises de Trotsky acerca desses regimes bonapartistas no pode dispensar uma prvia discusso a respeito da perspectiva interpretativa do revolucionrio relativa natureza do desenvolvimento capitalista em formaes sociais atrasadas e perifricas. As pginas seguintes esto destinadas a essa discusso.
A lei do desenvolvimento desigual e combinado: um breve histrico do conceito 310
Como bastante sabido, com a ascenso da frao estalinista no interior do Partido Comunista da Unio Sovitica (PCUS) e a IC em meados da dcada de 1920, teve lugar o surgimento da teoria do socialismo em um s pas, por intermdio da qual a burocracia partidria, sob a liderana de Stlin e Bukharin, afirmava a possibilidade de construo de uma sociedade socialista nos marcos de uma s nao (no caso, a Unio Sovitica). Concomitantemente (e diretamente relacionada) a essa ruptura inaudita com o
309 TROTSKY, L. A histria da revoluo russa. Op. cit., p. 25. 310 O contedo deste item foi extrado do primeiro captulo de nossa dissertao (DEMIER, Felipe. Do movimento operrio para a universidade...Op. cit.), intitulado Len Trotsky e a chave para o entendimento da periferia do capitalismo. Em funo do enfoque do presente trabalho, o material extrado sofreu leves alteraes de forma e contedo. 125
internacionalismo de Marx e Engels (que, at a morte de Lnin em 1924, jamais havia sido questionado nos meios bolcheviques), a IC adotou abertamente uma linha etapista no que dizia respeito ao carter da revoluo nos pases atrasados, 311 em sua enorme maioria coloniais ou semicoloniais. Reeditando o evolucionismo vulgar que predominou na II Internacional e que, nas duas primeiras dcadas do sculo XX, vertebrou a leitura dos mencheviques sobre o carter e os sujeitos de uma possvel revoluo russa , 312 a IC passou a negar categoricamente o carter socialista da revoluo nos pases atrasados. Segundo seus tericos, em razo do incipiente desenvolvimento do capitalismo nesses pases o que se expressaria pela vigncia de estruturas sociais pr-capitalistas , tornava-se necessrio nos mesmos a realizao de uma revoluo (etapa) democrtico-burguesa que abrisse caminho ao florescimento das foras produtivas capitalistas, o que s ento colocaria a possibilidade da realizao, em algum dia longnquo, de uma revoluo socialista. Essa compreenso da IC acerca do carter das revolues nos pases atrasados coloniais e semicoloniais, longe de reduzir-se a mera elucubrao terica, tinha implicaes diretas nas lutas travadas pelos trabalhadores dos pases submetidos ao imperialismo. A partir de uma viso demasiado esquemtica e etapista, os dirigentes da IC orientavam os partidos comunistas (PCs) dos pases perifricos a estabelecerem alianas com a burguesia nacionalista e/ou a pequena-burguesia com vistas formao de frentes polticas capazes de lutar contra o imperialismo e o feudalismo/latifndio. 313 Desde a segunda metade da dcada de 1920, com exceo do breve interregno 1928-1934, essa foi a estratgia poltica adotada pelos agrupamentos comunistas de linha estalinista nos pases coloniais e semicoloniais ao longo do sculo XX, com destaque para o Oriente e para a Amrica Latina. 314
O primeiro grande momento no qual a linha poltica da IC para esses pases deu sinais de sua natureza equivocada e ativou o debate entre seus adeptos e opositores no seio do movimento comunista internacional foi a revoluo chinesa de 1925-27. A vaga
311 Faz-se necessrio apontarmos aqui que a prpria noo de atraso passvel de ser problematizada, pois, de algum modo, pode levar a um entendimento de que h uma espcie de linha histrica evolutiva a ser seguida pelas naes. No presente trabalho, utilizamos tal conceito na acepo trotskista do mesmo, isto , de um modo que este tenha como seu eixo estruturante a dimenso histrico-temporal das modernizaes industriais capitalistas dos pases aos quais se refere. 312 Evolucionismo este que tambm orientou a poltica dos bolcheviques diante do governo Kerensky at a chegada de Lnin com suas teses em abril de 1917. 313 A aliana proposta pela IC entre a burguesia, a pequena-burguesia urbana, a pequena-burguesia rural (o campesinato) e o proletariado (aliana que teria por finalidade realizar a sonhada revoluo democrtico- burguesa, s vezes chamada apenas de revoluo democrtica) recebeu a denominao de bloco das quatro classes. 314 Com algumas diferenas tticas em relao aos partidos vinculados Unio Sovitica, as correntes polticas que adotaram a linha chinesa a partir da dcada de 1960 tambm possuam essa perspectiva etapista acerca do carter da revoluo nos pases atrasados. 126
revolucionria surgida na China nesse perodo teve como resultante um enorme desastre para o proletariado, o campesinato e o conjunto da militncia comunista do pas. Seguindo orientao da III Internacional, o Partido Comunista Chins (PCCh), procurando aproximar-se da burguesia nacionalista em busca de uma luta contra o imperialismo e os senhores feudais, e objetivando a vitria de uma revoluo democrtica, aliou-se ao Kuomitang, partido nacionalista-burgus liderado pelo general Chiang Kai-Shek, chegando mesmo a se dissolver no interior deste e a se submeter sua disciplina militar. Aps ter, por ordens de Stlin, entregue suas armas ao Kuomitang em meio a um movimento paredista dos operrios em Xangai, os militantes comunistas e milhares de trabalhadores foram literalmente massacrados pelo exrcito de Chiang Kai-Shek. No satisfeitos com a derrota sofrida em funo da poltica oportunista de aliana com Chiang Kai-Shek, os dirigentes da IC orientaram o PCCh a aliar-se com a ala esquerda do partido burgus chins, liderado por Wang-Ching-Wei, que havia provisoriamente rompido com Chiang Kai-Shek. Todavia, no tardou para que o Kuomitang de esquerda comeasse a expulsar de suas fileiras os comunistas e reprimisse as manifestaes operrias. Por fim, com o PCCh praticamente dilacerado, a IC, numa guinada ultra-esquerdista, orientou os comunistas chineses a criarem, praticamente do noite pro dia, conselhos operrios, o que resultou num levante frustrado e em novo massacre, dessa vez em Canto. 315
No obstante todas as alteraes tticas da IC para a PCCh, o que permaneceu intocvel nesse perodo foi a idia de que a China, por ser tratar de um pas com muitas caractersticas ainda pr-capitalistas, deveria necessariamente realizar uma etapa democrtica, o que adiava para um futuro remoto a proposta de uma ditadura do proletariado (revoluo socialista) e impunha a necessidade de uma frente poltica com a burguesia chinesa por parte dos trabalhadores. Achando inevitvel que a histria das naes centrais, avanadas, se reproduzisse nos pases de desenvolvimento retardatrio, Stlin e seus tericos acabavam por atribuir s burguesias dos pases coloniais e semicoloniais um papel revolucionrio, tal como teriam exercido em outro momento histrico as burguesias dos pases nos quais a revoluo burguesa operou de forma clssica. Foi essa a explicao para a
315 Demos aqui uma viso deveras resumida do processo revolucionrio chins de 1925-1927. Vises mais detalhadas podem ser encontradas, entre outras obras, em DEUTSCHER, Isaac. Trotski. O profeta desarmado. (1921-1929). 2 edio. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1984, p. 336-358; SOFRI, Gianni. O problema da revoluo socialista nos pases atrasados in HOBSBAWN, Eric J. Histria do Marxismo VIII (O marxismo na poca da Terceira Internacional: o novo capitalismo, o imperialismo, o terceiro mundo). 2 edio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 329-373 e SCHRAM, Stuart. Mao Tse-Tung. Rio de Janeiro: Biblioteca Universal Popular, 1968, p. 93-140. Tratando do papel do debate sobre a revoluo chinesa na constituio do trotskismo brasileiro no incio dos anos 30, Jos Castilho Marques Neto tambm realizou uma boa sntese do perodo revolucionrio chins de 1925-1927: MARQUES NETO, Jos Castilho. Solido revolucionria: Mario Pedrosa e as origens do trotskismo no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993, p. 68-87. 127
poltica da IC para a China, assim como para outros diversos pases atrasados ao longo do sculo XX. No coincidentemente, todas tiveram um desfecho muito similar ao chins. 316
importante lembrarmos que, conforme se desenvolvia o estalinismo, as diretrizes polticas da IC, com todas as suas alteraes tticas, passavam a estar cada vez mais determinadas pelos rumos polticos do Estado sovitico. Os interesses e as estratgias polticas da burocracia estalinista, portanto, acabavam por condicionar as deliberaes da IC, que constituam, na prtica, uma espcie de poltica externa da Unio das Repblicas Socialistas Soviticas (URSS). Assim, possvel entrever uma relao entre a defesa de etapa democrtica (capitalista) da revoluo nos pases atrasados, que tinha como norte a soluo da questo agrria para os camponeses, e a poltica econmica levada a cabo pela direo da Unio Sovitica no perodo 1924-1927 centrada na defesa a qualquer custo da aliana com o campo (pequena-burguesia rural), expressa na proposta bukharinista do socialismo a passos de tartaruga que resultava, na prtica, em um favorecimento dos proprietrios rurais abastados (Kulaks), de mentalidade e interesses capitalistas, em detrimento de um processo de coletivizao da produo agrcola. Do mesmo modo, como j antecipamos, a virada de plo oposto, iniciada pela ruptura de Stlin com a linha direitista de Bukharin em fins de 1927 e materializada, a partir de 1928, na acelerada e forada coletivizao dos campos da Unio Sovitica, encontrou um equivalente internacional na adoo por parte da IC da ultra- esquerdista tese do terceiro perodo a qual, por meio da sectria linha poltica da classe contra classe, orientava os PCs a se livrarem de qualquer influncia pequeno-burguesa em seus programas, assim como rejeitava (conforme j dito) a possibilidade de aliana com os partidos social-democratas (social-fascistas). Em funo de sua crtica aos rumos da poltica econmica da Unio Sovitica, Len Trotsky se encontrava na oposio direo do PCUS desde 1923, quando o afastamento de Lnin por motivos de sade se tornou irreversvel. 317 Em finais da dcada de 1920, um novo
316 Seriam necessrios rios de tinta para citarmos todas as derrotas sofridas pelo proletariado dos pases atrasados por conseqncia de suas direes polticas que, guiadas por uma perspectiva etapista, nutriam uma crena na possibilidade das chamadas burguesias nacionais desempenharem um papel revolucionrio em aliana com os trabalhadores contra o imperialismo. Acreditamos que os inmeros golpes militares contra- revolucionrios latino-americanos nas dcadas de 1960 e 1970 levados a cabo pelo imperialismo e as burguesias nativas num momento no qual os PCs do continente ainda apostavam todas suas fichas em revolues democrtico-burguesas j nos servem de exemplos suficientes ao que afirmamos. 317 Quando Lnin adoeceu definitivamente, em 1923, o que levaria ao seu falecimento em janeiro de 1924, o PCUS passou a ser dirigido na prtica por um triunvirato composto por Zinoviev, Kamenev e Stlin, com destaque para esse ltimo. Trotsky, nesse perodo, dirigiu a chamada Oposio de Esquerda (Oposio de 1923), que exigiu uma maior planificao e centralizao da economia, com vistas a uma maior industrializao do pas. Cerca de trs anos depois, Zinoviev e Kamenev afastaram-se de Stlin, agora mais prximo de Bukharin, e juntaram a sua oposio (Oposio de Leningrado) Oposio de Esquerda de Trotsky, o que deu origem chamada Oposio Unificada. Em 1927, esta ltima foi expulsa do partido pela direo Stlin-Bukharin (centro e direita do partido, respectivamente), o que fez com que tanto Zinoviev e Kamenev como alguns adeptos de Trotsky capitulassem e retornassem ao partido a partir de 1928. Muitos desses militantes, justificando 128
debate acirrado e aberto se deu entre Trotsky e a frao estalinista do partido, tendo agora como eixo a poltica da IC diante da revoluo chinesa. Defendendo que a revoluo na China s poderia ter um carter socialista, o que colocava na ordem do dia a bandeira da ditadura do proletariado, Trotsky condenou implacavelmente a poltica de submisso burguesia chinesa efetivada pelo PCCh (traduzida, como vimos, na subordinao deste ao Kuomitang) por orientao da IC. Segundo Trotsky, somente a conquista do poder poltico pelo proletariado chins poderia resolver as questes deixadas de lado pela dbil e impotente burguesia chinesa, em especial as questes agrria e nacional. 318
Por conta disso, sofreu uma chuva de ataques dos tericos oficiais do PCUS, que o acusavam de querer saltar a etapa democrtica da revoluo nos pases atrasados, confundindo, assim, as revolues burguesa e socialista. Por defender o protagonismo da classe operria nos processos revolucionrios dos pases atrasados em geral, j que s esta poderia, segundo Trotsky, liderar o campesinato na busca de seus objetivos, foi tambm acusado de desconsiderar a importncia dos camponeses enquanto sujeito social da revoluo. Segundo os tericos de Stlin, esses equvocos de Trotsky seriam os mesmos cometidos por ele desde 1906, quando elaborou suas primeiras anlises sobre o carter da revoluo que se deveria realizar na Rssia (um pas atrasado) e seus conseqentes sujeitos sociais e polticos. Ardilosamente, os estalinistas resgataram ao final dos anos 20 polmicas havia muito superadas entre Lnin e Trotsky datadas da primeira dcada do sculo XX e, de modo falsificador, tentaram demonstrar como o ltimo sempre estivera oposto ao primeiro quanto s leituras do processo revolucionrio russo aberto em 1905. Como o combate de Trotsky ao etapismo da IC estava intimamente ligado a sua crtica teoria do socialismo em um s pas de Stlin-Bukharin (j que, como analisaremos um pouco mais frente, essas duas estratgias da IC estalinizada repousavam sobre as mesmas bases materiais e filosficas), o ex-lder do Exrcito Vermelho, devido sua perspectiva internacionalista, foi descrito s massas russas como um incrdulo nas potencialidades revolucionrias do proletariado sovitico. Diante da sucesso de erros da IC que culminavam em derrotas do proletariado mundial e frente necessidade de responder aos ataques de seus adversrios, Trotsky viu-se obrigado a produzir uma srie de trabalhos (livros, documentos e cartas) nos quais exps sua concepo acerca da revoluo dos pases atrasados e props encaminhamentos prticos
sua volta aos quadros partidrios, alegaram poca que Stlin, quando iniciou a coletivizao dos campos em 1928, realizava uma ruptura com a direita (Bukharin) e comeava a adotar o programa da Oposio. A imensa maioria desses bolcheviques foi assassinada por Stlin nos processos de 1936. Ver DEUTSCHER, Isaac. Trotski. O profeta desarmado. Op. cit; DEUTSCHER, Isaac. Trotski. O profeta banido. Op. cit.; e SAGRA, Alicia. Op. cit. 318 A questo da debilidade das burguesias atrasadas ser vista por ns um pouco mais frente. 129
luta da classe trabalhadora nos mesmos. Tal como seus opositores polticos, tomou a experincia russa de 1905-1917 como exemplo histrico concreto das teses que defendia, dado que a Rssia, assim como a China o centro das polmicas entre os comunistas no momento , se constitua, quando se deu a Revoluo de Outubro (e tambm depois), em uma nao atrasada, embora imperialista. 319 Resgatando seus escritos desde 1906 nos quais j apontava a possibilidade de uma revoluo socialista na Rssia sem a necessidade de uma etapa democrtica (burguesa) anterior, Trotsky buscou sistematizar suas posies que ficariam conhecidas como a teoria da revoluo permanente. A defesa do revolucionrio russo da tese de que os pases coloniais e semicoloniais no poderiam (e nem mesmo necessitavam) conhecer uma etapa democrtico-burguesa em sua histria (e que, portanto, o que se colocava era a necessidade da ditadura do proletariado) tinha como pressuposto terico a idia de que, por estarem integrados numa totalidade o sistema capitalista internacional , esses pases de desenvolvimento capitalista ultra-retardatrio no poderiam repetir o curso histrico vivido pelas naes pioneiras do capitalismo, onde a revoluo burguesa assumiu contornos que ficariam conhecidos como clssicos. Se, pelo fato de terem realizado as suas revolues com atraso de muitas dcadas em relao a naes como Frana, Inglaterra e Estados Unidos, pases tardios (atrasados) como Alemanha, Itlia e Japo j no haviam podido reproduzir o modelo revolucionrio das primeiras (e, entre outras coisas, no conheceram uma etapa democrtica), 320 os pases coloniais e semicoloniais, extremamente atrasados e submetidos ao imperialismo, no poderiam sequer sonhar em alguma fase revolucionria (democrtica) intermediria entre a submisso ao domnio imperialista e a conquista do poder poltico pelo proletariado. interessante aqui chamarmos a ateno para o fato de que Trotsky, mesmo sem grandes preocupaes nominativas, distinguia, dentre o conjunto das naes atrasadas, aquelas que conheceram seu processo de revoluo burguesa quando o imperialismo ainda no se constitua como um fenmeno dado, e aquelas que, mais retardatrias ainda, realizavam seu desenvolvimento capitalista j na sua rbita. Desse modo, mesmo sendo todos pases de desenvolvimento retardatrio, atrasados distintos, portanto, das naes pioneiras,
319 No obstante ser fortemente permeado pelo capital estrangeiro, em especial o francs, o Imprio czarista russo era conformado por uma enorme rea colonial, tanto em seu lado ocidental quanto oriental. 320 Como vimos, Lnin, com a idia de via prussiana (LNIN, V. O programa agrrio da social-democracia russa na primeira revoluo russa (1905-1907). Op. cit.), e posteriormente Gramsci, com seu conceito similar de revoluo passiva (GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. volume III. Op. cit.), alm de Barrington Moore Jr., com sua frmula de revoluo pelo alto (MOORE Jr., B. Op. cit.), foram alguns dos tericos que tambm observaram as particularidades das revolues burguesas nos pases tardios. Todos, a seu modo, compreenderam que o modelo clssico das revolues burguesas no se repetia de forma inexorvel em pases de formaes sociais distintas. A idia gramsciana de revoluo passiva ser por ns retomada na parte deste trabalho dedicada ao marxista sardo. 130
avanadas , haveria uma grande diferena entre aqueles que, em funo de sua modernizao industrial ter se dado durante a passagem do capitalismo concorrencial ao monopolista, somaram-se ao bloco de naes imperialistas, e os que, demasiadamente atrasados, s conheceram o desenvolvimento das relaes e foras produtivas capitalistas quando o imperialismo encontrava-se j como uma realidade totalmente inescapvel, tornando-se, portanto, a ele submetidos. Nesse sentido, enquanto algumas naes de desenvolvimento capitalista industrial tardio como Alemanha, Itlia e Japo, e, outras mais retardatrias ainda, como Rssia, Espanha e Portugal, encerravam um carter indiscutivelmente imperialista, pases extremamente atrasados (hipertardios), 321 como China, ndia, Brasil, Mxico e frica do Sul, encontravam-se, seja sob a forma de colnias ou de semicolnias, completamente sob a dominao do imperialismo. Contudo, a categoria de atrasado que nos fundamental para compreender a leitura do processo histrico proposta por Trotsky a partir de sua lei do desenvolvimento desigual e combinado. 322
Por conta da desigualdade de ritmo do desenvolvimento do capitalismo no plano internacional (lei do desenvolvimento desigual, de Lnin), 323 os pases atrasados, segundo Trotsky, acabavam por possuir uma historicidade prpria no que diz respeito ao desenvolvimento do capitalismo no seu interior, marcada pela assimilao dos elementos mais modernos das naes avanadas e sua adaptao a condies materiais e culturais arcaicas. Esta superposio dialtica entre inovaes tecnolgicas, polticas e culturais produzidas pelos pases avanados e relaes sociais muitas vezes pr-capitalistas presentes nos ambientes atrasados se constituiria na essncia combinada do desenvolvimento capitalista
321 O conceito de hipertardio no foi usado por Trotsky, e sim por muitos autores que, muito provavelmente, beberam na fonte do terico bolchevique para interpretar os diferentes modelos de desenvolvimento capitalista. 322 Avisamos ao leitor que a diviso que propusemos, a partir dos escritos de Trotsky, no interior do conjunto das naes atrasadas apresenta um grau de abstrao bastante elevado. O critrio utilizado por ns (segundo nosso entendimento acerca da viso de Trotsky) para conformar estes dois blocos de pases atrasados foi o fato de que alguns desses pases foram imperialistas enquanto outros foram (e so) submetidos ao imperialismo (coloniais e semicoloniais). Como sabemos, a relao que as naes estabelecem com o imperialismo determinante para os rumos da luta de classes e, nesse sentido, consideramos til e conveniente separar, por exemplo, o Brasil da Espanha e a China da Itlia. Essa diviso , contudo, deveras abrangente. Se, por um lado, Alemanha e Rssia eram ambas imperialistas, por outro, era incomparvel o desenvolvimento econmico e industrial existente entre as mesmas nas duas primeiras dcadas do sculo XX. Do mesmo modo, no incio desse sculo, o Japo, com seu imperialismo crescente, no poderia ser igualado simplesmente a Portugal e Espanha, que encontravam enormes dificuldades para realizar sua modernizao capitalista. Soma-se a isso o fato de alguns pases atrasados, justamente em funo de seu processo de industrializao tardio, marcado pela rapidez e pela queima de etapas, alcanaram patamares do desenvolvimento das foras produtivas iguais e at mesmo superiores ao dos pases originrios (foi o caso da Alemanha, por exemplo). Nesse sentido, tornaram-se, do ponto de vista tcnico e industrial, pases extremamente avanados, carregando, contudo, traos indelveis de seu atraso histrico, em especial no que diz respeito formao poltica e cultural de suas classes dominantes. Por fim, destacamos ainda que no bloco dos pases atrasados submetidos ao imperialismo existe tambm uma enorme diversidade entre seus componentes; mesmo sendo todos pases dominados pelo capital estrangeiro e seus agentes internos, no se podem negar as substantivas diferenas existentes entre, por exemplo, um pas como o Brasil (Estado independente) e outro como a frica do Sul ( poca dos textos de Trotsky, uma colnia da Gr-Bretanha). 323 LNIN, V. O desenvolvimento do capitalismo na Rssia: o processo de formao do mercado interno para grande indstria. 3 edio. So Paulo: Nova cultural, 1988, 2 volumes.
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realizado pelos pases retardatrios, especialmente pelos coloniais e semicoloniais. Na concepo de Trotsky, essa forma particular de desenvolvimento do capitalismo determinaria diretamente a formao e a relao entre as classes sociais, o que, conseqentemente, acabaria por definir quais as classes que poderiam ou no realizar as chamadas tarefas democrticas. Em outras palavras, o modo combinado como o capitalismo se desenvolvera designaria o carter da revoluo e os sujeitos sociais revolucionrios nos pases atrasados, em especial nos que se encontravam sob o jugo do imperialismo. A adio, por parte de Trotsky, do elemento combinado na lei do desenvolvimento desigual de Lnin fez com que a perspectiva do primeiro concernente ao desenvolvimento das naes atrasadas recebesse o nome de lei do desenvolvimento desigual e combinado. 324
No entanto, talvez por certo perfil de historiador que encerrava, Trotsky nunca produziu uma obra dedicada, em abstrato, a uma anlise de sua lei do desenvolvimento desigual e combinado. Foi sempre a partir de observaes concretas de certas realidades histrico-sociais de pases atrasados que Trotsky formulou e desenvolveu essa categoria. Se, como vimos, foi a poltica etapista do estalinismo na China no perodo 1925-1927 que fez com que Trotsky transformasse a questo da revoluo nos pases atrasados em um campo de batalha para o movimento comunista internacional, as observaes do revolucionrio russo quanto a essa temtica, entretanto, haviam se iniciado, como j indicamos, havia mais de uma dcada.
As origens do conceito de desenvolvimento desigual e combinado Desde 1906, quando, preso nos crceres czaristas por seu papel na Revoluo de 1905, 325 escreveu sua brochura intitulada Balanos e perspectivas, 326 Trotsky j apontara a impossibilidade de realizao de qualquer etapa revolucionria democrtica na histria futura da Rssia nos mesmos moldes como ocorrera na Europa revolucionria de fins do sculo XVIII e parte do XIX. Contrariando o evolucionismo do raciocnio histrico menchevique, Trotsky, levando em conta a gnese, a composio e a relao entre as classes sociais do pas, afirmou o carter socialista da revoluo a ser realizada na Rssia. Somente a ditadura do proletariado, arrastando atrs de si os camponeses, poderia realizar as
324 importante alertarmos que Trotsky nunca se referiu a sua descoberta sobre a particularidade do desenvolvimento histrico dos pases retardatrios como lei do desenvolvimento desigual e combinado, nomeando-a na maioria das vezes apenas como lei do desenvolvimento combinado. Foi o trotskista norte- americano George Novack, em seu livro intitulado A lei do desenvolvimento desigual e combinado da sociedade, quem primeiro batizou o conceito de Trotsky tal como este ficaria conhecido (ver DEMIER, Felipe Prefcio in NOVACK, George. A lei do desenvolvimento desigual e combinado na histria. So Paulo: Sundermann, 2008, p. 11.). 325 Em 1905, Trotsky foi o principal dirigente do soviet de Petrogrado, o mais importante organismo criado pelas massas naquele processo revolucionrio que abalou a monarquia czarista. 326 TROTSKY, L. Resultados y perspectivas. Buenos Aires: El Yunque Editora, 1975. 132
tarefas democrticas deixadas de lado pela impotente, dbil e contra-revolucionria burguesia russa. Em outras palavras: na Rssia, medidas democrticas, de natureza capitalista em especial a reforma agrria , que, nos pases avanados foram realizadas sob a direo burguesia (e que foram vitais para o florescimento do capitalismo), s conseguiriam ser efetivadas na prtica se os trabalhadores se apossassem do Estado. Dada a natureza atrasada do pas, que o deixava com uma srie de tarefas histricas pendentes, impossveis de serem superadas ainda no plano do capitalismo, a classe trabalhadora no poder teria que combinar tarefas democrticas e socialistas no caminho da construo de uma nova sociedade que, por sua vez, s poderia ser alcanada com a vitria do proletariado no espectro internacional. O capitalismo russo, portanto, no poderia conhecer nenhuma etapa democrtica em seu desenvolvimento. A bandeira da ditadura do proletariado colocava-se, na perspectiva trotskista, na ordem do dia para os trabalhadores russos. 327
Para alm de toda a caluniosa campanha estalinista realizada a partir da segunda metade da dcada de 1920 para opor Trotsky a Lnin, fato que nos anos seguintes Revoluo de 1905 houve algumas divergncias entre ambos quanto caracterizao do papel a ser desempenhado pelas distintas foras sociais num eventual processo revolucionrio no pas. Se Trotsky, sem receios, apontava a direo do proletariado sobre os camponeses como condio necessria para qualquer revoluo na Rssia, o que o fazia lanar a frmula da ditadura do proletariado (com o apoio dos camponeses), Lnin, por seu turno, tinha dvidas quanto inevitabilidade de uma maioria operria num futuro governo revolucionrio, dado o enorme peso do campesinato no pas. Por conta disso, Lnin trabalhava com a frmula da ditadura democrtica do proletariado e dos camponeses para a Rssia, na qual no deixava muito claro qual a preponderncia de classe (proletariado e campesinato) nos rumos da revoluo russa. A partir dessa frmula ambgua e imprecisa, Lnin, de algum modo, ainda ficava preso idia de que poderia haver alguma revoluo burguesa na Rssia, no sentido em que compreendia que um eventual governo de maioria camponesa, com apoio do proletariado e sem a burguesia , poderia vir a realizar tarefas revolucionrias de cunho democrtico no pas, o que, entretanto, ainda o manteria nos limites do capitalismo. Trotsky, por sua vez, baseando-se nos escritos de Marx e Engels sobre Frana e Alemanha, e em sua
327 Mais de duas dcadas depois, referindo-se ao surgimento de sua teoria da revoluo permanente em 1905, Trotsky afirmou: Ela [a teoria da revoluo permanente] demonstrava que, em nossa poca, o cumprimento das tarefas democrticas, proposto pelos pases atrasados, conduzia diretamente ditadura do proletariado, que coloca as tarefas socialistas na ordem do dia. Nisso consistia a idia fundamental da teoria. Enquanto a opinio tradicional considerava que o caminho para a ditadura do proletariado passa por um longo perodo de democracia, a teoria da revoluo permanente proclamava que, para os pases atrasados, o caminho para a democracia passa pela ditadura do proletariado. Por conseguinte, a democracia era considerada no como um fim em si, que deveria durar dezenas de anos, mas como o prlogo imediato da revoluo socialista, qual se ligava por vnculo indissolvel. Dessa maneira, tornava-se permanente o desenvolvimento revolucionrio que ia da revoluo democrtica transformao socialista da sociedade. (TROTSKY, L. A revoluo permanente. So Paulo: Kairs, 1985, p.24.). 133
prpria observao da realidade russa, considerava o campesinato incapaz de dirigir qualquer processo revolucionrio, restando-lhe apenas a opo de seguir a burguesia ou o proletariado. Contudo, o que essencial que Lnin, tal como Trotsky, jamais vislumbrou a possibilidade de a burguesia russa vir a exercer qualquer papel revolucionrio, democrtico, nos destinos do pas. Guiada por um raciocnio etapista, a maioria da direo dos bolcheviques, tal como os mencheviques, era, at a chegada de Lnin na Rssia em abril de 1917, adepta da idia de que o governo Kerensky poderia realizar a etapa democrtica da revoluo, o que adiava a questo da tomada do poder pelos trabalhadores para um momento bem distante. Como sabido, ao lanar o lema de todo poder aos soviets, Lnin alterou a conduta do partido e colocou a questo da ditadura do proletariado na ordem do dia, aproximando-se definitivamente da leitura de Trotsky sobre o carter da revoluo russa. Como o prprio Lnin analisou mais tarde, as tarefas democrticas da revoluo no foram realizadas nos meses entre fevereiro-outubro de 1917, e sim no perodo iniciado com a tomada do poder pelos trabalhadores em outubro desse ano. Lnin, tomando a experincia histrica da Revoluo de Outubro, reconheceu que sua frmula provisria da ditadura democrtica no se realizou na prtica, e sim a da ditadura do proletariado. Quase dez anos depois de outubro de 1917, diante do processo revolucionrio chins que j mencionamos, Stlin, Bukharin e cia. adotaram a velha frmula frustrada da ditadura democrtica para a China. Contudo, esdruxulamente, essa estratgia foi utilizada pela direo da IC para conduzir o processo revolucionrio sua sonhada etapa democrtica sob direo da burguesia (representada, no caso, pelo Kuomitang), algo que jamais esteve sequer cogitado quando Lnin lanou mo de sua imprecisa frmula contra o czarismo. Logo aps a experincia revolucionria de 1905, Trotsky j se encontrava na contramo do evolucionismo vulgar (etapismo), de fundo economicista, que permeava grande parte do marxismo poca. Em seu Balanos e perspectivas, j se podia ler o seguinte:
O proletariado cresce e se fortalece com o crescimento do capitalismo. Nesse sentido, o desenvolvimento do capitalismo equivale ao desenvolvimento do proletariado para a ditadura. O dia e a hora, porm, em que o poder deve passar para as mos da classe operria no dependem diretamente do nvel das foras produtivas, e sim das condies da luta de classes, da situao internacional e, afinal, de uma srie de elementos subjetivos: tradio, iniciativa, disposio para o combate... possvel que o proletariado de um pas economicamente atrasado chegue ao poder antes do proletariado de um pas avanado do ponto de vista capitalista [...] Considerar que a ditadura do proletariado dependa automaticamente das foras tcnicas e dos recursos de um pas significa repetir um preconceito oriundo de um materialismo econmico simplificado ao extremo. Tal opinio nada tem de comum com o marxismo. A nosso ver, a revoluo russa criar condies sob as quais o poder poder (e, em caso de vitria da revoluo, dever) passar s mos do proletariado antes de terem os polticos do liberalismo burgus a oportunidade de revelar toda a beleza do seu gnio poltico. 328
328 TROTSKY, L. Resultados y perspectivas. Op. cit. p. 38-39. Traduo nossa. Grifos do autor. Trotsky, tanto em Balanos e perspectivas, quanto em outros escritos do mesmo perodo (muitos publicados poca numa obra intitulada Nossa revoluo), recebeu a influncia de Alexander Helphand, mais conhecido como Parvus, destacado pensador marxista que, em suas anlises sobre a sociedade russa, j apontava o proletariado como o 134
Da experincia revolucionria de 1905 at a vitria dos bolcheviques em outubro de 1917, Trotsky, no exlio, publicou vrios artigos e panfletos em peridicos da esquerda europia, em especial os dirigidos por emigrados russos, nos quais defendeu suas concepes acerca da revoluo russa. 329 A incapacidade do governo provisrio russo instaurado a partir da Revoluo de Fevereiro de realizar medidas democrticas significativas fez com que se confirmassem os prognsticos de Trotsky acerca da fragilidade e impotncia da burguesia russa no poder. A congruncia entre as suas vises e as de Lnin referentes estratgia a ser adotada pelo proletariado diante do governo Kerensky (tomada do poder, todo poder aos soviets) teve como corolrio a sua adeso ao partido bolchevique. Uma vez conquistado o poder por este ltimo, Trotsky assumiu funes-chave na conduo do Estado sovitico (Relaes Exteriores, Exrcito Vermelho, poltica econmica etc.) e relegou a segundo plano o debate sobre o carter da revoluo nos pases de desenvolvimento capitalista retardatrio. 330
A revoluo na China e o amadurecimento do conceito Como vimos, seria somente cerca de dez anos depois da Revoluo de Outubro, por ocasio da revoluo chinesa de 1925-1927, que Trotsky retomaria sua produo sobre essa temtica. Imerso diretamente em polmicas com a direo da IC referentes poltica revolucionria para a China, Trotsky buscou sistematizar sua teoria da revoluo para os pases atrasados. Em novembro de 1929, exilado em Alma-Ata aps sua expulso do PCUS, Trotsky concluiu A revoluo permanente, publicada em 1930. 331 Quase que inteiramente baseada no caso chins, a obra respondia aos pesados ataques que o autor recebera dos estalinistas do Komintern por conta das crticas que fez poltica desastrosa do rgo para o Oriente revolucionrio. Defendendo-se dos epgonos 332 que comandavam a IC e de seu ex- companheiro da Oposio de Esquerda, Karl Radek, 333 Trotsky tomou a experincia da
nico sujeito revolucionrio. Nesse sentido, muitos afirmaram que, de certo modo, Parvus co-autor, ao lado de Trotsky, da teoria da revoluo permanente. No obstante sua argcia terica, Parvus acabou por apoiar o imperialismo alemo quando da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Ver DEUTSCHER, Isaac. Trotski. O profeta armado. (1879-1921). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1968 (cap. VI: A revoluo permanente). 329 Entre os jornais com os quais Trotsky colaborou em seu longo exlio na Europa, podemos destacar o Nache Slovo (Nossa Palavra), Novji Mir (O Novo Mundo) e Kievskaia Misl (Pensamento Kieviano). 330 Uma descrio e anlise histrica acerca da trajetria poltica e intelectual de Trotsky desde os primeiros anos do sculo XX at sua expulso do PCUS e da Unio Sovitica em finais da dcada de 1920 pode ser encontrada em DEUTSCHER, Isaac. Trotski. O profeta armado. Op.cit; ____. Trotski. O profeta desarmado. Op. cit; e em TROTSKY, L. Minha vida. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969. 331 TROTSKY, L. A revoluo permanente. Op.cit. 332 O termo epgonos foi utilizado por Trotsky para denominar os burocratas estalinistas que se apoderaram do PCUS e da IC aps a morte de Lnin. 333 Expulso do PCUS em conjunto com a Oposio de Esquerda liderada por Trotsky em fins de 1927, o bolchevique de origem judaico-polonesa Karl Radek escreveu um manuscrito no qual atacou violentamente a teoria da revoluo permanente, como forma de preparar sua capitulao ao partido, o que acabou ocorrendo. 135
Revoluo de Outubro para demonstrar tanto como havia acertado em seus prognsticos feitos desde Balanos e perspectivas (que, como frisa Trotsky em A revoluo permanente, no eram, como diziam os estalinistas e Radek, opostos aos realizados por Lnin, e sim muito prximos destes), como para defender a impossibilidade de uma revoluo democrtico- burguesa na China atrasada e semicolonial. Dado o modo desigual e combinado como o capitalismo se desenvolvera nesse antiqssimo pas oriental, somente a ditadura do proletariado, passando, de modo ininterrupto, ou seja, permanente, das medidas democrticas s medidas socialistas, poderia livr-lo de suas estruturas arcaicas e de sua submisso ao imperialismo. Segundo Alvaro Bianchi, foi em A revoluo permanente que Trotsky produziu a terceira e ltima verso de sua teoria da revoluo permanente. Para Bianchi, a primeira teria sido formulada nos escritos do imediato ps-revoluo de 1905 (em especial, em Balanos e perspectivas), nos quais o ento jovem militante definiu o carter e os sujeitos sociais da revoluo a ser empreendida na Rssia czarista. Uma segunda verso da teoria poderia ser percebida quando Trotsky, aderindo perspectiva leninista de organizao, compreendeu a necessidade de um sujeito poltico o partido bolchevique dirigir o proletariado rumo revoluo (essa compreenso teve como conseqncia prtica a sua adeso e a de seu grupo Mezharaionka [Organizao Interdistrital] ao partido de Lnin). A terceira verso, expressa em A revoluo permanente, seria marcada por um forte vis internacionalista, que vinculava a compreenso do carter da revoluo nos pases coloniais e semicoloniais ao pressuposto analtico de tom-los como elementos constituintes de um sistema internacional, o capitalismo mundial em sua fase imperialista. 334
Toda essa argumentao de Trotsky fundava-se na idia de que o desenvolvimento do capitalismo nas regies atrasadas continha uma historicidade prpria, o que contrariava a lgica da repetio das etapas do capitalismo europeu clssico nos pases coloniais e semicoloniais, tal como apregoava a III Internacional. A forma especfica como o capitalismo se apresentava nos pases atrasados (combinando dialeticamente elementos modernos com estruturas arcaicas) no seria decorrncia, segundo Trotsky, de uma mera questo de estgios diferenciados entre estes e os pases de capitalismo avanado. Essa assertiva, por sua vez, alicerava-se numa perspectiva que compreendia o capitalismo mundial
Todavia, em 1937 foi condenado a dez anos de trabalhos forados e acredita-se que, em algum momento entre 1939 e 1942, foi assassinado, por ordens de Stlin, no local onde cumpria pena. 334 BIANCHI, Alvaro. O primado da poltica: revoluo permanente e transio in Outubro, n. 5. So Paulo, 2001, p. 101-115. Denominando a teoria da revoluo permanente como revoluo do atraso, Baruch Knei- Paz realizou tambm uma boa sntese das idias de Trotsky acerca da revoluo nos pases atrasados; contudo, colocou em xeque a utilidade destas idias para uma ao instrumental (KNEI-PAZ, Baruch. Trtski: revoluo permanente e revoluo do atraso in HOBSBAWM, Eric J. (org.) Histria do marxismo V (o marxismo na poca da Terceira Internacional: A Revoluo de Outubro: O austromarxismo). 2 edio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 159-196). 136
como uma totalidade contraditria, e no como uma mera soma de naes (partes) isoladas. Justamente por serem fragmentos integrados dialeticamente em um todo (o capitalismo mundial), as regies coloniais e semicoloniais no poderiam desenvolver a sua histria em separado, e, portanto, no lhes seria possvel superar seu atraso passando-se a um estgio superior ainda dentro dos marcos do capitalismo. O sistema capitalista, em especial a partir de sua fase imperialista, no deixaria mais espao para esses desenvolvimentos autnomos, impossibilitando que a histria das regies retardatrias repetisse a histria das regies pioneiras. Do mesmo modo, o desenvolvimento histrico das naes centrais dependeu e dependia inteiramente das relaes estabelecidas com as formaes econmico- sociais perifricas. Essa perspectiva totalizante de Trotsky era a base de seu internacionalismo, que se opunha frontalmente teoria do socialismo num s pas sustentada pelos estalinistas, o que o levava defesa de posies polticas completamente distintas desses ltimos. 335 Nos trechos a seguir, extrados de A revoluo permanente, pode-se perceber a imbricao existente entre a concepo de Trotsky acerca do desenvolvimento histrico dos pases atrasados e suas propostas polticas para o proletariado destes:
Como instituir, ento, a ditadura do proletariado em vrios pases atrasados, como a China, a ndia etc.? Respondemos: a histria no se faz por encomenda [...] preciso no tomar, nunca, como ponto de partida a harmonia preestabelecida da evoluo social. Apesar do afetuoso abrao terico de Stlin, a lei do desenvolvimento desigual ainda existe, manifestando sua fora tanto nas relaes entre pases como na correlao das diferentes sries de fenmenos dentro de um mesmo pas. A conciliao do desenvolvimento desigual da economia e da poltica s pode ser obtida na escala mundial. Isso significa, em particular, que o problema da ditadura do proletariado na China no pode ser considerado exclusivamente nos limites da economia e poltica chinesas. E estamos, aqui, diante de dois pontos de vista que se excluem reciprocamente: o da teoria internacionalista e revolucionria da revoluo permanente e o da teoria nacional-reformista do socialismo num s pas. No s a China atrasada, mas nenhum pas do mundo poder construir o socialismo dentro dos seus quadros nacionais: a isso se opem no s as foras produtivas que, altamente desenvolvidas, ultrapassam os limites nacionais, como tambm as foras produtivas que, insuficientemente desenvolvidas, impedem a nacionalizao [...]. Significar isso que todo pas, mesmo um pas colonial atrasado, esteja maduro seno para o socialismo, ao menos para a ditadura do proletariado? No, no significa. Mas, ento, como fazer a revoluo democrtica em geral e nas colnias em particular? Respondo com outra pergunta: E quem disse que todo pas colonial est maduro para a realizao integral e imediata de suas tarefas nacional- democrticas? preciso inverter o problema. Nas condies da poca imperialista, a revoluo nacional-democrtica s pode ser vitoriosa quando as relaes sociais e polticas do pas estejam maduras para levar o proletariado ao poder, como chefe das massas populares [...] Na China, onde o proletariado, apesar da situao excepcionalmente favorvel, foi impedido, pela direo da Internacional Comunista, de lutar pelo poder, as tarefas nacionais se realizaram de maneira miservel, instvel e m, sob o regime do Kuomitang. 336
Partindo dessa interpretao acerca das possibilidades de desenvolvimento dos pases atrasados na poca do imperialismo, Trotsky polemizou com a proposta de uma ditadura
335 Um pouco mais frente voltaremos ao pressuposto filosfico que une as teorias do socialismo num s pas e a da revoluo por etapas (etapismo): a negao do capitalismo enquanto uma totalidade mundial. 336 TROTSKY, L. A revoluo permanente. Op. cit., p. 120-121. 137
democrtica (sob direo da burguesia nacional) lanada para China e demais pases coloniais e semicoloniais pela III Internacional:
No se pode prever quando e em que condies um pas estar maduro para a soluo verdadeiramente revolucionria das questes agrria e nacional. Em todo o caso, podemos afirmar, desde j, com toda a certeza, que tanto a China como a ndia s podero chegar a uma verdadeira democracia popular, isto , operria e camponesa, por meio da ditadura do proletariado. Numerosas etapas diferentes podem esper-los nesse caminho. Sob presso das massas populares, a burguesia ainda dar passos esquerda, para depois ferir o povo de maneira impiedosa. Perodos de dualidade de poderes so possveis e provveis. Uma hiptese, porm, est completamente excluda: a de que possa haver verdadeira ditadura democrtica que no seja a ditadura do proletariado. Uma ditadura democrtica independente s pode ter o carter do Kuomitang, o que significa que ser inteiramente dirigida contra os operrios e os camponeses. preciso compreender e ensinar isso s massas, sem ocultar a realidade das classes com uma frmula abstrata. 337
Itlia, ndia, Espanha e frica do Sul: outras aplicaes do conceito Salvo em seus inmeros escritos sobre a Rssia, nos quais os seus particularismos foram bastante abordados, Trotsky no se dedicou, diferentemente de autores como Antnio Gramsci, a uma reflexo mais sistematizada acerca da chamada questo nacional. Entretanto, em suas anlises sobre diversos pases, buscou sempre compreender as especificidades histrico-sociais de cada um destes, tomando-os sempre, no custa lembrar, como partes de uma totalidade, o capitalismo mundial. Ainda em 1930 (ano da publicao de A revoluo permanente), dando continuidade sua luta contra o etapismo da IC, Trotsky escreveu textos referentes ao carter da revoluo em pases atrasados como Itlia 338 e ndia. 339 Afirmando o papel contra-revolucionrio de todos os setores das classes dominantes desses pases, Trotsky mais uma vez apontava o proletariado como o nico sujeito capaz de dirigir qualquer processo revolucionrio que resolvesse as tarefas democrticas e/ou nacionais neles pendentes. Nesse sentido, para Trotsky, no poderia, na Itlia, ter lugar um regime democrtico (como etapa intermediria entre o fascismo e uma eventual futura ditadura do proletariado) que fosse resultado de uma luta vitoriosa da burguesia italiana contra o regime de Mussolini, 340 do mesmo modo que a batalha pela libertao nacional da
337 Idem. As reflexes de Trotsky acerca dos rumos da revoluo chinesa de 1925-1927 podem ser encontradas tambm, entre outros escritos, nas correspondncias que trocou, poca dos eventos, com bolcheviques como Radek, Alsky e Preobrazhensky (contidas na coletnea TROTSKY, L. La teoria de la revolucin permanente. Compilacin. Buenos Aires: Centro de Estudios, Investigaciones y Publicaciones Len Trotsky [CEIP Len Trotsky], 2000, p. 369-394) e no artigo, escrito em 1938, intitulado La revolucin china (idem, p. 524-535). 338 TROTSKY, L. Problemas de la revolucin italiana in ____. La teoria de la revolucin permanente. Compilacin. Op. cit., p. 549-556. 339 TROTSKY, L. Tareas e peligros de la revolucin en la India in ____. La teoria de la revolucin permanente. Compilacin. Op. cit., p. 539-548. 340 Trotsky, entretanto, admitia a possibilidade de que, na Itlia, pudesse vir a existir no ps-fascismo um regime parlamentar e democrtico. Todavia, em sua concepo, este s poderia ser obra de uma revoluo proletria insuficiente madura e prematura que, abortada, permitiria burguesia, aps uma crise revolucionria, restabelecer, de modo contra-revolucionrio, seu domnio sobre bases democrticas. De modo algum, um possvel regime parlamentar e democrtico na Itlia poderia decorrer de uma exitosa revoluo democrtico- 138
ndia do jugo do imperialismo ingls no poderia contar com a participao dos opressores internos, os quais, conforme crescia a luta das massas pela independncia, tinham seus desejos de separar-se dos estrangeiros diminudos. 341
Nos primeiros anos da dcada de 1930, em funo do processo revolucionrio espanhol iniciado com a queda da ditadura bonapartista de Primo de Rivera (1930) e a subsequente derrocada da monarquia (1931), Trotsky ps-se a produzir uma srie de escritos dedicados a analisar o papel poltico a ser desempenhado pelo proletariado daquele pas para que a revoluo viesse a ser bem-sucedida. 342 Constatando o carter dbil da burguesia espanhola, Trotsky, mais uma vez, defendeu que somente o proletariado, em aliana com os camponeses, poderia realizar as tarefas de uma revoluo democrtico-burguesa na Espanha atrasada, como a reforma agrria e a destruio dos privilgios da Igreja Catlica. Por conta disso, em seus escritos do perodo 1934-1937 (decisivo para o destino da Revoluo Espanhola), condenou violentamente a poltica de frente popular levada a cabo pela Internacional Comunista na Espanha. 343 Creditando um carter progressista burguesia espanhola e orientando a aliana dos operrios e camponeses com ela, os estalinistas defenderam, poca, que a revoluo deveria se encerrar nos marcos de uma repblica democrtico-burguesa, o que impediria, segundo a IC e seus adeptos, a vitria do fascismo. A fragorosa derrota do proletariado espanhol na revoluo, assim como a responsabilidade da IC e do Partido Comunista Espanhol nesse histrico fracasso, so bastante conhecidos por todos. A burguesia espanhola, depositria da confiana dos estalinistas, demonstraria todo o seu carter progressista e democrtico ao receber o general Francisco Franco de braos abertos. Em 1935, quando se encontrava dedicado a combater a poltica de frente popular implementada pela IC na Espanha, Trotsky escreveu ainda breves comentrios acerca das tarefas do movimento revolucionrio na frica do Sul, ento colnia da Gr-Bretanha. Mais uma vez afirmando a existncia de uma dinmica histrica prpria aos pases atrasados, coloniais e semicoloniais, defendeu que a superao das questes agrria, nacional e racial estava diretamente relacionada luta pela implementao da ditadura do proletariado
burguesa encabeada pela classe dominante. TROTSKY, L. Problemas de la revolucin italiana. Op. cit., p. 552-553. 341 TROTSKY, L. Tareas e peligros de la revolucin en la India. Op. cit., p. 541. 342 Os escritos de Trotsky acerca da Revoluo Espanhola podem ser encontrados em TROTSKY, L. La revolucin espaola. S.l: El Puente Editorial, s.d. 343 Como j vimos, a partir de fins de 1934, a IC promoveu drstico um giro poltico oportunista, substituindo a sectria linha da classe contra classe (referenciada na tese do terceiro perodo) pela policlassista estratgia das frentes populares. 139
(negro e branco) no pas, opondo-se, dessa forma, a qualquer aliana com os setores dominantes nativos em nome de uma plataforma comum de cunho antiimperialista. 344
A Revoluo Russa: demonstrao histrica da validade do conceito Entre 1930 e 1932, exilado na Turquia aps ter sido expulso da Unio Sovitica, Trotsky produziu A histria da revoluo russa, obra da qual j fizemos uso anteriormente. Numa brilhante descrio e anlise histrica do processo revolucionrio russo desde 1905 at a tomada do poder pelos bolcheviques em outubro de 1917, Trotsky buscou em vrios momentos da obra demonstrar como suas teses acerca do desenvolvimento capitalista e conseqentes possibilidades revolucionrias da atrasada Rssia (teses elaboradas, como vimos, a partir 1906) tinham sido confirmadas pelos eventos histricos. No primeiro captulo, intitulado Peculiaridades do desenvolvimento da Rssia, Trotsky apresentou uma sntese extremamente rica da evoluo histrica russa, destacando todas as contradies presentes em um pas que iniciou bastante tardiamente sua modernizao industrial capitalista. Como j foi exposto aqui, a idia de que as naes atrasadas desenvolviam seu capitalismo combinando dialeticamente elementos modernos e arcaicos esteve presente nas anlises de Trotsky sobre a Rssia desde Balanos e perspectivas. Foi, contudo, em Peculiaridades..., que a lei do desenvolvimento desigual e combinado apareceu pela primeira vez nomeada (ainda que, conforme j advertimos, no completamente):
Um pas atrasado assimila as conquistas materiais e ideolgicas dos pases adiantados. No significa isto, porm, que siga servilmente estes pases, reproduzindo todas as etapas de seu passado. A teoria da repetio dos ciclos histricos a de Vico e, mais tarde, de seus discpulos baseia-se na observao dos ciclos percorridos pelas estruturas pr-capitalistas e, parcialmente, sobre as primeiras experincias do desenvolvimento capitalista. O carter provincial e transitrio de todo processus admite, efetivamente, certas repeties das fases culturais em meio ambiente sempre novos. O capitalismo, no entanto, marca um progresso sobre tais condies. Preparou e, em certo sentido, realizou a universalidade e a permanncia do desenvolvimento da humanidade. Fica, assim, excluda a possibilidade de uma repetio das formas de desenvolvimento em diversas naes. Na contingncia de ser rebocado pelos pases adiantados, um pas atrasado no se conforma com a ordem de sucesso: o privilgio de uma situao historicamente atrasada e este privilgio existe autoriza um povo ou, mais exatamente, o fora a assimilar todo o realizado, antes do prazo previsto, passando por cima de uma srie de etapas intermedirias. Renunciam os selvagens ao arco e a flecha e tomam imediatamente o fuzil, sem que necessitem percorrer as distncias que, no passado, separaram estas diferentes armas. Os europeus que colonizaram a Amrica no recomearam ali a Histria desde seu incio. Se a Alemanha e os Estados Unidos ultrapassaram economicamente a Inglaterra, isso se deveu exatamente ao atraso na evoluo capitalista daqueles dois pases [...] O desenvolvimento de uma nao historicamente atrasada conduz, necessariamente, a uma combinao original das diversas fases do processus histrico. A rbita descrita toma, em seu conjunto, um carter irregular, complexo, combinado. A possibilidade de superar os degraus intermedirios no , est claro, absoluta; realmente, est limitada pelas capacidades econmicas e culturais de um pas. Um pas atrasado frequentemente rebaixa
344 TROTSKY, L. Sobre las tesis sudafricanas in ____. La teoria de la revolucin permanente. Compilacin. Op. cit., p. 561-567. 140
as realizaes que toma de emprstimo ao exterior para adapt-las sua prpria cultura primitiva. O prprio processo de assimilao apresenta, neste caso, um carter contraditrio. [...] As leis da Histria nada tm em comum com os sistemas pedantescos. A desigualdade do ritmo, que a lei mais geral do processus histrico, evidencia-se com mais vigor e complexidade nos destinos dos pases atrasados. Sob o chicote das necessidades externas, a via retardatria v-se na contingncia de avanar aos saltos. Desta lei universal da desigualdade dos ritmos decorre outra lei que, por falta de denominao apropriada, chamaremos de lei do desenvolvimento combinado, que significa aproximao das diversas etapas, combinaes das fases diferenciadas, amlgama das formas arcaicas com as modernas. Sem esta lei, tomada, bem entendido, em todo o seu conjunto material, impossvel compreender a histria da Rssia, como em geral a de todos os pases chamados civilizao em segunda, terceira ou dcima linha. 345
Fazendo uso dessas consideraes terico-histricas, Trotsky, ao longo de Peculiaridades..., exps como as relaes entre desenvolvimento econmico, Estado e classes sociais ao longo da histria russa distinguiam-se das ocorridas nos pases originrios do capitalismo. Nesse sentido, Trotsky dava continuidade abordagem da evoluo russa que realizara nos primeiros captulos de Balanos e perspectivas; agora, contudo, tinha em mos, em funo dos vinte e seis anos transcorridos entre as duas obras, toda a experincia da vitoriosa Revoluo Russa de outubro de 1917. Assim, se em 1906, o jovem intelectual, a partir da observao da revoluo do ano anterior (que atingiu, mas no derrubou o czarismo), tinha efetivado uma interpretao histrica do desenvolvimento do capitalismo na Rssia e traado prognsticos polticos sobre os rumos revolucionrios do pas, em 1932, o maduro Trotsky pde se debruar sobre o passado russo inteiramente como historiador, pois j lhe era possvel delimitar melhor no tempo o seu objeto de anlise. O caminho revolucionrio que havia levado o proletariado de um pas atrasado ao poder antes mesmo do que qualquer outro de uma nao avanada, prescindindo de uma revoluo democrtico-burguesa, j havia se encerrado, e, portanto, j podia ser tomado como algo a ser analisado pelas lentes histricas, e no simplesmente como uma previso poltica que poderia ou no se verificar. Alis, quando o dissidente bolchevique se ps a historiar a Revoluo Russa, esta j se encontrava em uma nova etapa. Desde quando aventou pela primeira vez a hiptese de que os trabalhadores poderiam tomar o poder na Rssia antes que o fizessem seus congneres nos pases avanados, Trotsky sempre deixou claro que a construo do socialismo no interior das fronteiras russas dependeria inteiramente da vitria dos trabalhadores no resto do mundo, em especial na Europa. O socialismo jamais poderia limitar-se aos estreitos limites nacionais, j superados pelo prprio capitalismo superao esta que, segundo muitos marxistas, seria uma das principais fontes de crise do sistema social vigente. Para uma nao atrasada economicamente, o tempo no qual um Estado operrio oriundo de uma revoluo vitoriosa poderia manter suas bases e conquistas sociais isolado pelo mundo capitalista seria ainda
345 TROTSKY, Len. A Histria da Revoluo Russa. Op. cit, v. I, p. 24-25. Grifos do autor. 141
menor do que o correspondente para qualquer nao avanada. No raciocnio de Trotsky (corroborado por Lnin at a sua morte), o mesmo atraso histrico da Rssia que teria permitido sua classe operria a conquista do poder poltico antes de a revoluo rebentar no Ocidente converter-se-ia, em caso de confinamento da revoluo nas fronteiras nacionais, em um inimigo implacvel da manuteno do Estado operrio no pas. Com os fracassos das revolues na Europa e no Oriente, com destaque para a alem e a chinesa em grande parte decorrentes, respectivamente, da poltica da social-democracia e da IC estalinizada , o isolamento da Rssia tornou-se uma realidade e, com isso, comearam a se confirmar mais algumas das previses de Trotsky. A ausncia de uma situao revolucionria a partir de 1923, na Europa, combinada poucos anos mais tarde com as derrotas no Oriente, criaram as condies materiais para o fortalecimento dos elementos burocrticos do regime sovitico, fazendo com que a ditadura do proletariado fosse substituda por uma ditadura burocrtica sobre o proletariado. 346
Foi, portanto, completamente imerso na luta poltica contra a burocracia dirigente da Unio Sovitica e da IC, que Trotsky lanou seu olhar histrico sobre a tomada do poder pelos bolcheviques em outubro de 1917. Se, por um lado, como dissemos, verdade que, diferentemente de quando publicou Balanos e perspectivas, Trotsky j tinha poca de A histria da revoluo russa seu objeto histrico delimitado, por outro, tal como nos imediatos anos ps-1905, o terico bolchevique mergulhava no passado da Rssia almejando resolver as questes colocadas no presente que determinariam a vitria ou a derrota do proletariado russo. Se, antes, a revoluo era algo a ser realizado por intermdio da conquista do Estado pelo proletariado, agora, deveria ser colocada por ele nos rumos certos para que fosse plenamente completada, o que s seria possvel a partir de uma posio internacionalista do Estado sovitico que, por sua vez, apenas tornar-se-ia vivel com a derrubada da camarilha burocrtica que se apossara do poder aps a morte de Lnin. Destarte, tanto no que dizia respeito explicao histrica da Revoluo de Outubro, quanto no que se referia aos motivos de sua degenerao burocrtica, Trotsky apontava o atraso da Rssia como um elemento fundamental. Foi destacando essa importante caracterstica da nao que Trotsky iniciou o j mencionado captulo Peculiaridades...: O trao essencial e o mais constante da Histria da Rssia a lentido com que o pas se
346 A obra de Trotsky dedicada mais diretamente ao estudo da degenerao do regime sovitico , sem dvida, A revoluo trada. Escrito em 1936, esse trabalho talvez seja at hoje o mais significativo no que diz respeito anlise sociolgica da burocracia sovitica dos anos 30 e, sem dvida, fornece elementos para o entendimento da prpria restaurao capitalista da Unio Sovitica, ocorrida mais de cinqenta anos depois de sua publicao. TROTSKY, L. A revoluo trada. O que e para onde vai a URSS. 2 edio. So Paulo: Jos Lus e Rosa Sundermann, 2005. 142
desenvolveu, apresentando como conseqncia uma economia atrasada, uma estrutura social primitiva e baixo nvel cultural. 347
Mencionando o clima rigoroso, o vento leste e as migraes asiticas que incidiam sobre a populao da gigantesca plancie (populao que lutara contra os nmades at fins do sculo XVII), Trotsky buscou explicar a prolongada estagnao que marcara a agricultura russa (Tomava-se posse da natureza em extenso, no em profundidade.). 348
Segundo Trotsky, enquanto os brbaros ocidentais se instalaram sob as runas da civilizao romana e fizeram uso, por exemplo, tanto de pedras antigas quanto de material de construo, os eslavos do Oriente, em suas inspitas plancies, no encontraram nada para herdar: o nvel de seus predecessores era ainda mais baixo do que o seu. 349
Articulando elementos geogrficos e condies sociais, Trotsky procurou explicar as origens das desigualdades entre os desenvolvimentos (econmico, poltico e cultural) da Europa e da Rssia:
Os povos da Europa Ocidental, cedo bloqueados em suas fronteiras naturais, criavam as aglomeraes econmicas e culturais das cidades industriais. A populao da plancie oriental, to logo se sentia comprimida, embrenhava-se nas florestas ou ento emigrava para a periferia, nas estepes. Os elementos camponeses mais dotados de iniciativa e mais empreendedores transformavam-se no lado oeste, em cidados, artfices, mercadores. No leste, certos elementos nativos, audaciosos, estabeleceram-se como comerciantes, porm em maior nmero fizeram-se cossacos, guarda-fronteiras ou colonos. O processus de diferenciao social, intenso no Ocidente, retardava-se no Oriente e se difundia por expanso. O czar da Moscvia apesar de cristo governa um povo de esprito preguioso, escrevia Vico, contemporneo de Pedro I. O esprito preguioso dos moscovitas era um reflexo do ritmo lento da evoluo econmica, das relaes amorfas entre as classes, da indigncia de sua histria anterior. 350
Dando continuidade sua descrio, Trotsky destacou o carter meio-europeu, meio- asitico da Rssia. Segundo ele, no somente pela posio geogrfica, mas tambm pela histria e vida social, o pas ocupava, entre a Europa e a sia, uma situao intermediria. Diferenciava-se do Ocidente, europeu, mas tambm do Oriente, asitico, embora aproximando-se em alguns perodos, em vrios aspectos, ora de um ora de outro. 351 O Oriente teria sido o responsvel pelo jugo trtaro-mongol, fundamental na construo do Estado russo; o Ocidente, por sua vez, teria sido um inimigo ainda mais temvel que o Oriente, ao mesmo tempo que um mestre. No foi possvel Rssia formar-se segundo os moldes do Oriente, compelida como estava [a] acomodar-se presso militar e econmica do Ocidente. 352
347 TROTSKY, Len. A Histria da Revoluo Russa. Op. cit., v. I, p. 23. 348 Idem. 349 Idem. 350 Idem. 351 Idem, p. 24. 352 Idem. 143
Essas diferentes presses s quais o pas esteve exposto, em especial as vindas da Europa, teriam constitudo aspectos essenciais para o desenvolvimento das relaes entre as classes sociais e o Estado na Rssia, e, consequentemente, para a conformao das suas estruturas polticas:
Sob a presso da Europa mais rica, o Estado russo, em comparao com o Ocidente, absorvia uma parte proporcional bem maior da riqueza pblica, e, desta forma, no apenas condenava as massas populares a uma redobrada misria, mas ainda enfraquecia as bases das classes possuidoras. Tendo, porm, o Estado necessidade do apoio dessas ltimas, apressava e regulamentava sua formao. Como resultado, as classes privilegiadas, burocratizadas, jamais conseguiram erguer-se em toda a sua pujana, e o Estado russo no fez seno aproximar-se ainda mais dos regimes despticos da sia. A autocracia bizantina, adotada oficialmente pelos czares moscovitas no incio do sculo XVI, submeteu os grandes senhores feudais boiardos com o auxlio da nobreza, e dominou-os transformando em servos a classe camponesa e erigindo-se por tais meios em monarquia absoluta: o absolutismo de So Petersburgo. 353
Pode-se perceber em Trotsky a idia de que, diferentemente do caso do absolutismo europeu clssico, o forte papel do Estado na Rssia, e em particular do regime autocrtico- czarista, repousava no na fora das classes dominantes da sociedade, mas, pelo contrrio, na sua fraqueza. importante ressaltar aqui que essa desproporo de consistncia entre classes proprietrias e Estado seria uma constante nas suas anlises do desenvolvimento dos pases atrasados. Lembramos, tambm, que muitos cientistas sociais do sculo XX que se puseram a estudar o desenvolvimento do capitalismo nas naes retardatrias se aproximaram muito dessa perspectiva interpretativa. 354
Para Trotsky, essa dependncia das classes proprietrias russas frente ao Estado seria um dos elementos precpuos para se compreender a forma como se desenvolveu a indstria moderna no pas e, consequentemente, a extrema debilidade da burguesia nacional. Antes, porm, do prprio processo de modernizao capitalista, a classe burguesa, em funo do lento desenvolvimento econmico da nao e dos vnculos externos do comrcio russo, j se encontrava subordinada ao capital estrangeiro europeu:
A indigncia, trao caracterstico no somente do feudalismo russo, porm, de toda a histria da antiga Rssia, encontrou sua mais triste expresso na falta de cidades do verdadeiro tipo medieval, como centro de artfices e mercadores. O artesanato, na Rssia, no conseguiu desvincular-se da agricultura e conservou o carter de pequenas indstrias locais. As cidades russas de outrora eram centros comerciais, militares, administrativos, centros, portanto, de consumo, e no de produo [...] verdade que as pequenas indstrias rurais, espalhadas pelas diversas regies do pas, exigiam os servios intermedirios de um comrcio bastante extenso. Os mercadores nmades, porm, no podiam
353 Idem, p. 25. 354 Muitos desses cientistas sociais, entretanto, em funo da perspectiva liberal que adotaram, acabaram por opor de modo antidialtico o Estado sociedade chamada esta, muitas vezes, de sociedade civil, e tratada como um todo que pode e deve ser harmonizado, e no como algo que, devido sua natureza social, essencialmente contraditrio. Desse modo, conceberam o Estado como algo neutro e, por vezes, oposto aos interesses da sociedade. Evidentemente, essa concepo no-marxista das relaes entre Estado e sociedade nada tem a ver com a proposio terica do bonapartismo que, como vimos discutindo, refere-se precisamente a um processo que, por meio da autonomizao relativa do aparelho estatal burgus face prpria burguesia, tem por finalidade salvaguardar a ordem capitalista ameaada pelas foras proletrias. 144
de modo algum ocupar, na vida social, um lugar idntico ao ocupado no Ocidente pela pequena e mdia burguesia das corporaes de artfices, de comerciantes e de industriais, burguesia que estava indissoluvelmente ligada periferia rural. Alm disso, as principais vias de comunicao do comrcio russo conduziam ao estrangeiro, garantindo, desde sculos remotos, um papel dirigente ao capital comercial externo e emprestando um carter semicolonial a qualquer movimento de negcios nos quais o mercador russo servia apenas de intermedirio entre as cidades do Ocidente e as aldeias russas. Tais relaes econmicas continuariam a se desenvolver na poca do capitalismo russo e encontraram sua mais alta expresso na guerra imperialista. 355
Quando acossada pela Europa avanada, a Rssia viu-se obrigada a empreender a industrializao capitalista moderna. Esse processo, entretanto, carregaria e at mesmo acentuaria diversas caractersticas do longnquo passado do pas. Dada a j mencionada debilidade das classes proprietrias, seria o Estado autocrtico czarista russo o principal sujeito do desenvolvimento das foras produtivas industriais do pas. O Estado, contudo, levaria a cabo esse movimento fazendo uso de vastos capitais provenientes do exterior, o que teria acarretado, segundo Trotsky, no s na dependncia poltica deste frente aos Estados europeus (e no conseqente apoio das burguesias europias ao regime czarista), como tambm no aprofundamento da condio heternoma da burguesia russa que, ao passo que se desenvolvia como classe em funo do desenvolvimento da indstria capitalista, subordinava- se cada vez mais ao regime czarista, aristocracia e, principalmente, ao capital estrangeiro:
A fuso do capital industrial com o capital bancrio se efetuou, na Rssia, de forma to integral como talvez no se tenha visto semelhante em qualquer outro pas. A indstria russa, porm, subordinando-se aos bancos, demonstrava efetivamente sua submisso ao mercado monetrio da Europa Ocidental. [...] Se os estrangeiros possuam, no total, mais ou menos 40% de todos os capitais investidos na Rssia, esta percentagem nos ramos principais da indstria era bem mais elevada. Pode-se afirmar, sem receio de exagero, que o centro de controle das aes emitidas pelos bancos, pelas fbricas e manufaturas russas encontrava-se no estrangeiro e a participao da Inglaterra, da Frana e da Blgica no capital atingia o dobro da participao alem. 356
Constituindo-se num caso exemplar de demonstrao histrico-concreta da lei do desenvolvimento desigual e combinado, a dinmica da industrializao na Rssia, em funo de sua natureza retardatria, no repetiria os passos transcorridos pela industrializao dos pases originrios do capitalismo. Trotsky fez questo de ressaltar esse caminho prprio traado pela modernizao industrial russa, j que nele estaria a chave para o entendimento de uma formao social peculiar, atrasada, que acabaria por favorecer a primeira revoluo proletria vitoriosa da histria mundial. Quanto s caractersticas da industrializao russa, derivadas do atraso histrico com que foi efetivada, Trotsky afirmou:
A lei do desenvolvimento combinado est demonstrada como sendo a mais incontestvel na histria e no carter da indstria russa. Tardiamente nascida, essa indstria no percorreu, desde o incio, o ciclo dos pases adiantados, porm, neles se incorporou, adaptando ao seu estado atrasado as
355 TROTSKY, Len. A Histria da Revoluo Russa. Op. cit., v. I, p. 26-27. 356 Idem, p. 29 145
conquistas mais modernas. Se a evoluo econmica da Rssia, em conjunto, passou por cima de perodos do artesanato corporativo e da manufatura, muitos de seus ramos industriais pularam parcialmente alguma etapa da tcnica, que exigiram, no Ocidente, dezenas de anos. Como conseqncia, a indstria russa desenvolveu-se em certos perodos com extrema rapidez. Entre a primeira revoluo [1905] e a [primeira] guerra a produo industrial da Rssia quase dobrou. Julgaram alguns historiadores russos ser isto motivo suficiente para concluir que era necessrio abandonar a lenda de um pas atrasado e de lento progresso econmico do pas. Na realidade, a possibilidade de um progresso assim to rpido era precisamente determinada pelo estado atrasado do pas, que, infelizmente, no apenas subsistiu at a liquidao do antigo regime, mas, que, como sua herana, perdura at hoje. 357
Segundo Trotsky, residiria nesse tardio e rpido crescimento industrial da Rssia caracterizado pela dispensa (queima) de vrias fases e subfases que haviam tido lugar ao longo do secular desenvolvimento fabril europeu a explicao para o protagonismo operrio presente na histria do pas logo a partir da primeira dcada do sculo XX. Numa clara demonstrao emprica de que a histria das naes pioneiras do capitalismo no se repete nas formaes sociais atrasadas, a Rssia caminhava, desde fins do sculo XIX, no sentido de sua modernizao industrial capitalista sem ter necessitado previamente de uma revoluo democrtico-burguesa. Do mesmo modo, o desenvolvimento do capitalismo russo combinava-se inteiramente com a manuteno da arcaica estrutura fundiria do pas, o que colocava na ordem do dia para os revolucionrios socialistas a resoluo da chamada questo agrria. Mesmo se desenvolvendo economicamente por conta da industrializao, a burguesia russa via agravada sua debilidade poltica, dado o aumento de sua dependncia face ao capital europeu e ao Estado autocrtico. Carecendo de uma consistncia social mais slida, aliada e subordinada aristocracia proprietria rural do pas, ela era completamente incapaz de liderar os camponeses em qualquer luta por reformas agrrias. Seriam, entretanto, o contedo e a forma do desenvolvimento industrial da Rssia que afastariam qualquer chance dessa burguesia vir a exercer um papel revolucionrio na histria do pas. Ao assimilar os elementos mais avanados da tcnica industrial europia, a modernizao capitalista da Rssia, dirigida pelo Estado e financiada pelo capital externo, acabou por proporcionar um cenrio no qual essa dbil burguesia encontrou-se muito cedo como um proletariado j pertencente aos ramos mais modernos da economia, aglomerado em grandes fbricas e bastante concentrado em certas cidades industriais. Chegada com atraso na cena histrica, a burguesia russa, diferentemente do que ocorrera com as burguesias inglesa, francesa e a norte- americana, deparou-se, ao mesmo tempo em que se desenvolvia como classe, com um
357 Idem, p. 28. Grifos nossos. interessante destacar que a dinmica da industrializao russa observada por Trotsky acabou por se manifestar de modo muito similar em outros pases que tardiamente chegaram ao capitalismo industrial. Apenas a ttulo de exemplo, podemos lembrar dos altos ndices de crescimento da economia industrial brasileira obtidos entre 1930 e 1960. Deveras retardatria, a industrializao brasileira realizou-se aos saltos, dispensando vrias das etapas de desenvolvimento tecnolgico ocorridas nos pases originrios do capitalismo industrial. 146
proletariado j tipicamente moderno e possuidor de uma significativa conscincia poltica, aberta perspectiva revolucionria. Alis, o fato de as idias do marxismo revolucionrio terem encontrado espao entre parcelas significativas do jovem proletariado russo (o que pode ser expresso pela forte presena poltica dos partidos operrios nos meios fabris desde os primeiros anos do sculo XX) tambm foi visto por Trotsky como uma demonstrao da lei do desenvolvimento desigual e combinado que operava na histria russa:
De acordo com a evoluo do pas, o reservatrio de onde saa a classe operria russa no era um artesanato corporativo: era o meio rural; no a cidade, mas a aldeia. preciso notar que o operariado russo no se formou paulatinamente, no decurso dos sculos, arrastando o enorme fardo do passado, como na Inglaterra, mas sim aos saltos, por meio de transformaes bruscas das situaes, de ligaes, acordos e, ainda, por meio de rupturas com tudo o que, na vspera, existia. Foi precisamente assim sobretudo durante o regime de opresso concentrada do czarismo que os operrios russos puderam assimilar as dedues mais ousadas do pensamento revolucionrio da mesma forma que a retardatria indstria russa era capaz de compreender a ltima conquista da organizao capitalista. 358
Essa desproporo relativa de foras entre burguesia e proletariado, ocasionada justamente pelo atraso do pas, era agravada pela inexistncia de setores urbanos mdios, isto , de uma pequena-burguesia das cidades. Se, como vimos na exposio de Trotsky, a Rssia, por questes histricas de toda ordem, sempre carecera de um desenvolvimento substantivo das atividades urbanas medievais e modernas e, consequentemente, de um desenvolvimento dos grupos sociais que as realizam (artesos, artfices, mercadores etc.), com a industrializao capitalista realizada aos saltos desenvolveu-se um proletariado moderno sem que com isso tivesse surgido tambm uma pequena-burguesia urbana numrica e economicamente significativa. Assim, a burguesia industrial russa via-se tambm, entre outros problemas, desprovida politicamente de uma pequena-burguesia urbana do tipo sans- culotte que, em outras pocas e lugares, havia servido de base de massas para revolues democrtico-burguesas. Na Rssia, portanto, o antagonismo fundamental de classes assumia contedo e feio bastante acirrados, j que os inimigos encontravam-se cara a cara, sem intermedirios oscilantes que poderiam lhes servir ora de rbitros mediadores, ora de intrpretes confusos. Todos esses aspectos elencados acima, segundo Trotsky, determinaram a sorte da burguesia russa:
As condies em que se organizou a indstria russa, a prpria estrutura dessa indstria, determinaram o carter social da burguesia do pas e sua fisionomia poltica. A forte concentrao da
358 Idem, p. 29-30. Ou ainda: Que dizer de nosso proletariado? Ter passado pela mesma escola medieval das confrarias de aprendizado? Existiro nele tradies corporativas seculares? Nada de parecido. Lanaram-no diretamente fornalha, assim que o retiraram de seu arado primitivo... Da a ausncia de tradies conservadoras, a ausncia de castas, mesmo entre o proletariado, e a juventude do esprito revolucionrio; da, entre outras causas eficientes, Outubro e o primeiro governo proletrio que existiu no mundo. Mas da, tambm, o analfabetismo, a mentalidade atrasada, a deficincia de hbitos de organizao, a incapacidade de trabalhar sistematicamente, a falta de educao cultural e tcnica. A cada passo nos ressentimos dessas inferioridades na nossa economia e na nossa edificao cultural. (TROTSKY, L. Idem, p. 391 Apndice I). 147
indstria demonstra por si mesma que entre as esferas dirigentes do capitalismo e as massas populares no existia hierarquia intermediria. A isto se soma o fato de serem as mais importantes empresas industriais, bancrias e de transportes propriedade de estrangeiros, que no somente auferiam lucros sobre a Rssia, mas ainda fortaleciam a prpria influncia poltica nos parlamentos de outros pases, razo pela qual, em vez de fomentar a luta pelo regime parlamentar na Rssia, a tal se opunham no raras vezes. Basta lembrar aqui o papel abominvel desempenhado pela Frana oficial. Foram estas as causas elementares e irredutveis do isolamento poltico da burguesia russa e de sua atitude contrria aos interesses populares. Se na aurora de sua histria, mostrou-se muito pouco amadurecida para realizar uma reforma, ainda mais se encontrava quando chegou o instante de dirigir a revoluo [...]. A incapacidade poltica da burguesia era diretamente determinada pelo carter de suas relaes com o proletariado e os camponeses. No era possvel arrastar consigo os operrios que a ela se opunham rancorosamente na vida cotidiana e que, muito cedo, aprenderam a dar um sentido mais geral aos seus objetivos. Por outro lado, a burguesia era igualmente incapaz de arrastar as massas camponesas porque estava enredada nas malhas de interesses comuns com os proprietrios de terra e porque temiam um abalo da propriedade sob qualquer forma em que se apresentasse. Se, portanto, a revoluo russa tardou em rebentar, no foi to somente por motivo cronolgico: a culpa dessa demora cabe tambm a estrutura social da nao. 359
Covarde e completamente divorciada do povo, 360 a burguesia russa demonstrava a cada nova fase do desenrolar da luta de classes seu carter essencialmente contra- revolucionrio. Quando da derrubada do czarismo pelas massas em fevereiro de 1917, a burguesia, convocada ao poder pelos mencheviques e socialistas-revolucionrios grupos guiados, bom lembrar, pela idia etapista de que o poder em uma revoluo antiabsolutista (que eles, equivocadamente, compreenderam poca como uma revoluo democrtico-burguesa, em seu sentido clssico) cabia inexoravelmente burguesia , mostrou-se completamente incapaz de realizar qualquer tarefa democrtica significativa. Mantendo o pas na guerra imperialista e preservando a propriedade fundiria da aristocracia, a burguesia abriu o caminho revolucionrio ao proletariado. Distintamente da trajetria revolucionria das primeiras naes burguesas industriais, a questo do poder colocou-se para a classe trabalhadora sem que antes houvesse ocorrido no pas uma revoluo burguesa propriamente dita:
A revoluo de [fevereiro de] 1917 tinha ainda como fim imediato derrubar a monarquia burocrtica. Diferenciava-se, entretanto, das antigas revolues burguesas, pelo fato de o elemento decisivo que se manifestava agora ser uma nova classe constituda sobre a base de uma indstria concentrada, possuidora de uma nova organizao e novos mtodos de luta. A lei do desenvolvimento combinado se revela agora em sua expresso mais alta: comeando por derrubar o edifcio medieval apodrecido, a Revoluo eleva ao poder, em poucos meses, o proletariado, encabeado pelo Partido Comunista [Bolchevique]. 361
Confirmando as antigas previses de Trotsky [Balanos e perspectivas], foi destinado ao proletariado russo, quando este se assenhoreou do poder em outubro de 1917, realizar as tarefas democrticas da histria russa. Nesse sentido, e apenas nesse, foi que Trotsky, desde muito tempo, j reconhecera que a revoluo a ser realizada na Rssia poderia ser chamada de
359 Idem, p. 29-30. 360 Idem, p. 164. 361 Idem, p. 32. 148
burguesa, dado que suas finalidades primeiras encerravam um contedo democrtico, em especial a reforma agrria. Contudo, e a que reside todo o fundamento de sua teoria da revoluo permanente, Trotsky, como vimos, sempre vislumbrou que somente o proletariado, apossando-se do leme do Estado, poderia dar conta das questes democrticas deixadas de lado pela burguesia russa, ao mesmo tempo em que seria forado, pela dinmica da luta de classes, a empreender, de modo combinado com as tarefas democrticas, medidas de carter socialista, como a expropriao dos meios de produo pertencentes burguesia. No por acaso, como mencionamos anteriormente, o prprio Lnin reconheceu que foi somente a partir de outubro de 1917, e no a partir de fevereiro do mesmo ano, que a Rssia realizou sua revoluo democrtico-burguesa, isto , a partir do momento em que no pas comeou a se edificar um Estado operrio por intermdio da combinao de medidas como a reforma agrria e a nacionalizao dos bancos e das grandes indstrias. Quando ficou claro que o perodo de vida do regime da dualidade de poderes institudo com a Revoluo de Fevereiro no passou de um brevssimo prlogo da tomada do poder pelo proletariado, a histria veio a confirmar toda a leitura de Trotsky acerca dos rumos revolucionrios de um pas atrasado; a Rssia, nas suas palavras, ultrapassou de um salto a democracia puramente formal. 362
de suma importncia destacarmos aos leitores que, por razes bvias, o exemplo histrico da Revoluo Russa, como j pde ser visto algumas vezes ao longo desse trabalho, orientou as anlises de Trotsky referentes aos rumos das lutas de classes nos pases de desenvolvimento capitalista retardatrio. Tendo, ento, a vitria dos bolcheviques em outubro de 1917 dado razo s suas teses produzidas desde a segunda metade da dcada de 1900, Trotsky no hesitou em usar e abusar de analogias referentes histria russa quando se viu em meio a polmicas com companheiros e adversrios sobre o carter da revoluo nos pases atrasados. Foi nesse sentido que nomes e termos como Kerensky, Kornilov, bolchevismo e menchevismo foram diversas vezes utilizados por Trotsky em seus textos sobre a China, a Espanha, o Mxico etc. 363
Amrica Latina: ltimo campo de observao conceitual Aps ter passado por Turquia, Frana e Noruega, Trotsky, como j antecipamos, desembarcou no incio de 1937 no Mxico para dar continuidade sua saga de exilado poltico. Observando as agitaes operrias e camponesas que tinham lugar sob o governo de Crdenas (1934-1940) que, como dissemos, realizava uma reforma agrria voltada para os
362 Idem, p. 33. 363 Tal fato fez (faz) como que alguns crticos de Trotsky o tenham acusado (acusem) de transplantar mecanicamente a experincia russa para outras localidades dotadas de caractersticas distintas daquele pas. 149
camponeses pobres e uma campanha de nacionalizao do petrleo e das linhas frreas do pas , Trotsky buscou analisar o carter das lutas sociais e da revoluo numa Amrica Latina qualificada por ele como atrasada e semicolonial. 364
Segundo Trotsky, em funo da lei do desenvolvimento desigual e combinado que se verificava na histria do continente, em especial a partir do seu tardio processo de modernizao industrial, as burguesias nativas, fortemente atreladas ao imperialismo, apresentavam um carter relativamente dbil, ao mesmo tempo em que, conseqentemente, o proletariado, que crescia rapidamente devido dinmica de uma industrializao retardatria, gozava de uma relativa fora. No entendimento de Trotsky, seria precisamente essa complexa correlao de foras entre capital estrangeiro, burguesia nacional e proletariado o que conferia a certos Estados da regio uma forma bonapartista sui generis, como veremos um pouco mais adiante. Aplicando sua teoria da revoluo permanente em terras latino-americanas, Trotsky afirmava que, mesmo nos casos nos quais a burguesia se apoiava na mobilizao de massas e chocava-se com o imperialismo o que dava origem modalidade semibonapartista democrtica dos bonapartismos sui generis (j mencionada na introduo desta primeira parte, e que ser melhor descrita mais frente) , ela era incapaz tanto de realizar as chamadas tarefas democrtico-burguesas, como de levar at as ltimas conseqncias uma luta de contedo antiimperialista. Assim, na Amrica Latina, tal como na China, ndia, frica do Sul e demais pases atrasados coloniais ou semicoloniais, estaria na ordem do dia a conquista do poder pelo jovem proletariado:
A sociedade latino-americana, como toda sociedade desenvolvida ou atrasada est composta por trs classes: a burguesia, a pequena-burguesia e o proletariado. Na medida em que as tarefas so democrticas em um amplo sentido histrico, so tarefas democrtico-burguesas, mas aqui [na Amrica Latina] a burguesia incapaz de resolv-las, como o foi na Rssia e na China. Neste sentido, durante o curso da luta de classes pelas tarefas democrticas, opomos o proletariado burguesia. A independncia do proletariado, inclusive no comeo desse movimento, absolutamente necessria, e opomos particularmente o proletariado burguesia na questo agrria, porque a classe que governar, no Mxico como em todos os demais pases latino-americanos, ser a que atrair para ela os camponeses. 365
364 Entretanto, em um texto no qual polemiza duramente com o movimento trotskista internacional, o tambm trotskista Hector Benoit, parecendo ignorar os escritos de Trotsky sobre Amrica Latina, afirma que o revolucionrio russo nunca enquadrou os pases latino-americanos na categoria de pases atrasados (BENOIT, H. O programa de Transio de Trotsky e a Amrica in Crtica Marxista, n. 18. Campinas: Revan, 2004, p. 37-64.). Pensamos, contudo, que uma simples consulta ao escritos latino-americanos de Trotsky permite uma rpida refutao controvertida tese de Benoit. 365 TROTSKY. Len. Discusion sobre America Latina in ____. Escritos latinoamericanos. Op.cit., p. 123-124. O texto em questo um resumo transcrito de uma conversa realizada entre Trotsky, seus militantes-seguranas norte-americanos e o trotskista Charles Curtiss, tambm norte-americano.
150
Assassinado pela GPU a mando de Stlin em 1940, Trotsky acabou por ter na Amrica Latina no s seu ltimo local de exlio, mas tambm o ltimo local para observao de sua lei do desenvolvimento desigual e combinado. As suas interpretaes das possibilidades histricas da Amrica Latina sob o capitalismo, como pudemos observar, contrapem-se a qualquer perspectiva evolucionista e etapista quanto aos rumos econmicos, polticos e sociais do continente. Tais interpretaes, datadas de fins da dcada de 1930, representam, portanto, um contraponto terico e poltico tanto s teses produzidas desde a segunda metade da dcada de 1920 pelos partidos comunistas vinculados IC, quanto s de perspectiva nacional-desenvolvimentistas, provenientes de instituies como a Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe (CEPAL) e similares de escopo nacional. Nesse sentido, consideramos que Trotsky, ao reconhecer uma historicidade prpria Amrica Latina, atrasada e semicolonial, lanou as bases tericas do que posteriormente ficaria conhecido como teoria da dependncia. Conforme veremos na segunda parte deste trabalho, muitos dos cientistas sociais brasileiros que, em maior ou menor grau, partilharam de uma perspectiva dependentista, entre eles os tericos do populismo, trabalharam, direta ou indiretamente, com a matriz interpretativa construda por Len Trotsky para a compreenso da natureza histrica dos pases atrasados (a lei do desenvolvimento desigual e combinado). Essa convergncia terico- analtica quanto historicidade da periferia capitalista entre Trotsky e autores como Francisco Weffort e Octavio Ianni explica, decerto, a forte presena (implcita ou explcita) da idia de bonapartismo nas interpretaes destes intelectuais universitrios sobre o processo poltico brasileiro de 1930-1964 (populismo). Encaminhando-nos para uma exposio mais detalhada das anlises de Trotsky acerca dos bonapartismos sui generis latino-americanos, nos deteremos, nas pginas seguintes, sobre o que acreditamos serem dois importantes eixos epistemolgico-tericos de sua lei do desenvolvimento desigual e combinado: o entendimento do capitalismo enquanto uma totalidade, e a crtica idia de existncia de uma burguesia nacional progressista na periferia capitalista. Imaginamos que uma discusso, ainda que no muito extensa, sobre tais eixos pode proporcionar ao leitor uma melhor compreenso tanto do carter dos prprios bonapartismos sui generis de Trotsky, quanto de alguns argumentos dos quais faremos uso em nosso debate sobre o longo bonapartismo brasileiro.
Totalidade e internacionalismo em Len Trotsky A luta poltica entre as fraes estalinista e trotskista no interior do PCUS e da IC aps a morte de Lnin foi, sem dvida, um confronto entre duas perspectivas opostas e 151
inconciliveis: o internacionalismo revolucionrio e o nacional-reformismo. Em maior ou menor grau, todas as polmicas poltico-programticas entre os dois agrupamentos que disputaram a ferro e fogo a direo da Unio Sovitica e do movimento comunista internacional derivaram deste confronto. Destarte, a oposio entre a defesa de Trotsky da tomada do poder pelo proletariado nos pases atrasados e estratgia etapista aplicada nestes pela IC estalinizada no pode ser compreendida fora da oposio entre a concepo internacionalista da revoluo encampada pelos trotskistas e a teoria estalinista que vislumbrava a possibilidade de construo do socialismo em um s pas. 366
Podemos dizer, desse modo, que a poltica da IC para os pases coloniais e semicoloniais, assim como toda a poltica externa da URSS, determinava-se pelos interesses da burocracia estalinista de limitar a Revoluo de Outubro aos seus marcos nacionais, o que possibilitaria, segundo a perspectiva burocrtica, uma situao internacional favorvel sua manuteno (da burocracia) enquanto uma casta privilegiada. Decerto, a expanso da revoluo para outros pases, fossem eles do Ocidente ou do Oriente, criaria um ambiente de agitao poltica no interior do Estado sovitico pouco propcio consolidao de um setor social localizado acima da classe trabalhadora, uma excrescncia parasitria, segundo as palavras de Trotsky. Nesse sentido, existia uma relao direta entre o isolamento da Revoluo de Outubro, que havia favorecido o surgimento da burocracia e a poltica externa desta ltima que, por intermdio da IC, mantinha e acentuava esse isolamento: A burocracia sovitica ganhava segurana medida que a classe operria internacional sofria derrotas cada vez mais pesadas. Entre esses dois fatos, a relao no unicamente cronolgica, mas causal e recproca: a direo burocrtica do movimento contribua para as derrotas; as derrotas fortaleciam a burocracia. 367 Operando com uma perspectiva materialista, Trotsky assim analisou a ruptura da direo estalinista com o princpio marxista do internacionalismo:
J explicamos muitas vezes que esta reviso dos valores foi provocada pelas necessidades sociais da burocracia sovitica: tornando-se cada vez mais conservadora, ela aspirava a uma ordem mundial estvel; desejava que a revoluo terminada, tendo-lhe assegurado uma situao privilegiada, fosse suficiente para a construo pacfica do socialismo e reclamava a consagrao desta tese. No retornaremos mais a esta questo; limitar-nos-emos a acentuar que a burocracia est perfeitamente consciente da ligao que existe entre suas posies materiais e ideolgicas e a teoria do socialismo nacional. 368
366 Quanto estratgia estalinista de construo do socialismo em um s pas, ver especialmente STLIN, J. Cuestiones del leninismo. 11 edio. Cidade do Mxico: Ediciones sociales, 1941 (obra inaugural da literatura sovitica dedicada defesa do socialismo em um s pas); TROTSKY, L. A revoluo permanente. Op. cit. e TROTSKY, L. A revoluo trada. O que e para onde vai a URSS. Op. cit. 367 TROTSKY, L. A revoluo trada. O que e para onde vai a URSS. Op. cit, p. 108. 368 TROTSKY, L. A revoluo permanente. Op. cit., p. 25. 152
Cientes de quais so as necessidades sociais das quais se originavam as elaboraes estalinistas, consideramos importante determo-nos, ainda que por pouco tempo, em um importante elemento constitutivo, em termos tericos, tanto do raciocnio etapista da IC acerca do carter da revoluo nos pases atrasados quanto da utopia reacionria da burocracia sovitica de edificao do socialismo em um s pas: a ruptura com a noo de totalidade. Como j dissemos, a crena na possibilidade do socialismo em um s pas era, at a morte de Lnin, algo sequer cogitado dentro dos quadros dirigentes do PCUS e da IC, tamanho o grau de afastamento da tradio marxista que tal perspectiva representaria. Marx e Engels, herdeiros da filosofia totalizante de Hegel, haviam considerado o capitalismo justamente como uma etapa histrica na qual o mundo tornava-se cada vez mais integrado; o socialismo, enquanto um momento posterior e superior ao capitalismo no poderia, portanto, de modo algum, limitar-se aos quadros nacionais j extrapolados pelas contradies sociais. Lnin, por sua vez, enxergou a guerra mundial iniciada em 1914, oriunda da disputa entre as grandes potncias capitalistas pelas regies coloniais do globo, como uma manifestao inconteste de que a dinmica da reproduo do capital transbordava as fronteiras nacionais; o imperialismo constituir-se-ia em um fenmeno mundial. 369 Assim, o clebre chamado unidade dos proletrios de todos os pases feito por Marx e Engels ao final do Manifesto, 370
como tambm a ruptura de lideranas marxistas como Lnin, Rosa e Trotsky com a II Internacional quando da guerra imperialista, 371 originaram-se no de uma solidariedade de cunho meramente passional para com a classe operria das outras naes, mas sim de uma solidariedade proletria decorrente de uma linha epistemolgica que tomava o capitalismo enquanto uma totalidade. Consideramos, portanto, que o internacionalismo poltico que caracterizou o marxismo revolucionrio desde os tempos de Marx resultava, antes de tudo, do que poderamos chamar, utilizando-nos de uma categoria cunhada por Alvaro Bianchi para definir um aspecto do pensamento de Trotsky, de um internacionalismo metodolgico, isto , de uma perspectiva de anlise do mundo dotada de um forte contedo totalizante. 372
Mesmo sem negar o internacionalismo em palavras, a burocracia sovitica formulou e defendeu a possibilidade de se erigir uma sociedade socialista restrita aos limites do primeiro
369 LNIN, V. Imperialismo: fase superior do capitalismo. So Paulo: Global, 1979. A concepo de que o surgimento do imperialismo expressa a necessidade da reproduo do capital de operar para alm dos limites nacionais encontra-se tambm em LUXEMBURGO, Rosa. A acumulao do capital: estudo sobre a interpretao econmica do imperialismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1970. 370 MARX, K. e ENGELS, F. O manifesto do partido comunista. 5 edio. Rio de Janeiro (GB): Vitria, 1963, p. 62. 371 Como sabido, a maioria dos dirigentes do SPD alemo, principal organizao componente da II Internacional, defendeu a aliana dos trabalhadores alemes com sua burguesia quando do iniciar da guerra imperialista em 1914, colocando assim a chamada questo nacional acima do internacionalismo proletrio. 372 BIANCHI, Alvaro. O marxismo de Len Trotsky: notas para uma reconstruo terica in Idias, n. 14. Campinas, 2007, p. 57-99. 153
Estado operrio da histria. Dado esse fato, inimaginvel dentre os bolcheviques at a publicao em 1924 da obra de Stlin intitulada Questes do leninismo, 373 Trotsky viu-se obrigado a resgatar a defender teoricamente a tradio internacionalista do marxismo revolucionrio. Em meio a ataques de todo tipo, Trotsky buscou demonstrar como o prprio Lnin sempre vinculara a continuidade da existncia da Unio Sovitica vitria da revoluo nos pases mais industrializados da Europa, 374 e que a ruptura do estalinismo com a perspectiva internacionalista tinha to grande importncia de princpio como, por exemplo, a ruptura da social-democracia alem com o marxismo no problema da guerra e do patriotismo em agosto de 1914. 375 Segundo Trotsky, o erro de Stlin, do mesmo modo que o da social-democracia, no seria outra coisa seno o socialismo nacional. 376
bom lembrarmos, entretanto, que a trajetria intelectual de Trotsky j era marcada, desde seu incio, por um vis internacionalista de anlise. Em seu Balanos e perspectivas, de 1906, 377 Trotsky j apontara que a particularidade do desenvolvimento histrico russo originava-se das relaes estabelecidas entre a Rssia e o mundo exterior; a dinmica entre as classes sociais do pas sob o capitalismo, distinta da dos pases avanados europeus, deitava razes na prpria relao entre a Rssia atrasada, o mundo asitico e, principalmente, o Ocidente industrializado. 378
A compreenso da interpenetrao dialtica entre o interno e externo, entre as foras e elementos sociais localizados dentro e fora do Estado-nao, estaria presente, como pudemos observar nas pginas passadas, em todas as reflexes de Trotsky acerca dos pases que realizaram retardatariamente seus processos de modernizao industrial capitalista. De modo algum, os pases atrasados foram tomados por Trotsky como realidades em separado, o que permitiria o equvoco presente nos etapistas e dualistas em geral de analisar as relaes entre as classes sociais nos seu interior independentemente da conexo existente entre estas (as classes sociais) e o mundo externo. Longe de uma oposio antittica entre a nao e o imperialismo tpica dos estalinistas, nacionalistas, cepalinos etc. , Trotsky observou como as relaes sociais internas dos pases atrasados eram inteiramente penetradas pelos elementos externos, como havia uma articulao indissocivel, no interior desses pases, entre as foras sociais internas e externas. Na
373 STLIN, J. Op. cit. 374 Sem a vitria da revoluo na Alemanha, inevitvel a nossa queda, afirmou Lnin alguns meses aps a tomada do poder em outubro de 1917 (TROTSKY, L. A revoluo permanente. Op. cit., p. 127.). 375 TROTSKY, L. A revoluo permanente. Op. cit., p. 4. 376 Idem. 377 TROTSKY, L. Resultados y perspectivas. Op. cit. 378 As classes possuidoras da Rssia tinham conflitos com as classes possuidoras da Europa, que lhes eram inteira ou parcialmente hostis. Esses conflitos desencadeavam-se atravs de intervenes do Estado. Ora, o Estado era a autocracia. Toda a estrutura e toda a histria da autocracia teria sido diversa, se as cidades europias no tivessem existido, se a Europa no houvesse inventado a plvora (esta inveno no nossa), se a Bolsa europia no tivesse agido. (TROTSKY, Len. A Histria da Revoluo Russa. Op. cit., p. 391. Apndice I.). 154
perspectiva de Trotsky, por exemplo, a debilidade da burguesia russa (que a impossibilitava de levar a cabo uma revoluo democrtico-burguesa), era derivada, entre outros fatores, de sua dependncia face ao capital estrangeiro, que se agravara com o processo de industrializao. Do mesmo modo, a possibilidade revolucionria aberta ao proletariado do pas residia na prpria debilidade burguesa e tambm no tipo de industrializao do qual havia nascido: uma industrializao retardatria que, saltando etapas, acabou por introduzir no pas os elementos tcnicos mais sofisticados do Ocidente, gerando com isso um proletariado moderno e altamente concentrado em grandes fbricas. Na mesma linha de raciocnio, Trotsky considerava que tambm as condies sociais e polticas dos pases mais industrializados explicavam-se em funo das relaes que estes estabeleciam com os pases coloniais e semicoloniais. Ao responder sobre o porqu do pioneirismo italiano e alemo em relao ao fascismo, Trotsky afirmou: a Itlia, a mais pobre das grandes naes capitalistas, tornou-se a primeira nao fascista. A Alemanha foi a segunda; no possuindo colnias ou ricos pases dependentes, esgotou, dessa forma, todas as suas possibilidades. 379 Nesse exemplo fica claro como, para Trotsky, as formas pelas quais as classes sociais se relacionam politicamente nos pases imperialistas, isto , os regimes polticos assumidos por estes, dependem diretamente do tipo de relao existente, em determinado momento, entre suas burguesias e o mundo externo (neste caso, o colonial e semicolonial). Mais uma vez, nota-se no mtodo de Trotsky que as naes so compreendidas enquanto partes componentes e indissociveis de uma mesma totalidade contraditria, como tambm a percepo de que, em funo da integrao proporcionada pela economia mundial, as suas condies econmicas, sociais e polticas so inteiramente penetradas, e, portanto, em parte constitudas por elementos provenientes do meio externo. Observando as peculiaridades e os papis desempenhados pelas distintas naes no sistema mundial de Estados, Trotsky, diferenciando-se de uma perspectiva geopoltica, tomava tal sistema como uma expresso da luta de classes internacional. 380 Desse modo, verificou como o capitalismo, em especial a partir de sua etapa imperialista, no poderia ser pensado a partir de limites nacionais rgidos e impenetrveis: o imperialismo no estaria somente fora dos pases coloniais e semicoloniais, mas tambm dentro deles, assim como os trabalhadores das naes imperialistas constituiriam, em conjunto com os trabalhadores das colnias e
379 TROTSKY, Len. Discusses sobre o Programa de Transio in ____Programa de Transio. A agonia do capitalismo e as tarefas da Quarta Internacional. (Cadernos Marxistas). So Paulo: Instituto Jos Lus e Rosa Sundermann, 2004, p. 74. 380 Nesse sentido, podemos considerar Trotsky como um crtico de uma perspectiva de compreenso das relaes entre os pases que dissocia a poltica internacional dos conflitos sociais, hoje, alis, hegemnica entre os que se dedicam s chamadas relaes internacionais. 155
semicolnias, uma s classe: o proletariado internacional. Da, por exemplo, a implacvel condenao que fez, ao lado de Lnin e outros, da postura chauvinista adotada pela social- democracia alem em 1914; da, tambm, sua feroz crtica poltica da IC em relao s burguesias nacionais dos pases atrasados. Entendendo que, ao impor a todos os pases seu modo de produo e seu comrcio, o capitalismo converteu o mundo inteiro em um nico organismo econmico e poltico, 381
Trotsky assinalou a existncia nas relaes inter-naes daquilo que nas dcadas de 1960 e 1970 os dependentistas chamariam de interdependncia:
Todo pas atrasado, incorporando-se ao capitalismo, passou por diferentes fases de dependncia para com os outros pases capitalistas; essa dependncia podia aumentar ou diminuir, mas a tendncia geral da evoluo capitalista foi sempre no sentido de um enorme desenvolvimento das relaes mundiais, manifestando-se no crescimento do comrcio exterior, no qual se acha includo, naturalmente, o comrcio de capitais. A dependncia da Inglaterra em relao ndia possui, certamente, um carter qualitativo diverso do que possui a dependncia da ndia para com a Inglaterra. Mas essa diferena determinada, em ltima anlise, pela diversidade de suas foras produtivas, e no pelo seu grau de autonomia econmica. A ndia uma colnia e a Inglaterra uma metrpole. Se, porm, a Inglaterra fosse, hoje, submetida a um bloqueio econmico, pereceria mais depressa do que a ndia. A temos, de passagem, uma ilustrao demonstrativa da realidade da economia mundial. 382
Percebendo a existncia dessa mtua dependncia entre os pases imperialistas e suas colnias e/ou semicolnias, Trotsky detectava as estruturas constitutivas do internacionalismo proletrio na poca imperialista e, por conseguinte, afirmava a impossibilidade de xito de qualquer projeto socialista que se limitasse aos marcos nacionais:
Quando se examinam a Inglaterra e a ndia como duas variantes extremas do tipo capitalista, chega-se concluso de que o internacionalismo dos proletariados ingls e hindu se funda na inseparvel interdependncia das condies, dos fins e dos mtodos, e no na sua identidade. Os triunfos do movimento de libertao na ndia desencadeiam o movimento revolucionrio na Inglaterra e vice-versa. Uma sociedade socialista autnoma no pode ser construda na ndia, nem na Inglaterra. Os dois pases devero fazer parte de uma unidade mais alta. S isso constitui a base do internacionalismo marxista. 383
A revoluo permanente talvez seja a obra de Trotsky na qual mais se encontram trechos que explicitam seu entendimento do capitalismo enquanto uma totalidade. Objetivando demonstrar como tanto a poltica etapista implementada pela IC durante a revoluo chinesa de 1925-1927, quanto a utopia reacionria de construo do socialismo num s pas decorriam, no que diz respeito ao aspecto mais estritamente terico, de uma mesma percepo equivocada acerca da natureza do sistema capitalista mundial, Trotsky,
381 O trecho em questo parte do prefcio escrito por Trotsky obra de Ferdinand Lassale intitulada Discurso diante do tribunal e foi transcrito pelo prprio Trotsky em seu Balanos e perspectivas (TROTSKY, L. Resultados y perspectivas. Op. cit.). 382 TROTSKY. L. A revoluo permanente. Op. cit., p. 10. Quanto ao fato de a ndia ser descrita como uma colnia, devemos lembrar que a obra em questo foi publicada em 1930. 383 Idem, p. 7. Grifos do autor. 156
nessa obra, por vrias vezes argumentou que os vnculos inquebrantveis entre as naes, criados pela economia capitalista, tornavam errneo qualquer tipo de elaborao poltica que as tomassem como unidades independentes:
O marxismo procede da economia mundial, considerada no como simples adio de suas unidades nacionais, mas como uma poderosa realidade independente, criada pela diviso internacional do trabalho e pelo mercado mundial, que, em nossa poca, domina do alto os mercados nacionais. As foras produtivas da sociedade capitalista j ultrapassaram, h muito tempo, as fronteiras nacionais. A guerra imperialista no foi seno uma das manifestaes desse fato. A sociedade socialista deveria representar, do ponto de vista da produo e da tcnica, um estgio mais elevado que o capitalismo: pretender construir a sociedade socialista no interior de limites nacionais significa que, a despeito de triunfos temporrios, fazemos as foras produtivas recuarem, mesmo em relao ao capitalismo. uma utopia reacionria querer criar no quadro nacional um sistema harmonioso e suficiente, composto de todos os ramos econmicos, sem ter em conta as condies geogrficas, histricas e culturais do pas que faz parte da unidade mundial. Se, a despeito disso, os criadores e partidrios dessa doutrina [do socialismo num s pas] participam da luta revolucionria internacional (com ou sem xito, no vem ao caso), porque, na qualidade de eclticos incorrigveis, aliam, de modo puramente mecnico, um internacionalismo abstrato a um socialismo nacional utpico e reacionrio. 384
Vale mencionar aqui que, em 1933 (cerca de trs anos aps a publicao da obra da qual extramos o trecho acima), os trotskistas brasileiros da primeira gerao, organizados ento na Liga Comunista do Brasil (LCB), assinalaram, com uma linguagem muito similar do prprio Trotsky, o carter totalizante da perspectiva marxista de observao da realidade:
A anlise marxista da estrutura social capitalista parte de seu carter sistemtico expanso, como regime econmico, da sua tendncia imanente para ultrapassar os limites do Estado nacional. O marxismo chega assim considerao de uma unidade dialtica mais alta a economia mundial causa e efeito do desenvolvimento das foras produtivas, na escala mundial, e que no a simples soma das economias mundiais isoladas. Por isso mesmo, a luta de classes se desenvolve no plano internacional, no como repercusso da luta travada entre cada proletariado contra sua burguesia nacional, mas reflete no quadro nacional o carter concreto da etapa alcanada pelo desenvolvimento da economia mundial; em suma, pelo grau atingido pelo desenvolvimento das foras produtivas, considerado o conjunto do mundo capitalista. 385
A dcima das quatorze teses contidas ao final de A revoluo permanente possivelmente a melhor sntese da perspectiva internacionalista que Trotsky ops ao socialismo nacional dos estalinistas do PCUS e da IC:
A revoluo socialista no pode realizar-se nos quadros nacionais. Uma das principais causas da crise da sociedade burguesa reside no fato de as foras produtivas por ela engendradas tenderem a ultrapassar os limites do Estado nacional. Da as guerras imperialistas, de um lado, e a utopia dos Estados Unidos burgueses da Europa, de outro lado. A revoluo socialista comea no terreno nacional, desenvolve-se na arena internacional e termina na arena mundial. Por isso mesmo, a revoluo socialista se converte em revoluo permanente, no sentido novo e mais amplo do termo: s termina com o triunfo definitivo da nova sociedade em todo o nosso planeta. 386
384 Idem, p. 4. Grifos do autor. 385 LIGA COMUNISTA DO BRASIL. Projeto de teses sobre a situao nacional in ABRAMO, F. e KAREPOVS, D. Na contracorrente da histria. Documentos da Liga Comunista Internacionalista. So Paulo: Brasiliense, 1987, p. 143. 386 TROTSKY, L. A revoluo permanente. Op. cit., p. 139. 157
Pode-se dizer, em resumo, que facilmente perceptvel como o internacionalismo revolucionrio pelo qual Trotsky ficaria conhecido pelos estudiosos dos debates comunistas dos anos 20/30 assentava-se sobre uma leitura cientfica do capitalismo que o autor j realizava desde sua juventude. Lwy, abordando as diferenas entre o pensamento do jovem revolucionrio e o que vigorava no movimento operrio nos anos iniciais do sculo XX afirmou que foi precisamente a compreenso do capitalismo enquanto totalidade que distinguiu, do ponto de vista metodolgico, o marxismo de Trotsky daquele dominante na Segunda Internacional. 387 J Baruch Knei-Paz, estudioso do pensamento do revolucionrio russo, afirmou: Trotsky era certamente internacionalista por temperamento e mentalidade, mas o seu internacionalismo no era somente a moldura idealista que lhe frequentemente atribuda, mas era parte integrante de sua concepo das necessidades materiais da revoluo russa. 388 Em uma avaliao similar, Alvaro Bianchi escreveu acerca do que denominou como o internacionalismo metodolgico de Trotsky:
Trotsky era um defensor intransigente do internacionalismo poltico. Como a maior parte de sua gerao, circulou muito cedo pela esquerda europia, no se restringindo aos crculos de emigrados russos e participou ativamente, por meio de seus artigos, dos debates de ento. Sua dedicao s questes de poltica internacional nos primeiros anos da Revoluo Russa e seu empenho na organizao da Quarta Internacional costumam ser os exemplos para comprovar essa filiao. Mas no de uma prtica poltica que aqui estou falando e sim de uma concepo da histria e da poltica que encerra uma dimenso metodolgica profundamente internacionalista. Esse internacionalismo metodolgico aparece j plenamente em 1906, na sua obra Balanos e perspectivas. 389
Nas palavras do prprio Trotsky possvel encontrarmos o mesmo tipo de afirmao:
A teoria da revoluo permanente implica o carter internacional da revoluo socialista que resulta do estado da economia e da estrutura social da humanidade. O internacionalismo no um princpio abstrato: ele no seno o reflexo poltico e terico do carter mundial da economia, do desenvolvimento mundial das foras produtivas e do mpeto mundial da luta de classes. 390
Como j adiantamos, consideramos que essa dimenso internacionalista, totalizante, do pensamento de Trotsky constitui-se tambm na base terica para seu combate ao raciocnio etapista da IC acerca do carter da revoluo nos pases coloniais, semicoloniais e atrasados em geral. Ao considerar o sistema capitalista mundial como uma simples adio de suas unidades nacionais, a teoria estalinista acabava por realizar, na prtica, uma ruptura com a
387 LWY, Michael. A teoria do desenvolvimento desigual e combinado in Outubro, n. 1, 1998, p. 74. 388 KNEI-PAZ, Baruch. Op. cit., p. 182. 389 BIANCHI, Alvaro. O marxismo de Len Trotsky.... Op. cit. Grifos do autor. 390 TROTSKY, L. A revoluo permanente. Op. cit., p. 24. Grifos nossos. 158
noo hegeliano-marxista de totalidade. Recortando as naes de seu contexto internacional, o estalinismo tomava o desenvolvimento histrico destas como algo a ser realizado em separado, o que levava ao equvoco de considerar que as formaes sociais atrasadas poderiam e deveriam repetir as etapas histricas vividas pelos pases originrios do capitalismo. Em perspectiva oposta, Trotsky entendia que o fato de os pases atrasados estarem integrados em uma poderosa realidade independente impossibilitava que a histria trilhasse nesses os mesmos caminhos percorridos pelos pases avanados em tempos passados. Uma vez inseridos no sistema capitalista mundial, os pases atrasados tinham nessa insero um elemento que impreterivelmente determinava seus desenvolvimentos histricos. Assimilando alguns dos elementos mais modernos da tecnologia, da poltica e da cultura das regies mais industrializadas do globo, e implantando-os em seus ambientes pouco desenvolvidos (do ponto de vista capitalista), os pases atrasados criavam realidades sociais particulares, hbridas e altamente contraditrias, nas quais interagiam dialeticamente (e no se opunham antiteticamente, como pensavam os dualistas) aspectos arcaicos e modernos. Longe de possurem duas realidades no interior de suas fronteiras nacionais, os pases atrasados tinham uma s natureza, de carter combinado, oriunda desse amlgama gerado pelo contato das estruturas arcaicas internas com os elementos modernos provenientes do exterior. Essa natureza prpria dos pases atrasados, criada a partir da insero dos mesmos na totalidade constituda pelo capitalismo mundial, que os impossibilitaria de repetir a histria dos pases capitalistas pioneiros. Observando a Rssia em 1909, Trotsky percebeu como nela encontravam-se todos os estgios da civilizao: desde a selvageria primitiva das florestas setentrionais onde alimentavam-se de peixe cru e faziam preces diante de um pedao de madeira, at as novas condies sociais da vida capitalista, onde o operrio socialista se considera como participante ativo da poltica mundial e segue atentamente...os debates do Reichstag. A indstria mais concentrada da Europa sobre a base da agricultura mais primitiva. 391 Em 1932, abordando novamente a formao histrico-social russa criada por um processo de industrializao realizado aos saltos e sob condies sociais primitivas, escreveu Trotsky:
O capitalismo russo no se desenvolveu a partir do artesanato, para passar da manufatura fbrica: e foi por isso que o capital europeu, inicialmente sob a forma de capital comercial, depois, sob a forma de capital financiador e industrial, caiu sobre ns, num perodo em que o artesanato russo, em seu conjunto, ainda no se havia dissociado da agricultura. Da surgiu, entre ns, uma indstria capitalista bastante moderna, no ambiente de uma economia absolutamente primitiva: uma fbrica belga, ou americana, mas, em derredor, lugarejos, aldeias em casas de madeira, cobertas de colmo e que, todos os
391 TROTSKY. L. 1905, apud LWY, Michael. A teoria do desenvolvimento.... Op. cit., p. 75. Grifos de Trotsky. 159
anos, eram destrudas por incndios e por muitas outras desgraas... Os mais antiquados elementos, ao lado das ltimas realizaes europias. Da o papel imenso desempenhado pelo capital da Europa ocidental na economia russa. Da a fragilidade da burguesia russa. Da a facilidade com que destrumos nossa burguesia. Da as dificuldades que surgiram quando a burguesia europia interveio em nossos negcios... 392
A partir dos trechos citados acima, achamos conveniente ressaltar dois aspectos presentes no raciocnio de Trotsky referente ao desenvolvimento do capitalismo nas regies atrasadas. Primeiramente, ntido para o revolucionrio a forma particular de desenvolvimento do capitalismo nas formaes sociais atrasadas deriva, como j dissemos, justamente da sua insero no sistema capitalista internacional, o que nos permite afirmar que a adoo de Trotsky de uma perspectiva totalizante foi a base para a sua compreenso acerca da natureza combinada assumida pelo capitalismo nos pases que tardiamente realizaram seu processo de industrializao. Segundo Bianchi,
o internacionalismo metodolgico de Trotsky lhe permitiu ir alm [das interpretaes de Lnin acerca da natureza do capitalismo russo] e incorporar uma nova dimenso analtica, investigando os espaos nacionais de produo e reproduo das relaes sociais capitalistas e as relaes contraditrias que se estabeleciam entre o processo de universalizao e internacionalizao da forma valor e o processo de particularizao da forma Estado. Olhando esse movimento a partir da periferia do capitalismo, Trotsky pde radicalizar essa concepo, politizando-a: a relao contraditria entre o desenvolvimento das foras produtivas e as relaes de produo ocorre com a mediao do Estado- nao. Colocando-se espacialmente na fronteira do capitalismo Trotsky pde ver o espetculo catico de um tempo partido. O choque do moderno e do arcaico tornava a Rssia atrasada, como queriam os populistas, distante ainda de uma modernidade idealizada. Mas tambm a tornava contempornea de um presente capitalista que ela, a seu modo, claro, tambm partilhava. Essa dialtica do arcaico e do moderno, do passado e do presente, do ultrapassado e do contemporneo, do velho e do novo, do particular e do semelhante encontra-se fundada na contradio que se estabelecia entre as foras internas do desenvolvimento do capitalismo na Rssia e as foras externas a esta. A categoria de totalidade era, assim, incorporada por Trotsky na anlise do processo histrico. O lento desenvolvimento das foras produtivas locais e a conseqente precariedade das bases materiais para a formao das classes modernas, por um lado; e, por outro, sua insero no sistema poltico e econmico do capitalismo mundial. 393
Em segundo lugar, como tambm j adiantamos, frisamos que, na compreenso de Trotsky, os elementos arcaicos e modernos constitutivos das hbridas formaes sociais atrasados interagiriam dialeticamente, determinando-se mutuamente. Como afirma Lwy, os diferentes estgios da civilizao, que para Trotsky se fariam presentes em naes atrasadas como a Rssia, no eram vistos por este como estando simplesmente um ao lado do outro, numa espcie de coexistncia congelada. Segundo Lwy, Trotsky percebia como eles se articulavam, se combinavam e se amalgamavam. 394
392 TROTSKY, Len. A Histria da Revoluo Russa. Op. cit., p. 390-391, apndice I. 393 BIANCHI, Alvaro. O marxismo de Len Trotsky. Op. cit. Grifo em itlico do autor. Grifos em negrito nossos. 394 LWY, Michael. A teoria do desenvolvimento.... Op. cit., p. 75.
160
Para Trotsky, seriam justamente essas particularidades sociais dos pases atrasados que, ao mesmo tempo em que lhes tornavam desnecessrias e inacessveis as longas estradas histricas j percorridas pelas naes avanadas, abriam-lhes possibilidades de desenvolvimento mais acelerado. Na economia e na poltica dos pases atrasados descartava- se, segundo Trotsky, qualquer evoluo nos moldes etapistas:
absurdo dizer que no se pode saltar etapas. O curso vivo dos acontecimentos histricos salta sempre por cima das etapas, que so o resultado de uma anlise terica da evoluo considerada em seu conjunto, isto , em sua amplitude mxima, e, nos momentos crticos, exige ele o mesmo salto da poltica revolucionria. Poder-se-ia dizer que a capacidade de reconhecer e utilizar esses momentos distingue, antes de tudo, o revolucionrio do evolucionista vulgar. A anlise feita por Marx do desenvolvimento da indstria (o ofcio, a manufatura, a usina) corresponde ao alfabeto da economia poltica ou, melhor, da teoria econmico-histrica. Na Rssia, porm, a usina apareceu sem passar pelo perodo da manufatura e do ofcio. J so as slabas da histria. Uma evoluo anloga verificou-se, entre ns, no domnio da poltica e das relaes de classe. No se pode compreender a nova histria da Rssia sem ter aprendido o esquema de Marx: ofcio, manufatura, usina. Mas, no se compreender nada quando se tiver aprendido somente isso. que a histria russa digmo-lo sem ofender Stlin realmente saltara algumas etapas. Todavia, a distino terica das etapas tambm necessria para a Rssia, porque, sem isso, no se chegaria a compreender o carter do salto nem suas conseqncias. 395
O caso russo, para Trotsky, constitua-se em um exemplo concreto de sua perspectiva histrica, isto , daquilo que poderamos chamar, sem grandes compromissos categoriais, de uma filosofia trotskista da histria, caracterizada pelo seu cunho internacionalista e antietapista. Por se tratar de uma nao atrasada, a Rssia via-se em pleno sculo XX ainda pendente da realizao de uma srie de tarefas democrticas, como a destruio dos elementos feudais em sua estrutura agrria e a edificao de um regime democrtico-burgus. Segundo Trotsky, entretanto, o processo de industrializao realizado aos saltos no pas saltos estes proporcionados justamente pela interao entre a economia russa e o mercado mundial propiciara um cenrio no qual uma relativamente dbil burguesia deparava-se com um proletariado relativamente poderoso, situao que transmitiu a este ltimo a potencialidade de efetivar as tarefas que, em tese, isto , segundo a perspectiva etapista, caberiam, por direito, primeira. Como j vimos, para Trotsky, o proletariado s poderia realizar tais tarefas tomando em suas mos o leme do Estado e implantando a sua ditadura de classe, saltando assim a etapa de uma democracia formal, burguesa. Na sua tica, a correlao de foras entre as classes sociais que permitiria (permitiu) a tomada do poder em um pas atrasado antes que isso ocorresse nas naes altamente industrializadas originava-se justamente do modo desigual e combinado como o capitalismo operava na Rssia, modo este que, por sua vez, resultava, nunca demais repetirmos, da insero do pas na totalidade capitalista mundial. Desse modo, tanto a burguesia quanto o proletariado russos, desenvolvidos e formatados pela industrializao do pas, tinham razes no s internas,
395 TROTSKY. L. A revoluo permanente. Op. cit., p. 105-106. Grifos do autor. 161
mas tambm externas. A possibilidade de saltar etapas por parte dos pases atrasados s poderia ser compreendida, ento, por um raciocnio que os enxergasse a partir de suas relaes dialticas com o mundo avanado. Diferentemente do pensamento evolucionista e economicista da II e da III Internacional estalinizada que, praticamente desconectando as naes atrasadas de seu contexto mundial, mensurava os seus nveis interiores de desenvolvimento econmico e poltico para lhes determinar qual o carter de suas revolues, Trotsky sempre buscou compreender as possibilidades revolucionrias de qualquer nao tomando-a como parte de um processo internacional da luta de classes. Mesmo combinando, em suas formaes sociais, um desenvolvimento ainda incipiente das foras produtivas com aspectos e elementos claramente arcaicos, ou melhor, precisamente por isso, poderiam os pases atrasados tomar a dianteira das insurreies operrias vitoriosas, j que estes, mesmo com suas particularidades, pertenciam, tal como os pases avanados, a uma mesma totalidade histrico-social, o mundo capitalista, j passvel de ser transformado pela ao do proletariado internacional:
Que diferena h, ento, entre os pases avanados e os pases atrasados? H uma diferena muito grande, mas sempre subordinada s relaes da dominao capitalista. As formas e os mtodos da dominao da burguesia so extremamente diversos nos diferentes pases. Num dos plos, temos a dominao direta e absoluta dos Estados Unidos; noutro plo, o capital financeiro, adaptando-se s instituies caducas da Idade Mdia asitica, submete-as, utiliza-as e lhes impe seus mtodos a ndia. Isso nos leva a supor que tambm a ditadura do proletariado ter, nos diferentes pases, um carter extremamente variado quanto sua base social, s suas formas polticas, s suas tarefas imediatas e ao seu ritmo. Seja como for, s a hegemonia revolucionria do proletariado, transformando-se em ditadura do proletariado depois da conquista do poder, poder dar s massas populares a vitria sobre o bloco dos imperialistas, dos feudais e dos burgueses nacionais. 396
possvel perceber, assim, como a idia de desenvolvimento desigual e combinado, a crtica teoria do socialismo num s pas, a descrena em qualquer papel progressista a ser cumprido pelas burguesias dos pases atrasados e a defesa do carter socialista da revoluo nestes ltimos, entre outras elaboraes tericas e formulaes polticas de Trotsky, s podem ser compreendidas a partir da perspectiva internacionalista que o revolucionrio adotava diante do capitalismo nas distintas regies do globo.
Trotsky e o papel contra-revolucionrio das burguesias atrasadas Um dos aspectos marcantes dos escritos de Trotsky acerca dos pases que realizaram sua modernizao/industrializao capitalista sob a poca imperialista a nfase na essncia irremediavelmente contra-revolucionria de suas burguesias. Consideramos que nas linhas precedentes j se encontram alguns elementos que oferecem uma viso preliminar sobre essa questo, a qual nos ser importante, poucas pginas adiante, para o entendimento dos
396 Idem, p. 118-119. 162
bonapartismos de natureza sui generis descritos por Trotsky. Agora, buscaremos, nesse pequeno tpico, realizar uma exposio uma pouco mais sistematizada das razes que, segundo o intelectual bolchevique, explicariam a impossibilidade do cumprimento de um papel revolucionrio, democrtico ou at mesmo progressista por parte das burguesias de naes que se industrializaram quando o fenmeno imperialista j se fazia presente.
Dando incio, portanto, a essa exposio, nos remetemos novamente a questo das vrias temporalidades histricas que envolveram o processo de modernizao capitalista mundial, as quais determinaram, em linhas gerais, a dinmica do desenvolvimento poltico- social dos pases que nele se engajaram. Para Trotsky, reconhecedor, como vimos, das diferentes historicidades entre pases avanados e atrasados, a explicao para que as burguesias perifricas, filhas caulas e tempors do capital, no lograssem xito em repetir a saga revolucionria de suas irms mais velhas residiria, precipuamente, no enorme atraso com o qual surgiram historicamente. Segundo o marxista russo, mesmo as burguesias europias que somente a partir de meados do sculo XIX levaram a cabo sua luta contra o domnio poltico das foras aristocrticas (burguesias essas que aqui denominamos como tardias) j se viram impedidas de adotar uma postura autenticamente revolucionria. O temor da repetio de uma experincia jacobina e, acima de tudo, a existncia, j significativa, de um novo sujeito social, o proletariado, fizeram com que essas burguesias buscassem, em seus combates contra o antigo regime, sadas cada vez mais negociadas com as foras do passado. Lembrava Trotsky que at a clssica burguesia francesa a qual j havia realizado sua revoluo pioneiramente entre os ltimos anos do sculo XVIII e primeiros do sculo XIX evitou que, desde ento, tanto seus conflitos polticos internos, quanto seus ltimos ajustes de contas com os remanescentes estratos feudais, viessem a reeditar o terror robespierrista. Os desfechos polticos das revolues de 1830 e de 1848 expressaram, inelutavelmente, o enorme receio burgus de fazer uso novamente de mtodos democrtico-radicais em um momento no qual as incontveis massas plebias j eram constitudas por uma parcela no desprezvel de segmentos proletrios organizados. Todavia, seriam as formas polticas relativas aos processos tardios de modernizao capitalista em pases como Alemanha, Itlia e Japo as maiores expresses do encerramento da etapa histrica revolucionria da burguesia (conforme j discutimos um pouco nas pginas dedicadas a Engels). Carentes de um Estado nacional unificado e incapazes de conduzir sob suas bandeiras as classes dominadas, justamente em funo do proletariado j existir enquanto sujeito social (mesmo que ainda no politicamente independente), as burguesias tardias, 163
como a italiana, alem e japonesa, viram-se compelidas a buscar compromissos com suas respectivas aristocracias a fim de evitar que o processo poltico necessrio emergncia de um moderno capitalismo industrial pudesse colocar em risco, devido participao das camadas populares, a prpria existncia da propriedade privada dos meios de produo. Dessa necessidade das burguesias alem, italiana e japonesa de pactuar, respectivamente, com os junkers prussianos, os terratenentes sulistas e os antigos daimyos (senhores feudais), surgiram Estados nacionais estruturados pelo compromisso burgus-aristocrtico aos quais esteve destinada a tarefa de conduzir, no lugar de suas prprias burguesias, o processo de desenvolvimento do capitalismo. O atraso cobrava seu preo. 397
Para Trotsky, a Revoluo Francesa iniciada em 1789 teria sido a manifestao clssica da luta mundial da ordem social burguesa pelo domnio, o poder e a vitria indivisvel dentro do marco nacional: 398
No perodo herico da histria francesa vemos diante de ns uma burguesia ilustrada e ativa que ainda no tinha descoberto suas prprias contradies. A histria lhe tinha confiado a tarefa de mando na luta pela nova ordem, no s contra as instituies antiquadas da Frana como tambm contra as foras reacionrias de toda Europa. Como conseqncia, a burguesia, em todas as suas diversas fraes, se sente condutora da nao, compreende as massas em luta, lhes transmite consignas e lhes sinaliza a ttica da luta. A democracia unificou a nao sob uma ideologia poltica. O povo pequeno- burgueses, camponeses e operrios elegia burgueses como deputados e as tarefas encarregadas a eles pelas massas estavam escritas em uma linguagem de uma burguesia que era consciente de seu papel messinico. Ainda que tambm durante a revoluo mesma se destaquem claramente antagonismos de classe, o mpeto da luta revolucionria, uma vez conseguido, elimina a poltica e, consequentemente, os elementos burocrticos da burguesia. Nenhuma camada social substituda sem ter transmitido antes sua energia s que a sucedem. Assim, a nao como um todo continua a luta por seus objetivos com meios cada vez mais potentes e decididos. Quando a nata da burguesia endinheirada se separa do ncleo do movimento nacional colocado em marcha e se alia com Lus XVI, se voltam as reivindicaes da nao, que naquele tempo esto j dirigidas contra esta burguesia, para o sufrgio universal e para a repblica como formas lgicas e inevitveis da democracia. 399
Posteriormente, na vaga revolucionria aberta em 1848, a burguesia, em termos mundiais, era j incapaz de cumprir um papel comparvel ao desempenhado por ela prpria nos tempos da Grande Revoluo:
[A burguesia] no era suficientemente disposta nem audaz para assumir a responsabilidade da eliminao revolucionria da ordem social que se opunha sua dominao. Entretanto, pudemos chegar a conhecer o porqu. Sua tarefa consistia mais disso se dava ela conta claramente em incluir no velho sistema garantias que eram necessrias, no para sua dominao poltica, e sim simplesmente para uma repartio do poder com as foras do passado. A burguesia havia extrado algumas lies das experincias da burguesia francesa: estava corrompida por sua traio e amedrontada por seus fracassos. No somente se abstinha perfeitamente de empurrar as massas ao assalto contra a velha ordem, como buscava um apoio nesta ltima com o objetivo de rechaar as massas que a empurravam adiante. 400
397 Na parte deste trabalho dedicada ao pensamento de Gramsci sobre o bonapartismo (Gramsci e o cesarismo), voltaremos a tocar nesse ponto quando fizermos meno ao conceito de revoluo passiva trabalhado pelo marxista sardo. 398 TROTSKY, L. Resultados y perspectivas. Op. cit., p. 28. Traduo nossa. 399 Idem, p. 27-28. Traduo nossa. 400 Idem, p. 30. Traduo nossa. Grifo do autor. 164
Desse modo, o encerramento da fase revolucionria da burguesia enquanto classe internacional impossibilitava a reedio da experincia jacobina isto , de uma experincia revolucionria clssica em pases que ainda se encontravam sob o domnio poltico das foras aristocrticas. O caminho revolucionrio de ascenso da burguesia ao poder poltico estava definitivamente fechado. Colocava-se, portanto, desde meados do sculo XIX, um processo de dissociao crescente entre o desenvolvimento pleno das relaes sociais capitalistas e a via da revoluo democrtica para a conquista do poder poltico por parte das burguesias tardias:
A burguesia francesa soube fazer grande sua revoluo. Sua conscincia era ao mesmo tempo a conscincia da sociedade inteira e nada podia se converter em instituio duradoura sem ter sido antes reconhecido por esta conscincia com um objetivo seu, como uma tarefa sua de carter poltico. Aos poucos adotou uma atitude teatral para esconder perante si mesma a estreiteza de seu prprio mundo burgus; porm, seguia adiante, sem embargo. A burguesia alem, pelo contrrio, desde o princpio, ao invs de fazer a revoluo, se separava dela. Sua conscincia se rebelou contra as condies objetivas de sua prpria dominao. No se podia chegar revoluo com seu concurso, e sim contra ela. Em seu pensamento, as instituies democrticas se apresentavam no como um objetivo de sua luta, e sim como um perigo para o seu bem-estar. No ano de [18]48 necessitava-se de uma classe que tivesse sido capaz de tomar em suas mos os acontecimentos, prescindindo da burguesia e inclusive em contradio com ela, uma classe que estivesse disposta no s a empurrar a burguesia para frente com toda sua fora, como tambm a separar-se, no momento decisivo, de seu cadver poltico. 401
Pode-se perceber no trecho acima como est contida na perspectiva de Trotsky acerca da dinmica histrica das naes tardias a idia de um substitucionismo poltico-social, ou seja, a idia de que, na histria dos pases atrasados, uma classe social pode se ver frente ao desafio de realizar tarefas polticas e sociais que, a priori, estariam destinadas a outra classe. Tal concepo de Trotsky, como vimos, encontra-se fortemente presente na sua lei do desenvolvimento desigual e combinado e em sua teoria da revoluo permanente. Alis, vale chamar a ateno para o fato de que foi o prprio Marx, em seus escritos produzidos poca da revoluo alem de 1848, quem vislumbrou a possibilidade da pequena-burguesia e, mais tarde um pouco, do proletariado, virem a desempenhar no pas o papel histrico revolucionrio incapaz de ser exercido pela impotente burguesia tardia, significativamente atrelada aristocracia junker. No por acaso, a carta de Marx e Engels endereada em 1850 Liga dos Comunistas, 402 na qual os remetentes defendem a necessidade de independncia poltica completa do proletariado no decorrer da revoluo burguesa alem, invocada por Trotsky como uma prova da origem marxiana da teoria da revoluo permanente. 403
401 Idem, p. 30-31. 402 MARX, K. e ENGELS, F. Mensagem do Comit Central Liga dos Comunistas in ____. Obras escolhidas. Moscou/Lisboa: Progresso, 1982, p. 178-188, volume I. 403 Acerca da idia de revoluo permanente em Marx, ver, entre outras obras, ARCARY, Valrio. Controvrsias sobre a teoria da revoluo no testamento de Engels in ____. O encontro da revoluo com a 165
Entretanto, o que mais nos interessa no presente momento frisar como, para Trotsky, as burguesias tardias, justamente pela forma retardatria como apareceram historicamente, encontraram-se foradas a abdicar de levar a cabo uma revoluo democrtica como meio de abrir caminho para o desenvolvimento da sociedade burguesa, restando-lhes apenas a via do compromisso, ao nvel do Estado, com as classes proprietrias nobilirquicas. Contudo, no obstante o caminho no-revolucionrio e extremamente antipopular pelo qual essas burguesias tardias conseguiram efetivar a transio ao capitalismo industrial moderno, elas puderam inserir suas naes, recm-unificadas, na disputa que se dava por parte das potncias imperialistas pelo domnio das regies africana e asitica do globo. Dito de outro modo: pelo fato de naes como Alemanha, Itlia e Japo terem realizado suas modernizaes industriais retardatrias concomitantemente ao processo de monopolizao do capital, e no quando o imperialismo j se constitua em uma realidade totalmente dada, ainda lhes foi possvel alcanar uma posio de ponta, imperialista, no sistema mundial de Estados. Aproveitando-se das chamadas vantagens do atraso, 404 que se expressam principalmente pela possibilidade de saltar etapas no processo de industrializao, naes tardias como a Alemanha Itlia e Japo tornaram-se econmica, poltica e militarmente fortes o suficiente para se lanar de cabea na corrida imperialista. Alis, a prpria elevao dessas naes condio de conquistadoras em potencial das reas coloniais e semicoloniais que marca o incio mesmo, se que se pode assim dizer, do fenmeno imperialista. Em resumo: as naes tardias, mesmo tendo realizado suas modernizaes industriais com um atraso significativo se comparadas a naes como Inglaterra, Frana e at mesmo Estados Unidos, as realizaram em um momento no qual o proletariado no era ainda um sujeito poltico totalmente independente na luta de classes, como o viria a ser em breve, e quando a diviso do mundo entre as grandes potncias imperialistas ainda no atingira uma configurao muito bem delimitada. Se, por um lado, o caminho democrtico-revolucionrio mostrou-se impossvel de ser trilhado pelas burguesias tardias, a transio ao moderno capitalismo industrial e a ruptura, mesmo que parcial, com a velha ordem poltica ainda puderam ser feitas sem que a revoluo proletria se tornasse iminente, e a tempo de incluir as naes tardias no hall das potncias imperialistas.
histria. Socialismo como projeto na tradio marxista. So Paulo: Sundermann/Xam, 2006, p. 149-196; BENSAID, Daniel. Marx, o intempestivo. Rio de Janeiro: Civilizao brasileira, 1999, p. 45 e BIANCHI, Alvaro. Democracia e revoluo no pensamento de Marx e Engels (1847-1850) in Outubro, n. 16. So Paulo, 2007, p. 109-143. 404 A expresso vantagens do atraso foi utilizada pioneiramente por Thorstein Veblen, em um ensaio datado de 1915 dedicado ao processo histrico e econmico do desenvolvimento industrial da Alemanha imperial (VEBLEN, Thorstein. Imperial Germany and the industrial revolution. New York: Kessinger Publishing CO, 2007. 166
Desse modo, o fardo do atraso cairia, porm agora de modo inescapvel, sobre as costas das burguesias que somente em fins do sculo XIX deram as caras na cena histrica. Retardatrias no s em relao s burguesias dos pases originrios do capitalismo (Inglaterra, Frana, Estados Unidos), mas tambm em relao s burguesias tardias (Alemanha, Itlia, Japo), essas burguesias que aqui denominamos de hipertardias no s se mostraram incapazes de realizar uma revoluo democrtica, como tambm se viram durante um bom tempo absolutamente subordinadas na esfera poltica s antigas classes dominantes, de origem agrria. 405 No que diz respeito ao peso econmico e poltico destas burguesias no sistema mundial de Estados, pode-se dizer que nenhuma delas possuiu a capacidade de atribuir s suas naes um papel de protagonista na trama imperialista; na enorme maioria dos casos, entretanto, o que restou mesmo a essas naes em questo foi assumir uma condio indiscutivelmente colonial ou semicolonial no sistema mundial de Estados. Arriscando-nos a afirmar a existncia de uma espcie de ranking do atraso na teoria da histria de Trotsky, 406 podemos apresentar enquanto pertencentes ao grupo das burguesias hipertardias aquelas classes proprietrias industriais que apenas sob a fase monopolista do capital tornaram-se econmica e politicamente relevantes em suas naes, isto , aquelas burguesias que s passaram a existir enquanto classes de fato quando o fenmeno imperialista j se fazia presente. Em funo do demasiado atraso histrico com o qual surgiram, essas burguesias se depararam com dois elementos centrais que determinariam a trajetria politicamente contra-revolucionria e economicamente subalterna a qual estariam destinadas a cumprir ao longo do sculo XX: a existncia, no plano mundial, de um proletariado politicamente independente e substancialmente temperado em suas cruentas lutas desde 1848, e a configurao de uma ordem mundial imperialista, na qual se destacavam como potncias expansionistas tanto as naes originrias do capitalismo quanto as tardias. Vejamos, rapidamente, um pouco sobre esses dois aspectos. Conforme mencionamos, contrariamente ao que fizera a clssica burguesia francesa (em particular sua ala jacobina), as burguesias tardias viram-se impedidas de, em seus respectivos pases, conduzir a Nao (o povo) em uma caminho revolucionrio- democrtico voltado para a destruio dos antigos privilgios feudais. O modo conciliatrio e profundamente antipopular pelo qual se deu politicamente a passagem a uma sociedade
405 Sem ignorar todas as inmeras diferenas histricas entre as burguesias industriais russa e brasileira, achamos possvel, por exemplo, comparar a situao poltica da primeira em relao ao regime czarista com o papel desempenhado pela segunda no sistema poltico da Repblica Velha (1889-1930). 406 Trotsky chegou a usar, certa feita, a expresso hierarquia do atraso, como veremos em uma citao adiante. TROTSKY, L. La revolucin china in ____. La teoria de la revolucin permanente. Op. cit, p. 527. Discutiremos essa hierarquia um pouco mais frente. 167
industrial moderna nos pases tardios foi resultado, antes de mais nada, da j substantiva presena de um novo sujeito social no interior dessas formaes sociais: o proletariado. Contudo, se o proletariado no era mais socialmente insignificante como poca do jacobinismo francs, a ponto de permitir a direo poltica burguesa sobre aquilo que se denominava Nao (o terceiro Estado), este ainda no possua condies polticas que lhe possibilitassem seguir um caminho independente da prpria classe burguesa qual se opunha na vida econmica diria. Acerca da revoluo alem de 1848, constatou Trotsky:
O proletariado era demasiado dbil, se encontrava sem organizao, sem experincia e sem conhecimentos. O desenvolvimento capitalista havia progredido o suficiente para fazer necessria a abolio das velhas condies feudais, mas no to suficiente para permitir que se destacasse a classe operria o produto das novas condies de produo como uma fora poltica decisiva. O antagonismo entre o proletariado e a burguesia havia se desenvolvido demasiadamente no marco nacional da Alemanha para que ainda fosse possvel burguesia figurar intrepidamente com o papel de protagonista nacional; mas no havia se desenvolvido tanto para que o proletariado pudesse tomar para si esse mesmo papel. 407
Entretanto, as dcadas que separaram as modernizaes industriais dos pases tardios da dos pases hipertardios foram suficientes para que o proletariado pudesse caminhar por suas prprias pernas. Mesmo derrotada, a Comuna de Paris de 1871 havia servido de exemplo para toda a burguesia mundial no que diz respeito s foras revolucionrias do proletariado. A transformao dos trabalhadores em uma classe politicamente independente e disposta a lutar violentamente pelo fim da propriedade privada fez com que, em escala mundial, a burguesia passasse a ser abertamente contra-revolucionria. Foi nesse contexto internacional determinado essencialmente pelo antagonismo entre revoluo proletria e contra-revoluo burguesa que as classes industriais das naes hipertardias subiram ao palco da luta de classes. Segundo Trotsky, num contexto histrico no qual a burguesia, enquanto classe internacional, j agia politicamente guiada pelo signo da contra-revoluo, no restaria a essas burguesias tempors nada mais do que se portarem de um modo claramente contra- revolucionrio. Nota-se aqui mais uma vez o internacionalismo metodolgico do revolucionrio russo a que se referiu Alvaro Bianchi: mesmo que os proletariados dos pases hipertardios no tivessem ainda um peso social expressivo e, consequentemente, uma poltica revolucionria, fazia-se necessria s burguesias desses pases, em funo de serem parcelas nacionais de uma classe internacional que j se enfrentava irreconciliavelmente com outra classe internacional (o proletariado), a adoo, mesmo que em muitos casos de um modo apenas preventivo, de uma poltica abertamente contra-revolucionria. Novamente, para
407 TROTSKY, L. L. Resultados y perspectivas. Op. cit., p. 32. Traduo nossa. 168
Trotsky, a insero no todo que, dialeticamente, determina muito da dinmica social das partes. Alm dessa determinao externa na poltica das burguesias hipertardias, devemos chamar a ateno para o fato, j mencionado, de que a prpria dinmica de industrializao das naes atrasadas (que, por sua vez, tambm externamente determinada, como j foi visto) enseja uma correlao de foras poltica favorvel ao proletariado. A queima de etapas presente no processo de modernizao capitalista industrial dessas naes acaba por originar um crescimento rpido do proletariado e a sua concentrao em grandes fbricas que operam a partir das inovaes tcnicas mais recentes no plano mundial; a burguesia, recm- surgida, percebe-se, ento, frente a frente com seu antagonista histrico antes mesmo de ter amadurecido econmica, poltica e culturalmente enquanto classe. 408
Essa situao social de temor do proletariado na qual se encontraram as burguesias hipertardias situao esta constituda tanto pela etapa histrica da luta de classes na esfera mundial quanto pelo desenvolvimento desigual e combinado que se faz presente nas industrializaes retardatrias explica, em grande parte, no s a incapacidade revolucionria por parte dessas burguesias (tal como no caso de suas irms do meio, as burguesias tardias) como tambm, no caso da Rssia, por exemplo, a sua subordinao completa s formas de poder poltico de natureza autocrtica, correspondentes muitas vezes a um perodo histrico pr-capitalista. Para Trotsky, na modernizao capitalista dos pases mais atrasados verificava-se, com toda a clareza, no s a dissociao completa entre desenvolvimento industrial e revoluo democrtico-burguesa, como tambm a sua associao inquebrantvel contra-revoluo poltica efetivada por parte das burguesias nativas, o que abria caminho ao bonapartismo. Seja abraando e revitalizando instituies tirnicas de matriz aristocrtica, seja optando pela implementao das formas repressivas mais modernas de regime poltico existentes no cenrio mundial, as burguesias hipertardias estavam impossibilitadas de instaurar, a no ser de modo parcial e efmero, formas polticas efetivamente democrtico-parlamentares de dominao. Vale registrarmos que no caso das modernizaes industriais ultra-retardatrias, como, por exemplo, as ocorridas nos pases latino-americanos (que se deram, de modo substancial, apenas a partir da dcada de 1930), as burguesias nativas, dado o contexto histrico na qual se encontravam, lanaram mo desta segunda alternativa. No por acaso, Vargas e Pern, por exemplo, estiveram frente de regimes bonapartistas que continham traos da mais moderna experincia ditatorial da Europa de sua poca, o fascismo.
408 Foi observando essa dinmica social que Trotsky apontou o que seria a fora relativa do proletariado e, dialeticamente, a fraqueza, tambm relativa, das burguesias nessas formaes sociais demasiadamente atrasadas, como veremos um pouco adiante. 169
Na obra de Trotsky, a saga trgica da burguesia russa adquire um carter paradigmtico no que diz respeito s (im)possibilidades polticas das classes proprietrias industriais que muito tarde fizeram-se presentes historicamente. Deparando-se, praticamente desde seu alvorecer, com operrios que a ela se opunham rancorosamente na vida cotidiana e que, muito cedo, aprenderam a dar um sentido mais geral aos seus objetivos, 409 a burguesia russa, hipertardia, viu-se incapacitada de protagonizar at mesmo qualquer tarefa de cunho reformista. A presena do proletariado a levou a reforar ainda mais seus laos com a nobreza proprietria, cerrando fileiras com ela na defesa da inviolabilidade da propriedade privada. Fraca, temerosa de qualquer abalo social, organicamente atrelada aristocracia e economicamente dependente do Estado promotor da industrializao, a burguesia russa no teve outra escolha seno a de, docemente constrangida, submeter-se a uma estrutura poltica de cunho medieval, o absolutismo czarista. O caso das burguesias latino-americanas tambm pode ser tomado na obra de Trotsky enquanto exemplo da natureza poltica abertamente contra-revolucionria das classes industriais hipertardias. Ainda mais retardatrias do que a burguesia russa, e tambm subordinadas s classes dominantes rurais e aos Estados-sujeitos da modernizao capitalista, as burguesias industriais latino-americanas assistiram, em funo da queima de etapas constituinte da dinmica industrial das naes atrasadas, a um crescimento extremamente acelerado de seus proletariados. A existncia, nas sociedades industriais em formao na Amrica Latina, de uma correlao de foras relativamente favorvel aos trabalhadores, gerada, precipuamente, por essa desproporo de pesos sociais entre as classes fundamentais da cena poltica, fez com que as burguesias nativas lanassem mo, quase que constantemente, de regimes no-democrticos como forma possvel de dominao poltica de classe. A histria latino-americana do sculo XX, at pelo menos meados da dcada de 1980, foi uma prova incontestvel da validade do raciocnio de Trotsky no que se refere relao, inversamente proporcional, entre desenvolvimento industrial capitalista e democracia burguesa nas naes atrasadas. Esse mesmo raciocnio, ainda segundo Trotsky, seria vlido, em termos gerais, tambm para os continentes africano e asitico. 410
H, contudo, tanto no caso da burguesia russa quanto no das latino-americanas (e tambm no das africanas e asiticas) um outro aspecto explicativo de suas naturezas contra- revolucionrias: a forte presena do capital estrangeiro no interior das formaes sociais hipertardias. Tal aspecto nos remete outra condio histrica, apontada h pouco, com a qual as burguesias demasiadamente atrasadas se defrontaram no momento em que levaram a
409 TROTSKY, Len. A Histria da Revoluo Russa. Op. cit, p. 30. 410 Vale aqui lembrar os escritos supracitados de Trotsky acerca de pases como China e frica do Sul. 170
cabo as modernizaes capitalistas de suas naes: a existncia de um sistema mundial de Estados j estruturado, em fins do sculo XIX, pela lgica imperialista. A monopolizao do capital, como sabido, esteve diretamente associada a um processo de internacionalizao cada vez maior deste, o que fez como que as industrializaes realizadas a partir de fins do sculo XIX tivessem no capital estrangeiro um ingrediente fundamental. Por uma questo de temporalidade histrica, no foi possvel s naes hipertardias empreenderem o desenvolvimento de suas foras produtivas sem que encontrassem no capital imperialista, proveniente das naes preteritamente industrializadas, um impulsionador econmico de suas industrializaes e, ao mesmo tempo, um obstculo incontornvel para o alcance de suas autonomias poltica e econmica. O atraso, mais uma vez, cobrava seu preo; todavia, diferentemente do caso das naes tardias, ele agora o cobrava em dobro: no s as burguesias hipertardias no poderiam ser revolucionrias ou mesmo democrticas, como tambm lhes estava vetada, historicamente, a possibilidade de virem a dirigir grandes potncias imperialistas que ocupassem os papis principais na novela mundial. Em outras palavras: a existncia de naes imperialistas de primeiro time no sistema mundial de Estados foi, sem dvida, um fator impeditivo para que outras naes tambm viessem a s-lo. Mais uma vez vem ao caso o exemplo da Rssia. A forte presena do capital estrangeiro (especialmente o ingls, o francs, o belga e o alemo) na economia russa, e em particular no ramo industrial, foi determinante no que diz respeito carncia de fora poltica da burguesia do pas. O alto ndice de investimento de capitais estrangeiros no territrio russo fazia com que a burguesia local se visse desinteressada de travar uma luta democrtico- burguesa contra o regime autocrtico, j que as potncias imperialistas tinham no czarismo uma instituio poltica que garantia seus lucros. Alm disso, essa penetrao externa de capital na Rssia debilitava significativamente sua burguesia, impossibilitando-a de adquirir uma consistncia e organicidade tpicas de uma verdadeira classe nacional capaz de dirigir os diversos segmentos sociais. Tal aspecto s fazia aumentar seu temor de que viesse a ser o proletariado, e no ela prpria, o sujeito social a dirigir o grosso da populao, o campesinato, em uma luta poltica de carter antiabsolutista o que, de certo modo, acabou ocorrendo em fevereiro de 1917. No plano internacional, uma das conseqncias dessa macia insero dos investimentos estrangeiros na Rssia foi o fato de que o pas no logrou ocupar mais do que uma posio rebaixada enquanto nao imperialista. A fragorosa derrota militar para o imprio japons na primeira metade da dcada de 1900 foi um indcio claro de que a primeira e segunda fileiras do teatro imperialista j tinham seus assentos devidamente ocupados, 171
respectivamente, pelas naes capitalistas originrias e tardias. Coube Rssia, resignada, conformar-se com a terceira fileira. O papel extremamente subalterno ocupado pela Rssia, cerca de dez anos depois do fim da guerra russo-nipnica, no bloco imperialista da Entente durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), no deixou dvidas quanto a isso. A subservincia econmica, poltica e militar da burguesia russa face s demais burguesias imperialistas da Entente a impediu, e a seus aliados mencheviques e socialistas- revolucionrios, de retirar da guerra uma nao j completamente exaurida e quase derrotada, o que, conseqentemente, tornou perceptvel aos operrios, soldados e camponeses russos o fato de que somente os bolcheviques eram seus sinceros e legtimos intrpretes. A dependncia econmica da burguesia russa diante dos banqueiros e industriais estrangeiros fez com que esta fosse incapaz de tomar uma nica atitude, digamos, nacional; no caso, uma atitude que poupasse sua populao, em especial seus camponeses e operrios que serviam no front, de uma carnificina inaudita gerada, essencialmente, pela cobia de outrem. Tal impotncia custou burguesia russa, nada mais nada menos, do que sua prpria existncia social. Quanto aos pases latino-americanos, asiticos e africanos, pode-se dizer que h uma diferena de qualidade em relao Rssia, no que diz respeito ao papel exercido pelo capital imperialista. Ainda mais industrialmente retardatrios que a terra dos czares e, desde muito tempo, inseridos de modo subalterno em um sistema capitalista mundial ainda em formao, vieram esses pases a assumir um carter semicolonial ou propriamente colonial na ordem mundial imperialista configurada a partir de fins do sculo XIX. Suas burguesias, desde suas gneses vinculadas ao capital estrangeiro e submetidas ao imperialismo, expunham uma debilidade poltica ainda mais agravada do que as de naes como a Rssia, que, afinal de contas, era uma nao imperialista, ainda que de terceira linha. Perifricas e dependentes at o mago do capital externo, essas burguesias, segundo Trotsky, pouco ou quase nada podiam (e queriam) em termos de efetivao de medidas que, mesmo que de longe, lembrassem algo de revolucionrio ou democrtico:
Nem uma s das tarefas da revoluo burguesa pode realizar-se nos pases atrasados [aqui Trotsky refere-se especificamente aos pases coloniais e semicoloniais] sob a direo da burguesia nacional, porque esta, desde seu nascimento, surge com apoio externo como classe distanciada e hostil ao povo. Cada etapa de seu desenvolvimento a liga mais estreitamente ao capital financeiro externo do qual , em essncia, agente. [...] Desde logo no se pode identificar a Rssia com a China. Com todos os traos importantes que compartilham, as diferenas so bastante bvias. Mas no difcil dar conta de que essas ditas diferenas no debilitam, e sim fortalecem as concluses fundamentais do bolchevismo. Em certo sentido a Rssia czarista tambm era um pas colonial, o que se expressava no papel predominante do capital externo. Mas a burguesia russa gozava dos benefcios de uma independncia muito maior do imperialismo externo do que a China. A Rssia era um pas imperialista. 411
411 TROTSKY, L. La revolucin china. Op. cit., p. 528-533 172
Polemizando, em 1938, com a direo estalinista da IC em funo da postura etapista por ela adotada durante a revoluo chinesa de 1925-1927, Trotsky exps como as burguesias coloniais e semicoloniais eram ainda mais reacionrias do que havia sido, nas duas primeiras dcadas do sculo XX, a burguesia russa: As diferenas entre China e Rssia a dependncia incomparavelmente maior da burguesia chinesa em relao ao capital estrangeiro, a ausncia de tradies revolucionrias independentes no seio da pequena- burguesia, a atrao massiva de operrios e camponeses para a bandeira do Komintern exigiam [na China] uma poltica ainda mais intransigente, se isso fosse possvel, que na Rssia. 412
Recorrendo mais uma vez ao ranking do atraso que pode ser entrevisto na obra de Trotsky, podemos dizer que os pases coloniais e semicoloniais seriam os mais atrasados dentre os atrasados, dada a imbricao presente nestes entre modernizao industrial capitalista retardatria e subordinao ao imperialismo. 413 Assim, a luta pela revoluo socialista nessas formaes sociais hipertardias estaria intimamente associada luta pela realizao das tarefas democrticas e pela libertao do jugo imperialista. Em outro texto de 1938, este de natureza exclusivamente programtica, Trotsky indicou a poltica a ser efetivada pelos revolucionrios nas regies mais atrasadas do globo:
Os pases coloniais e semicoloniais so, por sua prpria natureza, atrasados. Estes pases vivem em condies de domnio mundial do imperialismo. Seu desenvolvimento, consequentemente, tem um carter combinado: renem em si as formas econmicas mais primitivas e a ltima palavra da tcnica e da civilizao capitalista. isto que determina a poltica do proletariado dos pases atrasados: ele obrigado a combinar a luta pelas tarefas mais elementares da independncia nacional e da democracia burguesa com a luta socialista contra o imperialismo mundial. Nessa luta, as palavras de ordem democrticas, as reivindicaes transitrias e as tarefas da revoluo socialista no esto separadas em pocas histricas distintas, mas decorrem umas das outras. Apenas havia iniciado a organizao de sindicatos, o proletariado chins foi obrigado a pensar nos conselhos. nesse sentido que o presente programa [o Programa de Transio] plenamente aplicvel aos pases coloniais e semicoloniais; pelo menos onde o proletariado j capaz de possuir uma poltica independente.
412 Idem, p. 533 413 Vale dizer que Trotsky afirmou a existncia de diferentes gradaes de atraso no interior do conjunto de pases coloniais e semicoloniais: Os pases coloniais e semicoloniais atrasados, portanto , que abarcam a maior parte da humanidade, diferem extraordinariamente entre si quanto ao grau de seu atraso. Ocupam uma escala histrica que vai do nomadismo e ainda do canibalismo at a cultura industrial mais moderna. Essa combinao de extremos caracteriza em maior ou menor grau a todos os pases atrasados. Contudo, a hierarquia do atraso, se possvel empregar o seguinte termo, se v determinada pelo peso especfico dos elementos de barbrie e cultura na vida de cada pas colonial. A frica Equatorial est muito atrasada em relao Arglia, o Paraguai em relao ao Mxico, e a Abissnia em relao ndia ou China. Detrs de sua dependncia econmica comum da metrpole imperialista, a dependncia poltica tem em alguns casos o carter de escravido colonial aberta (ndia, frica Equatorial), enquanto que em outros se v ocultada pela fico da independncia estatal. TROTSKY, L. Idem, p. 527-528. Grifos nossos. Cabe apontar aqui que a existncia de uma via colonial do desenvolvimento capitalista foi proposta para o caso brasileiro por Jos Chasin em seu trabalho sobre o lder integralista Plnio Salgado (CHASIN, Jos. O integralismo de Plnio Salgado: forma de regressividade no capitalismo hipertardio. 2 edio. Belo Horizonte/ So Paulo: Una Editora/ Estudos e Edies Ad hominem, 1999. 173
Os problemas centrais desses pases coloniais e semicoloniais so: a revoluo agrria, isto , a liquidao da herana feudal, e a independncia nacional, isto , a derrubada do jugo imperialista. Essas duas tarefas esto estreitamente ligadas uma outra. impossvel rejeitar pura e simplesmente o programa democrtico; necessrio que as prprias massas o ultrapassem na luta [...] necessrio armar os operrios com esse programa democrtico. Somente eles podero sublevar e reunir os camponeses. Baseados no programa democrtico e revolucionrio necessrio opor os operrios burguesia nacional [...] Somente eles so capazes de levar a revoluo democrtica at o fim e, assim, abrir a era da Revoluo socialista. 414
Nota-se claramente acima a utilizao da teoria da revoluo permanente, esboada desde 1906 com vistas aplicao na Rssia czarista, para dar conta do carter da revoluo nos pases coloniais e semicoloniais. Na anlise de Trotsky, o peso do capital estrangeiro nesses pases decisivo (mais do que o foi na prpria Rssia) no que diz respeito determinao das possibilidades polticas de suas burguesias nativas. O imperialismo no , na perspectiva trotskista, apenas um elemento a mais; ele um fator estruturante das relaes sociais na periferia do sistema capitalista. Contudo, diferentemente dos etapistas e dualistas de todo tipo, o imperialismo no tratado por Trotsky como uma entidade externa s reas submetidas a ele, nas quais teria como cnsules apenas o latifndio e os setores mais reacionrios e arcaicos da burguesia local (burguesia agrria, mercantil, compradora etc.). Longe de operar com uma dicotomia Nao x antinao e depositar suas esperanas polticas em uma burguesia nacional de cunho progressista, Trotsky, invocando justamente a historicidade dos pases perifricos, afirmava o comprometimento inquebrantvel do conjunto das classes dominantes coloniais e semicoloniais com o imperialismo. Organicamente vinculadas ao capital estrangeiro, as burguesias perifricas nada podiam (e queriam) em termos da realizao de rupturas de fato com o imperialismo e, conseqentemente, da efetivao de medidas democrticas que atendessem s amplas massas populares. Dada a rapina imperialista exercida nas reas perifricas, ou seja, o encaminhamento para o exterior de grande parte do resultado da explorao do trabalho local, as burguesias coloniais e semicoloniais gozariam de pouqussima margem de manobra econmica face s demandas do proletariado crescente. Desse modo, o regime democrtico- burgus, pelo menos enquanto uma forma no meramente circunstancial e extremamente efmera de dominao poltica, constitua-se em uma impossibilidade histrica para as regies coloniais e semicoloniais. A nosso ver, as vrias ocorrncias de ditaduras militares e regimes bonapartistas (mais ou menos repressivos, mais ou menos militarizados) na sia,
414 TROTSKY, L. Programa de Transio. Op. cit., p. 41-43. Grifos do autor. 174
Amrica Latina e frica ao longo do sculo XX no deixam de constituir provas emprico- histricas da validade da assertiva trotskista. 415
No que concerne mais especificamente aos pases latino-americanos, Trotsky apontou como a relativa debilidade de suas burguesias, proporcionada pelo papel preponderante do capital estrangeiro nas economias locais, assim como pelo j mencionado crescimento acelerado do proletariado, as levaria a erigir os tais regimes bonapartistas sui generis como modo possvel de domnio de classe. Como veremos mais detalhadamente a seguir, esses poderiam, de acordo com as condies scio-histricas de cada pas, ou apoiar-se na mobilizao controlada das massas para melhor barganhar com o imperialismo (variante semibonapartista democrtica, tambm denominada de semidemocrtica, inspirada no regime cardenista mexicano), ou simplesmente control-las a partir da mais brutal represso (variante ditatorial policial-militar/semifascista, inspirada no regime de Vargas a partir de 1935). Por ora, o que nos interessa chamar a ateno para a existncia, no interior da perspectiva histrica de Trotsky sobre a Amrica Latina, de uma relao entre imperialismo, burguesias nativas contra-revolucionrias e a impossibilidade de implantao de democracias burguesas como forma de dominao sobre o jovem proletariado do continente. A idia, presente nos escritos latino-americanos de Trotsky, de uma espcie de tendncia estrutural ao bonapartismo na regio (seja ele semidemocrtico ou policial-militar) conseqncia analtica direta da relao exposta acima. guisa de concluso deste tpico, gostaramos apenas de pontuar algumas questes referentes afirmao, que permeia a obra de Trotsky, de uma debilidade por parte das burguesia atrasadas, em especial a das pertencentes aos pases coloniais e semicoloniais. Decerto, no por acaso foi que Trotsky, na maioria das vezes em que se referiu a essa debilidade, fez questo de anteceder ou suceder tal adjetivao pelo termo relativa. Interpretando os textos de Trotsky nos quais tm lugar suas anlises sobre as classes dominantes industriais das formaes sociais hipertardias, supomos que a utilizao da expresso relativa debilidade (ou debilidade relativa) para caracterizar a natureza social e poltica destas burguesias deve-se aos seguintes aspectos. Em funo do desenvolvimento desigual e combinado que opera na industrializao ultra-retardatria da periferia capitalista, as burguesias nativas das regies coloniais e semicoloniais, assim como j havia ocorrido com a burguesia russa, depararam-se com proletariados que rapidamente cresciam e (saltando etapas tambm na formao de suas conscincias) organizavam-se a partir das ideologias operrias mais elaboradas do cenrio mundial, em especial o comunismo. Assim, a relativa debilidade das burguesias latino-
415 No custa lembrar que, em muitos casos, as ditaduras militares encerram um contedo bonapartista, e que o elemento militar ocupa sempre um papel importante (com maior ou menor peso) em todo regime bonapartista. 175
americanas, por exemplo, explicava-se, em parte, pela fora tambm relativa do proletariado; acima de tudo uma questo de correlao de foras, e no de mensurao de naturezas sociais em absoluto. Para Trotsky, um pilar fundamental dessa correlao de foras favorvel ao proletariado latino-americano, e que, portanto, fazia (faz) das burguesias da regio classes relativamente dbeis, era () o j mencionado peso do capital estrangeiro nas economias submetidas ao imperialismo:
Nos pases industrialmente atrasados o capital estrangeiro desempenha um papel decisivo. Da a relativa debilidade da burguesia nacional em relao ao proletariado nacional. 416
Como nos pases atrasados o papel principal no jogado pelo capital nacional e sim pelo estrangeiro, a burguesia nacional ocupa, quanto a sua localizao social, uma posio desproporcionalmente inferior ao desenvolvimento atingido pela indstria. Como o capital estrangeiro no importa operrios e sim proletariza a populao nativa, o proletariado nacional comea muito rapidamente a jogar o papel mais importante na vida nacional. 417
O outro aspecto a ser mencionado tambm de ordem comparativa, relacional. Ao se debruar sobre a natureza das burguesias coloniais e semicoloniais, Trotsky, implcita ou explicitamente, as comparou com as burguesias das naes avanadas, imperialistas. Diferentemente do ocorrido com estas ltimas, no seria permitido s classes dominantes industriais perifricas, dada a ausncia em seus pases de bases materiais necessrias ao atendimento satisfatrio das reivindicaes trabalhistas, estabelecer, a no ser muito episodicamente, regimes democrtico-burgueses estveis, o que explicaria o fato de essas burguesias coloniais e semicoloniais terem recorrido constantemente a formas polticas bonapartistas, em muitas das quais se destacavam expedientes altamente repressivos. 418
A no ser para os tericos social-democratas que, fetichistamente, consideram a democracia burguesa ocidental como nada mais do que uma imposio dos trabalhadores s suas classes dominantes (o que equivale, conceitualmente, a retirar a adjetivao de burguesa dessas democracias), no h dvidas de que o regime democrtico-burgus uma forma muito mais consistente, estvel e segura para as classes dominantes do que o so os regimes ditatoriais de todos os matizes. Assim, no se trata, da parte de Trotsky, de considerar tal ou qual burguesia mais ou menos competente para o exerccio de suas funes polticas, e sim do fato de que as burguesias atrasadas perifricas, por fora das circunstncias histricas,
416 TROTSKY, L. La industria nacionalizada y la administracin obrera in ____ Escritos latinoamericanos. Op. cit., p.163. Traduo nossa. Grifo do autor. 417 TROTSKY, Len. Los sindicatos en la era de la decadencia imperialista in ____ Escritos latino- americanos. Op. cit., p.174. Traduo nossa. 418 No entanto, no custa lembrar que o cardenismo, o varguismo e o peronismo, por exemplo, realizaram programas de reformas sociais nos quais encontravam-se satisfeitas, ainda que minimamente, certas demandas sociais oriundas dos trabalhadores. Contudo, se comparadas aos direitos sociais presentes nas democracias europias do pr-Segunda Guerra (para no falar dos chamados Estados de bem-estar social Welfare State do ps-Guerra), as conquistas da classe trabalhadora obtidas sob esses regimes latino-americanos podem ser denominadas como meras migalhas, o que no deixa de confirmar a tese trotskista.
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exerceriam sua dominao de um modo diferenciado, e mais frgil, do utilizado pelas burguesias imperialistas das naes originrias do capitalismo salvo, naturalmente, quando dos perodos excepcionais de crise da dominao democrtico-parlamentar nos pases avanados. , portanto, tambm nesse sentido que as burguesias atrasadas, em especial as coloniais e semicoloniais, so tomadas por Trotsky enquanto classes sociais relativamente dbeis, ou seja, pelo fato de a dominao poltica exercida por elas sobre seus antagonistas de classe ser efetivada por intermdio de um mecanismo mais instvel e inseguro do que aquele utilizado pelas suas irms mais velhas. Por fim, chamamos a ateno nesse ponto para uma possvel proximidade existente entre Trotsky e Gramsci no que concerne caracterizao do Estado dos pases avanados (do Ocidente, na linguagem gramsciana) como mais consistente e, portanto, mais difcil de ser destrudo do que o das naes de capitalismo retardatrio (no Oriente, para Gramsci). Talvez isso ajude a explicar o fato de Trotsky, desde 1906, ter previsto que o capitalismo poderia comear a ruir por um de seus elos mais fracos (a Rssia, no caso), e que Gramsci, ao longo de suas reflexes, tenha exposto como a tarefa de destruir o Estado no Ocidente seria mais rdua e complicada do que o fora na Rssia, uma nao Oriental (ou atrasada, no lxico trotskista).
Os bonapartismos sui generis da Amrica Latina Feita essa digresso sobre a perspectiva trotskista quanto ao desenvolvimento capitalista em formaes sociais atrasadas, chegamos, finalmente, s suas anlises sobre o tipo de regime bonapartista que mais nos interessa neste trabalho. Derivados, em termos estruturais, da dinmica desigual e combinada pela qual se objetivava a modernizao capitalista na Amrica Latina e, em termos mais conjunturais, da situao de crise ps-1929, os bonapartismos sui generis seriam, no seu entendimento, um produto poltico essencialmente perifrico. Por acontecerem em pases de desenvolvimento retardatrio e, principalmente, submetidos ao imperialismo, os bonapartismos sui generis se originariam justamente da relao entre o capital estrangeiro, a classe trabalhadora e a ascendente burguesia nacional, 419 sendo esta ltima uma classe social subordinada ao primeiro e oposta segunda (uma camada controlada pelo capital estrangeiro e, ao mesmo tempo, oposta aos operrios). 420 Dadas essas condies entre as classes sociais, existiria ento um regime
419 TROTSKY, L. La politica de Roosevelt en America Latina. (3 de setembro de 1938) in ____Escritos Latinoamericanos. Op. cit., p. 93. Traduo nossa. Grifos do autor. 420 TROTSKY, L. Discusion sobre America Latina. Op. cit., p. 132. 177
semibonapartista entre o capital estrangeiro e o capital nacional, o capital estrangeiro e os trabalhadores: 421
Nos pases industrialmente atrasados o capital estrangeiro desempenha um papel decisivo. Da a relativa debilidade da burguesia nacional em relao ao proletariado nacional. Isso cria condies especiais de poder estatal. O governo oscila entre o capital estrangeiro e o nacional, entre a relativamente dbil burguesia nacional e o relativamente poderoso proletariado. Isso confere ao governo um carter bonapartista sui generis, de ndole particular. Este se eleva, por assim dizer, por cima das classes. Na realidade, pode governar ou bem se convertendo em instrumento do capital estrangeiro e submetendo o proletariado s amarras de uma ditadura policial, ou manobrando com o proletariado, chegando inclusive a fazer-lhe concesses, ganhando deste modo a possibilidade de dispor de certa liberdade em relao aos capitalistas estrangeiros. A atual poltica [do governo mexicano] se liga segunda alternativa; suas maiores conquistas so as expropriaes das linhas frreas e das companhias petrolferas. 422
Em outro trecho, em que distingue o governo do general Crdenas (1934-1940) do governo de Vargas ps-1935, Trotsky exps novamente o carter bonapartista dos regimes e governos latino-americanos, assim como as duas formas que esse bonapartismo assumia no continente:
Estamos em um perodo em que a burguesia nacional busca obter um pouco mais de independncia frente aos imperialistas estrangeiros. A burguesia nacional est obrigada a flertar com os operrios, com os camponeses, e temos agora o homem forte do pas orientado esquerda como hoje no Mxico. Se a burguesia nacional est obrigada a abandonar a luta contra os capitalistas estrangeiros e a trabalhar sob sua tutela direta, teremos um regime fascista, como no Brasil, por exemplo. Mas ali a burguesia absolutamente incapaz de constituir sua dominao democrtica porque, por um lado existe o capital imperialista, e por outro, existe o medo do proletariado, porque a histria, ali, saltou uma etapa, e porque o proletariado se converteu em um fator importante antes que tenha sido realizada a dominao democrtica do conjunto da sociedade.. 423
Consideramos que esses dois fragmentos so demonstrativos das elaboraes do revolucionrio russo acerca da natureza dos regimes polticos que proliferavam na regio a partir da dcada de 1930. Em funo de um desenvolvimento retardatrio do capitalismo industrial, os Estados latino-americanos tendiam a assumir formas bonapartistas, dada a relao, prpria aos pases atrasados, entre capital estrangeiro, burguesia nacional e o proletariado. Numa conjuntura de crise do sistema capitalista mundial que teria proporcionado uma maior autonomia s naes subordinadas ao capital imperialista, os governos burgueses da Amrica Latina viam-se obrigados a optar e essa opo no era livre, como se pode perceber no segundo trecho citado, mas dependia de condies histricas especficas de cada pas entre se apoiar nas massas trabalhadoras para barganhar com o imperialismo, e simplesmente se render a este impondo quelas um uma cerrada ditadura policial-militar (que podemos considerar como semifascista). Aps invocar mais uma vez a debilidade
421 Idem. 422 TROTSKY, L. La industria nacionalizada. Op. cit., p.163-164. Traduo nossa. Grifos do autor. 423 TROTSKY, L. Discusion sobre America Latina. Op. cit., p. 124. Traduo nossa. 178
scio-poltica da burguesia nativa, determinada tanto pela forte presena do capital estrangeiro na retardatria industrializao, quanto pelo acelerado processo de formao do proletariado perifrico (que comea muito rapidamente a jogar o papel mais importante na vida nacional), 424 Trotsky explicitou mais uma vez as duas variantes dos bonapartismos sui generis:
Sob tais condies, na medida em que o governo nacional intenta oferecer alguma resistncia ao capital estrangeiro, se v obrigado em maior ou menor grau a apoiar-se no proletariado. Por outro lado, os governos dos pases atrasados que consideram inevitvel ou mais proveitoso marchar de mos dadas com o capital estrangeiro destroem as organizaes operrias e implantam um regime mais ou menos totalitrio. Desse modo, a debilidade da burguesia nacional, a ausncia de uma tradio de governo comunal prprio [comunas, municipalidades], a presso do capitalismo estrangeiro e o crescimento relativamente rpido do proletariado cortam na raiz qualquer possibilidade de um regime democrtico estvel. O governo dos pases atrasados, sejam coloniais ou semicoloniais, assume em geral um carter bonapartista ou semibonapartista. Diferem entre si na medida em que alguns intentam orientar-se para a democracia, buscando apoio nos operrios e camponeses, enquanto que outros implantam uma cerrada ditadura policial-militar. 425
Podemos notar que para Trotsky, portanto, existiriam duas modalidades, duas variantes destes bonapartismos sui generis que se configuravam na Amrica Latina ps- oligrquica. Na modalidade na qual o governo atrelava-se fielmente ao imperialismo e submetia os trabalhadores s amarras de uma ditadura policial, Trotsky enquadrou, guisa de exemplo, alm do regime de Vargas ps-1935, o regime de Fulgncio Batista em Cuba (1934-1944). 426
Tais regimes, bastante temerosos de qualquer participao poltica das massas que uma luta contra o imperialismo poderia desencadear, acabavam por, no mximo, explorar, em proveito prprio, as contradies inter-imperialistas:
Em muitos pases latino-americanos, a ascendente burguesia nacional, buscando uma maior participao no butin e ainda se esforando para aumentar a medida de sua independncia quer dizer, para conquistar a posio dominante na explorao de seu prprio pas [...] trata de se utilizar das rivalidades e conflitos dos imperialistas estrangeiros com este fim. Mas a sua debilidade geral e sua retardada apario a impedem de alcanar um nvel de desenvolvimento mais alto que o de servir a um amo imperialista contra outro. No podem lanar uma luta sria contra toda a dominao imperialista e por uma autntica independncia nacional por temerem desencadear um movimento de massas dos trabalhadores do pas, que por sua vez ameaaria sua prpria existncia social. O exemplo recente de Vargas, que trata de se utilizar da rivalidade entre os Estados Unidos e Alemanha, mas ao mesmo tempo mantm a mais selvagem ditadura sobre as massas populares, vem ao caso. 427
424 TROTSKY, Len. Los sindicatos en la era de la decadencia imperialista in ____ Escritos latino- americanos. Op. cit., p. 174. Traduo nossa. 425 Idem. 426 Quanto ao fato de Trotsky ter enquadrado o regime varguista nesta modalidade, vale lembrar que ele foi assassinado em 1940, no assistindo, portanto, aproximao mais direta com as massas operada por Getlio a partir de 1943. 427 TROTSKY, Len. La politica de Roosevelt en America Latina. Op. cit., p. 93. Traduo nossa. Grifos do autor. 179
Trotsky observou com muita preciso a natureza da poltica diplomtica do Estado Novo brasileiro s vsperas da Segunda Guerra Mundial a partir dos novos objetivos almejados pelas burguesias perifricas na conjuntura. 428 Incapazes de promover uma autntica independncia nacional, por conta de sua natureza retardatria e das danosas conseqncias que um movimento de massas antiimperialista poderia acarretar, restaria a algumas burguesias latino-americanas tirar proveito das disputas interimperialistas com o fito de aumentar suas participaes no resultado da pilhagem, ao mesmo tempo em que impunham s suas massas uma forma ditatorial de regime. 429
J na outra modalidade de bonapartismo sui generis presente na regio, na qual o aparelho governamental, manobrando com o proletariado, chegando inclusive a fazer-lhe concesses, ganharia deste modo a possibilidade de dispor de certa liberdade em relao aos capitalistas estrangeiros, Trotsky inspirou-se principalmente na formatao poltica mexicana poca de Lzaro Crdenas. Os regimes que se encaixariam nessa variante de esquerda dos bonapartismos sui generis latino-americanos foram apresentados por Trotsky como dotados de um carter semibonapartista democrtico 430 (ou semidemocrtico 431 ). Tendo sempre em mente as condies histricas prprias da Amrica Latina, Trotsky apontou a dubiedade presente nesses governos, partidos e movimentos vinculados a essa outra modalidade:
Em todos os casos em que ela [a burguesia nacional] enfrenta diretamente os imperialistas estrangeiros ou os seus agentes reacionrios fascistas, ns [a IV Internacional] damos a ela nosso pleno apoio revolucionrio, conservando a independncia integral de nossa organizao, de nosso programa, de nosso partido, e nossa plena liberdade de crtica. O Koumitang na China, o PRM [Partido da Revoluo Mexicana] no Mxico, o APRA [Aliana Popular Revolucionria Americana] no Peru so organizaes totalmente anlogas. a Frente Popular sob a forma de partido. Apreciada corretamente, a Frente Popular no tem na Amrica Latina um carter to reacionrio como na Frana ou na Espanha. Tem duas facetas. Pode ter um contedo reacionrio na medida em que est dirigida contra os operrios, pode ter um carter agressivo 432 na medida em que est dirigida contra o imperialismo. 433
428 Acerca da poltica externa do governo Vargas ps-1935, ver MOURA, Gerson. Autonomia na dependncia. A poltica externa brasileira de 1935 a 1942. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1980 e GAMBINI, Roberto. O duplo jogo de Vargas. A influncia americana e alem no Estado Novo. So Paulo: Smbolo, 1977. 429 Vale lembrar aqui, como j expusemos, que essa leitura de Trotsky acerca dos limites polticos da burguesia brasileira, representada poca (ainda que indiretamente) por Vargas, encontra-se dentro de uma anlise mais geral das possibilidades histricas das burguesias coloniais e semicoloniais. Ao analisar o embate da burguesia chinesa, representada pelo Kuomitang, contra o imperialismo japons s vsperas da Segunda Guerra Mundial, Trotsky afirmou que Chiang Kai-shek lutava contra os invasores japoneses apenas dentro dos limites que lhes eram impostos pelos seus patres britnicos ou yanquis. (TROTSKY, L. La revolucin china. Op. cit., p. 529.). 430 TROTSKY, L. Discusion sobre America Latina. Op. cit., p. 124. Traduo nossa. 431 Idem. 432 Na edio em espanhol que utilizamos, consta o termo agresivo, o que nos levou traduo agressivo. Entretanto, o tradutor da edio em questo, por sua vez, avisou que empregou tal termo, por ter trabalhado com uma edio em lngua francesa, na qual tem lugar a palavra agressive. Todavia, o prprio tradutor alertou que em outras trs edies anteriores de lngua espanhola foi usado o termo progresivo. De nossa parte, como advertimos, fizemos uso do termo agressivo para ser fiel edio com que trabalhamos; todavia, conhecendo o teor das polmicas existentes entre os trotskistas, acreditamos que dificilmente as diferentes maneiras de se 180
Destacamos, aqui, a utilizao do termo frente popular por Trotsky para caracterizar alguns governos e/ou partidos de colaborao de classe que se postavam frente desses regimes semibonapartistas democrticos de tonalidade avermelhada. Diferentemente de suas equivalentes europias, as frentes populares latino-americanas se expressariam no por uma aliana de partidos reformistas do proletariado (social-democratas e/ou estalinistas) com partidos democrticos da burguesia imperialista, e sim pela existncia de partidos e/ou governos nacionalistas-burgueses que se apoiavam na mobilizao controlada das massas com uma plataforma de construo de um capitalismo mais autnomo nos quadros da estrutural dependncia externa. Essa constituio perifrica, atpica, das frentes populares na Amrica Latina proposta por Trotsky parecer decorrer, a nosso ver, da prpria natureza do desenvolvimento capitalista na regio, o qual, em muitos casos, possibilitou a manobra da classe trabalhadora pelo aparelho estatal bonapartista antes mesmo que ela pudesse construir grandes e significativas organizaes polticas independentes (de tipo social-democrata, por exemplo). Impossibilitados de abrir mais esse flanco de discusso, adiantamos apenas que, em nossas consideraes sobre o processo poltico brasileiro 1930-1964, lanaremos mo da noo trotskista de frente popular sob a forma de partido, em especial quando mencionarmos a dimenso partidria da poltica de massas varguista operada pelo prprio Vargas e seus sucessores por meio do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Observando especialmente o caso mexicano, Trotsky destacou nos bonapartismos sui generis da regio a forte presena do Estado no controle de setores estratgicos da economia, tendo por base a relao dialtica entre o capital estrangeiro, burguesia nacional e os trabalhadores na Amrica Latina. Buscando decifrar o sentido da estatizao dos poos de petrleo pelo governo do Mxico que os tomava do capitalismo estrangeiro sem entreg- los, contudo, aos capitalistas nacionais , Trotsky afirmou que se Crdenas no os distribua ou no os vendia para a burguesia mexicana era, sobretudo, porque tinha medo da luta de classe dos operrios, e ento optava por d-los ao Estado: Criaram assim um capitalismo de Estado que nada tem a ver com o socialismo. a forma mais pura de capitalismo de Estado. 434 Tal aspecto nacionalista desses novos regimes, entretanto, mostrava-se fortemente
traduzir uma adjetivao empregada por Trotsky em relao a determinados governos latino-americanos se deveram nica e exclusivamente a questes de natureza lingstica. 433 TROTSKY, L. Discusion sobre America Latina. Op. cit., p. 124-125. Traduo nossa. Ao comparar o PRM e o APRA com o Koumitang para defender a independncia dos trabalhadores diante desse tipo de organizao nacionalista-burguesa, o que Trotsky fez foi retomar a crtica por ele prprio feita subordinao do Partido Comunista Chins ao partido de Chang-Kai-Shek no perodo da revoluo chinesa de 1925-1927, subordinao esta, como j vimos, orientada pela III Internacional j sob controle do estalinismo. 434 TROTSKY, L. Discusion sobre America Latina. Op. cit., p. 132. Traduo nossa. Grifos nossos. Talvez caiba aqui dizer ainda que, apesar de todas as particularidades categoriais que encerra, o termo capitalismo de Estado, mencionado por Trotsky para dar conta do papel do Estado na economia mexicana, nos faz lembrar 181
limitado, dado que as burguesias latino-americanas, como j vimos, temiam desencadear em seus pases substantivos movimento de massas, os quais poderiam ameaar sua prpria existncia social. Debruando-se atentamente sobre os bonapartismos latino-americanos, Trotsky verificou tambm uma tendncia geral, internacional, ao controle dos sindicatos por parte dos Estados burgueses. O capitalismo em sua fase monopolista no poderia mais permitir a existncia de sindicatos independentes como nos bons velhos tempos em que a burguesia os tolerava porque podia dar-lhes uma liberdade muito maior. 435 Na poca agonizante do capitalismo, no seria possvel, segundo Trotsky, restabelecer nos sindicatos a antiga democracia, assim como consistia em tarefa irrealizvel restabelecer a democracia no Estado. 436 Portanto, ao transformar os sindicatos em organismos do Estado, o fascismo no inventou nada de novo: simplesmente levou s ltimas conseqncias as tendncias inerentes ao imperialismo. 437
Segundo Trotsky, o continente latino-americano, integrado no sistema capitalista mundial, no escapava a essa tendncia internacional de subordinao dos sindicatos aos Estados. A essncia combinada do desenvolvimento na periferia, segundo o terico, fazia com que a ltima palavra em tecnologia, economia e poltica fosse assimilada pelas naes atrasadas: O cumprimento dessa lei [do desenvolvimento desigual e combinado] pode ser observado nas esferas mais diversas do desenvolvimento dos pases coloniais, inclusive no movimento sindical. O capitalismo imperialista opera aqui da maneira mais cnica e descarada. Transporta a um terreno virgem os mtodos mais elaborados de sua tirnica dominao. 438
Contudo, devido aos particularismos histrico-sociais das naes submetidas ao imperialismo, a tutela do Estado sobre o movimento sindical na Amrica Latina se explicaria tambm por outras questes. A tendncia estatizacin dos sindicatos no Mxico, por exemplo, seria explicada por Trotsky da seguinte forma:
expresses como estatismo, nacional-estatismo e intervencionismo estatal, utilizadas por uma vasta gama de autores que se debruou sobre a dinmica industrialista brasileira do perodo 1930-1964. Lembramos tambm que o prprio Trotsky, em A revoluo trada, apontou as diferenas existentes entre os conceitos de capitalismo de Estado e de estatismo: Durante a guerra, e especialmente durante as experincias da economia fascista, o termo capitalismo de Estado frequentemente entendido com um sistema de interveno e regulao econmica do Estado. Os franceses usam, para esse caso, um termo bem mais apropriado: o estatismo. O capitalismo de Estado e o estatismo tm certamente pontos comuns, mas, como sistemas, sero mais opostos do que idnticos. O capitalismo de Estado significa a substituio da propriedade privada pela propriedade estatal e tem, por isso, um carter parcial. O estatismo, quer seja na Itlia de Mussolini, na Alemanha de Hitler, nos Estados Unidos de Roosevelt ou na Frana de Len Blum, significa a interveno do Estado nas bases da propriedade privada, para salv-la. (TROTSKY, L. A revoluo trada. Op. cit., p. 221- 222.). 435 TROTSKY, L. Discusion sobre America Latina. Op. cit., p. 133. Traduo nossa. 436 Idem. 437 TROTSKY, L. Los sindicatos en la era de la decadencia imperialista. Op. cit., p. 171. Traduo nossa. 438 Idem, p. 175-176. 182
Pode-se observar que no Mxico, assim como nos outros pases latino-americanos, saltou-se a maior parte das etapas do desenvolvimento. No Mxico, isso comeou com a integrao dos sindicatos ao Estado. H uma dupla dominao. A saber, o capital estrangeiro e a burguesia nacional ou, como disse Diego Rivera, uma sub-burguesia uma camada social controlada pelo capital estrangeiro e ao mesmo tempo oposta aos operrios. Um regime semibonapartista entre o capital estrangeiro e o capital nacional, o capital estrangeiro e os trabalhadores. Todo governo pode criar, em situao similar, uma posio que oscile, inclinando-se algumas vezes para a burguesia nacional e o operariado, e outras vezes para o capital estrangeiro. Para sujeitar os operrios, integram os sindicatos ao Estado. 439
Para Trotsky, esse movimento de incorporao dos sindicatos pelo Estado na Amrica Latina seria determinado por duas grandes tarefas que esses regimes semibonapartistas deveriam encarar: atrair a classe operria, para assim ganhar um ponto de apoio para a resistncia contra as pretenses excessivas por parte do imperialismo, e ao mesmo tempo disciplinar os mesmos operrios colocando-os sob controle de uma burocracia. 440
interessante mencionar, ainda, o fato de que Trotsky destacou a funcionalidade desse controle do Estado sobre as organizaes sindicais para o domnio burgus na Amrica Latina tanto em momentos nos quais a burguesia nacional se enfrenta com o imperialismo, como em outros em que ela obrigada a abandonar a luta contra os capitalistas estrangeiros e a trabalhar sob sua tutela direta. 441 Criticando os legisladores de Crdenas, defensores de que a estatizao dos sindicatos se fazia para o bem dos interesses dos operrios, Trotsky, em 1940, alertou: Porm, quando o imperialismo estrangeiro dominar o Estado nacional e puder, com a ajuda das foras reacionrias internas, derrotar a instvel democracia e substitu-la por uma ditadura fascista sem disfarces, a legislao sindical pode facilmente se converter em uma ferramenta da ditadura imperialista.. 442 Definies sociolgicas parte, curiosamente, 24 anos depois do alerta acima, o golpe de Estado antipopulista no Brasil justificaria a preocupao do revolucionrio russo, quando a ditadura militar implantada no pas, de ntida colorao imperialista, usou e abusou dos dispositivos da legislao sindical populista para combater os trabalhadores organizados e suas lideranas. 443
Segundo Trotsky, diretamente vinculadas ao sucesso da empreitada do Estado mexicano na subordinao do movimento sindical, estariam as equivocadas polticas levadas a cabo pelas direes operrias do pas, em especial pelo Partido Comunista Mexicano (PCM). O movimento dos trabalhadores mexicanos sofreria, tal como no restante do cenrio
439 TROTSKY, L. Discusion sobre America Latina. Op. cit., p. 132. Traduo nossa. 440 TROTSKY, L. Los sindicatos en la era. Op. cit., p. 174. Traduo nossa. 441 TROTSKY, L. Discusion sobre America Latina. Op. cit., p. 124. Traduo nossa. 442 TROTSKY, L. Los sindicatos en la era. Op. cit., p. 171. Traduo nossa. 443 Alis, a legislao sindical corporativista no Brasil demonstrou sua validade para todas as formas de dominao burguesa existentes no pas. Criada na ditadura estadonovista de Vargas, ela foi preservada intacta pela Constituio liberal de 1946. Em 1964, como foi dito acima, a ditadura militar dela fartamente se utilizou. Por fim, a Constituio cidad de 1988 manteve vrios elementos da estrutura sindical de Vargas, como o poder normativo da Justia, o imposto sindical, a unicidade sindical etc. 183
mundial, de uma crise de direo, na qual as suas demandas e reivindicaes eram sistematicamente tradas por lideranas que se distanciavam em muito dos princpios revolucionrios. 444 Guiado pelas orientaes da III Internacional estalinista, o PCM, aps ter, de forma inslita, classificado o governo de Crdenas como fascista, passou imediatamente a um apoio incondicional ao general populista e sua poltica de controle dos sindicatos, que, segundo Trotsky, teria por objetivo disciplinar a classe operria, fazendo-a trabalhar mais ao servio dos interesses comuns do Estado, que superficialmente parecem coincidir com os da prpria classe operria. 445 Ora assumindo uma feio esquerdista, ora abertamente oportunista, a poltica dos estalinistas mexicanos fundamentava-se numa busca de aliana com a burguesia nacional do pas, o que levava, na prtica, a uma capitulao frente ao Estado burgus que impunha amarras s atividades sindicais. Orientando seus seguidores nas terras mexicanas, afirmou Trotsky:
[...] no Mxico mais que em qualquer outro lugar, a luta contra a burguesia e seu governo consiste antes de tudo em liberar os sindicatos de sua dependncia frente ao governo. Formalmente, nos sindicatos mexicanos est todo o proletariado. A essncia do marxismo consiste em proporcionar uma direo luta de classe do proletariado. Mas isso exige sua independncia da burguesia. Por conseqncia, a luta de classes no Mxico tem que estar orientada a ganhar a independncia dos sindicatos em relao ao Estado burgus. Isso exige dos marxistas uma concentrao de todas as suas foras contra os estalinistas e toledanistas. 446
Encerrando essa apresentao dos bonapartismos sui generis de Trotsky, reafirmamos, mais uma vez, nossa concepo de que muitos dos elementos constitutivos destes regimes (nas proposies do revolucionrio russo) reapareceriam, quase trinta anos depois, nas anlises sociolgicas sobre o populismo latino-americano, e brasileiro em particular, formuladas por autores como Weffort, Ianni, Marini etc. Mais particularmente e aqui se encontra uma de nossas principais teses , consideramos que a categoria de regime semibonapartista democrtico pode ser vista como uma espcie de antecessora do
444 Quanto idia de crise de direo, ver TROTSKY, Len. Programa de Transio... Op. cit. 445 TROTSKY, Len. . Los sindicatos en la era. Op. cit., p. 178. 446 TROTSKY, Len. Problemas de la seccin mexicana in ____. Escritos Latinoamericanos. Op. cit., p. 141. Grifos do autor. Lombardo Toledano, mais importante dirigente sindical mexicano do perodo, aps conflitos com o PCM, passou, imediatamente depois da chegada de Trotsky ao Mxico, a trabalhar lado a lado com os estalinistas, tanto no que dizia respeito defesa da expulso do revolucionrio do pas, quanto no que concernia ao apoio poltica de subordinao dos sindicatos pelo Estado promovida pelo governo Crdenas. A postura do PCM em relao a Crdenas nos faz lembrar a trajetria poltica do PCB frente a Getlio Vargas alguns anos depois, quando os comunistas, nos momentos finais do Estado Novo [1937-1945], enxergaram no antigo ditador fascista o principal sujeito de uma redemocratizao apoiada nas massas populares. Alis, o no entendimento da natureza contraditria dos regimes bonapartistas sui generis da Amrica Latina fez com que os partidos comunistas do continente adotassem posturas incoerentes e at mesmo esdrxulas. Enquanto o Partido Comunista de Cuba, por exemplo, foi capaz de apoiar o primeiro governo de Batista [1934-1944], que continha fortes traos fascistas, o Partido Comunista da Argentina cerrou fileiras com o imperialismo norte- americano [representado na figura do embaixador-golpista Braden] na luta contra Pern e seu governo de colaborao de classes. O curioso que, dcadas mais tarde, os estalinistas argentinos, mesmo tendo seus quadros torturados e assassinados pela ditadura militar (1976-1983), chegaram, em funo das relaes diplomticas do governo com a Unio Sovitica, a apoiar o sanguinrio general Jorge Videla. 184
conceito de populismo. 447 No mais, complementando o que dissemos pouco acima, antecipamos tambm que muitas das teses e categorias apresentadas por Trotsky em seus escritos mexicanos sero por ns mobilizadas numa proposta alternativa de compreenso e periodizao da histria poltica brasileira do perodo 1930-1964, com destaque para o intervalo 1930-1945.
O bonapartismo sovitico Para finalizar estas pginas referentes ao pensamento de Trotsky sobre o bonapartismo, relataremos de modo assaz breve as elaboraes do revolucionrio russo acerca do que ele denominou de bonapartismo sovitico. Quanto a tal rapidez, a justificamos alegando que, por se tratar de uma variante bonapartista que teve lugar em um Estado de natureza ps- capitalista (Estado operrio, segundo Trotsky), o bonapartismo sovitico assume no presente trabalho um carter absolutamente secundrio e acessrio, j que seus aspectos constitutivos pouca utilidade tero para a discusso que faremos frente acerca do processo de autonomizao relativa do Estado capitalista brasileiro, verificado na etapa 1930-1964. Dito isso, destacamos primeiramente que a utilizao, por Trotsky, da noo de bonapartismo sovitico para caracterizar uma determinada fase da Revoluo Russa faz parte de uma lgica interpretativa do processo revolucionrio russo que tem nas analogias com a Revoluo Francesa um de seus expedientes correntes. Aps um bom perodo de discusso e polmicas com seus companheiros da Oposio de Esquerda Internacional, Trotsky, por volta de meados dos anos 1930, chegou concluso de que o regime ento vigente na URSS, apesar de sua profunda diferena infra-estrutural com os regimes que tratamos nas pginas passadas, mereceria tambm receber o rtulo de bonapartista. 448 A consolidao bonapartista da burocracia sovitica no poder seria, na perspectiva de Trotsky, um corolrio do thermidor iniciado com a ascenso da frao estalinista ao controle do Estado quando da morte de Lnin, em 1924. Essa reao thermidoriana, por sua vez, teria se dado contra a ala revolucionria do partido bolchevique, a qual estivera frente da conduo poltica do pas durante a fase jacobina do processo (1917-1924). Produto, em ltima instncia, de uma aguda luta de classes entre o proletariado e a burguesia, o bonapartismo de Stalin, tal como o Consulado ou o Imprio que encerraram o
447 Devemos ressaltar, entretanto, que, apesar de acreditarmos que alguns importantes elementos da realidade histrica e poltica da Amrica Latina destacados por Trotsky tenham vindo a se constituir em peas-chave para as futuras abordagens de Ianni e Weffort acerca do populismo brasileiro, o regime vigente no Brasil no perodo em que Trotsky se dedicou a discutir a situao do continente em questo, isto , o regime altamente coercitivo inaugurado por Vargas a partir do frustrado levante comunista de 1935, no foi classificado pelo revolucionrio russo como de tipo semibonapartista democrtico (ou semidemocrtico), e sim como um regime fascista (uma cerrada ditadura policial-militar), como vimos h pouco. 448 Uma reconstituio analtica dos debates no interior da OEI sobre o carter do regime estalinista da URSS pode ser encontrada em DEUTSCHER, Isaac. Trotski. O profeta banido. Op. cit., p. 310-340. 185
processo revolucionrio francs, buscaria por fim ao momento dos radicalizados conflitos entre as vrias fraes polticas: Com a ajuda dos aparatos burocrtico e policial, o poder do salvador do povo e rbitro da burocracia como casta dominante se elevou por cima da democracia sovitica reduzindo-a a uma sombra de si mesma. A funo objetiva do salvador proteger as novas formas de propriedade usurpando as funes polticas da classe dominante. 449
Cabe destacar, portanto, que em busca de uma caracterizao scio-poltica do bonapartismo estalinista, Trotsky, distintamente de sua abordagem nos demais casos antes observados, recorre prioritariamente a uma comparao histrica com o perodo napolenico clssico, e no com o Segundo Imprio, encabeado por Lus Bonaparte.
Com efeito, o atual bonapartismo do Kremlin o comparamos com o da ascenso burguesa, no com o da decadncia; com o Consulado e o Primeiro Imprio, no com Napoleo III, nem, muito menos, com Schleicher ou Doumergue. A propsito de tal analogia, no se tem a necessidade de atribuir a Stalin as caractersticas de Napoleo I; sempre que as condies sociais o exigem, o bonapartismo pode consolidar-se ao redor de figuras de calibres muito diversos. Do ponto de vista que nos interessa, a distinta base social de ambos os bonapartismos, o de origem jacobina e o de origem sovitica, muito mais importante. No primeiro caso, se tratava da consolidao da revoluo burguesa por meio da liquidao de seus princpios e instituies polticas. No segundo caso, se trata da consolidao de uma revoluo operria e camponesa por meio do esmagamento do seu programa internacional, do seu partido dirigente, dos seus soviets. Levando at as ltimas consequncias a poltica do Thermidor, Napoleo combateu no s o mundo feudal como tambm a plebe e os crculos democrticos da pequena e mdia burguesia. Dessa forma concentrou os frutos do regime nascido da revoluo nas mos da nova aristocracia burguesa. Stalin no preserva as conquistas da revoluo de Outubro s da contra-revoluo feudal-burguesa, mas tambm contra os anseios dos operrios, sua impacincia, seu descontentamento; esmaga a ala esquerda, que expressa as tendncias histricas progressivas das massas trabalhadoras sem privilgios; cria uma nova aristocracia por meio da extrema diferenciao dos salrios, dos privilgios, das hierarquias etc. Apoiando-se nos setores mais altos da nova hierarquia social contra os mais baixos e s vezes fazendo o inverso , Stalin conseguiu concentrar totalmente o poder em suas mos. De que outra forma podemos chamar esse regime, seno de bonapartismo sovitico? 450
A divinizao do lder (Stalin) e a tcnica plebiscitria utilizada pela cpula burocrtica face s massas (que so convocadas a se posicionar a favor ou contra o lder?) 451 seriam alguns outros elementos que, para Trotsky, confirmariam a natureza bonapartista do estalinismo desde meados da dcada de 1930. Ampliando em demasia o leque de aplicao do conceito (bonapartismo), Trotsky esboa o argumento de que a estrutura bsica do regime bonapartista passvel de se fazer presente em formaes sociais as mais variadas, o que, em nossa concepo, acaba por conferir ao fenmeno uma dimenso histrico-temporal de propores ocenicas:
449 TROTSKY. L. Otra vez sobre la cuestin del bonapartismo. El bonapartismo burgus y el bonapartismo sovitico. Op. cit. Traduo nossa.
450 TROTSKY, L. El Estado obrero, el Thermidor y el Bonapartismo. Extrado de http://www.marxists.org/espanol/trotsky/ceip/escritos/libro4/T06V127.htm. (acessado em 26/07/2011). Traduo nossa. 451 TROTSKY. L. A revoluo trada. Op. cit., p. 244-245 186
O cesarismo ou a sua forma burguesa, o bonapartismo entra em cena na histria quando a spera luta entre dois adversrios parece elevar o poder acima da nao e assegura aos governantes uma independncia aparente relativamente s classes, no lhes deixando, na realidade, mais do que a liberdade de que precisam para defender os privilegiados. O regime estalinista, elevando-se acima de uma sociedade politicamente atomizada, apoiando-se na polcia e no corpo de oficiais, sem tolerar controle algum, obviamente uma variao do bonapartismo um bonapartismo de um novo tipo nunca visto antes na histria. O cesarismo nasceu em uma sociedade baseada na escravatura e abalada por lutas intestinas. O bonapartismo foi um dos instrumentos do sistema capitalista nos seus perodos crticos. O estalinismo uma variao, mas sobre as bases de um Estado operrio, dilacerado pelo antagonismo entre a burocracia sovitica organizada e armada e as massas laboriosas desarmadas. 452
Fiel ao seu internacionalismo metodolgico, Trotsky considerava que, em ltima anlise, o bonapartismo estalinista devia seu surgimento ao atraso da revoluo mundial, ou, em outras palavras, a demora do proletariado na soluo dos problemas colocados a ele pela histria. Esperanoso, Trotsky apostava que um movimento revolucionrio vitorioso na Europa balanaria no somente os regimes burgueses ultra-reacionrios, como o fascismo, mas, tambm, o bonapartismo sovitico. Como se sabe, contudo, o regime formatado pela burocracia estalinista desde a crise sucessria de 1924 ainda teria muitos anos de durao (1991), e seu fastgio poltico talvez no tenha se verificado nem mesmo na dcada de 1930 observada por Trotsky, e sim nos anos compreendidos entre a herica vitria do Exrcito Vermelho sobre o nazi-fascismo e a morte do Bonaparte Stlin em 1953.
Antonio Gramsci e os cesarismos
Observaes sobre alguns aspectos da estrutura dos partidos polticos nos perodos de crise orgnica [...] Em um certo ponto de sua vida histrica, os grupos sociais se separam de seus partidos tradicionais, isto , os partidos tradicionais naquela dada forma organizativa, com aqueles determinados homens que os constituem, representam e dirigem, no so mais reconhecidos como sua expresso por sua classe ou frao de classe. Quando se verificam estas crises, a situao imediata torna-se delicada e perigosa, pois abre-se o campo s solues de fora, atividade de potncias ocultas representadas
452 Idem. p. 244. Domenico Losurdo criticou duramente a caracterizao feita por Trotsky do estalinismo como uma forma bonapartista de regime poltico. Segundo o filsofo italiano, a fonte do poder de Stalin no residiria em seu carisma pessoal ou em seu controle dos meios de comunicao de massa, e sim na atividade e na propaganda de milhares ou milhes de ativistas e militantes de partido, convencidos, certa ou erradamente, de lutar pela realizao de um determinado modelo de sociedade, em conformidade com o patrimnio de idias de uma precisa tradio revolucionria. Para Losurdo, tais aspectos, como a existncia mediadora de um partido e de um programa polticos na relao entre o lder nacional e as massas populares, iriam de encontro definio do modelo de bonapartismo por ele traado. Poucas linhas adiante, Losurdo, mal disfarando suas preferncias polticas estalinistas, afirma que a vitria de Stalin representou a vitria de um aparelho de partido e de Estado que se autonomiza progressivamente da base por ele representada e que derrota uma possvel alternativa de tipo bonapartista, que poderia facilmente encarnar-se no lder vitorioso do Exrcito Vermelho, dotado de um carisma desconhecido nos outros lderes bolcheviques e que, mais do que qualquer outro, parece encarnar a misso de exportao para o mundo de um modelo superior de sociedade e de civilizao. (LOSURDO, Domenico. Op. cit., p. 199.). Na incrvel ginstica factual/contra-factual de Losurdo, Stalin aparece como um representante (ainda que autonomizado) de um partido que encarna uma tradio revolucionria, enquanto o internacionalismo de Trotsky no passa de mais uma expresso de seus anseios bonapartistas-militaristas. Um pouco pesado, no acham? 187
pelos homens providenciais ou carismticos. Como se formam estas situaes de contraste entre representantes e representados, que, a partir do terreno dos partidos (organizaes de partido em sentido estrito, campo eleitoral-parlamentar, organizao jornalstica), reflete-se em todo o organismo estatal, reforando a posio relativa do poder da burocracia (civil e militar), da alta finana, da Igreja e, em geral, de todos os organismos relativamente independentes das flutuaes da opinio pblica? O processo diferente em cada pas, embora o contedo seja o mesmo. E o contedo a crise de hegemonia da classe dirigente [...] A crise cria situaes imediatas perigosas, j que os diversos estratos da populao no possuem a mesma capacidade de se orientar rapidamente e de se reorganizar com o mesmo ritmo. A classe dirigente tradicional, que tem um numeroso pessoal treinado, muda homens e programas e retoma o controle que lhe fugia com uma rapidez maior do que a que se verifica entre as classes subalternas; faz talvez sacrifcios, expe-se a um futuro obscuro com promessas demaggicas, mas mantm o poder, refora-o momentaneamente e dele se serve para esmagar o adversrio e desbaratar seus dirigentes, que no podem ser muito numerosos nem adequadamente treinados. A unificao das tropas de muitos partidos sob a bandeira de um nico partido, que representa melhor e sintetiza as necessidades de toda a classe, um fenmeno orgnico e normal, ainda que seu ritmo seja muito rpido e quase fulminante em relao aos tempos tranquilos: representa a fuso de todo um grupo social sob uma s direo, considerada a nica capaz de resolver um problema vital dominante e de afastar um perigo mortal. Quando a crise no encontra esta soluo orgnica, mas sim a do chefe carismtico, isto significa que existe um equilbrio esttico (cujos fatores podem ser muito variados, mas entre os quais prevalece a imaturidade das foras progressistas), que nenhum grupo, nem o conservador nem o progressista, dispe da fora necessria para vencer e que at o grupo conservador tem necessidade de um senhor (cf. O 18 Brumrio de Lus Napoleo). 453
Em algumas poucas pginas contidas na introduo desta primeira parte, expusemos sucintamente as relaes existentes entre crise de hegemonia e bonapartismo, lanando mo para isso de alguns fragmentos dos escritos carcerrios de Antnio Gramsci. Retomar essa discusso pode ser um bom caminho para iniciarmos agora uma tambm resumida apresentao das idias de Gramsci sobre o cesarismo, nome pelo qual, na maioria das vezes, o marxista sardo, desconsiderando um alerta dado pelo prprio Marx, utilizou para se referir ao fenmeno bonapartista. 454
453 GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. Volume III. Op. cit., p. 60-61. Os grifos da parte final so nossos (afora o nome da obra de Marx entre parnteses). No trecho em questo fica ntido o carter ensastico dos escritos carcerrios de Gramsci, forma essa adotada devido, sobretudo, s prprias condies em que se processou o trabalho de escrita do autor, as quais o privaram do acesso s obras que lhes serviam de referncia. A meno ao clssico livro de Marx sobre o bonapartismo pode ser vista como um pequeno exemplo dessa situao, j que Gramsci o nomeou como O 18 brumrio de Lus Napoleo, e no como O 18 brumrio de Lus Bonaparte, nome com o qual Marx batizara sua obra. 454 Em um determinado momento de seus escritos carcerrios, Gramsci deixa claro que toma cesarismo e bonapartismo como sinnimos e, a partir de ento, em alguns trechos seguintes, passa a trabalhar com o termo bonapartismo (ver GRAMSCI, A. Op. cit., volume III, p. 65-66.). Mais frente, contudo, Gramsci utiliza apenas a categoria de cesarismo, como poderemos ver nas pginas seguintes. Vale lembrar, entretanto, que o prprio Marx j havia alertado para os problemas do uso do termo cesarismo para dar conta de fenmenos polticos situados na modernidade capitalista: Finalmente espero que o meu trabalho [O 18 brumrio de Lus Bonaparte] possa contribui para afastar o termo ora em voga, principalmente na Alemanha, do chamado cesarismo. Nesta analogia histrica superficial esquece-se o mais importante, ou seja, que na antiga Roma a luta de classes desenvolveu-se apenas no seio de uma minoria privilegiada entre os cidados livres e os pobres cidados livres, enquanto a grande massa produtora, os escravos, formava o pedestal puramente passivo para esses combatentes. Esquece-se a significativa frase de Sismondi: O proletariado romano vivia s expensas da sociedade, enquanto a sociedade moderna vive s expensas do proletariado. Com uma diferena to cabal entre as condies materiais e econmicas das lutas de classe antigas e modernas, as formas polticas produzidas por elas ho de ter tanta semelhana entre si como o Arcebispo de Canterbury e o Pontcife Samuel. (MARX, K. Prefcio do autor segunda edio in ____ . O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 9. Grifo do autor.). importante ressalvar, entretanto, que Gramsci no utilizou o conceito de cesarismo na acepo criticada por Marx, e sim, tal como foi o caso de alguns de seus conhecidos conceitos (hegemonia, revoluo passiva etc.), tomou-o emprestado da literatura existente e o reelaborou, atribuindo-lhe outro sentido, um sentido conceitualmente novo. 188
Crise de hegemonia, crise orgnica e cesarismo Naquelas pginas introdutrias, vimos como o regime/governo bonapartista emerge como uma sada crise de hegemonia a qual solapa as bases de sustentao do regime democrtico-burgus. 455 Baseando-nos nos escritos de Gramsci, assim como nas j vistas anlises de Marx sobre a trama poltica francesa de 1848-1851, podemos inferir que a ruptura entre representantes e representados no campo burgus se manifesta como um momento e normalmente como um dos ltimos momentos da crise de hegemonia que abala a nao e ameaa a ordem do capital. Assim, a ruptura da burguesia e de suas fraes com seus partidos tradicionais, ou seja, aquilo que Marx chamou da ruptura da massa extra- parlamentar da burguesia com seus representantes polticos no Poder Legislativo (com os parlamentares do partido da ordem, no caso francs), aparece como uma das fases finais de um processo de crise de hegemonia que pode ter como desfecho um regime em que o ncleo duro do Estado (o Poder Executivo, com sua burocracia e aparelho repressivo), gozando de uma autonomia relativa face ao conjunto das classes sociais e de suas respectivas representaes polticas habituais, apresente-se como um rbitro acima da sociedade. Jogando com o vocabulrio gramsciano, talvez possamos dizer que a crise orgnica 456 exprimiria, assim, um momento, normalmente derradeiro, da crise de hegemonia, a qual teria uma durao mais prolongada. 457 Dito de outro modo: quando, em meio a uma ameaa (real ou potencial) dos setores explorados, nenhuma frao da classe burguesa consegue se impor sobre as demais e exercer o papel de direo poltica da nao, a agudeza do conflito poltico entre as fraes burguesas e entre estas e os setores subalternos leva a que, atemorizada, a maioria da burguesia rompa com as organizaes polticas que at ento a representavam, j que todas aquelas fracassaram na tarefa de
Avisamos ao leitor que, a partir de agora, passaremos a utilizar o termo cesarismo sem as aspas que o vinham acompanhando at ento. 455 Lembrando, sempre, que a sada bonapartista/cesarista no soluciona (encerra) por si mesma a crise de hegemonia, expressando apenas uma formatao poltica que permite salvar emergencialmente a sociedade burguesa ameaada pelos speros conflitos que se verificam na (e que constituem a prpria) crise de hegemonia. 456 Quanto ao conceito de crise orgnica, ver BIANCHI, Alvaro. Crise, poltica e economia no pensamento gramsciniano in Novos rumos, n. 36. So Paulo, 2002. 457 Entretanto, em outros momentos de seus Cadernos como no pargrafo 17 do prprio Caderno 13 que vimos citando , Gramsci nos possibilita uma interpretao diferente (qui inversa), ao considerar que os fenmenos de natureza orgnica so relativamente permanentes, tendendo a ter uma durao mais prolongada. (GRAMSCI, A. Op. cit., volume III, p. 36-38.). Vale lembrar ainda que, como bem nos alertou Marcelo Badar Mattos, a noo de orgnico em Gramsci, para alm da questo da temporalidade, refere-se tambm aos reais interesses das classes fundamentais; nesse sentido, a crise orgnica seria aquela que colocaria em risco a prpria existncia da dominao poltico-social. Contudo, a nosso ver, essas e outras questes interpretativas sobre a obra do comunista italiano continuam em aberto. 189
resolver, pelos seus prprios meios poltico-parlamentares, o impasse poltico que colocou em xeque a ordem capitalista. Para alm dessas novas propostas de articulao e compreenso dos conceitos de Gramsci, assim como das possveis conexes conceituais/terminolgicas mais especficas entre estes, 458 o que vale a pena destacar, mais uma vez, a ntima associao existente entre crise de hegemonia/ crise orgnica e o fenmeno do bonapartismo. Brotado de um equilbrio dos grupos urbanos em luta, que impede o jogo da democracia normal (o parlamentarismo), 459 o regime bonapartista se apoiaria, como j dissemos, centralmente nas Foras Armadas e na burocracia. Esta ltima, segundo Gramsci, sendo a fora consuetudinria e conservadora mais perigosa, chegaria, em determinadas situaes, a se constituir como um corpo solidrio, voltado para si mesmo e independente da massa, o que faria com que o partido terminasse por se tornar anacrnico e, nos momentos de crise aguda, fosse esvaziado de seu contedo social e ficasse como que solto no ar. 460
Listando personalidades hericas como Csar, Napoleo I, Napoleo III e Cromwell, o marxista sardo definiu o cesarismo como uma situao na qual as foras em luta se equilibram de modo catastrfico, isto , equilibram-se de tal forma que a continuao da luta s pode terminar com a destruio recproca. 461 Numa linguagem que faz lembrar a da Fsica mecnica, Gramsci afirmou:
Quando a fora progressista A luta contra a fora regressiva B, no s pode ocorrer que A vena B ou B vena A, mas tambm pode suceder que nem A nem B venam, porm se debilitem mutuamente, e uma terceira fora, C, intervenha de fora, submetendo o que resta de A e de B. Na Itlia, depois da morte do Magnfico [Loureno de Mdici], sucedeu precisamente isso, como sucedera no mundo antigo com as invases brbaras. 462
Poucas pginas frente, encontramos em seus escritos carcerrios uma apreciao similar, devidamente acompanhada de ressalvas de ordem metodolgica:
O esquema genrico das foras A e B em luta com perspectiva catastrfica, isto , com a perspectiva de que nem A nem B venam na luta para constituir (ou reconstituir) um equilbrio orgnico, da qual nasce (pode nascer) o cesarismo, precisamente uma hiptese genrica, um esquema sociolgico (cmodo para a arte poltica). A hiptese pode se tornar cada vez mais concreta, ser levada
458 Acerca de nossas despretensiosas consideraes sobre as relaes entre crise de hegemonia e crise orgnica, agradecemos ao amigo e sempre colaborador Demian Melo por suas orientaes sobre o tema sem que isso, evidentemente, o responsabilize pelos eventuais equvocos aqui contidos. 459 GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. Op. cit., volume III, p. 66. 460 Idem, p. 61-62. 461 Idem, p. 76. H aqui como poder ser visto logo a seguir no final do trecho que transcreveremos uma clara referncia clssica passagem de Marx e Engels no Manifesto Comunista, na qual consta a idia de que a luta entre opressores e oprimidos terminou sempre com a transformao revolucionria da sociedade inteira ou com o declnio conjunto das classes em conflito (MARX, K. e ENGELS, F. O manifesto do partido comunista (150 anos depois) (organizador Daniel Aaro Reis Filho). Rio de Janeiro: Contraponto/ So Paulo: Perseu Abramo, 1998, p. 8. 462 GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. Op. cit., volume III, p. 76. 190
a um grau sempre maior de aproximao com a realidade concreta, o que pode ser obtido especificando- se alguns elementos fundamentais. Assim, ao falar de A e B, foi dito apenas que elas so uma fora genericamente progressiva e uma fora genericamente regressiva: pode-se especificar de que tipo de foras progressistas e regressivas se trata e, desse modo, obter maiores aproximaes. 463
Cesarismo progressista e cesarismo regressista A compreenso de que o embate entre as foras fundamentais da sociedade (A e B) expressaria, a cada tempo histrico especfico, uma luta entre sujeitos sociais de contedos polticos contrrios (progressivo e regressivo) a base para a idia gramsciana de que os vrios cesarismos j verificados ao longo da modernidade capitalista encerrariam, eles tambm, sentidos histricos distintos e, muitas vezes, opostos:
Mas o cesarismo, embora expresse sempre a soluo arbitral, confiada a uma grande personalidade, de uma situao histrico-poltica caracterizada por um equilbrio de foras de perspectiva catastrfica, no tem sempre o mesmo significado histrico. Pode haver um cesarismo progressista e um cesarismo regressivo; e, em ltima anlise, o significado de cada forma de cesarismo s pode ser reconstrudo pela histria concreta e no de um esquema sociolgico. O cesarismo progressista quando a sua interveno ajuda a fora progressista a triunfar, ainda que com certos compromissos e acomodaes que limitam a vitria; regressivo quando sua interveno ajuda a fora regressiva a triunfar, tambm nesse caso com certos compromissos e limitaes, os quais, no entanto, tm um valor, um alcance e um significado diversos daqueles do caso anterior. Csar e Napoleo I so exemplos de cesarismo progressista. Napoleo III e Bismarck de cesarismo regressivo. Trata-se de ver se, na dialtica revoluo-restaurao, o elemento revoluo ou o elemento restaurao que predomina, j que certo que, no movimento histrico, jamais se volta atrs, e no existem restauraes in toto. 464
Alguns pargrafos adiante, Gramsci retomou essa idia dos dois cesarismos (progressista e regressista) buscando novamente relacionar a emergncia de cada uma dessas variantes a diferentes etapas histricas do desenvolvimento capitalista. A comparao entre os cesarismos de Napoleo I e Napoleo III foi realizada por Gramsci a partir de um vis que atenta, sobretudo, para a localizao temporal desses regimes em duas etapas histricas distintas da burguesia como sujeito poltico-social, isto , os perodos revolucionrio e contra- revolucionrio da classe burguesa, respectivamente. O longo trecho abaixo vale a pena ser conferido com especial ateno:
Nos casos de Csar e Napoleo I, pode-se dizer que A e B, embora fossem distintas e contrastantes, no eram foras tais que no pudessem absolutamente chegar a uma fuso e assimilao recproca aps um processo molecular, o que de fato ocorreu, pelo menos em certa medida (mas suficiente para pr fim luta orgnica fundamental e, portanto, de superar a fase catastrfica). Outro elemento o seguinte: a fase catastrfica pode emergir por causa de uma deficincia poltica momentnea da fora dominante tradicional, e no de uma deficincia orgnica necessariamente insupervel. Foi o que se verificou no caso de Napoleo III. A fora dominante na Frana de 1815 a 1848 dividira-se politicamente (facciosamente) em quatro fraes: a legitimista, a orleanista, a bonapartista e a jacobino-republicana. As lutas internas entre as faces eram de tal ordem que tornaram
463 Idem, p. 78. 464 Idem, p. 76-77. 191
possvel o avano da fora antagonista B (progressista) de forma precoce; contudo, a forma social existente ainda no esgotara as suas possibilidades de desenvolvimento, como a histria em seguida mostrou amplamente. Napoleo III representou ( sua maneira, de acordo com a estatura do homem, que no era grande) estas possibilidades latentes e imanentes: o seu cesarismo, assim, tem um colorido particular. objetivamente progressista, embora no como o de Csar e Napoleo I. O cesarismo de Csar e Napoleo I foi, por assim dizer, de carter quantitativo-qualitativo, ou seja, representou a fase histrica de passagem de um tipo de Estado para outro, uma passagem em que as inovaes foram tantas e de tal ordem que representaram uma transformao completa. O cesarismo de Napoleo III foi s e limitadamente quantitativo, no houve a passagem de um tipo de Estado para outro, mas s evoluo dentro do mesmo tipo, segundo uma linha ininterrupta. 465
A riqueza de elementos contida acima nos impele a tecer algumas rpidas consideraes. Pode-se notar, j primeira vista, o forte teor histrico que vertebra a anlise gramsciana do fenmeno cesarista/bonapartista. Percebemos, tambm, como tal perspectiva histrica assemelha-se em muito quela presente nas interpretaes de Len Trotsky. Assim como o marxista russo, Gramsci apontou que a formula poltica cesarista/bonapartista isto , o papel arbitral e relativamente autnomo desempenhado por um governo burocrtico-militar face s classes sociais em conflito seria passvel de se verificar nas mais diversas formaes sociais, tais como a Roma antiga, a Frana revolucionria de 1799, a Frana burguesa de 1851 etc. Ademais, seriam justamente o carter e o momento histrico dessas formaes sociais o que determinaria o tipo de cesarismo (progressista ou regressista) que se manifestaria concretamente em cada situao especfica. Do mesmo modo que Trotsky, o dirigente comunista italiano considerou que o bonapartismo de Napoleo I teria nascido de uma situao em que se verificava a passagem, mais ou menos gradativa, de uma formao social a outra (em uma palavra, a transio do feudalismo ao capitalismo). O primeiro Bonaparte teria representado, assim, as foras do progresso histrico, da burguesia ascendente, ainda que dotado de um dio anti-jacobino e sob vestes medievais. Trotsky, como vimos h pouco, tambm assinalou que Napoleo combateu no s o mundo feudal como tambm a plebe e os crculos democrticos da pequena e mdia burguesia. 466 Em ltima anlise, o bonapartismo de Napoleo I teria sido progressivo porque abrira caminho sociedade burguesa num momento em que esta, lutando principalmente contra as foras feudais regressivas (e apenas secundariamente contra os muito incipientes setores proletrios), representava o que havia ento de mais avanado, de mais revolucionrio na cena histrica. Gramsci lembrou tambm, com muita propriedade, que aquela expresso cesarista/bonapartista teria derivado de uma situao em que as principais foras sociais em presena, a nobreza e a burguesia, podiam, pelo fato de serem ambas classes proprietrias, acomodar-se de forma molecular ao longo do processo de objetivao do
465 Idem, p. 78-79. 466 TROTSKY, L. El Estado obrero, el Thermidor y el Bonapartismo. Op. cit. Traduo nossa. 192
modo de produo capitalista, o que no se mostraria possvel quando a contradio societria principal expressou-se entre a burguesia e o proletariado. Embora fazendo referncia ao papel arbitral das monarquias absolutistas europias, e no propriamente ao desempenhado pelo primeiro Napoleo, Trotsky tambm considerou, como pudemos ver, que aquele papel entre os elementos da antiga e da nova sociedade [feudal e burguesa, respectivamente] fora, em certo perodo, realizvel, na medida em que ambos os regimes de explorao [feudalismo e capitalismo] precisavam defender-se dos explorados. 467
Chamamos a ateno tambm para a interpretao de Gramsci relativa ao surgimento e natureza do Segundo Imprio francs, iniciado com o golpe de Estado assestado pelo sobrinho Bonaparte em dezembro de 1851. O marxista sardo, seguindo as anlises marxianas contidas nO 18 brumrio, tomou o regime de Lus Bonaparte como decorrente de uma situao (catastrfica) na qual a classe dominante encontrava-se profundamente dividida em vrias fraes sociais e correntes polticas. A incapacidade de cada uma destas de sobrepor-se s demais como fora dirigente (deficincia poltica momentnea da fora dominante tradicional) teria sido precisamente o que favoreceu o avano do proletariado como uma fora social progressista, ameaadora da ordem burguesa. J a idia aventada por Gramsci de que tal avano proletrio teria ocorrido precocemente parece ter sido uma influncia direta das revises feitas pelo prprio Marx, em sua Guerra civil na Frana, acerca do sentido histrico dos acontecimentos polticos de 1848-1851. Ao associar essa precocidade ao fato de que o capitalismo (a forma social existente) ainda no esgotara suas possibilidades de desenvolvimento, Gramsci reeditou a tese cunhada por Marx naquela obra e depois reiterada por Engels em conhecido prefcio a ela de que o bonapartismo francs surgira de um equilbrio poltico que exprimiria uma situao de impasse histrico, um momento limtrofe e divisor de guas da trajetria da sociedade burguesa no qual a burguesia havia perdido j a faculdade de governar a nao e a classe operria no a havia adquirido ainda. 468 Conquanto a burguesia j se postasse como uma classe contra-revolucionria, o sistema capitalista ainda encerraria, quela altura, possibilidades de expanso por meio do desenvolvimento das foras produtivas; nas palavras j antes transcritas de Marx, sob o Segundo Imprio, a sociedade burguesa alcanou um desenvolvimento que nem ela mesma esperava. Sua indstria e seu comrcio adquiriram propores gigantescas; a especulao financeira celebrou orgias cosmopolitas. 469
possivelmente nesse sentido que podemos apreender corretamente a caracterizao
467 TROTSKY, L. A Histria da revoluo russa. Op. cit., p. 545. 468 MARX, K. La guerra civil em Francia. Op. cit., p. 62. Traduo nossa. 469 Idem. 193
gramsciana do cesarismo de Napoleo III como objetivamente progressista. 470 Como tambm j pudemos ver, a mesma avaliao de Marx, Engels e Gramsci quanto situao na qual emergiu o regime de Lus Bonaparte encontra-se tambm em Trotsky, para quem o sucesso do bonapartismo de epgono teria se devido centralmente incapacidade do proletariado em tomar o poder e ao poderoso progresso industrial que abrira burguesia fontes jamais igualadas de enriquecimento. 471
Segundo Joo Quartim de Moraes, conhecedor da obra gramsciana,
o cesarismo progressivo resolve pelo alto a crise de hegemonia criando novas instituies que tornam compatveis os interesses sociais em choque. Assim, os primeiros csares puseram fim ao secular enfrentamento dos patrcios e dos plebeus; assim, Napoleo I consolidou jurdica e politicamente as conquistas camponesas da Revoluo Francesa, compatibilizando-as no apenas com a ordem burguesa, mas tambm, em certa medida, com os dois estamentos privilegiados contra os quais se fizera a Revoluo: a nobreza e a hierarquia catlica. Ao passo que o cesarismo regressivo se limita a mudar a forma de governo para preservar pela fora os interesses constitudos que a crise de hegemonia colocara em questo. Portanto, no resolve as contradies que haviam provocado a crise: impede-as temporariamente (o tempo que dura a eficcia de seu carisma) de se manifestar. 472
Aproveitando as contribuies de Quartim de Moraes, destacamos a fundamental diferenciao feita por Gramsci entre os cesarismos de Napoleo I e III no que toca particularmente s instncias Estado e regime da esfera poltica. Na perspectiva de Gramsci, o cesarismo do Primeiro Imprio, de carter quantitativo-qualitativo, teve lugar em meio a profundas transformaes que ocorriam nas estruturas bsicas da formao social francesa, o que explicaria que tenha expressado no apenas um novo regime poltico dentro de um mesmo Estado j vigente, mas um novo regime poltico que atuou como construtor de um novo Estado (o Estado capitalista francs). Para o autor dos Cadernos, portanto, sob Napoleo Bonaparte, teria se operado a passagem de um tipo de Estado para outro, uma passagem em que as inovaes foram tantas e de tal ordem que representaram uma transformao completa. Diferentemente, o Segundo Imprio, s e limitadamente qualitativo, significou, na tica do marxista sardo, uma evoluo dentro do mesmo tipo [de Estado], segundo uma linha ininterrupta. Em resumo: para Gramsci, enquanto no cesarismo do tio ocorreu uma mudana de regime (com a implantao do Consulado e do Imprio, que substituram a repblica ento sob domnio da Gironda Diretrio) e de Estado (do feudal para o burgus), no cesarismo do sobrinho processou-se apenas uma mudana de regime poltico (da repblica parlamentar para o bonapartismo). Nunca demais lembrarmos que essa
470 Quanto a esse aspecto, importante levarmos em conta ainda que 1848 marcou talvez o ltimo grande acerto de contas poltico da burguesia francesa com as velhas foras feudais, quela altura j socialmente residuais dado o trmino de seu molecular processo de aburguesamento verificado aps a Revoluo. 471 TROTSKY, L. A histria da revoluo russa. Op. cit., v. II, p. 544. 472 MORAES, Joo Quartim de. O argumento da fora in OLIVEIRA, Elizer Rizzo de. [et. al]. As Foras Armadas no Brasil. Rio de Janeiro: Espao e Tempo, 1987, p. 19. Grifos do autor. 194
preocupao gramsciana em distinguir, no interior da complexa esfera poltica, as instncias Estado e regime (e governo, como fez em outros momentos) encontra-se ausente na enorme maioria dos historiadores, cientistas polticos e socilogos da atualidade, inclusive naqueles alocados no chamado campo marxista. Como bem demonstraram alguns especialistas em sua obra, Gramsci, associando sociedade civil e sociedade poltica em uma mesma totalidade, complexificou e ampliou a prpria definio de Estado (Estado ampliado ou Estado integral). 473
Prosseguindo na questo das variantes cesaristas de Gramsci (progressiva e regressiva), assinalamos que, segundo o autor, a impossibilidade de fuso e unificao das foras antagonistas do capitalismo contemporneo (burguesia e proletariado) diferentemente do que se verificara entre nobreza e burguesia nos sculos XVIII e XIX acabava por conferir aos cesarismos do sculo XX um carter no s regressivo pois preservaria uma ordem social decadente (burguesa) face outra nova e superior (socialista) , mas tambm cada vez mais policialesco:
No mundo moderno, os fenmenos do cesarismo so completamente diferentes tanto daqueles do tipo progressista Csar-Napoleo I, como tambm daqueles do tipo Napoleo III, embora se aproximem deste ltimo. No mundo moderno, o equilbrio com perspectivas catastrficas no se verifica entre foras que, em ltima instncia, poderiam fundir-se e unificar-se depois de um processo penoso e sangrento, mas entre foras cujo contraste insolvel historicamente e que, ao contrrio, aprofunda-se com o advento das formas cesaristas. Todavia, o cesarismo no mundo moderno ainda encontra uma certa margem, maior ou menor, conforme os pases e seu peso relativo na estrutura mundial, j que uma forma social tem sempre possibilidades marginais de desenvolvimento e de sistematizao organizativa subsequente e, em especial, pode contar com a fraqueza relativa da fora progressista, em funo da natureza e do modo de vida peculiar dessa fora, fraqueza que preciso manter: foi por isso que se afirmou que o cesarismo moderno, mais do que militar, policial. 474
Na primeira metade do fragmento acima, Gramsci deixa a entender que, dada a tendncia exacerbao do antagonismo entre burguesia e proletariado sob o capitalismo monopolista, o cesarismo, assentado no equilbrio das classes fundamentais e propugnador da paz social entre ambas, mostrar-se-ia como uma forma de dominao poltica cada vez menos eficiente. Nesse sentido, o comunista italiano parece discordar das anlises de Trotsky, para quem os regimes bonapartistas, mesmo que usualmente efmeros. pois transitrios (situados entre a democracia e o fascismo), apresentavam-se na Europa dos anos 1930 como a formatao poltica cada vez mais adequada aos tempos de crise capitalista e consequente falncia da democracia burguesa. J na segunda parte do fragmento, entretanto, Gramsci sugere que o cesarismo poderia ainda fazer-se presente em pases nos quais, em certas
473 Ver, entre outros trabalhos, BUCI-GLUCKSMANN, Christine. Gramsci e o Estado. Op. cit. e LIGUORI, Guido. Estado e sociedade civil: entender Gramsci para entender a realidade in COUTINHO, C. N. e TEIXEIRA, Andra de Paula. Ler Gramsci, entender a realidade. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003. 474 GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. Op. cit., volume III, p. 79. 195
situaes, o proletariado (a fora progressista antagonista) se encontrasse relativamente fraco politicamente. Tal perspectiva se aproxima, a nosso ver, das observaes de Trotsky sobre o bonapartismo alemo (1930-1933), o qual, segundo o dirigente bolchevique, teria se originado justamente de uma debilidade poltica momentnea do vigoroso proletariado do pas. De todo modo, o que fica claro a partir da leitura das linhas de Gramsci acima que, para nosso revolucionrio encarcerado, o cesarismo nascido na etapa imperialista do capitalismo, marcada por uma exasperao da luta de classes, acabaria por encerrar um carter irremediavelmente reacionrio do ponto de vista poltico-social. Todavia, um tanto quanto contraditoriamente, em outro momento de seus Cadernos, Gramsci indicou a possibilidade de ocorrncia, nesse mesmo contexto histrico (capitalismo monopolista), de movimentos polticos prximos ao cesarismo que, por bloquearem a efetivao de cesarismos ainda mais reacionrios, poderiam ser considerados como relativamente progressistas. Uma apreenso correta da natureza poltica desses movimentos, assim como de todas as demais variantes cesaristas, no poderia, segundo Gramsci, prescindir da anlise do conjunto das foras e sujeitos sociais envolvidos nas complexas tramas polticas das quais se originam todos os cesarismos:
Seria um erro de mtodo (um aspecto do mecanicismo sociolgico) considerar que, nos fenmenos de cesarismo, tanto progressistas como reacionrios ou de carter intermedirio episdico, qualquer novo fenmeno histrico derive do equilbrio entre as foras fundamentais; tambm necessrio examinar as relaes que se estabelecem entre os grupos principais (de tipo variado, social- econmico e tcnico-econmico) das classes fundamentais e as foras auxiliares guiadas ou submetidas influncia hegemnica. Desse modo, no se compreenderia o golpe de Estado de 2 de dezembro [de 1851] sem se estudar a funo dos grupos militares e dos camponeses franceses. Um episdio histrico muito importante desse ponto de vista o chamado movimento em torno do caso Dreyfus na Frana; 475 tambm ele deve ser considerado nesta srie de observaes, no porque tenha levado ao cesarismo, mas exatamente pelo contrrio: porque impediu a ocorrncia de um cesarismo nitidamente reacionrio, que estava em gestao. Mas o movimento Dreyfus caracterstico porque so elementos do prprio bloco social dominante que frustram o cesarismo da parte mais reacionria do mesmo bloco, apoiando-se no nos camponeses, no campo, mas nos elementos subordinados da cidade guiados pelo reformismo socialista (e tambm na parte mais avanada do campesinato). Encontramos outros movimentos histrico-polticos modernos do tipo Dreyfus que certamente no so revolues, mas no so inteiramente reaes, ao menos no sentido de que quebram cristalizaes estatais sufocantes tambm no campo dominante e inserem na vida do Estado e nas atividades sociais um pessoal diferente e mais numeroso do que o precedente. Tambm estes movimentos podem ter um contedo relativamente progressista, ao indicar que, na velha sociedade, estavam latentes foras operosas que os velhos dirigentes no sabiam aproveitar, mesmo que fossem foras marginais, mas no absolutamente progressistas, por no poder marcar poca. Tornam-se historicamente efetivas em razo da debilidade construtiva do antagonista, no de uma fora
475 Em 1894, em funo de uma carta encontrada no cesto de lixo do adido militar alemo na Frana, o jovem capito francs Alfred Dreyfus, judeu, foi acusado de espionagem a servio da Alemanha e condenado priso perptua. Em 1898, comearam a surgir evidncias da inocncia de Dreyfus, o que provocou outro julgamento no qual, porm, a sentena foi mantida. A deciso gerou protestos de vrios segmentos sociais, e personalidades como Emile Zola e Anatole France saram em defesa do capito judeu. Em contrapartida, setores conservadores organizaram manifestaes abertamente anti-semitas e xenfobas contra o traidor Dreyfus. Mais do que um debate jurdico sobre a culpa ou inocncia de Dreyfus, o caso exprimiu uma forte polarizao da sociedade francesa entre a direita reacionria, que almejava o retorno da monarquia, e a esquerda reformista, que apoiava a repblica. Em 1906, seria finalmente comprovada a inocncia de Dreyfus. 196
prpria interior, e, portanto, esto ligadas a uma situao determinada de equilbrio das foras em luta, ambas incapazes de expressar no prprio campo uma vontade reconstrutiva autnoma. 476
Alguns estudiosos do pensamento de Gramsci entendem que, ao falar desses movimentos (prximos ao cesarismo) de contedo relativamente progressista, o marxista sardo teria feito uma referncia em linguagem cifrada ao fenmeno do estalinismo, ento em franca ascenso na Unio Sovitica. 477 Aventurando-nos um pouco em possveis conexes gramscianas, consideramos que as caractersticas desses movimentos podem ser encontradas, sem muitas dificuldades, tambm em processos poltico-sociais que marcaram a passagem ao capitalismo industrial em sociedades de desenvolvimento retardatrio; nestas, muitas vezes, as contradies entre os setores tradicionais e as heterogneas foras sociais vinculadas urbanizao e industrializao tiveram como resultado um Estado arbitral que, isolando os grupos mais reacionrios do processo poltico (como tambm os mais radicalmente reformistas e, naturalmente, os revolucionrios), conduziu de forma cesarista a objetivao do capitalismo industrial moderno. Nesse sentido, acreditamos ser possvel propor aqui um paralelo entre as variantes do cesarismo moderno de Gramsci (regressista e relativamente progressista) e as duas modalidades dos bonapartismos sui generis apresentadas por Trotsky (semifascista e semidemocrtica). Embora todos esses tipos de bonapartismo moderno sejam, em um sentido histrico-poltico mais geral (em ltima instncia), contra-revolucionrios pois buscam impedir o acesso do proletariado ao poder poltico , se constituiria em grave equvoco analtico, pensamos, menosprezar as importantes diferenas existentes entre os de carter explicitamente reacionrio, semifascistas/regressistas, e os de carter relativamente progressista, de feio semidemocrtica. A nosso ver, tais diferenas dizem respeito, sobretudo, s duas principais estratgias de que lana mo a cpula burocrtica bonapartista para tentar conter a ameaa proletria: o reformismo baseado em direitos sociais combinado com seleta coero, 478 e a represso aberta e praticamente indiscriminada ao movimento operrio. a escolha por uma ou outra dessas estratgias o que, ao fim e ao cabo, define o tipo de regime bonapartista que se
476 GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. Op. cit., volume III, p. 303-304. 477 Carlos Nelson Coutinho e Alvaro Bianchi so alguns desses estudiosos que fazem tal interpretao. Agradecemos aqui a ambos as proveitosas conversas que com eles tivemos sobre o tema. 478 Implementando determinados direitos sociais (alguns dos quais constavam no programa da social- democracia mantida na ilegalidade), o regime de Bismark na Alemanha, conforme j dissemos, foi provavelmente o pioneiro na adoo dessa estratgia Em linhas gerais, pode-se dizer que a maior parte desses direitos reconhecidos pelos governos bonapartistas se constituam em verses limitadas de propostas programticas da esquerda organizada, muitas vezes carente de uma existncia legal. Apresentando tais direitos como ddivas do Csar ao seu povo, os regimes cesaristas intentavam (e em grande medida conseguiam) isolar e enfraquecer politicamente as foras de esquerda independentes, como foram os casos, por exemplo, de alguns regimes latino-americanos entre as dcadas de 1930 e 1970 (varguismo, peronismo etc.). 197
configura concretamente e, consequentemente, delimita a forma de luta que a classe trabalhadora utilizar contra aquele. De natureza prioritariamente poltica, a preocupao em distinguir os bonapartismos relativamente progressistas dos nitidamente reacionrios parecer ter estado presente igualmente em Trotsky e em Gramsci, conquanto no custa lembrar ambos reconhecessem, tanto nos primeiros quanto nos segundos, um contedo claramente burgus e, portanto, em ltima anlise, contra-revolucionrio. Gramsci, conforme o ltimo trecho em destaque, considerou que aqueles modernos movimentos relativamente progressistas de tipo cesarista, precisamente porque quebravam cristalizaes estatais sufocantes e inseriam um pessoal diferente e mais numeroso nas atividades estatais e sociais, no deveriam ser tomados inteiramente como reaes. Trotsky, como vimos anteriormente, tambm ressalvou que a frente popular na Amrica Latina, surgida nos regimes semibonapartistas democrticos, no teria um carter to reacionrio como na Frana ou na Espanha, apresentando, assim, duas facetas: uma reacionria, na medida em que est dirigida contra os operrios, e outra agressiva (ou progressista, dependendo da traduo), na medida em que est dirigida contra o imperialismo. 479
Encaminhando-nos para o desfecho dessa sinttica apresentao do pensamento gramsciano do bonapartismo, indicamos uma relao possvel de ser entrevista na obra do marxista sardo entre as formas polticas cesaristas, as quais por vezes o Estado burgus adota, e o seu conhecido conceito de revoluo passiva. 480
Revoluo passiva e cesarismo Aparecendo como sinnimo da frmula revoluo-restaurao tambm utilizada nos Cadernos (e retirada da obra do historiador francs Edgar Quinet), 481 a idia de revoluo passiva (por sua vez buscada nos escritos do poltico e economista italiano Vincenzo
479 TROTSKY, L. Discusion sobre America Latina. Op. cit., p. 124-124. Traduo nossa. 480 Para uma viso aprofundada do conceito gramsciano de revoluo passiva, ver BIANCHI, Alvaro. Revoluo passiva: pretrito do futuro in Crtica Marxista, n. 23. So Paulo: Revan, 2006, p.34-57; ____. O Laboratrio de Gramsci. Op. cit., p. 253-296; DEL ROIO, Marcos. Um sculo de revolues passivas in AGGIO, A. e LAHUERTA, M. Pensar o sculo XX: problemas polticos e histria nacional na Amrica Latina. So Paulo: Unesp, 2003, p. 91-111; VIANNA, Luiz Werneck. A revoluo passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1997; COUTINHO, Carlos Nelson. As categorias de Gramsci e a realidade brasileira in ____. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento poltico. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1999, p. 191-219; BRAGA, Ruy. Gramsci e a dialtica da passivizao in ____. A restaurao do capital: um estudo sobre a crise contempornea. So Paulo: Xam, 1996, p.195-212; KEBIR, Sabine. Revoluo- restaurao e revoluo passiva: conceitos de histria universal in COUTINHO, C. N. e TEIXEIRA, Andra de Paula. Op. cit., p.147-155; e MATTOS, Marcelo Badar. Qualificando a interveno: conceitos de Gramsci, anlise histrica da sociedade brasileira e projeto poltico socialista in ____. Reorganizando em meio ao refluxo. Ensaios de interveno sobre a classe trabalhadora no Brasil atual. Rio de Janeiro: Vcio de leitura, 2009, p. 77-99. 481 BIANCHI, Alvaro. BIANCHI, Alvaro. O Laboratrio de Gramsci. Op. cit., p. 268. 198
Cuoco) 482 foi mobilizada por Gramsci para se referir a processos histricos nos quais a passagem moderna sociedade burguesa industrial no se fizera acompanhada e no se dera por meio de uma revoluo de cunho democrtico-burgus. Compreendendo a existncia de uma historicidade prpria a certas formaes sociais, nas quais o novo no eliminava revolucionariamente o velho, mas sim convivia contraditoriamente com ele, Gramsci, com sua idia de revoluo passiva, desenvolveu seu mtodo histrico-dialtico de interpretao social j contido em seus escritos pr-carcerrios, como os que abordou a questo meridional italiana. 483
Muito prxima das anlises de Engels, Lnin e Trotsky sobre os caminhos polticos da modernizao burguesa dos pases industrialmente retardatrios, a categoria gramsciana de revoluo passiva refere-se a uma forma de transio poltica ao capitalismo industrial em que a perspectiva disruptiva de vis jacobino-radical, que marcara a luta do terceiro Estado contra a reao feudal no clssico processo revolucionrio francs de fins do sculo XVIII, teria sido substituda por uma conciliao, pelo alto, entre as velhas classes proprietrias agrrias (nobilirquicas) e a jovem burguesia industrial em ascenso. Em funo de um tardio desenvolvimento fabril, que convivera com a longa permanncia das antigas relaes de produo no campo e, simultaneamente, proporcionara rapidamente a formao do perigoso proletariado urbano, certas formaes sociais no apresentaram, como j expusemos anteriormente, um antagonismo estrutural entre as economias arcaica e moderna. Assim, o avano poltico dos setores subalternos, sobretudo da classe operria, teria funcionado, segundo Gramsci, como uma mola propulsora da aliana, via Estado, entre as velhas e novas classes proprietrias contra aqueles, o que teria determinado uma dinmica scio-poltica da passagem da sociedade agrria ao capitalismo industrial que poderia ser bem definida pela frmula revoluo sem revoluo. Segundo Alvaro Bianchi, a noo gramsciana de revoluo passiva procurou dar conta de um contexto nacional no qual predominavam condies objetivas ainda no plenamente desenvolvidas e condies subjetivas nas quais as antigas classes dominantes ainda no haviam esgotado todas as suas potencialidades, 484 o que
criava a possibilidade de uma persistncia das antigas formas sociais e polticas no interior de um renovado invlucro. A velha formao social dispunha ainda de energias histricas suficientes que lhe permitiriam persistir. Gramsci estabelecia, assim, um forte nexo entre o conceito de revoluo passiva e uma teoria da persistncia [...] A revoluo era passiva, mas a passividade que a caracterizava era aquela das classes subalternas, e no das classes dominantes. Uma nova estrutura social e uma renovada forma poltica
482 Idem, p. 255. 483 GRAMSCI, A. A questo meridional. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987. 484 BIANCHI, Alvaro. BIANCHI, Alvaro. O Laboratrio de Gramsci. Op. cit., p. 270. 199
surgiam como resultado dos conflitos que contrapunham o novo ao velho e ao novssimo, a burguesia s antigas classes feudais e ao proletariado. 485
Para o mesmo Bianchi, o caminho analtico trilhado por Gramsci a partir de sua idia de revoluo passiva o teria levado ao encontro de companhias ilustres:
Lnin, em sua anlise do desenvolvimento do capitalismo na Rssia, havia apontado uma via no-revolucionria, a via prussiana, como uma possibilidade de resoluo da questo agrria-camponesa [...] Por outro lado, Trotsky havia ressaltado o papel desempenhado pelo capital financeiro e pelo Estado czarista no processo de constituio do capitalismo na Rssia contornando a revoluo burguesa [...]. A respeito desse ponto, o que diferenciava o marxista sardo de seus contemporneos era a tentativa de construir um conceito que desse conta da anlise dos processos de transio sem revoluo para o capitalismo, como eles haviam feito, mas que, ao mesmo tempo, tivesse um alcance metodolgico, historiogrfico e poltico mais abrangente. 486
Referindo-se a esses processos de revoluo passiva, nos quais a burguesia conseguira chegar ao poder sem passar pelo calvrio da revoluo, sem lanar mo do aparelho terrorista francs [jacobino], 487 Gramsci destacou a inexistncia de qualquer frao das classes dominantes capaz de, incorporando ativamente os setores subalternos, dirigir a seu modo a luta pela efetivao da sociedade burguesa-industrial contra as foras declaradamente retrgradas. Em meio a essa situao de incapacidade hegemnica por parte das classes dominantes, teria cabido ao Estado, por seus meios prprios, o exerccio da direo poltica daqueles processos, o que Gramsci, inspirando-se no caso exemplar da unificao italiana, denominou de funo de Piemonte:
A funo do Piemonte no Risorgimento italiano a de uma classe dirigente. Na realidade, no se trata do fato de que, em todo o territrio da pennsula, existissem ncleos de classe dirigente homognea, cuja irresistvel tendncia unificao tenha determinado a formao do novo Estado nacional. Estes ncleos existiam, indubitavelmente, mas sua tendncia unio era muito problemtica e, o que mais conta, nenhum deles, cada qual em seu mbito, era dirigente. O dirigente pressupe o dirigido, e quem era dirigido por estes ncleos? Estes ncleos no queriam dirigir ningum, isto , no queriam harmonizar seus interesses e aspiraes com os interesses e aspiraes de outros grupos. Queriam dominar, no dirigir, e mais ainda: queriam que fossem dominantes seus interesses, no suas pessoas, isto , queriam que uma fora nova, independente de qualquer compromisso e condio, se tornasse o rbitro da Nao: esta fora foi o Piemonte e, da, a funo da monarquia. O Piemonte, portanto, teve uma funo que, sob certos aspectos, pode ser comparada do partido, isto , do pessoal dirigente de um grupo social (e, com efeito, sempre se falou de partido piemonts); com a particularidade de que se tratava de um Estado, com um Exrcito, uma diplomacia etc. Este fato de mxima importncia para o conceito de revoluo passiva; isto , que no seja um grupo social o dirigente de outros grupos, mas que um Estado, mesmo limitado como potncia, seja o dirigente do grupo que deveria ser dirigente e possa pr disposio deste ltimo um Exrcito e uma fora poltico-diplomtica. 488
possvel percebermos na obra de Gramsci, portanto, um nexo causal entre crise de hegemonia e a funo de Piemonte desempenhada pelo Estado nas modernizaes
485 Idem, p. 270-271. 486 Idem, p. 271-272. 487 Idem, p. 267. 488 GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. Op. cit., volume V, p. 328-329. Grifos do autor. 200
capitalistas retardatrias que se processaram sob a forma de revoluo passiva. Dirigida pelo Estado, por assim dizer, a frao ou classe politicamente preponderante nas revolues passivas exerceria, segundo Gramsci, a hegemonia apenas entre as demais fraes e grupos dominantes, como foi o caso dos Moderados (do liberal Cavour) no Risorgimento, mas no entre os amplos setores subalternos, como havia sido o caso do jacobinismo francs.
O importante aprofundar o significado que tem uma funo de tipo Piemonte nas revolues passivas, isto , o fato de que um Estado substitua aos grupos sociais locais na direo de uma luta de renovao. um dos casos nos quais se tem uma funo de domnio e no de direo nestes grupos: ditadura sem hegemonia. A hegemonia ser de uma parte do grupo social sobre o grupo inteiro, no deste sobre outras foras para fortalecer o movimento, radicaliz-lo, etc., segundo o modelo jacobino. 489
Tendo em mente essa fundamental distino entre uma hegemonia existente somente entre os grupos dominantes e outra hegemonia exercida sobre o conjunto da sociedade (e, portanto, sobre os setores sociais antagonistas), Gramsci estabeleceu conceitualmente uma diferena entre funo hegemnica e hegemonia; enquanto a primeira, tpica das revolues passivas em pases tardios, seria uma espcie de hegemonia limitada 490 que implicaria em uma ditadura sem hegemonia com forte protagonismo poltico do Estado, a segunda tratar-se-ia de uma hegemonia propriamente dita, a qual, como j discutimos anteriormente, tenderia a dar origem, em sociedades de massas e aqui exclui-se, evidentemente, a Frana jacobina do sculo XVIII , a um regime de tipo democrtico-burgus o qual, dialeticamente, possibilita o prprio exerccio da hegemonia (dominao hegemnica). Destarte, nas modernizaes capitalistas realizadas via revoluo passiva encontraramos, segundo a perspectiva gramsciana, um Estado que assumiria para si a funo de direo poltica da nao, o que se expressaria pela existncia de um aparelho estatal que extrapolaria suas atribuies normais. Centralizado e fortalecido, esse Estado adquiriria, segundo compreendemos, um autonomia relativa face a todas as fraes e grupos dominantes, sendo ele prprio quem vai, com sua lgica e mtodos burocrtico-militares, comandar a aliana entre essas fraes e grupos que buscariam, em tempos de mudanas infra-estruturais
489 Idem, p. 330. Grifos do autor. Neste e em outro momento de seus escritos carcerrios (GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. Volume III. Op. cit., p. 92-95), Gramsci considerou o jacobinismo como uma forma de hegemonia burguesa, isto , como uma expresso da direo poltica exercida pela burguesia sobre as massas plebias nos quadros da revoluo francesa. Conforme j anunciamos na introduo do presente captulo, faz-se necessrio ressalvar, entretanto, que, nos baseando nestes mesmos escritos de Gramsci, optamos por, neste trabalho, utilizar hegemonia como um conceito que se refere a uma forma de dominao poltica que se faz presente (ou que, ao menos, sua necessidade se coloca) em sociedades burguesas de massas, nas quais o proletariado j se constitui como um sujeito social de peso e politicamente organizado (com seus partidos, sindicatos, associaes, jornais etc.), o que, decerto, no era o caso da Frana de 1792-1795. 490 GRAMSCI, Antonio. La situazione italiana e i compiti del PCI (1926) apud BIANCHI, Alvaro. O Laboratrio de Gramsci. Op. cit., p. 266 (nota 106). 201
inevitveis, se proteger dos novos sujeitos sociais que potencialmente ameaam a ordem vigente. Se o Estado (stricto sensu, isto , a sociedade poltica) sempre, tanto nas sociedades hegemnicas quanto no-hegemnicas, o locus onde se processa a aliana entre as diferentes fraes proprietrias, nos casos de revoluo passiva seria o Estado quem delimitaria os termos e o modo de funcionamento da aliana, assim como muitas vezes at mesmo os segmentos nela envolvidos. nesse sentido que se pode dizer que, nesses casos, o pacto entre as velhas e novas classes dominantes realizado pelo alto. Do mesmo modo, seria pelo alto isto , por meio de uma burocracia estatal autonomizada e dirigente que necessita agir contra os interesses imediatos de cada uma das fraes proprietrias que o conjunto da classe dominante se relacionaria com os setores subalternos perigosos, os quais, em meio a um processo de industrializao e urbanizao, precisam ser incorporados vida pblica como massas politicamente heternomas. As incontornveis mudanas, necessrias para que tudo fique como est, segundo a clebre frase de Lampedusa, 491 seriam orquestradas e implementadas por um aparelho estatal que tomaria quase que inteiramente para si o proscnio social e poltico da nao. Portanto, possvel, como j antecipamos, depreender dos textos de Gramsci a existncia de uma associao entre os processos de revoluo passiva nos pases de modernizao capitalista retardatria e a emergncia de formas cesaristas de Estado. O cesarismo seria, assim, o tipo de regime poltico adotado pelo Estado nessas formaes sociais em que a passagem de uma sociedade agrria ao moderno capitalismo industrial no se teria processado por uma via revolucionria. Jogando com as palavras do prprio Gramsci, podemos dizer que os pases nos quais se verificaram transies ao capitalismo por um caminho no-disruptivo se mostraram como pases, por assim dizer, potencialmente bonapartistas. 492 A compreenso dessa relao entre revoluo passiva e cesarismo nos ser de grande utilidade quando expusermos, na segunda parte deste trabalho, as interpretaes de alguns cientistas sociais brasileiros de inspirao gramsciana sobre a natureza e dinmica do processo poltico aberto no Brasil com a Revoluo de 1930. Encerrando este pequeno sub-captulo dedicado a Gramsci, assinalamos ainda que o filsofo italiano destacou a possibilidade de ocorrncia de solues cesaristas mesmo sem um Csar, sem uma grande personalidade herica e representativa. 493 Essa idia de um cesarismo sem Csar tambm nos permitir melhor entender a utilizao, por parte daqueles cientistas sociais brasileiros, de vrios elementos da teoria do bonapartismo para dar conta do perodo poltico brasileiro de 1945-1964, no qual j no havia a presena de um
491 LAMPEDUSA, Giuseppe Tomasi. O leopardo. So Paulo: Abril cultural, 1974. 492 GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. Op. cit., volume III, p. 66. 493 Idem, p. 77. 202
Bonaparte/Csar propriamente dito. Lembramos, ademais, que o Gramsci alertou que tambm o sistema parlamentar criou um mecanismo para tais solues de compromisso, de tipo cesarista:
Os governos trabalhistas de Mac Donald [na Inglaterra] eram, num certo grau, solues dessa natureza; o grau de cesarismo elevou-se quando foi formado o governo com Mac Donald primeiro-ministro e a maioria conservadora. Da mesma forma, na Itlia, em outubro de 1922, at o afastamento dos populares e depois, gradualmente, at 3 de janeiro de 1925, e ainda at 8 de novembro de 1926, verificou-se um movimento poltico-histrico em que diversas gradaes de cesarismo se sucederam at atingir uma forma mais pura e permanente, embora tambm esta no mvel e esttica. Todo governo de coalizo um grau inicial de cesarismo, que pode ou no se desenvolver at graus mais significativos (naturalmente, a opinio vulgar a de que, ao contrrio, governos de coalizo constituem o mais slido baluarte contra o cesarismo). 494
A sugestiva considerao gramsciana, contida no trecho acima, de que os governos de coalizo encerram todos, em menor ou maior grau, um contedo cesarista nos possibilita melhor entender as relaes entre regimes bonapartistas e os governos chamados de colaborao de classes. Mais especificamente, a assertiva de Gramsci em questo pode lanar luz, acreditamos, sobre a j vista combinao latino-americana de regimes bonapartistas sui generis e governos de tipo frente popular (Trotsky), combinao essa que muitas vezes expressou, em nosso entendimento, a formatao poltica pela qual se efetivaram momentos e etapas importantes da revoluo passiva na industrialmente retardatria Amrica Latina. J a aluso, presente no mesmo trecho, ao movimento poltico-histrico italiano da dcada de 1920 em que diversas gradaes de cesarismo se sucederam at atingir uma forma mais pura e permanente (fascismo) pode se constituir em um precioso aporte analtico para o processo poltico brasileiro entre 1930-1937, como buscaremos mostrar em nossas consideraes finais. Por fim, nessas e em outras possveis utilizaes do conceito gramsciano de cesarismo para interpretar certos perodos e aspectos da histria brasileira contempornea, sempre conveniente termos em mente que tal conceito, conforme advertiu o prprio Gramsci, deve ser tomado como uma frmula polmico-ideolgica e no [como] um cnone de interpretao histrica. 495
494 Idem. 495 Idem. 203
Parte II
Bonapartismo e populismo no Brasil
204
Introduo segunda parte: Trotskismo, Movimento Operrio e Universidade
205
A influncia trotskista nas cincias sociais brasileiras
verdade que eles nunca foram mais numerosos que uma dezena de milhares [ao redor do mundo]. Pareciam, no entanto, muito mais ameaadores e influentes [...] Os trotskistas divulgaram o marxismo em dezenas de idiomas. Estudaram e escreveram muito, mas no se deixaram reduzir a um crculo literrio [...] Os trotskistas foram politicamente derrotados, mas intelectualmente vitoriosos. 496
Conforme anunciamos, o objetivo desta segunda parte promover uma discusso sobre a relao entre a teoria do bonapartismo e o processo poltico brasileiro do 1930-1964. No prximo seguinte, central neste trabalho, buscaremos demonstrar a presena de elementos da teoria do bonapartismo na produo bibliogrfica de conhecidos cientistas sociais brasileiros que se dedicaram a estudar as relaes entre modernizao capitalista, classes sociais e Estado no perodo populista da histria nacional. Como tambm j havamos antecipado, ao longo dessa empreitada demonstrativa, buscaremos, de forma complementar, explicitar como as elaboraes bonapartistas desses nossos intelectuais universitrios guardam uma perceptvel proximidade com vises antes produzidas por organizaes polticas do movimento operrio da etapa pr-1964, sobretudo as de linhagem trotskista. No ltimo captulo, apoiando-nos nesta discusso historiogrfica, proporemos uma interpretao nossa das formas polticas de dominao burguesa verificadas entre a Revoluo de 1930 e o Golpe de 1964. Mais precisamente, destacaremos a estrutura e dinmica bonapartistas que, em graus variados, se fizeram presentes praticamente ao longo de todo esse processo de modernizao capitalista retardatria.
Antes, porm, de procedermos demonstrao propriamente dita da relao teoria do bonapartismo - cincias sociais brasileiras, o que nos permitir, ento, lanar nossas propostas interpretativas no derradeiro captulo, faz-se necessria uma breve apresentao das origens, natureza e, sobretudo, das influncias tericas de parcela significativa dos cientistas sociais com os quais trabalharemos daqui para frente. guisa de introduo dessa discusso historiogrfica, veremos rapidamente como muitos autores (mas no todos) que reconheceram uma autonomia relativa ao Estado brasileiro no perodo populista (especialmente entre 1930-1945) pertenciam a uma corrente intelectual que nutria uma perspectiva sobre a historicidade da periferia capitalista (latino- americana, e brasileira em particular) muito similar assumida ou melhor, formulada por Len Trotsky em sua lei do desenvolvimento desigual e combinado. Por conta disso,
496 ARCARY, Valrio. O encontro da revoluo com a histria...Op. cit., p. 15-17. 206
apresentaremos a convergncia que acreditamos existir entre algumas das principais elaboraes dessa corrente intelectual (referentes dinmica do desenvolvimento histrico brasileiro) e as teses e formulaes produzidas por algumas das organizaes de esquerda do perodo 1930-1964. A nosso juzo, a percepo de que cientistas sociais como Florestan Fernandes, Francisco Weffort, Octavio Ianni, Ruy Mauro Marini, Moniz Bandeira e Fernando Henrique Cardoso comungaram com Trotsky e pequenas organizaes trotskistas brasileiras a mesma perspectiva quanto historicidade da periferia capitalista possibilitar aos leitores, em seguida, melhor compreender a forte presena (implcita ou explcita) do conceito de bonapartismo em seus trabalhos, mais particularmente naqueles que formularam o que chamamos de teoria do populismo brasileiro (Weffort e Ianni, principalmente). 497 A presena do conceito de bonapartismo nessa teoria, por sua vez, nos ajudar a entender tambm a existncia de traos bonapartistas em anlises acadmicas que procuraram desenvolver a perspectiva proposta pioneiramente por Ianni e Weffort, como foi o caso das realizadas por autores como Dcio Saes, Armando Boito jr., Rgis de Castro Andrade e Ren Dreifuss. imprescindvel lembrarmos, contudo, que tanto os criadores da teoria do populismo (Weffort e Ianni), quanto, principalmente, os que a desenvolveram (Andrade, Saes, Boito jr. e Dreifuss), foram tambm influenciados em suas pesquisas pelas reflexes de tericos marxistas europeus que comeavam a ser lidos no Brasil nos anos 60 e 70 do sculo passado, como Gramsci e Poulantzas. Alis, no que tange especificamente a esse segundo grupo de cientistas sociais brasileiros, pode-se dizer que a teoria do bonapartismo subjacente em suas anlises sobre o processo histrico nacional de 1930-1964 deveu-se muito mais ao encontro com temticas e categorias como cesarismo, revoluo passiva, crise de hegemonia e autonomia relativa do Estado do que propriamente assimilao indireta (por meio dos
497 De modo similar ao que fizemos em relao teoria do bonapartismo, esclarecemos que aqui designamos de teoria do populismo (ou teoria populista) o conjunto das elaboraes marxistas que propuseram a categoria de populismo como chave interpretativa da natureza de certos sistemas polticos latino-americanos surgidos no ps-crise de 1929 e extintos pela sequncia de golpes civil-militares perpetrados nas dcadas de 1960 e 1970. Particularmente no que diz respeito ao Brasil, a teoria do populismo (brasileiro) se constitui em um modelo explicativo, elaborado principalmente por Francisco Weffort e Octavio Ianni, das relaes polticas existentes entre classes sociais e Estado durante o perodo 1930-1964. Nesse sentido, no estamos tratando de uma teoria propriamente dita (como uma teoria do Estado ou uma teoria das classes sociais, por exemplo), mas de um conjunto analtico dotado de um forte teor terico, como veremos. Por fim, ao falarmos de tericos do populismo, nos referimos, evidentemente, aos autores responsveis pelas elaboraes sobre o populismo, principalmente (mais uma vez) os prprios Weffort e Ianni. Dito isso, no utilizaremos mais aspas ao nos referirmos tanto teoria do populismo (teoria populista), quanto aos seus criadores (tericos do populismo). Assim como no caso da teoria do bonapartismo/tericos do bonapartismo, alertamos que ao falar de uma teoria do populismo e de seus autores (tericos do populismo) no nos referimos a uma teoria produzida pelo regime populista e aos seus criadores, preferindo usar, nestes casos, respectivamente, as denominaes de ideologia do populismo (ou ideologia populista) e idelogos do populismo (ou idelogos populistas). 207
trabalhos de Ianni e Weffort e do contato com as organizaes de esquerda) da trotskista lei do desenvolvimento desigual e combinado. Uma discusso aprofundada, para alm da questo do bonapartismo, acerca das influncias de Gramsci e Poulantzas em nossos cientistas sociais escaparia, evidentemente, s nossas possibilidades no momento. 498 Portanto, vejamos, por ora, aquilo que consideramos ser, talvez, o mais importante dos fundamentos explicativos para os traos da teoria do bonapartismo contidos na teoria do populismo: a presena da lei do desenvolvimento desigual e combinado num segmento acadmico do pensamento social brasileiro.
Uma nova corrente no pensamento social brasileiro: a intelectualidade antidualista e antietapista. Como sabido, na dcada de 1950 e at meados da de 1960, o pensamento de esquerda no Brasil, voltado para o entendimento da realidade nacional, foi hegemonizado por uma perspectiva analtica que ficou conhecida como dualista. A estrutura econmica, poltica e social brasileira era concebida pelos adeptos desse tipo de enfoque como constituda por dois plos opostos (por duas realidades): um setor arcaico e um setor moderno. Nesse raciocnio, uma parcela da economia brasileira composta por estruturas arcaicas, localizadas especialmente no campo, onde imperava a agro-exportao, impediria a expanso da dimenso moderna de outra parte da economia, concentrada em algumas regies industriais direcionadas produo de bens de produo e consumos durveis. Esse suposto antagonismo, segundo os dualistas, constrangeria o chamado desenvolvimento nacional. 499
Dessa forma, caso no fossem superados seus entraves arcaicos, o desenvolvimento do pas continuaria em um estgio qualificado como subdesenvolvido. Nessa tica, o desenvolvimento das naes subdesenvolvidas era compreendido como se estivesse localizado em uma fase, em uma etapa histrica anterior ao moderno capitalismo europeu e norte-americano, o que conferia a essa perspectiva um aspecto teleolgico-evolucionista. 500
498 Elementos para uma discusso sobre a recepo das teses de Gramsci no Brasil podem ser encontrados, entre outras obras, em FONTES, Virgnia. Que hegemonia? Peripcias de um conceito no Brasil in ____. Reflexes im-pertinentes. Histria e capitalismo contemporneo. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2005, p. 201-232, e MATTOS, Marcelo Badar. Qualificando a interveno: conceitos de Gramsci, anlise histrica da sociedade brasileira e projeto poltico socialista Op. cit. 499 Um dos pioneiros do entendimento dualista acerca da realidade brasileira foi o francs Jacques Lambert, que chegou a trabalhar com a imagem de dois Brasis. Ver LAMBERT. J. Os dois Brasis. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), 1959 (traduo do original ____. Le Brsil. Structure sociale et politique. Paris: Librairie Armand Colin, 1953.) 500 O prprio termo subdesenvolvido, da forma como era utilizado pelos dualistas, j expressa a compreenso de que as naes consideradas subdesenvolvidas ainda no haviam se desenvolvido. Nessa perspectiva, o padro europeu (e, s vezes, o norte-americano) de desenvolvimento era tomado como um rumo a ser seguido invariavelmente por todos os pases em seu transcorrer histrico, desde que esses se livrassem dos tais entraves ao desenvolvimento. 208
Partilhavam dessa concepo respeitadas as particularidades das elaboraes de cada grupo especialmente os formuladores e tericos do Partido Comunista Brasileiro (PCB), 501
os intelectuais vinculados Comisso Econmica para a Amrica Latina e o Caribe (CEPAL) 502 e os membros do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). 503 Para esta vasta gama de pensadores, o estgio subdesenvolvido (ou feudal/semifeudal, segundo os pecebistas) dos pases latino-americanos se explicaria essencialmente por uma relao externa dicotmica (Imperialismo x Nao), na qual a subordinao destes ao imperialismo significava um entrave s suas modernizaes industriais capitalistas. Assim, estabelecia-se uma oposio antittica entre naes desenvolvidas e subdesenvolvidas, e no uma relao dialtica entre as vrias e distintas classes sociais que compunham a totalidade social do imperialismo, na qual se articulavam o interno e o externo. Unidos numa plataforma poltica nacionalista, cepalinos, isebianos e pecebistas apostavam todas as suas fichas em uma burguesia nacional (progressista), que, caso se convencesse de seu devido papel no processo histrico, se articularia com os setores mdios, os trabalhadores e as imensas massas populares com vistas emancipao e modernizao da nao. De certa forma, todos esses pensadores muitos deles eruditos e inegavelmente competentes atuaram como idelogos do populismo. No que diz respeito particularmente perspectiva terica que orientava as anlises dos intelectuais ligados ao PCB, bem sabido que suas origens esto nas elaboraes da Internacional Comunista (IC) desde o fim dos anos 20, j conduzida por uma linha estalinista. Por conta disso, o olhar da realidade brasileira por esses intelectuais associava-se quele (j visto por ns) imperativo poltico formulado pela IC para os pases coloniais e semicoloniais, que propugnava justamente uma aliana do proletariado e dos camponeses com setores das burguesias nativas (burguesia nacional) rumo revoluo democrtico- burguesa. Essa aplicao de um modelo esquemtico de revoluo, que, por sua vez, era
501 Os nomes de Nelson Werneck Sodr Histria da burguesia brasileira (Rio de Janeiro: Civilizao brasileira, 1964), entre muitas outras publicaes conhecidas e de Alberto Passos Guimares Quatro sculos de latifndio (6 edio. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1989), entre outras obras talvez sejam os mais expressivos, em termos tericos, do tipo de concepo dualista sustentada pelo PCB. Acerca das estratgias polticas adotadas pelos comunistas brasileiros em funo desta perspectiva de interpretao da realidade brasileira, ver, entre outros trabalhos, PINHEIRO, Paulo Srgio. Estratgias da iluso. A revoluo mundial e o Brasil (1922- 1935) So Paulo: Companhia das letras, 1991. 502 A CEPAL foi criada em 1948 pela Organizao das Naes Unidas (ONU). Destacam-se entre os cepalinos brasileiros o notvel economista Celso Furtado, alm de Maria Conceio Tavares, Joo Manuel Cardoso de Mello, entre tantos outros discpulos do uruguaio Ral Prebisch. Acerca da lgica dualista presente nas interpretaes da CEPAL sobre a realidade latino-americana (e brasileira, em particular), ver, entre outras referncias, MANTEGA, Guido. A economia poltica brasileira. 4 edio. Petrpolis: Polis/ Vozes, 1987, p. 23- 133. 503 O ISEB foi criado em julho de 1955, ainda no governo Caf Filho (1954-1955). Contudo, deu incio s suas atividades no governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961). Nomes como o de Hlio Jaguaribe, lvaro Vieira Pinto, Cndido Mendes, Roland Corbisier, Guerreiro Ramos e o prprio Sodr podem ser considerados como alguns dos mais expressivos entre os isebianos. Quanto ao ISEB, ver TOLEDO, Caio Navarro de. ISEB: fbrica de ideologias. So Paulo: tica, 1977. 209
conseqncia de uma adaptao mecnica, para os pases atrasados, de experincias histricas dos pases avanados, foi criticada tanto por militantes do prprio PCB (Caio Prado Jr.) e organizaes polticas sua esquerda, quanto por setores da intelectualidade j presentes na academia em fins da dcada de 1950 e incio da de 1960. Contudo, at 1964, essas crticas ocuparam uma posio absolutamente minoritria nesses dois mbitos. O Golpe de 1964 fez cair por terra a iluso nacionalista e pecebista acerca de um possvel papel progressista que parcela da burguesia brasileira poderia vir a cumprir. Visceralmente ligadas ao imperialismo, todas as fraes da classe dominante local mostraram- se unidas em torno do combate comum ao movimento operrio que ameaava os alicerces da limitada democracia burguesa instituda em 1946. Para desgosto dos estrategistas etapistas do PCB e de seus aliados desenvolvimentistas (cepalinos, isebianos etc.), o antagonismo de classe, como era de se esperar, se sobreps a qualquer pretenso utpica de construo de um capitalismo em bases nacionais no pas. Do mesmo modo, no houve aspirao democrtica que fizesse nossa burguesia sequer sonhar com uma experincia jacobina. Do latifundirio ao banqueiro, passando pelo mdio industrial nacionalista, todos os grupos dominantes enxergaram, na conjuntura de crise dos anos 60, a classe trabalhadora organizada como o seu pior e principal inimigo. Nem a bandeira do desenvolvimento nacional nem a da democracia demonstraram ser suficientemente atraentes para qualquer setor burgus a ponto de uni-lo, ainda que apenas episodicamente, aos dominados na luta contra a ofensiva contra-revolucionria de maro de 1964. Se no se pode dizer que todas as alas da burguesia brasileira eram adeptas de longa data da idia de um golpe militar, no h dvidas, entretanto, de que a ascenso das lutas populares sob o governo Jango fez com que o conjunto da burguesia brasileira percebesse que a implantao de uma ditadura terrorista consistia no em uma mera opo poltica, mas em uma necessidade para sua prpria sobrevivncia social. A prova histrica irrefutvel da natureza equivocada das teses dualistas-etapistas gerou, no campo poltico-partidrio marxista, desdobramentos negativos para o PCB. Denunciando a postura passiva do partido quando do putsch burgus-imperialista vista por seus crticos como decorrncia da estratgia pecebista do caminho pacfico da revoluo brasileira , 504 surgiram vrias organizaes polticas, em sua maioria dissidncias do prprio PCB, que tomaram o rumo da luta armada contra o regime militar. 505
504 A tese 22 contida na resoluo poltica do V Congresso do PCB realizado em 1960 expressiva de tal estratgia: Nas condies atuais do Brasil e do mundo existe a possibilidade real de que a revoluo antiimperialista e antifeudal atinja seus objetivos por um caminho pacfico. (PCB. Resoluo poltica do V Congresso do Partido Comunista Brasileiro 1960 in ____. PCB: vinte anos de poltica. Documentos 1958- 1979. So Paulo: Livraria Editora Cincias Sociais, 1980, p. 62. 505 Vale registrar, entretanto, que grande parte desses agrupamentos polticos no foi a fundo na crtica estratgia etapista do PCB, chegando muitas vezes a reproduzir, ainda que sob a forma da luta armada, a 210
Tambm no mbito intelectual-acadmico de esquerda, o Golpe de 1964 provocaria significativas reviravoltas. Diversos cientistas sociais de vrias reas do conhecimento seriam responsveis por uma vasta produo cientfica dotada de uma perspectiva crtica forma como nacionalistas e pecebistas concebiam a realidade scio-histrica brasileira. Ligados Universidade de So Paulo (USP) e herdeiros do Centro de Sociologia da Indstria e do Trabalho (CESIT), intelectuais como Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Maria Slvia Carvalho Franco, Luiz Pereira, Paul Singer, Juarez Brando Lopes, Lencio Martins Rodrigues, Jos de Souza Martins, Gabriel Cohen e Francisco Corra Weffort, muitos deles orientados (formal ou informalmente) por Florestan Fernandes, realizaram consagrados trabalhos acerca de temticas como industrializao, urbanizao, empresariado, movimento operrio, sindicalismo, conflito social, Estado e desenvolvimento econmico. 506 No embate com o pensamento de cariz desenvolvimentista, a escola paulista (adjetivao imprecisa pela qual ficaria conhecida essa gama de cientistas sociais provenientes da USP) receberia, entre outras, a companhia de tericos abertamente marxistas, oriundos de distintos centros de pesquisa, como o cientista poltico Luiz Alberto Moniz Bandeira, Vnia Bambirra, Ruy Mauro Marini e Theotnio dos Santos, os trs ltimos estudiosos do chamado subdesenvolvimento latino-americano. Em termos genricos, parte significativa da bibliografia gestada nas dcadas de 1960, 1970 e 1980 por essa parcela expressiva da intelectualidade brasileira pode ser descrita como uma produo acadmica reconhecedora de uma historicidade prpria do capitalismo nas regies perifricas. Tal reconhecimento, segundo cremos, constituiu-se em pressuposto terico para a crtica ao mecanicismo analtico presente em muitas obras nacionalistas e pecebistas sobre o Brasil. Negando a possibilidade de reedio, nos pases perifricos, das etapas do desenvolvimento capitalista ocorridas na histria das naes centrais, a vertente intelectual em questo rejeitou qualquer antagonismo estrutural entre imperialismo (muitas vezes chamado eufemisticamente de capital estrangeiro) e burguesia nacional, assim como entre esta ltima e o latifndio. Admitindo a existncia de um modo prprio de desenvolvimento do capitalismo industrial nas regies perifricas, foi afastada das investigaes sociolgicas, histricas e polticas desses intelectuais a lgica que tomava como
crena na existncia de uma primeira etapa, de cunho nacional e antiimperialista, da revoluo brasileira. Para uma viso acerca das organizaes da esquerda armada e suas diferenas com o PCB, ver ARQUIDIOCESE DE SO PAULO, Brasil, nunca mais. Petrpolis: Vozes, 1985; GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas; a esquerda brasileira: das iluses perdidas luta armada. So Paulo: tica, 1987; RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revoluo brasileira. So Paulo: UNESP, 1993; REIS FILHO, Daniel Aaro. A revoluo faltou ao encontro. So Paulo: Brasiliense, 1991 e REIS FILHO, Daniel Aaro e S, Jair Ferreira (orgs.) Imagens da revoluo. Documentos polticos das organizaes de esquerda dos anos 1961-1971. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985, entre outros trabalhos. 506 Um bom e sinttico trabalho acerca dessa corrente intelectual uspiana SILVA, Luiz Fernando da. Pensamento social brasileiro. Marxismo acadmico entre 1960 e 1980. So Paulo: Coraes & Mentes, 2003. 211
antitticos o arcaico e o moderno na sociedade brasileira. Tanto no plano econmico (da acumulao capitalista) quanto no mais propriamente poltico (da luta de classes), o arcaico e o moderno (o reacionrio e o progressista, politicamente falando) significariam dois lados da mesma moeda. A natureza social brasileira era compreendida como altamente contraditria e at mesmo hbrida, porm, de modo algum, como dual. Opondo-se, portanto, dicotomia Imperialismo x Nao (assim como ao suposto antagonismo entre latifndio e industrializao), as anlises antidualistas e antietapistas se erigiam a partir da compreenso de que a contradio principal da realidade nacional residia no conflito entre as classes sociais fundamentais: a burguesia e o proletariado. Como expresses da produo cientfica desta corrente intelectual brasileira que aqui designamos como antidualista e antietapista, podemos mencionar os argutos estudos de Florestan Fernandes sobre os caminhos peculiares da revoluo burguesa no Brasil, 507
assim como as sugestivas teses de Cardoso, Marini e outros tericos da dependncia (dependentistas). 508 Do mesmo modo, podemos aludir clssica obra de Boris Fausto sobre a Revoluo de 1930 509 e Crtica razo dualista do tambm uspiano Francisco de Oliveira. 510 Por fim (porm mais importante para o presente trabalho), preciso lembrar os diversos livros, artigos e ensaios de Octavio Ianni e Francisco Weffort sobre o populismo, nos quais esse fenmeno latino-americano explicado a partir das condies histricas, sociais e (principalmente) polticas prprias de um continente perifrico e dependente dentro do sistema capitalista internacional (como poderemos observar no prximo captulo). Em muitos trabalhos destes autores referidos acima, podemos encontrar, como j dissemos, um eixo terico estruturante que assemelha-se, e muito, ao que orientou as reflexes de Trotsky acerca do carter do desenvolvimento capitalista nos pases de industrializao retardatria. Antes, porm, de expormos essa semelhana, faz-se necessria uma ligeira apresentao das organizaes trotskistas do perodo 1930-1964, as quais, como dissemos h pouco, funcionaram em funo das relaes e contatos (mais ou menos estreitos) que mantiveram com a intelectualidade antidualista e antietapista como elos de transmisso das teses de Trotsky para o pensamento universitrio brasileiro. Ao descrever um pouco da
507 Ver, dentre uma vasta gama de estudos de Florestan sobre o tema, FERNANDES, Florestan. A revoluo burguesa no Brasil: ensaio de interpretao sociolgica. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1975. 508 Entre tantos outros trabalhos dos dependentistas, ver CARDOSO, Fernando Henrique. e FALETTO, Enzo. Dependncia e desenvolvimento na Amrica Latina. 8edio. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2004, e MARINI. Ruy Mauro. Dialtica da dependncia in ____. Ruy Mauro Marini. Vida e obra. Op. cit., p. 137-180. 509 FAUSTO, Boris. A revoluo de 1930. Histria e historiografia. 4 edio. So Paulo: Brasiliense, 1976. 510 OLIVEIRA, Francisco de. Crtica razo dualista / o ornitorrinco. So Paulo: Boitempo, 2003, p. 44-45. Fazemos referncia obra publicada inicialmente com o nome de A economia brasileira: crtica razo dualista, em Estudos Cebrap, n. 2, 1972. 212
trajetria desses grupos trotskistas, procuraremos realar justamente suas relaes e contatos com alguns dos conhecidos intelectuais acadmicos do pas.
As organizaes trotskistas (ou prximas ao trotskismo) no Brasil (1930- 1964) Desde o final dos anos 20, em funo das fortes divergncias e expressivas cises ocorridas no interior do Partido Comunista da Unio Sovitica (PCUS) e da IC, comearam a se formar em muitas partes do mundo agrupamentos polticos orientados por uma perspectiva crtica ao estalinismo. 511 No Brasil, como em quase todos os demais lugares, o trotskismo acabou se mostrando como o caminho poltico-programtico adotado pela maioria dessas novas organizaes.
A primeira gerao trotskista (LCI e POL): distantes da intelectualidade acadmica marxista dos anos 60. A primeira gerao dos trotskistas brasileiros 512 organizou-se primeiramente no interior do PCB por intermdio do Grupo Comunista Lnin (GCL), fundado em 1930. Em janeiro de 1931, o GCL passaria a se chamar Liga Comunista do Brasil (LCB), organizao que mantinha relaes diretas com a Oposio de Esquerda Internacional (OEI), liderada por Trotsky. Abandonando a estratgia de funcionar como uma frao do PCB cujos rumos buscava reorientar, a LC deu lugar, em outubro de 1933, Liga Comunista Internacionalista (LCI). 513 Tal postura adequava-se nova orientao poltica da OEI s suas sees nacionais aps a vitria do nazismo na Alemanha: desistir da disputa pelo controle dos j
511 Muitas informaes e anlises acerca das divergncias e rupturas ocorridas no PCUS e na IC a partir de fins dos anos 20 podem ser encontradas na monumental obra de Pierre Brou sobre o tema, recm-editada em lngua portuguesa: BROU, Pierre. Histria da Internacional Comunista (1919-1943). Traduo de Fernando Ferrone. So Paulo: Sundermann, 2007, 2 volumes. 512 Quanto utilizao do termo trotskista neste perodo, lembramos que na disputa contra a frao estalinista do Partido Comunista da Unio Sovitica (PCUS) e da IC aps a morte de Lnin, Trotsky e seus companheiros se autodenominavam bolcheviques-leninistas. O termo trotskista foi sempre utilizado por Trotsky entre aspas, j que a origem da adjetivao remontava s crticas proferidas contra ele desde antes de 1917, mais tarde revividas em outros termos pela burocracia de Stlin. Aps a morte de Trotsky, o termo foi encampado por seus seguidores como forma positiva de se definirem, tal como ocorreu com uma srie de outros istas que, em suas origens, pertenciam ao arcabouo retrico de seus opositores (marxistas, leninistas, zinovievistas etc.). 513 As informaes expostas neste trabalho acerca dessas primeiras organizaes trotskistas (GCL, LCB e LCI) foram retiradas de ABRAMO, F. e KAREPOVS, D. Na contracorrente da histria. Documentos da Liga Comunista Internacionalista. So Paulo: Brasiliense, 1987; MARQUES NETO, J. C. Solido revolucionria: Mario Pedrosa e as origens do trotskismo no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993; KAREPOVS, D. e MARQUES NETO, J. C. Os trotskistas brasileiros e suas organizaes polticas (1930-1966) in REIS FILHO, Daniel Aaro e RIDENTI, Marcelo (orgs) Histria do marxismo no Brasil, volume V (partidos e organizaes dos anos 20 aos 60). Campinas, SP: Unicamp, 2002, p. 103-155 ; CASTRO, Ricardo Figueiredo de. Os intelectuais trotskistas nos anos 30 in REIS FILHO, Daniel Aaro (org.). Intelectuais, histria e poder (sculos XIX e XX). Rio de Janeiro: 7 letras, 2000, p. 137-152. e COGGIOLA, Osvaldo. O trotskismo no Brasil in MAZZEO, Antonio Carlos e LAGOA, Maria Izabel (orgs.) Coraes vermelhos (os comunistas brasileiros no sculo XX). So Paulo: Cortez, 2003, p. 239-269. 213
degenerados Partidos Comunistas e fomentar a criao de novas organizaes revolucionrias, rumo construo de uma nova Internacional (a IV Internacional). Constitudos em sua maioria por militantes dissidentes do PCB, esses primeiros ncleos trotskistas brasileiros, que tiveram como divulgador de suas idias o jornal A luta de classe, agrupavam tanto militantes de perfil intelectual, como Mario Pedrosa (advogado, jornalista e crtico de arte), Lvio Xavier (advogado e jornalista), Aristides Lobo (professor), Rodolpho Coutinho (advogado e professor) e Salvador Pintade (editor), 514 quanto quadros oriundos dos meios operrios, como Joo Jorge da Costa Pimenta (grfico), Mrio Colleoni (metalrgico), Joo Dalla Da (linotipista) e Josefina Mendez (operria txtil). Trabalhadores do comrcio (Arnaldo Tommasini, Lelia Abramo e Flvio Abramo), assim como estudantes (Mirno Tibor e Azis Simo) e artistas de vanguarda (a escritora Rachel de Queiroz e o poeta surrealista francs Benjamin Pret, por exemplo) tambm tiveram espao nas fileiras desses pequenos agrupamentos. Intervindo em sindicatos como os de comercirios, motoristas, ferrovirios, alfaiates, sapateiros, construo civil, professores e grficos, os primeiros trotskistas brasileiros s obtiveram uma significativa insero nesta ltima categoria, dirigindo greves combativas da Unio dos Trabalhadores Grficos de So Paulo (UTG). Em termos da poltica mais geral, a LCI destacou-se por ter impulsionado a construo, em junho de 1933, da Frente nica Antifascista (FUA), uma entidade que visava aliana de diversos setores e correntes do movimento operrio com o fito de combater o crescimento do fascismo tupiniquim, expresso pela Ao Integralista Brasileira (AIB), criada em 1932. Em 7 de outubro de 1934, a LCI liderou, em So Paulo, uma contramanifestao a uma parada integralista na Praa da S, episdio que resultou em uma morte e em feridos de ambos os lados. Por intermdio de seus refinados intelectuais (sobretudo Mario Pedrosa e Lvio Xavier), esses primeiros grupos trotskistas produziram interessantes anlises da realidade brasileira nas quais, diferentemente do PCB, se descartava qualquer possibilidade de realizao das tarefas democrtico-burguesas por alguma parcela das classes dominantes nativas, dadas a dependncia do capitalismo brasileiro ao imperialismo e a prpria formao da burguesia local. Em oposio idia que afirmava, baseando-se nas desigualdades econmico-regionais do Brasil dos anos 30, a existncia de um confronto no pas entre as foras capitalistas e as estruturas feudais (ou semifeudais), a LC, em seu documento Esboo de uma anlise da situao econmica e social do Brasil (fevereiro-maro de 1931), afirmou: o processo econmico estendeu-se pouco a pouco a todo o territrio brasileiro, e o
514 Pintade esteve frente da Grfica e Editora Unitas que, nos anos 30, foi responsvel pela publicao pioneira de diversos textos de Marx, Engels, Lnin, Trotsky, Rosa Luxemburgo etc. 214
capitalismo penetrou todo o Brasil, transformando as bases econmicas mais retardatrias. 515
J em outro documento, intitulado Projeto de teses sobre a situao nacional, a LC compreendeu o Estado surgido da Revoluo de 1930 como uma forma de compromisso entre a burguesia dos estados do Sul e a burguesia dos estados do Norte, 516 posio bastante prxima da que seria adotada posteriormente por Francisco Weffort e Boris Fausto (como veremos no prximo captulo). Em funo da altssima represso estatal desencadeada contra o conjunto do movimento operrio aps o levante frustrado da Aliana Nacional Libertadora em novembro de 1935, a LCI foi praticamente desbaratada. Seus militantes do Rio de Janeiro (que passaram a se denominar, em fins de 1936, Grupo Bolchevique Leninista) estabeleceram uma aproximao poltica com membros da oposio classista do PCB, que haviam deixado as fileiras estalinistas criticando a linha partidria adotada s vsperas do putsch aliancista. 517
Dessa aproximao nasceu, em janeiro de 1937, o Partido Operrio Leninista (POL). Atuando junto a garons, grficos, vidraceiros, teceles, ferrovirios etc., o novo agrupamento trotskista propagandeou suas posies tambm por intermdio de A luta de classe. Em abril de 1938, o aparato repressivo da ditadura estadonovista provocou um forte revs na organizao. Ainda em 1938, Mario Pedrosa, representando o POL, participaria (sob o pseudnimo de Lebrun) da conferncia de fundao da IV Internacional, realizada na Frana. 518
Essa primeira gerao dos trotskistas brasileiros, por questes temporais antes de qualquer outro fator, no possuiu vnculos com a intelectualidade acadmica antidualista e antietapista das dcadas de 1960 e 1970, salvo a presena (j mencionada) do ento jovem estudante Azis Simo entre os membros da Liga Comunista do Brasil. 519
Entretanto, talvez valha a pena relatar o fato de que Lvio Xavier, militante destacado das primeiras organizaes trotskistas brasileiras, chegou a corresponder-se, ainda nos anos 30, com Caio Prado Jr. Em uma carta de tom altamente polmico, datada de 20 de setembro
515 CAMBOA, M. e LYON, L (pseudnimos de Mrio Pedrosa e Lvio Xavier, respectivamente). Esboo de uma anlise da situao econmica e social do Brasil in ABRAMO, F. e KAREPOVS, D (orgs.). Op. cit., p. 72. 516 LIGA COMUNISTA DO BRASIL Projeto de teses sobre a situao nacional in ABRAMO, F. e KAREPOVS, D (orgs.). Op. cit., p. 161. 517 A aproximao entre esses dissidentes do PCB (como o bancrio Augusto Besouchet, o mdico Febus Gikovate e o jornalista Barreto Leite Filho) e os remanescentes da LCI deveu-se, em grande parte, ao fato de os trotskistas terem tido, desde o incio, uma postura crtica em relao ANL, assim como ao levante impulsionado por esta (pelo PCB, na verdade) em novembro de 1935. Quanto s crticas da LCI s estratgias e tticas do PCB nos momentos que antecederam e sucederam o putsh comunista, ver ALMEIDA. Miguel Tavares de. Os trotskistas frente Aliana Nacional Libertadora e aos levantes militares de 1935 in Cadernos AEL: trotskismo (v. 12, n. 22/23). Campinas: Unicamp/IFCH/AEL, 2005, p. 83-117. 518 As informaes expostas por ns sobre o POL foram extradas de KAREPOVS, D. e MARQUES NETO, J. C. Op. cit. 519 Entre outros trabalhos, o socilogo Azis Simo autor do clssico Sindicato e Estado (So Paulo: Dominus, 1966), livro pioneiro nos estudos sobre o proletariado e sindicalismo brasileiros. 215
de 1933, o historiador pecebista pretendeu rebater as crticas que o seu livro recm-lanado, Evoluo poltica do Brasil, sofrera numa resenha de Lvio Xavier publicada pelo Dirio da Noite. Na missiva, em grande parte dedicada ao debate em torno da noo de feudalismo brasileiro, Caio Prado Jr., dizendo-se conhecedor das posies dos trotskistas brasileiros sobre tal temtica, afirmou ser um critrio absolutamente errado este de procurar enquadrar artificialmente os fatos brasileiros nos esquemas que Marx traou para a Europa. 520 Palavras como estas vindas de Caio Prado Jr. no so, evidentemente, nenhuma surpresa, dado que o combate ao esquematismo analtico, como exporemos logo frente, foi sempre uma constante em sua obra, desgarrada, no essencial, da ortodoxia estalinista. O que acreditamos que merea ateno aqui o fato de ter havido dilogo historiogrfico e, ainda que ofuscada por polmicos desacordos quanto a questes especficas, uma certa compatibilidade terico- analtica, de carter mais geral, entre Caio Prado Jr. e Lvio Xavier que, dissemos, foi co- autor do supracitado Esboo de uma anlise da situao econmica e social do Brasil (1931), documento de anlise histrica e sociolgica do Brasil marcado por uma perspectiva antidualista e antietapista. Nesse sentido, ainda que distantes no campo mais propriamente poltico, Caio Prado Jr. e os trotskistas da primeira gerao, conforme ser visto ainda algumas pginas frente nesta introduo, compartilharam pressupostos interpretativos no que concerne ao processo histrico e poltico brasileiro.
O PSR: Florestan Fernandes e o trotskismo Tambm bastante desarticulado devido represso varguista ps-novembro de 1935, o PCB assistiu, em meados de 1937, a uma significativa crise no seu interior. Discordando da concepo estratgica que apontava a burguesia como fora motriz da revoluo brasileira e das tticas que se gestavam na direo partidria para a interveno nas eleies presidenciais de 1938, 521 a maioria do Comit Regional de So Paulo, em aliana com setores de outras regionais, deu origem ao Comit Central Provisrio (CCP) tambm autodenominado de Comit Regional do PCB , liderado por Heitor Ferreira Lima e Hermnio Sacchetta. Derrotado pela faco partidria comandada por Lauro Reginaldo da Rocha (Bangu) que contou com o apoio, por intermdio de transmisses radiofnicas, da IC , o CCP sofreu uma
520 Carta de Caio Prado Jr. endereada a Lvio Xavier em 20 de setembro de 1933. A carta se encontra no arquivo pessoal de Lvio Xavier, depositado no Centro de Documentao do Movimento Operrio Mrio Pedrosa (CEMAP), parte do acervo do Centro de Documentao e Memria (CEDEM), da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Os trechos da carta entre aspas foram citados por Lincoln Secco em matria da Folha de So Paulo (Caio Prado Jr. Marxismo prprio. Historiador distingue o pensamento do autor entre os marxistas brasileiros) de 4 de fevereiro de 2007. 521 O PCB cogitava fortemente o apoio ao candidato Jos Amrico de Almeida. Contudo, como se sabe, o golpe estadonovista de novembro de 1937 levaria frustao do pleito presidencial. 216
ciso, autodenominada Dissidncia pr-Reagrupamento da Vanguarda Revolucionria. 522 No ano de 1938, esse agrupamento, no qual se destacavam figuras como o advogado Alberto Moniz da Rocha Barros e o jornalista Jos Stacchini, alm do prprio Sacchetta, aproximou- se do POL. 523
Em agosto de 1939, a fuso entre o POL e o agrupamento de Sacchetta, reunindo o que se pode chamar da segunda gerao do trotskismo brasileiro, deu origem ao Partido Socialista Revolucionrio (PSR), logo reconhecido como seo brasileira da IV Internacional. 524 Contudo, os vnculos entre esta e o novo partido foram, at 1943, bastante espordicos. O clima blico mundial instaurado definitivamente no mesmo ano de 1939 e a morte de Trotsky em 1940, no Mxico, fizeram com que a prpria IV Internacional carecesse de organicidade, deixando um tanto quanto soltas suas sees nacionais. 525 Somou-se a isso o fato de que Mrio Pedrosa, ainda em 1939, juntamente com um setor minoritrio do norte- americano Socialist Workers Party (SWP), rompeu com a internacional trotskista em funo de divergncias sobre a caracterizao da Unio Sovitica. 526 Segundo a direo da IV Internacional, por motivos fracionais, Pedrosa teria dificultado o contato da organizao com os militantes que permaneceram no PSR. 527
Exercendo suas atividades em meio represso estadonovista, o PSR inicialmente divulgou suas posies tambm por meio dA luta de classe jornal que havia sido criado pela Liga Comunista do Brasil e preservado pelas organizaes trotskistas seguintes (LCI e POL) e, depois, passou a editar o peridico Luta Proletria. A partir de 1943 (ano em que estreitou seus laos com a IV Internacional), o PSR passou a defender a convocao de uma Assemblia Nacional Constituinte para por fim ao Estado Novo vale lembrar que foi justamente em 1943 que Vargas iniciou uma guinada democrtica no regime. Em 1945, com o fim da guerra e com a ditadura em crise, os trotskistas propuseram a formao de uma
522 Quanto histria da ciso do PCB envolvendo a Dissidncia pr-Reagrupamento da Vanguarda Revolucionria, ver KAREPOVS, Dainis. Luta subterrnea. O PCB em 1937-1938. So Paulo: Unesp/Hucitec, 2003. 523 No debate acerca das futuras eleies de 1938, o POL defendeu o lanamento do nome de Luiz Carlos Prestes, que se encontrava preso, para candidato Presidncia da Repblica. 524 As informaes expostas sobre o PSR foram extradas de KAREPOVS, D. e MARQUES NETO, J. C. Op. cit. e de COGGIOLA. O. Op. cit. 525 Quanto histria da IV Internacional, ver SAGRA, Alicia. Op. cit. e PETIT, Mercedes. Op. cit. 526 As posies de Trotsky (e da maioria do SWP) nessa polmica travada no seio da internacional trotskista podem ser vistas em TROTSKY, L Em defesa do marxismo. Op. cit. J as posies de Mrio Pedrosa (compartilhadas pelos dissidentes do SWP) podem ser encontradas em PEDROSA, M. A defesa da URSS na guerra atual in Cadernos AEL: trotskismo (v. 12, n. 22/23). Campinas: Unicamp/IFCH/AEL, 2005, p. 289-318. 527 Mrio Pedrosa, rompido com o trotskismo, dirigiu, ao lado da poetisa Patrcia Galvo (Pagu), que havia sido do PSR, o jornal Vanguarda Socialista. Em 1945, j no Partido Socialista Brasileiro (PSB), defendeu a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes Presidncia da Repblica. Muitos anos depois, aps a volta do exlio vivido durante a ditadura militar brasileira, seria homenageado ao ser escolhido para preencher a primeira ficha de filiao do Partido dos Trabalhadores (PT) no ato de sua fundao, realizado em fevereiro de 1980. Em novembro do ano seguinte, aos 81 anos de idade, o fundador do trotskismo brasileiro e consagrado crtico de arte morreria em sua casa no bairro de Ipanema, no Rio de Janeiro. 217
frente nica entre os socialistas e as foras democrticas (que inclua a oposio liberal a Vargas) contra eventuais manobras ditatoriais da cpula governamental que visassem impedir as eleies esperadas. Ainda em 1945, os trotskistas convidaram o conjunto da esquerda para participar de uma frente eleitoral, a Coligao Democrtica Radical, proposta que malogrou, principalmente, devido ao lanamento da candidatura, por parte do PCB, do mdico Yedo Fiza. 528 Nas eleies estaduais de 1947, o PSR chamou o voto em branco para governador e o voto crtico nos comunistas para deputados. Entre outubro de 1946 e janeiro de 1948, o PSR editou o jornal Orientao Socialista, no qual foram publicados vrios artigos de Sacchetta de contedo extremamente crtico s teses etapistas do PCB; 529 Nos anos finais do partido, na dcada de 1950, seu peridico voltaria a se chamar Luta Proletria. O partido trotskista obteve tambm uma significativa influncia na editora paulista Flama, que publicou tradues de Marx, Engels, Rosa Luxemburgo e Kautsky. Com uma insero bastante marginal entre os trabalhadores e praticamente restrito a So Paulo, o PSR atuou junto a categorias como a dos grficos, dos jornalistas e dos vidreiros. Entre 1951 e 1952, devido a motivos ainda no muito esclarecidos, o PSR deixou de existir. 530 Em 1956, Hermnio Sacchetta organizaria a Liga Socialista Independente (LSI), agrupamento de inspirao luxemburguista que contou com a presena de nomes como Paul Singer, Michael Lwy, Maurcio Tragtenberg, Moniz Bandeira e os irmos Emir e der Sader. O que mais interessa a este trabalho, entretanto, o fato de que, entre 1942 e 1952 (aproximadamente), o futuro renomado acadmico Florestan Fernandes foi membro do PSR. 531 A adeso do ento estudante de sociologia da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras, ncleo-matriz da Universidade de So Paulo (USP), ao partido trotskista deu-se por intermdio de Sacchetta, que Florestan conhecera na redao do jornal paulista Folha da Manh. Convidado pelo jornalista trotskista a militar no pequeno grupo, Florestan encontrou um lugar no qual o colaboracionismo de classes propagado pelo PCB no obtinha
528 Os militantes do peridico Vanguarda Socialista, alocados em sua maioria no PSB, defenderam, como dissemos, o voto em Eduardo Gomes, da Unio Democrtica Nacional (UDN). Isolados, os trotskistas do PSR anularam seus votos, sufragando nas cdulas o nome de Luiz Carlos Prestes. 529 Quanto ao Orientao Socialista, ver FERREIRA, P. R. Imprensa poltica e ideologia: Orientao Socialista (1946-1948). So Paulo: Moraes, 1989. 530 Segundo Murilo Leal, a nova crise da IV Internacional, aberta aps a vitria de Pablo e Mandel no III Congresso da organizao (veremos um pouco sobre isso mais frente), e a convergncia de militantes do partido com as posies do grupo Vanguarda Socialista referentes natureza social da Unio Sovitica podem ter sido alguns dos motivos que levaram ao fim o PSR (LEAL, M. esquerda da esquerda. Trotskistas, comunistas e populistas no Brasil contemporneo (1952-1966). So Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 27-34). 531 As informaes acerca da relao de Florestan Fernandes com o PSR foram retiradas de COGGIOLA, O. Florestan Fernandes e o socialismo in FERNANDES, F. Em busca do socialismo. ltimos escritos e outros textos. So Paulo: Xam, 1995, p. 9-28. e de CERQUEIRA, Laurez. Florestan Fernandes. Vida e obra. So Paulo: Expresso popular, 2004. 218
ressonncia. Em uma entrevista de 1995, o socilogo assim falou de sua participao poltica entre os trotskistas do PSR:
Eu venerava muito o partido e algumas das figuras do PC, mas ao mesmo tempo no gostava da conciliao de interesses que levava o partido a ter uma face para o movimento operrio e outra face para a burguesia. A organizao em que militei era filiada IV Internacional, tinha uma pequena base operria e uma colaborao de intelectuais...O grupo era relativamente pequeno, caberia na categoria de grupsculos, segundo os franceses, sem diminuir a importncia. Mas tinha operrios, no muitos, tinha pessoas empenhadas nos problemas da mulher, nos problemas da pobreza e no combate comum ao Estado Novo...Os meus colegas trotskistas no compartilhavam do sacrifcio que exigia o meu trabalho na universidade, por causa at da atividade partidria. Eu sempre dava uma contribuio menor do que a que eles esperavam. Fiquei na organizao at mais ou menos 1952. Tinha entrado em 1942. 532
No obstante o fato de no ter se dedicado exclusivamente militncia partidria, Florestan participou intensamente das atividades da organizao. Segundo Laurez Cerqueira, Florestan cedeu sua residncia para reunies do PSR e, num dos cmodos dela, instalou um mimegrafo no qual eram rodados textos do partido. O jovem intelectual foi tambm um dos redatores do Anteprojeto Tcnico Eleitoral, documento poltico-programtico apresentado em 1945 pela Coligao Democrtica Radical, entidade (como foi visto pouco acima) impulsionada pelos trotskistas com vistas a aglutinar o conjunto da esquerda nas eleies presidenciais e parlamentares Constituinte que se avizinhava. 533 Em 1946, foi publicada pela Flama a Contribuio crtica da economia poltica, de Marx, 534 traduzida por Florestan a pedido de Sacchetta, ento frente da casa editorial. A edio que trouxe uma introduo de sua autoria bastante elogiada pelos intelectuais da poca. 535
A partir de 1945, Florestan Fernandes passou a lecionar na Faculdade de Filosofia. Aps um perodo em que, com muito sacrifcio, conciliou as atividades de militante e acadmico, Florestan, por volta de 1952, quando conclua sua tese de doutoramento, 536
finalmente optou pela carreira universitria. Nessa difcil escolha, o j destacado intelectual obteve o apoio de seu prprio dirigente partidrio, Hermnio Sacchetta:
Com a filiao ao PSR, a seo brasileira da IV Internacional, minha militncia se tornou sistemtica [...] eu me mantive [no partido] at o incio dos anos 50. A os prprios companheiros acharam que no seria conveniente que eu desperdiasse o tempo em um movimento de pequeno alcance, quando podia me dedicar a trabalhos de maior envergadura na universidade. O Sacchetta, que era um homem esclarecido, me aconselhou: melhor voc se afastar da organizao e se dedicar universidade, que vai ser mais importante para ns. 537
532 LEITE, Paulo Moreira. Vida e transformao, as convivas do Florestan. Jornal da Tarde. So Paulo, 19 de agosto de 1995, apud COGGIOLA, O. Florestan Fernandes e o socialismo. Op. cit., p. 14. 533 Cerqueira, Laurez. Op. cit., p. 43. 534 MARX, K. Contribuio crtica da economia poltica. So Paulo: Flama, 1946. 535 Cerqueira, Laurez. Op. cit., p. 45. 536 FERNANDES, Florestan. A funo social da guerra na sociedade tupinamb. 3 edio. So Paulo: Globo, 2006. 537 VENCESLAU, Paulo de Tarso. Florestan Fernandes (entrevista) in Teoria e debate n. 13. So Paulo, fevereiro de 1991, apud COGGIOLA, O. Florestan Fernandes e o socialismo. Op. cit., p. 11. 219
O abandono da militncia partidria, motivado pela necessidade de concentrar-se integralmente no mundo acadmico, provocou em Florestan, segundo o prprio, uma crise de conscincia: 538
Passado o perodo da militncia, defrontei-me com uma acomodao improdutiva: ou ser militante, com o sacrifcio de minhas possibilidades intelectuais, ou ser universitrio, com atividades polticas de fachada, mistificadoras. Uma tormentosa crise foi resolvida com a generosidade dos companheiros polticos, que viam claro a realidade: a esquerda ainda no possua partidos que pudessem aproveitar o intelectual rebelde de forma produtiva para o pensamento poltico revolucionrio. Por sua vez, Antonio Cndido ajudou-me a conviver com feridas e frustraes, que surgiam como um pesadelo e me levaram a sublimar a castrao poltica parcial com uma prtica exigente e (acredito) autopunitiva do significado da responsabilidade intelectual. 539
Ainda que no partidariamente, Florestan Fernandes nunca deixou de fazer poltica, mesmo que, durante um longo tempo, a fizesse apenas por intermdio de seus escritos universitrios. Seria somente cerca de trinta anos depois que Florestan novamente combinaria as duas funes (a de militante e a de acadmico), quando aderiu ao Partido dos Trabalhadores (PT), pelo qual foi eleito deputado federal em 1987, cargo que exerceria por dois mandatos. Nas polmicas travadas dentre a militncia petista, Florestan sempre propugnaria a necessidade do partido se portar como um defensor do fim da propriedade privada dos meios de produo, opondo-se expulso das correntes trotskistas do seu interior. 540 Segundo Coggiola, toda a bagagem poltica adquirida [por Florestan] no PSR voltava tona quando o velho intelectual imergia nos debates programticos de seu novo partido. 541 Talvez seja interessante mencionar ainda que, em 1990, quando do aniversrio de cinqenta anos da morte de Trotsky, Florestan, afastado organicamente dos trotskistas havia quase quatro dcadas, no se furtou a reafirmar, em palestras e trabalhos apresentados em eventos comemorativos data, a inquestionvel validade histrica da teoria da revoluo permanente, assim como o papel poltico fundamental para o movimento operrio desempenhado pelo revolucionrio russo desde 1905 at seu assassinato. 542
Mais frente nesta introduo, apontaremos como a militncia trotskista em sua juventude acabou por deixar marcas indelveis em Florestan, exercendo significativo papel na formao intelectual daquele que seria o principal expoente e orientador da corrente acadmica antidualista e antietapista brasileira.
538 COGGIOLA, O. Florestan Fernandes e o socialismo. Op. cit., p. 10. 539 FERNANDES, Florestan. Que tipo de repblica? So Paulo: Brasiliense, 1987, p. 252, apud COGGIOLA, O. Florestan Fernandes e o socialismo. Op. cit., p. 10. 540 COGGIOLA, O. Florestan Fernandes e o socialismo. Op. cit., p. 24-25. 541 Idem, p. 25. 542 Ver FERNANDES, Florestan. Trotsky e a revoluo in ____. Em busca do socialismo. Op. cit. 220
O POR: uma experincia poltica e terica para futuros acadmicos O III congresso da IV Internacional, realizado em 1951, teve como principal conseqncia uma forte e irreparvel ciso no movimento trotskista mundial. De um lado, ficaram as sees que corroboravam as propostas, vitoriosas no encontro em questo, defendidas pelo grego (que militava na Frana) Michel Raptis, mais conhecido por seu codinome Pablo. Alegando a inevitabilidade de um enfrentamento cada vez mais radicalizado, com possibilidades blicas, entre o imperialismo e os Estados operrios liderados pela Unio Sovitica, Pablo argumentava que tal conjuntura levaria as traidoras burocracias estalinistas a uma radicalizao de suas polticas. Provavelmente impressionado com a influncia de massas de que gozavam muitos partidos comunistas europeus no ps- guerra, Pablo defendeu que os trotskistas deveriam reingressar nas organizaes estalinistas com fito de influenciar suas decises e conduzi-las ao caminho revolucionrio. No caso da inexistncia de partidos comunistas com insero significativa na classe trabalhadora, como em muitos pases da Amrica Latina, a direo pablista, aps um curto perodo em que indicou a construo de partidos revolucionrios independentes, orientou os trotskistas a ingressarem nas fileiras dos partidos e movimentos nacionalistas burgueses ou pequeno- burgueses que tivessem audincia massiva entre o proletariado. Tal ttica poltica formulada por Pablo receberia a denominao de entrismo sui generis. 543
Contando com a adeso ps-congresso do economista belga e prestigiado dirigente poltico Ernest Mandel, a ala da IV Internacional que reunia as sees nacionais (ou partes destas) adeptas da nova ttica passou a ser conhecida como Secretariado Internacional (SI). Do outro lado, organizou-se o Comit Internacional (CI), composto pelos partidos e grupos trotskistas que se recusavam a implementar a poltica entrista, considerando-a um retrocesso em relao prpria fundao da IV Internacional. Majoritrio entre a militncia que reivindicava o trotskismo, o CI tinha como principais expoentes o norte-americano SWP, o Partido Obrero Revolucionario (POR) da Argentina (liderado por Nahuel Moreno, codinome de Hugo Bressano) e a maioria da antiga seo francesa (que, por se negar a cumprir as ordens pablistas de iniciar, em 1952, o entrismo no Partido Comunista Francs, acabou expulsa pelo SI), que tinha frente Pierre Lambert. 544
Alinhado com as diretrizes do SI, teve origem em 1952 o Bureau Latino-Americano da IV Internacional (BLA), dirigido pelo dirigente argentino J. Posadas (codinome de Homero
543 A adio da expresso latina sui generis ao termo entrismo deveu-se ao fato de que, na dcada de 1930, como j expusemos, Trotsky havia defendido a ttica entrista para os revolucionrios em pases como Frana, Espanha e Estados Unidos. 544 Naturalmente, oferecemos acima uma descrio bastante resumida do grande racha sofrido pela IV Internacional aps seu III Congresso. Para um conhecimento mais detalhado das inmeras cises e crises vividas pelo trotskismo mundial, ver, entre outras obras, PETIT, Mercedes. Op. cit. 221
Cristali). 545 Foi como delegado do BLA que o tambm argentino Guillermo Almeyra chegou a So Paulo com o objetivo de estabelecer contatos com os trotskistas brasileiros, liderar um grupo e editar um jornal. Hospedado na casa dos pais do ento jovem estudante Lencio Martins Rodrigues, Almeyra arregimentou ex-militantes do PSR (como Milton Camargo, Antnio Pinto de Freitas e o prprio Lencio Martins Rodrigues) e alguns jovens membros do PSB (como Sebastio Simes de Lima), constituindo assim um pequeno ncleo trotskista, alinhado ao BLA. Desse modo, dando seqncia saga do movimento trotskista no Brasil, foi criado, ainda em 1952, o Partido Operrio Revolucionrio, que passou a expor suas posies por intermdio do peridico Frente Operria. 546
Durante dois anos, o POR atuou com a perspectiva de, a partir da animao de uma frente nica operria, dotada de um programa antiimperialista e anticapitalista, construir um partido marxista e revolucionrio no pas. Entretanto, em fins de 1954, aps a volta de Lencio e Almeyra do IV Congresso da IV Internacional realizado na Frana, o POR, seguindo as novas diretrizes deste ltimo para o Brasil, enveredou pelo caminho do entrismo no PCB. Para essa difcil e clandestina tarefa, 547 foram destacados, entre outros militantes, o prprio Lencio e o ento estudante de Direito e Filosofia Ruy Fausto. 548 Ruy, assim como seu irmo, o futuro historiador Boris Fausto, haviam adentrado as fileiras do POR pouco tempo aps o surgimento do partido. Leal destaca que, poca, o partido agitava nos meios universitrios o Crculo Karl Marx, um centro de estudos e discusses sobre o marxismo por meio do qual os trotskistas estabeleciam contatos com estudantes e intelectuais de esquerda. Do Crculo participavam, alm de Ruy Fausto e demais ativistas de perfil intelectual do POR, nomes como Paul Singer e Emir Sader. A ttica entrista no PCB, que se mostraria, em termos gerais, um enorme fracasso, rendeu ao POR, contudo, a captao de alguns quadros pecebistas, entre eles o importante dirigente operrio e ex-deputado federal constituinte Jos Maria Crispim que, expulso em fevereiro de 1952 do partido de Prestes, aderiu, em carta aberta de setembro de 1955, IV Internacional. Em 1957, sem muito sucesso, o POR buscou atrair Agildo Barata e seu grupo, que haviam rompido com o PCB mas que acabou aderindo, entretanto, a posies de cunho
545 Ligado ao CI, Nahuel Moreno, por sua vez, animou o Secretariado Latino-Americano do Trotskismo Ortodoxo (SLATO), que disputou com o BLA de Posadas a representao do legado poltico de Trotsky em nosso continente. 546 As informaes acerca da trajetria do POR foram extradas de LEAL, M. esquerda da esquerda... Op. cit. e ____. Idias polticas e organizao partidria do POR (1952-1964) in Cadernos AEL: trotskismo (v. 12, n. 22/23). Campinas: Unicamp/IFCH/AEL, 2005, p. 127-159. 547 Vale destacar que o artigo 13 dos estatutos do PCB proibia seus militantes de manter relaes pessoais, familiares ou polticas com os trotskistas. 548 Ruy Fausto foi militar na Juventude Comunista (JC), e tornou-se membro do Comit de Zona Universitria (CZU) do PCB. Lencio Martins Rodrigues, por sua vez, dedicou-se ao trabalho entre os jovens comunistas que atuavam na Unio Paulista dos Estudantes Secundaristas (UPES). 222
nacionalista. 549 Em 1962, o POR deslocou dois de seus militantes, Doroty Massola e Fbio Munhoz, para realizar o entrismo no recm-fundado Partido Comunista do Brasil (PC do B), de linha maosta. Com os dois trotskistas rapidamente descobertos e expulsos, a nova investida fracassou fragorosamente. Em 1963, o POR abandonaria por completo a militncia entre os pecebistas, e a prtica entrista passaria a ter lugar, especialmente aps o Golpe de 1964, nas fileiras nacionalistas sob comando de Leonel Brizola, um dos principais inimigos da ditadura militar. Segundo o excntrico Posadas, tratava-se, ento, de um entrismo modificado, que ele, de um modo altamente pleonstico, denominou como um entrismo interior. 550 Naquele momento, o POR j no se encontrava mais vinculado ao SI, pois em 1962 o BLA havia acompanhado sua liderana maior no intento de formar uma IV Internacional Posadista. 551
Em 1953, o POR envolveu-se na campanha de Jnio Quadros Prefeitura de So Paulo. Segundo depoimentos de ex-militantes do partido, 552 Jnio, no final do ano anterior, havia participado de uma reunio com cinco militantes do POR (entre eles, Lencio Martins Rodrigues e os irmos Fausto), quando assinara um documento em que se comprometia, caso vencesse o pleito, a efetivar determinadas propostas polticas que lhe foram apresentadas pelos trotskistas. Aps seu sucesso nas urnas, Jnio (como era de se esperar) no s nada implementaria das tais propostas, como ainda diria aos trotskistas que no se lembrara de ter assinado documento algum. 553
Nas eleies para a Presidncia da Repblica de 1955, em um manifesto intitulado Os trotskistas rejeitam as quatro candidaturas, o POR afirmou que poucas diferenas existiam entre os candidatos Juscelino Kubitschek, Juarez Tvora, Adhemar de Barros e Plnio Salgado, defendendo assim o voto em branco como um forma de protesto contra a legislao eleitoral que no permitia candidaturas independentes. Ferozmente, os trotskistas condenaram o apoio do PCB a JK, considerando tal postura uma capitulao vergonhosa diante do inimigo de classe. 554 Igualmente, no pleito de 1960, o partido atacou os trs concorrentes cadeira presidencial (Henrique Teixeira Lott, Adhemar de Barros e Jnio Quadros) e defendeu o lanamento de uma candidatura operria que nascesse do movimento e das lutas dos trabalhadores; esta candidatura, segundo o POR, deveria basear-se em um programa poltico
549 Nesse mesmo perodo, Lencio Martins Rodrigues, fundador do POR, afastou-se da organizao e passou a dedicar-se carreira acadmica. 550 LEAL, M. esquerda da esquerda...Op. cit., p. 141-148. 551 Cada vez mais delirante, Posadas, depois de ter pregado a inevitabilidade de uma guerra nuclear mundial que abriria caminho ao socialismo, passou, a partir de fins dos anos 60, a flertar com teorias esotricas, como a ufologia (o socialismo deveria ser interplanetrio!), a comunicao com golfinhos, o parto aqutico de seres humanos, Nova Era etc. 552 Recolhidos por Murilo Leal, e contidos em LEAL, M. esquerda da esquerda...Op. cit. 553 LEAL, M. esquerda da esquerda...Op. cit, p. 56-60. 554 POR. Os trotskistas rejeitam as quatro candidaturas in Frente Operria, n. 17. So Paulo, setembro de 1955, apud LEAL, M. Idias polticas.... Op. cit., p. 134. 223
no qual constasse, entre outras consignas, a escala mvel de salrios, a jornada mvel de horas de trabalho, a estabilidade no emprego, a estatizao das fbricas paradas, nacionalizao dos bancos, o monoplio estatal do comrcio exterior, o controle operrio sobre a Previdncia Social, a reforma agrria, a ampliao das relaes diplomticas do pas, o direito de greve e a organizao independente dos trabalhadores em face do Estado. Quando da renncia de Jnio, em 25 de agosto de 1961, o POR acreditou que se abria no pas uma situao pr-revolucionria e passou a defender, entre outras bandeiras, a convocao de uma Assemblia Nacional Constituinte. No contexto da crise da legalidade, o jovem militante do partido Tullo Vigevani, estudante de engenharia na Escola Politcnica da USP, foi preso pichando nos muros palavras de ordem contra o golpe (iniciado pelos trs ministros militares do governo renunciante, o general Odlio Denys, o brigadeiro Grn Moss e o almirante Slvio Heck) que buscava impedir a posse do vice-presidente Joo Goulart. J no final de 1963, o POR comeou a identificar a situao nacional como revolucionria 555
Entretanto, tal concepo no impediria os trotskistas de subestimar a contra-revoluo (que, segundo Trotsky, sempre se faz presente em qualquer situao na qual a questo do poder est colocada para a classe operria) e avaliar que o golpe perpetrado em 1964 pela burguesia e o imperialismo no havia provocado seno um revs circunstancial no processo revolucionrio. 556
Impressionados com a audincia do movimento nacionalista entre as massas, no qual depositavam uma esperana de radicalizao, os trotskistas propuseram que os brizolistas se diferenciassem, no interior da Frente de Mobilizao Popular (FMP) uma entidade de frente nica que aglomerava os setores mais expressivos da esquerda , das linhas polticas consideradas (no sem razo) moderadas, representadas por lideranas como Arraes, Almino Alfonso e Prestes (PCB). Aps a derrubada de Jango, o partido participou da Frente Popular de Libertao, criada no Uruguai, e assumiu, no Brasil, a divulgao do jornal nacionalista O panfleto. 557
Na dcada de 1950, o POR, muito pequeno e concentrado no Estado de So Paulo, desenvolveu atividades no Sindicato dos Trabalhadores em Carris Urbanos, no Sindicato dos empregados em Hotis e Similares de So Paulo, no Sindicato dos Trabalhadores nas Indstrias da Construo Civil e Mobilirio de Campinas. Os trotskistas atuaram, tambm, nesse perodo, na metalrgica Sofunge e entre os trabalhadores dos frigorficos Armour e Wilson. 558
555 LEAL, M. esquerda da esquerda...Op. cit, p. 159-188. 556 Idem, p. 189-195. 557 Idem, p. 194. 558 Idem, p. 59 224
Nos anos 60, o partido logrou construir um ncleo no Rio Grande do Sul, a partir da militncia no meio estudantil exercida por Paulo Pilla Vares que, como entrista na JC, atraiu para o POR seus companheiros Vito Letizia e Paulo Pereira. No Rio de Janeiro, onde o a organizao consolidava-se nesse perodo, o dirigente Sidney Fix Marques dos Santos coordenou as atividades dos trotskistas entre os estudantes de Niteri e So Gonalo, os trabalhadores dos estaleiros e os da regio canavieira de Campos, assim como entre os funcionrios da Companhia Brasileira de Energia Eltrica. Por intermdio da FMP e do 2 sargento do Regimento da Escola de Infantaria da Vila Militar da Guanabara, Wilson Mendona Maia, o POR atuou tambm entre as praas das Foras Armadas, em uma conjuntura na qual a organizao poltica dos sargentos e marinheiros ameaava significativamente a solidez do Estado burgus. 559
Aos militares da base das Foras Armadas, alis, o POR dedicou uma ateno especial. Em Recife, os trotskistas realizaram um trabalho envolvendo aproximadamente 25 sargentos da Base Area, por intermdio do 3 sargento da Fora Area Brasileira (FAB) Jair Borin, militante do POR e componente da chapa que, em fevereiro de 1963, venceu as eleies para o Clube de Oficiais e Sargentos da Aeronutica. 560 Em So Paulo, os contatos tambm foram estabelecidos com militares da Aeronutica por meio dos sargentos Jos Barreto de Souza, Jos Francisco de Almeida e Joo Ferreira da Silva. No comeo de 1963, o POR ganhou a adeso do 3 sargento do Exrcito Ovdio Ferreira Dias, da Diviso Regional de Moto Mecanizados da 2 Regio Militar (DRMM/2), sediada em Osasco. Como presidente da Caixa Beneficente dos Oficiais e Sargentos da DRMM/2, Ovdio estruturou uma clula partidria com cerca de 30 militares. 561
Vale destacar, tambm, o trabalho realizado pelo POR, a partir de 1962, junto ao movimento campons que se radicalizava no Nordeste. Para o municpio de Tamb, fronteira de Pernambuco com a Paraba, foi enviado o jovem grfico Paulo Roberto Pinto, que l ficaria conhecido por Jeremias. Recebendo pouco tempo depois a companhia de outros dois militantes do POR, Fbio Munhoz e o Pedro Makovsky Clemachuk, Jeremias obteve, conjuntamente com o sindicalista Joel Cmara, o controle de fato do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Tamb (oficialmente dirigido por um pelego que atendia por Capito) e desenvolveu intensas lutas a partir das propostas de ocupaes de terras, da organizao de milcias dos trabalhadores rurais, da formao de conselhos de camponeses por engenhos, usinas e municpios, alm da defesa da estratgica aliana operrio-
559 Idem, p. 214-228. 560 Em 22 de novembro de 1964, quando j havia sido expulso das Foras Armadas, Borin, que dava seqncia sua militncia em uma clula universitria (pois tambm era estudante de sociologia), acabaria finalmente preso. (Idem, p. 256). 561 Idem, p. 255-264. 225
camponesa. Jeremias, contudo, acabaria morto quando liderava um grupo de 500 trabalhadores em greve pelo pagamento do 13 salrio atrasado no Engenho Oriente. 562 O POR conseguiria ainda a incorporao s suas fileiras de alguns militantes que haviam passado pelo Movimento Revolucionrio Tiradentes (MRT), vinculado s Ligas Camponesas de Francisco Julio. 563
No que tange ao mbito mais propriamente terico da histria desta terceira gerao do trotskismo no Brasil, faz-se necessrio assinalarmos que, desde sua fundao at meados da dcada de 1960, o POR realizou sugestivas anlises sobre o fenmeno do nacionalismo- burgus latino-americano, apontando vrias caractersticas de sua manifestao brasileira que, como observaremos, reapareceriam posteriormente nos trabalhos de autores como Ianni, Weffort, Dcio Saes e Armando Boito Jr. sobre o perodo populista da histria nacional. O Golpe de 1964 abalaria profundamente o POR, assim como as demais organizaes de esquerda que vinham atuando sob o governo de Goulart. Enquanto elementos que levariam desagregao do partido trotskista, somaram-se mudana de regime no pas as fortes diferenas polticas presentes no seu interior. Em 1966, na V Conferncia Nacional do partido, um grupo de militantes apresentou um documento no qual criticava o excesso de centralismo implantado por Posadas na organizao brasileira. 564 O plenrio da Conferncia, entretanto, no s repudiou o documento como determinou a imediata dissoluo da frao que o havia elaborado, composta por Antonio Carlos Leal de Campos, Jos Leo de Carvalho, Gilvan Rocha, Fbio Munhoz e Maria Hermnia Tavares de Almeida (que havia ingressado no POR em 1963), alm do afastamento desses militantes dos cargos de direo que ocupavam na estrutura partidria. Pouco tempo depois, os autores do polmico documento abandonariam o POR. Em 1968, alguns militantes do Rio Grande do Sul foram excludos do partido e deram origem Frao Bolchevique da Seo Brasileira da IV Internacional. Rapidamente, o novo agrupamento recebeu adeptos do POR provenientes do Cear, Pernambuco e do prprio Rio Grande do Sul. Embora bastante enfraquecido, o POR continuaria suas atividades sob a ditadura militar (1964-1985), assim como nos anos democrticos posteriores. Atualmente, os trotskistas de linha posadista, com uma insignificante insero entre a classe trabalhadora brasileira, encontram-se (ainda!) dentro do PT e editam o peridico Revoluo Socialista.
562 Idem, p. 228-254. Segundo o texto apcrifo contido na quarta capa do livro de Leal, o personagem Levindo, do romance Quarup, de Antonio Callado (2 edio. Rio de Janeiro: Civilizao brasileira, 1967), teria sido inspirado na vida (e morte) de Jeremias. 563 Idem, p. 235-254. 564 Desde 1962, quando rompeu com o SI e criou sua prpria organizao internacional, Posadas passou a defender o monolitismo como forma de funcionamento interno das sees de sua internacional (a IV Internacional Posadista). Segundo Posadas, sob o monolitismo, o centralismo democrtico deveria operar numa proporo de 90% de centralismo e de 10% de democracia. 226
Da interessante trajetria do Partido Operrio Revolucionrio, o mais pertinente a ser destacado neste trabalho o contato proporcionado pela pequena organizao entre futuros acadmicos ilustres e as idias do revolucionrio Len Trotsky. Nas pginas precedentes, podemos notar, de passagem, como dois destacados estudiosos do movimento sindical brasileiro, Lencio Martins Rodrigues e Maria Hermnia Tavares de Almeida, compuseram, durante determinado perodo, as fileiras do POR. Mencionamos tambm, neste brevssimo histrico da organizao trotskista, o fato de que os irmos Boris e Ruy Fausto nela militaram praticamente desde sua fundao. Em um depoimento dos anos 90, Boris, que se afastou do POR em fins de 1962, relembraria sua experincia como membro da IV Internacional:
Eu comecei a militar no trotskismo por volta de 52 [...] Havia qualquer coisa de errado, para mim, no PC. Havia uma certa dureza o trotskismo tambm tinha mas que eu identificava muito com os comunistas e havia tambm o culto personalidade do Prestes, que era uma coisa que eu no vivi a posteriori, porque hoje um mrito indiscutido, no ? Mas na poca era uma coisa que incomodava profundamente. Ento eu entrei para o trotskismo muito pela via intelectual. Eu comecei a ler coisas, a me interessar pelas coisas de esquerda em geral e dei, quase que autodidaticamente, com os livros de Trotsky em sebos e coisas assim, e comecei a me encantar com as coisas dele e a dizer: No, isso aqui eu entendo, isso aqui uma crtica da Unio Sovitica. Eu me preocupava muito com a coisa da Unio Sovitica, ao mesmo tempo em que aderia Unio Sovitica dizia: Mas a h coisas erradas, h coisas que no funcionam. Ento, a crtica trotskista, especificamente do Trotsky, da Unio Sovitica me impressionou demais [...] 565
Por mais que eu discorde do que a gente pensava naquela poca, eu acho que isso foi uma coisa importante, para ns, como grupo, como pessoas. Eu acho que, no sei o que cada um pensa disso, eu acho que ganhei com a elaborao poltica, no sentido de que a gente discutia muito. A vida das reunies era muito intensa [...] eram longussimas discusses. Sobre textos, sobre ideologia, sobre rumos a tomar e isso eu acho que nos deu um treino, um exerccio, de falar etc., e como ns ramos um grupo, a no ser quando estavam aqui os argentinos [os delegados do BLA], como ns ramos um grupo cujos caciques eram fracos, isso tinha uma liberdade, vamos dizer assim, que eu nunca vi no PC. Quando a gente conversava com o pessoal do PC eu tinha a sensao de que ns percebamos as coisas e no s isso, que ns tnhamos liberdade de pensar e que eles eram teleguiados [...] eu acho que isso [a experincia no POR] foi um ganho. No um ganho poltico geral: um ganho para ns como formao pessoal. 566
Pensamos que no consiste em empresa muito difcil estabelecer uma relao entre a militncia trotskista de Boris Fausto e certos aspectos de parte de sua ulterior produo cientfica, em especial no que diz respeito a sua tica da Revoluo de 1930, como ilustraremos no captulo a seguir. Assim, antecipamos que o contato do futuro historiador, por intermdio do POR, com a teoria da revoluo permanente e a lei do desenvolvimento desigual e combinado constituiu-se em um importante ingrediente para o preparo de sua interpretao acerca da Revoluo de 1930 o que, consequentemente, nos permite afirmar que sua oposio historiogrfica lgica dualista e etapista no pode ser vista como um fenmeno eminentemente acadmico, oriundo de divergncias epistemolgicas de gabinete.
565 Depoimento de Boris Fausto a Murilo Leal, 3 de janeiro de 1996, p.1. Acervo CEMAP, CEDEM/UNESP, So Paulo. 566 Idem, p. 13-14. 227
Profundo estudioso do POR, Murilo Leal chamou a ateno para a relao entre a pequena organizao trotskista e nomes expressivos da intelectualidade acadmica brasileira:
Algumas das perguntas, das categorias e das problemticas propostas pelo POR em suas tentativas de interpretao da sociedade brasileira foram reelaboradas, mas esto presentes como matrizes em obras to relevantes como A revoluo de 1930, de Boris Fausto, ou no trabalho Sindicalismo e classe operria (1930-1964), em que Lencio Martins Rodrigues emprega o conceito de bonapartismo. Certamente o trotskismo entrou como componente dos fundamentos do interesse de Ruy Fausto pelo marxismo. Contribuiu, tambm, para formar o interesse de Lencio Martins Rodrigues, Maria Hermnia Tavares de Almeida, Tullo Vigevani e Cludio Cavalcanti pelo papel dos sindicatos na sociedade brasileira e suas interrogaes sobre os significados da Era Vargas. O POR representou nos anos 50, portanto, uma das matrizes de um pensamento de contra-hegemonia face ao nacional- desenvolvimentismo e ao estalinismo. 567
Corroborando a perspectiva de Leal acerca do vnculo existente entre a organizao trotskista e determinada produo acadmica brasileira dos anos 60 e 70, consideramos ainda que a lista de consagrados intelectuais universitrios que, no pr-1964, tiveram no POR um interlocutor poltico pode ser um pouco ampliada. O prprio Leal aponta, por exemplo, Fernando Henrique Cardoso e Francisco Weffort, que nos anos 50 integraram a Juventude Comunista (JC), como nomes que estabeleceram contatos com o partido trotskista. 568 Em depoimento a Leal, Ruy Fausto que, como vimos, foi militante orgnico do POR e praticou o entrismo na JC , afirmou que, durante sua experincia, entre 1954 e 1956, junto juventude pecebista, Weffort fora um dos ativistas que desenvolveram afinidade com a linha trotskista: Weffort nunca foi da IV Internacional, ele estava prximo, disse Fausto. 569 O depoente lembrou que, nesse perodo, Weffort era muito ligado ao filho do histrico militante comunista Lencio Basbaum, Hersch Basbaum, ento integrante da JC e que alguns anos mais tarde aderiria ao trotskismo: [Weffort] morava perto da minha casa, numa penso. Eu ia l buscar ele, conversar com ele. Deixava recados: Weffort, telefone para o Hersch. O Hersch tinha telefone, ele no tinha. Imaginar esse sujeito ministro da Cultura engraado. 570 [Weffort] era secundarista nesse tempo, eu era universitrio. 571
Ruy Fausto se recordou, ainda, de que, entre 1963 e 1964 (quando j se encontrava, na prtica, afastado de uma militncia mais orgnica entre os trotskistas), chegara a assistir, acompanhado de Weffort, a algumas reunies do POR. Em uma dessas reunies, realizadas s
567 LEAL, Murilo. Idias polticas.... Op. cit., p. 158. 568 LEAL, M. esquerda da esquerda... Op. cit., p. 40, 90 e 93-95. 569 Depoimento de Ruy Fausto a Murilo Leal. Paris, 2 de junho de 1996, p.5. Acervo CEMAP, CEDEM/UNESP, So Paulo. 570 Quando da vitria eleitoral de Fernando Henrique Cardoso sobre Lus Incio Lula da Silva no pleito presidencial de 1994, Weffort, que havia sido um dos organizadores do candidato petista, aceitou, surpreendentemente, o convite do vitorioso para estar frente do Ministrio da Cultura, ocupando assim o cargo de ministro durante os dois mandatos de FHC (1995-2002). 571 Depoimento de Ruy Fausto a Murilo Leal, p. 11. 228
vsperas do Golpe de 1964, Fausto apresentou um manifesto acerca da situao nacional, redigido conjuntamente com Weffort, no qual atacava tanto os golpistas como o governo Goulart, o que fez com que os presentes considerassem que o manifesto supunha que o golpe viesse a ser desferido por Jango. 572 Em entrevista concedida a ns em 2007, o filsofo uspiano afirmou que alguns militantes do POR tinham relaes pessoais, mas no partidrias, com figuras como Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni nos anos 50 e incio dos 60. Quando perguntado, entretanto, se estes ltimos, assim como Weffort, haviam tido contatos com as idias de Trotsky por intermdio da organizao posadista, Fausto foi peremptrio: Sim, tiveram contato via-POR. 573
Ottaviano De Fiori, que passou pelas fileiras do POR tambm em meados da dcada de 1950, relatou que Weffort era, naquele perodo, uma das eternas esperanas de captao por parte da organizao. Talvez tenha sido imbudo dessa esperana que De Fiori, segundo o prprio, lhe emprestou a obra Revoluo e contra-revoluo na Alemanha, de Trotsky, cobrando-lhe insistentemente a leitura. Weffort, no obstante ter atendido ao pedido do militante do POR, jamais aderiria ao agrupamento trotskista. 574
Recordando-se da militncia de Weffort ao seu lado na JC, o j mencionado Hersch Basbaum, em depoimento a Murilo Leal, posicionou-se acerca da possibilidade de ter havido alguma influncia do trotskismo do POR na formao intelectual do futuro terico do populismo:
Weffort foi membro da Juventude Comunista [...]. Weffort sempre teve um perfil acadmico. Temos a mesma idade, e eu digo isso, Murilo, no para abonar as minhas falhas, mas eu trabalhava para ganhar a vida nessa poca, porra. E eles [Weffort e outros ativistas de perfil intelectual, provavelmente] no, ele estudavam, s. Eles tinham essa vantagem. Ficavam lendo o dia inteiro. E o Weffort sempre foi inteligente, um bom sujeito, inclusive, eu gosto muito dele. E ele era comunista sim. E era muito preparado para absorver as idias da esquerda trotskista naquele momento. At porque o perfil acadmico que ele manifestava naquele momento facilitava ainda mais a curiosidade intelectual de chegar a ler os textos proibidos. E ele fez isso numa boa. E ele provavelmente foi influenciado. Ele ficou muito amigo do Lencio [Martins Rodrigues] por um certo tempo tambm. No sei em que momento eles tiveram a aproximao e a ruptura. Mas foi por a, na dcada de 1950. Ento eu diria que, provavelmente, Weffort foi influenciado pelo trotskismo. A adeso dele ao PT mais tarde pode ser que seja uma decorrncia. No que o PT fosse uma coisa de extrema esquerda, mas [...] ele surgiu como uma crtica ao Partido Comunista [PCB] na prtica. Podia ser, mas no posso te dizer com segurana. Mas provavelmente teve apoio trotskista sim, 575 porque ele tinha essa posio crtica muito forte. Ele saiu do Partido [PCB] muito antes que eu. Muito antes. Eu, em 1958, ainda estava batalhando, e ele j tinha sado e j era professor, eu acho [...]. Ento o Weffort, eu diria, mantinha relaes, sim, com os trotskistas, mas convm ir falar com ele l em Braslia para ver se ele confirma isso (risos). 576
572 Idem, p. 21-22. 573 Entrevista de Ruy Fasto a Felipe Demier. Paris/Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 2007. Entrevista realizada por via eletrnica (email). 574 Depoimento de Ottaviano De Fiori a Murilo Leal. So Paulo, 17 de julho de 1996, p. 17. Acervo CEMAP, CEDEM/UNESP, So Paulo. Talvez no seja escusado lembrar aqui que a obra de Trotsky mencionada acima justamente uma das que contm anlises do revolucionrio sobre a questo do bonapartismo. 575 Acreditamos que se trata da ruptura de Weffort com o PCB. 576 Depoimento de Hersch Basbaum a Murilo Leal. So Paulo, 17 de julho de 1996, p. 13-14. Acervo CEMAP, CEDEM/UNESP, So Paulo. Grifos nossos. No interessante depoimento, Basbaum lembrou, por exemplo, de 229
O revelador depoimento de H. Basbaum faz meno tambm a Fernando Henrique Cardoso. Agrupando-o a Weffort, comentou Basbaum:
Eram pessoas muito cultas, ns admirvamos os dois [...] babvamos de deslumbramento porque j eram figuras que apareciam no meio intelectual, ainda que muito jovens, ento fatalmente tiveram contatos [com os trotskistas] [...] Ento, o Fernando Henrique teve, com certeza, influncia trotskista, com muito mais evidncia at porque ele ficou amigo do Lencio [Martins Rodrigues] muito tempo. E foi quem deu o primeiro empurro para o Lencio fazer carreira acadmica. Eu lembro. Trabalhvamos ambos, Lencio e eu, numa empresa chamada Marplan [de] pesquisa de mercado e eu lembro do Fernando Henrique cantando o Leo para fazer carreira universitria. 577
Alis, o prprio Lencio Martins Rodrigues, fundador e ex-dirigente do POR, nos forneceu recentemente um interessante relato acerca das relaes entre o trotskismo dos anos 50 e renomados acadmicos das dcadas de 1960 e 1970. Se, nas lembranas de Lencio sobre o perodo, a figura de Weffort no aparece de forma muito ntida, o nome de nosso ex- presidente, por sua vez, l se encontra vivamente:
Por razes de amizade, ainda quando membro do POR, tinha relaes com F. H. e Ruth. Essas relaes eram vistas com maus olhos pelos membros do Partido [PCB], cujo artigo 13 dos seus estatutos proibia a relao com trotskistas. Ocorre que Fernando e Ruth tinham sido antes de se casarem e ainda cursando a antiga FFCL [Faculdade de Filosofia Cincias e Letras, um dos alicerces da construo da USP] professores no curso colegial do Colgio Ferno Dias Paes, onde eu estudava. Alguns anos depois, quando eu era funcionrio da Secretaria do Trabalho de SP, voltei a encontrar a Ruth que fora contratada como tcnica de um Servio Estadual de Mo de Obra que fazia parte dessa Secretaria. Com Ianni, quando militante do POR no tive contactos. Com Florestan, sim, porque ele fora simpa do trotskismo. Eu o procurava para vender o jornal Frente Operria. Idem com relao a Lvio Xavier. Com Weffort, que fazia parte da JC, creio que me encontrei uma ou duas vezes, mas no estou certo. Relato um fato curioso: um encontro de F. H. com Posadas, promovido por mim. O encontro ocorreu na casa do Fernando Henrique, com a presena do [ex-militante comunista] Fernando Pedreira, que era muito amigo do F. H. Foi em 1956. F. H. C. e Pedreira tinham rompido com o Partido quando do relatrio Kruschev e da invaso da Hungria e da Polnia pela URSS. Na ocasio, houve a ciso no PCB de um grupo liderado pelo Agildo Barata, do qual F. H. C. e Pedreira fizeram parte. Posadas tinha a esperana de trazer algumas pessoas desse grupo para o trotskismo. Ficara impressionado por um trabalho sobre o estalinismo escrito por Pedreira que chegara a circular em Montevidu. No preciso dizer que houve apenas uma reunio entre eles. 578
seu contato na poca com Paul Singer (que no era trotskista) e sua ento mulher Eveline Singer (que era trotskista). O depoente recordou-se ainda de Maurcio Tragtenberg, a quem definiu como um trotskista muito bacana. (Idem, p. 14.) 577 Idem, p. 14-15. 578 Entrevista de Lencio Martins Rodrigues a Felipe Demier. So Paulo/Rio de Janeiro, 28 de novembro de 2007. Entrevista realizada por via eletrnica (email). Grifos nossos. A curiosa reunio que teve entre seus participantes Posadas e F. H. C. foi mencionada tambm por Murilo Leal (LEAL, M. Op. cit., p. 94-95). Dainis Karepovs aponta como, nos anos 90, a grande imprensa produziu matrias de tom anedtico acerca das falhas de espionagem cometidas pelos servios de informao do Estado brasileiro (KAREPOVS, D. Luta subterrnea. O PCB em 1937-1938. Op. cit., p. 58, nota 7.). Uma destas matrias citadas por Karepovs a intitulada Para Deops paulista, [Fernando Henrique] Cardoso era trotskista, publicada no Jornal do Brasil em 7 de dezembro de 1994. Entretanto, ainda que F. H. C. nunca tenha sido de fato um trotskista, os seus contatos com o POR e com Posadas, maior liderana trotskista latino-americana dos anos 50, no so aspectos totalmente insignificantes a ponto de serem ignorados quando de uma investigao feita por um rgo de espionagem sobre um possvel subversivo. Nesse sentido, mesmo que a concluso do Deops paulista sobre o ex-presidente seja, na essncia, equivocada, talvez o deboche da imprensa nesse caso no se justifique; possivelmente, os 230
Lencio Martins Rodrigues nos contou, tambm, que, quando j se encontrava afastado do POR, 579 realizou uma exposio sobre a teoria da revoluo permanente nos seminrios do chamado Grupo dO Capital. Segundo o expositor, tal atividade teve apenas a finalidade de satisfazer a curiosidade intelectual dos participantes. 580 No custa registrar aqui o j sabido fato de que Ruy Fausto, Weffort, F. H. Cardoso e Octavio Ianni, como tambm Jos Arthur Gianotti, Emir Sader e Michael Lwy, foram alguns dos participantes do mencionado Grupo, que possuiu duas geraes. 581 Nesse sentido, possvel que a despretensiosa exposio de Lencio Martins Rodrigues para seus colegas acerca de um dos pilares do pensamento trotskista tenha tido maiores conseqncias do que as imaginadas pelo seu autor. Nas informaes contidas nas ltimas laudas, acreditamos ser permitido entrever a existncia de vnculos para alm dos que j so, relativamente, bastante conhecidos do pblico interessado entre a terceira gerao do movimento trotskista brasileiro e membros de nossa intelectualidade acadmica antidualista. Todavia, ressalvamos que tais contatos com o trotskismo por parte de autores como Fernando Henrique Cardoso e Francisco Weffort, por exemplo, foram investigados por ns apenas de modo introdutrio, o que torna necessria a realizao de pesquisas de maior profundidade para que concluses mais precisas sejam alcanadas. Por ora, nos limitamos a dizer que, em funo das relaes mantidas entre o POR e estes dois futuros notrios acadmicos, as concepes terico-polticas de matriz trotskista no se constituram em elementos totalmente estranhos s suas formaes intelectuais. Encerramos, assim, este item sobre o POR afirmando de forma breve que, em que pese seu pouco peso poltico conseguido junto ao movimento operrio brasileiro, esse pequeno partido trotskista pode vir a assumir uma importncia significativa enquanto fonte de pesquisa para os eventuais interessados em se debruar sobre as razes de uma importante gerao de intelectuais do pas.
A POLOP: militantes, intelectuais e teoria da dependncia Em fevereiro de 1961, num congresso realizado em Jundia (SP) que conglomerou militantes de grupos como a Juventude Socialista, da Guanabara, a Juventude Trabalhista de Minas Gerais (ligada ao Partido Trabalhista Brasileiro PTB), o Partido Socialista Brasileiro
arapongas do Estado tenham sido nessa ocasio menos incompetentes do que supem nossos jornalistas da grande imprensa. 579 Como j dissemos, Lencio abandonou a organizao por volta de 1957. 580 Entrevista de Lencio Martins Rodrigues a Felipe Demier. 581 LEAL, M. esquerda da esquerda... Op. cit., p. 110 e SILVA, Luiz Fernando da. Op. cit., p. 30. 231
(PSB) e a Liga Socialista Independente (LSI), 582 foi fundada a Organizao Revolucionria Marxista (ORM), que se tornou conhecida pelo nome de seu peridico (primeiramente, jornal e, depois, revista) Poltica Operria (POLOP). 583 Contendo em suas fileiras militantes como Theotnio dos Santos, Ruy Mauro Marini, Luiz Alberto Moniz Bandeira e os irmos Emir e Eder Sader, a POLOP no era uma organizao propriamente trotskista, mas tinha no revolucionrio russo (assim como em Bukharin, Rosa Luxemburgo e nos dirigentes do Partido Comunista da Alemanha nos anos 20, Brandler e Talheimer, pouco conhecidos no Brasil) uma de suas principais referncias tericas. Era, de todo modo, uma organizao de tipo centrista, prxima ao trotskismo (ou, se quisermos, uma organizao de perfil trotskizante). 584
Nos buliosos primeiros anos da dcada de 1960, POLOP se diferenciava da maioria das organizaes de esquerda pela sua defesa intransigente do carter socialista da revoluo brasileira. Rejeitando, por conseqncia, a colaborao de classes proposta pelo PCB (e demais adeptos da estratgia da revoluo democrtico-burguesa ou de suas variantes), a POLOP apresentou ao agitado movimento de massas do perodo a frmula de uma Frente dos Trabalhadores da Cidade e do Campo. Reivindicando, sob o governo Goulart, eixos programticos como a reforma do ensino, o controle estatal dos lucros do grande capital, a organizao dos camponeses e a aliana com a esquerda revolucionria da Amrica Latina, a pequena organizao de quadros, composta basicamente de intelectuais, estudantes e subalternos das Foras Armadas, gozou de pouqussima interlocuo com o operariado. O trabalho poltico da POLOP junto a esse setor, considerado por ela como o principal sujeito revolucionrio, restringiu-se, at 1964, a algumas bases em Minas Gerais e So Paulo (em especial na regio do ABC), alm dos contatos com as cpulas dirigentes. No movimento sindical, estimulou a construo de comits de empresa e a militncia nas organizaes de base, paralelas estrutura sindical corporativista, sem, contudo, abandonar a participao nos sindicatos oficiais. No movimento estudantil, chegou a ser majoritria em alguns diretrios acadmicos e a possuir um assento na diretoria da Unio Nacional dos Estudantes (UNE), entidade que, especialmente aps o golpe militar, era hegemonizada pela Ao Popular (AP). J entre os subalternos das Foras Armadas, em especial os do Exrcito, a POLOP obteve um relativo xito, recrutando entre estes muitos de seus militantes cerca de 20% dos
582 Como j dissemos, uma organizao de inspirao luxemburguista fundada por H. Sacchetta aps sua ruptura poltica com o trotskismo, e que tinha entre seus militantes Michael Lwy e os irmos Emir e Eder Sader. 583 As informaes sobre a POLOP foram extradas de MATTOS, Marcelo Badar. Em busca da revoluo socialista: a trajetria da POLOP (1961-1967) in REIS FILHO, Daniel Aaro e RIDENTI, Marcelo (orgs.) Op.cit., p. 185-212. 584 Ver, no Captulo II, nota de rodap sobre o centrismo poltico. 232
componentes da organizao tinham origem castrense. Nas resolues de seu II Congresso, realizado em 1963, constava a bandeira do apoio luta dos sargentos pela elegibilidade, assim como a defesa do direito de voto para as praas de pr (como tambm para os analfabetos). Tal xito talvez se explique em parte pela aproximao feita pelos polopistas com Leonel Brizola, principal referncia de esquerda entre as baixas patentes das Foras Armadas. A POLOP, enxergando o golpe como iminente, 585 participou da construo dos chamados grupos dos onze, animados por Brizola, que tinham por finalidade combater militarmente a ofensiva contra-revolucionria. Tambm ao lado de Brizola, assim como do Movimento Nacionalista Revolucionrio (MNR) e de outras organizaes, militantes da POLOP envolveram-se, no exlio uruguaio do ps-Golpe, na elaborao de um plano de implementao de focos guerrilheiros no Brasil, iniciado com a Guerrilha do Capara. 586
Desde seu incio, a POLOP se props a ser um plo aglutinador da vanguarda brasileira, visando construo de um partido revolucionrio no pas. Entretanto, uma anlise nos materiais da organizao (documentos, cartilhas, resolues congressuais etc.), como a realizada por Mattos, demonstra que, com o passar do tempo, em especial no perodo ps- 1964, a idia de um partido revolucionrio a ser construdo no Brasil passou a se confundir com a concepo de que a prpria POLOP j seria, ela mesma, esse partido. 587
Ainda que desde sua formao tenha divulgado os feitos da Revoluo Cubana (1959), a POLOP no aderiria logo de incio perspectiva guerrilheirista, mantendo-se adepta da insurreio dos grandes centros fabris como caminho para a conquista do poder pelos trabalhadores. Contudo, provavelmente em funo das dificuldades cada vez maiores impostas ao trabalho junto ao movimento de massas a partir do golpe, a organizao passou a tratar o foco guerrilheiro como um elemento ttico que poderia preparar o terreno para o futuro levante do proletariado, compreenso poltica que a diferenciava tanto dos crticos da luta armada (PCB) quanto dos agrupamentos que tomavam a guerra de guerrilhas como substitutiva da mobilizao operria e popular (Ao Libertadora Nacional, Movimento Revolucionrio 8 de Outubro etc.). 588
As diferenas polticas acerca da ttica guerrilheira no interior da POLOP provocaram um expressivo racha em seu IV Congresso, realizado em 1967, fazendo com que
585 Segundo Marcelo Badar Mattos, a POLOP foi uma das organizaes que mais claramente avaliaram a iminncia de um golpe de Estado, na conjuntura dos meses finais do governo Goulart (MATTOS, Marcelo Badar. Em busca da revoluo socialista... Op.cit., p. 205.). 586 O foco guerrilheiro criado em 1966 na regio do Capara, divisa dos estados de Minas Gerais (MG) e Esprito Santo (ES), foi organizado pelo MNR (que obteve apoio financeiro de Cuba para tal empreitada) e teve entre seus integrantes militares expulsos das Foras Armadas depois do Golpe de 1964. Em 1967, a Guerrilha do Capara seria facilmente desbaratada pela represso estatal. 587 MATTOS, Marcelo Badar. Em busca da revoluo socialista.... Op. cit., p. 198-201. 588 Quanto a isso, ver, entre outros trabalhos, GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas; a esquerda brasileira: das iluses perdidas luta armada. Op. cit.; RIDENTI, Marcelo. Op. cit. 233
mais da metade dos componentes da organizao debandasse. Os que restaram se juntaram Dissidncia Leninista do Rio Grande do Sul (oriunda do PCB) que tinha entre seus quadros Flvio Koutzii e Marco Aurlio Garcia , formando assim o Partido Operrio Comunista (POC). Em 1970, um racha do POC daria origem Organizao de Combate Marxista- Leninista Poltica Operria (OCML PO) que, apesar da proximidade semntica com a antiga sigla POLOP, no poderia guardar seno alguns paralelos com a POLOP original. 589
J alguns membros que haviam participado do racha de 1967 (como Juarez Guimares de Brito, Maria do Carmo Brito e Carlos Alberto de Freitas, que atuavam em Minas Gerais), aps ganharem a adeso de ativistas da Guanabara e do Rio Grande do Sul, aproximaram-se de militantes de origem militar e constituram uma organizao que em 1968 assumiria o nome de Comando de Libertao Nacional (COLINA). Em So Paulo, alguns dos militantes que haviam permanecido na organizao aps a crise interna, estabeleceram relaes com ativistas ligados ao ex-sargento Onofre Pinto e fundaram a Vanguarda Popular Revolucionria (VPR). Em julho de 1969, a COLINA e a VPR se fundiram dando origem Vanguarda Armada Revolucionria Palmares (VAR Palmares). Portanto, pode-se dizer que, a partir da fragmentao de 1967, a POLOP deixou de existir. Apesar de seus principais esforos terem estado voltados para a conquista da direo do movimento dos trabalhadores brasileiros, a POLOP acabaria por se tornar conhecida, tanto na poca de sua existncia, quanto posteriormente, pelas interessantes e argutas interpretaes acerca do capitalismo brasileiro, nas quais se afirmava peremptoriamente a sua natureza dependente, assim como o carter irremediavelmente contra-revolucionrio do conjunto das classes dominantes nativas. Como poder ser visto a seguir, relevantes aspectos destas interpretaes mostrar-se-iam presentes em reflexes posteriores da esquerda, em especial nas produzidas pela intelectualidade antietapista e antidualista, em grande parte j alocada, a partir de meados da dcada de 1960, no espao universitrio. Marcelo Badar Mattos destacou, por exemplo, como no Programa socialista para o Brasil, documento poltico da organizao elaborado em 1967, encontram-se diversos elementos que se repetiro em textos produzidos por mais de uma dcada de anlises preocupadas com as explicaes do porqu da ditadura militar: 590
Entre esses elementos, destaca-se a idia da inexistncia de contradies fundamentais entre a burguesia brasileira, de um lado, e o latifndio e o imperialismo, de outro, como defendiam as anlises colocadas nas propostas do PCB. Assim, naquele documento, caracteriza-se que o capitalismo industrial no Brasil surgiu vinculado acumulao feita no latifndio exportador e nunca se desprendeu disso completamente [...].
589 MATTOS, Marcelo Badar. Em busca da revoluo socialista.... Op. cit., p. 186. 590 Idem, p. 206. 234
Da que termos que ali apareciam [no documento] de forma difusa ganhassem contornos conceituais em anlises posteriores, como era o caso da idia de um desenvolvimento tardio do sistema capitalista brasileiro, ou da avaliao de que as altas taxas de explorao da fora de trabalho no campo serviram de fonte de acumulao para o capitalismo industrial, que, por outro lado, passava a se ver limitado pelas dimenses diminutas do mercado interno e as baixas taxas de produtividade agrcola. 591
Pensamos no ser difcil observar as semelhanas existentes entre as concepes polopistas e as das organizaes trotskistas descritas anteriormente, sobretudo no que concerne interpretao do capitalismo brasileiro. Decerto, isto se explica pela ntida influncia terica que Trotsky exerceu no s nas suas sees brasileiras, mas tambm nas organizaes de cunho mais propriamente centrista, como acreditamos ser o caso da trotskizante POLOP. 592 Acerca dessa proximidade entre as elaboraes provenientes das organizaes de esquerda (em especial as da POLOP) e aquelas que seriam produzidas nos ambientes universitrios, afirmou Mattos:
Nas suas mltiplas interpretaes, a idia de um desenvolvimento capitalista dependente em que latifndio e indstria surgiam imbricados e a burguesia havia optado pela associao com os monoplios imperialistas embalou as crticas ao reformismo pecebista e s teses dualistas sobre o subdesenvolvimento brasileiro, nos textos programticos de muitos dos agrupamentos de esquerda surgidos entre fins dos anos 60 e incio da dcada de 1970, bem como nas diversas anlises acadmicas sobre o tema do populismo no Brasil, o golpe de 1964 e as polticas econmicas anteriores e posteriores instalao da ditadura. Assim, se a POLOP no resistiu, como organizao, aos debates radicalizados da agitada conjuntura posterior ao golpe de 1964, muitos dos elementos centrais de suas anlises e propostas persistiram, influenciando os debates posteriores. 593
Os vnculos entre a produo polopista e a bibliografia acadmica antidualista e etapista podem ser explicados, tal como no caso das organizaes trabalhadas anteriormente, por meio das relaes que certos membros da intelectualidade brasileira estabeleceram com a POLOP. Contudo, diferentemente dos contatos travados entre futuros acadmicos e organizaes trotskistas como o PSR e o POR, as participaes orgnicas de alguns destacados pensadores universitrios dos anos 60/70 na POLOP so, at certo ponto, bem conhecidas do pblico interessado na temtica do pensamento de esquerda no Brasil. No se constitui em grande novidade, por exemplo, o fato de que os tericos da dependncia Ruy Mauro Marini, Vnia Bambirra e Theotnio dos Santos, assim como o brilhante cientista poltico Luiz Alberto Moniz Bandeira, os irmos Emir e der Sader, e o filsofo Michael
591 Idem, p. 206-207. 592 Nas referncias tericas da POLOP, como vimos, o nome de Trotsky figurava ao lado de outros no identificados com a crtica de esquerda ao estalinismo, como Bukharin, representante da direita comunista nos anos 30. Indubitavelmente, contudo, foi a influncia trotskista a que mais contribuiu para que a organizao tenha interpretado o capitalismo brasileiro como um elemento indissocivel e dependente do sistema capitalista internacional. Do mesmo modo, Trotsky est tambm na raiz das inclementes crticas da POLOP linha poltica etapista do PCB para a revoluo no Brasil, que levava os estalinistas, quase que supra-conjunturalmente, a buscar alianas com os setores supostamente progressistas da burguesia do pas. 593 MATTOS, Marcelo Badar. Em busca da revoluo socialista.... Op. cit., p. 208. 235
Lwy, compuseram as fileiras da organizao e intervieram intensamente nos debates do movimento operrio da dcada de 1960. 594 Muitas vezes, foram esses prprios intelectuais que nas dcadas seguintes ganhariam um significativo prestgio universitrio escala latino- americana os formuladores das j mencionadas anlises da POLOP sobre o carter altamente contraditrio e dependente do capitalismo brasileiro.
Findado esse breve histrico das principais organizaes polticas localizadas esquerda do PCB na etapa 1930-1964, podemos passar, finalmente, relao (muitas vezes mediada, como vimos, por estas prprias organizaes) entre a perspectiva terico-histrica trotskista e a j apresentada corrente acadmica antidualista e antietapista.
A lei do desenvolvimento desigual e combinado e a intelectualidade brasileira Conforme j dito, uma parcela significativa da intelectualidade de esquerda poca j instalada, em grande parte, na Universidade , imediatamente aps a derrubada de Joo Goulart, responsabilizou os equvocos de interpretao 595 dos nacionalistas e, principalmente, dos comunistas do PCB, pela derrota de 1964. O partido de Prestes e sua poltica de colaborao de classes, alicerada em uma f no papel progressista da burguesia nacional, tornaram-se, conjuntamente com os nacionalistas isebianos e cepalinos, os maiores alvos dessa intelectualidade, assim como de vrias organizaes polticas de esquerda, algumas existentes antes mesmo do advento do golpe de Estado. O empresariado brasileiro demonstrara, de modo irrefutvel, sua dependncia intrnseca ao imperialismo. A revoluo democrtico-burguesa e o desenvolvimento em bases nacionais haviam se mostrado uma impossibilidade histrica no Brasil, assim como nos demais pases do Cone Sul em que triunfaram contra-revolues terroristas antipopulistas, articuladas por amplos setores das burguesias nacionais e pelo imperialismo. A matriz terica que lhes dava suporte, o dualismo-etapista, passou a ser fortemente questionada. Proliferaram trabalhos crticos, em vrios campos das cincias humanas, ao esquematismo que teria trilhado o caminho do fracasso da esquerda brasileira. Assim, como antecipamos, importantes intelectuais, trabalhando com temticas diversas, produziram interessantes pesquisas que foram de encontro tanto perspectiva dualista de entendimento da realidade nacional quanto plataforma etapista de transformao desta ltima, at ento predominantes na esquerda brasileira. Nessa empresa, muitos desses intelectuais acabaram por se aproximar, ou mesmo fazer uso, da matriz
594 Os quatro ltimos tericos citados, como informamos, haviam militado anteriormente na LSI. 595 WEFFORT, F. C. Os sindicatos na poltica (Brasil: 1954-1964) in Ensaios de Opinio, 1978 (p. 18-27), p. 20. 236
formulada por Trotsky para a compreenso das condies scio-histricas dos pases atrasados. Nesse sentido, aproximaram-se tambm de muitas elaboraes sobre a realidade scio-histrica do pas realizadas pelas organizaes polticas trotskistas cujas trajetrias apresentamos resumidamente acima. O historiador marxista Caio Prado Jr., desde os anos 40, j guardava diferenas profundas com a perspectiva estalinista que apontava a existncia de elementos feudais na estrutura econmica do Brasil. No mesmo perodo, outros intelectuais de esquerda latino- americanos, tambm com o fito de se contrapor idia do feudalismo que no passava de consequncia analtica direta da teoria da repetio dos ciclos histricos adotada pelo estalinismo , defendiam a tese de que haveria um capitalismo de tipo diferenciado nas ex- colnias espanholas e portuguesa. Ao apontarem a presena de elementos pr-capitalistas, como a escravido e o trabalho compulsrio, no interior de um sistema colonial j capitalista (pois subordinado lgica da circulao de mercadorias), Caio Prado e esses demais tericos acabaram por atribuir uma particularidade ao processo histrico latino- americano e, nesse sentido, aproximaram-se, em certa medida, da perspectiva trotskista do desenvolvimento desigual e combinado. Michael Lwy, ao trabalhar com as produes tericas de Caio Prado Jr. e desses intelectuais latino-americanos, alocou-as ao lado das de notrios adeptos da IV Internacional:
A hegemonia do stalinismo no pensamento de esquerda latino-americano, da dcada de 1930 at a Revoluo Cubana, no significa que no existiram contribuies cientficas importantes ao pensamento marxista nesse perodo. Em vrios pases, dentro e fora dos partidos comunistas, pesquisadores comunistas questionaram as interpretaes esquemticas prevalecentes sobre a natureza das formaes socioeconmicas do continente, particularmente a tendncia a impor o modelo feudal europeu na anlise das estruturas agrrias da Amrica Latina. O trabalho pioneiro de Caio Prado Jr., Histria econmica do Brasil (1945) rejeita este tipo de enfoque [...] De maneira similar [a Caio Prado e Srgio Bag], o historiador chileno Marcelo Segall criticava os partidrios do feudalismo latino-americano e insistia na importncia da minerao, uma indstria tipicamente capitalista, no sistema colonial. Podemos tambm mencionar a importante obra de certos autores trotskistas argentinos durante esses perodo, especialmente Nahuel Moreno e Milcades Pea (embora o trabalho de Pea fosse publicado apenas posteriormente) sobre o aspecto capitalista da colonizao espanhola e portuguesa e a sua combinao com relaes sociais pr-capitalistas. 596
Muitos autores assinalaram que a afirmao de Caio Prado Jr. acerca da existncia, desde praticamente o incio do processo de colonizao, de um capitalismo colonial no Brasil deveu-se, em grande parte, perspectiva totalizante adotada pelo historiador, isto , ao fato de Caio Prado Jr. ter concebido a histria da Amrica portuguesa, desde sua gnese, como parte de (e, portanto, determinada por uma) totalidade; a colonizao portuguesa do Brasil foi, portanto, apreendida pelo historiador a partir de sua insero na histria mundial,
596 LWY, Michael. Introduo (pontos de referncia para uma histria do marxismo na Amrica Latina) in ____.(org). O marxismo na Amrica Latina. Uma antologia de 1909 aos dias atuais. So Paulo: Perseu Abramo, 1999, p. 40-41. 237
localizada, ento, em sua fase de acumulao primitiva de capital. 597 Nesse sentido, vale a pena lembrar aqui que os trotskistas brasileiros dos anos 30, em suas polmicas com o etapismo que j contaminava as anlises histricas do PCB, tambm se afastaram da idia de que a histria do pas poderia ser tomada enquanto uma simples reedio da histria europia. Tal compreenso por parte dos militantes da Liga Comunista do Brasil do mesmo modo que a de Prado Jr. tambm derivava de um entendimento da histria brasileira como algo intimamente ligado, dialeticamente, prpria histria europia em sua fase de expanso comercial: [...] Numa palavra, foram transportadas para as terras americanas as relaes de produo capitalistas [...]. Desde a sua primeira colonizao, o Brasil no foi mais que uma vasta explorao rural tropical. A coroa de Portugal repartira as terras por seus serviais e fidalgos, e assim, sob a forma de um feudalismo particular, criou-se o monoplio dos grandes senhores de terra. No houve aqui terra livre, no se conheceu aqui o colono livre, senhor dos meios de produo. O pequeno proprietrio no pde desenvolver-se na formao econmica do Brasil. O Estado brasileiro organizou-se com um rgido esquematismo de classe e repousou na explorao do brao escravo pela minoria de senhores de terra. Trabalho escravo, propriedade latifundiria, aristocracia rural, constituda aos azares do favoritismo da metrpole, na caa ao ndio e do trfico negreiro, imprimiram cunho particular formao histrica do Brasil na Amrica Latina [...] Numa sociedade assim constituda no h lugar para um desenvolvimento pondervel da classe dos pequenos proprietrios (camponeses independentes) e podem-se considerar desprezveis a burguesia urbana e a camada de trabalhadores livres [...] A burguesia brasileira nasceu no campo e no na cidade. A produo ligou-se umbilicalmente ao mercado externo. As vicissitudes coloniais no Brasil nos primeiros trs sculos de sua histria no so mais do que a repercusso das lutas das naes europias para o predomnio do mercado mundial [...] A produo colonial dirigida pelos senhores de terra foi, desde o incio, dominada pela necessidade do mercado externo [...]. O desenvolvimento capitalista do Brasil tornou necessria a transformao do trabalho escravo em trabalho assalariado. A mudana de forma de que fala Marx processou-se aqui de modo direto. A escravido tornara-se um empecilho libertao das foras produtivas [...]. A imigrao foi aqui uma empresa industrial para fornecer braos grande cultura cafeeira. O desenvolvimento da cultura do caf nas provncias do centro-sul um desenvolvimento tipicamente capitalista. 598
Retornando a Caio Prado Jr., faz-se necessrio dizer que seria somente aps o golpe de Estado de 1964 que a crtica lgica etapista que estruturava a teoria da revoluo brasileira do PCB tornar-se-ia mais clara na obra do historiador brasileiro. Afirmando, peremptoriamente, que a idia de que a evoluo histrica da humanidade se realiza atravs de etapas invariveis e predeterminadas inteiramente estranha a Marx, Engels e demais clssicos do marxismo, conclua:
certo que tais fatos [a germinao, no seio da economia feudal, das formas capitalistas de produo, o desenvolvimento e a maturao do capitalismo e de suas instituies econmicas, sociais e polticas, com a conseqente e paralela decadncia e destruio do antigo regime] poderiam ter ocorrido em outros lugares [que no na Europa], mas no necessariamente e como fatalidade histrica, como se pretendeu, e que por isso se aceitou como um dado preliminar e uma lei histrica e absoluta,
597 Ver, entre vrios outros autores, MANTEGA, Guido. Op. cit., p. 236-261. Pelo fato de ter buscado compreender a realidade econmica e social da colnia brasileira tomando como elemento central sua insero, pela via da circulao de mercadorias, no processo internacional de acumulao primitiva de capital, Caio Prado Jr. e seus discpulos foram qualificados por alguns estudiosos de circulacionistas. Ver, entre outros trabalhos, GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. So Paulo: tica, 1978 e CARDOSO, Ciro F. S. e BRIGNOLI, Hector. Historia econmica de America Latina. Barcelona: Crtica, 1979, 2v. 598 LIGA COMUNISTA DO BRASIL Projeto de teses .... Op. cit., p. 152-155. 238
sem nenhuma indagao prvia acerca da realidade e verdade da conscincia presumida. Uma coisa seria assinalar semelhanas entre o ocorrido nos pases da Europa e em outros lugares. E na base dessa observao proceder interpretao da evoluo histrica de outros pases e povos, inspirando-se em conceitos j elaborados luz do exemplo europeu. Nunca esquecendo, contudo, que se tratava de simples semelhanas, e que qualquer concluso deveria cingir-se aos limites dessa semelhana. Coisa bem diferente, logo se v, partir, como se fez no caso da interpretao da evoluo brasileira, da presuno, admitida a priori, de que os fatos histricos ocorridos na Europa constituam um modelo universal que necessariamente haveria de se reproduzir em quaisquer outros lugares e, portanto, no Brasil tambm. Essa maneira de abordar os fatos, escusado diz-lo, inteiramente descabida. 599
Para Caio Prado Jr., a crena em uma inevitabilidade da repetio das etapas histricas europias em quaisquer lugares teria ocasionado interpretaes errneas sobre a realidade nacional, tal com os vislumbres de um feudalismo vigente no campo e de uma parcela da burguesia nativa de vis antiimperialista. Segundo o historiador, a convico de que no Brasil existiria um setor burgus de cunho progressista foi certamente um dos fatores que contriburam para levar as esquerdas por caminhos errados e cheios de iluses que deram no desastre de abril de 1964. 600 No difcil notarmos uma certa semelhana entre as crticas de Trotsky e Prado Jr. aos modelos analticos que pressupem a repetio das etapas histricas em toda e qualquer formao econmico-social. Igualmente, a descrena em um papel revolucionrio das chamadas burguesias nacionais partilhada por ambos. Podemos dizer que, de certa maneira, o historiador brasileiro, ainda que sem fazer uso explcito da lei do desenvolvimento desigual e combinado, confirmou empiricamente em suas pesquisas sobre o Brasil a validade de uma teoria que o revolucionrio russo propusera em suas reflexes sobre a historicidade de outros pases atrasados. 601
Caberia, ento, a outro brilhante intelectual acadmico inaugurar as pesquisas cientficas referentes realidade brasileira nitidamente estruturadas pela lei do desenvolvimento desigual e combinado. Florestan Fernandes foi o fundador de uma sociologia cientfica no Brasil e principal combatente do dogmatismo estalinista nas cincias sociais do pas. Grande parte de seus significativos estudos foram dedicados compreenso do desenvolvimento capitalista nos pases perifricos e das formas polticas neles assumidas pela dominao burguesa. Crtico contumaz do etapismo, Florestan utilizou-se do conceito de capitalismo dependente para afirmar a existncia de uma natureza histrica peculiar formao e ao desenvolvimento do capitalismo nos pases localizados na periferia do
599 PRADO Jr., Caio. A revoluo brasileira. So Paulo: Brasiliense, 1966, p. 39-41. Grifos do autor. 600 Idem, p. 112. 601 Contudo, necessrio chamar a ateno para o fato de que, apesar de ter sido um feroz crtico da perspectiva etapista de interpretao da realidade brasileira levada a cabo pelo PCB (seu partido), Caio Prado Jr. no afirmava em seus escritos o carter socialista da revoluo brasileira. De modo bastante impreciso, o historiador propunha transformaes estruturais na sociedade que viessem a atender s necessidades internas do pas, o que, segundo Mantega, deixava a impresso de que [para Caio Prado Jr.] bastaria orientar a produo para o mercado interno para colocar o pas na rota do desenvolvimento [capitalista]. (MANTEGA, Guido. Op. cit., p. 248-249.) 239
sistema, contrapondo-se, assim, ao esquematismo dualista que se moldava pelo exemplo histrico europeu e norte-americano. Por um caminho epistemolgico que descartava oposies formais e idealistas (bastante caractersticas das interpretaes cepalinas e pecebistas), o socilogo concebia a realidade brasileira como uma totalidade dialeticamente contraditria. Em um marcante texto escrito em 1967, Florestan afirmou:
A inegvel desigualdade das formas de produo coexistentes e seus efeitos sobre o estilo de vida das populaes do campo ou sobre o desenvolvimento econmico regional tem levado alguns cientistas sociais a interpretaes dualistas rgidas. [...] Pelo que afirmamos, a articulao de formas de produo heterogneas e anacrnicas entre si preenche a funo de calibrar o emprego dos fatores econmicos segundo uma linha de rendimento mximo, explorando-se em limites extremos o nico fator constantemente abundante, que o trabalho em bases anticapitalistas, semicapitalistas ou capitalistas. Por isso, estruturas econmicas em diferentes estgios de desenvolvimento no s podem ser combinadas organicamente e articuladas no sistema econmico global. [...] Sob o capitalismo dependente, a persistncia de formas econmicas arcaicas no uma funo secundria e suplementar. A explorao dessas formas, e sua combinao com outras, mais ou menos modernas e at ultramodernas, fazem parte do clculo capitalista. 602
Podemos entrever nesse trecho como a noo de desenvolvimento combinado orientou a interpretao de Florestan Fernandes acerca da estrutura scio-econmica brasileira: o arcaico no aparece como resqucio de outra temporalidade que supostamente entravaria o desenvolvimento das regies onde est presente, tal como na viso dualista. Para Florestan, seria justamente a presena de elementos anticapitalistas e semicapitalistas que produziria funcionalidade ao capitalismo nas reas dependentes; o arcaico no seria antpoda do moderno, e sim seu complemento histrico e socialmente necessrio. Para a vitalidade do sistema capitalista imperialista fazia-se necessria a utilizao de formas no-capitalistas em vrias regies do globo. Sob a gide do capital monopolista, a histria no poderia repetir suas etapas de desenvolvimento nos pases atrasados:
A natureza e os ritmos da transformao capitalista sob as grandes corporaes multinacionais criaram a realidade histrica de nossa poca. Os pases retardatrios so comensais desprezveis ou simples repasto para os demais. No h como fazer coincidir os tempos da histria: as estruturas scio-econmicas, culturais e polticas dos pases capitalistas hegemnicos absorvem as estruturas dos pases subcapitalistas, semicapitalistas ou de capitalismo dependente, submetendo-as a seus prprios ritmos e subordinando-as aos interesses que lhe so prprios. [...] O capitalismo selvagem [a forma assumida pelo capitalismo nos pases dependentes] no reproduz o passado; e se nele h lugar para a revoluo burguesa, esta se apresenta de outra forma e com outros objetivos fundamentais. Sem dvida, o desenvolvimento capitalista pressupe muitos mecanismos econmicos, scio-culturais e polticos que se repetem. Mas eles se repetem em tais condies e sob tais fundamentos, que apontam para uma realidade econmica, scio-cultural e poltica especfica, tpica de uma situao histrica e de uma condio inexorvel de dependncia tecnoeconmica. 603
602 FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p. 64-65. Grifos nossos. O texto que contm o fragmento acima foi originalmente apresentado por Florestan na Alemanha ocidental em 1967. 603 FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e imperialismo in ____ Em busca do socialismo. ltimos escritos e outros textos. So Paulo: Xam, 1995, p. 139-142. Este artigo foi originalmente publicado por conomie et Humanisme (n. 216, maro-abril de 1974, p. 10-14) sob o ttulo de Les bourgeoisies priphriques au service du capitalisme international. 240
Na compreenso de Florestan, o desenvolvimento do capitalismo nas regies perifricas no estaria acoplado a uma revoluo burguesa no seu sentido clssico, dotada de transformaes niveladoras, de um mpeto nacionalista e cunho democrtico; para o socilogo, a acelerao do crescimento capitalista na periferia seria diametralmente oposta ao surgimento, nessas reas, de formas polticas tpicas de uma revoluo burguesa, tal como esta se dera nos pases originrios do capitalismo, como Inglaterra, Frana e Estados Unidos. As burguesias perifricas, dada a sua dependncia, seriam incapazes de realizar transformaes democrticas e nacionalistas; no entanto, seriam suficientemente competentes para engendrar estruturas de dominao sobre as massas populares no curso do desenvolvimento capitalista, se utilizando para isso de formas polticas autocrticas e extremamente reacionrias. Paradoxalmente, seriam revitalizados e intensificados privilgios que muitos supunham banidos da cena histrica pela revoluo burguesa: 604
A Revoluo Burguesa [nas naes capitalistas dependentes e subdesenvolvidas] combina e nem poderia deixar de faz-lo transformao capitalista e dominao burguesa. Todavia, essa combinao se processa em condies econmicas e histrico-sociais especficas, que excluem qualquer possibilidade de repetio da histria ou de desencadeamento automtico dos pr-requisitos do referido modelo democrtico-burgus. Ao revs, o que se concretiza, embora com intensidade varivel, uma forte dissociao pragmtica entre desenvolvimento capitalista e democracia; ou usando-se uma notao sociolgica positiva: uma forte associao racional entre desenvolvimento capitalista e autocracia. 605
A presena das idias de Trotsky nas anlises de Florestan Fernandes facilmente perceptvel, especialmente no que diz respeito tese do socilogo sobre a natureza combinada do desenvolvimento capitalista nas reas retardatrias e na nfase atribuda por ele incapacidade das burguesias perifricas de protagonizar um papel revolucionrio e democrtico. Nas palavras de Florestan, a burguesia nacional no passava de uma digna descendente da burguesia clssica, no sentido de que ela era seria to til para a continuidade e aperfeioamento do capitalismo quanto haviam sido as burguesias dos pases originrios em tempos pretritos. 606
Assim como fizera Trotsky quando de suas observaes sobre os regimes polticos das regies coloniais e semicoloniais, Florestan tomou a relao de dependncia dos pases perifricos face ao imperialismo como um dos elementos explicativos centrais da natureza autocrtica e altamente ditatorial das formas de dominao poltica presentes na periferia do sistema capitalismo:
604 Idem, p. 140. 605 FERNANDES, Florestan. A revoluo burguesa no Brasil. Op. cit., p. 292. Grifos do autor. Vale destacarmos aqui que Trotsky tambm apontou como o desenvolvimento do capitalismo na Rssia no s no necessitou previamente de uma destruio do regime autocrtico (czarismo), como acabou mesmo por fortalec-lo. 606 FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e imperialismo. Op. cit., p. 143. 241
A apropriao dual do excedente econmico a partir de dentro, pela burguesia nacional; e, a partir de fora, pelas burguesias das naes capitalistas hegemnicas e por sua superpotncia exerce tremenda presso sobre o padro imperializado (dependente e subdesenvolvido) de desenvolvimento capitalista, provocando uma hipertrofia acentuada dos fatores sociais e polticos da dominao burguesa. A extrema concentrao de riqueza, a drenagem para fora de grande parte do excedente econmico nacional, a conseqente persistncia de formas pr ou subcapitalistas de trabalho e a depresso medular do valor do trabalho assalariado, em contraste com altos nveis de aspirao ou com presses compensadoras democratizao da participao econmica, scio-cultural e poltica produzem, isoladamente e em conjunto, conseqncias que sobrecarregam e ingurgitam as funes especificamente polticas da dominao burguesa (quer em sentido autodefensivo, quer numa situao puramente repressiva). 607
Enxergando a periferia como parte de uma totalidade (o capitalismo mundial em sua fase monopolista), Florestan, distanciando-se dos pecebistas, cepalinos e isebianos, compreendia os nexos existentes, em dada poca histrica, entre as burguesias dos pases imperialistas e as burguesias das reas dependentes, opondo-se (tal como fizera Trotsky em suas crticas IC) queles que, antidialeticamente, entendiam o interno (a Nao) e o externo (o imperialismo) enquanto elementos dicotmicos, enquanto duas (e opostas) realidades:
Se se considerar a Revoluo Burguesa na periferia como uma revoluo frustrada, como fazem muitos autores (provavelmente seguindo implicaes da interpretao de Gramsci sobre a revoluo burguesa na Itlia), preciso proceder com muito cuidado (pelo menos com a objetividade e a circunspeo gramscianas). No estamos na era das burguesias conquistadoras. Tanto as burguesias nacionais da periferia quanto as burguesias das naes capitalistas centrais e hegemnicas possuem interesses e orientaes que vo noutra direo. Elas querem: manter a ordem, salvar e fortalecer o capitalismo, impedir que a dominao burguesa e o controle burgus sobre o Estado nacional se deteriorem. Semelhante reciprocidade de interesses e de orientaes faz com que o carter poltico do capitalismo dependente tenha duas faces, na verdade interdependentes. E, ainda, com que a Revoluo Burguesa atrasada, da periferia, seja fortalecida por dinamismos essenciais do capitalismo mundial e leve, de modo quase sistemtico e universal, a aes polticas de classe profundamente reacionria, pelas quais se revela a essncia autocrtica da dominao burguesa e sua propenso a salvar-se mediante a aceitao de formas abertas e sistemticas de ditadura de classe. 608
apropriado aqui lembrarmos que a natureza histrica contra-revolucionria das burguesias pertencentes s naes coloniais e semicoloniais j havia sido assinalada, desde os anos 30, por vrias organizaes polticas de cunho trotskista. Mario Pedrosa e Lvio Xavier, no j citado documento da LC intitulado Esboo de uma anlise da situao econmica e social do Brasil, datado de 1931, se referiram s burguesias perifricas de um modo que parecia no s constatar o papel que estas j cumpriam naquele momento, como tambm prenunciar as dcadas de represso sobre a classe trabalhadora, aberta ou velada, que ainda proporcionariam:
607 FERNANDES, Florestan. A revoluo burguesa... Op. cit., p. 292-293. 608 Idem, p. 294-295. Grifos do autor. 242
O imperialismo altera constantemente a estrutura econmica dos pases coloniais e das regies submetidas sua influncia, impedindo o seu desenvolvimento capitalista normal, no permitindo que esse desenvolvimento se realize de maneira formal nos limites do Estado. Por essa razo, a burguesia nacional no tem bases econmicas estveis que lhe permitam edificar uma superestrutura poltica e social progressista. O imperialismo no lhe concede tempo para respirar e o fantasma da luta de classe proletria tira-lhe o prazer de uma digesto calma e feliz. Ela deve lutar em meio ao turbilho imperialista, subordinando sua prpria defesa defesa do capitalismo. Da, sua incapacidade poltica, seu reacionarismo cego e velhaco e em todos os planos a sua covardia. Nos pases novos, diretamente subordinados ao imperialismo, a burguesia nacional, ao aparecer na arena histrica, j era velha e reacionria, com ideais democrticos corruptos. 609
Tambm compreendendo o vnculo indissocivel entre imperialismo e burguesias perifricas, o PSR, dissertando sobre os claros limites do processo de redemocratizao de 1945-46, observou a ntida contradio entre burguesia nacional e democracia no pas:
Do mesmo modo que na cena mundial, no Brasil as contradies de interesses entre os vrios agrupamentos burgueses esto sendo sobrepujadas pelas irredutveis contradies entre proletariado e burguesia. Parcela que do capitalismo internacional, a burguesia brasileira, em seu todo, malgrado a posio subalterna que ocupa na economia mundial, sofre com maior violncia ainda as convulses agnicas que abalam irremediavelmente toda a estrutura do sistema capitalista. 610
Nos tempos presentes, a democracia, mesmo a formal, mesmo a burguesa, se tornou um regime inimigo da prpria burguesia. E os nossos liberais de frases, mas reacionrios no atos, tm plena conscincia disso. Tudo, menos agitar as massas. 611
Nos anos 50, guiado pela mesma teoria da revoluo permanente, o POR apontaria igualmente a impossibilidade de a burguesia brasileira vir a realizar sequer as tarefas democrtico-burguesas, o que transpunha para o proletariado nacional a incumbncia de efetiv-las, colocando assim, para o mesmo, a necessidade de sua independncia de classe:
O proletariado representa a Nao porque a nica classe que representa o progresso (...). O proletariado realiza [no Brasil] todas as tarefas que historicamente correspondem burguesia (...) sua luta antiimperialista se completa com a liquidao final do imperialismo e da burguesia nacional. Por isso, sua luta deve ser conduzida por sua prpria organizao, com suas prprias perspectivas, com sua prpria bandeira. 612
Com a mesma concepo terico-poltica do POR, posicionou-se a POLOP no debate sobre estratgia revolucionria existente no interior da esquerda brasileira nos primeiros anos da dcada de 1960. Combatendo a estratgia etapista do PCB, alicerada em uma interpretao da realidade nacional que opunha antiteticamente o imperialismo burguesia
609 CAMBOA, M. e LYON, L. (pseudnimos de Mrio Pedrosa e Lvio Xavier, respectivamente). Esboo de uma anlise.... Op. cit., p. 74. 610 PSR. Os farsantes tiram a mscara in Orientao Socialista, n. 19, ano II, novembro de 1947, apud FERREIRA, P. R. Imprensa poltica e ideologia: Orientao Socialista (1946-1948). So Paulo: Moraes, 1989, p. 73. 611 PSR. Orientao Socialista, n. 1, So Paulo, 20 de outubro de 1946, apud FERREIRA, P. R. Op. cit., p. 51. 612 POR. No caminho do socialismo o proletariado luta por um Governo Operrio e Campons in Frente Operria, n. 7, 8, e 9. Agosto/setembro de 1953, apud LEAL, M. Op. cit., p. 54. 243
nacional, a POLOP, tomando esta ltima como totalmente dependente do primeiro, afirmava a necessidade da luta do proletariado brasileiro contra ambos:
Nossa burguesia surgiu tarde no cenrio internacional, quando as burguesias mais avanadas j tinham promovido suas acumulaes primitivas de capital, j tinham se lanado dominao dos mercados mundiais. Para acompanhar o crescimento dos pases mais capitalizados, para auferir lucros no mesmo nvel, nossa burguesia no encontrou outro remdio seno associar-se aos capitais imperialistas. 613
Limitar, portanto, a revoluo brasileira aos termos da luta antifeudal e antiimperialista, dando iluso s massas de que, dentro do atual sistema, podem conseguir a sua emancipao econmica, trair o proletariado, trair o socialismo. A luta antifeudal e antiimperialista, no Brasil, est ligada, indissoluvelmente, abolio de todo o sistema de explorao capitalista, pelo governo dos trabalhadores, com o apoio do campesinato. Antepor o capitalismo nacional ao imperialismo, como entidades isoladas e antagnicas, cair numa utopia reacionria, que leva, simplesmente, consolidao do poder burgus no Brasil. As contradies entre o capitalismo nacional e o imperialismo extremam-se porque ambos fazem parte, como um todo, do processo da economia mundial. S o governo de operrios e camponeses, desse modo, concluir as tarefas da burguesia brasileira, que, despontando historicamente tarde e diante da presente conjuntura mundial, no tem mais condies para levar s ltimas conseqncias a sua revoluo. 614
importante chamarmos a ateno para o fato de que tambm Florestan Fernandes associava a luta contra o imperialismo luta contra as burguesias perifricas. Entendendo que sob a situao de dependncia tanto sob a dominao neocolonial quanto sob a dominao imperialista , os estratos sociais dominantes e suas elites no possuem autonomia para conduzir e completar a revoluo nacional, 615 considerava uma exigncia que o Estado e a nao dos paises subdesenvolvidos deixassem de gravitar seja na rbita do capitalismo internacional, seja na rbita dos interesses estreitos de burguesias nacionais tacanhas para que se pudesse exprimir, ao nvel mais profundo possvel, os anseios revolucionrios das grandes maiorias silenciosas, destitudas e oprimidas. 616
Nos anos finais de sua vida, em texto apresentado no seminrio Trotsky hoje, realizado em 1991 na faculdade de Histria da USP, Florestan explicitou sua posio intelectual quanto produo terica do revolucionrio russo:
Trotsky ficou famoso pela reviso, feita de modo independente tambm por Lnin, do curso da revoluo. Em sua formulao sobre o desenvolvimento desigual e combinado estabeleceu que, em sociedades atrasadas, as classes trabalhadoras e destitudas podiam acelerar o processo histrico, desempenhando tarefas negligenciadas ou repelidas pelas classes proprietrias. Em conseqncia, cabia- lhes desencavar processos histricos latentes ordem social existente, infundir-lhes maior velocidade e encetar a criao de uma sociedade nova. Repunha o conceito de revoluo permanente, de Marx e
613 POLOP. Programa socialista para o Brasil in REIS FILHO, Daniel Aaro e S, Jair Ferreira (orgs.). Op. cit., p. 100. O documento em questo data de 1967. 614 POLOP. O caminho da revoluo brasileira in BANDEIRA, Moniz. A renncia de Jnio Quadros e a crise pr 64. 2 edio. So Paulo: Brasiliense, 1979, p. 90-91. O texto em questo de autoria do prprio Moniz Bandeira, poca militante da POLOP, e data de 1962. 615 FERNANDES, Florestan. A revoluo burguesa... Op. cit., p. 298. 616 FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e imperialismo. Op. cit., p. 141. 244
Engels, em uma perspectiva simultaneamente terica e prtica, indo ao fundo dos dinamismos coletivos das classes despossudas na impulso e na fuso dialtica de reforma e revoluo sociais. 617
A perspectiva terica de Florestan Fernandes quanto natureza histrico-poltica do capitalismo perifrico mostrar-se-ia presente na obra de intelectuais acadmicos que, formal ou informalmente, estiveram sob sua orientao, tais como Marialice Foracchi, Paul Singer, Juarez Brando Lopes, Lencio Martins Rodrigues Netto, Gabriel Cohn, Fernando Novaes, Emlia Viotti da Costa, Francisco Weffort, Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso. Merece destaque aqui o desenvolvimento do conceito de capitalismo dependente promovido por Cardoso em sua clssica obra escrita em parceria com o socilogo chileno Enzo Faletto. 618 Contrapondo-se idia do subdesenvolvimento tal como figurava nas interpretaes etapistas e dualistas, Cardoso e Faletto alertaram:
Entre as economias desenvolvidas e subdesenvolvidas no existe uma simples diferena de etapa ou de estgio do sistema produtivo, mas tambm de funo ou posio dentro de uma mesma estrutura econmica internacional de produo e distribuio. Isso supe, por outro lado, uma estrutura definida de relaes de dominao [...] O reconhecimento da historicidade da situao de subdesenvolvimento requer mais que assinalar as caractersticas estruturais das economias subdesenvolvidas. H que se analisar, com efeito, como as economias subdesenvolvidas vincularam-se historicamente ao mercado mundial e a forma em que se constituram os grupos sociais internos que conseguiram definir as relaes orientadas para o exterior que o subdesenvolvimento supe. Tal enfoque implica reconhecer que no plano poltico-social existe algum tipo de dependncia nas situaes de subdesenvolvimento e que essa dependncia teve incio historicamente com a expanso das economias dos pases originrios. 619
Mais uma vez, podemos perceber como a afirmao da existncia de uma historicidade prpria s naes retardatrias, derivada de suas prprias inseres numa totalidade (o sistema capitalista internacional), se faz presente em autores que se destacaram pelo combate entusiasta s perspectivas cepalina e pecebista sobre o desenvolvimento nacional. Em um estudo posterior, Cardoso, tal como Trotsky e Florestan, demonstraria todo o seu descrdito na possibilidade de uma revoluo democrtica encabeada pelas burguesias dos pases atrasados. Ao analisar o golpe antipopulista de 1964 no Brasil, afirmou:
Por certo, os que acreditam que a burguesia nacional dos pases dependentes pode realizar uma revoluo burguesa nos mesmos moldes da revoluo francesa ou da revoluo americana mostraro os entraves estruturais que permanecem e que limitam o alcance das transformaes econmicas havidas no Brasil. Eu no penso, entretanto, que a burguesia local, fruto de um capitalismo dependente, possa realizar uma revoluo econmica no sentido forte do conceito. A sua revoluo consiste em integrar- se no capitalismo internacional como associada e dependente. 620
617 FERNANDES, Florestan. Trotsky e a revoluo in ____. Em busca do socialismo. Op. cit., p. 119-121. 618 CARDOSO, Fernando Henrique e FALETTO, Enzo. Dependncia e desenvolvimento na Amrica Latina. Op. cit. 619 Idem, p. 38-39. 620 CARDOSO, Fernando Henrique. O modelo poltico brasileiro in ____. O modelo poltico brasileiro e outros ensaios. 2 edio. So Paulo: Difuso Europia do Livro (DIFEL), 1973, p. 71. 245
Podemos observar nas palavras do autor a mesma avaliao em relao s burguesias perifricas formulada por Trotsky. De certa maneira, Cardoso, sua maneira, parece enderear aos nacionalistas brasileiros a crtica feita por Trotsky aos mencheviques em 1907, no V Congresso do Partido Operrio Social-Democrata Russo (POSDR), quando o terico da revoluo permanente acusou os etapistas de ento de quererem obrigar os estratos burgueses russos a desempenhar um papel constitutivo que no querem e no podem desempenhar, nem desempenham, nem desempenharo nunca. 621 Entretanto, assim como fizemos em relao a Caio Prado Jr., necessrio ressalvar que, mesmo chegando a concluses muito parecidas com as do revolucionrio russo no que tange ao reconhecimento da existncia de desenvolvimento particular do capitalismo perifrico e ao carter heternomo das burguesias nacionais, Fernando Henrique Cardoso tambm no fez um uso explcito da lei do desenvolvimento desigual e combinado. 622
Nas dcadas de 1960 e 1970, tambm combatendo a viso dualismo-etapista sobre a Amrica Latina, outros tericos da dependncia politicamente mais esquerda que Cardoso e Falleto, como Ruy Mauro Marini, Theotnio dos Santos e Andre Gunder Frank, esgrimiram em seus trabalhos o argumento de que o subdesenvolvimento no se constituiria em um estado atrasado e anterior ao capitalismo, e sim em uma conseqncia, uma forma particular do desenvolvimento capitalista nas reas perifricas. 623 Foi nesse sentido que Marini assinalou que no seria acidental a recorrncia, nos estudos sobre nosso continente, da expresso pr-capitalismo:
O que deveria ser dito que, ainda quando se trate realmente de um desenvolvimento insuficiente das relaes capitalistas, essa noo [de pr-capitalismo] se refere a aspectos de uma realidade que, por sua estrutura global e seu funcionamento, no poder desenvolver-se jamais da mesma forma como se desenvolvem as economias capitalistas chamadas de avanadas. por isso que, mais do que um pr-capitalismo, o que se tem um capitalismo sui generis, que s adquire sentido se o contemplamos na perspectiva do sistema em seu conjunto, tanto em nvel nacional, quanto, e principalmente, em nvel internacional. 624
621 TROTSKY, L. A revoluo permanente. Op. cit., p. 86. No deixa de ser irnico o fato de FHC ter, ao longo de seu governo, proporcionado burguesia brasileira a realizao de importantes tarefas de sua revoluo, isto , da nica revoluo que esta podia (pode) fazer: se desenvolver a partir da associao (em condio subalterna) com o imperialismo. 622 Todavia, no arriscado afirmarmos que essa lei no s era bem conhecida de Cardoso, como era considerada pelo prprio como um instrumento analtico importante para as cincias sociais. No segundo volume da coletnea organizada por ele em conjunto com Carlos Estevam Martins, constituda por textos considerados pelos organizadores como referncias para o estudo de vrios temas da cincia poltica (CARDOSO, Fernando Henrique e MARTINS, Carlos Estevam. Poltica e sociedade, vol. 2. So Paulo: Companhia Editorial Nacional, s. d.), um dos materiais selecionados para compor o item Os processos de mudana das estruturas polticas justamente o primeiro captulo da Histria da revoluo russa de Trotsky (As peculiaridades do desenvolvimento da Rssia), no qual se encontra, conforme pudemos ver no captulo 2, a exposio mais sistematizada da lei do desenvolvimento desigual e combinado. 623 SANTOS, T. dos. Las crisis de la teora del desarrollo y las relaciones de dependencia en America Latina in JAGUARIBE, Hlio (et alii). La dependencia politico-econmica de America Latina. Mxico: Siglo XXI, 1970, p. 147-148, apud TOLEDO. Caio Navarro de. Op. cit., p. 167. 624 MARINI. Ruy Mauro. Dialtica da dependncia. Op. cit., p. 138. 246
A perspectiva totalizante contida no fragmento acima foi, sem dvida, um dos eixos que conduziram os tericos da dependncia, em geral, a escaparem da dicotomia Nao x antinao proposta por cepalinos, isebianos e pecebistas. Compreendendo os nexos existentes entre o externo e o interno, mais precisamente, entre as classes sociais localizadas dentro e fora da nao, os pensadores dependentistas, em geral, apontaram o carter contra-revolucionrio das burguesias perifricas, em funo da ligao gentica e inquebrantvel destas com o capital estrangeiro. 625 pertinente aqui remontarmos crtica produzida em 1930 por Lvio Xavier, ento militante do Grupo Comunista Lnin, ao modo antittico como o PCB tomava as relaes entre imperialismo e burguesia nacional:
A ideologia antiimperialista concebe o jugo do imperialismo como uma ao mecnica exterior, nica, sobre todas as classes da colnia. A Oposio comunista nas discusses sobre a Revoluo Chinesa denunciou este erro grosseiro e, viu-se, logo, fatal. A luta revolucionria contra o imperialismo no cria uma coeso das classes na colnia, mas , ao contrrio, fator de diferenciao poltica. A fora do imperialismo reside na ligao econmica e poltica do capital estrangeiro com a burguesia indgena. 626
Tanto no que diz respeito ao reconhecimento de uma natureza prpria ao capitalismo da periferia quanto no que concerne compreenso dos vnculos existentes entre burguesias nativas e imperialismo, no muito difcil percebermos uma clara proximidade entre o pensamento trotskista e o dependentista. Destarte, no foi por acaso que Gorender afirmou serem as idias de Trotsky uma das matrizes do pensamento dependentista, 627 e que Guido Mantega apontou as teses do revolucionrio russo e da IV Internacional como razes tericas e polticas importantes de um determinado grupo de intrpretes da histrica econmica brasileira formado (justamente) por Gunder Frank, Theotnio dos Santos e Ruy Mauro Marini. 628
625 bom lembrarmos, entretanto, que, no obstante uma descrena comum quanto ao carter progressista das burguesias nativas por parte dos dependentistas, havia, entre estes, significativas diferenas tanto no que diz respeito s possibilidades de desenvolvimento do capitalismo perifrico sob o jugo do imperialismo, como em relao s formas de dominao poltica que se fariam presentes no continente latino-americano. Enquanto autores como Marini, Santos e Gunder Frank apontaram uma tendncia estagnao da periferia capitalista em funo de sua submisso econmica ao centro do sistema, Cardoso e Faletto, entre outros dependentistas mais moderados, vislumbravam a possibilidade de que, mesmo que vinculadas ao capital metropolitano, as economias perifricas poderiam atingir um desenvolvimento econmico significativo. Consequentemente, os primeiros (tal como Trotsky) trabalharam com a impossibilidade de implantao de regimes democrticos estveis nos pases perifricos, associando a proliferao das sangrentas ditaduras militares na Amrica Latina ao tipo de insero econmica da regio no sistema capitalista mundial. Os segundos, por sua vez, afirmaram ser possvel a edificao de regimes democrtico-liberais mesmo sob as condies de dependncia. 626 XAVIER, Lvio. A ltima agitao poltica e as novas posies do imperialismo in A luta de classe, n. 3, apud MARQUES NETO, J. C. Op. cit., p. 151. 627 GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas; a esquerda brasileira: das iluses perdidas luta armada. Op. cit., p. 82-83. 628 MANTEGA, Guido. Op. cit. p. 152-157 e 281-283. Essa relao entre o pensamento trotskista e a teoria da dependncia foi tambm apontada por LWY, Michael. Introduo.... Op. cit., p. 80. 247
Marini e Theotnio dos Santos, como observamos h pouco, foram, durante a dcada de 1960, militantes da POLOP, organizao poltica que encampava abertamente em suas anlises sobre a realidade brasileira a perspectiva trotskista referente ao desenvolvimento do capitalismo nos pases perifricos:
A lei do desenvolvimento desigual, como base de uma outra, a do desenvolvimento combinado, o que condiciona o sentido da revoluo brasileira [...] A revoluo nos pases atrasados ou pr-desenvolvidos, como o Brasil, uma vez desencadeada, tende a prosseguir ininterruptamente, passando das tarefas democrtico-burguesas s medidas de carter socialista, e s termina com a liquidao completa da sociedade dividia em classes e com o advento da nova ordem, tanto no plano nacional quanto no plano internacional. Esse carter da revoluo no Brasil deriva no s do atual estgio de sua evoluo histrica, como, tambm, do fato da economia mundial como um todo, uma realidade superior, viva, potente, e no um amlgama de partculas nacionais, o que possibilita aos pases atrasados queimar as etapas e atingir, em curto prazo, os graus mais altos da civilizao. 629
O socilogo Francisco (Chico) de Oliveira outro importante intelectual brasileiro que se utilizou abertamente da noo de desenvolvimento desigual e combinado para criticar de forma contundente o que chamou de lgica dualista e apreenso da formao scio- econmica brasileira. Compartilhando a idia de dependncia, Chico de Oliveira se dedicou a demonstrar, mais detalhadamente do que fizera Florestan Fernandes, a funcionalidade possibilitada pelo arcaico ao desenvolvimento do moderno no capitalismo brasileiro. As estruturas arcaicas do campo, longe de significarem um empecilho ao desenvolvimento das alas dinmicas da economia, como acreditavam os dualistas, representariam em funo tanto do enorme xodo rural que criava um exrcito de reserva proletrio nas grandes cidades, quanto do baixo custo da fora de trabalho rural que diminua o preo dos gneros alimentcios um estmulo produo industrial e acumulao do capital. 630 Em outro interessante exemplo da combinao funcional do arcaico com o moderno, o socilogo uspiano fez referncia perspectiva terica que subjaz sua mais importante obra:
Uma no-insignificativa porcentagem das residncias das classes trabalhadoras foi construda pelos prprios proprietrios, utilizando dias de folga, fins de semana e formas de cooperao como o mutiro. Ora, a habitao, bem resultante dessa operao, se produz por trabalho no pago, isto , supertrabalho. Embora aparentemente esse bem no seja desapropriado pelo setor privado da produo, ele contribui para aumentar a taxa de explorao da fora de trabalho, pois o seu resultado a casa reflete-se numa baixa aparente do custo de reproduo da fora de trabalho de que os gastos com habitao so um componente importante e para deprimir os salrios reais pagos pelas empresas. Assim, uma operao que , na aparncia, uma sobrevivncia de prticas de economia natural dentro das cidades, casa-se admiravelmente bem com um processo de expanso capitalista, que tem uma de suas bases e seu dinamismo na intensa explorao da fora de trabalho. O processo descrito, em seus vrios nveis e formas, constitui o modo de acumulao global prprio da expanso do capitalismo no Brasil no ps-anos 1930. A evidente desigualdade de que se
629 POLOP. O caminho da revoluo brasileira. Op. cit., p. 161-162. 630 OLIVEIRA, Francisco de. Crtica razo dualista. Op. cit., p. 44-45. importante destacar que na atualizao recente da discusso (____. O ornitorrinco. Op. cit.), Chico de Oliveira apresenta, para alm das diferenas j conhecidas, os elementos de continuidade entre sua perspectiva crtica e o pensamento de Celso Furtado. 248
reveste que, para usar a expresso famosa de Trotsky, no somente desigual mas combinada, produto antes de uma base capitalstica de acumulao razoavelmente pobre para sustentar a expanso industrial e a converso da economia ps-1930, que da existncia de setores atrasado e moderno. 631
Na concepo de Francisco de Oliveira, o arcaico e o moderno no produziriam, em absoluto, duas realidades; diferentemente, proporcionam uma natureza nica, dialtica e peculiar e dialtica estrutura societal dos pases que chegaram com atraso na corrida industrial capitalista. Tal como na Rssia analisada por Trotsky que, s vsperas da Revoluo de Outubro, possua uma tecnologia fabril equiparada (e s vezes superior) aos pases avanados, combinada com uma estrutura agrria similar, em grande parte, sua configurao no sculo XVII o crescimento capitalista industrial brasileiro, como exps Oliveira, operou-se sob (e a partir de) uma base econmica portadora de vrios elementos bastante rudimentares. A tese de Trotsky de que a possibilidade do veloz progresso ocorrido na indstria russa foi precisamente determinada pelo estado atrasado do pas 632 est, sem dvida, presente na crtica razo dualista de Oliveira. Mostrando mais uma vez o vnculo entre as organizaes trotskistas e o pensamento social brasileiro, vale registrar que Coggiola, em um trabalho dedicado trajetria do destas organizaes, afirmou que o PSR esforou-se para compreender a produo no latifndio a partir da produo capitalista propriamente dita, escapando da dualidade de novo e atrasado, 633 o que fez com que o partido, diferentemente dos estalinistas e nacionalistas em geral, considerasse que os eventuais conflitos entre a industrializao no pas e o imperialismo no condicionavam linearmente antagonismos radicais entre burguesia industrial e capital internacional. 634
Como j antecipamos, tambm Francisco Weffort e Octavio Ianni, em sua teoria do populismo latino-americano e brasileiro, mostrar-se-iam fortemente pautados pela lgica do desenvolvimento desigual e combinado, o que poder ser visto nas pginas do captulo seguinte.
Organizaes trotskistas e pensamento social brasileiro: dois breves comentrios Findando esta introduo, gostaramos de chamar a ateno para dois aspectos que consideramos de grande valia para o debate acerca da relao entre as organizaes trotskistas do perodo 1930-1964 e a corrente da intelectualidade nacional com a qual trabalhamos.
631 Idem, p. 59-60. Grifos do autor. 632 TROTSKY, L. A Histria da Revoluo Russa. Op. cit., p. 28. 633 COGGIOLA, Osvaldo. O trotskismo no Brasil. Op. cit., p. 258. 634 Idem, p. 259. 249
Primeiramente, pensamos que vale a pena reforar a idia de que aquelas organizaes, muitos dos quais desconhecidas nos meios universitrios e no raras vezes ignoradas na historiografia sobre o movimento operrio do pas, tiveram uma significativa importncia no que diz respeito ao entendimento da realidade nacional e, por conseguinte, para a histria do pensamento crtico brasileiro. Politicamente marginalizadas na esquerda, numericamente inexpressivas e com uma reduzidssima penetrao programtica entre a classe trabalhadora organizada, essas organizaes trotskistas, ainda que tenham estado longe de seu objetivo primordial, a saber, a conquista da direo do movimento operrio e popular do pas, no deixaram, entretanto, de prestar sua contribuio difcil tarefa de compreender a complexa natureza do capitalismo brasileiro. Em segundo lugar, pensamos que o conhecimento dos contatos travados entre essas pequenas organizaes polticas e renomados acadmicos nos permite, na busca das razes explicativas para sua comunho terico-analtica, ir alm da indagao se estes intelectuais efetivamente leram a obra de Len Trotsky. Se alguns como Florestan, Ianni, Marini e Chico de Oliveira chegaram, em seus trabalhos, a referir-se a Trotsky e a algumas de suas categorias interpretativas das naes atrasadas, outros, tais como Cardoso e Weffort, sequer fizeram meno ao seu nome. Embora sejamos levados a crer, em funo da poca e do meio social nos quais a intelectualidade antidualista e antietapista esteve inserida, que pelo menos alguns dos escritos do terico bolchevique no foram, para ela, objetos absolutamente intocados, tal fato, afora uma informao ou outra que obtivemos nesse sentido (e que foram aqui apresentadas), consiste em algo muito difcil, quase impossvel, de ser precisado. Contudo, a partir do que mostramos nestas pginas, e do que ainda mostraremos no prximo captulo, nos sentimos autorizados a afirmar que, independentemente de terem ou no lido Trotsky, importantes nomes de nossa intelectualidade tiveram acesso s suas idias. Seja pelas relaes (orgnicas ou perifricas) mantidas com as organizaes trotskistas, seja por freqentarem ambientes sociais (o movimento estudantil, a universidade, os grupos de estudo etc.) no quais estas divulgavam suas concepes, muitos daqueles jovens intelectuais tomaram contato, ainda que por vezes indiretamente, com o pensamento de Len Trotsky. Em seus trabalhos cientficos posteriores, que lhe dariam notoriedade acadmica, estes intelectuais, a despeito de suas intenes, acabariam por demonstrar que as teses e propostas dos trotskistas brasileiros no estiveram totalmente desprovidas de audincia como se costuma imaginar. 250
Captulo III
Bonapartismo e populismo: Historiografia, movimento operrio e as interpretaes sobre o perodo 1930-1964.
251
Populismo e bonapartismo nas cincias sociais brasileiras
A peculiaridade do populismo vem de que ele surge como forma de dominao nas condies de vazio poltico, em que nenhuma classe tem a hegemonia e exatamente porque nenhuma classe se afigura capaz de assumi-la. Convm relembrar que o populismo aparece quando se d a crise da hegemonia oligrquica e das instituies liberais que obrigam a um amplo e instvel compromisso entre os grupos dominantes, presidido pelo fortalecimento poltico do Executivo e do poder econmico e administrativo do Estado. Nestas condies de crise de hegemonia, reserva-se ao lder ou ao partido populista a funo de intermedirio entre os grupos dominantes e as massas. Deste modo, o reconhecimento da legitimidade da dominao populista por parte das classes populares significa, de certo modo, uma mediao uma forma substitutiva da hegemonia inexistente para o reconhecimento do status quo dominante. Em uma palavra, na adeso das massas ao populismo tende necessariamente a obscurecer-se a diviso real da sociedade em classes sociais conflitivas e estabelecer-se a idia do povo (ou da Nao) entendido como uma comunidade de interesses solidrios. 635
Nessa perspectiva, o pacto populista parece um intermezzo, de cunho bonapartista, na transcrio da hegemonia oligrquica hegemonia propriamente burguesa, entendida esta como burguesia de base urbana ou industrial. 636
O captulo que agora se inicia de natureza eminentemente historiogrfica. Seu objetivo, como j dito, demonstrar que muitos dos elementos presentes na teoria marxista do bonapartismo se constituem em importantes alicerces (encobertos, muitas vezes) da teoria do populismo brasileiro, tal qual formulada e/ou desenvolvida por Francisco Weffort, Octavio Ianni, Dcio Saes, Armando Boito Jr., entre outros autores acadmicos. Buscaremos aqui expor, tambm, a relao de proximidade existente entre essa teoria populista e as anlises acerca da luta de classes no Brasil feitas pelas j apresentadas organizaes trotskistas do 1930-1964 (LCI, PSR, POR, POLOP etc.). Iniciando essa trabalhosa empresa (e um tanto quanto extensa), achamos conveniente oferecer antes uma apresentao da teoria do populismo propriamente dita; embora fora de moda e atacada sem piedade por uma historiografia profundamente conservadora, com a qual debateremos ao final deste captulo, essa teoria foi durante muito tempo o caminho analtico mais utilizado pelos cientistas sociais para interpretar o processo scio-poltico brasileiro situado temporalmente entre a Revoluo de 1930 e o Golpe de 1964.
635 WEFFORT, F. Classes populares e poltica (contribuio ao estudo do populismo). Edio mimeografada. So Paulo, 1968, p. 133-134 apud IANNI, Octavio. A formao do Estado populista...Op. cit., p. 43-44. 636 WEFFORT, Francisco C. Classes Populares e Poltica (Contribuio ao estudo do populismo). Op. cit., p. 45 252
A teoria do populismo brasileiro O fim do governo Goulart praticamente forou a intelectualidade de esquerda a buscar os elementos explicativos do colapso das estruturas polticas formatadas a partir da Revoluo de 1930. Nesse intuito, realizaram-se trabalhos que retrocediam crise das sociedades oligrquicas visando compreender as condies histricas da emergncia de uma nova forma de dominao poltico-social (populismo), e avanavam temporalmente at os anos iniciais da dcada de 1960 almejando decifrar as reais razes de seu fim. Em 1965, foi publicada a coletnea Poltica e revoluo social no Brasil 637 que, entre outros textos, trazia o artigo de Weffort intitulado Poltica de massas, 638 escrito em setembro de 1963, quando o populismo, segundo as palavras do prprio autor, era o poder vigente ou, pelo menos, aparentava s-lo. 639 Em 1964, quando o populismo j era o passado, 640 foi editado pela Revista latinoamericana de sociologia o artigo Estado e Massas no Brasil, 641 tambm de Weffort. Trs anos depois foi a vez do artigo O populismo na poltica brasileira, do mesmo autor, que comps um nmero coletivo dedicado ao Brasil pela revista Le temps modernes, n. 257, organizado por Celso Furtado. 642 No ano de 1968, Octavio Ianni lanou O colapso do populismo no Brasil 643 e, em 1975, A formao do Estado populista na Amrica Latina. 644 Tambm em 1975, foi publicado um interessante estudo de Ianni sobre o regime populista de Lzaro Crdenas, 645 que depois ganharia vrias edies em lngua espanhola. No perodo de 1978-1979, foi editado, em trs partes, o artigo de Weffort intitulado Democracia e movimento operrio: algumas questes para a histria do perodo 1945-1964, 646 o qual ratificava e desenvolvia as vises crticas ao PCB contidas em Origens do sindicalismo populista no Brasil (a conjuntura do aps-Guerra), publicado em 1973. 647
Ainda em 1978, Weffort publicou a coletnea O populismo na poltica brasileira, 648
637 IANNI, Octavio (org.) Poltica e revoluo social no Brasil. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1965. 638 Esse artigo encontra-se tambm em: WEFFORT, Francisco. Poltica de massasl in ____. O populismo na poltica brasileira. 5 edio. Rio de Janeiro: Paz e terra, 2003, p. 13-47. 639 WEFFORT, Francisco. Nota do autor in ____. O populismo na poltica brasileira. Op. cit., p. 9. 640 Idem. 641 Trabalhamos nesse captulo com a seguinte verso: WEFFORT, Francisco. Estado e massas no Brasil in ____. O populismo na poltica brasileira. Op. cit., p. 49-67. 642 Publicado em portugus como Brasil: Tempos modernos. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1968. Esse artigo encontra-se tambm na coletnea que levaria o seu nome. WEFFORT, Francisco. O populismo na poltica brasileira. Op. cit., p. 69-89. esta a verso com que aqui trabalhamos. 643 IANNI, Octavio. O colapso do populismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilizao brasileira, 1968. 644 IANNI, Octavio. A formao do Estado populista na Amrica Latina. Rio de Janeiro: Civilizao brasileira, 1975. 645 IANNI, Octavio. El Estado capitalista en la poca de Crdenas. Mxico: Ediciones Era, 1991. 646 WEFFORT, Francisco. Democracia e movimento operrio: algumas questes para a histria do perodo 1945/1964 in Revista de Cultura Contempornea, ano 1, n. 1, julho de 1978, p. 7-14 (primeira parte); in Revista de Cultura Contempornea, ano 1, n. 2, janeiro de 1979, p. 3-12 (segunda parte); in Revista de Cultura e Poltica, So Paulo, ano 1, n. 1, agosto de 1979, p. 11-18 (terceira parte). 647 WEFFORT, Francisco. Origens do sindicalismo populista no Brasil (a conjuntura do Aps-Guerra) in Estudos Cebrap, n. 4. So Paulo, abril-maio-junho de 1973. 648 WEFFORT, Francisco. O populismo na poltica brasileira. Op. cit. 253
homnima de seu artigo de 1967 e que, alm deste e dos dois primeiros mencionados neste pargrafo, continha ainda textos inditos em portugus. Alguns dos trabalhos mencionados acima atingiram o status de verdadeiros clssicos sobre o que se perodo histrico brasileiro que ficaria, a partir da, conhecido como populismo.
Uma nova perspectiva sobre a historicidade da periferia capitalista (Amrica Latina/Brasil) As obras de Ianni e Weffort so marcadas por interessantes dilogos com os trs precursores analistas do fenmeno na Amrica Latina, os socilogos argentinos Gino Germani, Torcuato Di Tella e Jorge Graciarena. Preocupados em compreender a dinmica social da modernizao capitalista do continente a partir dos anos 1930, em grande parte conduzida por governos oriundos de revolues nacional-populares, Germani, Di Tella e Graciarena interpretariam o surgimento do populismo nos pases latino-americanos como uma decorrncia poltica de seus processos de transio de sociedades tradicionais (agrrias, pr-capitalistas) para sociedades modernas (urbanas, industriais, capitalistas). 649
Para Germani, as passagens de uma democracia com participao limitada para uma democracia com participao ampliada teriam se dado de forma distinta das dos pases europeus, nas quais no ocorreram, segundo ele, grandes rupturas do ponto de vista poltico, j que os novos setores sociais teriam sido integrados ao sistema democrtico moderno a partir dos canais polticos legalizados. No caso latino-americano, a transio de uma forma democrtica para outra seria marcada por uma forte assincronia, 650 pois a mobilizao prematura das massas, geradora de fortes presses sobre o aparelho estatal, no teria encontrado os canais de participao poltica suficientemente amadurecidos para sua absoro. Recm chegadas do mundo rural, as massas populares trariam ao seu novo habitat urbano-industrial na qual, em tese, deveriam ter lugar relaes de mercado (de cunho racional-legal) uma subjetividade ainda baseada em valores tipicamente agrrios, de corte paternalista, tais como a lealdade e a confiana em um senhor. Conseqentemente, teria se aberto a possibilidade da manipulao destas massas por parte das elites defensoras do
649 GERMANI, Gino. Poltica e sociedade em uma poca de transio: da sociedade tradicional sociedade de massas. So Paulo: Mestre Jou, 1973 e DI TELLA, Torcuato. Para uma poltica latino-americana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969; GRACIARENA, Jorge. Pode y classes sociales em el desarrollo de America Latina. Buenos Aires: Paidos, 1967. 650 ANDRADE, Csar Ricardo de. O conceito de populismo nas cincias sociais latino-americanas in Estudos de Histria n. 2 (Revista do Curso de Ps-Graduao em Histria da Unesp). Franca: Unesp, 2000, p. 74. 254
staus quo, 651 o que explicaria, entre outros elementos, o xito dos lderes caudilhos populistas. Comungando dos mesmos pressupostos que Germani, Torcuato Di Tella concebeu o populismo como um movimento poltico defensor de uma ideologia anti-status quo (no sentido anti-elites, anti-oligrquica), apoiado nas massas populares urbanas e rurais, camadas mdias e setores da burguesia insatisfeitos com a reverso de suas expectativas com relao ao papel que deveria[m] desempenhar na sociedade. 652 Em perspectiva similar a ambos os autores, Jorge Graciarena chamou a ateno no populismo para sua incorporao das massas populares vida pblica por intermdio de um discurso no-classista. 653
Germani, Di Tella e Graciarena, cada um a seu modo, insistiram na diferena existente entre os processos europeu e latino-americano, o que, a princpio, poderia ser entendido pelos leitores como um aspecto que os aproximaria da perspectiva interpretativa formulada pelos pensadores dependentistas para o entendimento da Amrica Latina. Na verdade, o que ocorre exatamente o oposto. Apesar de reconhecerem a existncia de condies histrico-sociais prprias aos pases da Amrica Latina o que a CEPAL, o ISEB e o PCB tambm faziam , Germani, Di Tella Graciarena as concebiam como um desvio do modelo europeu (e norte- americano) de modernizao capitalista. Para esses autores, a democracia liberal europia era tomada como um padro, como a forma poltica de organizao das sociedades modernas. Nesse raciocnio, medida que se afastava do paradigma moderno europeu, a histria latino- americana passava a ser vista como que em descompasso, como uma espcie de fuga de rota em relao a um caminho que se imaginava ideal. Em funo disso, a perspectiva interpretativa desses socilogos liberal-funcionalistas (tambm conhecidos como tericos da modernizao) sobre o populismo latino-americano seria vista por seus crticos como dotada de um contedo teleolgico e eurocntrico. Nesse sentido, Germani, Di Tella e Graciarena, admitindo a evoluo histrica da Europa e dos Estados Unidos como expresso de um sentido histrico que, salvo condies desviantes, deveria se manifestar em toda a parte, se encontraram muito prximos da vertente analtica que afirmava ser o subdesenvolvimento da Amrica Latina conseqncia de entraves ao seu desejado desenvolvimento. Afirmando o carter dualista das sociedades latino-americana, 654 Germani, Di Tella e Graciarena acabaram por compreender o populismo no continente como resultado de realidades sociais que teriam escapado, em funo de suas assincronias, ao desenvolvimento democrtico-liberal. No por acaso, essa concepo do populismo voltou-se muito mais para o que seria o [seu] carter autoritrio e ditatorial,
651 PRADO, Maria Lgia. O populismo na Amrica Latina. 2 edio. So Paulo: Brasiliense, 1981, p. 10-11. 652 Idem. 653 GRACIARENA, Jorge. Op. cit. 654 ANDRADE, Csar Ricardo de. Op. cit., p. 74. 255
deixando em segundo plano [seus] elementos nacionalista, desenvolvimentista e antiimperialista. 655
Partilhando da idia de que a realidade latino-americana no era passvel de ser explicada por intermdio de modelos utilizados anteriormente para compreenso do processo histrico europeu, Weffort e Ianni contrapuseram-se, no essencial, s tipologias utilizadas por Germani, Di Tella e Graciarena para dar conta do fenmeno populista utilizando-se, porm, de certas constataes e categorias destes tericos. Orientados por Florestan Fernandes, Ianni e Weffort interpretaram o populismo a partir de uma matriz terica que reconhecia uma historicidade prpria s naes perifricas do sistema capitalista. Tal como na perspectiva trotskista, a histria da Amrica Latina no poderia ser encarada enquanto desvio de um modelo histrico que se pretendia universal: a histria das naes centrais do capitalismo. Tambm nesses autores, a influncia da lei do desenvolvimento desigual e combinado no difcil de ser notada. Logo nas primeiras pginas de sua clssica obra A formao do Estado populista na Amrica Latina, Ianni deixou clara sua compreenso de que o desenvolvimento do capitalismo no continente se realizava de um modo distinto do que preteritamente ocorrera nas naes centrais:
H um andamento histrico estrutural que parece ser comum ao conjunto da Amrica Latina, ao lado das peculiaridades polticas, econmicas, sociais e culturais de cada pas. Em outros termos, por sob o desenvolvimento desigual e combinado, que diferencia os pases entre si e internamente, h relaes, processos e estruturas que aparecem e reaparecem em diferentes pases, devido ao modo pelo qual o conjunto da Amrica Latina e cada pas per si vincula-se ao capitalismo mundial. Alis, o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo no uma teoria do acaso, mas um modo particular de funcionamento das leis do capitalismo nas sociedades atrasadas ou dependentes. O pas atrasado assimila ou combina, de maneira sui generis, conquista materiais, instituies ou mesmo fases diversas do processo histrico das naes mais adiantadas. Mas necessrio observar, em primeiro lugar, que essa assimilao e combinao no se do ao acaso, mas segundo as condies scio- estruturais, polticas e econmicas do pas atrasado. Em segundo lugar, esses processos dependem das influncias, presses e interesses dos pases adiantados ou dominantes. Isto , no desenvolvimento desigual e combinado, em sentido lato, a determinao externa [...] em certos momentos fundamental. Nesse nvel, as pocas histricas dos pases da Amrica Latina esto parcial ou amplamente determinadas, conforme o caso, pelas flutuaes e desenvolvimentos do capitalismo mundial. 656
Para Ianni, assim como para Weffort, a derrocada dos regimes oligrquicos de cunho agro-exportador e a abertura no continente, com a crise de 1920, de uma vaga industrialista teriam ensejado um modo especfico de relacionamento poltico entre os diversos segmentos sociais e o Estado. A insero perifrica dos pases latino-americanos na economia mundial, que determinava a formao de suas classes sociais, impossibilitava a repetio das formas polticas que, nos pases originrios do capitalismo, teriam correspondido ao desenvolvimento
655 IANNI, Octavio. A formao do Estado populista... Op. cit., p. 29. 656 IANNI, Octavio. A formao do Estado populista...Op. cit., p. 15-16. 256
industrial e emergncia da sociedade burguesa. Historicamente, o processo de industrializao e seus desdobramentos scio-polticos na Amrica Latina no poderiam se processar nos moldes verificados nas naes centrais do sistema capitalista durante os sculos XVIII e XIX. Numa perspectiva totalizante, a relao dialtica entre o centro e a periferia do sistema condicionaria, em ltima anlise, a natureza do processo histrico vivenciado pelos pases perifricos; de todo modo, o contedo e forma constituintes do desenvolvimento capitalista na periferia latino-americana seriam to histricos quanto haviam sido, outrora, no centro do capitalismo. Para os tericos marxistas do populismo, as estruturas sociais e polticas da Amrica Latina se manifestariam ao nvel de suas possibilidades histricas, no podendo o populismo ser considerado como uma espcie de patologia histrico-social, tal como o fizeram alguns analistas guiados pelos esquemas interpretativos vindos da tradio europia do sculo XIX, 657 como os prprios Germani, Di Tella e Graciarena. Observando, certa feita, os limites estruturais da democracia brasileira a partir do caso da redemocratizao ps-Estado Novo, concluiu Weffort: a revoluo democrtica se realizando. Pobre revoluo, comparada ao modelo europeu, mas no temos e no teremos outra. 658
Crise de 1929, periferia e populismo Em termos mais estruturais, Ianni e Weffort apreenderam o populismo como uma forma poltica de relao entre classes sociais correspondente a uma determinada etapa do desenvolvimento capitalista latino-americano na qual, em funo da crise vivida pelo capitalismo mundial ps-1929 e da conseqente falncia dos modelos agro-exportadores, ganhara flego o processo industrial conhecido como substituio de importaes. Essa reorientao hacia adentro das economias perifricas teria provocado uma reconfigurao tanto nas relaes de dependncia entre estas e o mercado externo, quanto nas relaes scio- polticas presentes no interior dessas prprias formaes sociais perifricas: nessa perspectiva analtica, o populismo aparece tambm como um modo de organizao poltica das relaes de produo, numa poca em que se expandem as foras produtivas e o mercado interno. 659
Como sabido, imersas em uma aguda crise, as potncias imperialistas, que em sua maioria j vinham debilitadas desde o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), ficaram,
657 WEFFORT, Francisco. O populismo na poltica brasileira in ____ O populismo na poltica brasileira. Op. cit., p. 80. 658 WEFFORT, Francisco. Poltica de massas. Op. cit., p. 22. Curioso aqui notarmos que, embora preocupado em compreender as particularidades do desenvolvimento histrico latino-americano quando comparado ao europeu, Weffort, contudo, parece ter idealizado este ltimo, generalizao para o conjunto do velho continente o modelo democrtico-burgus que, como j vimos, foi, mesmo l, mais a exceo do que a regra. 659 IANNI, Octavio. A formao do Estado populista... Op. cit., p. 135. 257
aps 1929, incapazes de exercer seu domnio tal como nos moldes anteriores. Dessa forma, foi possvel a alguns pases que possuam certas pr-condies internas (como a existncia de um setor fabril j instalado, especialmente de bens no-durveis, e, consequentemente, de um pequeno, porm significativo, contingente operrio) levar a cabo um processo de desenvolvimento de suas foras produtivas, tornando-se, assim, menos sujeitos s flutuaes externas do mercado internacional. 660
A Grande Depresso da economia mundial nos anos 30 teria, segundo Weffort, minado as bases da velha sociedade latino-americana e aberto um perodo no qual pareciam existir as possibilidades de um desenvolvimento capitalista nacional. 661 De maneira similar, Ianni considerou ter o populismo algum compromisso com a idia de um capitalismo nacional, na medida em que envolvia uma reorientao do subsistema econmico nacional e certa ruptura com o imperialismo. 662 Debilitado por conta de seus conflitos endgenos (alm de atemorizado pelo fantasma do comunismo internacional, achamos necessrio observar), o imperialismo, naquele contexto especfico, teria possibilitado que certos setores das burguesias dependentes latino-americanas at ento subordinados s estruturas econmicas e polticas oligrquicas , em aliana com fraes da prpria oligarquia e elementos das classes mdias, procurassem desenvolver projetos de desenvolvimento econmico calcados na expanso do mercado interno. Em seu estudo sobre a variante populista cardenista, Ianni exps nitidamente a relao de causalidade entre a conjuntura econmica mundial e os processos de industrializao, de cariz nacional-estatistas, verificados ento na Amrica Latina:
O governo Crdenas se insere em uma poca em que o pas e o mundo capitalista do qual o Mxico faz parte esto empenhados em colocar em prtica, ou seguir aplicando, as medidas polticas e econmicas de cunho anticclico. O mundo capitalista se encontrava ainda sob o impacto da depresso econmica iniciada em outubro de 1929. Da as medidas protecionistas, os programas de obras pblicas, as polticas de incentivo ao setor privado etc. [...] A confluncia dos processos poltico-econmicos confere ao governo Crdenas a conotao de um governo altamente dinmico e acentuadamente estatizante, alm de nacionalista. O contexto histrico em que se localiza esse governo impe solues prticas, imediatas e mediadas de tipo keynesiano. Ademais, toda a dcada de 1930, no mundo capitalista, keynesiana. 663
Pela mesma lgica global, o socilogo procurou apreender o processo de industrializao brasileira que, como se sabe, se desenvolvera exponencialmente naquela etapa histrica:
660 No Brasil, por exemplo, tal desenvolvimento culminaria, nos anos 40, com a implantao da indstria de bens de produo sob responsabilidade estatal. 661 WEFFORT, Francisco. O populismo na poltica brasileira. Op. cit., p. 69. 662 IANNI, Octavio. A formao do Estado populista... Op. cit., p. 156. 663 IANNI, Octavio. El Estado capitalista... Op. cit., p. 123-124. Traduo nossa. 258
inegvel que a industrializao no Brasil ocorreu ao acaso das flutuaes das relaes externas. As condies econmicas, sociais e polticas internas, que foram as bases efetivas dos surtos de desenvolvimento industrial, somente puderam ser dinamizadas devido s oscilaes e rupturas havidas nos vnculos do Brasil com a Inglaterra, a Alemanha, a Frana, os Estados Unidos e outras naes. Por essa razo, a histria da industrializao no Brasil ao mesmo tempo a histria das relaes com os pases que desempenham papis hegemnicos. Em verdade, os progressos da produo fabril colocam em confronto e em encadeamento a histria nacional e universal. A histria brasileira, mais uma vez, funde-se e ilumina-se na histria do capitalismo. Em boa parte, aquela funo desta. 664
A falncia do modelo agro-exportador teria aberto a algumas economias perifricas da Amrica Latina o horizonte da diversificao de suas estruturas produtivas internas. J abalados pelas foras emergentes de uma urbanizao crescente, os regimes oligrquicos teriam, nessa nova conjuntura internacional, finalmente encontrado seu ocaso. Politicamente, o enfraquecimento das oligarquias agrrias da regio, antes hegemnicas e solitrias no poder, teria colocado a possibilidade de efetiva participao na esfera estatal de outros grupos sociais at ento nela marginalizados ou simplesmente dela excludos. Nesse contexto de significativas transformaes nas bases econmico-sociais do continente (urbanizao e industrializao, principalmente), que se formaram, segundo Ianni, movimentos, partidos e governos populistas assentados em policlassistas coalizes anti-oligrquicas, cujo objetivo primeiro seria justamente o da acelerao das rupturas estruturais (polticas e econmicas, internas e externas) que haviam debilitado a oligarquia e confundido o imperialismo.: 665
O declnio da oligarquia e o surgimento do populismo so fenmenos relacionados tanto crise das relaes de dependncia como s transformaes sociais, mais ou menos intensas e amplas, havidas no interior de vrias sociedades latino-americanas. Ao surgirem as novas foras sociais e polticas geradas com a urbanizao, a industrializao e o crescimento do setor tercirio, destroem-se algumas das bases mais importantes do poder oligrquico e criam-se as condies para as novas formas de organizao do poder. Nessa ocasio, a cidade adquire hegemonia sobre o campo. Isto , as classes sociais urbanas, descontentes com o monoplio do poder poltico-econmico pela oligarquia, propem novas estruturas do poder. A partir da economia e da cultura da cidade, a burguesia industrial, a classe mdia e o proletariado, alm de militares, intelectuais e estudantes universitrios, movimentam-se e organizam-se contra o poder oligrquico. 666
Crise de hegemonia, Revoluo de 1930, compromisso e populismo Ainda segundo Ianni, a falncia dos sistemas oligrquicos teria exposto, mesmo nos pases mais urbanizados, uma incapacidade da parte de qualquer um desses segmentos sociais emergentes (burguesia industrial, classes mdias e proletariado) em substituir as antigas oligarquias hegemnicas no exerccio da conduo poltica da nao. A vigncia dessa crise de hegemonia em tempos de substantivas mudanas nas sociedades latino-americanas
664 IANNI, Octavio. O colapso do populismo... Op. cit., p. 23. 665 IANNI, Octavio. A formao do Estado populista... Op. cit., p. 109. 666 Idem, p. 83. 259
se constituiria, assim, na base explicativa para o surgimento dos novos regimes polticos no continente, calcados em compromissos e alianas:
O fato que as situaes histricas em que surgem governos populistas na Amrica latina tm se caracterizado pela ausncia de uma classe social suficientemente forte, politicamente organizada e com viso hegemnica de si para assumir e exercer o poder sozinha. Por isso a aliana se torna necessria. Unem-se as foras polticas de vrias classes, ou seus grupos, para propor e impor um programa alternativo quele sustentado pelas oligarquias e o imperialismo. Nesse tipo de aliana, o conjunto das classes assalariadas, em especial, o proletariado, aparece no Estado populista como classes subalternas. 667
Por um vis semelhante, Francisco Weffort buscou compreender os desdobramentos scio-polticos da ruptura institucional havida em 1930 no Brasil pas sobre o qual centraremos a ateno a partir de agora. Convm lembrarmos que a interpretao proposta pelo cientista poltico sobre a Revoluo de 1930 considerada o marco inicial do populismo brasileiro contraps-se, quando lanada, s vises ento dominantes entre os intelectuais de esquerda do pas, ligados ao pensamento comunista (PCB) e nacionalista. Como pesquisas acadmicas depois assinalariam, a inovadora interpretao de Weffort (corroborada por Boris Fausto, Ianni, entre outros) resgatava, por outro lado, aspectos presentes nas anlises sobre o evento produzidas, no calor dos acontecimentos, pelos primeiros grupos trotskistas do Brasil. Vejamos isso rapidamente. Pode-se dizer que o PCB, desde pelo menos o seu II Congresso, realizado em 1925, 668
j possua uma concepo dualista de interpretao da situao scio-histrica do pas. Inspiradas em grande parte no ensaio Agrarismo e industrialismo, redigido em 1924 pelo intelectual comunista e ex-militante anarquista Octvio Brando, 669 as teses desse II Congresso concebiam a formao social brasileira a partir da existncia de dois setores, duas realidades antiteticamente posicionadas: de um lado, estaria o arcasmo agrrio, um capitalismo semifeudal capitaneado por latifundirios e cafeicultores, os quais, com o apoio do capital financeiro ligado ao imperialismo ingls, exploravam com mtodos pr-capitalistas a populao rural pauperizada e detinham o poder poltico da nao; do outro lado, moderno, teria lugar um incipiente capitalismo industrial que, liderado por uma fraca e timorata
667 Idem, p. 160. 668 O primeiro congresso do PCB data de maro de 1922, quando foi fundado o partido a partir da reunio de vrios grupos comunistas regionais, muitos deles constitudos por cises do ativo e poca influente movimento anarquista no pas. 669 BRANDO, Octavio. Agrarismo e industrialismo. Ensaio marxista-leninista sobre a revolta de So Paulo e a guerra de classes no Brasil. So Paulo: Anita Garibaldi, 2006. poca de sua primeira publicao, em 1926, o ensaio que contava com mais duas partes elaboradas respectivamente em 1925 e 1926 apareceu com a assinatura de Fritz Mayer (pseudnimo de Brando) e tendo como local da edio a capital argentina Buenos Aires, ambas artimanhas utilizadas para despistar a polcia poltica local. 260
burguesia (fabril e comercial) vinculada ao imperialismo norte-americano, articulava massas proletrias e pequeno-burguesas nos centros urbanos em crescimento. Apoiando-se nessa leitura antidialtica da estrutura social brasileira, o PCB, como j adiantamos, propugnava a realizao de uma revoluo democrtica que eliminasse os entraves semifeudais ao desenvolvimento de um moderno capitalismo no Brasil, o que implicaria necessariamente em uma ruptura com o imperialismo que, para os marxistas brasileiros, obstaria a expanso das foras produtivas e do mercado interno em territrio nacional. Na ausncia de uma burguesia revolucionria nativa, a direo desse processo disruptivo, segundo os comunistas, deveria ficar a cargo da pequena-burguesia urbana, a qual teria como melhor expresso poltica o movimento tenentista que abalara o regime oligrquico com investidas putschistas em 1922 (Rio de Janeiro) e 1924 (So Paulo). A frmula de uma revoluo democrtico-pequeno-burguesa, cunhada por Brando e encampada pelo partido em seu II Congresso, surgia, ento, como um eixo estratgico que orientaria a poltica etapista dos comunistas brasileiros. A tarefa central da militncia pecebista seria, portanto, a de estreitar laos com os setores mdios radicalizados na esperana de que, quando estes desencadeassem sua terceira revolta, o partido tivesse condies de imprimir-lhe um carter popular e anti-imperialista. 670
Embora uma parcela da historiografia tenha ressalvado que, at meados de 1929, as relaes entre a Internacional Comunista e o PCB estiveram longe de ser regulares e assduas, 671 no difcil, a partir do exposto acima, notarmos que, j em 1925, existia uma proximidade entre as diretrizes polticas da IC para os pases coloniais/semicoloniais (apresentada em nosso segundo captulo) e a concepo de revoluo brasileira adotada pelos comunistas brasileiros. Contudo, certo que, a partir do giro ultra-esquerdista da IC em seu VI Congresso (1928), 672 a influncia da IC sobre o partido brasileiro se tornaria mais ntida. Se os efeitos da nova orientao poltica da IC (terceiro perodo) 673 j puderam ser sentidas na realizao do III congresso do PCB, realizado entre 29 de dezembro de 1928 e 4 de janeiro de 1929, foi somente a partir da I Conferncia dos PCs latino-americanos, ocorrida
670 nesse sentido que se pode compreender, por exemplo, a conformao, em 1927, do Bloco Operrio (BO) depois Bloco Operrio e Campons (BOC) , legenda eleitoral animada pelo PCB que buscava a aproximao da classe trabalhadora com os demais setores subalternos da cidade e do campo. A busca por uma aproximao com os tenentes , por sua vez, o que explica as tentativas de contato do partido com o lder tenentista Luiz Carlos Prestes que, exilado na Bolvia, recebeu, em 1927, a visita do intelectual e chefe comunista Astrojildo Pereira. Anlises sintticas desse momento poltico-programtico do PCB podem ser encontradas em SILVA, Angelo Jos. Comunistas e trotskistas: a crtica operria Revoluo de 1930. Curitiba: Moinho do Verbo, 2002, p. 47-90 e ZAIDAN FILHO, Michel. PCB (1922-1929): na busca das origens de um marxismo nacional. So Paulo: Global, 1985, p. 53-98. 671 ZAIDAN FILHO, Michel. Op. cit., p. 54. 672 Ver captulo 2. 673 Idem. 261
em junho de 1929 em Buenos Aires, que a fina sintonia entre o partido brasileiro e a IC seria finalmente alcanada. Numa abrupta e sectria inflexo poltica, o PCB produziu uma severa autocrtica sua posio de aliana com a pequena-burguesia, expurgou seu ncleo central (tambm ele considerado pequeno-burgus) e afrouxou seus laos com a ala esquerda do movimento tenentista, liderada por Prestes visto agora pelos pecebistas como uma figura pequeno-burguesa, uma espcie de Chiang Kai-Shek brasileiro. Permaneceram na perspectiva partidria, entretanto, vrios outros elementos que orientavam terica e politicamente os comunistas brasileiros desde o II Congresso, tais como a lgica dualista de interpretao da realidade nacional, a tese da existncia de uma disputa inter-imperialista (anglo-americana) no pas, assim como a defesa de uma etapa ainda capitalista para a revoluo brasileira, chamada de antiimperialista nacional, democrtica etc., mas no mais de democrtico-pequeno-burguesa. 674
Foi guiado por essa concepo poltico-programtica que o PCB deparou-se com o golpe de Estado assestado em outubro de 1930, o qual apeou Washington Lus da Presidncia da Repblica e a ela conduziu, no dia 3 de novembro, o lder gacho Getlio Vargas, da Aliana Liberal. Sem muito esforo interpretativo, os dirigentes pecebistas consideraram o evento como resultado de um choque entre os imperialismos ingls e norte-americano. Embora mais vinculada ao segundo, a Aliana Liberal no se resumiria, para os comunistas, a um mero instrumento dos capitalistas de Wall Street, dada a superioridade das inverses inglesas sobre as norte-americanas no pas. 675 Na retrica do partido, os dirigentes do movimento aliancista, sobretudo os de origem tenentista, como Miguel Costa, foram usualmente denominados de fascistas. Seguindo a mesma linha de raciocnio, o movimento sedicioso de 1932 protagonizado pelas oligarquias paulistas seria percebido como mais uma expresso da luta contnua travada entre os diferentes grupos feudal-burgueses por se apossar
674 Essa guinada ultra-esquerdista do PCB conduziu, tambm, adoo de uma postura obrerista por parte da sua direo. Ideologia altamente fetichista baseada num estpido culto classe operria e seu alienado modo de vida sob o capitalismo, o obrerismo e sua derivada diretriz organizativa, a chamada bolchevizao, funcionaram tanto no PCUS quanto na IC como ardilosas armas polticas na cruenta luta contra o trotskismo levada a cabo pela burocracia estalinista. No PCB, alm de servir a essa mesma finalidade (combate oposio interna trotskista, da qual trataremos mais adiante), a poltica da proletarizao interna foi mobilizada tambm para excluir da direo, e depois das prprias fileiras partidrias, intelectuais como Astrogildo Pereira e Otvio Brando, responsabilizados diretamente pelos desvios de direita contidos na linha poltica anterior Quanto aos impactos das polticas da IC no PCB a partir de 1929, ver, entre outras obras, PINHEIRO, Paulo Srgio. Estratgias da iluso. A revoluo mundial e o Brasil (1922-1935) So Paulo: Companhia das letras, 1991. 675 possvel que o imperialismo americano tenha apoiado a Aliana Liberal com o fim de combater a poltica de valorizao do caf, mas o imperialismo americano no poder fazer da Aliana Liberal um instrumento cego a servio de seus interesses. preciso considerar a diversidade de cada Estado e o fato de que as posies econmicas decisivas esto nas mos dos imperialismos ingls e americano. E o imperialismo ingls controla a parte mais importante... (PCB. Os ltimos acontecimentos no Brasil e as perspectivas de novas lutas [janeiro de 1931] in CARONE, Edgard. O PCB [1922 a 1943]. Volume I. So Paulo: Difel, 1982, p. 112-113.). 262
[sic] do governo e defender seus interesses econmicos e polticos e levar a cabo seu programa de soluo da crise em favor do caf, do gado e da indstria. 676
Superada a fase ultra-esquerdista, o PCB, guiado a partir de 1935 pelo signo das frentes-populares, 677 tornou seu entendimento da realidade e do processo histrico brasileiro cada vez mais submetido ao imperativo poltico de uma aliana com a chamada burguesia nacional, com vistas a tal revoluo democrtico-burguesa. Com o passar dos anos, a perspectiva interpretativa dos pecebistas foi se tornando mais claramente dualista, e sua poltica incorrigivelmente oportunista. Por uma tica retrospectivamente etapista, a Revoluo de 1930 passou a ser interpretada historicamente como um momento que teria marcado a ascenso poltica de setores progressistas, e at mesmo antiimperialistas, da burguesia brasileira setores estes que comporiam a chamada burguesia nacional em detrimento dos setores burgueses reacionrios e dos grupos oligrquicos e feudais, ligados diretamente ao imperialismo. A partir do final da dcada de 1950, coadunadas com o pensamento nacionalista, as teses do PCB ganharam certa notoriedade nos meios acadmicos. Nelson Werneck Sodr, em sua Histria da burguesia brasileira, citando Wanderley Guilherme, definiu o episdio de 1930 como o golpe da burguesia. 678 Tal posicionamento constitua-se em uma decorrncia analtica de uma interpretao histrica que vislumbrava nos anos 1920 um antagonismo entre o imperialismo, alicerado nas classes latifundirias, e a expanso industrial voltada para o mercado interno, que teria tido como protagonista a burguesia industrial (nacional). Sendo assim, o carter industrialista assumido pelo Estado brasileiro aps a Revoluo de 1930, em especial a partir de 1937, seria uma evidncia de que a burguesia industrial teria se apossado da mquina estatal com o fim da Primeira Repblica (1889-1930). Lembramos ainda que ao lado dessa esquemtica leitura existiram outras que enfocavam o papel dirigente das classes mdias na Revoluo de 1930: inaugurada pelo pioneiro trabalho de Virginio Santa Rosa, 679
essa perspectiva foi desenvolvida por intelectuais nacionalistas como Guerreiro Ramos e Hlio Jaguaribe, ambos isebianos. 680
Francisco Weffort adepto, como vimos, de outra concepo sobre a historicidade dos pases perifricos, e do Brasil em particular observaria de forma substancialmente distinta o golpe de Estado de outubro de 1930. Segundo o cientista poltico, a crise internacional
676 PCB. Brasil; campo das grandes lutas armadas [dezembro de 1932] in CARONE, Edgard. O PCB [1922 a 1943]. Op. cit., p. 137-138. 677 Ver captulo 2. 678 SODR, Nelson Werneck. Histria da burguesia brasileira. Rio de Janeiro: Civilizao brasileira, 1964, p. 290. 679 SANTA ROSA, Virginio. O sentido do tenentismo. Rio de Janeiro: Schmidt Editor, 1932 (?); 680 RAMOS, Alberto Guerreiro. A crise do poder no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1961; e JAGUARIBE, Hlio. Desenvolvimento econmico e desenvolvimento poltico. Rio de Janeiro: Fundo de cultura, 1962, respectivamente. 263
iniciada em 1929 acirrou os conflitos j existentes entre as fraes oligrquicas no interior do sistema agro-exportador. A esse acirramento dos conflitos intra-oligrquicos teriam se somado, na qualidade de elementos desestabilizadores da velha ordem, as aspiraes liberal- democrticas das classes mdias e o clamor por maior participao poltica da parte dos setores burgueses ligados industrializao. Entretanto, apesar destes ltimos terem sido talvez os maiores beneficirios das mudanas polticas que se verificam depois de 1930,
seria ilusrio supor que teriam tido um papel importante nos acontecimentos que levam crise da oligarquia. O movimento da Aliana Liberal contra o antigo regime foi antes de tudo o resultado de uma transao entre alguns grupos urbanos de classe mdia e alguns setores agrrios que mantinham uma posio divergente no interior do sistema oligrquico. A burguesia industrial, como fora poltica individualizada, esteve praticamente ausente do processo revolucionrio. As classes mdias, por sua vez, no demonstraram possuir aquela vocao para o poder que lhes teria permitido transformar o movimento de 1930 no ponto de partida de um novo regime coerente com suas aspiraes liberal- democrticas. 681
Segundo Weffort, a falncia do sistema poltico da Primeira Repblica teria aberto uma situao na qual nenhum dos segmentos sociais possua condies de, politicamente, fazer valer seus interesses particulares sobre o restante da nao. Na tica do autor, a soluo encontrada para essa crise de hegemonia expressou-se pela frmula de um compromisso:
Depois de 1930 [...] estabelece-se uma soluo de compromisso de novo tipo, em que nenhum dos grupos participantes do poder (direta ou indiretamente) pode oferecer as bases da legitimidade do Estado: as classes mdias porque no possuem autonomia poltica frente aos interesses tradicionais em geral, os interesses cafeeiros porque foram deslocados do poder poltico sob o peso da crise econmica, os setores menos vinculados exportao porque no se encontram vinculados aos centros bsicos da economia. Em nenhum desses casos, os interesses sociais e econmicos particulares podem servir de base para a expresso poltica dos interesses gerais. 682
Na perspectiva de Weffort, o Estado de compromisso, resultante da Revoluo de 1930, seria uma forma de organizao do poder estatal decorrente da impossibilidade por parte de qualquer um dos setores dominantes de se fazer hegemnico tal como certas fraes da oligarquia no perodo anterior a residiria, segundo o autor, a explicao para o carter de massas assumido pelo Estado desde ento (Estado de Massas), aspecto que veremos mais frente. O populismo brasileiro, iniciado em 1930, teria sido, assim, uma das manifestaes das debilidades polticas dos grupos dominantes urbanos quando tentaram substituir-se oligarquia nas funes de domnio poltico de um pas tradicionalmente agrrio. 683
681 WEFFORT, Francisco. O populismo na poltica brasileira. Op. cit., p. 63-64. 682 WEFFORT, Francisco. Estado e Massas no Brasil in O populismo na poltica brasileira. Op. cit., p. 50. 683 WEFFORT, Francisco. O populismo na poltica brasileira. Op. cit., p. 61. Contudo, a prpria categoria de Estado de compromisso passvel de ser questionada por um vis marxista, dado o carter um tanto quanto tautolgico que encerra. Como indagou a historiadora Virgnia Fontes, quando do exame de qualificao de nossa dissertao (DEMIER, Felipe. Do movimento operrio pra universidade: Len Trotsky e os estudos sobre o populismo brasileiro. Op. cit.), no seria todo Estado capitalista um Estado de compromisso por excelncia?. Uma boa discusso sobre o tema pode ser vista em FONTES, Virgnia. Que hegemonia? Peripcias de um 264
Essa abordagem de Weffort distinta, portanto, daquelas que atribuam o fim do sistema oligrquico a um golpe da burguesia (industrial) ou das classes mdias seria desenvolvida pelo historiador Boris Fausto em seu trabalho que se tornaria o divisor de guas do debate acerca da Revoluo de 1930. 684 As semelhanas entre as vises do cientista poltico e as do historiador so notrias:
Vitoriosa a revoluo, abre-se uma espcie de vazio de poder, por fora do colapso poltico da burguesia do caf e da incapacidade das demais fraes de classes para assumi-lo, em carter exclusivo. O Estado de compromisso a resposta para esta situao. Embora os limites da ao do Estado sejam ampliados para alm da conscincia e das intenes de seus agentes, sob impacto da crise econmica, o novo governo representa mais uma transao no interior das classes dominantes, to bem expressa na intocabilidade sagrada das relaes sociais no campo. 685
Para Fausto, o Estado de compromisso, justamente em funo das condies de crise em que nasceu, proporcionou uma ampliao das funes econmicas estatais (intervencionismo econmico) e uma maior centralizao da esfera poltica:
O Estado de compromisso, expresso do reajuste nas relaes internas das classes dominantes, corresponde, por outro lado, a uma nova forma de Estado, que se caracteriza pela maior centralizao, o intervencionismo ampliado e no restrito apenas rea do caf, o estabelecimento de uma certa racionalizao no uso de algumas fontes fundamentais de riqueza pelo capitalismo internacional (Cdigo de Minas, Cdigo de guas) A maior centralizao facilitada pelas alteraes institucionais que pem fim ao sistema oligrquico, o que no se confunde com o fim das oligarquias [...]. A nova forma de Estado mais centralizado, intervencionista uma condio bsica para a expanso das atividades industriais, mesmo quando deformada e submetida ao capital externo. 686
Segundo o historiador, fundamental para a efetivao dessa nova forma de Estado (regime), centralizada e intervencionista, teria sido o papel desempenhado na cena poltica pelas Foras Armadas:
A instituio que garante a existncia do Estado de Compromisso o Exrcito. Ele sustenta o regime no no carter de estrato protetor das classes mdias, mas como liame unificador das vrias fraes da classe dominante. Aos olhos do general Ges Monteiro, as Foras Armadas aparecem como a concentrao da nacionalidade, diante da incapacidade da opinio pblica do pas para se organizar em foras nacionais. Nessas condies, o Exrcito e a Marinha tero que ser, naturalmente, ncleos construtores, apoiando governos fortes, capazes de movimentar e dar nova estrutura existncia nacional porque s com fora que se pode construir, visto que com a fraqueza s se constroem lgrimas. 687
conceito no Brasil in ____. Reflexes im-pertinentes. Histria e capitalismo contemporneo. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2005, p. 201-232. 684 FAUSTO, Boris. A revoluo de 1930. Histria e historiografia. 4 edio. So Paulo: Brasiliense, 1976. 685 Idem, p. 113. No podemos deixar de observar que a noo de vazio de poder utilizada por Fausto guarda muito mais proximidade com a perspectiva liberal-funcionalista do que propriamente com a marxista, que estrutura teoricamente seu trabalho em questo. 686 FAUSTO, Boris. Op. cit., p. 109-111. 687 Idem, p. 106. 265
Em 1993, no seu estudo sobre o nascimento do movimento trotskista brasileiro, Jos Castilhos Marques Neto mencionou muito rapidamente o fato de Boris Fausto ter trabalhado com os mesmos argumentos utilizados pelos trotskistas da Liga Comunista do Brasil para explicar a Revoluo de 1930. 688 Entretanto, seria Angelo Jos da Silva que, em sua supracitada pesquisa publicada em 2002, demonstraria esse nexo de um modo sistemtico. 689
Silva destacou que os revolucionrios da LCB, em um artigo intitulado Aos trabalhadores do Brasil publicado em janeiro de 1931 no Boletim da Oposio (um dos rgos da corrente), j vislumbravam o acirramento do carter repressivo do Estado, assim como seu vis cada vez mais centralizador:
O governo federal tornou-se to absorvente, to grande a soma de poder enfeixada nele, que a burguesia de um estado que se apodera dele pode exercer um controle quase completo de todas as foras do Estado [...]. Manter a unidade burguesa do Brasil, manter a centralizao do poder poltico, sob a forma de ditadura militar manifesta ou declarada, de baioneta calada sobre as massas exploradas e oprimidas, manter essa unidade num pas em que o desenvolvimento das foras produtivas, nos diferentes estados, se faz desigualmente, acelerado o processo de desagregao pela invaso do capital financeiro internacional, pretender livrar a ptria brasileira do desmembramento, eis a misso histrica dos generais da revoluo, dos Juarez Tvora e Miguel Costa, dos Joo Alberto e Ges Monteiro a servio da burguesia. A unidade nacional burguesa foi mantida graas vitria da Aliana Liberal. Suprimidos do cenrio poltico alguns figures mais comprometidos, o acordo geral da burguesia est sendo restabelecido custa de uma opresso maior das classes pobres, reduzidas s mais duras condies de vida. Esse acordo geral ser no Brasil burgus a ltima forma conciliatria entre a centralizao do Estado, processo econmico de desenvolvimento capitalista e a forma federativa, garantia de unidade poltica. 690
Alm do aumento da represso estatal sobre as massas trabalhadoras e da centralizao do poder poltico, podemos notar tambm nos trechos acima como os trotskistas j observavam, a partir da expresso de acordo geral da burguesia, o compromisso, ao nvel do Estado, que se configurava entre os diversos setores da classe dominante. Entretanto, seria em outro documento da organizao, datado de maio de 1933, que essa idia ficaria mais ntida:
688 MARQUES NETO, J. C. Op. cit., p. 182-183. 689 SILVA, Angelo Jos. Op. cit. Curiosamente, nem Marques Neto, nem Silva chamaram a ateno para o fato de que o trabalho de Fausto sobre 1930 um desenvolvimento historiogrfico da tese levantada anteriormente por Weffort acerca do chamado Estado de compromisso, o que, consequentemente, tambm vincularia, de certo modo, a produo de Weffort sobre o rearranjo poltico de 1930 s teses trotskistas. Em recente entrevista concedida a Paulo Fontes, do Centro de Pesquisa e Documentao da Fundao Getlio Vargas (CPDOC-FGV), Boris Fausto afirmou que a influncia do pensamento trotskista foi muito forte em sua famosa obra sobre a Revoluo de 1930, a qual teria tido, segundo o prprio autor, uma clara inspirao poltica: a negao do papel progressista da burguesia nacional, a idia de revoluo permanente, tudo isso estava subjacente quele meu discurso da poca, disse Fausto. Na mesma entrevista, o historiador confirmou que muitos dos conceitos com os quais trabalhou, como Estado de compromisso, eram de autoria de Weffort, com quem mantinha, ento, um dilogo constante. (http://cpdoc.fgv.br/cientistassociais/borisfausto. Bloco 4. Acessado em 26/07/2011). 690 LIGA COMUNISTA DO BRASIL. Aos trabalhadores do Brasil in ABRAMO, F. e KAREPOVS, D (orgs.) Op. cit., p. 59-60. 266
Com a derrocada do PRP [Partido Republicano Paulista], precipitado do seu fastgio pela crise da grande lavoura de caf, comeou uma srie de ensaios tendentes substituio do antigo aparelho partidrio controlador do governo federal, por uma nova composio de foras estaduais, representando as zonas de produo, na qual o exrcito, em vista da ausncia de partido nacional, fazia papel de fermento aglutinante. Essa substituio deu-se evidentemente pela ausncia de partidos intermedirios. O exrcito imps burguesia um regime poltico misto de formas ditatoriais (tenentismo) e formas semiconstitucionais (governo central civil, presidncia civil de Minas etc.) que no so seno a forma de compromisso entre a burguesia dos estados do Sul e a burguesia dos estados do Norte, compromisso vlido somente na medida em que So Paulo no possa recuperar a antiga hegemonia. 691
Tambm como ponto de contato entre as anlises trotskistas e as de Weffort e Fausto, podemos destacar a concepo, comum a todas elas, de que as classes mdias do perodo sofreriam de uma congnita debilidade poltica, o que as impossibilitavam de assumir um papel de proa no processo poltico em curso. Se, para Weffort e Fausto, como pde ser percebido em alguns trechos que transcrevemos, as classes mdias no possuam uma vocao para o poder, dada a sua carncia de autonomia poltica frente aos interesses tradicionais em geral, para os trotskistas da LC, a pequena-burguesia urbana no Brasil e, sobretudo, em So Paulo seria
destituda de toda importncia poltica, incapaz de desempenhar um papel autnomo, incapaz de, na poca imperialista, continuar as suas tradies jacobinas de revolucionarismo democrtico [...] no Brasil atrasado, com um proletariado incipiente, ela se encontra comprometida em parte pelos arreganhos e roupagens demaggicas de um fascismo crioulo, a servio do capital financeiro internacional. 692
Populismo e trabalhadores: a cidadania das massas Voltemos teoria do populismo. Visando alcanar uma nova estabilidade poltico-social e, em ltima anlise, assegurar a manuteno da ordem social capitalista agora no mais em termos propriamente oligrquicos o Estado populista, encerrando uma relativa autonomia face aos interesses especficos das distintas fraes da classe dominante, teria estabelecido entre elas um compromisso (tcito), ao mesmo tempo em que passava a incorporar s suas estruturas institucionais as potencialmente perigosas massas populares. Dialeticamente, seriam justamente estas ltimas que, introduzidas subalternamente na vida poltica oficial, teriam conferido legitimidade ao novo e encorpado aparelho estatal:
Nessas condies, aparece na histria brasileira um novo personagem: as massas urbanas. a nica fonte de legitimidade possvel ao novo Estado brasileiro. O mecanismo pelo qual as massas conseguem assumir tal papel histrico revela-se com toda a clareza depois da redemocratizao do pas [1945-1946]. No obstante, as condies polticas que tornaram esse mecanismo j esto pronunciadas na crise institucional que se abre em 1930 [...]
691 LIGA COMUNISTA DO BRASIL Projeto de teses sobre a situao nacional in ABRAMO, F. e KAREPOVS, D. Op. cit., p. 161. Grifos nossos. 692 LIGA COMUNISTA DO BRASIL. Carta aos camaradas do Partido Comunista in ABRAMO, F. e KAREPOVS, D. Op. cit., p. 119. 267
O Estado encontrar, assim, condies de se abrir a todos os tipos de presses sem se subordinar, exclusivamente, aos objetivos imediatos de qualquer delas. Em outros termos: j no uma oligarquia. No tambm o Estado tal como se forma na tradio ocidental. um certo tipo de Estado de massas, expresso da prolongada crise agrria, da dependncia dos setores mdios urbanos e da presso popular. 693
Para Ianni e Weffort, essa nova configurao assumida pelo Estado brasileiro a partir da Revoluo de 1930 teria promovido uma dinmica poltica na qual a manipulao das massas urbanas por parte de algumas lideranas regionais ou nacionais desempenharia um papel precpuo. Tal aspecto manipulatrio, porm, no se reduziria, segundo os autores, a uma simples prtica demaggica operada por solertes polticos carismticos. Sustentculos sociais do instvel poder poltico expresso pelo Estado de compromisso, as massas populares teriam adquirido cidadania por intermdio da implementao da legislao trabalhista que reconhecia classe trabalhadora os chamados direitos sociais. Em uma situao de crise de hegemonia, os novos grupos dirigentes da nao teriam sido forados a levar sempre em conta nas suas deliberaes a existncia das demandas populares e a pr em prtica ou estabelecer as condies mnimas ao exerccio da cidadania, por parte [das] massas 694
(salrio mnimo, regulamentao da jornada de trabalho, proteo ao trabalhador, aposentadoria, frias remuneradas, escola primria gratuita, assistncia mdica etc.). Portanto, a manobra de massas, elemento fundamental na teoria do populismo, decorreria, segundo seus prprios elaboradores, mais das condies scio-polticas verificadas em certa etapa da modernizao capitalista brasileira do que propriamente da habilidade ludibriadora de algumas destacadas personalidades (Vargas, Jango, Jnio, Ademar de Barros etc.). Nas palavras de Weffort, o populismo foi sobretudo a expresso mais completa da emergncia das massas populares no bojo do desenvolvimento urbano e industrial verificado nesses decnios, e da necessidade, sentida por alguns dos novos grupos dominantes, de incorporao das massas ao jogo poltico. 695
Arquitetada pelo Estado por meio da manobra de massas, teria se originado sob o populismo um tipo particular de aliana de classes, na qual o discurso anti-oligrquico (anti-elites) e a retrica nacionalista (por vezes, antiimperialista) se constituam em ingredientes ideolgicos importantes. Portando-se subjetivamente como massa e no como classe, o proletariado brasileiro teria politicamente se enredado no projeto de modernizao capitalista conduzido por um Estado arbitral que, no obstante ter sido miticamente tomado
693 WEFFORT, Francisco. Estado e massas no Brasil. Op. cit., p. 54-56. Baseando-se nas proposies de Weffort, o cientista poltico Robert Rowland fez questo de destacar que o compromisso bsico naquele contexto deu-se entre os vrios setores da classe dominante. Procurando garantir esse compromisso, que o Estado que o expressava (Estado de compromisso) teria estabelecido relaes com a classe operria. (ROWLAND, Robert. Classe operria e Estado de compromisso. in Estudos Cebrap n8. Edies Cebrap/Editora brasileira de cincias, abril-maio-junho de 1974, p. 36-37). 694 IANNI, Octavio. A formao do Estado populista... Op. cit., p. 126. 695 WEFFORT, F. O populismo na poltica brasileira. Op. cit., p. 61. 268
como soberano e neutro por vrios segmentos sociais, atenderia, na realidade, aos interesses comuns da classe dominante em uma conjuntura de expanso das foras produtivas e desenvolvimento do mercado interno. A poltica de massas populista, assentada essencialmente na cidadania conferida s massas pela legislao trabalhista, teria possibilitado, assim, uma mobilizao controlada de amplos setores populares dirigida pelo Estado industrialista e voltada para o combate aos interesses das fraes burguesas politicamente mais reacionrias, adeptas de um retorno antiga hegemonia agrarista baseada em uma maior dependncia da economia nacional face ao mercado mundial. Afastados de seus reais interesses de classe, os trabalhadores brasileiros teriam funcionado como uma base social e poltica no processo de industrializao nacional, coordenado pelo Estado de compromisso. Numa interpretao parecida, o POR reconhecera em Vargas a representao poltica, no interior de seu segundo governo, de uma frente nica constituda por pecuaristas interessados no mercado interno e pela burguesia industrial nacional, ambos setores que, objetivando resistir poltica asfixiante e monopolista do imperialismo, teriam procurado apoio nas massas populares. 696
Essa busca de apoio nas massas populares por parte dos Estados perifricos em um momento de reordenao de suas estruturas econmicas e de suas relaes com o imperialismo foi tambm destacada por Florestan Fernandes. Descartando, como j vimos, a possibilidade de a burguesia nacional realizar uma autntica revoluo democrtica e nacional, o socilogo compreendia, entretanto, o fato de as classes dominantes dos pases submetidos ao imperialismo serem, em determinados momentos e de modo bastante restrito, obrigadas a abrir o Estado presena dos setores explorados:
A burguesia [dos pases perifricos] tende a maximizar seus alvos puramente econmicos nas fases de transio ao capitalismo e a minimizar suas identificaes ideais ou utpicas com a democracia e com a revoluo nacional. Todavia, em condies concretas de tal natureza que ela se v compelida a criar um espao poltico seguro, seja para enfrentar e debelar a presso de baixo para cima (de massas mais ou menos excludas e oprimidas), seja para ter base poltica de barganha e de auto-proteo nas relaes com as naes capitalistas hegemnicas e com a burguesia internacional, seja, enfim, para vincular o rpido crescimento de um Estado forte intervencionista aos seus prprios interesses de classe e ao padro de dominao de classe. 697
A idia de um Estado de compromisso que vai buscar sua legitimidade nas massas populares consta tambm no estudo de Ianni sobre o fenmeno cardenista. Segundo o socilogo, sob o governo do general mexicano
696 SOUZA, M. "La cada de Vargas el desarrollo de los acontecimientos". Revista Marxista Latino-Americana, n. 2-3, janeiro de 1955, p. 25-43, apud LEAL. M. Op.cit., p. 51-52. 697 FERNANDES, Florestan. Imperialismo e revoluo autocrtico-burguesa in ____. Em busca do socialismo... Op. cit., p. 134. Grifos nossos. 269
se realiza uma espcie de unio nacional, na qual camponeses, operrios, empregados, funcionrios e militares se organizam politicamente sob o mando de Crdenas. Este , em uma primeira aproximao, o Estado de compromisso que surge sob o governo Crdenas. No jogo das relaes entre grupos e classes sociais, caudilhos civis e militares, estruturas estatais e intermedirias, interesses poltico-econmicos internos e internos, o Estado mexicano acaba por se tornar extraordinariamente poderoso. 698 [...] Com o apoio das massas rurais e urbanas, e atendendo algumas de suas reivindicaes, o partido da revoluo [PRM] e o governo ampliam e consolidam as bases sociais e econmicas de uma estratgia nacionalista e estatizante de desenvolvimento capitalista. 699
Na dcada de 1930, Trotsky, invocando justamente o peso das massas populares na constituio dos regimes semibonapartistas democrticos, j havia chamado a ateno para o fato de suas estruturas estatais estarem, de alguma forma, direcionadas s massas populares em crescimento [Trotsky menciona a existncia de Estados con tendencias hacia las masas]. 700 J o POR, em seus textos dos anos 50, considerou que o acelerado processo de industrializao brasileira teria acarretado o surgimento de novas foras sociais na esfera poltica nacional, isto , o proletariado industrial e agrcola. Assim, a entrada em cena das massas populares teria obrigado todos os setores das classes governantes a terem em conta, nos seus planos, as aes e reaes da classe trabalhadora. 701 Alguns anos depois, a POLOP, em um texto de anlise histrica, consideraria que a partir da contra-revoluo de 1932, as massas populares, um novo elemento surgido no cenrio nacional, passou a encontrar expresso na estrutura do poder burgus. 702 importante ressaltarmos que inclusive a viso da POLOP sobre o papel das massas no Estado ps-oligrquico, contida em um peridico publicado em janeiro-fevereiro de 1963, anterior ao primeiro trabalho de Francisco Weffort dedicado a temtica do populismo, o artigo Poltica de Massas, 703 escrito, segundo o prprio autor (como j vimos), em setembro de 1963. 704
Nacionalismo, estatismo e mobilizao de massas A busca de alguns polticos populistas brasileiros (Vargas, Jango, Brizola etc.) e latino-americanos em geral (Crdenas, Pern, Paz Estensoro etc.) por apoio nas massas
698 IANNI, Octavio. El Estado capitalista... Op. cit., p. 39-40. Traduo nossa. Grifos nossos. 699 Idem, p. 91. Grifos nossos. 700 TROTSKY, L. Discusion sobre America Latina. Op. cit., p.124. Traduo nossa. 701 MARTINS, L. Nenhum crdito ao Governo JK in Frente Operria, n. 19, 1956, apud LEAL, M. Op.cit., p. 106. 702 PINTO, A. Apontamentos sobre a revoluo brasileira in POLOP. Poltica Operria n. 5 (revista). (janeiro-fevereiro de 1963), p. 32. Coleo Daniel Aaro Reis Filho, Dossi n. 20, doc. 130. Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro. 703 WEFFORT, Francisco. Poltica de massas. Op. cit., p. 15-44. Quanto data de produo deste artigo, ver WEFFORT, Francisco. Nota do autor. Op. cit., p. 9-10. 704 Talvez valha a pena alertar para o fato de que podem ser entrevistos nos textos trabalhados neste item pelo menos dois sentidos para o termo massas. Um deles o que compreende massa como somatrio dos setores subalternos (classe trabalhadora, setores mdios urbanos assalariados, camponeses etc.), e o outro o que se refere a um estado da subjetividade da classe operria: no possuindo conscincia de classe, ela se portaria ideolgica e politicamente como massa. Voltaremos a esse ponto mais frente. 270
populares corresponderia, assim, tambm, a propostas de reorientao industrialistas das economias nacionais perifricas, cujo verniz ideolgico seria o nacionalismo anti- imperialista. Por mais que no tenha sido radical e consequente, 705 a ideologia nacionalista, fundamental na conduo poltica das coalizes populistas, teria grassado em um momento no qual ganhavam fora as idias antiliberais de um capitalismo regulado. O aparelho estatal teria, ento, desempenhado um papel protagnico na dinmica industrialista das naes perifricas. Para Octavio Ianni, durante os regimes populistas na Amrica Latina
nacionalizaram-se empresas estrangeiras e reformularam-se as condies de entrada e sada de capital estrangeiro. Reservaram-se alguns setores infra-estruturais da economia a empresas estatais ou mistas. O poder pblico criou empresas ou incentivou a sua criao em novos setores ou subsetores econmicos. Ao mesmo tempo, punham-se em prtica outros regulamentos, relativamente aos movimentos do capital nacional e estrangeiro no pas, e estabeleciam-se critrios gerais e especiais, quanto s condies de oferta e demanda de fora de trabalho no mercado urbano. 706
Acerca do governo Crdenas, observou o socilogo:
Sob o governo Crdenas, o Estado se transforma em uma fora produtiva bsica e complexa. O modo mediante o qual se organizam e pem em prtica as polticas, as decises e as empresas estatais cria condies bastante favorveis progressiva e ampla transformao do excedente econmico potencial em excedente econmico efetivo. As atuaes do aparato estatal dinamizam as foras produtivas, reorganizam produtivamente as relaes de produo e intensificam a acumulao de capital, nos setores pblicos e privados da economia. Ao mesmo tempo transformam o setor pblico da economia e as mesmas estruturas estatais em componentes ativos da acumulao privada. Por diversas formas, o poder pblico subsidia e avaliza, poltica e economicamente, a expanso e diferenciao do setor privado. Simultaneamente, o Estado e a sociedade, isto , o poder estatal e as classes sociais, encontram uma integrao dinmica na qual se realizam e se expressam reciprocamente, no quadro de uma formao social capitalista. 707
O prprio Octavio Ianni lembrou, entretanto, o carter sempre limitado do nacionalismo nos quadros da dominao populista. Mesmo sob o esquerdizante governo de Crdenas, houve um momento em que as faces burguesas da aliana cardenista abandonam a aliana multiclassista e submetem as massas trabalhadoras a seu mando, exclusivamente segundo seus interesses de classe. Isto ocorre precisamente aps a nacionalizao da industria petrolfera, no ano de 1938. Quando as organizaes operrias e camponesas demonstram capacidade para avanar alm dos quadros polticos convenientes s cpulas burguesas do cardenismo, o prprio Crdenas levado a mudar o curso de suas relaes com as massas. 708
Por seu turno, os trotskistas do POR j haviam tambm destacado esse limite de classe do nacionalismo-burgus latino-americano:
705 IANNI, Octavio. A formao do Estado populista... Op. cit., p. 49. 706 Idem. 707 IANNI. Octavio. El Estado capitalista... Op. cit., p. 137. Traduo nossa. 708 IANNI, Octavio. A formao do estado populista na Amrica Latina. Op. cit., p. 141. 271
O nacionalismo-burgus no passa, objetivamente, por um lado, de uma forma de presso sobre o imperialismo. Por melhores condies nos investimentos e emprstimos (...) e por outro lado, de um falso objetivo apresentado s massas para control-las, impedir que sigam uma poltica independente da burguesia, influindo, sobretudo, [sobre] as camadas pequeno-burguesas. 709
Na teoria marxista do populismo, para alm destes aspectos ideolgicos (nacionalismo, desenvolvimentismo, defesa da colaborao de classes etc.) e econmico- sociais (cidadania das massas, redistributivismo econmico, ampliao do setor pblico na economia etc.), a adscrio das classes trabalhadoras aos Estados latino-americanos ps- oligrquicos teria obtido sucesso, em muitos casos, em funo de um outro fator, de ordem eminentemente poltica: a subordinao das organizaes sindicais dos trabalhadores s estruturas do novo aparelho estatal.
Populismo e trabalhadores: sindicalismo e corporativismo No Brasil, conforme muito j foi dito, o novo regime poltico nascido da Revoluo de 1930 esmerou-se, desde seus primeiros momentos, em adestrar o sindicalismo operrio, atraindo-o para a rbita do Estado. Entre outros expedientes mais propriamente repressivos que variaram de acordo com a conjuntura da luta de classes, o controle estatal do sindicalismo foi efetivado fundamentalmente por meio da edificao de uma estrutura sindical de corte corporativista, a qual atrelava as entidades de classe (incluindo, portanto, tambm os rgos representativos dos setores dominantes, chamados patronais) ao Ministrio do Trabalho, Indstria e Comrcio (MTIC), criado poucos dias aps Getlio Vargas ter assumido a chefia do Governo Provisrio. Animada por uma ideologia colaboracionista entre capital e trabalho, a legislao sindical brasileira teve suas bases hbil e gradativamente erigidas pela burocracia de Estado ao longo dos 15 anos do primeiro governo Vargas. O processo de institucionalizao do sindicalismo iniciou-se com o Decreto 19.770 que regulamentava o funcionamento das entidades sindicais e as reconhecia oficialmente (a partir da carta sindical), alm de estabelecer o regime da unicidade sindical (apenas um sindicato por categoria em determinada regio poderia ser reconhecido o sindicato nico). Como somente os trabalhadores representados pelos sindicatos oficiais poderiam gozar dos benefcios advindos da legislao trabalhista, esmoreceram as lutas de algumas combativas lideranas operrias pela independncia de suas organizaes face ao MTIC. 710
709 BLA [Bureau Latino-Americano da IV Internacional]. Tesis programticas de la Seccin Brasilea de la IV Internacional para la discusin con grupos revolucionrios in ____. Boletim Informativo do Secretariado do BLA da IV Internacional, n. 2, maio de 1959, apud LEAL, M. Op. cit., p. 124. 710 MATTOS, Marcelo Badar. Trabalhadores e Sindicatos no Brasil. 2 edio. So Paulo: Expresso popular, 2009, p. 64. 272
Proclamado pela Constituio de 1934 graas s presses anti-corporativistas exercidas pelas representaes operrias, empresariais e eclesisticas, o pluralismo sindical favoreceu uma relativa liberdade sindical face ao Estado e, por conseguinte, uma retomada das greves, lutas e mobilizaes dos trabalhadores. Entretanto, os dispositivos legais que haviam permitido tal autonomia ao movimento sindical seriam progressivamente suspensos a partir de abril de 1935, com a regulamentao daquele preceito constitucional e, em seguida, com a aplicao da Lei de Segurana Nacional. Aps o frustrado levante da Aliana Nacional Libertadora (ANL) em novembro do mesmo ano, uma atroz represso se abateu sobre o movimento operrio como um todo, fazendo com que muitos quadros da vanguarda sindical fossem afastados das entidades e substitudos por dirigentes submissos s orientaes do MTIC. Com o golpe do Estado Novo, em novembro de 1937, e o fechamento completo do regime varguista, foi outorgada uma nova Constituio que negava aos trabalhadores o direito greve e restitua o regime do sindicato nico. Em 1939, entrou em vigor a Lei Orgnica da Sindicalizao Profissional (Decreto 1.402), a qual, mais uma vez, agora sob a gide de um governo abertamente autoritrio, regulamentava o funcionamento das entidades sindicais. A tutela estatal sobre o movimento sindical atingia ento seu fastgio, podendo o MTIC fechar sindicatos, fiscalizar suas contas, dirigir suas eleies, destituir suas diretorias e exigir um atestado ideolgico dos que quisessem se candidatar aos cargos diretivos. Ficou tambm expressamente proibida a articulao horizontal entre os sindicatos. 711 Em mais um exemplo da combinao das polticas social e sindical do varguismo, foram institudos no mesmo ano de 1940 o Salrio Mnimo e o Imposto Sindical (Decreto-Lei 2.377), que atrelava (atrela) financeiramente os sindicatos ao Estado. Em 1943, o conjunto desses diplomas legais seria incorporado na ento elaborada Consolidao das Leis do Trabalho (CLT), que objetivava ser um dos instrumentos privilegiados de socializao dos novos conceitos de trabalhador-cidado com vistas a garantir a incorporao controlada do trabalhador vida poltica da nao. 712 Como muitos j assinalaram, essa estrutura sindical corporativista foi preservada praticamente intacta pela Constituio liberal de 1946, 713 constituindo-se em um dos condicionantes centrais da complexa dinmica poltica entre classes sociais e Estado durante o regime de 1946-1964.
711 ALEM, Silvio Frank. Histria do sindicalismo no Brasil: uma periodizao in Universidade e Sociedade. Sindicato Andes Nacional, CD-ROM. 712 MATTOS, Marcelo Badar. Novos e velhos sindicalismos no Rio de Janeiro. Niteri: Vcio de Leitura, 1998, p. 37. 713 Vale chamar a ateno aqui para um elemento referente legislao sindical ps-Estado Novo. Redigida em uma conjuntura de ascenso das lutas sindicais e populares, a Constituio de setembro de 1946 consagrou o direito de greve, que, como dissemos, estava vedado pela Carta de 1937. Todavia, em maro de 1946, havia sido institudo pelo governo Dutra (1946-1950) o Decreto-Lei 9.070 que, apesar de j legalizar aquele direito antecipando-se Constituio , colocava uma quantidade infindvel de restries e empecilhos ao seu exerccio, tornando-o praticamente impraticvel. A Constituio de 1946 manteria tal decreto, permitindo que a Justia do 273
No modelo populista de dominao poltico-social descrito por Weffort e Ianni, a construo dessa estrutura sindical corporativista aparece como a contrapartida da cidadania que foi conferida aos trabalhadores pelo Estado, como o outro lado da moeda da incorporao das massas populares vida pblica nacional. Erguida pari passu s leis que instituram os direitos sociais, a estrutura sindical varguista teria, assim, castrado no bero a autonomia poltico-organizativa daqueles que, dialeticamente, ameaavam (potencialmente) e legitimavam (praticamente) a ordem capitalista que ento se reconfigurava no pas. Firmado entre Estado e classe trabalhadora, o pacto populista mencionado porfia pela literatura especializada assentar-se-ia, concomitante e indissociavelmente, nas polticas social e coercitiva efetivadas pelo poder populista. Alados a categoria de cidados pelo reformismo social manifesto na legislao trabalhista, os trabalhadores, devido legislao sindical de teor semifascista, teriam adentrado o proscnio poltico da sociedade privados de sua independncia de classe. No raciocnio de Weffort e Ianni, porm, a estrutura sindical brasileira engendrada no ps-1930 no teria se limitado s funes de controle e coero, tendo atuado tambm, em situaes nas quais o populismo via-se ameaado pelos setores politicamente mais reacionrios da classe dominante, como elemento de mobilizao de massas em prol do regime. Na diviso de trabalho da engrenagem sindical populista, os sindicatos oficiais, vinculados ao MTIC (a estrutura sindical propriamente dita), teriam ficado responsveis pela tarefa de coibir politicamente a classe trabalhadora, enquanto que s entidades extra-oficiais (os organismos intersindicais criados margem do MTIC), coubera a funo mobilizadora de cunho nacional-reformista. Nessa lgica interpretativa, Ianni assinalou que, subordinados ao Estado, os sindicatos e seus dirigentes foram reduzidos a instrumentos de manobras polticas s vezes totalmente alheias aos interesses dos assalariados, e as lideranas operrias e comercirias se viram, muitas vezes, obrigadas a formular uma linha de atuao poltica congruente, de alguma forma, com os interesses governamentais. 714 Segundo Weffort, conquanto no estivessem juridicamente ligadas ao aparelho estatal, as chamadas organizaes paralelas teriam se mostrado tambm burocratizadas e atreladas, politicamente, ao Estado populista e s lideranas varguistas. Guiadas por uma poltica reformista de colaborao de classes e por uma ideologia nacionalista, entidades como o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), Pacto de Unidade e Ao (PUA), Frum Sindical de Debates (FSD) encerrariam, segundo Weffort, uma natureza organizacional cupulista, encontrando-
Trabalho acabasse por considerar ilegal a imensa maioria das greves levadas a cabo pelos trabalhadores at o fim do perodo democrtico que se iniciava. Segundo Silvio Frank Alem, costumava-se comentar na poca que, a partir do Decreto 9.070, era permitido...fazer greve, aos domingos, nas fbricas de brinquedo, se o patro consentisse por escrito. (ALEM, Silvio Frank. Op. cit.). 714 IANNI, Octavio. O colapso do populismo... Op.cit., p. 56-57. 274
se afastadas de suas bases sindicais e sem insero significativa nas categorias de trabalhadores pertencentes aos ramos mais modernos da economia. 715 Em um trecho que se tornaria muito citado por adeptos e crticos das teses weffortianas sobre o movimento sindical brasileiro, o cientista poltico buscou sintetizar a essncia do que considerava ser o sindicalismo populista: No plano da orientao, se subordina ideologia nacionalista e apia uma poltica de reformas e colaborao e classes. No plano da organizao, se caracteriza por uma estrutura dualista na qual as organizaes paralelas passam a servir de complemento estrutura sindical oficial de corte corporativista e apendicular do Estado. E, finalmente, no nvel poltico, se subordina s vicissitudes da aliana formada esquerda por Goulart e outros populistas fiis tradio de Vargas. 716
Em avaliaes realizadas no incio da dcada de 1960, o POR j apontava a presena, no movimento sindical brasileiro, de alguns desses elementos destacados por Ianni e Weffort:
Na realidade o movimento sindical brasileiro no atesta o pensamento da classe operria, pois esta no se encontra representada nos sindicatos, pois estes no passam de rgos de cpula que servem de mediao entre o governo e a burguesia, de um lado, e a classe operria, de outro (...). Apesar da aparente organizao da classe operria no Brasil, esta se encontra totalmente desorganizada. Nem sindicatos, nem Federaes, nem Confederaes refletem o que se passa por baixo, na classe. 717
O que existe, os sindicatos e as organizaes camponesas, no so realmente organizaes de massas (...). A estrutura dos sindicatos, apoiada no financiamento estatal atravs do imposto sindical, faz com que as direes, longe de interessarem pela organizao da classe, atuem como agentes do governo (...). A organizao da classe operria no pode vir destes aparelhos burocrticos dependentes do governo, tem que comear de baixo, a partir das fbricas [...]. 718
Populismo e trabalhadores: a questo das direes polticas da classe Na proposta interpretativa de Ianni e Weffort quanto s relaes entre Estado e trabalhadores na etapa 1930-1964, o xito alcanado pelo primeiro, via sindicalismo populista, na transformao dos segundos em massa de manobra se explicaria, centralmente, pelas opes estratgicas adotadas pelas direes sindicais e polticas do movimento operrio brasileiro. Assim, opondo-se s anlises sociolgicas que apontavam a origem rural e falta de experincia do jovem proletariado como aspectos determinantes para a efetivao de um sindicalismo heternomo no pas ps-1930, 719 Ianni e Weffort foram buscar no mbito mais propriamente poltico as explicaes para a subordinao dos trabalhadores
715 Idem. 716 WEFFORT, F. C. Os sindicatos na poltica (Brasil: 1954-1964) in Ensaios de Opinio, 1978, p. 18. 717 POR. A diviso das direes sindicais impe a unificao da classe sob uma poltica e organizao independentes. In Frente Operria, n. 91, 1 quinzena de junho de 1963, apud LEAL, M. Op. cit., p.186. 718 POR. Diante da crise da burguesia; organizar as massas e construir o partido revolucionrio in Frente Operria, n. 85, 1 quinzena de dezembro de 1962, apud LEAL, M. Op. cit., p.186. 719 Essa perspectiva foi apresentada por autores como o ex-trotskista Lencio Martins Rodrigues, um dos pioneiros nos estudos sobre o movimento operrio e sindical brasileiro (ver, por exemplo, RODRIGUES, Lencio Martins. Industrializao e atitudes operrias. So Paulo: Brasiliense, 1970). 275
brasileiros a Vargas e seus discpulos ao longo do populismo, em especial nos anos em que este assumiu uma forma democrtica (1946-1964). Na tica de Weffort, a trajetria do movimento operrio brasileiro no perodo 1945-1964 estaria menos no atraso da classe operria do que no elitismo manobrista daqueles que pretendiam represent-la, mas que terminaram subordinando-as s injunes da poltica nacional. 720
Seguindo esse rumo analtico que nos parece inspirado na j mencionada noo trotskista de crise de direo Weffort procurou demonstrar como, em vrios momentos decisivos das lutas de classe travadas pelos trabalhadores brasileiros, o PCB, em funo de sua estratgica poltica de colaborao de classes, contribura, na prtica, para o fortalecimento da estrutura sindical corporativista, reforando, consequentemente, a dominao populista. Assim, na conjuntura do imediato ps-Segunda Guerra, ao propagar a bandeira ordem e tranqilidade e conclamar os operrios a apertar os cintos, o PCB, atuando como um partido da ordem, teria sido um dos principais responsveis pelo sucesso da poltica varguista face ao ascendente movimento sindical:
Criada pela ditadura Vargas no esprito do corporativismo fascista italiano e mantida durante o perodo ditatorial mais como uma dispositivo legal que como instituio real, a estrutura sindical oficial teve que esperar at os anos iniciais da democracia para consolidar-se no aparato institucional do Estado. Mais ainda: a estrutura sindical oficial criada no esprito do corporativismo fascista italiano para o controle do Estado sobre a classe operria teve que esperar pelo empenho da esquerda, em especial do Partido Comunista Brasileiro, para conquistar alguma eficcia real como instrumento de mobilizao e de controle da classe operria. 721
J no perodo compreendido entre o suicdio de Vargas e o Golpe de 1964, os comunistas brasileiros obcecados por uma aliana com a burguesia nacional como vistas realizao (pacfica) de uma revoluo democrtico-burguesa teriam, segundo Weffort, colocado os trabalhadores brasileiros e suas organizaes sindicais a servio dos polticos populistas vinculados plataforma nacional-desenvolvimentista:
Embora sempre se possam encontrar precedentes em 1945, ou mesmo antes, s a partir de 1954 que a esquerda veio a aceitar o corporativismo sindical e a reform-lo atravs das organizaes paralelas, chegando a consider-lo como um dado institucional normal no interior do sistema democrtico; em que pesem os precedentes, s a partir de 1954 que o movimento operrio comeou efetivamente a caminhada que deveria lev-lo a uma identificao poltica, praticamente sem restries, como os grupos populistas que ento se achavam no controle de partes do aparelho de Estado; do mesmo modo, apesar dos precedentes, foi s a partir de 1954 que a esquerda chegou a estabelecer alianas estratgicas, no s polticas mas tambm ideolgicas, com os populistas. No mbito desta aliana, a esquerda que acaba subordinando suas razes s do populismo , ser conduzida a uma reavaliao da significao histrica de 1930 como o ponto de partida de uma revoluo democrtico- burguesa que agora, nos anos 50, retomaria o caminho de sua realizao. 722
720 WEFFORT, Francisco. Democracia e movimento operrio: algumas questes para a histria do perodo 1945/1964 (terceira parte). Op. cit, p. 17. 721 WEFFORT, Francisco. Origens do sindicalismo populista no Brasil. Op. cit., p. 71. 722 WEFFORT, Francisco. Democracia e movimento operrio: algumas questes para a histria do perodo 1945/1964 (segunda parte). Op. cit, p. 5. 276
Endossando tal leitura, Ianni consideraria o papel poltico jogado pelas esquerdas, em especial pelos PCs, como um fator importante para o xito alcanado pela poltica de massas dos Estados populistas, a qual, por intermdio de concesses sociais, represso e cooptao ideolgica, teria obstado a formao de uma conscincia autenticamente classista entre os trabalhadores:
Na vigncia da poltica de massas, a classe operria geralmente foi levada a lutar muito mais contra os inimigos do seu inimigo. Nessas pocas, a luta contra a oligarquia fundiria e o imperialismo foi colocada em primeiro plano. O que era a luta principal, para a burguesia interessada no mercado interno, o proletariado foi levado a tomar como a luta principal tambm para si. inegvel que as organizaes e lideranas polticas de esquerda atuaram de modo decisivo nesse processo de inverso de meio e fins, ou de tticas e estratgias. Em conseqncia, quando a burguesia se volta contra ele, o proletariado no est preparado para reagir de modo congruente com a sua situao de classe. Surpreende-se com a aliana entre o seu aliado de ontem e os inimigos do seu inimigo. que o proletariado no se dera conta da paulatina transformao de uma aliana ttica em um compromisso estratgico. Reificava-se a aliana ttica preconizada pelas esquerdas reformistas. 723
Analisando particularmente o caso brasileiro, Ianni considerou que
a luta no seio da democracia populista era encarada pela esquerda como um momento ttico para a consecuo dos alvos socialistas. Acreditava-se que as massas trabalhistas e populistas precisavam ser conquistadas por dentro, a partir dos objetivos e tcnicas da prpria poltica de massas. Por isso, a frente nica e os outros compromissos, com militares, setores da classe mdia etc. eram alianas tticas indispensveis. Eram uma decorrncia do realismo poltico. Assim, sacrificava-se momentaneamente a teoria marxista-leninista da revoluo, como o objetivo de ajuntar teoria e prtica, condies e possibilidades, alvos e tticas. claro que nesse jogo confunde-se e invertem-se meios e fins. Na prtica, em decorrncia do vigor, da preponderncia e do realismo da poltica de massas, a esquerda no consegue executar uma poltica de classes nova e eficaz. Os valores e as tcnicas polticas do populismo eram mais vigorosos que o talento terico e a pertincia das esquerdas. 724
Essa imerso do PCB na poltica de massas, segundo o socilogo, adviria de uma leitura reificada que os comunistas latino-americanos, vinculados s diretrizes estalinistas, fariam de conceitos como latifndio, imperialismo e burguesia nacional: Em geral atriburam a essa burguesia tarefas hegemnicas, quanto luta contra o imperialismo e o latifundismo, minimizando sua condio subalterna. Em boa parte, na poca do populismo que muitas interpretaes, programas e tcnicas dessas correntes polticas reelaboram-se segundo condies e perspectivas oferecidas pelas prprias realidades nacionais, sob comando direto ou no da burguesia urbano-industrial nascente. 725
A nosso ver, os fundamentos das crticas de Ianni ao PCs latino-americanos (e ao PCB, em particular) expressos na ltima citao acima assemelham-se bastante aos dos
723 IANNI,Octavio. A formao do Estado populista... Op. cit., p. 119. 724 IANNI, Octavio. O colapso do populismo... Op. cit., p. 113. 725 IANNI, Octavio. A formao do Estado populista...Op. cit., p. 101-102. 277
trotskistas latino-americanos em seus enfrentamentos com os adeptos da IC estalinizada. O POR, por exemplo, em sua luta pela direo do movimento sindical brasileiro nas dcadas de 1950 e 1960, tambm acusou o PCB de se guiar por uma linha de colaborao com a burguesia nacional e de aceitao da estrutura sindical corporativista, o que feito dos estalinistas brasileiros uma ala do nacionalismo-burgus, e no a mais radical: 726
O PC[B] deixou uma tradio que faz desconfiar as massas com relao necessidade do partido de classe. Ele se arrebentou por completo. Hoje milita abertamente no campo da contra- revoluo e no tem mais nenhuma autoridade diante das massas (...) A herana mais lamentvel que deixou atrs de si o desbarranco do PC[B] a desorganizao e falta de tradio de vida poltica organizada dentro do proletariado. Ele criou uma tradio de um aparelho sindical desligado da classe, fundido como o governo e a burguesia. Esse aparelho luta denodadamente contra a organizao e a interveno da classe. 727
Alis, ressaltamos que a crtica s posturas adotadas pelo PCB ao longo do perodo populista foi uma marca da produo acadmica antidualista dos anos 1960 e 1970. Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, foi um dos que responsabilizou em grande parte o partido pelo fato de a imensa mobilizao popular no incio dos anos 60 no ter se traduzido em uma conquista efetiva do poder poltico pelos trabalhadores:
De fato, havia, especialmente entre 1963 e maro de 1964, uma conjuntura que poderia ser qualificada como pr-revolucionria: o Estado se decompunha parcialmente e a mobilizao social e poltica talvez superasse os mecanismos de integrao de que a ordem poltica dispunha. Dificilmente, entretanto, essa conjuntura poderia ter resultado numa revoluo pela falta dos instrumentos adequados para isso: metas claras, uma poltica no oportunista por parte dos grupos de esquerda que predominavam na situao, em suma, organizaes capazes de aproveitar para seus objetivos a decomposio do Estado. E, principalmente, a aliana populista, para vincular as massas, os grupos de classe mdia e a burguesia, baseava-se em setores do prprio Estado que se ligavam, pela teia de relaes polticas que mantinham e pelos interesses que sustentavam, a uma base econmica no s intrinsecamente no-revolucionria, posto que proprietria, como atrasada. 728
A crise do populismo Politicamente pautada por uma lgica equivocada de compreenso do processo histrico-social brasileiro, a esquerda comunista, segundo os tericos do populismo, teria se mostrado totalmente incapacitada de orientar corretamente a classe trabalhadora quando da crise da dominao populista, surgida no alvorecer da dcada de 1960. Nos momentos que se seguiram renncia de Jnio Quadros, teriam comeado a surgir, segundo Weffort, formas de ao popular que iam muito alm dos esquemas
726 BLA. Tesis programticas.... Op. cit., apud LEAL, M. Op. cit., p. 125. 727 POR. O caminho de um grande estouro revolucionrio O que fazer in Frente Operria, n. 106, 2 quinzena de outubro de 1963, apud LEAL, M. Op. cit., p. 187. 728 CARDOSO, Fernando Henrique. O modelo poltico brasileiro.... Op. cit., p. 69. 278
tradicionais. 729 As frequentes greves de trabalhadores, o crescimento das foras nacionalistas, a mobilizao da opinio pblica a favor das reformas de base (especialmente a reforma agrria), a extenso dos direitos sociais aos trabalhadores do campo e seu avano organizativo (tanto por meio da criao de sindicatos rurais quanto da formao das Ligas Camponesas, animadas por Francisco Julio) seriam alguns dos aspectos que, para o cientista poltico, anunciavam a emergncia de um movimento popular de novo tipo. 730 Embora nascido dentro dos quadros institucionais vigentes e um tanto quanto dependente da poltica populista de Goulart, tal movimento teria colocado problemas cujas solues implicavam em alteraes de base na composio de foras sociais em que se apoiava o regime. 731
O incio das mobilizaes rurais, ameaando a grande propriedade agrria, e a chegada da cidadania social ao campo teriam, segundo Ianni e Weffort, levado ruptura dos latifundirios com o compromisso elitrio estabelecido em 1930. Por outro lado, nenhum outro setor da classe dominante teria se mostrado capaz de oferecer os suportes indispensveis para uma poltica de reformas, ainda quando se podia admitir que alguns deles retirariam proveito dela. 732 Em meio a essa crise do compromisso firmado, desde 1930, entre os grupos dominantes, a mobilizao popular teria se tornado ainda mais perigosa, parecendo, finalmente, ocorrer de forma independente dos setores proprietrios. Na interpretao de Weffort, as massas populares, que, desde a formao do populismo, haviam servido como fonte de legitimidade para o Estado, durante o governo Goulart, pareciam se movimentar de modo a ultrapassar as fronteiras de uma aliana policlassista, que as privava de autonomia: 733
Dessa forma, ao pretender entrar pelo caminho das reformas de estrutura, Goulart provocou a crise do regime populista. Apesar de condicionar, como chefe de Estado, por ao ou omisso, o conjunto do movimento popular que comeava a formar-se, longe estava ele de ter o controle do processo poltico. Crescia em importncia uma mobilizao popular que, embora muitas vezes dependesse da iniciativa do Estado, tendia a superar os limites institucionais vigentes. O grande compromisso social em que se apoiava o regime se viu, assim, condenado por todas as foras que o compunham. Condenado pela direita e pelas classes mdias que se aterrorizavam ante a presso popular crescente; pelos grandes proprietrios assustados com o debate sobre a reforma agrria e com a mobilizao de massas rurais; pela burguesia industrial, temerosa tambm da presso popular e j vinculada por alguns de seus setores mais importantes aos interesses estrangeiros. E, apesar das intenes de alguns de seus lderes, encontrava-se condenado tambm pela fragilidade do populismo, que se mostrava incapaz no s de manter o equilbrio de todas as foras, como tambm de exercer um controle efetivo sobre o processo de ascenso das massas. 734
729 WEFFORT, F. O populismo na poltica brasileira. Op. cit., p. 86. 730 Idem. 731 Idem, p. 87. 732 Idem. 733 Idem. 734 Idem, p. 87-88. 279
Em seus escritos de fins da dcada de 1970, Weffort daria mais nfase internacionalizao da burguesia industrial brasileira, ocorrida a partir da segunda metade da dcada de 1950, como um elemento explicativo do colapso do regime em 1964. Assim, segundo o autor, a ideologia nacionalista, paradoxalmente, teria alcanado seu pice (o nacional-desenvolvimentismo) precisamente quando a burguesia brasileira, supostamente portadora de um projeto de desenvolvimento nacional, j comeava a associar-se ao grande capital internacional em processo de expanso hegemnica no plano da economia. 735
Nessa linha de raciocnio, Weffort, analisando a aliana do PCB com os herdeiros de Vargas entre 1954 e 1964 perodo esse que o autor interpretou como uma sobrevida do regime populista, gerada pelos impactos polticos do suicdio de seu principal inspirador e chefe , chamou a ateno para o descompasso existente entre aquela linha partidria e a configurao do capitalismo brasileiro naquele perodo: os comunistas brasileiros, segundo Weffort, se engajaram na aliana com os varguistas, tomados como representantes de um setor progressista e antiimperialista da burguesia nativa, apenas quando essa mesma burguesia, dado seu estreitamento cada vez maior como o capital estrangeiro a partir do ps- guerra, j tinha abdicado de qualquer aspirao, mnima que fosse, a um capitalismo nacional, isto , quando a luta fundamental j estava perdida. 736
Octavio Ianni, investigando a crise do populismo em mbito latino-americano, constatou que
em todas as situaes realmente crticas a burguesia nacional rompe os compromissos tticos com o proletariado e [com] alguns outros setores do populismo, em benefcio de suas razes estratgicas, dadas pela ordem capitalista. Num paradoxo aparente, para sobreviver, essa burguesia abandona a poltica de hegemonia implcita no populismo e adota a sua condio subalterna, refazendo e fortalecendo os seus laos com os seus inimigos de ontem. 737
No tocante ao caso brasileiro, Ianni relacionou a opo poltica da burguesia de abandono do populismo a um processo de internacionalizao vivido pela economia nacional a partir de meados dos anos 1950, impulsionado, paradoxalmente, pelo governo mais apologista do nacional-desenvolvimentismo (o de Juscelino Kubitschek, 1956-1960). 738
Assim, uma maior associao da burguesia brasileira (em especial de seus setores mais dinmicos) com o imperialismo teria lhe fornecido um carter abertamente antipopulista, dado os obstculos presentes no populismo aos novos padres de acumulao de capital que ento se gestavam. Essa explicao da crise do populismo brasileiro (e, naturalmente, do golpe de
735 WEFFORT, Francisco. Democracia e movimento operrio: algumas questes para a histria do perodo 1945/1964 (segunda parte). Op. cit, p. 8. 736 Idem, p. 7. 737 IANNI, Octavio. A formao do Estado populista... Op. cit., p. 143. 738 IANNI, Octavio. O colapso do populismo... Op. cit., p. 10 e 176. 280
Estado de 1964) seria depois desenvolvida por vrios cientistas sociais, como o prprio Fernando Henrique Cardoso 739 e Ren Dreifuss. 740
Talvez seja pertinente lembrarmos ainda que, se Trotsky j havia alertado para a possibilidade de a burguesia nacional abandonar a luta contra os capitalistas estrangeiros e a trabalhar sob sua tutela direta, derrotando, com a ajuda do imperialismo, a instvel democracia e substituindo-a por uma ditadura fascista sem disfarces, o POR, antes mesmo de Ianni, Cardoso e Dreifuss, identificou, em documentos de finais dos anos 50, o estreitamento dos laos da burguesia brasileira com o imperialismo. 741 Em um texto datado de 1960, os trotskistas brasileiros procuraram descrever a nova relao que se configurava entre o imperialismo e as regies a ele submetidas:
O desenvolvimento econmico uma necessidade objetiva da qual no pode fugir nem mesmo a poltica do imperialismo para a Amrica Latina. Os homens de Wall Street nisto so menos conservadores que a mentalidade da pequena burguesia nacionalista. Enquanto esta ltima continua repetindo estupidamente que o imperialismo est pelo atraso da Amrica Latina e do Brasil, em todas suas formas, o imperialismo procura adaptar-se ao crescimento inevitvel desses pases, tornando-o, naquilo que for possvel, vantajoso para si, tratando de domin-lo e control-lo. 742
Nessa concepo claramente oposta do PCB, da CEPAL e do ISEB , o imperialismo, diferentemente de bloquear o desenvolvimento capitalista da Amrica Latina, buscaria estimul-lo dentro de um padro associativo por ele controlado, auferindo inmeras vantagens. Segundo Murilo Leal, provvel que essa leitura do POR acerca das novas formas assumidas pela chamada diviso internacional do trabalho tenha se incorporado ao patrimnio de idias da esquerda alternativa, tendo contribudo, por exemplo, para o amadurecimento das teorias da dependncia. 743 Alis, quanto importncia das organizaes polticas esquerda do PCB na construo do pensamento dependenstista, vale lembrar mais uma vez o papel desempenhado pela POLOP. Segundo Marcelo Badar Mattos, a organizao (que, como j dissemos, teve em suas fileiras nomes como Theotnio dos Santos e Ruy Mauro Marini) foi responsvel pelo surgimento de novos parmetros para a anlise da realidade brasileira no meio acadmico nacional que se mostrariam presentes, por exemplo, nas teorias da dependncia e em trabalhos sobre o populismo. 744
Essa internacionalizao da burguesia brasileira, segundo as anlises dependentistas, seria decorrncia, assim, da nova etapa do capitalismo mundial iniciada alguns anos depois do
739 CARDOSO, Fernando Henrique. O modelo poltico brasileiro.... Op. cit. 740 DREIFUSS, Ren Armand. 1964: A conquista do Estado (ao poltica, poder e golpe de classe). Petrpolis: Vozes, 1981. 741 LEAL, M. Op. cit., p. 109. 742 POR. O proletariado e o tratado da Zona de Livre Cmbio in Frente Operria, n. 35, maro de 1960, apud LEAL, M. Op. cit., p. 109. 743 LEAL, M. Op. cit., p. 109. 744 MATTOS, Marcelo Badar. Em busca da revoluo socialista... Op. cit., p. 195-196 e 206-208. 281
fim do segundo conflito mundial (1945), marcada pela implantao das multinacionais nas perifricas do globo, buscando a ampliao das taxas de lucro. Esse processo, entre outras conseqncias, teria levado, na ltima metade da dcada de 1950, a um rpido crescimento da economia brasileira cujo esgotamento teria se feito presente j no incio da dcada de 1960, acirrando, assim, as contradies sociais relativamente administradas pelo sistema populista de colaborao de classes. Com efeito, a manipulao de massas entrou em crise, isto , abriu a porta a uma verdadeira mobilizao popular, exatamente quando a economia urbano- industrial comeava a esgotar sua capacidade de absoro de novos imigrantes e quando se restringiam as margens do redistributivismo econmico. 745 Incompatvel com os novos contornos assumidos pela acumulao do capital no pas, e cada vez mais politicamente perigoso devido s foras sociais que colocava em movimento, o populismo teria sucumbido historicamente por intermdio do golpe de Estado aplicado pela burguesia brasileira em 1964.
Populismo: o desenvolvimento da teoria Ao longo das dcadas de 1970 e 1980, no foram poucos os autores que trabalharam com a teoria do populismo brasileiro elaborada por Weffort e Ianni. Alguns deles, enfocando outros aspectos e adicionando novos elementos tericos e empricos, contriburam para o seu desenvolvimento. Destacamos, aqui, as contribuies oferecidas por quatro conhecidos cientistas polticos marxistas: Dcio Saes e Armando Boito Jr., Rgis de Castro Andrade e Ren Dreifuss. Esposando as teses mais gerais de Weffort e Ianni, e discordando de algumas de suas proposies, Saes e Boito Jr., dotados de uma perspectiva terica poulantziana, enfatizariam a autonomia relativa face s classes socais alcanada pelo aparelho estatal capitalista a partir de 1930, apontando a existncia de um protagonismo da burocracia e demais categorias sociais de Estado ao longo do processo poltico populista. Intitulado Classe mdia e sistema poltico no Brasil, o instigante estudo de Dcio Saes sobre a poltica dos setores mdios urbanos no perodo republicano (da Primeira Repblica at o ano de 1968) dedica uma parte significativa discusso do regime populista. 746
Encampando as idias de uma crise de hegemonia vigente em 1930 e da formao de um Estado de compromisso com ascenso de Vargas ao poder, Saes enxergou as categorias sociais de Estado (tenentes, a burocracia e as Foras Armadas) como as principais responsveis pela conduo dos dois eixos centrais da poltica estatal populista: a industrializao do pas e a incorporao controlada (via o esquema coero-concesso-
745 WEFFORT, F. O populismo na poltica brasileira. Op. cit., p. 85. 746 SAES, Dcio. Classe mdia e sistema poltico no Brasil. So Paulo: T. A. Queirs, 1984. 282
manipulao) esfera pblica dos emergentes setores urbanos, com destaque para a classe operria. Tais eixos teriam se mostrado, segundo Saes, inseparveis: Assim como a represso da classe operria havia sido um aspecto da poltica oligrquica de expanso do capitalismo agro-mercantil, assim tambm a integrao da classe operria foi a face social de uma poltica industrializante concretamente implementada por novas foras polticas. 747
Duplamente determinadas em sua natureza social, as categorias sociais de Estado teriam sido as principais foras atuantes em prol dessa poltica industrializante. Se, por um lado argumentou Saes , essas categorias sociais eram recrutadas entre os emergentes setores mdios urbanos que aspiravam ao desenvolvimento da industrializao (e sua prpria incorporao via pblica), por outro, elas ocupavam tambm as funes dirigentes de um Estado relativamente autonomizado da sociedade, com novas e concretas questes pela frente a serem solucionadas:
Se o Estado se mostra um Estado de compromisso, o impulso poltico das categorias sociais impede, entretanto, que o poder poltico se defina como uma pura justaposio de grupos de interesse oligrquicos e industriais, cuja presso contnua se exerce sobre as agncias governamentais e os aparelhos de Estado. E se o Estado assume a forma de Estado de massas, isso representa a absoro da classe operria nascente nas suas estruturas pela via da legislao do trabalho e do sindicalismo de Estado [...] Lembremos inicialmente que, nas condies de equilbrio poltico geradas pela revoluo de trinta, as categorias sociais integradas aos aparelhos de Estado se revelaram dotadas de uma relativa autonomia de ao; e que as condies histricas em que se concretizou sua ao, bem como suas particularidades ideolgicas, as induziram mais frquentemente a implementar medidas em ltima instncia favorveis industrializao. De um lado, a crise permanente e profunda do capitalismo agro- mercantil, resumida na expresso deteriorao dos termos de troca, tornava-o incapaz de satisfazer as necessidades criadas pela prpria expanso. Nesse contexto, mesmo uma poltica puramente pragmtica de satisfao das necessidades previamente existentes resultava necessariamente no estmulo industrializao. A expresso industrializao subtitutiva admite implicitamente a existncia desse pragmatismo industrializador; essa atitute orientou, em vrios momentos e num grau varivel, as categorias sociais de Estado envolvidas no processo de tomada de decises econmicas, Mas, de outro lado, para alm das motivaes puramente tcnicas, preciso considerar a dupla filiao das categorias sociais integradas ao bloco dominante: filiao s camadas mdias urbanas, de um lado, e insero nos aparelhos de Estado, de outro. Ora, as disposies ideolgicas prprias a cada uma dessas situaes induziram igualmente as categorias sociais a tomar decises objetivamente favorveis industrializao. A esse respeito, podemos discriminar, numa perspectiva analtica, trs exemplos: os tenetes, as Foras Armadas (alta oficialidade) e a alta burocracia. 748
747 Idem, p. 94. 748 Idem, p. 88-97. Saes considera, ainda, que estariam no tenentismo as razes sociais da ideologia populista: Sua integrao sociedade urbana lhes fazia sentir as necessidades de consumo precocemente criadas pelo contato econmico e cultural com as sociedades capitalistas centrais; porm, sua situao de trabalho favorecia o desenvolvimento da aspirao a um melhor nvel de consumo. As aspiraes das baixas camadas mdias colocavam, portanto, objetivamente, atravs de seus ressentimentos ou reivindicaes, o problema da necessidade da industrializao. Entretanto, o carter urgente dessa mudana impunha condies institucionais precisas decolagem do processo de industrializao: a construo de um Estado intervencionista e industrializador, capaz de substituir a burguesia industrial na conduo do processo de desenvolvimento capitalista. O problema que tal objetivo no poderia cristalizar-se espontaneamente na massa das baixas camadas mdias; ou seja, suas aspiraes no se transformariam em vontade poltica sem a mediao de uma vanguarda. Foi o tenentismo nacionalista que, ao sustentar a necessidade de um Estado nacional, antioligrquico e centralizado, deu uma resposta a essas aspiraes, ainda que em termos indiretos e tipicamente militares. Queremos dizer com isso que as razes do populismo se encontram no discurso ideolgico do tenentismo nacionalista; antes na ao de Juarez Tvora, no Cear, ou de Luiz Carlos Prestes, no Rio Grande 283
Assim, nos anos 30, ao defenderem contra o federalismo oligrquico a centralizao poltico-administrativa do pas e a concentrao pela Unio dos instrumentos da poltica econmica, os tenentes, segundo Saes, criaram as condies institucionais indispensveis colocao em marcha de uma poltica intevencionista e industrializadora. 749
Para o autor, a conjuntura internacional na qual se realizou esse processo de industrializao esteve ligada ao desenvolvimento, entre os oficiais superiores das Foras Armadas, da chamada ideologia da segurana nacional. Sobretudo depois da Segunda Guerra (1939- 1945), essa ideologia no fundo, esse nacionalismo de guerra teria levado os representantes militares a reivindicarem um programa pblico de investimentos nos setores industriais de base. 750 Por fim apontou Saes , os tcnicos e burocratas estatais teriam sido os responsveis pelo esboo de projeto de industrializao, por meio do qual as categorias sociais tendiam a dar uma forma concreta s aspiraes das camadas mdias j desembaraadas da ascendncia oligrquica. 751
Foram essas categorias sociais de Estado tambm, segundo Saes, as formuladoras e construtoras do sindicalismo de Estado que, combinadamente com as polticas sociais do varguismo, possibilitou a integrao controlada das massas populares cena poltico- institucional. Na tica do cientista poltico, esse modelo de sindicalismo forjado sob o populismo, baseado na concepo de um Estado neutro e arbitral, seria estruturado por uma ideologia de tipo pequeno-burguesa. Assim, se no que diz respeito classe operria, o sindicalismo de Estado teria expressado apenas um momento temporrio de seu processo de organizao corporativa e poltica 752 (momento esse que a classe, em vrios momentos, procurou superar a partir da criao de outras formas associativas e de novas formas de luta), no que concerne aos setores mdios considerou Saes , aquele tipo de organizao sindical corporativista (seja em sua forma pura, seja sob o impulso das organizaes paralelas), 753
mostrou-se ajustado sua prpria natureza de classe pequeno-burguesa: 754
Essa distino no parte do propsito de negar a fora real do movimento reivindicatrio das baixas camadas mdias, mas da preocupao em estabelecer seus limites. A rigor, os limites de sua ao sindical so condicionados pela sua impossibilidade de viver a fundo o processo de explorao da fora de trabalho e de apreender a natureza profunda do Estado capitalista: a expresso mais abstrata e universal da dominao dos proprietrios do capital. Na sua luta corporativa contra o meu patro, esses grupos apelam para o Estado; mas eles o concebem essencialmente como o rbitro ou a instncia
do Sul, que no estilo poltico de Vargas, que se devem procurar as primeiras manifestaes do populismo brasileiro. (Idem, p. 90.). 749 Idem, p. 97. 750 Idem. 751 Idem. 752 Idem, p. 113. 753 Idem. 754 Idem. 284
suprema capaz de resolver o conflito na empresa mediante a imposio de uma deciso justa. Nesse caso, a presso sindical e o esforo contnuo no sentido de intensific-la representam para esses grupos mdios a possibilidade de se aproximarem do poder, de se fazerem ouvir pelo Estado, de influenciar as suas decises soberanas. Nessa perspectiva, a presso sindical das baixas camadas mdias menos um instrumento da luta social contra a empresa capitalista e da luta poltica contra o Estado capitalista, e mais um meio capaz de tornar mais eficazes seus pedidos e de reverter em seu benefcio a mediao do Estado-rbitro. O sindicalismo populista, na medida em que implica o reconhecimento pelo Estado do direito das baixas camadas mdias reivindicao, constitui talvez uma expresso adequada do sindicalismo mdio. 755
A dimenso das ideologias ocupa, sublinhamos, um lugar de destaque na anlise de Dcio Saes. Elaboradas e formatadas sob impulso das categorias sociais filiadas s camadas mdias, 756 as ideologias teriam sido, segundo o autor, propostas pelo Estado s classes sociais, as quais delas se apropriaram (ou no) de acordo com a conjuntura poltica do regime. Concebendo, portanto, uma autonomia relativa das ideologias, 757 assim como vale frisar um forte protagonismo do Estado no processo poltico-social, Saes procurou explicar algumas das ambigidades e paradoxos do nacionalismo ao longo do populismo (alguns dos quais j apontados por Weffort, como vimos):
Enquanto representao do mundo social fundada nas noes de povo e nao, o nacionalismo constitui uma manifestao ideolgica tpica das camadas mdias; entretanto, no contexto do desenvolvimento capitalista brasileiro so as categorias sociais de Estado, filiadas s camadas mdias urbanas, que se encarregam de lhes dar uma forma concreta. Certos analistas sublinharam o atraso da ideologia nacionalista com relao aos problemas concretamente colocados pelo desenvolvimento da sociedade capitalista brasileira. Na realidade, a eficcia social do nacionalismo dependeria de seu carter antecipador; em outras palavras, a vontade poltica de afirmao da Nao e de consolidao da burguesia nacional deveria encontrar suas bases sociais antes da penetrao da sociedade pelo imperialismo. Todavia, a anlise histrica confirma que o nacionalismo brasileiro foi mais retardatrio que antecipador. Lembremos, a propsito, o perodo 1930-1954: as relaes de dominao/subordinao econmica se enfraqueciam, a expanso industrial se fazia primordialmente com base em capitais internos, porm o projeto nacionalista no passava de um esboo. Paradoxalmente, a ideologia nacionalista atingir seu apogeu aps a data simblica de 1955, quando a burguesia industrial, ao submeter-se sem luta Instruo 113 da SUMOC [que estimulava a industrializao feita com capitais estrangeiros], aceita objetivamente sua associao com o capitalismo internacional. A rigor, a razo desse atraso encontra-se na origem social do nacionalismo. verdade que o nacionalismo nasce da vontade de defender a Nao contra a penetrao imperialista; porm, trata-se aqui da vontade das categorias socais de Estado, cuja definio da penetrao imperialista se concentra menos sobre desnacionalizao da economia e da sociedade, e mais sobre a limitao da soberania do Estado em funo das relaes entre a economia nacional e o capitalismo internacional. Nessa medida, o problema da dependncia aqui vivido no tanto no nvel da sociedade brasileira, pelas classes sociais, mas sobretudo ao nvel do Estado brasileiro, pelas categorias sociais integradas ao seu aparelho. O nacionalismo aparece como uma resposta ideolgica reduo da capacidade do Estado de se autodeterminar [...] 758
Seguindo essa concepo de uma autonomia das ideologias, as quais gozariam de uma circularidade no tecido social, Dcio Saes alinhavou uma proposta interpretativa para o constante desencontro entre o iderio nacionalista e a chamada burguesia nacional:
755 Idem, p. 114. 756 Idem, p. 121. 757 Idem. 758 Idem, p. 118-119. 285
Estamos, portanto, longe de poder dizer que a burguesia industrial se fez agente de uma poltica nacionalista. Assim, a primeira fonte de rejeio burguesa do nacionalismo encontra-se no fato de ele implicar uma definio idealista e exterior (de responsabilidade das categorias sociais do Estado) dos interesses de classe da burguesia industrial. Se esta se afasta do nacionalismo, isso no constitui um indcio do seu atraso ou de sua incompreenso, mas sim o fato de ela no reconhecer- se no projeto que as categorias sociais de Estado tentam propor-lhe [...] O nacionalismo, ao propor-se defender os interesses de classe da burguesia industrial, rejeitado por esta; todavia, enquanto ideologia de Estado, ele suscetvel de impor-se aos partidos de esquerda e s organizaes paralelas em aliana como o populismo. Desse modo, a corrente nacionalista se refora nas conjunturas em que as organizaes populares dominantes sentem a necessidade de conferir uma forma poltica concreta presso operria espontaneamente ascendente. Da o paradoxo aparente do nacionalismo: embora propondo-se como representao universal dos interesses da burguesia nacional, ele se converte na expresso poltica concreta da ascenso operria. E a encontramos a segunda razo da rejeio burguesa do nacionalismo: dado que o movimento nacionalista a forma poltica assumida pela presso operria ascendente, a burguesia industrial, ao decidir o bloqueio da ameaa popular, passa a uma etapa de combate ao nacionalismo. 759
Essa ascenso operria, presente j na segunda metade da dcada de 1950 e intensificada sob o governo Goulart, estaria, segundo o cientista poltico, entre as principais causas explicativas da crise do populismo. Funcionando como a principal base social de apoio do Estado de compromisso formado em 1930, as massas populares teriam sido, na tica do autor, as fontes geradoras da autonomia relativa da qual dispunham o aparelho estatal e suas categorias sociais face s classes sociais ao longo do populismo (inclusive face burguesia industrial, principal beneficiria da poltica estatal populista). Assim, ao reconhecer a legitimidade da mobilizao de massas, com o intuito de preservar sua condio relativamente autnoma, o Estado populista teria se mostrado inadequado para garantir os interesses fundamentais da classe dominante:
A presso operria, ainda que expressa politicamente pelo sindicalismo de Estado sob o impulso das organizaes paralelas, obriga o Estado populista a ultrapassar as linhas gerais da poltica da ordem, cuja necessidade preconizada pelo conjunto da classe dominante. Evidentemente, a nova orientao do Estado populista no abre a possibilidade imediata de transformao global da sociedade; todavia, ela vivida pelo conjunto da classe dominante como uma primeira manifestao da luta de classes, doravante estimulada, em no mais amortecida, pelo populismo. Portanto, no a ruptura do compromisso entre as oligarquias rurais e a burguesia industrial que explica a crise final do populismo; antes o Estado populista, ao reconhecer a legitimidade da ascenso popular a fim de conservar sua base social de apoio e, portanto, de assegurar sua soberania, que ultrapassa os limites impostos pela necessidade de manuteno da ordem social e, assim, afasta-se do conjunto da classe dominante. A incapacidade do populismo em conter a ascenso poltica das classes populares o condena, portanto, morte; nessa perspectiva, a crise final do populismo constitui um momento de rejeio do populismo, enquanto estratgia poltica de desenvolvimento, pelo conjunto da classe dominante. 760
759 Idem, p. 120-121. E prossegue Saes: Esse movimento de circulao das ideologias pode surpreender o observador habitualmente voltado para a poltica das sociedades capitalistas centrais; primeira vista, a ideologia parece zombar das classes sociais e fazer tbua rasa dos imperativos da infra-estrutura. Todavia, a autonomia relativa das ideologias constitui uma manifestao da realidade do populismo [...] Portanto, o carter no linear do percurso das ideologias, mais que uma anomalia, constitui uma manifestao tpica da realidade essencial do populismo. (Idem, p. 121). 760 Idem, p. 105. 286
Tambm fazendo uso conforme j anunciamos do mesmo instrumental terico poulantziano, o cientista poltico Armando Boito Jr. props interpretaes sobre o fenmeno populista muito similares s apresentadas por Dcio Saes. Em seu livro dedicado ao segundo governo Vargas (1951-1954), intitulado O golpe de 1954: a burguesia contra o populismo 761 resultado de sua dissertao de mestrado, orientada por Saes , Boito Jr procurou compreender a dinmica poltica de todo o perodo populista, e especialmente a situada entre 1951-1954, tomando por base, centralmente, as conflituosas disputas existentes entre as distintas fraes da burguesia no interior do bloco no poder:
No perodo aberto pela Revoluo de 1930 e, particularmente, na fase representada pelo ltimo mandato presidencial de Getlio Vargas, possvel distinguir, no interior do bloco no poder, dois campos principais. De um lado, a frao industrial da burguesia, que luta pela industrializao capitalista do pas. Esse campo conta com a participao da burocracia de Estado e se fortalece medida que a industrializao avana. De outro lado, a grande burguesia comercial exportadora e importadora que, aliada ao imperialismo norte-americano, se ope poltica econmica industrialista que comea a tomar corpo a partir de 1930. 762
Sofrendo, portanto, a oposio da burguesia comercial (tambm designada como burguesia compradora), aliada ao capital estrangeiro e representada politicamente pela Unio Democrtica Brasileira (UDN) que contava com significativo apoio da alta classe mdia liberal , o segundo governo Vargas teria levado a cabo uma poltica industrialista, claramente favorvel aos interesses da burguesia industrial. 763 Entretanto, esse mesmo governo, segundo Boito Jr., no poderia ser definido como o representante, em sentido estrito, da burguesia industrial nacional. 764 Inscrito no sistema populista, o segundo governo Vargas, assim como todos os demais existentes entre 1930-1964, teria tido seu eixo poltico central conduzido no por qualquer uma das fraes burguesas em disputa, mas por uma burocracia estatal relativamente autonomizada face s classes sociais. Tal como Saes, Boito Jr. considerou que, na situao de crise de hegemonia exposta pela Revoluo de 1930, a burocracia de Estado, apoiada em amplos setores das classes populares, pde manobrar entre os interesses conflitantes das diversas fraes burguesas, adquirindo, desse modo, a condio de definir, em ltima instncia, a poltica de desenvolvimento do Estado: 765
Entre 1930 e 1964, a poltica populista , no essencial, a poltica de industrializao capitalista dirigida pela burocracia de Estado (cpulas da burocracia civil e das Foras Aramadas), apoiada em
761 BOITO JR., Armando. O golpe de 1954: A burguesia contra o populismo. So Paulo: brasiliense, 1982. 762 Idem, p.28. 763 Idem, p. 39-75. 764 Idem, p. 18. Grifos do autor. 765 Idem, p. 28. 287
amplos setores das classes populares (as classes trabalhadoras proletariado, classe mdia assalariada e pequena burguesia proprietria que, enquanto classes exploradas, encontram-se excludas do poder de Estado) e que se encontra fora do controle das fraes burguesas que integram o bloco no poder (conjunto heterogneo de classes e fraes exploradas que, enquanto tais, exercem o poder de Estado). A posio peculiar da burocracia de Estado o elemento decisivo para se caracterizar a poltica populista no decorrer do perodo 1930-1964 e para se compreender as crises, como a de 1953-54, que essa poltica atravessou. A partir da Revoluo de 1930, as cpulas da burocracia civil e das Foras Armadas, ou, mais precisamente, os setores mais significativos dessas cpulas agem como fora social distinta (classe, frao de classe ou categoria social capaz de se organizar em torno de objetivos polticos especficos) que dirige a poltica de desenvolvimento industrial do Estado. A burocracia de Estado converte-se em fora social industrialista em funo da classe-apoio que ela organiza junto s classes populares devido s motivaes especificas da cpula da burocracia civil e militar, enquanto ncleo do corpo burocrtico de um Estado burgus. Essa fora social industrialista, assim constituda, assume a direo da poltica de industrializao capitalista em funo da crise de hegemonia produzida pela Revoluo de 1930 e superada, apenas, com o golpe militar de 1964. 766
Assim, durante todo o perodo 1930-1964, a burocracia de Estado, motivada por questes especficas relacionadas sua condio social, teria desempenhado o papel de principal condutora da poltica populista de cunho industrialista. 767 Em relao burocracia, a burguesia industrial, por sua vez, teria adotado uma postura de unidade e luta: se, por um lado, apoiava sua linha industrialista, por outro, condenava sua estratgia de se apoiar na classe trabalhadora (classe-apoio) por meio de concesses sociais. 768
Foi tendo por base essa fundamental distino entre burguesia e burocracia populista, ou seja, a relativa autonomia desta em relao quela, que Boito Jr. procurou explicar a natureza da crise vivida pelo regime em 1953-1954, que culminaria com o suicdio de Vargas. Essa autonomizao relativa da cpula burocrtica dirigente teria ficado patente em maro de 1953 quando da greve dos 300 mil (So Paulo), cuja ocorrncia expressou uma importante ofensiva dos trabalhadores contra o governo. Segundo Boito Jr., enquanto o conjunto dos segmentos burgueses, a comear pelo prprio setor industrial, props o enfrentamento direto com a classe trabalhadora, a burocracia governamental, com vistas manuteno da ordem e, ao mesmo tempo, de sua base de massas (sua classe-apoio) a qual proporcionava, justamente, sua relativa autonomia face burguesia , foi impingida a tentar derrotar a classe trabalhadora por outros meios que no o da simples represso aberta. A difcil ttica ento
766 Idem, p. 22-23. Grifos do autor. 767 Quanto ao papel desempenhado pelas motivaes especificas da burocracia de Estado na sua converso em fora social industrialista, devemos considerar dois aspectos, ambos relacionados com a funo da burocracia civil e militar de representante dos interesses polticos mais gerais do capitalismo e da burguesia. De um lado, a burocracia de Estado, confrontada com as grandes crises poltico-militares do entre-guerras, passa a ver na industrializao capitalista do pas a pr-condio da sobrevivncia poltico-militar do Estado Nacional. Nos termos da linguagem militar inaugurada no ps-30, a industrializao (capitalista) definida como um requisito da segurana nacional. De outro lado, o industrialismo adquire a hegemonia no seio da burocracia de Estado em funo, tambm, do fato de essa burocracia, a partir de crise de 1929, estar preocupada em encontrar uma soluo capitalista para a crise do capitalismo brasileiro. Ora, o chamado estrangulamento externo da economia brasileira, que aparecia no dficit estrutural do balano de pagamento, convertia a poltica de industrializao na alternativa burguesa mais eficaz para a superao daquela crise. (Idem, p. 26. Grifos do autor). 768 Idem, p. 34-35. 288
levada a cabo pela burocracia teria provocado uma radicalizao o populismo, o que, consequentemente, conduziu ruptura da burguesia com o governo de Vargas:
A burocracia tinha de sustentar numa linha de equilbrio precrio. Ela levara o governo a radicalizar a poltica populista tendo em vista dois objetivos. Em primeiro lugar, ela visava sufocar o movimento de massa que entrara numa fase de ascenso com a greve dos 300 mil, impedindo que as massas populares tomassem o caminho da revoluo. Em segundo lugar, a burocracia de Estado visava barrar a ofensiva restauradora da burguesia comercial, ofensiva que se iniciara logo aps aquela mesma greve. Ora, encontrar um ponto de equilbrio que permitisse conciliar esses dois objetivos era uma ttica bastante difcil. De um lado, a presso crescente do movimento de massa obrigava a burocracia de Estado a avanar na poltica de concesses e de radicalizao verbal: permanecer imvel seria correr o risco de perder o controle poltico das classes populares; adotar uma poltica de represso que no levasse em conta a necessidade de reproduzir o mito do Estado protetor equivaleria a destruir a sua prpria base de sustentao popular [...] Mas onde o governo concentrou a sua estratgia de radicalizao do populismo foi na rea da poltica social. Isso porque ela deveria responder, primordialmente, luta que, efetivamente, assumia um carter de massa naquela conjuntura, que era a luta reivindicatria salrios, congelamento dos preos dos gneros de primeira necessidade etc. E foi exatamente a nova poltica social do governo que acabou por incompatibiliz-lo com a burguesia industrial. 769
Talvez seja pertinente mencionarmos aqui que tambm em algumas publicaes das organizaes trotskistas que enfrentaram o segundo governo Vargas pode-se encontrar a idia de que, embora voltada para o atendimento das necessidades burguesas, a poltica governamental do varguismo guardava uma relativa independncia diante da classe dominante. guisa de exemplo, destacamos que, em jornais datados dos primeiros meses de 1951, o PSR em vias de sua extino (1952) , ao mesmo tempo em que dizia ser Getlio o mais legtimo representante dos patres e capitalistas nacionais e dos imperialistas, 770 lhe atribua uma mtodo bonapartista de ao poltica, por meio do qual o demaggico presidente jogaria tanto com os trabalhadores, quanto com a prpria burguesia, a fim de preservar a ordem capitalista:
[...] Vargas quer salvar a burguesia. Essa a sua misso. Alm de tudo isso, o discurso demaggico do pai dos pobres contm, em sua essncia, todo um itinerrio de atividades bonapartistas que podem [...] 771 abrir [um] novo golpe de Estado, como em 1937. Getlio promete aos trabalhadores e finge ameaar a burguesia. O que pretende, de fato, especular com a situao mundial para enfeixar em suas mos poderes que lhe proporcionem meios de, em caso de guerra, submeter ao controle totalitrio a classe operria. 772
Poucas linhas a seguir, aps descreverem como boa e equilibrada a situao econmica nacional, porm como pssima a situao financeira do Estado, os trotskistas afirmaram que a tarefa de fortalecer o aparelho de Estado se mostrava como
769 BOITO Jr., Armando. 1954: a burguesia contra o populismo. Op. cit., p. 78-84. 770 PSR. Dois meses de governo Getlio in Luta proletria, n. 9, maro de 1951, p. 1. (CEDEM). 771 Ilegvel no documento. 772 PSR. As duas caras de Getlio in Luta Proletria, n. 10, abril de 1951, p. 3. (CEDEM). 289
incontornvel para a sobrevivncia do domnio burgus: Por isso Getlio faz ameaas classe burguesa, para salvar a prpria burguesia. 773
Retornando s contribuies de Armando Boito Jr. ao desenvolvimento da teoria do populismo, mencionamos ainda seu posterior trabalho sobre O sindicalismo de Estado no Brasil. 774
Discutindo o carter da estrutura sindical brasileira erigida a partir de 1930, Boito Jr. considerou que esta possua como componente central uma ideologia de tipo estatista (a ideologia do sindicalismo de Estado ou a ideologia da legalidade sindical) que, por sua vez, teria sido uma manifestao da ideologia populista no mbito do sindicalismo. 775
Trabalhando com o conceito de populismo (nas suas determinaes essenciais) tal como foi elaborado, inicialmente, por Francisco Weffort, 776 Boito Jr procurou desvelar a real natureza dessa ideologia populista. Nessa investida, a autonomia relativa do Estado foi abordada, sobretudo, a partir de seus efeitos sobre a subjetividade operria:
A ideologia populista uma ideologia pequeno-burguesa. Essa ideologia possui um contedo central que pode ser resumido na expresso culto ao Estado protetor, isto , a expectativa de que o Estado tome a iniciativa de proteger, independentemente da correlao poltica de foras poltica vigente num momento dado, os trabalhadores da ao dos capitalistas. Nos termos do discurso da ideologia populista, trata-se de proteger os pobres e humildes da ao gananciosa dos ricos e tubares. O populismo , ento, um tipo de estatismo. Mesmo quando se manifesta, superficial e aparentemente, como uma relao entre o lder e a massa, o populismo representa [...] uma identificao de setores populares, no com a pessoa do lder, mas sim com o aparelho de Estado burgus: com a burocracia civil e militar do Estado. Essa identificao, para retomar a expresso com a qual Lnin caracterizava o estatismo pequeno-burgus, assume a forma de um fetiche do Estado: os setores populares penetrados pela ideologia populista ignoram que a poltica de Estado determinada pela correlao poltica de foras. Concebem essa poltica como resultado da vontade livre e soberana do prprio Estado e, justamente, esperam que o Estado independentemente da luta popular organizada, venha em socorro do povo [...] o fetiche populista do Estado, sem condenar, necessariamente, as classes populares inrcia completa, bloqueia a constituio dessas classes em fora social autnoma, isto , dotada de partido e programa poltico diferenciados, na cena poltica. Mas, como indicamos, o populismo , tambm, tanto em suas variantes de esquerda como de direita brizolismo, janismo um estatismo de contedo reformista, ainda que de um reformista superficial. 777
J os cientistas polticos Rgis de Castro Andrade e Ren Armand Dreifuss, tambm se apoiando nas formulaes centrais de Weffort e Ianni, intensificaram sobremaneira o uso dos aportes tericos gramscianos em suas interpretaes do perodo 1930-1964. Quanto a esta variante gramsciana da teoria do populismo brasileiro, o que nos interessa aqui destacar a
773 Idem. 774 BOITO Jr. O sindicalismo de Estado no Brasil: uma anlise crtica da estrutura sindical. Campinas: Editora da Unicamp; So Paulo: Hucitec, 1991. 775 Idem, p. 86. 776 Idem, p. 69. 777 Idem, p. 70-71. Grifos do autor. 290
maneira particular pela qual a questo da hegemonia no Brasil ps-1930 foi abordada por seus autores. Em longo artigo publicado em janeiro de 1979, Rgis de Castro Andrade esgrimiu o argumento de que o populismo teria sido, na realidade, uma forma de hegemonia, [e] no um conjunto de alianas de classe, muito embora as alianas de classe estejam presentes em todas as ordens hegemnicas. 778 Na tica do autor, o populismo, tal como a democracia parlamentar, ou o fascismo em outros pases, teria sido uma forma de supremacia burguesa ou um regime abrangendo uma ampla margem de consenso. 779 Ao mesmo tempo, ele aparece denominado tambm como um bloco poltico-ideolgico, no qual teria tido lugar uma integrao de diferentes classes sociais ou setores sob a liderana da classe dominante (ou uma frao dela) atravs da aceitao ideolgica geral de um conjunto de valores e instituies que oculta as estruturas objetivas de dominao. 780
Tomando o regime surgido do golpe da Aliana Liberal como uma democracia oligrquica sob um Executivo forte, 781 Andrade considerou que, no transcorrer do processo poltico que desembocaria no Estado Novo, teria se efetuado gradativamente a passagem para a tal supremacia burguesa 782 expresso que, cabe alertar, aparece ao longo no texto como uma espcie de sinnimo de hegemonia burguesa. Tal supremacia, segundo Andrade, teria sido alcanada tanto por meio da ocupao de postos estratgicos do Poder Executivo (ministrios e rgos tcnicos) por representantes dos interesses da frao industrial da burguesia, quanto pelo controle estatal imposto sobre as organizaes sindicais dos trabalhadores. Com o golpe de novembro de 1937, a implementao plena do corporativismo, consagrado pela nova Carta Constitucional, teria completado a transio da democracia oligrquica para a supremacia burguesa:
Em 1937, a frmula corporativista imitou o modelo europeu: a economia produtiva ser organizada em corporaes e estas (...) sero assistidas pelo Estado e colocadas sob sua proteo (art. 140 da constituio). Como na Europa, esta clusula nunca foi aplicada ao p-da-letra, pela pondervel razo de que o corporativismo nunca passou, em todos os lugares, de uma cortina de fumaa para o controle das associaes de trabalhadores e para a direo da participao das fraes mais fortes das classes dominantes na conduo da economia. Esses dois objetivos, em verdade, j tinham sido alcanados pela incorporao orgnica dos sindicatos ao Ministrio do Trabalho e pela presena de grandes industriais e financistas nos rgos tcnicos do Executivo. Muitos desses rgos cujo nmero e poder nunca deixou de aumentar no Brasil moderno existiam antes de 1937; aps o fechamento do Congresso sob o Estado Novo, tornaram-se as instituies par excellence por meio das quais a nova classe dominante influenciava o processo de tomada de deciso no nvel mais alto. Um primeiro tipo de rgos compreendia os Conselhos Tcnicos, encarregados da administrao geral da
778 ANDRADE, Rgis de Castro. Perspectivas no estudo do populismo brasileiro in Encontros com a Civilizao Brasileira, n7. Rio de Janeiro: Civilizao brasileira, janeiro de 1979, p. 66. 779 Idem, p. 42. 780 Idem. 781 Idem, p. 47. 782 Idem, p. 58. 291
economia; outros foram criados com a atribuio de tratar de problemas e setores especficos, como a Comisso Executiva do Plano do Ao, o Conselho Nacional do Petrleo etc. [...] Falando de um modo geral, o corporativismo significou a absoro pelo Estado das organizaes de classe pertencentes sociedade civil (sindicatos e partidos); mas o aspecto significativo dessa absoro no que toca s classes dominantes foi a estreiteza e a exclusividade da representao de classe inerente ao sistema descrito acima de participao direta que, por definio, protegeu apenas os interesses industriais e financeiros mais poderosos do pas. Neste sentido, ele definia, em primeiro lugar, o quadro institucional da dominao burguesa. Em segundo lugar, o corporativismo constituiu uma forma experimental de governo hegemnico, por oposio forma parlamentar. Colocando na esfera do Executivo todos os problemas que aguardavam soluo, todas as reivindicaes que esperavam atendimento, esses modo de organizao removeu todos os conflitos sociais do nvel econmico-corporativo e trouxe-os para o Estado, sendo obscurecidas assim, nesse processo, todas as clivagens de classe. Na medida em que as outras fraes das classes dominantes, como os setores agroexportadores protegidos por polticas governamentais, ou as igualmente protegidas massas populares, aceitavam seu papel passivo vis-a-vis o Estado, havia algum objetivo hegemnico para essa forma de Estado. 783
Assim, segundo Andrade, a partir do Estado Novo, o populismo teria passado a expressar uma forma de encobrimento do governo direto da burguesia, exercido atravs do comando burgus sobre os poderosos rgos econmicos do Executivo, e sobre os ministrios. 784 Desse modo, mesmo no tendo sido, durante o populismo, os governantes nacionais membros orgnicos da burguesia, a incorporao ao Estado, via-rgos tcnicos, dos industriais mais destacados 785 teria proporcionado frao burguesa industrial uma hegemonia sobre os demais setores da classe dominante. J no que diz respeito classe trabalhadora e aos setores populares em geral, a obteno dessa hegemonia burguesa-industrial teria se efetivado por intermdio de uma poltica estatal que combinava direitos trabalhistas, corporativismo sindical e uma ideologia de venerao ao Estado:
Quanto classe trabalhadora, a atividade hegemnica da burguesia foi corporificada na legislao trabalhista, no reconhecimento legal dos sindicatos e no estabelecimento do salrio mnimo. Este conjunto de iniciativas foi elaborado previamente, a partir do ponto de vista do seu efeito sobre o processo de acumulao, e como instrumento de dominao. De fato, o duplo significado da ideologia trabalhista da dcada de 1930 sublinha a natureza hegemnica dessa ideologia, planejada precisamente para coordenar os interesses das classes dominantes aos dos grupos subordinados. A necessidade de fortalecer o povo trabalhador foi um tema constante do discurso oficial dos anos 1930; o fato de que a emergncia da legislao e da ideologia trabalhista no incio da dcada de 1930 ter correspondido ao reaparecimento das greves e a um perodo de grande mobilizao poltica somente refora esse argumento. Em relao massa da populao trabalhadora, a funo hegemnica foi manifesta na ideologia do Estado como protetor ou benfeitor, bem como na organizao do carisma de Vargas no topo da pirmide poltica. 786
Segundo o cientista poltico, os elementos fundamentais dessa hegemonia burguesa arquitetada sob o Estado Novo teriam sido preservados pelo regime posterior, delimitado institucionalmente pela Constituio de 1946. Embora permitindo algum espao para a
783 Idem, p. 53-54. Grifos do autor. 784 Idem, p. 43. 785 Idem, p. 59. 786 Idem, p. 56-57. 292
participao popular no processo poltico, o novo regime, vigente at 1964, teria expressado, ele tambm, uma forma de supremacia burguesa, cuja peculiaridade foi a insero de um sistema eleitoral dentro das estruturas autoritrias do Estado Novo. 787 Embora desempenhando um no desprezvel papel hegemnico, os partidos polticos que atuariam nesse novo regime teriam se mostrado, em ltima anlise, subsumidos ao poderoso aparelho estatal, cujo protagonismo foi mantido na cena poltica nacional. 788
Manuseando sua maneira o arsenal terico gramsciano, Andrade encontrou no populismo de 1946-1964 a existncia de um consenso geral, produzido, principalmente, pela j referida ideologia do culto ao Estado, elaborada sob o Estado Novo. Assim, ao longo da chamada democracia populista, a burguesia industrial, ainda que por meio do Estado e de suas ideologias auto-proclamatrias e no centralmente por intermdio de suas representaes poltico-partidrias , teria logrado efetivar sua hegemonia sobre o conjunto da sociedade:
No populismo, compreendido agora como uma forma de relao vital entre sociedades civis e polticas, o Estado absorveu uma extenso muito grande da funo tico-poltica das classes dominantes, intensificando desse modo a idia, convertida em uma slida crena popular, de que a nao era dirigida por um poder neutro e benevolente, inteiramente desligado dos interesses e paixes da sociedade. Frente a isso ou melhor, sob sua direo hegemnica as classes subordinadas tendiam a ser fundidas em uma massa socialmente indiferenciada. A origem da supremacia burguesa no pas da qual o populismo um momento no perodo de ps-guerra remonta aos anos 1930, quando a burguesia, como resultado das peculiaridades da sua ascenso poltica, localizou-se no Executivo e fez uso do Estado autoritrio. A trajetria poltica da burguesia no Brasil nunca se baseou na organizao partidria nem mesmo em um sistema partidrio [...] Na verdade, a burguesia no Brasil nunca se preocupou em formular seu projeto de dominao (no sentido de um corpo de proposies polticas e doutrinrias articulado para a nao); isto, porm no significou que a burguesia no tenha dominado o Estado e, atravs de ideologias populistas, no tenha exercido um poder hegemnico sobre as classes aliadas e as classes subordinadas. 789
primeira vista, observamos que, no que toca estritamente questo da hegemonia no regime populista, haveria uma oposio analtica entre, de um lado, as pioneiras vises de Weffort e Ianni, e do outro, a interpretao proposta por Andrade mais frente relativizaremos essa oposio. Enquanto para os primeiros, o populismo brasileiro, em funo de uma srie de condicionantes histricos, teria permanentemente expressado um contedo poltico no-hegemnico (crise de hegemonia), para Rgis de Castro Andrade, seria possvel observar, desde pelo menos meados dos anos 30, e certamente a partir do Estado Novo, a existncia de uma hegemonia de classe (da burguesia industrial) no interior do sistema poltico.
787 Idem, p. 60. 788 Idem, p. 61. 789 Idem, p. 64-65. 293
No incio dos 80, a concepo do populismo como uma forma de supremacia burguesa apareceria tambm na monumental e at hoje inigualvel pesquisa emprica empreendida por Ren Dreifuss acerca do Golpe de 1964. Corroborando a periodizao alinhavada por Andrade, o perspicaz cientista poltico uruguaio considerou o Estado Novo como o momento poltico no qual essa supremacia da frao industrial teria sido obtida, configurando, assim, os pilares para o tipo de dominao poltico-social que se verificaria a partir de 1945:
O Estado de compromisso, forjado no processo scio-poltico da dcada de trinta, foi ento remodelado a partir das experincias de um novo Estado traduzido pelas formas corporativas de associao e apoiado por formas autoritrias de domnio. O Estado Novo surgiu porque a burguesia industrial se mostrou incapaz de liderar os componentes oligrquicos do Estado de compromisso ou para impor-se nao atravs de meios consensuais, de maneira a criar uma infra-estrutura scio- econmica para o desenvolvimento industrial. O Estado Novo garantiu a supremacia econmica da burguesia industrial e moldou as bases de um bloco histrico burgus, concentrando as energias nacionais e mobilizando recursos legitimados por noes militares de ordem nacional e de progresso, cujos interesses pela industrializao mutuamente reforavam os interesses dos industriais. Sob a gide do Estado Novo, industriais e proprietrios de terra tornaram-se aliados. 790
Embora muito influenciada pela interpretao histrica de Andrade, a pesquisa de Dreifuss apresentaria de um modo mais ponderado ou talvez mais ambguo a idia do regime populista de 1946-1964 como uma forma de dominao hegemnica. Designando o populismo como um bloco histrico conceito gramsciano cuja traduo poltica seria, para o cientista poltico, a de hegemonia 791 Dreifuss faria, entretanto, algumas ressalvas quanto sua capacidade consensual sobre os setores subalternos:
O exerccio normal do domnio poltico na fase clssica do regime populista, de 1945 a 1960, caracterizou-se por uma combinao de pluralismo e limitao, fora e autoridade, coero e consentimento. Esses elementos se equilibraram de vrias formas durante as sucessivas presidncias, sem que a fora substitusse o consenso, com viria a acontecer no regime autoritrio militar ps-1964. Porm, at o incio da dcada de sessenta no houve nem um consentimento hegemnico nem um pluralismo democrtico, j que as classes dominantes proscreveram o Partido Comunista, intervieram e expurgaram os sindicatos, deixando ainda mais de 50% do eleitorado privado do direito de sufrgio em decorrncia do seu analfabetismo. 792
Mesmo assim, era possvel construir uma certa medida de consentimento e de consenso a partir da noo de igualdade democrtica de todos os cidados, exceto aqueles estigmatizados como comunistas os analfabetos, que foram totalmente excludos do processo eleitoral, e os trabalhadores rurais, cujo recrutamento para partidos de oposio era dificultado por estarem sob tutela dos coronis e de prticas clientelistas [...] Apesar da consolidao das relaes capitalistas de trabalho e da proeminncia econmica que os empresrios haviam conseguido durante a dcada de quarenta, a supremacia industrial-financeira no se traduzia em hegemonia nacional poltica e ideolgica 793
790 DREIFUSS, Ren Armand. Op.cit., p. 22-23. 791 Idem, p. 40 (nota 21). 792 Idem, p. 136. 793 Idem, p. 30-32. 294
Para alm dessa interpretao oscilante acerca de uma possvel natureza hegemnica do populismo, 794 o certo que, para o autor, o sistema teria sido acometido por uma aguda crise de hegemonia a partir do incio da dcada de 1960. Alteraes morfolgicas no interior da classe dominante e avanos poltico-organizativos dos trabalhadores estariam entre suas razes explicativas. Segundo Dreifuss, o regime viu-se, naqueles conturbados anos, diante de um ataque bifrontal: de um lado, teria sido estrategicamente combatido por um novo bloco histrico burgus, constitudo a partir do governo JK e liderado pelos setores mais modernos e internacionalizados da economia brasileira (bloco multinacional e associado), para quem o reformismo populista significava um bice para a adequao das estruturas polticas do pas aos novos padres da acumulao capitalista perifrica; do outro lado, a classe trabalhadora, intensificando suas lutas reivindicatrias por meio de organizaes intersindicais que extrapolavam o controle estatal de tipo corporativista, teria dado sinais de que o populismo deixava de ser uma forma de manipulao (articulao de consentimento), passando a expressar uma forma de participao (expresso de demandas): 795
A mobilizao de massas era basicamente inorgnica. No entanto, a passagem do anonimato para a identidade, do estagio econmico corporativo para um estado de conscincia poltica de classe, embora mediado por pelegos e somente em forma incipiente atravs dos intelectuais orgnicos das classes trabalhadoras j apresentava os problemas do papel do sindicato perante o Estado e o Partido, os problemas da relao entre o sindicalismo e a sociedade poltica. Ademais, os novos nveis de mobilizao popular coincidiram com a falta de consenso no seio das classes dominantes, onde o bloco multinacional-associado agia politicamente contra as classes governamentais tradicionais para destitu- las de seu poder de Estado. Esse ataque bifrontal contra a estrutura poltica e scio-econmica populista favoreceu a insularidade em expanso do Executivo petebista-reformista, uma autonomia que as classes dominantes brasileiras nunca haviam permitido antes e no permitiriam novamente nesse especifico momento histrico. 796
Dirigido por uma elite orgnica, animadora de entidades de propaganda e agitao golpista como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ao Democrtica (IBAD), o bloco multinacional e associado, conjurando o fantasma do comunismo, obteria xito em angariar o apoio do conjunto da classe dominante e da cpula das Foras Armadas para seu projeto de derrubada violenta do populismo, que soobraria em maro/abril de 1964. 797 Assim, a crise de autoridade orgnica e de hegemonia poltica seria
794 Oscilao esta que, possivelmente, seja decorrncia das variadas e muitas vezes conflitantes apreenses do prprio conceito de hegemonia, conforme j assinalamos na introduo primeira parte deste trabalho. 795 DREIFUSS, Ren Armand. Op.cit., p. 141. 796 Idem, p. 140-141. 797 A vanguarda da poderosa coalizo antipopulista e antipopular, localizada nos vrios escritrios de consultoria, anis burocrtico-empresariais, associaes de classe dominante e militares ideologicamente congruentes, beneficiando-se do apoio logstico das foras transnacionais, transformou-se num centro estratgico de ao poltica, o complexo IPES/IBAD. Juntamente com fundadores e diplomados da ESG [Escola Superior de Guerra], ele estabeleceu a crtica das armas, representando [o] momento poltico-militar da ao burguesa de classe. As classes capitalistas se unificaram sob uma nica liderana o complexo IPES/IBAD no Estado Maior da burguesia, como tambm agiram sob a bandeira de um nico partido da ordem, as Foras Armadas. (Idem, p. 143). 295
resolvida por um golpe preventivo empresarial-militar, 798 cujo resultado histrico teria sido, para Dreifuss, a conquista do Estado pelo bloco multinacional e associado, doravante hegemnico. Teoria do bonapartismo e teoria do populismo: convergncias Nas pginas j transcorridas deste captulo, possivelmente o leitor j tenha entrevisto a existncia de diversos pontos de contato entre as teorias do bonapartismo e a do populismo e, mais precisamente, tenha notado como as primeiras provavelmente se constituram em um dos alicerces fundamentais da segunda. A partir de agora, seguindo na demonstrao de nossa hiptese central, procuraremos discutir essa questo mais detidamente.
O bonapartismo nas origens do conceito de populismo: Weffort e Ianni Acerca da presena da teoria do bonapartismo nos pioneiros trabalhos marxistas sobre o populismo brasileiro, o primeiro ponto a ser destacado a associao sugerida por Weffort e Ianni entre uma situao de crise de hegemonia/crise orgnica e a emergncia de um Estado relativamente autonomizado diante dos vrios grupos sociais. Conforme j foi exposto, para tais autores, teria sido justamente a incapacidade de qualquer um dos segmentos sociais existentes em fazer-se hegemnico numa sociedade em transio (urbanizao, massificao) o que determinou, a partir de 1930, o surgimento de um aparelho estatal dotado de relativa independncia poltica. Tal qual na teoria do bonapartismo, a diviso das classes dominantes, por um lado, e a apario de um novo setor social ameaador (as massas populares, o proletariado), por outro, estariam entre as razes explicativas do papel arbitral que o poder estatal teria desempenhado sob o populismo. Fazendo farto uso das categorias gramscianas, Weffort considerou que:
No Brasil, a crise poltica dos anos 20 confluiu na revoluo de 30 e se combina com os efeitos polticos da crise econmica de 29 e da depresso que se segue, produzindo na sociedade brasileira algo de muito parecido a isto que Gramsci designaria como crise orgnica. Se bem no resultasse, como prefere a hiptese gramsciana, da contestao das massas, a crise brasileira deveria ter efeitos at certo ponto similares provocando com a desarticulao do antigo bloco hegemnico a desarticulao das relaes entre sociedade poltica e sociedade civil. Mais do que uma crise de hegemonia uma crise de hegemonia sem soluo normal, seja de substituio, seja de restaurao, que deveria inevitavelmente obrigar no correr do tempo, a alteraes nas relaes entre Estado e sociedade. Abaladas as bases de poder das velhas classes agrrias e na ausncia de alternativas de outras classes fundamentais (entre as quais a burguesia industrial e a classe operria) a crise deveria receber precisamente esta soluo que Gramsci designa como transformismo: tem inicio um perodo de preeminncia da sociedade poltica sobre a sociedade civil, firmando-se os detentores do aparelho de Estado em rbitros do instvel compromisso entre os grupos dominantes que desde ento passaria a caracterizar o regime brasileiro. 799
798 Idem. 799 WEFFORT, Francisco. Democracia e movimento operrio: algumas questes para a histria do perodo 1945/1964 (segunda parte). Op. cit, p. 5-6. 296
Para alm de uma utilizao um tanto quanto peculiar da noo de transformismo, 800 a anlise weffortiana das estruturas polticas brasileiras ps-oligrquicas traz em destaque a idia de uma relativa autonomizao estatal face s foras da sociedade civil, o que , nada mais nada menos, que o componente central da teoria do bonapartismo (e da idia gramsciana de cesarismo como uma das possveis conseqncias da revoluo passiva). Apoiando-se nas massas populares, as quais politicamente manipulava, e firmando, a seu modo, o compromisso entre as fraes sociais dominantes, o Executivo populista j no seria, para Weffort, a representao poltica direta de nenhuma destas fraes em particular:
rbitro do compromisso elitrio e mantendo o controle do aparelho de Estado, Vargas deveria comear tambm a buscar apoio nas mesmas massas que as elites viam como uma ameaa permanente [...] Vargas comeava assim, por meio de uma abertura de tipo corporativista s elites e por meio da manipulao difusa das massas, a preencher o vazio social e poltico deixado pelas classes agrrias derrubadas do poder em 1930, esboando, portanto, uma espcie de substitutivo para uma hegemonia de classe inexistente. 801
O chefe do Estado passar a atuar como rbitro dentro de uma situao de compromisso que, inicialmente formada pelos interesses dominantes, dever contar agora com um novo parceiro as massas populares urbanas , e a representao das massas nesse jogo estar controlada pelo prprio chefe do Estado. Nas funes de rbitro ele passa a decidir em nome dos interesses de todo o povo. 802
Essa idia de uma relao altamente contraditria entre economia e poltica no Brasil ps-1930 cuja soberania do Estado face sociedade civil seria a melhor e mais visvel expresso foi exposta de uma maneira ainda mais explcita pelo mesmo autor:
800 Gramsci, em suas anlises sobre a unificao italiana (interpretada, como vimos, pela chave terica da revoluo passiva), props o conceito de transformismo visando explicar o processo histrico-poltico pelo qual personalidades (num primeiro momento) e grupos/partidos polticos (num segundo momento) identificados com a linha extremista se incorporaram classe poltica conservadora e moderada (caracterizada pela hostilidade a toda interveno das massas populares na vida estatal, a toda reforma orgnica que substitusse o rgido domnio ditatorial por uma hegemonia) (GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. Op. cit., volume V, p. 286). Em outro momento de seus escritos carcerrios, Gramsci aplicou o conceito a determinados grupos de intelectuais italianos que, de passado rebelde, haviam migrado/retornado para as fileiras dominantes: Eficcia do movimento operrio socialista na criao de importantes setores da classe dominante. A diferena entre o fenmeno italiano e o de outros pases consiste, objetivamente, no seguinte: que, enquanto nos outros pases o movimento operrio e socialista elaborou personalidades polticas singulares que passaram para a outra classe, na Itlia, ao contrrio, elaborou grupos intelectuais inteiros, que realizaram esta passagem como grupos. A causa do fenmeno italiano, ao que me parece, deve ser buscada na escassa aderncia das classes altas ao povo: na luta das geraes, os jovens se aproximam do povo; nas crises de mudana, tais jovens retornam sua classe (foi o que ocorreu com os sindicalistas-nacionalistas e com os fascistas). No fundo, trata-se do mesmo fenmeno geral do transformismo, em condies diversas [...] A burguesia no consegue educar os seus jovens (luta de gerao): os jovens deixam-se atrair culturalmente pelos operrios, e chegam mesmo a se tornar ou buscam faz-lo seus lderes (desejo inconsciente de realizarem a hegemonia de sua prpria classe sobre o povo), mas, nas crises histricas, retornam s origens. (GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. Rio de Janeiro: Civilizao brasileira, 2000. Volume II, p. 94-95). Embora muito sugestivo e de bastante valia para a compreenso de certos momentos e aspectos da histria brasileira contempornea, o conceito de transformismo, em nossa opinio, parece ter sido utilizado de modo um tanto inapropriado por Weffort no caso acima. 801 WEFFORT, Francisco. Democracia e movimento operrio: algumas questes para a histria do perodo 1945/1964 (terceira parte). Op. cit, p. 15. 802 WEFFORT, F. O populismo na poltica brasileira. Op. cit., p. 78-79. Grifos do autor. 297
Encontramo-nos, pois, diante da seguinte situao: os senhores do poder poltico no representam diretamente os grupos que dominam as esferas bsicas da economia. Isto significa que a nova configurao do poder possui uma diferena fundamental em relao antiga: j no a expresso imediata da hierarquia do poder econmico. Introduz-se, assim, uma decalagem entre o Estado e a economia [...] Esta circunstncia de compromisso abre a possibilidade de um Estado entendido como um rgo (poltico) que tende a se afastar dos interesses imediatos e a sobrepor-se ao conjunto da sociedade como soberano. 803
Se, ao longo das anlises de Weffort sobre o populismo, a concepo de uma autonomia relativa do Estado no aparece claramente designada pelo nome de bonapartismo, convm sublinhar, entretanto, que em determinada passagem o cientista poltico se referiu Vargas como uma espcie de Bonaparte civil. 804 Contando, como convm ao bonapartismo, com um substancial apoio das foras armadas, e dotado de extraordinrio tirocnio poltico, Vargas teria sido o principal responsvel pelo estabelecimento e conduo do novo compromisso elitrio. 805
Tambm em Ianni presente a concepo de que o populismo no seria a expresso poltica dos interesses particulares de uma determinada classe (ou frao de classe). Segundo o socilogo, mesmo quando o populismo assumia uma forma ditatorial (ditadura populista), ele no implicaria na
ditadura da burguesia ou dos assalariados, e muito menos na da classe operaria. Ela mantm o carter policlassista, ainda que no em todos os nveis do poder. O Estado representado pelas foras que se acham no poder como se representasse, ao mesmo tempo, todas as classes e grupos sociais, mas vistos como povo, como uma coletividade para a qual as tarefas do nacionalismo desenvolvimentista pacificam e harmonizam os interesses e os ideais. O Estado proposto e imposto sociedade como se fora o seu melhor e nico intrprete, sem a mediao dos partidos. 806
Em seu ensaio sobre o populismo mexicano de Crdenas, a concepo de uma subsuno da sociedade civil ao todo-poderoso Estado tambm teria lugar:
De fato, sob o governo Crdenas, o povo organizado em suas atividades polticas, econmicas e culturais pelo poder pblico, e organizaes vinculadas a este. A maior parte das mensagens ideolgicas e culturais recebidas pela populao proveniente do aparelho estatal. Ao mesmo tempo, o Estado aparece na prtica e no pensamento das pessoas, grupos e classes sociais como ncleo principal de todas as relaes [...]. Visto em seu movimento histrico, contudo, o governo Crdenas mostra um Estado que organiza, articula e dinamiza as relaes de produo, as foras produtivas e a acumulao privada e pblica de capital. Sob esse governo a formao social capitalista do pas amadurece suas relaes e estruturas bsicas. 807
803 WEFFORT, Francisco. Estado e massas no Brasil. Op. cit., p. 53. 804 WEFFORT, Francisco. Democracia e movimento operrio: algumas questes para a histria do perodo 1945/1964 (segunda parte). Op. cit, p. 6. 805 Idem. 806 IANNI, Octavio. A formao do Estado populista na Amrica Latina. Op. cit., p. 128. 807 IANNI. Octavio. El Estado capitalista... Op. cit., p. 25-26. Traduo nossa. 298
Outro elemento das anlises de Ianni e Weffort claramente advindo da teoria do bonapartismo diz respeito relao mencionada por ns alguns pargrafos atrs entre o Estado e as massas populares na configurao do sistema populista. Como pde ser observado, o populismo chegou a ser definido por seus primeiros intrpretes marxistas como um Estado de massas, j que teria se constitudo em uma forma poltica de incorporao controlada dos novos segmentos urbanos vida pblica nacional. Reconhecendo a existncia, ao nvel institucional, das massas trabalhadoras, o Estado populista brasileiro teria inaugurado uma nova etapa na histria poltica do pas, na qual o fantasma popular foi um ator sempre presente. 808
Assim como o bonapartismo de Lus Bonaparte, o populismo e isso consta claramente nas interpretaes de Ianni e Weffort teria correspondido a um momento histrico divisor de guas, marcado pela entrada em cena do proletariado (como um sujeito social antagonista) num quadro de profunda diviso das classes dominantes (crise de hegemonia). Tal qual o bismarckismo, o populismo teria significado a integrao poltica dos trabalhadores em meio a uma situao transicional particular, caracterizada por uma objetivao do capitalismo industrial que, dialeticamente, preservava as velhas estruturas agrrias. Fazendo as vezes do chanceler de ferro prussiano, Vargas teria, pelo alto, estabelecido o pacto entre as antigas e novas classes proprietrias. Como nos bonapartismos perifricos de Trotsky (os bonapartismo sui generis latino-americanos), essa integrao manipuladora da classe operria teria sido efetivada pelo Estado populista num contexto no qual se redesenhavam as relaes entre o mercado internacional e as economias dependentes, que ento passavam a dispor de maior flexibilidade dentro da rbita imperialista. Lanando mo da combinao a nosso ver, tipicamente bonapartista entre coero poltica e concesses sociais, o aparelho estatal populista, de acordo com Weffort, teria obtido nas massas um fundamental apoio social ao novo regime poltico, num momento em que nenhum dos setores das classes dominantes podia fornecer-lhe legitimidade. Decapitando politicamente o movimento operrio (por meio da represso policial, mais ou menos intensa, conforme o perodo), castrando sua autonomia sindical (graas legislao corporativista), e aplicando uma reformista poltica de massas, alguns regimes populistas latino-americanos, dentre eles o brasileiro, puderam, segundo Ianni, encontrar nas atomizadas massas populares um importante aliado para sua poltica de desenvolvimento capitalista. Obscurecendo os antagonismos sociais por meio de difusos ataques ao imperialismo e s oligarquias, a aliana de classes propugnada pelos Estados populistas teria por finalidade tal como em alguns dos bonapartismos discutidos por ns enredar as classes subalternas no discurso da
808 WEFFORT, F. O populismo na poltica brasileira. Op. cit., p. 79.
299
paz social, necessria (naquelas condies histricas) para a efetivao da modernizao industrial capitalista:
No populismo esto presentes setores da burguesia industrial e do proletariado urbano, militares, grupos de classe mdia, intelectuais, estudantes universitrios e, em alguns pases, tambm camponeses e proletariado rural. Em nome da luta contra o atraso econmico-social, a dependncia excessiva da monocultura, os enclaves, a oligarquia e o imperialismo, a poltica populista preconiza a harmonia das classes sociais. O intento de devolver o pas ao povo traz consigo a necessidade de fortalecer os laos de cooperao entre o capital e o trabalho, diluindo-se as linhas de classe. A paz social, apregoada por Crdenas, Pern e Vargas, entre outros lideres populistas, a paz nas relaes entre as classes sociais, encarada como pr-requisito das tarefas de emancipao econmica do pas e generalizao do bem-estar social ao povo [...] A luta pelo desenvolvimento econmico, particularmente o industrial, depende da paz social, da harmonia entre a burguesia e o proletariado, da cooperao entre o capital e o trabalho. 809
Segundo Weffort e Ianni, alm do binmio coero-concesso, o xito dessa poltica populista de colaborao de classes teria se divido tambm a um aspecto de ordem mais propriamente ideolgica. Gozando, de fato, da j discutida autonomia relativa face s fraes sociais dominantes, o Estado populista teria procurado se apresentar s massas e assim teria sido efetivamente encarado por estas como uma entidade posicionada acima dos conflitos sociais e, por conseguinte, capaz de arbitr-los de forma imparcial. O populismo encerraria, assim, segundo seus primeiros tericos marxistas, um contedo ideolgico tipicamente pequeno-burgus, cujo sentido ltimo seria a negao dos antagonismos de classe a partir da afirmao da existncia de um Estado neutro e protetor.
Nessas condies de compromisso e de instabilidade, tm sua gnese algumas das caractersticas mais notrias da poltica brasileira, entre as quais convm destacar alguns componentes que viro a ser fundamentais no populismo: a personalizao do poder, a imagem (meio real e meio mstica) da soberania do Estado sobre o conjunto da sociedade e a necessidade da participao das massas populares urbanas. 810
Incorporada pela classe trabalhadora, essa ideologia estatista 811 teria contribudo para que as relaes entre as classes sociais no populismo aparecessem, ento, como relaes entre indivduos ou, mais propriamente, entre um cidado (parte do povo, da massa) que demanda benesses, e o lder poltico estatal que as fornece. Orquestrando o pacto entre as elites, o chefe de Estado seria tambm o principal responsvel pela manipulao das massas, estabelecendo com elas uma relao direta, sem a mediao dos partidos e de quaisquer outras formas organizativas da sociedade civil. Verificar-se-ia, ento, um ideolgico culto ao Estado e, mais especificamente, ao prprio chefe de Estado que, soberano, proveria o seu
809 IANNI, Octavio. A formao do Estado populista na Amrica Latina. Op. cit., p. 136-138. 810 WEFFORT, F. O populismo na poltica brasileira. Op. cit., p. 78. Grifos do autor. 811 Ou uma ideologia de Estado, segundo as palavras de Bolivar Lamounier, encampadas por Weffort (WEFFORT, Francisco. Democracia e movimento operrio: algumas questes para a histria do perodo 1945/1964 (segunda parte). Op. cit, p. 8). 300
povo do que fosse necessrio (ou do que fosse possvel). Embora de feio paternalista, essa personalizao da poltica (simbolizada pela adorao popular ao governante) se assentaria ressaltou Weffort na efetiva cidadania que o Estado populista reconhecia aos trabalhadores urbanos:
E ns podemos ento perceber que, na relao poltica, a doao, e a dependncia que ela implica, apenas um dos lados do problema. De fato, o que essa relao paternalista entre lder e massa contm, do ponto de vista poltico, o reconhecimento da cidadania das massas, de sua igualdade fundamental dentro do sistema institucional apesar de tpica assimetria de todo o paternalismo. E a melhor prova dessa igualdade a relao de identidade que as massas estabelecem com o lder, cidado de outra classe social que se encontra nas funes do Estado [...] No populismo, [...] as relaes entre indivduos de classes sociais distintas tm maior relevncia que as relaes entre essas mesmas classes concebidas como conjuntos sociais e politicamente homogneos. Isto significa dizer que no populismo as relaes entre as classes sociais se manifestam de preferncia como relaes entre indivduos. Da que o poltico populista tenha tido sempre pouco interesse em oferecer s classes populares que lidera a oportunidade de organizar-se, a menos que esta organizao implicasse um controle estrito do comportamento popular [..] 812
Assim, ainda que no Brasil, o pacto populista tenha se efetuado, a rigor, apenas nas grandes regies urbanas dada, entre outros fatores, a excluso dos trabalhadores rurais da legislao trabalhista , uma subjetividade poltica de tipo agrrio-tradicionalista estaria entre as razes explicativas de sua eficcia ao longo de boa parte do regime. A poltica de massas praticada pelo Estado e os sucessivos equvocos estratgicos das direes polticas da classe trabalhadora (sobretudo o PCB, como vimos) teriam favorecido com que se desenvolvesse entre os enormes contingentes que afluam aos centros urbanos uma ideologia muito similar quela atribuda por Marx aos pequenos camponeses franceses que sustentaram o golpe de Estado de Napoleo III. Se estes ltimos, segundo o pensador alemo, demonstraram ter a necessidade de um representante que lhes aparecesse como seu senhor, como autoridade sobre eles, como um poder governamental ilimitado que os protegesse das demais classes e que, do alto lhes mandasse o sol ou a chuva, 813 os novos setores urbanos proletarizados, nas palavras de Weffort, tenderam, sob o populismo, a confiar sua liderana poltica a algum que j se encontrava no controle de alguma funo pblica um presidente, governador, deputado etc. -, isto , [a] algum que, por sua posio sistema institucional de poder, tivesse a possibilidade de doar, seja uma lei favorvel s massas, seja um aumento de salrio ou, mesmo, uma esperana de dias melhores. 814
Em alguns de seus trabalhos sobre o tema, Weffort chegaria a propor explicitamente a analogia com a Frana bonapartista, tendo por finalidade imputar jovem classe trabalhadora do populismo brasileiro um tpico comportamento poltico de massa, isto , desprovido de
812 WEFFORT, F. O populismo na poltica brasileira. Op. cit., p. 83. 813 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 116. 814 WEFFORT, F. O populismo na poltica brasileira. Op. cit., p. 82. 301
uma autntica conscincia de classe o que, no caso dos pequenos camponeses franceses de meados do XIX, como vimos, teria sido, na viso de Marx, invariavelmente determinado pelas suas prprias condies objetivas de existncia (seu modo de produo os isola uns dos outros, em vez de criar entre eles um intercmbio mtuo...), 815 e no por conta das opes estratgicas de suas lideranas. Em Razes sociais do populismo em So Paulo (1965), por exemplo, aps transcrever, na ntegra, a conhecida passagem dO 18 brumrio sobre o campesinato, Weffort afirmou nela estarem indicadas as condies que engendram, em geral, a poltica populista. 816 Depois de, apoiando-se em Histria e conscincia de classe (Lukcs), 817 afirmar poder ser a pequena-burguesia considerada a classe paradigmtica para explicao do comportamento de massa, o cientista poltico exps sua proposta analtica de substituio daquela classe pelo operariado com vistas compreenso do populismo paulista:
Isto significa que se deve esperar que as mesmas condies gerais que caracterizam a situao pequeno-burguesa marginalidade em face da dinmica do sistema capitalista, ausncia de uma perspectiva prpria perante este sistema, e, portanto, impossibilidade de uma poltica autnoma devem achar-se presentes, em alguma medida historicamente determinvel, quando outras classes assumem o comportamento de massa. Pensamos, especialmente, no operariado e nos setores assalariados em geral, que, no Estado de So Paulo, so um dos pontos de apoio bsicos do populismo. 818
Convm frisar que, para Weffort, a idia de massa, nesse caso, expressaria um posicionamento ideolgico e poltico assumido pela classe trabalhadora sob o populismo, e no uma negao da prpria existncia desta classe: A situao de massas tende a dissolver os vnculos com os padres tradicionais [de origem rural] e a obscurecer a conscincia de classe. No obstante, essa situao de massas e suas formas polticas no so, de modo algum, independentes de posies determinadas de classe; apesar de as manifestaes polticas de massas negarem essas posies de classes, observa-se [...] que, de fato, constituem expresses polticas possveis [...] de posies determinadas de classe. 819
A dicotomia entre massa e classe ao nvel da subjetividade poltica dos trabalhadores tambm seria invocada por Octavio Ianni. Em O colapso do populismo no Brasil, a
815 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 115. 816 WEFFORT, F. Razes sociais do populismo em So Paulo in Revista da Civilizao brasileira, n. 2. Rio de Janeiro: Civilizao brasileira, maio de 1965, p. 48. 817 LUKCS, G. Histria e conscincia de classe. So Paulo: Martins Fontes, 2003. 818 WEFFORT, F. Razes sociais do populismo em So Paulo. Op. cit., p. 48. Escrito em 1963, o artigo Poltica de massas j trazia a analogia entre os camponeses franceses do Segundo Imprio e o proletariado paulista do populismo. (WEFFORT, F. Poltica de massas. Op. cit., p. 29-30). 819 WEFFORT, F. Estado e massas no Brasil. Op. cit., p. 60-61. Ou ainda: As relaes polticas que as classes populares urbanas mantiveram com o Estado e as demais classes nos ltimos decnios da histria brasileira foram predominantemente individuais e nelas o contedo de classe no se manifesta de maneira direta. Foram relaes individuais de classe, mas elas especificamente mascararam seu contedo de classe, de tal modo que a possvel significao classista a presente no pode ser entendida sem que se passe primeiro por suas expresses individuais. (WEFFORT, F. O populismo na poltica brasileira. Op. cit., p. 81). 302
composio rural-urbana do proletariado industrial constaria como um elemento importante para o entendimento da estrutura da poltica de massas:
A est um dos fatores da inexperincia poltica dessa parte do povo brasileiro. Com as migraes internas, no sentido das cidades e dos centros industriais particularmente intensas a partir de 1945 aumenta bastante e rapidamente o contingente relativo dos trabalhadores sem qualquer tradio poltica. O seu horizonte cultural est profundamente marcado pelos valores e padres do mundo rural. Neste, predominam formas patrimoniais ou comunitrias de organizao do poder, de liderana e submisso etc. em particular, o universo social e cultural do trabalhador agrcola (sitiante, parceiro, colono, camarada, agregado, peo, volante etc.) est delimitado pelo misticismo, a violncia e o conformismo, com solues tradicionais. Esse horizonte cultural modifica-se na cidade, na indstria, mas de modo lento, parcial e contraditrio [...] A composio heterognea e formao recente, associadas s exigncias da poltica de massas conduzidas por outros grupos sociais favorecem a criao e a persistncia de uma conscincia de mobilidade. Isto , favorecem a formao de um comportamento individual ou grupal voltado principalmente para a conquista e consolidao de posies na escala social. Durante esse perodo e nessas condies, a atividade poltica do proletariado como coletividade est muito mais organizada em termos de conscincia de massa. Os interesses de classe, em particular os antagonismos com as outras classes e grupos sociais, no se estruturam a no ser parcialmente. E no chegam a fundamentar posies e diretrizes polticas autenticamente proletrias, isto , de classe. 820
Criticando a postura adotada pela esquerda (em especial, o PCB) face poltica de massas do varguismo, Ianni emendou:
Simbolizando e sintetizando essas confuses, a esquerda no se deu conta de que massa e classe no so expresses cambiveis. No compreendeu que se trata de categorias e histrica e estruturalmente diversas. Incorreu na iluso semntica, proposta pelo getulismo e suas variantes. No se dedicou anlise da realidade, para perceber que a essncia das massas trabalhistas e populistas antes a conscincia de massa que a conscincia de classe, antes o princpio da mobilidade social que o princpio da contradio. 821
Buscando reforar nosso argumento de que essa relao entre Estado (soberano) e trabalhadores (massas) na teoria do populismo apresenta-se como uma relao de natureza bonapartista, interessante observamos como o socilogo Emir Sader, em sua definio
820 IANNI, Octavio. O colapso do populismo no Brasil. Op. cit., p. 57-61. Grifos do autor. 821 Idem, p. 120. Grifos do autor. Essa dicotomia entre massa e classe, inspirada nas anlises marxianas do campesinato bonapartista, ainda continuar a embalar reflexes sociolgicas e historiogrficas no Brasil. o caso, por exemplo, do badalado artigo Razes sociais e ideolgicas do lulismo, escrito pelo sofisticado cientista poltico e ex-porta voz do governo Lula (2003-2010), Andr Singer. Numa controvertida ginstica interpretativa do fenmeno lulista, Singer estabeleceu uma analogia entre os governos de Lus Bonaparte e Lus Incio Lula da Silva no tocante s suas relaes de representao poltica com amplos contingentes populacionais; desta vez, os camponeses franceses foram analiticamente substitudos por um sub-proletariado de mentalidade conservadora, que, desejoso de um Estado forte que lhe proporcionasse pequenas melhorias materiais ao mesmo tempo em que garantisse a ordem social estabelecida, seria representado politicamente pelo presidente Lula, dado sua impossibilidade de faz-lo por conta prpria curiosamente, o bonapartismo adquire no artigo (pr- governo) uma conotao positiva (SINGER, Andr. Razes sociais e ideolgicas do lulismo in Novos Estudos Cebrap, n 85, 2009). Mais recentemente, o historiador Marcelo Badar Mattos, em uma obra dedicada trajetria poltica e intelectual de E. P. Thompson, encontrou na dialtica interpretao de Marx sobre os pequenos camponeses franceses (que ao mesmo tempo seriam e no seriam uma classe social) uma espcie de raiz analtica da forma (polmica) como o historiador britnico trabalhou com as noes classe e conscincia de classe (MATTOS, Marcelo Badar. E. P. Thompson e a tradio de crtica ativa do materialismo histrico. No prelo). 303
cientfica do que seria um governo desta natureza, arrolou algumas das mesmas caractersticas que Weffort e Ianni atriburam ao populismo:
Como forma de governo, ele [o bonapartismo] fruto, em geral: 1) da incapacidade das classes no poder de assumir as funes polticas como representantes do conjunto da classe dominante e em nome da sociedade; 2) da diviso e equilbrio relativo entre os grupos dominantes. Criam-se, assim, as condies tanto da personalizao do poder quanto da apario da soberania do Estado. Nesta situao, as massas, no seu sentido genrico, so a nica fora social possvel de sustentao para um poder pessoal autnomo, e a nica fonte possvel de legitimidade para o prprio Estado. 822 Eis por que a compreenso do carter do governo bonapartista nos desloca obrigatoriamente para as relaes de fora entre as classes, conforme elas se do nas relaes gerais na sociedade. O bonapartismo deve necessariamente ser uma forma dbia de governo, pois sua pretenso , ao mesmo tempo: 1) salvar a classe operria terminando com o parlamentarismo e, por ele, com a submisso no-dissimulada do governo s classes dominantes [Marx], bem como 2) salvar as classes possuidoras mantendo sua supremacia sobre a classe operria [Idem]. Trata-se de um governo de salvao nacional, em que o termo salvao opera em dois sentidos diversos: salva-se a classe operria no plano poltico, subtraindo o Estado submisso econmica direta da burguesia; salva-se a burguesia economicamente, custa de um integrao poltica das outras classes na vida do Estado. As relaes polticas so reafirmadas como as que fundamentam toda a relao social, com o poltico tomado sob a forma de abstrao das modificaes nas relaes de homem a homem. Uma vez operada a emancipao poltica de todos os indivduos, dissolve-se sua diviso de classes, e todos se reencontram na qualidade de cidados, libertos e em condies de igualdade para se enfrentarem em situao idntica no mercado. 823
Mais um aspecto que indica ter a noo de bonapartismo estado subjacente elaborao da teoria do populismo brasileiro se refere s caracterizaes feitas por seus criadores acerca do chamado intervalo democrtico de 1946-1964. Embora reconheam as significativas mudanas processadas nas estruturas polticas com o fim da ditadura varguista (sobretudo a existncia das eleies diretas por sufrgio universal), as anlises de Weffort e Ianni nos parecem ter descrito o novo regime mais como uma variante democrtica de bonapartismo, legtima herdeira do Estado Novo, do que propriamente como uma democracia burguesa de tipo ocidental. Na interpretao dos tericos do populismo, a crise de hegemonia aberta em 1930 teria vigorado tambm no perodo posterior queda da ditadura estadonovista. 824
Considerando, portanto, que a precedncia do Estado sobre a sociedade civil, assim como todas as suas derivaes scio-polticas (corporativismo, culto ao Estado, personalizao da poltica, manobra de massas etc.), teriam sido, por conseguinte, tambm preservadas (e, em alguns casos, acentuadas) no ps-1945, Weffort afirmou que aquela nova democracia
822 Aqui as palavras de Sader so praticamente idnticas as de Weffort: Nessas condies, aparece na histria brasileira um novo personagem: as massas urbanas. a nica fonte de legitimidade possvel ao novo Estado brasileiro (WEFFORT, F. . Estado e massas no Brasil. Op. cit., p. 54.). 823 SADER, Emir. O Estado e a poltica em Marx. Op. cit., p. 100-101. Grifo do autor. 824 Como exemplo, citamos: Os acontecimentos de 1945 e 1946 significaram certamente um srio momento de crise no interior do compromisso elitrio to penosamente construdo. Mas, por outro lado, deveriam deixar claro que a crise de hegemonia aberta em 1930 no fora ainda superada (a primeira e nica tentativa neste sentido ocorreu nos anos 1948-1950 [tentativa de aliana do Partido Social Democrtico PSD com a UDN para dar sustentao ao governo de Dutra]). (WEFFORT, Francisco. Democracia e movimento operrio: algumas questes para a histria do perodo 1945/1964 (terceira parte). Op. cit, p. 15). 304
brasileira se diferiria radicalmente do modelo registrado na tradio ocidental. E a diferena mais notvel est em que nesta democracia de massas, o Estado apresenta-se de maneira direta a todos os cidados. Todas as organizaes importantes que se apresentam como mediao entre o Estado e os indivduos so, em verdade, antes anexos do prprio Estado que rgos efetivamente autnomos. 825 Em um trabalho posterior, Weffort enxergaria naquele regime ps-1945 a existncia de um tpico populismo, de um autoritarismo plebiscitrio e de uma esdrxula mistura de corporativismo e sistema representativo. 826 Ianni, por sua vez, assinalou que, conquanto importantes mudanas nos rumos da economia brasileira tenham se verificado no ps-Segunda Guerra, os elementos fundamentais do modelo getuliano (em especial, o protagonismo estatal na conduo da vida poltico-econmica do pas e sua poltica de massas fundamentada em uma aliana de classes) teriam sido consubstanciados na democracia populista desenvolvida depois de 1945. 827
Francisco Weffort, conforme adiantamos, no trabalhou abertamente com a categoria de bonapartismo ao longo de seus trabalhos sobre o populismo brasileiro. Um indcio, entretanto, de que o prprio cientista poltico tinha cincia da relao de proximidade entre os conceitos pode ser encontrado em uma nota de rodap de seu mais conhecido artigo, O populismo na poltica brasileira. Nela, aps fazer meno proposta de Ruy Mauro Marini de designar como bonapartismo o regime poltico surgido em 1930, 828 Weffort reconheceu que, dentro da experincia europia, o bonapartismo seria talvez a situao poltica mais prxima dessa que procuramos descrever para o Brasil. 829 Contudo, procurando evitar comparaes entre pases de diferente formao capitalista, optou por no utilizar o conceito. 830
Menos reticente que seu colega uspiano, Octavio Ianni realizou uma interessante discusso acerca do carter bonapartista assumido com freqncia pelo populismo latino- americano: 831
O exame da conotao bonapartista do populismo pode abrir alguma perspectiva histrica nova discusso do problema da composio de classes no populismo. inegvel que nos governos, regimes ou Estados populistas tm surgido elementos tpicos do bonapartismo. Em primeiro lugar, o equilbrio das classes sociais que participam da coalizo populista um componente bsico do bonapartismo. Em segundo lugar, no populismo tem sempre ocorrido a hipertrofia do Executivo, ou o que equivalente, a submisso do Legislativo ao Executivo.
825 WEFFORT, F. Estado e massas no Brasil. Op. cit., p. 57. 826 WEFFORT, Francisco. Democracia e movimento operrio: algumas questes para a histria do perodo 1945/1964 (primeira parte). Op. cit, p. 1. 827 IANNI, Octavio. O colapso do populismo no Brasil. Op. cit., p. 54. 828 Segundo Weffort, as referncias do artigo de Marini so: Contradicciones y conflictos em el Brasil contemporneo. Revista Arauco, out. 1966, Chile. (WEFFORT, F. O populismo na poltica brasileira. Op. cit., p. 89 nota 11). 829 WEFFORT, F. O populismo na poltica brasileira. Op. cit., p. 89 nota 11 830 Idem. 831 IANNI, Octavio. A formao do Estado populista... Op. cit., p. 45. 305
Todo governo populista tende a ser forte, semiditatorial ou simplesmente ditatorial, como no bonapartismo. Em terceiro lugar, por fim, o governo populista, da mesma forma que o bonapartista, trata de organizar o poder alm do aparelho estatal; ou, reversa, trata de incorporar ao aparelho estatal sindicatos e partidos. A combinao Estado-partido-sindicato o produto e, ao mesmo tempo, o sustentculo do governo populista mais tpico. Nesse contexto, o chefe do governo seja Crdenas, Pern ou Vargas aparece como o benfeitor de todas as classes identificadas com a Nao; ele se apresenta como quem tem a misso de instaurar a paz social, para salvaguardar a ordem burguesa. 832
Aps esse trecho reproduzido acima, Ianni transcreveu, em forma de citao destacada, uma parte do artigo de Trotsky Os sindicatos na poca da decadncia imperialista, 833 na qual so discutidas as duas modalidades de bonapartismo assumidas pelos Estados latino-americanos (Os governos dos pases atrasados, isto , coloniais e semicoloniais, assumem em toda parte um carter bonapartista ou semibonapartista. Eles diferem um do outro no seguinte: alguns buscam orientar-se no sentido democrtico, procurando o apoio de trabalhadores e camponeses; ao mesmo tempo em que outros instauram uma forma de governo prxima da ditadura policial-militar...). 834 a nica vez em que Trotsky ganha um destaque significativo no debate do socilogo sobre o populismo. 835
Contudo, aps demonstrar essa proximidade entre bonapartismo e populismo, Ianni objetou que talvez haja um aspecto no bonapartismo que o torne particularmente se no essencialmente distinto do populismo. 836 Segundo Ianni, o bonapartismo surgiria da incapacidade de se resolver, em determinado momento, por meio do conflito, a contradio entre os elementos antagnicos fundamentais na sociedade, isto , a luta das classes sociais pelo poder: o bonapartismo se imporia, assim, quando nenhuma das classes sociais em confronto dispe de condies para impor seu mando s outras. 837 Recorrendo aos escritos de Gramsci sobre o cesarismo, Ianni definiu o bonapartismo como uma coalizo de antagnicos, uma paz surgida a partir da principal contradio social. Entretanto, para o socilogo, no seria esse o caso do populismo:
832 Idem, p. 45-46. 833 TROTSKY, Len. Los sindicatos en la era de la decadencia imperialista. Op. cit. 834 IANNI, Octavio. A formao do Estado populista... Op. cit., p. 46. O fragmento de Trotsky transcrito por Ianni (cuja ltimas frases foram citadas em nosso segundo captulo) encontra-se, como dissemos, em Os sindicatos na poca da.... Ianni , entretanto, segundo sua prpria nota de rodap, retirou tal fragmento da obra de Jorge Abelardo Ramos intitulada Historia de la Nacin Latinoamericana. (Buenos Aires: A. Pena editor, 1968, p. 450.). Este ltimo autor, por sua vez, ainda segundo a mesma nota de rodap, obteve a citao de Trotsky na obra TROTSKY, L. Por los Estados Unidos Socialistas de Amrica Latina (Buenos Aires: ed. Coyoacn, 1961, p. 15), provavelmente uma coletnea de artigos do revolucionrio sobre nosso continente que deve incluir o artigo Os sindicatos na poca da.... (IANNI, Octavio. A formao do Estado populista... Op. cit., p. 47, nota 4). 835 Como vimos em nossa apresentao da teoria do populismo, Ianni, ao falar sobre o desenvolvimento desigual e combinado da Amrica Latina, mencionou esta lei de Trotsky e remeteu sua Histria da revoluo russa. Em outra passagem, na qual fez referncia forma particular de bonapartismo que teria significado o regime kerenkista na Rssia, Ianni se remeteu novamente mesma obra do revolucionrio russo (mais particularmente, ao captulo Os elementos do bonapartismo na Revoluo Russa). (IANNI, Octavio. A formao do Estado populista... Op. cit., p. 47, nota 6). 836 IANNI, Octavio. A formao do Estado populista... Op. cit., p. 47. 837 Idem. 306
No bonapartismo, pois, o que parece ser essencial uma situao de antagonismo de classes na qual a prpria contradio e a impotncia relativa das classes obrigam-nas a acomodarem-se entre si. Nesse caso, o controle do poder surge como um produto poltico paradoxal das contradies de classes; paradoxal porque exprime uma paz de antagnicos, estabelecida pela impossibilidade de continuao da luta. No seria essa a situao no peronismo, nem no varguismo. Nos dois casos, as contradies principais eram as contradies entre a prpria coalizo e as estruturas oligrquicas e imperialistas que se encontravam fora do poder. Isso no significa que os antagonismos internos, em ambos, no eram um elemento dinmico importante. Mas eram secundrios na definio do regime. Nota-se, porm, que no peronismo, por exemplo, nos ltimos anos de sua vigncia, as contradies internas do regime parecem ter ganho maior significao, influenciando bastante as condies de seu colapso. Alis, em outros governos populistas latino-americanos ocorreu fato semelhante: em certas ocasies crticas, as contradies internas, entre as classes sociais que compunham o pacto, adquiriam maior importncia ou podiam mesmo tornar-se decisivas. 838
Fica claro, portanto, que a noo de bonapartismo, tanto pela positiva quanto pela negativa, ora aparecendo abertamente, ora no, foi trazida por Ianni para seu debate sobre a etapa populista da Amrica Latina populista. Preocupado em afirmar a existncia de condies histricas prprias periferia do sistema capitalista que condicionam seus regimes polticos, Ianni procurou estabelecer as diferenas entre o bonapartismo clssico (europeu) e o latino-americano, apresentando de que maneira bonapartismo e populismo se aproximavam e se diferenciavam. 839
Populismo, burocracia e bonapartismo: Dcio Saes e Armando Boito Jr. Tambm nas anlises sobre o populismo realizadas pelos autores de linhagem poulantziana, possvel notarmos a presena de elementos provenientes da teoria do bonapartismo. Conforme foi exposto, os cientistas polticos Dcio Saes e Armando Boito Jr. esposaram as teses de Weffort e Ianni acerca da existncia de um aparelho estatal relativamente autonomizado diante das classes sociais ao longo do regime populista. Aqui reside um ponto que merece ser destacado: embora orientados teoricamente pelo referencial poulantziano, que pressupe uma autonomia relativa do Estado capitalista sob quaisquer condies (isto , uma permanente autonomia relativa do Estado), 840 Saes e Boito Jr., seguindo as interpretaes de Weffort e Ianni, associaram o processo de autonomizao estatal a uma situao histrica conjuntural, a saber, a crise de hegemonia verificada na derrocada da Primeira Repblica. Procurando desenvolver essa questo da soberania estatal no populismo, os autores poulantzianos insistiram na argumentao de que teria sido o aparelho de Estado, dirigido pelas categorias sociais a ele integradas (especialmente a burocracia), o principal agente do
838 IANNI, Octavio. A formao do estado populista... Op. cit., p. 47-48. 839 IANNI, Octavio. A formao do Estado populista... Op.cit., p. 47-48. 840 Ver, na Introduo primeira parte, o item Poulantzas e a permanente autonomia relativa do Estado. 307
processo de industrializao capitalista do pas. Em Saes, aparece claramente a idia de um substitucionismo histrico-poltico, no qual assim como nas experincias bonapartistas, lembramos o aparelho de Estado teria feito s vezes de classe dominante, tomando para si a resoluo das tarefas necessrias ao desenvolvimento do capitalismo nacional. Gozando da tal autonomia relativa face s fraes dominantes, e antecipando-se prpria evoluo das relaes entre as classes na sociedade, o Estado populista teria procurado obstar a luta de classes medida que conduzia a retardatria passagem de uma sociedade agro-exportadora para uma de tipo urbano-industrial:
Mais precisamente, a urgncia da industrializao perifrica levou o Estado ps-oligrquico, sob o impulso poltico das categorias sociais de Estado, a uma poltica de interveno e de industrializao nitidamente avanada em relao ao grau de desenvolvimento das relaes de classe no seio do capitalismo industrial nascente. Tal poltica de consolidao precoce da burguesia industrial deveria, portanto, encontrar seu complemento necessrio numa poltica de preveno da ecloso precoce das lutas de classe. Da a dupla face da poltica de Estado ps-oligrquico diante da classe operria: uma poltica simultnea de integrao e de manipulao [...] No contexto da transio perifrica - isto , uma transio urgente -, o Estado passa frente das relaes de classe e, ao mesmo tempo em que deixa de ser o comit executivo das oligarquias, assume plenamente sua vocao soberania [...] O Estado soberano pode, portanto, tornar-se o agente poltico da industrializao; ao faz-lo responde presso popular pelo consumo e pelo bem-estar social, ao mesmo tempo em que substitui politicamente a burguesia industrial nascente. 841
Investigando a complexa dinmica scio-poltica que resultaria na queda do segundo governo de Vargas, Boito Jr. seguiu a mesma linha interpretativa exposta acima. Reafirmando o protagonismo da burocracia estatal na conduo da poltica populista, o cientista poltico assinalou que, ainda que tenha tido seus interesses econmicos atendidos ao longo de todo o sistema poltico inaugurado em 1930, e particularmente durante a segunda passagem de Getlio pela Presidncia, a burguesia industrial no poderia ser considerada como o sujeito social dirigente (ou seja, hegemnico) do populismo:
Sem duvida alguma, a burguesia industrial nacional foi a principal beneficiria da poltica de desenvolvimento nacional-reformista implementada pelo [segundo] governo Vargas. Porm, isso no suficiente para caracteriz-lo como o governo da burguesia nacional. Isto porque a definio dessa poltica de desenvolvimento no foi obra da burguesia nacional. Quem define, em ltima instncia, a poltica de desenvolvimento, isto , a poltica econmica e a poltica social no decorrer do perodo 1930-1964, a burocracia de Estado as cpulas da burocracia civil e das Foras Armadas. Essa tese encontra-se no centro da analise que fazemos do golpe de 1954. A relao da burocracia de Estado com a burguesia industrial nacional no uma relao de representao no sentido pleno do termo, pois se a burocracia defende e implementa uma poltica industrialista, ela o faz sua maneira, recorrendo a expedientes e propondo objetivos que no so aceitos pela burguesia industrial. 842
Segundo Boito Jr., ter-se-ia operado, assim, no populismo, uma relao contraditria da burocracia de Estado com a burguesia industrial: uma forma de representao poltica
841 SAES, Dcio. Classe mdia e sistema poltico no Brasil. Op. cit., p. 86-88. 842 BOITO Jr., Armando. 1954: a burguesia contra o populismo. Op. cit., p. 18. 308
burguesa na qual inexiste a identificao subjetiva do representado com o representante. 843
Dito de outro modo, Boito Jr. sugere que, sob o populismo, no teria havido uma conexo direta entre o poder econmico-social da classe dominante e o corpo dirigente que, de fato, detinha o poder poltico (no caso, a burocracia). Notamos, aqui, sem muita dificuldade, a idia de uma dominao poltica indireta da burguesia sobre a sociedade, tal como proposta pela teoria do bonapartismo. Das palavras de Boito jr., pode-se inferir que, entre 1930-1964, a burguesia industrial brasileira, a fim de preservar intacto o seu poder social, teria abdicado da faculdade de governar a nao, submetendo-se a um Poder Executivo que lhe era hostil. 844
No quadro desta independncia poltica da qual disporia a cpula burocrtica populista, nada haveria de estranho, segundo Saes, na gestao de um culto do Estado fundado na superestimao de seu poder e no no reconhecimento das relaes de classe, bem como de suas conexes com a poltica. 845 Por sua natureza de classe e discursiva, esse fetichismo populista do Estado suscitou, da parte de Boito Jr., comparaes com outro tipo de ideologia estatista pequeno-burguesa, que o bonapartismo. 846 Se, como vimos, para o autor, o estatismo populista encerraria um contedo minimamente reformista, o estatismo bonapartista, do contrrio, possuiria um carter conservador (No caso do bonapartismo francs do sculo XIX, Marx mostra que o culto campons do Estado tinha como contedo a expectativa reacionria de que fosse restabelecida a ordem, ameaada pela luta dos trabalhadores de Paris). 847 De todo modo, ainda que por contraste, a noo de bonapartismo aparece aqui mais uma vez como um referencial analtico para o populismo. J Dcio Saes, em um ensastico artigo de fins dos anos 90, consideraria que a viragem poltica de 1930 abriu um espao de interveno poltica autnoma para a burocracia civil e militar; ou melhor, criou as condies favorveis emrgncia de uma poltica de Estado bonapartista. 848 Em outro artigo, datado de 1996 e voltado para um balano da democracia no Brasil, o cientista poltico j havia feito meno a uma limitao imposta democracia de 1945-1964 pela interveo bonapartista da burocracia estatal. 849
Hegemonia ou revoluo passiva/cesarismo? A variante gramsciana da teoria do populismo (Rgis Andrade e Ren Dreifuss)
843 Idem, p. 20. 844 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 63 e 59, respectivamente. 845 SAES, Dcio. Classe mdia e sistema poltico no Brasil. Op. cit., p. 88. Grifos nossos. 846 BOITO Jr. O sindicalismo de Estado no Brasil. Op. cit., p. 71. 847 Idem. 848 SAES, Dcio. A evoluo do Estado no Brasil (uma interpretao marxista)Op. cit., p. 103. 849 SAES, Dcio. Democracia e capitalismo no Brasil. Balanos e perspectivas in ____. Repblica do Capital. Capitalismo e processo poltico no Brasil. Op. cit., p. 119. 309
Quando, h pouco, apresentamos as contribuies dos gramscianos Rgis Andrade e Ren Dreifuss discusso sobre o populismo brasileiro, ressaltamos o fato de que, em suas concepes, o sistema poltico formatado a partir do Estado Novo foi caracterizado como um sistema de tipo hegemnico; mais precisamente, um sistema no qual a burguesia industrial teria exercido uma hegemonia sobre o conjunto da sociedade. Como dissemos, em um primeiro olhar, haveria, no que diz respeito questo da hegemonia, uma oposio entre as perspectivas desses autores e as que, nitidamente influenciadas pela noo de bonapartismo, se basearam na idia de uma autonomia relativa do Estado populista decorrente de uma duradoura crise de hegemonia (1930-1964). Uma anlise mais atenta, entretanto, pode desfazer essa impresso. Dizemos isso, pois, na interpretao de Andrade (corroborada, no essencial, por Dreifuss), a hegemonia da burguesia industrial teria sido exercida, fundamentalmente, a partir das estruturas do prprio aparelho de Estado (os ministrios e rgos tcnicos do Executivo), e no pelas instituies provenientes da sociedade civil. Mais precisamente, essa hegemonia burguesa-industrial teria sido efetivada por meio do corporativismo estatal (consagrado pela Constituio de novembro de 1937), cujo funcionamento, segundo o prprio autor, teria significado como j citamos , a absoro pelo Estado das organizaes de classe pertencentes sociedade civil (sindicatos e partidos), removendo, desse modo, todos os conflitos sociais do nvel econmico-corporativo e trazendo-os para o Estado (o que acabava por obscurecer todas as clivagens de classe). 850
Guiado por essa concepo muito particular sobre o que seria uma dominao de natureza hegemnica, Rgis de Castro Andrade assinalou, tambm, que a burguesia industrial, no exerccio dessa sua hegemonia, nunca teria contado com o seu prprio partido, preferindo operar diretamente os mecanismos polticos do Executivo ou, secundariamente, fazer uso dos diversos partidos nacionais ou regionais. 851 Se, no que diz respeito s demais fraes da classe dominante, tal hegemonia dos industriais apontou Andrade teria sido obtida a partir de seu controle dos postos de comando do Estado corporativista, em relao s classes dominadas como j dissemos , ela teria contado (segundo o prprio autor) com a outorga estatal dos direitos trabalhistas (poltica de massas), com a instituio do sindicalismo oficial e com a ideologia que apresentava o Estado como um organismo neutro, protetor, benevolente e benfeitor 852 expedientes que, conforme demonstramos, encontram-se todos arrolados na teoria do bonapartismo.
850 ANDRADE, Rgis de Castro. Op. cit., p. 53-54. 851 Idem, p. 61. 852 Idem, p. 43 e 57. 310
Esgrimindo sua tese do populismo como uma forma de hegemonia, Andrade tal como os autores adeptos da tese contrria (a do populismo como expresso poltica de uma crise de hegemonia) destacou a primazia (e quase onipotncia) do Estado nas relaes scio-polticas do sistema:
No populismo brasileiro, o Estado no visto nem como representao da diversidade social, nem como o stio de um movimento nacional unificado. Trata-se antes de uma organizao tutelar e, conseqentemente, de um poder causa sui; a manifestao imediata disso a poderosa atrao exercida pelo Estado sobre todas as organizaes polticas do pas. No obstante a sociedade civil pressuposta no relacionamento de tutelagem. As eleies eram efetuadas para escolher no um programa pois as polticas deviam ser formuladas apenas pelo governo mas aqueles mais qualificados para operar a mquina estatal em beneficio de todos. 853
O forte protagonismo do Estado na configurao do regime populista tambm seria sublinhado por Ren Dreifuss. Com suas caractersticas clientelistas, cartoriais e paternalistas, o populismo, segundo cientista poltico uruguaio, teria reproduzido ideologicamente e recriado politicamente a idia de um Estado neutro e benevolente. 854
Aparentemente colocado acima das classes e diferenas regionais, 855 e perseguindo a paz social, 856 esse Estado teria atuado como o partido de todo o bloco dominante 857 em um sistema poltico marcado pela interferncia contnua das Foras Armadas (A interveno do aparelho burocrtico-militar na vida poltica assegurava a coeso do sistema, ao mesmo tempo em que se tornava um fator de perturbao nas tentativas de uma institucionalizao poltica a longo prazo.). 858
Como pudemos observar anteriormente, Dreifuss, embora tenha esposado, em linhas gerais, a tese de Andrade acerca de um populismo hegemnico, apresentou, ele mesmo, a existncia de muitos limites ao exerccio dessa hegemonia no perodo 1946-1964 (estrutura sindical corporativista, proibio do PCB, restrio do voto aos analfabetos etc.). No trecho abaixo, sua descrio do populismo parece distar da idia de uma dominao de tipo hegemnica:
Medidas restritivas e coercitivas achavam-se na base do que era de fato um regime poltico autoritrio, apesar de ser liderado por civis, e que usava a fora cautelosamente. Essas formas cartoriais e patrimoniais de domnio expressavam as tentativas do bloco de poder dominante de desarticular as foras sociais antagnicas por intermdio da absoro de seus lideres e da desagregao de suas bases populares, deixando os lideres alienados da sociedade e as bases populares sem orientao. 859
853 Idem, p. 63. 854 DREIFUSS, Ren. Op. cit., p. 36. 855 Idem, p. 40 (nota 22). 856 Idem, p. 24. 857 Idem, p. 40 (nota 22). 858 Idem, p. 23. 859 Idem, p. 136. 311
A partir do que foi exposto, pode-se inferir, portanto, que as anlises sobre o populismo brasileiro feitas por Rgis Andrade e Ren Dreifuss, embora tenham buscado atribuir quele um contedo hegemnico, acabaram por nele evidenciar a presena de elementos tpicos de processos de revoluo passiva nos quais, segundo nossa j exposta apreenso dos escritos de Gramsci, no existiria uma hegemonia propriamente dita. Em outras palavras, consideramos que, nas interpretaes de Andrade e Dreifuss, a dinmica scio-poltica brasileira do 1930-1964 acaba por se aproximar de situaes nas quais o Estado quem, na ausncia de uma classe/frao hegemnica, assume a direo poltica do processo de modernizao industrial capitalista. Substituindo politicamente a burguesia na realizao de suas tarefas histricas, o aparelho estatal conforme discutido em nosso segundo captulo tenderia, nessas circunstncias, a assumir feies bonapartistas, dirigindo aqueles que deveriam dirigir (para usarmos as palavras do prprio Gramsci). Nesses casos de revoluo passiva/cesarismo, a hegemonia de uma classe/frao se daria apenas em relao aos demais grupos proprietrios, no obtendo essa classe/frao dominante um consenso ativo e apenas um consenso passivo da parte das classes dominadas no existindo, portando, uma verdadeira hegemonia. Por meio de procedimentos transformistas como a desarticulao das foras sociais antagnicas por intermdio da absoro de seus lideres e da desagregao de suas bases populares mencionado na citao de Dreifuss acima , o Estado, e no as instituies da sociedade civil (os partidos polticos, em especial) agiria como o principal articulador de uma forma de dominao poltica de natureza no-hegemnica (ou seja, bonapartista). Instaurando uma configurao poltica corporativista (mais ou menos autoritria) e praticando uma poltica de massas, o ncleo burocrtico dirigente do Estado e, mais particularmente, seu chefe, lograria xito em se apresentar ao seu povo como um ente arbitral, neutro e bondoso. A nosso ver, esse o registro terico (revoluo passiva/cesarismo) que parece estar presente (ainda que no nomeadamente) nas interpretaes do fenmeno populista realizadas por Andrade e Dreifuss. No teriam sido, assim, totalmente incoerentes com seu raciocnio as palavras escolhidas por este ltimo autor para se referir substituio do populismo pela ditadura do chamado bloco multinacional e associado: o Bonapartismo constitucional dava lugar a um poder dirigente paisana. 860
O bonapartismo no Brasil (1930-1964): outros autores
860 Idem, p. 143. 312
Adeptos ou no da teoria do populismo, outros cientistas sociais brasileiros tambm utilizaram a noo de bonapartismo para caracterizar determinados momentos ou fases do processo poltico brasileiro situado entre a Revoluo de 1930 e o Golpe de 1964. Vindos das fileiras trotskistas/trotskizantes do movimento operrio, Lencio Martins Rodrigues, Ruy Mauro Marini e Moniz Bandeira produziram sofisticadas interpretaes da dinmica scio-poltica do retardatrio capitalismo industrial brasileiro, enfatizando a correlao de foras entre as classes em luta e as formas polticas assumidas pelo Estado a partir da chegada de Vargas ao poder. Marini (ex-militante da POLOP, lembramos), observando retrospectivamente as configuraes polticas que se proliferaram na Amrica Latina com o fim da Segunda Guerra, destacou suas feies e tendncias bonapartistas, cujas origens remontariam, em alguns pases (como o Brasil), dcada de 1930. Sua leitura desses novos regimes muito se assemelhou s anlises de Trotsky sobre alguns dos bonapartismos sui generis do continente (mais especificamente, aqueles de corte semidemocrtico), assim como s elaboraes de Ianni sobre o populismo latino-americano:
A acelerao que, no curso da Segunda Guerra Mundial, se produz no processo de industrializao latino-americana, e que lana novos pases, como a Venezuela, ao caminho que haviam recorrido desde os anos 1930 Argentina, Brasil e Mxico, refora consideravelmente o plo interno [plo econmico vinculado ao mercado interno], e cria as condies para uma luta mais aberta pelo predomnio dentro da coalizo dominante. Nesta luta, a burguesia industrial lanar mo da presso das massas citadinas, que aumentaram consideravelmente no perodo precedente, no marco de um jogo poltico conhecido correntemente como populismo. Seu fruto ser o estabelecimento de regimes de tipo bonapartista, cujo exemplo mais claro o governo de Pern [...] O bonapartismo se apresenta, nessa perspectiva, como o recurso poltico de que se serve a burguesia para enfrentar seus adversrios. Baseando-se nas massas populares urbanas, as quais seduz com sua fraseologia populista e nacionalista, mas tambm concretamente pelos seus intentos de redistribuio de renda, ela tenta por de p um novo esquema de poder, no qual, mediante o apoio das classes mdias e do proletariado, e sem romper o esquema de colaborao vigente, lhe seja possvel se sobrepor s antigas classes latifundiria e mercantil. Pelas implicaes que tm nas relaes econmicas com o centro imperialista hegemnico, ele [o novo esquema de poder, de tipo bonapartista] tende a se combinar com a busca de frmulas capazes de promover o desenvolvimento capitalista autnomo do pas. 861
Em um ensaio datado do mesmo ano (1969), dedicado especificamente ao Brasil ps- 1930, Marini recorreria tambm algumas vezes idia de bonapartismo. Uma delas seria para definir o regime estadonovista de Vargas:
O Estado Novo de 1937, sendo um regime bonapartista, est longe de representar uma opresso aberta de classe. Ao contrrio, atravs de uma legislao social avanada, que se complementa com uma organizao sindical de tipo corporativo e um forte aparato policial e de propaganda, trata de enquadrar as massas operrias. Paralelamente, instituindo o concurso obrigatrio para os cargos
861 MARINI, Ruy Mauro. Subdesarrollo y revolucin (1969) Extrado de http://www.marini- escritos.unam.mx/074_subdesarrollo_revolucion_1_es.htm (acessado em 13/09/2011). Traduo nossa. 313
pblicos de baixo e mdio nvel, concede pequena burguesia (nica classe verdadeiramente letrada) o monoplio dos mesmos e lhe d, portanto, uma perspectiva de estabilidade econmica. 862
Valendo-se do mesmo referencial terico, Luiz Alberto Moniz Bandeira (ex- companheiro de Marini na POLOP), considerou que, a partir de 1930, teria se constitudo um bloco histrico com base em um novo sistema de alianas tecido por Vargas. Unindo o proletariado urbano a um setor da burguesia rural, notadamente os pecuaristas do Rio Grande do Sul, mais voltados para o mercado nacional que para os negcios de exportao, esse pacto que, com apenas o interregno do governo do marechal Eurico Gaspar Dutra (1946- 1951), funcionara durante toda a era de Vargas teria bloqueado o acesso direto ao poder do empresariado de So Paulo, ligado umbilicalmente aos cafeicultores e s finanas internacionais. 863
O regime estadonovista, refletindo essa estratgia de compromisso, teria, mediante a legislao social, atrelado aquele proletariado das cidades a tal frao da burguesia vinculada ao mercado interno. A ditadura de Vargas, segundo Bandeira, teria atribudo ao Estado papel decisivo no desenvolvimento do pas, explorando as contradies entre as grandes potncias industriais para concretizar importantes empreendimentos, como a implantao da primeira usina siderrgica nacional, em Volta Redonda. 864 ntida aqui, mais uma vez, a proximidade com as consideraes de Trotsky sobre os bonapartismo sui generis latino-americanos, os quais, como vimos, se esforando para aumentar a medida de sua independncia [face ao imperialismo], tratavam de se utilizar das rivalidades e conflitos dos imperialistas estrangeiros (O exemplo recente de Vargas, que trata de se utilizar da rivalidade entre os Estados Unidos e Alemanha, mas ao mesmo tempo mantm a mais selvagem ditadura sobre as massas populares, vem ao caso). 865
De um modo ainda mais direto que Marini, Moniz Bandeira tambm destacaria a composio hbrida da ditadura varguista (poltica de massas combinada com represso e corporativismo sindical): jogando com o proletariado para impedir que a burguesia industrial e a oligarquia se assenhoreassem completamente do poder, Vargas teria estado frente de um bonapartismo de carter extremamente complexo, mesclando traos social- democrticos e fascistas, ao longo de 15 anos de durao. 866 O PTB, assinalou o cientista
862 MARINI, Ruy Mauro. A dialtica do desenvolvimento capitalista no Brasil (1969) in SADER, Emir (org.). Dialtica da dependncia. Uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. Petrpolis: Vozes/ Laboratrio de Polticas Pblicas (LPP), 2000, p. 76. 863 BANDEIRA. Luiz Alberto Moniz. O governo Joo Goulart. As lutas sociais no Brasil (1961-1964). 7 edio revisada e ampliada. Rio de Janeiro: Revan; Braslia: EdUNB, 2001, p. 44-45. Grifo nosso. 864 Idem, p. 41. 865 TROTSKY, Len. La politica de Roosevelt en America Latina. Op. cit., p. 93. Traduo nossa. Grifos do autor. 866 BANDEIRA. Luiz Alberto Moniz. Brizola e o trabalhismo. 2 edio. Rio de Janeiro: Civilizao brasileira, 1979, p. 31. 314
poltico, teria nascido de uma das vertentes desse bonapartismo de Vargas, cuja primeira iniciativa, quando o Estado Novo agonizava, foi no sentido de fundar um partido, cujo designativo social-democrtico delatava a inspirao. 867 Na mesma linha interpretativa, Lencio Martins Rodrigues (ex-militante do POR) utilizou a categoria de bonapartismo getulista para dar conta da relao entre o Poder Executivo e as classes sociais no perodo 1930-1945:
A instaurao do Estado Novo completou um processo geral de capitulao da sociedade civil face ao Estado. Trata-se de uma evoluo que teve seu ponto de arranque em 1930. A instaurao do Estado Novo foi sua culminao. O novo regime no resultou de um pacto ou acordo ainda que implcitos entre as classes proprietrias entre si, entre elas, ou faces delas, e as classes populares. Embora falte ao getulismo o apoio de uma massa camponesa, o Estado getulista apresenta muitos outros componentes que caracterizaram o tipo bonapartista de Estado: 1) o elevado grau de autonomia do aparato estatal ante as classes sociais; 2) o autoritarismo popular; 3) a centralizao do Poder; 4) o apoio na burocracia e nas Foras Armadas; 5) a presena do chefe poltico todo poderoso com traos carismticos; 6) a demagogia com relao s classes baixas, as quais pretende representar ou defender; 7) a inexistncia de partido poltico e de uma ideologia mais elaborada; 8) o relacionamento direto e pessoal, altamente emotivo, entre o chefe e o baixo povo, que atua como massa e no como classe. 868
Luiz Alberto Moniz Bandeira foi tambm, provavelmente, o primeiro autor a interpretar a renncia de Jnio Quadros, a 25 de agosto de 1961, como uma gorada tentativa de golpe bonapartista. Em uma pequena brochura jornalstica escrita em setembro daquele ano, Bandeira ento comentarista poltico do Dirio de Notcias do Rio de Janeiro e, ao que tudo indica, j integrante da recm-fundada POLOP sugeriu que Jnio Quadros, ao abandonar a Presidncia da Repblica, jogara uma cartada com um objetivo de provocar um impasse entre o povo, as Foras Armadas e o Congresso, o que lhe possibilitaria exigir poderes extraordinrios como condio para o retorno ao Governo. Em outras palavras, ele tentou produzir um trauma institucional e submeter o pas sua ditadura. E fracassou.. 869
No calor dos acontecimentos, o ento jovem intelectual marxista compreendeu a frustrada investida golpista de Quadros como expresso de uma aguda crise vivida pelo capitalismo brasileiro e sua classe dominante:
A burguesia enfrentava a sua grande crise poltica, desde que passou para o primeiro plano, como scio maior na coligao das classes dominantes. A crise aprofundava-se e a renncia de Quadros
867 BANDEIRA. Luiz Alberto Moniz. O governo Joo Goulart. As lutas sociais no Brasil (1961-1964). Op. cit., p. 53. Tomando como referncia a definio de populismo elaborada por Weffort, Moniz Bandeira afirmou que tanto Goulart, quanto o PTB, no poderiam ser denominados de populista. Enquanto o primeiro tratar-se-ia, na verdade, de um reformista, o partido criado por Vargas, bem ou mal um partido de composio operria, teria desempenhado uma prxis que mais se assemelhava da social-democracia europia depois da guerra de 1914-1918, nas condies histricas do Brasil, do que prxis do populismo. (Idem, p. 52-53.). 868 RODRIGUES, L. M. Sindicalismo e classe operria [1930-1964] In FAUSTO, B. Histria Geral da Civilizao Brasileira. So Paulo: Difel, 1981, v. X, p. 532. Grifos do autor. 869 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O 24 de agosto de Jnio Quadros in ____. A renncia de Jnio Quadros e a crise pr 64. 2 edio. So Paulo: Brasiliense, 1979, p. 9. 315
representou o seu mais agudo sintoma. As estruturas da sociedade j no comportavam o crescimento das foras produtivas. Quadros seria assim De Gaulle ou Bonaparte. Mas no chegou sequer a ser Jnio Quadros [...] Tentou combinar o 10 de novembro de 1937 com o 24 de agosto de 1954. Tinha tambm o seu Plano Cohen. Esperava constituir a soluo para salvar o Brasil do comunismo. Fora, quando se elegeu presidente da Repblica, a ltima esperana da burguesia. E falhou. 870
Anos mais tarde, em outro trabalho, o cientista poltico desenvolveria o argumento, associando mais claramente o golpismo de Jnio a uma situao histrica em que, com a internacionalizao da economia brasileira, se redesenhava o cenrio pela disputa da hegemonia poltica no pas. A duplicidade da poltica de Quadros (tanto no plano interno, quanto, sobretudo, no externo) teria expressado, assim, o impasse com que as classes dirigentes no Brasil se defrontavam, uma vez que o empresariado, fortalecido pela industrializao e articulado pelo setor estrangeiro, reclamava a concentrao do poder poltico, a fim de, resolvendo-se o problema da hegemonia, conter a emergncia do movimento operrio e enfrentar a crise econmica e social, com outros padres de acumulao. 871 Favorecendo os negcios do grande capital e adulando a esquerda com sua poltica externa independente batalhando pela aplicao de um programa econmico exigido pelo Fundo Monetrio Internacional (FMI), ao mesmo tempo em que condecorava Che Guevara com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul , Jnio teve, segundo Bandeira, a preocupao de criar condies para que pudesse ter as mos livres na poltica interna, isto , para que as pudesse desembaraar das peias constitucionais. 872
Alertando para o fato de que a Constituio brasileira de 1946 j continha todos os elementos da crise poltica (a contradio entre a legislao democrtica e a execuo autocrtica, inerente ao presidencialismo), 873 Moniz Bandeira interpretou o ato de Quadros como uma tentativa de romper esse impasse constitucional, mediante um golpe de Estado. No um golpe de Estado convencional, arrimado nas Foras Armadas salientou Bandeira , e sim um golpe de Estado aceito pelo consenso nacional, que lhe permitisse
870 Idem, p. 55-62. interessante notarmos, ainda, como Bandeira, tal como fizera Marx em seu 18 brumrio, inseriu em sua anlise histrico-poltica dos acontecimentos uma pitoresca descrio do personagem principal da trama. No difcil percebemos as semelhanas entre o aventureiro e lumpem-bomio Lus Bonaparte e o renunciante presidente brasileiro: Homem solitrio, Quadros no dispensava, diariamente, a sua cerveja, com a qual assistia, at altas horas da madrugada, filmes de cowboy no Palcio da Alvorada. Vrias vezes insinuou (velho hbito) que renunciaria se encontrasse dificuldades pela frente. Calculado e frio, mais do que poderia parecer, Quadros estava convencido do seu papel de Bonaparte de Vila Maria e armava, com Pedroso Horta, o esquema para obter poderes extraordinrios. A falta de grandeza nos seus gestos, a mesquinhez dos seus planos, tudo traduzia o seu esprito de pequeno-burgus provinciano, que, a servio de grandes grupos, com os quais se comprometera para chegar ao poder, tinha a sua prpria jogada pessoal. (Idem, p. 40-41. Grifo do autor.). 871 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo Joo Goulart. As lutas sociais no Brasil (1961-1964). Op. cit., p. 47. 872 Idem, p. 45-47. 873 Lembremos que considerao semelhante foi feita por Marx em relao Constituio francesa de 1848 que, como vimos, outorgava poderes efetivos ao Presidente da Repblica, enquanto tratava de garantir Assemblia Nacional o poder moral (MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 33). Ver captulo I deste trabalho. 316
dirigir o pas acima das classes sociais e dos partidos polticos. 874 Seu plano teria se constitudo, assim, em renunciar ao governo, comovendo as massas, e levar as Foras Armadas, sob o comando de ministros extremamente conservadores [Odlio Denys, Slvio Heck e Grum Moss], a admitir sua volta como ditador, para no entregar o poder a Joo Goulart [vice-presidente]. 875
Proposta por Moniz Bandeira, essa apreciao da renncia de Quadros como um malogrado golpe bonapartista seria feita tambm por outros estudiosos do processo poltico brasileiro. Ainda no prprio ano de 1961, antes mesmo do episdio crtico, o intelectual nacionalista (isebiano) Alberto Guerreiro Ramos j havia publicado um trabalho no qual dizia que Jnio se colocava acima da sociedade poltica. 876 Segundo Ramos, as veleidades bonapartistas de seu governo no seriam fortuitas, explicando-se pela perda de representatividade dos partidos, dos aparelhos partidrios. 877 J Ren Dreifuss, em seu supracitado trabalho de 1984, afirmou que, aps uma campanha presidencial com traos de cesarismo eleitoral, Jnio Quadros, baseando-se mais em seu suposto carisma e menos numa efetiva autoridade, renunciou, na esperana de conseguir um mandato Bonapartista-civil por intermdio de um retorno ao governo ouvindo os apelos das classes mdias. 878
Nesse meio tempo, em 1969, Ruy Mauro Marini apreenderia o ato janista como a primeira de trs tentativas, verificadas entre janeiro de 1961 e abril de 1964, de se implantar no pas um governo forte tentativas que se basearam em diferentes coalizes de classe e que refletiram, em ltima instncia, na correlao real de foras na sociedade brasileira. 879
Naquele quatrinio, segundo Marini, quela ciso vertical que opusera, em 1954, a burguesia industrial ao setor agroexportador e aos grupos estrangeiros, teria se somado,
874 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo Joo Goulart. As lutas sociais no Brasil (1961-1964). Op. cit., p. 45. Grifos nossos. 875 Idem, p. 47. 876 RAMOS, Alberto Guerreiro. A crise do poder no Brasil. Problemas da revoluo nacional brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1961, p. 37. Grifo do autor. 877 Idem, p. 41. Procurando interpretar a situao poltica no governo Quadros, Guerreiro Ramos arriscou uma definio do conceito de bonapartismo: Tecnicamente, quando um governo se pe acima da sociedade poltica, considerando-se livre das vinculaes partidrias, verifica-se o quadro do bonapartismo. O bonapartismo suspende a fora poltica das classes sociais e as transforma, por assim dizer, em suplicantes diante do Estado. Ento o povo, partidariamente desorganizado, passa a ser aparente sustentculo do poder. O chefe bonapartista, por cima das classes, por cima dos partidos, busca o apoio direto do povo (Idem, p. 37.) Edison Bariani Junior, em um trabalho dedicado ao pensamento de Guerreiro Ramos, considerou que essa definio conceitual proposta pelo intelectual nacionalista foi mais influenciada pela conhecida obra de Robert Michels, Sociologia dos partidos polticos (Braslia: UNB, 1982), do que propriamente pelo 18 brumrio de Luis Bonaparte, de Marx (BARIANI Jr. Edison. Guerreiro Ramos e a redeno sociolgica: capitalismo e sociologia no Brasil (tese de doutorado). Araraquara: PPGS/UNESP, 2008, p. 206). Vale acrescentar ainda que, para Guerreiro Ramos, o bonapartismo, que se apresentava (ao menos como possibilidade) na conjuntura do governo Quadros, no seria um fenmeno indito na histrica poltica brasileira, j que a ditadura varguista teria preparado meticulosamente a implantao do que temos chamado de bonapartismo estadonovista (RAMOS, Guerreiro. Mito e verdade da revoluo brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 1963, p. 34.). 878 DREIFUSS, Ren. Op. cit., p. 129. 879 MARINI, Ruy Mauro. A dialtica do desenvolvimento capitalista no Brasil. Op. cit., p. 29. 317
horizontalmente, a oposio entre as classes dominantes como um todo e as massas trabalhadoras da cidade e do campo. 880 Esse cenrio da luta de classes explicaria, assim, a tal tendncia para um governo de fora que caracterizava a poltica brasileira. 881
O governo de Quadros teria, assim, representado um ensaio de bonapartismo carismtico, ungido de legalidade e com uma marca de progressismo em grau suficiente para obter a adeso das massas, ao mesmo tempo que suficientemente liberado de compromissos partidrios para que, em nome do interesse nacional, pudesse arbitrar os conflitos de classe. 882 Cercado de um ministrio conservador e inexpressivo, Jnio teria deixado claro, desde o princpio, que governaria sozinho. 883 Nos poucos meses em que esteve na Presidncia afirmou Marini seu comportamento foi o de um dspota, desprezando qualquer tipo de presso e mostrando um soberano desprezo pelos sindicatos, pelas direes estudantis, pelas associaes patronais, pelos partidos polticos, enfim, por qualquer forma de organizao. 884 Quadros, combinando uma poltica econmica ortodoxa (poltica de austeridade) com a busca por uma maior autonomia no plano internacional (ao estilo nasserista, comparou Marini), 885 teria conseguido despertar o descontentamento dos mais diferentes setores, desde os comunistas at os de extrema direita. 886 Ao renunciar, esperava voltar ao poder nos braos do povo, dispondo de uma fora tal que j ningum nem o Congresso, nem os partidos, nem os militares poderia enfrentar-lhe. 887
Entretanto, os acontecimentos que se seguiram confirmaram e desmentiram, ao mesmo tempo, as esperanas de Jnio Quadros. Tinha razo ao crer que sua renncia levaria o pas ao borde da guerra civil, mas enganava-se ao pensar que o movimento popular lhe restituiria o poder. Ao contrrio do que dizia sua concepo carismtica e pequeno-burguesa da poltica, o povo como tal no existe, seno como foras populares, que se movem sempre sob a direo de grupos organizados. A desconfiana que inspirava a essas foras fez com que elas tratassem de aproveitar sua maneira o caos que sua renncia havia criado. O povo, como esperava Jnio Quadros, saiu s ruas para enfrentar a direita, mas no tomou seu nome como bandeira, e sim o de Joo Goulart, muito mais ligado s diretivas das massas. 888
Uma vez frustrada a sada bonapartista de Quadros, e tendo Jango chegado Presidncia da Republica com o apoio dos setores populares organizados (aps a Campanha da Legalidade e a adoo do parlamentarismo), a burguesia, segundo Marini, teria depositado no novo chefe de Estado suas esperanas de conteno do movimento sindical e de constituio do to desejado governo forte, o qual seria capaz de atacar aos dois fatores
880 Idem. 881 Idem, p. 35. 882 Idem, p. 29. 883 Idem, p. 30. 884 Idem. 885 Idem, p. 33. 886 Idem, p. 34. 887 Idem, p. 35. 888 Idem. 318
determinantes da crise econmica (o setor externo e a questo agrria), abrindo economia novas perspectivas de expanso. 889 Com o ressurgimento no panorama poltico nacional de uma forma de Frente Popular (que Getlio Vargas havia tentado sem atrever-se a concretiz-la) e o retorno do presidencialismo aps o plebiscito de janeiro de 1963, parecia, finalmente, que a tendncia bonapartista que se esboava no cenrio poltico da nao ia concretizar-se e que venceria a tese, preconizada pelo PCB, de um governo da burguesia industrial apoiado pela classe operria. 890
Contudo, a continuidade da crise econmica, o fracasso do Plano Trienal, a radicalizao poltica (que j chegava s Foras Armadas) e, sobretudo, a incapacidade do governo de conter o movimento reivindicativo das massas teriam acabado por distanciar a burguesia de Joo Goulart. 891 Na tica de Marini, a mobilizao popular que antecedeu e que, em parte, explicou a rejeio pelo Congresso do pedido de estado de stio feito por Jango teria sido decisiva para convencer a burguesia de que era v a esperana de que este pudesse oferecer-lhe uma garantia de paz social, graas ao controle que exerceu sempre sobre os organismos de massa. nesse momento interpretou o autor que a burguesia abandona a Joo Goulart e as aspiraes que teve de conseguir com ele um governo bonapartista atuam em benefcio da direita: 892
Desde o momento em que Joo Goulart se mostrou incapaz de realizar o milagre dessa aliana [da burguesia com as classes populares] (e com sua virada para a esquerda, em maro de 1964, apenas confirmava essa incapacidade), a burguesia, necessitando sempre de um governo forte, tinha que contar com a direita. Por outro lado, a mudana que se efetua no interior da classe burguesa, desde 1955, com o aumento do setor vinculado ao capital estrangeiro, fazia cada vez mais possvel esse acordo entre os grupos dominantes. 893
Segundo o que depreendemos do raciocnio de Marini, a possibilidade desse acordo entre as fraes da classe dominante (em um momento no qual a burguesia brasileira, finalmente, aceitou o papel de scio menor em sua aliana com os capitais estrangeiros) 894
teria sido o elemento que acabou por dispensar a constituio de um regime/governo de tipo bonapartista j que, como parece sugerir Marini, os grupos dominantes teriam podido, por sua prpria conta (isto , sem necessitar recorrer figura de um Estado arbitral e soberano), chegar a um acordo que estabelecesse as bases para a nova forma de dominao poltica ps- populista (a ditadura militar). 895
889 Idem, p. 36. 890 Idem, p. 37. 891 Idem, p. 42. 892 Idem, p. 46. Grifos nossos. 893 Idem. 894 Idem, p. 47. 895 Idem, p. 46-47. Na realidade, o que estava sendo posto em xeque era todo o sistema capitalista brasileiro. A burguesia grande, mdia, pequena compreendeu isso e, esquecendo suas pretenses autrquicas, assim como 319
De filiao gramsciana, cientistas sociais como Luiz Werneck Vianna, Carlos Nelson Coutinho e Joo Quartim de Moraes tambm parecem ter buscado inspirao na teoria do bonapartismo para interpretar os caminhos polticos da modernizao capitalista no Brasil ps-1930. Mobilizando os conceitos de via prussiana (Lnin) e de revoluo pelo alto (B. Moore Jr.), Werneck Vianna foi mais um dos autores que observou o forte protagonismo do aparelho de Estado (em detrimento da prpria classe burguesa) no processo de implantao de uma sociedade industrial no pas. Na tica do cientista poltico, a revoluo burguesa no Brasil, entendida como a objetivao do moderno capitalismo industrial, teria sido, em termos polticos, uma revoluo sem revoluo, tal qual discutida por Gramsci em seus escritos carcerrios. 896 Impossibilitada de se realizar por meio hegemnicos isto , a partir de uma classe ou frao de classe que, enraizada na sociedade civil, fosse capaz de dirigir politicamente os diversos segmentos nacionais , a transio ao capitalismo industrial no Brasil teria, com a Revoluo de 1930, ficado a cargo de um Estado que, relativamente autonomizado face s classes sociais, procurava pactuar os diversificados grupos dominantes. Essa composio heterognea dos novos detentores do poder, destacou Vianna, no propiciava a qualquer deles a imposio de sua vontade poltica, nem lhes dava base segura de legitimao. A estabilidade do regime dependeria de uma autonomizao poltica do Estado, diante da diversidade dos interesses coligados. 897
Removendo o Estado Liberal 898 e alocando no poder seus junkers caboclos 899
(Vargas, Francisco Campos, Gustavo Capanema, Juarez Tvora, Gis Monteiro etc.) pertencentes a uma elite burguesa agrria , 900 a Aliana Liberal teria criado
as bases para promover de cima o desenvolvimento das atividades do conjunto das classes dominantes, em moldes especificamente burgueses. O carter excludente do sistema poltico dissimulado na frmula do corporativismo, abrindo-se canais de participao controlados e manipulados pelo Estado. Elimina-se ou rebaixa-se a cota de livre movimentao dos grupos sociais na sociedade civil. Em relao s camadas mdias urbanas, a poltica se completa com a cooptao operada a partir do recrutamento para as funes pblicas que o Estado alarga bem alm das suas necessidades. A legislao sindical, ao invs de procurar cortar o passo da crescente organizao dos assalariados, buscar orient-la para dentro do aparato estatal. A generalizao da revoluo burguesa, porm, no se consumava sob a liderana das fbricas, isto , realizava-se independente de uma hegemonia burguesa. Face a essa peculiaridade, a poltica do Estado era obrigada a um esforo contorcionista, tomando a forma de um projeto comunitarista nacional, a fim de disfarar a estreiteza dos interesses privados que amparava. A
a pretenso de melhorar sua participao frente ao scio maior norte-americano, preocupou-se unicamente em salvar o prprio sistema. E foi assim que chegou ao regime militar, implantado em 1 de abril de 1964. (Idem, p. 94). 896 Ver o captulo II deste trabalho (item Revoluo passiva e cesarismo). 897 VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. 2 edio. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978, p. 116. Grifo nosso. 898 Idem, p. 135. 899 Idem, p. 134. Grifo do autor. 900 Idem. 320
apetitividade do indivduo liberal passa a exercer-se numa ordem que aparentemente a negava, com a presena de um Estado benefactor situado por cima das classes, neutro em relao a elas e alado posio de intrprete da vontade nacional. 901
Advertindo de que essa ideologia de Estado (longe de ter sido um mero disfarce de ocasio) esteve inscrita na prpria natureza do regime institudo em 1930, Werneck Vianna sublinhou em sua anlise o fato de a burguesia industrial no ter se mostrado capaz de se apropriar diretamente do aparato de Estado: Pretendemos acentuar que a modernizao como revoluo pelo alto no se associa idia de que tal processo tenha levado a burguesia industrial ao poder poltico, e sim que os interesses especficos da indstria tenham encontrado apoio e estmulo eficaz na nova configurao estatal. 902
No prosseguimento de sua argumentao, Luiz Werneck Vianna recorreu tambm ao conceito gramsciano de revoluo passiva, no intuito de explicar um processo de industrializao que no teve na frao industrial da classe dominante, e sim no Estado, seu principal sujeito poltico:
Pondo-se frente da gesto das variveis essenciais expanso das foras produtivas, nacionalizando o subsolo e determinando a nacionalizao das empresas concessionrias de energia eltrica, o Estado chama a si a tarefa de edificar os suportes necessrios para uma industrializao massiva. Mas, se a revoluo pelo alto consiste numa forma de induzir a modernizao econmica atravs da interveno poltica, implica, de outro lado, numa conservao do sistema poltico, embora promova rearranjos nos lugares ocupados por seus diferentes protagonistas. Num certo sentido, toda revoluo pelo alto assume a configurao particular de uma revoluo passiva, como Gramsci a descreveu no Risorgimiento, isto , uma revoluo sem revoluo [..] 903
O filsofo marxista Carlos Nelson Coutinho na verdade, o primeiro autor de que temos cincia a trabalhar no Brasil com os conceitos de via prussiana e revoluo passiva 904 tambm props uma analogia histrica entre a unificao italiana de fins do sculo XIX e o processo poltico brasileiro ps-1930:
Decerto existe uma diferena fundamental entre o Risorgimento italiano e o caso brasileiro: enquanto na Itlia um Estado particular, o Piemonte, desempenha o papel decisivo na construo de um novo Estado nacional unitrio, o Estado que desempenha no Brasil a funo de protagonista das revolues passivas j um Estado unificado. Mas essa diferena, ainda que no negligencivel, parece- me passar para segundo plano diante do fato de que o Estado brasileiro teve historicamente o mesmo papel que Gramsci atribui ao Piemonte, ou seja, o de substituir as classes sociais em sua funo de
901 Idem, p. 135. Grifo do autor. 902 Idem. 903 Idem, p. 140-141. Para uma interpretao do processo histrico-poltico brasileiro a partir da idia de revoluo passiva, ver tambm (do mesmo autor): VIANNA, Luiz Werneck. A revoluo passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Op. cit. 904 COUTINHO, Carlos Nelson. O significado de Lima Barreto em nossa literatura (1972) in ____. Cultura e sociedade no Brasil. Ensaios sobre idias e formas. 4 edio ampliada. So Paulo: Expresso popular, 2011, p. 89-139. 321
protagonista dos processos de transformao e o de assumir a tarefa de dirigir politicamente as prprias classes economicamente dominantes. 905
Tal qual o caso italiano, assinalou Coutinho, a modernizao burguesa no Brasil teria carecido de uma hegemonia burguesa que, segundo o autor, deve estar fundamentada, sobretudo, no elemento consensual sobre as amplas massas populares, tendo se verificado, apenas, uma hegemonia restrita ao interior dos grupos dominantes (isto , uma funo hegemnica, conforme j discutimos). 906 Assim, na viso de Coutinho, a burguesia brasileira, embora tenha exercido seu domnio poltico na sociedade, no logrou se portar como uma verdadeira classe dirigente (hegemnica):
Tambm no Brasil as transformaes foram sempre o resultado do deslocamento da funo hegemnica de uma para outra frao das classes dominantes. Mas estas, em seu conjunto, jamais desempenharam, at recentemente [o texto de 1999], uma efetiva funo hegemnica em face das massas populares. Preferiram delegar a funo de dominao poltica ao Estado ou seja, s camadas militares e tecnoburocrticas , ao qual coube a tarefa de controlar e, quando necessrio, de reprimir as classes subalternas. Mas essa modalidade antijacobina de transio ao capitalismo no significa absolutamente que a burguesia no tenha levado a cabo sua revoluo: fez isso, precisamente, atravs do modelo de revoluo passiva, que tomou entre ns a forma para usar a terminologia de Florestan Fernandes de uma contra-revoluo prolongada, que outro modo de dizer ditadura sem hegemonia. 907
Por sua vez, o tambm filsofo Joo Quartim de Moraes (ex-POLOP e com atuais simpatias pelo estalinismo), no intuito de apreender a dinmica poltica brasileira sob o primeiro governo Vargas (1930-1945), fez uso explicitamente das duas modalidades de cesarismo conceitualmente propostas por Gramsci:
O regime oriundo da Revoluo de 1930, embora se apoiando num Exrcito comprometido com seus objetivos essenciais (primado do ponto de vista nacional sobre o regionalismo das oligarquias da Repblica Velha, centralizao orgnica do aparelho estatal, promoo pelo Estado do desenvolvimento industrial etc.) assumiu, na medida em que se consolidou o poder e o prestgio pessoais de Getlio Vargas, o carter de um cesarismo progressivo no estrito sentido de Gramsci (criao de um novo tipo de Estado, compatibilizando foras sociais em conflito no-antagnico e abrindo caminho para as tendncias progressistas do movimento histrico). A partir de 1935, no entanto, o impulso progressista aberto pelo combate dos tenentes e vitorioso em 1930 deslocou-se para a Aliana Nacional Libertadora, portadora de um projeto de reformas sociais avanadas. Para cont-la, Vargas recorreu a medidas repressivas e provocadoras, s quais os dirigentes da ANL responderam com uma aventura insurrecional fracassada. Vitorioso e mais poderoso do que nunca, o csar acentuou a virada de seu regime no rumo de um cesarismo policial, institucionalizado, dois anos mais tarde, com o Estado Novo. [...] Mas a singularidade do destino histrico do cesarismo varguista est em sua nova virada, desta vez de sentido progressivo, que o conduziu a fazer do sindicalismo corporativista de Estado sua principal base de apoio poltico. Evoluo que no foi aceita pelas cpulas militares que o haviam ajudado a instaurar o Estado Novo. 908
905 COUTINHO, Carlos Nelson. As categorias de Gramsci e a realidade brasileira in ____. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento poltico. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1999, p. 203-204. 906 Ver o captulo II (item Revoluo passiva e cesarismo). 907 COUTINHO, Carlos Nelson. As categorias de Gramsci e a realidade brasileira. Op. cit., p. 204-205. 908 MORAES, Joo Quartim de. O argumento da fora in OLIVEIRA, Elizer Rizzo de. [et. al]. As Foras Armadas no Brasil. Rio de Janeiro: Espao e Tempo, 1987, p. 32-33. 322
Vale destacar a perspectiva do economista Luciano Martins, para quem e isso o aproxima de muitos autores j discutidos a forma bonapartista assumida pelo Estado brasileiro ps-1930 deveria ser compreendida em sua relao com o modo desigual e combinado pelo qual o capitalismo se desenvolveu no pas. Por esse caminho analtico, Martins chamou a ateno, por exemplo, para a subsuno poltica da sociedade civil ao Estado ao longo do regime de 1946-1964, quando as Foras Armadas (e no o Congresso e seus partidos polticos) teria desempenhado um papel arbitral:
A conjugao de alguns dos fatores histricos [...] parece ter produzido no Brasil um padro de desenvolvimento particularmente complexo e no s rico em contradies como tambm em expedientes para a harmonizao delas. A manuteno desse sistema dissincrnico, integrado pelas engrenagens de estruturas arcaicas e estruturas emergentes girando em ritmos e at sentidos diferentes, tornou-se possvel porque sobre essas engrenagens se superps uma outra, de dentes ajustveis a cada uma delas, na figura do Estado. O que j se chamou de natureza cartorial do Estado brasileiro tem precisamente a a sua origem e a sua funo: a de manter a coexistncia do que no coetneo, para usar a expresso de Mannheim, e a de promover o desenvolvimento combinado de foras sociais diferentes. O Estado brasileiro tem, alternativa ou simultaneamente, financiado o caf e guardado o latifndio, criado condies para a industrializao e franqueado o Banco do Brasil aos industriais, aberto as portas da burocracia classe mdia e absorvido as suas tenses com vantagens de todo o tipo, promovido as massas urbanas ao nvel do salrio-mnimo e as enredado nas dobras do sistema atravs de conhecidos mecanismos populistas. Esse Estado-protetor expresso no plano operacional da arbitragem bonapartista como que transformou todas as foras sociais em clientela sua e, por assim dizer, despolitizou-as. que o Estado via de regra tendia a absorver as reivindicaes antes que elas o condenassem e pudessem, assim, expressar-se de uma forma politicamente organizada. O grupo de presso substituiu o partido poltico ou este se colocou ao nvel daquele e o pistolo passou a valer mais que todo um arsenal ideolgico. Os partidos polticos, reduzidos a mquinas de ganhar eleio ou, quando muito, a esturios da eloqncia bacharelesca, deixaram de ser o centro de elaborao e aglutinao do pensamento poltico. Qualquer que fosse a legenda, havia sempre representantes dispostos a compor-se com qualquer governo. Bastaria lembrar que administraes de orientao e vinculao partidria diferentes como a de Dutra, Vargas, Kubitschek, Quadros e Goulart se compuseram e governaram com praticamente a mesma correlao de foras parlamentares. que a verdadeira maioria aquela capaz de decidir nas horas de impasse ou compelir a administrao a esta ou aquela poltica nunca esteve no Congresso, mas nas Foras Armadas. 909
Por fim, nessa nossa demonstrao da presena da teoria do bonapartismo nos estudos acadmicos dedicados ao perodo brasileiro do 1930-1964, podemos lembrar ainda da cientista poltica Eli Diniz que, em conhecido artigo, detectou a existncia de uma autonomia relativa do Estado (e de um enorme desenvolvimento de suas estruturas burocrticas) nessa etapa histrica caracterizada por um aceleramento dos processos de urbanizao e industrializao. Entretanto, vale ressalvar que a perpectiva analtica de Diniz parece se fundamentar tambm e talvez at mais do que propriamente na teoria do bonapartismo no funcionalismo norte-americano e em sua lgica do state building. 910
909 MARTINS, Luciano. Aspectos polticos da revoluo brasileira in Revista da Civilizao brasileira, n. 2. Rio de Janeiro: Civilizao brasileira, maio de 1965, p. 31-32. 910 DINIZ, Eli. O Estado Novo: estrutura de poder e relaes de classes in FAUSTO, B. Histria Geral da Civilizao Brasileira. So Paulo: Difel, 1981, v. X, p. 79-120. 323
Embora a intelectualidade marxista acadmica dos anos 60, 70 e 80 como pudemos constatar nas pginas que se seguiram tenha fartamente se utilizado da teoria do bonapartismo para tecer suas anlises do processo poltico brasileiro do perodo 1930-1964, ela certamente no foi pioneira nesse tipo de procedimento interpretativo. Como adiantamos, as organizaes trotskistas que politicamente se sucederam ao longo desse mesmo recorte temporal (muitas delas dirigidas por sofisticados intelectuais militantes) j haviam recorrido idia de bonapartismo para caracterizar os regimes e/ou governos responsveis pela dominao de classe no Brasil de Vargas e sucessores polticos. isso o que veremos agora.
Vises trotskistas da dominao poltica no Brasil 1930-1964: bonapartismo Surgida contemporaneamente Revoluo de 1930, a primeira gerao dos trotskistas brasileiros encontraria na teoria do bonapartismo uma adequada chave analtica para dar conta das transformaes, verificadas j nos primeiros anos da Era Vargas, nas relaes entre o Estado, as fraes da classe dominante e o jovem proletariado urbano.
O surgimento do bonapartismo no Brasil Contudo, interessante relatar que, em uma anlise retrospectiva datada de 1931, Mrio Pedrosa e Lvio Xavier, ento membros da efmera Liga Comunista do Brasil (LCB), vislumbraram j no crtico decnio final da Primeira Repblica o desenvolvimento de traos (polticos, culturais e ideolgicos) tipicamente bonapartistas naquela sociedade burguesa em expanso:
A contradio que faz com que o imperialismo ao revolucionar de modo permanente a economia dos pases que lhe so submetidos atue como fator reacionrio em poltica encontra a sua expresso nos governos fortes e na subordinao da sociedade ao poder executivo. [...] O reforo gradativo do poder executivo , alis, um processo regular e sistemtico do desenvolvimento industrial nos pases politicamente secundrios, como o demonstra Trotsky com relao Rssia czarista. Esse processo acentuou-se aqui (Brasil) desde a Grande Guerra, coincidindo com o domnio preponderante do imperialismo norte-americano no cenrio mundial, especialmente na Amrica Latina. Ou seja, desde o governo de Epitcio Pessoa. Ento a reao tornou-se sistemtica e assumiu carter de classe muito claro. A apologia dos governos fortes, a divinizao da ordem, o ataque contra a democracia e o liberalismo foram os pontos principais da ideologia reacionria, que surgiu entre a fumaa das chamins das fbricas e dos dreadnoughts americanos. O governo Epitcio Pessoa (1920-1922) assinala o ponto culminante da vaga de constitucionalismo e do fetichismo da autoridade constituda. Durante os quatrinios seguintes o governo foi presa da obsesso histrica da ordem do regime social. Washington Lus [...] representa a hipertrofia do poder executivo, j separado dos interesses imediatos da frao da burguesia que o levou ao poder. 911
911 CAMBOA, M. e LYON, L (pseudnimos de Mrio Pedrosa e Lvio Xavier, respectivamente). Esboo de uma anlise da situao econmica do Brasil. Op. cit., p. 74-75. Grifos dos autores. O governo de Epitcio Pessoa foi, como se sabe, de 1918 a 1922. Ao colocarem nos parnteses ao lado do nome do presidente a data de 1920 como marco inicial, os autores do documento provavelmente se referiram a uma inflexo reacionria por parte do governo de Pessoa ocorrida nesse ano. 324
Como j expusemos neste captulo, a mesma LCB interpretou que, com a ascenso ao poder da Aliana Liberal em 1930, teria sido preservada a ameaada unidade nacional burguesa. Sob a forma de ditadura militar manifesta ou declarada, de baioneta calada sobre as massas exploradas e oprimidas, comeou a ser restabelecido, segundo os trotskistas, o acordo geral da burguesia. 912 . O Exrcito teria, assim, imposto burguesia um regime poltico misto de formas ditatoriais (tenentismo) e formas semiconstitucionais (governo central civil, presidncia civil de Minas etc.) que no seriam seno a forma de compromisso entre a burguesia dos estados do Sul e a burguesia dos estados do Norte, compromisso vlido somente na medida em que So Paulo no pudesse recuperar a antiga hegemonia. 913
Retardatria, vinculada ao imperialismo desde sua gnese, e tendo o proletariado as acossando permanentemente, a burguesia brasileira no teria condies de, tal como suas irms das naes centrais, fazer uso da democracia burguesa enquanto instrumento de dominao de classe. Subordinada estruturalmente ao capital estrangeiro e com interesses no-antagnicos no que diz respeito questo da propriedade aos dos setores latifundirios, nossa burguesia no poderia, ou melhor, no necessitaria conduzir amplas camadas populares em direo a transformaes democrticas da sociedade. Abria-se, assim, segundo o raciocnio trotskista, a possibilidade histrica do bonapartismo no Brasil. Aps a derrota da chamada Revoluo Constitucionalista de 1932, a LCB passou a considerar essa possibilidade cada vez mais iminente:
A perspectiva de um desenvolvimento bonapartista se impe, dada as condies atuais das relaes entre as classes. A grande burguesia nacional foi derrotada militar e politicamente com a derrota da rebelio paulista. A pequena burguesia, menos do que em qualquer outra parte, no tem condies de criar um movimento poltico independente, capaz de assegurar-lhe um predomnio poltico mais demorado no pas. O proletariado, no estado rudimentar de organizao em que se encontra, sem a menor escola poltica, desorientado em vez de ser orientado pela sua vanguarda, hipnotizada por uma casta de aventureiros e oportunistas burocratizados, no atua como devia sobre os acontecimentos polticos, vivendo como que margem da histria poltica dos nossos dias. So condies estas que tornam possvel a instaurao do bonapartismo, com todo o seu cortejo de misria e corrupo. 914
Alm das duras crticas endereadas ao PCB, pode-se tambm reparar no trecho acima como os trotskistas brasileiros parecem ter resgatado, em parte, a anlise marxiana da conjuntura francesa que antecedeu o golpe bonapartista de 1851, quando os operrios,
912 LIGA COMUNISTA DO BRASIL. Aos trabalhadores do Brasil. Op. cit., p. 59-60. 913 LIGA COMUNISTA DO BRASIL Projeto de teses sobre a situao nacional. Op. cit., p. 161. Grifos nossos. 914 LIGA COMUNISTA DO BRASIL. Da demagogia realidade tenentista in A luta de classe, n. 9. So Paulo, junho de 1932, p. 2. 325
conduzidos para o fundo da cena revolucionria, 915 teriam sido obrigados a ver o processo histrico passar por cima de suas cabeas. 916
A idia de bonapartismo, entretanto, comearia aparecer com mais regularidade nas publicaes trotskistas a partir do golpe do Estado Novo, aplicado por Vargas a 10 de novembro de 1937.
Estado Novo e bonapartismo Publicado em 10 de dezembro daquele ano, o nmero 34 de A luta de classe, agora rgo do Partido Operrio Leninista (POL), foi quase inteiramente dedicado instaurao do Estado Novo, que ento completava seu primeiro ms de existncia. Intitulada O golpe de Estado bonapartista, a matria central do peridico trotskista buscava explicar aos trabalhadores em que foras se apoiou o golpe bonapartista? Qual foi a causa ou as causas do mesmo? Qual foi a atitude da burguesia? Qual a posio das massas trabalhadoras? Quais as perspectivas a serem traadas em face dos ltimos acontecimentos?. 917
Logo nas primeiras linhas, os trotskistas do POL lembraram que, por no ter encontrando pela sua frente um proletariado organizado e com conscincia de classe, capaz de arrastar as massas trabalhadoras do campo e da cidade, Getlio no teve dificuldades na realizao do golpe de estado bonapartista e na instaurao de um regime fascista. 918 Em seguida, afirmaram que a outorga da constituio no dia 10 de novembro (1937) teria sido a etapa final do golpe de Estado bonapartista, iniciado em 2 de outubro com a decretao do estado de guerra. 919 Nessa primeira avaliao trotskista da recente conjuntura poltica, como podemos notar, o golpe assestado por Vargas, embora de natureza bonapartista, teria dado origem a um regime de tipo fascista. Vejamos mais detalhadamente essa caracterizao. Segundo o POL, em princpios de 1937, a presso externa, aliada da burguesia que se preparava para a sucesso presidencial, teria obrigado a reao a recuar. Entretanto, tal afrouxamento da represso, expresso pelo fim do estado de guerra e pela libertao de alguns presos polticos, no teria sido acompanhado por uma tenaz e vigorosa luta das massas contra a reao e por nenhuma tentativa sria de organizar o proletariado completamente estraalhado pela brutal represso do ltimo estado de guerra. Tal situao desfavorvel ao movimento de massas se deveria, em parte, linha poltica do PCB, que teria eliminado todo
915 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 25. 916 Idem, p. 67. Grifos do autor. 917 PARTIDO OPERRIO LENINISTA. O golpe de Estado bonapartista in A luta de classe, n. 34. Belo Horizonte, 10 de dezembro de 1937, p. 1. (CEDEM) 918 Idem. 919 Idem. Grifos nossos. 326
o contedo de classe de seu programa e se esforado em arrastar as massas a reboque de um dos candidatos burgueses. 920
Para as eleies presidenciais, antes previstas para janeiro de 1938 (e que no se realizariam em funo do golpe de Estado), haviam sido apresentadas as candidaturas de Plnio Salgado, lder da Ao Integralista Brasileira (AIB), de Armando Salles, representando a burguesia industrial e a cultura intensiva, 921 e a de Jos Amrico de Almeida que, apoiado inicialmente por Vargas (de forma oficiosa) e expressando os interesses dos latifundirios de So Paulo e do Nordeste (os elementos mais fracos e mais atrasados da burguesia), 922 receberia tambm, ao que tudo indicava, a adeso dos comunistas. Lanando mo da demagogia, assinalaram os trotskistas, Jos Amrico procurou apoiar-se em um amplo movimento de massas, acirrando, assim, as contradies no interior do campo poltico burgus que o sustentava. 923 Pressionado por este, acabaria se adequando s diretrizes dos polticos e se transformando em um joguete nas mos de Getlio. 924
Nesse contexto, teria se verificado, segundo os trotskistas, um avano poltico do proletariado: A participao da massa trabalhadora na campanha eleitoral, embora a reboque da burguesia, a forma violenta de luta contra o integralismo, o aparecimento de um grande nmero de organizaes, ainda que com objetivos confusos, mostravam claramente que se estava processando um amadurecimento poltico no seio da massa. 925 No podendo mobilizar a seu favor essa massa que rapidamente se politizava, a reao decidiu-se pelo golpe bonapartista: 926
Para desfechar o golpe Getlio contava com o apoio de grande nmero de oficiais do Exrcito e da Marinha, com o integralismo, com as foras polticas z-americanas, apavoradas com a feio que ia tomando a candidatura Jos Amrico, e com os elementos do Rio Grande do Sul que queriam de qualquer modo derrubar Flores [da Cunha]. Forjado o documento atribudo ao Comintern [Plano Cohen] e entregue Cmara junto com o pedido de estado de guerra (trs dias antes o ministro da Justia havia declarado que no existia de modo algum perigo comunista) pelos ministros da Guerra e da Marinha Getlio era muito suspeito estabeleceu-se um pnico nunca visto. Ningum ignorava que o perigo comunista era um simples pretexto e que se tratava na realidade de um golpe de estado a consumar-se sombra do estado de guerra. 927
Segundo a anlise de A luta de classe, o posicionamento de vrios setores sociais teria contribudo para a criao de condies favorveis aos planos reacionrios de Vargas.
920 Idem. 921 Idem. 922 Idem, p. 1-2. 923 Idem, p. 2. 924 Idem. Atacando a diretriz de colaborao de classes levada a cabo pelo PCB, que j ensaiava o apoio a Jos Amrico, o POL props para o pleito presidencial em questo o nome de Luiz Carlos Prestes, que se encontrava preso desde maro de 1936. 925 Idem. 926 Idem. 927 Idem. 327
Jos Amrico, prestando-se docilmente s manobras de Getlio, declarou-se solidrio proposta do estado de guerra, o que levou a maior parte dos deputados que o apoiava a votar favoravelmente medida. J a burguesia nacional mais adiantada, agrupada na UDB [Unio Democrtica Brasileira], teria hesitado entre uma luta aberta pela democracia (garantias constitucionais, eleies etc.), o que exigiria uma mobilizao efetiva da massa, com todos os seus perigos (!), e a poltica de concesso e manobra. Votando contra o estado de guerra, sem, contudo, desmascarar audaciosamente o golpe de Estado, teria apelado para as Foras Armadas visivelmente mancomunadas com Getlio e conscientes do papel que iam desempenhar. Assim, essa ala burguesa no teria feito mais do que o jogo de Getlio. 928 . Antes orientando os operrios a no provocarem a burguesia por meio de greves, os lderes democrticos pequeno-burgueses, por sua vez, teriam fugido e abandonado a luta s vsperas do golpe. 929 J o stalinismo, desmoralizado e estropiado da aventura de novembro [levante da ANL, em 1935], teria se convertido em cabo eleitoral de Jos Amrico entre os setores populares. Amarrando as massas ao carro da burguesia, o PCB teria perdido completamente a viso dos problemas e ficado impotente em face do avano brusco e para ele inesperado da reao. Segundo o peridico trotskista, o PCB no tentou mobilizar as massas para uma ao concreta contra o golpe de Estado e o estado de guerra, e continuou confiando na burguesia nacional, no imperialismo democrtico e no exrcito popular que no permitiriam a instaurao de um regime fascista no Brasil. 930
Com o caminho aberto sua frente, Vargas teria colocado em marcha a ofensiva golpista:
Uma vez obtido o estado de guerra e semeado o terror, a reao iniciou a aplicao do plano de antemo preparado. As etapas se sucederam com incrvel rapidez. Junta executora do estado de guerra com Newton Cavalcanti e Dario Paes Leme; nomeao dos comandantes das regies de S. Paulo e Rio Grande do Sul para executores do estado de guerra; priso de Pedro Ernesto; requisio das brigadas militares de S. Paulo e Rio Grande; fuga de Flores [da Cunha] e interveno no Rio Grande; fechamento da maonaria e espiritismo; passeata integralista do 1 de novembro; promulgao da nova constituio. Tais foram os episdios principais do golpe de Estado bonapartista. Para levar a efeito o golpe de Estado bonapartista, Getlio contava com o apoio da frao mais reacionria do Exrcito, com o integralismo e as foras polticas que apoiavam a candidatura de Jos Amrico, com exceo de Juracy Magalhes e Lima Cavalcanti. O integralismo era a nica fora que possua alguma base de massa e da o papel que lhe coube de exprimir o apoio da massa popular aos planos de Getlio. Em troca disso a sua influncia sobre os acontecimentos era sensvel. As medidas de fechamento das lojas manicas e dos centros espritas eram claramente inspiradas pelos verdes. A participao dos integralistas em todos os atos oficiais, a passeata do dia 1 de novembro e a proibio expressa da censura de qualquer ataque aos mesmos eram indcios insofismveis da participao do sigma na preparao do golpe. Por ocasio do desastre do trem verde, as visitas aos feridos evidenciaram, de um lado, o prestgio do sigma, e do outro, os primeiros sinais da onda adesionista.
Apoiado nessas trs foras heterogneas militares, polticos e integralistas Getlio derrubava um a um seus adversrios polticos e neutralizava alguns setores da UDB (corrente do P. Constitucionalista chefiada por Cardoso de Mello Netto e Alcantara Machado). Preparado o terreno, desfechou o golpe final a 10 de novembro. 931
A ausncia dos integralistas do novo arranjo de poder, uma vez desfechado o golpe, se explicaria, segundo a avaliao trotskista, principalmente em funo de quatro fatores: Em primeiro lugar, a inexistncia de uma resistncia das massas ao golpe teria tornado dispensvel a mobilizao da tropa de choque do sigma e a partilha do poder entre Getlio e Plnio [Salgado], com vantagens para o segundo que, contando com um partido organizado, poderia com relativa facilidade absorver todo o poder e eliminar Getlio. 932 Em segundo lugar, Vargas, com a excluso dos integralistas do novo regime, teria buscado conquistar a pequena-burguesia urbana, sobretudo os setores prximos ideologicamente da extinta ANL, e disfarar, at certo ponto, o carter fascista do Estado Novo institudo pela nova constituio. 933 Em terceiro lugar, a dependncia da economia brasileira do imperialismo (principalmente do americano e ingls) se constitua, segundo o POL, em um bice para a participao dos integralistas no poder, j que estes, por serem agentes de Hitler e Mussolini, poderiam trazer complicaes para as relaes do Brasil com os Estados Unidos e a Inglaterra. 934 Por fim, em quarto lugar, Getlio estaria interessado em que a transio se desse do modo mais suave possvel, afim de que as massas no se apercebessem da nova e pesadssima canga que lhes era imposta. Com o integralismo seria impossvel evitar o aspecto violento que indisporia desde o incio o novo regime com as massas. 935
Entretanto, ressalvavam os trotskistas, a no presena dos integralistas nesse novo regime no alteraria em nada seu carter fascista. Numa crtica que parece ter sido dirigida s anlises de conjuntura do PCB nas quais uma suposta distino entre um fascismo de Vargas e outro fascismo dos integralistas (fascismo integral) comearia gradativamente a aparecer, sobretudo depois da represso do primeiro ao segundo, iniciada em maio de 1938 936
, o jornal do POL afirmou:
Mas a no participao dos integralistas no poder no diminui de modo algum o carter reacionrio e fascista da nova ordem de coisas. Getlio, em cujas mos esto concentrados todos os poderes, saber desempenhar o papel de carrasco das massas trabalhadoras e verdugo do movimento revolucionrio com a mesma percia e ferocidade de um Plnio Salgado. Procurar distinguir Getlio de Plnio, considerar o atual estado de coisas um mal menor, colocar em primeiro plano a luta contra o integralismo, fazer o jogo de Getlio, sabotar a luta contra o golpe bonapartista, desviar
931 Idem. Grifos nossos. 932 Idem. 933 Idem, p. 3-4. 934 Idem, p. 4. 935 Idem. 936 PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL (PCB). O putsch fascista-integralista e a situao atual no Brasil in CARONE, Edgard. O PCB. (1922-1943). Op. cit.,, p. 212-215. 329
criminosamente a ateno das massas do principal inimigo que personifica no momento atual as foras mais reacionrias do pas. 937
Quanto aos outros dois segmentos partcipes do golpe, o Exrcito e os polticos burgueses (chefiados por Benedito Valladares), o POL considerou que ambos disputariam ainda durante muito tempo a hegemonia na situao criada. Vargas, na tica dos trotskistas, funcionaria como um trao de unio entre esses dois segmentos, evitando que a hegemonia ficasse inteiramente nas mos dos militares: com Getlio frente, os polticos continuariam a ter participao efetiva do poder e o carter militar-bonapartista do golpe ficaria mais disfarado. O jaqueto paisano de Getlio dava assim ao golpe de Estado uma indumentria mais prosaica, verdade, mas tambm mais democrtica. 938
Em seguida, reafirmando uma vez mais o carter tipicamente bonapartista do 10 de novembro de 1937, o POL observou que o golpe getulista
no tinha um apoio srio por parte da burguesia e no se baseava sobre um amplo movimento de massa. A primeira tarefa de Getlio era convencer a burguesia a entregar os seus destinos nas suas mos e conquistar, por meio de medidas de carter demaggico, no s a pequena-burguesia como tambm parte do proletariado. Alm disso, tornava-se necessrio situar-se na luta inter-imperialista de tal modo que fosse possvel evitar a qualquer preo srias complicaes de carter internacional. 939
No trecho acima, notamos que os trotskistas tomaram a renncia da burguesia ao seu poder poltico, a estratgia varguista de cooptao dos trabalhadores/pequena-burguesia (o objetivo fundamental da poltica de massas populista, segundo Weffort e Ianni) e a ttica diplomtica de se aproveitar das disputas inter-imperialistas como importantes aspectos definidores de uma dinmica poltica bonapartista verificada no contexto do golpe. Entretanto, um tanto quanto contraditoriamente, os prprios trotskistas, como vimos, classificavam o regime poltico nascido daquele golpe bonapartista como um regime de tipo fascista, o que, segundo eles, colocaria para os trabalhadores brasileiros a disjuntiva socialismo ou fascismo disjuntiva essa que, como se sabe, seria retomada sob os anos mais cruentos da ditadura militar brasileira por intelectuais marxistas como Octavio Ianni 940 e Theotnio dos Santos: 941
preciso mostrar s massas um programa claro, indicar o caminho certo e lev-las nica sada luta revolucionria pela transformao do regime capitalista em regime socialista, atravs da ditadura do proletariado. Na poca da crise geral do capitalismo e da revoluo proletria a burguesia
937 POL. O golpe de Estado bonapartista. Op. cit., p. 4. 938 Idem. 939 Idem. 940 IANNI, Octavio. O colapso do populismo no Brasil. Op. cit., p. 217-225. 941 SANTOS, Theotnio. Socialismo o fascismo: el nuevo carcter de la dependencia y el dilema latinoamericano. Mxico: Edicol, 1978. 330
incapaz de defender a democracia, mesmo [a] burguesa. S h uma alternativa ou fascismo ou comunismo. 942
Rapidamente, porm, o POL alteraria sua caracterizao da ditadura estadonovista. J na edio seguinte de A luta de classe, de nmero 35, datada natalinamente de 25 de dezembro de 1937, os trotskistas brasileiros pareciam estar mais atentos s diferenciaes feitas por Trotsky entre os regimes bonapartista e fascista as quais pudemos observar em nosso segundo captulo. 943
De incontestvel carter preventivo e contra-revolucionrio, o golpe bonapartista de novembro daquele ano tivera, segundo o POL, como objetivo fundamental restabelecer a paz social seriamente ameaada pela campanha de sucesso [presidencial]. 944
Diferentemente de sua avaliao anterior que classificara como fascista o Estado Novo, os trotskistas consideravam agora que o novo regime poltico brasileiro teria uma natureza bonapartista, expressa pela caracterstica abdicao da classe dominante de seu poder poltico em nome da manuteno da ordem social burguesa, assim como pela inexistncia de uma base de massas pequeno-burguesa do tipo da qual costuma gozar o fascismo:
No resta a menor dvida de que Getlio interpretou at certo ponto desejos inconscientes da burguesia, ao encarar a luta que prometia ser aguda e acirrada. De outro modo no se explicaria a passividade de todos e o apoio de alguns. Getlio era, verdade, movido pelo interesse pessoal de continuar no poder. Mas s o conseguiu porque a burguesia temia as consequncias da luta e preferiu abrir mo do seu direito incontestvel de administrar diretamente os seus negcios. E no lhe faltaram compensaes. A nova constituio se presta muito mais e assegura ao governo meios mais eficazes para a defesa da propriedade burguesa, eternamente ameaada pela revolta dos explorados. A burguesia perdeu alguma coisa, mas ganhou muito mais. O novo regime, devido ao seu carter bonapartista, no dispe de uma base de massa sobre a qual possa se apoiar. E a estabilidade do atual governo depende, em ltima anlise, da possibilidade de criar um apoio de massa. este o problema que Getlio procura resolver. J encontrou em parte o caminho aplainado pelo descrdito em que as instituies democrticas foram lanadas pela atitude nojenta e covarde da Cmara [dos Deputados] e de todos os chefetes pequeno-burgueses. 945
Chama a ateno no trecho acima a observao feita pelos trotskistas quanto ao papel desempenhado pelo Poder Legislativo na trama poltica que desembocaria no regime bonapartista de Vargas, quando os parlamentares brasileiros, curvando-se ofensiva de um Executivo que clamava por poderes discricionrios, parecem ter reeditado, mutatis mutandis, a atuao do partido da ordem francs perante Lus Bonaparte nos anos 1848-1851 tocaremos novamente nesse ponto em nosso prximo captulo.
942 POL. O golpe de Estado bonapartista. Op. cit., p. 5-6. 943 Em setembro do mesmo ano, o POL j publicara em sua revista Sob nova bandeira uma traduo do artigo de Trotsky Bonapartismo e fascismo, j bastante trabalhado por ns. (TROTSKY, L. Bonapartismo e fascismo in POL. Sob nova bandeira, setembro de 1937, p. 19-23.) 944 POL. O bonapartismo procura uma base de massa in Luta de classe, n. 35. Belo Horizonte, 25 de dezembro de 1937, p. 1. (CEDEM). 945 Idem. Grifos nossos. 331
Nas edies seguintes de A luta de classe, vigoraria a caracterizao da ditadura estadonovista como um regime de tipo bonapartista e, consequentemente, tambm o governo de Vargas receberia a mesma classificao (O governo bonapartista de Getlio). 946 Por vezes, regime e governo varguistas apareceriam tambm sob outras denominaes complementares. No nmero 41 do peridico trotskista, por exemplo, teve lugar a consigna abaixo o governo semifascista de Getlio!; 947 j no nmero 44, um documento assinado conjuntamente pelo POL e pelo Comit regional do PCB (Dissidncia pr-Reagrupamento da Vanguarda Revolucionria) que se encontravam em processo de fuso 948 bradava que o Estado Novo, implantado pelo golpe bonapartista de 10 de novembro de 1937, teria liquidado uma a uma todas as liberdades democrticas, conquistadas durante anos de luta pelas massas trabalhadoras, institudo a mais feroz ditadura policial-militar e aumentado poderosamente a capacidade de represso do Estado contra o movimento operrio. 949
Similarmente aos futuros tericos do populismo, assim como a outros cientistas sociais h pouco trabalhados, essas organizaes trotskistas afirmaram (no mesmo documento) a existncia de uma combinao de expedientes repressivos e demaggicos por parte dessa ditadura policial-militar em sua tarefa de subordinao da classe trabalhadora; diferentemente de todos aqueles autores, entretanto, os trotskistas omitiram em suas anlises os elementos reformistas presentes na poltica estatal getulista (direitos trabalhistas, cidadania social e poltica etc.):
Durante o ltimo ano e meio as condies de vida das massas trabalhadoras agravaram-se e tornaram-se intolerveis. O Ministrio do Trabalho e a polcia reduziram os sindicatos impotncia e, combinando a violncia com a demagogia, impedem que a revolta surda se transforme em um poderoso movimento grevista pelo aumento indispensvel dos salrios. 950
No escusado lembrar que a frmula da ditadura policial-militar vista acima era justamente a que, na mesma dcada de 1930, Trotsky, em alguns de seus escritos, lanava mo para se referir modalidade semifascista dos bonapartismos sui generis latino- americanos na qual se encaixaria, segundo o prprio revolucionrio russo, o regime estadonovista brasileiro (como pudemos ver no segundo captulo).
946 POL. Demagogia arma do Estado Novo in A luta de classe, n. 36. Belo Horizonte, 10 de janeiro de 1938, p.1. (CEDEM). 947 POL. A fala do trono in A luta de classe, n. 41. Belo Horizonte, 22 de novembro de 1938, p.2. Grifos nossos. (CEDEM). 948 Ver a Introduo segunda parte deste trabalho (PSR: Florestan e o trotskismo). 949 POL/COMIT REGIONAL DO PCB. Resolues da pr-conferncia realizada em abril de 1935 pelo Partido Operrio Leninista (seo brasileira da IV Internacional) e pelo Comit Regional do PCB (Dissidncia pr-reagrupamento da vanguarda revolucionria) in A luta de classe, n. 44. Belo Horizonte, julho de 1939, p. 8. Grifos nossos. (CEDEM). 950 Idem. 332
Surgido da fuso entre o POL e o Comit regional do PCB, o Partido Socialista Revolucionrio adotaria a mesma caracterizao sobre o regime varguista. Na edio de agosto de 1939 dA luta de classe (agora peridico do novo partido), o PSR repetiria a mesma avaliao feita dois anos antes pelo POL acerca da trama golpista orquestrada por Vargas em novembro de 1937, lembrando que
o golpe de 10 de novembro de 1937 instituiu no Brasil uma ditadura policial-militar. Este golpe veio alcanar em cheio as massas exploradas da cidade e dos campos. Aps dois anos de estado de guerra quase ininterrupto, sobra da qual a polcia destruiu o movimento sindical independente, prendeu, deportou e aterrorizou centenas de militantes operrios e antifascistas, o proletariado no estava em condies de resistir ao golpe bonapartista de Getlio. 951
Em 1945, as edies dA luta de classe abordariam com especial ateno as greves operrias que eclodiram nos estertores da ditadura bonapartista do Estado Novo. 952
Denunciando o bonapartista Getlio 953 e sua camarilha que, em cumplicidade com o imperialismo que se diz democrtico, arrastava a juventude brasileira matana na Europa, os trotskistas do PSR clamariam insistentemente pela derrubada da ditadura bonapartista e pr-fascista de Vargas. 954
Os bonapartismos ps-1945 Como vimos h algumas pginas atrs, o PSR, analisando a conjuntura poltica nos meses iniciais do segundo governo Vargas (1951-1954), aventou a possibilidade de que Getlio viesse a reeditar o golpe bonapartista de 1937. Jogando com as classes sociais e fazendo ameaas classe burguesa, o pai dos pobres como j citamos teria por misso salvar a prpria burguesia. 955
Sucedendo o findado PSR na saga do trotskismo brasileiro, o Partido Operrio Revolucionrio iniciou suas atividades em 1952, encarregando-se de, por meio de suas anlises de conjuntura expressas no peridico Frente Operria, buscar apreender a natureza do regime poltico brasileiro daquele perodo. Observando as relaes entre o Estado, o imperialismo, as classes dominantes nacionais e as massas trabalhadoras, o POR, segundo Murilo Leal, compreendeu o trabalhismo de Getlio como uma expresso particular de um fenmeno mais abrangente, o nacionalismo latino-americano, que abarcaria manifestaes como a vitria de Carlos Ibaez
951 PSR. Manifesto aos trabalhadores e s massas oprimidas da cidade e do campo in A luta de classe, n. 45. Belo Horizonte, agosto de 1939, p. 7. (CEDEM). 952 PSR. Greves proletrias rompem a tirania do Estado Novo in Luta Proletria, janeiro 1945, p. 1. (CEDEM). 953 Idem, p. 5. 954 PSR. A cobertura de esquerda da reao in Luta Proletria, junho de 1945, p. 2. (CEDEM). 955 PSR. Dois meses de governo Getlio in Luta proletria, n. 9, maro de 1951, p. 1. (CEDEM). 333
Del Campo, no Chile, o MNR (Movimento Nacionalista Revolucionrio) na Bolvia, a APRA (Aliana Popular Revolucionria Americana) do Peru, os governos de Bettencourt na Venezuela, Jacob Arbenz na Guatemala, Grau San Martin em Cuba e Vargas no Brasil. 956
O nacionalismo-burgus na Amrica Latina, segundo o POR, teria tido seu surgimento em uma conjuntura especfica das relaes entre o centro e a periferia do sistema capitalista internacional. Para os trotskistas do POR, num momento no qual as massas trabalhadoras dos pases semicoloniais da Amrica Latina ofereciam fortssima resistncia aos intentos do imperialismo americano e dos dirigentes colaboracionistas de conduzi-las defesa econmica e poltica do hemisfrio ocidental, a chamada burguesia nativa desses pases, aproveitando-se da debilidade geral do imperialismo, tentava reivindicar mais para si essa tarefa. Assim, em pases que j haviam conseguido um relativo desenvolvimento industrial, como Brasil, Argentina [e] Mxico, existiram, por parte das burguesias locais, desejos de independncia perante a estreita dominao do imperialismo, e estas esboariam mesmo uma certa resistncia contra ele. Desse modo, segundo o POR, as burguesias nativas pressionavam o imperialismo, que impedia deliberadamente o progresso industrial das naes submetidas a ele. 957 Numa percepo bastante semelhante, Theotnio dos Santos consideraria mais tarde que
entre as dcadas de 1920-1950 se tentou firmar uma burguesia nacional de base industrial na regio. Ela esteve na raiz do cardenismo, deu origem ao pensamento da CEPAL e a modelos ideolgicos bastante sofisticados, como o ISEB no Brasil. Ela influenciou vises mais pequeno- burguesas, como a Alianza Popular Revolucionaria Americana (a APRA peruana), que se apresentou sob vrias modalidades no resto da regio. Serviu de inspirao e apoio aos movimentos de tipo populista, de afirmao nacional democrtica, desde suas formas mais radicais, como a Revoluo Mexicana, em seus vrios desdobramentos sobretudo por intermdio do cardenismo , at figuras menos radicais, mais conservadoras, como Pern ou Vargas. 958
Analisando algumas particularidades do nacionalismo de Vargas, o POR acabou por aproximar sua interpretao das abordagens de Trotsky sobre os bonapartismos sui generis da Amrica Latina, diagnosticando a existncia de traos bonapartistas no nacionalismo- burgus brasileiro que gozaria de muita fora at o Golpe de 1964. Nas pginas de seu jornal
956 LEAL, Murilo. Op. cit., p. 50. 957 POR. O nacionalismo na Amrica Latina: comunistas ou fascistas? in Frente Operria, n. 1, novembro de 1952, p. 3. (AEL). Para o POR, em pases que no possuam ainda esse relativo desenvolvimento industrial, como Bolvia, Peru, Equador, Guatemala [e] Venezuela, a resistncia ao imperialismo se fazia atravs de movimentos particularmente das massas camponesas e pequeno-burguesas urbanas organizadas em seus partidos. Vale destacar ainda que, como veremos mais frente, o POR, em momento posterior, realizar uma interpretao da relao centro-periferia no capitalismo na qual percebe que pode haver desenvolvimento industrial nos pases latino-americanos submetidos ao imperialismo, e que esse desenvolvimento at mesmo estimulado por este ltimo. 958 SANTOS, Theotnio dos. A teoria da dependncia. Balano e perspectivas. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000, p. 91. 334
Frente Operria, os trotskista chegaram a usar eventualmente o conceito de bonapartismo para classificar o segundo governo Vargas. 959
Para a organizao trotskista, embora Getlio gozasse de um fantstico apoio de massas que lhe fornecia um poder de barganha frente aos Estados Unidos, ele no desfrutaria de tempo para fazer o que Pern fez na Argentina. Por isso, procura[va] manter a ordem interna atravs da represso. 960 Na viso do POR, o nacionalismo varguista seria mais moderado que o de Pern em funo de uma debilidade maior da industrializao brasileira face argentina, da no existncia de uma verdadeira unidade nacional e de um ainda considervel atraso no campo. Alm disso, Vargas, deposto em 1945, no teria podido, tal como Pern, se aproveitar da prosperidade econmica que se iniciou alguns anos depois do fim da Segunda Guerra. Em decorrncia dessas condies, Vargas no teria conseguido capitanear a ascenso das massas populares deste perodo, a qual acabou sendo aproveitada pelo PCB. Diferentemente de Pern, que conseguira controlar os sindicatos por intermdio da Confederacin General de los Trabajadores (CGT), Getlio, segundo o POR, no se sentia vontade para realizar grandes manobras, pois temia que o controle das mobilizaes escapasse de suas mos e casse nas dos comunistas. 961
Dadas essas condies, o POR, segundo Murilo Leal, compreendia que
a poltica de Vargas oscilava, combinando medidas nacionalistas e de cunho social e outras pr-imperialistas. Entre as primeiras figuravam a criao da Petrobrs, o projeto da Eletrobrs, o reajuste do salrio mnimo, a lei limitando a remessa de lucros, o projeto de reforma agrria e de congelamento de preos. Entre as segundas so apontadas: o acordo militar com os Estados Unidos, os apelos unio com a UDN [Unio Democrtica Nacional], a incluso de udenistas no ministrio e a demisso de Joo Goulart e Estillac Leal. Portanto, o nacionalismo de Vargas era considerado tmido e marcado por constantes concesses ao imperialismo. O resultado era um constante jogo da balana. Os ministrios expressariam uma luta perptua entre os homens da burguesia nacional e os da burguesia importadora e do imperialismo, pois Vargas tinha conscincia de sua debilidade e temia as massas, mais do que o imperialismo [...]. No tendo foras para exercer uma oposio consistente s presses imperialistas e de latifundirios, a frao de classe representada por Vargas buscava apoio nas massas para no ser ultrapassada. Quando era demasiadamente pressionado por baixo ou pela esquerda, Vargas pendia para a direita e aproximava-se do imperialismo. 962
A anlise das contradies do nacionalismo-burgus brasileiro do ps-guerra continuaria por parte do POR em suas elaboraes sobre os governos seguintes ao de Getlio Vargas. A partir dos anos 60, esse nacionalismo seria cada vez mais associado idia de bonapartismo.
959 LEAL. M. Op. cit., p. 169. 960 POR. O nacionalismo na Amrica Latina: comunistas ou fascistas? in Frente Operria, n. 1, novembro de 1952, apud LEAL, M. Op. cit., p. 50. 961 LEAL, M. Op. cit., p. 50-51. 962 Idem, p. 51-52. 335
Em agosto de 1961, no ms final da curta passagem de Jnio Quadros pela Presidncia da Repblica, o POR analisou que seu governo estaria marchando para o bonapartismo, e que este poder bonapartista seria dirigido fundamentalmente contra as massas, para cujas reivindicaes no tem soluo, e no contra as foras reacionrias que entravam a poltica de reformas. 963
Sob o governo de Joo Goulart (1961-1964), teriam um forte peso nas publicaes do POR as interpretaes referentes s vrias correntes dos nacionalismos burgus e pequeno- burgus encabeadas por figuras como Francisco Julio, Leonel Brizola e o prprio Jango. Se, como vimos, o governo de Vargas j havia sido algumas vezes denominado de bonapartista pelo POR, ao longo do governo Goulart o agrupamento trotskista vislumbrou no movimento nacionalista brasileiro a emergncia de alas bonapartistas dispostas a se apoiarem nas massas em um processo de enfrentamento com o imperialismo. 964 Seguindo as orientaes de Posadas, o POR associou a possvel emergncia de um bonapartismo de cunho nacionalista (nasserista) no Brasil natureza terceiro-mundista do pas. 965
Em meio s anlises das crises polticas que proliferavam, a idia de bonapartismo apareceria com mais freqncia. Segundo Murilo Leal, o POR, a partir da greve geral que derrubou Auro de Moura Andrade, 966 comeou a vislumbrar o surgimento de uma ala bonapartista de tipo nasserista no pas, 967 identificada por polticos como Jnio Quadros, San Tiago Dantas e o prprio presidente Joo Goulart. 968 Quando da crise gerada pela rebelio dos sargentos em setembro de 1963 (ocasionada pelo no reconhecimento por parte do Supremo Tribunal Federal da elegibilidade dos sargentos), 969 o POR realizou uma
963 POR. A Marcha para o autoritarismo e a forma de fechar-lhe o caminho in Frente Operria, n. 52, 1961, apud LEAL, M. Op. cit., p.113. 964 LEAL, M. Op. cit., p. 169-195. 965 LEAL, M. Op. cit., p. 173-174. 966 Quanto mobilizao dos trabalhadores que derrubou o primeiro-ministro Auro de Moura Andrade, ver MATTOS, Marcelo Badar. Trabalhadores e sindicatos no Brasil. Op. cit., p. 59, e MELO, Demian Bezerra de. O plebiscito de 1963: inflexo de foras na crise orgnica nos anos 60. (dissertao de mestrado). Niteri: PPGH/UFF, 2009 (ver, especialmente, cap. II). 967 Liderando o Grupo de Oficiais Livres, Abdel Gamal Nasser chegou ao poder no Egito em 23 de junho de 1953, por meio de um golpe de Estado. Marcado por polticas de cunho antiimperialista, o governo de Nasser tornou-se uma referncia para vrios segmentos da esquerda latino-americana (e do terceiro mundo em geral) que almejavam a constituio de regimes calcados em uma poltica-econmica de perfil nacionalista. 968 LEAL, M. Op. cit., p. 170. 969 A Constituio de 1946 no concedia aos praas de pr o direito de se candidatarem a cargos eletivos. No entanto, nas eleies de 1962, vrios sargentos elegeram-se, recorrendo imediatamente ao Supremo Tribunal Federal (STF) com o objetivo de assumirem seus postos no Poder Legislativo. No dia 11 de setembro, o STF decidiu pela inelegibilidade dos sargentos por sete votos a um. Como resposta, cerca de seiscentos sargentos, cabos e soldados rebelaram-se em Braslia contra a deciso judicial e ocuparam os ministrios da Marinha e da Justia, a Base Area e a rea Alfa da Marinha. O presidente em exerccio da Cmara dos Deputados, Clvis Mota, e o ministro do STF, Victor Nunes Leal, ficaram sob o poder dos insurgentes. O levante foi dominado poucas horas depois de iniciado. Joo Goulart afirmou que, em horas como aquelas, o governo seria sempre inflexvel na manuteno da ordem e na preservao das instituies, mas acabaria anistiando os revoltosos. Quanto a este episdio, ver, entre outras obras, VICTOR, Mrio. Cinco anos que abalaram o Brasil (de Jnio Quadros ao Marechal Castelo Branco). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1965, p. 451. 336
anlise em que enxergava uma acentuao dos traos bonapartistas do regime poltico vigente, e exps seu entendimento acerca do conceito:
Quando o poder da classe dominante no pode mais apoiar-se no domnio social e poltico, surge o fenmeno do bonapartismo, do nasserismo (...) o bonapartismo tende a substituir a autoridade direta da classe dominante que no existe mais por uma equipe que governa com aparente independncia, em meio [s] foras sociais em conflito. O bonapartismo serve ainda aos interesses da classe dominante, porm, no pode basear-se nela para governar (...). O bonapartismo substitui a burguesia no exerccio direto do poder, em princpio para preservar seus interesses histricos de classe, que ela no mais est em condies de gerir. Por isso o bonapartismo puxa foras do movimento de massas e pode faz-lo na medida em que este no tem direo revolucionria nem centro organizativo independente (...). Nesta ltima crise se reforaram as tendncias bonapartistas e nasseristas que esto esquerda de Goulart: Assis Brasil, [Pedro Paulo de Araujo] Suzano, [Almirante] Arago, [Osvino] Ferreira Alves e tambm, de certo modo, Brizola, Neiva Moreira etc. 970
No ambiente de crise gerada pela tentativa de implantao do estado de stio por Goulart em outubro de 1963, o POR detectou, novamente, a possibilidade crescente de ocorrncia de um golpe de Estado de tipo bonapartista no pas, desferido agora por parte de setores reformistas e nacionalistas da burguesia, e afirmou, de forma surpreendente, que no se colocaria contra esse possvel golpe de carter nasserista. 971
At o momento, nas pginas deste captulo, pudemos observar como as organizaes polticas trotskistas do perodo 1930-1964, mobilizando a teoria do bonapartismo, anteciparam em suas publicaes e documentos muitas das anlises e interpretaes sobre o carter da dominao burguesa no Brasil as quais seriam elaboradas nos anos 60, 70 e 80 por conhecidos intelectuais acadmicos. A julgar pelos j expostos contatos entre alguns destes intelectuais e algumas daquelas organizaes, podemos inferir que, muito provavelmente, o seu compartilhamento de caracterizaes bonapartistas sobre o Brasil populista no se tratou de mera coincidncia terico-analtica.
Um intermezzo para a polmica historiogrfica: o movimento de reviso do populismo (da valorizao das lutas operrias ao fetichismo do varguismo) Consagrada at o fim do sculo XX nos meios acadmicos e mesmo nos espaos polticos stricto sensu, a teoria marxista do populismo brasileiro, formulada a partir da dcada de 1960, possui e isso que esperamos ter demonstrado at aqui razes na teoria do bonapartismo, a qual, muitas vezes como foi visto acima , serviu de importante ferramenta analtica para os pequenos grupos trotskistas brasileiros do perodo 1930-1964.
970 POR. O sentido da crise atual in Frente Operria, n. 104, 1 quinzena de outubro de 1963, apud LEAL, M. Op. cit., p. 170-171. 971 POR. As tendncia atuais da situao in Frente Operria, n. 112, 12 de dezembro de 1963, apud LEAL. M. Op. cit., p. 173. 337
Com o andar da carruagem cientfica, porm, desde a dcada de 1990, a teoria proposta por Weffort e Ianni para dar conta do processo scio-poltico pelo qual o Brasil se transformou em uma sociedade urbano-industrial passou a ser alvo de crticas por parte de certos setores do pensamento historiogrfico. A partir dos anos 2000, com a adeso de outros autores, o teor das crticas se elevou. De l pra c, elas s fizeram se intensificar, ganhando cada vez mais adeptos entre as jovens geraes de pesquisadores no campo das cincias sociais. Olhando retrospectivamente, portanto, possvel percebemos o surgimento e o desenvolvimento de um expressivo movimento de reviso historiogrfica do chamado perodo populista da histria nacional. Buscando sintonizar nossa pesquisa com o estado darte de nosso objeto (ou pelo menos com parte considervel dele), procederemos neste item a um sucinto debate com esse movimento de reviso ou, mais precisamente, com suas duas correntes constituintes. Passemos ento a ele. Nos ltimos anos, os vocbulos populismo e populistas, em suas acepes mais liberais e vulgares, voltaram a ser utilizados em larga escala nos mass media brasileiros. Um tanto quanto indiscriminadamente, costumam ser empregados para se referir pejorativamente a quaisquer governos e governantes que, mais em termos retricos do que prticos, procuram se distanciar do dogma neoliberal e ousam questionar a infabilidade papal de Washington. Assim, Hugo Chvez, Evo Morales, Rafael Corra, Daniel Ortega, e at mesmo o ex- presidente Lus Incio Lula da Silva, so tachados sumariamente de populistas. De uma verborragia antiimperialista a um simples aumento do salrio mnimo, passando pela ampliao de programas assistencialistas focalizados, tudo visto como populismo pelos editores da grande imprensa. Com suas irascveis crticas s lideranas demaggicas que buscam sustentao poltico-social nas sempre perigosas massas populares, o vil jornalismo poltico da atualidade parece fantasticamente nos conduzir de volta s dcadas de 1950 e 1960. Tambm pela historiografia brasileira atual, a polarizao daquelas agitadas dcadas foi trazida tona novamente, como objeto de estudo. No plo oposto dos escribas miditicos de ontem e de hoje (embora dispondo de um significativo espao nos jornais e programas televisivos), alguns conhecidos historiadores levaram a cabo nas ltimas dcadas e o continuam fazendo um movimento de reabilitao historiogrfica do populismo brasileiro e de suas lideranas polticas. Esses pesquisadores opuseram-se, desse modo, tanto s concepes tericas formalistas e abertamente antipopulares, que condenaram o populismo por seu distanciamento da democracia liberal institucionalizada, quanto, principalmente, a uma historiografia marxista que vira naquele uma forma especfica de dominao poltica de classe num perodo de aceleradas urbanizao e industrializao do pas. 338
Buscando se diferenciar desses dois extremos interpretativos, os historiadores revisionistas 972 rejeitaram a prpria idia de populismo: se, antes disseram eles , o termo teria servido de acusao Vargas e outras lideranas polticas populares por parte das elites adeptas da excluso poltica das massas, depois, o mesmo teria ganhado um estatuto conceitual por meio das linhas de intelectuais marxistas que, desejosos de uma revoluo socialista nos moldes leninistas, voltaram suas baterias contra o varguismo (numa espcie de aliana tcita, ao nvel da teoria, com aquelas elites). Assim, no lugar do populismo, os revisionistas propuseram, j h algum tempo, o conceito de trabalhismo, o qual vem paulatinamente ganhando mais espao nas novas pesquisas histricas sobre o Brasil contemporneo. Tendo o conflito poltico do perodo populista reduzido a uma simples disputa entre trabalhistas e elites antipopulares, os historiadores revisionistas colocaram- se claramente ao lado dos primeiros. Prioritariamente, dirigiram suas crticas aos cientistas sociais marxistas que, nos anos 60 e 70 do sculo passado, teriam, menosprezado as diferenas entre ambas, construdo uma viso negativa do trabalhismo e batizando-o de populismo (Weffort, Ianni, Saes, Marini, Rgis Andrade, Dreifuss etc.). O movimento de reviso historiogrfica do populismo, entretanto, mais amplo e sofisticado do que sua corrente revisionista, congregando tambm, por exemplo, autores que, mais esquerda no plano terico-poltico, expuseram a existncia de inmeras e combativas lutas operrias entre 1930 e 1964, questionando, desse modo, a tese de um sindicalismo populista tal como fora proposta pelos formuladores marxistas do populismo, isto , a de um movimento sindical integralmente subsumido lgica estatal-populista. Embora significativamente distintos dos revisionistas, tambm esses historiadores, a nosso ver, deixaram se levar, de certa forma, pelo discurso dos atores polticos da poca; agora no mais pelo dos chefes de Estado e lideranas polticas populistas/trabalhistas, mas sim pelo dos dirigentes sindicais reformistas, ligados, em grande parte, ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Ao mesmo tempo em que iluminaram as antes obscurecidas mobilizaes operrias ocorridas sob o populismo, esses historiadores procuraram reabilitar tambm muitos daqueles que as dirigiram, e que o fizeram, em ltima anlise (e, s vezes, em primeira) por um vis de colaborao de classe, pautado pela lgica da cidadania. De certo modo, pode-se dizer que esses historiadores (revisores, mas no revisionistas) acabaram por reificar algumas
972 A alcunha de revisionistas (de longa tradio pejorativa nos debates marxistas) foi empregada pelo filsofo marxista Caio Navarro de Toledo para se referir aos historiadores que, a partir de 2004, comearam a defender mais abertamente uma reviso conservadora das interpretaes sobre o Golpe de 1964 (TOLEDO. Caio Navarro de. As falcias do revisionismo in Crtica Marxista, n. 19. Campinas, 2004, p. 27-48). Tomamos aqui o termo emprestado de Toledo, at porque, para alm do carter do debate que aqui propomos (de perspectiva similar ao realizado pelo filsofo marxista), muitos dos historiadores revisionistas do populismo por ns abordados so os justamente os mesmos responsveis pela tal reviso conservadora do Golpe de1964.
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formas rebaixadas de subjetividade apresentadas pelo proletariado brasileiro de ento. Terminologicamente vale antecipar , no chegaram a recusar o uso do conceito de populismo.
O conceito de populismo nas cordas do ringue historiogrfico: os dois campos da reviso em curso. Ao longo das dcadas de 1970 e 1980, a proposta analtica formulada por Weffort e Ianni acabaria por orientar inmeros trabalhos acadmicos sobre a classe trabalhadora brasileira e suas organizaes sindicais e polticas do perodo 1930-1964. 973 Iniciada em fins dos anos 70, a ascenso sindical e poltica da classe trabalhadora brasileira contribuiria para reforar a teoria do populismo nos ambientes de pesquisa social. Objeto de estudo de diversos cientistas sociais, o chamado novo sindicalismo, pelas prprias questes prticas que colocava (luta contra a legislao sindical corporativista, defesa da organizao sindical pela base etc.) funcionou como uma espcie de acicate para estudos historiogrficos sobre a classe trabalhadora no perodo pr-1930, visto como um momento no qual os trabalhadores ainda gozariam de uma autonomia organizativa, em contraste com a posterior tutela estatal sobre o movimento sindical (elemento central, como vimos, nas elaboraes sobre o populismo). 974
Se a precedncia dos estudos sobre o mundo do trabalho como pde ser visto at aqui coubera, em grande parte, aos socilogos e cientistas polticos, a partir da dcada de
973 A historiadora Virgnia Fontes afirma que a matriz explicativa oferecida por Weffort para a Revoluo de 1930 marco inicial do populismo , calcada na idia de crise de hegemonia, tornou-se preponderante nas cincias sociais do pas, figurando inclusive em livros didticos. FONTES, Virgnia. Que hegemonia? Peripcias de um conceito no Brasil in ____. Reflexes im-pertinentes. Histria e capitalismo contemporneo. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2005., p. 202. Vale ressalvar, contudo, que, nesse mesmo perodo (dcadas de 1970 e 1980), as temticas vinculadas ao movimento operrio da etapa 1930-1964 receberam tambm abordagens distintas das referendadas no conceito de populismo; possivelmente o caso mais exemplar seja o clssico trabalho supracitado do cientista poltico Luiz Werneck Vianna sobre a estrutura sindical brasileira (VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. Op. cit.) 974 Um dos primeiros trabalhos produzidos sob a inspirao do novo sindicalismo acerca dos primeiros passos da classe trabalhadora foi HARDMAN, Foot; LEONARDI, Victor. Histria da indstria e do Trabalho no Brasil. Das origens aos anos vinte. So Paulo: Global, 1982. Contudo, ainda nos anos 70, havia sido publicado o primeiro trabalho historiogrfico acerca da participao dos trabalhadores ao longo da Primeira Repblica: FAUSTO, Boris. Trabalho urbano e conflito social (1890-1920). So Paulo: Difel, 1976. Nos anos 80 e 90, muitos autores (adeptos ou no das teses weffortianas sobre o sindicalismo populista) se dedicaram investigao o novo sindicalismo. Entre outros trabalhos sobre o tema, citamos: MOISS, Jos lvaro. As estratgias do novo sindicalismo in Revista de cultura poltica, n. 5 e 6. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1981; ALMEIDA, Maria Hermnia Tavares de. O sindicalismo brasileiro entre a conservao e a mudana in Sociedade e poltica no Brasil ps-1964. 2 edio. So Paulo: Brasiliense, 1984; SADER, Eder. Quando novos personagens entram em cena. Experincias e lutas dos trabalhadores da grande So Paulo 1970-1980. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1988; RODRIGUES, Lencio Martins. As tendncias polticas na formao das centrais sindicais in BOITO Jr. Armando (org.) O sindicalismo brasileiro nos anos 80. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990 e ____. CUT: os militantes e a ideologia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990; BOITO Jr., Armando. Reforma e persistncia na estrutura sindical brasileira in ____. O sindicalismo brasileiro nos anos 80. Op. cit.; ANTUNES, Ricardo. A rebeldia do Trabalho. O confronto operrio no ABC Paulista: as greves de 1978-1980. 2 edio. Campinas; EdUNICAMP, 1992, e ____. O novo sindicalismo no Brasil (2 edio). Campinas: Pontes, 1995; MATTOS, Marcelo Badar. Novos e velhos sindicalismos no Rio de Janeiro (1955-1988). Niteri: Vcio de leitura, 1998. 340
1980, muitos historiadores finalmente lanaram-se nas investigaes sobre a histria da classe trabalhadora brasileira e suas lutas sindicais e polticas. Em um primeiro momento, as pesquisas concentraram-se temporalmente nos anos da Primeira Repblica, tomados, conforme dito no pargrafo anterior, como uma fase autnoma do movimento operrio. Com o avanar da dcada, o perodo republicano ps-1930, com destaque para o balizamento 1946-1964, passou a receber tambm ateno especial dos estudiosos. Iniciava-se, assim, aquilo que denominamos como um movimento de reviso historiogrfica do perodo populista da histria republicana brasileira. Como j antecipamos, tal movimento no dotado de homogeneidade analtica, terica e poltica, e nele podem ser entrevistos pelo menos dois grandes campos, dois diferentes caminhos interpretativos que por vezes se cruzam, verdade acerca das relaes entre Estado e classe trabalhadora durante o travejamento temporal 1930-1964. A trajetria de um destes campos remonta a 1988, quando a historiadora Angela de Castro Gomes publicou sua tese de doutoramento sob o ttulo de A inveno do trabalhismo, 975 provocando substantivas alteraes no curso dos debates referente ao perodo em questo. Teve lugar, ento, uma seqncia, ainda em andamento, de crticas forma como a relao entre poder estatal e trabalhadores no ps-1930 vinha sendo compreendida nos meios acadmicos dedicados ao tema, ainda fortemente influenciados pelas abordagens de Weffort e Ianni. Criticando o papel passivo, de objeto, supostamente conferido aos trabalhadores do perodo 1930-1964 pelas anlises ento vigentes, Gomes props a categoria de trabalhismo, inicialmente como uma rejeio implcita ao conceito de populismo. Segundo a autora, o termo populismo seria dotado de tom pejorativo e associado a uma relao de manipulao entre um Estado/sujeito e trabalhadores/objetos. Buscava-se, como a prpria autora depois salientaria, entender os mecanismos de interlocuo entre Estado e trabalhadores, procurando atribuir a estes ltimos um papel de sujeito que realiza escolhas segundo o horizonte de um campo de possibilidades. 976
De certa forma, Angela Gomes fez escola, e seguiram-se vrias pesquisas imbudas da misso de propor explicitamente uma substituio direta do conceito de populismo pelo de trabalhismo. Formava-se, assim, um dos campos e talvez o mais cool entre as novas geraes de historiadores e jornalistas polticos do referido movimento de reviso historiogrfica, campo esse que aqui denominamos de revisionista. Em trabalhos polmicos
975 GOMES, Angela de Castro. A inveno do trabalhismo. So Paulo: Vrtice, 1988. 976 GOMES, Angela de Castro. O populismo e as cincias sociais no Brasil: notas sobre a trajetria de um conceito in FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua histria. Debate e crtica. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001, p. 46. 341
datados de 2001, os historiadores Jorge Ferreira 977 e Daniel Aaro Reis Filho 978 realizaram anlises crticas concernentes categoria de populismo, colimando demonstrar sua total ineficcia como instrumental explicativo das relaes entre Estado e trabalhadores no perodo situado entre as ditaduras do Estado Novo e militar. O outro campo da reviso historiogrfica do populismo (j mencionado pouco acima) foi constitudo por sugestivas pesquisas produzidas na dcada de 1990 voltadas para o estudo das lutas operrias no ps-1930, em especial no ps-1945. Construdas a partir de slida anlise de fontes primrias pouco exploradas e conferindo um novo valor a entrevistas com militantes sindicais da poca, tais pesquisas lanaram luz sobre diversas experincias concretas dos trabalhadores no perodo, expondo sua capacidade mobilizatria e organizativa, assim como sua utilizao prpria da legislao trabalhista nos embates com o capital. Questionando historiograficamente a idia de uma adscrio total dos setores explorados ao Estado e aos polticos demaggicos, esses estudos opuseram-se s teses de Weffort e Ianni acerca de uma classe trabalhadora que, adormentada pela poltica de massas e represso estatais, teria, ao longo do populismo, se portado ideologicamente como massa, e no como classe. 979 Como parte integrante e expressiva deste campo, localizamos a existncia de uma importante corrente constituda por destacados intelectuais que, individual e coletivamente, realizaram pesquisas acadmicas vinculadas a determinados programas de ps-graduao da Universidade de Campinas (Unicamp SP).
977 FERREIRA, Jorge. O nome e a coisa: o populismo na poltica brasileira in ____(org). O populismo e sua histria. Debate e crtica. Op. cit., p. 59-124. 978 REIS FILHO, Daniel Aaro. O colapso do colapso do populismo ou a propsito de uma herana maldita in FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua histria. Op. cit., p. 319-377. 979 guisa de exemplo, citamos alguns trabalhos imbudos, em maior ou menor grau, dessa perspectiva: COSTA, Hlio da. Em busca da memria: comisso de fbrica, partido e sindicato no ps-guerra. So Paulo, Scritta, 1995; SILVA, Fernando Teixeira da. A carga e a culpa. Operrios das docas de Santos: direitos e cultura de solidariedade. 1937-1968. So Paulo, Hucitec/Pref. Municipal de Santos, 1995; ____. Direitos, poltica e trabalho no Porto de Santos in FORTES, Alexandre (e outros). Na luta por direitos. Campinas, EdUnicamp, 1999;____. Ns do Quarto Distrito: a classe trabalhadora porto-alegrense e a era Vargas. Caxias do Sul: Edusc/ Rio de Janeiro: Garamond, 2004; NEGRO, Antonio Luigi. Linhas de montagem. O industrialismo nacional-desenvolvimentista e a sindicalizao dos trabalhadores. So Paulo: Boitempo, 2004; FONTES, Paulo. Um Nordeste em So Paulo: trabalhadores migrantes em So Miguel Paulista (1945-1966). Rio de Janeiro: FGV, 2008; SILVA, Maria Carolina G. A greve dos teceles cariocas: partidos e sindicatos no Segundo Governo Vargas (dissertao de mestrado). Niteri, UFF, 1995; OLIVEIRA, Ana Lcia V. de Santa Cruz. Sindicato e sindicalismo bancrio. Rio de Janeiro, EDUR/SEEB-RJ, 1998. MATTOS, Marcelo Badar. Novos e velhos sindicalismos no Rio de Janeiro. Op. cit.; ABREU, Paulo Tenrio de. As greves no Rio de Janeiro (1955- 1964) (dissertao de mestrado). Niteri, UFF, 2001; ALMEIDA, Antonio de. Lutas, organizao coletiva e cotidiano. Cultura e poltica no ABC paulista. 1930-1980 (tese de doutorado). So Paulo, USP, 1996; VARUSSA, Rinaldo Jos. Trabalho e legislao: experincias de trabalhadores na Justia do Trabalho. So Paulo, PUC-SP, 2002; FRENCH, John D. O ABC dos operrios. Conflitos e alianas de classe em So Paulo, 1900-1950. So Paulo, Hucitec/Pref. Mun. De So Caetano do Sul, 1995 e ____. Afogados em leis. A CLT e a cultura poltica dos trabalhadores brasileiros. So Paulo: Perseu Abramo, 2001. Vale destacar que parte significativa dessa leva de trabalhos caracterizada tambm pelo recurso a interdisciplinaridade elemento, alis, marcante dos estudos sobre o mundo do trabalho no Brasil desde seus primrdios e o olhar enftico sobre vrias dimenses da vida social da classe trabalhadora, tais como cultura, moradia, cotidiano etc., at ento relegadas a segundo plano pela prtica historiogrfica. 342
No breve exerccio de debate historiogrfico que aqui propomos, faremos, primeiramente, um debate cientfico e fraternal com essa corrente composta pelos historiadores campineiros. Depois, finalmente, chegaremos ao debate, duro porquanto politicamente mais necessrio que o anterior, com a corrente revisionista.
Populismo e luta por direitos: a corrente historiogrfica da Unicamp Composta em grande parte por historiadores afeitos s contribuies da chamada histria social inglesa e ligados ao Partido dos Trabalhadores (PT), tal corrente rejeitou a afirmao da existncia de uma heteronomia da classe trabalhadora durante os anos 1930- 1964 e, adotando uma concepo mais elstica do conceito de conscincia de classe, de inspirao thompsoniana, tomou muitas das atitudes dos trabalhadores ocorridas nesse perodo como legtimas atitudes classistas. 980
Debruando-se sobre vasta documentao escrita e oral concernente vida sindical de diversas categorias profissionais a partir de meados da dcada de 1940, esses pesquisadores se depararam com uma srie de manifestaes dos trabalhadores que extrapolou os limites impostos s atividades da classe pela legislao corporativista que regia o funcionamento dos sindicatos. O cuidadoso trabalho feito com publicaes operrias, atas sindicais e depoimentos orais de ex-ativistas, entre outras fontes, acabou por dar luz presena, sob a vigncia do populismo, de atuantes comisses de fbricas e outras formas organizativas por local de trabalho, assim como a vrios movimentos paredistas que utilizaram, a seu modo e dentro das possibilidades reais, as controladas entidades sindicais. Graas a tais pesquisas, tomou-se conhecimento das astuciosas formas inventadas pelas bases sindicais para driblar os interventores estatais, como tambm dos muitos casos em que estas foram, na prtica, alm das intenes dos seus dirigentes e lderes de perfil colaboracionista. A coerente concluso de tal corrente historiogrfica de que se, por um lado, verdade que a tutela do Estado populista sobre as organizaes associativas de classe imps significativos limites s mobilizaes autnomas dos trabalhadores, por outro, pode-se assegurar que aquela no se erigiu em um insupervel bice para estas. Uma sntese dessa leitura alternativa sobre papel desempenhado pela classe trabalhadora sob o populismo encontra-se exposta, ente outros lugares, na concluso de uma das interessantes pesquisas de Hlio da Costa, expoente da corrente em questo:
980 Como componentes dessa corrente, destacamos os jovens historiadores Alexandre Fortes, Antonio Luigi Negro, Fernando Teixeira da Silva, Hlio da Costa e Paulo Fontes, todos estes orientados em seus doutorados realizados na Unicamp, formal ou informalmente, pelos historiadores Marco Aurlio Garcia e Michael Hall. Duas outras importantes influncias para o jovem grupo de historiadores campineiros so a sociloga Maria Clia Paoli (USP) e o historiador, tambm brasilianista norte-americano, John French (Duke University). 343
Tivemos acesso a vrias fbricas e oficinas, onde eles [os trabalhadores] faziam circular abaixo-assinados, elegiam comisses de representantes, organizavam greves, enfrentavam a represso. Entramos no recinto dos sindicatos e nos deparamos com suas dependncias lotadas em concorridas assemblias s vsperas de muitas greves. Em outros momentos fomos tomados por um clima tenso nos sindicatos, marcado pela represso, com interventores e policiais voltando cena. Os frequentes conflitos entre comunistas e ministerialistas pelas direes dos sindicatos tambm fizeram parte do seu cotidiano nessa dcada [1943-1953] [...]. Ao se apoderarem dos sindicatos, os ativistas utilizavam suas brechas legais contra as arbitrariedades patronais [...] Mesmo nos momentos mais difceis enfrentados pelo movimento sindical, como foi o caso do perodo 1947/1950, os seus ativistas conseguiram, mesmo sendo vitimados pela represso, encontrar subterfgios para manterem sua militncia [...]. Em suma, mesmo nos piores momentos, os trabalhadores tinham noo das regras do jogo e buscavam alter-las, embora conhecendo seus limites. importante atentarmos para este aspecto para entendermos a rejeio de boa parte dos ativistas sindicais a abandonarem os sindicatos oficiais como espao de militncia [...] As lutas travadas nesse perodo foram lutas profundamente enraizadas nos locais de trabalho e adquiriram, sempre que a conjuntura poltica permitiu, um carter de massa expressivo. Nesse sentido, a fbrica, as ruas e os sindicatos no foram espaos excludentes da luta operria. 981
Como se pode notar, tal perspectiva interpretativa sobre a dinmica sindical do perodo vai de encontro ao modelo de sindicalismo populista, no qual o movimento sindical aparece, como vimos, dotado de uma natureza eminentemente burocrtica, cupulista e colaboracionista, pois distante das demandas econmicas de suas bases, composto por estruturas verticalizadas (como as chamadas organizaes paralelas) e adepto de seu prprio atrelamento ao Estado. No mesmo exerccio crtico de verificao histrica, outro elemento constitutivo da teoria populista relativizado por autores como Hlio da Costa a assertiva de que a bem- sucedida manobra das massas populares pelo Estado isto , o desvio daquelas de seus reais interesses por parte deste teve no papel desempenhado pelas direes polticas da classe operria, com destaque para o PCB, um de seus principais pontos-de-apoio. Como foi visto, na tica de autores como Ianni e Weffort, a poltica comunista, pouco crtica estrutura sindical corporativista, enredada no projeto nacionalista de aliana de classes e marcada por prticas burocrticas, teria funcionado como uma importante engrenagem na prestidigitadora mquina populista. Por outro ngulo analtico, a historiografia operria da Unicamp buscou ressaltar a forte penetrao do PCB entre as mais diversas categorias de trabalhadores e valorizar o papel exercido por sua militncia no perodo 1930-1964. Em investigaes empricas, foram visualizados no desprezveis desencontros entre as deliberaes polticas oficiais da direo do PCB, mais moderadas, e a atuao concreta, por vezes mais combativa e radicalizada, dos comunistas junto ao cotidiano da classe trabalhadora.
No encontro com os trabalhadores nos seus locais de trabalho deparamo-nos com a presena marcante do Partido Comunista Brasileiro no cotidiano fabril e nas mobilizaes de massa desse perodo. O PCB era a grande novidade poltica. Era o partido da ordem e tranquilidade, da
981 COSTA, Hlio da. Em busca da memria: comisso de fbrica, partido e sindicato no ps-guerra. So Paulo, Scritta, 1995, p. 199-203. 344
Constituinte com Getlio, mas era simultaneamente o partido das ruas, das praas, das festas populares, dos bairros operrios, das fbricas e, enquanto organizao partidria, foi praticamente o nico a exercer forte seduo sobre a classe trabalhadora e a juventude. 982
Seguidas vezes encontramo-nos com o Partido Comunista Brasileiro nas nossas andanas pelas dcadas de 1940 e 1950, marcando sua presena nos locais de trabalho, nos sindicatos e nas ruas. O PCB foi, sem sombra de dvida, a corrente poltica de maior influncia no movimento operrio. Sua conduta, porm, foi marcada pela ambiguidade. Tentou sem sucesso ser o partido da ordem e, ao mesmo tempo, como partido que se propunha a representar os trabalhadores, no podia isolar-se das suas lutas. O resultado foi o constante desencontro entre a direo e a base do partido. 983
Em funo dessa ambiguidade, Hlio da Costa chegou at mesmo a propor a existncia de dois PCs no perodo em questo:
Afinal, o que foi o Partido Comunista Brasileiro nesse perodo? Uma confrontao da prtica desse partido com o movimento operrio mostrar que ele dela se separa e se funde ao mesmo tempo. Em outras palavras, o PCB no era um bloco monoltico em que sua prtica e o seu discurso se articulavam de forma coerente e harmoniosa todo o tempo. Havia dois PCs na realidade. Um PC mais ligado cpula do discurso oficial que apelava para as massas apertarem os cintos, buscando congelar suas demandas imediatas; e outro que convivia com um ativismo intenso nas bases do partido nos bairros, nas fbricas, colocando-se frente de muitas dessas reivindicaes consideradas temerrias pela direo do partido. 984
Fernando Teixeira da Silva, outro representante da corrente historiogrfica em tela, corroborando a viso acima, foi ainda mais longe em sua objeo s teses de Weffort e Ianni que realaram os equvocos cometidos pelos comunistas sob o populismo. Em um sinttico artigo, 985 resultante de sua pesquisa de flego sobre as lutas dos porturios de Santos (SP) entre 1937-1968, 986 Teixeira da Silva almejou reabilitar poltica e sindicalmente no s as lideranas comunistas da cidade, como tambm as petebistas (trabalhistas do PTB) as quais estiveram frente das entidades sindicais (como o Sindicato dos Operrios dos Servios Porturios de Santos Sosps) e intersindicais (como o Frum sindical de Debates FSD e a Unio dos Sindicatos da Orla Martima de Santos Usoms) que buscaram representar a categoria em suas demandas ao Estado e patronal:
As lideranas no formavam uma casta parte e os trabalhadores no constituam uma massa manipulada pelos compromissos polticos de seus dirigentes. Desde o ps-guerra, os xitos de comunistas e trabalhistas dependiam de seu enraizamento na experincia de classe; sua formao poltica podia estar to vinculada cultura porturia quanto partidria, e a atuao de muitos militantes intermedirios entre bases e cpulas foi fundamental para dar sustentao ao prestgio desfrutado pelo sindicalismo de inspirao nacionalista. Muitos dirigentes sindicais eram antes de mais nada operrios e no foram poucas as vezes que ignoraram ou deram as costas s orientaes de cpulas
982 COSTA. Hlio da. Em busca da memria... Op. cit., p. 6. 983 Idem, p. 199-200. 984 Idem, p. 8. A tese que prope a existncia de dois PCs durante certos momentos do perodo populista encontra-se tambm, com suas devidas particularidades, em trabalhos como MATTOS, M. Badar, Novos e velhos sindicalismos no Rio de Janeiro. Op. cit. e SANTANA, Marco Aurlio. Homens partidos. Comunistas e sindicatos no Brasil. So Paulo: Boitempo, 2001. 985 SILVA. Fernando Teixeira da. Direitos, poltica e trabalho no Porto de Santos. Op. cit. 986 SILVA, Fernando Teixeira da. A carga e a culpa... Op. cit. 345
partidrias para no se verem abandonados pelos trabalhadores, ou porque estavam de fato comprometidos com eles. 987
Assim, em termos gerais, pode-se dizer que essa linhagem analtica da participao dos trabalhadores no processo scio-poltico de 1930-1964 colocou em xeque no s a tese de um sindicalismo totalmente cooptado pelo Estado, como tambm questionou (ou pelo menos amainou) as duras crticas direcionadas ao PCB por parte da intelectualidade universitria de esquerda no ps-1964. Opondo-se, assim, noo de uma classe trabalhadora heternoma sob a vigncia do populismo, essa corrente historiogrfica promoveu um resgate das lutas operrias sob o populismo a partir de um registro terico-interpretativo que as tomou como lutas por direitos, como lutas dos trabalhadores pela cidadania. Pensamos que talvez resida nesse ltimo aspecto uma conexo entre uma reviso historiogrfica mais especfica, dedicada, como expusemos nas pginas anteriores, ao objeto do sindicalismo populista, e outra reviso historiogrfica de carter mais geral, voltada para um questionamento do modo como a dominao populista se encontra exposta nos trabalhos de Ianni e Weffort. Vejamos isso rapidamente. Segundo os historiadores em questo, a dominao do Estado populista sobre os setores sociais subalternos teria se dado, entre outros expedientes, por meio da criao e legitimao de uma ampla esfera pblica, de natureza eminentemente jurdica e ideolgica, que conferiu cidadania classe trabalhadora o que, alis, j havia sido destacado pelos prprios Weffort e Ianni, como vimos. Entretanto e aqui se encontra a inovao proposta por esta historiografia da Unicamp , ainda que montada com a finalidade de subordinar os trabalhadores ordem capitalista brasileira em remodelao, tal esfera acabaria por ter se tornado tambm um espao no qual aqueles, portando-se como cidados, lutaram combativamente pelos seus direitos por ela estipulados. 988 Fazendo uso prprio da legislao do Trabalho e dos direitos sociais concedidos pela poltica trabalhista, a classe trabalhadora, por inmeras vezes, os teria invocado no sentido de exigir, via Estado, o cumprimento e aplicao de seus dispositivos legais por parte dos relapsos industriais, comerciantes e demais segmentos da classe dominante. Nessas inmeras lutas travadas pelos trabalhadores-cidados enfatizam tais historiadores , o movimento sindical do perodo (o sindicalismo populista de Weffort) teria desempenhado um papel fundamental, alando pontes entre as reivindicaes operrias, muitas delas pautadas na prpria legislao
987 SILVA. Fernando Teixeira da. Direitos, poltica.... Op. cit., p. 72. Grifos nossos. 988 Pode ser interessante assinalarmos aqui, entretanto, que o prprio Octavio Ianni j havia dito que o populismo da burguesia no exatamente o populismo das massas assalariadas (IANNI, Octavio. A formao do Estado populista na Amrica Latina. Op. cit., p. 138.) 346
trabalhista vigente, e o poder estatal, supostamente responsvel por garantir que esta fosse obedecida risca pelo Capital. Observando as relaes, na dcada de 1950, entre os porturios santistas, seu sindicato (Sosps), a Companhia Docas de Santos a concessionria do governo federal para explorar e administrar o Porto da cidade e o Estado populista, Teixeira da Silva exprimiu com clareza a perspectiva acima apresentada:
Com efeito, nos anos 50, a sindicalizao atingiu 100% da categoria e a atuao petebista no Sosp foi fundamental para as primeiras conquistas mais slidas dos doqueiros, garantidas em convenes coletivas de trabalho que visavam civilizar a Companhia. 989 Diversas vezes, entrou em ao contra a empresa a poltica de relacionamento direto da direo do sindicato com o presidente da Repblica e o Ministrio do Trabalho. Na perspectiva de encontrar condies favorveis negociao e com o objetivo de criar um contrapeso ao desproporcional peso da Companhia, as relaes entre operrios e Estado assumem novo significado. A aspirao por direitos, a existncia de instituies como a Justia do Trabalho e a interveno pessoal de autoridades governamentais, e do prprio presidente da Repblica, tornaram-se instrumentos eficazes para subordinar o poder privado ao domnio da lei. Na tica dos trabalhadores, pelo fato de exercer, em ltima instncia, o controle da indstria porturia, o governo dispunha de mecanismos jurdicos e coercitivos potencialmente capazes de estabelecer a justia, obrigando a empresa a cumprir seus deveres, concedendo aos seus empregados o que lhes era de direito. Essa era a funo do poder central no que tange s expectativas e exigncias de justia por parte dos operrios. O sindicalismo de vis trabalhista foi, sem dvida, um instrumento eficaz para exprimir e materializar essa representao jurdico-poltica do poder, tornando-se um meio pelo qual dirigentes e comisses de trabalhadores podiam entrar em contato direto com as autoridades. 990
Em trechos citados anteriormente, pudemos perceber como seus autores procuraram explicitar a existncia de um movimento e lideranas sindicais (comunistas e trabalhistas) que, longe de terem sido completamente adormentados pelos instrumentos coercitivos, materiais e ideolgicos do Estado populista, empreenderam, por diversos meios e tticas (comisses de fbrica, sindicatos paralelos, sindicatos oficias etc.), importantes batalhas contra a dominao exercida por este. Como j apontamos, a idia de sindicalismo populista foi relativizada pelos historiadores campineiros a partir da refutao emprica de muitas das caractersticas negativas que a constituam tal como fora formulada pelos tericos do populismo. Na lgica expressa no trecho acima, porm, so alguns dos prprios instrumentos da dominao estatal, como o Ministrio do Trabalho e a Justia do Trabalho, que passam a ter sua natureza poltica relativizada, a partir da constatao de que, enquanto campos de negociaes, conflitos e disputas, teriam sido utilizados pelos trabalhadores em suas lutas cidads, nas quais eram ressignificadas noes como justia e direitos. Da crtica forma reducionista pela qual a intelectualidade acadmica marxista dos anos 60/70 abordou o sindicalismo brasileiro da etapa populista, nossos historiadores
989 Estranhamente, o ndice de 100% de sindicalizao aqui utilizado como uma evidncia do xito do sindicalismo petebista, quando, na verdade, com o chamado closed shopp, praticamente s trabalhava quem era sindicalizado, pouco importando qual era a direo do sindicato ou mesmo seu presidente. 990 Idem, p. 62. Grifos do autor. 347
thompsonianos chegaram, portanto, a uma reviso histrica referente s formas pelas quais se operavam as relaes de dominao entre Estado e trabalhadores no ps-1930. Buscou-se, assim, valorizar um papel ativo dos trabalhadores no mbito destas relaes, assinalando que muitos deles extraram do modelo populista os recursos necessrios s suas reivindicaes, lutas e ao fortalecimento de suas noes de dignidade e justia social. 991 A partir de suas prprias experincias e expectativas, os trabalhadores teriam se apropriado seletivamente de mensagens e discursos oficiais, operado deslocamentos em seus significados e propsitos originais. 992 Assim, muitos elementos e prticas da vida sindical populista que haviam sido tomadas, pela interpretao sociolgica clssica, como expresses da cooptao e manipulao dos trabalhadores pelo Estado varguista sofreram re-interpretaes que, de certo modo, os positivaram. Por conseguinte, uma estirpe de lideranas polticas e sindicais, dantes cupulista, colaboracionista e responsvel pelos descaminhos polticos de suas bases operrias, foi reconciliada com estas ltimas pelas linhas dos historiadores em questo, livrando-se, assim, de um longo antema bibliogrfico que a acompanhava. Mais uma vez, o trabalho de Fernando Teixeira da Silva sobre os porturios santistas exemplar dessa matriz interpretativa do populismo:
A experincia cotidianamente vivida nos locais de trabalho era o filtro pelo qual [os trabalhadores porturios] testavam a legitimidade de determinados princpios do iderio trabalhista. Ordenao jurdica da sociedade e legislao do Trabalho no foram meras amarras diluidoras de sua ao, mas um elemento formador de sua cultura e experincias que ameaavam romper e ultrapassar a lgica de interdependncia entre governo e trabalhadores [...] A explicao do perodo, baseada na tese do abandono das bases pelas lideranas sindicais, no est convincentemente demonstrada [...] A crtica ao cupulismo, longe de ter voltado sua ateno para as bases, nas quais depositava suas apostas, lanou suas luzes demasiadamente para o alto. Mas visto num plano mais baixo, onde tudo parecia mera subordinao, existiam experincias democrticas entre trabalhadores e lideranas. Havia tambm independncia em relao ao governo e exerccio de uma cidadania que estava longe de ser a simples emanao de um Estado cujo poder se fundamentaria em sua suposta capacidade de cooptar o movimento sindical. Este, por sua vez, no dependia simplesmente de uma bem arquitetada manobra no apertado espao das lutas palacianas, onde pretendiam disputar um lugar ao sol com outras foras polticas. Comunistas e trabalhistas no eram um elemento exterior aos porturios. Eles podiam ser lideranas tanto quanto os trabalhadores o permitissem, traando os limites de sua atuao. 993
Expandindo essa nova perspectiva analtica para alm do mbito sindical e militante, alguns desses historiadores tomaram como objeto as relaes eleitorais entre determinados
991 Idem, p. 80. 992 Idem. A tese que aponta a utilizao particular da legislao trabalhista por parte dos trabalhadores se encontra originalmente, e de modo ainda incipiente, em FRENCH, John D. O ABC dos operrios. Conflitos e alianas de classe em So Paulo, 1900-1950. Op. cit. Em um trabalho posterior, o historiador brasilianista a desenvolveria, explicitando-a mais e alargando o escopo espacial de sua aplicao: condenados a atuar no universo fraudulento criado pela CLT que era manipulada contra os trabalhadores , os militantes da classe trabalhadora e os sindicalistas, depois de 1943, subverteriam na prtica a lei existente por meio de uma luta para fazer da lei (como um ideal imaginrio) uma realidade (____. Afogados em leis. A CLT e a cultura poltica dos trabalhadores brasileiros. Op. cit., p.72). 993 SILVA. Fernando Teixeira da. Direitos, poltica.... Op. cit., p. 81. Grifo nosso. 348
contingentes populares e certos polticos populistas. Adriano Duarte e Paulo Fontes, por exemplo, investigando o enorme apoio prestado pelos habitantes dos bairros perifricos paulistanos Mooca e So Miguel Paulista aos polticos Adhemar de Barros e Jnio Quadros, tentaram compreend-lo por um caminho explicativo alternativo ao da manipulao e cooptao populistas. Mais uma vez, a tese da luta por direitos que embala tal anlise:
As relaes entre as classes populares, por meio das organizaes de bairro, com os polticos populistas, aqui especificados nas figuras de Jnio e Adhemar, esto muito longe de exprimir alguma idia de subordinao, inadequao, falsa conscincia ou atitudes pr-polticas. Ao contrrio, a constante referncia, por parte das classes populares, ao poder pblico como alvo e endereo de suas reivindicaes est diretamente ligada centralidade do seu papel na vida cotidiana do cidado comum em questes como o saneamento bsico, eletrificao, calamento, transporte e, consequentemente, na definio do que concebiam como direito qualidade de vida [...] Os polticos iam ao bairro buscar votos, apoio e reconhecimento; os moradores queriam a ajuda e a interveno de um poltico protetor que se colocasse como defensor do bairro e intermediasse junto aos rgos pblicos as suas demandas. E o instrumento dessa barganha foi o voto. Mas essa percepo popular da poltica era uma via de mo dupla. Ela resultava da percepo que tinham as classes populares de como eram vistos [sic] pelo poder pblico. 994
Na contramo da interpretao clssica quanto relao lder populista-massas populares, Duarte e Fontes concluem que a maneira destas ltimas de se relacionarem com o voto no seria nem equivocada, nem alienada. Ao contrrio, o ato da classe trabalhadora de sufragar nas cdulas eleitorais nomes conservadores como Jnio e Adhemar suporia uma clara noo de direitos. Por conta disso, seria preciso, segundo nossos historiadores, relativizar a idia de que nessa relao de troca no haja implcita uma noo de cidadania e representao. 995
Sem muito esforo, possvel observar nessa corrente historiogrfica uma significativa influncia da ideologia da cidadania que, de origem liberal e h muito presente no marxismo de linhagem social-democrata, foi abraada entusiasticamente por grande parte da intelligentsia petista em meados dos anos 80 e, sobretudo, a partir da dcada de 1990. A adoo de tal ideologia no implicou, entretanto, um abandono da totalidade dos instrumentais marxistas de anlise por parte dos historiadores em questo. Assim, ao se deter sobre as atividades sindicais e partidrias dos trabalhadores brasileiros durante o perodo populista, essa corrente historiogrfica ecleticamente amalgamou noes como luta de classes e cidadania, hegemonia e luta por direitos. Provavelmente, esse hibridismo terico esteja na raiz explicativa do fato de que esses historiadores ao mesmo tempo em que encetaram um indispensvel resgate das lutas operrias sob a dominao populista, o fizeram tomando-as, em tom laudatrio, como lutas por cidadania.
994 DUARTE, Adriano e FONTES, Paulo. O populismo visto da periferia: adhemarismo e janismo nos bairros da Mooca e So Miguel Paulista (1947-1953) in Cadernos AEL: Populismo e trabalhismo (v. 11, n. 20/21). Campinas: Unicamp/IFCH/AEL, 2004, p. 118-119. 995 Idem, p. 119. 349
Rejeitando, ainda que implicitamente, a velha disjuntiva marxista reforma x revoluo, assim como sua correlata leninista conscincia sindicalista x conscincia revolucionria, 996 nossos historiadores thompsonianos parecem ter apreendido estas lutas por direitos um tanto quanto acriticamente. Embora as tenham enxergado, corretamente, como inegveis expresses da conscincia de classe do proletariado brasileiro da poca, nossos historiadores, talvez presos a um certo empirismo, nos do a impresso de que, para eles, nenhum tipo de qualificao de cunho terico-poltico pode ser feita sobre aquela conscincia historicamente verificada (como por exemplo, consider-la como uma subjetividade aqum das possibilidades reais e dos interesses histricos de seus portadores). 997
O fato de que muitas dessas lutas estiveram, segundo os prprios historiadores, calcadas na legislao varguista e imersas no iderio trabalhista, no os leva a, ao menos, excogitar se a conscincia alcanada pelos trabalhadores quando destas no estaria ainda cingida ao universo poltico e ideolgico das classes dominantes brasileiras do perodo expressando, assim, uma forma de subjetividade heternoma (de massa, segundo Weffort e Ianni) ou, pelo menos, uma conscincia de classe atrasada, rebaixada. Consequentemente, no h espao na produo dessa corrente para o antigo questionamento, tambm de procedncia marxista, quanto aos limites polticos e histricos das lutas travadas pelos trabalhadores por dentro da ordem social capitalista, assuma essa ordem uma feio poltica democrtico-burguesa, bonapartista, ditatorial, reformista, populista etc. Por um vis historiogrfico social-democrata, as lutas impulsionadas pelos trabalhadores brasileiros por dentro da ordem capitalista de ento, a ordem populista, so, por essa corrente, demasiadamente valorizadas, tal como as lideranas sindicais e polticas que estiveram frente delas, e em nenhum momento tm lugar em seus trabalhos indagaes histricas como: por que a classe trabalhadora brasileira no foi capaz de travar um slido embate contra a dominao populista? Por que sua plataforma poltica se encontrou em grande parte limitada ao horizonte nacional-reformista? Quais foram os resultados, a mdio prazo, do fato de suas lutas terem se referendado nos instrumentos jurdicos e ideolgicos trabalhistas (ainda que conferindo a estes um significado prprio)? O que significava, em ltima anlise, o voto operrio em nomes como Jnio Quadros e Adhemar de Barros? Quais foram as consequncias polticas da eterna ttica, propugnada por muitos dos comprometidos dirigentes (pecebistas e petebistas), de colaborao com o Estado e os polticos progressistas? Qual a responsabilidade dessas direes pela facilidade com que as classes dominantes saram vitoriosas em 1964? Ou ainda, em nvel mais abstrato: o que
996 LNIN, V. Que Fazer? in ____. Obras escolhidas. So Paulo: Alfa-mega, 1982, v. I. 997 Essa positivao implcita da conscincia sindicalista/reformista dos trabalhadores brasileiros de ento poderia levar, em outros tempos, nossos historiadores thompsonianos a serem chamados tambm de bernsteinianos. Em outros tempos... 350
significa, historicamente, para a classe trabalhadora (seja ela brasileira, haitiana ou francesa), abdicar de uma luta contra a ordem capitalista, qualquer que seja esta? Por fim, no escusado explicitarmos aqui que, embora acabe por suavizar alguns dos expedientes da dominao populista sobre os trabalhadores (CLT, estrutura e burocracia sindicais, manipulao e manobra de massas, paternalismo, trabalhismo, assistencialismo social, eleitoralismo, ideologia da cidadania e da colaborao de classes, lideranas operrias colaboracionistas etc.), essa corrente historiogrfica no chega a negar a existncia desta dominao. Alis, a importante e eficaz luz lanada por seus membros sobre as vrias e diversificadas lutas populares ao longo do populismo j , por si s, uma evidncia de que a dominao de classe se fazia presente tanto no perodo quanto em suas obras. Essa perspectiva de interpretao do perodo 1930-1964, fundamentada em uma leitura de Thompson a partir da valorizao da cidadania, tem como consequncia terminolgica a recusa substituio do conceito de populismo pelo de trabalhismo, tal como prope o outro campo da reviso historiogrfica, o qual discutiremos a seguir. Segundo os historiadores campineiros, nessa troca conceitual se correria o risco de substituir o estigma pela apologia, 998 alm de que a nfase isolada no aspecto trabalhista das relaes polticas e sociais poderia obscurecer outras dimenses centrais da experincia dos trabalhadores existentes naquele perodo, como, por exemplo, a dimenso urbana. 999 Para esses historiadores, na medida em que dialoga com um contnuo fazer-se e refazer-se das classes populares, o conceito de populismo ainda daria conta de alguns aspectos da [sua] constituio histrica. 1000 Assim, ao invs de tom-lo [o populismo] como um fenmeno imposto de fora para dentro da classe, ou como uma ideologia, que implicaria a manipulao externa, seria adequado compreend-lo como um sistema poltico, isto , como uma conjugao complexa e sofistica de interesses e disputas entre atores desiguais, mas que no prescindia da reciprocidade e da negociao, na qual as classes populares estiveram presentes de forma decisiva. 1001
Como era gostoso o nosso populismo: a corrente revisionista fluminense Embora comungue algumas preferncias bibliogrficas com a corrente campineira, o outro campo da reviso historiogrfica do populismo encerra um contedo terico-poltico fundamentalmente distinto daquela. Com ampla audincia entre as jovens geraes de pesquisadores alrgicos ao marxismo, e gozando de certo prestgio entre os finrios
998 FORTES, Alexandre. Ns do Quarto Distrito: a classe trabalhadora porto-alegrense e a era Vargas. Op. cit., p. 438. 999 DUARTE, Adriano e FONTES, Paulo. Op. cit., p. 116 1000 Idem, p. 117. 1001 Idem. 351
comentaristas polticos dos mass media, o campo aqui alcunhado de revisionista tem como membros muitos cientistas polticos, socilogos e historiadores que, no obstante suas diferenas epistemolgicas e partidrias, difundem uma viso positivada do varguismo e das instituies polticas da etapa histrica 1930-1964, com nfase na democracia instituda pela Constituio de 1946. Fazendo as vezes de vanguarda acadmica desse campo indisfaravelmente conservador, encontra-se uma corrente composta por conhecidos historiadores da Universidade Federal Fluminense (UFF), a saber, os j referidos Daniel Aaro Reis Filho, Jorge Ferreira e ngela de Castro Gomes. O trabalho mais expressivo das posies historiogrficas dessa corrente revisionista fluminense a qual pode ser considerada como a verdadeira antpoda da teoria do populismo a supracitada coletnea O populismo e sua histria: debate e crtica, organizada por Ferreira e publicada em 2001. 1002 Trazendo outras contribuies temtica populista escritas por Maria Helena Capelatto, Regina Morel, Elina Pessanha, Luclia Neves Delgado, e mesmo pelos campineiros Hlio da Costa e Fernando Teixeira da Silva (cujos posicionamentos destoam visivelmente dos demais autores), a coletnea reserva um espao destacado para os artigos dos trs maiores expoentes da corrente. Em trabalhos de cortes espaciais distintos, mas com temporalidades e matriz terica similares, Angela de Castro Gomes 1003 e Jorge Ferreira 1004 realizaram balanos crticos do conceito de populismo, respectivamente, nas cincias sociais latino-americana e brasileira (em particular). Aps mencionarem as primeiras produes bibliogrficas sobre o tema, como as provenientes do Grupo de Itatiaia de 1952, do Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Poltica (IBESP) de 1953, e dos socilogos argentinos Gino Germani e Torcuato Di Tella, ambos os trabalhos desembocam nos textos de Ianni e Weffort, tomados (com razo) como os mais expressivos nos meios acadmicos nacionais e continentais. Daniel Aaro Reis Filho, em seu artigo O colapso do colapso do populismo ou A propsito de uma herana maldita, 1005
aps se deter superficialmente na radicalizao poltica s vsperas da derrubada de Jango, concentrou-se, assim como Ferreira e Gomes, na anlise e crtica spera s concepes de Ianni e Weffort. Detenhamo-nos, muito ligeiramente, sobre algumas das teses revisionistas contidas nestes trabalhos.
1002 FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua histria. Debate e crtica. Op. cit. 1003 GOMES, Angela de Castro. O populismo e as cincias sociais.... Op. cit. Esse artigo, publicado anteriormente em 1996 (Tempo. Revista do Departamento de Histria da Universidade Federal Fluminense, v. I, n. 2. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1996), recebeu a adio de um ps-escrito em sua verso contida na coletnea de 2001. 1004 FERREIRA, Jorge. O nome e a coisa.... Op. cit. 1005 REIS FILHO, Daniel Aaro. O colapso do colapso do populismo ou a propsito de uma herana maldita. Op. cit. 352
Procurando desenvolver as idias que alinhavara em sua pioneira Inveno do trabalhismo (1988), 1006 Angela de Castro Gomes, no artigo da coletnea em questo, argumentou que a noo de manipulao de massas utilizada por Weffort, embora fosse dotada de uma intrnseca ambiguidade (por expressar tanto uma forma de controle do Estado sobre as massas quanto uma forma de atendimento de suas reais demandas), 1007 teria (equivocadamente) apresentado
uma relao em que um dos termos concebido como forte e ativo, enquanto o outro fraco e passivo, no possuindo capacidade de impulso prpria por no estar organizado como classe. As massas ou os setores populares, no sendo concebidos como atores/sujeitos nesta relao poltica, mas sim como destinatrios/objetos a que se remetem as formulaes e polticas populistas, s poderiam mesmo ser manipulados ou cooptados (caso das lideranas), o que significa precipuamente, seno literalmente, enganados ou ao menos desviados de uma opo consciente. 1008
Consequentemente, para o trato historiogrfico das relaes entre Estado e trabalhadores no ps-1930, Angela Gomes props, desta vez explicitamente, a categoria de trabalhismo como substitutiva da de populismo. Na tica da historiadora, enquanto a idia de populismo traria a errnea compreenso de que os trabalhadores teriam sido manipulados e manobrados pelo Estado, o conceito de trabalhismo atribuiria aos primeiros um papel ativo, vale dizer, uma presena constante na interlocuo com o Estado, reconhecendo um dilogo entre atores com recursos de poder diferenciados mas igualmente capazes no s de se apropriar das propostas poltico-ideolgicas um do outro, como de rel- las. 1009
Seguindo o caminho interpretativo proposto por Gomes, o revisionista Jorge Ferreira elevou o volume da crtica aos tericos do populismo. Dispensando os cuidados e ressalvas da refinada historiadora que, como vimos, reconheceu, por exemplo, que noo weffortiana de manipulao de massas continha uma intrnseca ambigidade , Ferreira procurou negar por completo a teoria populista. Em O nome e a coisa: o populismo na poltica brasileira, 1010 o historiador a acusou de retratar de forma maniquesta 1011 o relacionamento entre a mquina estatal getulista e a classe trabalhadora que adentrava o cenrio poltico- institucional no ps-1930; para Ferreira, por terem se inspirado no conceito gramsciano de hegemonia, 1012 os estudos calcados na idia de populismo acabaram por tomar o Estado como uma entidade todo-poderosa, ao passo que os trabalhadores (ou, simplesmente, a
1006 GOMES, Angela de Castro. A inveno do trabalhismo. Op. cit. 1007 GOMES, Angela de Castro. O populismo e as cincias sociais.... Op. cit., p. 34. 1008 Idem, p.34-35. 1009 Idem, p. 46. 1010 FERREIRA, Jorge. O nome e a coisa.... Op. cit 1011 Idem, p. 95. 1012 Idem, p. 85. 353
sociedade, como por vezes escreve o historiador) teriam sido neles retratados apenas como pobres vtimas inermes:
Culpabilizar o Estado e vitimizar a sociedade, eis alguns dos fundamentos da noo de populismo [...] Como uma via de mo nica, de cima para baixo, luz do enfoque opressor e oprimido, o Estado, todo-poderoso, pela violncia fsica e ideolgica, domina e subjuga a sociedade, os trabalhadores em particular, surgindo, desse modo, uma relao destituda de interao e interlocuo entre as partes. O Estado, com um poder desmedido, total em algumas verses, transforma a sociedade em elemento passivo, inerte e vitimizado. Assim, no Brasil, em 1930, 1935 ou certamente 1937, os governantes, armados com variados dispositivos simblicos de dominao ideolgica, em alguns casos psicolgica, teriam tido a capacidade de manipular, por meio de imagens e representaes, as emoes e a sensibilidade das pessoas, dominando, inclusive, as suas mentes. 1013
A dbil colocao de Ferreira nos impele a alguns breves comentrios crticos. Primeiramente, por um simples critrio de honestidade intelectual, devemos ratificar que tanto Weffort como Ianni no fizeram uso da noo de manipulao de massas do modo como lhes seria depois atribudo por Ferreira. Ambos deixaram claro, em vrias passagens de seus trabalhos e Angela Gomes bem o percebeu , que a manipulao do Estado sobre os setores subalternos assentava-se, essencialmente, no atendimento por parte do primeiro a determinadas demandas sociais dos ltimos. De modo algum, tal manipulao foi por eles interpretada como um fenmeno de ordem meramente ideolgica, calcado simplesmente na eficcia demaggica das lideranas populistas. Em seu mais conhecido texto, Weffort foi explcito ao dizer que
a noo de manipulao, tanto quanto a de passividade popular, precisa ser relativizada, concretizada historicamente, para que possamos entender a significao real do populismo. A imagem, se no o conceito, mais adequada para entendermos as relaes entre massas urbanas e alguns grupos representados no Estado a de uma aliana (ttica) entre setores de diferentes classes sociais na qual evidentemente a hegemonia encontra-se sempre ao lado dos interesses vinculados s classes dominantes, mas torna-se impossvel de realizar-se sem o atendimento de algumas aspiraes bsicas das classes populares, entre as quais a reivindicao do emprego, de maiores possibilidades de consumo e de direito de participao nos assuntos do Estado. Aspiraes mnimas, por certo, mas decisivas na poltica de massas num pas como o Brasil. 1014
Em A formao do Estado populista na Amrica Latina, de 1975, Ianni tambm demonstrou nutrir a mesma preocupao de Weffort a respeito de possveis depreenses simplistas da noo de manipulao de massas. Dialogando com a incipiente bibliografia at ento existente sobre a temtica populista, o socilogo criticou justamente certas anlises que apresentavam as massas urbanas como um elemento passivo, manipulado de cima; para Ianni, tal entendimento expressaria uma contradio em termos, j que, na medida [em]
1013 Idem, p. 63-94 1014 WEFFORT, F. O populismo na poltica brasileira in ____. O populismo na poltica brasileira. Op. cit., p. 75-76. Grifos nossos. 354
que o populismo se funda na aliana de classes e este um contedo essencial do seu policlassismo deve haver algum tipo de barganha entre as classes da coalizo. 1015
Em segundo lugar, convm colocar que, ainda que tenha sido objeto de distintas apreenses, o conceito gramsciano de hegemonia cuja utilizao, segundo Ferreira, estaria na base de uma viso maquiavlica de Ianni e Weffort sobre as relaes entre Estado e sociedade no 1930-1964 diz respeito, segundo quase todos os intrpretes do marxista sardo, a uma forma particular de dominao poltico-social, na qual a classe ou frao de classe dirigente combinaria elementos de consenso e de coero no seu exerccio de direo da nao. 1016 Desse modo, no necessrio envidar muitos esforos para se perceber que a noo de hegemonia, ao menos no seu sentido gramsciano, nada tem a ver com a dicotomia Estado forte (culpado) x sociedade fraca (vtima), falsamente atribuda aos tericos do populismo. Ademais, nas elaboraes destes ltimos, em especial nas de Weffort e Ianni, a emergncia do populismo derivaria justamente de uma ausncia de hegemonia (crise de hegemonia), de sorte que o Estado de compromisso, forjado com a Revoluo de 1930, seria justamente uma soluo encontrada para a inexistncia de um grupo social hegemnico face dbcle da antiga hegemonia da oligarquia cafeicultora. Por conseguinte, a proposta interpretativa do Estado populista como um Estado de compromisso aproxima-se e isso o que demonstramos h pouco muito mais da idia marxista de regime bonapartista do que de um raciocnio de tipo weberiano que vislumbra uma submisso da sociedade a um Estado de natureza patrimonialista. Porm, o mais curioso da crtica de Ferreira que, aps adjudicar erroneamente teoria do populismo uma concepo maniquesta e antittica da relao entre Estado e sociedade, foi o prprio historiador quem, guiado, ele sim, pela lgica formal, acabou por adotar uma viso pueril sobre tal relao, conferindo-lhe, ao final, um sentido positivo. Tomando abstratamente conceitos como Estado e sociedade ignorando, assim, o carter de classe do primeiro decorrente do antagonismo estruturante da segunda Ferreira props uma interpretao histrica do Brasil ps-1930 na qual a relao entre ambos se encontraria equalizada, tendendo a uma harmonizao, e no mais oposio. maneira idealista, Ferreira procurou, desse modo, conciliar aquilo que a teoria do populismo teria, supostamente, separado. Na verdade, o historiador revisionista no faz mais do que, por intermdio de um balanceamento dos termos da relao (Estado sociedade), reafirmar a mesma matriz terica liberal que informa a tese de um Estado que subjuga a sociedade; a diferena que, no texto de Ferreira, a suposta subjugao deu lugar a uma espcie de cumplicidade harmnica.
1015 IANNI, Octavio. A formao do Estado populista na Amrica Latina. Op. cit., p. 42-43. 1016 No custa lembrar que a dosagem de cada um desses componentes na frmula da hegemonia objeto de polmicas dentro do campo gramsciano (como pudemos ver na Introduo primeira parte deste trabalho). 355
De uma forma ou de outra, opostos ou no, aliados ou adversrios, Estado e sociedade no parecem estar, na anlise do autor, atravessados pela luta de classes:
Na poca do primeiro governo Vargas, muitas foram as denncias deste tipo [muitos teriam escrito cartas a Vargas, ao Dops ou polcia denunciando os opositores do regime porque se encontravam atemorizados, ou aterrorizados, com as supostas ameaas dos inimigos, reais ou fictcios, ao governo e, portanto, ordem social], e, hoje, facilmente as encontramos no Arquivo Nacional ou nos arquivos do Dops. So delaes de que o vizinho era integralista ou comunista; as famlias alems no falavam portugus; o comerciante da esquina estocava alimentos; o fulano era um conhecido agiota. Todas as denncias eram seguidas de nomes e endereos. Supor que as pessoas delatavam as outras por presses simblicas do Estado ter como premissa que a sociedade, em seu estado normal, seria boa, mas, ao ser corrompida moralmente pelos governantes do Estado Novo, ter-se-ia transformado em um bando de delatores. Mais difcil, repito, compreender que a sociedade, em si mesma, no era to boa e isenta de culpas, e que nela circulavam preconceitos contra judeus; manifestavam-se rancores contra alemes e japoneses, sobretudo durante a Segunda Guerra Mundial; existiam pessoas com horror dos comunistas ou dos integralistas; encontravam-se alguns que queriam punir o comerciante da esquina desmedido em seus lucros; havia outras que desejavam livrar-se das dvidas com o agiota e, em alguns casos, do prprio marido. Se havia uma ditadura que se mostrava disposta a ajud-las, o caminho ficava mais fcil. Em outras palavras, as relaes entre Estado e sociedade no eram de mo nica, de cima pra baixo, mas, sim, de interlocuo, de cumplicidade. 1017
Assim, tratados pelo historiador como categorias estanques, Estado e sociedade teriam, sob a ditadura estadonovista, compartilhado a maldade humana, antes supostamente vista como um apangio exclusivo do Estado. Com efeito, distante das linhas de Ferreira est a idia de que o Estado, grosso modo, posta-se como o representante de uma ou mais partes da sociedade contra outras partes dessa mesma sociedade e que, portanto, no h, seno para a velha filosofia idealista burguesa, uma relao entre a sociedade in totum e o Estado. O mesmo tipo de raciocnio liberal pode ser encontrado nas anlises de Daniel Aaro Reis Filho sobre os buliosos momentos finais do governo Goulart, quando a sociedade, segundo o historiador, foi chamada a decidir se queria, ou no, e de que forma, as to propaladas reformas [de base]. 1018
Deixando transparecer suas preferncias polticas no tempo passado (e talvez tambm no tempo presente), os historiadores revisionistas finalmente apontaram aquele que teria sido o elemento mediador/conciliador entre Estado e sociedade: a tradio trabalhista.
Talvez seja o caso de falar um pouco desta tradio, uma vez que impregna, embora largamente rejeitada, a histria do pas a partir dos anos 40. Constituiu-se no quadro do processo de urbanizao e de industrializao, e se caracterizava por um programa nacionalista, estatista e popular. Autonomia no quadro das relaes internacionais, com a definio do que ento se chamava uma poltica externa independente. Estado intervencionista no campo econmico, regulador, desenvolvimentista. Redes de proteo para os trabalhadores: institutos de aposentadorias e penses, sindicatos assistencialistas, justia do trabalho, em cuja administrao as lideranas sindicais participavam ativamente: uma cornucpia. Sem contar as empresas diretamente controladas pelo Estado, as estatais, com seus generosos planos de carreira, financiamentos especficos e proteo contra o desemprego [...]
1017 FERREIRA, Jorge. O nome e a coisa.... Op. cit., p. 94-95. 1018 REIS FILHO, Daniel Aaro. O colapso do colapso do populismo ou a propsito de uma herana maldita. Op. cit., p. 340. 356
s vsperas da instaurao da ditadura, em maro de 1964, [a tradio trabalhista] adquirira j uma identidade relativamente consolidada, carregando, nos centros urbanos, boa parte dos votos dos trabalhadores assalariados. E aparecia na liderana das lutas nacionalistas (contra o capital estrangeiro, por uma lei rigorosa sobre remessa de lucros para o exterior, pela afirmao do poder e da cultura nacionais), pela distribuio de renda (aumentos salariais, reforma tributria) e de poder (voto para os analfabetos e para os graduados das foras armadas, controle sobre o poder econmico nas eleies etc.) 1019
Se, para Daniel Aaro Reis Filho, o trabalhismo foi visto como esse cabedal de direitos dos assalariados, como essa fonte abundante de benefcios sociais (uma cornucpia!!!) que tal como a burocracia prussiana para o velho Hegel teria permitido uma harmonizao entre Estado e sociedade, Jorge Ferreira, por sua vez, no ficou atrs em sua nostalgia do varguismo, ao considerar que embora diversificado e apropriado por organizaes da sociedade civil, o trabalhismo orientou-se por um eixo, por uma estrutura dorsal nacionalista, distributivista e desenvolvimentista, permitindo a construo de um projeto para o pas, marcado por forte solidariedade. 1020 Afastando-se de qualquer tradio terica embasada na crtica social, e obliterando a dimenso do conflito de classes na arena histrica, Ferreira chegou a promover, via trabalhismo, uma identificao quase completa entre Estado e trabalhadores (os quais, por vezes repetimos , aparecem como sinnimo de sociedade e vice-versa):
Houve, decerto, a interveno estatal, insisto. Sobretudo a partir de 1942, a formulao do projeto trabalhista pelo Estado contribuiu, de maneira decisiva, para configurar uma identidade coletiva da classe trabalhadora. Mas, em qualquer experincia histrica, os assalariados sofrem influncias dos contextos sociais, polticos e ideolgicos em que vivem. No caso brasileiro, como em outros, tratou-se de uma relao, em que as partes, Estado e classe trabalhadora, identificaram interesses em comum. No trabalhismo, estavam presentes idias, crenas, valores e cdigos comportamentais que circulavam entre os prprios trabalhadores muito antes de 1930. Compreendido como um conjunto de experincias polticas, econmicas e sociais, ideolgicas e culturais, o trabalhismo expressou uma conscincia de classe, legtima porque histrica. 1021
O trecho acima talvez possa ser considerado a fina flor do pensamento revisionista, uma espcie de sntese dessa indisfarada apologia da Era Vargas. Em um verdadeiro devaneio keynesiano, proposta a idia de que, sob o trabalhismo, Estado e trabalhadores identificaram interesses em comum. A nosso ver, a assero de que, em um significativo espao de tempo como o perodo populista (1930-1964) e no em um ou outro momento episdico, como uma guerra, uma catstrofe natural etc.
1019 Idem, p. 345-346. 1020 FERREIRA, Jorge. Introduo in ____. (org.). O populismo e sua histria. Debate e crtica. Op. cit., p. 14-15. 1021 FERREIRA, Jorge. O nome e a coisa. Op. cit., p. 103. Grifo do autor. Segundo o perspicaz historiador Wesley Carvalho, a lgica que embala o raciocnio de Ferreira exposto acima poderia nos conduzir seguinte [e perigosa] concluso: Se histrico tambm foi o nazismo, e o foi como um conjunto de experincias polticas, econmicas, sociais, ideolgicas e culturais, ele expressaria, portanto, [tambm] uma conscincia de classe legtima. (CARVALHO, Wesley. Sade e poltica no Rio de Janeiro de Pedro Ernesto (1931-1936) (dissertao de mestrado). Niteri, PPGH, 2012, p. 52 [nota 121]). 357
pode ter havido uma comunho de interesses entre o proletariado e a mquina estatal capitalista um tanto quanto absurda, no requerendo sequer uma crtica mais elaborada aqui. Igualmente inconsistente terica e historicamente, a ousada interpretao do trabalhismo como uma legtima expresso da conscincia de classe dos trabalhadores brasileiros expe um distanciamento/oposio do autor em relao a toda uma tradio marxista dedicada temtica da subjetividade poltica dos estratos subalternos. Reparemos que j no se trata, como no caso dos historiadores campineiros, de uma valorizao acrtica das formas rebaixadas de subjetividade dos trabalhadores (conscincia sindicalista, reformista etc.) verificadas no perodo populista: agora, o trabalhismo getulista, uma ideologia poltico-social gestada pela cpula dirigente do Estado brasileiro e isso os prprios revisionistas reconhecem que apontada como uma verdadeira, legtima e inquestionvel conscincia de classe do proletariado nacional (!!!) O que se encontra subjacente nessa identificao entre trabalhismo e conscincia de classe proposta por Jorge Ferreira (e, mais discretamente, pelos demais revisionistas) uma perspectiva terica conhecida como marxismo analtico (tambm chamada de marxismo da escolha racional), desenvolvida por autores como Adam Przeworski e Jon Elster. Ecleticamente fundindo uma sociologia marxista das classes sociais com a categoria weberiana de ao racional, esse amlgama terico contm ainda, sub-repticiamente, alguns preceitos vulgares da economia poltica neoclssica utilitarista (como o do homo economicus que j se fazia presente, alis, na economia burguesa clssica , cujas aes buscariam maximizar lucros e minimizar prejuzos); dessa forma, o marxismo analtico simplesmente descarta a noo marxiana de ideologia, a nosso ver, indispensvel para o entendimento das relaes entre as classes dominantes e dominadas, particularmente no que diz respeito sustentao social que as ltimas (salvo nas situaes excepcionais, revolucionrias) oferecem aos regimes polticos das primeiras. 1022
Com o fito de combater a idia da manipulao das massas propugnada por Weffort e Ianni, os revisionistas esgrimiram, assim, o argumento de que se as massas populares apoiaram, por vrias vezes, as lideranas polticas do regime varguista, foi nica e exclusivamente porque elas assim o quiseram ou, continuando o silogismo antidialtico, foi
1022 Uma crtica ao marxismo analtico pode ser encontrada em BENSAID, Daniel. Marx, o intempestivo. Op. cit., p. 62-103. Quanto sua adoo por parte dos autores revisionistas, vale mencionar a influncia recebida da obra de Argelina Figueiredo, Democracia ou reformas? Alternativas democrticas crise poltica: 1961-1964 (So Paulo: Paz e Terra, 1993), que introduziu no Brasil a vertente terica em questo. Assim como nos trabalhos dos revisionistas do populismo, h na obra de Argelina Figueiredo um forte teor antimarxista, que a leva a responsabilizar a esquerda brasileira pelo fim do regime democrtico (1946-1964). Uma interessante crtica perspectiva interpretativa de Figueredo acerca do Golpe de 1964 (assim como a outros autores que a seguiram, como os prprios Daniel Aaro Reis Filho e Jorge Ferreira) pode ser encontrada em MELO, Demian. A misria da historiografia in Outubro, n. 14. So Paulo: Alameda, 2006, p. 111-130, e em TOLEDO. Caio Navarro de. As falcias do revisionismo. Op. cit. 358
porque os chefes trabalhistas e afins eram, de fato, representantes das vontades populares mais intensamente sentidas. Apresentado como uma simples opo racional dos trabalhadores brasileiros, o engenhoso trabalhismo construdo por Vargas, Marcondes Filho e cia., fundamental na estrutura populista de dominao poltica sobre os trabalhadores, foi simplesmente positivado pela historiografia revisionista. Como bem afirmou Marcelo Badar Mattos, a crtica ao conceito de populismo proposta por essa historiografia acabou por enredar-se na mesma polarizao poltica da poca, embora no plo oposto, ao defender abertamente os argumentos usados pelos acusados de populistas, ou seja, de que na verdade eram legtimas lideranas populares e progressistas, acusados por uma elite conservadora que no se conformava com a entrada na cena poltica dos trabalhadores. 1023
Sob um registro terico que diz conceber os trabalhadores brasileiros como sujeitos de sua prpria histria, escamoteia-se nestes trabalhos revisionistas uma perspectiva analtica profundamente conservadora, a qual tem como precpuo objetivo historiogrfico-poltico (ou talvez poltico-historiogrfico) promover uma positivao das formas populistas de dominao de classe. Trata-se, na verdade, de uma defesa populista do populismo ou, se quisermos, de uma defesa bonapartista do bonapartismo. Jogando com as palavras do prprio Ferreira, poderamos dizer ainda que os revisionistas reivindicam a coisa (populismo), embora rejeitem seu nome (populismo).
Historiadores, poltica, passado e presente: uma indagao guisa de concluso Tem sido muito comum entre os membros e adeptos desta ltima corrente analisada, a revisionista, relacionar a concepo clssica (marxista) do conceito de populismo s trajetrias polticas de seus principais formuladores. Segundo essa proposta associativa entre poltica e teoria, intelectuais como Ianni e Weffort, por terem se situado em um plano terico- poltico esquerda do PCB nos anos 60/70, teriam atribudo ao partido uma exagerada responsabilidade pelo desfecho trgico de 1964, ao mesmo tempo em que acabaram por estigmatizar a forma como a classe trabalhadora portou-se face ao Estado e s classes dominantes no perodo 1930-1964. Assim, o prprio conceito de populismo, segundo os revisionistas, no passaria, como j dissemos, de uma inveno de cunho pejorativo, fruto de uma ampla aliana ideolgica contra o trabalhismo, a qual incluiria desde os tericos do populismo, que denunciavam a manipulao dos trabalhadores pelo varguismo e seus colaboradores (com nfase no PCB), at a direita tradicional brasileira e seus idelogos, sempre hostis participao dos setores
1023 MATTOS, Marcelo Badar (coord.) [et. al.] Greves e represso policial ao sindicalismo carioca (1945- 1964). Rio de Janeiro: APERJ/FAPERJ, 2003, p. 28-29. 359
populares na cena poltica nacional. Para os revisionistas, esboada nas dcadas de 1940 e 1950 (a partir da juno de jornalistas liberais, adversrios da poltica social varguista e at mesmo de intelectuais isebianos, responsveis pelas primeiras elaboraes sobre o populismo),
foi nos anos 60, sobretudo a partir de 1963, que a aliana se ampliou enormemente. Alm da imprensa e de novos socilogos, agora nas universidades, agregaram-se os militares golpistas, a direita civil, a Igreja, os capitalistas, as classes mdias conservadoras e os crentes da ortodoxia marxista- leninista. Todos, no dizer de Daniel Aaro Reis Filho, tinham as contas a ajustar com o grande inimigo: o trabalhismo. E to liquidado o queriam, que o defunto sequer teve o direito de levar seu prprio nome ao tmulo: batizado pela sociologia paulista, foi como populismo que desceu aos sete palmos da terra. E, assim, seria ensinado s novas geraes, nas escolas, nos quartis e nas organizaes polticas. E, como diz o autor, temos as contas acertadas. 1024
Tambm segundo esse raciocnio, em fins dos anos 70, a adeso ideolgica dos principais tericos do populismo ao novo sindicalismo e ao (ainda em construo) Partido dos Trabalhadores, ento adversrios do PCB no interior do processo de reorganizao da esquerda brasileira, os teria levado a intensificar suas crticas atuao dos comunistas no pr-1964. Assim, os balanos negativos feitos por Ianni e (principalmente) Weffort sobre o velho sindicalismo (sindicalismo populista) e o papel nele desempenhado pelo PCB no passariam, segundo a lgica revisionista, de vises e discursos sobre o passado motivados pelas opes poltico-ideolgicas de seus autores no tempo presente:
No estudar os fundamentos histricos e sociais deste processo [1945-64], e a pretexto de que sofreu uma derrota poltica tentar definir e demonizar bodes expiatrios, distorcer referncias, invertendo sinais e mudando nomes, pavimentar o caminho para novas e graves derrotas. As esquerdas autodenominadas revolucionrias, nos anos 60, enveredaram por este caminho. Olhando para o futuro, eliminaram o passado. Figurando-se como marco zero, desprezaram experincias e tradies e deram um salto uma fuga para frente. Tambm por este motivo foram destrudas. O Partido dos Trabalhadores, o PT, e muitos de seus intelectuais entre os quais figurou, em certo momento, F. Weffort, e entre os quais est ainda a maioria dos autores que trabalham com a teoria populista fizeram opo semelhante. Antes, pela revoluo. Agora, pela democracia. Sempre, um novo marco zero. 1025
Com efeito, conforme ns mesmos afirmamos logo nos primeiros pargrafos sobre a teoria do populismo, existiu uma relao entre seu surgimento/desenvolvimento e os contextos histricos nos quais seus elaboradores estiveram envolvidos. Portanto, em nosso entendimento, as opes polticas de intelectuais como Ianni e Weffort nos anos 60 e 70 certamente guardam uma relao com seus escritos sobre a histria do movimento operrio e sindical brasileiro do ps-1930. No h neutralidade cientfica. No somos positivistas.
1024 FERREIRA, Jorge. O nome e a coisa. Op. cit., p. 121. Grifo do autor. 1025 REIS FILHO, Daniel Aaro. Op. cit., p. 374-375. Grifo do autor. 360
Porm, consideramos profundamente equivocado reduzir as profcuas anlises desses cientistas sociais sobre o complexo populismo brasileiro a uma espcie de construo ideolgica determinada ou, como querem os revisionistas, comprometida nica e exclusivamente por suas preferncias programticas no ento tempo presente. Para alm de seus alinhamentos poltico-partidrios antes e depois do Golpe de 1964 (e, em particular, durante os anos da transio da ditadura ao regime democrtico-liberal), e a despeito de seus ulteriores (e opostos) posicionamentos polticos, 1026 os tericos marxistas do populismo trouxeram tona em seus trabalhos, como pudemos ver, aspectos fundamentais para a compreenso do processo scio-poltico brasileiro ocorrido entre 1930-1964. Dialogando com as linhas interpretativas ento em voga, articulando distintas temporalidades (duraes), diferentes nveis de anlise, e coadunando elementos estruturais e conjunturais (assim como internacionais e nacionais), Ianni e Weffort propuseram interpretaes que, a nosso ver, mostraram-se exitosas em captar os principais eixos daquele movimento histrico pelo qual o Brasil se tornou uma sociedade urbano-industrial e politicamente de massas. Indubitavelmente, essas interpretaes at mesmo pelo seu escopo e porte continham falhas e lacunas: enquanto alguns historiadores tentaram (tentam) corrigi-las e supri-las (respectivamente), outros, sectariamente, optaram (optam) por simplesmente rejeitar todo o conjunto da obra, lanando-lhe a pecha de ideolgica. Entretanto, se esse ltimo procedimento, como dissemos, se mostra equivocado e reducionista, o exerccio de buscar, no presente, as razes sociais para as elaboraes cientficas sobre o passado nos parece, em si, bastante sugestivo. Assim, poderamos, por exemplo, sugerir um vnculo entre a reabilitao historiogrfica das prticas sindicais comunistas sob o populismo, promovida pelos historiadores campineiros, e a orgnica participao de alguns destes nas fileiras do PT ao longo das dcadas de 1990 e 2000 (quando justamente a colaborao de classes e a concertao social afirmavam-se como linhas- mestras do sindicalismo petista). Tal sugesto frisamos no poderia, entretanto, reduzir as competentes pesquisas histricas campineiras s opes polticas de seus autores. Desse modo, talvez valha a pena, ento, aplicar esse mesmo exerccio tambm queles que propuseram o enterro, sem exquias, da teoria do populismo. Chegamos, assim, a uma indagao que finaliza este item: Haveria alguma relao entre a defesa do trabalhismo e de seus chefes, efetuada pelo movimento historiogrfico revisionista, e os atuais
1026 Enquanto Octavio Ianni manteve-se numa postura crtica ao capitalismo at o final de sua vida (2004), Francisco Weffort promoveu uma brusca inflexo em sua trajetria poltica. Ainda que cada vez mais moderado, o cientista poltico manteve-se, at a metade da dcada de 1990, ligado esquerda, ocupando uma posio de destaque no interior do PT. Entretanto, quando da vitria eleitoral de Fernando Henrique Cardoso sobre Lus Incio Lula da Silva no pleito presidencial de 1994, Weffort, que havia sido um dos organizadores da campanha do candidato petista, aceitou, surpreendentemente, o convite do vitorioso para estar frente do Ministrio da Cultura, ocupando assim o cargo de ministro durante todos os dois mandatos de FHC (1995-2002). 361
posicionamentos pblicos de alguns dos seus principais expoentes diante de questes da vida poltica, sindical e universitria brasileira?
O bonapartismo ps-populista: o Golpe de 1964 e a ditadura militar guisa de encerramento deste longo terceiro captulo, gostaramos rapidamente de registrar que, da parte da intelectualidade acadmica brasileira, a utilizao (implcita ou explcita) da teoria do bonapartismo como instrumental analtico do processo poltico nacional no se limitou s abordagens concernentes ao perodo 1930-1964. O golpe de Estado assestado pela burguesia brasileira em 1964, assim como a ditadura militar antipopulista dele originada (1964-1985), tambm foram objetos histrico-polticos interpretados por alguns intelectuais universitrios a partir da noo de uma autonomia relativa do Estado diante das fraes da classe dominante. o caso, por exemplo, do cientista poltico Carlos Estevam Martins tambm membro da corrente intelectual antidualista em seu Capitalismo de Estado e modelo poltico no Brasil (publicado em 1977), 1027 cuja definio apresentada sobre o regime militar brasileiro iria se fazer presente em trabalhos posteriores, tais como os escritos por Ricardo Antunes e Jos Welmovicki. 1028
Remontando s elaboraes gramscianas sobre hegemonia, Carlos Estevam Martins sugeriu que, na crtica conjuntura econmica, poltica e social que culminou com a derrubada de Joo Goulart, a burguesia brasileira havia se mostrado incapaz de dirigir e, ao mesmo tempo, precisava continuar dominando. Diante de tal impasse, no teria restado classe dominante outro recurso seno o de utilizar o elemento fardado como pessoal governamental. 1029 Referindo-se a Gramsci, o cientista poltico lembrou que tal opo se constitui em um dos mtodos pelos quais as burguesias destitudas de um sentido de misso histrica institucionalizam a situao particularista em que preservam a funo de dominao, sem deter a funo de domnio: o preo das ditaduras sem hegemonia o de que os interesses da burguesia continuam a prevalecer, mas no mais a sua pessoa. 1030
Na interpretao de Carlos Estevam Martins, fortemente influenciada pela perspectiva poulantziana, as vrias fraes da classe dominante teriam delegado as funes de direo poltica do pas a uma elite governamental que, altamente burocratizada, acabaria por ter
1027 MARTINS, Carlos Estevam. Capitalismo de Estado e modelo poltico no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1977. 1028 ANTUNES, Ricardo. A rebeldia do Trabalho. O confronto operrio no ABC Paulista: as greves de 1978- 1980. 2 edio. Campinas; Unicamp, 1992, p. 112-126; WELMOWICKI, Jos. Cidadania ou classe? O movimento operrio da dcada de 80. So Paulo: Instituto Jos Luis e Rosa Sundermann, 2004, p. 40-41. A proposta de discusso do carter das ditaduras militares latino-americanas (ps-populistas) a partir da noo de bonapartismo (por um caminho terico no propriamente marxista) est contida tambm em ROUQUI, Alain. L hypothse bonapartiste et lemergence des systmes politiques competitifs in Revue franaise de Science Politique, n 25, 1975, p. 1077-1111. 1029 MARTINS, Carlos Estevam. Op. cit., p. 218. 1030 Idem. 362
adquirido em relao quelas um elevado grau de autonomia. Fazendo uso das teses de Florestan Fernandes sobre os caminhos da revoluo burguesa no Brasil, Martins afirmou que essa autonomizao da elite governamental seria uma decorrncia direta da opo pelo padro compsito de dominao burguesa no pas. Na tica de Estevam Martins, a efetivao dessa elevao da cpula politicamente dirigente por sobre as prprias classes dominantes requeria, poca,
a reforma autoritria do regime poltico [populista] mediante a qual o poder estatal, libertando-se da sociedade, passava a ser exercido autocraticamente sobre o sistema de classes em seu conjunto. A composio social e a descolagem da elite governamental contra-revolucionria surgiu, assim, como a condio sine qua non de uma dominao que preferiu conciliar, em vez de dirimir, as mltiplas contradies que opem entre si os interesses burgueses que foram sendo constitudos e sobrepostos ao longo do processo nacional de transformao capitalista. 1031
Operando com o mesmo raciocnio que adotamos no tpico Crise de hegemonia e bonapartismo (introduo primeira parte), Martins alertou que essa delegao de poderes a uma elite governamental por meio da arbitragem de uma cpula poltico-administrativa distinta das partes 1032 costuma ocorrer em situaes excepcionais, nas quais a burguesia se mostra desprovida da capacidade diretiva (hegemnica) sobre as demais foras sociais em presena. J nas situaes normais, segundo Martins, isso no ocorreria, por motivos bvios; nestas situaes, em que certos interesses desfrutam de uma posio segura e avantajada sobre os demais, no haveria nada que os obrigasse a se autolimitarem, delegando a terceiros poderes sobre si mesmos. Em tais contextos prossegue o cientista poltico , a coalizo politicamente predominante exerce o poder mediatamente, certo, mas atravs de seus prprios representantes polticos. Numa palavra, no delega nada a quem quer que seja. 1033
Pelo mesmo registro terico que Weffort lanara mo para compreender a subjetividade da classe trabalhadora durante o populismo, Carlos Estevam Martins buscou observar o posicionamento poltico-ideolgico da burguesia brasileira sob a ditadura militar instaurada em 1964. Face a esse regime, seria a burguesia quem, enquanto uma classe desprovida de capacidade poltico-organizativa prpria, teria se portado subjetivamente como massa, submetendo-se a um poder soberano-independente. 1034 Fazendo as vezes dos pequenos camponeses da Frana de Lus Bonaparte, a contra-revolucionria burguesia brasileira seria a responsvel pelo j visto processo de mistificao ideolgica do Estado capitalista e, mais particularmente, de seu Poder Executivo:
1031 Idem, p. 217-218. 1032 Idem, p. 218. 1033 Idem. 1034 Idem. Grifo nosso. 363
Mutatis mutandis, as nossas classes e fraes dominantes encontravam-se na mesma situao que o campesinato francs descrito por Marx no 18 Brumrio: sua excessiva fragmentao, sua heterogeneidade, sua falta de coeso impediam-nas de fazer valer seus interesses de classe em seu prprio nome atravs do Parlamento. No podiam utilizar livremente os seus prprios instrumentos de poder (seus partidos polticos, suas associaes de classe, seus rgos de imprensa, seus aparelhos ideolgicos) sem se ferirem mutuamente e sem lesarem os principia media de seus interesses de classe. Por isso necessitavam transferir o controle direto do poder ao elemento militar-tecnoburocrtico. No podiam governar os outros sem passarem a ser, ao mesmo tempo, elas prprias governadas por um tertius: s conseguiram fazer-se representar apelando para um representante que funcionasse como seu senhor, como uma autoridade que se exerce sobre elas prprias. Como um poder governamental ilimitado que as protege contra as outras classes (protegendo-as contra si mesmas) e distribui, do alto, o sol e a chuva. Sua influncia poltica encontrava assim sua expresso ltima no Poder Executivo que subordina a sociedade a si mesmo. 1035
Entretanto, essa autonomizao da elite governamental em relao s vrias fraes burguesas gerada pela entrega dos poderes polticos destas ltimas a tal elite teria sido, na viso de Martins, contrabalanceada pela retomada destes mesmos poderes por parte da frao monoplica do grande capital. Representado por uma pliade de homens pblicos (civis e militares) da livre iniciativa internacional que havia sido marginalizada e penalizada pela coalizo nacional-populista, esse setor monopolista ou, nas palavras de Martins, essa coalizo internacional-modernizadora pde, graas ao fato de ter os seus homens (no caso, as aspas so essenciais) na chefia do Estado, adquirir e exercer, conjunturalmente, mas no estruturalmente, o status de coalizo politicamente dominante. 1036 Esse processo dialtico pelo qual os poderes polticos da nao, entregues pelo conjunto da burguesia brasileira a uma tecnocracia civil-militar, foram retomados pelo setor monopolista daquela se constituiria, segundo Martins, na principal ambiguidade do pacto poltico celebrado em 1964:
Por um lado devido ameaa representada pela ascenso do movimento de massas houve uma vastssima delegao de poderes para a elite governamental; por outro lado, contudo devido ao predomnio econmico da coalizo internacional-modernizadora e, especialmente, aos laos materiais, polticos e ideolgicos que a ligavam umbilicalmente s personalidades civis e militares que assumiram os papis protagonistas na cpula poltico-administrativa do Estado , houve uma no menos vasta recuperao, por parte da coalizo internacional-modernizadora, dos podres delegados elite governamental por todos os setores das classes dominantes. A sumamente importante operao de transferncia dos meios de poder das classes dominantes para a elite governamental que ocorreu e se completou no plano estrutural no chegou a produzir efeitos pertinentes (e por isso no foi devidamente notada e ressaltada pelos observadores da cena poltica) porque, simultaneamente, foi anulada no plano poltico, graas ao funcionamento dos delicados mecanismos que transformaram em subpoderosa na prtica, uma elite governamental ultrapoderosa em princpio. 1037
No entendimento do cientista poltico, esse mecanismo que teria possibilitado frao monoplica do capital a retomada dos poderes polticos do pas explicaria por que o
1035 Idem, p.217. 1036 Idem, p. 219-220. Grifos do autor. 1037 Idem. Grifos do autor. Assinalamos aqui que o uso da expresso efeitos pertinentes denota a clara influncia poulantziana na anlise de Estevam Martins. 364
bonapartismo, potencialmente inscrito no pacto de poder celebrado em 1964, no chegou a se transformar em realidade. Ou talvez, quem sabe, mais acertado seria dizer que essa e no outra a realidade de todo e qualquer bonapartismo. 1038
Embora de aparente feio ambivalente, essa concluso de Carlos Estevam Martins parece, ao final de contas, encontrar-se com a idia de regime bonapartista que expusemos e discutimos na primeira parte deste trabalho: a autonomizao relativa do aparelho de Estado face classe dominante no exclui, naturalmente, a existncia de uma ou mais fraes burguesas privilegiadas pelas polticas estatais de curto, mdio e longo prazo; tais privilgios, via de regra, costumam decorrer justamente da influncia exercida pelos representantes dessas fraes junto cpula burocrtico-militar dirigente, a qual, contudo, mantm-se relativamente autnoma diante daquelas. a partir da que talvez possamos compreender o fato de que, conquanto no governasse por meio dos seus representantes polticos diretos (isto , pelos seus partidos polticos), o setor monopolista do capital passou a ter, a partir de 1964, seus principais interesses econmicos atendidos pelas medidas governamentais. A nosso ver, esta a lgica contida nas anlises de Martins sobre o carter regime militar brasileiro. Nesse sentido, a concluso de Martins , em ltima anlise, distinta da que explanaria alguns anos mais tarde Ren Dreifuss, para quem como vimos o Golpe de 1964 e o subsequente regime ditatorial teriam expressado precisamente a conquista do poder poltico estatal pelo setor multinacional e associado da burguesia brasileira representado politicamente por uma elite orgnica composta, entre outros segmentos, por tecno- empresrios, militares e rgos de classe como o IPES e o IBAD:
Quando a interveno militar se efetivou, em resposta incapacidade civil de resolver a crise que destrua o regime poltico tal como havia sido definido pela constituio de 1946, o que aparentemente se deu foi um momento histrico de bonapartismo clssico. Mas seria somente um momento, e como tal enganador, no desdobrar de um processo determinado pela disposio das foras polticas em seu conjunto. As foras que impeliram o que inicialmente parecia ser uma ao Bonapartista eram muito mais complexas e consolidadas do que era aparente de imediato e sua razo de ser ia bem mais alm dos chamados modelos novos de organizao militar e mobilizao ideolgica, ou do folclore de manobras polticas de elementos civis de importncia competindo pela presidncia. O fato de muitos civis e militares considerarem o golpe apenas como uma efmera interveno das Foras Armadas nas atividades do governo e no como a tomada poltica da mquina do Estado assinalava a extraordinria capacidade do bloco multinacional e associado de articular fraes e faces variadas acima de suas diferenas especficas, bem como acima e alm de sua prpria compreenso do processo [...] O estudo das classes dominantes para si, em ao, exercendo seu poder de classe, mostrando sua vontade poltica e sua conscincia de classe foi seriamente negligenciada, com excees dignas de nota. Por outro lado, as Foras Armadas e, em particular, a ESG, como suposto centro ideolgico, foram focalizados como agentes de mudana, enquanto a burocracia, atravs de um ncleo de tcnicos, foi apontada como o agente da construo nacional. Ademais, a projeo do Estado e a minimizao do papel dos industriais e banqueiros poderiam ser consideradas um dos resultados da nfase natureza autnoma ou subsistmica das Foras Armadas e da tecnocracia. Alm do mais, como modelo bsico para a interpretao dos golpes na Amrica Latina e, particularmente, o do Brasil, foi tomado o da interveno bonapartista dos militares. O Estado de exceo ps-1964 foi visto como um aparelho
1038 Idem, p. 220. 365
militar-burocrtico que tomou o poder diante da inquietao popular e que foi apoiado pelo temor das classes mdias, ao invs de agir representando os camponeses, como ocorreu no Estado bonapartista original. O que se sups haver de comum entre o caso do Brasil e o Estado bonapartista original foi o fato de o aparelho militar burocrtico tomar o poder, a despeito das classes dominantes, a fim de comandar o Estado, para que os interesses dessas classes pudessem prevalecer. A viso do Estado ps- 1964 como bonapartista foi reforada pela crena na autonomia relativa do Estado de exceo que, de acordo com Nicos Poulantzas, requer autonomia relativa para reorganizar a hegemonia e o bloco de poder. Na realidade, foi o bloco de poder liderado pelo IPES que reorganizou o Estado e, sob o controle da elite orgnica, tentou consolidar sua posio. 1039
Voltando s teses de Martins, consideramos importante lembrar ainda que, embora seu trabalho tenha sido o mais mencionado pelos autores que mais tarde corroborariam uma viso bonapartista sobre a ditadura militar, muito provavelmente o pioneirismo deste tipo de enfoque foi obra mais uma vez do intelectual, crtico de arte e militante poltico Mrio Pedrosa. Escrevendo em 1966, sob o governo do marechal Castelo Branco (1964-1967), o ex- integrante da velha Liga Comunista Internacionalista recorreu (sem citar) s anlises de Trotsky sobre os vrios tipos histricos de bonapartismo em busca de uma definio da nova forma poltica assumida pelo Estado a partir da derrubada de Joo Goulart. Como era de se esperar, a dimenso internacionalista de anlise no poderia estar ausente das elaboraes do fundador do trotskismo brasileiro, como pode ser percebido na longa citao a seguir:
Getlio Vargas, a primeira investidura de bonapartismo no pas, teve de exercer o poder no para impor uma classe sobre as outras, mas, ao contrrio, para concili-las. Quem concilia tambm manobra e, por vezes, no jogo do poder, lana umas contra as outras. Ele presidiu a aliana da classe rural cafeeira vencida com os interesses industriais nascentes, porque ao assim agir atendia presso de classe dos industriais do Rio Grande do Sul e dos setores ali bem importantes da agricultura de subsistncia, destina ao mercado interno, que o trouxeram nos ombros ao poder, no Rio, como bombachas e leno vermelho no pescoo, smbolos j ento de graves desajustes nacionais. Esse bonapartismo teve longa vida e uma prolongada funo. Que funo tem o novo, sado da sublevao de abril [de 1964]? Uma funo policial- burocrtica. Na realidade, em nossa poca em que um sistema internacional de foras no plano internacional to acusado, surgiu em vrios pequenos pases, de formao poltica recente, onde as burguesias nacionais jamais representaram papel autnomo, um novo tipo de bonapartismo: o que medeia ou negaceia, no entre as classes do pas, mas, em nome delas, entre potncias imperialistas. Exemplo clssico o de Nasser, no Egito, em funo da posio estratgica do pas nas fmbrias da vasta rea do petrleo e do Ocidente-Oriente. No Brasil, ente 1937-39, tivemos exemplo desse tipo de negaceio bonapartista interimperialista quando, s vsperas da guerra, Vargas o exerceu, ainda que um pouco foradamente. 1040 O do marechal Castelo, em lugar do negaceio seu campo de ao no o permitia quis firmar-se pela virtude contrria, isto , pela adeso incondicional a uma potncia. Ao faz-lo, passa-se do regime de liberdade condicionada do negaceio do bonapartismo ao de satlite com rbita traada. Assim, a primeira caracterstica do novo governo ditatorial bonapartista foi a de ser, como o bonapartismo clssico foi, no a resultante do equilbrio entre as classes em oposio dentro do Brasil, mas, o agente imperialista no sistema econmico-poltico a compor-se no Brasil, aps a derrocada. A burguesia capitalista nacional passaria a ser no sistema um fator no autnomo, mas um fator subordinado. At hoje no se havia visto bonapartismo apoiado em foras externas, no nacionais.
1039 DREIFUSS, Ren. Op. cit., p. 143-487. 1040 Aqui tal como nas j vistas anlises de Moniz Bandeira sobre o Estado Novo clara a inspirao de Pedrosa nas consideraes de Trotsky sobre a poltica levada a cabo por alguns regimes latino-americanos dos anos 30 diante das rivalidades e disputas interiimperialistas: aproveitando-se delas, aqueles bonapartismos sui generis buscavam obter uma maior margem de margem de manobra para suas economias perifricas face ao capital estrangeiro vale lembrar que Trotsky usou justamente como exemplo dessa poltica a postura ambgua de Vargas diante da rivalidade entre os Estados Unidos e Alemanha s vsperas da Segunda Guerra Mundial (TROTSKY, Len. La politica de Roosevelt en America Latina. Op. cit., p. 93). 366
Em geral, ele tem sido a expresso poltica mais sensvel do equilbrio de foras das classes sociais em choque, internamente. 1041
Mencionamos tambm que em sua j vista anlise gramsciana do processo histrico contemporneo brasileiro, Carlos Nelson Coutinho considerou que a camada tecnocrtico- militar que se apoderou do aparelho estatal em 1964 teria adotado uma posio cesarista intracapitalista precisamente para manter e reforar o princpio do lucro privado e para conservar o poder das classes dominantes tradicionais, quer da burguesia industrial e financeira (nacional e internacional), quer do setor latifundirio que ia se tornando cada vez mais capitalista. 1042
Vale acrescentar ainda que tambm organizaes polticas de cariz trotskista surgidas ao longo da ditadura militar a caracterizaram como um regime de natureza bonapartista, no qual se sucediam governos tambm de tipo bonapartista. Foi o caso, por exemplo, da Liga Operria (LO), pequeno ncleo de filiao morenista fundado em 1974 que, alguns anos mais tarde, daria origem Convergncia Socialista (CS) corrente poltica que, depois de expulsa do Partido dos Trabalhadores (PT) em 1993, animaria a construo do atual Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU). Em um documento de 1974, a Liga Operria afirmava que o golpe de Estado aplicado dez anos antes teria sido a expresso da frente nica burguesa voltada a esmagar a ascenso da classe operria e dos trabalhadores brasileiros. Assumiram o poder os militares por intermdio do general Castelo Branco, o qual iniciou um governo bonapartista clssico. 1043
Escassamente, ainda hoje cientistas polticos, socilogos e historiadores mobilizam o conceito marxista de bonapartismo objetivando compreender as relaes entre as classes sociais, suas representaes polticas e o Estado sob o regime militar brasileiro. 1044 Dado o recorte de nosso trabalho, no aprofundaremos aqui essa exposio acerca das interpretaes bonapartistas sobre o Golpe de 1964 e a longa ditadura que a ele se seguiu. Contudo, imaginamos que a amostragem que nestas poucas pginas oferecemos pode contribuir para tenhamos uma melhor idia da amplitude da marca bonapartista nos estudos
1041 PEDROSA, Mrio. A opo brasileira. Rio de Janeiro: civilizao brasileira, 1966, p. 188-189. 1042 COUTINHO, Carlos Nelson. As categorias de Gramsci e a realidade brasileira. Op. cit., p. 201-202. 1043 LIGA OPERRIA. Brasil 10 aos despus. ?Hacia um bonapartismo clsico. Revista de Amrica, n. 13. Buenos Aires, 1974, p. 43. Traduo de Alvaro Bianchi. 1044 guisa de exemplo, citamos LEMOS, Renato. Contra-revoluo e ditadura no Brasil. Elementos para uma periodizao do processo poltico brasileiro ps-1964 (Comunicao apresentada no VI Congresso do Conselho Europeu de Pesquisas Sociais sobre Amrica Latina CEISAL , realizado em Toulouse entre os dias 30 de junho e 3 de julho de 2010). Entre os principais traos constitutivos do regime ps-1964, o historiador arrolou: sua vinculao prioritria ao grande capital multinacional e associado; a grande autonomia do Estado militarizado em relao aos interesses particulares das fraes das classes dominantes, em face dos quais, quando em conflito, exerce o papel de rbitro; a preeminncia, no interior do Executivo hipertrofiado, do aparato repressivo policial-militar; a pretenso legitimidade com base em um projeto democrtico-modernizante- conservador (Idem, p. 12). 367
sobre o nosso processo poltico republicano. Enquanto alguns (muitos) intelectuais trabalharam com a noo de uma autonomia relativa do Estado face s classes sociais para dar conta de certos perodos e governos vigentes ao longo do chamado perodo populista do capitalismo brasileiro, outros (s vezes, os mesmos) a ela recorreram para desvendar a natureza de um golpe de Estado e de uma ditadura que foram, essencialmente, antipopulistas. Para alm dessa aparente contradio, ou mesmo de possveis imprecises e incoerncias na aplicao da teoria do bonapartismo por um ou outro cientista social, possvel verificarmos que, a julgar por essa produo especializada sobre a histria scio-poltica brasileira, o bonapartismo, um regime tipicamente de exceo nos pases centrais do sistema capitalista, assumiu em nossa atrasada e perifrica formao nacional um carter praticamente estrutural. Transpondo (limitando) ao nosso pas o que afirmou Alain Rouqui sobre a Amrica Latina, talvez possamos dizer que, aos olhos dos analistas polticos, o Brasil apareceu como a nao bonapartista por excelncia. 1045
Como veremos rapidamente nas pginas a seguir, essa impresso no esteve, a nosso ver, desprovida de um forte lastro na realidade histrico-poltica do pas.
1045 LAmrique Latine apparat comme le continent bonapartiste par excellence. (ROUQUI, Alain. Op. cit., p. 1088). 368
Captulo IV
O longo bonapartismo brasileiro: um ensaio de interpretao histrica do Brasil contemporneo (1930-1964)
369
A via bonapartista da modernizao capitalista do Brasil
Essa preocupao em neutralizar o comunismo, tambm por mtodos que no os de fora, sempre acompanhou Vargas. Em 1935, quando a Aliana Nacional Libertadora, sob a direo do PCB, mobilizava as massas contra o governo, ele reuniu um grupo de industriais e lhes solicitou que colaborassem com aplicao das leis do trabalho, a fim de evitar que o descontentamento no meio operrio nutrisse os preparativos da insurreio. No encontrou nenhuma receptividade. Pelo contrrio. Todos reagiram contra os despropsitos das leis trabalhistas, reclamaram contra os fiscais do Ministrio, que invadiam as fbricas, provocavam a indisciplina dos operrios e sabotavam a autoridade dos empresrios. Vargas escutou aqueles protestos com nuseas e, quando saiu do encontro, disse ao seu ajudante-de-ordens, capito-tenente da Marinha Ernani Amaral Peixoto:
Estou tentando salvar esses burgueses burros e eles no entenderam 1046
No captulo anterior, pudemos observar como a teoria do bonapartismo esteve presente como um importante alicerce (s vezes obliterado, subterrneo) nos estudos acadmicos dedicados ao perodo populista brasileiro. Na sequncia, vimos que, tambm luz da noo de bonapartismo, caracterizaes da dominao burguesa vigente naquele perodo j haviam sido realizadas por pequenas organizaes trotskistas do pr-1964, as quais reforamos mantiveram (em graus variados) relaes com alguns dos cientistas sociais responsveis pelos tais estudos acadmicos sobre o Brasil do ps-1930. Neste quarto e derradeiro captulo, ser a nossa vez de, mobilizando abertamente a teoria do bonapartismo, alinhavar algumas idias e hipteses que talvez permitam melhor compreender certos aspectos do processo poltico brasileiro compreendido entre 1930 e 1964, com nfase no recorte temporal 1930-1945. Em funo do carter meramente ensastico das pginas seguintes, muitas das questes fundamentais daquele longo perodo histrico situado entre a Revoluo de 1930 e o Golpe de 1964 no sero, evidentemente, abordadas aqui do modo como poderiam s-las em um trabalho de outra natureza. Apoiando-nos na bibliografia discutida anteriormente a qual, alis, j deu conta suficientemente de muitas dessas questes sobre o perodo , e com ela dialogando criticamente, procuraremos apenas tecer alguns comentrios interpretativos sobre o que consideramos ter sido a via bonapartista da modernizao capitalista do Brasil. Determinada, fundamentalmente, pela impossibilidade histrica de uma revoluo democrtico-burguesa no pas, a via bonapartista pela qual politicamente se processou nossa passagem a uma moderna sociedade urbano-industrial encerrou, ao longo de todo o seu sinuoso e errtico percurso, um sentido intrinsecamente contra-revolucionrio. Decorrncia da
1046 BANDEIRA. Luiz Alberto Moniz. O governo Joo Goulart. As lutas sociais no Brasil (1961-1964). Op. cit., p. 54. 370
mescla, ao longo de dcadas, de elementos estruturais e conjunturais nos mbitos econmico, poltico e cultural, essa via bonapartista de desenvolvimento capitalista, em perspectiva histrica, pode ser compreendida como a sucesso de regimes polticos todos eles caracterizados por uma autonomia relativa do aparelho estatal face s classes e fraes sociais em conflito (aberto ou velado) cujo resultado foi a transformao do Brasil em uma sociedade capitalista de massas, profundamente desigual e combinada. Mais ou menos repressivos, mais ou menos reformistas, progressistas ou escancaradamente reacionrios, todos aqueles regimes procuraram desempenhar, em ltima anlise, a funo preventivamente contra-revolucionria de bloquear a auto-organizao poltica do proletariado. Em grande parte exitosos, todos eles acabaram por, cada um a sua maneira, fornecer as condies polticas necessrias modernizao burguesa em um pas de capitalismo atrasado, hipertardio e perifrico, no qual a burguesia industrial, em funo da prpria dinmica desigual e combinada do desenvolvimento capitalista, deparou-se com seu antagonista social na cena poltica antes mesmo que ela estivesse organicamente desenvolvida como classe.
Domnio cafeeiro e crise de hegemonia Como muitos autores j afirmaram, o desenvolvimento, nas dcadas de 1910/1920, dos processos de urbanizao e industrializao encontra-se entre as razes explicativas do fim da Primeira Repblica (1889-1930). A emergncia gradativa, na cena social e poltica, de novos setores urbanos, como o operariado fabril, as classes mdias e a burguesia industrial, acabaria por demonstrar a incompatibilidade do velho regime com o patamar atingido pela modernizao capitalista no pas. Formatado nos anos finais do sculo XIX pela burguesia agrria e comercial, o sistema poltico oligrquico carecia de elasticidade para adaptar-se nova morfologia que assumia a sociedade brasileira. Pressionando suas excludentes estruturas institucionais, os novos setores urbanos, inquietos, anunciavam uma crise de dominao poltica no pas. As greves gerais de trabalhadores (Rio de Janeiro, So Paulo e outros locais), ocorridas em 1917 e 1918, os levantes tenentistas de 1922, 1924, e 1925-1927 (Coluna Prestes), e a apario, mais substantiva, das chamadas dissidncias oligrquicas durante os at ento insossos processos eleitorais (Reao Republicana, em 1921-1922, e Aliana Liberal, em 1929-1930) indicavam que os de cima j no podiam governar como antes, para usarmos aqui uma expresso de Lnin. Os anos 20, carregados de novidades polticas e culturais (exemplificadas, por exemplo, na fundao do PCB e na realizao da Semana de Arte Moderna, ambas em 1922), assistiram ao incio do processo histrico de massificao da sociedade brasileira (na qual 80% da populao ainda residiam no campo, em condies 371
mdias prximas da misria). O crash da bolsa de Nova York, em 1929, atingiu em cheio uma economia essencialmente agro-exportadora, precipitando o que corretamente se chamou de uma crise de hegemonia (como pudemos ver no captulo anterior). Foi a partir dessa crise, dessa falta de hegemonia, por assim dizer, que classe dominante no Brasil se deparou historicamente com o difcil problema da direo poltica. Foi, portanto, pela negativa que, pela primeira vez na histria do pas, teve lugar a incontornvel questo da hegemonia. Trabalhando com a j vista associao gramsciana entre formas de dominao hegemnicas e sociedades de massas (sociedades ocidentais, isto , dotadas de uma sociedade civil minimamente consistente), 1047 consideramos inapropriada a aplicao da categoria hegemonia no s ao Brasil imperial e aqui a simples existncia da escravido argumenta a nosso favor , como tambm ao perodo histrico da Primeira Repblica. Nesse sentido, discordamos conceitualmente de expresses como hegemonia oligrquica 1048 ou hegemonia poltica da burguesia mercantil agroexportadora, 1049 empregadas por uma vasta bibliografia para dar conta do tipo de dominao vigente entre 1894-1930 no Brasil. No houve uma hegemonia propriamente dita durante a Primeira Repblica. Com o fim do Imprio, ou mais precisamente, com o trmino do governo de Floriano Peixoto (1891- 1894), a frao burguesa cafeeira (capitaneada por sua ala paulista) 1050 assumiu finalmente a condio de classe/frao dominante, mas no foi e nem precisou ser uma classe/frao politicamente dirigente, no sentido gramsciano do termo. Pelo carter eminentemente agrrio da formao social brasileira, e pela inexistncia de um j politicamente constitudo sujeito social antagonista, a questo mesma da hegemonia no estava ainda posta na cena histrica do pas. Com efeito, at o iniciar da crtica dcada de 1920, o Brasil dos coronis e dos bares do caf no se constitua, absolutamente, em uma sociedade de tipo ocidental, com carter de massas. Embora j existissem associaes e organizaes representativas de alguns dos grupos dominantes, em especial dos setores agrrios, 1051 a sociedade civil no ultrapassava a rbita dos segmentos proprietrios. Se talvez seja exagerado cham-la de primitiva e gelatinosa, certamente ela estava longe de um desenvolvimento mnimo que permitisse alocar o Brasil no Ocidente gramsciano. 1052
1047 Ver a Introduo primeira parte deste trabalho. 1048 WEFFORT, Francisco C. Classes Populares e Poltica (Contribuio ao estudo do populismo). Op. cit., p. 45. 1049 SAES, Dcio. A evoluo do Estado no Brasil (uma interpretao marxista). Op. cit., p. 103. 1050 No caso de So Paulo (estado que era a vanguarda econmica e poltica do pas), entendemos por burguesia cafeeira no s os grandes latifundirios produtores de caf, mas tambm os segmentos que realizavam a sua comercializao e demais setores econmicos ligados s atividades de importao e exportao. 1051 MENDONA. Snia Regina de. O ruralismo brasileiro (1888-1931). So Paulo: Hucitec, 1997. 1052 Evidentemente, estamos propondo aqui uma discusso um tanto quanto rigorosa do ponto de vista conceitual. Assim, desde que o termo hegemonia no tenha o intuito de designar um tipo caracterstico de dominao poltica, na qual se equilibram elementos de coero e consenso, no vemos nenhum problema em utiliz-lo mais livremente. Caso, por exemplo, seu emprego busque expor a idia de uma preponderncia ou domnio poltico de 372
Tal como a aristocracia financeira sob a Monarquia de Julho na Frana (1830-1848), a frao da burguesia cafeeira de So Paulo, ao longo da Primeira Repblica ps-1894, esteve frente de um regime poltico de natureza pr-hegemnica. Como j expusemos, diferentemente dos regimes no-hegemnicos (como o bonapartismo) resultantes de situaes histrico-polticas em que nenhum dos grupos sociais conseguiu resolver, por meios hegemnicos/diretos, a j candente questo da hegemonia , os regimes que aqui denominamos de pr-hegemnicos corresponderam a momentos histricos de certas formaes sociais em que estas no apresentavam ainda, em sua pouco complexa tessitura social, as chamadas massas populares. 1053 Em resumo, no havia hegemonia poltica de uma classe porque no havia o porqu de uma classe ser politicamente hegemnica. Desse modo, se parece fazer sentido a caracterizao (feita por considervel parcela da historiografia) da burguesia industrial do ps-1930 como uma classe politicamente dbil (dada sua incapacidade de governar diretamente o pas e sua conseqente rendio poltica a um aparelho estatal bonapartista), o mesmo no pode ser dito, a nosso ver, da burguesia cafeeira da Primeira Repblica. O regime poltico por ela institudo mostrou-se, durante um bom tempo, como sua forma tima de dominao poltica, pois completamente funcional para a garantia de seus interesses econmicos. Operando, tambm, com a associao que propusemos entre formas de dominao hegemnicas e regimes democrtico-burgueses, consideramos que as estruturas polticas da Primeira Repblica estiveram longe de terem conformado uma democracia burguesa tomando esta, no custa lembrar, como uma forma poltica assumida pelo Estado capitalista na qual o poder da classe dominante se assenta, alm da coero, tambm (e fortemente) em expedientes consensuais voltados para os setores explorados. Formatado em uma sociedade basicamente agrria e perifrica, o regime poltico da Primeira Repblica no foi um regime democrtico-burgus, e nem tinha porque s-lo. 1054
determinado grupo durante certo perodo histrico (como o dos grandes fazendeiros escravocratas brasileiros sob o Segundo Imprio [1840-1889] ou mesmo o da burguesia cafeicultora durante a chamada Repblica Velha), o consideramos perfeitamente plausvel. 1053 Convm alertar que utilizamos aqui o termo massas (massas populares) no sentido de um amplo contingente social conformado pela classe trabalhadora, setores mdios urbanos assalariados (uma parcela, portanto, do que chamada a pequena-burguesia urbana), elementos rurais que migraram para as cidades, desempregados temporrios etc. Trabalhada desse modo, a noo de massas tem, assim, o mesmo significado de classes populares, as quais, segundo Weffort, podem ser entendidas como um grande conjunto de pessoas que ocupam os escales sociais inferiores nas diversas reas do sistema capitalista vigente no Brasil. (WEFFORT, F. O populismo na poltica brasileira. Op. cit., p. 81). Mais frente, contudo, o termo massa aparecer tambm no sentido utilizado por Marx para se referir ao grosso da burguesia, em oposio sua representao poltico- parlamentar (a massa da burguesia/ ou massa extraparlamentar da burguesia) (MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 99). Na sequncia, assumindo, assim, um terceiro sentido, o termo ter lugar tambm no contexto de uma breve discusso sobre a suposta conscincia de massa (e no de classe) que os trabalhadores teriam apresentado sob o populismo. 1054 Pelos mesmos argumentos gerais expostos acima (e j vistos na Introduo primeira parte), tambm consideramos inapropriada uma caracterizao dos dois governos militares que iniciaram a Primeira Repblica 373
A historiografia de linhagem liberal/weberiana muito j disse sobre as inmeras limitaes da democracia fundada na Constituio de 1891, as quais teriam adicionado quele regime um componente oligrquico (idia sintetizada na frmula propositalmente paradoxal da democracia oligrquica). Malgrado parea estar surgindo, tambm entre os estudiosos desse perodo, um movimento revisionista que busca reabilitar historiograficamente tal sistema poltico (tomando-o teleologicamente como uma autntica democracia em processo de maturao), no difcil percebermos que, mesmo se aferida pelos minimalistas critrios estabelecidos pela cincia poltica institucionalista, a democracia de 1891-1930 no resiste prova democrtica. Isto bem o demonstrou o marxista poulantziano Dcio Saes. Em um j referido balano da experincia democrtica brasileira, 1055 o cientista poltico evidenciou que o regime em questo, alm de no apresentar uma efetiva alternncia partidria e, consequentemente, um pluripartidarismo de fato, no tinha nem mesmo no partido que monopolizava o poder (Partido Republicano) seu principal instrumento de representao/articulao poltica. Ardorosas defensoras do federalismo, elemento fulcral do regime, as diferentes faces da burguesia cafeeira dispensaram a construo de um verdadeiro partido nacional e, ademais, organizaram-se politicamente mais por vias extra-partidrias, intra-estatais (e a poltica dos governadores foi a melhor expresso disso) do que propriamente pelas alas regionais/estaduais que constituam o federalizado PR. 1056
Entre os muitos outros elementos que distanciavam aquele regime de um tipo democrtico-burgus (tais como o voto aberto e o voto de cabresto, por exemplo), a excluso dos analfabetos dos ordinrios processos eletivos foi, sem dvida, o mais significativo. No quadro de uma populao majoritariamente agrria, num verdadeiro pas de analfabetos, tal veto resultava, na verdade, na excluso da enorme maioria dos habitantes at mesmo dos inofensivos e fraudulentos processos eleitorais, nos quais concorriam apenas representantes da classe dominante. Vale lembrar que nas ltimas eleies do regime, em maro de 1930 (na qual Jlio Prestes derrotou Getlio Vargas na disputa presidencial), apenas
(1889-1894), assim como do governo de Hermes da Fonseca (1910-1914), como governos de tipo bonapartista. Embora os dois primeiros tenham existido em meio a uma situao de diviso no interior da classe dominante (verificada na crise do Imprio) e desempenhado (ou tentado) uma rpida e transitria funo arbitral, tais governos da espada no foram, entretanto, produtos de uma crise de hegemonia um fenmeno, como dissemos, prprio das sociedades de massas, ou em processo de massificao. O mesmo pode ser dito em relao ao governo de Hermes da Fonseca, quando a situao de disputas polticas entre grupos polticos oligrquicos regionais esteve longe de representar uma crise de hegemonia. 1055 SAES, Dcio. Democracia e capitalismo no Brasil.... Op. cit. 1056 Idem, p. 108-109. 374
cerca de dois milhes de adultos (do sexo masculino) exercitaram o direito de voto, quando a populao brasileira j era estimada em 40 milhes. 1057
Como sugeriu Ianni, dispondo de pouqussima ou nenhuma margem de autonomia diante do mercado internacional, a burguesia cafeeira se constitua numa espcie de mediao poltica entre este mercado e a sociedade nacional. 1058 Portadora de uma viso de mundo liberal e agrarista (que perifericamente combinava os preceitos do livre mercado com a defesa da vocao agrria nacional), nossa oligarquia conformava-se (e tinha razes para isso) com o papel que a economia nacional ocupava na diviso internacional do trabalho. Visando adaptar a infra-estrutura do pas s necessidades de uma economia primria voltada para fora (hacia a fuera), ela conduziu a modernizao de algumas cidades estratgicas (centros administrativos e comerciais a servio da agro-exportao), baseando-se, evidentemente, em padres elitistas de organizao urbana e mtodos profundamente violentos e antipopulares. 1059 Organicamente vinculada ao capital estrangeiro, deixou a cargo deste grande parte da construo das linhas frreas que interligavam portos e latifndios produtores, assim como a maior parte na explorao dos servios pblicos urbanos (transportes, eletricidade etc.). Recorrendo novamente analogia histrica com a Frana oitocentista e o faremos por algumas vezes ainda ao longo deste captulo , pode-se dizer que, no que diz respeito forma de dominao poltica, a burguesia cafeeira paulista, maneira da aristocracia financeira sob o reinado de Lus Felipe, exerceu um domnio exclusivo 1060 ao longo da Primeira Repblica. Como classe dominante, mas no como classe dirigente (hegemnica), no buscou incorporar as demais fraes do capital nas instncias polticas do poder. Monopolizando, praticamente, a ocupao dos postos executivos, legislativos e judicirios (nas instncias federal, estadual e municipal), a burguesia cafeeira tinha no Estado seu instrumento poltico particular. A Repblica Velha foi a sua repblica, e s sua. Enquanto os estratos mais altos das classes mdias (ainda pouco desenvolvidas) lhes forneciam apoio e quadros polticos, a incipiente burguesia industrial, tranquilamente subalterna, foi incapaz at mesmo de constituir uma organizao partidria prpria, fazendo-se representar por intermdio do cafeeiro PR. Embora no tenha existido uma hegemonia propriamente dita
1057 LEVINE, Robert M. O regime de Vargas. Os anos crticos 1934-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p. 18. 1058 Em outras palavras, pode-se dizer que a oligarquia um elo no sistema composto da seguinte forma: sociedade nacional-economia dependente-oligarquia-imperialismo. (IANNI, Octavio. A formao do Estado populista na Amrica latina. Op. cit., p. 69). 1059 Ver BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Haussmann tropical: a renovao urbana da cidade do Rio de Janeiro no incio do sculo XX. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentao e Informao Cultural, Diviso de Editorao, 1990; e MATTOS, Romulo Costa. Pelos pobres! As campanhas pela construo de habitaes populares e o discurso sobre as favelas na Primeira Repblica. (Tese de Doutorado). Niteri: PPGH/UFF, 2008. 1060 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 24. 375
naquele regime poltico exclusivista, pode-se dizer que nele a burguesia cafeeira paulista exercia, provavelmente, uma funo hegemnica (isto, uma hegemonia exercida por uma classe ou frao de classe apenas sobre os demais setores dominantes, mas no sobre o conjunto da sociedade). Por meio de seus aparelhos privados de hegemonia atuantes na ainda germinal e seletivamente burguesa sociedade civil, a frao cafeeira paulista obtinha o apoio dos demais segmentos proprietrios para seus projetos particularistas, embalados pela ideologia do ruralismo. 1061 Em suma, por meio da Repblica, a burguesia do caf reinava absoluta. Quanto s classes dominadas, a relao com elas estabelecida pelo poder estatal se afastava, em muito, do que pode ser considerada uma dominao de tipo hegemnica. Submetidos, nos grandes latifndios, a relaes de produo muitas vezes pr- capitalistas porm subsumidas acumulao/reproduo do capital, importante frisar , os trabalhadores rurais enfrentavam tanto a violenta coero do poder pblico, quanto aquela exercida privadamente pelos fazendeiros (a deletria e ainda existente figura do jaguno aqui ilustrativa). Somava-se a isso, como j dissemos, a sua excluso ou participao controlada nos processos eleitorais. Numericamente exguo, o jovem proletariado urbano combinava em seu dialtico processo de formao elementos advindos da escravido africana com outros trazidos pela imigrao europia. 1062 Seus setores politicamente mais organizados, fortemente influenciados pelo anarquismo e suas variantes (anarcosindicalismo, sindicalismo revolucionrio do tipo francs etc.), sofriam nas mos do aparelho repressivo de uma classe dominante que j nascera alrgica a qualquer tipo de mobilizao popular depois da Revoluo Russa de outubro de 1917, o combate s ideologias exticas passaria a dar definitivamente a tnica da atividade policial. O absoluto fracasso das tentativas de organizao poltica ao estilo social-democrata (socialistas) por parte dos trabalhadores (liderados, nesses casos, por intelectuais pequeno-burgueses de posies democrticas, como Maurcio de Lacerda) resultou, antes de qualquer outro fator, do prprio carter restritivo do regime, que rechaava at mesmo uma eventual participao moderada por parte dos elementos no-proprietrios. Fundado em maro de 1922, o Partido Comunista do Brasil (PCB) poderia contar nos dedos seus meses de legalidade durante a Primeira Repblica. Ao definir a questo social como um caso de polcia, Washington Lus, ltimo presidente
1061 Sobre o ruralismo como um projeto hegemnico e as disputas no interior dos grupos agrrios brasileiros durante a Primeira Repblica, ver: MENDONA. Snia Regina de. O ruralismo brasileiro (1888-1931). Op. cit. 1062 Negligenciado durante muito tempo, o papel da experincia escrava na formao (em vrias dimenses) da classe trabalhadora urbana vem sendo investigado pela historiografia marxista. Ver, especialmente, MATTOS, Marcelo Badar. Escravizados e livres: experincias comuns na formao da classe trabalhadora carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2008. 376
daquela Repblica dos Bacharis (1926-1930), talvez tenha fornecido a melhor ilustrao do modo pelo qual era nela exercida a dominao poltica de classe. Completando o quadro antidemocrtico do regime, no sem importncia lembrarmos que, por diversas vezes, os presidentes cafeeiros suspenderam os direitos constitucionais recorrendo ao estado de stio diante de manifestaes mais radicalizadas dos setores mdios e populares (as quais, segundo o gramsciano Carlos Nelson Coutinho, no ultrapassaram a forma de um subversivismo espordico, elementar [e] desorganizado). 1063
Foi esse regime poltico exclusivista que, em fins da dcada de 1920, entrou em estado crtico. Carente de repertrio poltico, a frao burguesa cafeeira, sob o impacto da crise de 1929, decidiu-se pela sada de sempre: preservar sua margem de lucratividade por meio de mais uma poltica estatal de salvao do caf, deixando ao restante da sociedade o nus da crise. Todavia, a j mencionada emergncia dos novos sujeitos sociais urbanos, os quais (voluntria ou involuntariamente) pressionavam as hermticas estruturas do regime, impediu que, mais uma vez, tudo fosse solucionado como antes de certa forma, as crescentes contendas entre Washington Lus e a burguesia cafeeira refletiram essa situao (o incio, talvez, de uma crise orgnica da classe dominante, no sentido de uma ruptura poltica entre representantes e representados). No quadro dessa crise do domnio poltico cafeeiro, colocava-se para a classe dominante, em seu conjunto, a necessidade de erigir outra forma de dominao poltico-social capaz de dar conta, agora, das novas foras sociais que, gestadas gradativamente nas coxias, entravam desordenadamente em cena, assustando os protagonistas no proscnio e tumultuando o tranqilo espetculo oligrquico. Surgia, ento, finalmente, a questo da hegemonia, a qual, como os tericos do populismo (entre outros) corretamente apontaram, nenhum dos grupos sociais existentes podia (pde) resolver. Decretando a falncia daquela forma de dominao pr-hegemnica, teve lugar, assim, uma crise de hegemonia que impressionaria por sua longevidade histrica no pas. nesse sentido que propomos aqui a hiptese de que, tal como na clssica Frana, a crise de hegemonia, no ornitorrntico Brasil, 1064 tambm antecedeu historicamente prpria existncia de uma dominao de tipo hegemnica.
A Revoluo de 1930 e a emergncia do bonapartismo Diferentemente do que propuseram certas parcelas da historiografia de esquerda, Boris Fausto exitosamente demonstrou que a derrubada de Washington Lus, em outubro de 1930,
1063 COUTINHO, Carlos Nelson. As categorias de Gramsci e a realidade brasileira. Op. cit., p.199-200. 1064 Tomo a comparao do Brasil ao animal ornitorrinco emprestada de OLIVEIRA, Francisco de. Crtica razo dualista / o ornitorrinco. So Paulo: Boitempo, 2003. 377
no foi uma revoluo das classes mdias nem tampouco uma revoluo burguesa propriamente dita (no seu sentido clssico). 1065 Como vimos, os trotskistas brasileiros da Liga Comunista do Brasil, contemporneos ao evento em questo, j haviam apontado tanto a impossibilidade da pequena-burguesia levar a cabo um projeto poltico prprio, quanto o carter irremediavelmente contra-revolucionrio da burguesia brasileira, o que afastava todas as suas fraes, incluindo a industrial, do caminho de uma revoluo democrtico-burguesa. No custa lembrarmos que, adepta da ordem vigente, a frao burguesa industrial, embora j organizada de forma independente na sociedade civil, 1066 apoiou no pleito presidencial de 1930 o candidato oficial (Jlio Prestes), confirmando, assim, meses antes do golpe de Estado que apearia a burguesia cafeeira paulista do poder, seu posicionamento politicamente caudatrio em face desta. Contudo, no obstante essa ausncia de protagonismo por parte dos industriais, a virada poltica de outubro de 1930, como sabido, se inscreveria com um fundamental captulo na histria da retardatria modernizao industrial brasileira. Composta por foras polticas heterogneas, a Aliana Liberal no ultrapassava, em essncia, a condio de uma dissidncia oligrquica, termo pelo qual a historiografia aqui trabalhada costumou design-la. Fundada por Antonio Carlos de Andrada, representante da frao cafeeira mineira (ento descontente com a primazia paulista em seu quase monoplico controle poltico da federao), a frente eleitoral que lanou o nome de Getlio Vargas Presidncia da Repblica tinha na burguesia pecuarista gacha, recm pactuada internamente, a sua principal base social. Com parcela significativa da sua produo direcionada para o mercado interno, e j aliada regionalmente com incipientes setores industriais e camadas mdias urbanas, essa frao burguesa demandava mais firmemente polticas de Estado que rompessem o exclusivismo econmico cafeeiro (ao qual, alis, resignadamente se submetera ao longo de todo o regime). Integrando o amalgamado bloco poltico oposicionista, estavam presentes ainda as burguesias agrrias fluminense e paraibana, alm de uma ciso poltica da oligarquia paulista, expressa pelo Partido Democrtico (PD), fundado em 1926, com relativa insero nos setores mdios do Estado. Elemento indispensvel, contudo, para a compreenso de contraditria e efmera trajetria poltica da Aliana Liberal a comear por sua opo insurrecional adotada alguns meses depois da derrota eleitoral a presena no seu interior de segmentos advindos do antigo movimento tenentista, ento pactuados com seus algozes oligrquicos de vspera. Do ponto de vista poltico-programtico, a Aliana Liberal se apresentou nas eleies com uma plataforma timidamente reformista, que tocava levemente em alguns pontos da chamada
1065 FAUSTO, Boris. A revoluo de 1930. Histria e historiografia. Op. cit. 1066 Em 1928, foi criado o Centro das Indstrias do Estado de So Paulo (CIESP). At ento, a burguesia industrial tentava se fazer representar por meio da Associao Comercial de So Paulo, dominada pelo setor cafeeiro. 378
questo social. Nada propunha de grandes mudanas no cenrio poltico-econmico nacional. No gozou do apoio, como dissemos acima, da burguesia industrial. Substantivamente, no se distanciava do que poderamos chamar de uma corrente politicamente oligrquica. Sua chegada ao poder, entretanto, no significaria a passagem do controle poltico nacional das mos da burguesia cafeeira paulista para as das oligarquias dissidentes. Colocada a questo da hegemonia pela emergncia dos novos setores sociais urbanos, no havia possibilidade histrica de mais uma etapa de domnio exclusivo, agora sob a liderana de outras faces polticas da burguesia agrria brasileira. Assim, embora fosse a Aliana Liberal uma expresso poltica das dissidncias oligrquicas, seus homens, uma vez alocados nos postos polticos de comando do pas, l no se portariam na qualidade de representantes oligrquicos. Naquelas condies j mencionadas de crise de hegemonia, em que nenhuma dos setores da classe dominante possua capacidade de dirigir politicamente uma nao burguesa agora potencialmente ameaada pela apario das massas populares, o novo grupo governante, encabeado por Vargas, se colocaria acima dos diversos interesses particularistas das fraes dominantes, com o objetivo primeiro de assegurar a preservao da ordem capitalista. Para alm das supostas independncia, coragem e sabedoria da equipe governamental varguista, essa descolagem dos novos chefes polticos nacionais de suas bases sociais originrias exprimia, na verdade, o incio de um processo de autonomizao relativa do aparelho estatal em face das classes e fraes de classe em presena. Com o incio do Governo Provisrio de Vargas (1930-1934), manifestava-se, assim, pela primeira vez na histria brasileira, o fenmeno poltico do bonapartismo. Tinha incio, portanto, uma forma de dominao poltica indireta da burguesia sobre o restante da nao. Expressando, ao nvel do Estado (regime e governo), uma revoluo passiva em curso, verificou-se, entre a Revoluo de 1930 e a implantao do Estado Novo em 1937, um processo que pode ser compreendido, mutatis mutandis, luz da descrio feita por Gramsci sobre a evoluo poltica italiana da dcada de 1920: um movimento poltico-histrico em que diversas gradaes de cesarismo [bonapartismo] se sucederam at atingir uma forma mais pura e permanente, embora tambm esta no imvel e esttica. 1067
Destarte, com a ascenso de Vargas ao poder e a constituio de um novo regime, o Estado, deixando de funcionar como uma mera representao poltica da burguesia cafeeira, no assumiu, contudo, a condio de instrumento poltico de alguma outra classe ou frao de classe em particular. Alis, foi precisamente em funo de sua autonomia relativa diante de
1067 GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. Op. cit., volume III, p. 77. 379
cada um dos grupos sociais que o Estado do ps-1930 pde, naquela situao de crise de hegemonia, garantir os interesses fundamentais do conjunto da classe dominante. Renovado, encorpando e adquirindo novas atribuies, o ncleo duro do aparelho estatal, composto pelo Poder Executivo com sua burocracia e Foras Armadas, elevou-se por sobre todas as fraes do capital justamente para preservar aquilo que, essencialmente, interessava a todas elas: a manuteno da sociedade burguesa no Brasil. A noo de compromisso, utilizada pelos tericos do populismo para caracterizar o tipo de configurao estatal surgida da Revoluo de 1930, nos parece ser sociologicamente adequada, j que chama a ateno justamente para a existncia desse pacto compulsrio intra- burgus em prol da manuteno da ordem (Estado de compromisso) do qual se originou o bonapartismo brasileiro. Faz-se necessrio, contudo, assinalar que foi o Estado quem, por meio de sua cpula burocrtico-militar dirigente, fixou as condies e os meios pelos quais foi firmado o compromisso. No se tratou, portanto, de um acordo feito mediante as representaes polticas (partidos e/ou organizaes associativas) das vrias fraes da classe dominante, tal como habitualmente ocorre nas formas de dominao hegemnicas, e sim de um pacto imposto pelo Estado s fraes do capital. Foi ele quem, de fora, respondendo s necessidades urgentes da reproduo do capital em um contexto de reconfigurao das relaes externas, conduziu e determinou a realizao desse compromisso intra-burgus. Talvez, assim, ao invs da idia de um compromisso estabelecido entre os vrios setores da classe dominante, o mais correto seria falar em uma classe dominante que foi (forosamente) comprometida, no sentido de que o Estado foi, ao mesmo tempo, o arquiteto e o executor relativamente autnomo desse compromisso. Incapazes, cada um daqueles setores dominantes, de dirigir, por si mesmos, o conjunto de um tecido social em processo de complexificao, e, ao mesmo tempo, ameaados ou, pelo menos, assim se sentindo pela emergncia das massas populares urbanas, todos eles submeteram-se politicamente nova e moderna mquina estatal, a quem foi relegado o papel de organizao e direo da vida nacional, em todas as suas esferas o que no significa, porm, que as fraes da classe dominante tenham aceitado de bom grado essa submisso poltica ao novo aparelho de Estado (vide a Revoluo Constitucionalista de 1932). Em um claro processo de revoluo passiva, o pacto contra-revolucionrio entre as novas e velhas fraes proprietrias foi efetuado pelo alto; exercendo uma espcie de funo de Piemonte adaptada s condies perifricas de uma nao atrasada (mas j politicamente unificada), o aparelho de Estado dirigiu aqueles que deveriam dirigir, e garantiu, para eles, os seus 380
interesses comuns. 1068 Assim, se antes de 1930, a classe dominante brasileira no precisou ser dirigente, depois de 1930, ela no conseguiu ser dirigente. Talvez no seja incorreto dizer que o quantum de autonomia relativa da qual gozar pelo aparelho estatal a partir de 1930 se mostrar, ao longo do populismo, inversamente proporcional capacidade diretiva da classe dominante nacional. No Brasil, esse processo de autonomizao relativa do Estado esteve diretamente ligado ao prprio desenvolvimento orgnico do aparelho de Estado (como, alis, parece ter acontecido tambm no caso clssico francs, segundo a j vista anlise de Marx). Por um lado, tendo que ajustar suas estruturas constitutivas ao alargamento de sua base social no ps-1930, o Estado brasileiro se modernizou celeremente, criando novos ministrios, secretarias, autarquias, empresas e rgos pblicos em geral. Por outro, impelido a reposicionar a economia nacional em um mercado internacional em crise, esse mesmo Estado passou a fazer uso de instrumentos mais fortes de interveno econmica, podendo, assim, funcionar no s como um agente regulador do mercado, mas tambm como sujeito econmico direto. Concentrando cada vez mais recursos, e decidindo com relativa liberdade sobre sua distribuio, o novo aparelho estatal brasileiro em sintonia com a nova economia poltica mundial, defensora do intervencionismo estatal, do planejamento e das teorias anti-cclicas intensificou o uso dos seus expedientes de poltica econmica, como as carteiras de investimento, as taxas de cmbio, a poltica fiscal etc. Muitas vezes, como no caso da criao de companhias estatais e das obras de infra-estrutura urbana, foi o prprio Estado o responsvel direto pelo desenvolvimento das foras produtivas. Caber a ele, portanto, conduzir o processo de inflexo da agrria e mercantil economia brasileira para um modelo industrial em tempos de capitalismo monopolista e a prpria burguesia industrial defendia ser o Estado o responsvel pela execuo dessa tarefa. Assim, nesse processo de modernizao econmica e social do pas, o Estado brasileiro teve sua musculatura tonificada e seu raio corporal dilatado, passando a contar com uma burocracia pblica, civil e militar, de caractersticas modernas. Foi a formao desse exrcito de funcionrios, desse corpo de parasitos (Marx), 1069 que permitiu ao Estado preservar e desenvolver sua autonomia relativa face classe dominante naquelas condies de crise de hegemonia. Dialeticamente, portanto, esse fenmeno social de burocratizao foi, simultaneamente, causa e efeito da prpria autonomizao relativa do aparelho estatal. esse aparelho estatal relativamente autonomizado que, colimando a preservao da ordem, vai efetivar o processo de incorporao controlada dos setores populares urbanos, os
1068 Ainda no que diz respeito frmula weffortiana do Estado de compromisso, imaginamos que nossas consideraes acima possam dar conta da j mencionada indagao cientificamente provocativa feita, certa feita, pela historiadora Virgnia Fontes: Mas no seria todo Estado capitalista um Estado de compromisso?. 1069 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 58. 381
quais se multiplicavam aceleradamente. Nos termos colocados pela teoria do populismo, tratar-se-ia, como vimos, de um Estado de compromisso que, carecendo de uma fonte de legitimidade no interior dos grupos dominantes, foi busc-la e obt-la nas emergentes massas populares (Estado de massas). Conquanto essencialmente correta, essa leitura acerca das origens da relao populista Estado- massas no Brasil foi exposta, a nosso ver, de um modo pouco preciso, porquanto ecltico. Pensamos que no se tratou, propriamente ou, pelo menos, prioritariamente , de uma questo de legitimidade, tal como Weffort weberianamente apontou. Decerto, identificar o fundamento da legitimidade de determinada forma de dominao se constitui em uma tarefa importante para sua caracterizao histrico-poltica, mas no , todavia, o procedimento determinante da investigao. A correlao de foras entre as classes em luta o que, em ltima anlise, explica a origem e a natureza dos regimes polticos. Nas sociedades de massas, toda e qualquer forma de dominao deve necessariamente contar com algum nvel de legitimidade proveniente dos numerosos setores explorados. Em sociedades complexas, nenhum regime pode manter-se de p por muito tempo sem o mnimo de respaldo popular. Assim, diante de uma sociedade em processo gradativo de massificao, o novo Estado brasileiro necessitava, evidentemente, alargar sua base de sustentao em direo classe trabalhadora e demais setores urbanos emergentes. Nesse sentido, a explicao da teoria do populismo faz sentido. As massas, certamente, proveram o novo regime de legitimidade. Contudo, em tintas marxistas, talvez o fundamental fosse dizer que, derivado, em ltima anlise, da prpria apario em cena das massas populares, o aparelho de Estado bonapartista tinha como misso precpua preservar, em outros termos, a explorao do trabalho pelo capital, em um momento no qual a velha forma de dominao oligrquica j se mostrava incapaz de faz-lo. A dinmica e o desenvolvimento da luta de classes, ainda que de forma encoberta, estiveram na base da transformao poltica ocorrida em 1930. Foi assim que o bonapartismo (uma forma de dominao no-hegemnica) substituiu o domnio exclusivo cafeeiro (uma forma de dominao pr-hegemnica). Assim, possivelmente, a explicao para o carter de massas do novo regime (Estado de massas) resida mais nessa sua tarefa preventivamente contra-revolucionria de incorporar controlada e subordinadamente a classe trabalhadora e os estratos mdios urbanos vida pblica nacional como disseram, embora no com esses mesmos adjetivos, os prprios tericos do populismo do que propriamente em uma questo de legitimidade. Pode-se assim dizer que, observado em seu sentido histrico mais profundo, a poltica estabelecida pelo Estado de 382
compromisso para com as emergentes massas populares atendeu s necessidades conjunturais da permanente contra-revoluo burguesa no Brasil. 1070
No quadro desse duplo compromisso firmado sincronicamente pelo aparelho estatal bonapartista entre as diversas fraes burguesas, e entre o conjunto destas e as ameaadoras massas populares , o Poder Executivo desempenhou uma funo arbitral. Seu chefe, Vargas, colocando-se acima dos partidos e lideranas polticas, apresentou-se como intrprete de todas as classes e nico legtimo representante do interesse nacional. Em consonncia com as novas prticas governamentais sobre as qual falaremos um pouco a seguir , seus discursos apregoavam a interveno do Estado nos vrios mbitos da vida nacional e a colaborao de classes como condio necessria para a harmonia e o progresso do pas Nesse sentido, pode-se dizer que Getlio foi o homem certo no lugar certo: suas inegveis habilidades nas prticas da negociao e arbitragem polticas adequavam-se precisamente ao tipo de funo presidencial que requeria o novo regime. Almejando o estabelecimento da paz social, Vargas foi o principal protagonista na construo de um modelo corporativista das relaes entre Estado e as classes sociais, o qual iria permitir uma ao relativamente independente da cpula estatal dirigente ao longo do processo poltico populista. Ser com base nessa nova formatao poltica corporativista que se efetivar uma reorientao da economia brasileira no contexto da crise mundial. Ser por meio desse sistema poltico crescentemente bonapartista que se iniciar, substantivamente, a retardatria modernizao capitalista industrial do pas.
O bonapartismo em construo: o Governo Provisrio (1930-1934) O regime poltico que comeou a ser configurado com a formao do Governo Provisrio de Vargas, a 3 de novembro de 1930, e que teria vigncia at a promulgao da Constituio de 1934, foi um regime tendencialmente bonapartista, o qual continha ainda elementos de cariz oligrquico. Uma tentativa de definio mais aproximada talvez pudesse nome-lo como uma espcie de semibonapartismo oligrquico. O que deu a tnica poltica desse primeiro perodo do varguismo foi a luta entre o centralismo bonapartista-corporativista e o federalismo burgus-oligrquico liberal, luta essa que, na verdade, s se encerraria em 1937, com a vitria definitiva do primeiro. dentro desse contexto de uma acirrada disputa entre as foras centralistas e federalistas, e de conflitos internos s prprias foras federalistas (disputas inter-oligrquicas nos e entre os estados), que devem ser compreendidos os aspectos centrais deste conturbado perodo, marcado,
1070 Para uma anlise da contra-revoluo brasileira em suas vrias duraes braudelianas, vale a pena conferir o recente artigo de Renato Lemos, onde clara a influncia da perspectiva terica de Florestan Fernandes (LEMOS, Renato. Op. cit.). 383
sobretudo, por uma vertiginosa instabilidade poltica. Na complexa dinmica da luta, muitos dos personagens cambiaram de lado um tanto inesperadamente, novos agrupamentos surgiram e surpreendentes alianas foram feitas para, pouco tempo depois, se desfazerem como se nunca tivessem existido. Assim, se 1930 foi, certamente, um marco na nossa revoluo burguesa perifrica uma revoluo sem revoluo, nunca demais lembrar , o perodo 1930-1934 talvez tenha correspondido a uma fase das antecipaes, na qual o embate/conciliao entre o velho e o novo, ou melhor, entre o novo-velho e o velho-novo no Brasil atravessou seu momento mais decisivo, delimitando o carter futuro da nao. A crise de hegemonia se apresentou de forma extremamente aguda naquele quatrinio. O regime poltico nele vigente no conseguiu se mostrar sequer como uma soluo temporria para tal crise de hegemonia, j que os antagonismos sociais, livres de qualquer conteno mais consistente, continuariam a se desenvolver livremente ao longo de todo o Governo Provisrio. Como maior expoente do que poderamos designar de o plo centralista do processo poltico daquele perodo, apresentava-se o prprio Governo Provisrio. Sua primeira medida, que estabeleceu as bases do novo regime, foi o decreto de 11 de novembro de 1930. Por meio dele, foram dissolvidos o Congresso Nacional, as assemblias estaduais e as cmaras municipais, o que, na prtica, conferiu plenos poderes ao Presidente da Repblica. Chefiado soberanamente por Vargas, o Governo Provisrio tinha seu ncleo duro constitudo pela combinao de dois expressivos grupos, cujas trajetrias remontavam (pelo menos) dcada de 1920. O primeiro deles era composto por uma pliade de jovens quadros polticos da oligarquia gacha, tais como Osvaldo Aranha (ministro da Justia), Lindolfo Collor (ministro do Trabalho, Indstria e Comrcio) e o prprio Vargas. Conhecidos em seu estado de origem como a gerao de 1924, 1071 comungavam um viso de mundo influenciada pelo positivismo e o corporativismo o que, como fator ideolgico, talvez ajude a explicar seu papel ativo na montagem das estruturas jurdico-polticas responsveis pela incorporao controlada das classes populares vida institucional do pas no ps-1930. Integravam ainda essa nova cpula poltica dirigente do Estado alguns intelectuais adeptos de posies ultra- autoritrias (fascistizantes), como o jurista mineiro Francisco Campos (ministro da Educao e Sade Pblica) mais tarde responsvel por nada menos que as sinistras elaboraes da Constituio de 1937 e do primeiro Ato Institucional (depois conhecido como AI-1) da ditadura militar implantada em 1964.
1071 Gerao esta que, segundo Robert Levine, se compunha de um novo grupo de prceres do Partido Republicano (posto em evidncia na esteira das polmicas eleies gachas de 1922) e de novos nomes que emergiram na primeira conveno desse partido. Alm dos citados acima, pertenceriam tambm a esta gerao de 1924 personagens como Flores da Cunha, Joo Neves da Fontoura, Batista Luzardo e Maurcio Cardoso. (LEVINE, Robert. Op. cit., p. 85). 384
O segundo grupo do ncleo duro governamental era constitudo pelo chamado tenentismo, ou seja, um setor poltico composto de oficiais militares e civis que, na dcada anterior, haviam participado (muitos deles, com a patente de tenente) dos movimentos sublevadores que abalaram o velho domnio oligrquico. 1072 Ao integrar, agora, o novo bloco de poder burgus ao lado de chefes das dissidncias oligrquicas, o movimento tenentista dava sinais de ter passado (ou de estar passando) por um processo de transformismo poltico. 1073 De suas fileiras vieram alguns dos mais importantes interventores federais, nomeados por Vargas para quase todos os estados do pas (com as excees de Minas Gerais, onde o presidente estadual Olegrio Maciel foi mantido no posto, e do Rio Grande do Sul e Pernambuco, onde os lderes locais aliancistas Flores da Cunha e Lima Cavalcanti assumiram, respectivamente, os governos estaduais). Assim, por exemplo, Juarez Tvora foi nomeado delegado militar da revoluo nos estados do Norte (o que lha valeria a alcunha de vice-rei do Norte), Juracy Magalhes se tornaria interventor da Bahia em 1931, e Joo Alberto assumiria o controle poltico do Estado de So Paulo, contrariando as expectativas do PD de que algum de seus quadros viesse a ocupar o posto em funo de sua adeso ao movimento de 1930. 1074 Chocando-se, em muitos casos, com as oligarquias locais, os interventores tenentes encarnavam os anseios governamentais pela centralizao poltica do pas. A prpria existncia dos interventores federais, vale ressaltar, denotava tanto um controle do hipertrofiado Poder Executivo sobre os demais poderes, quanto a supremacia poltica da Unio sobre os estados e municpios O Cdigo dos Interventores, promulgado por Vargas em agosto de 1931, entre outros dispositivos, vedava aos interventores a contrao de emprstimos sem prvia consulta ao Executivo central, alm de proibir aos estados o gasto de mais de 10% de suas despesas ordinrias com as policias militares e de dot-las, em seus ramos de artilharia e aviao, de um arsenal proporcionalmente superior ao Exrcito. 1075
Os tenentes estiveram presentes com destaque tambm em algumas das chamadas legies, as quais, imbudas de uma perspectiva programtica ultra-centralista, buscavam se sobrepor aos partidos estaduais e combater as lideranas oligrquicas tradicionais. Entre as tais legies, destacou-se a Legio Revolucionria de So Paulo, fundada por Miguel Costa e
1072 Tal como se tornou habitual na historiografia, utilizamos as aspas ao nos referir ao tenentismo no ps-1930, j que, evidentemente, muitos dos antigos tenentes de 1922, 1924 e 1925-1927 j haviam subido na hierarquia militar quando se deu a Revoluo de 1930. Quanto ao movimento tenentista, ver PRESTES, Anita. A Coluna Prestes. 4 edio. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1997. 1073 Conforme j indicamos no captulo anterior, o conceito de transformismo foi proposto por Antonio Gramsci em GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. Op. cit., volume V, p. 286 e ____. Cadernos do crcere. Op. cit., volume II, p. 94-95. Tambm no captulo anterior, em nota de rodap, se encontra uma brevssima sntese do conceito feita por ns. 1074 BRANDI, Paulo. Getlio Vargas (verbete) in ABREU, Alzira Alves de. [ET. Alli]. Dicionrio Histrico Biogrfico Brasileiro (DHBB). 2 edio revista e atualizada. Rio de Janeiro: FGV/CPDOC, 2001, volume V, p. 5905. 1075 Idem, p. 5907. 385
Joo Alberto. Em meados de 1931, os tenentes fundariam o Clube 3 de Outubro, visando consolidar sua influncia no governo. Ao lado de militares ex-adversrios do tenentismo, como Gis Monteiro aliado ao movimento no ps-1930 e, curiosamente, o autor da idia da criao do Clube de Outubro, do qual foi o primeiro presidente , membros da alta cpula tenentista compuseram tambm o chamado Gabinete Negro de Vargas. 1076 Juarez Tvora, Joo Alberto e os tenentes civis Osvaldo Aranha e Pedro Ernesto (que, em setembro de 1931, seria nomeado interventor do Distrito Federal DF) foram alguns dos homens que integraram essa espcie de entourage bonapartista de Vargas, que aconselhava permanentemente o ditador provisrio. Programaticamente, o tenentismo defendia eixos como o prolongamento da ditadura, a representao por classes, a nacionalizao de alguns setores da economia, como as minas e as quedas dgua, e reformas na rea trabalhista. 1077
Pode-se dizer que, em seu curto perodo de durao no ps-1930, o movimento tenentista desempenhou o papel de vanguarda do bonapartismo. A bandeira das oposies burguesas a Vargas era a elaborao de uma nova Constituio liberal para o pas e o conseqente fim do governo ditatorial provisrio. Abertamente contrrio aos setores constitucionalistas que anelavam essa liberalizao oligrquica do regime, o movimento tenentista radicalizaria ainda mais seus discursos e aes, de carter cada vez mais centralista e anti-oligrquico. Embora aliado aos tenentes na luta pela construo e estabilizao do novo regime, Vargas procurava portar-se como rbitro em face dos conflitos travados por aqueles com as fraes burguesas. Ao que tudo indica, a estratgia de Vargas era trazer para a rbita do regime a massa dessas fraes burguesas entendido esta agora no sentido em que Marx se referiu massa da burguesia, o que implicava em destitu-las de sua fora poltica prpria. Assim, em sua dmarche bonapartista, Vargas buscava a adeso das fraes burguesas ao compromisso de 1930 sob o qual repousava, vale lembrar, a prpria autonomia relativa do aparelho estatal , ao mesmo tempo em que trabalhava pela destruio (ou cooptao, quando possvel) de suas representaes polticas tradicionais. Naquele momento, no entanto, os vrios setores da classe dominante brasileira mostravam-se ainda, em geral, fiis aos seus representantes polticos tradicionais, os quais se enfrentavam com o governo central e seus interventores tteres nos estados. Assim, dialeticamente, as fraes burguesas, embora aderentes ao compromisso fixado pelo Estado, procuravam concomitantemente subvert-lo, desejosas de um governo direto de classe, o que, no caso da burguesia cafeeira paulista, implicaria em um simples retorno ao velho regime federalista pr-1930.
1076 Idem. 1077 Idem. 386
O caso de So Paulo foi o mais expressivo da situao descrita acima. Centro de poder do antigo regime exclusivista, o estado esteve durante o primeiro ano que se seguiu ao golpe da Aliana Liberal sob a j mencionada interveno federal do tenente Joo Alberto, a qual tinha como propsito submeter politicamente a poderosa burguesia cafeeira paulista. Buscando, entretanto, o apoio desta nova ordem, Vargas, na formao de seu primeiro ministrio, nomeou para a pasta da Fazenda o banqueiro do caf Jose Maria Whitaker, ligado ao PD (partido que, relembramos, havia integrado a Aliana Liberal). Depois de um curto perodo de colaborao conflituosa na gesto de Joo Alberto, o PD passou a adotar uma postura cada vez mais crtica face ao Governo Provisrio. Combatido de forma incontinente pelos tenentes (em especial pela Legio Revolucionria), Whitaker pediria demisso do cargo em novembro de 1931. Em fevereiro do ano seguinte, o PD se aliaria ao antigo Partido Republicano Paulista (PRP), conformando a chamada Frente nica Paulista (FUP), que se tornaria a principal ameaa poltica ao recmfundado regime varguista. No obstante ter Vargas (contra a vontade dos tenentes) acenado aos opositores com o iniciar de um gradual processo de constitucionalizao, e nomeado um civil paulista para o governo de So Paulo, o antigo embaixador Pedro de Toledo que assumiria o posto no lugar do coronel Rabelo, sucessor de Laudo de Camargo que, por sua vez, havia sucedido Joo Alberto , a burguesia cafeeira paulista, unificada e com o apoio dos industriais e setores mdios do estado, acabou optando pelo levante armado contra a nova ordem. Programaticamente restauracionista e politicamente reacionrio, o revel movimento da burguesia paulista se disfarava sob as bandeiras da autonomia do estado e da constitucionalizao do pas. Assim, a classe dominante paulista, ainda que incorporada ao pacto compulsrio intra-burgus de 1930, e tendo muitas de suas reivindicaes econmicas atendidas pelo Governo Provisrio (em especial as referentes ao caf), no se mostrava disposta ainda a dobrar-se politicamente s foras bonapartistas, as quais apareciam aos seus olhos oligrquicos como aventureiros rapaces que haviam usurpado seu poder absoluto. Com o espocar da Revoluo Constitucionalista em So Paulo e a iminncia de apoio a ela pelos grupos dominantes gachos (unificados na Frente nica Gacha - FUG), a luta entre a centralizao e o federalismo atingiu, em julho de 1932, seu ponto de exasperao, colocando o pas beira de uma guerra civil. Obtendo, nas ltimas horas, a fidelidade ao Governo Provisrio por parte das burguesias gacha e mineira embora alas polticas destas, lideradas, respectivamente, por Borges de Medeiros e Artur Bernardes, acabassem aderindo revolta , Vargas conseguiu isolar So Paulo e derrotar poltica e militarmente sua classe dominante, a mais forte do pas. A vitria do governo varguista sobre burguesia paulista impediu que os ponteiros da histria 387
voltassem para onde estavam posicionados antes de 1930. As foras centralistas bonapartistas venciam, assim, uma importante batalha em sua errtica luta contra as foras federalistas burguesas, assegurando, definitivamente, a unidade nacional brasileira (posta em xeque por alguns setores extremistas do federalismo e pela imprevisvel dinmica da luta no caso de seu prolongamento). O tratamento do governo em relao aos vencidos evidenciaria a estratgia bonapartista do varguismo qual nos referimos pouco acima: aps alguns dias de deteno, as lideranas polticas constitucionalistas foram exiladas em Portugal e teriam seus direitos polticos suspensos por trs anos (medida essa que foi estendida aos dirigentes do governo deposto em 1930); por outro lado, Vargas concordou em resgatar, por meio do Banco do Brasil, os bnus que os bancos paulistas haviam emitido para financiar a guerra. Ademais, Valdomiro Lima, o novo Interventor Federal no estado, receberia instrues para se aproximar dos diversos setores da populao paulista. Em meados de 1933, Vargas nomearia novamente um paulista civil para governar o estado (Armando Salles Oliveira), pondo fim prtica de empurrar goela abaixo da burguesia interventores da corrente tenentista. 1078
Desse modo, como dissemos, ao mesmo tempo em que trabalhava pela aniquilao das direes polticas burguesas de oposio ao regime, o bonapartismo varguista visava angariar para si o apoio do conjunto da classe dominante nacional, inclusive o da burguesia cafeeira paulista. Vargas penava, assim, para obter uma espcie de consenso passivo da burguesia brasileira para sua poltica de modernizao burguesa do pas j que um consenso ativo da classe dominante, como indicavam os prprios acontecimentos de So Paulo (e a existncia mesma do bonapartismo), parecia estar historicamente fora de cogitao. Ainda em relao ao contexto poltico do perodo 1930-1934, vale mencionar, como antecipamos, a ocorrncia de inmeros conflitos intra-oligrquicos em muitos estados da federao. Imersos no cenrio geral da luta centralizao x federalismo, alguns desses conflitos acabaram motivando a interveno moderadora do poder central. Assim foi o caso de Minas Gerais, onde, em meio disputa entre Virglio de Melo Franco e Gustavo Capanema pela sucesso do falecido Olegrio Maciel no Governo do Estado, Vargas resolveu o impasse com a nomeao, em dezembro de 1933, de um tertius: o poltico, at ento pouco conhecido, Bendito Valadares Ribeiro ( poca, deputado federal constituinte). Desvinculado das faces em disputa, Valadares se tornaria um aliado fiel de Vargas nos futuros conflitos polticos, e participaria ativamente da conspirao de 1937. 1079 A chamada soluo Valadares, como ficaria conhecida a sada varguista para a crise poltica mineira,
1078 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5909-5910. 1079 Idem, p. 5913-5914. 388
exemplificava claramente o papel arbitral exercido pelo chefe do Executivo naquele tumultuado processo poltico. No tocante poltica econmica, o Governo Provisrio bonapartista levou a cabo uma linha de atuao marcada pela interveno centralizadora do Estado nos rumos da economia. Impelido a salvar a produo cafeeira (base das receitas e divisas do pas), Vargas criou em 1931 o Conselho Nacional do Caf (CNC) que, em fevereiro de 1933, seria substitudo pelo Departamento Nacional do Caf (DNC). Atendendo a muitos dos apelos que os cafeicultores haviam feito em vo ao ex-presidente Washington Lus, o novo governo procedeu destruio dos estoques de caf e compra do excesso da produo pelo CNC. Em agosto de 1931, chegou a suspender parte dos pagamentos da dvida externa, e iniciou entendimentos para obter emprstimos com vistas a quit-la. 1080 Na sequncia do processo de centralizao das decises econmicas, foi fundado, em 1932, o Instituto do Cacau e, no ano seguinte, o Instituto do Acar e do lcool. Em 1934, seria criado o Conselho Federal do Comrcio Exterior, ilustrando as tendncias estatistas e pr-planificadoras do novo regime. Em setembro de 1931, o governo introduziu o controle cambial como monoplio atravs do Banco do Brasil e uma escala de prioridade para a compra de moeda estrangeira. Visando equilibrar o balano de pagamentos, essas medidas dificultariam as importaes menos essenciais e acabariam funcionando como um mecanismo de tipo protecionista para a produo fabril nacional. 1081 Em julho de 1932, o Banco do Brasil recebeu autorizao para conceder financiamento de longo prazo s indstrias (e tambm s empresas agrcolas) por meio de sua Carteira de Redescontos. Foi criada, nesse mesmo ms, a Caixa de Mobilizao Bancria que, concedendo emprstimos aos bancos, tinha por finalidade impedir uma situao de insolvncia. 1082 Como muitos autores assinalaram, difcil caracterizar a poltica econmica do Governo Provisrio como uma poltica abertamente industrialista. Todavia, o conjunto das medidas por ele adotadas para preservar a renda do setor cafeeiro, combinada expanso dos gastos pblicos e ao aumento do custo das importaes, logrou evitar uma recesso generalizada, propiciando condies favorveis para um ulterior processo de industrializao. 1083 Ainda como um fator econmico pr-industrializao estimulado pelo governo, importante destacar o chamado confisco cambial: praticado desde setembro de 1931, ele transferia gradativamente capitais da agricultura para o setor industrial. Portanto, como pode ser visto, ainda que, por raisons dEtat, a poltica econmica do primeiro governo bonapartista de Vargas tenha se voltado prioritariamente para o setor agrcola (em especial, para a salvao da produo cafeeira), pode-se dizer que j sob ele (e por ele) foi iniciado um
1080 Idem, p. 5910-5911. 1081 DINIZ, Eli. Empresrio, Estado e capitalismo no Brasil. 1930-1945. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978. 1082 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5911. 1083 FURTADO, Celso. Formao econmica do Brasil. Rio de Janeiro: Fundo de cultura, 1959. 389
processo cujo resultado seria, alguns anos frente, uma acelerada modernizao industrial do pas. A centralizao poltica do pas e o crescente intervencionismo do Estado na rea econmica, acompanhados do fortalecimento da prpria mquina estatal, mostrar-se-iam como elementos essenciais para um incio (ainda que sutil) de uma inflexo do eixo da economia nacional. Tinha lugar, assim, aquilo que os estudiosos costumaram chamar de industrializao restringida, isto , um processo de industrializao ainda extremamente dependente, em termos de financiamento adequado s suas necessidades, do setor agro- exportador. 1084
J no que diz respeito chamada questo social cuja soluo se encontrava entre as prprias razes de ser do novo regime , o Governo Provisrio no tardou a se manifestar concretamente. A criao de um ministrio voltado para o Trabalho (institudo como Ministrio do Trabalho, Indstria e Comrcio MTIC) menos de um ms depois da derrubada da Primeira Repblica evidenciou a preocupao da recm-formada cpula bonapartista em administrar, sob outros termos, a luta de classes no pas. Como bem notaram os tericos do populismo entre outros muitos intrpretes do varguismo , o processo de incorporao subalterna das massas populares vida institucional do pas combinou, a um s tempo, trs elementos axiais: a manuteno da represso ordinria vanguarda poltica dos setores explorados, a construo de uma estrutura sindical de tipo corporativista (de inspirao fascista) e a elaborao de uma vasta legislao social e poltica que atendia a demandas importantes da classe trabalhadora urbana (a cidadania social e poltica, apontada por Weffort e Ianni). Nesse aspecto, como em alguns outros, o bonapartismo brasileiro se assemelhou bastante chamada via prussiana de modernizao capitalista retardatria. Assim como Bismarck que, conduzindo do alto o processo de transio a uma sociedade industrial, lanou mo do binmio represso-reformas para incorporar politicamente o proletariado nova ordem combinando, como vimos, suas leis anti-socialistas com a criao da Previdncia Social, por exemplo , Vargas procurou eliminar a autonomia sindical e poltica dos trabalhadores na medida em que lhes reconhecia (ainda que parcialmente) direitos sociais e polticos h muito reivindicados pelo movimento operrio brasileiro. Assim, em maro de 1931, o Governo Provisrio como j mostramos no captulo anterior iniciaria a montagem do sindicalismo oficial com a fixao do decreto 19.770, que estabelecia a carta sindical (s seriam considerados legais os sindicatos reconhecidos pelo MTIC) e o princpio da unicidade sindical (somente um sindicato seria reconhecido por categoria em determinada regio geogrfica). Procurando bloquear o acesso de imigrantes
1084 MENDONA, Snia Regina de. Estado e economia no Brasil. Opes de desenvolvimento. 3 edio. Rio de Janeiro: Graal, 1986, p. 29. 390
europeus (muitos de tendncias polticas anarquistas, socialistas e comunistas) ao mercado de trabalho, o governo criou, em agosto de 1931, a Lei de Amparo ao Trabalhador Brasileiro Nato, que obrigava os estabelecimentos industriais e comerciais a terem pelo menos 2/3 de sua mo-de-obra composta por trabalhadores nacionais. Completando o quadro coercitivo, foi montada, no Distrito Federal, a Delegacia Especial de Segurana Poltica e Social (DESP) que, como um rgo independente da poltica administrativa e judiciria, estava subordinada diretamente Chefia de Polcia. 1085
No que se refere aos direitos sociais, a partir de 1932 (com a posse do gacho Salgado Filho no MTIC, em substituio a Lindolfo Collor, que se mostrara simptico conspirao paulista ento em curso), o governo aceleraria a criao e implementao das leis de cunho trabalhista. 1086 Em maro daquele ano, foi fixado o limite de oito horas para a jornada de trabalho nos ramos da indstria e do comrcio (sendo permitidas, em alguns casos, jornadas de dez horas mediante uma maior remunerao aos trabalhadores). Em decretos de maio e novembro, foram regulamentados o trabalho feminino e o de menores. Ainda em 1932, foram institudas tambm as Comisses Mistas de Conciliao, voltadas para a resoluo dos dissdios entre os trabalhadores e a patronal. Entre 1932 e 1934, o governo criou tambm uma srie de Institutos e Caixas (mais tarde transformadas em Institutos) de Aposentadorias e Penses para vrias categorias profissionais, tais como os martimos, comercirios, bancrios, mineiros e estivadores. Em janeiro de 1934, um decreto regulamentaria as frias de 15 dias aos operrios industriais, benefcio a que s teriam direito aqueles que fossem sindicalizados nas entidades oficiais (reconhecidas pelo MTIC) 1087 o que ilustrava, claramente, o inextricvel vnculo entre as duas facetas da estratgia bonapartista de incorporao controlada das massas: o corporativismo e o reformismo. Por meio das ideologias difundidas pela propaganda bonapartista, comeava a ser construda a imagem de Vargas como aquele que, dotado de sapincia e generosidade, teria doado aos trabalhadores os direitos sociais, protegendo-os das elites gananciosas. Muitas dessas medidas de carter social fixadas pelo Governo Provisrio seriam incorporadas, em breve, pela Constituio de 1934. Importante lembrar, entretanto, que os direitos sociais no foram estendidos aos trabalhos rurais, o que, evidentemente, funcionou como um importante elemento de atrao dos setores latifundirios para o compromisso que sustentava o regime. 1088
1085 MATTOS, Marcelo Badar (coord.) [et. al.] Greves e represso policial ao sindicalismo carioca (1945- 1964). Op. cit., p. 80. 1086 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5912. 1087 Idem. 1088 No plano econmico, como bem salientou Francisco de Oliveira, a no-validade dos direitos sociais para os trabalhadores rurais foi extremamente funcional para o desenvolvimento industrial do pas, na medida em que, mantendo baixssimo o custo da fora de trabalho no campo, acabava por baratear os gneros alimentcios que 391
O Governo Provisrio tambm daria incio modernizao do ensino mdio e superior, expandindo consideravelmente a educao pblica no pas. O Ministrio da Educao e Sade Pblica (MESP), sob as gestes de Francisco Campos, Washington Pires e Gustavo Capanema (este j sob o Governo Constitucional), tambm realizaria uma ampliao da assistncia na rea de sade pblica. Concomitantemente, aes do MTIC promoveriam um aumento da assistncia hospitalar (sade curativa) ainda que no tenha se verificado um crescimento significativo da infra-estrutura hospitalar estatal. Em funo da j referida ampliao da mquina burocrtica estatal, parcela substantiva dos setores mdios encontraria emprego no funcionalismo de Estado, sobretudo em funo do uso cada vez mais recorrente dos concursos pblicos para a contratao de pessoal (o que se intensificaria a partir do Estado Novo). No mbito dos direitos polticos, o Governo Provisrio promulgou em fevereiro de 1932 um novo Cdigo Eleitoral, instituindo o voto secreto, a Justia Eleitoral (pontos que constavam no programa da Aliana Liberal), o sufrgio feminino e a representao classista para os rgos do Legislativo (reivindicao de jaez corporativista que, como dissemos, compunha a plataforma do setor tenentista). 1089 Continuava, entretanto, vetado o direito de voto aos analfabetos, o que excluiria enormes contingentes do processo eleitoral de 1933 (na verdade, o primeiro de apenas dois pleitos por sufrgio direto que ocorreriam at o fim do Estado Novo, em 1945). De todo modo, tal como Napoleo III fora visto pelos camponeses e operrios franceses como aquele que lhes restitura o sufrgio universal (masculino) vergonhosamente subtrado pela Assemblia Nacional burguesa, Vargas aparecia para muitos setores populares urbanos como o governante que, finalmente, rompia com o exclusivismo poltico que marcara toda a Primeira Repblica. Em meio efetivao dessas medidas democrticas, vale ressalvar, continuavam a vigorar tanto a censura imprensa, quanto a ilegalidade do PCB. Inegavelmente, o bonapartismo varguista encerrou, desde seu primeiro momento (o Governo Provisrio), um contedo reformista. Foi um reformismo burgus, certamente, e limitado pelas prprias condies atrasadas e perifricas do pas que politicamente o produziu. Pode ser qualificado, talvez, de anmico ou esqulido, se comparado a algumas experincias posteriores social-democratas redistributivistas da Europa. Mas foi reformista, e o foi, ao que tudo indica, na medida necessria para a preservao da ordem capitalista em uma sociedade dependente que celeremente se urbanizava e, saltando etapas, se industrializava. Assim, se as reformas varguistas, em termos absolutos (ou ainda, em termos
chegavam aos meios urbanos, diminuindo, consequentemente, o custo da fora de trabalho fabril e, por conseguinte, aumentado a lucratividade do capital industrial. (OLIVEIRA, Francisco de. Crtica razo dualista. Op. cit., p. 45-46, e 64-65). 1089 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5908. 392
histricos comparativos), podem ser tomadas como nada alm de migalhas jogadas pelo Estado aos trabalhadores brasileiros, para muitos destes, entretanto, vivendo em condies de miserabilidade extrema (ou mesmo recm-chegados das indigentes reas rurais), elas permitiram satisfazer demandas bsicas de sobrevivncia. Desse modo, tendo sempre em mente o inexpugnvel sentido histrico contra-revolucionrio do bonapartismo brasileiro, no seria equivocado afirmar que, entre 1930-1934, ele assumiu um carter relativamente progressista, na medida em que suas aes utilizando as palavras de Gramsci quebra[ram] cristalizaes estatais sufocantes tambm no campo dominante e inser[iram] na vida do Estado e nas atividades sociais um pessoal diferente e mais numeroso do que o precedente. 1090
O posicionamento poltico da classe dominante em relao dade corporativismo- reformismo aplicado pelo varguismo explicitou o carter bonapartista do novo regime. Agraciada com a no-extenso dos direitos sociais ao campo, a burguesia latifundiria no tinha porque fazer muito alarde em relao s leis trabalhistas. J as burguesias industrial e comercial, atingidas diretamente por aquelas, opuseram-se fervorosamente poltica reformista do governo. Ainda que, como ficaria demonstrado pelos analistas, os direitos sociais tenham se mostrado fundamentais tanto para a manuteno da ordem poltica, como para a prpria acumulao capitalista, o empresariado urbano faria de tudo para neg-los ao proletariado: 1091 suas tticas iriam desde a tentativa de evitar a criao das leis pelo Executivo (ou sua aprovao pelo Legislativo, a partir do processo constituinte de 1933-1934), at a luta pela procrastinao de sua regulamentao; no restando outra alternativa, os empresrios se decidiam simplesmente por no aplic-las em suas fbricas e estabelecimentos comerciais. 1092
Do mesmo modo, o conjunto da burguesia, nos anos do Governo Provisrio, resistiu com tenacidade ao seu enquadramento representativo no modelo corporativista em construo. Seriam somente a obstinada luta dos trabalhadores pela independncia de seus sindicatos e a ameaa do fantasma comunista que fariam a classe dominante gradativamente abandonar sua defesa categrica da autonomia sindical. Assim, quando seu medo do proletariado e do bolchevismo atingiu gradaes histricas, sobretudo aps o frustrado levante da ANL/PCB em novembro de 1935, a classe dominante, rendendo-se ao governo em nome da ordem, se dobraria finalmente estrutura sindical do bonapartismo sempre, entretanto, preservando ou construindo, em paralelo aos sindicatos patronais oficiais, suas entidades associativas na sociedade civil (as quais, diferentemente das pertencentes classe trabalhadora, seriam
1090 GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. Op. cit., volume III, p. 303-304. 1091 Exceo feita para a legislao previdenciria, aceita sem maiores problemas pela burguesia. 1092 Quanto ao posicionamento da burguesia industrial face aos direitos sociais, ver GOMES, Angela de Castro. Burguesia e Trabalho no Brasil. Poltica e legislao social no Brasil (1917-1937). Rio de Janeiro: Campus, 1979. 393
cinicamente toleradas pelo Estado ao longo de todo o perodo populista). 1093 Em resumo, pode-se dizer que o corporativismo e o reformismo social foram impostos pelo aparelho estatal bonapartista classe dominante para o prprio bem desta. Por sua vez, a classe trabalhadora, como antecipamos acima, travou uma frrea luta pela autonomia sindical. Sua vanguarda, composta por pecebistas, trotskistas e anarquistas, pelejou arduamente pelo no enquadramento dos sindicatos operrios na estrutura sindical oficial (recusando-se a registr-los no MTIC), no que se deparou no s com a represso estatal, mas tambm com a resistncia de suas prprias bases, vidas, naturalmente, para gozar dos benefcios trabalhistas (s concedidos, como dissemos, aos trabalhadores filiados aos sindicatos em posse da carta sindical). Somada oposio burguesa ao corporativismo, essa resistncia dos setores mais combativos da classe trabalhadora, ainda que conduzida de forma fragmentria devido, principalmente, postura sectria e ultra-esquerdista adotada pelo PCB, guiado desde 1929 pela linha do terceiro perodo 1094 conseguiu retardar a vitria plena do modelo sindical propugnado pelos dirigentes do Estado. Seria tambm s depois de 1935, com a intensificao da coero classe trabalhadora organizada, que o corporativismo sindical se tornaria, para os setores explorados, uma realidade. 1095
A Constituio de 1934 e a formao de um bonapartismo semiparlamentar Embora Vargas tenha derrotado as foras constitucionalistas em 1932, estas acabariam por obter uma espcie de vitria na derrota, para usarmos aqui uma expresso de Isaac Deutscher. 1096 Sob presso das fraes burguesas, Vargas viu-se impelido a liberalizar o regime. Pouco menos de um ano depois do esmagamento da Revoluo Constitucionalista de So Paulo, ocorreriam eleies para uma Assemblia Constituinte, abrindo caminho para o encerramento da ditadura bonapartista que, provisoriamente, j durava quase trs anos. Entretanto, como veremos logo frente, a vitria na derrota das foras constitucionalistas acabaria por se mostrar, na verdade, uma vitria de Pirro. Resultado da medio de foras entre a cpula dirigente do Governo Provisrio e as fraes burguesas politicamente organizadas, a Constituio de 1934 amalgamaria elementos centralistas, federalistas, oligrquicos, corporativistas, liberais e democrticos. O regime poltico nela baseado apresentaria um contedo visivelmente combinado, no qual um ainda forte e relativamente autonomizado Poder Executivo conviveria com um Parlamento frgil e
1093 Em 1931, por exemplo, o CIESP, para se adaptar s regras do corporativismo, se transformou na Federao das Indstrias do Estado de So Paulo (FIESP). Em 1939, o CIESP seria refeito, passando a conviver ao lado da FIESP. 1094 Ver captulos II (O complicado bonapartismo alemo - 1930-1933) e III (Crise de hegemonia, Revoluo de 1930, compromisso e populismo). 1095 MATTOS, Marcelo Badar. Trabalhadores e Sindicatos no Brasil. Op. cit., p. 61-76. 1096 DEUTSCHER, Isaac. Trotski. O profeta banido. Op. cit., p. 523. 394
outros declinantes aspectos de uma democracia burguesa. Por analogia ao regime francs surgido no mesmo ano (com a formao do governo Doumergue, em 1934), o regime poltico brasileiro que vigorou desde a promulgao, em julho, da Carta constitucional at o golpe do Estado Novo, em novembro de 1937, pode ser definido como um tipo de bonapartismo semiparlamentar. 1097 Tal como o regime poltico anterior (1930-1934), essa modalidade de bonapartismo, pelo prprio hibridismo que encerrava, tambm no faria seno aguar as contradies do processo, no logrando oferecer-se nem mesmo como uma soluo temporria para a crise de hegemonia que medrava sem bices na sociedade brasileira As razes para o predomnio dos traos bonapartistas sobre os democrtico-burgueses no regime de 1934 remontam ao prprio modo como foi realizada a constitucionalizao da Revoluo de 1930. Pressionado, como dissemos, a por termo a sua ditadura provisria, Vargas tratou de assegurar seu comando pessoal sobre o processo de transio. No melhor estilo das revolues passivas, essa seria mais uma das muitas mudanas de regime poltico na histria do pas realizada pelo alto, com vistas a evitar, preventivamente, uma ameaadora participao ativa dos setores subalternos no processo. Em funo de sua vitria sobre a rebelio paulista, Vargas obteve uma ampla margem de poder e influncia sobre a Assemblia Constituinte, que se instalaria em novembro de 1933. 1098 Foi o Governo Provisrio quem nomeou a Comisso Constitucional, responsvel pela elaborao do anteprojeto de Constituio que seria apresentado Assemblia, e foi tambm ele quem, por meio de um decreto presidencial de maio de 1933, definiu o regimento interno da prpria Assemblia. Segundo o decreto, esta seria responsvel pela elaborao da nova Constituio e pela eleio do Presidente da Repblica, devendo se dissolver em seguida. 1099 Em meio aos preparativos para a Constituinte, Vargas, opondo-se posio deliberada pela Comisso Constitucional que ele mesmo formara, invocou o Cdigo Eleitoral para impor a presena da chamada representao classista na futura Assemblia. Assim, alm dos 214 deputados eleitos pelo sufrgio direto, a Assemblia seria composta tambm por 40 representantes eleitos pelos sindicatos oficiais, o que garantiria um enorme peso poltico do governo nos debates constitucionais. 1100
Em fins de 1932, teve incio um processo de reorganizao poltico-partidria direcionado para as eleies de maio de 1933. Vargas adotou a estratgia de incentivar a criao de partidos liderados por seus interventores, a fim de que, integrados, esses partidos pudessem apresentar um programa mnimo que se compatibilizasse com o apresentado pela
1097 A expresso, como vimos no Captulo II, foi utilizada por Trotsky para caracterizar o regime poltico francs existente entre 1934-1940 (TROTSKY, L. Aonde vai a Frana?. Op. cit). 1098 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5912. 1099 Idem. 1100 Idem. 395
Comisso Constitucional. Surgiram, assim, o Partido Republicano Liberal (PRL), formado no Rio Grande do Sul por Flores da Cunha com o apoio de Osvaldo Aranha, e o Partido Progressista (PP) em Minas Gerais, articulado por Olegrio Maciel, Antonio Carlos, Gustavo Capanema e Virglio de Melo Franco. 1101 J as oposies burguesas ao governo se rearticularam por meio de suas antigas representaes partidrias, como o Partido Republicano Mineiro (PRM), o PRP e o PD. Estes dois ltimos partidos formariam uma frente nica eleitoral, intitulada Chapa nica por So Paulo Unido, que teria o apoio da Associao Comercial do estado e da Federao dos Voluntrios, organizao que reunia os ex-combatentes de 1932. Liderada por Alceu Amoroso Lima (Tristo de Athayde), foi criada tambm a Liga Eleitoral Catlica (LEC), que defendia princpios como a indissolubilidade do casamento e o ensino religioso facultativo nas escolas pblicas. 1102 Com apoio de interventores federais em estados nordestinos, como Juracy Magalhes e Lima Cavalcanti, os tenentes, por sua vez, animaram a criao de alguns partidos estaduais, batizados de social-democrticos. Sua frente eleitoral, denominada de Unio Cvica Nacional, no obteria uma votao expressiva escala nacional. 1103 O movimento tenentista, a essa altura, j caminhava a passos largos para sua rpida desintegrao; depois de ter feito s vezes de um independente intrprete das classes mdias nos anos 20, e de ter ocupado a linha de frente das foras bonapartistas a partir da Revoluo de 1930, o tenentismo saa de cena antes que a luta contra o federalismo burgus-oligrquico liberal estivesse totalmente decidida. Buscando angariar apoio para sua candidatura presidencial, Vargas declarou o fim da censura imprensa e concedeu anistia aos revoltosos de 1932. Depois de sucessivas crises geradas, principalmente, pela ostensiva interveno do Executivo nos trabalhos da Constituinte e aps o fracasso de uma conspirao golpista antiliberal orquestrada por Gis Monteiro , 1104 foram aprovados no plenrio, em junho de 1934, os atos do Governo Provisrio, que ficaram imunes a qualquer tipo de reviso judiciria. 1105 Em 16 de julho, foi promulgada a Constituio e, no dia seguinte, Vargas seria eleito Presidente da Repblica pela Assemblia Constituinte (convertida provisoriamente em Cmara dos Deputados e incorporando as funes do Senado), derrotando por uma ampla margem de votos Borges de Medeiros e o prprio Gis Monteiro, alm de outros candidatos menos votados. 1106
Por um lado, o carter da nova Constituio e a sua prpria existncia, de certo modo representou um sensvel baque sofrido pelas foras bonapartistas. A volta de um
1101 Idem. 1102 Idem. 1103 Idem. 1104 Idem, p. 5914. 1105 Idem, p. 5915. 1106 Idem. 396
Poder Legislativo ordinrio (em suas vrias instncias) constitudo a partir de eleies diretas por sufrgio universal implicava em uma diminuio do controle do processo poltico por parte do Executivo. A eleio dos novos governadores pelas assemblias constituintes estaduais as quais, aps os pleitos indiretos para o Governo do Estado, o Senado e as elaboraes das constituies estaduais, se transformaram em assemblias ordinrias permitiu que as fraes burguesas ganhassem fora poltica, restabelecendo, ao menos em mbito estadual, sua dominao de classe de um modo mais direto (via controle dos executivos estaduais). Ainda que muitos dos interventores varguistas acabassem sendo eleitos governadores, alguns deles se postariam, desde ento, mais na qualidade de representantes das fraes burguesas estaduais do que na de aliados do presidente bonapartista (Flores da Cunha, Armando Salles etc.). 1107 Ademais, a nova Constituio preservava muitos aspectos da Carta de 1891, e fixava um modelo organizativo do pas ainda claramente federalista (mais identificado, portanto, com as propostas das fraes burguesas oligrquicas do que com o centralismo bonapartista dos tenentes). Por outro lado contribuindo para a preponderncia dos elementos bonapartistas no novo regime , a Constituio de 1934 ainda mantinha uma forte concentrao de poder no Executivo federal, cuja chefia central continuava nas mos de Vargas (embora agora j no to livres, graas s peias constitucionais). Foi mantida tambm a representao classista, pela qual Vargas e os tenentes tanto batalharam. Ainda que nos quadros de um sistema federativo, a Unio passou a gozar juridicamente de muito mais poder do que tivera no regime da Primeira Repblica. A autonomia financeira dos estados foi significativamente restringida, a comear pelos direitos estaduais de exportao, que foram limitados a 10% ad valorem. 1108
A jurisdio sobre os direitos relativos ao subsolo foi transferida para o governo federal, e a autoridade do Senado tambm decaiu na nova institucionalizao da diviso dos poderes. 1109
Fundamental lembrar ainda que a legislao sindical corporativista produzida pelo Governo Provisrio foi, com algumas poucas alteraes, incorporada Carta de 1934 e lembramos ainda que a mais importante daquelas alteraes foi a adoo do pluralismo sindical que, embora constasse formalmente no texto devido s presses operrias, eclesisticas e empresariais, no teria vigncia prtica. 1110 Mantendo a lgica bi-facetada da estratgia
1107 Alguns dos processos eleitorais para os governos de estado, em funo das disputas intra-oligrquicas, acabaram se desenrolando de uma forma bastante conturbada, e requerendo algum tipo de posicionamento, mais ou menos intervencionista, da parte do Poder Executivo (e, mais particularmente, do prprio Vargas). Foram os casos, por exemplo, dos estados do Par e do Rio Grande do Norte (LEVINE, R. Op. cit., p. 78-82). 1108 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5915. 1109 Idem. 1110 Sobretudo em funo dos limitadores dispositivos que, s no ano seguinte, o regulamentariam. Ademais, a escalada repressiva do governo (apoiada na Lei de Segurana Nacional), a partir de junho de 1935, impediria qualquer chance de uma real liberdade sindical para os trabalhadores (MATTOS, Marcelo Badar. Trabalhadores e Sindicatos no Brasil. Op. cit., p. 67). 397
bonapartista de dominao poltica (corporativismo-reformismo/represso-reformas), a maior parte da legislao social posta em vigor por Vargas a partir de 1930 foi tambm adicionada nova Carta. J no que diz respeito aos seus elementos mais propriamente democrticos, vale assinalar que, alm dos direitos sociais os quais, como j dissemos, atendiam parcialmente a antigas reivindicaes do movimento operrio , a Constituio de 1934 assegurava total liberdade de reunio, de crena, de associao poltica e de imprensa. 1111
Indubitavelmente, o combinado regime poltico nascido da nova Constituio permitia uma maior liberdade de ao para os sujeitos polticos em geral, propiciando um dinamismo do processo poltico para o qual a classe dominante brasileira logo mostraria no estar ainda preparada. Aproveitando-se das brechas democrticas do regime, o movimento operrio e sindical retomaria o caminho de suas lutas econmicas e polticas, fazendo com que greves e manifestaes populares voltassem a compor o cenrio poltico nacional, tornando-o ainda mais turbulento. Tambm se valendo da relativa margem de liberdade concedida pela nova Carta constitucional, o integralismo fascista, surgido em 1932 com a Ao Integralista Brasileira (AIB), assistiria a um crescimento vertiginoso sob o bonapartismo semiparlamentar, disputando a influncia dos setores mdios com os movimentos progressistas e democrticos impulsionados pelo PCB (que, alis, continuava proscrito sob o novo regime). De todo modo, a hbrida Constituio de 1934 teria apenas pouco mais de trs anos de vigncia formal. Na prtica, desde julho de 1935, quando o governo lanaria mo da Lei de Segurana Nacional para decretar a dissoluo da ANL, seus traos liberais e democrticos j comeariam a ruir. A partir de novembro daquele ano, quando teriam lugar as sublevaes pecebistas, as sucessivas utilizaes pelo Poder Executivo dos estados de stio e de guerra (todos constitucionalmente aprovados pelo Congresso) tornariam a Constituio uma letra morta para o conjunto dos setores populares organizados. Finalmente, com o advento do Estado Novo, a natimorta Carta constitucional de 1934 1112 seria substituda por outra, abertamente bonapartista e despudoradamente reacionria. Com o incio do Governo Constitucional de Vargas (1934-1937), a luta de classes ganharia contornos mais ntidos, relegando para um segundo plano o conflito centralismo x federalismo forma difusa pela qual, desde 1930, vinha se manifestando a luta entre os grupos dominantes. Ofuscado, porm contnuo, aquele conflito continuaria a se processar agora como epifenmeno de um confronto j mais claramente definido (embora ainda no totalmente aberto) entre o capital e o trabalho. A luta da burguesia contra o movimento
1111 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5915. 1112 BARBOSA, Francisco de Assis. Prefcio LEVINE, R. Op. cit., p. 13. 398
operrio daria a tnica do perodo 1934-1937, e teria como um de seus resultados a vitria definitiva do projeto centralista bonapartista-corporativista sobre o federalismo burgus- oligrquico liberal, vitria essa alcanada com a implantao da ditadura estadonovista. Assim, o xito final da burguesia em sua luta contra o espectro da ameaa proletria, obtido por meio da consolidao do projeto bonapartista em 1937, significaria, contraditoriamente, a derrota do modelo federalista-oligrquico liberal que havia sido ardorosamente por ela defendido ao longo do processo poltico iniciado com a Revoluo de 1930. Dessa forma, se, em 1934, com a proclamao da Constituio, a burguesia havia recuperado ao menos uma parte do quantum de poder poltico direto que perdera em 1930 ou melhor, do quantum que sua frao cafeeira perdera, j que s esta detinha efetivamente o poder antes da Revoluo , durante o perodo 1934-1937, o que se verificar um processo pelo qual a prpria burguesia abdicar desse seu j escasso poder poltico, entregando-o com doce constrangimento s foras bonapartistas, que se tornaro, ento, as nicas responsveis pela garantia da ordem burguesa.
A escalada bonapartista (1934-1937) O poder bonapartista surgido em 1930 sentia-se desconfortvel na nova e apertada roupagem institucional. Uma vez promulgada a hbrida Constituio de 1934, Vargas iniciaria a luta por sua extino, rumo a um regime bonapartista pleno. No discurso que preparou para sua posse como presidente constitucional (mas que no chegaria a ser lido), afirmava que a nova Constituio fragmenta e dilui a autoridade, instaura a indisciplina e confunde a cada passo as atribuies dos poderes da Repblica 1113 vale lembrarmos aqui das contradies e ambigidades que, segundo Marx, estariam presentes na Constituio francesa de 1848 e teriam contribudo para o desfecho bonapartista em dezembro de 1851. 1114 Ainda nos primeiros dias de seu novo governo, Vargas teria declarado ao escritor Moiss Velinho, seu amigo particular: Creio que serei o primeiro revisionista da Constituio. 1115
Da formao do novo regime, em julho de 1934, ao golpe de Estado varguista, em novembro de 1937, o processo scio-poltico do pas ganharia uma dinmica extremamente complexa e contraditria. Nesse perodo de aproximadamente trs anos e meio, sob vigncia da semiliberal/semibonapartista Carta constitucional de 1934, se desenrolaria uma conflituosa trama envolvendo as fraes burguesas, suas vacilantes representaes polticas, o
1113 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5915. 1114 Mais uma vez, lembramos que, segundo Marx, aquela constituio outorgava poderes efetivos ao Presidente da Repblica, enquanto tratava de garantir Assemblia Nacional o poder moral (MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 33). Ver Captulo I deste trabalho. 1115 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5915.
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proletariado, o PCB, a ANL, as divididas classes mdias, o fascismo integralista, as Foras Armadas, os resqucios polticos do tenentismo, a cpula burocrtica governamental e, last but not least, o ex- e futuro ditador, Getlio Vargas. O resultado poltico dessa trama, como sabido, seria a instaurao do Estado Novo: consolidando o bonapartismo como a forma tima de dominao burguesa no pas, a ditadura estadonovista promoveria um salto de qualidade na retardatria modernizao capitalista brasileira. Mais uma vez aqui um paralelo com a Frana oitocentista pode nos ser til. Como vimos, no clssico processo analisado por Marx, uma sublevao popular espontnea levou, em fevereiro de 1848, queda do exclusivista regime da Monarquia de Julho (uma forma de dominao pr-hegemnica) e imps classe dominante a proclamao de um regime republicano, inicialmente dotado de aditamentos democrticos. Contraditoriamente, a massa da burguesia, majoritariamente monrquica, viu-se em meio difcil tarefa de ter seus interesses garantidos por meio de uma formatao poltica republicana. Depois de extirpar do Governo Provisrio os minoritrios representantes dos trabalhadores, a burguesia, sob a efmera direo poltica de sua ala republicana, reprimiu sanguinariamente a insurreio proletria de junho e promulgou uma Constituio (1848) que transformava aquela repblica em uma repblica nica e exclusivamente burguesa. A principal reivindicao do movimento operrio, a criao de um ministrio especial para o Trabalho (uma reivindicao nada socialista, vale ressalvar), foi sumariamente negada pelo novo regime Tratava-se, como afirmou o ento ministro Trelat, de reduzir o trabalho s suas antigas condies. 1116
Em fins de 1848, Bonaparte foi eleito Presidente da Repblica, assumindo o controle da mquina burocrtica estatal, enquanto as monrquicas representaes polticas da burguesia (os orleanistas e legitimistas, que juntos compunham o partido da ordem) assumiram o controle da maioria do Parlamento (Assemblia Nacional). Intensificou-se, ento, um processo no qual aquela monrquica burguesia, incapaz de estabelecer uma hegemonia em face de seus conflitos polticos internos e da permanente ameaa potencial do proletariado, minava constantemente as bases do regime poltico pelo qual podia exercer diretamente sua dominao poltica, a repblica parlamentar. Compelida pelas necessidades da luta de classes, a burguesia francesa, por meio de suas representaes poltico-parlamentares, fortalecia gradativamente o aparelho burocrtico-repressivo estatal como, por exemplo, j havia feito em junho de 1848 e faria novamente em julho de 1849, no combate pequena-burguesia democrtica. Pari passu, aquelas mesmas representaes polticas da burguesia, por meio de uma srie de declaraes e medidas (entre as quais a cassao do sufrgio universal em maro
1116 MARX. K. As lutas de classes na Frana. Op. cit., p. 128. 400
de 1850 foi, sem dvida, a mais expressiva), desmoralizava sucessivamente o instrumento de seu poder poltico direto, o Parlamento. Diante da constante presena do fantasma da revoluo proletria, o prprio regime poltico da burguesia, isto , a democracia burguesa, comeava a lhe parecer por demais perigoso. A radicalizao das lutas intra-parlamentares e do conflito entre Bonaparte (em sua aberta marcha golpista) e a Assemblia Nacional deixava evidente a incapacidade da burguesia de dirigir, ela mesma, a nao dilacerada. A crise de hegemonia atingia ento seu pice, colocando em risco a prpria manuteno da dominao burguesa sobre a numericamente crescente classe trabalhadora cuja massiva apario como sujeito social antagonista trouxera, lembramos, a prpria questo da hegemonia para a sociedade francesa. Tomada pelo sentimento de pnico em face de qualquer potencial ameaa aos seus negcios privados, a massa da burguesia seduziu-se progressivamente pela idia de um Poder Executivo forte que pusesse fim s incuas disputas parlamentares e garantisse a estabilidade da ordem capitalista. Uma parcela daquela massa, como destacou Marx, j fazia, havia tempo, negcios com o Executivo por meio da alocao de seus homens em estratgicos rgos daquele poder (como o agiota Fould, que assumiu a pasta da Fazenda no ministrio dHautpoul). 1117 Buscando obter o apoio dessa massa burguesa (que sacrificava a cada momento seus interesses gerais de classe, isto , seus interesses polticos, aos mais mesquinhos e mais srdidos interesses particulares), 1118 Lus Bonaparte aterrorizou-a invocando a ameaa do proletariado, o qual, na verdade, j havia sido retirado politicamente de cena desde a violenta represso de junho de 1848. Deixando como que suspensas no ar suas representaes polticas em litgio (orleanistas e legitimistas) que, ameaadas por Bonaparte, tornaram-se defensoras de ltima hora da repblica burguesa (a nica forma poltica na qual poderiam coexistir lado a lado) , 1119 a burguesia abdicaria finalmente de seu poder poltico (direto) sobre o pas, para ver preservado seu poder social. Assim, em dezembro de 1851, consumava-se o golpe bonapartista contra a burguesia, o qual, contraditoriamente, tinha por finalidade histrico-poltica salv-la dos perigos de seu self- government. 1120 O capitalismo industrial francs floresceria, ento, sob uma forma de dominao poltica no-hegemnica que, a despeito da burguesia, j no poderia tratar a questo social do modo como at ento vinham fazendo os regimes burgueses anteriores. O bonapartismo francs seria um regime de massas, e destas derivaria, em ltima anlise, sua prpria existncia histrica.
1117 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 96-97. 1118 Idem, p. 100. 1119 MARX. K. As lutas de classes na Frana. Op. cit., p. 154. 1120 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 63. 401
Qualquer analogia entre o caso descrito acima e o processo poltico brasileiro do 1930- 1937 deve ter em mente, prioritariamente, o j mencionado caminho politicamente contra- revolucionrio pelo qual se processou a modernizao capitalista brasileira, e que assumiu a forma como tambm j dissemos de uma revoluo passiva. Ademais, a distncia de quase cem anos que separa os dois processos situados em fases distintas da histria do capitalismo mundial no pode ser obliterada. Toda analogia , de certa forma, problemtica, j que forosamente os possveis pontos de contato so priorizados analiticamente em detrimento das inmeras diferenas que qualquer comparao histrico-temporal faz saltar aos olhos e, que, primeira vista, desestimulam o prprio exerccio analgico. Por encerrarem sempre algum grau de esquematismo, as analogias histricas so cientificamente arriscadas. Arrisquemo-nos. Com o fim do Imprio, em 1889 e a transferncia da funo hegemnica das mos dos latifundirios escravocratas para as da burguesia cafeeira , a dominao pr-hegemnica assumiu no Brasil um formato republicano. Se, na Frana, esse tipo de dominao (a Monarquia de Julho) teve fim, segundo a avaliao de Marx, graas a uma sublevao operria com a participao passiva de setores burgueses, 1121 no Brasil, pode-se dizer que aconteceu quase que o inverso: na ausncia de um protagonismo popular uma tpica caracterstica das revolues passivas, a exclusivista Primeira Repblica acabou derrubada, como vimos, por uma rebelio das oligarquias dissidentes, a qual contou (no mximo) com uma ajuda passiva do proletariado e das camadas mdias. Assim, em seu lugar foi instituda no uma repblica parlamentar democrtica, mas, segundo nossa interpretao, um tipo de semibonapartismo oligrquico, um regime poltico no-hegemnico de natureza combinada e transicional, no qual a burguesia, em seu conjunto, viu-se privada de grande parte de seu poder poltico (direto) sobre a nao. Contudo, devido conjuntura histrico-poltica em que nasceu, bem distinta do pico de radicalismo pelo qual passava a luta de classes na Frana de 1848, o bonapartismo brasileiro, preventivamente e no reativamente contra- revolucionrio, no tinha como tarefa reduzir o trabalho s suas antigas condies; pelo contrrio, sua misso como j o dissemos porfia era promover a incorporao controlada da crescente classe trabalhadora (assim como dos setores mdios) vida institucional do pas. Raivosamente rechaada pelo Governo Provisrio da Segunda Repblica francesa, a idia da criao de um ministrio especial para o trabalho foi, como vimos, uma das primeiras a ser posta em prtica pelo Governo Provisrio surgido em 1930 no Brasil. Configurou-se, assim, uma situao curiosamente contraditria no processo poltico brasileiro: embora o bonapartismo em construo se apresentasse como uma forma de dominao poltica
1121 MARX. K. As lutas de classes na Frana. Op. cit., p. 128. 402
apropriada, e mesmo necessria, para a manuteno da ordem burguesa naquele contexto de crise de hegemonia, a massa da burguesia tupiniquim continuava a ser politicamente oligrquica. Depois de, por meio de suas representaes polticas tradicionais, se enfrentar por quase quatro anos com as foras bonapartistas (incluindo um confronto militar em 1932), a burguesia, intransigentemente federalista, conseguiu obter um significativo ganho de poder poltico com a Constituio de 1934 e a volta do funcionamento do Poder Legislativo em todas as suas instncias. Entretanto, com a radicalizao da luta de classes no novo regime (bonapartismo semiparlamentar) e a presena mais assustadora do espectro do comunismo, o conjunto das fraes burguesas passaria a progressivamente demandar uma sada de fora para a garantia da ordem capitalista. Aps o frustrado levante da ANL/PCB em novembro de 1935, a burguesia aceleraria seu processo de abdicao poltica. Atendendo aos sucessivos pedidos de estados de exceo por parte do Executivo, concedendo-lhe poderes discricionrios, o Parlamento burgus fortaleceria aquele poder que lhe era hostil e, por conseguinte, se auto-enfraquecia. 1122 Minando a fonte de seu prprio poder poltico, a burguesia brasileira demonstrava no poder suportar nenhum laivo de democracia naquela conjuntura. Por mnimo que fosse, qualquer quantum de poder poltico em suas mos parecia ameaar seu prprio poder social. Politicamente dividida, levemente incomodada com o crescimento do fascismo e, sobretudo, ainda bastante temerosa da ameaa proletria, a timorata classe dominante brasileira, geneticamente contra-revolucionria, abriria gradativamente mo da faculdade de dirigir a nao faculdade esta, alis, que ela nunca havia exercido. 1123 Com o incio das campanhas eleitorais que visavam sucesso presidencial marcada para janeiro de 1938, Vargas, no melhor estilo de Lus Bonaparte, passaria a conjurar incessantemente o fantasma do comunismo, quando, na verdade, o proletariado organizado, desde a cruenta perseguio que sofrera aps o levante da ANL/PCB, j estava efetivamente fora do campo de batalha, e via a histria passar por cima de suas cabeas. 1124
Enquanto seus representantes polticos lanavam-se com entusiasmo na corrida presidencial, a massa da burguesia cujos alguns intelectuais orgnicos (sobretudo os de linhagem industrial) j se encontravam dentro das estruturas do Poder Executivo desde 1935 j se mostrava desejosa de por fim quele cenrio de estreis disputas polticas que s faziam conturbar ainda mais a ordem burguesa. Em novembro de 1937, reconhecendo sua incapacidade poltica prpria, a burguesia se submeteria finalmente a Vargas e sua cpula
1122 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 59. 1123 Dizemos isto, pois, como expusemos, a nosso ver no existiu uma direo, e sim um domnio da burguesia cafeeira sob a Primeira Repblica ps-1894. 1124 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 67. Grifos do autor. 403
burocrtico-militar. Jogando-se nos braos de um Bonaparte perifrico, a burguesia brasileira entoaria o mesmo grito que, muitas dcadas atrs, havia sado da boca de sua veterana irm francesa: Antes um fim com terror, do que um terror sem fim! 1125
Transferindo a funo hegemnica que entre 1930-1937 no fora exercida por nenhuma classe ou frao de classe para a burguesia industrial, o bonapartismo brasileiro adquiriria sua forma plena sob o Estado Novo. Como um tipo de bonapartismo semifascista, a ditadura estadonovista de Vargas (uma forma de dominao no-hegemnica) seria responsvel por vultoso desenvolvimento do retardatrio capitalismo industrial brasileiro. Muito rapidamente, procuraremos destacar a partir de agora alguns elementos concretos desse dialtico processo que acabamos de descrever. Procurando reconstruir sinteticamente a trama dos acontecimentos, priorizaremos momentos e aspectos que explicitem ao leitor essa dinmica histrica na qual a burguesia brasileira, num intervalo de aproximadamente trs anos (1934-1937), abdicou totalmente de qualquer poder poltico (direto) sobre o a nao para preservar seu poder social sobre ela, isto , abriu mo da coroa a fim de salvar sua bolsa. 1126 Vamos, ento, aos fatos. No front esquerdo daquele cenrio poltico em crescente processo de radicalizao, encontrava-se a Aliana Nacional Libertadora, fundada em janeiro de 1935. Impulsionada pelo PCB, a ANL foi um fugaz, porm significativo, esboo de frente popular no Brasil dos anos 30. Reorientando sua poltica a partir das novas e oportunistas diretrizes da IC ps- ascenso do nazismo, 1127 o PCB adotou uma estratgia de luta antifascista baseada numa perspectiva de colaborao de classes. Afinados com a linha poltica formulada pelo blgaro estalinista George Dimitrov, os comunistas brasileiros tomavam como seus principais inimigos os imperialismos fascistas (Alemanha e Itlia, principalmente) e seus aliados locais, representados no pas tanto pelo integralismo da AIB, quanto pelo governo de traio nacional de Vargas. Bem-vindos ANL, segundo os pecebistas, seriam todos aqueles dispostos a lutar contra o fascismo brasileiro, fossem eles trabalhadores, estudantes, militares, intelectuais democratas e setores proprietrios progressistas (a chamada burguesia nacional). Alm da necessidade premente da luta contra o fascismo e pelas amplas liberdades para o povo, a plataforma reformista radical da ANL continha tambm consignas como a suspenso definitiva da dvida externa brasileira, a nacionalizao de todas as empresas imperialistas, a distribuio das terras dos latifundirios feudais aos camponeses e a constituio de um governo popular e revolucionrio. Em relao ao proletariado urbano,
1125 Idem, p. 103-104. Grifos do autor. 1126 Idem, p. 63. 1127 Ver Captulo II (o bonapartismo francs semiparlamentar - 1934-1940) 404
a ANL defendia uma efetiva jornada de trabalho de oito horas, tabelas de salrio mnimo, dois meses de indenizao em caso de dispensa do trabalho, seguro-desemprego, melhores condies de sade pblica, impostos mais baixos sobre os artigos de primeira necessidade e salrio igual por trabalho igual. Tudo isso, ou quase tudo isso, era garantido pela Constituio, mas valia como letra morta. 1128 O carter de frente popular da organizao determinado no s pela questo do antifascismo, mas tambm pela perspectiva etapista que orientava as elaboraes do PCB sobre a revoluo brasileira 1129 ficaria ntido em seu documento intitulado Programa do Governo Popular Nacional Revolucionrio, no qual era esclarecido que, uma vez constitudo, tal governo no levaria a cabo a liquidao da propriedade privada sobre os meios de produo, nem tomaria sob seu controle as fbricas e empresas nacionais. O referido governo dando incio no Brasil ao desenvolvimento livre das foras de produo no pretende a socializao da produo industrial e agrcola porque nas condies atuais do Brasil, s ser possvel com a implantao da verdadeira democracia, liquidar o feudalismo e a escravido dando todas as garantias para o desenvolvimento livre das foras de produo do pas. 1130 Quanto ao campo brasileiro, o documento afirmava que o Governo Popular exigir dos proprietrios capitalistas o cumprimento no campo da legislao social que ser implementada pela revoluo. O Governo Popular, porm, no desapropriar os que no empregam a explorao feudal.... 1131
Procurando materializar politicamente suas diretrizes polticas, a ANL chegou a entabular negociaes com polticos burgueses de oposio a Vargas, como Virglio de Melo Franco e Joo Neves da Fontoura, adversrio no Rio Grande do Sul do governador Flores da Cunha 1132 que, a essa altura, j se inclinava para uma postura cada vez mais crtica em face do governo federal. Presidida nacionalmente por Hercolino Cascardo (capito da Marinha) e secretariada por Roberto Sisson, a ANL adquiriu, pelo menos no Distrito Federal, um carter de massas. O prestgio de Prestes feito presidente de honra da organizao por indicao do ento jovem estudante comunista Carlos Lacerda 1133 junto aos setores mdios e ao tenentismo militar de esquerda possibilitou que o recrutamento dos quadros da organizao fosse feito para alm dos segmentos operrios sob influncia pecebista. Contando entre suas fileiras tambm com elementos burgueses e destacados intelectuais (como o historiador Caio
1128 LEVINE, Robert. Op. cit., p. 114. 1129 Ver a Introduo segunda parte deste trabalho. 1130 SILVA, Hlio. 1935. A revolta vermelha. Rio de Janeiro: Civilizao brasileira, 1969, p. 446-447. Apud LWY, Michael. Do movimento operrio independente ao sindicalismo de Estado (1930-1945) in COLETIVO EDGARD LEUENROTH (Michael Lwy, Eder Sader, Sandra Castro e Helena Hirata). Introduo a uma histria do movimento operrio brasileiro no sculo XX. Belo Horizonte: Vega: 1980, p. 36 1131 Idem. 1132 LEVINE, Robert. Op. cit., p. 113. 1133 LEVINE, Robert. Op. cit., p. 108. Futuramente, Carlos Lacerda se tornaria o lder da Unio Democrtica Brasileira (UDN) e maior expoente do antivarguismo de direita entre 1950-1964. 405
Prado Jr., que ocupou a presidncia da organizao em So Paulo), a ANL tornou-se, desde sua fundao, o principal inimigo do regime de 1934, apresentando-se a muitos como a corporificao do fantasma comunista, o qual seria utilizado pela foras bonapartistas como justificativa para sua escalada golpista. esquerda da frente popular, e criticando-a duramente, estavam os pouco numerosos militantes trotskistas (organizados na LCI e, a partir de 1936, no POL). Sintonizados com as diretrizes da Oposio de Esquerda Internacional (OEI), os seguidores brasileiros de Trotsky apregoavam a construo de uma frente nica operria para obstar a ascenso fascista e afirmavam o carter socialista e no democrtico-burgus da revoluo brasileira. 1134
No plo poltico oposto, encontrava-se o fascismo brasileiro. Fundado, em 1932, pelo escritor modernista Plnio Salgado, o movimento integralista tinha no anticomunismo o centro de sua atividade poltica. Criada sob inspirao da experincia dos camisas negras de Mussolini, a AIB combatia tambm duramente a democracia liberal, os intelectuais progressistas, as feministas, os espritas, os banqueiros norte-americanos e ingleses, assim como as influncias judaicas e manicas no territrio nacional. Seu Fhrer o prprio Plnio Salgado criticava abertamente a Constituio de 1934 em funo de seus traos liberal- democrticos, deixando claro sua defesa da implantao de um regime totalitrio no pas. As idias integralistas encontrariam forte eco entre os setores mdios mais conservadores. Tendo o sigma (representao matemtica que significa soma ou integral) como smbolo, o movimento se desenvolveria rapidamente sob o Governo Constitucional de Vargas, e contaria com a adeso e/ou simpatia de intelectuais reacionrios (como o nazista Gustavo Barroso e o catlico fervoroso Alceu Amoroso Lima), de militares de alta hierarquia (Pantaleo Pessoa e Newton Cavalcanti), de juristas e advogados (Miguel Reale Jr. e San Tiago Dantas) e at mesmo de poetas modernistas (Augusto Frederico Schmidt). O padre Dom Hlder Cmara, futuro arcebispo emrito de Olinda e Recife e tenaz crtico da ditadura militar de 1964-1985, tambm figurou por um tempo entre os simpatizantes dos camisas verdes de Plnio Salgado. O integralismo, embora no sendo a opo poltica preferencial da classe dominante como, alis, parece ter sido o caso tambm dos demais movimentos fascistas ao redor do mundo , chegou a contar com doaes financeiras provenientes de grandes industriais do Rio de Janeiro, Minas Gerais e So Paulo (especula-se, por exemplo, que o milionrio Conde Francisco Matarazzo teria sido um dos grandes doadores da AIB). 1135
1134 Ver o Captulo II e a Introduo segunda parte deste trabalho. 1135 Quanto ao movimento integralista, ver CHASIN, Jos. O integralismo de Plnio Salgado...Op. cit.; TRINDADE, Hlgio. Integralismo: o fascismo brasileiro na dcada de 30. So Paulo: Difel, 1974; LEVINE, R. Op. cit. e CALIL, Gilberto. Integralismo e hegemonia burguesa: a interveno do PRP na poltica brasileira (1945-1965). Cascavel: Edunioeste, 2010. 406
Diferentemente do caso da ANL, o exponencial crescimento atingido pela AIB em 1934-1935 contava com a lenincia, e mesmo com a aquiescncia, do Governo Constitucional de Vargas. Em uma postura tpica dos bonapartismos da dcada de 1930 ou seja, nascidos nas condies de crise do capitalismo monopolista e em plena falncia das democracias liberais , o varguismo concedia uma certa liberdade ao desenvolvimento das foras polticas fascistas, as quais poderiam, em ltimo caso e s em ltimo caso , mostrarem-se teis preservao do capitalismo brasileiro. Como no caso do bonapartismo alemo de Hindenburg (Brning, von Papen, von Schleicher ), a represso governamental de cunho poltico era bastante seletiva, centrando-se nas organizaes do movimento operrio, enquanto fazia vistas grossas s atividades fascistas. Ao mesmo tempo, a contnua tolerncia de Vargas em relao ao crescimento das radicais hostes integralistas contribua tambm para credenci-lo junto classe dominante como uma opo poltica menos turbulenta e arriscada do que a guerra civil fascista, isto no caso de ter que se recorrer a um regime de fora para salvar a ordem burguesa (supostamente ameaada pelo comunismo). Nesse aspecto, alis, Vargas teria em 1934-1938 mais sucesso do que seus congneres alemes obtiveram em 1930-1933 (quando o fascismo/nazismo, por fim, suplantou aquele complicado bonapartismo teutnico). Mesmo antes da formao da ANL, j se verificavam confrontos entre o movimento operrio e a extrema-direita organizada. Em outubro de 1934, por exemplo, manifestantes da Frente nica Antifascista (FUA), impulsionada pelos trotskistas da LCI, entraram em confronto na Praa da S, em So Paulo, com integralistas que realizavam uma parada cvica. 1136 A partir de 1935, os choques entre comunistas e fascistas passaram a permear mais constantemente o cenrio poltico nacional, em um claro sinal de que a situao evolua em uma linha de radicalizao, o que comprometia seriamente as chances de estabilizao do regime semiparlamentar de 1934. Seria jogando com as classes e foras polticas em meio a esse clima de exacerbao poltica que o bonapartismo construiria o caminho para sua vitria definitiva, derrotando, sucessivamente (e, s vezes, simultaneamente), o proletariado (1935- 1937), as representaes polticas diretas da burguesia (1937-1938), e o fascismo integralista (1938). Vejamos isso, rapidamente. Em janeiro de 1935, em meio onda de greves e manifestaes operrias, foi encaminhado ao Congresso pelo ministro da Justia, Vicente Rao, um projeto de lei que definia crimes contra a ordem poltica e social, denominado Lei de Segurana Nacional (LSN). No obstante sua proclamada ideologia liberal, o Partido Constitucionalista, fundado em So Paulo por Armando Salles, no hesitou em assumir a defesa da lei e do fortalecimento dos
1136 ALMEIDA, Miguel Tavares de. Os trotskistas frente Aliana Nacional Libertadora e aos levantes militares de 1935. Op. cit., p. 91 (nota 17). 407
poderes presidenciais, 1137 os quais os prprios constitucionalistas tinham, quando dos ento recentes debates constituintes, batalhado para controlar e limitar. Assim, mal havia sido promulgada a Constituio e as prprias representaes polticas da burguesia j se encarregavam de defender um projeto de lei que, na prtica, a suspendia. Antecipando-se aprovao da LSN, os integralistas dissolveram formalmente suas milcias armadas. 1138 Embora se precavessem, os fascistas sabiam que, na verdade, o inimigo principal do regime era outro. Nos ltimos dias de maro, quando o debate sobre a LSN estava em seus momentos decisivos no Parlamento, a ANL realizou, no teatro Joo Caetano (Rio de Janeiro), sua primeira grande reunio pblica. Assistindo ao crescimento da esquerda, Vargas no pestanejou e, a 4 de abril, sancionou a LSN, que havia sido obedientemente aprovada pelos deputados. Suprimindo importantes franquias democrticas da Carta de 1934, a LSN alcunhada de Lei Monstro pela esquerda poderia ser aplicada, segundo seus dispositivos, a todos aqueles que usassem o recurso da fora para chegar ao poder, que estimulassem a indisciplina nas Foras Armadas, que atentassem contra pessoas ou bens motivados por questes ideolgicas e que tentassem pr em prtica planos de desorganizao ou greves nos servios pblicos. Nesses casos, as penalidades previstas iam de um a dez anos de priso. A LSN tambm estabelecia sanes para jornais e emissoras de rdio que veiculassem notcias tidas como subversivas, prevendo tambm a cassao de patentes de oficiais das Foras Armadas. Alm disso, autorizava o chefe de Polcia do Distrito Federal a fechar entidades sindicais consideradas suspeitas. 1139 O regime comeava a mudar sensivelmente. Paralelamente aos preparativos do governo para arrestar a ascenso da frente popular, prosseguia, em segundo plano, o confronto entre o centralismo bonapartista- corporativista e o federalismo burgus-oligrquico liberal. Em outros termos dos quais estivera colocado at 1934 e, mais particularmente, at 1932 , tal confronto tinha agora seu epicentro deslocado para o Rio Grande do Sul, onde o interventor Flores da Cunha (eleito governador pela assemblia estadual em abril de 1935) comandava 20 mil soldados da Brigada Militar gacha, 1140 o que era visto com maus olhos por setores do Exrcito, particularmente por Gis Monteiro. Com idas e vindas, e alguns recuos tticos de ambos os lados, o clima de animosidade entre o governo federal e Flores da Cunha se acentuaria progressivamente no decorrer dos prximos trs anos. Para as foras bonapartistas, e particularmente para a cpula das Foras Armadas, a colocao em prtica dos preparativos golpistas em fins de 1937 se explicaria tambm pelo desejo de desalojar definitivamente
1137 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5916. 1138 Idem. 1139 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5916. 1140 Idem. 408
Flores da Cunha de seu feudo poltico, eliminado, assim, a ltima resistncia ao projeto centralista do governo federal. Finalmente, em 13 de julho, poucos dias depois de Prestes (que havia voltado clandestinamente ao Brasil vindo da URSS) ter divulgado um manifesto em que pregava a derrubada do governo e a transferncia do poder ANL (Todo o poder Aliana Nacional Libertadora!), Vargas decretou o fechamento da frente popular. Desde ento, a organizao ficou praticamente limitada aos quadros do PCB e alguns militares de inspirao tenentista de esquerda. A maior parte dos segmentos mdios democrticos que a compunham desvinculou-se dela depois do decreto governamental. O mesmo aconteceu, evidentemente, com os seus membros recrutados na suposta burguesia progressista; na verdade, nenhum setor da burguesia brasileira desejava, de fato, um governo popular nacional-revolucionrio, sobretudo se sua implantao tivesse que passar pelos trilhos da ilegalidade. Mesmo seus setores mais crticos a Vargas no estavam dispostos a enfrentar-se com ele at as ltimas conseqncias. Amavam bem mais os seus negcios do que odiavam o presidente. A burguesia brasileira foi sempre pragmtica nas suas lutas de classe. Vargas agia com mo de ferro. No segundo semestre de 1935, jogou duro com a Cmara dos Deputados, exigindo dela a aprovao do Tratado Comercial Brasil-EUA que havia sido assinado em fevereiro. As presses dos norte-americanos, que ameaavam prejudicar o comrcio do caf brasileiro, foraram Vargas a cobrar pessoalmente de alguns deputados que parassem de obstruir a aprovao do tratado. Obtendo sucesso o documento foi aprovado em setembro pela Cmara e em novembro pelo Senado 1141 , Vargas evitava, assim, qualquer confronto mais significativo com os EUA em um momento em que, imbudo do combate ao comunismo, girava seu governo e o regime poltico cada vez mais direita. Tambm nos meses finais de 1935, Vargas, exercendo seu hbito bonapartista, interferiu abertamente no processo eleitoral do Rio de Janeiro. Aps uma eleio anulada pela Justia Eleitoral a pedido da oposio, Getlio conseguiu eleger por diferena de um voto na assemblia fluminense seu candidato a governador, o almirante Protgenes Guimares. 1142 O poder do Executivo federal se ampliava progressivamente. Com a proscrio da ANL, o PCB, vendo fechado o caminho legal para construo da frente popular, ps em marcha seu plano de assalto ao poder. Dirigida por Prestes, a cpula pecebista, j atuando na completa clandestinidade, recebeu a colaborao de assessores enviados pelo Komintern, como Olga Benrio (judia de nacionalidade alem que se tornaria companheira de Prestes), Rodolfo Guioldi (do Secretariado Sul-Americano da IC), Victor Allan Baron (jovem comunista norte-americano) e Artur Ewrt (militante alemo que atendia
1141 Idem, p. 5917. 1142 Idem. 409
pelo pseudnimo de Harry Berger). Iniciado no Rio Grande do Norte, no dia 23 de novembro de 1935, o levante comunista teria sequncia em Pernambuco e no Rio de Janeiro, nos dias 24 e 27, respectivamente. Foi um fracasso total. Sem nenhum apoio de massas, no ultrapassou o carter de uma quartelada de esquerda. A aventura comunista brasileira de 1935 seria um caso um tanto quanto particular na histria do estalinismo internacional, justamente porque combinou, paradoxalmente, um mtodo insurrecional ultra-esquerdista com um programa poltico declaradamente reformista. Segundo Lwy, tal combinao deveu- se ao fato de a ao comunista ter ocorrido em meio a uma fase transicional das estratgias da IC:
Em certa medida, pode-se dizer que a insurreio fracassada de novembro de 1935 ocorreu em um momento de transio entre duas etapas da orientao do Komintern: representou, ao mesmo tempo, um ltimo vestgio do terceiro perodo esquerdista (1929-1933) e o primeiro passo no caminho da ttica frente-populista que ir ser dominante a partir dessa poca. O mtodo de luta insurreio armada pertencia ao perodo anterior; o programa moderado, democrtico-nacional, antifascista, anunciava j a nova linha. 1143
No dia 25 de novembro, antes mesmo do levante no Rio de Janeiro, Vargas solicitou ao Congresso a aprovao do estado de stio pelo prazo de um ms em todo o territrio nacional. A solicitao presidencial foi vencedora por uma diferena de mais de o triplo de votos (172 a 52). 1144 A burguesia e a maioria de seus representantes polticos tradicionais no estavam dispostas a arriscar-se diante do perigo vermelho, por menor que este realmente fosse. No pensaram duas vezes em conceder ao presidente seu primeiro pedido de suspenso de certos direitos da jovem Constituio. O importante, para a classe dominante, era a manuteno da ordem, e no seriam alguns inconvenientes princpios jurdicos liberais que a impediriam. No Rio, o enterro dos oficiais mortos pelos insurgentes no levante ocorreu sob forte comoo nacional. O insuflado pavor social em face do comunismo permitiria a Vargas angariar o apoio de foras polticas que at ento lhe faziam oposio. Quando do levante, Flores da Cunha havia oferecido milhares de seus soldados para ajudar o governo, e Plnio Salgado afirmara que cem mil de seus camisas verdes estavam disposio de Getlio para manter a ordem. 1145 Em meio histeria anticomunista que ento se alastrava entre os meios civis e militares, fortalecia-se a imagem pblica de Vargas, assim como a idia de que seria necessrio um regime de fora para salvaguardar o status quo. 1146
1143 LWY, Michael. Do movimento operrio independente ao sindicalismo de Estado (1930-1945). Op. cit., p. 42. 1144 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5916. 1145 Idem. 1146 Idem. 410
Aproveitando-se da situao, Vargas promulgou trs emendas constitucionais, todas docilmente aprovadas pela Cmara dos Deputados. A Emenda n1 estabelecia que a Cmara, com a anuncia do Senado, poderia conceder ao Presidente da Repblica autorizao para declarar o estado de guerra em qualquer parte do territrio nacional, em caso de comoo intestina grave das instituies polticas e sociais 1147 isto , o Parlamento burgus decidia que ele poderia agora, em nome da preservao das tais instituies polticas e sociais do pas, mandar s favas essas mesmas instituies para que o Executivo as salvasse como bem entendesse. J as emendas n 2 e 3, draconianas, eliminavam a estabilidade dos militares e funcionrios civis do Estado, sujeitos agora perda de seus postos caso se envolvessem em atos considerados subversivos. 1148 Na vspera do Natal de 1935, Getlio prorrogou por mais 90 dias o estado de stio, e recebeu como presente do Congresso (por 210 votos contra 59) a autorizao para, caso fosse preciso, equipar-lo ao estado de guerra, conforme previsto pela Emenda n 1. O constitucionalismo da burguesia seria cmico se no fosse trgico. Sua fora poltica era inversamente proporcional ao amor que os proprietrios sempre nutrem pela ordem. A represso que se seguiu ao levante comunista foi implacvel. Milhares de prises foram efetuadas. Os sindicatos autnomos sofreram uma verdadeira varredura poltica, abrindo caminho para a implementao efetiva do corporativismo sindical. As vanguardas polticas da classe trabalhadora e seus aliados tenentistas de esquerda foram caados incessantemente pelos rgos repressores do Estado. Indiscriminadamente, pecebistas, trotskistas, anarquistas e socialistas, assim como militares ligados ANL (ou acusados de o serem), comearam a ser despejados pelo regime nos presdios de vrias cidades. Em 10 de janeiro de 1936, foi anunciada a formao da Comisso Nacional de Represso ao Comunismo, responsvel por investigar sumariamente atos e crimes contra as instituies do pas. Dotada de poderes especiais, a comisso podia, em caso de urgncia, requisitar prises diretamente para a polcia. 1149 J despontavam aqui, claramente, os traos semifascistas do futuro regime, os quais levedariam ininterruptamente at que este visse a ser formalmente implantado (novembro de 1937). Praticamente toda a direo do PCB seria presa nos meses seguintes ao levante de novembro de 1935. Em maro de 1936, foram finalmente capturados, no subrbio do Rio de Janeiro, Luiz Carlos Prestes e Olga Benrio, que seria enviada a mando do Supremo Tribunal Federal (STF) e do prprio Vargas Alemanha nazista, onde morreria (aps dar luz a uma filha fruto de seu breve relacionamento com Prestes) em um campo de concentrao na cidade
1147 Idem. 1148 Idem. 1149 Idem, p. 5919. 411
de Bernburg. Trgicos tambm seriam, por exemplo, os destinos de Artur Ewrt, enlouquecido depois de brbaras torturas (que incluram a insero de um arame na uretra, aquecido em seguida, e a obrigao de assistir aos sucessivos estupros de sua mulher), e de Victor Allan Baron, suicidado pelos agentes de segurana. Mas no s a militncia operria e popular foi vtima da sanha burguesa encarnada na facinorosa figura de Filinto Mller que, mantendo comunicao direta com o presidente, exercia vigilncia sobre todos os membros do governo. 1150 Tambm a intelectualidade progressista e concorrentes polticos de Vargas sentiriam os lancinantes golpes deferidos por um aparelho repressivo que se ingurgitava rapidamente. nesse sentido que podemos entender, respectivamente, prises como a do educador Ansio Teixeira e a do prefeito do DF, o mdico Pedro Ernesto. Poucos meses antes, ambos haviam se engajado na construo da Universidade do Distrito Federal (UDF), um dos alicerces da futura Universidade do Brasil que, por sua vez, se transformaria posteriormente na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Vista pelos setores reacionrios (em especial pelos de origem clerical) como um antro de comunistas, a UDF tinha em seu corpo docente nomes como o do fillogo e renomado anarquista Jos Oiticica (dirigente da frustrada conspirao libertria de 1918). Alvo de uma campanha difamatria comandada por Alceu Amoroso Lima, Ansio Teixeira foi obrigado a se demitir da Secretaria de Educao do DF, sendo substitudo por Francisco Campos, que prometeu livrar as escolas da influncia bolchevista e preservar o Brasil tradicional, humanista e cristo. 1151 J o prefeito populista Pedro Ernesto (ex-membro do tal Gabinete Negro de Vargas), possivelmente era visto pelo presidente como um rival ao cargo de Bonaparte pleno que aspirava ainda que o potencial bonapartismo de Ernesto, diferentemente do de Vargas, fosse mais claramente inclinado ao reformismo, e no ao fascismo. 1152
Em 21 de maro de 1936, quando ento expirava a vigncia do estado de stio, foi instaurado, com base na Emenda n 1, o estado de guerra que, segundo as palavras do reacionrio poltico Afonso Arinos, conferia ao presidente poderes praticamente ditatoriais. 1153 Na tica de Paulo Brandi, a aquiescncia do Congresso em legislar com poderes de emergncia reforou, sem dvida, as tendncias centralizadoras e autoritrias do regime. 1154 Ainda em maro, a represso governamental, cada vez mais livre de amarras constitucionais devido tal aquiescncia congressual, se abateu sobre alguns membros do prprio Congresso. Como diz o provrbio popular, o Congresso dava corda para se enforcar.
1150 Idem. 1151 Idem, p. 5918. 1152 Quanto poltica exercida por Pedro Ernesto frente da Prefeitura do Distrito Federal, ver CARVALHO, Wesley. Sade e poltica no Rio de Janeiro de Pedro Ernesto (1931-1936). Op. cit. 1153 Idem, p. 5919. 1154 Idem. 412
Mostrando que, quando a luta de classes exige, a independncia dos trs poderes republicanos no seno uma fantasia liberal, a polcia invadiu a sede do Legislativo e prendeu cinco parlamentares (os deputados Abguar Bastos, Domingos Velasco, Joo Mangabeira e Otvio da Silveira, e o senador Abel Chermont), os quais vinham denunciando os excessos cometidos pela represso ao comunismo (fazendo, inclusive, meno direta aos casos de Arthur Ewrt e Victor Allan Baron). 1155 Os cinco congressistas foram mantidos em solitrias nos dois primeiros dos quatorze meses que ficariam nos crceres, sem terem sequer direito ao ar fresco como tinham os presos comuns o senador Chermont, segundo seu relato feito no Senado logo aps ser solto, teria sido espancado at perder a conscincia no ato de sua priso. 1156
Em julho de 1937, o Congresso daria permisso para que os parlamentares presos fossem processados sob acusao de ligao com a ANL. 1157 Nas palavras do historiador liberal Robert Levine, a incapacidade do Legislativo de proteger seus prprios membros contra a brutalidade policial minou-lhe o nimo e lanou uma nuvem de agouro sobre o seu destino. 1158 Ao permitir que seus representantes polticos minimamente coerentes com o liberalismo burgus (ou pelo menos com a idia abstrata deste) fossem entregues, sem resistncia, aos juzes de Vargas, a burguesia, por meio da maioria de seus parlamentares, desmoralizava escancaradamente o seu prprio Parlamento, isto , debilitava politicamente aquele que era o seu instrumento de poder poltico direto, ao passo que, apoiando a represso desenfreada do aparato repressivo, no fazia seno hipertrofiar ainda mais o poder Executivo que sobre ela se erguia. Vargas, ento, j rumava abertamente para sua ditadura pessoal. Em pronunciamento nao, em maio de 1936, foi explcito ao dizer que o aparelhamento usual de preveno e represso, as leis ordinrias de segurana do Estado, se mostram, a cada momento, falhos e ineficientes para impedir a atividade anti-social dos audazes agitadores adestrados e mantidos pela Internacional Comunista, instalada em Moscou. 1159 Em junho de 1936, o Congresso concordou com a prorrogao do estado de guerra por mais 90 dias, e assim o faria repetidas vezes at julho de 1937. Tornando-se mais exangue a cada deciso que tomava, o Congresso aprovou tambm a criao imediata de um tribunal excepcional, denominado de Tribunal de Segurana Nacional (TSN), que comearia a funcionar em dezembro de 1936. Procurando eliminar o doloroso anacronismo jurdico que, segundo o ministro Vicente Ro, desarmava o Estado na luta contra os seus inimigos, o TSN funcionaria por meio de normas
1155 Idem. 1156 LEVINE, Robert. Op. cit., p. 200. 1157 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5919. 1158 LEVINE, Robert. Op. cit., p. 200. 1159 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5919. 413
juridicamente controversas. 1160 Sua competncia retroagia ao perodo anterior sua criao, permitindo-lhe julgar crimes que ou no estavam previstos em lei, ou o estavam sob outra tipificao. Uma aberrao jurdica, caracterstica dos regimes fascistas ou semifascistas. 1161
Ademais, a lei de criao do TSN institua a figura do julgamento por livre convico, que, segundo Brandi, era interpretada pela maioria dos juzes [todos escolhidos por Vargas] como a prerrogativa de condenar ou absolver por mera atitude mental. 1162 No toa, muitos dos presos polticos recusaram-se a prestar depoimento perante o tribunal, alegando sua inconstitucionalidade. Prestes e Agildo Barata (militar e lder comunista envolvido diretamente no levante de 1935), por exemplo, tiveram que ser conduzidos fora para suas sesses de julgamento, nas quais chegaram totalmente ensangentados. 1163 Apenas entre dezembro de 1936 e dezembro de 1937, o TSN extinto somente em outubro de 1945, quando do fim do Estado Novo sentenciaria um total de 1.420 rus. 1164
Anelando a derrota definitiva de qualquer projeto democrtico e popular para o pas, todas as foras polticas da reao solidarizaram-se com o Bonaparte. Plnio Salgado e seus fascistas, alm de se regozijarem com a caa s vanguardas operrias, apoiaram tambm, entusiasticamente, todas as medidas de Vargas contra os j declinantes aspectos liberais e democrticos da Carta de 1934. J as lideranas polticas do federalismo burgus-oligrquico liberal, bem debilitado, posicionaram-se prontamente ao lado de Vargas no que diz respeito dura represso ao movimento operrio e seus aliados (ou supostos aliados). Mesmo Flores da Cunha, cujo enfrentamento com a escalada centralizadora do Executivo federal se acentuava a cada dia, mostrou-se inteiramente favorvel s medidas de exceo tomadas para viabilizar uma maior liberdade ao aparelho repressivo do Estado. Assim, paulatinamente, o federalismo burgus-oligrquico liberal, fiel aos sentimentos e prioridades polticas de sua base social, fornecia as armas ao seu futuro carrasco. Ao mesmo tempo, em funo de sua firme conduta em defesa da ordem e de seu empenho poltico para o crescimento industrial e comercial, que ento j se verificavam no pas, Getlio conquistava crescentemente o apoio da massa burguesa. Entre outros aspectos, essa progressiva adeso poltica do grosso da burguesia brasileira ao Poder Executivo federal se traduzia na formao de um influente grupo de grandes empresrios prximos a Vargas. Alguns desses empresrios, ou seus institores, passaram a integrar mais significativamente os chamados rgos tcnicos do Executivo, interferindo decididamente nas orientaes
1160 Idem. 1161 Situao similar ocorreria, por exemplo, na Frana de Vichy comandada pelo Marechal Ptain. Ver a excelente pelcula de Costa Gravas, intitulada por aqui como Sesso especial de justia (1975). 1162 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5919. 1163 LEVINE, Robert. Op. cit., p. 200. 1164 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5919. 414
econmicas governamentais 1165 o Conselho Federal do Comrcio Exterior, por exemplo, um dos mais importantes daqueles rgos, transformou-se, segundo Brandi, progressivamente em um instrumento de assessoramento ao governo quanto s mais variadas questes da poltica econmica. 1166 Em 1935, j era possvel encontrar dentre o squito bonapartista de Vargas expoentes das mais variadas fraes burguesas, como os irmos Guinle, Joo Daudt dOliveira, Valentin Bouas, Euvaldo Lodi e Roberto Simonsen, 1167 estes dois ltimos verdadeiros intelectuais orgnicos da jovem burguesia industrial brasileira. Aderindo, cada vez mais, ao projeto corporativista, os industriais reconheciam tambm a necessidade da interveno estatal na economia, tentando sempre, verdade, controlar sua intensidade. 1168
Acentuava-se, assim, o processo de ruptura da classe dominante com suas representaes polticas tradicionais crise orgnica , ainda que estas, em sua enorme maioria, tambm j se curvassem, mais ou menos resignadamente, ao crescente poder de Vargas. A fora de seduo do aparelho de Estado sempre foi irresistvel para a classe dominante nacional. Desde praticamente seu incio, a represso suposta ameaa comunista parece ter estado ligada aos planos ditatoriais de Getlio. Em carta endereada a Osvaldo Aranha, ainda em dezembro de 1935, o presidente, analisando os primeiros sucessos da campanha anticomunista, escrevera que as circunstncias [do] momento vo facilitar o trabalho que tem de ser feito. 1169 A partir de 1937, em meio crescente atmosfera eleitoral, a escalada golpista se aceleraria, tornando-se visvel at mesmo para o observador superficial. Vargas, apesar de declaraes formais em respeito Constituio que impedia sua reeleio no parecia inclinado a deixar o poder; mais precisamente, parecia disposto a refor-lo. Na corrida para a sucesso presidencial, prevista para janeiro do ano seguinte, foram apresentadas trs candidaturas. Em maio foi lanado, a pedido de Vargas, por Benedito Valadares, o nome de Jos Amrico de Almeida (ex-ministro do Governo Provisrio), que representava os setores mais tradicionais da burguesia brasileira, em sua maioria agraristas e comerciais. Contando inicialmente com o apoio de vrios governadores e com a discreta anuncia do prprio presidente, a candidatura de Jos Amrico nasceu como uma espcie de candidatura oficiosa, lembrando vagamente os tempos da Primeira Repblica. Em junho de 1937, foi anunciada a candidatura de Armando Salles, ex-interventor de Vargas em So Paulo, governador constitucional do Estado e claramente ligado aos interesses da burguesia
1165 O papel do empresariado industrial nos rgos tcnicos do Executivo foi destacado, como vimos, por ANDRADE, Rgis de Castro. Perspectivas no estudo do populismo brasileiro. Op. cit. Ver, tambm, DINIZ, Eli. Empresrio, Estado e capitalismo no Brasil. 1930-1945. Op. cit. 1166 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5919. 1167 Idem. 1168 Idem. Ver DINIZ, Eli. Empresrio, Estado e capitalismo no Brasil. 1930-1945. Op. cit. 1169 Carta de Getlio Vargas a Osvaldo Aranha (14 de dezembro de 1935) apud LEVINE, Robert. Op. cit., p. 196. 415
industrial. Salles teve seu nome apresentado pela Unio Democrtica Brasileira (UDB), criada simultaneamente ao lanamento de sua candidatura presidencial. Presidida por Artur Bernardes, a UDB era o resultado de uma aliana entre o Partido Constitucionalista (SP), o PRL de Flores da Cunha, o Partido Progressista Democrtico (PPD) de Antonio Carlos (MG) e mais alguns partidos oposicionistas de outros estados. Na prtica, no passava de tmida oposio liberal-burguesa ao centralismo bonapartista de Vargas. Alm dessas candidaturas dos representantes polticos habituais da burguesia brasileira, figurava tambm entre os concorrentes ao futuro pleito o nome de Plnio Salgado, apresentado em maio pelos camisas verdes da AIB. Em junho, ao aceitar a empreitada, o Fhrer tupiniquim defendeu sua proposta fascista de um Estado Integral, concluindo seu discurso com tons teocrticos: Por Cristo quero um grande Brasil, por Cristo ensino a doutrina da solidariedade humana e da harmonia social, por Cristo vos conduzo, por Cristo batalharei. 1170
Vargas, por sua vez, continuava jogando politicamente com a suposta ameaa comunista, instilando-a dentre a classe dominante. Em 7 de julho, o ministro da Justia, Macedo Soares, no episdio conhecido como macedada, colocou em liberdade trezentos presos polticos que, capturados na onda repressiva que se sucedera ao levante de 1935, no tinham processos formados. Entrementes, diferentemente do que at ento vinha fazendo, o governo deixou expirar o prazo de 90 dias de vigncia do estado de guerra sem solicitar sua renovao ao Congresso. 1171 O retorno temporrio dos direitos constitucionais permitiu uma efmera retomada de uma relativa liberdade s organizaes polticas, voltando a se tornarem freqentes confrontos de rua entre fascistas e setores do ainda alquebrado movimento operrio. Na esteira desse processo liberalizante, o regime libertou tambm o prefeito Pedro Ernesto que, depois de grandes manifestaes de rua no Rio de Janeiro, acabaria solto por meio de uma deciso judicial. Possivelmente, como apontaram alguns intrpretes, esse abrandamento da represso expressou, na verdade, uma astuta manobra poltica de Getlio. 1172 Colocando em liberdade militantes polticos de esquerda, Vargas insuflava ainda mais a histeria anticomunista que, alm da burguesia e das Foras Armadas, crescia tambm em grande parte da pequena- burguesia (o que podia ser verificado, por exemplo, no contnuo crescimento do integralismo). Paradoxalmente, o temor burgus em face do movimento comunista ampliava-se justamente quando este se encontrava totalmente estropiado no pas. Possivelmente, dado o seminal carter contra-revolucionrio de nossa burguesia, o espectro do comunismo tenha aparecido a ela como um horripilante amlgama de todos os seus temores ancestrais e hodiernos, onde
1170 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5922. 1171 Idem. 1172 SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964). 12 edio. Rio de Janeiro: Paz e terra, 2000, p. 46-47. 416
parecia estar includo, inclusive, o medo dos ideais e valores polticos que sua prpria classe, em outros tempos e pases, gestara em sua tenra flor da idade. A verdade que a atrasada e perifrica burguesia brasileira identificava como comunismo qualquer coisa que, mesmo de longe, lembrasse uma revoluo democrtico-burguesa que ela nunca fez e nunca precisaria fazer. Mutatis mutandis, parecem caber burguesia brasileira do ps-1935 as palavras que Marx dirigiu burguesia francesa do perodo subseqente a junho de 1848: At o liberalismo burgus declarado socialista, o desenvolvimento cultural da burguesia socialista [...] Era socialismo construir uma ferrovia onde j existisse um canal, e era socialismo defender-se com um porrete quando se era atacado com um florete [...] [A burguesia] compreendia que todas as chamadas liberdades burguesas e rgos de progresso atacavam seu domnio de classe, e tinham, portanto, se convertido em socialistas. 1173
O certo que, tal como no caso clssico francs sempre aqui aludido, a simples continuao do regime constitucional o colocava em risco, porquanto colocava em perigo a prpria ordem burguesa. Se, na Frana, a Segunda Repblica com seu regime parlamentar mostraram-se insustentveis quando expirava o mandato presidencial de Bonaparte (impedido de se reeleger pela Constituio de 1848), por aqui, a situao foi, guardadas as inmeras diferenas, um tanto similar. Os aditamentos democrticos e liberais presentes naquele tipo de bonapartismo semiparlamentar instaurado em 1934, j bastante residuais desde a aplicao da LSN e das sucessivas prorrogaes do estado de guerra, tornaram-se extremamente inconvenientes quando o regime tinha simplesmente que, conforme ordenava sua prpria Constituio, escolher outro presidente para o lugar de Vargas (impedido de se reeleger pela Carta de 1934). Assim, as prprias regras do regime isto , seu mero funcionamento constitucional colocavam em xeque sua permanncia como forma de dominao poltica, j que uma ordinria sucesso presidencial implicava, necessariamente, em um perodo de insuportvel agitao poltica. Naquelas condies de aguda crise de hegemonia, a simples normalidade do regime ou seja, o cumprimento de suas prprias leis, as quais, em tese, haviam sido elaboradas pra permitir sua continuidade traduzia-se em uma anormalidade poltica. Paradoxalmente, a obedincia s normas constitucionais parecia conduzir eliminao dessas mesmas normas. A observncia risca da Constituio parecia levar inexoravelmente ao fim dessa mesma Constituio e, finalmente, um golpe de Estado aparecia como a continuao natural do regime que deveria depor. Tanto no caso francs, quanto no brasileiro, a iminncia de uma sucesso presidencial por via eleitoral trouxe para o cenrio da luta novamente sujeitos sociais e personagens polticos que j haviam sido retirados dele. Assim, ao longo de 1937, a classe trabalhadora e o
1173 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 61-62. Grifos do autor. 417
comunismo reapareceriam, ainda que de forma espectral, no j conturbado processo poltico brasileiro. Provavelmente em funo da bvia necessidade de obter votos no pleito de 1938, ou talvez buscando diferenciar-se de Vargas e dos grupos polticos que o apoiavam (ou ainda por ambos estes motivos), Jos Amrico passou a criticar abertamente o presidente e iniciou uma aproximao com as massas populares, arengado-as com uma demagogia reformista e uma retrica que denunciava a explorao imperialista do pas (Eu sei onde est o dinheiro. Em vez de um arranha-cu sero duzentas casas.; Se Vargas quer se perpetuar no poder, a nao cumprir seu dever, ir s urnas, mesmo que seja enfrentando as balas etc.). 1174 Essa postura de Jos Amrico talvez esteja entre os motivos que levaram o PCB, ento dirigido pelo estalinista Bangu (Lauro Reginaldo da Rocha), a ensaiar uma espria aproximao com o candidato oligarca, cogitando seriamente apoiar seu nome no pleito do ano seguinte. De todo modo, essa inclinao popular de Jos Amrico, capaz de despertar o nimo eleitoral dos comunistas, contribuiu para tornar ainda mais instvel o cenrio poltico, j permeado pela constante agitao dos integralistas. Assim, quando a classe dominante, depois de toda a brutal represso ao movimento operrio entre 1935-1937, estava, talvez, prestes a se convencer da morte do inimigo comunista, o calendrio eleitoral o trazia novamente baila, fazendo tudo ficar incerto de novo. Frustrada como quem desperta de um sonho bom, a burguesia deparava-se, em razo dos prprios incrementos liberais que enxertara na Constituio de 1934, com uma sucesso eleitoral cuja nica razo de ser parecia ser a de perturbar novamente a paz social, to duramente alcanada por intermdio dos homens de Filinto Mller. Portanto, enquanto os candidatos burgueses embrenhavam-se no jogo eleitoral, a massa burguesa, deixando de lado as frivolidades constitucionais e democrticas, rendia-se sem culpa a Vargas, cujos intentos golpistas eram, a cada dia, mais explcitos. Hbil como poucos estadistas burgueses, Vargas aproveitava-se do crescente clima de intranqilidade poltica para construir o caminho que o levaria novamente condio de ditador do pas; mas desta vez, no mais um ditador que teria que guerrear permanentemente com as fraes burguesas, mas sim, tendo finalmente as submetido todas, ser gentilmente carregado nos seus ombros. Finalmente, o Bonaparte parecia ter conseguido seu antigo objetivo de conquistar a classe dominante brasileira, deixando-a desprovida de quaisquer representaes polticas minimamente liberais, oligrquicas e antibonapartistas. Caminhava-se para um bonapartismo pleno. Nada aodado, premeditando seus passos e dosando a intensidade deles, Vargas blefava, afirmando de pblico que no ano seguinte entregaria o cargo a seu sucessor. Suas palavras tinham a credibilidade de uma nota de trs dlares. Embora fosse um prestidigitador
1174 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5922. 418
nato, desta vez s enganava a quem queria ou precisava ser enganado. A trama golpista era tecida a olhos vistos, e nem tinha o porqu de ser bem rebuada. A vitria era praticamente certa. Como bem colocou Brandi, o curso dos acontecimentos viria confirmar os versos do compositor Antnio Nssara em sua marchinha, A menina presidncia, gravada no incio da campanha eleitoral: melhor deixar como est/Para ver depois, ento/Como que fica/O homem quem ser/Ser seu Manduca (Armando Salles)/Ou ser seu Vav (Jos Amrico)/Entre esses dois/Meu corao balana/Porque/Na hora H/Quem vai ficar seu Geg (Getlio). 1175
O pretexto que faltava para o golpe surgiu ou melhor, foi forjado em setembro de 1937. Elaborado toscamente pelo chefe do servio secreto da AIB (o ento capito Olmpio Mouro Filho, futuro general golpista de 1964), o chamado Plano Cohen era um documento que indicava um suposto plano de tomada do poder por parte dos comunistas brasileiros com o apoio do Komintern. Apresentado a Vargas e Eurico Gaspar Dutra (ministro da Guerra) por Gis Monteiro um dos primeiros a alimentar a idia de um golpe de Estado , o documento falso foi considerado pelos trs como providencial, j que poderia funcionar perfeitamente como um acicate golpista para as Foras Armadas. De pronto, cpias do Plano Cohen foram distribudas entre as altas esferas do governo e da caserna. 1176 A 27 de setembro, teve lugar uma reunio no Ministrio da Guerra em que compareceram os principais nomes militares envolvidos diretamente no estratagema golpista: Gis Monteiro, Almrio de Moura, Jos Antnio Coelho Neto (diretor da Aviao Militar), Newton Cavalcanti e Filinto Mller. Em seguida, Dutra e Gis Monteiro obtiveram no ministrio da Marinha a anuncia do almirante Guilhem. A cpula militar estava, ento, fechada com a investida golpista, e partilhava da idia de que o comando poltico deveria continuar nas mos de Vargas, funcionando o Exrcito e a Marinha como foras auxiliares dos civis. 1177
No dia 30, o Plano Cohen foi divulgado no programa de rdio Hora do Brasil, e o ministro Macedo Soares enviou ao Congresso uma mensagem por meio da qual solicitava novamente a decretao do estado de guerra. Mais subserviente do que nunca, o Parlamento aprovou o pedido governamental por 138 contra 52. Somente os deputados da UDB se opuseram quela nova suspenso dos direitos constitucionais mesmo Joo Neves da Fontoura, que fazia constante oposio ao governo, votou pelo estado de guerra 1178 (At Saul est entre os profetas?!). O chamado estado de exceo tornava-se, na verdade, a regra. A Carta de 1934 j no passava de um cadver insepulto. Na comisso criada por Vargas para dirigir a aplicao do estado de guerra em todo o territrio nacional, constavam os nomes
1175 Idem. 1176 Idem, p. 5923. 1177 Idem. 1178 Idem 419
integralistas de Newton Cavalcanti e Dario Paes Leme de Castro. As regras da comisso permitiam a priso de todos os praticantes e simpatizantes de doutrinas comunistas, e muitos dos presos polticos que haviam sido libertados em julho foram novamente encarcerados, como Pedro Ernesto. 1179 No eram poucas as semelhanas com o fascismo europeu que o bonapartismo brasileiro ia adquirindo. A comisso estava apta tambm a criar colnias agrcolas para a reeducao moral e cvica dos elementos comunistas considerados no-perigosos, campos de concentrao militares destinados a receber os jovens que porventura se tenham transviado de seus deveres cvicos, alm de um outro campo de concentrao, em moldes escotistas nacionais, destinado a educar e reeducar...os filhos de comunistas presos. 1180 Felizmente, essas abominveis propostas no chegariam a sair do papel. A execuo do estado de guerra nos estados ficou a cargo de comisses locais, dirigidas pelos governadores, salvo em So Paulo, Bahia, Pernambuco e Rio Grande do Sul. Neste ltimo estado, a oposio local, que tinha entre seus lderes Benjamin Vargas (irmo do presidente), j se encarregava de, com o apoio do governo federal e da cpula militar, lanar uma insidiosa campanha contra Flores da Cunha, chegando perto de obter seu impeachment na Assemblia Estadual. Em 14 de junho, o cerco bonapartista se fechou sobre o governador gacho, que recebeu ordens expressas para abdicar do controle da Brigada Militar e pass-lo s mos do Exrcito. Sem sada, Flores da Cunha ps a Brigada disposio da 3 Regio Militar e renunciou, partindo para o exlio no Uruguai. Como interventor federal, o general Daltro Filho assumiria seu lugar. 1181 Logo em seguida renncia de Flores da Cunha, as foras militares dos demais estados comearam a ser incorporadas s Foras Armadas. Com o caudilho gacho fora da luta poltica, caa o ltimo forte baluarte da luta contra o centralismo bonapartista de Vargas, cujo projeto golpista no tinha agora mais nenhum verdadeiro obstculo. Assim, nos ltimos dias de outubro, talvez mais por prudncia do que por que qualquer outra razo, Vargas pediu a seu principal assecla entre os polticos civis, Benedito Valadares, que enviasse o deputado Negro de Lima em um tour pelo pas com o objetivo de averiguar a posio dos governadores do Norte e Nordeste (afora os de Pernambuco e Bahia) sobre o iminente golpe de Estado. Negro de Lima, vale assinalar, era nada menos que o secretrio-geral do Comit Pr-Jos Amrico (incrvel a fidelidade destes homens...). Todos os governadores consultados deram a sua anuncia ao ato sedicioso em vias de realizar-se. 1182
Completamente abandonado pelas foras burguesas desde sua guinada esquerda, Jos Amrico, nos primeiros dias de novembro, teve uma entrevista com Dutra e se disse
1179 Idem. 1180 Idem. 1181 Idem. 1182 Idem. 420
disposto a retirar sua candidatura e pedir a Armando Salles que fizesse o mesmo. 1183 Tentou, assim, persuadir o general golpista para que impedisse a consumao do golpe, obtendo a mesma eficcia de algum que pede a um faminto que no devore o prato de comida que se encontra sua frente (ou ainda, relembrando Marx: Quando se tenta persuadir algum porque se reconhece ser ele o dono da situao). 1184 Antes, em 1 de novembro, Plnio Salgado havia organizado um desfile com milhares de camisas verdes para homenagear Vargas, que assistiu parada integralista da sacada do Palcio do Catete, recebendo as saudaes de Anau!. Convicto de que ele e seus seguidores seriam chamados a participar do novo regime poltico surgido do golpe de Estado, o lder da AIB retirou sua candidatura presidencial e declarou apoio ao Bonaparte e s Foras Armadas na luta contra o comunismo e a democracia anrquica, e para proclamar os princpios de um novo regime. 1185
Entretanto, de nada adiantaria sua capitulao a Vargas, e o integralismo no teria mais do que poucos meses de vida sob o novo regime pelo qual clamava seu lder. Porm, a postura mais pattica dos candidatos Presidncia seria, sem dvida, a de Armando Salles. Depois de j ter louvado o herosmo abnegado do Exrcito em seu combate ao levante bolchevista e, em outubro de 1936, ter enaltecido o Parlamento brasileiro por sua responsabilidade de dar ao Executivo os meios de defender a nao em crises que a Constituio no previu, o candidato Salles, observando a iminncia do golpe, divulgou em 9 de novembro (vspera da decretao do Estado Novo) um manifesto em que apelava aos chefes militares do Exrcito e da Marinha para que montassem guarda s urnas e velassem para que o pas obtivesse nelas um governo de autoridade. (A nao est voltada para seus chefes militares; suspensa, espera o gesto que mata ou a palavra que salva). 1186 Salles implorava, assim, aos chefes militares golpistas que obstassem o golpe de Estado, isto , que obstassem o seu prprio golpe de estado! Similarmente a Jos Amrico, esperava combater um golpe de Estado com os golpistas. Indo mais longe que seu adversrio eleitoral, porm, Salles implorava aos golpistas que impedissem o seu golpe de Estado por meio de um regime de autoridade, ou seja, que os golpistas impedissem o seu prprio golpe estabelecendo um regime poltico que no era seno o prprio objetivo daquele golpe. Em uma palavra: Salles queria evitar o golpe de Estado exigindo a aplicao imediata desse mesmo golpe de Estado. Fantstica dialtica desse ldimo espcime poltico da burguesia brasileira! Armando Salles, contudo, demonstrou ter uma enorme fidelidade sua base social, isto , uma espcie de altrusmo de classe. No sendo um poltico de todo estulto, provavelmente sabia que o tal regime de autoridade o qual conclamava as Foras Armadas golpistas a instaurar no teria
1183 Idem. 1184 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 83. 1185 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5923. 1186 SKIDMORE, Thomas. Op. cit., p. 49. 421
espao para pleitos eleitorais e, portanto, para sua prpria candidatura presidencial (e, talvez, como de fato aconteceria, nem mesmo para sua permanncia no sistema poltico nacional). Mas, como sempre, a manuteno da ordem sempre ela era o que mais importava. Salles renunciava, assim, sua carreira poltica a fim de salvaguardar os interesses da classe burguesa que sempre buscou representar, no podendo ser por esta, de modo algum, acusado de egosmo. O hbrido regime de 1934 estava, ento, por um fio, e este fio j no estava preso a mais nada. Toda e qualquer resistncia ao bonapartismo de Vargas tinha sido abandonada por uma classe que mostrou no ter superado ainda o trauma causado por uma precria manifestao poltica feita, em novembro de 1935, em nome do proletariado. Os dbeis expedientes democrticos e liberais do regime, antes vistos pelas fraes burguesas como um contrapeso ao poder de um Executivo de feies e intenes bonapartistas, apareciam agora aos seus apavorados olhos como responsveis pela instabilidade poltica do pas e pela conseqente intranqilidade social. Descolando-se de suas representaes polticas tradicionais envoltas no jogo eleitoral, a burguesia buscava proteo em Vargas. Por mais que o Bonaparte pudesse ser visto ainda por alguns isolados setores burgueses como um adversrio, j era encarado pelo conjunto da classe dominante como um mal necessrio. O golpe bonapartista era, assim, questo de tempo. E o tempo, como por vezes acontece em conjunturas de agitao poltica e social, passava rpido. A 10 de novembro de 1937, finalmente, todas as classes, igualmente impotentes e igualmente mudas, cairiam de joelhos diante da culatra do fuzil 1187 que garantiria o poder absoluto de Vargas. Tomando por base a clebre introduo de Marx para sua conhecida obra sobre o fenmeno bonapartista francs, possvel inferirmos que o coup dtat do 18 brumrio de Napoleo Bonaparte, aplicado em 1799, ocorreu como um fato trgico na histria da humanidade. Ainda que sob vestes medievais e conservadoras, aquela pacificao pela espada da poltica interna francesa (que vinha em ininterrupta agitao desde 1789) se inseriu em e, dialeticamente, permitiu o surgimento de um momento histrico de expanso da sociedade burguesa, que lutava contra os bices feudais do ancien rgime. Como um captulo da herica saga de uma burguesia ainda revolucionria, o golpe do general corso impelia a histria para frente, como costumavam dizer alguns em outros tempos da historiografia. Fazia parte da impressionante tragdia burguesa sob o alvorecer do capitalismo. J o golpe do 18 brumrio de Lus Bonaparte, do contrrio, no passaria, segundo Marx, de uma farsa histrica. Teria expressado como j dissemos outras vezes neste trabalho um momento em que, se por um lado, a burguesia j perdera seu carter revolucionrio, passando-se
1187 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 113. Grifos do autor. 422
abertamente para o campo da contra-revoluo, o proletariado, por sua vez, ainda no estava em condies de realizar a sua prpria emancipao social. O 2 de dezembro de 1851 teria sido, assim, resultado de uma espcie de impasse histrico, de um equilbrio esttico, se usarmos aqui as posteriores palavras de Gramsci. 1188 Com as grandes foras sociais politicamente imobilizadas e inertes, a histria encontrava-se como que congelada, estagnada, permitindo que personagens medocres passassem ao primeiro plano da cena poltica para executar projetos no iam alm de suas mesquinhas ambies pessoais. O regime do Segundo Imprio, comandado por um oportunista aventureiro, aparecia, assim, como um bloqueio luta de classes e, consequentemente, ao avanar da histria. Conquanto que similar nas aparncias, os dois 18 brumrios teriam tido sentido histricos diametralmente opostos. Se no primeiro a histria se repetira como tragdia, no segundo o fez como farsa. Pois bem. No atrasado e perifrico Brasil do sculo XX, o golpe do 10 de novembro de 1937, que consolidaria, naquela etapa, o bonapartismo como a forma poltica de dominao burguesa no pas, no poderia ser seno tambm uma farsa ou, se tomado no plano mais geral da histria do capitalismo mundial, uma farsa da farsa. Se nunca fora revolucionria, e nem mesmo democrtica ou progressista, a burguesia brasileira acentuaria em 1937 o tom reacionrio de sua permanente e preventiva saga contra-revolucionria, talvez justamente porque, por aqui (diferentemente da Frana de 1848-1951), o proletariado, quela altura, j tinha como tarefa histrica potencialmente realizvel a sua revoluo socialista. O bonapartismo atingiu, assim, a sua mais ntida expresso em face de uma sociedade politicamente aplastada: de um lado, um proletariado previamente derrotado pela represso que, a partir de novembro de 1935, tornara-se impiedosa; de outro, uma classe dominante que, fracionada e em crise orgnica, desistiu de vez de qualquer utopia de constitucionalismo liberal e se entregou de corpo e alma ao seu Senhor. Completamente inerme, a burguesia sabia que Vargas sabia o que era melhor pra ela, e que os castigos que lhe aplicara nos ltimos sete anos tinham visado apenas o seu prprio bem. s muitas diferenas entre a farsa original e sua cpia brasileira, pode-se acrescentar ainda que, embora tivesse um incrvel senso de oportunidade poltica, Vargas no era, absolutamente, um oportunista ao estilo de Napoleo III, do mesmo modo que, ainda que gostasse l tambm de suas vedetes de cabar, o Bonaparte tupiniquim nada tinha de medocre ou aventureiro. Um dos homens polticos mais astutos de seu tempo, Vargas, quando de seu 18 Brumrio tropical, estava completamente altura das tarefas histricas contra-revolucionrias que o capitalismo brasileiro ainda necessitava realizar.
1188 GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. Volume III, Op. cit., p. 60-61.
423
O 18 brumrio de Getlio Vargas e o fastgio bonapartista: rpidas consideraes sobre o bonapartismo semifascista do Estado Novo (1937-1945) Como j vimos neste trabalho, 1189 Marx sarcasticamente destacou a forma tragicmica assumida pelo desenrolar da trama golpista que conduziu ao Segundo Imprio francs. De um lado, um Parlamento covarde que, desde seus primeiros dias de existncia, comeou a cavar sua prpria cova. Expurgando de seu corpo quaisquer representaes que no fossem estritamente burguesas, entregando alguns de seus prprios membros aos tribunais da contra- revoluo, abolindo o sufrgio universal, vituperando a repblica, exaltando a monarquia, recusando-se a anistiar os revoltosos polticos que poderiam somar fileiras contra Bonaparte e, principalmente, concedendo ao Poder Executivo todas as armas por ele requisitadas em sua luta contra as classes subalternas, a Assemblia Nacional burguesa teria se mostrado, ao fim e ao cabo, como a principal responsvel por sua prpria queda. Nos momentos finais do conflito com Bonaparte, foi incapaz de fazer uso de suas prprias prerrogativas constitucionais para preservar seu poder e, com isso, obstar o coup dtat. Do outro lado, um presidente que conspirava abertamente, deixando transparecer a todos minimamente atentos seus planos sediciosos. Conquistando progressivamente a confiana da massa da burguesia que, dialeticamente, rompia com suas representaes parlamentares (orleanistas e legitimistas) , esperava apenas o momento certo para assentar o golpe. Subornando generais e soldados, reuniu-se secretamente com seus cmplices, como um ladro, na calada da noite, ordenou que fossem assaltadas as residncias dos dirigentes parlamentares mais perigosos e que Cavaignac, Lamoricire, Lefl, Changarnier, Charras, Thiers, Baze etc. fossem arrancados de seus leitos, que as principais praas parisienses e o prdio do Parlamento fossem ocupados pelas tropas e que cartazes escandalosos fossem colocados ao romper do dia nos muros de Paris proclamando a dissoluo da Assemblia Nacional e do Conselho de Estado, a restaurao do sufrgio universal e colocando o Departamento do Sena sob estado de stio. 1190 Em resposta ou melhor, em uma estril e ridcula resposta , o Parlamento, acfalo, reuniu-se no edifcio da mairie do dcimo distrito e votou a deposio de Bonaparte entre sucessivos gritos de Viva a Repblica; arengando, em vo, a multido curiosa congregada diante do edifcio, acabou finalmente conduzido, sob a custdia de atiradores de preciso africanos, primeiro para o quartel dOrsay e em seguida, amontoado em carros celulares; por fim, foi transportado para as penitencirias de Maza, Ham e Vincennes. Desse modo, terminaram o partido da ordem, a Assemblia Legislativa e a
1189 Ver Captulo I. 1190 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 108-109. 424
Revoluo de Fevereiro. 1191 Assim, a sombra do golpe de Estado que, em funo da prpria indiscrio do presidente conspirador tornara-se to familiar aos parisienses sob a forma de fantasma, a 2 de dezembro de 1851 finalmente [lhes] apareceu em carne e osso. 1192 Uma vez em posse de seu novo poder, agora imperial e absoluto, Bonaparte no tardaria a dissolver fora as unies operrias e a iniciar seu plano de obras bancadas pelo Estado como parte de sua poltica de massas ( preciso dar trabalho ao povo. Obras pblicas so iniciadas). 1193
A essa altura, possivelmente o leitor j tenha entrevisto os no poucos pontos de contato existentes entre o caso clssico francs e o processo poltico brasileiro do 1934-1937, h pouco descrito mais detidamente por ns. Entretanto, no que diz respeito conjuntura golpista brasileira em sua curtssima durao, vale a pena recorrer descrio feita desta por Robert Levine, o que pode, pensamos, lanar luz diretamente sobre outras similitudes entre os dois processos bonapartistas em questo. Fiel aos acontecimentos, Levine acabou por evidenciar a posio no menos pattica adotada pela classe dominante nacional e suas lnguidas representaes polticas quando da eminncia do golpe varguista:
Na madrugada de 10 de novembro [de 1937], tropas da cavalaria cercaram o Palcio Tiradentes, barrando-lhe a entrada. Exemplares da carta constitucional de Francisco Campos [a Constituio de 1937], impressa secretamente, foram distribudos depois que o ministrio confirmou sua aprovao. S o Ministro da Agricultura, Odilon Braga, objetou; foi imediatamente substitudo por Fernando Costa, de So Paulo, chefe, significativamente, do Instituto Nacional do Caf e membro do Partido Republicano Paulista, hostil no estado a Armando Salles. O Ministro da Guerra, Dutra, leu uma breve declarao imprensa sobre a alta misso confiada s Foras Armadas nacionais. Uns poucos militares renunciaram [...] Foram nomeados interventores federais para todos os estados, exceo de Minas Gerais, onde Valadares, o poltico mais comprometido com o planejamento do golpe antes de novembro, conservou seu status [...] Na maior parte dos casos, os governadores permaneceram no poder como interventores; mas foram nomeados interventores novos para o Rio Grande do Sul, So Paulo, Estado do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco [...] As autoridades militares estavam convencidas de que no haveria resistncia. Em 13 de novembro, uma delegao de 80 membros do Congresso em recesso [fechado, na verdade] visitou o Catete para dar apoio ao governo, a despeito do fato de haverem sido presos vrios parlamentares dois dias antes. Os restantes 350 guardaram distncia, aparentemente amargurados. O governo tradicional, constitucional, de modelo federativo, estava morto e enterrado. A penltima sesso da Cmara dos Deputados ocupara-se da natureza do quorum. No seu ltimo debate, os deputados, tendo sido alertados para o golpe em marcha, discutiram se a casa deveria debater a criao de um Instituto Nacional de Nutrio [?!!!]. A mudana veio sem grande fanfarra e sem visveis protestos, como se fora de h muito esperada. Na noite do dia 10, Vargas falou nao pelo rdio do seu escritrio no Palcio Guanabara. Explicou que o golpe fora executado a fim de salvar a Nao de candidatos presidenciais demaggicos e oportunistas, que visavam apenas a legitimar suas ambies pessoais caudilhistas, e pediu autoridade para poder fazer face s necessidades econmicas do pas e pr fim ao divisionismo poltico. O pagamento da dvida pblica externa seria interrompido; as Foras Armadas seriam reequipadas; e o governo inauguraria um vasto programa de obras pblicas e construo rodoviria e ferroviria. Fora compelido a agir, disse, em ateno ao apelo de brasileiros patriotas. 1194
1191 Idem, p. 108-109. 1192 Idem, p. 105. 1193 Idem, p. 124. 1194 LEVINE, Robert. Op. cit., p. 228-229. 425
Neste mesmo pronunciamento, Vargas afirmou que o Brasil deveria abandonar a democracia dos partidos, a qual, nos perodo de crise, como o que atravessamos (...) subverte a hierarquia, ameaa a unidade ptria e pe em perigo a existncia da nao. Nessa situao continuou Vargas , o sufrgio universal passa a ser instrumento dos mais audazes e mscara que mal dissimula o conluio dos apetites pessoais e de corrilhos. 1195 Findado seu discurso golpista, o presidente-ditador compareceu a um jantar previamente agendado na embaixada argentina, 1196 demonstrando a naturalidade com que a mudana de regime se processava. Nessa nova etapa poltica da modernizao capitalista brasileira (1937-1945), muitos dos elementos bonapartistas j contidos (de forma mais ou menos desenvolvida) no perodo anterior (1930-1937) alcanariam sua mxima expresso concreta. Importando analiticamente mais uma vez a leitura de Gramsci sobre a evoluo do bonapartismo italiano dos anos 20, pode-se dizer que, na revoluo passiva brasileira, aquele movimento poltico-histrico (bonapartista) que vinha se desenvolvendo desde 1930 por meio de diversas gradaes de cesarismo atingiu, com o golpe de 1937, sua forma mais pura e permanente, embora tambm esta no imvel e esttica. 1197 O regime do Estado Novo pode, assim, ser definido como um regime bonapartista na sua mais clssica manifestao ou, simplesmente, como um bonapartismo de tipo pleno. A partir de seu pice atingido com a implementao da ditadura estadonovista, o bonapartismo passaria a representar, durante muitos e muitos anos, a forma tima de dominao burguesa no Brasil. O golpe do Estado Novo, como sabido, levou ao fechamento do Congresso, das assemblias estaduais, das cmaras municipais e dissoluo dos partidos polticos. A Constituio elaborada por Francisco Campos prorrogou por seis anos o mandato de Vargas e deixava margem para uma eventual reeleio. 1198 Durante toda a sua segunda ditadura, Vargas governou por meio de decretos-leis, j que, a despeito do que previa a prpria Constituio do novo regime, no se realizariam nem o plebiscito para referend-la, nem as eleies para o Parlamento (as quais deveriam ter lugar somente depois do tal plebiscito). Sob o Estado Novo, o poder poltico estaria totalmente concentrado nas mos do Executivo e, mais precisamente, nas de Vargas e de seu crculo bonapartista. Pelo preceito transitrio (artigo 177) da nova Constituio, o presidente passou a ter a prerrogativa de aposentar funcionrios pblicos e militares no interesse do servio pblico ou por convenincia do regime, 1199 representando o ditador uma constante ameaa para seu
1195 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5924. 1196 Idem. 1197 GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. Op. cit., volume III, p. 77. 1198 LEVINE, Robert. Op. cit., p. 231. 1199 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5924. 426
prprio aparato burocrtico-militar, o qual deveria se mostrar dcil e disciplinado; 1200 assim como o ex-Premier bonapartista Doumergue, Vargas no poderia admitir nenhuma liberdade para os funcionrios e, em geral, para os empregados pblicos. 1201 O processo de modernizao burocrtica da mquina pblica se intensificou sob o novo perodo ditatorial, com a criao, em julho de 1938, do Departamento Administrativo do Servio Pblico (DASP), dotado de amplos poderes para organizar o oramento e racionalizar a administrao estatal (introduzindo modernos critrios de recrutamento baseados em uma perspectiva meritocrtica). 1202 Ungido chefe supremo da Nao, Getlio passou a, na qualidade de comandante-mor do aparelho de Estado, dispor de um altssimo grau de autonomia relativa em face das classes e fraes de classe em presena, o que, evidentemente, no era seno resultado do aumento da autonomia relativa alcanada pelo prprio ncleo duro do aparelho estatal (burocracia e Foras Armadas) em discurso proferido em junho de 1938 na inaugurao das obras da Escola Militar de Rezende (RJ), Getlio afirmou: O Estado Novo foi institudo por vs e para sua sustentao est empenhada vossa responsabilidade. 1203 O componente militar na ditadura civil de Vargas seria extremamente forte. Sob o regime estadonovista, o papel arbitral desempenhado por Vargas em meio s foras sociais e polticas se tornaria ainda mais acentuado. Com a publicao, em dezembro de 1937, do Cdigo de Imprensa, que tachava como ilegal qualquer referncia desrespeitosa s autoridades, 1204 e a criao, em dezembro de 1939, do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), 1205 o regime procurou investir na construo de sua auto-imagem, difundindo uma ideologia nacionalista de tipo chauvinista e estabelecendo um verdadeiro culto personalidade de Vargas que, como um bom Bonaparte, se encarregou em 1938 de montar sua guarda pessoal pretoriana, recrutando homens de confiana em seu estado natal (RS), dentre eles, o posteriormente conhecido Gregrio Fortunato. 1206
Com o 10 de novembro de 1937, encerrava-se, tambm, de uma vez por todas, o duradouro conflito entre a perspectiva centralista-bonapartista de organizao nacional e o federalismo burgus-oligrquico liberal que havia sobrevivido queda da Primeira Repblica. Tendo permeado, em outros termos, os longnquos debates constitucionais de 1890-1891, tal conflito foi tambm uma das tnicas da Constituinte de 1933-1934. Em 1937, finalmente, ele seria decidido sem debate, no melhor estilo bonapartista. Alm da nomeao de interventores
1200 TROTSKY, L. Aonde vai a Frana?. Op. cit., p. 29. 1201 Idem. 1202 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5927. 1203 Idem, p. 5927. 1204 Idem. 1205 Idem, p. 5929. 1206 Idem, p. 5926. Em 1954, durante o Segundo Governo Vargas (1951-1954), Fortunato estaria envolvido na tentativa do assassinato de Carlos Lacerda, episdio que resultou na morte do segurana do lder udenista (major Vaz) e que acabou por jogar gua no moinho da conspirao golpista ento em curso contra o presidente. 427
federais para os estados (mencionada por Levine na longa transcrio acima), importante sublinhar tambm que a nova Carta constitucional, outorgada por Vargas no mesmo dia do golpe de Estado, fixava a preeminncia da Unio sobre os estados e municpios, vedando aos primeiros a utilizao de bandeiras, hinos e escudos em 27 de novembro, teria lugar, no Rio de Janeiro, o conhecido e simblico episdio da queima das bandeiras estaduais no altar da Ptria, montado em praa pblica. A Constituio de 1937 determinava ainda a nacionalizao progressiva das minas, jazidas, quedas dgua e demais fontes de energia, alm das indstrias consideradas essenciais para a defesa econmica ou militar do pas. 1207 No plano do aparelho coercitivo, uma fundamental modificao (de sentido centralista) a ser destacada foi a absoro pelos comandos regionais do Exrcito das foras pblicas estaduais, que, como vimos, iniciara-se dias antes do golpe, na esteira da ofensiva das Foras Armadas contra Flores da Cunha. Conforme muitos analistas destacaram ainda no calor dos acontecimentos, a nova Carta constitucional guardava uma enorme proximidade com a constituio semifascista do regime polons de Pilsudsky, o que lhe valeu a alcunha de Polaca. O modelo de organizao social por ela apresentado possua um ntido contedo corporativista, expondo claramente a inteno da cpula poltica dirigente de subsumir a sociedade civil a um aparelho de Estado em crescente processo de autonomizao. As inspiraes totalitrias buscadas pela Constituio de 1937 no se limitariam Polnia corporativista. O Estado Novo brasileiro, que tomou seu nome emprestado da ditadura salazarista portuguesa, se assentaria juridicamente sobre uma Carta Constitucional na qual possvel encontrarmos traos extrados das constituies de vrios regimes capitalistas antiliberais instalados ao redor do mundo nas dcadas de 1920 e 1930. Referenciados na Carta del Lavoro de Mussolini, dispositivos incorporaram Carta de 1937 a estrutura sindical formatada a partir da Revoluo de 1930. O princpio do pluralismo sindical que, como j adiantamos, nunca sara do papel desde sua estipulao pela Constituio de 1934, foi novamente substitudo pelo da unicidade sindical. As greves e lockouts foram severamente proibidos como sendo recursos anti-sociais nocivos ao trabalho e ao capital e incompatveis com os superiores interesses da produo nacional. 1208
Como j vimos neste trabalho, 1209 a partir de 1939, com a instituio da Lei Orgnica da Sindicalizao Profissional, o controle do Estado sobre o movimento sindical tornou-se quase total, podendo o MTIC fechar os sindicatos, comandar seus processos eletivos, destituir suas diretorias e fiscalizar suas contas, entre outros expedientes arbitrrios. Segundo o prprio
1207 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5924-5925. 1208 Idem, p. 5924. 1209 Ver Captulo III. 428
decreto que instituiu a referida lei (1.402), a vida das associaes profissionais passaria a gravitar em torno do Ministrio do Trabalho: nele nascero, com ele crescero; ao lado dele se desenvolvero; nele se extinguiro. 1210 Ademais, o chamado atestado de ideologia seria utilizado fartamente pela burocracia bonapartista para impedir a atividade sindical de qualquer ativista que se mostrasse minimamente independente das diretrizes governamentais. Completando a descrio desse cenrio repressivo com o qual se deparou a classe trabalhadora nos anos estadonovistas, vale mencionar que a atividade policialesca exercida duramente contra ela desde novembro de 1935 se tornaria ainda mais atroz depois de novembro de 1937. Segundo Levine, com o Ministrio da Justia sob controle de Francisco Campos que assumiu o posto dias antes do golpe , foram triplicadas as medidas de segurana interna. 1211 Mantida sob comando do biltre Filinto Mller (simpatizante declarado do nazismo alemo), a gendarmerie do regime seria responsvel pela continuao de uma ostensiva caa s vanguardas polticas da classe trabalhadora e dos setores mdios de esquerda, voltando a apinhar as penitencirias de presos polticos. 1212
Evidenciando a manuteno da estratgia bonapartista baseada no binmio represso- reformas, a ampla legislao social aprovada desde 1930 foi tambm incorporada ao texto constitucional, e alguns outros importantes direitos trabalhistas (como o Salrio Mnimo) seriam criados ao longo do Estado Novo: todos estariam presentes na Consolidao das Leis do Trabalho (CLT), lanada pelo governo em 1943. Contudo, a efetivao desses direitos sob a ditadura seria apenas parcial; alm da continuao de sua no aplicabilidade pelos patres (que, em um contexto ditatorial, sentiam-se ainda mais vontade para ignorar os reclamos legalistas dos trabalhadores), a entrada do Brasil no conflito mundial em agosto de 1942 levaria suspenso (tida como temporria) de certos benefcios trabalhistas em determinados ramos da produo industrial, o que era justificado pelo chamado esforo de guerra. Assim, sob o Estado Novo, as foras bonapartistas dariam continuidade ao processo, iniciado em 1930, de incorporao controlada das massas populares vida pblica. Contudo, desde 1935, j no se tratava mais de simplesmente trazer para a rbita institucional os potencialmente ameaadores segmentos subalternos que, quando estourara a Revoluo, se encontravam ainda politicamente prximos a um estado inercial ou, segundo a j vista caracterizao gramsciana de Carlos Nelson Coutinho, no iam alm de um subversivismo
1210 TROYANO, A. A. Estado e sindicalismo. So Paulo: Smbolo, 1978 apud MATTOS, Marcelo Badar. Trabalhadores e Sindicatos no Brasil. Op. cit., p. 70. 1211 LEVINE, Robert. Op. cit., p. 232. 1212 No escusado lembrar aqui que a obra Memrias do crcere, do escritor e ento preso poltico Graciliano Ramos, , sem dvida, uma das melhores referncias para os interessados na temtica das condies de vida e do cotidiano dos presos polticos do bonapartismo varguista no perodo 1935-1945 (RAMOS, Graciliano. Memrias do crcere. So Paulo: Martins, 1969). 429
espordico, elementar [e] desorganizado. 1213 A tarefa do bonapartismo varguista, a partir de 1935, e que teria sua complementao por meio da ditadura estadonovista, seria a de destroar as vanguardas polticas de uma classe trabalhadora que, quando ainda mal havia comeado a ingressar nas estruturas institucionais do Estado burgus, mostrou-se capaz de se expressar politicamente (e de forma mediatizada) por meio de um poli-classista movimento de massas, de cunho reformista radical, animado por uma frente popular (ANL). Embora grande parte do servio j tivesse sido feita por meio da cruenta represso verificada nos dois anos seguintes ao frustrado levante comunista, a limpeza poltica ainda estava por ser finalizada: entre outros motivos, porque os alvos do bonapartismo ps-1935 no se limitavam aos setores de vanguarda estritamente proletrios, mas se estendiam aos segmentos progressistas e democratas das classes mdias, e mesmo aos setores burgueses que se opunham, ainda que moderadamente, nova configurao que o bonapartismo varguista vinha assumindo. Esse outro ponto importante da questo. Mesmo j estando politicamente alquebrado quando se iniciou o ano de 1937, o proletariado, em funo de suas tmidas aparies espectrais na campanha presidencial (em especial na candidatura Jos Amrico), seria, como vimos, ardilosamente invocado pelas foras bonapartistas e, mais particularmente, pelo prprio Vargas, para acirrar o temor burgus e levar a cabo seu acerto de contas final com as representaes polticas da burguesia. Convm, portanto, apontar que o golpe do Estado Novo representou tambm uma satisfatria soluo temporria mas no um encerramento, vale frisar da crise de hegemonia que atingia a sociedade brasileira desde a falncia da antiga dominao oligrquica (pr-hegemnica). Desse modo, se a Revoluo de 1930 e, mais particularmente, as duas configuraes bonapartistas que a ela se seguiram (semibonapartismo oligrquico e bonapartismo semiparlamentar) se apresentaram como solues instveis e frgeis para a crise de hegemonia brasileira, o regime bonapartista estadonovista, do contrrio, pode ser apreendido como uma estvel e consistente soluo no- hegemnica para ela, soluo essa que teria na extremada violncia estatal seu principal sustentculo poltico. Tendo iniciado, em 1930, sua saga preventivamente contra-revolucionria, o bonapartismo brasileiro, com o golpe de novembro de 1937, entrava em sua fase mais violentamente reacionria. A proeminncia dos elementos coercitivos sobre os consensuais, que sempre fora ntida desde 1930, ficava agora gritante. Embora a propaganda oficial e a nascente indstria cultural produzissem para a ditadura uma forte dosagem de consenso, no h dvidas de que o regime se apoiava fundamentalmente na aberta coero de classe. Assim, se o regime de 1937 pode ser entendido historicamente em uma linha de continuidade com
1213 COUTINHO, Carlos Nelson. As categorias de Gramsci e a realidade brasileira. Op. cit., p.199-200. 430
relao aos regimes de 1930 e 1934, no se deve ignorar o fato de que o significativo aumento quantitativo dos expedientes estatais repressivos sob a ditadura estadonovista fez desta um regime qualitativamente diferente das modalidades bonapartistas anteriores. Assumindo indiscutivelmente um sentido regressivo (cesarismo regressivo), 1214 o bonapartismo brasileiro, em 1937, tomava indisfaravelmente a forma de uma cerrada ditadura policial- militar, 1215 isto , a de um bonapartismo semifascista. 1216
J a alternativa poltica propriamente fascista presente no cenrio nacional, representada pelo integralismo, sairia de cena, como antecipamos, em pouco menos de seis meses depois do golpe de Estado que havia apoiado irresolutamente. Insatisfeitos com o enquadramento da AIB no decreto de dezembro de 1937, que ordenava a dissoluo dos partidos polticos, os integralistas promoveram, em maio de 1938, um desastrado ataque ao Palcio do Catete. Depois de terem assassinado quatro soldados da guarda e cortado a eletricidade e o telefone do Palcio, os atacantes, um tanto quanto inexplicavelmente, no invadiram seu interior, onde se encontravam Vargas e alguns de seus auxiliares e familiares prximos, os quais tinham acesso a uma linha telefnica especial, no cortada pelos invasores. Depois de um longo tiroteio entre o bando integralista, liderado pelo tenente Severo Fournier, e os soldados defensores do prdio, chegaram ao local tropas federais trazidas pelo coronel Cordeiro de Farias (ex-tenente) e, na sequncia, Eurico Gaspar Dutra (que fora mantido como ministro da Guerra) e Gis Monteiro (Chefe do Estado Maior do Exrcito). Em uma situao militarmente desfavorvel, os integralistas acabariam se rendendo. 1217 Segundo fontes, 1218 teria sido o dissoluto Benjamin Vargas o autor das execues sumrias, realizadas ainda nos jardins do palcio presidencial, de sete dos castos camisas verdes de Plnio Salgado, cujo destino seria o exlio nas salazaristas terras portuguesas. maneira lumpem, portanto, o bonapartismo se livrava das foras lumpem-fascistas que haviam lhe prestado slido apoio na perseguio ao proletariado em 1935-1937 e, como j dissemos, tambm no golpe que proclamara o Estado Novo. Tirando vantagem da situao, Vargas se aproveitaria do clima gerado pelo malogrado putsch integralista para fortalecer ainda mais o aparelho jurdico repressivo disposio do governo. Em 16 de maio, promulgou duas leis constitucionais que estabeleciam a pena de morte para os atos de subverso e reimplantavam, em carter definitivo, o artigo 117 da Constituio (que permitia a Vargas aposentar funcionrios pblicos e militares). O ambiente poltico deu ainda ao ditador a possibilidade de se livrar no s dos integralistas mais incmodos, como tambm de alguns opositores liberais burgueses,
1214 GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. Op. cit., volume III, p. 76-77. 1215 TROTSKY, Len. Los sindicatos en la era de la decadencia imperialista. Op. cit., p. 174. 1216 MORENO, N. Las revoluciones del siglo XX. Op. Cit., p. 19. 1217 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5926. 1218 Ver o interessante documentrio Soldados de Deus (2004), dirigido por Srgio Sanz. 431
como Armando Salles, Jlio de Mesquita Filho e Otvio Mangabeira (deportados do pas em novembro de 1938). 1219
Dado o carter radical das aes comunista e integralista em 1935 e 1938, respectivamente, Getlio Vargas e seu aparelho estatal relativamente autonomizado passaram a serem vistos cada vez mais pela classe dominante do pas como uma ordeira alternativa poltica s radicalizadas propostas gestadas pela sociedade civil dos anos 30. O regime de fora expresso pelo varguismo aparecia como uma conveniente opo burguesa tanto revoluo democrtica apregoada pela ANL/PCB, quanto ao projeto de Estado Integral preconizado pelo fascismo da AIB. Em uma palavra, nem fascismo nem democracia, e muito menos comunismo: bonapartismo! Diferentemente de outras experincias mundiais (tanto fascistas, quanto bonapartistas), o regime estadonovista prescindiria de um partido oficial que representasse a cpula burocrtico-militar dirigente nas estruturas institucionais do Estado. Segundo Vargas, no deveriam existir intermedirios entre o povo e o governo. 1220 Do mesmo modo, distinguindo-se dos regimes propriamente fascistas, o Estado Novo no procurou organizar uma mobilizao de massas plebias a favor da ordem. No havendo necessidade de uma guerra civil contra o proletariado organizado, o capital pde dispensar o fascismo e todas as suas imprevisveis conseqncias. Construdo sob medida para a medrosa burguesia brasileira, o regime bonapartista do Estado Novo vestiria uma indumentria neutra, tcnica, burocrtica e apoltica. Quanto menos agitao melhor. O ramerro da vida econmica deveria prosseguir sem as inconvenientes perturbaes da vida poltica. Gozando de uma amplssima margem de autonomia diante da classe dominante, Vargas, ao longo do Estado Novo, continuaria a prestar seu eficaz servio ao desenvolvimento do capitalismo brasileiro. De imediato, suspendeu o pagamento da dvida externa e passou a adotar uma poltica consistente de estmulo s atividades industriais. 1221
Sendo talvez um pouco hiperblico, podemos importar aqui as palavras de Marx e dizer que, sob a gide do Estado Novo, a sociedade burguesa, livre de todas as preocupaes polticas, alcanou um desenvolvimento que nem ela mesma esperava. Sua indstria e seu comrcio ganharam propores gigantescas; a especulao financeira celebrou orgias cosmopolitas; a misria das massas se destacava sobre a ostentao desavergonhada de um luxo suntuoso, falso e envilecido. O poder de Estado, que aparentemente flutuava por cima da sociedade, era, na verdade, o maior escndalo desta e o autntico viveiro de todas as suas corrupes. 1222 A ditadura estadonovista representou, sem dvida, um dos principais captulos na histria da
1219 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5926.
1220 Idem, p. 5927. 1221 Idem. 1222 MARX, K. La guerra civil em Francia. Op. cit., p. 61-62. 432
retardatria modernizao capitalista brasileira. Assentando-se sobre o velho compromisso fixando em 1930, e solidificando-o, o bonapartismo semifascista de Vargas remodelaria as condies para a acumulao e reproduo do capital no pas. Acelerando sobremaneira os processos de urbanizao e industrializao, o regime enterraria de vez qualquer possibilidade de que a roda da histria pudesse girar para trs, tal como desejaram durante muito tempo alguns setores agraristas. O Brasil tornava-se, definitivamente, uma moderna sociedade de massas. A ditadura do Estado Novo pode ser vista, assim, como um claro exemplo da (trotskista) tese de Florestan Fernandes, segundo a qual, como j expusemos, a revoluo burguesa nos pases dependentes entendida no sentido do desenvolvimento das foras produtivas e relaes sociais capitalistas no s dispensaria a existncia de uma revoluo de tipo democrtico-burguesa, como se faria acompanhada de formas polticas cada vez mais ditatoriais e autocrticas. 1223
Iniciada ainda sob o bonapartismo semiparlamentar, a passagem da funo hegemnica para as mos da frao burguesa industrial completar-se-ia sob o bonapartismo semifascista de Vargas. A participao de grandes empresrios e seus prepostos nos rgos tcnicos do Executivo os quais se ampliariam significativamente a partir de 1937 (Conselho Tcnico de Economia e Finanas, Conselho Nacional do Petrleo, Conselho Nacional de guas e Energia Eltrica etc.) se tornaria mais substantiva e determinante para o carter das diretrizes econmicas elaboradas e empreendidas pela cpula governamental. 1224
Tanto como uma forma de controle sobre a classe trabalhadora, quanto como uma maneira de colocar os interesses industrialistas acima dos das demais fraes do capital, o modelo corporativista, aperfeioado e consolidado pela ditadura bonapartista, mostrar-se-ia como uma arquitetura institucional extremamente til para a burguesia industrial. Seu funcionamento pleno a partir do Estado Novo possibilitou que a frao industrial do capital obtivesse a hegemonia no interior dos grupos dominantes (funo hegemnica) embora, reiteramos, estivesse longe de ter obtido uma hegemonia propriamente dita (sobre o conjunto do tecido social). No toa, os industriais, que j vinham aderindo ao corporativismo desde 1935, com ele se refestelaram durante a ditadura; contudo, como em qualquer verdadeiro caso de amor, a burguesia industrial estabeleceu ao mesmo tempo suas relaes paralelas, organizando-se conforme j dito tambm em entidades classistas no vinculadas ao MTIC (naturalmente toleradas por este). Como observamos em O 18 brumrio, Luis Bonaparte, no auge da sua luta contra o Parlamento burgus controlado pelo partido da ordem, foi designado pelo The Economist
1223 FLORESTAN, Fernandes. A revoluo burguesa no Brasil. Op. cit. (Ver a Introduo segunda parte do presente trabalho). 1224 DINIZ, Eli. Empresrio, Estado e capitalismo no Brasil. 1930-1945. Op. cit e ____. O Estado Novo: estrutura de poder e relaes de classes. Op. cit. 433
como o guardio da ordem. A aristocracia financeira, afirmou Marx, condenava, portanto, a luta parlamentar do partido da ordem contra o poder executivo como uma perturbao da ordem, e comemorava cada vitria do Presidente sobre os supostos representantes dela como vitrias da ordem. 1225 Marx lembrou tambm que, uma semana antes de seu coup dtat, Bonaparte seria simplesmente ovacionado com aplausos abjetos pelos industriais franceses. 1226 Por aqui, o papel da nossa massa burguesa diante do chefe supremo do Estado Novo no seria menos pusilnime. Uma carta publicada n O Estado de So Paulo, a 19 de agosto de 1942 (aniversrio de Vargas), assinada pela Associao Comercial de So Paulo, alguns bancos, a FIESP e vrias grandes companhias industriais, apenas um dos mltiplos exemplos que comprovam a total subservincia da classe dominante brasileira (e, em especial, de sua frao industrial) ao seu Bonaparte. Tratado encomiasticamente ao longo de toda a carta, Vargas foi parabenizado pela data e descrito como o apstolo da Ordem. 1227 Em uma implcita autocrtica de sua postura politicamente federalista e oligrquica adotada no perodo 1930-1935 (e principalmente em 1932), os signatrios da carta deslavadamente afirmaram que: H doze anos [isto , desde 1930] que o Dr. Getlio Vargas representa a Ordem para o Brasil. Ser contra ele, se isso hoje ainda fosse possvel, seria se colocar contra a Ordem. Seria colocar-se contra o Brasil, seria colocar-se contra si mesmo. 1228 Em seguida, deixando de lado qualquer laivo de seriedade analtica, os ordeiros burgueses paulistas escreveram que Getlio, entre outras virtudes, tem sido o nosso mestre da democracia [..] Foi ele, pois, quem realizou em nossa terra uma democracia pela qual durante um sculo tanto se lutou. 1229
Por fim, quanto poltica externa, o bonapartismo semifascista do Estado Novo adotou uma linha claramente ambivalente. Segundo Gerson Moura, j no segundo semestre de 1934, entre o livre cambismo proposto pelos EUA [Estados Unidos da Amrica] e o comrcio compensado proposto pela Alemanha, o Conselho Federal do Comrcio Exterior, rgo coordenador da poltica comercial brasileira, optara pelos dois. 1230 A partir de 1938 e, sobretudo, depois da ecloso da Segunda Guerra mundial (em setembro de 1939), o governo brasileiro, que continha tanto uma ala pr-americana (capitaneada por Osvaldo Aranha), quanto outra germanfila (representada pelas figuras de Filinto Muller e Francisco Campos), passou a oscilar visivelmente entre o Eixo e os Estados Unidos (at ento, fora belicamente do
1225 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 97. Grifos do autor. 1226 Idem, 108. 1227 Carta publicada em O Estado de So Paulo (19/08/1942) apud CARONE, Edgard. A Terceira Repblica (1937-1945). 2 edio. So Paulo: Difel, 1982, p. 351. 1228 Idem, p. 352. 1229 Idem. 1230 MOURA, Grson. Autonomia na dependncia. A poltica externa brasileira de 1935 a 1942. Op. cit. Apud BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5916. 434
conflito). Segundo o mesmo Grson Moura, tratava-se de uma eqidistncia pragmtica. 1231
Como bem percebeu Trotsky, utilizando-se da rivalidade entre os Estados Unidos e a Alemanha e, ao mesmo tempo, mantendo a mais selvagem ditadura sobre as massas populares, a ditadura bonapartista estadonovista exprimia a existncia de uma ascendente burguesia nacional que buscava uma maior participao no butim e se esforava para aumentar a medida de sua independncia quer dizer, para conquistar a posio dominante na explorao de seu prprio pas. 1232 Tal burguesia destacou o revolucionrio russo, ento exilado no Mxico cardenista , em funo de sua debilidade geral e de sua retardada apario, se encontraria impedida de alcanar um nvel de desenvolvimento mais alto que o de servir a um amo imperialista contra outro; no poderia lanar uma luta sria contra toda a dominao imperialista e por uma autntica independncia nacional por temer desencadear um movimento de massas dos trabalhadores do pas, que por sua vez ameaaria sua prpria existncia social. 1233
Ditadura em crise, a guerra e o incio da transmutao bonapartista (1942- 1945) Depois de funcionar como um indeciso peo no polarizado tabuleiro geopoltico mundial, o Estado brasileiro finalmente, em agosto de 1942, declarou guerra Alemanha, o que se deveu, entre outros fatores, ameaa de invaso estadunidense do litoral nordestino, s mobilizaes de sindicatos e estudantes (organizadas pela Unio Nacional dos Estudantes UNE) pela entrada do Brasil no conflito ao lado dos aliados, e obteno anterior, pelo governo Vargas, de fartos recursos econmicos provenientes dos EUA (e que se materializaram, por exemplo, na construo, iniciada ainda em 1941, da Companhia Siderrgica Nacional - CSN). Com a entrada do pas no conflito mundial, o bonapartismo varguista ganhava um componente blico, fornecendo ainda mais ingredientes para a sua propaganda ufanista. O prprio PCB, com muitos de seus quadros encarcerados e/ou perseguidos incessantemente pela polcia poltica, saudou a entrada do Brasil na guerra e clamou pela necessidade de uma unio nacional contra o nazi-fascismo. Sob o comando do Exrcito norte-americano, os pracinhas da Fora Expedicionria Brasileira (FEB) lutariam, em nome da democracia inexistente no Brasil , contra as tropas de Mussolini na Itlia, cujo regime fascista, como j lembramos, havia sido uma das grandes fontes de inspirao para o Estado Novo varguista.
1231 Idem, p. 5920. 1232 TROTSKY, Len. La politica de Roosevelt en America Latina. Op. cit., p. 93. Traduo nossa. Grifos do autor. 1233 Idem. Grifos do autor. 435
O desenrolar do curso da guerra, combinado s alteraes na morfologia da sociedade brasileira aps alguns anos de intenso desenvolvimento industrial baseado em uma alta taxa de explorao da fora de trabalho, conduziria ao incio de uma tentativa de transmutao da ditadura bonapartista encetada por sua prpria cpula dirigente ou, pra sermos mais exatos, pelo prprio Bonaparte. Possivelmente por ter antevisto um desfecho do conflito mundial favorvel Unio Sovitica e, ao mesmo tempo, a impossibilidade de preservar sobre a crescente classe trabalhadora aquela forma ditatorial policial-militar, Vargas, com extrema habilidade antecipatria, deu os primeiros passo no sentido de uma transformao da ditadura pelo alto. A anunciada derrota do Eixo na guerra trazia a democracia (burguesa) como um valor inquestionvel para as sociedades, expondo abertamente a contradio do caso brasileiro: um pas que lutava externamente contra as ditaduras, mas que, entretanto, mantinha internamente um duro regime ditatorial. A idia de Getlio, ao que tudo indica, era promover uma gradual abertura do regime aproximando-o das massas, as quais poderiam funcionar como o principal sustentculo do aparelho estatal bonapartista em um possvel cenrio poltico dotado de expedientes democrtico-eleitorais. Portanto, ainda que o bonapartismo semifascista tenha perdurado (cada vez mais brando) at mais ou menos abril/maio de 1945 (quando da decretao da anistia, da libertao dos presos polticos e da legalizao dos partidos), o certo que, a partir de 1942, j pode ser entrevista uma mudana de postura do regime em relao aos trabalhadores. O MTIC, sob comando de Alexandre Marcondes Filho que assumiu a pasta em julho de 1941 e gozava da confiana de setores do empresariado , daria incio a uma reorientao da poltica estatal face aos sindicatos. Em janeiro de 1943, foi criada a Comisso Tcnica de Orientao Sindical (CTOS), que tinha por fim dissociar a poltica sindical da sua dimenso repressiva, e identific-la como um instrumento de bem-estar social e de garantias de direitos trabalhistas. 1234 No mesmo perodo, foram levadas a cabo aes como a instituio do Servio de Alimentao e Previdncia Social e a construo de vilas operrias e escolas nas fbricas, alm do fomento de cooperativas de consumo para trabalhadores sindicalizados (por intermdio da fundao do Banco Cooperativo Financial). 1235
Somada aos discursos de Vargas (pronunciados religiosamente nas datas festivas) e s palestras radiofnicas do prprio ministro do Trabalho, essa nova linha poltica adotada por setores da cpula dirigente colaborava para a construo de uma imagem positiva do ditador junto classe trabalhadora e s ingentes massas populares. 1236 Resgatando o itinerrio da criao dos direitos sociais do ps-1930, a ideologia trabalhista (em formao) seria a
1234 COSTA, Hlio da. Trabalhadores, sindicatos e suas lutas em So Paulo (1943-1953) in FORTES, Alexandre (e outros) Na luta por direitos. Op. cit., p. 92. 1235 Idem, p. 93. 1236 GOMES, Angela de Castro. A inveno do trabalhismo. Op. cit. 436
principal responsvel pela representao da figura de Getlio como o Pai dos pobres. Para tal, muito contribuiu a elaborao, pela equipe de Marcondes Filho, da CLT, anunciada por Vargas em um evento pblico no 1 de Maio de 1943 (Dia do Trabalho), realizado no estdio de futebol do Vasco da Gama (clube identificado desde suas origens com os estratos sociais proletrios e populares). No obstante as novas medidas de carter social da ditadura, ocorreriam, em 1944, vrias greves de trabalhadores reivindicando melhores salrios e condies de vida. Nesse processo de reorientao do regime face classe trabalhadora, a mola mestra da propaganda pr-Vargas passou a ser o discurso de valorizao da figura do trabalhador e do prprio trabalho. Reatualizava-se, ento, mas com objetivos bem diferentes, a afirmao da dignidade do trabalhador pela qual tinham batalhado os sindicalistas do pr-1930. 1237
Reverberado pelas mquinas sindicais oficiais, o discurso trabalhista procurava apresentar Vargas como o responsvel pela doao dos benefcios da legislao social, tendo por finalidade obter dos trabalhadores uma retribuio ao grande lder benevolente, a qual poderia se manifestar tanto por meio do ordeiro empenho na produtividade do trabalho, quanto por meio do voto, quando este voltasse a ser um instrumento de participao poltica. 1238
Preparada pela represso prvia aos trabalhadores exercida, sobretudo, a partir de 1935, e que praticamente decapitara o movimento operrio , a nova poltica trabalhista logrou um inegvel xito desde o incio de sua aplicao, aproximando parcela significativa dos trabalhadores ao ditador que ento conduzia a transformao de seu prprio regime. A constatao da importncia desse fator repressivo (prvio) para o sucesso da poltica trabalhista fez com que alguns historiadores, como Marcelo Badar Mattos, afirmassem no ter havido propriamente um pacto entre Estado (repressor) e trabalhadores (reprimidos). 1239
O instrumento poltico-organizativo construdo para proporcionar essa manobra de massas pelo varguismo, que ento girava esquerda, foi o Partido Trabalhista Brasileiro, surgido em maio de 1945 pouco depois das fundaes, j permitidas pelo regime, do Partido Social Democrtico (PSD), impulsionado por Vargas a partir da juno de setores burgueses e burocrticos vinculados ao Estado Novo (sobretudo s interventorias), e da Unio Democrtica Nacional (UDN), que congregava variados grupos de oposio ditadura, mas com clara predominncia de uma burguesia liberal-oligrquica e abertamente favorvel presena (praticamente livre de controle) do capital estrangeiro no pas. Criado, a pedido de Vargas, por Alexandre Marcondes Filho, o PTB tinha como principal base constitutiva a burocracia sindical do ps-1930, desenvolvida substantivamente
1237 MATTOS, Marcelo Badar. Trabalhadores e Sindicatos no Brasil. Op. cit., p. 74. 1238 GOMES, Angela de Castro. A inveno do trabalhismo. Op. cit. 1239 MATTOS, Marcelo Badar. Trabalhadores e Sindicatos no Brasil. Op. cit., p. 75.
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a partir do Estado Novo. Com um discurso nacionalista e uma plataforma contidamente reformista, o partido, de natureza poli-classista, recrutou quadros e simpatizantes tambm entre os setores mdios, estudantes, intelectuais, segmentos da burguesia industrial, trabalhadores e polticos profissionais, com destaque para Alberto Pasqualini (um de seus principais idelogos). Buscando referendar-se no legado social de Vargas, o trabalhismo, erguido sobre a base da estrutura sindical corporativista, apregoava abertamente uma colaborao de classes sob arbitragem estatal, procurando explorar a imagem do Bonaparte brasileiro como lder sapiente e protetor dos mais necessitados. Trabalhando pela arregimentao eleitoral das massas populares em prol do varguismo, o PTB surgiu como um concorrente do PCB nos meio operrios e esse foi, certamente, um dos objetivos de sua criao por Getlio, decidida depois que fracassara sua idia de formar um s partido que conglomerasse tanto os quadros burgueses e burocrticos do Estado Novo, quanto os sindicalistas ligados ao MTIC. O trabalhismo e seu partido no nasceram, portanto, da sociedade civil brasileira, e sim das entranhas do Estado capitalista. Foram filhos de esquerda do bonapartismo estadonovista, gestados na e politicamente correspondentes ltima fase da ditadura (ps-1942). O fato de terem se apropriado de bandeiras e propostas existentes h dcadas no movimento operrio brasileiro ressignificando-as, como gostam alguns, ou, mais precisamente, abrandado-as em nada altera o seu real contedo poltico (burgus). A atuao do PTB ao longo da etapa 1946-1964 talvez nos permita caracteriz-lo como um tipo de Frente Popular sob forma de partido, recorrendo aqui expresso cunhada por Trotsky para referir-se a organizaes partidrias como a peruana Aliana Popular Revolucionria Americana (APRA), criada por Haya de La Torre, e o Partido da Revoluo Mexicana (PRM), do general populista Crdenas. 1240
Em 18 de abril de 1945, Vargas decretou finalmente a anistia e libertou os presos polticos do regime. Muitos comunistas foram postos em liberdade, inclusive Luiz Carlos Prestes, que amargara nove anos de crcere em condies subumanas. No mesmo ano, estouraram novas greves de vrias categorias de trabalhadores, buscando combater a carestia e o arrocho sindical imposto pela ditadura (sobretudo a partir do esforo de guerra). Nesse momento, o PCB impulsionou nos meios sindicais a criao do Movimento de Unificao dos Trabalhadores (MUT), e lanou-se em uma batalha pela reorganizao da classe trabalhadora a partir de organismos de base (no s sindicais, mas sociais em geral) como os chamados comits populares democrticos, que nas fbricas se traduziam nos comits de fbrica. Contudo, os imperativos polticos da unio nacional antifascista fizeram com que a direo partidria, sob o lema ordem e tranqilidade, orientasse a classe trabalhadora a apertar os
1240 TROTSKY, L. Discusion sobre America Latina. Op. cit., p. 124-125. 438
cintos, alegando que as greves e desordens s interessariam ao fascismo. Eliminar os restos deste, na tica dos comunistas brasileiros, seria a principal tarefa estratgica no curso da revoluo democrtico-burguesa a ser realizada no pas (supostamente ainda dotado de traos semifeudais). Ironicamente ou esdruxulamente, melhor dizendo , para a direo pecebista, um dos principais aliados dos trabalhadores na luta contra os ditos restos do fascismo seria o prprio ditador estadonovista, dantes qualificado pelos comunistas como fascista. Aproximando-se politicamente de Vargas, o PCB engrossaria o caldo do movimento queremista, que exigia a manuteno do presidente no posto de modo que o mesmo pudesse continuar como o principal condutor do processo de abertura. Ao cerrarem fileiras com aqueles que defendiam uma Constituinte com Getlio (palavra de ordem no propugnada pelo PCB), os comunistas, ainda que apelando entusiasticamente classe operria, acabaram por colaborar tacitamente com as foras polticas que aspiravam a uma transio pelo alto da ditadura bonapartista. Em 1946, j sem Getlio no poder, pululariam mais movimentos grevistas, desta vez abarcando milhares e milhares de trabalhadores. 1241 Organizadas pelos sindicatos ou mesmo por fora dele (via comisses por local de trabalho, como as comisses de fbrica), 1242 as greves expunham o protagonismo social e poltico do proletariado no novo cenrio nacional, e contribuam para radicalizar o ambiente poltico em reconfigurao Diferentemente do que fizera at mais ou menos o fim de 1945, o PCB declararia apoio s reivindicaes dos grevistas, agora no mais considerados pelos porta-vozes do partido como quinta-colunistas. Contudo, vida por se apresentar como confivel e ordeira aos olhos dos setores democrticos da classe dominante, a direo partidria afirmaria publicamente a desvinculao dos militantes sindicais comunistas com as aes paredistas, atribuindo a sua ocorrncia alta taxa da explorao capitalista no pas e ao desrespeito legislao social por parte da patronal. Buscado construir, em aliana com setores do PTB, uma espcie de central sindical dos trabalhadores paralela aos sindicatos oficiais em setembro de 1946, seria fundada a fugaz Confederao dos Trabalhadores do Brasil (CTB) , a cpula estalinista no lanaria o partido em um combate aberto e declarado contra a estrutura sindical corporativista, adotando diante dela uma posio visivelmente ambivalente. Os comunistas e isto pde ser visto na atuao de seus deputados constituintes seguiram formalmente uma linha de defesa da autonomia dos sindicatos em face do Ministrio do Trabalho, mas evitavam uma ruptura completa com as regras da CLT. Esta, de clara inspirao fascista, no foi condenada in toto pelos dirigentes pecebistas (a unicidade sindical, por exemplo, no foi rejeitada pelo partido,
1241 Quanto s greves no processo de redemocratizao, ver MARANHO, Ricardo. Sindicatos e democratizao (Brasil 1945/1950). So Paulo: Brasiliense, 1979. 1242 COSTA, Hlio da. Em busca da memria...Op. cit. e MATTOS, Marcelo Badar. Trabalhadores e Sindicatos no Brasil. Op. cit., p. 84. 439
que fazia uma propositada confuso entre unitarismo e unicidade). 1243 Expressivo dessa ambgua linha partidria era o fato de que, mesmo quando falavam de independncia sindical, os dirigentes pecebistas colocavam uma importante restrio: mas independncia no significa desligamento do Ministrio do Trabalho. Como bem colocou Weffort, o que poderia significar a independncia dos sindicatos sem o desligamento do Ministrio do Trabalho?. 1244
A verdade que a poltica do PCB em relao ao movimento de massas mais uma vez estava subordinada desastrosa estratgia da revoluo democrtico-burguesa que, nesse pequeno interregno de aproximadamente dois anos situado entre o fim do conflito blico mundial e a explicitao da Guerra fria (1945-1947), orientava os comunistas a se aliarem quase que incondicionalmente com todos os setores sociais e foras polticas considerados antifascistas. escala internacional, as elaboraes estalinistas atingiram talvez nesse curto perodo o ponto mximo do que se poderia chamar de um taticismo oportunista. Por aqui, Prestes chegaria a declarar que, embora contrrios ao capital estrangeiro reacionrio, os comunistas no eram contrrios ao capital estrangeiro que nas condies do mundo atual ainda pode ser, dentro das limitaes da Carta do Atlntico e aps as decises histricas do Teer e Crimia, um dos colaboradores mais eficientes do progresso e de prosperidade dos povos atrasados. No mundo inteiro emendou o cavaleiro da esperana , os povos ficaro agora livres da interveno estrangeira em seus negcios internos e, assim sendo, o imperialismo est moribundo e o capital estrangeiro perde a sua caracterstica mais reacionria para se transformar em fator de progresso e prosperidade para todos os povos. 1245
Tal quais muitos partidos comunistas ao redor do mundo e os casos dos partidos italiano e francs foram, talvez, os mais emblemticos , o PCB apostaria todas as suas fichas na construo de um regime democrtico-burgus, cuja consolidao (contra os restos do fascismo) significaria a possibilidade de uma gradual evoluo social e poltica rumo ao socialismo (passando, evidentemente, pela tal etapa democrtico-burguesa). Tendo em vista esse objetivo democrtico, a direo do PCB, que j havia defendido a aliana do partido com Vargas meses antes de sua queda, proclamaria seu apoio ao transicional governo de Jos Linhares (1945-1946), assim como se diria, logo no incio do Governo Dutra (1946-1951), disposto a apoi-lo e a seus atos honesta e sinceramente democrticos. 1246
Desse modo, quando, favorecido pelo prestgio da URSS e por sua tenaz oposio ao Estado Novo, o PCB alcanou, pela primeira vez em sua histria, a condio de um
1243 Ver MATTOS, Marcelo Badar. Trabalhadores e Sindicatos no Brasil. Op. cit., p. 80. 1244 WEFFORT, Francisco. Democracia e movimento operrio: algumas questes para a histria do perodo 1945/1964 (primeira parte). Op. cit, p. 12. 1245 Idem, p. 11. 1246 Idem. 440
verdadeiro partido de massas (com uma crescente insero entre trabalhadores, setores mdios, intelectuais, estudantes, militares etc.), sua direo optou por faz-lo funcionar como um partido da ordem. 1247 Assim, se verdade que as bases pecebistas foram, em alguns casos, na prtica, muito alm das diretrizes de seu Comit Central o que, alis, quase uma regra em momentos de agitao popular , o certo que a direo partidria conseguiu alocar os comunistas no campo dos mantenedores da ordem capitalista no pas. No sabemos, verdade, se o caminho e o desfecho da redemocratizao seriam outros caso o PCB tivesse aproveitado a chance que a conjuntura histrica lhe ofereceu. Nunca saberemos. Guiados pelo esquematismo estalinista, os comunistas brasileiros utilizando aqui os dizeres de Marx no ousaram dar luta de classes uma pequena oportunidade: no se sentiram capazes de brincar com fogo 1248
Voltemos a 1945. Em rota de coliso com a classe dominante, e cada vez mais autonomizado relativamente diante desta, Vargas ganhou a oposio declarada dos setores burgueses mais diretamente vinculados ao capital estrangeiro quando decretou a Lei dos Atos Contrrios Economia Nacional (conhecida como Lei Malaia). De feio nacionalista (e at mesmo podendo ser considerada antiimperialista), o decreto estabelecia a criao de uma comisso autorizada a desapropriar empresas, nacionais ou estrangeiras (ligadas a trustes ou cartis), que estivessem praticando negcios tidos como lesivos aos interesses nacionais. 1249 Aproximando-se da oposio liberal-burguesa ao Estado Novo, a embaixada americana passou a trabalhar pela deposio de Vargas. A crescente aproximao do ditador com as massas populares e o grande peso poltico-social que adquiria o movimento queremista incompatibilizariam totalmente o conjunto das fraes burguesas com seu Bonaparte, outrora to providencial. A liderana de Vargas sobre o processo de reconverso bonapartista tornava-se, sem dvida, uma ameaa para a burguesia. Seu prestgio junto s massas populares poderia lhe oferecer um grau ainda maior de autonomia poltica em face do capital no futuro regime que se avizinhava. Temia-se, na verdade, a formatao de uma configurao poltica ao estilo cardenista/peronista, uma espcie de democracia plebiscitria 1250 em que Vargas, apoiado nas massas populares, pudesse governar a despeito da burguesia. Protelando ao mximo a adoo de medidas que indicassem claramente que deixaria o poder, Vargas despertou o medo de que viesse a aplicar uma nova manobra continusta ao estilo 1937, s que desta vez dotada de um contedo poltico oposto (esquerdizante).
1247 WEFFORT, Francisco. Origens do sindicalismo populista no Brasil. Op. cit., p. 80. 1248 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 87. 1249 BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5940. 1250 SAES, Dcio. Classe mdia e sistema poltico no Brasil. Op. cit., p. 101. 441
Agindo como procuradora do conjunto da classe dominante, a alta cpula militar do Estado Novo, liderada por Dutra e Gis Monteiro (os mesmos homens do golpe de 1937), deps Vargas a 29 de outubro de 1945. Pressionado pela burguesia, e no disposto a recorrer s massas para manter-se no poder, Getlio assinou sua renncia formal e, dias depois, viajou em um avio militar para sua estncia em So Borja (RS). Cinco anos mais tarde estaria de volta cadeira presidencial, mas em outras condies constitucionais. Em um sugestivo relato, Prestes apresentou sua viso sobre a pacfica derrubada do ditador:
Getlio no resistiu porque no quis. No dia 29 de outubro, quando os tanques marchavam para dep-lo, por ordens do general Gis Monteiro, eu estava com o general Estillac Leal e o coronel Osvino Ferreira Alves. Ns mandamos um recado pra ele: Resista porque alguns tanques vo virar os canhes contra o lcio Souto, comandante das tropas. E a massa vai lhe apoiar. Mas ele preferiu ficar sentado de charuto na mo, esperando ordens para ir para casa. Foi o mesmo caso de Pern, na Argentina [1955]: o povo clamava por armas para defend-lo, em frente Casa Rosada, mas ele preferiu fugir e abrigar-se num navio de guerra do Paraguai. No foi para evitar derramamento de sangue que Getlio deixou de resistir. Ele preferiu agir assim pois compreendeu que, no choque, o nosso partido [PCB] cresceria muito. Preferiu optar pela defesa dos seus interesses de classe. Assim, ele e Pern acabaram agindo de forma semelhante: capitularam em defesa dos interesses de classe. 1251
Com efeito, dentro do quadro mais geral da histria da contra-revoluo burguesa no pas, a queda da ditadura bonapartista (semifascista) encerrou um sentido progressivo. No h como neg-lo, sobretudo se atentarmos para as distintas condies polticas em que encontrou a classe trabalhadora durante e aps o Estado Novo. Contudo, levando em conta o modo como a queda do regime se processou e, sobretudo, os sujeitos sociais e polticos que a efetivaram, pode-se perceber como, procurando frear o protagonismo popular que se gestava, a classe dominante brasileira escreveu, no 29 de outubro de 1945, mais um captulo de sua longa revoluo passiva. Possivelmente, a melhor expresso jurdico-poltica disso seja o fato de que, deposto Getlio e seu Estado Novo, as foras polticas dominantes decidiram que
1251 MORAES, Dnis de e VIANA, Francisco. Prestes: Lutas e autocrticas. 2 edio. Petrpolis: Vozes, 1982, p. 109. interessante mencionar que, mesmo deposto, Getlio continuaria seu processo de reorientao poltica, aproximando-se cada vez mais de uma perspectiva bonapartista de esquerda, o que ajuda a entender um pouco dos contornos de seu Segundo Governo (1951-1954). Em um comcio do PTB realizado em Porto Alegre a 29 de novembro de 1946, Vargas atacaria o governo de seu sucessor Dutra e a democracia burguesa que, segundo ele, vigia no pas. Atribuindo a queda do Estado Novo aos agentes da finana internacional, que pretende manter o nosso pas na situao de simples colnia, exportadora de matrias-primas e compradoras de mercadorias industrializadas no exterior, o ento senador pelo Rio Grande do Sul afirmou a existncia de duas modalidades de democracia: A velha democracia liberal e capitalista (...), em franco declnio porque tem seu fundamento na desigualdade e a democracia socialista, a democracia dos trabalhadores. A esta eu me filio. Por ela combaterei em benefcio da coletividade. Segundo Vargas, no Brasil, imperaria a democracia capitalista, comodamente instalada na vida, que no sente a desgraa dos que sofrem e no recebem, s vezes, nem mesmo o indispensvel para viver. Essa democracia facilita o ambiente propcio para a criao de trustes e monoplios, das negociatas e do cmbio negro, que exploram a misria do povo (...) Essa espcie de democracia como uma velha rvore coberta de musgos e folhas secas. O povo um dia pode sacudi-la com o vendaval de sua clera (...) Tendo de optar entre os poderosos e os humildes, preferi os ltimos. (BRANDI, Paulo. Op. cit., p. 5945). Com a exceo da ltima sentena, tipicamente populista, a retrica do Bonaparte brasileiro nada deixa a desejar aos textos do velho Lnin sobre a democracia burguesa, o que s torna ainda mais importante para o historiador a afirmao, proferida certa feita por Marx, de que a prtica o critrio da verdade.
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a ditatorial Constituio por ele outorgada em 1937 ficaria vlida at a promulgao de uma nova. Antes de qualquer coisa, era necessrio manter a ordem. Sempre.
O semibonapartismo democrtico ou o cesarismo sem Csar (1946-1964): algumas notas para uma pesquisa futura Getlio caiu, mas as condies histrico-sociais que o haviam impelido a processar uma gradual metamorfose na ditadura estadonovista continuavam de p. No plano internacional, a finalizao definitiva da guerra, com a rendio do Eixo, fornecia as bases para o incio de uma recuperao da economia mundial, depois de um longo ciclo recessivo. Contudo, se manteria ainda, por aproximadamente uns dez anos, a existncia de uma significativa autonomia das economias perifricas em face do mercado mundial, ainda bem debilitado. Assim, a janela histrica para as industrializaes retardatrias dos pases dependentes seguiria aberta at meados da dcada de 1950. Para alguns pases latino- americanos alocados no chamado bloco ocidental alinhados automaticamente aos EUA na Guerra fria (iniciada na esteira do fim do conflito mundial) , a existncia de uma fortalecida URSS e seus satlites funcionava como um elemento de barganha nas negociaes com o imperialismo. Seria nessas condies internacionais que o Brasil daria continuidade ao seu processo de modernizao industrial capitalista. No plano interno, a acelerada industrializao dos anos 30, em especial a partir da ditadura implantada em 1937, desenvolveu as foras produtivas e as relaes sociais capitalistas, acirrando as contradies da sociedade brasileira e rearrumando o quadro poltico da correlao de foras entre as classes e fraes de classe. De um lado, o proletariado se tornou uma classe com um peso social e poltico muito expressivo na dcada de 1940 o que, entre outros fatores, explica o j mencionado espantoso crescimento do PCB. Para o capital, no era mais possvel, como antecipamos, manter sobre os trabalhadores uma rgida coero como a que vigorou entre 1935-1945, fato que o prprio Vargas j havia previamente notado e que o levara a iniciar, em 1942, a construo de sua estratgia poltica trabalhista. A ideologia democrtica atingia seu auge com o fim da guerra at mesmo os pases do leste europeu alinhados URSS se autodenominariam democracias populares , e pelo menos a adoo de um sistema eleitoral por sufrgio universal parecia inevitvel para o capitalismo brasileiro. De outro lado, na ponta oposta aos trabalhadores no tecido social, a burguesia industrial, em funo da prpria industrializao acelerada do Estado Novo, tambm havia se desenvolvido clere e substantivamente sob ele. Beneficiada pela poltica econmica da ditadura, passou a dispor de maior fora em suas disputas com as demais fraes do capital, 443
almejando um controle poltico mais direto sobre o pas. Desde o declnio da ditadura, a burguesia industrial parece ter alimentado um sonho de hegemonia, mas a possibilidade de estabelecimento de uma forma de dominao hegemnica no pas ainda no dispunha de condies objetivas que lhe permitissem ultrapassar a dimenso onrica de alguns industriais aodados. O carter retardatrio da burguesia industrial, que a vinculara geneticamente ao latifndio, ao capital estrangeiro e a colocara, desde muito cedo, vis--vis com seu antagonista social, havia cortado pela raiz qualquer possibilidade de que ela viesse a realizar algum dia uma revoluo democrtico-burguesa e antiimperialista (como esperava o PCB). Deparando-se, naquela conjuntura histrica do fim do Estado Novo, com um proletariado robustecido e bastante ativo politicamente, a burguesia industrial viu-se tambm impossibilitada de estabelecer sobre ele uma forma de dominao hegemnica, de cunho democrtico (-burgus). Assim, no quadro de uma sociedade cada vez mais massificada e com uma sociedade civil em franca evoluo a crise de hegemonia, que assolava a sociedade brasileira desde meados da dcada de 1920, continuava vigente quando a ditadura estadonovista desmoronou. Solucionada temporariamente pelo golpe de 1937, mas no por ele encerrada nunca demais lembrar , a crise de hegemonia reemergia agora em uma sociedade com outra disposio das suas foras sociais: bem mais encorpadas do que o eram em 1930, as chamadas classes fundamentais da sociedade burguesa, a burguesia (industrial) e o proletariado, ocupavam o proscnio poltico da nao quando a cortina do Estado Novo veio abaixo. O Brasil da segunda metade da dcada de 1940 j no era mais e nem poderia s-lo o mesmo pas que presenciou a Revoluo de 1930. A modernizao industrial brasileira, feita aos saltos que queimavam etapas, 1252 se processara e continuava a faz-lo de modo desigual e combinado: Na contingncia de ser rebocado pelos pases adiantados escreveu Trotsky um pas atrasado no se conforma com a ordem de sucesso: o privilgio de uma situao historicamente atrasada e este privilgio existe autoriza um povo ou, mais exatamente, o fora a assimilar todo o realizado, antes do prazo previsto, passando por cima de uma srie de etapas intermedirias. Renunciam os selvagens ao arco e a flecha e tomam imediatamente o fuzil, sem que necessitem percorrer as distncias que, no passado, separaram estas diferentes armas. 1253 Desse modo, se em alguns locais e ramos da produo fabril brasileira a impresso era de que se tinham passado bem mais do que quinze anos, por outro lado, as condies de vida da maioria dos setores urbanizados eram ainda bastante precrias e
1252 OLIVEIRA, Francisco de. Crtica razo dualista. Op. cit. (ver, especialmente, o captulo II, O desenvolvimento capitalista ps-1930 e o processo de acumulao). 1253 TROTSKY, Len. A Histria da Revoluo Russa. Op. cit, v. I, p. 24-25. Grifo nosso. 444
amplos segmentos da populao rural (ainda bem maior do que a urbana) se encontravam em uma situao no muito diferente da de seus antepassados do perodo imperial. A urbanizao e industrializao, contudo, tinham modificado visivelmente a formao social brasileira. Se a modernizao industrial se apresentara classe dominante e cpula poltica dirigente como uma possibilidade econmico-social vivel quando dos primeiros anos da dcada de 1930, sua continuidade aparecia no ps-1945 como uma espcie de imperativo categrico histrico. Tinha que ser continuada. No era permitido retroceder. As condies internacionais eram ainda bastante favorveis. Mesmo as fraes burguesas agrrias j se mostravam um tanto quanto resignadas com a preponderncia da opo industrialista nacional, embora estivessem dispostas a levar a cabo uma acirrada luta intra-burguesa pela preservao de seus interesses particulares e espaos de poder. O chicote da concorrncia capitalista aoitava as costas da sociedade brasileira ou, mais exatamente, as dos setores expropriados e em vias de expropriao. Incontveis foram as tragdias pessoais e coletivas que tiveram como protagonistas os setores populares na brusca e acelerada transio de uma secular formao social agrria para um jovem Brasil de carter urbano-industrial. A saga das longas migraes internas do pas, que ainda hoje continua, impressiona por sua brutalidade e dramaticidade. Em face dessa necessidade de manuteno do mpeto industrialista em um contexto poltico de equilbrio esttico 1254 entre, de um lado, um enrijecido e assustador proletariado e, de outro, uma orgnica e fortalecida, porm no hegemnica, burguesia industrial, o bonapartismo se apresentava ainda como a forma adequada e necessria para a dominao burguesa no Brasil. A via bonapartista da modernizao capitalista teria que continuar, assim, seu longo percurso no pas. Agora, entretanto, seria impelida a adotar, mais uma vez, outra configurao. Diante de uma classe dominante com incapacidade hegemnica, e em um momento em que os laos da economia nacional com o imperialismo se mostravam relativamente afrouxados em funo do fim ainda recente da hecatombe blica, o incontornvel peso poltico-social das massas populares colocava para o capitalismo brasileiro a necessidade de que fossem elas o principal sustentculo do novo regime em construo, obrigatoriamente baseado no sufrgio universal. Tambm dirigido por um aparelho estatal burocrtico relativamente autonomizado, o novo regime poltico, com o fim do seu primeiro governo (ainda inspirado nos aspectos mais reacionrios do Estado Novo), se inclinaria levemente esquerda. Desse modo, a manuteno da explorao capitalista, a partir de meados do Segundo Governo Vargas (1951-1954), implicaria em uma no desprezvel compensao material para as massas populares, as quais necessitariam serem aduladas pela cpula burocrtica dirigente do Estado com polticas sociais universais (ou quase universais),
1254 GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. Volume III, Op. cit., p. 60-61. 445
espordicos aumentos salariais ou, mesmo, uma esperana de dias melhores. 1255 o que, entretanto, no impediu o aumento da taxa de explorao da fora de trabalho, devido ao prprio aumento da produtividade industrial no perodo. O novo regime poltico, assim, no seria totalmente distinto do projeto ensaiado por Vargas nos ltimos anos de sua ditadura. Evidentemente, por precauo burguesa, a nova configurao poltica encontrou-se, entretanto, dotada de mais elementos controladores do proletariado do que talvez estivesse previsto na abortada proposta varguista. De todo modo, se o Csar foi derrubado porque estava indo longe demais em sua aproximao com as massas populares, foi necessrio burguesia brasileira, porm, submeter-se novamente a uma forma de dominao cesarista; agora, entretanto, a uma espcie de cesarismo sem Csar, para utilizarmos aqui outra sugestiva idia de Gramsci. 1256
Promulgada sob a presidncia do Marechal Dutra (1946-1951) que assumiu o cargo por eleio direta aps o breve interregno presidencial de Jos Linhares, presidente do Superior Tribunal Federal (STF) a Constituio de 1946 consagrava certas liberdades democrticas (j presentes na Carta de 1934) e adicionava outros postulados como as eleies diretas para todos os cargos (federais, estaduais e municipais) do Executivo e do Legislativo. Discutida, redigida e aprovada por uma Assemblia Constituinte eleita, ela tambm, por sufrgio universal direto, a Carta de 1946 mantinha a legislao social firmada pelo Estado Novo (condensada na CLT), e preservava tambm, de forma praticamente intacta, a estrutura sindical corporativista, de matriz fascista, do velho regime o direito de greve foi, contudo, restabelecido, embora recebesse por meio de um decreto presidencial de Dutra (9.070), fixado anteriormente Constituio, uma srie de aditamentos que juridicamente limitavam seu exerccio pleno. Lembrando o caso da Constituio francesa de 1848, vale mencionar ainda que a Carta de 1946 foi elaborada enquanto o aparelho de estado tratava de, por meios excepcionais quase ordinrios por aqui , garantir a democracia que se dizia estar em construo: Enquanto se desenrolava o trabalho da Constituinte, houve censura a rdio, suspenso de jornal, intervenes em sindicatos, represso policial a manifestaes de trabalhadores e invaso de dependncias de partido poltico, com priso de alguns de seus membros. 1257
Combinando, mais uma vez, reformismo social e corporativismo sindical, a nova Carta constitucional brasileira fornecia as bases jurdicas para a continuidade da estratgia bonapartista/populista de incorporao controlada das massas esfera pblica nacional. O binmio represso-reformas continuaria como o pilar da poltica estatal em relao aos
1255 WEFFORT, F. O populismo na poltica brasileira. Op. cit., p. 82. 1256 GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. Op. cit., volume III, p. 77. 1257 ALMINO, Joo. Os democratas autoritrios: liberdades sindicais, de associao poltica e sindical na Constituinte de 1946. So Paulo: Brasiliense, 1980. 446
trabalhadores, mas a dosagem dos elementos seria visivelmente alterada em relao ao Estado Novo, sem, entretanto, chegar a ser invertida. Mantendo-se como no poderia deixar de ser determinantes para a vigncia da dominao poltico-social burguesa, os aspectos coercitivos seriam, entretanto, significativamente abrandados na nova configurao bonapartista, ao passo que os aspectos consensuais seriam sensivelmente intensificados. O regime mudou. O bonapartismo mudou. No se tratava mais da variante semifascista manifesta pela ditadura estadonovista. A fora dos trabalhadores forou a compungida burguesia a ceder, ainda que pouco. Como sempre, era necessrio manter a ordem, a que preo fosse. Era preciso mudar para que tudo ficasse como estava, segundo o clebre adgio de Lampedusa. 1258
Inspirando-nos nas anlises de Trotsky sobre os bonapartismos sui generis latino- americanos dos anos 30, pensamos que o regime poltico brasileiro do 1946-1964 (mantidas todas as suas no poucas particularidades e excludo o perodo do Governo Dutra) se aproximou do que o revolucionrio russo nomeou como um semibonapartismo democrtico (isto , um bonapartismo de tipo semidemocrtico). 1259 Segundo Trotsky, nessa modalidade de esquerda dos bonapartismos sui generis os quais, no quadro da crise do mercado internacional, proliferavam no continente o aparelho governamental, manobrando com o proletariado, chegando inclusive a fazer-lhe concesses, ganhava a possibilidade de dispor de certa liberdade em relao aos capitalistas estrangeiros. 1260 Oscilando entre o capital estrangeiro e o nacional, entre a relativamente dbil burguesia nacional e o relativamente poderoso proletariado, 1261 esse tipo de bonapartismo (de ndole particular) 1262 lanava mo de uma poltica de controle sobre os sindicatos que teria por objetivo realizar duas tarefas primordiais do regime: atrair a classe operria, para assim ganhar um ponto de apoio para a resistncia contra as pretenses excessivas por parte do imperialismo, e ao mesmo tempo disciplinar os mesmos operrios colocando-os sob controle de uma burocracia. 1263 Em suma, os semibonapartismos democrticos seriam regimes polticos burgueses que buscariam conter a ameaa proletria fazendo uso preferencialmente de mtodos reformistas, sem abdicarem, obviamente, da utilizao (moderada) dos sempre determinantes expedientes coativos. A nosso ver, com a exceo do Governo Dutra (que praticamente fez uso s da coero para com os trabalhadores), em todo o restante do perodo que se estendeu at 1964 possvel encontrarmos, em maior ou menos grau, as caractersticas do tipo de dominao
1258 LAMPEDUSA, Giuseppe Tomasi. O leopardo. Op. cit. 1259 TROTSKY, L. Discusion sobre America Latina. Op. cit., p. 124. Traduo nossa. Ver o Captulo II. 1260 TROTSKY, L. La industria nacionalizada. Op. cit., p.163-164. Traduo nossa. 1261 Idem. 1262 Idem. 1263 TROTSKY, L. Los sindicatos en la era. Op. cit., p. 174. Traduo nossa. 447
semibonapartista democrtica descrita sinteticamente acima. Nessa fase semidemocrtica do bonapartismo brasileiro, a relao particular da relativamente autonomizada cpula burocrtica dirigente com as massas populares isto , a manobra/manipulao destas por aquela correspondia a necessidades fundamentais da etapa em que se encontrava a modernizao burguesa do Brasil. Assim, tal tipo de incorporao controlada das massas, dotada agora de uma intensificao dos elementos consensuais, aparecia, naquela conjuntura, como a forma mais adequada (ainda que um pouco incmoda para as fraes burguesas) de manuteno da ordem social capitalista. Do mesmo modo, a manobra das massas sim, as massas podem ser manobradas! funcionava, em muitos casos, como um instrumento de que se servia a frao industrial tanto para negociar em melhores condies com o imperialismo (buscando, assim, auferir mais ganhos e espao dentro dos quadros de uma dependncia estrutural), quanto para levar a cabo suas disputas intra-burguesas com as fraes agrrias e comercias da classe dominante. A manobra das massas populares mostrou-se, assim, essencial para a continuidade e consagrao do projeto industrialista no ps-1945, o qual manteria a burguesia industrial dotada de sua funo hegemnica ao longo do populismo. Faz-se importante ressalvar aqui, entretanto, que a utilizao poltica da mobilizao controlada das massas por parte da burguesia industrial no se fazia diretamente por esta burguesia, isto , no era levada a cabo pelas representaes polticas propriamente burguesas, as quais, na verdade, em consonncia com sua base social, rechaavam, em sua maioria, qualquer aproximao poltica com o proletariado, ainda mais em se tratando de uma aproximao de carter mobilizatrio. Essa mobilizao necessitava, assim, de uma mediao bonapartista. A dinmica scio-poltica era, portanto, altamente dialtica. Cabia ao aparelho burocrtico estatal relativamente autonomizado face s fraes burguesas conduzir e operacionalizar, a despeito destas ltimas (ou at mesmo contra elas), a manobra poltica das massas populares, a qual, at determinado nvel e mantida sob controle, acabava por favorecer os interesses dos industriais (seja em suas barganhas com o capital estrangeiro, seja em suas disputas com os interesses agraristas ou, muitas vezes, em ambos os casos ao mesmo tempo). Convm lembrar ainda que o grau de intensidade dessa mobilizao de massas efetuada pelo aparelho estatal brasileiro foi bem inferior ao verificado em outras experincias populistas latino-americanas, assim como em outros bonapartismos de esquerda existentes na periferia do capitalismo. De certa forma, o grau aqui atingido foi, digamos, proporcional ao nvel de rejeio da burguesia brasileira a qualquer tipo de mobilizao popular, por mais controlada que esta fosse o que s ilustra, portanto, o carter sempre relativo da autonomia de que dispe o aparelho estatal bonapartista em face da classe dominante, no tendo podido ele ir muito longe em suas mobilizaes populares controladas. 448
O instrumento de que se serviria a cpula bonapartista nessa sua tarefa de mobilizao controlada das massas seria, via de regra, o frente-populista PTB, que pode ser visto como o partido do regime por excelncia (ou seja, o partido bonapartista). Com a aliana estabelecida com o PCB a partir da morte de Vargas (1954), o PTB obteria um significativo xito em trazer as massas populares para o que era uma espcie de bloco poltico bonapartista (ou bloco-histrico populista), 1264 composto por um campo civil-militar nacional-popular, do qual participavam, alm dos prprios petebistas e pecebistas, segmentos militares oficiais e subalternos nacionalistas, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) etc.. 1265 Neste campo considerou o historiador Renato Lemos , constituiu-se uma zona de interseo de vrios matizes do nacionalismo com o reformismo, aliado frequentemente ao PCB. 1266 Em oposio a este campo civil-militar nacional-popular e, portanto, a nosso ver, em oposio ao bloco poltico bonapartista teria se erigido um campo civil-militar liberal e integracionista [em relao ao capital estrangeiro], abertamente elitista e antipopular, que inclua a Unio Democrtica Nacional (UDN), partidos menores e segmentos da oficialidade militar, alm de entidades como a Escola Superior de Guerra (ESG) e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES). 1267 Neste campo segundo Lemos , a defesa do liberalismo econmico combinou-se com o anticomunismo para engendrar um antiliberalismo poltico, traduzido na vocao golpista da UDN. 1268
Nossas consideraes sobre a presena das massas populares no bloco poltico pr- regime nos impelem a responder, ainda que muito rapidamente, a seguinte questo (apresentada e j um pouco debatida no captulo anterior): teria a classe trabalhadora, ao longo do perodo 1946-1964, se portado subjetivamente (ideolgica e politicamente) como massa isto , como uma classe social desprovida de conscincia de classe , tal como propuseram os tericos do populismo? 1269
O movimento sindical do perodo semidemocrtico do bonapartismo brasileiro pode ser, talvez, um bom parmetro para refletirmos sobre a indagao acima. Como vimos no captulo anterior, trabalhos histricos realizados nas ltimas duas dcadas em sua maioria de inspirao thompsoniana procuraram se opor noo (pejorativa) de sindicalismo populista, elaborada por Weffort e adotada por muitos estudiosos do tema. Por conseguinte,
1264 Sobre as relaes entre o cesarismo varguista, o trabalhismo, o PTB e o bloco-histrico populista, ver o teoricamente refinado trabalho de MELO, Demian Bezerra de. O plebiscito de 1963: inflexo de foras na crise orgnica nos anos 60. Op. cit., p. 23-39. 1265 LEMOS, Renato. Contra-revoluo e ditadura no Brasil. Elementos para uma periodizao do processo poltico brasileiro ps-1964. Op. cit., p. 6. 1266 Idem. 1267 Idem. 1268 Idem. 1269 Como antecipamos em nota de rodap no incio deste captulo, utilizamos agora o termo massa em outro sentido. 449
os autores desses trabalhos esgrimiram a tese de que a classe trabalhadora brasileira do perodo 1946-1964 teria apresentado uma legtima conscincia de classe. Vimos tambm que determinado grupo de historiadores dentre esses autores consideraram que tal conscincia de classe teria sido pautada pela lgica da luta por direitos (luta por cidadania). Dando seqncia discusso feita no capitulo anterior, reafirmamos que os trabalhos realizados especificamente por esse grupo de historiadores (por ns denominados de historiadores campineiros) mostraram-se exitosos em parte, e s em parte. Com efeito, Weffort exps uma viso reducionista sobre o sindicalismo do perodo, apresentando-o como totalmente subsumido estrutura e lgica corporativistas. 1270
Aprofundando as investigaes empricas, vrios estudos contemporneos, como mostramos, evidenciaram a existncia de uma srie de ocasies em que os trabalhadores se mobilizaram e se organizaram para alm dos limites impostos pelo Estado. 1271 A apreenso reducionista de Weffort perceptvel tambm em sua subestimao analtica dos organismos intersindicais dos anos 1955-1964, tomados pelo autor como meros complementos dos sindicatos oficiais, junto com os quais conformariam a estrutura dualista do sindicalismo populista. 1272
Enquanto os organismos intersindicais como o CGT, PUA etc. seriam responsveis pela mobilizao das massas em prol dos interesses polticos do varguismo/trabalhismo, aos ltimos caberia fundamentalmente a funo de controle dos trabalhadores. Na verdade, no necessrio envidarmos muitos esforos investigativos para notar como, contrariamente limitada viso apresentada por Weffort, as organizaes paralelas dos ltimos dez anos do regime semibonapartista democrtico expressaram um inegvel avano poltico-organizativo dos trabalhadores brasileiros, oferecendo mais flego e fora para suas lutas de classe. Entretanto, buscando escapar de um olhar histrico sempre positivado sobre a classe trabalhadora o qual no exprime seno um procedimento fetichista de anlise (e at mesmo populista, no sentido mais comum do termo) , h que reconhecer que a maior parte das aes empreendidas pelos trabalhadores por fora das estruturas do sindicalismo oficial (como as j mencionadas comisses por local de trabalho e, mais especificamente, as comisses de fbrica) no logrou se apresentar e talvez no tenha sido nem mesmo essa a inteno da maioria de seus organizadores como uma alternativa permanente estrutura sindical vigente, propondo
1270 WEFFORT, F. C. Os sindicatos na poltica (Brasil: 1954-1964). Op. cit. e ____. WEFFORT, Francisco. Origens do sindicalismo populista no Brasil. Op. cit., entre outros trabalhos do mesmo autor. 1271 COSTA, Hlio da. Em busca da memria...Op. cit. e MATTOS, Marcelo Badar. Novos e velhos sindicalismos no Rio de Janeiro (1955-1988). Op. cit., entre outros trabalhos na mesma linha. Com recortes regionais, porm com proposies analticas mais gerais, recentes pesquisas vm sendo realizadas sobre as organizaes dos trabalhadores para alm do espao do trabalho propriamente dito. Ver, por exemplo, LEAL. Murilo. A reinveno do trabalhismo no vulco do inferno. Um estudo sobre metalrgicos e txteis de So Paulo. A fbrica, o bairro, o sindicato e a poltica (1950-1964). (tese de doutorado). So Paulo: FFLCH/USP, 2006 e GUEDES. Marco M. Pestana de A. A atuao da Unio dos Trabalhadores Favelados e a conscincia da classe trabalhadora carioca. Comunicao apresentada ao Colquio Marx e os marxismos. Niteri: UFF, 2011. 1272 WEFFORT, F. C. Os sindicatos na poltica (Brasil: 1954-1964). Op. cit., principalmente. 450
substitu-la. Diferentemente de outros pases latino-americanos, como Bolvia e Chile, no chegamos a ter por aqui nada parecido com os conselhos populares ou outras formas de duplo poder construdas pela classe trabalhadora. Do mesmo modo, pode-se dizer que, no obstante terem significado um considervel avano poltico-organizativo para os trabalhadores, as organizaes paralelas do sindicalismo brasileiro no ultrapassaram uma perspectiva poltica de cunho nacional-reformista, adepta da colaborao de classes e da aliana com as direes estatais inclinadas mais esquerda (populistas). Se verdade que a simples existncia desses organismos intersindicais (em especial a do CGT) provocou uma crise na forma de dominao vigente j que os trabalhadores se organizavam para alm dos limites permitidos pelo Estado, quebrando aquilo que alguns intrpretes chamaram de pacto populista , tal fato, contudo, nos parece ter sido decorrente mais dos fortes limites do politicamente inelstico capitalismo brasileiro (que, como bem colocou Florestan Fernandes, no parece ser capaz de suportar sequer as presses dentro da ordem) 1273 do que propriamente de um suposto carter radical (disruptivo) apresentado por aquelas organizaes paralelas. Assim, se evitarmos a problemtica e silogstica identificao entre as noes de conscincia de classe e conscincia revolucionria, possvel dizer que, sob o perodo 1946- 1964, os trabalhadores brasileiros se apresentaram, sim, dotados de uma conscincia de classe. Contudo, diferentemente de alguns investigadores, no vemos problemas em, na qualidade de cientistas sociais, proferirmos avaliaes sobre o tipo de conscincia apresentada pelos trabalhadores em determinadas situaes histricas. No h porque nos furtamos a expor as limitaes subjetivas do proletariado em dadas conjunturas. Assim, de um ponto de vista mais geral, a conscincia dos trabalhadores sob o perodo populista nos parece no ter superado um classismo de mpeto reformista, tendo ficado, portanto, cingida ao universo ideolgico do capital. No foi alm. As idias revolucionrias tiveram uma baixssima audincia entre os trabalhadores organizados, no conseguindo ocupar seno um espao marginal entre eles. Em termos poltico-programticos, a crena em uma colaborao entre as classes, e no em seu antagonismo estrutural, foi o que orientou a maior parte das elaboraes e propostas do movimento operrio brasileiro de ento. A questo das direes polticas do movimento operrio se mostra, aqui, incontornvel, e o argumento que responsabiliza o PCB pelas limitaes poltico-subjetivas apresentadas pelos trabalhadores sob a fase democrtica do populismo nos parece ser irretorquvel. Rios de tinta j foram gastos com isso e no h necessidade de nos estendermos muito aqui. No essencial, tanto as pequenas organizaes trotskistas do ps-1945, quanto os tericos do
1273 FLORESTAN, Fernandes. A revoluo burguesa no Brasil. Op. cit., p. 329. 451
populismo entre outros autores, como Florestan Fernandes e Ruy Mauro Marini , estiveram certos em suas avaliaes. 1274 Como representantes maiores do principal partido operrio do pr-1964, os dirigentes do PCB merecem dos historiadores marxistas, pensamos, o mais alto respeito humano e, ao mesmo tempo, a mais severa crtica poltica. O itinerrio poltico em grande parte equivocado do partido no pode obscurecer a ilimitada abnegao da maioria de seus quadros dirigentes, movida pela causa mais nobre do nosso tempo. No toa, Prestes foi e continua sendo o nome mais importante da histria do socialismo brasileiro, e talvez um dos homens mais importantes do pas no sculo em que este se tornou efetivamente uma nao moderna. Prestes e a maioria dos dirigentes pecebistas foram militantes de uma f poltica inabalvel, e no h nada em suas turbulentas e sofridas trajetrias que possa colocar em xeque a sua integridade moral. 1275 Todavia, por dever de ofcio, nos cabe aqui a tarefa da crtica. Vamos a ela, pois de nada serve para a esquerda do presente minimizar seus erros do passado. Depois de terem colocado o partido a servio da ordem e tranqilidade nos anos transicionais de 1945-1946, os dirigentes pecebistas seriam um tanto quanto surpreendidos pela cassao do registro eleitoral do partido em maio de 1947 e a conseqente extino dos mandatos de seus parlamentares em janeiro de 1948. Nos espaos sindicais, a atuao do PCB j vinha sendo alvo de duros ataques por parte do ministrio do Trabalho (que interveio em mais de 500 sindicatos sob o Governo Dutra) e da polcia poltica; na verdade, em relao ao movimento operrio e sindical, a ao do primeiro governo do novo regime pouco se diferiria daquela levada a cabo nos piores anos da recm-extinta ditadura. Nesse incio da Guerra fria no pas, o partido, rejeitado e acuado pelos quadros polticos frente do aparelho estatal, passaria a adotar uma postura agressiva em relao ao status quo vigente. Em uma repentina inflexo esquerdista, o PCB, que antes concebera o Governo Dutra como um governo de unio nacional, tachava-o agora de um governo de traio nacional. As novas diretrizes sindicais orientariam os militantes a abandonarem os sindicatos oficiais e construrem outros margem do MTIC. 1276 Em palavras, chegou-se a falar na necessidade de se desencadear a luta armada no pas (Manifesto de agosto de 1950), embora, paradoxalmente, tal expediente ttico estivesse ainda a servio de uma estratgia etapista do processo revolucionrio brasileiro, 1277 nunca abandonada pelos pecebistas. A mesma linha poltica continuaria vigente
1274 Ver a Introduo segunda parte e o Captulo III. 1275 E isto no algo de menor relevncia, j que, por exemplo, no extensivo a muitos dos homens de proa daquele que seria, a partir da dcada de 1980, o outro grande partido da esquerda brasileira. 1276 Helio da Costa mostrou, entretanto, que muitos dos militantes comunistas no abandonaram efetivamente os sindicatos oficiais, praticando, assim, uma dupla militncia sindical (nas entidades oficiais e no-oficiais). (COSTA, Hlio da. Trabalhadores, sindicatos e suas lutas em So Paulo (1943-1953). Op. cit.). 1277 PCB. Frente Democrtica de Libertao Nacional (agosto de 1950) in CARONE, Edgard. O PCB (1943- 1964). Vol. II. Op. cit., p. 108-112. 452
sob o segundo governo de Getlio Vargas (1951-1954), personagem agora denominado pelos comunistas como um instrumento servil do imperialismo norte-americano. 1278
Embora o partido tenha se colocado em oposio feroz a Vargas at sua morte em agosto de 1954, a extino pelo MTIC, em 1952, do atestado de ideologia aproximaria no plano sindical os comunistas da esquerda petebista, anunciando a aliana poltica populista do prximo perodo. A partir do frustrado golpe de Estado de 1954 e, sobretudo, do relatrio Kruschev (1956), o PCB entraria em sua fase politicamente mais oportunista e o prprio Prestes o admitira mais tarde: Na nsia de criticar os erros de esquerda, acabamos caindo, entre [19]56 e [19]60, em posies liberais e direitistas. 1279 Expostas na famosa Declarao de maro de 1958, 1280 as teses do partido deixariam ainda mais esquemticos o dualismo e o etapismo que orientavam, respectivamente, a viso sobre a realidade brasileira e a estratgia proposta para sua transformao. No que diz respeito poltica de alianas, a inflexo foi, mais uma vez, brusca. Os herdeiros do varguismo e outros expoentes do nacionalismo populista, tidos agora como representantes de uma suposta burguesia nacional progressista, passaram a ser vistos como aliados imprescindveis para a etapa democrtico- burguesa da revoluo brasileira. Foi aumentada a dosagem do pacifismo e o caminho para o socialismo s considerado possvel depois de realizada a anterior etapa capitalista aparecia agora claramente como resultado de um evolutivo acmulo de reformas democrticas por dentro da ordem vigente. As novas diretrizes partidrias indicavam claramente uma aproximao com os setores nacionalistas e democrticos das Foras Armadas, enquanto que no movimento sindical, apesar do empenho do partido na construo dos tais organismos intersindicais, a aliana com os trabalhistas de esquerda implicava, na prtica, em uma aceitao, ainda que verbalmente crtica, da estrutura sindical corporativista. Em suma: os comunistas enredaram-se por completo no discurso nacional-desenvolvimentista, o qual pode ser visto como a ideologia correspondente aos ltimos dez anos do semibonapartismo democrtico anos estes em que, na verdade, erodiam gradativamente as bases histrico- sociais daquela variante de esquerda do bonapartismo. O Governo Kubitschek (1956-1961), responsvel pela acelerada internacionalizao da economia brasileira, seria dividido pelas anlises pecebistas em duas alas: uma reacionria e imperialista, outra patritica, porm vacilante. 1281 J o efmero Governo Jnio Quadros (1961) seria duramente denunciado nos documentos partidrios em
1278 BOITO JR., Armando. O golpe de 1954: A burguesia contra o populismo. Op. cit., p. 16. 1279 MORAES, Dnis de e VIANA, Francisco. Prestes: Lutas e autocrticas. Op. cit., p. 152. 1280 PCB. Declarao sobre a poltica do PCB (maro de 1958) in CARONE, Edgard. O PCB (1943-1964). Vol. II. Op. cit., p. 177-196. 1281 PCB. A situao poltica e nossas tarefas atuais: resoluo do CC do PCB (abril de 1957) in CARONE, Edgard. O PCB (1943-1964). Vol. II. Op. cit., p. 165-175. 453
funo de seu carter reacionrio, embora os comunistas tenham feito questo de defender sua poltica externa independente e se prontificado a apoiar suas possveis medidas progressistas. 1282 Fora oficialmente do governo de frente popular de Goulart (1961-1964), o PCB ofereceu-lhe ampla colaborao, procurando empurr-lo esquerda. Atuando como uma espcie de frente popular de combate, 1283 o partido buscou canalizar as mobilizaes populares para o apoio plataforma governamental, sobretudo depois da guinada esquerda de Goulart no segundo semestre de 1963, quando as chamadas reformas de base tornaram- se sua prioridade poltica. As mltiplas greves e mobilizaes populares nas quais o partido estava frente muitas delas animadas pelas organizaes paralelas encabeadas pelos comunistas no deveriam, segundo a cpula pecebista, ter como alvo o governo reformista de Jango ou mesmo o conjunto da burguesia brasileira, e sim apenas uma parcela entreguista desta, aliada aos latifundirios e ao imperialismo. As lutas de classe no deveriam sair do controle, sob risco de atrapalharem o curso evolutivo de uma revoluo que deveria estacionar em seu estgio democrtico e antiimperialista. A crena no caminho pacfico da transformao social do pas expressou-se, nos anos 60, de maneira demasiado ingnua, justamente quando se desenvolvia a olhos vistos a escalada golpista da classe dominante. Sob o instvel governo de Jango, o PCB assumiu decididamente o papel de ala esquerda do regime semibonapartista democrtico, o qual estava prestes a soobrar devido s contradies que acirrava. verdade que, mesmo tendo a direo comunista se esforado para no radicalizar a situao e assim, segundo ela, evitar um golpe da direita , a atuao de massas do partido no fez seno tornar pletrico o temor burgus que impulsionaria o 31 de maro de 1964. Contudo mais uma vez as razes para isto devem ser buscadas mais no carter limitado do capitalismo brasileiro do que propriamente em supostas posies revolucionrias adotadas pelo PCB na primeira metade da dcada de 1960. Assim, no consideramos exagerado afirmar que, quando os tanques de Mouro Filho saram de Minas Gerais para depor o governo e o regime, encontraram o caminho aberto graas, entre outros fatores, poltica aplicada pelo PCB nos ltimo perodo. Inebriado pela querela pacifista e esperanoso em uma resistncia por parte da ala nacionalista e democrtica das Foras Armadas, o proletariado, fsica e politicamente desarmado, no resistiu. Em depoimento dos anos 80, Prestes declararia abertamente que as posies partidrias nos anos que antecederam o golpe alimentavam a passividade: Apoiados na resoluo de 58 [...] ns no nos preparamos para enfrentar o golpe, embora
1282 PCB. Os comunistas e o governo de Jnio Quadros (maro de 1961) in CARONE, Edgard. O PCB (1943- 1964). Vol. II. Op. cit., p. 234-244. 1283 A categoria foi utilizada por Moreno para se referir ao papel desempenhado pelo grupo lambertista Organizao Comunista Internacionalista (OCI) sob os primeiros anos do governo de Mitterrand na Frana (1981-1995) (MORENO, N. Os governos de frente popular na histria. Op. cit.). 454
tivssemos ainda relativa influncia nas Foras Armadas. 1284 A verdade que as resolues partidrias pouca consonncia tinham com a realidade do dependente capitalismo brasileiro e, como j disse certa vez Trotsky, se o papel aceita tudo, a histria no. A burguesia e a tal revoluo democrtico-burguesa estiveram sempre por aqui em um eterno desencontro. O preo pago em funo dos equvocos polticos da esquerda brasileira foi caro. Muito caro. A militncia pecebista e o restante dos setores organizados da classe trabalhadora o sentiriam na pele. Por fim, procurando concluir este breve ensaio, gostaramos apenas de listar alguns elementos que podem melhor sustentar nosso argumento (hipottico ainda) que embala a anlise desse ltimo perodo abordado. Prossigamos. Ao sugerirmos que o regime poltico no-hegemnico vigente entre a queda do Estado Novo e o Golpe de 1964 foi um tipo de semibonapartismo democrtico, dizemos, logicamente, que o mesmo no se constituiu em uma forma de dominao hegemnica, de cunho democrtico-burgus. No plano puramente conceitual com o qual viemos trabalhando, esta sentena, alm de tautolgica, , em termos abstratos, auto-explicativa e, portanto, bvia. Trazendo-a para o cho histrico, nos cabe, entretanto, apresentar alguns argumentos histricos que justifiquem sua validade para o caso concreto abordado. No houve uma hegemonia propriamente dita entre 1946-1964. Nesse perodo, nenhuma das fraes da classe dominante logrou apresentar seus interesses particulares como interesses gerais da nao. Negando a luta de classes e proclamando o Estado como uma entidade neutra, arbitral e benevolente para com os mais humildes, a ideologia pequeno- burguesa do populismo, responsvel, em parte, pelo xito da manobra estatal das massas, mostrou-se, verdade, extremamente funcional para a preservao da ordem burguesa. Gerando um clima de relativa colaborao entre as classes sociais, ela permitiu que fosse continuada e acelerada a modernizao industrial retardatria do pas. Essa ideologia foi, portanto, de tamanha utilidade para a burguesia brasileira (em especial para a sua frao industrial, que manteve em suas mos a funo hegemnica adquirida sob o Estado Novo). No h como neg-lo. Mas essa ideologia no foi, decerto, uma ideologia burguesa. Pelo contrrio, as diversas fraes burguesas (inclusive a industrial), todas geneticamente antipopulares, jamais a viram com bons olhos, e procuraram sempre formular suas prprias ideologias (autoritrias, liberal-oligrquicas, liberal-autoritrias etc.). Os aspectos reformistas do iderio populista no foram formulados pelos intelectuais orgnicos da burguesia brasileira e, como antecipamos, no foram aceitos de bom grado por esta. No poucas vezes, seu setor politicamente mais reacionrio, em especial aquele alocado na oposio ao regime
1284 MORAES, Dnis de e VIANA, Francisco. Prestes: Lutas e autocrticas. Op. cit., p. 152. 455
(UDN, IPES, IBAD), identificou os traos nacional-reformistas do populismo com o marxismo de extrao mais radical. Em uma palavra, a ideologia que, no Brasil do 1946-1964, conseguiu penetrar em amplos setores populares no foi uma ideologia nascida de nenhum segmento burgus em particular, e nem mesmo elaborada ou introjetada pelo conjunto da classe dominante. Na verdade, as idias que, sob o recorte temporal em questo, mais perto chegaram de serem vistas como expressivas do interesse geral da nao foram as idias populistas, isto , as idias formuladas e propagadas pelo aparelho estatal bonapartista (ou seja, um aparelho estatal relativamente autonomizado em face da classe dominante). Diretamente relacionado a isso, est o fato de que, a nosso ver, nenhum dos presidentes que governaram entre 1946-1964 e aqui exclumos da anlise os efmeros governos-tampes de Jos Linhares (1945-1946), Caf Filho (1954-1955), Nereu Ramos (1955), Carlos Luz (1955) e Ranieri Mazzilli (1961) podem ser considerados como representantes diretos de alguma frao burguesa em especial. Favorecendo este ou aquele segmento burgus em particular e governando, sem dvida, para o conjunto dos interesses capitalistas, Dutra, Vargas, JK, Jnio, Jango e suas respectivas equipes governamentais dispuseram, em maior ou menor grau, de uma perceptvel autonomia relativa face classe dominante. bem verdade que muitos dos ministros daqueles governos atuaram como representantes polticos diretos desta ou daquela frao burguesa, mas, de um modo geral, e talvez justamente pelo conflito intra-burgus travado por eles no seio das equipes governamentais, preservou-se sempre uma autonomia relativa destas em relao aos diversos estratos da burguesia. O forte peso poltico, no interior dos governos populistas, da burocracia de Estado e das Foras Armadas muito contribuiu, sem dvida, para tal autonomia relativa. No estamos falando aqui, vale ressaltar, de um certo nvel de autonomia governamental do qual sempre dispe minimamente o chefe de Estado na condio de comandante-mor da mquina pblica (mesmo quando ele o representante direto de determinada frao burguesa), mas sim de uma elevada autonomia relativa das equipes burocrticas governamentais, o que, no caso em questo, no era seno resultante de terem estado todas elas frente de um aparelho estatal que se encontrava, ele prprio, relativamente autonomizado em face de todas as classes e fraes de classe. Provavelmente, a constante e ostensiva participao, entre 1946-1964, dos prprios militares no processo poltico o que, nos regimes hegemnicos europeus e norte-americano, por exemplo, s verificou-se em situaes excepcionais (guerra, ps-guerra, reconstruo nacional etc.) possa ser mais uma expresso do alto grau de autonomia relativa atingida pelo aparelho estatal (mais precisamente, de seu ncleo duro burocrtico-militar). 456
Supomos, tambm, que o fato da dominao populista no exprimir, ao nvel do aparelho estatal, uma forma de representao direta entre a burguesia e o poder poltico pode ajudar a explicar, outrossim, o carter politicamente instvel do regime de 1946-1964. Surgido a partir de um golpe de Estado, e solapado por outro, o semibonapartismo democrtico brasileiro foi sacudido ainda por outras cinco frustradas tentativas sediciosas: agosto de 1954 (suicdio de Vargas), novembro de 1955 (tentativa de impedir a posse de JK), fevereiro de 1956 (Jacareacanga), dezembro de 1959 (Aragaras) e agosto/setembro de 1961 (tentativa de impedir a posse de Jango). Desde 1954, e incluindo os prprios acontecimentos de agosto deste ano, muitas das crises polticas que se verificariam na ltima dcada do populismo no seriam apenas crises de governo, mas se mostrariam tambm como crises de regime. Portanto, talvez seja um pouco arriscado e at mesmo equivocado chamar de hegemnico um regime poltico marcado por tamanho grau de instabilidade. Mas isto , ainda reiteramos , apenas uma suposio a ser melhor investigada e discutida com outros historiadores do Brasil contemporneo e demais especialistas no perodo. Aproveitando-nos dos argumentos expostos acima, continuamos: no houve uma democracia propriamente dita sob o populismo de 1946-1964. No se trata aqui de, idealizando o conceito de democracia a partir de um apego ao seu significado semntico (poder do povo, soberania popular etc.), afirmar que sob o capitalismo no pode existir democracia. Acreditamos que j esclarecemos essa questo em nossa prvia (e breve) polmica com Losurdo. 1285 O que queremos dizer que o regime vigente no Brasil entre o fim da ditadura estadonovista e a ditadura militar implantada em 1964 no foi nem mesmo uma democracia burguesa. Recorrendo novamente relao que propusemos entre hegemonia e regimes democrtico-burgueses, 1286 pensamos que o regime do 1946-1964 no foi uma forma de dominao em que possa ser encontrada uma combinao relativamente equilibrada entre elementos coercitivos e consensuais (sem que a fora suplante muito o consenso). 1287
sabido entre os marxistas ou pelo menos deveria s-lo que, tambm nos regimes democrtico-burgueses e no s nas ditaduras burguesas (fascistas, bonapartistas etc.) , a dimenso coercitiva desempenha, em ltima anlise, o papel determinante para a manuteno da dominao poltica de classe. Contudo, como relembramos linhas acima, a dosagem entre essa dimenso coercitiva e a outra, de natureza consensual, se apresenta, nas democracias burguesas, de forma relativamente equilibrada. igualmente sabido que, no ps-1945, como j pontuamos, foram diminudos na dominao populista os elementos coercitivos e, simultaneamente, intensificados aqueles de ordem consensual (o que pode ser observado,
1285 Ver a Introduo primeira parte deste trabalho (O bonapartismo esvaziado de sentido: breves comentrios sobre dois autores acadmicos). 1286 Ver Introduo primeira parte deste trabalho (Crise de hegemonia e bonapartismo). 1287 GRAMSCI, A. Cadernos do crcere. Op. cit., volume III, p. 95. 457
principalmente, no que diz respeito ampliao dos direitos sociais e polticos, traduzida na existncia de uma relativa liberdade de organizao poltica para os setores subalternos etc.). Embasados nisso, propusemos que, dentro da dominao bonapartista, operou-se uma significativa transformao em sua configurao poltica, uma verdadeira mudana de regime: do bonapartismo semifascista para o semibonapartismo democrtico. Tal mudana havia sido ensaiada, como indicamos, desde 1942, pelo prprio Bonaparte. Porm, no pensamos que, nesta mudana, chegou a ser atingido o tal relativo equilbrio entre os expedientes coercitivos e consensuais de dominao poltica, e que, portanto, tenha se chegado a configurar um tipo de regime que possa ser denominado de democracia burguesa. Em nossa opinio, os ingredientes democrticos do regime e estes certamente existiram, influenciando, em muito, sua receita final encontraram-se subsumidos aos outros de natureza bonapartista, o que nos levou a lanar mo da categoria de semibonapartismo democrtico. 1288 Em outras palavras: a chamada democracia populista no foi, supomos, uma democracia burguesa. Ficou, no mnimo, um pouco aqum disto. Essa tese, alis, j se encontra, ainda que no to peremptoriamente exposta, na prpria teoria do populismo, e a noo mesma de uma democracia populista sua melhor expresso conceitual. Insistimos nessa idia, pois, primeiramente, vale lembrar que a estrutura sindical corporativista, consolidada pela ditadura do Estado Novo, foi preservada praticamente intacta pelo novo regime. Desse modo, os sindicatos, o mais bsico espao de organizao da classe trabalhadora, continuavam submetidos ao Estado por meio de uma relao institucional de matriz notoriamente fascista. Ademais, o retorno do direito de greve, como destacamos, foi acompanhado de uma poro de dispositivos que dificultariam ao mximo seu exerccio (ao menos do ponto de vista legal). Precisamente por isso, uma das maiores consignas do movimento sindical do perodo foi a revogao do decreto 9.070 (responsvel pelo restabelecimento do direito de greve acompanhado dos tais famigerados dispositivos). Desse modo, o corporativismo sindical que, pela raiz, cortava as possibilidades de uma autonomia e liberdade sindicais, apresentou-se como a base jurdica das relaes entre o Estado e as organizaes dos trabalhadores no novo regime. Assim, embora no compartilhemos do modo
1288 Categoria esta que, como j dissemos, foi utilizada por Trotsky para se referir ao regime/governo mexicano de Lzaro Crdenas (1934-1940), no qual, diga-se de passagem, existiram, a nosso ver, perceptivelmente mais traos democrticos do que no regime brasileiro de 1946-1964. Eleito por sufrgio universal e entregando o cargo tranquilamente ao final de seu mandato, Crdenas levou a cabo no pas uma significativa reforma agrria (bastante avanada para os padres latino-americanos) e um notvel programa de educao popular, alm de ter reconhecido ao Partido Comunista Mexicano a legalidade. Tendo chocado o imperialismo pela nacionalizao das ferrovias e companhias de petrleo, o general populista concedeu asilo quase incondicional aos foragidos da repblica espanhola (derrubada por Franco) e para o prprio Trotsky Crdenas, alis, foi o nico governante mundial a conceder tal asilo! Quanto ao governo de Lzaro Crdenas, ver GALL, Olivia. Trotsky en Mxico y La vida poltica en el perodo de Crdenas (1937-1940). Mxico (DF): Ediciones Era, 1991; SEVILLA, Carlos. El bonapartismo em Mxico. Surgimiento y consolidacion. Extrado de http://www.juridicas.unam.mx/publica/librev/rev/rap/cont/52/pr/pr10.pdf (acessado em 29/12/2011); e IANNI, Octavio. El Estado capitalista en la poca de Crdenas. Op. cit. 458
como Weffort concebeu o conceito de democracia em seus textos de fins da dcada de 1970 (similar noo da democracia como um valor universal), a afirmao feita por ele em um destes conhecidos trabalhos (em que abordou a questo do sindicalismo brasileiro face estrutura sindical corporativista no perodo 1945-1964) nos parece perfeitamente adequada ao que queremos dizer aqui: No h democracia sem movimento operrio independente. 1289
Por fim, acrescentamos ainda trs elementos que podem vir a reforar nosso argumento. O primeiro deles que, embora a ditadura estadonovista tenha cado, seu aparato repressivo no s ficou de p, como foi desenvolvido e aperfeioado pelos novos homens que estiveram frente do aparelho de Estado. Com base na estrutura da polcia poltica getulista, j federalizada, foi recriada, apenas 11 dias depois da derrubada de Vargas (!), a Diviso de Polcia Poltica e Social (DPS) que havia trocado de nome em agosto de 1945 para Departamento de Ordem Poltica e Social (DOP). Em janeiro de 1946, seria regulamentado o Setor de Fiscalizao Trabalhista da DPS, cuja competncia segundo uma Portaria Reservada daquele mesmo ano era proceder a investigaes atinentes massa trabalhista em geral. 1290 Tendo mudado de nome em 1962, a DPS e seu Setor de Fiscalizao Trabalhista atuariam em ntima colaborao com o Ministrio do Trabalho ao longo de todo o perodo 1946-1964. Assim, ainda que o bonapartismo semifascista tenha findado em 1945, um de seus principais pilares manteve-se vivo durante todo o regime posterior, o qual se encarregou de promover regulares updates e upgrades nos organismos responsveis pela represso classe trabalhadora. O outro elemento que apresentamos aqui o da ilegalidade do PCB. Tornado, em 1947, um partido proscrito pelo Governo Dutra (o mais reacionrio do perodo 1946-1964), o partido de Prestes continuaria fora da lei sob todos os outros governos do populismo. Estamos tratando, assim, de um regime que, durante praticamente toda a sua existncia, no permitiu a legalidade do mais representativo partido do proletariado brasileiro. Cabe esclarecer que no estamos nos referindo a restries jurdicas a extremadas atividades anti- regime realizadas por partidos e organizaes de esquerda (isto , atividades concretamente subversivas, como formao de milcias operrias armadas, seqestros polticos etc.) o que , de certa forma, natural nas democracias burguesas , e sim da negao simples existncia
1289 WEFFORT, Francisco. Democracia e movimento operrio: algumas questes para a histria do perodo 1945/1964 (primeira parte). Op. cit, p. 9. 1290 MATTOS, Marcelo Badar (coord.) [et. al.] Greves e represso policial ao sindicalismo carioca (1945- 1964). Op. cit., p. 81-83 e 169-170 (Anexo). 459
legal de um partido operrio que, sobretudo depois de 1954, deixou o mais claro possvel sua defesa da democracia e dos mtodos pacficos para o alcance de suas propostas. 1291
O terceiro elemento diz respeito s prprias limitaes eleitorais do regime baseado na Carta de 1946. Como j foi bastante destacado pela historiografia poltica do perodo mas vem sendo convenientemente esquecido pelos atuais historiadores revisionistas , no estavam aptos, segundo a Constituio, a participar dos processos eleitorais os analfabetos, os quais, portanto, no passavam, na prtica, de uma espcie de cidados de segunda categoria (vale lembrar que, em 1960, a taxa de analfabetismo do pas estava calculada em torno de 40%). 1292 Tambm relevante mencionar que, pela mesma Carta constitucional, os setores subalternos da Foras Armadas eram considerados inelegveis, enquanto que s praas de pr (salvo os aspirantes a oficial, os suboficiais, os subtenentes, os sargentos e os alunos das escolas militares de ensino superior) estava vedado at mesmo o simples direito de voto. Importante talvez seja ainda assinalar que, em nosso entendimento, o argumento aqui apresentado no , na essncia, distinto daquele que diz ter sido o regime de 1946-1964 a expresso, naquele contexto histrico, da democracia possvel no perifrico e dependente capitalismo brasileiro. Essa elaborao, pensamos, apenas outra forma de expor a mesma idia. Seu fundamento heurstico o mesmo com o qual trabalhamos: a inaplicabilidade, naquele perodo, da democracia liberal, em sua forma clssica, em pases de capitalismo hipertardio. Todavia, evitando alargar por demais a noo de democracia burguesa, aplicando-a a configuraes polticas carentes de muitos de seus traos fundamentais,
1291 Essa questo nos impele a pontuar algumas rpidas crticas ao movimento historiogrfico revisionista do Golpe de 1964, cujo principal mote a tese de que o fim da democracia (sem adjetivaes, segundo os revisionistas) existente no perodo 1946-1964 teria sido tambm de responsabilidade da esquerda brasileira (em especial do PCB): de tradio autoritria, essa esquerda leninista nutriria, segundo os revisionistas, uma viso instrumental da democracia, no tendo, portanto, nenhum apego a ela. Por conta disso, tal como a direita, a esquerda tambm teria oferecido sua contribuio poltica para um desfecho autoritrio da crise poltica dos anos 60. Como pode ser visto, os revisionistas tambm atribuem ao PCB uma responsabilidade histrica por 1964, mas situam-se no vrtice terico-poltico oposto ao da teoria do populismo, com a qual comungamos muitos elementos. Escrevendo dcadas depois, e dispondo de muitos mais arquivos e fontes, os revisionistas no fizeram seno promover um enorme retrocesso historiogrfico. A prtica da histria poltica antes poltica do que histrica (no sentido da investigao histrica). Pontuemos nossas crticas. Em primeiro lugar, como procuramos expor nos ltimos pargrafos deste ensaio, o regime de 1946-1964 no foi uma democracia (burguesa), no sendo coerente cobrar dos comunistas, portanto, um apego e um obsequioso respeito a um regime que simplesmente no existia. Em segundo lugar, como tambm j expusemos, o PCB, mesmo sendo um partido proscrito pelo regime, submeteu-se, na maior parte do tempo (inclusive nos anos 60), sua lgica e instituies, e o fez a partir da defesa categrica da democracia e do caminho pacfico da transformao social do pas. Em terceiro lugar, por que motivos ou, como preferem os revisionistas, em que livro sagrado das prticas polticas est escrito que deveriam ter os comunistas respeitado um regime e, como reafirmamos, ele o fizeram em demasia que sequer lhes conferiam a legalidade ao seu partido? 1292 DE JESUS, Marlu Pontes. Retrato do analfabetismo no Brasil. Extrado de http://www.artigonal.com/educacao-artigos/retrato-do-analfabetismo-no-brasil-4618882.html (acessado em 27/03/2012). 460
optamos por chamar o regime poltico brasileiro do 1946-1964 por outro nome: chamamo-lo de semibonapartismo democrtico. 1293
essa forma particular de dominao poltica bonapartista que, a partir da segunda metade da dcada de 1950, comeou a ter suas bases de sustentao gradativamente erodidas pela prpria dinmica contraditria da modernizao capitalista brasileira. O processo de internacionalizao da economia brasileira, vertiginosamente intensificado sob a presidncia de JK, alterou novamente a morfologia da classe dominante brasileira, produzindo a emergncia de uma frao burguesa financeira mais intimamente vinculada ao capital estrangeiro. 1294 Conformando socialmente um bloco multinacional e associado, os setores mais dinmicos da burguesia brasileira passaram a enxergar no regime vigente um bice adequao da economia nacional aos novos e internacionais padres monopolistas de acumulao e reproduo do capital. 1295 Assumindo abertamente a condio de scia menor do capital estrangeiro que agora era volumosamente investido na periferia tambm por meio da implantao nela das estruturas produtivas das chamadas multinacionais a frao burguesa financeira no estava disposta e nem via a necessidade de barganhar com o imperialismo melhores condies para os capitalistas nacionais. Na qualidade de obediente vassala do grande capital internacional qualidade essa que lhe rendia lucros ocenicos passou a opor-se veementemente ao populismo e sua perigosa e dispendiosa poltica de massas. Construindo um projeto hegemnico a partir da sociedade civil e do prprio aparelho de Estado (sobretudo por meio dos militares), essa nova frao burguesa que no era seno resultado das prprias contradies do desenvolvimento capitalista proporcionado por trs dcadas de populismo lanou-se de cabea na luta contra o regime semibonapartista democrtico. O rpido governo de Jnio Quadros talvez possa ser pensado dentro desse contexto mais geral de um regime bonapartista que, entrando em uma srie crise econmica, deparou- se com uma frao burguesa cada vez mais disposta a dominar diretamente o Estado.
1293 Em suma, no existia uma democracia burguesa fraca, mas uma autocracia burguesa dissimulada. Este pode parecer um retrato muito duro. Porm, qual o retrato que se pode fazer depois de tudo que ocorreu e que est ocorrendo? Nem mesmo a massa popular chegou a se omitir, porque no houve um momento de omisso histrica da massa popular. O que houve, e os analistas do populismo deixam bem claro, foi um momento de tentativa de afirmao de massa (ou de convencimento tcito de um novo pacto social, como querem alguns autores), suprimido de modo inslito pela reao autodefensiva da burguesia. Portanto, o nexo poderia ter sido eliminado, se a histria tambm tivesse sido diferente. Como a histria no foi diferente, ele define e muito bem o que as classes e os estratos de classe procuravam ao liquidar as aparncias democrtico-burguesas da ordem. (FLORESTAN, Fernandes. A revoluo burguesa no Brasil. Op. cit., p. 340. Grifos do autor). 1294 Tomando por base a concepo de Lnin sobre o capital financeiro (ver LENIN, L. Imperialismo: fase superior do capitalismo. Op. cit.), entendemos aqui esta frao burguesa financeira como resultado da fuso (caracterstica do estgio monopolista do capitalismo) entre as fraes industrial e bancria da burguesia. 1295 DREIFUSS, Ren Armand. 1964: A conquista do Estado (ao poltica, poder e golpe de classe). Op. cit. (captulos II e III e IV). 461
Finalizado de forma surpreendente (como um raio cado de um cu azul), 1296 o governo de Quadros que, tendo despertado as esperanas da direita, no se livrou da forma populista de governar foi, portanto, resultado de um momento em que era redesenhada a crise de hegemonia no pas. Como j mostramos no captulo anterior, o carter ambivalente de seu governo pode ser interpretado como expresso do impasse com que as classes dirigentes no Brasil se defrontavam, uma vez que o empresariado, fortalecido pela industrializao e articulado pelo setor estrangeiro, reclamava a concentrao do poder poltico, a fim de, resolvendo-se o problema da hegemonia, conter a emergncia do movimento operrio e enfrentar a crise econmica e social, com outros padres de acumulao. 1297 De todo modo, o fracasso de Jnio deu frao financeira o recado de que os caminhos eleitorais seriam, para ela, invariavelmente estreis. Mesmo se conseguisse sucesso nas urnas contra o trabalhismo e suas variantes, o programa poltico do bloco multinacional e associado seria irrealizvel por meio do arranjo institucional vigente. O regime poltico tinha que ser substitudo. E s poderia s-lo pela fora. No iniciar da dcada de 1960, o sistema, como assinalou Weffort, j parecia ter perdido sua capacidade de absorver econmica e socialmente as massas populares que no cessavam de crescer em funo, sobretudo, das sucessivas e constantes migraes do campo para a cidade. 1298 Sob o governo de frente popular de Goulart, o crescimento em progresso geomtrica das lutas sociais no campo e na cidade, muitas delas rompendo com as amarras do corporativismo sindical, contribuiu para a unificao poltica da classe dominante contra o regime. Tal qual Cato, que finalizava todos seus discursos no Senado romano com a exigncia de que Cartago fosse destruda (Delenda est Cathago!), a burguesia brasileira, amedrontada com o avanar da luta de classes nos anos 60, passou a gritar em unssono: O populismo deve ser destrudo!. Rompendo at mesmo com seus lderes e partidos de confiana, os quais faziam oposio declarada ao regime (em especial, a UDN de Carlos Lacerda), a massa burguesa, mais uma vez em estado de crise orgnica, colocava-se gradativamente sob a direo de novas foras polticas, construdas e arregimentadas pelo bloco multinacional e associado. Tambm deste bloco se aproximaria a pequena-burguesia urbana: tanto seus segmentos mais conservadores (sempre avessos presena popular na poltica), quanto muitas de suas parcelas tidas como progressistas, as quais haviam apoiado entusiasticamente o populismo enquanto este se mostrou capaz de manter em nveis aceitveis a fobia que nutriam da proletarizao. Assim, vendo seu Estado arbitral incapaz de bloquear a ascenso poltica do proletariado e, consequentemente, de frear a luta de classes,
1296 MARX, K. Prefcio do autor segunda edio in ____. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 8. 1297 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo Joo Goulart. As lutas sociais no Brasil (1961-1964). Op. cit., p. 47. 1298 WEFFORT, F. O populismo na poltica brasileira. Op. cit., p. 85. 462
parte considervel da pequena-burguesia engrossou as fileiras golpistas. Recebendo, portanto, reforos de todos os setores sociais preocupados em evitar uma ampliao da participao popular na vida nacional, o campo da contra-revoluo violenta aumentou celeremente. Desempenhando o papel de vanguarda dessa contra-revoluo violenta, a frao financeira comandava a trama golpista, ansiosa por alcanar uma hegemonia poltica sobre o pas. Ocorria, ento, um fenmeno similar ao de 1937, mas de sentido politicamente inverso. A cpula burocrtica dirigente do populismo afora os elementos que dela debandaram e mudaram perfidamente de lado tambm atingiu um altssimo grau de autonomia relativa em relao s fraes burguesas. Entretanto, diferentemente de 1937, essa cpula j no parecia (em seus momentos finais) ser nem mesmo o instrumento indireto da dominao poltica da burguesia. Na verdade, em funo de sua crescente incapacidade de preservar a ordem por meio da conteno poltica da classe trabalhadora, a direo semibonapartista comandada por Goulart perdeu, com o tempo, no s o frgil apoio da maioria das representaes polticas burguesas que haviam estado ao lado governo, como, contrariamente a Vargas em 1937, afastou de si totalmente a aterrorizada massa da burguesia. Clamando, como de hbito, pela ordem, essa massa no poderia seno separar-se de um presidente ao qual nunca tinha aceitado confortavelmente como chefe de seu Estado, e que, agora, se mostrava cada vez mais impotente para ou desinteressado em levar a cabo a represso classe operria. Como expresso tpica de um regime prestes a desmoronar, os comandantes do aparelho estatal, que bem se esforavam para mant-lo de p, ficavam progressivamente como que suspensos no ar. Tratava-se, agora, ento, de uma espcie de bonapartismo s avessas. Jango, sobretudo em seus ltimos meses de governo, no passou de um simulacro de Bonaparte: alm de acima da burguesia, o epgono de Vargas viu-se tambm desprovido de qualquer apoio da parte dela. Como chefe do Estado burgus, j no dispunha de nenhuma base social na classe dominante. A autonomia relativa de sua equipe governamental era, assim, to grande quanto frgil. O drama vivido pelo trabalhismo e seus homens de proa nos momentos finais do regime populista foi o de sujeitos polticos que se descolaram por completo dos sujeitos sociais aos quais verdadeiramente procuravam servir. O discurso do nacional- desenvolvimentismo, base da propaganda ideolgica do semibonapartismo democrtico, cindia-se por completo da base social burguesa a qual nunca tinha conseguido verdadeiramente cativar. O sonho de um capitalismo nacional, pautado na colaborao de classes e produzido pelos idelogos do regime, no poderia, naquelas condies de crise social aberta, ter espao mais sequer no inconsciente de uma classe dominante sempre hipersensvel a qualquer agitao popular, integrada agora mais organicamente ao capital 463
estrangeiro e j totalmente rendida aos desejos de seu amo estadunidense. A ideologia trabalhista atingiu, ento, seu momento mais puramente ideolgico. Sem nenhum eco na burguesia em funo de sua forte audincia entre os trabalhadores, o trabalhismo, em seus ltimos dias, voltou-se para estes, e s para estes. O objetivo, contudo, era a sua prpria salvao e a do regime e, portanto, em ltima anlise, a da prpria burguesia. Disso os trabalhistas talvez no soubessem, mas faziam. Como uma ideologia nascida do e para a administrao do Estado burgus, no poderia servir aos objetivos histricos dos trabalhadores. A tragdia da ala esquerda do trabalhismo naqueles meses periclitantes que antecederam a queda do populismo assemelhou-se, assim, guardada as devidas propores, vivida pelo jacobinismo francs em meados do sculo XIX: enquanto pregava para a burguesia um projeto democrtico que esta no queria (mais ou ainda), s conseguia obter influncia de massas entre os segmentos sociais subalternos, para os quais, entretanto, o projeto democrtico, embora pudesse significar um grande avano, no poderia dar conta de seus reais interesses de classe vale ressalvar, todavia, que uma das inmeras diferenas entre os dois movimentos polticos que os jacobinos franceses foram, em algum momento, obstinados revolucionrios, enquanto que Brizola, Almino Alfonso e congneres no passaram, se muito, de intrpidos reformistas. Quando deixou de ser burgus, o trabalhismo j no era mais nada. Flutuava acima da sociedade brasileira como um avio em pane sobrevoa o oceano: por mais que pudesse ser prolongada, sua queda era inevitvel. Abandonado pela direita, Jango, repetindo os passos de seu mestre Bonaparte Getlio, girou seu governo esquerda, em uma ltima tentativa de salvar o regime. Em seus ltimos meses, buscando uma sustentao cada vez maior na mobilizao controlada de massas, o semibonapartismo democrtico atingiu, assim, sua feio mais radical, exacerbando seus traos democrticos. O regime no pde, entretanto, ir alm dos limites do Estado do qual se originara. No tinha mesmo como ir alm. Os limites de classe mostraram-se intransponveis para as foras polticas que comandavam o semibonapartismo democrtico. O populismo tinha cumprido, e bem, sua misso histrica. Incapaz agora de manter a participao poltica dos trabalhadores nos limites exigidos pela ordem burguesa, s lhe restava sair de cena para que outra configurao poltica assumisse a tarefa de dar continuidade modernizao capitalista do pas. Pode-se dizer at que Jango e seus homens fizeram o que poderia ser feito ou pelo menos chegaram muito perto disso nos quadros de um Estado capitalista dependente. De todo modo, o tempo do reformismo perifrico parecia ter chegado ao fim no Brasil. Nesse contexto, um governo de frente popular no tinha como perdurar. Provavelmente, uma revoluo social seria a nica alternativa capaz de evitar uma acachapante derrota das foras populares, e esta no poderia ser feito pelos ou 464
com os comandantes do regime, mas sim contra eles. classe trabalhadora s restava avanar, mas suas direes, crentes em uma evoluo pacfica da transformao social, preferiram o longo caminho do acmulo de foras, enquanto depositavam todas as suas fichas na aliana com a cpula do regime que se esquerdizava. Realizavam, assim, em palavras, e s em palavras, a tal aliana com a burguesia nacional de carter democrtico, em um momento em que a verdadeira burguesia, que jamais tivera em seu real dicionrio o vocbulo democracia, estava vida por uma nova soluo de fora que limasse da cena poltica qualquer coisa que cheirasse a povo. Mais uma vez, a classe dominante preferia um fim com terror, do que um terror sem fim. 1299
A histria oferecia, assim, mais uma cruenta prova da impossibilidade do prprio Estado, pacificamente, se metamorfosear, transformando sua natureza de classe. O que no avana, retrocede. Assim, a incipiente revoluo brasileira, que mal tinha chegado ao seu estgio pr-revolucionrio, foi sanguinariamente abortada pela contra-revoluo vitoriosa em maro de 1964. A colaborao de classes, antes engolida a seco pela burguesia porquanto necessria para sua dominao poltica sobre os trabalhadores, foi, ento, sumariamente abolida. Ela no tinha mais razo de ser para o capital. A burguesia, como bem colocou Florestan Fernandes, poderia agora continuar o baile sem mscaras. 1300 Iniciava-se, assim, um perodo de paz armada. 1301
O novo regime poltico, surgido talvez do mais regressivo captulo da permanente e preventiva contra-revoluo burguesa no pas (o Golpe de 1964), se adequaria perfeitamente aos interesses da classe dominante brasileira, em especial aos de sua frao financeira. Sob a ditadura, responsvel por sintonizar a economia nacional com a nova freqncia capitalstica do mercado internacional, essa frao financeira, justamente por seu carter mais dinmico e internacionalizado (e tambm graas presena de seus tcnicos nos rgos estatais e de seus contatos privilegiados com os novos governantes), obteria e preservaria durante muito tempo em suas mos a funo hegemnica (e talvez a preserve at hoje). Entretanto, a obteno de uma verdadeira hegemonia por ela ou por qualquer outra frao da classe dominante brasileira seria, mais uma vez, adiada. O golpe de Estado, embora tendo sido gestado na sociedade civil (IPES, IBAD etc.), foi tambm tramado e executado pelas Foras Armadas. No novo regime, seria a cpula militar que, relativamente autonomizada face s fraes da classe dominante, deteria autocraticamente o poder poltico. Caberia a ela o papel de arbitragem poltica entre as fraes burguesas e, ao mesmo tempo, a tarefa de calar o movimento operrio e exterminar sua vanguarda (tudo isso em nome da segurana nacional
1299 MARX, K. O 18 brumrio de Lus Bonaparte. Op. cit., p. 104. Grifos do autor. 1300 FLORESTAN, Fernandes. A revoluo burguesa no Brasil. Op. cit., p. 340. 1301 Idem, p. 320. 465
e da democracia sempre ela, a democracia, pau para toda obra desde o fim da Segunda Guerra Mundial). O nvel de ativao popular atingido nos primeiros anos da dcada de 1960 e o tamanho do sacrifcio a ser imposto aos trabalhadores pelo novo modelo (monopolista) de acumulao capitalista no pas condicionavam que o novo regime surgido do golpe de Estado viesse ser um regime de fora, no qual para usarmos novamente as palavras de Gramsci a coero suplantaria, em muito, o consenso (como, alis, poderia ser facilmente verificado desde seus primeiros dias de existncia). Teria lugar, ento, uma nova forma, acentuadamente tecnocrtica, de um bonapartismo semifascista, desta vez totalmente subserviente ao imperialismo e j despida de qualquer pretenso reformista. 1302 Persistindo a renitente crise de hegemonia na sociedade brasileira, a retardatria modernizao capitalista do pas continuaria, assim, sua saga pela via bonapartista. Conquanto sinuosa, esburacada e com eventuais riscos de derrapagem, ela ainda se mostrava como o melhor caminho, porquanto o mais seguro. Assim, j bastante longo na histria nacional, o bonapartismo continuaria a ser, durante mais um bom punhado de anos, a forma de dominao poltica burguesa necessria ao atrasado, perifrico e dependente capitalismo brasileiro. Parafraseando Engels, pode-se dizer que, durante a maior parte do sculo XX, o bonapartismo foi, portanto, a religio da burguesia brasileira. 1303
1302 Para uma periodizao do regime ditatorial civil-militar instalado em 1964, ver LEMOS, Renato. Op. cit. O autor, alis, como j indicamos no captulo anterior, um dos que concebe a ditadura brasileira como um regime de natureza bonapartista. 1303 O bonapartismo a verdadeira religio da burguesia contempornea. (ENGELS, F. Carta de Engels a Marx (13 de abril de 1866) apud BARSOTTI, Paulo. Op. Cit., p. 108.). 466
Consideraes finais
Teoria poltica, historiografia, universidade e movimento operrio
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Algumas palavras guisa de concluso
Os perodos em que o movimento da classe oprimida se eleva ao nvel das tarefas gerais da revoluo representam excees rarssimas na histria. As derrotas dos oprimidos so muito mais freqentes que suas vitrias. A cada derrota sucede um longo perodo de reao, que cria uma situao de cruel isolamento para os revolucionrios. Os pseudo-revolucionrios, os cavaleiros por uma hora segundo a expresso do poeta russo ou traem abertamente, nesses perodos, a causa dos oprimidos, ou saem procura de uma frmula de salvao que lhes permita no romper com nenhum dos campos. Na nossa poca, inconcebvel encontrar-se uma frmula conciliatria no domnio da economia poltica ou da sociologia; as contradies entre as classes deitaram por terra definitivamente as frmulas dos liberais, que sonhavam com harmonia, e as dos reformistas democratas. Resta o domnio da religio e da moral transcendente [...] Somente a revoluo socialista poder salvar a civilizao. O proletariado dever usar toda a sua fora, toda sua deciso, toda sua audcia, toda sua paixo, toda sua firmeza, para realizar essa violenta comoo. Dever desligar-se totalmente das fices da religio, da democracia, da moral transcendente, grilhes espirituais criados pelo inimigo para domestic-lo e reduzi-lo escravido. 1304
Dado que estas vrias categorias de intelectuais tradicionais [cientistas, tericos, filsofos no eclesisticos etc.] sentem com esprito de grupo sua ininterrupta continuidade histrica e sua qualificao, eles consideram a si mesmos como sendo autnomos e independentes do grupo social dominante [...] Os intelectuais so os comissrios do grupo dominante para o exerccio das funes subalternas da hegemonia social e do governo poltico, isto : 1) do consenso espontneo dado pelas grandes massas da populao orientao impressa pelo grupo dominante vida social, consenso que nasce historicamente do prestgio (e, portanto, da confiana) que o grupo dominante obtm, por causa de sua posio e de sua funo no mundo da produo; 2) do aparato de coero estatal que assegura legalmente a disciplina dos grupos que no consentem, nem ativa nem passivamente, mas que constitudo para toda a sociedade, na previso dos momentos de crise no comando e na direo, nos quais fracassa o consenso espontneo. 1305
Na primeira parte deste trabalho, apresentamos, de um modo sistemtico, o que designamos como uma teoria do bonapartismo. Feitas algumas consideraes introdutrias sobre ela, procuramos, nos dois primeiros captulos, reconstituir sua trajetria, a qual, como pde ser visto, esteve ligada prpria evoluo do bonapartismo como fenmeno histrico. Gestada e desenvolvida no interior do movimento operrio entre 1848 e as primeiras dcadas do sculo XX, a teoria do bonapartismo foi, em grande parte, fruto de anlises polticas conjunturais elaboradas por intelectuais intimamente vinculados s lutas dos trabalhadores ao redor do mundo. Diante de situaes concretas do conflito de classes, tericos como Marx, Engels, Trotsky e Gramsci produziram sofisticadas reflexes sobre as distintas formas polticas que a dominao social burguesa podia assumir ao nvel do Estado capitalista. O prprio conceito de bonapartismo, como vimos, foi mobilizado por seus tericos tendo em vista, muitas vezes, iluminar as especificidades desta particular forma de dominao poltica. Evidenciar suas diferenas (como tambm algumas de suas semelhanas) diante das outras formas, como a democracia burguesa e o fascismo, foi, metodologicamente, um meio
1304 TROTSKY, L. Os mercadores de indulgncias e seus aliados socialistas (ou o Filhote em ninho alheio) in ___. Moral e revoluo. Op. cit., p. 72. 1305 GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organizao da cultura. Traduo de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilizao brasileira, 1968, p. 6-11. 468
de melhor defini-lo. Dependendo de qual fosse, em determinada formao social, a forma poltica de dominao vigente, isto , de qual fosse o regime poltico do qual lanavam mo as classes dominantes para garantir a explorao de classe, esmeravam-se aqueles intelectuais orgnicos em formular as melhores estratgias e tticas a serem adotadas pelas organizaes polticas dos explorados. A teoria do bonapartismo foi, portanto, elaborada e aprimorada a partir das necessidades prticas e objetivas do movimento operrio, e no por meio de um pensamento meramente especulativo e escolstico. Embora surgida do movimento operrio, essa preocupao em apreender a natureza dos diferentes regimes polticos o que, em termos investigativos, implica, sobretudo, em decifrar as concretas relaes estabelecidas, em cada um deles, entre o aparelho de Estado e as classes sociais em luta acabou por ganhar, com o tempo, o terreno da produo acadmica internacional. Nas dcadas de 60, 70, e 80 do sculo passado, mesmo em ambientes de pesquisa notoriamente conservadores, no foram escassos os trabalhos cientficos nos quais as distines entre Estado, regime e governo se mostraram presentes. Assim, durante certo perodo, pode-se dizer que houve uma relativa comunho epistemolgica entre segmentos da intelectualidade acadmica e algumas organizaes marxistas teoricamente mais sofisticadas: com mtodos, linguagens e posicionamentos polticos muitas vezes diferenciados, tanto os primeiros quanto as ltimas levavam em conta nas suas anlises a questo dos regimes polticos. Entretanto, por volta dos ltimos vinte e cinco anos, a imensa maioria dos agrupamentos polticos da esquerda, incluindo aqueles oriundos da melhor tradio marxista, passou a abdicar de reflexes e posturas anti-regime, concentrando (e mesmo reduzindo) suas crticas aos governos de planto. A consolidao, em um grande espao do globo, do regime democrtico-burgus certamente contribuiu para tal abdicao, assim como tambm no seria errneo dizer que, dialeticamente, tais posturas da esquerda jogaram um importante papel nessa consolidao democrtica. Sintonizada com o movimento operrio, e mesmo influenciada por este, grande parte da intelligentsia marxista acadmica, tanto europia quanto latino-americana, veio a tacitamente corroborar a idia de que a democracia atualmente existente se apresenta, ao fim e ao cabo, como a nica forma possvel de organizao poltica da espcie humana. Esvaziadas de seu contedo histrico e classista, suas instituies formais, parlamentares, passaram a ser designadas por tal intelligentsia como o terreno preferencial (ou mesmo exclusivo) para a atuao poltica dos setores subalternos. Consequentemente, alm de naturalmente rechaado pelas hegemnicas teorias polticas conservadoras, o debate sobre a natureza e as formas dos diferentes regimes polticos da contemporaneidade tornou-se, tambm para esquerda intelectual, algo apenas secundrio, ou simplesmente descartvel. 469
O abandono dessa questo dos regimes polticos por amplos setores da intelectualidade marxista pode ser visto, tambm, como parte de um cenrio cientfico mais amplo. Nesses tempos de dbcle terico, um reducionismo empirista expandiu-se largamente entre os maduros e jovens acadmicos, ganhando inclusive a preferncia das novas geraes de pesquisadores de esquerda. Enquanto um arquivismo febril tornou-se a tnica das investigaes historiogrficas hodiernas, o resgate das remotas discusses terico-polticas do marxismo de antanho, em especial daquele de origem bolchevique, passou a ser concebido como uma atitude curiosa, qui excntrica. Com efeito, o presente estudo sobre o bonapartismo, especialmente em sua primeira parte, vai na contramo dessa perspectiva atual. Em nossa breve digresso histrica sobre a teoria do bonapartismo, retornamos aos textos de Marx e Engels sobre a Frana de Lus Bonaparte e a Alemanha bismarckista, assim como aos escritos de Trotsky e Gramsci acerca dos bonapartismos/cesarismos da fase monopolista do capitalismo. Nessa empresa, alm de buscar oferecer ao leitor uma detalhada fonte de consulta sobre a temtica bonapartista, tivemos tambm o intuito de conduzi-lo a um antigo campo de estudos hoje particularmente ofuscado pelas cincias sociais em geral: o campo de estudos sobre os regimes polticos capitalistas. Para que este seja reavivado com qualidade, a sofisticada teoria produzida por aqueles tericos do movimento operrio deve necessariamente ocupar nele uma posio de destaque. Existe uma hegemonia poltica na sociedade?, qual a correlao de foras entre as classes sociais?, que classe ou frao de classe controla o Estado?; como ela exerce sua dominao?; quais so suas representaes polticas preferenciais?: estas so algumas das velhas perguntas que talvez devssemos voltar a fazer com mais cuidado e freqncia. Enfim, nutrimos a esperana de que nosso trabalho possa vir a funcionar como um pequeno estmulo para que outros cientistas sociais, sobretudo aqueles ligados mais diretamente aos movimentos da classe trabalhadora, direcionem tambm seus esforos para a compreenso das formas polticas de dominao burguesa ainda vigentes. Sem descobrir sua verdadeira natureza, no se poder derrot-las.
Dos escritos marxistas sobre o fenmeno bonapartista, chegamos ao Brasil contemporneo do populismo. Assim, na segunda parte deste trabalho, propusemos, em duas etapas, um debate envolvendo a teoria do bonapartismo e o processo poltico brasileiro do 1930-1964.
Primeiramente, no captulo III, procuramos mostrar os muitos vnculos existentes entre algumas das conhecidas interpretaes historiogrficas do Brasil ps-1930 e a teoria do 470
bonapartismo. Com maior nfase, pudemos observar como muitos de seus elementos constitutivos estiveram estruturalmente presentes na chamada teoria do populismo brasileiro, formulada e desenvolvida por autores como Francisco Weffort, Octavio Ianni, Rgis de Castro Andrade e Dcio Saes. Nas pginas daquele captulo, pde ser visto tambm como, mobilizando a teoria do bonapartismo, pequenas organizaes polticas trotskistas (LCI, PSR, POR etc.), as quais se sucederam umas s outras no perodo do 1930-1964, anteciparam em suas teses muitas das anlises acadmicas sobre o regime populista brasileiro. Conforme tentamos apresentar sinteticamente na introduo desta segunda parte, essa proximidade interpretativa entre organizaes trotskistas e importantes intelectuais acadmicos face ao populismo brasileiro deve ser compreendida como parte de uma convergncia analtica mais geral entre ambos os grupos em questo. Vertebradas, como vimos, pela lei do desenvolvimento desigual e combinado de Trotsky, as interpretaes sobre a formao social brasileira realizadas por alguns daqueles intelectuais possuram vrias similitudes e muitos pontos de contato com as teses defendidas pelas organizaes trotskistas, como, por exemplo, o reconhecimento de uma combinao entre o arcaico e o moderno na estrutura scio-econmica nacional, de uma relao de dependncia do pas face ao imperialismo, e do carter contra-revolucionrio de nossa perifrica burguesia. Expondo os contatos travados entre tais organizaes e alguns daqueles intelectuais em suas militncias de juventude, indicamos, tambm, que as primeiras podem ter funcionado, em certos casos, como mediaes entre as teorias do movimento operrio e aquelas produzidas no interior do espao acadmico. Tivemos, portanto, naquele terceiro captulo, o objetivo de expor como vieram do movimento operrio os subsdios e aportes cientficos para uma produo bibliogrfica gerada por parcela importante de nossa intelectualidade acadmica. Esse percurso do movimento operrio para a universidade foi por ns mais atentamente discutido no caso da relao teoria do bonapartismo - teoria do populismo, que se constituiu no objeto central deste trabalho. Tenha sido por meio da propaganda de suas pequenas organizaes polticas, ou simplesmente a partir da influncia da obra de seus intelectuais orgnicos (Marx, Engels, Trotsky e Gramsci), foi o movimento operrio quem forneceu universidade as referncias tericas necessrias para uma interpretao dialtica do Brasil contemporneo e, mais particularmente, de seu complexo processo poltico a partir de 1930. Defendemos, assim, a tese de que a teoria do bonapartismo, produzida e difundida pelo movimento operrio, foi um dos principais alicerces da construo sociolgica do conceito de populismo, tal qual foi elaborado nas antigas ctedras uspianas da Rua Maria Antnia. 471
Numa poca em que a academia se enxerga cada vez mais como o nico lcus vlido de produo do conhecimento, a idia de que o movimento operrio pode transportar teorias para a universidade talvez seja considerada um tanto hertica por muitos de nossos colegas. Nos dias de hoje, irritantemente conservadores, um setor expressivo dos corpos acadmicos comunga a noo de que a universidade , ou pelo menos deveria ser, uma instncia absolutamente independente, e at mesmo apartada, dos conflitos sociais presentes no tecido social; tal noo vem invariavelmente acompanhada do velho desejo positivista, requentado por Weber, da obteno por parte dos pesquisadores da chamada neutralidade cientfica ainda que nossos colegas ps-modernos entortem arrogantemente suas faces quando escutam a pronncia dessa ltima palavra que compe a expresso aspada. Buscando um isolamento cada vez maior do catastrfico ambiente social que os cerca, muitos dos intelectuais do presente (assim como o fizeram seus equivalentes no passado) cultivam a crena de que suas produes bibliogrficas no possuem vnculos com interesses particularistas, econmicos ou polticos, localizados fora de seus gabinetes; como bons liberais de classe mdia, imaginam que seus intelectos produzem obras que servem se mesmo que ainda pensam que elas devem servir para algo alm do sofisticado deleite literrio de seus pares para a sociedade como um todo. Iluso reacionria, a idia de uma universidade que, independente dos antagonismos sociais, trabalha para o conjunto dos cidados no seno uma ideologia pueril, derivada justamente da relao servil que parte considervel dos nossos prestigiados acadmicos estabelece com os grupos dominantes, seja por intermdio dos elos materiais e institucionais que os ligam ao poder pblico, seja pelas chamadas parcerias realizadas pelos departamentos e ps-graduaes com instituies privadas, organizaes no-governamentais (ONGs) e demais aparelhos de hegemonia do capital. No por acaso, aqueles que esbravejam contra qualquer penetrao dos partidos anticapitalistas e movimentos sociais de esquerda no espao acadmico so os primeiros a abrir simpticos sorrisos quando do noticiar da possibilidade de realizao de qualquer projeto em conjunto com entidades como a Fundao Ford, o Instituto Millenium, o Viva Rio, a Rede Globo, o Banco Santander e, at mesmo, (por que no?) a Polcia Militar. Assim, nesse contexto de apartheid acadmico em relao s demandas dos maiores contingentes sociais, talvez no seja totalmente escusado demonstrar que, em tempos nem to remotos, importantes intelectuais universitrios beberam, e muito, em uma abundante fonte que pouco ou quase nada tem a ver com a jactncia dos gabinetes acadmicos: o marxismo do movimento operrio. Ainda no tocante relao movimento operrio universidade, outro aspecto, mais particular, vale a pena ser aqui destacado: a existncia de um silncio quase absoluto acerca 472
da influncia exercida pelo pensamento trotskista sobre um significativo setor da intelectualidade acadmica brasileira. De fato, a presena da teoria marxista (num sentido lato) nos trabalhos de autores vinculados a determinada corrente do pensamento social brasileiro (antidualista e antietapista) vem sendo regularmente assinalada por novas pesquisas (muitas delas embaladas pela crtica revisionista). Todavia, muito pouco at agora foi dito sobre a influncia especfica das elaboraes de Len Trotsky naquela produo bibliogrfica. No caso particular da teoria do populismo, um ou outro dos seus estudiosos posteriores chegou at a reconhecer nela a presena de categorias gramscianas (crise de hegemonia, crise orgnica etc.), 1306 mas nenhum deles mencionou as idias trotskistas que, explcita ou implicitamente, tambm a inspiraram (lei do desenvolvimento desigual e combinado, revoluo permanente, bonapartismos sui generis etc.). Do mesmo modo, so tambm raros os trabalhos que atentaram para a existncia de quaisquer relaes tericas entre aquela corrente intelectual das dcadas de 1960/70 e as organizaes trotskistas do 1930-1964. No sabemos, ao certo, as razes que relegaram o nome de Trotsky e de seus seguidores brasileiros a uma zona de sombras, e nem foi objetivo deste trabalho descobri-las. Ao nvel hipottico, portanto, nos limitamos a dizer que, possivelmente, contribuiu para esse obscurecimento o fato de que, como j expusemos, muitos dos prprios intelectuais claramente influenciados pelo revolucionrio russo jamais fizeram referncia aos seus escritos e idias (Weffort e Cardoso, por exemplo). Quanto a tal omisso, pode-se supor que esta se deveu a injunes poltico-intelectuais da poca: nas dcadas de 1960 e 1970, apesar do forte desgaste da autoridade poltica da Unio Sovitica junto a uma expressiva gama de intelectuais de esquerda no Brasil e no mundo ocasionado, principalmente, pelo relatrio Kruschev (1956) e pelas invases da Hungria (idem) e Tchecoslovquia (1968) , talvez uma meno ao nome do dissidente bolchevique pudesse ser ainda vista como um ato sacrlego nos crculos intelectuais de esquerda, sobre os quais o estalinismo pecebista ainda exercia uma significativa influncia, mesmo que difusa. Atualmente, persiste o silncio sobre Trotsky na academia. Porm, nos consideramos dispensados de gastar muita tinta para explicar suas causas. A forte reao intelectual que alcanou seu fastgio (assim esperamos) nas dcadas de 1990/2000 obteve um relativo xito no seu intento de diminuir o espao na universidade para qualquer tipo de corrente terica embasada substantivamente na perspectiva epistemolgica de Marx. Assim sendo, no seria justamente o nome de Trotsky visto (corretamente, alis) como representante de uma das
1306 Angela de Castro Gomes, por exemplo, afirmou serem os trabalhos de Weffort sobre o populismo orientados por uma perspectiva terica de sabor gramsciano (GOMES, Angela de Castro. O populismo e as cincias sociais.... Op. cit., p. 33). Como j vimos, a historiadora foi uma das poucas autoras a apontar os vnculos entre a teoria do populismo e o segundo suas palavras conceito gramsciano de Estado bonapartista (Idem, p. 41). 473
alas mais esquerda do pensamento marxista do movimento operrio que viria a ser poupado pelo vendaval reacionrio. At mesmo nos ncleos universitrios de linha marxista, verdadeiros focos de resistncia s modas ps-modernas trazidas por este vendaval, Lon Trotsky ocupa, quando muito, uma posio secundria no quadro das referncias tericas do pensamento contra-hegemnico. Muitos dos intelectuais marxistas que, nas dcadas de 1980 e 1990, romperam qualquer ligao poltica e cientfica com a ortodoxia moscovita passaram, ento, a abraar tericos altamente sofisticados como Gramsci e Lukcs; porm, evitaram uma aproximao maior com aquele que foi inquestionavelmente o maior adversrio de Stlin e da vulgarizao do marxismo por este orquestrada desde meados da dcada de 1920. No entanto, conveniente esclarecermos que, ao demonstrar como Trotsky se constituiu em uma importante fonte terica para produes bibliogrficas que em muito contriburam para a formao intelectual de algumas geraes universitrias brasileiras do campo das cincias sociais (em especial a partir da dcada de 1980), no visamos, de nenhuma maneira, trabalhar no sentido de sua incorporao ao panteo dos autores acadmicos. Supomos que tal tarefa seria, muito provavelmente, no s fracassada, como tambm inteiramente v caso viesse a ser efetivada. Para que um dia venha a ter seu nome aceito nas bibliografias de curso, Trotsky provavelmente teria que passar pelos mesmos processos de domesticao que sofreram importantes autores marxistas, com destaque para Antonio Gramsci, por meio dos quais foram praticamente despidos de todo o seu contedo revolucionrio. Entretanto, repetimos, tal perspectiva muito remota. Pela sua trajetria de vida, em particular como dirigente da violenta Revoluo de Outubro, pela sua recusa categrica de aliana dos trabalhadores com qualquer setor da burguesia, pela sua defesa intransigente da ditadura do proletariado, pela unidade indissolvel entre sua teoria e prtica revolucionria, Trotsky deixou um legado que dificilmente est sujeito a domesticaes. Desse modo, certamente Trotsky continuar a ser, tal como nos tempos em que o estalinismo hegemonizava o pensamento universitrio de esquerda, uma persona non grata na academia. Concluindo aquele longo terceiro captulo, adentramos o atual movimento de reviso historiogrfica do populismo, levando a cabo um rpido debate com as duas principais correntes que o constituem, e que, a nosso ver, se localizam em dois campos terico-polticos significativamente distintos. Assim, se nossas diferenas com os thompsonianos campineiros em relao ao papel desempenhado pelos trabalhadores e suas direes sob o populismo podem ser compreendidas, de certo modo, como derivaes historiogrficas de divergncias mais gerais internas ao campo marxista, o mesmo no pode ser dito quanto s polmicas que travamos com os revisionistas fluminenses. Estes ltimos, conforme afirmamos, propuseram, em ltima anlise, uma interpretao populista do populismo, na qual o marxismo (em 474
qualquer uma de suas mais variadas e autnticas vertentes) passou longe, ou melhor, foi insidiosamente combatido. Nossa interpretao do perodo 1930-1964 se encontra, portanto, oposta pelo vrtice apresentada pelos historiadores revisionistas. Entretanto, ironicamente, talvez nosso trabalho possa ter l alguma contribuio para o prprio revisionismo historiogrfico do populismo. No necessrio envidar muitos esforos para se perceber que o incmodo dos revisionistas com os textos de Ianni e Weffort provm da verificao de que tais trabalhos encerram a idia de que o varguismo, assim como suas variantes de esquerda e de direita, longe de atender verdadeiramente aos interesses da classe trabalhadora brasileira, buscava nesta uma necessria base de sustentao do regime capitalista do pas, numa etapa histrica na qual j no se podia mant-lo de p fazendo uso somente da coero sobre os explorados. Em outras palavras, o que incomoda os revisionistas , essencialmente, a denncia do populismo enquanto uma forma poltica de dominao de classe, ou seja, o que os incomoda , nada mais nada menos, o marxismo ou, mais especificamente, o marxismo-leninismo, como disse um dos eminentes revisionistas. 1307
Curiosamente, ao explicitarmos como os tericos marxistas do bonapartismo, e em especial o prprio Trotsky (provavelmente tomado pelos revisionistas como mais um radical e sectrio personagem da experincia autoritria bolchevista), exerceram uma fundamental influncia sobre os tericos do populismo brasileiro, possivelmente estaremos oferecendo aos atuais crticos do conceito mais um subsdio para sua apologia da Era Vargas: que faam uso dele da forma que acharem mais conveniente; quanto a isso, nada podemos fazer a no ser intervir novamente num eventual debate ulterior.
Por fim, em nosso quarto captulo, aproveitando-nos das inegveis contribuies oferecidas pela teoria do populismo, alinhavamos uma tentativa de interpretao do processo poltico que denominamos como o longo bonapartismo brasileiro, situado entre 1930-1964. Este ltimo captulo trouxe, em resumo, uma amostra de como a teoria do bonapartismo pode, efetivamente, funcionar como um profcuo instrumental de anlise das formas de dominao poltica que tiveram lugar entre o golpe da Aliana Liberal, que fez esboroar a j corroda Repblica oligrquica, e aquele que, quase trinta e cinco anos depois, apeou do poder Joo Goulart, pondo termo ao populismo. Naquelas poucas pginas ensasticas, nosso objetivo principal foi o de propor a idia de que, pelas condies histricas nas quais se processou, a modernizao industrial capitalista no Brasil se fez, politicamente, por meio de um longo regime de natureza bonapartista, cuja durao encerrou diversos momentos e fases determinados pela dinmica
1307 REIS FILHO, Daniel Aaro. O colapso do colapso do populismo ou a propsito de uma herana maldita. Op. cit., p. 353. 475
varivel da luta de classes. Evidentemente, a noo que apresentamos de uma via bonapartista da modernizao capitalista do Brasil, tal como as consideraes a ela relativas que fizemos, carecem de desenvolvimento analtico, o que s poder resultar do avano das pesquisas empricas sobre contextos polticos especficos do populismo. Portanto, muitas das questes que lanamos referentes ao longo bonapartismo brasileiro encontram-se longe de estarem lapidadas historiograficamente, e esperamos que, num futuro breve, possam constituir eixos de um novo projeto de pesquisa. Por ora, podemos dizer que o reconhecimento da vigncia de formas de dominao bonapartistas (portanto, no-hegemnicas) entre 1930-1964 pode ajudar a elucidar algumas questes do perodo, como as que, h um bom tempo, vm sendo apontadas por cientistas sociais dos mais diversos matizes: a ingente fora do aparelho burocrtico-estatal em face de uma sociedade civil com sensveis debilidades organizativas; a hipertrofia do Poder Executivo e a subsuno a ele dos demais poderes estatais; o destacado papel desempenhado pelas Foras Armadas na vida poltica nacional; a ausncia de partidos polticos ideologicamente bem delimitados; uma forte tendncia ao compromisso, ao nvel do Estado, entre os grupos sociais dominantes quando de qualquer ameaa poltica dos setores subalternos etc. Mais hipoteticamente do que como uma tese propriamente dita, consta tambm no ltimo captulo, em seus pargrafos finais, a idia de que, com o fim do populismo, o bonapartismo teria continuado a vigorar no pas, agora em uma modalidade tecnoburocrtica de tipo semifascista. Utilizada, como vimos (captulo III), por alguns cientistas sociais nos anos 60 e 70, a caracterizao da ditadura militar brasileira como um regime de cunho bonapartista, alm de presente nas formulaes de algumas organizaes trotskistas atuais, comea a reaparecer tambm, como j indicamos, em sugestivas pesquisas historiogrficas sobre esse recente e cruento perodo da histria nacional 1308 diante do qual, alis, muitos setores da esquerda governamental, em consonncia com seus aliados de direita, vm optando por um timorato silncio. Inclinados a esposar essa caracterizao bonapartista da ditadura militar, somos logicamente levados a estender ainda mais a durao do bonapartismo brasileiro em nossa anlise histrica. Nesse caso, sucessivas formas bonapartistas de dominao poltica teriam aqui existido at pelo menos 1985, com o fim dos governos militares, ou mesmo at 1988/1989, com a promulgao de uma nova Constituio (liberal) e a realizao de eleies diretas para a Presidncia da Repblica. Precises temporais parte, o certo que, ao longo da dcada de 1990, assistimos, enfim, construo de uma forma de dominao de tipo hegemnica no pas. Tendo
1308 Citamos, novamente: LEMOS, Renato. Contra-revoluo e ditadura no Brasil. Elementos para uma periodizao do processo poltico brasileiro ps-1964. Op. cit. 476
minguado as lutas sindicais e populares que permearam intensamente os anos 80, e passada a aventura do governo de Collor de Mello (1990-1992) histrinica figura cuja queda, possivelmente, tenha sido motivada, entre outros fatores, pela sua tentativa de obter para si e sua camarilha de arrivistas polticos uma autonomia relativa face s fraes de classe que ento se encontravam nos derradeiros momentos da disputa pela hegemonia poltica nacional , 1309 a construo e institucionalizao de um regime democrtico-liberal pde, ao longo dos dois governos do uspiano Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), se desenvolver com mais intensidade e segurana. Por conta de uma daquelas ironias que, como bem observou Deutscher, 1310 a histria por vezes apresenta, a consolidao dessa nova forma de dominao poltica sobre os explorados parece ter recebido seus ltimos retoques pelos dois governos nacionais subsequentes (2003-2010), capitaneados justamente por um partido surgido das lutas operrias, mas que, dialeticamente (ou traioeiramente, como podem preferir alguns), converteu-se no mais competente gestor dos interesses da frao hegemnica do capital, a frao financeira. De todo modo, finalmente, a democracia suplantou o bonapartismo. um vezo de alguns historiadores querer necessariamente encontrar no tempo presente a permanncia de seus objetos de estudo do passado. No o nosso caso aqui. Embora o bonapartismo venha tendo lugar em alguns pases latino-americanos nos quais se manifestam experincias neopopulistas de esquerda, no Brasil, ele, decerto, ficou para trs. A forma de dominao poltica do capital sobre o trabalho que hoje vigora no pas a democracia, e ela to democrtica quanto o pode ser em um pas perifrico de um sistema capitalista assolado por uma aguda crise estrutural. preciso dar o nome correto s coisas, sob o risco de sermos cmplices de nossa prpria iluso. Convm, entretanto, sublinharmos o fato de que essa atual democracia brasileira filha direta de um longo bonapartismo, e que, por isso, ela possivelmente carregue alguns de seus traos. Talvez isto ajude a melhor compreend-la e, consequentemente, ter mais chances de solap-la, na renitente busca pela construo de uma nova forma de sociabilidade humana, como a que um dia desejaram muitos dos personagens que figuraram neste trabalho.
***
A pesquisa que empreendemos nos permitiu um conhecimento mais apurado sobre as organizaes polticas da esquerda brasileira que se posicionaram esquerda do PCB no
1309 poca do governo Collor, um artigo escrito por Jos Lus Fiori abriu uma polmica entre alguns intelectuais sobre o possvel carter bonapartista do governo (FIORI, Jos Lus. Nem todos os gatos j ficaram pardos. http://revistas.fee.tche.br/index.php/indicadores/article/viewFile/298/514). 1310 DEUTSCHER, Isaac. Ironias da histria. Ensaios sobre o comunismo contemporneo. Op. cit. 477
perodo 1930-1964. Mais particularmente, nos debruamos sobre as trajetrias dos pequenos agrupamentos de extrao trotskista. Compostos por homens e mulheres ento politicamente abnegados, em boa parte de perfil intelectual, e dotados, alguns, de rara capacidade de elaborao, esses agrupamentos jamais conseguiram sair do que costuma se chamar de marginalidade poltica. Por um lado, perseguidos pela polcia poltica do Estado brasileiro e, por outro, sofrendo com as calnias e boicotes advindos dos comunistas oficiais, os trotskistas brasileiros no fugiram regra do isolamento poltico em relao s massas que caracterizou a existncia da maior parte dos partidos que mundialmente se ligaram ao internacionalismo revolucionrio defendido por Trotsky. Desde os anos 30 do sculo passado, quando seus companheiros de causa eram torturados e fuzilados aos milhares na Unio Sovitica, caados s centenas na Europa pelas polcias dos fascismos, das democracias e pelos agentes secretos de Stlin, os trotskistas brasileiros no se furtaram ao mais duro combate contra a opresso vivida pela jovem classe trabalhadora brasileira. Ao longo do perodo 1930-1964, suas tarefas no foram nada fceis: combater o imperialismo, os latifundirios, os industriais, o varguismo, o corporativismo, o fascismo, o liberalismo, o trabalhismo e o estalinismo, na tenaz busca pela construo de um partido capaz de dirigir uma revoluo socialista no Brasil. Propugnando a unidade poltica da classe trabalhadora e rejeitando alianas com supostos setores democrticos da burguesia brasileira, os pequenos partidos trotskistas enfrentaram, sem concesses, as vrias modalidades de regime bonapartista que, mais ou menos repressivamente, mais ou menos social-democraticamente, procuraram incorporar controladamente o proletariado vida institucional em meio ao retardatrio processo de modernizao capitalista do pas. As trajetrias desses partidos, bom frisar, no foram isentas de equvocos polticos, alguns deles grosseiros. Mas estes no foram, em sua maioria, grandes erros estratgicos ou de princpio. Poucos tambm no foram seus traos sectrios e antidemocrticos (do ponto de vista do funcionamento interno), gerados, talvez, por aquilo que Victor Serge designou, certa feita, de contgio pelo combate, isto , uma espcie de fenmeno poltico pelo qual at mesmo os mais valorosos grupos polticos se deixariam contaminar pelos elementos hostis do meio social em que vivem, assim como pelos aspectos mais negativos dos adversrios contra os quais se batem. 1311 De todo modo, organizaes como a LCI, o PSR, o POR e a POLOP foram, todas elas, politicamente derrotadas. No alcanaram aquilo que pretendiam, e nem estiveram sequer perto disso. Deixaram, no entanto, um importante legado no s de lutas operrias, mas tambm de sofisticadas interpretaes sobre o processo histrico e scio-poltico brasileiro, as quais,
1311 SERGE, Victor. Memrias de um revolucionrio (1901-1941). So Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 396. 478
conforme esperamos ter demonstrado, seriam reeditadas mais tarde por conhecidos acadmicos marxistas. Foram essas sofisticadas interpretaes coletivas, produzidas por intelectuais militantes do movimento operrio brasileiro (Mrio Pedrosa, Lvio Xavier, Patrcia Galvo, Hermnio Sacchetta etc.) que trouxemos tona neste trabalho. Imaginamos que o resgate dessa importante contribuio da tradio trotskista brasileira ao pensamento social do pas possa ser, de alguma forma, um tributo memria daqueles homens e mulheres que, em meio a um duro combate com adversrios de todo o tipo, defenderam as idias mais adequadas aos interesses histricos dos explorados, ainda que estes, por uma srie de fatores, no lhes tenham dado muito ouvidos. 479
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