Um Candomble Na Belgica
Um Candomble Na Belgica
Um Candomble Na Belgica
Arnaud Halloy
Aspirante ao FNRS e doutorando em antropologia na Section des Sciences
Sociales de lUniversit Libre de Bruxelles
Esta advertncia podia ser lida num letreiro fixado no muro da entrada
do barraco (salo) onde eram celebradas as festas pblicas de um can-
tradio crist. Ele ganhava assim dez dias sobre a data prevista e seria
liberado de suas interdies rituais antes desse dia13. Essa acomodao
s circunstncias, assim como ao contexto singular no qual se inscreve o
culto, um exemplo entre outros, sublinhando a dificuldade de se levar
adiante as limitaes dos ritos e a clandestinidade das prticas religiosas entre os vrios participantes. Assim, seguindo essa mesma tica,
importante ressaltar que a condio sine qua non para a permisso de
minha pesquisa de campo foi guardar o anonimato e respeitar a proibio de fotografar os participantes. Desse modo, algumas dessas reflexes me levaram a questionar a atitude adotada pelo chefe de culto em
face de numerosas dificuldades.
em ordem quando isto era necessrio. Um ditado conhecido no candombl, que diz que o pai-de-santo faz o papel de corno (aquele que
o ltimo a saber), traduz bem essa situao e sublinha implicitamente
a necessidade de confiana entre os membros de uma mesma comunidade, sob pena de se ver os laos comunitrios se desfazerem e deixarem
assim brechas para a instalao de conflitos. A teria de fato desejado que
P, seu brao direito, se responsabilizasse pela resoluo das eventuais
tenses e dos conflitos internos no terreiro, como era o caso no terreirome, onde esta tarefa era realizada pela me-pequena e no pela mede-santo. A personalidade de P era pouco apropriada para esse tipo de
tarefa, e assim o chefe de culto devia cortar e apaziguar esse gnero de
situaes problemticas que, por vrias vezes, representaram uma verdadeira ameaa para o futuro do culto. Certos conflitos srios mas sempre incubados pesavam notadamente sobre as performances danadas, nas quais a categoria de acusao de falso transe era freqente.
Esse teatro, segundo os acusadores, era absolutamente nefasto para o
terreiro porque, ritualmente falando, no s no fazia qualquer sentido querer imitar o orix14 como retirava todo o crdito diante dos visitantes que assistiam s cerimnias e poderiam t-lo percebido. Desse
modo, aps um conflito entre dois filhos-de-santo que se acusavam de
acordo com essa lgica, um deles pediu ento ao chefe de culto que
manifestasse o seu desejo e escolhesse qual dos dois deveria continuar
no seio da comunidade, pois a coexistncia de ambos tornou-se impossvel. Como o chefe de culto recusou-se a tomar tal deciso, e as divindades tambm no se pronunciaram claramente sobre a posio a se tomar, para o grande pesar de todos, a sada de um dos filhos-de-santo
muito apreciado no terreiro foi provocada.
Um segundo ponto importante concerne a posio do chefe de culto em face da ortodoxia religiosa ou, antes, da ortopraxia do culto,
para ser preciso e retomar a distino operada por John Scheid. Um
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interessante paradoxo pode ser levantado sobre esse tema. Quando perguntei ao pai-de-santo, que, convm frisar, um verdadeiro apaixonado
pela frica, se ele j havia pensado na possibilidade de abrir um culto
mais africano em vez de o candombl de caboclo, ele respondeu que s
um culto de caboclo poderia achar seu lugar na Blgica. Sua argumentao baseava-se no fato de que a margem de manobra, ou seja, a plasticidade ritual encontrada nesse culto mais importante, achando assim uma alternativa vivel que tornasse possvel a manuteno dessa
religio nesse pas. A rigidez e as exigncias rituais dos cultos mais prximos da herana africana teriam se tornado impensveis e, de imediato, consagrado ao fracasso tal empreendimento. Em compensao, ele
mesmo reconhecia que a falta de firmeza de sua parte era um dos erros
estratgicos centrais, tendo-o conduzido para uma situao de vida quase impossvel nos ltimos anos. De fato, conforme disse, se ele se mostrasse mais exigente perante os filhos-de-santo, notadamente fazendo
menos concesses ao que concerniam as disponibilidades de cada um e
os comportamentos rituais desapropriados, ele no teria tido tanto espao para os problemas tais como eles se apresentaram, porque uma seleo natural seria operada entre os participantes. Uma atitude mais
firme teria permitido certa triagem nestes ltimos a fim de poder, mesmo em comit mais restrito, isentar-se de certas funes, exigindo de
cada um empenho mais intenso. isso o que teriam desejado vrios
participantes do grupo de Carnires: A tendo procurado manter um clima de harmonia mesmo aparente no seio da comunidade, evitando
toda confrontao direta at o fechamento definitivo do terreiro.
Acredito que exista uma parcela de verdade nessa opinio, no sentido
de que certas situaes problemticas, como determinadas presses por
parte dos participantes do grupo de Bruxelas para introduzir elementos
exgenos ao candombl, pediam talvez uma tomada de posio mais
espontnea e radical da parte do chefe de culto. Toda a dificuldade para
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A residia, por um lado, em sua vontade de se aproximar o mximo possvel do ideal ritual tal qual ele herdara da sua me-de-santo, o que teria
exigido, ao mesmo tempo, mais firmeza em seus julgamentos e decises
perante certos filhos-de-santo e, por outro, no desejo de dar uma
chance a essas pessoas para as quais a participao no culto trazia uma
realizao, notadamente em termos de reconhecimento e de prestgio15.
Entretanto, visto o ambiente efetivo do culto, um posicionamento
mais radical era da ordem da utopia e arriscava conduzir ao fracasso o
empreendimento. Estou de fato persuadido, e penso que o chefe de culto o tinha igualmente pressentido, que era muito difcil exigir um investimento individual suplementar da parte dos participantes do culto.
necessrio conceber e aceitar que, no quadro particular do culto de Carnires, esse investimento se faz de incio por tateamento, porque se trata, em um primeiro momento, de se desfazer de seus a priori para poder
abrir-se progressivamente a uma lgica e a uma prtica religiosa diferentes. Em seguida, se tudo se passa bem, essa dimenso religiosa toma-se
mais e mais importante na vida e na intimidade de cada um e se aproxima ento progressivamente do que poderamos chamar o ideal brasileiro, sobre o qual, verdade, muitos desejos e esperanas pessoais eram
projetados por ocasio dos perodos difceis encontrados na Blgica.
Percebemos ento a ambigidade da situao em que, de uma parte, s um culto para os caboclos, com maior flexibilidade ritual, parece
tornar possvel a instalao de tal religio na Blgica, mas, de outra, s
uma maior firmeza por parte do chefe de culto teria permitido evitar
certas situaes problemticas que, afinal de contas, e mesmo se isto no
expresso abertamente, levaram-no em direo a seu fechamento. Nesse contexto, vimos que a manuteno, contra ventos e mars, de um
clima comunitrio baseado na harmonia, com seu cortejo de concesses, jogava cada vez mais em desfavor do pai-de-santo. Na verdade, essas concesses marcavam perda de controle deste ltimo sobre o
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candidatos potenciais entre os percussionistas brasileiros tinha dificuldade em acreditar que um culto de candombl srio, entendamos neste
caso legtimo, pudesse existir em terra belga, e, alm do mais, que ele
pudesse ser dirigido por um belga, branco, sobretudo. O distanciamento espacial do culto em relao a seu lugar de origem e a pertena racial do chefe de culto apareciam, de imediato, como um peso desfavorvel na busca de msicos que, desde o incio, se mostravam, a seu respeito,
extremamente desconfiados21. Se bem que, mais tarde, podemos afirmar que o tempo teve um papel positivo em face desse a priori. Vi desfilar, durante os dois anos em que freqentei o terreiro, todos os tipos
de pessoas dizendo-se msicos, mas que estavam longe do nvel musical
necessrio para um acompanhamento decente das cantigas. Sendo percussionista e tendo estudado de perto os toques do candombl, podia
fazer uma idia bastante precisa daquilo que era tocado durante as diferentes festas s quais assisti. Na verdade, entre os percussionistas contratados no quadro das cerimnias, raros eram aqueles que conheciam verdadeiramente os toques especficos do candombl de caboclo22. O chefe
de culto no mostrava nenhuma exigncia particular desse ponto de vista. Ele mesmo no era msico e s conhecia muito aproximadamente
os toques habitualmente tocados, contentando-se a maior parte do tempo com uma base rtmica capaz de sustentar o canto. Infelizmente, no
era por isso que os percussionistas cessavam de ser uma fonte de preocupaes e de dificuldades. O pai-de-santo era, com efeito, regularmente
confrontado com duas grandes categorias de problemas.
Uma delas que os tocadores de tambor no eram verdadeiramente
tocadores ou no tinham experincia suficiente que permitisse a eles
acompanhar de maneira vlida os diferentes cantos, criando-se espao
para grandes dificuldades em obter um desenvolvimento ritual sem
obstculo, no qual canto e ritmo s estavam em harmonia muito raramente. O que explica, em parte, esse gnero de situao, que bom
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minante das cerimnias pblicas. Ela o apogeu, ao mesmo tempo esttico e espiritual, de toda festa dedicada a uma divindade que, nesse
momento, aparece em todo seu esplendor. Ento, no possvel fazer
abstrao dos tambores que so concebidos como indispensveis para a
realizao de qualquer dana. Essa importncia igualmente concedida
percusso est no fato de que os participantes do culto viam no tambor
um mediador indispensvel a fim de se sentir levados pela msica e nela
achar assim um verdadeiro suporte. A cerimnia, na opinio deles, ficava desse modo mais bonita e mais entusiasmante. Vemos ento que a
forma ritual , em parte, modelada pelos desejos dos participantes do
culto estes aqui se inscreviam nas concepes do imaginrio ocidental
em relao quilo que deve ser um culto de possesso23.
um bom nmero, como o manjerico, o alecrim e a canela, era facilmente encontrado l, enquanto outras, como a jurema (Pithecolobium Tortum
Mart) arbusto cuja casca o componente central da bebida de mesmo
nome no candombl de caboclo , eram difceis de ser encontradas. Era
necessrio ento, na medida do possvel e dependendo da aceitao dos
orixs, ir em busca de substitutos para tais plantas. Para tanto, A decidiu
empreender pesquisas de equivalentes simblicos. Nas revistas de botnica, procurou conhecer as plantas utilizadas por nossos druidas da Antigidade, assim como nas antigas religies europias, tentando traar
paralelos entre as propriedades atribudas a certas plantas utilizadas pelas divindades destes pantees antigos e aquelas atribudas s divindades
do candombl. Uma vez levantadas essas relaes, consultava as divindades concernentes, seja por meio do jogo de bzios, seja por viva voz
no momento da incorporao, a fim de que elas pudessem confirmar
ou negar os laos estabelecidos ou ainda aconselhar sobre a utilizao de
uma ou outra planta.
De acordo com o chefe de culto, a exigncia ou a tolerncia das divindades dependiam muito do uso que iria ser feito das plantas. Assim,
se se tratava daquelas destinadas a perfumar um prato ou a decorar um
altar, a margem de manobra era mais larga e o nvel de tolerncia mais
elevado. Ao contrrio, se se tratava de plantas para a confeco dos assentamentos, a escolha era de imediato muito mais restrita porque as
divindades se mostravam muito mais exigentes, limitando-se freqentemente s plantas originais, uma vez que a potncia simblica delas
no tinha o equivalente em outras plantas que nasciam na Blgica. Ento era necessrio nessas ocasies dar um jeito para encontrar as plantas
adequadas, seja aproveitando-se da viagem de conhecidos ao Brasil ou
seja viajando para este pas. Tambm, na Blgica, eram atribudos novos
usos para determinadas plantas propostas s divindades concernentes.
Era desse modo que a utilizao de certas plantas para a cabea (ori)
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podia, igualmente, servir para o banho de purificao, os rituais de limpeza, dentre outros.
No que diz respeito aos ingredientes que encontramos nos diversos
pratos do candombl, a maior parte sendo de origem africana, o problema
era, em grande parte, resolvido ao se recorrer aos armazns especializados
em comidas exticas situados nas grandes cidades, tais como Bruxelas ou
Paris. Podemos, de fato, achar nesses lugares a maioria dos alimentos necessrios para a preparao dos pratos destinados s divindades.
Notemos que no sempre a qualidade do produto que far com
que a divindade o aceite ou no. O caso da jurema, que a bebida de
predileo dos caboclos, demonstra-nos isto muito bem. Essa bebida de
importncia ritual capital preparada, em nosso caso24, base de mel,
cravos, canela, rapadura, vinho popular brasileiro chamado Sangue de
Boi, menga25 e, claro, pedaos de cascas de jurema. Estes trs ltimos
termos nos ensinam muitas coisas com relao aos critrios sobre os quais
se baseia o julgamento das divindades com relao utilizao de alimentos especficos como fator de diferenciao no seio do panteo afrobrasileiro. Em primeiro lugar, necessrio saber que o vinho em questo, o Sangue de Boi, uma bebida brasileira muito barata e de qualidade
discutvel. Entretanto, esse vinho usado na preparao da jurema muito apreciado pelos caboclos. Porm, mesmo custando pouco no Brasil,
a importao para a Blgica seria uma pequena fortuna em transporte e
taxa de alfndega. Ento, o chefe de culto procurou um substituto, visto a proximidade com numerosos pases produtores de vinhos, propondo alguns de uma qualidade claramente superior quela do Sangue de
Boi para a preparao da jurema. Mas o caboclo do pai-de-santo mostrava-se sempre insatisfeito com o resultado obtido. Finalmente, sua
preferncia foi um vinho alemo de qualidade to medocre quanto a
do vinho brasileiro original. Mesmo assim, ele no deixou de exprimir
que o famoso Sangue de Boi continuava a fazer falta terrivelmente.
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belecido segundo fatores mais funcionais que simblicos, no qual somente certos elementos prprios da lgica do candombl, como a ordem das divindades, subsistem ainda. O calendrio assim muito mais
mvel. Em primeiro lugar, ele pensado pelo chefe de culto que consulta seu ncleo religioso, o grupo de Carnires. Esse compromisso inicial em seguida submetido divindade (jogo dos bzios). Assim, todo
ano, o calendrio readaptado em funo das disponibilidades de cada
um e dos perodos mais propcios; no qual vrias festas podem acontecer com apenas algumas semanas de intervalo e depois serem seguidas
por um vazio ritual de vrios meses.
No final dessa parte consagrada ao calendrio ritual, podemos perceber claramente a polissemia do termo adaptao, que pode nos levar a
vrias interpretaes. Ele pode recobrir realidades tais como a substituio, a transformao ou a inovao. Essas realidades so dependentes no somente do contexto no qual elas se inscrevem, mas igualmente
das escolhas ideolgicas operadas pelos depositrios do saber litrgico
e ritual.
de longe, o simples quadro do culto. E esse terreno, ainda pouco estudado na antropologia, desejo explorar, mesmo que de modo conciso, na
prxima parte.
prtica e no naquela de uma ortodoxia particularmente vaga e abundante em nosso caso. Tornava-se assim possvel considerar certas modalidades da transmisso de saberes religiosos que no teriam relao com
um modelo lingstico da transmisso e por conseqncia da aprendizagem e poderiam formar uma base coerente ao ritual. Entre essas, as
prticas corporais parecem no passar por redes de comunicao e de
aprendizagem ligadas linguagem explcita: elas implicariam o corpo
em sua capacidade emissora e receptora total, fazendo deste ltimo uma
das fundaes mais seguras para a manuteno do culto. Essa hiptese
ainda mais plausvel no culto estudado: a aprendizagem da dana das
entidades cada uma possui posturas e passos de dana especficos s
pode acontecer por meio da manifestao dela, quer dizer, no momento da possesso dos iniciados pelas divindades27. A habilidade corporal
assim projetada sobre um Outro que sabe que vai se substituir na personalidade do mdium por meio do transe.
fatos relacionados s estratgias de poder que estariam ligados legitimao de sua posio como chefe de culto. Atenho-me a mostrar, partindo da interpretao dos participantes do culto, de que maneira a
aprendizagem da dana das divindades faz igualmente parte de uma interpretao religiosa, e que esta aqui permite perceber, ao menos de algum modo, diferentes situaes observadas.
De acordo com os iniciados mais antigos, uma vez que algumas pessoas adquiram rapidamente a postura de um caboclo ou de um orix, a
interpretao religiosa mais freqente dizer que este caboclo ou orix
j trabalhou29. Isso significa que ele j se manifestou em outro lugar,
num outro cavalo, e que ento j tomou sua forma definitiva ou quase. Na mesma ordem de idias, o chefe de culto chamou minha ateno
para o fato de que, em certos casos, podemos herdar um desses orixs
de seu iniciador, o qual j teria atingido uma maturidade ou um grau de
desenvolvimento avanado. A fonte das competncias corporais assim
deslocada para a entidade que, tambm, tem necessidade de passar por
um processo de aprendizagem para aparecer de uma forma adequada.
Uma outra idia, juntando-se quela do pai-de-santo, foi-me sugerida
por I, filha-de-santo brasileira, que via no desenvolvimento excepcionalmente rpido de A o fato de que ele teria ligao com um orix j
adolescente, enquanto os orixs da maior parte dos filhos-de-santo so
ainda bebs, precisando ainda muito evoluir antes de poder se exprimir correta e plenamente. I empregava igualmente a metfora do diamante, que ela comparava ao orix que o pai-de-santo, um ourives qualificado, deveria lapidar ao longo do tempo de maneira que ele aparecesse
em sua mais bela forma. O trabalho de longa durao aparece ento
claramente no discurso dos participantes, juntando-se assim idia de
uma aprendizagem contnua, conforme destacada por Sperber (1982)
no que concerne ao simbolismo.
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orix ou o caboclo, de outro, fazer com que a pessoa se sinta bem aps
a manifestao.
Prosseguindo nossa investigao das relaes entre o iniciado e sua
ou suas divindades, sugiro seguir uma pista proposta por Vronique
Boyer (1993). Uma concluso a qual ela chega e me parece rica em
perspectivas para a nossa reflexo. Conforme a autora, essa relao entre
o mdium (ou iniciado) e a entidade seria construda sob o selo da complementariedade. Mas o equilbrio, ela parece o fazer pender mais em
favor do filho-de-santo, que dever desenvolver uma competncia particular, de modo que a possesso do mdium pelo esprito torne-se possesso do esprito pelo filho-de-santo:
A conquista do filho-de-santo depende efetivamente de sua capacidade em
representar o esprito no permitindo inteiramente ao pblico esquecer que
ele o realizador da performance: mesmo quando ele encarna o caboclo,
sua identidade pessoal no totalmente apagada; o possudo ao mesmo
tempo o mdium e o esprito. (1993, p. 134).
Notas
1 A fachada oficial do culto era uma Associao Sem Fins Lucrativos (ASFL), cujo
objetivo principal era a difuso da cultura afro-brasileira. O sentido amplo dado
ao objetivo podia assim englobar toda uma srie de atividades paralelas sem, portanto, pr em evidncia o aspecto religioso que, aos olhos das autoridades belgas,
poderia chamar ateno e levar a investigaes policiais, o que o chefe de culto no
desejava. De fato, h de se sublinhar que, durante o perodo de minha pesquisa
(1998-2000), o governo belga iniciava uma campanha de informao sobre as
seitas perigosas, o que podia levantar suspeitas com relao ao candombl ainda
muito pouco conhecido na Blgica.
2 Denominao indicando ao mesmo tempo o lugar de culto e a comunidade que
est ligada a ele.
3 O emprego das aspas procura atenuar esse termo, que no tem verdadeiramente
sentido no candombl de Carnires, onde a iniciao, tal qual encontrada nos
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15 A predisposio medinica pode conceder a certas pessoas um prestgio e um reconhecimento que elas talvez no encontrem em outros lugares. Ver sobre esse tema
Augras (1992).
16 O emprego do binome consciente/inconsciente causa problema para descrever
esses estados de interpretao que deixam lugar para todo um continuum entre
conscincia e inconscincia total, e isto mesmo no discurso dos participantes. Dizendo fora da conscincia do cavalo, eu insisto no fato de que a conscincia total
considerada, no culto em questo, como um estado mental desapropriado para
receber a entidade e freqentemente taxada de simulao ou de sem autenticidade, enquanto que a inconscincia total uma condio ideal marcando a plena presena da entidade.
17 A metfora do cavalo, para designar o mdium que recebe a divindade atravs
de seu corpo, empregada tanto pelos participantes como pelos antroplogos que
tratam do assunto.
18 Essa regra constitutiva dos rituais de nao ketu e angola, assim como em alguns
cultos que se inspiram nela, no est em vigor nos cultos afro-brasileiros do Recife,
designados pelos antroplogos como xangs e que se autodesignam como nags
por oposio s naes ketu, jeje e angola da Bahia.
19 Para uma reflexo mais aprofundada sobre a relao entre a msica e a dana, ver
Oliveira Pinto (1992).
20 exceo de G, que traduziu vrias cantigas em kimbundo. Ao contrrio, o sentido da maior parte dos cantos em portugus escapa-lhe inteiramente.
21 Remeto o leitor tripla no-legitimao concernente ao chefe de culto apresentada na primeira parte do artigo.
22 Trata-se, seja de variantes, seja das cpias mais ou menos conformes aos ritmos
chamados angola, congo (e congo de ouro), cabila e barravento dos candombls
angola-congo e, bem entendido, ao incontornvel ijex de origem ioruba que
se tornou um dos ritmos mais populares do Brasil. Juntemos, a esses ritmos, o
samba de roda ou samba de angola, utilizado nos momentos mais festivos das cerimnias de candombl, mas tambm em outras manifestaes populares (carnaval, rodas de capoeira etc.).
23 Neste trabalho, refiro-me a uma viso estereotipada dos cultos de possesso, como
foi veiculada por algumas sries americanas dos anos 80 ou, ainda, por algumas
revistas do turismo tnico em moda, nas quais o tumulto engendrado pelos tambores parece ser uma das caractersticas principais dessas cerimnias.
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24 O chefe de culto chamou minha ateno sobre o fato de que existem trs tipos de
jurema: (1) a utilizada no catimb, essencialmente base de lcool e jurema; (2) a
da linhagem do terreiro-me de Carnires (Alagoinhas), que misturada ao sangue do sacrifcio, no qual o vinho substitui o lcool; (3) a que contm frutos e se
aproxima mais de uma sangria.
25 A menga designa o sangue na linguagem dos caboclos. O sangue utilizado na
jurema provm dos animais sacrificados na ocasio da festa para os caboclos, durante a qual ela ser consumida.
26 Os termos inquice, orix e vodu so genricos, designando as divindades respectivas dos pantees angola-congo, ioruba e jeje. No quadro do candombl de
Carnires, ainda que os termos orix e inquice remetam, cada um, a uma origem
mitolgica prpria s entidades espirituais que eles designam, seu emprego no
marca nenhuma diferena ontolgica no plano emprico. O termo vodu, ao contrrio, nunca utilizado.
27 Vimos que no se trata de uma regra absoluta, mas, sobretudo, de um ideal ritual.
28 Baseio-me aqui nas conversas recolhidas junto ao chefe de culto, e que me foram
confirmadas pelo pai-pequeno e pelos filhos-de-santo mais antigos do terreiro.
29 De acordo com Capone, na tradio nag, o orix no pode j ter trabalhado,
uma vez que se supe que a entidade individual nasa ao mesmo tempo que o
iniciado (ia) no processo de iniciao e, como seu cavalo, deve passar por um
processo de aprendizagem ritual. Estamos aqui diante de uma interpretao mais
prxima da concepo umbandista das entidades espirituais.
30 Nos cultos mais prximos da herana africana, s as mulheres so habilitadas a
exercer essa carga ritual. Em Carnires, particularmente devido ao pequeno nmero de participantes do culto, todo filho-de-santo podia cumprir esse papel.
31 crucial manter a idia de que essa tentativa de definir a ao ritual em sistema
relacional no elimina em nada as estratgias sociais nas quais ela pode se tornar
veculo ou instrumento, mas que somente podero se colocar na sua seqncia e
no anteriormente sua organizao (Houseman e Severi, 1995, p. 207).
32 Obtive essas informaes em uma entrevista com Stefania Capone.
33 Para o leitor interessado no papel das emoes na tomada de deciso, ver Damasio (1995).
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ABSTRACT: In this article, I propose to go through some difficulties encountered in a setting up attempt of a candombl (afro-brasilian cult) in
Belgium. My analysis will propose three main categories of problems: situations undermining the legitimation of the cults chief and the respect of some
ritual constraints; various adaptation attempts to human and material resources available; difficulties of learning some categories of knowledge that
are not based on a linguistic formulation. To focus in this study on problematic situations does not aim to drow a chaotic picture of a disrooted
cult but to account ethnographicaly for the dynamic and the multi-facial
and builded characteristics of religious experience.
KEY-WORDS: Brazil, Belgium, candombl, learning, ritual, adaptation.
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