Alisar Os Cabelos - Porquê?????
Alisar Os Cabelos - Porquê?????
Alisar Os Cabelos - Porquê?????
Bell hooks
Nas manhãs de sábado, nos reuníamos na cozinha para arrumar o cabelo, quer dizer,
para alisar os nossos cabelos. Os cheiros de óleo e cabelo queimado misturavam-se
com os aromas dos nossos corpos acabados de tomar banho e o perfume do peixe
frito.
Não íamos ao salão de beleza. Minha mãe arrumava os nossos cabelos. Seis filhas: não
havia a possibilidade de pagar cabeleireira. Naqueles dias, esse processo de alisar o
cabelo das mulheres negras com pente quente (inventado por Madame C. J. Waler)
não estava associado na minha mente ao esforço de parecermos brancas, de colocar
em prática os padrões de beleza estabelecidos pela supremacia branca. Estava
associado somente ao rito de iniciação de minha condição de mulher. Chegar a esse
ponto de poder alisar o cabelo era deixar de ser percebida como menina (a qual o
cabelo podia estar lindamente penteado e trançado) para ser quase uma mulher. Esse
momento de transição era o que eu e minhas irmãs ansiávamos.
Fazer chapinha era um ritual da cultura das mulheres negras, um ritual de intimidade.
Era um momento exclusivo no qual as mulheres (mesmo as que não se conheciam
bem) podiam se encontrar em casa ou no salão para conversar umas com as outras,
ou simplesmente para escutar a conversa. Era um mundo tão importante quanto a
barbearia dos homens, cheia de mistério e segredo.
Eu queria essa mudança mesmo sabendo que em toda a minha vida me disseram que
eu era “abençoada” porque tinha nascido com “cabelo bom” – um cabelo fino, quase
liso –, não suficientemente bom, mais ainda assim era bom. Um cabelo que não tinha
o “pé na senzala”, não tinha carapinha, essa parte na nuca onde o pente quente não
consegue alisar. Mas esse “cabelo bom” não significava nada para mim quando se
colocava como uma barreira ao meu ingresso nesse mundo secreto da mulher negra.
Para cada uma de nós, passar o pente quente é um ritual importante. Não é um
símbolo de nosso anseio em tornar-nos brancas. Não existem brancos no nosso mundo
íntimo. É um símbolo de nosso desejo de sermos mulheres.
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Sem ficar atrás dessa manobra para suprimir a consciência negra e os esforços
das pessoas negras por serem sujeitos que se autodefinem, as empresas brancas
começaram a reconhecer os negros, e de maneira especialíssima, às mulheres negras,
como consumidoras potenciais de produtos que poderiam ser subministrados, incluindo
aqueles para os cuidados com o cabelo. Permanentes especialmente concebidos para
as mulheres negras eliminaram a necessidade do pente quente e da chapinha. Esses
permanentes não só custavam mais caro, mas também levavam todas as economias e
ganâncias das comunidades negras, especificamente dos bolsos das mulheres negras
que anteriormente colhiam benefícios materiais (ver Como o Capitalismo Desenvolveu
a América Negra, de Manning Marable, South End Pree).
Aos olhos de muita gente branca e outras não negras, o black parece palha de
aço ou um casco. As respostas aos estilos de penteado naturais usados por mulheres
negras revelam comumente como o nosso cabelo é percebido na cultura branca: não
só como feio, como também atemorizante. Nós tendemos a interiorizar esse medo.O
grau em que nos sentimos cômodas com o nosso cabelo reflete os nossos sentimentos
gerais sobre o nosso corpo.
Uma grande maioria das mulheres negras escreveu sobre os seus cabelos. Quando eu
perguntei isoladamente a algumas delas porque continuavam alisando o cabelo, muitas
atestaram que os penteados naturais não ficavam bonitos nelas, ou que demandavam
muito trabalho. Emily, uma das minhas favoritas, de cabelo curto sempre alisava, e eu
lhe questionava e desafiava, até que ela me explicou de maneira muito convincente
que um penteado natural ficaria horrível no seu rosto, que ela não tinha a fronte nem a
estrutura óssea apropriada.
Lembro-me de ter visitado uma amiga com seu par, um homem negro, em Nova
York, faz anos, e tivemos uma intensa discussão sobre o cabelo. Ele se encarregou de
me dizer que eu poderia ser uma irmã excelente (bonita) se fizesse algo (“dar um
jeito”) com o meu cabelo. Por dentro pensei que a minha mãe o tinha contratado. O
que me lembro é do espanto quando com calma e entusiasmo garanti que eu gostava
do tato no cabelo não processado.
Quando os estudantes lêem sobre raça e beleza física, várias mulheres negras
descrevem fases da infância em que estavam atormentadas e obcecadas com a idéia
de ter cabelos lisos, já que estavam tão associados à idéia de essas serem desejadas e
amadas. Poucas mulheres receberam apoio de suas famílias, amigos(as) e
parceiros(as) amorosos(as) quando decidiam não alisar mais o cabelo. E temos várias
histórias para contar sobre os conselhos recebidos de todo o mundo, até mesmo de
pessoas completamente estanhas, que se sentem gabaritadas para atestar que
parecemos mais bonitas se “arrumamos” (alisamos) o cabelo.
Recentemente conversei com uma de minhas irmãs mais novas sobre o seu
cabelo. Ela usa tintura de cores berrantes em diversos tons de vermelho. No que lhe
diz respeito, essas escolhas de cabelo pintado e alisado estavam diretamente
relacionadas com sentimentos de baixa auto-estima. Ela não gosta dos seus traços e
acredita que o estilo de cabelo transforma a sua fisionomia. O que eu percebia era que
a escolha dela na realidade chamava mais atenção para a sua fisionomia e era tudo o
que ela pretendia ocultar.
Quando ela comentou que com essa aparência ela recebia mais atenção e
elogios, sugeri que a reação positiva podia ser resposta direta da sua própria projeção
de um alto nível de auto-satisfação. As pessoas podem estar respondendo a isso e não
à tentativa de ocultar ou mascarar o seu fenótipo. Conversamos sobre as mensagens
que estava mandando para as suas filhas de pele escura: que elas certamente seriam
aceitas se alisassem os seus cabelos!
por isso toma menos tempo. Quando respondi a esse argumento em uma discussão
em Spelman College, sugeri que talvez o fato de gastar tempo com nós mesmas
cuidando de nossos corpos é também um reflexo de uma sensação de que não é
importante ou de que nós não merecemos tal cuidado. Nesse grupo e em outros, as
mulheres negras falavam de ter sido criadas em famílias que ridicularizavam ou
consideravam desperdício gastar muito tempo com a aparência.
Como nas lutas organizadas que aconteceram nos anos 1960 e princípios da
década de 1970, as mulheres negras, como indivíduos, devemos lutar sozinhas por
adquirir a consciência crítica que nos capacite para examinar as questões de raça e
beleza e pautar nossas escolhas pessoais de um ponto de vista político.
Fazer esse gesto como uma expressão de liberdade e opção individual me faria
cúmplice de uma política de dominação que nos fere. É fácil renunciar a essa liberdade.
É mais importante que as mulheres façam resistência ao racismo e ao sexismo que se
dissemina pelos meios de comunicação, e tratarem para que todo aspecto da nossa
auto-representação seja uma feroz resistência, uma celebração radical de nossa
condição e nosso respeito por nós mesmas.
Mesmo não tendo usado o cabelo alisado por muito tempo, isso não significa
que eu era capaz de desfrutar ou realmente apreciar meu cabelo em estado natural.
Durante anos, ainda considerava isso um problema. Ele não era natural o suficiente,
crespo o necessário para fazer um black interessante e decente, o cabelo era muito
fino. Essas queixas expressavam a minha continua insatisfação. A verdadeira liberação
do meu cabelo veio quando parei de tentar controlar em qualquer estado e o aceitei
como era.