Alisar Os Cabelos - Porquê?????

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Alisando o nosso cabelo

Bell hooks

Apesar das diversas mudanças na política racial, as mulheres negras continuam


obcecadas com os seus cabelos, e o alisamento ainda é considerado um assunto sério.
Insistem em se aproveitar da insegurança que nós mulheres negras sentimos com
respeito a nosso valor na sociedade de supremacia branca!

Nas manhãs de sábado, nos reuníamos na cozinha para arrumar o cabelo, quer dizer,
para alisar os nossos cabelos. Os cheiros de óleo e cabelo queimado misturavam-se
com os aromas dos nossos corpos acabados de tomar banho e o perfume do peixe
frito.

Não íamos ao salão de beleza. Minha mãe arrumava os nossos cabelos. Seis filhas: não
havia a possibilidade de pagar cabeleireira. Naqueles dias, esse processo de alisar o
cabelo das mulheres negras com pente quente (inventado por Madame C. J. Waler)
não estava associado na minha mente ao esforço de parecermos brancas, de colocar
em prática os padrões de beleza estabelecidos pela supremacia branca. Estava
associado somente ao rito de iniciação de minha condição de mulher. Chegar a esse
ponto de poder alisar o cabelo era deixar de ser percebida como menina (a qual o
cabelo podia estar lindamente penteado e trançado) para ser quase uma mulher. Esse
momento de transição era o que eu e minhas irmãs ansiávamos.

Fazer chapinha era um ritual da cultura das mulheres negras, um ritual de intimidade.
Era um momento exclusivo no qual as mulheres (mesmo as que não se conheciam
bem) podiam se encontrar em casa ou no salão para conversar umas com as outras,
ou simplesmente para escutar a conversa. Era um mundo tão importante quanto a
barbearia dos homens, cheia de mistério e segredo.

Tínhamos um mundo no qual as imagens construídas como barreiras entre a nossa


identidade e o mundo eram abandonadas momentaneamente, antes de serem
reestabelecidas. Vivíamos um instante de criatividade, de mudança.

Eu queria essa mudança mesmo sabendo que em toda a minha vida me disseram que
eu era “abençoada” porque tinha nascido com “cabelo bom” – um cabelo fino, quase
liso –, não suficientemente bom, mais ainda assim era bom. Um cabelo que não tinha
o “pé na senzala”, não tinha carapinha, essa parte na nuca onde o pente quente não
consegue alisar. Mas esse “cabelo bom” não significava nada para mim quando se
colocava como uma barreira ao meu ingresso nesse mundo secreto da mulher negra.

Eu regozijei de alegria quando a minha mãe finalmente decretou que eu poderia me


somar ao ritual de sábado, não mais como observadora, mas esperando pacientemente
a minha vez. Sobre este ritual escrevi o seguinte:

Para cada uma de nós, passar o pente quente é um ritual importante. Não é um
símbolo de nosso anseio em tornar-nos brancas. Não existem brancos no nosso mundo
íntimo. É um símbolo de nosso desejo de sermos mulheres.
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É um gesto que mostra que estamos nos aproximando da condição de mulher


[...] Antes que se alcance a idade apropriada, usaremos tranças; tranças que são
símbolo de nossa inocência, juventude, nossa meninice. Então, as mãos que separam,
penteiam e traçam nos confortam. A intimidade e a sina nos confortam.

Existe uma intimidade tamanha na cozinha aos sábados quando se alisa o


cabelo, quando se frita o peixe, quando se fazem rodadas de refrigerante, quando a
música soul flutua sobre a conversa.

É um instante sem os homens. Um tempo em que trabalhamos como mulheres


para satisfazer umas as necessidades das outras, para nos proporcionarmos um bem-
estar interior, um instante de alegrias e boas conversas.

Levando em consideração que o mundo em que vivíamos estava segregado


racialmente, era fácil desvincular a relação entre a supremacia branca e a nossa
obsessão pelo cabelo. Mesmo sabendo que as mulheres negras com cabelo liso eram
percebidas como mais bonitas do que as que tinham cabelo crespo e/ou encaracolado,
isso não era abertamente relacionado com a idéia de que as mulheres brancas eram
um grupo feminino mais atrativo ou de que seu cabelo liso estabelecia um padrão de
beleza que as mulheres negras estavam lutando para colocar em prática.

Esse momento é um marco histórico e ideológico do qual emergiu o processo de


alisamento do cabelo de mulheres negras. Esse processo foi ampliado de maneira tal
que estabeleceu um espaço real de formação de íntimos vínculos pessoais da mulher
negra mediante uma experiência ritualística compartilhada.

O salão de beleza era um espaço de aumento da consciência, um espaço em


que as mulheres negras compartilhavam contos, lamúrias, atribulações, fofocas – um
lugar onde se poderia ser acolhida e renovar o espírito.

Para algumas mulheres, era um lugar de descanso em que não se teria de


satisfazer as exigências das crianças ou dos homens. Era a hora em que algumas
teriam sossego, meditação e silêncio. Entretanto, essas implicações positivas do ritual
do alisamento do cabelo ponderavam, mas não alteravam as implicações negativas.
Essas existiam concomitantemente.

Dentro do patriarcado capitalista – o contexto social e político em que surge o


costume entre os negros de alisarmos os nossos cabelos –, essa postura representa
uma imitação da aparência do grupo branco dominante e, com freqüência, indica um
racismo interiorizado, um ódio a si mesmo que pode ser somado a uma baixa auto-
estima.

Durante os anos 1960, os negros que trabalhavam ativamente para criticar,


desafiar e alterar o racismo branco, sinalavam a obsessão dos negros com o cabelo liso
como um reflexo da mentalidade colonizada. Foi nesse momento em que os penteados
afros, principalmente o black, entraram na moda como um símbolo de resistência
cultural à opressão racista e fora considerado uma celebração da condição de negro(a).

Os penteados naturais eram associados à militância política. Muitos(as) jovens


negros(as), quando pararam de alisar o cabelo, perceberam o valor político atribuído
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ao cabelo alisado como sinal de reverência e conformidade frente às expectativas da


sociedade.

Entretanto, quando as lutas de libertação negra não conduziram à mudança


revolucionária na sociedade, não se deu mais tanta atenção à relação política entre a
aparência e a cumplicidade com o segregacionismo branco, e aqueles que outrora
ostentavam os seus blacks começaram a alisar o cabelo.

Sem ficar atrás dessa manobra para suprimir a consciência negra e os esforços
das pessoas negras por serem sujeitos que se autodefinem, as empresas brancas
começaram a reconhecer os negros, e de maneira especialíssima, às mulheres negras,
como consumidoras potenciais de produtos que poderiam ser subministrados, incluindo
aqueles para os cuidados com o cabelo. Permanentes especialmente concebidos para
as mulheres negras eliminaram a necessidade do pente quente e da chapinha. Esses
permanentes não só custavam mais caro, mas também levavam todas as economias e
ganâncias das comunidades negras, especificamente dos bolsos das mulheres negras
que anteriormente colhiam benefícios materiais (ver Como o Capitalismo Desenvolveu
a América Negra, de Manning Marable, South End Pree).

O contexto do ritual havia desaparecido, não haveria mais a formação de


vínculos íntimos e pessoais entre as mulheres negras. Sentadas embaixo de secadores
barulhentos, as mulheres negras perderam um espaço para o diálogo, para a conversa
criativa.

Desposadas desses rituais de formação de íntimos vínculos pessoais positivos,


que rodeavam tradicionalmente a experiência, o alisamento parecia cada vez mais um
significante da opressão e da exploração da ditadura branca.

O alisamento era claramente um processo no qual as mulheres negras estavam


mudando a sua aparência para imitar a aparência dos brancos. Essa necessidade de ter
a aparência mais parecida possível à dos brancos, de ter um visual inócuo, está
relacionada com um desejo de triunfar no mundo branco. Antes da integração, os
negros podiam se preocupar menos sobre o que os brancos pensavam sobre o seu
cabelo.

Em discussão sobre a beleza com mulheres negras em Spelman College, as


estudantes falavam sobre a importância de ter o cabelo liso quando se procura um
emprego. Estavam convencidas, e provavelmente com toda a razão, de que sua
oportunidade de encontrar bons empregos aumentaria se tivessem cabelo alisado.
Quando se pediam mais detalhes sobre essa assertiva, essas mulheres se
concentravam na conexão entre as políticas radicais e os penteados naturais, seja com
ou sem tranças. Uma jovem que tinha o cabelo natural e curto falava até mesmo em
comprar uma peruca de cabelo liso e comprido na hora de procurar emprego.

Nenhuma das participantes pensava na possibilidade de que nós mulheres


negras éramos livres para usar os nossos cabelos naturais sem refletir sobre as
possíveis conseqüências negativas. Com freqüência, os adultos negros, os mais velhos,
especialmente os pais, respondiam negativamente aos penteados naturais. Contei ao
grupo que, quando cheguei em casa com o cabelo trançado logo após conseguir um
emprego em Yale, os meus pais me disseram que eu tinha um aspecto desagradável.
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Apesar das diversas mudanças na política racial, as mulheres negras continuam


obcecadas com os seus cabelos, e o alisamento ainda é considerado um assunto sério.
Por meio de diversas práticas insistem em se aproveitar da insegurança que nós
mulheres negras sentimos a respeito de nosso valor na sociedade de supremacia
branca. Conversando com grupos de mulheres em diversas cidades universitárias e
com mulheres negras em nossas comunidades, parece haver um consenso geral sobre
a nossa obsessão com o cabelo, que geralmente reflete lutas contínuas com a auto-
estima e a auto-realização. Falamos sobre o quanto as mulheres negras percebem seu
cabelo como um inimigo, como um problema que devemos resolver, um território que
deve ser conquistado. Sobretudo, é uma parte de nosso corpo de mulher negra que
deve ser controlado. A maioria de nós não foi criada em ambientes nos quais
aprendêssemos a considerar o nosso cabelo como sensual, ou bonito, em um estado
não processado. Muitas de nós falamos de situações nas quais pessoas brancas pedem
para tocar o nosso cabelo natural e demonstram grande surpresa quando percebem
que a textura é suave ou agradável ao toque.

Aos olhos de muita gente branca e outras não negras, o black parece palha de
aço ou um casco. As respostas aos estilos de penteado naturais usados por mulheres
negras revelam comumente como o nosso cabelo é percebido na cultura branca: não
só como feio, como também atemorizante. Nós tendemos a interiorizar esse medo.O
grau em que nos sentimos cômodas com o nosso cabelo reflete os nossos sentimentos
gerais sobre o nosso corpo.

Em nosso grupo de apoio de mulheres negras, Irmãs do Yam, conversávamos


sobre como não gostávamos de nossos corpos, especialmente nossos cabelos. Sugeri
ao grupo que considerássemos o nosso cabelo como se ele não fizesse parte do nosso
corpo, mas que se percebesse como algo separado, de novo um território que deve ser
controlado, domado.

Para mim era importante que fosse vinculada a necessidade de controlar o


cabelo com a repressão sexual. Tendo curiosidade sobre o que passavam as mulheres
negras que faziam chapinha ou que fizessem amaciamento, permanente ou outras
químicas, quando refletiam sobre a relação do cabelo alisado e a prática sexual,
perguntei se as pessoas se preocupavam com o cabelo delas, se temiam que seus
pares tocassem os seus cabelos. Sempre tive a impressão de que o cabelo alisado
chama a atenção pelo desejo de que permaneça no mesmo lugar. Não foi
surpreendente que muitas mulheres negras respondessem que se sentiam
incomodadas se as pessoas se concentravam e davam muita atenção aos seus cabelos,
sentiam como se o seu cabelo estivesse desordenado, fora de controle. Isso porque
aquelas de nós que já liberaram o seu cabelo e deixamos que ele se movimente na
direção que ele queira, freqüentemente, recebemos comentários negativos.

Olhando fotografias de mim mesma e das minhas irmãs de quando tínhamos o


cabelo alisado no segundo grau, percebi que parecíamos ter mais idade do que quando
deixamos o cabelo natural. É irônico viver em uma cultura que enfatiza tanto a
necessidade das mulheres serem ou parecerem jovens, mas por outro lado incentiva
as mulheres negras a mudarem os seus cabelos de maneira tal que parecemos ser
mais velhas.

No último semestre, estávamos lendo O Olho mais azul, de Toni Morrison, em


uma aula de Literatura. Pedi aos estudantes que escrevessem textos autobiográficos,
que refletissem sobre o que eles pensavam sobre a relação entre raça e beleza física.
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Uma grande maioria das mulheres negras escreveu sobre os seus cabelos. Quando eu
perguntei isoladamente a algumas delas porque continuavam alisando o cabelo, muitas
atestaram que os penteados naturais não ficavam bonitos nelas, ou que demandavam
muito trabalho. Emily, uma das minhas favoritas, de cabelo curto sempre alisava, e eu
lhe questionava e desafiava, até que ela me explicou de maneira muito convincente
que um penteado natural ficaria horrível no seu rosto, que ela não tinha a fronte nem a
estrutura óssea apropriada.

No semestre seguinte, nos reencontramos e ela me contou que durante as


férias tinha ido ao salão fazer o permanente e, enquanto esperava, pensou sobre as
leituras e as discussões de sala de aula e percebeu que estava realmente muito
incomodada e amedrontada com a idéia de que as pessoas achassem que ela não seria
mais atraente se não alisasse o cabelo. Reconheceu que esse medo estava enraizado
nos sentimentos de baixa auto-estima. Decidiu fazer uma mudança e se surpreendeu,
pois estava linda e muito atraente. Conversamos bastante sobre como dói perceber a
relação entre a opressão racista e os argumentos que usamos para convencer a nós
mesmas e aos outros de que não somos belos ou aceitáveis como somos.

Em inúmeras discussões com mulheres negras sobre o cabelo, ficou constatado


um manifesto de que um dos fatores mais poderosos que nos impedem de usarmos o
cabelo sem química é o temor de perder a aprovação e a consideração das outras
pessoas. As mulheres negras heterossexuais falaram sobre o quanto os homens negros
respondem de forma mais favorável quando se tem um cabelo liso ou alisado. Entre as
homossexuais, muitas afirmam que não alisavam o cabelo por uma reflexão de que
esse gesto estaria vinculado à heterossexualidade e à necessidade de aprovação do
macho.

Lembro-me de ter visitado uma amiga com seu par, um homem negro, em Nova
York, faz anos, e tivemos uma intensa discussão sobre o cabelo. Ele se encarregou de
me dizer que eu poderia ser uma irmã excelente (bonita) se fizesse algo (“dar um
jeito”) com o meu cabelo. Por dentro pensei que a minha mãe o tinha contratado. O
que me lembro é do espanto quando com calma e entusiasmo garanti que eu gostava
do tato no cabelo não processado.

Quando os estudantes lêem sobre raça e beleza física, várias mulheres negras
descrevem fases da infância em que estavam atormentadas e obcecadas com a idéia
de ter cabelos lisos, já que estavam tão associados à idéia de essas serem desejadas e
amadas. Poucas mulheres receberam apoio de suas famílias, amigos(as) e
parceiros(as) amorosos(as) quando decidiam não alisar mais o cabelo. E temos várias
histórias para contar sobre os conselhos recebidos de todo o mundo, até mesmo de
pessoas completamente estanhas, que se sentem gabaritadas para atestar que
parecemos mais bonitas se “arrumamos” (alisamos) o cabelo.

Quando eu ia para a minha entrevista de emprego em Yale, conselheiras


brancas que nunca haviam feito nenhum comentário sobre o meu cabelo me animaram
para que eu não usasse tranças ou um penteado natural grande (black) na entrevista.
Elas não disseram “alisa o seu cabelo”, sugeriam que eu mudasse o meu estilo de
cabelo de modo tal que parecesse ao máximo ao cabelo delas, indicando certo
conformismo. Usei tranças e ninguém pareceu notar. Quando fui contratada, não
perguntei se importava ou não que eu usasse tranças. Conto essa história aos meus
alunos para que saibam que nem sempre temos de renunciar a nossa capacidade de
ser pessoas que se autodefinem para ter sucesso no emprego.
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Já percebi que o meu estilo de cabelo às vezes incomoda os estudantes durante


as minhas conferências. Certa vez, em uma conferência sobre mulheres negras e
liderança, entrei em um auditório repleto com o meu cabelo sem química, fora de
controle e desordenado. A grande maioria das mulheres negras que ali estavam tinham
o cabelo alisado. Muitas delas foram hostis com olhares de desdém. Senti como se
estivesse sendo julgada, como uma marginal, indesejável. Tais julgamentos se fazem
especialmente direcionado às mulheres negras nos Estados Unidos que resolvem usar
dreads. São consideradas, com toda razão, da antítese do alisamento, o que torna o
seu estilo uma decisão política. Freqüentemente, as mulheres negras expressam
desprezo por aquelas de nós que escolhemos essa aparência.

Curiosamente, ao mesmo tempo em que o cabelo natural é um motivo de


desatenção e desdém, somos testemunhas da volta da moda das pinturas, mechas
loiras, cabelo comprido. Em seus escritos, minhas alunas negras descreveram o uso de
mechas amarelas em suas cabeças quando eram meninas, para fingir ter o cabelo
comprido e loiro. Recentemente as cantoras que estão trabalhando para ser atrativas
para a platéia branca, para serem consideradas como artistas que ampliaram o público,
usam implantes e apliques para conseguir cabelos compridos e lisos. Parece haver um
nexo definido entre a popularidade de uma artista negra com auditórios brancos e o
grau em que ela trabalha para parecer branca, ou para encarnar aspectos do estilo
branco. Tina Tuner e Aretha Franklin foram percussoras dessa tendência, as duas
pintavam o cabelo de loiro. Na vida cotidiana vemos cada vez mais mulheres usando
cada vez mais químicas para ter cabelo liso e loiro.

Em uma de minhas conversas que se concentravam na construção social da


identidade da mulher negra dentro de uma sociedade sexista e racista, uma mulher
negra veio até mim no final da discussão e me contou que sua filha de sete anos de
idade estava deslumbrada com a idéia do cabelo loiro, de tal forma que ela havia feito
uma peruca que imitava os cachinhos dourados. Essa mãe queria saber o que estava
fazendo de errado em sua tutela, já que sua casa era um lugar onde a condição de
negro era afirmada e celebrada. Mas ela não havia considerado que o seu cabelo
alisado era uma mensagem para a sua filha: nós mulheres negras não somos aceitas a
menos que alteremos nossa aparência ou textura do cabelo.

Recentemente conversei com uma de minhas irmãs mais novas sobre o seu
cabelo. Ela usa tintura de cores berrantes em diversos tons de vermelho. No que lhe
diz respeito, essas escolhas de cabelo pintado e alisado estavam diretamente
relacionadas com sentimentos de baixa auto-estima. Ela não gosta dos seus traços e
acredita que o estilo de cabelo transforma a sua fisionomia. O que eu percebia era que
a escolha dela na realidade chamava mais atenção para a sua fisionomia e era tudo o
que ela pretendia ocultar.

Quando ela comentou que com essa aparência ela recebia mais atenção e
elogios, sugeri que a reação positiva podia ser resposta direta da sua própria projeção
de um alto nível de auto-satisfação. As pessoas podem estar respondendo a isso e não
à tentativa de ocultar ou mascarar o seu fenótipo. Conversamos sobre as mensagens
que estava mandando para as suas filhas de pele escura: que elas certamente seriam
aceitas se alisassem os seus cabelos!

Certo número de mulheres afirmou que essa é uma estratégia de sobrevivência:


é mais fácil de funcionar nessa sociedade com o cabelo alisado. Os problemas são
menores; ou, como alguns dizem, “dá menos trabalho” por ser mais fácil de controlar e
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por isso toma menos tempo. Quando respondi a esse argumento em uma discussão
em Spelman College, sugeri que talvez o fato de gastar tempo com nós mesmas
cuidando de nossos corpos é também um reflexo de uma sensação de que não é
importante ou de que nós não merecemos tal cuidado. Nesse grupo e em outros, as
mulheres negras falavam de ter sido criadas em famílias que ridicularizavam ou
consideravam desperdício gastar muito tempo com a aparência.

Independentemente da maneira como escolhemos individualmente usar o


cabelo, é evidente que o grau em que sofremos a opressão e a exploração racistas e
sexistas afeta o grau em que nos sentimos capazes tanto de auto-amor quanto de
afirmar uma presença autônoma que seja aceitável e agradável para nós mesmas. As
preferências individuais (estejam ou não enraizadas na autonegação) não podem
escamotear a realidade em que nossa obsessão coletiva com alisar o cabelo negro
reflete psicologicamente como opressão e impacto da colonização racista.

Juntos racismo e sexismo nos recalcam diariamente pelos meios de


comunicação. Todos os tipos de publicidade e cenas cotidianas nos aferem a condição
de que não seremos bonitas e atraentes se não mudarmos a nós mesmas,
especialmente o nosso cabelo. Não podemos nos resignar se sabemos que a
supremacia branca informa e trata de sabotar nossos esforços por construir uma
individualidade e uma identidade.

Como nas lutas organizadas que aconteceram nos anos 1960 e princípios da
década de 1970, as mulheres negras, como indivíduos, devemos lutar sozinhas por
adquirir a consciência crítica que nos capacite para examinar as questões de raça e
beleza e pautar nossas escolhas pessoais de um ponto de vista político.

Existem momentos em que penso em alisar o meu cabelo só por capricho, aí


me lembro que, mesmo que esse gesto pudesse ser simplesmente festivo para mim,
uma expressão individual de desejo, eu sei que gesto semelhante traria outras
implicações que fogem ao meu controle. A realidade é que o cabelo alisado está
vinculado historicamente e atualmente a um sistema de dominação racial que é
incutida nas pessoas negras, e especialmente nas mulheres negras de que não somos
aceitas como somos porque não somos belas.

Fazer esse gesto como uma expressão de liberdade e opção individual me faria
cúmplice de uma política de dominação que nos fere. É fácil renunciar a essa liberdade.
É mais importante que as mulheres façam resistência ao racismo e ao sexismo que se
dissemina pelos meios de comunicação, e tratarem para que todo aspecto da nossa
auto-representação seja uma feroz resistência, uma celebração radical de nossa
condição e nosso respeito por nós mesmas.

Mesmo não tendo usado o cabelo alisado por muito tempo, isso não significa
que eu era capaz de desfrutar ou realmente apreciar meu cabelo em estado natural.
Durante anos, ainda considerava isso um problema. Ele não era natural o suficiente,
crespo o necessário para fazer um black interessante e decente, o cabelo era muito
fino. Essas queixas expressavam a minha continua insatisfação. A verdadeira liberação
do meu cabelo veio quando parei de tentar controlar em qualquer estado e o aceitei
como era.

Só há poucos anos é que deixei de me preocupar com o quê os outros possam


dizer sobre o meu cabelo. Só nesses últimos anos foi que eu sentir consecutivamente o
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prazer lavando, penteando e cuidando do meu cabelo. Esses sentimentos me lembram


o aconchego e o deleite que eu sentia quando menina, sentada entre as pernas de
minha mãe, sentindo o calor do seu corpo e do seu ser enquanto ela penteava e
trançava o meu cabelo.

Em uma cultura de dominação e antiintimidade, devemos lutar diariamente por


permanecer em contato com nos mesmos e com os nossos corpos, uns com os outros.
Especialmente as mulheres negras e os homens negros, já que são nossos corpos os
que freqüentemente são desmerecidos, menosprezados, humilhados e mutilados em
uma ideologia que aliena. Celebrando os nossos corpos, participamos de uma luta
libertadora que libera a mente e o coração.

Revista Gazeta de Cuba – Unión de escritores y Artista de Cuba, janeiro-fevereiro de


2005. Tradução do espanhol: Lia Maria dos Santos

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