Artigo Usina Muribeca

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A JUSTIA ENTRA EM CAMPO: A ATUAO DA JUSTIA DO TRABALHO EM JABOATO NO PROCESSO DE DECADNCIA DA USINA MURIBECA.
Diego Carvalho da Silva1

RESUMO: Com a aprovao em 1962 do decreto 4.088 que determinava a ampliao do nmero de Juntas de Conciliao e Julgamento no estado de Pernambuco e pouco depois a aprovao do Estatuto do Trabalhador Rural, algumas transformaes marcariam para sempre a vida do trabalhador rural brasileiro. Buscou-se neste estudo construir uma viso histrica deste perodo, a partir da anlise de processos trabalhistas, que contriburam muito para que pudssemos compreender melhor, as mudanas e tambm as permanncias na vida do trabalhador rural. Na primeira parte foi feita uma breve anlise do contexto histrico em que foram instaladas as Juntas de Conciliao e Julgamento no estado de Pernambuco e sua importncia para reformulao de uma cultura secular na qual no se permitia sequer o dilogo entre os trabalhadores do campo e a classe patronal. No segundo momento foram expostos os resultados obtidos a partir da anlise dos processos trabalhistas do TRT 6 Regio de toda a dcada de 1960, tendo como objeto de estudo as reclamaes contra a Usina Muribeca. Este conjunto documental contribuiu consideravelmente para que fossem compreendidas as disputas entre empregados e empregadores da Usina Muribeca, na Justia do Trabalho. Esta empresa encerrou as suas atividades industriais em abril de 1965 e foi atravs da Justia que os trabalhadores puderam reivindicar os seus direitos e assegurarem uma conciliao. Desta forma este texto defende a idia de que a vinda da Justia para as reas rurais iria impulsionar algumas reformulaes na cultura de dominao dos latifundirios sobre os trabalhadores do campo. Palavras chaves: Trabalhador Rural, Processos trabalhistas, Usina Muribeca

INTRODUO

Em 12 de julho de 1962 o Presidente da Repblica Joo Goulart sancionou a Lei 4.088 que determinou a criao de doze Juntas de Conciliao e Julgamento em todo o Brasil, sendo oito destas direcionadas para a 6 regio do TRT em Pernambuco 2. Estas Juntas iriam ter um papel importante para o desenvolvimento industrial de Pernambuco, alm de ao
1 Graduado em Histria, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Atualmente bolsista do projeto
Memria e Histria - Processos do Tribunal Regional do Trabalho de Pernambuco 6 Regio, coordenado pelo professor Antnio Torres Montenegro.

mesmo tempo nos mostrar que o Estado no estava alheio a todo o contexto de disputas sociais, to marcantes durante a gesto de Jango. No incio de 1963, Miguel Arraes assumiu o Governo do Estado, tendo sua administrao sido marcada pelas mudanas sociais, tendo destaque para as ocorridas na vida dos trabalhadores rurais de grande parte do estado. Foi com Arraes no Governo, que a classe patronal sentou-se mesa ao lado dos trabalhadores, para serem feitas as negociaes, as quais culminariam com o Acordo do Campo e isto nos mostra que os rumos para a vida dos trabalhadores rurais estavam mudando3. Este estudo focou na anlise das questes debatidas na Junta de Conciliao e Julgamento de Jaboato e mais especificamente nas reclamaes movidas contra a Usina Muribeca, que encerrara suas atividades em abril de 1965, algo que provocou uma elevao considervel do nmero de processos nesta junta. A partir da anlise dos processos trabalhistas, foi possvel construir uma narrativa, na qual, foram expostas as motivaes para o fechamento desta Usina e algumas de suas conseqncias para o municpio de Jaboato. A instalao destas Juntas de Conciliao em vrios municpios de Pernambuco representaria muito para o trabalhador do campo e contribuiria aos poucos para a construo de uma nova realidade para esta classe. preciso deixar claro que apesar de conhecermos a histria das lutas extras judiciais dos trabalhadores rurais, no desejamos discutir neste texto estas questes especficas. Fora dada nfase na anlise dos processos trabalhistas, tendo como base uma bibliografia de apoio, as quais abordam algumas questes relacionadas ao tema. No entanto, tpicos especficos podem ser mais aprofundados em estudos posteriores para que assim se possa construir uma viso geral do perodo. Ao serem introduzidas nas reas rurais, as Juntas de Conciliao buscariam aos poucos transformar uma cultura de opresso secular. A criao destas Juntas fazia parte do projeto da construo de uma nova poltica nacional, que fora introduzida pelo presidente Joo Goulart. Com esta medida o presidente tentara mostrar que o Estado no estava alheio s
2 Lei N 4.088, decretada em 12 de Julho de 1962.

3 Ver PEREIRA, Anthony. O declnio das Ligas Camponesas e a ascenso dos sindicatos: as organizaes de trabalhadores rurais em Pernambuco. In: CLIO, Revista de Pesquisa Histrica, n. 26-2. Recife: Ed. Universitria da UFPE, 2008.

disputas no campo e estas Juntas viriam a atuar em conjunto com o Estatuto do Trabalhador Rural. Porm, no seria prudente pensar que estas concesses por parte do Estado, seria um presente dado ao trabalhador rural, pois elas estavam muito mais ligadas, com a tentativa do presidente estabelecer um pacto com esta classe, que havia cansado de esperar parada pelas mudanas e passara a lutar pelos seus direitos e a exigir mudanas estruturais radicais.4 Sendo assim, nos anos que antecederam o Golpe Civil-Militar de 1964, foram encaminhadas algumas propostas, por parte do Estado, que visavam amenizar as exploraes cometidas por parte da classe patronal e isto provocara a vinda de mudanas considerveis para a vida do trabalhador rural. Porm para compreendermos estas mudanas preciso voltar um pouco na histria, para que se possa entender melhor este perodo.

O CLIMA QUENTE, NO CAMPO MIDO

Pernambuco, estado conhecido nacionalmente pela sua economia aucareira secular, havia perdido o posto de maior produtor de cana-de-acar do pas, que detinha no perodo colonial e imperial, passando desde os primeiros anos da repblica a ter sua produo superada por outros estados do pas, principalmente os do sudeste. J na dcada de 1950, em meio Guerra Fria, o Nordeste brasileiro e com destaque Pernambuco, passou a viver um clima de enorme instabilidade, no qual, muitos temiam a ecloso de uma revoluo a qualquer momento. Os usineiros de Pernambuco tinham o controle da maior parte das terras na Zona da Mata do estado e exploravam sem quaisquer limites o excedente de mo-de-obra que havia na regio, pagando salrios muito abaixo da mdia nacional e se aproveitavam das brechas deixadas pela CLT de 1943, que no inclura os trabalhadores rurais como uma classe com direitos reconhecidos na Justia do Trabalho, para manter este sistema arcaico de produo.5
4 Ver FERREIRA, Jorge (org). O populismo e sua histria: debate e crtica. Rio de Janeiro: Civilizao
Brasileira, 2001.

5 Ver DABAT, Christine Rufino. Uma CAMINHADA PENOSA: A extenso do Direito Trabalhista zona
canavieira de Pernambuco. In: CLIO, Revista de Pesquisa Histrica, n. 26.2. Recife: Ed. Universitria da UFPE, 2008.

O movimento campons em Pernambuco teve incio em meados da dcada de 1940, com a criao das primeiras Ligas Camponesas e passou a ter grande visibilidade na dcada seguinte, principalmente aps a adeso do Deputado e Advogado Francisco Julio, que passou a ser um dos seus ferrenhos defensores. A partir de sua adeso, as Ligas se expandiram de maneira surpreendente no interior de Pernambuco, principalmente na regio da Zona da Mata, onde imperavam os latifndios da cana6. Aps a criao da Sociedade Agrcola e Pecuria de Plantadores de Pernambuco (SAPPP)7, em de janeiro de 1955, as Ligas passaram a ser mais atuantes nas reas rurais e ampliaram consideravelmente sua zona de influncia8. As manifestaes realizadas eram diversas, tendo elas combatido ferrenhamente as injustias sociais cometidas pela classe patronal contra os trabalhadores rurais, alm de pleitear o acesso a terra para os seus adeptos. Por ter mantido em sua fase inicial ligaes com o Partido Comunista do Brasil (PCB), as Ligas logo passaram a ser vistas e classificadas pelas camadas direitistas da poca como um rgo subversivo que visava desordem. Neste perodo muitos setores da sociedade temiam o avano da onda vermelha, principalmente nas reas rurais. A primeira grande vitria das Ligas viria quando o Governo do Estado, sob gesto de Cid Sampaio, em meados de 1959, decidiu votar a favor da desapropriao do Engenho Galilia, em Vitria de Santo Anto. Com isso, os trabalhadores e moradores da propriedade conquistaram o direito de administrar as terras, que eram at antes disso, controladas pelo senhor Oscar de Arruda Beltro. Isto representou uma grande conquista para as Ligas e abriria caminho para novas reivindicaes, que passaram a tomar um rumo cada vez mais radical, devido grande resistncia da classe patronal. Segundo relatos da poca, o governador s
6 S para se ter idia desta dominao na Zona da Mata pernambucana, cito algumas informaes contidas no
livro de Alberto Tamer, O mesmo Nordeste, onde o autor afirmara na dcada de 1960 que: nada menos de 685.666 hectares, ou seja, aproximadamente 51% da rea total, direta ou indiretamente, pertencem a 46 usinas que renem, em seu conjunto, cerca de 150 pessoas fsicas. TAMER, Op. Cit. p.53

7 O objetivo inicial da SAPPP era: impedir a evico de 140 famlias da propriedade de um latifundirio absentesta que tinha a inteno de converter sua terra em pastagem. PEREIRA, Anthony. O declnio das Ligas Camponesas e a ascenso dos sindicatos: as organizaes de trabalhadores rurais em Pernambuco. In: CLIO, Revista de Pesquisa Histrica, n. 26-2. Recife: Ed. Universitria da UFPE, 2008, p.247.

8 Entre 1955 at 1961, s Ligas camponesas filiaram-se 10 mil trabalhadores rurais em 40 sedes municipais em
Pernambuco. s vsperas do golpe militar de 1964, elas contavam de 30 a 35 mil membros no estado e por volta de 80 mil na regio Nordeste. DABAT, Christine Rufino. Ligas Camponesas e sindicatos de trabalhadores rurais. In: CLIO, Revista de Pesquisa Histrica, n. 22. Recife: Ed. Universitria da UFPE, 2004, p.159.

fizera esta concesso, devido s presses dirias dos membros da Ligas, que ao lado de Julio vieram capital reivindicar seus direitos. Sampaio temendo a insurgncia desses e um inevitvel derramamento de sangue, caso negasse o pedido, optou por fazer a concesso das terras aos trabalhadores e moradores daquele engenho.9 As Ligas viriam a romper os laos que matinha com o Partido Comunista ainda em fins da dcada de 1950 quando Julio apresentou uma srie de divergncias com os partidrios comunistas, passando a no respeitar as determinaes do partido. vlido informar que os comunistas nesta poca passaram a defender um projeto de revoluo pacfica para o Brasil, que deviria vir atravs de alianas com a burguesia nacional. Para o representante das Ligas em Pernambuco, as mudanas no campo no ocorreriam sem que os latifundirios oferecessem quaisquer resistncias. Sendo assim, Julio passou a propagar a idia de que as Ligas deveriam assumir uma postura mais radical. A partir desse momento se as reivindicaes dos homens do campo no fossem ouvidas, eles passariam a reagir atravs de greves e no se negava a possibilidade deles partirem para a luta armada. O objetivo principal desta organizao era o de possibilitar o acesso terra aos trabalhadores rurais e isto era o que mais atormentava os latifundirios.10 Foi em meados da dcada de 1950 que o Governo Federal tambm passou a olhar com mais cuidado para os problemas do Nordeste, visando uma futura insurgncia de um povo quase que esquecido nacionalmente. No s os problemas das secas eram noticiados em todo o Brasil, mas tambm a situao do trabalhador do campo, que vivia na misria, sob a dependncia dos latifundirios da regio. Sendo assim, foram feitos diversos encontros, onde intelectuais como Josu de Castro e Celso Furtado, conhecedores da regio, passaram a discutir em nvel regional e nacional, com polticos e com a sociedade, sobre os novos rumos da poltica nacional com relao ao Nordeste. A inteno principal das discusses era o de se

9 MONTENEGRO, A. T. ; SANTOS, T. M. . Lutas Polticas em Pernambuco... A Frente do Recife chega ao poder (1955 - 1964). In: Jorge Ferreira; Daniel Aaro Reis. (Org.). As esquerdas no Brasil - Nacionalismo e reformismo radical 1945 - 1964. 1 ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2007, v. 1, p. 451-488.

10 PEREIRA, Anthony. O declnio das Ligas Camponesas e a ascenso dos sindicatos: as organizaes de trabalhadores rurais em Pernambuco. In: CLIO, Revista de Pesquisa Histrica, n. 26-2. Recife: Ed. Universitria da UFPE, 2008.

desenvolver medidas que sanassem as mazelas que atingiam o Nordeste e que levassem o desenvolvimento industrial para esta regio.11 Na virada para a dcada de 1960, o clima de instabilidade s havia aumentado, pois o governador udenista Cid Sampaio, que vencera as eleies em 1958 com o apoio das esquerdas, quando estava no poder no cumpriu com algumas das promessas feitas aos esquerdistas na campanha eleitoral. Isto de fato provocou a revolta de parte da populao, que passou a dirigir diversas crticas quela gesto. Ocorrera tambm em 1959, a Revoluo Cubana, este acontecimento passou a servir de modelo para os movimentos sociais da Amrica Latina em geral, tendo inclusive contribudo para a radicalizao das atitudes das Ligas no Nordeste. Isto foi algo que passou a atormentar os norte-americanos que temiam pela difuso do ideal da cubanizao nos pases latinos, passando assim a intervirem mais ainda nas questes sociais do Nordeste.12 Com a vitria de Miguel Arraes, em 1962, para o cargo de Governador de Pernambuco, o estado passaria a dar mais ateno para as resolues dos problemas sociais. nesse momento que o governo passou a buscar mecanismos que deveriam trazer para suas mos o controle da situao, chegando a fazer concesses considerveis para a classe trabalhadora, que passou a ser vista com mais cuidado pelos polticos pernambucanos. Arraes, figura poltica com vrias facetas provoca nos pesquisadores uma srie de inquietaes e faz insurgir diversas questes relativas ao seu posicionamento poltico. Para alguns era simplesmente um humanista, enquanto que pela direita da poca era visto como um aliado dos comunistas com fortes traos do culto sovitico em suas atitudes. J por parte da esquerda recebera a alcunha de populista. notvel que ele possua uma versatilidade ideolgica comum dos polticos brasileiros da poca, em que trazia consigo fortes influncias do pensamento esquerdista, ao mesmo tempo em que apresentava elementos caractersticos dos polticos trabalhistas.13

11 Ver AGUIAR, Roberto Oliveira de. Recife, da Frente ao golpe: ideologias polticas em Pernambuco. Recife: Editora Universitria da UFPE, 1993.

12 Ver o artigo de Antnio Torres Montenegro, Ligas Camponesas e sindicato rurais em tempo de revoluo. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Luclia de Almeida Neves (Orgs.). O Brasil republicano: O tempo da experincia democrtica: da democratizao de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003. v. 3. p.241-271.

As reivindicaes por mudanas que vinham dos trabalhadores passaram a ser ouvidas com mais cautela, as queixas tambm vinham da classe mdia que temia uma revoluo social e terminara por comprar o discurso das elites, passando a combater as reformas radicais propostas por Jango. A Igreja Catlica j havia entrado nos debates desde a dcada de 1950, tendo apenas o trabalho de reforar mais ainda sua atuao, lutando contra a difuso de quaisquer pensamentos comunistas. Esta instituio tambm entrara no front com o intuito de amenizar a explorao acentuada exercida pelos latifundirios e tentava propor solues para a situao de misria que infestava as reas rurais do Nordeste em geral. Por ltimo, colocaria a forte influncia dos norte-americanos, exercida diretamente na poltica nacional, pois sabido que as polticas assistencialistas desenvolvidas pelos Estados Unidos durante o perodo da Guerra Fria teriam forte penetrao na populao nordestina. Citaria para ilustrar essas polticas duas organizaes que receberam grandes investimentos dos EUA: a Aliana para o Progresso e Os Corpos de Paz. A primeira tivera forte influncia nos rgos federais como no Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), Instituto Brasileiro de Ao Democrtica (IBAD) e tambm na Superintendncia do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE). J a segunda fora criada durante o governo de John F. Kennedy, trouxera muitos jovens norteamericanos para as zonas mais necessitadas da Amrica Latina. preciso deixar claro que por um lado essas polticas assistencialistas traziam alguns benefcios imediatos para as populaes mais carentes do Brasil, porm elas tambm no deixavam de ser mais uma das medidas de interveno no processo democrtico brasileiro, tomadas pelo governo dos EUA e que tinham como grande misso o combate ao avano do comunismo em terras vizinhas.14

POR UMA NOVA POLTICA NACIONAL

neste contexto de instabilidade poltica, que o presidente Joo Goulart, decretou a criao das Juntas de Conciliao e Julgamento em zonas estratgicas no estado de
13 PEREIRA, Anthony. O declnio das Ligas Camponesas e a ascenso dos sindicatos: as organizaes de
trabalhadores rurais em Pernambuco. In: CLIO, Revista de Pesquisa Histrica, n. 26-2. Recife: Ed. Universitria da UFPE, 2008.

14 AZEVEDO, Ceclia. Em nome da Amrica: os Corpos da Paz no Brasil. 1.ed. - So Paulo: Edusp, 2008.

Pernambuco e seria impossvel no supor que tinham objetivos claros de conter a agitao social que vinha ocorrendo e que s se agravaria at a data em que fora dado o Golpe CivilMilitar em abril de 1964. O governo de Arraes como j foi dito, cedeu o direito de voz para a classe trabalhadora, que representados pelos sindicatos rurais, passaram a protestar contra as injustias cometidas pela classe patronal, utilizando para isso o seu direito de greve. preciso esclarecer que este direito de reivindicao ampliara-se consideravelmente aps a aprovao, em maro de 1963, do Estatuto do Trabalhador Rural (ETR), que at hoje considerado como um marco na histria no s dos trabalhadores, mas tambm da Justia do Trabalho Nacional. As Juntas de Conciliao e Julgamento seriam instaladas em vrios municpios do Brasil, tendo sido oito destas direcionadas ao estado de Pernambuco. Segundo a determinao do Decreto as Juntas seriam distribudas por todo estado, sendo duas dessas criadas em Recife, passando esta cidade a ter cinco sedes da Justia do Trabalho. As outras seis sedes da Justia do Trabalho, que de fato seriam inovadoras, pois seriam instaladas em zonas conhecidas pelo forte predomnio do latifndio da Zona da Mata, nos municpios de Jaboato, Nazar da Mata, Goiana, Palmares e Escada, alm de mais uma destas, que deveria atender os municpios do agreste, tendo sede em Caruaru. Seria um desafio para a Justia do Trabalho, atuar nessas citadas zonas, pois os latifundirios no estavam to acostumados a conciliar com a classe trabalhadora e insistiam em manter a idia de que os direitos dos trabalhadores deveriam ser resolvidos na bala.

Resistncias de todos os tipos, por parte dos trabalhadores, traduziam-se por sabotagem, fugas, trabalhos mal executados. Entretanto, sem possibilidades de organizao e negociao coletiva enquanto classe. A violncia privada e pblica, somadas, no deixavam a menor chance aos trabalhadores na luta por melhores condies de vida e de trabalho. Como diz um deles, "antes dos direitos, o direito era o pau!". As autoridades pblicas parentes e aliados dos plantadores - prestavam-lhes todo seu apoio, inclusive armado.15

Sendo assim, o desafio estava lanado e o projeto viraria realidade aps a inaugurao das juntas no ano posterior, quando foram sendo inauguradas aos poucos, tendo sido a ltima destas a ser instalada em Nazar da Mata, no decorrer de setembro de 1963.

15 DABAT, Christine Rufino. Ligas Camponesas e sindicatos de trabalhadores rurais. In: CLIO, Revista de Pesquisa Histrica, n. 22. Recife: Ed. Universitria da UFPE, 2004, p.153.

Assim o estado lanaria uma de suas ltimas armas em busca da organizao e do controle da situao dos trabalhadores principalmente na Zona da Mata do estado que j vinha sendo disputada e dividida pelas atuaes das Ligas Camponesas, da Igreja Catlica e tambm dos comunistas. Estas trs categorias lutavam pela hegemonia na rea rural e o que conseguiram de fato foi gerar uma grande confuso de idias para os trabalhadores desta regio. Vendo tudo isto o Estado, mesmo que atrasado, decidira entrar nesta disputa, conseguindo inclusive em pouco tempo obter xitos considerveis. Coincidncia ou no, o Estatuto do Trabalhador Rural foi aprovado tambm no decorrer do ano de 1963, o que nos faz deduzir novamente que o estatuto j estava na pauta de prioridades do presidente pelo menos desde o incio do ano de 1962 quando ento aprovara a criao das juntas e de fato seriam medidas em que o Estado demonstraria sua tentativa de tomar para si o papel de intermediador nas negociaes entre o empregado e empregador. De fato as presses realizadas por uma parcela da populao e pelos trabalhadores rurais, contriburam para que o Estado elaborasse uma soluo para esta questo. preciso enfatizar que esta medida tomada pelo Governo Federal fazia parte do projeto de se implantar uma poltica de bem estar social do presidente Jango, que j demonstrara grandes afinidades com estas idias desde a poca que era o Ministro do Trabalho de Vargas16. Sendo assim, poderamos dizer que no teria nenhuma lgica em se instalar as oito Juntas de Conciliao no estado de Pernambuco sem que as Leis Trabalhistas fossem expandidas para os trabalhadores rurais, pois as Juntas que foram instaladas fora da Regio Metropolitana de Pernambuco, ficariam restritas a atender um pequeno contingente de trabalhadores industriais destas reas, que eram ainda na poca, dominadas pelos latifndios dedicados cultura da cana-de-acar. O Governo do Estado, por sua vez, estava determinado em conter o acirramento das disputas nas reas rurais do estado e passou a intervir nestas questes, buscando tomar para si o controle da situao. Para conseguir isso precisava fazer concesses concretas aos trabalhadores rurais e neste contexto que surgem as JCJs, o

16 Numa carta de Joo Goulart para Benedito Valadares em abril de 1959, Jango exps algumas de suas idias
trabalhistas, nas dentre elas estavam: A crtica aos aspectos desumanos e aptridas do capitalismo, a implantao da poltica do bem estar social, busca de compatibilizao entre o capitalismo sadio e a melhoria do nvel de vida dos trabalhadores, alm de defender a presena do estado nas questes sociais e de sua funo como rbitro dos conflitos sociais. indispensvel o fortalecimento dos meios de interveno do estado, que deve ser o rbitro entre as classes sociais. NEVES, Lucilia de Almeida Trabalhismo, Nacionalismo e Desenvolvimentismo: Um projeto para o Brasil (1945-1964). In: FERREIRA, Jorge (org). O populismo e sua histria: debate e crtica. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001, p.197-198.

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Estatuto do Trabalhador Rural, o Acordo do Campo e algumas tentativas de se promover a reforma agrria no estado.

A JCJ DE JABOATO E OS PRIMEIROS PASSOS PARA AS MUDANAS

Ao darmos incio s atividades no ano de 2009 do Projeto Memria e Histria: Processos do Tribunal Regional do Trabalho de Pernambuco (TRT) 6 regio Preservao, divulgao e produo de artigos e livros , financiado pela FACEPE e apoiado pelo TRT 6 Regio, a nossa equipe passou a se debruar numa infinidade de processos trabalhistas e mergulhar em um universo documental que vem conquistando o pblico de pesquisadores do pas. Nesta primeira etapa do projeto foi escolhida para ser trabalhada a documentao processual referente Junta de Conciliao e Julgamento do municpio de Jaboato, que foi inaugurada em 1 de maro de 1963 e teve como primeiro Juiz presidente Alosio Cavalcanti Moreira, nomeado pelo Presidente da Repblica. Segundo a determinao do decreto 4.088 que criou esta Junta de Conciliao, a sua jurisdio ficaria estendida aos municpios de Moreno, Vitria de Santo Anto, Gravat e Glria de Goit. Antes da criao destas Juntas, os trabalhadores, que desejassem reclamar seus direitos na Justia, teriam que se direcionar para a capital, Recife, onde se localizava a sede do Tribunal Regional do Trabalho. At antes de 1963, a capital do estado possua trs Juntas de Conciliao e Julgamento, enquanto que o municpio de Paulista possura mais uma destas, que foi instalada em meados de 1955. Visto isso, possvel imaginar o sacrifcio de se deslocar para capital a cada audincia realizada, sendo prefervel para muitos desistirem de quaisquer tentativas de acionar a justia para solucionar suas querelas trabalhistas. Outra opo seria a de procurar a sede das Delegacias Regionais do Trabalho (DRT), onde tambm os trabalhadores poderiam pleitear alguns direitos e dar entrada em dissdios coletivos atravs de seus sindicatos. No entanto, estas delegacias teriam uma atuao limitada e quase que restrita aos casos especficos dos trabalhadores das indstrias. A criao desta Junta em Jaboato viria a ser algo fundamental para o encaminhamento das mudanas estruturais neste municpio, que ainda em incios da dcada

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de 1960, mantinha suas bases econmicas sustentadas predominantemente pelo latifndio canavieiro como era de praxe nos municpios da Zona da Mata pernambucana. Mesmo com o fato de que pouco tempo depois, no ano de 1964, ter sido dado o Golpe civil-militar, os caminhos para a libertao dos trabalhadores rurais seguiria o seu longo trajeto, porm, atravs de novos rumos. Estes seriam caracterizados pela volta do peleguismo sindical
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, marcado pelas constantes intervenes feitas pelos militares e tambm pela

represso a quaisquer tentativas de se fugir linha traada pelos generais que estavam no poder. Os militares, aps decretarem o golpe, tomaram as rdeas da sociedade que o governo de Jango deixara fugir de suas mos, algo que de certa forma contribura para o acirramento das disputas entre as diversas classes da sociedade civil.

OS CAMINHOS PARA A JUSTIA EM JABOATO Jaboato no ano de 1960 tinha uma populao que j ultrapassava a casa dos 100 mil habitantes, estes estavam distribudos nos 234 Km de rea da cidade. O municpio era dividido em trs distritos, o Distrito sede, o da Muribeca e o de Cavaleiro. At fins desta dcada, a cidade teria um crescimento demogrfico que superara todos os municpios da Regio Metropolitana do Recife, possuindo segundo o senso do IBGE de 1970, uma populao que j ultrapassava 200 mil habitantes, ou seja, o nmero de pessoas que viviam na cidade dobrara no perodo de dez anos18. Na dcada de 60 o municpio continuara a ser uma regio predominantemente rural, tendo aproximadamente 40 engenhos espalhados por todo o seu territrio, estando a maioria deles sob a administrao das Usinas Jaboato, Bulhes e Muribeca19. No livro organizado
17 Aps o golpe de 64, os sindicatos, que eram controlados pelas Ligas ou que sofriam grande influncia do PC, tiveram as suas diretorias destitudas e substitudas por pessoas de confiana do novo governo. Voltado velha sistemtica do Estado Novo, eles tambm passaram a abandonar a linha de apoio s reivindicaes trabalhistas e a ter funo assistencialista. ANDRADE, Manuel Correia de. Histria das usinas de acar de Pernambuco. 2. ed. - Recife: Ed. Universitria da UFPE, 2001, p. 111.

18 VELOSO, Van-Hoeven Ferreira. Jaboato dos meus avs. 2. ed. Recife: Centro de Estudo de Histria Municipal, 1982, p.27.

19 Ver anexo 2, mapa da cidade de Jaboato em fins da dcada de 1950.

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pelo historiador Antnio Paulo Rezende que conta a histria desta cidade, existe uma entrevista realizada em fevereiro de 1996, com o trabalhador rural e morador h dcadas da cidade, Jos Timteo da Paz, tendo ele afirmado que no final da dcada de 1940:
... Jaboato limitava-se a esse distrito, resumindo-se a trs armazns: do Geraldo, de Z Pedro e de Z Martins. Prazeres era apenas com cabanas de pescadores. O grosso da populao, mais de 70%, vivia nos engenhos e nos distritos. Nos sbados, conta meu av, eram verdadeiras caravanas de burros e cavalos, centenas de pessoas que traziam jaca, banana para vender em frente a esses armazns citados, na Estrada da Luz, que faziam suas feiras e retornavam aos engenhos, tarde. A vida do municpio era a atividade rural.20

Apesar do relato se referir a pouco mais que uma dcada antes do perodo analisado neste artigo, possvel observar algumas permanncias destas condies estruturais da cidade atravs da anlise dos processos trabalhistas da JCJ de Jaboato. O analfabetismo em finais da dcada de 1950, chegava a atingir quase 60% da populao, a maior parte desses viviam da prestao de servios para os latifundirios da regio. A agricultura era a atividade que praticamente sustentava a economia na cidade, sendo a lavoura de cana de acar predominante sobre as outras culturas, algo que era quase que regra na Zona da Mata de todo o estado. O Municpio era tambm uma rea de forte atuao dos comunistas e havia chamado ateno das autoridades nacionais, aps a participao ativa da sua populao no levante comunista de 193521. Fora aps este evento que a cidade recebera a alcunha de moscouzinho, que tanto atormentava os anticomunistas jaboatonenses. Outro fato que atrara os olhares para Jaboato foi quando em outubro de 1947, seus habitantes elegeram para prefeito da cidade, o mdico comunista, Manoel Rodrigues Calheiros, que atravs de uma aliana com o Partido Social Democrtico, conseguira lanar sua candidatura. Jaboato por estar muito prximo ao Recife, j vinha sofrendo h dcadas devido ao fluxo migratrio da capital para esta cidade, algo que contribura consideravelmente para o aumento demogrfico do municpio jaboatonense. A cidade passou a receber, a partir da dcada de 1960, um grande apoio do Governo Estadual e Federal, que atravs da SUDENE e
20 Rezende, A. P. M.. Jaboato: Histrias, Memrias e Imagens. 1. ed. Recife: FUNDARPE/CEPE, 1996. v. 1, p. 66.

21 Conhecido popularmente como Intentona Comunista, o levante ocorrera em novembro de 1935 e fora uma tentativa de golpe frustrada, planejada pela Aliana Nacional Libertadora (ANL) em conjunto com o PCB. Os revoltosos foram rapidamente contidos pelo exrcito e foras policiais, sob ordens do presidente Getlio Vargas.

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outros rgos pblicos, incentivara o desenvolvimento da regio, estimulando a vinda de indstrias para a localidade, oferecendo como troca aos empresrios, considerveis vantagens fiscais22. Enquanto que a cmara municipal concedia iseno de impostos por at dez anos para as empresas, os rgos pblicos de financiamento forneciam os subsdios para a implantao das indstrias. Tudo isso contribuiu para a criao do parque industrial s margens da BR-101, na regio antes inspita da Vila dos Prazeres e s aconteceu devido a esta parceria entre os poderes federal, estadual e municipal. O crescimento desta pequena Vila, j traria algumas mudanas na organizao do municpio jaboatonense, pois em meados de 1962, atravs da Lei municipal 907, a sede do Segundo Distrito, at antes situada na regio rural da Muribeca, onde tambm estava localizada a usina de mesmo nome, seria transferida para o povoado de Prazeres. Este feito deixou claro o direcionamento dos olhares das autoridades locais no crescimento do plo industrial de Prazeres, que vivia uma fase de grande prosperidade econmica, tendo inclusive contribudo para a elevao considervel da arrecadao municipal neste perodo. Deve-se somar a isto, o fato do crescimento populacional no permetro deste plo industrial, que passaria aos poucos a pressionar as reas onde antes reinavam os latifundirios23. Para se ter noo deste crescimento da regio de Prazeres, em 1974, das 172 indstrias de transformao localizadas no municpio, 100 delas funcionavam no 2 Distrito. J em 1977, das 272 indstrias existentes, 172 estavam situadas no distrito de Prazeres 24. Atravs da anlise dos processos trabalhistas da JCJ de Jaboato, foi possvel observar essas transformaes e aos poucos compreender o declnio gradual das seculares famlias latifundirias neste municpio, que passaram a sofrer as conseqncias do avano das indstrias. O primeiro sinal desta decadncia ocorrera quando os tradicionais Albuquerques Maranho, proprietrios da Usina Muribeca, decretaram a falncia de sua indstria.

22 O relatrio de Celso Furtado propunha o abandono do enfoque tradicional da defesa contras s secas e construes de aude, em favor de programas de industrializao urbana para absorver mo-de-obra, e de reestruturao agrria do Nordeste, a fim de aumentar a produo de alimentos. TAMER, Alberto. O mesmo Nordeste. So Paulo: Herder, 1968, p.X.

23VELOSO, Op. Cit., p. 244.

24VELOSO, Op. Cit., p.101.

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A QUEDA DO PRIMEIRO BALUARTE

A Usina Muribeca foi fundada em 1889, pela Companhia Aucareira de Pernambuco. No incio do sculo XX, foi comprada por Jlio Carneiro de Albuquerque Maranho, passando posteriormente a ser administrada depois por seus descendentes. Manteve-se como grande pilar do latifndio canavieiro em Jaboato at meados de 1920, quando depois deste perodo, teve sua produo superada pelas outras usinas do municpio, algo que contribura posteriormente para o encerramento de suas atividades industriais em meados da dcada de 1960. O gradual declnio do latifndio aucareiro em Jaboato teria incio em abril de 1965, quando fora anunciada a falncia da Usina Muribeca, que imperava sobre a rea rural do 2 Distrito, o qual tinha na poca aproximadamente 108 Km, onde podemos deduzir que pelo menos 60% desta rea pertenciam aos proprietrios desta usina. Segundo Manuel Correia de Andrade, em seu livro Histria das usinas de acar de Pernambuco, a usina teria sido fechada devido ao fato de se localizar muito prxima ao Recife e por isso teve suas terras ocupadas pelo crescimento urbano25. Podemos ir mais alm desta alegao e dizer que a sua decadncia teria sido motivada tambm pelo desenvolvimento das indstrias na regio de Prazeres, que estava muito mais prxima das terras da Usina Muribeca. Sendo assim, o avano urbano nas reas prximas ao parque industrial teria contribudo para o fechamento desta usina. Na verdade isso seria apenas um agravante para a crise vivida pelos administradores da usina, tendo se juntado a outros fatores que sero abordados. neste contexto que entram os processos trabalhistas que foram analisados pela nossa equipe no decorrer destes quase dois anos. Sem o auxlio destas fontes documentais, poderamos dizer que seria praticamente impossvel destrinchar e compreender este processo de decadncia da usina dos Albuquerques Maranho. Algo que dificultara as nossas pesquisas foi o fato de que alguns processos chegaram em nossas mos incompletos ou totalmente fora
25Manuel Correia de Andrade diria que: Aquelas usinas que produziram em 1963/64 menos de 50.000 sacos, foram desmontadas, como no caso da Usina Muribeca, que por estar muito prxima ao recife, teve suas terras ocupadas pelo crescimento urbano. ANDRADE, Op. Cit., p.107-108.

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de ordem e isso se agravava quando nos deparvamos com os processos de quase 400 folhas. Tudo isto nos colocou de frente com um imenso quebra-cabea, necessitando assim de maiores cuidados e pacincia daqueles que enfrentaram este desafio. Atravs da anlise meticulosa destas reclamaes trabalhistas conseguimos identificar a rea de influncia da decadente Usina Muribeca, como tambm das Usinas Bulhes e Jaboato que dividiam grande parte das terras do municpio jaboatonense. Para se ter idia do quo exorbitante era a dominao do latifndio nesta regio, so citados no universo dos processos analisados, aproximadamente 40 engenhos em Jaboato26, estes ocupavam quase que 70% da rea total do municpio. Ainda foi possvel identificar que a dominao dos usineiros jaboatonenses se expandira aos municpios vizinhos de Moreno, Vitria de Santo Anto e Pombos, reas onde as Usinas Bulhes e Jaboato eram mais atuantes. A partir dos processos trabalhistas, foi possvel observar que a primeira srie de reclamaes contra Usina Muribeca teve incio em fevereiro de 1965 quando 99 operrios, representados pelo Sindicato dos Trabalhadores da indstria do acar de Pernambuco, entraram com uma reclamao conjunta exigindo os seus direitos. Em dezembro de 1965, ocorreu uma nova onda de reclamaes, pois neste ms foram originadas mais de 85% das queixas relativas aos trabalhadores rurais da usina Muribeca. No intervalo de tempo entre 1966 e o segundo semestre de 1968, foram movidas apenas 28 reclamaes contra a mesma reclamada. Porm, de junho at o final daquele ano aparecem mais 38 novas aes trabalhistas contra a Usina, que nesta poca j havia decretado sua falncia e segundo o seu administrador Judicial, vinha mantendo apenas alguns empregados para a manuteno das terras de sua propriedade. At abril de 1966, j tinham sido movidas 753 reclamaes, que deram origem a 690 processos ajuizados. Quem confirmou este nmero foi o administrador judicial27 da Usina,
26 Sete destes eram de propriedades da Usina Muribeca. Eram eles: Engenho Muribequinha, Salgadinho, Conceio, Barbalho, Guararapes, Capelinha e Novo.

27 Segundo Fernando Porfrio: O administrador judicial um interventor, designado pelo juiz, que fica
encarregado das atividades burocrticas do processo judicial. Na falncia, atua como uma espcie de gerente da massa falida, empenhado em verificar a situao patrimonial e sair em busca de ativos que permitam pagar os credores. Na empresa em recuperao, funciona como os olhos do juiz na administrao exercida pelos donos da companhia. Disponvel em <http://www.amvvar.org.br/ofenews110709.php>.Acesso em: 28 de agosto de 2010.

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Manoel Loureno da Silva, que havia recebido esta misso do Juiz de direito Jaboato. Isto aconteceu depois que a justia municipal havia deferido o pedido prvio de seqestro de bens numa ao judicial, na qual, solicitou a dissoluo da sociedade annima da usina pelo fato de seus proprietrios estarem em dbito e com aes executivas do Banco do Brasil, Instituto do Acar e do lcool (IAA) e Instituto Nacional de Previdncia Social (INPS). Em um dos processos Manoel Loureno alegara que o montante da dvida correspondia em 1965, a algo em torno de NCr$ 1.200.000,00 sem que fossem acrescentados a este valor as dvidas trabalhistas que viriam nos anos seguintes. Pode-se supor que esses acordos trabalhistas contriburam para que os proprietrios da Usina Muribeca ficassem mais ainda afundados em dvidas e que, por conseguinte, impedira quaisquer tentativas de se reativar sua indstria. Em 1966, aps terem sido ajuizadas as reclamaes dos trabalhadores, as dvidas trabalhistas da usina totalizavam o numerrio de NCr$ 974.000,00, tendo sido pago aos reclamantes at 1968 algo em torno de NCr$ 400.000,00. Desta forma, seria exagero alegarmos que estas dvidas trabalhistas foram o motivo principal para que a Usina no voltasse a funcionar, no entanto, podemos supor que elas contriburam consideravelmente para a bancarrota efetiva desta empresa.

MUITOS DEVERES E POUCOS DIREITOS, A JUSTIA ENTRA EM CAMPO

Os processos dos trabalhadores do campo foram originados, em sua maioria, a partir de dezembro de 1965, quando nos pareceu que os trabalhadores desistiram de esperar a bondade dos proprietrios da Usina, que havia prometido que readmitiria todos estes assim que voltasse s suas atividades, algo que de fato nunca ocorreu. Decidem assim, recorrer e pedir a interveno da Junta de Conciliao do municpio, no intuito de pleitearem os seus direitos, que vinham sendo negados e esquecidos pelos seus patres. A procura pelo sindicato foi to grande, que as folhas iniciais dos processos eram mimeografadas, onde nelas s se deixava os espaos para o preenchimento dos dados pessoais e para assinatura do reclamante. Nos processos gerados pelos trabalhadores rurais contra a Usina Muribeca foi possvel observar que os objetos da ao de quase todos giravam em torno do no pagamento por parte da Usina do 13 ms, aviso prvio, frias e indenizao, tendo aparecido em alguns casos o pedido do pagamento de salrios atrasados. A cobrana destes direitos foi feita pela

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maior parte dos 654 trabalhadores rurais, que entraram com reclamaes contra a Usina, no ano de 1965. possvel afirmar que aos poucos os trabalhadores do municpio foram tomando conscincia de seus direitos, passando a recorrer justia quando necessitavam e para isto contaram com o apoio do sindicato da regio. Mesmo que sob a tutela do governo militar, este rgo de classe aparentava atender s reivindicaes dos trabalhadores, os auxiliando em suas reclamaes, tendo inclusive uma participao considervel nas reclamaes movidas contra a Usina Muribeca. No h dvidas, no entanto, que a maior parte dos sindicatos do estado tinham praticamente abandonado a sua postura reivindicatria e passando a ter uma funo quase que assistencialista aps o golpe de estado de 1964. Desse total de trabalhadores rurais que foram justia, foi detectado que, pelo menos, 50% destes eram analfabetos, sendo isto deduzido, a partir das impresses digitais presentes nos processos no local onde deveria estar a assinatura do reclamante. Alm disso, notamos ainda que grande parte dos que conseguiam assinar o seu nome, tinham dificuldade de faz-lo. A presena de mulheres, apesar de ser inferior ao nmero de homens, era comum. Foi tambm encontrado um nmero nfimo de menores de idade que tambm trabalhavam nas rduas tarefas do campo, muitas vezes ao lado de seus familiares. Em geral, notamos que os processos dos trabalhadores do campo, na maioria das vezes, eram impostos com o auxlio do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Jaboato. Porm, foi notada a falta de unidade desta classe, pelo fato de terem sido originados 64 processos pelos 478 trabalhadores rurais contra a Usina Muribeca. Isto provavelmente dificultava a atuao dos Juzes do Trabalho deste municpio, que muitas vezes liam e ouviam as mesmas explicaes e argumentos das partes, nas diversas audincias realizadas que ocorriam no decorrer dos processos. As reclamaes eram, na maioria das vezes, concludas no perodo mdio de dois ou trs anos, quando ento eram celebrados os acordos de conciliao. Muitas vezes estes acordos eram aceitos pelos trabalhadores no intuito de se impedir o adiamento da concluso do processo, sem contar que muitos temiam no receber nada ao findar o processo e isso provavelmente pesava no momento em que aceitavam o acordo. Algo que fora tambm observado nas reclamaes, que muitos trabalhadores ao optarem pela conciliao, recebiam a determinao do Juiz presidente da junta, de que deveriam desocupar as terras e stios que residiam e ocupavam com suas pequenas lavouras

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de subsistncia28. Esse era o preo da conciliao, ou seja, os trabalhadores aceitavam o corte do vnculo que possua com a Usina, esta cedia o numerrio correspondente ao acordo e em troca recebia suas terras de volta, ou seja, um timo negcio para o patro. E por que eles queriam a terra de volta? No era somente para plantar mais canas, mas tambm possivelmente devido a outro fator que aparentava atrair os olhares e investimentos dos Albuquerques Maranho, que era naquele momento a especulao imobiliria. Foi tambm nos processos trabalhistas contra a Usina Muribeca que observamos algumas vezes a interveno de uma tal Companhia de Terrenos Prazeres, cedendo emprstimos para o administrador judicial da usina para celebrar alguns acordos com os reclamantes. vlido informar que o dinheiro emprestado por esta empresa, segundo as informaes contidas nos processos, foi obtido aps a venda de alguns lotes de terra. Seria de se suspeitar que uma empresa de terrenos fizesse uma boa ao para ajudar os usineiros falidos? Realmente no era simplesmente por bondade, pois tambm nos processos trabalhistas analisados, foi possvel detectar que a citada Cia. de Terrenos pertencia a Eduardo Jlio de Albuquerque Maranho, filho de Julio Maranho e tambm um dos acionistas da falida Usina Muribeca29. Esta interveno ocorrera, na maioria das vezes, depois que o Juiz Presidente da Junta decretava o Auto de Penhora, no qual, era determinado que caso os pagamentos aos reclamantes no fossem executados, alguns bens da Usina viriam a ser leiloados. Para evitar a perda de patrimnio, os antigos acionistas preferiam intervir na questo, fornecendo a quantia necessria para que o administrador judicial efetuasse acordos com os reclamantes. Para se ter idia disto quando se chegou ao ponto de se executar a penhora em um dos processos contra a Usina Muribeca, os reclamantes pediram que fosse praa a moenda da Usina de quatro ternos e de um trator de procedncia holandesa fabricado em 1952, que foram avaliados em meados de 1967 no montante de NCr$ 900.000,00. Esse pedido de
28 Das lutas realizadas nos primeiros anos da dcada de 60, resultou uma ampliao da sindicalizao do trabalhador rural, que passou a gozar de direitos da previdncia social, aposentadoria, frias anuais, salrio mnimo. Por outro lado, grande parte se viu despojada dos stios onde morava, passando a viver em cidades e povoados. ANDRADE, Op. Cit., p.116.

29Arnaldo Arim Carneiro de Albuquerque (Agricultor), Fernando Jlio de Albuquerque Maranho (Industririo) e Eduardo Jlio de Albuquerque Maranho (Mdico), Julio Carneiro de Albuquerque Maranho Filho (Industrial) aparecem como os acionistas da Usina Muribeca no ano de 1965.

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penhora fora feito em vrios processos dos trabalhadores rurais, porm nunca de fato foi efetivado, principalmente pela alegao da reclamada de que o valor das mquinas era muito superior ao valor determinado pelo juiz da Junta. Em meados de 1968, o sindicato reagindo contra essa alegao da reclamada, pedira ento que o bem a ser leiloado fosse substitudo por outro, pelo fato da moenda estar sob penhor industrial pelo Banco do Brasil e IAA. O bem que deveria substituir seriam as terras do Engenho Conceio, que pertencia tambm reclamada, tinha seus 400 hectares e foi avaliado em 1971, no valor de Cr$ 30.000,00. Observou-se depois disso que a usina reclamada no demorara muito tempo a recorrer Junta, pedindo a no realizao da penhora, afirmando que tinha conciliado com os reclamantes e realmente tinha. Sendo assim, a penhora no foi realizada e a to temida perda das terras no havia ocorrido, tendo sido realizadas todas as conciliaes e o processo concludo sem grandes perdas para a reclamada. A partir da anlise destes acontecimentos, possvel prever que o crescimento especulativo nas reas prximas ao parque industrial de Prazeres, passou a atrair a ateno da tradicional famlia latifundiria. Esta mudana de rea de atuao econmica da famlia fazia sentido, pois, produzir cana no Nordeste at antes da proclamao do ETR, no representava um custo muito alto para os usineiros, que exploravam sem limites os trabalhadores e ainda pagavam menos que o mnimo necessrio para a sobrevivncia destes. Porm, com a vinda das leis para os trabalhadores do campo e com o auxilio da Justia do Trabalho para assegurar sua prtica, a classe patronal passou a ser pressionada pelo Estado para que fossem garantidos os direitos trabalhistas dos seus empregados. Os custos com os trabalhadores do campo, em alguns casos chegaram a dobrar as despesas das usinas, tendo assim, muitas dessas, como no caso da Muribeca, no suportado este fardo, terminando por decretar falncia30. O representante da Usina na Justia, Adalberto Pereira Guerra, argumentara em muitos processos que a empresa no tinha condies de pagar os direitos dos trabalhadores, pelo fato de estar com muitas dvidas e se fossem aumentados os custos a firma no teria como se manter, como de fato havia acontecido. Alegara tambm que deveria ser acrescentado a isso, o fato de que a Usina no havia recebido quaisquer subvenes do governo e muito menos

30 Os principais encargos trabalhistas representam para o empresrios, cerca de 27% a mais sobre o salrio pago. Logo o trabalho volante faz do trabalhador rural uma espcie de empresrio para si e fica totalmente descoberto pelos benefcios do ETR. GONZALES, Elbio N. e BASTOS, Maria Ins. Trabalho volante na agricultura brasileira. In: PINSKY, Jaime (Org.). Capital e trabalho no campo. So Paulo: Hucitec, 1977, p.4243.

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financiamentos dos rgos governamentais, sem contar ainda com a ao executiva mantida pelo Banco do Brasil contra os acionistas da Usina. Sendo assim, o acar produzido no Nordeste passou a ter seu real preo de custo. A partir deste momento os usineiros, que insistiam em manter seus mtodos arcaicos de produo, sentiram que seria mais rentvel paralisar suas atividades nas suas respectivas usinas e passaram a viver sob a condio de fornecedor de cana. Nos processos trabalhistas analisados foi possvel ver que isto aconteceu com a Usina Muribeca, pois em reclamaes posteriores que datam o ano de 1968, o administrador judicial, Manoel Loureno da Silva, afirmara em resposta a um questionrio proposto pela Junta, que a Usina vinha mantendo um rendimento mensal considervel e crescente nos anos posteriores paralisao de suas atividades atravs do fornecimento de cana para outras usinas do municpio. No processo 431/68 o representante da Usina alegara que:

A reclamada paralisou as atividades rurcolas por motivo de fora maior qual seja da sua m situao econmica financeira, j configurada com a paralisao no setor industrial em 4/4/1965 quando deixou de ser usina fabricante de acar para se transformar em fornecedora de cana da Usina Jaboato.

Essa alegao por parte do administrador comprova que a empresa sob sua administrao estava atuando em parceria com as outras fabricas de acar do municpio, o que nos faz deduzir que o crescimento na produo das outras usinas de Jaboato, estava ligado diretamente com a absoro das terras da antiga Usina Muribeca. De acordo com o que foi alegado nos processos por Manoel Loureno, a usina havia feito um contrato com as outras usinas do municpio para que fosse feita a retirada de suas canas e o dinheiro que recebia estava sendo aplicados nas indenizaes dos operrios. Segundo as informaes do administrador judicial em 1968 a Usina Muribeca mantinha apenas 14 funcionrios, o que nos mostra que a Usina mantivera um contingente considervel de trabalhadores clandestinos31, ou ento que havia fornecido as suas terras para
31 Os corumbas, catingueiros ou curaus so habitantes do Agreste e s vezes do serto... que chegado, porm, o estio, nos meses de setembro e outubro, quando as usinas comeam a moer e a seca no permite a existncia de trabalhos agrcolas no Agreste, eles descem em grupos em direo rea canavieira, s vezes a p, s vezes em caminhes, e vm oferecer seus trabalhos nas usinas e engenhos. A permanecem at as primeiras chuvas que, no Agreste, se precipitam em maro ou abril, quando regressam aos seus lares a fim de instalar novos roados. ANDRADE, Manuel Correia de. A Terra e o Homem no Nordeste: contribuio ao estudo da questo agrria no Nordeste.7. ed. rev. e aumentada So Paulo: Cortez, 2005, p.133.

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que as outras usinas plantassem as canas. Houve de fato uma reduo na produo de canas, por parte da Usina Muribeca, pois o mesmo Manoel Loureno fornecera para a Junta alguns dados relativos produo de cana da Usina entre os anos de 1965 e 1968, como consta na tabela a seguir:

Tabela 1. Produo de acar nas terras da Usina Muribeca ANO 1964/65 1965/66 1966/67 1967/68 1968/69
Fonte: Proc. 0554/68 da JCJ de Jaboato

PRODUO EM TONELADAS 45.000 21.790 6.127 10.070 14.000

Visto esses dados acima possvel notar que apesar de manter uma produo de cana crescente, os acionistas da Usina no mais desejavam prosseguir como usineiros, preferindo assim manter apenas a posse das terras, passando com isso a terem suas terras absorvidas pelas outras usinas do municpio, que segundo dados de Manuel Correia mantinham uma produo crescente de acar no estado.

Tabela 2. Evoluo da produo aucareira das usinas de Jaboato Produo de Acar (Sacos de 60kg) Usina/Ano Muribeca Bulhes Jaboato 1917/18 13.000 8.000 8.000 1933/34 12.834 42.171 62.512 1953/54 75.629 184.102 224.815 1963/64 42.061 211.888 268.650 1973/74 ---------420.670 372.369

Dados de origem: ANDRADE, Manuel Correia de. Histria das usinas de acar de Pernambuco. 2.ed. Recife: Ed. Universitria da UFPE, 2001.

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Os dados apresentados nos mostram que a produo da Usina Muribeca, a partir da dcada de 30 j no acompanhara o crescimento das outras usinas do municpio que aumentaram sua produo progressivamente. Visto estes dados fica claro tambm que Usina Muribeca aparentava ter parado no tempo e a partir de meados da dcada de 1950 comeou a apresentar um declnio considervel na sua produo. Isto pode ter sido um agravante para as crises que assolavam esta usina ou o resultado da m administrao de seus proprietrios. Tudo isto culminaria em sua falncia pouco tempo depois.

IMPREVIDNCIA CAUSA A FALNCIA?

Visto tudo isso, seria ingenuidade acreditar nas alegaes feitas pelos representantes da Usina Muribeca nas audincias, de que por motivo de fora maior 32 havia encerrado suas atividades e por isso tentara justificar o atraso dos pagamentos dos reclamantes, como tambm no seu argumento de que no tinha condies de assegurar o pagamento dos direitos dos trabalhadores. Assim sendo o presidente da junta, o juiz Edgar da Silva Lacerda, tomaria uma atitude plausvel ao decretar em meados de 1969 um parecer contra os proprietrios da usina afirmando que:

... se conclui inapelavelmente, que todos os males que afligem a empresa, uma simples decorrncia da desorganizao administrativa e imprevidncia de seus proprietrios, e por isto no podem os reclamantes arcar com o nus de no receberem o que lhes devido.

32 Segundo o Art. 501, Captulo VIII da CLT de 1943, Entende-se como fora maior todo acontecimento inevitvel, em relao vontade do empregador, e para a realizao do qual este no concorreu, direta ou indiretamente.

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Ao decretar que os males que atingiam a empresa foram motivados pela imprevidncia por parte de seus administradores, a Justia desconsiderava quaisquer alegaes por parte da reclamada que levantasse a razo de fora maior. Aps este parecer da junta que encerrara uma das reclamaes contra a usina, podemos observar que a Justia do Trabalho, no estava alheia situao que se passava na zona canavieira do Nordeste, onde na maioria das vezes, o estado atendia aos pedidos de subveno dos usineiros, que alegavam a concorrncia desleal com o Sudeste e as diversas crises patrimoniais para assim receberem o auxilio do governo. Nos mostra tambm que a Justia, em nome do Estado, passaria a combater quaisquer tentativas dos usineiros em manter seu sistema arcaico de produo e asseguraria assim o direito mnimo que assistia aos trabalhadores de conciliar. Nos processos que foram pesquisados em nosso arquivo, foi possvel deduzir que pelo menos 478 trabalhadores rurais, de um total de 654, chegaram a conciliar com a reclamada at 1972, tendo por fim recebido o valor acordado. Tambm detectamos que pelo menos 171 destes trabalhadores perderam os seus stios, um nmero considervel, se pensarmos que em mdia cada stio deste acolhesse uma famlia de aproximadamente cinco pessoas, chegaramos ao nmero de quase 900 desabrigados. Esta questo merece um estudo especfico e mais detalhado, onde se tente analisar as conseqncias disso para a vida dos trabalhadores. Infelizmente no foi possvel ter uma viso mais completa da situao, devido ao fato de muitos processos estarem incompletos ou no terem especificado melhor estas questes. O caminho das conciliaes aparentava ser o mais aceitvel para o administrador judicial da Usina Muribeca, pois 86% dos processos foram concludos aps um acordo, apenas 2% tiveram como fim o seu arquivamento, pelo fato do no comparecimento dos reclamantes nas audincias. Outra parte das reclamaes o que equivalia a aproximadamente a 12% delas, estavam incompletos, no sendo possvel ter conhecimento da sua concluso. O tempo das aes trabalhistas variava de acordo com os reclamantes. Para se ter idia disto um nico processo onde constavam como reclamantes 99 operrios da Usina, iniciado em 1965, s foi completamente concludo em 1972, principalmente pelo fato de que as indenizaes destes trabalhadores serem bem mais elevadas que a dos que trabalhavam nas lavouras. J com os trabalhadores rurais a maior parte dos processos iniciados em 1965 foi encerrada em meados de 1968, aps serem celebrados diversos acordos de conciliao.

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Pode-se supor que o poder simblico destas conciliaes, como tambm das determinaes da justia, servira no mnimo para contrariar demasiadamente a classe patronal, que passaria a ser convocada quantas vezes fosse preciso para irem s juntas, local onde deveria ouvir as queixas dos trabalhadores e ter que seguir s determinaes do Juiz. Isso representava de fato, uma afronta a toda uma cultura secular dos latifundirios que mantiveram por muito tempo um sistema de produo, no qual no havia conciliao ou quaisquer acordos com os trabalhadores rurais. A justia seria aplicada nas reas rurais no intuito de aos poucos transformar essa realidade, que ainda hoje, depois de j passados quase que 50 anos de sua implantao, ainda continua a sofrer as resistncias dos latifundirios.

COSIDERAES FINAIS

Aps a leitura dos processos foi possvel chegar concluso de que a atuao da JCJ de Jaboato foi determinante para que fossem assegurados os direitos mnimos dos trabalhadores da Usina Muribeca. Os significados das conciliaes ainda carecem de um estudo mais especfico, em que se busque identificar as reais conseqncias delas, tanto para o trabalhador rural, como para o patronato. Dizer que elas representavam uma vitria para os empregadores, consiste em uma anlise pessimista, pois como j fora exposto, houveram de fato algumas conquistas para o trabalhador do campo, mesmo que possamos concordar que elas foram limitadas. Uma idia que conflui com este pensamento, foi exposta pela historiadora Larissa Rosa Corra, em sua dissertao de mestrado, onde ela afirmou que:

Enquanto alguns historiadores viram na JT um meio de pulverizar os interesses dos trabalhadores, outros observaram um aspecto importante para a classe trabalhadora: o direito de reclamar. Ainda que as leis no fossem respeitadas pelos patres, a CLT abriu novas possibilidades de os trabalhadores lutarem por direitos. A regulamentao das relaes de trabalho, independente de sua aplicao, representava, ao trabalhador, uma oportunidade, concreta e acessvel, de frear os abusos patronais, utilizando-se das possibilidades que o mundo legal lhe oferecia. A classe trabalhadora passou a fazer uso das mesmas armas articuladas pelo patronato, a prpria legislao trabalhista, antes usada para persuadi-los. Essas leis, que tantas vezes os oprimiam, foram revertidas em estratgias de luta pela reivindicao de

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direitos, alm de possibilitarem a elaborao de tticas de resistncia no cotidiano das relaes de trabalho nas fbricas, obtendo muitas vezes resultados positivos33

Seria injusto se julgssemos que a justia estava ao lado dos grandes proprietrios, pelo fato de que muitos dos pareceres da junta exprimiam a sua discordncia com as injustias praticadas pelos empregadores. Da mesma forma que cometeria o mesmo erro quem afirmasse que a Justia estava ao lado da classe trabalhadora. Nos processos analisados para esta pesquisa foi possvel observar que a Justia cumprira com o seu papel de conciliador dos litgios entre empregados e empregadores, podendo-se afirmar que neste aspecto ela foi eficaz. Muitas idias de estudos surgiram no decorrer das atividades desenvolvidas no projeto e este artigo tentou discutir apenas uma das questes encontradas no meio de tantos milhares de processos. muito cedo para prever os resultados dos nossos esforos, porm preciso deixar claro que os processos, vistos por muitos como apenas papel velho, na verdade contm uma infinidade de questes que at hoje no foram respondidas pela Histria, pelo Direito, pela Antropologia e cincias afins. nesse intuito que desejamos dar continuidade s nossas atividades, possibilitando o acesso e estimulando os estudos que analisem tambm essa documentao como mais uma fonte, dentre as outras disponveis. Podemos considerar que as Juntas de Conciliaes foram um instrumento para assegurar os direitos dos trabalhadores da Usina Muribeca, pois sem a presena delas, dificilmente os proprietrios desta Usina atenderiam s reivindicaes de seus empregados. Os acordos apesar de aparentarem muitas vezes serem injustos e fora da realidade serviram pelo menos para mostrar aos latifundirios, que sua lei no era mais hegemnica nas reas rurais. Uma coisa de fato no elimina a outra, pois seria ingenuidade alegar aqui que tudo virou maravilhas para o trabalhador aps o surgimento do direito de conciliao e de justia, pois o que estava em jogo no era simplesmente a disputa por direitos, mas sim, toda uma cultura patronal secular. preciso considerar que a possibilidade de conciliar representava o incio de uma nova fase para os trabalhadores do campo. Apesar do continusmo da opresso, possvel
33 CORRA, Larissa Rosa. Trabalhadores txteis e metalrgicos a caminho da Justia do Trabalho: Leis e direitos na cidade de So Paulo 1953 a 1964. Campinas, SP: 2007.

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tambm observar as tentativas de se superar o arcasmo da mentalidade da classe patronal, que aps proclamao do Estatuto do Trabalhador Rural, passou a ser pressionada tanto pelos trabalhadores, como tambm pelo estado e pela Justia do Trabalho. A Usina Muribeca foi o primeiro dos pilares do latifndio jaboatonense a desmoronar. Apesar de no podermos afirmar que sua decadncia fora diretamente provocada pela grande quantidade de processos ajuizados contra ela entre 1965/66. possvel deduzir que os impactos causados pelas dvidas trabalhistas da Usina, contriburam para a frustrao de quaisquer tentativas de recuperao por parte de seus proprietrios. Sendo assim, possvel afirmar que as Juntas de Conciliao contribuiriam para a transformao gradual de uma cultura vigente, na qual os latifundirios que determinavam as leis, para outra que buscasse assegurar pelo menos os mnimos direitos para a classe trabalhadora, o que de fato no era o desejvel, porm, podemos supor que foi algo que representou e ainda representa muito para o trabalhador rural.

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Processos do TRT 6 regio Processos da Junta de Conciliao e Julgamento, movidos contra a Usina Muribeca entre os anos de 1960 at 1970.

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