O Que É Homossexualidade
O Que É Homossexualidade
O Que É Homossexualidade
Edward MacRae
CIP-Brasil . Catalogagao- na-Publicagao
Camara Brasileira do Livro, SP
Fry, Peter.
F965o0que6 homossexualidade / Peter
Fry eEdward MacRae. - SaoPaulo
Abril Cultural Brasiliense, 1985.
(Colegaoprimeiros passos ; 26)
Bibliografia.
1. Homossexualidade 2. Homossexua-
lidade - Brasil I . MacRae, Edward. IT. Titu-
lo. 111. Serie: Primeiros passos ; 26.
84-1932
17. CDD-301.415
18. -301.4157
17. -301.4150981
18. -301.41570981
Indices para catalogo sistematico:
1. Brasil : Homossexualidade: Sociologia
301. 4150981 (17. ) 301. 41570981 (18. )
2. Homossexualidade: Sociologia 301. 415(17. )
301. 4157 (18. )
Oque^
H OM OS S E X U A L I D A D E
I t-i
A bril Cultural E ditora Brasiliense
1985
Revisdo: Silvana 1. Afram, JoseW. S. Moraes
INDICE
Copyright 1983 by Peter Fry/Edward MacRae
Copyright desta edicao, Abril S. A. Cultural eEditora
Brasiliense S. A. , SaoPaulo, 1985.
Publicadosob licenca da Editora BrasilienseS. A. , SaoPaulo.
- Assumindo uma posicao ...............7
- E proibido proibir ? ( Brasil 1968-1982) ... 17
- Mulheres, Homens, Berdaches, Bichas
eSapatoes ......................... 33
- Pecado, Crime, Doenca e Sem-Vergonhice . 60
- Nasce uma estrela ou o surgimento da
"consciencia homossexual" ............ 80
- As lesbicas - uma pedra no sapato das
feministas a das bichas ................ 101
- Fechando ..........................114
- Indicacoes para leitura ................ 121
41Ib
1, 41 JP
ASSUMINDO UMA POSIcAO
Para
Silvana e Julio
pelo carinho e atenca"o
com que ajudaram no
preparo deste livro.
"0 que e a homossexualidade?" Esta pergunta
tem como pressuposto que a homossexualidade
e alguma coisa. 0 problema a que a homossexua-
lidade a uma infinita variaca"o sobre um mesmo
tema: o das relacoes sexuais e afetivas entre
pessoas do mesmo sexo. Assim, ela a uma coisa
na Grecia Antiga , outra coisa na Europa do fim
do seculo XIX, outra coisa ainda entre os indios
Guaiaqui do Paraguai. Com este mesmo racio-
cinio, a homossexualidade pode ser uma coisa
para um campones do Mato Grosso, outra coisa
para um candidato a governador do Estado de
Sao Paulo em 1982 e, de fato, tantas coisas
quanto os diversos segmentos sociais da sociedade
brasileira contemporanea.
Um homem de Belem, por exemplo, pode
tranquilamente manter relacoes sexuais com
8 Peter Fry e Edward MacRae
uma pessoa que considere uma bicha. Para ele,
nao tem nada de diferente nesta atividade. Nem
por isso ele a menos homem. Ate poderia se
considerar mais macho que nunca . Da mesma
forma , um jovem rapaz na cidade de Sao Paulo
poderia manter uma relacao sexual com um
senhor mais velho em troca de alguns cruzeiros.
Como o nosso amigo paraense na"o a menos
homem por isso e jamais se pensaria como
homossexual . Na mesma cidade de Sao Paulo,
um homem universitario, militante do movimento
homossexual , pode discordar corn o jovem prosti-
tuto e afirmar que ele a um homossexual so que
nao sabe , nao tem consciencia.
Este mesmo rapaz poderia chegar a dizer que
todos os homens tern "uma porca"o mulher"
e que todo mundo tem urn lado homossexual
mesmo se latente e escondido. Esta mesma
opiniao poderia ser emitida por urn psicanalista
"progressista ". Outro psicoterapeuta, mais
"conservador ", poderia dizer que quem pratica
o homossexualismo a um doente mental e que
e capaz de ser curado. Se este terapeuta fosse
de tendencias behaviouristas , poderia receitar
terapia de aversao . 0 "paciente" seria sujeito
a nausea quimicamente induzida, ao mesmo
tempo em que ve numa tela a fotografia de um
homem nu . Ao se recuperar da nausea, e ao se
sentir mais tranquilo e contente , aparecia uma
fotografia de uma bela mulher.
I
0 que e Homossexualidade
Nesta mesma cidade de Sao Paulo, poderiamos
encontrar um espirita que acredita que os homos-
sexuais masculinos sao o resultado da encarnacao
de um espirito feminino num corpo masculino,
enquanto urn candomblezeiro poderia pensar
que era homossexual por ser filho da orixa
feminina lansa. Um delegado de policia poderia
pensar que os homossexuais sao uma ameaca
a ordem pGblica e instaurar uma operacao limpeza
no centro da cidade , atemorizando os homos-
sexuais na rua corn prisoes e violencias ilegais.
Outro advogado poderia gastar tempo e energia
de graca para libertar estas pessoas, partindo da
firme conviccao de que homossexuais nao sa"o
mais perigosos que quaisquer outras pessoas.
0 nosso amigo militante poderia achar que
gay is beautiful a tao absolutamente simpatico
e "normal" quanto qualquer outra pessoa, e
passear na avenida Ipiranga de maos dadas corn
seu amante . Outra pessoa poderia sentir a mais
abjeta vergonha da sua vontade de ter relacoes
sexuais corn outros do mesmo sexo e restringir
sua atividade sexual a escuridao do cinema ou
ao anonimato de um banheiro publico, ou a nada.
Como saber o que e a homossexualidade quando
nesta sociedade brasileira existem tantas opinioes
contraditorias e mal-encontradas a respeito do
assunto? Aonde comecar? Em quem acreditar?
Em vez de tentar responder diretamente a
esta pergunta, que implicaria ser este livro simples-
9
10 Peter Fry e Edward MacRae
mente mais uma receita que pretendesse ser um
prato com paladar melhor que os outros , iremos
numa outra direcao . Partiremos do pressuposto de
que no ha nenhuma verdade absoluta sobre o
que e a homossexualidade e que as ideias e praticas
a ele associadas sao produzidas historicamente
no interior de sociedades concretas e que sao
intimamente relacionadas com o todo destas
sociedades.
Assim, queremos arrancar a homossexualidade
do campo da psicologia e da medicina, que tern
se apropriado do assunto crescentemente desde
os meados do seculo XIX, Para coloca-la no
campo do estudo da cultura e da politica no seu
sentido mais amplo.
De fato, estamos apenas aplicando a area da
homossexualidade algumas ideias ja plenamente
aceitas nas discussoes sobre outras areas do
comportamento humano. Desde que Margaret
Mead escreveu seus dois famosos livros, Sexo e
Temperamento e Macho e Femea , em 1935 e
1949 respectivamente, e especialmente desde
o surgimento do feminismo moderno, a distinca"o
entre sexo fisiologico e sexo social ( papeis sociais)
tem sido discutida cada vez mais . A partir da
constatacao de que os papeis sexuais de "homem"
e "mulher" variam de cultura para cultura e de
epoca para epoca, a agora um lugar-comum
observar que cada sociedade , classe e regiao
tem a mulher e o homem que merece. Ninguem
s
0 que e Homossexualidade
hoje em dia acredita que as diferencas de compor-
tamento entre os dois sexos possam ser explicadas
apenas em termos de diferencas biologicas, pois
reconhece-se que os papeis sexuais sao forjados
socialmente.
Cria-se, entao, uma serie de expectativas a
respeito do comportamento considerado apro-
priado aos homens e mulheres de acordo com
sua posicao social. Estas expectativas, nem
sempre conscientes, sao impostas atraves de
uma serie de mecanismos socials . Desde o berco,
meninos e meninas sao submetidos a um trata-
mento diferenciado que os ensina os comporta-
mentos e emocoes considerados adequados.
Qualquer "desvio" a reprimido e recupera-se
o "bom comportamento".
0 interessante a que este mesmo raciocinio
e raramente usado quando se discute a homos-
sexualidade . De alguma forma, a tendencia e
de acreditar que homossexuais masculinos e
femininos sao biologicamente ou psicologica-
mente to diferentes dos assim chamados hete-
rossexuais,
que seu comportamento pode ser
compreendido em termos mais psicologicos e
biologicos que sociais . E tido como "natural"
que o homossexual masculino seja "afeminado"
e a homossexual feminina "mascula", e assim
as "bichas " e "sapatoes " do folclore brasileiro
adquirem o status de uma condicao que nunca
6 social, mas sim natural . E tambern tido por
11
12 Peter Fry e Edward MacRae
muitos que os homossexuais sa"o doentes ou,
ao menos, neur6ticos.
0 nosso argumento a que as pessoas chamadas
"homossexuais" njo sof rem de nenhuma
"condicao", mas que acabam, isto sim, sendo
levadas por pressoes sociais, em grande parte,
a desempenhar variacoes pouco ortodoxas dos
papeis sociais normalmente atribuidos aos
homens e as mulheres.Nas pequenas tribos, estes
papeis e a maneira pela qual a homossexualidade
e pensada sao mais ou menos homogeneos, isto
e, sao compartilhados por todos os membros
destas sociedades.M as, nas sociedades industria-
lizadas que sao altamente diferenciadas social-
mente, como e o caso da sociedade brasileira,
existem varios "papeis homossexuais" variando
de regiao para regiao e de segmento social para
segmento social.A lem disso, estes "papeis
homossexuais" se transformam ao longo do
tempo paralelamente a outras transformacoes
sociais.
M as, se a verdade que ha tantas maneiras de
representar e praticar a homossexualidade quanto
ha sociedades, epocas hist6ricas e grupos distintos
nestas mesmas sociedades, uma verdadeira resposta
a nossa pergunta implicaria uma serie de tomos,
comecando pela Grecia A ntiga, passando por
todas as sociedades indigenas, por todas as socie-
dades industrializadas e pela sociedade brasileira
em toda sua complexidade, desde o descobrimento
1
0 que e Homossexualidade
ate agora.
Pressupondo que os leitores deste livro estejam
basicamente interessados em pensar sobre a
homossexualidade no que tange as suas pr6prias
vidas cotidianas , resolvemos tomar a situacao
brasileira contemporanea como ponto de partida
para reflexao. Informacoes sobre as maneiras
de encarar e praticar a homossexualidade de outras
epocas e outras culturas serao inclu idas na
medida em que impingem diretamente sobre a
cultura brasileira ou na medida em que ajudam,
de alguma maneira, a entender certos aspectos
desta sociedade . Por exemplo, achamos que os
indios Guaiaqui do Paraguai e algumas tribos
da America do Norte tiveram uma maneira de
significar relacoes sexuais entre pessoas' do
mesmo sexo, cujos principios basicos, isto e,
a "masculinidade " e a "feminilidade", sao
muito parecidos com aspectos da situaca"o
brasileira contemporanea , que podemos encon-
trar , principalmente, nas prisoes, nos colegios,
nas zonas rurais e nos suburbios das grandes
cidades.
Como os medicos e psicoterapeutas brasileiros
se formaram e se formam de acordo com
paradigmas muitas vezes produzidos nos centros
universitarios europeus e americanos , buscaremos
nesses lugares subsidios para entender as condicoes
hist6ricas da producao destes paradigmas. Como
o Brasil no a uma ilha, mas sim pane da
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J
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economia mundial ( o FMI que o diga ), a claro
que, ao discutir as ideias e praticas que surgem
nos centros de producao de conhecimentos e
que sa"o veiculadas pelos 6rg5os de comunicacao
de massa, no podemos ignorar o fluxo de infor-
macao e ideias que passa pela alfandega brasileira.
A ssim, ao discutir a organizaca"o e ideias do movi-
mento homossexual no Brasil , teremos de levar
em consideracao a hist6ria deste movimento
desde suas origens na Europa no seculo X I X .
A proposta deste Iivro entao a de examinar
as varias ideias, representacoes e praticas associa-
das a nocao de relacoesr sexuais/afetivas entre
pessoas do mesmo sexo no Brasil , como vozes
muitas vezes discordantes , cada uma tentando ser
ouvida mais que as outras .No campo da teoria
economica sao produzidas varias teorias cujos
proponentes lutam entre si para fazer valer sua
opiniao. Na pol itica partidaria, isto a feito
atraves de eleicoes ( quando tem), mas, no campo
da sexualidade humana , a luta a engajada em
todas as areas da sociedade, nos consult6rios
medicos, nas delegacias de policia , na rua, nos
bares, na sala de visitas e na cama .U ns procuram
legitimidade para suas opinioes, reivindicando
a "objetividade" da ciencia , outros invocam
a autoridade de Deus ( e a curioso notar que um
unico Deus pode legitimar tantas diferentes formas
de encarar a homossexualidade ),
enquanto os
movimentos homossexuais invocam a legitimi-
0 que e Homossexualidade
dade da representaca"o de uma minoria oprimida.
Nos mesmos invocamos a postura relativizante
da antropologia social para legitimar o nosso
procedimento que a de enxergar a questao do
homossexualismo como sendo essencialmente
uma questao politica e cultural.
Partindo da observacao de que as praticas e as
ideias associadas a homossexualidade variam
de contexto e de cultura para cultura, e de
segmento para segmento numa sociedade estra-
tificada como a brasileira, nos nos interessamos
em tentar compreender esta variacao em relacao
a outras variacoes culturais e estruturais. Assim
estaremos interessados em procurar, entre outras
coisas , a I6gica social das ideias e praticas
associadas a homossexualidade e sua significacao.
Deste modo, as varias categorias que surgiram
para "explicar" a homossexualidade, como
aquelas que atribuern o desejo homossexual a
certas constelacoes familiares , aquelas que
apontam para fatores geneticos e hormonais
e aquelas que propoem explicacoes religiosas
serao examinadas em relacao a outras teorias
concomitantes a respeito da fam i l is e, porque
nao, da economia politica.
De fato, nenhuma das teorias existentes sobre
as causas de homossexualidade nos convence
e a nossa tendencia a de trata - las todas, sem
excecao, como producoes ideol6gicas. Desta
6tica relativizante , estas teorias dizem muito
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J
16
Peter Fry e Edward MacRae
/ 11
mais sobre pessoas que as articulam, dos contextos
sociais e culturais onde sao produzidas do que
sobre a "homossexualidade" em si.
E sta perspectiva "antropologica" e relativi-
zante, que ve a homossexualidade mais como
fato social que fato biologico ou psicologico, e
apenas uma opcao possivel.Temos consciencia,
porem, de que o nosso proprio pensamento e
tambem fruto da nossa posicao social e deste
momento historico, e apenas oferecemos como
mais uma voz na cacofonia geral sobre a sexuali-
dade.M as a clarp que temos uma certa conviccao
da relevancia destas ideias e esperamos conseguir
convencer algumas pessoas ao longo do nosso livro.
A lem desta postura relativizante, temos, e
claro, as nossas proprias ideias a respeito da homos-
sexualidade, que sao as mais simples possiveis.
D esejos homossexuais sao socialmente produzidos
como sao tambem produzidos desejos heteros-
sexuais.Para nos, um, ou outro ou ambos tern
o mesmissimo valor e devem ser vistos com a
mesma perplexidade normalmente apenas
reservada para a homossexualidade.Como
estamos conscientes da historicidade dos
proprios conceitos de "homossexualidade" e
"heterossexualidade", vislumbramos tambem urn
dia em que este livro e seu titulo serao vistos
como curiosidade da decada de 1980.
a a J
^Ap ajP
E PROIBIDO PROIBIR?
(BRASIL 1968- 1982)
E m 1968 Caetano Veloso mais uma vez provo-
cou um
escandalo.E m plena era da constelacao
cultural e politica, quando imperava
o padrao
Geraldo Vandre entre a juventude que se
achava consciente e conhecedora dos
caminhos
corretos para a transformacao da sociedade
brasileira, ele teve a desfacatez de se apresentar
com guitarras eletricas (escandalo!) e roupa de
plastico.0 nome da musica "E proibido proibir"
ecoava as palavras de ordem do conhecido
movimento operario-estudantil que irrompeu
naquele ano em Paris e reportavam a uma especie
de anarquismo inadmissivel, tanto para a direita
quanto para a esquerda bern pensante.
Tao afrontoso foi este comportamento as
ideias estabelecidas sobre a musica popular brasi-
18 Peter Fry e Edward MacRae
leira e as ideias politicas vigentes entre um setor
expressivo da juventude, que o publico nao
permitiu que terminasse a cancao, interrompen-
do-a com vaias de extrema agressividade. Isto
levou Caetano a parar de cantar e a fazer um
pequeno discurso em que ele disse que se era
essa a juventude brasileira e se ela entendesse
tanto de poi itica quanto de estetica, nos esta-
vamos feitos.Pouco depois, ele foi confinado
em S alvador pelas autoridades militares, teve
seu cabelo cortado e, depois de certo tempo,
foi obrigado a sair do pals.Temos aqui uma
mesma pessoa em espaco de pouco tempo
sofrendo uma violenta repress5o tanto por parte
da direita quanto da esquerda da epoca.
M as por que comecar um livro sobre homosse-
xualismo falando de um incidente em que tal
assunto nunca entrou em pauta? A razao e
muito simples . Se o assunto nao estava em pauta,
estava certamente presente, pois Caetano estava
pondo em quests"o, entre outras coisas, a rigida
separaca"o entre o comportamento convencional
"feminino" e "masculino" e, talvez mail serio
para a epoca, a rigida separaca"o entre politica
e a vida cotidiana.0 fato de que Caetano a hoje
um dos grandes idolos da novissima geraca"o
parece indicar que alguma coisa mudou nesse
piano e e um dos aspectos desta mudanca que
vamos abordar neste livro.
No comeco da decada de setenta, Caetano
1
0 que e Homossexualidade
voltou e em suas apresentacoes ele se vestia
de baiana, usava batom e fazia trejeitos a la
Carmem M iranda.Quase simultaneamente
surgia nos palcos um grupo de rapazes estranhis-
simos, que se chamava "D zi Croquettes".A pre-
sentando um espetaculo de danca e de humor,
combinando de forma inusitada barbas cerradas
com cilios posticos, meias de futebol com
sapatos de Salto alto e soutiens com peitos
peludos, eles levavam as ousadias de Caetano
ate (quase ) as ultimas consequencias .0 show,
um imenso sucesso, comecava com a declaraca"o:
"Nos nao somos homens, nem somos mulheres.
Nos somos gente, computada igual a voces! ",
e continuava entre trejeitos e micagens nem viris
nem femininas ( ou, se preferir, to viris quanto
femininas) num deboche apoteotico dos papeis
sexuais convencionais.
A pesar de fazerem questao de afirmar que no
tinham um projeto politico, acabaram sendo
o foco de algo que tinha as caracteristicas de
um movimento de massa. Bom, uma micromassa,
pelo menos . As pessoas que seguiam os Dzi
Croquettes, para quem eles inventaram o termo
"tietes", eram fortemente atraidas pelos aspectos
contestatorios tanto do seu espetaculo como do
seu modo de viver . Devemos lembrar que esta
era a epoca de major repressao da ditadura apos
AI-5, quando a censura e a violencia policial
mjlitar sufocavam quaisquer questionamentos
19
J
20 Peter Fry e Edward MacRae
do sistema vigente, entendido no seu sentido
mais amplo.
Numa epoca em que ao sair do teatro depa-
rava - se costumeiramente com viaturas da policia
fazendo questao de mostrar seu poderio bel ico,
apontando canos de metralhadoras pelas janelas,
o deboche bern-humorado dos Dzi Croquettes
parecia abrir uma brecha para a expressao de
alguma forma de nao-conformismo. Se no era
possivel criticar publicamente o regime ou o
sistema economico, questionava - se as bases
sagradas da vida cotidiana.
Vivia-se comunitariamente , experimentava-se
novas formas de consciencia propiciadas pelo
use de drogas e, o que a mais importante para
nos aqui, colocava -se em questao a moral sexual.
Outros grupos trilhavam caminhos parecidos,
como, por exemplo, os "Secos e Molhados",
cuja figura mais expressiva , Ney Matogrosso,
continua na mesma linha, ainda que hoje choque
menos que antes . Como se ve , as coisas mudam
e e interessante observar como o questionamento
dos papeis sexuais pode ser transformado em
producoes art(sticas legitimas e amplamente
"curtidas ", ate pelo atual p6blico de Ney, em
que parecem predominar respeitaveis vovozinhas
e seus netinhos.
Enquanto durava o sufoco, pouco mais era
possivel e a contestaca"o permanecia confinada
a pequenos grupos ou a um minusculo setor
0 que e Homossexualidade
social frequentador deste tipo de espetaculo
teatral . Somente com o relativo abrandamento
da censura e a assim chamada abertura pol(tica
que comecou em 1978, foi possivel uma veicula-
cao mais abrangente e sistematica destas questoes.
Neste mesmo ano apareceu o jornal Lampido,
editado no Rio de Janeiro por jornalistas , intelec-
tuais e artistas homossexuais que pretendiam
originalmente lidar com a homossexualidade
procurando forjar aliancas com as demais
"minorias", ou seja, os negros , as feministas,
os indios e o movimento ecologico. Embora
este projeto de alianca nao tenha tido o sucesso
desejado, o jornal certamente foi de grande
importancia , na medida em que abordava siste-
maticamente, de forma positiva e na"o pejorativa,
a questao homossexual nos seus aspectos poli-
ticos, existenciais e culturais.
Apesar do abrandamento da censura e do fato
de a homossexualidade nem sequer ser mencio-
nada no Codigo Penal Brasileiro, em 1979
instaurou -se um inquerito policial contra os
editores do Lampiao , que seriam acusados de
infringir a L ei de Imprensa por contrariar a
"moral e os bons costumes ". Anteriormente
fora processado outro jornalista, Celso Curi, que
escrevia regularmente no jornal Ultima Hora,
de Sa"o Paulo, a "Coluna do Meio", espaco
reservado para fofocas e informacoes sobre 0
meio homossexual.
21
22 Peter Fry e Edward MacRae
Apesar de estas awes policiais e judiciarias
serem arquivadas. depois de complicadissimos
tramites legais , o fato a que tanto aquele
jornalista quanto os editores do Lampiao
passaram meses de intimidacao e humilhacao.
Estes ultimos foram salvos em parte pelo apoio
do Sindicato dos Jornalistas , cujos advogados
os defenderam. Seguramente era um sinal de
que a homossexualidade deixava de ser objeto
apenas de escarnio, comecando a ser reconhe-
cida a legitimidade de suas reivindicacoes.
Este ano de 1978 tambem viu o nascimento
do Movimento Negro Unificado, o pleno desa-
brochar do movimento feminista e o surgimento
dos primeiros nucleos do movimento homossexual
no Brasil . Logo apos o surgimento do jornal
Lampiio, um grupo de artistas, intelectuais e
profissionais liberais, descontentes com uma
vida social restrita a boates e bares do "gueto"
homossexual , comecou a se reunir semanalmente
em Sa"o Paulo. Visando originalmente discutir
as implicacoes sociais e pessoais de sua orientaca"o
sexual , eles fizeram sua primeira manifestaca"o
publica atraves de uma carta aberta ao Sindicato
dos Jornalistas protestando contra a forma difa-
matoria com que a "imprensa marrom" apresen-
tava a homossexualidade.
Em fevereiro de 1979, os membros deste grupo
ja agora batizado de "SOMOS - Grupo de
Afirmaca"o Homossexual " apareceram pessoal-
0 que e Homossexualidade
mente em pGblico durante um debate sobre as
minorias, promovido na Faculdade de Filosofia,
Ciencias e Letras da Universidade de Sao Paulo.
A importancia deste debate a que marcou mais
uma vez a crescente importancia do movimento
homossexual como interlocutor legitimo na
discussao dos grandes assuntos nacionais. Alem
disso, foi uma experiencia catartica que aumentou
a confianca dos participantes e deu impulso a
formacao de outros grupos similares em Sao
Paulo e outras cidades como tambem em varios
estados.
Na Semana Santa de 1980, todos estes grupos
se encontraram em Sao Paulo para trocar ideias
sobre a identidade homossexual, a relaca"o entre
o movimento homossexual e os partidos politicos
e formas de atuacao e organizacao. Nestas
discussoes, embora houvesse bastante polemica
e a expressao de diversos pontos de vista, ficou
evidente uma generalizada antipatia para com
quaisquer formas de autoritarismo, seja no
interior de partidos politicos (de direita e de
esquerda), seja nas relacoes entre homens e
mulheres, seja tambem entre pessoas do mesmo
sexo. As solugbes propostas enfatizaram , entao,
a autonomia do movimento homossexual em
relacao aos partidos politicos e o apoio ao
feminismo na luta contra o machismo. No
mesmo sentido criticava -se a reproducao do
"machismo" nas relacoes homossexuais . Contra
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24
Peter Fry e Edward MacRae
0 que e Homossexualidade
25
1
a dicotomia "ativo/passivo", "dominador/domi-
nado", "bofe/bicha", "fanchona/lady", propunha-
-se uma nova identidade homossexual e relacoes
sexuais/afetivas essencialmente igualitarias.
E mbora nos tenhamos falado ate agora dos
movimentos propriamente ditos, no podemos
deixar de falar a respeito do que ja foi chamado
de "movimentacao" homossexual, que I hes serve
como pano de fundo e que atinge diretamente
um numero muito major de pessoas.
D e fato no foi o movimento homossexual
que iniciou esta reformulaca"o da velha visao
dos homossexuais como rapazes efeminados
e mulheres- machos, pois na decada de 1960
surge um novo termo para nomear uma figura
social cada vez mais comum e aceita , o "enten-
dido" e a "entendida", uma especie de equivalente
tupiniquirn do gay, que se alastra nos Estados
U nidos na mesma epoca.0 "entendido" e o
gay
vieram a denominar fundamentalmente pessoas
que "transam" pessoas do mesmo sexo sem que
adotassem necessariamente os "trejeitos" asso-
ciados as figuras da "bicha" ou do "sapata"o".
A o contrario destas, as novas palavras nao sao
pejorativas.
A peculiaridade dos primeiros grupos do movi-
mento homossexual a que resolveu rejeitar tanto
"entendido" como gay, preferindo ficar com
o velho termo "bicha".Propondo uma nova
"bicha", militante e consciente, a ideia era de
conseguir esvaziar, tanto a palavra quanto o
conceito que representava de suas conotacoes
negativas.S e autodenominar de "bicha" veio
a ser uma maneira de "assumir" uma homosse-
xualidade considerada mais "consciente" do
que a dos gays e "entendidos" e obrigar a
opiniao publica a reconsiderar suas atitudes em
geral .M ais tarde, outros grupos viriam a adotar
outras estrategias, como e o caso do Grupo Gay
da Bahia, que adotou o termo americano.
Nesta mesma epoca em que surgem os "enten-
didos", d6-se tambem uma notavel proliferacao
de empreendimentos comerciais orientados para
o mercado homossexual, principalmente, bares,
discotecas , saunas e revistas eroticas . Foj numa
destas discotecas que se realizou a festa de
confraternizacao depois do primeiro encontro
nacional dos grupos de homossexuais organizados.
A euforia generalizada reinou ate o momento
do show que a casa costumeiramente oferecia
depois da meia-noite. No palco apareceram
duas personagens, um homem com corpo e porte
de halterofilista e um travesti, Fedra de Cordoba.
E nquanto o "machao" permanecia imovel, em
pd e com as costas para o publico, o travesti
fazia literalmente de tudo para conquista-lo:
rebolava, se insinuava, colocando-se num papel
de absoluta e estereotipada subserviencia.
Representava-se em cena o classico jogo do
homem forte e dominador e da mulher fraca e
26 Peter Fry e Edward MacRae
dominada . Ainda excitados corn a emocao das
discussoes da reunigo daquele dia e imbuidos
corn sentimentos de igualdade e fraternidade,
os militantes homossexuais no puderam conter
a sua indignacao perante esta demonstraca"o do
que eles consideravam grotesco machismo . Vaiaram
estrondosamente o espetaculo e obrigararn os
artistas a se retirarem de cena . Ficou mais que
evidente o abismo existente entre a ideologia
igualitaria dos grupos organizados e os principios
de comportamento vigentes no meio homossexual
como urn todo. E, o que era provavelmente uma
brincadeira , pouco representativa das reais
formas de relacionamento homossexual em Sao
Paulo, um exemplo do humor satirico e ironico
do mundo gay, foi interpretado quase que
puritanamente pelos militantes .( Por6m nao
sejamos injustos , e lembremos que todo movi-
mento que propoe mudancas radicals frequen-
temente 6 levado a excessos de zelo pelas suas
conviccoes a adotar posturas intransigentes.)
Mas 6 atravds de situacoes como esta que se
dramatizam id6ias em conflito e que se efetuam
mudancas.
Durante esses incidentes , um dos grupos mais
exaitados foi o das lesbicas . Ja ao longo das
discussoes etas se haviam empenhado profunda-
mente nessa questao de reproducgo do "machis-
mo" nas relacoes homossexuais. E de fato esse
6 urn assunto que parece toca-las muito de
0 que e Homossexualidade
perto, por duas razoes. Primeiro, dentro do
chamado "gueto l6sbico", a manutencao da
dicotomia "ativo/ passivo" (fanchona /lady) e
extremamente acentuada . Esta sempre foi alvo
de criticas e tentativas de transformacgo por
parte das militantes dos grupos organizados.
Segundo, como mulheres, para elas era muito
real a opressao exercida pelos homens. Afinal,
o feminismo ja ha algum tempo vinha fazendo
este tipo de critica , e as l6sbicas ultimamente
vinham se aproximando dos grupos feministas,
apesar de terem sofrido um rechaco inicial.
Lutavam, portanto, em duas frentes: contra as
relacoes dominador /dominado entre os sexos
e contra a sua reproducgo no meio homossexual.
Desde os debates na USP, varias mulheres
haviam sido atraidas aos grupos homossexuais
embora sempre estivessern em minoria. Apesar
de inicialmente nao pleitearem nenhum trata-
mento especial - afinal , reinava a ideologia da
igualdade total logo comecaram a sentir a
necessidade de terem pelo menos urn subgrupo
exclusivo para etas, onde pudessem discutir
corn mais profundidade os seus problemas espe-
cificos , dificeis de levantar e desenvolver em
reunioes com participacao predominantemente
masculina. Foi nessa 6poca que etas comecaram
a ter contatos mais proximos com os grupos
feministas atuantes em Sao Paulo desde meados
da ddcada de 1970.
27
28 Peter Fry e EdwardMacRae 7
0 que e Homossexualidade
Deste contato resultou uma agucada sensibili-
dade das sutilezas do machismo ate enxergarem
a sua presenca mesmo no movimento homosse-
xual. Comecava a ficar evidente para elas que,
mesmo entre os militantes homossexuais apesar
da ideologia de igualdade , eram os homens que
dominavarn as discussoes e as tomadas de decisao.
Alem disso, etas reclamavam da misoginia pouco
disfarcada nas brincadeiras e nas formas de
tratamento usadas pelos homens . Especialmente
irritante para etas era o use fregi ente do termo
"racha" para designar qualquer mulher e a
mania dos homens de se tratarem uns aos outros
como se fossem eles proprios mulheres. As
tensoes aumentaram e, pouco tempo depois
disso, aproveitando o ensejo de uma briga entre
os homens que ja comecava a ameacar a coesao
do grupo Somos, as lesbicas deste grupo resol-
veram optar por uma total autonomia . Fundaram
o Grupo de A cao L esbico-Feminista em maio
de 1980.
JSpor esta epoca , um delegado de policia,
Jose Wilson Richetti, comecou uma cruzada
moralizante com o fim de "limpar" o centro
da cidade de prostitutas e homossexuais.Os
metodos eram os de sempre : batidas relampago
nos locals de reuniao, a prisao ilegal para averi-
guacao de antecedentes , mesmo no caso de
pessoas com seus documentos em ordem, e o
emprego de uma brutalidade extremada espe-
cialmente no caso de prostitutas e travestis.
0 movimento homossexual reagiu e, acionando
os seus contatos com os movimentos feminista,
negro e estudantil , promoveu uma inusitada
passeata pelo centro da cidade como forma de
protesto.Quase mil pessoas atenderam a chamada,
prostitutas, alguns membros dos movimentos
negro, estudantil e ferninista, mas sobretudo
um grande contingente de homossexuais, que
deram o tom do evento atraves de palavras de
ordem do tipo: "A gora, ja, queremos a fechar",
"A BX , libertem os travestis", "Richetti a louca,
ela dorme de touca" etc.. .
0 deboche e a gozacao entram no cenario
politico, normalmente dominado por aconte-
cimentos bern mais "serios". E, contra
criticas de setores oposicionistas mais tradicio-
nais, foi mantido por militantes homossexuais
que estas palavras de ordem refletiam a natureza
profundamente subversiva e anarquizante da
experiencia homossexual sempre disposta a
questionar os valores sagrados tanto da direita
quanto da esquerda, expondo-os ao ridiculo.
talvez a mesma tradic5o que irrompeu no
"proibido proibir" de Caetano e no espetaculo
dos D zi Croquettes.
Esta passeata representou uma especie de
apoteose da militancia homossexual em Sao
Paulo que, depois disso, teve que enfrentar
serios problemas como a extincao do jornal
29
1
30 Peter Fry e Edward MacRae
Lampia"o, o fracionamento de varios grupos e
o desaparecimento de outros.E mbora o Lampia"o
nunca tenha se colocado como porta-voz do
movimento e tenha sempre afirmado a total
autonomia de sua linha editorial , ele servia
como ponto de referencia e disseminava no
pals inteiro noticias sobre as atividades dos
grupos.D urante certo tempo reinava um clima
de desanimo e desconfianca.U m projeto inicial
de grandes mudancas a curto prazo parecia
tornar-se menos viavel e o movimento sentiu-se
sem rumo.
Os grupos sobreviventes conseguiram encon-
trar novas formas de atuapdo apropriadas a atual
situacao e as possibilidades oferecidas em cada
localidade.0 grupo S omos de S ao Paulo, por
exemplo, alem das suas atividades normais,
alugou uma sede onde sao realizados plantoes
dominicais de apoio e orientac3o para homosse-
xuais nao-pertencentes a nenhum grupo.
Talvez um dos desenvolvimentos mais inte-
ressantes e frutiferos seja a campanha promovida
pelo Grupo Gay da Bahia, de S alvador, visando
a eliminacao no codigo do I NPS do item 302.0,
que classifica o homossexualismo como
desvio mental.A importancia desta iniciativa
se deve ao fato desta classificacao do I NPS ser
uma das unicas instancias onde se discrimina
oficialmente a homossexualidade no Brasil.
A campanha se alastra por grande parte do
0 que e Homossexualidade
Brasil
e ja conseguiu a adesao de milhares de
assinaturas para seu abaixo-assinado, no so
de homossexuais, mas de uma grande proporcao
de outras pessoas, muitas delas personalidades
destacadas no mundo cientifico, artistico e
politico.A lem de batalhar por este abaixo-assi-
nado, o Grupo Gay da Bahia conseguiu
tambem declaracoes oficiais de apoio de
entidades como a A ssociacao Brasileira de
A ntropologia e a S ociedade Brasileira para o
Progresso da Ciencia.Tenta-se desta forma
exorcizar o fantasma da doenca que paira sobre
esta orientacao sexual.
E ste brevissimo esboco de alguns aconteci-
mentos ligados a homossexualidade nos ultimos
15 anos concentrou-se nos aspectos da pol itica
sexual mais evidentes e publicos.M as a de se
lembrar que, ao mesmo tempo em que os movi-
mentos homossexuais surgiram com o proposito
de repensar a identidade homossexual e combater
o preconceito social em todas as suas manifesta-
coes, a homossexualidade se tornou muito mais
vis(vel em geral para o publico como um todo.
A imprensa dedica cada vez mais espaco ao
assunto, o movimento editorial aumenta (este
livro a um exemplo) sem falar da televisao.Nos
ultimos dois anos surgiram personagens explici-
tamente homossexuais que gozam de uma popula-
ridade enorme do Oiapoque ao Chui; Painho de
Chico A nisio e Capitao Gay de Jo S oares com
31
32
r
Peter Fry e Edward MacRae 7
seu fiel escudeiro Carlos Suely. Homossexualidade
e certamente negocio hoje em dia e no a preciso
observar que o capital so avanca onde ha promessas
de lucro. Muita gente acredita que houve um
aumento da homossexualidade, mas no se pode
confundir a existencia de um fenomeno corn sua
visibilidade social . No ha evidencia nenhuma
de que a homossexualidade aumentou. 0 que
aconteceu, isto sim, a que corn a gradual reducao
do estigma social , ela se esconde menos e se assume
mais.
Refletindo esta maior visibilidade , ate alguns
partidos politicos de oposicao , como o PT e o
PMDB , tern tornado posipbes favoraveis aos
direitos humanos dos homossexuais. Durante
a campanha eleitoral de 1982, o candidato a
governador de Sao Paulo pelo PT, L ula, fez uma
declaraca"o explicitamente manifestando a posicao
de seu partido de que a homossexualidade nao
deve ser tratada nem como crime nem Como
doenca . Alguns outros candidatos daqueles dois
partidos chegaram a dar uma enfase ainda maior
ao tema, produzindo, por exemplo, panfletos
especialmente concebidos para serern distribu 1-
dos em lugares de frequencia marcadamente
homossexual.
MULHERES, HOMENS,
BERDACHES, BICHAS E SAPATOES
A economia dos indios Guaiaqui do Paraguai
nao conhece a agricultura. A comida vem da
caca e da coleta de mel e outros produtos da
floresta. Sao os homens que cacam e coletam
enquanto as mulheres cozinham, cuidam das
criancas e fabricam cestos, potes e cordas para
os arcos. Segundo Clastres , o antropologo que
estudou os guaiaqui, esta divisao sexual do
trabalho a absolutamente rigida e simbolizada,
sobretudo na associacao dos homens corn os
arcos e as mulheres corn os cestos . Cada urn
desses dois instrumentos simboliza dois
"estilos" de existencia , ou seja, os homens
cacam, as mulheres carregam.
Os guaiaqui aprendem esses principios atraves
de um sistema de proibicoes: os homens nao
jp a a
34
podem tocar nos cestos e as mulheres nao podem
tocar nos arcos . Como diz Clastres : "um cacador
nao suportaria a vergonha de transportar um
cesto, ao passo que sua esposa temeria tocar
seu arco....Se uma mulher pensasse em pegar
um arco, ela at'rairia, certamente, sobre seu
proprietario o pane, quer dizer , o azar da caca,
o que seria desastroso para a economia dos
guaiaqui."
Clastres conta a hist6ria de dois guaiaqui que
nao conseguiam cacar . Chachubutawachugi (que
por conveniencia chamaremos de Chachu) nao
possuia um arco e no sabia cacar .Viuvo, nenhuma
mulher o quis e nem a sua familia. Sem esposa
porque sem arco, e n9o podendo acompanhar
os homens nas suas expedicoes, se via obrigado
a pegar um cesto e acompanhar as mulheres.
Krembegi tampouco tinha jeito para a caca.
Mas enfrentou esta situaca"o de maneira diferente
de Chachu . Vivia com as mulheres, deixou
crescer seus cabelos, aprendia a fabricar adornos,
enfim, ele se agarrou ao cesto. Alem disso,
Krembegi gostava de se relacionar sexualmente
de maneira "passiva" com os homens e foi
chamado de kyrypy-meno, ou "anus-fazer-amor".
Os homens cacadores o procuravam sexualmente
de vez em quando como se fosse mulher, e e
importante notar que , do ponto de vista do
resto da tribo, a masculinidade deles no era
prejudicada por isso.
Clastres no fala das mulheres que se sentiam
atraidas por outras mulheres e sobre isso, portan-
to, no podemos falar. Sobre os homens, entre-
tanto, parece claro que entre os guaiaqui a masculi-
nidade se baseia em dois pontos fundamentais:
no use do arco e num papel "ativo" nas relac6es
sexuais. Por outro lado, a feminilidade se baseia
no use do cesto e relacoes sexuais "passivas".
Quando urn homem quebra uma das regras basicas
da masculinidade, ele se torna uma pessoa mal-
vista (Chachu). Porem, ele pode recuperar uma
certa posicao na sociedade cruzando a barreira
entre os sexos e assumindo o papel social e
sexual da mulher como no caso de Krembegi.
De acordo com Clastres, "Chachubutawachugi
era objeto de cacoada geral , se bern que desprovida
de verdadeira maldade : os homens o desprezavam
bastante nitidamente , as mulheres dele riam
a socapa, e as criancas tinham por ele um respeito
muito menor do que pelos outros adultos.
Krembegi ao contrario no despertava nenhuma
atenca"o especial; consideravam- se evidentes e
adquiridas a sua incapacidade como cacador e
a sua homossexualidade."
0 que parece mais ou menos claro a que, nesta
sociedade , uma forte distincao entre masculi-
nidade e feminilidade a acompanhada por uma
igualmente forte distincao entre "atividade"
e "passividade" sexual .A ssim, os homens que
mantiveram relacoes sexuais "ativas" com
37
Krembegi nao sofreram nenhuma alteracao no
seu status de homens . Supoe-se, entao, que aos
homens guaiaqui eram permitidas relacoes hete-
rossexuais e homossexuais, contanto que eles
mantivessem em ambas um papel "ativo".
Supoe- se, tambem, que o homem que desejasse
manter relacoes homossexuais "passivas" sofre-
ria realmente um rebaixamento de status, se
transformando em kyrypy-meno . Esse rebaixa-
mento poderia ser bastante amenizado atraves
do simples expediente de trocar de papel sexual:
"virar mulher".
Supoe-se tambem que os homens que desejassem
manter relacoes homossexuais "passivas", mas
que no queriam enfrentar estas consequencias
quase que inexoraveis , teriam que reprimir seus
desejos totalmente, pois numa sociedade deste
tipo, onde no ha nenhuma privacidade, era
impossivel praticar uma atividade Besse genero
sem que a noticia se espaihasse imediatamente.
Na America do Norte, encontramos algo pare-
cido. Em muitas tribos indigenas, como entre
os guaiaqui , era perfeitamente possivel um
homem se "transformar" em mulher e ate casar
com outro homem. Estas pessoas eram conhecidas
como homens -mulher . Inversamente, mulheres
tambem se "transformavam" socialmente em
homens, tambem chegando muitas vezes a se
casar com outras mulheres . Sao as mulheres-
-homem. Estes berdaches, como sao chamados
genericamente , como Krembegi, em geral eram
bern aceitos e em muitos casos Ihes eram atribui-
dos poderes excepcionais de cura e de profecia.
E o caso de uma mulher da tribo Kutenai,
ququnok patke. Nascida nos fins do seculo XVIII,
era robusta e forte de tal forma que nenhum
rapaz se interessava por ela .A pos um casamento
com um colonizador canadense, voltou para a
tribo, agora vestida de homem e portando uma
espingarda, arco e flechas. Alem disso , reivin-
dicou poderes sobrenaturais .Tentou casar com
uma menina, mas na"o conseguiu e teve que se
satisfazer com viuvas e mulheres separadas de
seus maridos. Adentrou cada vez mais no papel
masculino, tornando-se eximio jogador de
cartas, cacador e guerreiro.A lgumas testemunhas
reportam que tambem tinha o dom da profecia,
chegando a prever o fim da colonizap o branca
na area. Dizem tambem que era grande curadora
e ha evidencias de que desempenhou um impor-
tante papel de intermediaria na disputa entre
os Blackfeete Flatheads. Parece tambem que
morreu neste exercicio, nas maos dos Blackfeet.
Poderiamos contar mais casos, pois chamou
muito a atencao dos colonizadores e exploradores
que escreveram suas impressoes em diarios e
livros . Nestas descricoes parece que as mulheres
que voluntariamente trocavam de papel sexual
acabavam sendo melhores "homens" que os
homens de verdade . Eram valentes , corajosas
38
Peter Fry e Edward MacRae
e boas provedoras . Da mesma forma, parece
que os homens que se transformavam ' em
"mulheres" desempenhavam de forma excep-
tional as tarefas femininas, tornando-se eximios
ceramistas e teceloes. Mas o que a realmente
interessante, e que distingue os berdaches da
situacao guaiaqui , a que quase sempre Ihes eram
atribu(dos poderes sobrenaturais de cura e
profecia.
Dado o etnocentrismo que contamina a maior
parte do material hist6rico e antropol6gico sobre
esse assunto, a dificil determinar como eram
de fato os berdaches e como eram tratados antes
da colonizacao. Uns autores da epoca colocam-nos
em verdadeiros pedestais como pessoas altamente
respeitadas e ate veneradas . Outros, mais inte-
ressados em promover a moral europeia , enfati-
zarn urn outro lado, insistindo que eram tambem
objetos de ridicularizaq.5o. 0 fato a que ha varias
maneiras de rir e nunca saberemos se os risos
dos indios eram de prazer ou de agressgo.
De qualquer forma, a mais ou menos claro
que, como entre os guaiaqui , os papeis de
homern e mulher eram radicalmente separados
e as pessoas que, por uma raza"o ou outra, na"o
podiam ou n5o queriam se conformar com os
atributos sociais e sexuais associados ao seu
sexo biol6gico, tinham a opcao de assumir os
atributos do sexo oposto.
Nestas sociedades, entao, as pessoas nao sao
0 que a Homossexualidade
classificadas de acordo com seu suposto compor-
tamento sexual homo ou hetero. No existem
identidades sexuais como "o homossexual" na
nossa cultura , que define uma pessoa pelo seu
suposto gosto por relaci es sexuais com pessoas
do mesmo sexo . 0 que existem nestas culturas
sa"o identidades sociais e sexuais construidas
de combinacoes de sexo biol6gico e papeis
sexuais . Assim, uma mulher que desempenha
o papel feminino ( inclusive ela pode manter
relacoes homossexuais e se comportar "femi-
ninamente") a simplesmente uma mulher. Se
ela desempenha o papel masculino, ela se
torna mulher-homem, ou berdache. U ma
pessoa que a biologicamente masculina e que
desempenha o papel social masculino tambem
e definido como um homem. Ele pode manter
relacoes homossexuais enquanto se comporta
"masculinamente", ou o que a frequentemente
chamado de "ativamente". Se um indiv(duo
de sexo masculino desempenha o papel feminino,
entao ele a chamado de homem-mulher, berdache
ou, entre os guaiaqui , kyrypy-meno.
Em outras palavras, os sistemas culturais que
acabamos de examinar classificam as pessoas
basicamente em termos dos parametros sexo
biol6gico e sexo social, conforme a figura que
segue:
39
40 Peter Fry e Edward MacRae
sexo sexo mascuiino feminino
b i o l o g i c o s o c i a l ( a r c o ) ( c e s t o )
Masculino ho me m homem- mulher
berdache
kyrypy-meno
Feminino mulher - homem I mulher
berdache
Olhando para esta figura, podemos constatar
que, do ponto de vista dos papeis sexuais, todas
as relapbes sexuais nestas sociedades s5o, de fato,
"heterossexuais ", pois os "masculinos" so se
relacionam sexualmente com os "femininos".
Esta figura tambem nos ajuda a entender por
que o Chachu foi chamado por Clastres de
"escandalo logico". E que ele recusou compro-
meter-se com um dos possiveis papeis sexuais.
Insistiu em ficar em cima do muro que separa
a "feminilidade " da "masculinidade".
Se este quadro parece um tanto exotico ou
estranho, queremos lembrar que , mesmo na socie-
dade brasileira , podemos observar regras e princi-
pios, se na"o identicos, pelo menos bastante
parecidos , pois na concepca"o de sexualidade
que chamamos "popular " tambem no existe
o ou a "homossexual " definido (a) Pura e
simplesmente como alguem que prefere a
0 que e Homossexualidade
companhia sexual de pessoas do mesmo sexo.
A "bicha" e o "viado" parecem mais com o
kyrypy-meno, e o "sapatao" parece mais com
a berdache mulher- homem que o "homossexual"
produzido nas classes medias metropolitanas
e pelas estufas dos movimentos homossexuais.
E sempre dificil generalizar sobre o Brasil.
Diz-se alguma coisa e logo vem alguem Para
dizer outra . Diz-se algo que a verdadeiro para
o Rio de Janeiro, e logo aparece um paulistano
para dizer que em Sao Paulo tudo a diferente.
Falar de papeis sexuais no a excecao. Mesmo
assim, gostariamos de evocar um Brasil um
pouco tradicional, mas nao muito, que de
alguma forma ou outra esta presente em cada
um de nos . E o Brasil dos homens, mulheres,
putas e bichas, que, por falta de uma palavra
melhor , chamaremos de um Brasil "popular".
Como nas sociedades que acabamos de discutir,
os papeis sexuais neste Brasil popular sao rigi-
damente separados . Desde a mais tenra infancia,
meninos e meninas sao educados para se porta-
rem como homens e mulheres mais tarde. Os
homens deveriam ser fortes , trabalhadores
capazes de sustentar sua familia, interessados
em futebol e outras atividades definidas como
masculinas e, sobretudo, no deveriam chorar.
Convem tambem que desde o inicio da adoles-
cencia comecem a ter experiencias sexuais.
Neste Brasil que estamos evocando, estas expe-
41
42 Peter Fry e Edward MacRae
riencias podem ser com irmas, primas, empre-
gadas domesticas ou prostitutas.
As mulheres , por outro lado, aprendern as
tarefas de casa e Ihes a imbuido o que se chama
de instinto materno.A o contrario dos homens,
no podem ter relacoes sexuais antes de casar,
chegando ao casamento ainda virgens. Alem
disso, ainda neste Brasil popular, uma vez
casadas, nao deveriam demonstrar muito gosto
pelo sexo. A final, neste esquema, o sexo e
apenas um meio para urn fim: a procriacao. As
mulheres que no seguem este caminho, ou
porque nao querem ou porque nao podem,
provavelmente serao classificadas de prostitutas,
pois estas devem gostar do sexo ( ou pelo menos
fingir que gostam) e saao, por definicao,
prom iscuas.
Neste esquema no ha marcas simbolicas tao
bbvias como o arco e o cesto dos guaiaqui, que
servem para demarcar a masculinidade da femi-
nilidade, mas ainda ha formas de comportamento
que sao proprias a apenas urn sexo e cercadas
de proibicoes para o outro . ^ o exemplo do batom,
das bonecas e do chorar. Homem na"o usa batom
(a n5o ser durante o carnaval), menino nao
brinca corn boneca e certamente nao deve chorar.
A final , se pintar , cuidar de nenens e ser sensivel
sao predicados da feminilidade. 0 menino que
toca nestes "cestos" e que nao sabe manipular
seu "arco", logo percebe o perigo das suas
0 que e Homossexualidade
contravenci es. E chamado de maricas, mulher-
zinha etc . Geralmente esta acusacao a suficiente
para fazer qualquer menino voltar ao seu "arco".
Aqueles que persistem num comportamento
pouco adequado ao sexo masculino quando
crescem, sera imputada uma contravenggo
maior ainda . Se presumira que, como "mulher-
zinhas", se sentirio atraidos por homens com
quem mantera"o relacoes sexuais "passivas".
De "mariquinhas " se transformam em "bichas".
A bicha, como os kyrypy-meno dos guaiaqui,
e urn homem que tende a desempenhar tarefas
normalmente associadas as mulheres e que
tambem prefere a companhia sexual de "homens
de verdade".
Desta forma, neste Brasil que estamos chamando
de "popular", como entre os guaiaqui, o menino
e chamado de "bicha" no simplesmente porque
se supoe que ele goste de manter relacoes homosse-
xuais, mas porque ele a "efeminado" (desempenha
o papel feminino) e porque se mantiver uma
relacao homossexual desempenhara um papel
"femininamente passivo". 0 rapaz que desem-
penha o papel masculino e que poderia ser o
parceiro sexual da bicha (portanto mantendo
uma relaca"o homossexual ), a chamado de
"homem" ou de "machao".
A situacao das mulheres tem semelhancas
e diferencas. 0 fato a que na primeira infancia
as meninas podem brincar corn brinquedos
43
44
"masculinos" sem serem xingadas de "homen-
zinho" ou de "sapata"o".0 grande perigo do
qual as meninas tern que ser protegidas e
outro - o que a representado pela figura da
prostituta.A ssim, desde o inicio da adolescencia,
a sexualidade das meninas a controladissima
na esperanca que cheguem ate um unico casa-
mento virgens. Desta forma, as meninas podem
mostrar sinais de afeto umas as outras sem que
isto provoque escandalo e reprovacao. Mesmo
assim, a figura popular do "sapata"o" a muito
forte, e e a imagem invertida da "bicha".0
"sapata"o", como a mulher -homem berdache,
e uma mulher em termos fisiologicos que desem-
penha aspectos do papel masculino. Desta
forma, as concepcoes populares brasileiras da
sexualidade , como entre os guaiaqui e outran
sociedades amerindias , sao baseadas fundamen-
talmente sobre as nocoes de sexo fisiologico,
sexo social , como na figura que segue:
sexo sexo 1 masculino
Peter Fry e Edward MacRae
feminino
0 que e Homossexualidade
Neste esquema , enta"o, as relacoes sexuais espe-
radas tambem sao todas "heterossexuais" em
termos de papeis sexuais. As pessoas socialmente
"femininas " se relacionam com as socialmente
"masculinas ". As mulheres e bichas se relacionam
com os homens e os homens e mulheres-machos
se relacionam com as mulheres . 0 que a consi-
derado realmente "desviante ", de acordo com
estas regras, sao relacoes "homossexuais" no
em termos fisiologicos, mas em termos dos papeis
sexuais . Assim, um homem pode se relacionar
sexualmente corn uma bicha, enquanto o primeiro
e "ativo" e o Segundo "passivo". Nesse sentido,
o que causa escandalo a quando bicha se rela-
ciona com bicha . Esta, sim, seria a relacao
"homossexual ", e ela a ridicularizada no ditado
popular "bicha com bicha da lagartixa".
Esta maneira de organizar os papeis sexuais
pode ser claramente vista na area da prostituicao
masculina . Resumindo e simplificando, os
profissionais neste campo se dividem em
"travestis" e "miches" que tern aparencia bern
"mascula". Se os primeiros sao travestis da
figura da mais "feminina" das mulheres, os
segundos sao travestis do mais "masculo" dos
homens.D e fato no ha melhor evidencia para
o fato dos papeis sexuais serem essencialmente
socials, pois tanto travestis como miches sao
homens, fisiologicamente falando.
E m principio, e de acordo com a nossa expo-
biologico ocial
masculino homem, macho bicha, viado, maricas
(travesti)
feminino I sapatao I mulher
mulher-macho
pars iba
45
46
Peter Fry e Edward MacRae
sica"o das regras do jogo sexual, os miches
"comem" eriquanto os travestis "duo". Mas
podemos aproveitar este momento para matizar
nosso argumento, pois, nas palavras de outro
velho ditado, "na pratica a teoria a outra". Na
privacidade da cama a frequente que o travesti
tome o papel "ativo", como tambem no a raro
que o miche seja "passivo". E igualmente possivel
que participern de atos "sexuais " como beijar,
"rogar" etc...que no tern conotacoes nem
de "atividade " nem de "passividade ". As regras,
como sempre acontece com quaisquer regras,
sao burladas com frequencia .0 fato a que aqueles
travestis que vivem da prostituica"o e que sao
os mais bem-sucedidos alegam que sao tambem
grandes "comedores".
0 segredo deste sucesso a que um respeitavel
senhor pode ser visto na companhia de um
travesti, pois, de acordo com as regras formais,
ele vai passar publicamente por "macho".
A penas na cama os papeis serao invertidos.D a
mesma forma; o miche que a visto como uma
"bicha" a visto publicamente como "macho".
E, em ambos os casos, justifica-se a quebra da
regra por interesses aparentemente apenas
economicos.A ssim, por exemplo, o miche
garante a sua "masculinidade", alegando que
faz o que faz no por prazer (qualquer prazer
na "passividade " o colocaria na categoria de
bicha), mas sim por necessidade economica.
0 que e Homossexualidade
Fica claro que tanto o travesti que "come"
quanto o miche que "da" percebern que esta"o
quebrando as regras na medida em que tomam
cuidado de salvaguardar sua respectiva "femi-
nilidade" e "masculinidade" em praca publica.
M as quebrar uma regra e, fundamentalmente,
reconhece-la.E a excecao que comprova a regra.
E claro que o paralelo que estamos fazendo
entre os guaiaqui, os berdaches e o "Brasil popu-
lar" tem tambem seus limites.Por exemplo,
enquanto os berdaches e os kyrypy-meno assumem
quase a totalidade do papel social do sexo oposto,
isto acontece minoritariamente aqui no caso
dos travestis.E m geral, as "bichas" e "sapatoes"
adotam apenas alguns aspectos especificos dos
papeis femininos e masculinos, respectivamente.
H a toda uma gradacao entre a "bicha" ligeira-
mente efeminada ate o travesti, como ha uma
mesma gradacao entre o "sapatao" vagamente
masculinizado e a "mulher-macho" mesmo.
E interessante observar, neste sentido, quais
os aspectos da "masculinidade" e "feminilidade"
escolhidos neste jogo com os papeis sexuais.
E nquanto as mulheres-macho dao enfase aos
aspectos de forca fisica e uma certa rudeza do
papel masculino, os homens escolhem justamente
os aspectos do papel feminino que ressaltam
a delicadeza, o lazer e o luxo.Os dois estereo-
tipos sao o chofer de caminhao, por um lado,
e a vamp de H ollywood, do outro.A s "mulheres"
47
49
0 que e Homossexualidade
Peter Fry e Edward MacRae 48
produzidas pelos travestis nunca sao donas-de-
-casa, por exemplo, e se aproximam muito mais
da figura da prostituta de luxo. Assim, a esco-
Ihido um modelo de "mulher facil", de
sexualidade solta, que contrasta corn o modelo
da "mulher certa", esposa e mae.
0 que talvez distinga ainda mais este esquema
daquele dos guaiaqui a que neste Brasil popular,
as relacoes entre homens e mulheres n5o sa"o
caracterizadas apenas por complementaridade
de funcoes. Sao caracterizadas tambem por
diferengas de poder, de tal forma que o
homem a considerado socialmente superior
a mulher . Alias, a contra este estado de coisas
que o feminismo se coloca . 0 ato sexual e
percebido tambem em termos hierarquicos,
pois a ideia a que quem penetra a de certa
forma o vencedor de quem a penetrado.
A superioridade social do "ativo" sobre o
"passivo" a nitidamente expressa nas palavras
de giria que usamos para , falar das relacoes
sexuais como "comer " e "dar", "ficar por
cima" e "abrir as pernas ". Quem "come",
vence, como um jogador de xadrez que tira
as pecas de seu adversario do tabuleiro , "comen-
do-as". Quem "come " esta "por cima" e quem
esta por cima a quem controla . Quern "da" ou
quem "abre as pernas" a quem se rende
totalmente.
Aqui se faz necessaria uma pequena pausa
para matizar nosso argumento . Quando falamos
que o homem domina a mulher , estamos nos
referindo as regras expl icitas do jogo que tem
como jogadores a "masculinidade " e a "femini-
lidade ". Mais uma vez "na pratica a teoria e
outra ", e e necessario lembrar que este jogo tern
regras que mesmo sendo menos expl icitas no
sa"o por isso menos importantes e eficazes.
Mulheres e bichas (e, de fato, todos que sao
socialmente discriminados) desenvolvem estra-
tegias socials, muitas vezes to eficientes que
invertem a relacao de poder estabelecida pelas
regras formais. Basta pensar na dona-de-casa
que usa seu controle sobre o orcamento
domestico e sobre a educaca"o dos filhos para
combater o suposto poder absoluto do pater
familias. Basta lembrar tambem o terrivel
poder que as mulheres tern de testemunhas e
ju izas do desempenho sexual dos seus maridos
e amantes. Quanto poder reside na exclamacao
"brocha!". 0 fato a que os homens sa"o criados
para pensar que sua pr6pria masculinidade esta
sempre a ser provada por urn desempenho sexual
tanto potente quanto frequente.
Mesmo assim, podemos dizer que a concepca"o
popular brasileira da sexualidade fala mais de
"masculinidade " e "feminilidade", de "ativi-
dade " e de "passividade", de "quem esta por
cima" e de "quem esta por baixo" do que sobre
a heterossexualidade ou a homossexualidade,
J
50
.
- r
Peter Fry e Edward MacRae
que sao aspectos que entram no esquema
sorrateiramente, por assim dizer.S e este
esquema Besse importancia major a homosse-
xualidade propriamente dita, entao o homem
que "transasse" com a bicha certamente teria
que ser chamado de "homossexual" ou algo
parecido.Nem sempre isto acontece.E ste
Brasil popular a muito antigo, como demons-
tram as confissoes e denGncias que foram feitas
perante o S anto Officio, durante a I nquisica"o
no Nordeste do Brasil, entre os anos de 1591
e 1620.
Naquela epoca, relacoes homossexuais cons-
tituiam o "nefando pecado de sodomia" e os
"sodomitas" poderiam ser condenados a morte
na fogueira.D urante a visitaca"o do S anto Officio,
muitos "sodomitas" eram denunciados e outros
confessaram, de tal modo que dispomos de
material riqu issimo sobre a homossexual idade
daqueles tempos.0 antropblogo e militante
homossexual L uis M ott, da U niversidade Federal
da Bahia, conseguiu identificar 135 "sodomitas"
e verificou que "os conceitos de ativo ('agente'
como diziam no tempo da inquisica"o), e passivo
('paciente'), sao categorias repetidoras da bipo-
laridade heterossexual da macho-femea, no
encontrando obrigatoriamente correspondencia
restrita nos atos homossexuais".U ma outra
estudiosa, Patricia A ufterheide, sugere que os
parceiros "ativos" em geral tinham uma certa
q
0 clue e Homossexualidade
ascendencia social sobre os "passivos".Cita o
caso de Ferna"o Roiz de S ouza, urn fidalgo branco
que, aos seus onze anos, era pajem na casa do
governador e teve que se submeter "passivamente"
sob a ameaca de morte.Na medida em que cresceu,
ele se transformou num "ativo", procurando
sempre parceiros mais fracos socialmente que
ele: mulatos e mulheres.L uis M ott observa casos
semelhantes, mas tambem nota situacoes em
que o parceiro socialmente mais forte era
sexualmente "passivo".Referindo-se as relacoes
homossexuais entre brancos e negros, ele diz:
encontramos nas relacoes sodomiticas inter-
-raciais todo um continuum de interacoes, ora
os brancos exercendo seu poder e prepotencia
de casta superior, ora os de cor encontrando
mil e um artificios para serem eles os donos
do poder ao menos neste micro-universo diadico
ditado pelo homo-erotismo." 0 fato e, portanto,
que, como argumentamos acima, "atividade"
significa poder em relacao a "passividade", que
faz com que as relacoes de poder da vida coti-
diana possam ser algumas vezes invertidas tempo-
rariamente no ato sexual de coito anal.E assim
que acontece, hoje em dia, como ja assinalamos,
quando um respeitavel burgues a "comido" por
um travesti proveniente Bas classes mais pobres.
A judando a acreditar que este Brasil popular
nao seja sb fruto da nossa imaginaca"o, mas
tambem faz parte do imaginario mais geral,
51
52 Peter Fry e Edward MacRae
podemos tirar mais um exemplo do livro de
Jorge Amado, Capita"es de Areia, onde, na banda
de moleques liderada por um rapaz chamado
Pedro Bala, relacoes homossexuais eram frequen-
tes e corriqueiras. Um dia, o padre, amigo de
Pedro, chegou a dizer que tais relacoes eram
pecaminosas e Pedro respondeu expulsando os
"passivos" do grupo. Pois, neste tipo de situacao,
o estigma a reservado apenas para quem a "pas-
sivo". 0 "ativo" na relaca"o nao sofre nenhuma
critica e frequentemente consegue aumentar
sua imagem de macho "comendo as bichas".
Ja que falamos de jovens, podemos lembrar
que entre rapazes, no comeco da adolescencia,
e comum a brincadeira de "troca- troca", em
que doffs meninos se alternam nos papeis
"ativo" e "passivo" nas seas brincadeiras
sexuais. Dizem que o mais "esperto" a aquele
que consegue "comer" o amiguinho e na hora
de "dar" consegue parar a brincadeira. 0
comum a que se o professor surpreende os
meninos em flagrante, e o "passivo" daquele
momento que a expulso do colegio.
0 lugar onde este sistema pode ser encontrado
na sua forma mais exacerbada a nas prisoes, onde
presos veteranos competem entre si para "casar"
com os mais novos e bonitos. Estes ultimos
acabam sendo conhecidos e tratados como
"mulherzinhas". A eles cabe o clever de lavar
a roupa dos seus "maridos", alem de prestar-
1
I
0 que e Homossexualidade
Ihes varios outros pequenos favorer. Nas
relacoes sexuais que sucedem, cabe a eles
tambem desempenhar um papel estritamente
"passivo" . 0 veterano, por outro lado, tem a
obrigacao de proteger seu boy e de favorece-lo
nas transacoes do dia- a-dia da prisao. Em prisoes
femininas se da o mesmo, e mais uma vez sa"o
as veteranas que adotam o papel "ativo".
Desta forma, relacoes de poder dentro da
prisao sao refletidas e reproduzidas nas relacoes
sexuais. Vemos aqui muito claramente relacio-
nadas a "passividade" sexual e a fraqueza social.
Se formos pensar em termos historicos, veremos
que ja na Roma Antiga, embora o relacionamento
homossexual em si no fosse especialmente mal-
visto, era considerado totalmente ultrajante um
homem livre assumir um papel passivo tanto
com um escravo quanto com um outro cidadao.
Aqui, como nas prisoes, a hierarquia sexual devia
corroborar a hierarquia social.
Mesmo entre homens livres no Brasil de hoje,
em muitos lugares "a bicha esta sempre debaixo
da sola do pe do macho", como disse uma delas
em Belem do Para. A primeira vista, esta a uma
posica"o extremamente desagradavel, para na"o
dizer insuportfivel. Mas, embora alguns sejam
literalmente forcados a representar este papel
como os boys nas cadeias, outros parecem optar
por ele de livre vontade. Entre os guaiaqui, os
individuos tern que ser homens ou mulheres;
53
I
54 Peter Fry e Edward MacRae
neste sistema , os homens tern que ser machos
ou bichas. Nao ha meio termo. 0 paralelo que
estabelecemos entre o Brasil popular e algumas
sociedades indigenas das Americas pode ser
estendido para a esfera da religigo, pois como
no caso dos berdaches, ha uma forte associac o
entre homossexualidade e poderes misticos.
Nao a por acaso que um dos personagens mais
populares de Chico Anisio a um pai de santo
baiano, cheio de mal icia e escandalosamente
"bicha".
No Norte e Nordeste do Brasil, os candombles
sa"o vistos como "lugares de bicha", e, de fato,
grande numero de pais e m5es- de-santo sgo
homossexuais, inclusive alguns dos mais famosos
e bem- sucedidos. Os candombles no tern nenhum
preconceito em relac o a homossexualidade
e no a raro que um rapaz ou uma menina que
tenha dificuldades em casa por causa de cons-
tantes acusacoes de "maricas " ou "sapata"o"
encontre nessas comunidades religiosas um lugar
onde sera"o aceitos. Conhecemos casos de rapazes
que chegaram a ser ate expulsos pelas suas
familias, seguiram suas carreiras dentro do
candomble e voltaram a ser aceitos mais tarde
pelos seus parentes devido ao grande prestigio
religioso que conseguiram. 0 candomble, enta"o,
oferece a possibilidade de um jovem rapaz ou
menina homossexual transformar seu estigma
social em vantagem.
0 que e Homossexualidade
Pai-de-Santo, Belem, PA, tornado por Santa Barbara.
"Eu sou feio mas a Santa Barbara a tab Linda"
55
54Peter Fry e EdwardMacRae 0que e Homossexualidade
55
neste sistema, os homens tern que ser machos
ou bichas. No ha meio termo. 0 paralelo que
estabelecemos entre o Brasil popular e algumas
sociedades indigenas das Americas pode ser
estendido para a esfera da religiao, pois como
no caso dos berdaches, ha uma forte associaca"o
entre homossexualidade e poderes misticos.
Nao a por acaso que um dos personagens mais
populares de Chico Anisio a um pai de santo
baiano, cheio de mal icia e escandalosamente
"bicha".
No Norte e Nordeste do Brasil , os candombles
sa"o vistos como "lugares de bicha", e, de fato,
grande numero de pais e maa"es- de-santo sao
homossexuais, inclusive alguns dos . mais famosos
e bem- sucedidos. Os candombles no tern nenhum
preconceito em relacao a homossexualidade
e nao a raro que um rapaz ou uma menina que
tenha dificuldades em casa por causa de cons-
tantes acusacoes de "maricas" ou "sapata"o"
encontre nessas comunidades religiosas um lugar
onde serao aceitos. Conhecemos casos de rapazes
que chegaram a ser ate expulsos pelas suas
familias, seguiram suas carreiras dentro do
candomble e voltaram a ser aceitos mais tarde
pelos seus parentes devido ao grande prestigio
religioso que conseguiram. 0 candomble, entao,
oferece a possibilidade de um jovem rapaz ou
menina homossexual transformar seu estigma
social em vantagem.
LL
Pai-de-Santo, Belem, PA, tornadopor SantaBarbara.
"Eusoufeiomas aSantaBarbaraatdoLinda".
J
56
Peter Fry e Edward MacRae
Luis Mott cita importante evidencia onde
sugere que o que acabamos de descrever para
o Brasil contemporaneo talvez tenha raizes
num passado africano bastante distante. Esta
evidencia a do livro Hlstdria Geral das Guerras
Angolanas, do Capitao da Armada Lusa e
comerciante de escravos Antonio de Oliveira
Cardonega, publicado em 1681. Escreve
Cardonega: "Ha tambem entre o gentio de
Angola muita sodomia, tendo uns com outros
suas imundicies e sujidades, vestindo como
mulheres. E Ihes chamam pelo nome da terra
quimbandas, os quais no distrito ou terras onde
os ha, tem comunicaca"o uns com outros. E
alguns deles sao finos feiticeiros, para terem
tudo mau. E todo o mais gentio os respeita e
os na"o ofendem em cousa alguma (. . . ) Andam
sempre de barba raspada, que parecem capoes,
vestindo como mulheres."
Vale a pena pensarmos um pouco sobre por
que sao to frequentemente atribu idos poderes
excepcionais e ate sobrenaturais a identidade
de "homem efeminado" ou "mulher- macho".
Uma possivel interpretacao a que estes poderes
sao uma especie de compensacao para as
pessoas que nao querem ou no conseguem
seguir os caminhos convencionais de homens
e mulheres. Parece que a ridicularizacao a de
certa forma contrabalancada com o prestigio
de curador e profeta. Outra interpretacao
0 que e Homossexualidade
possivel e a de que quebrar com as convencoes
sociais de masculinidade e feminilidade, que sao
to fortemente arraigadas em qualquer sociedade,
requer,
de inicio, uma boa dose de coragem e
originalidade.
Desta forma, os berdaches e os quimbandas
teriam que ter o que nos chamamos de uma
personalidade forte, assim os equipando para
proezas futuras. Mas ha outra interpretacao
tambem possivel que parte da ideia de que
ambigOidade e poderes excepcionais tern algo
em comum. Um homem que se transforma em
"homem- mulher" ou uma mulher que se transfor-
ma em "mulher- homem" sao fundamentalmente
ambiguos. Ambiguidade a sempre uma possivel
fonte de criatividade.
Uma das qualidades mais importantes num
pai-de- santo ou numa mae-de-santo, alem
daquelas questoes especificamente rel igiosas,
como o conhecimento dos segredos do culto
e a capacidade de desempenhar o papel de
curador e profeta, e a criatividade. Um pai-de-
santo de Belem certa vez nos disse que conside-
rava que o candomble tivesse aspectos de teatra-
lidade e que um bom pai-de-santo era aquele
que soubesse "montar" suas festas como se
fossem espetaculos. Disse tambem que se ele
no tivesse sido chamado pelos esp i ritos, teria
seguido uma carreira teatral como travesti. E,
de fato, entre as qualidades mais frequentemente
57
58 Peter Fry e Edward MacRae
atribu idas a identidade de "bicha" estao a
criatividade, a sensibilidade artistica e o humor,
como se fossem propriedades naturals. Mas estas
caracteristicas que realmente sao comuns a muitas
bichas, o sao justamente porque ha uma relacao
importante entre a criacao artistica, a ambigui-
dade, o humor e uma visa"o critica da sociedade,
muitas vezes manifestada pelos homossexuais
atraves de um comportamento caricaturalmente
efeminado, conhecido como "fechac5o".
As bichas sao ambiguas por definica"o: tern
um sexo fisiolbgico e outro social , e como o
estigma social os coloca fora dos centros
formais de poder social , elas ocupam uma
posicao estrutural as margens da sociedade da
qual a pelo menos possivel uma visao critica
das coisas. Neste sentido, convem lembrar que
a criatividade e um humor mordaz e venenoso
tambem sa"o associados a outros grupos margi-
nalizados e estigmatizados socialmente como
os negros e os judeus. Os berdaches gozaram
de prestigio e respeito dentro de um contexto
social e religioso em que a inversao dos papeis
sexuais era associada a poderes de profecia
e de cura. 0 berdache era em nada um "des-
viante"; era tao "natural " para os indios da
America do Norte quanto a um padre de
batina para nos.
Mas no ha mais berdaches nos Estados Unidos
da America e o seu fim foi brutal perante a
{
I
I
f
0 que e Homossexualidade
"civilizacao" que os conquistou em nome de
Cristo e do progresso. Os berdaches foram per-
seguidos e ridicularizados pelos colonizadores
brancos, e membros do Bureau de Assuntos
lndigenas obrigaram- nos a se vestir de acordo
com seu sexo biologico.
Nestas circunstancias,
os proprios indios acabaram por ver nesta
instituica"o uma fonte de humilhacao e vergonha
e ha pelo menos um caso de suicidio de um
berdache , cuja familia insistiu para que ele
cacasse junto com os homens da tribo. Os
berdaches e
os valores sexuais das sociedades
as quais pertenciam foram vitimados por uma
ideologia sexual que classificava a homossexua-
lidade como crime, pecado e doenca.
Travesti sofrendo violencia nas moos da policia de Sao
Paulo.
59
58 Peter Fry e Edward MacRae
atribu Was a identidade de "bicha" estao a
criatividade, a sensibilidade artistica e o humor,
como se fossem propriedades naturals. Mas estas
caracteristicas que realmente sao comuns a muitas
bichas, o sao justamente porque ha uma relacao
importante entre a criaca"o artistica, a ambigui-
dade, o humor e uma visao critica da sociedade,
muitas vezes manifestada pelos homossexuais
atraves de um comportamento caricaturalmente
efeminado, conhecido como "fechacao".
As bichas sa"o ambiguas por definica"o: tern
um sexo fisiol6gico e outro social, e como o
estigma social os coloca fora dos centros
formais de poder social, elas ocupam uma
posica"o estrutural as margens da sociedade da
qual a pelo menos possivel uma visao critica
das coisas. Neste sentido, convem lembrar que
a criatividade e um humor mordaz e venenoso
tambem sa"o associados a outros grupos margi-
nalizados e estigmatizados socialmente como
os negros e os judeus. Os berdaches gozaram
de prestigio e respeito dentro de um contexto
social e religioso em que a inversa"o dos papeis
sexuais era associada a poderes de profecia
e de cura. 0 berdache era em nada um "des-
viante"; era tao "natural " para os indios da
America do Norte quanto a um padre de
batina para n6s.
Mas no ha mais berdaches nos Estados Unidos
da America e o seu fim foi brutal perante a
t
I
0 que e Homossexualidade
"civilizacao" que os conquistou em nome de
Cristo e do progresso. Os berdaches foram per-
seguidos e ridicularizados pelos colonizadores
brancos, e membros do Bureau de Assuntos
Indigenas obrigaram-nos a se vestir de acordo
com seu sexo biol6gico. Nestas circunstancias,
os pr6prios indios acabaram por ver nesta
instituica"o uma fonte de humilhacao e vergonha
e ha pelo menos um caso de suicidio de um
berdache, cuja familia insistiu para que ele
cacasse junto com os homens da tribo. Os
berdaches
e os valores sexuais das sociedades
as quais pertenciam foram vitimados por uma
ideologia sexual que classificava a homossexua-
I idade como crime, pecado e doenca.
Travesti sofrendo violencia nas moos da policia de Sao
Paulo.
'ip
59
PECADO, CRIME, DOENCA E
SEM-VERGONHICE
0 Grupo Gay da Bahia tem como uma de
suas prioridades a retirada da homossexualidade
da lista de doencas do I NAMPS. Neste capitulo
contaremos a historia da atuacao da medicina
no campo da sexualidade em geral e da homosse-
xualidade em particular, examinando suas
teorias sobre causas, efeitos e curas. Procuramos
demonstrar, ao mesmo tempo, que os especia-
listas da medicina contribuem em grande parte
para a construca"osocial do homossexual moderno,
diferente da "bicha" ou "viado" do Brasil popular.
Sabemos que, na era colonial , a pratica da
homossexualidade era "hediondo pecado,
pessimo e horrendo, provocador da ira de Deus
e execravel ate pelo proprio Diabo" (Constitui-
(;oes Primeiras do Arcebispo da Bahia, 1 707)
J
0 que a Homossexualidade
e que podia ser punida com morte na fogueira.
Na segunda metade do seculo XI X, porem,
irrompe na Europa e no Brasil toda uma preocupa-
cao medica com a homossexualidade e, de fato,
quaisquer relacoes sexuais fora do casamento,
incluindo prostituicao. Formou-se a ideia de
que a "saude" da nacao era diretamente ligada
a "saude" da familia e dependente, portanto,
do controle da sexualidade. Aqui no Brasil,
o medico carioca Pires de Almeida, em 1906,
escreve no seu I ivro Homossexualismo (A Liber-
tinagem no Rio de Janeiro): "Mais que todos
os seres, o homem, pelas suas paixoes e por
seus instintos libidinosos, corrompe e arruina
a propria saude, destruindo as fontes da vida."
Dal em diante, sa"o os medicos que vao reivin-
dicar a sua autoridade de falar a verdade sobre
a sexualidade e sao eles os agentes da gradual
transformaca"o da homossexualidade de
"crime", "sem-vergonhice" e "pecado" para
"doenpa", ao longo dos anos que seguem. 0
crime merece punka"o, a doenga exige a "cura"
e a "correca"o". Nesse sentido, vejamos as
palavras do especialista em medicina legal,
Leonidio Ribeiro ( 1938):
"No seculo passado foi que o problema do homosse-
xualismo comecou a ser estudado por medicos e
psiquiatras, interessados em descobrir suas causas,
a fim de que juristas e sociologos pudessem modificar
61
62
as Iegislacoes existences, todas baseadas em nocoes
empiricas e antigos preconceitos, e fosse possivel
seu tratamento em moldes cientificos.
As praticas de inversa"o sexual no podiam continuar
a ser consideradas, ao acaso, como pecado, vicio ou
crime, desde que se demonstrou tratar- se, em grande
numero de casos de individuos doentes ou anormaes,
que no deviam ser castigados, porque careciam antes
de tudo de tratamento e assistencia.
A medicina havia libertado os loucos das prisoes.
Uma vez ainda, seria ela que salvaria de humilhacao
esses pobres individuos, muitos deles vitimas de suas
taras e anomalias, pelas quaes no podiam ser respon-
saveis".
Os primeiros medicos que escreveram sobre
relacoes sexuais entre pessoas do mesmo sexo
inventaram duas palavras que va"o ser usadas
subsequentemente como sinonimos: o homosse-
xual e o uranista. A primeira foi usada pela
primeira vez em 1869 por urn medico hungaro,
Karoly Maria Benkert. 0 segundo surgiu do
trabalho de urn alemao, Karl Heinrich Urichs,
que escreveu fartamente entre os anos de 1860
a 1890, sendo o seu esquema adotado por Pires
de Almeida. 0 neologismo "uranista" foi inven-
tado em homenagem a musa Urania que, no
mito contado por Platao, seria a inspiradora
do amor entre pessoas do mesmo sexo. 0
embriao humano, acreditava Ulrichs, no inicio
no a nem masculino nem feminino, mas depois
1
de alguns meses a diferenciaca"o ocorre.
No caso dos uranistas, os orga"os genitais vao
numa direca"o e o cerebro noutra. Assim se
produz "uma alma ferninina encapsulada num
corpo masculino" e vice-versa. Ulrichs depois
desenvolveu uma classificacao complexa de
"tipos homossexuais" entre os quais o Mannling,
que a totalmente masculino em aparencia e
personalidade, o Weibling, que a efeminado, e
o Zwischen -urning, que a urn tipo intermediario.
Os primeiros dois termos equivalem aos termos
"homossexual ativo" e "homossexual passivo"
que a medicina vai desenvolver mais tarde e que
sao usados correntemente ate hoje.
0 que a importante observar aqui a que a
terminologia medica difere substancialmente
da terminologia usada no Brasil popular . Naquele
sistema, o "ativo" na relacao homem/homem
permanece no status de homem enquanto o
"passivo" fatalmente a rebaixado para o status
de "bicha" . 0 "homossexual" do sistema medico
inclui tanto urn como o outro. Do ponto de
vista da medicina, no importa se urn individuo
adota o sexo social apropriado ao sexo fisiolo-
gico; se ele pratica ou quer praticar atos sexuais
corn pessoas do mesmo sexo fisiologico, "passiva"
ou "ativamente", ele a homossexual. Se o Brasil
popular fala de sexo social predominantemente,
o sistema medico fala de sexo fisiologico e
define o hornossexual exclusivamente pelo seu
63
64
Peter Fry e Edward MacRae
desejo sexual por pessoas do mesmo sexo
fisiol6gico. 0 homem do Brasil popular que
"come" a "bicha" e, neste sistema, um "homosse-
xual.
Mas como a que os medicos do seculo XI X
caracterizaram os homossexuais? Para Krafft-
Ebing, o homossexualismo era ou uma patologia
congenita ou uma mera perversao quando
praticado por pessoas no uranistas. Este medico
austriaco, que foi um dos pioneiros do estudo
da homossexualidade e que influenciou a medicina
definitivamente, coletou milhares de "confissoes"
dos seus pacientes e as publicou no seu livro
Psicopatia Sexualis. Chegou a conclusao de que
os uranistas sofrem de uma mancha psicopatica,
que mostram sinais de degenerescencia anatomicos,
que sofrem de histeria, neurastenia e epilepsia.
Acrescenta ainda qv" "na maioria dos casos,
anomalias psiquica. (disposigao brilhante para
a arte, especialmente musica, poesia, etc., ao
lado de poderes intelectuais maleficos ou excen-
tricidade original) sao presentee e podem se
estender a condicoes salientes de degeneracao
mental (imbecilidade, loucura moral). "
A partir dos trabalhos de Krafft- Ebing, Ulrichs,
Pires de Almeida e outros, a grande controversia
nos meios medicos girou em torno da questao
das causas da homossexualidade. Enquanto
alguns acharam que as causas eram basicamente
biologicas (hereditariedade, defeitos congenitos
0 que a Homossexualidade
ou defeitos hormonais), outros explicaram a
homossexualidade em termos do meio ambiente
social . Em geral , esses primeiros te6ricos distin-
guiram entre os uranistas de verdade, ou "inver-
tidos", cuja homossexualidade era biol6gica e,
portanto, os eximiam de qualquer culpa ou
responsabilidade, e os "pervertidos", em geral
"homossexuais ativos", que praticavam a
homossexualidade por pura "sem- vergonhice".
No Brasil , Leonidio Ribeiro propoe que causas
biol6gicas e sociais interagem: "Nao obstante
ser aceitavel, ate certo ponto, uma parte dos
argumentos apresentados pela psicanalise,
ganha terreno, cada vez mais, a teoria que
afirma existirem na maioria dos casos de
inversao sexual , uma causa ou predisposica"o
organica, para esses fenomenos que seriam
favorecidos ou agravados, pela influencia do
ambiente".
Mas os medicos nao se satisfizeram apenas
em declarar a homossexualidade uma anomalia
organica, pois as origens end6crinas desta
"doenca" tambem acarretariam outras patologias.
Assim a que surge o "homossexual " que a esqui-
z6ide, paran6ide etc. . . Ribeiro dedica um capi
tulo inteiro ao sadismo, e atraves de uma descricao
minuciosa de "Febronio, Indio do Brasil", que
teria estrangulado uma serie de rapazes, estabelece
uma clara relaca"o entre sadismo e homosse-
xualidade.
65
66 Peter Fry e Edward MacRae
Mas, com a mudanca do status da "homosse-
xualidade" de pecado Para "doenca", abre-se
a possibilidade de cura. A partir dos argumentos
de Ribeiro, por exemplo, Febronio a "salvo"
da cadeia e premiado com a segregacao ad vitam
no Manicomio Judiciario. E todos os homens
classificados como "homossexuais" sao agora
sujeitos ao tratamento "medico pedagogico".
Diz Ribeiro: "Provado que o homossexualismo
e, em grande numero de casos, uma consequen-
cia de perturbacoes do funcionamento das
glandulas de secrecao interna, logo surgiu a
possibilidade de seu tratamento. Era mais
um problema social a ser resolvido pela medicina".
(grifos nossos). Nos casos dos individuos cuja
homossexualidade a resultante do meio ambiente,
propoe- se "medidas pedagogicas. (. . . ) Em
muitos casos, sobretudo quando esta em jogo
o filho unico, em que a predominante a influen-
cia materna, a solucao sera o afastamento do
ambiente familiar, afim de que a creanca possa
privar com pessoas de sua idade e de sexo
contrario. (. . . ) ^ preciso suprimir os carinhos
e facilidades do ambiente familiar. (. . . ) Em
tais casos a inutil a internacao em colegios onde
haja dormitorios coletivos, sem fiscalizacao rigoro-
sa, na convivencia exclusiva com creancas do
mesmo sexo".
Se a homossexualidade per se nunca foi defi-
nida como crime no Codigo Penal Brasileiro,
7
0 que e Homossexualidade
ao contrario do que ocorreu em outros paises,
na decada de 1930 havia uma clara conivencia
entre a policia e os medicos, pois os delinquentes
"homossexuais" de uma certa classe social eram
encaminhados Para o Laboratorio de Antropo-
logia Criminal do Instituto de Identificacoes
de Sa"o Paulo, onde os medicos levaram adiante
suas pesquisas sobre as causas biologicas e sociais
da homossexualidade, com enfase sobre os
biotipos e ambiente social dos individuos em
quests"o.
Numa comunicacao apresentada na Primeira
Semana Paulista de Medicina Legal , em 1937,
o Dr. E. de Aguiar Whitaker apresentava "os
resultados obtidos pelo estudo anthropopsy-
chiatrico" de oito homossexuais ( pederastia
passiva) detidos pela policia de Sao Paulo. De
acordo com a teoria vigente na epoca, Whitaker
diagnostica homossexualidade "endogena"
(biologica) e "exogena" (oriunda do ambiente
social). Para dar uma ideia da forma preconcei-
tuosa de como eram encaradas estas "vitimas
da ciencia", seguem dois exemplos:
"1 - Alvaro Adamo, 19 annos. 'Garcon'. Procedente
da Capital. Examinado em 18/9/1936.
Resumo da observacao - Trata- se de um individuo
com leve psychopathia, homossexual ( pederastia passiva)
por defeitos de educaca"o e accidental, suceptivel de
cura, de personalidade mediocre, cyclothymico, emotivo
67
68
Peter Fry e Edward MacRae
e instavel ( de modo pouco accentuado), revelando
satisfactorio senso ethico, susceptive/ de educacao
medico pedagdgica.
Diagnostico - Personalidade mediocre, cyclothy-
mico, emotividade e instabilidade leves. Pederasta
passivo por defeitos de educacao e accidental. Desa-
daptaca"o social susceptIvel de correcao.
(V. - B. ) Leptosoma- athletico ( K.). Bacia de typo
feminino aproximado. Pellos do pubis de conformacao
feminina approximada".
"7 - Joao de Abreu. 32 annos. Solteiro. ' Garcon'.
Brasileiro. Procedente de Sao Paulo. Examinado em
29/9/1937.
Resumo da observacao - Trata- se de um individuo
cujo aparelho sexual a susceptivel de funcionar normal-
mente, porem preferindo a copula anal , que the traz
completa satisfaca"o genesia. A sua personalidade,
bastante mediocre, a de typo eschizoide, corn tenden-
cias a instabilidade. Obedecendo aos seus pendores
e caracteristicas, adaptou- se ao ambiente social, ate
ao limite em que este tolera a sua anomalia, residindo
corn uma irmg e trabalhando para viver.
Do ponto de vista do habito externo, salientar, alem
do typo corporeo (L 4- V. - B. ), o aspecto normal a
inspecca"o, excetuada a largura da bacia, ligeiramente
exagerada. 0 paniculo adiposo a esse nivel e regioes
circuvizinhas a regularmente desenvolvido, determinando
contornos arredondados ( bacia de typo feminino) e
a distribuica"o de typo mixtodos pellos do pubis. Ausen-
cia de pellos no tronco.
Diagnostico - Pederasta passivo, endbgeno, Eschi-
zoidia. Instabilidade lever
0 que a Homossexualidade
Parecer medico-social - Adaptacao social relativa.
Necessidade de uma accao medico-correcional".
(Whitaker, 1 937:21 7, 220 - grifos nossos)
0 autor chega as seguintes conclusoes: "0
estudo de nossos casos de homossexualidade
confirma a ideia de ser esta anomalia com
aspecto das personalidades psychopathicas (em
sua forma end6gena), ou uma consequencia
destas (em sua forma ex6gena), o papel do
elemento end6crino sendo aqui (forma end6gena)
identico ao que desempenha nas psychopath ias".
Citamos longamente este trabalho pelo fato de ele
exemplificar a maneira pela qual a medicina
e empregada para controlar a homossexualidade.
Apesar de nao haver, no Codigo Penal Brasileiro,
nenhuma mencao da homossexualidade como
crime, podemos ver que a medicina legal se
achava no direito de sugerir "accao medico-correc-
cional " para os delinquentes, alem de punicao
do crime especifico de que eram acusados.
Podemos imaginar o que isto significa se
lembrarmos que a liberdade de um homem
poderia estar na dependencia de um parecer
deste tipo nos conselhos carcerarios existentes
em cada Estado brasileiro.
Como dissemos, as teorias que procuram expli-
car a homossexualidade em termos biologicos
apontam em tres direcoes: hereditariedade,
69
70 Peter Fry e Edward MacRae
defeitos congenitos e desequilfbrios hormonais.
Porem, embora algumas pesquisas parecam
confirmar estas teorias, elas tern lido duramente
criticadas em termos de seu rigor cientifico e
a questao da hereditariedade continua em aberto.
As outras teorias sugerem que a homossexua-
lidade seria causada por problemas na etapa fetal
do crescimento ou que tem alguma coisa a ver
com o equilibrio hormonal . De fato, as duas
teorias tern um ponto de encontro, ja que a
primeira supoe que a producao de um feto poten-
cialmente homossexual seria causada por um
desequilibrio hormonal da pr6pria mae. Este
desequilibrio agiria sobre o hipotalamo da
crianca de tal forma a causar a homossexualidade.
Mesmo se estas teorias tivessem alguma vera-
cidade, o que a que poderiam comprovar?
Segundo os geneticistas e medicos envolvidos,
etas mostrariam causas biol6gicas da homosse-
xualidade. Poderiamos concordar que mostrassem
causas biologicas para certos tipos de prazer
sexual , mas a atribuir muita direcionalidade a
natureza imaginar que ela poderia chegar,
atraves de mensagens qu imicas, a determinar
um futuro objeto de desejo sexual.
Em outras palavras, as teorias biologicas podem
talvez um dia mostrar correlacoes entre cromos-
somos, hormonios e certos tipos de prazer sexual,
mas nunca a identidade social do parceiro esco-
Ihido. E importante refletir sobre as conseq6en-
0 que e Homossexualidade
cias da aceitacao deste tipo de teoria biologizante.
Alguns que defenderam-na no seculo XI X, como
Hirschfeld e Ellis, usaram- na para argumentar
a favor da "naturalidade" do homossexualismo.
Era uma arms usada na defesa dos direitos dos
homossexuais, pois se eram homossexuais por
nascenca, ninguem tinha o direito de puni-los
como criminosos. Foi este tambem o argumento
de Krafft- Ebing, como acabamos de mostrar.
Mas a aceitacao desta teoria pode levar a conse-
q6 ncias terriveis para os homossexuais. Por
exemplo, se a verdade que o homossexualismo
esta relacionado com um defeito no hipota-
lamo ou outra area do cerebro, entao abre-se um
caminho para a sua extirpacao.
Ate ha alguns anos atras, era considerada valida
a realizacao de uma operacao cirurgica que
consistia na retirada de uma pane dos I 6bulos
frontais do cerebro, relacionados com a produ-
cao de fantasias e do prazer sexual . Apesar
deste processo ter caido em desuso, ultimamente
o peri6dico Medical World New, de 25 de
setembro de 1 970, anunciou uma tecnica de
queimar, atraves de choques eletricos, uma
pequena secao do hipotalamo. Este metodo
teria sido usado em varios jovens americanos
homossexuais, na sua maioria pedbfilos, que
dessa forma teriam sido reconduzidos a "norma-
lidade" . 0 fato de eles terem perdido a capaci-
dade de fantasia e de sentirem prazer sexual
71
72 Peter Fry e Edward MacRae
0
parece n5o ter sido considerado muito impor-
tante. Outro metodo usado nos Estados Unidos,
especialmente no caso de homossexuais presos
por crimes sexuais, foi a castracao.
Nestes ultimos casos, ao inves de significar
um aumento na capacidade de sentir prazer em
viver, o que se chama de "cura", nao passa de
um eufemismo para punicao. I sto a evidente
no "tratamento" atraves da lobotomia, castra-
cao etc. . . a que sa"o submetidos homossexuais
detidos em certas prisoes e manicomios, espe-
cialmente nos Estados Unidos. E na lei espanhola
que, considerando os homossexuais um "perigo
social", condena os homossexuais ao interna-
mento em pretensos "centros de cura" que sao
meras penitenciarias. De fato, parece que na
major parte do tempo aqueles que dizem desejar
"curar" os homossexuais estao mais interessados
em coloca- los fora de circulaca"o, nao se impor-
tando com a natureza dos meios que usam para
diminuir a sua possibilidade de "prejudicar a
sociedade".
A tendencia desde Ulrichs, Krafft- Ebing etc.
era de enfatizar os aspectos biologicos e inatos
da homossexualidade, mas Freud salientou os
aspectos experienciais, sociais e familiares,
sem descartar completamente a ideia de existi-
rem tendencias inatas que ele via como parte
de uma predisposipdo bissexual. Sua teoria leva
a uma visao desfavoravel da homossexualidade
0 que a Homossexualidade
e demonstra a persistencia de atitudes prove-
nientes de sua origem de classe- media judaica
vienense. Por exemplo, a psicanalise presume
que a sexualidade tenha objetivos predetermi-
nados, inatos, alem dos adquiridos. Presume
a heterossexualidade como a condicao sadia
e a procriaca"o como a sua finalidade maxima.
0 que ele considera o ato sexual maduro e o
coito heterossexual e os que preferem outras
variantes sao considerados imaturos. Ele
aceita sexo oral e outras formas de excitacao
sexual como legitimos, na medida em que sao
preliminares ao coito heterossexual.
Obviamente, atividades homossexuais sao
portanto automaticamente exclu Was deste quadro.
Freud considerava a homossexualidade uma
condicao quase incuravel, com quatro princi-
pals causas. A primeira seria a "fixacao",
quando o individuo deixava de completar
adequadamente todas as etapas do processo
de amadurecimento permanecendo fixado a
uma delas. A segunda seria o medo da castracao,
resultante de um desejo infantil pela ma"e e o
medo de uma punic5o por parte de um pai
ciumento. A terceira e o narcisismo. Segundo
Freud, o homossexual procuraria um parceiro
parecido consigo pois, inconscientemente,
desejava amar a si mesmo. A quarta seria a
identificaca"o com um dos pais do sexo oposto,
o que levaria a crianca a copiar a sua preferencia
73
74
Peter Fry e Edward MacRae
sexual. Alegava que isto ocorria muito com
meninos que tivessem maes dominadoras e
pals ausentes.
Aqueles que conhecem a fundo os trabalhos
de Freud podem considerar este breve resurno
como uma simplificaca"o absurda. Talvez seja.
Mas o fato a que estas ideias, atribuidas a Freud,
se tornararn parte do senso comum. Como tal,
adquiriram a forma de dogmas quase inquestio-
naveis e informarn a maneira pela qual muita
gente pensa a homossexualidade. Por exemplo,
o desespero que se abate sobre pals e maes
quando descobrem que um filho ou uma filha
e homossexual, muitas vezes se deve a este
tipo de interpretacao, que atribui "culpa" a eles.
Mas nao ha razao nenhuma de aceitar estas
interpretacoes que colocam arbitrariamente a
heterossexualidade como a expresso da maturi-
dade plena. Chamar o homossexual de imaturo
e apenas outra maneira de deprecia- lo sern
chama- lo de doente. 0 famoso paradigma da
fabrica de bichas constitufda de uma mae domi-
nadora e um pai ausente a seguramente apenas
uma reiteracao da ideologia de que apenas a
familia patriarcal a realmente saudavel, ignorando
a realidade da vida familiar em geral. 0 fato e
que, para todas as criancas, as m6es geralmente
aparecem como personagens dominadoras. Assim,
se a teoria fosse valida, o problema que teriamos
que enfrentar seria o de descobrir as causas da
r
i
0 que a Homossexualidade
heterossexual idade. . .
Assim, mesmo se Freud negasse que a homosse-
xualidade fosse doenca, certamente no deixaria
de ve- la como defeito. Desta forma, a psicanal ise
tende a reproduzir o moralismo judaico- cristao,
usando como ameaca, em vez do inferno, uma
vida sem sentido, seguida de uma velhice soli-
taria ou um carissimo diva.
Outra tradica"o terapeutica que teve e continua
tendo grande repercussao e a do comportamen-
talismo, cujos adeptos, deixando de lado
discussoes mais aprofundadas sobre a questao
da saGde e da doenca, partem do principio de
que o comportamento e as emocoes sao frutos
de urn processo de aprendizado e sao passiveis
de modificacao atraves de metodos mais ou
menos mecanicos. Baseados no principio da
recompensa de comportamentos desejados e
da punicao dos que se visa eliminar, estes
metodos acabam levando o paciente a adquirir
caracteristicas que melhor possibilitarn sua inte-
gracao na sociedade que o cerca. I sto geralmente
significa induzi- lo a se comportar como a maioria.
^ uma orientacao essencialmente conservadora de
viver.
Alem disso, as tecnicas usadas muitas vezes
sao crueis e humilhantes, chegando a se asse-
melhar bastante a tortura. Tal e o caso da
chamada "terapia de aversao", onde se procura
condicionar urn reflexo de repulsa a estimulos
75
que causam prazer, mas sao considerados mal-
adaptativos como, neste caso, o comportamento
homossexual . Geralmente, o metodo consiste
na aplicacao de um medicamento que cause
enjoo logo apos a apresentacao de fotografias
ou a recriacao de situacoes que se deseja que
o paciente deixe de gostar. Condiciona- se, desta
forma, urn homossexual masculino a sentir
enjoo toda vez que vir urn homem do tipo que
antes considerava atraente. Nesta tecnica, as
vezes substitui- se o medicamento que causa
enjoo pela aplicacao de choques eletricos.
Em grande parte devido as pressoes dos movi-
mentos homossexuais, em 1973 a homossexua-
lidade deixou de ser classificada como doenca
pela Associacao Americana de Psiquiatria. Ao
longo dos anos, um numero crescente de
medicos e psicoterapeutas deixaram de tentar
"curar" seus pacientes homossexuais, mas nem
por isso deixaram de agir no campo da sexuali-
dade. Aceitando em grande medida a ideia de que
a homossexualidade a uma orientacao sexual
to aceitavel como a heterossexualidade, garanti-
ram sua continuada relevancia ( e, portanto, seus
lucros) no sentido de fazer com que os homosse-
xuais aceitassem felizmente sua "condicgo'".
Falam no mais no homossexual por definicao
doente, mas do homossexual potencialmente
"saudavel ", como indica o titulo do Iivro do
medico americano George Weinberg : A Sociedade
e o Homossexual Sadio, publicado em 1973.
Neste livro, que a representativo do pensa-
mento de muitos psicoterapeutas "progressistas"
a critica a feita a psicoterapia que tachou o
homossexual de doente. 0 autor prega contra
a "conversao" dos homossexuais em heterosse-
xuais, argumentando em favor do homossexual
se aceitar como gay. "Um homossexual a gay
quando ele se ve feliz de ser alguem dotado da
capacidade de enxergar as pessoas como
romanticamente belas. Ser gay a ser livre de
vergonha, culpa e remorso de ser homosse-
xual. (...) Ser gay a vislumbrar sua sexualidade
como o heterossexual sadio enxerga a dele."
Sem dar mais exemplos, podemos perceber
que a medicina atuava e continua a agir politi-
camente no que diz respeito a homossexualidade.
A partir do seculo XIX, ao tachar os homosse-
xuais de doentes, ela justificou sua "cura", sua
"conversao" em heterossexuais. Desta maneira,
a medicina exerceu urn forte controle social
contra a homossexualidade e em favor da hete-
rossexualidade. Mais tarde, perante as criticas
oriundas do movimento homossexual, ela soube
se preservar e, usando as mesmas nocoes de
saude e doenca, introduziu a nocao do "homosse-
xual sadio".
^ mais do que claro que, no campo da sexua-
lidade, saude e doenca no idioma dos medicos
sao apenas metaforas para "bom" e "ruim",
78 Peter Fry e Edward MacRae
mascarando e legitimando ju izos fundamental-
mente morais. E uma coisa afirmar que a promis-
cuidade a ruim; a outra insistir que a doenca.
E uma coisa propor que o homossexual assuma
sua homossexualidade "numa boa"; a outra coisa
dizer que ele a saudavel. A primeira afirmacao
e sujeita a discordancia e disputa, enquanto a
segunda tende a ser mais facilmente aceita por
carregar o carimbo da autenticidade da "ciencia
medica".
Mas gostariamos de sugerir que a "ciencia
medica" teve um papel politico fundamental
num nivel mais sutil e profundo, pois ela a em
grande parte responsavel pelas nocoes que as
classes medias urbanas tern a respeito da
homossexualidade e a heterossexualidade como
sendo dois campos "naturalmente" distintos.
Ao falar da homossexualidade e da heterossexua-
lidade, dos homossexuais e dos heterossexuais,
a ciencia medica faz com que se acredite que
o mundo a de fato dividido entre uma categoria
e outra. Esta maneira de ver as coisas combate
outras maneiras de compreender a sexualidade
humana como, por exemplo, aquela que descre-
vemos para o Brasil popular. Neste caso no
ha "homossexuais" e "heterossexuais", mas
sim "bichas" e "homens", "mulheres" e
"sapatoes". Combate tambem uma outra
possivel maneira de compreender a sexualidade
humana como simplesmentesexualidade.
0 que e Homossexualidade
l
Ao definir o "homossexual sadio", a ciencia
medica continua legitimando uma divisao
estanque entre "homossexuais" e "heterossexuais",
quando a possivel vislumbrar uma situacao em
que pessoas nao precisariam ser uma coisa ou
outra. Como disse Alfred Kinsey, vinte e cinco
anos atras: "Os machos n5o se dividem em dois
grupos distintos: os heterossexuais e os homosse-
xuais. 0 mundo no esta dividido em ovelhas
e carneiros. Nem todas as coisas sao negras,
nem todas sa"o brancas. E um principio funda-
mental do sistema de classificacao que raramente
na Natureza se encontram categorias nitidamente
separadas. So a mente humana inventa as cate-
gorias e tenta abrigar os fatos em compartimentos
separados. 0 mundo vivente representa uma
continuidade em todos os seus aspectos. Quanto
mais depressa aprendermos esta nocao, aplicando- a
ao comportamento sexual do homem, tanto
mais depressa compreenderemos claramente o
que e a realidade do sexo. "
79
1
NASCE UMA ESTRELA OU
0 SURGIMENTO DA
"CONSCIENCIA HOMOSSEXUAL"
Obviamente a demasiado simplista pensar
o mundo em termos da luta entre mocinhos
e bandidos ou, se quiser, no caso, os homosse-
xuais e seus repressores. Pensar assim seria
incorrer no mesmo erro daqueles que veem a
opressao feminina em termos de um complo
masculino. De fato, homens, mulheres, medicos,
legistas, homossexuais e psicoterapeutas fazem
parte de um todo que a maior que a soma dos
seus componentes individuais.
No capitulo anterior contamos a historia de
como a homossexualidade foi definida como
doenca e algumas consequencias disso. Nao foram
apenas os medicos, em isolamento, que tramaram
maquiavelicamente esta facanha. Afinal, para
que as questoes que levantavam e as respostas
que apresentavarn fossem julgadas pertinentes
e para que estas viessem a ter to grande reper-
cussa"o, era necessario que ja existisse um clima
social propicio. Alias, fizemos questao de
observar que as primeiras investidas contra a
homossexualidade por parte da medicina foram
acompanhadas de uma forte preocupaca"o por
parte das classes dominantes com quaisquer
atividades sexuais extrafamiliares. Afinal, os
medicos nao constituern um grupo isolado
da sociedade maior. Eles pertencem a uma
determinada classe social com a qual compar-
tilham um estilo de vida e preocupacoes sociais
e, como no resto da populacao, alguns sao
homossexuais. Eles tambem participaram e
participam ativamente na historia do homosse-
xualismo.
Vamos agora mostrar como estes medicos
homossexuais e outran pessoas classificadas de
homossexuais, doentes e neuroticos enfrentaram
este estigma imposto a eles. Enquanto a grande
maioria evitava se expor de alguma forma, temendo
o desmascaramento e os efeitos terriveis disto,
alguns homens e mulheres lutaram publicamente
contra este preconceito.
Ja nos referimos ao trabalho de Karl Ulrichs
e de Karoly Maria Benkert, inventores dos termos
"uranista" e "homossexual " que iriam ser literal-
82
Peter Fry e Edward MacRae
mente as palavras chaves do debate que comecava
a ser travado sobre a questao. 0 que argumenta-
remos mais tarde a que, ao inventar estas palavras,
eles tambem estavam lancando as bases sobre
as quais iria se desenvolver toda uma nova identi-
dade social e sexual - o "homossexual ". Ulrichs
e Benkert eram homens que sentiam atracao
sexual por outros homens. Como na epoca em
que eles comecaram a sentir estes desejos estas
palavras e a identidade a elas associadas nao
existiam, deveriamos hesitar em chama-los de
homossexuais.
Das duas palavras recem-inventadas, foi o
termo "uranista" aquele mais imediatamente
bern-sucedido. E esta concepcao biologizante
continha o germe da ideia de urn "terceiro sexo"
que seria tao "natural " quanto os outros dois.
Desta forma, pretendia- se justificar atos que
ainda naquela epoca eram considerados como
"crimes contra a natureza". Na Inglaterra, por
exemplo, o dramaturgo Oscar Wilde foi condenado,
em 1895, a dois anos de prisao corn trabalhos
forcados, sob a acusacao de praticar sodomia
com Lord Alfred Douglas, criando um escandalo
moral publico do tipo em que os ingleses sao
mestres. As repercussoes deste escandalo foram
graves e iriam retardar em muitos anos o desen-
volvimento da emancipacao homossexual
naquele pa(s, que ja era anunciada pelos trabalhos
de Havelock Ellis e Edward Carpenter.
0 que a Homossexualidade
Havelock Ellis (1859- 1939), embora nao fosse
homossexual, tinha um interesse pessoal no
assunto devido ao fato de ser casado com uma
lesbica. Era um medico de ideias socialistas que
dedicou sua vida ao estudo da sexualidade em
geral . Embora negasse a concepcao de um
"terceiro sexo", era um grande partidario do
determinismo biologico e concebia a homosse-
xualidade como uma "involucao do impulso
sexual ", que ele considerava como sendo bastante
inocua. Apesar do seu tom as vezes moralista,
exigido pelos preconceitos de sua epoca , foi ele
quem estabeleceu certos parametros que durante
anos iriam nortear campanhas em favor dos
homossexuais:
1) 0 homossexualismo seria marca caracteris-
tica de uma certa minoria incuravel.
2) As tentativas de reforma deveriam se voltar
para provocar mudancas na lei permitindo
que esta minoria vivesse em paz.
3) Para esta reforma, seria preciso antes um
periodo de educacaodo publico.
Juntamente com J. A. Symonds, escreveu
um livro de grande importancia, mas que so
pode ser editado na Alemanha, pois na Ingla-
terra este sobrio trabalho cientifico era consi-
derado pornografico. Quando finalmente o
livro foi publicado em ingles com o nome de
lnversa"o Sexual, seu co-autor ja havia morrido
83
84 Peter Fry e Edward MacRae
e sua fam i l is no permitiu que seu nome apare-
cesse, roubando-
Ihe desta forma a gloria postuma
de ter sido co-autor de um dos livros mais impor-
tantes sobre a sexualidade dentre os escritos
no seu seculo. Em uma epoca em que pouco se
falava sobre lesbianismo, Ellis foi um dos
autores que mais enfase deu ao assunto.
Enquanto ele negava a natureza intrinseca-
mente efeminada do homossexual masculino,
atribuia uma natureza masculinizada a lesbica,
acreditando existir profundas diferencas biolo-
gicas entre a sexualidade feminina e a masculina.
Para ele, o elemento de auto- afirmacao na sexua-
lidade lesbica seria masculina, ja que, de acordo
com sua perspectiva biologizante, considerava
que as mulheres eram por natureza
passivas e
receptivas as investidas sexuais do homem.
A relacao entre a defesa de uma sexualidade
mais livre e o socialismo que marca a posicao
de Ellis norteou tambem o trabalho e a vida
de um grande heroi do socialismo utopico ingles,
Edward Carpenter (
1844-1929). Influenciado
pelas ideias do poeta americano Walt Witman,
Carpenter acreditava num companheirismo que
poderia incluir relacoes homossexuais entre
homens e que seria um fator de equil(brio para
o materialismo, uma forma de espiritualizar a
democracia e unir as classes sociais. Como os
outros da sua epoca, acreditava que masculinidade,
feminilidade e homossexualidade tinham bases
0 que e Homossexualidade
Edward Carpenter (1844-1928). Libertdrio, nao so sexual.
Tambem pensaria nos pes - foi introdutor do use da
sanddlia na Inglaterra.
85
84PeterFry e EdwardMacRae1 0 queeHomossexualidade85
e sua familia nao permitiu que seu nome apare-
cesse, roubando- Ihe desta forma a gl6ria p6stuma
de ter sido co-autor de um dos livros mais impor-
tantes sobre a sexualidade dentre os escritos
no seu seculo. Em uma epoca em que pouco se
falava sobre lesbianismo, Ellis foi um dos
autores que mais enfase deu ao assunto.
Enquanto ele negava a natureza intrinseca-
mente efeminada do homossexual masculino,
atribuia uma natureza masculinizada a lesbica,
acreditando existir profundas diferencas biol6-
gicas entre a sexualidade feminina e a masculina.
Para ele, o elemento de auto- afirmacao na sexua-
lidade lesbica seria masculina, ja que, de acordo
com sua perspectiva biologizante, considerava
que as mulheres eram por natureza passivas e
receptivas as investidas sexuais do homem.
A relaca"o entre a defesa de uma sexualidade
mais livre e o socialismo que marca a posicao
de Ellis norteou tambem o trabalho e a vida
de um grande her6i do socialismo ut6pico ingles,
Edward Carpenter ( 1844-1929)
.
Influenciado
pelas ideias do poeta americano Walt Witman,
Carpenter acreditava num companheirismo que
poderia incluir relacoes homossexuais entre
homens e que seria um fator de equilibrio para
o materialismo, uma forma de espiritualizar a
democracia e unir as classes sociais. Como os
outros da sua epoca, acreditava que masculinidade,
feminilidade e homossexualidade tinham bases
Edward Carpenter (1844-1928). Libertario
, nao so sexual.
Tambem pensaria nos pes
- foi introdutor do useda
sandalia na Inglaterra.
86 Peter Fry e Edward MacRae
biologicas. A sua contribuicao mais interessante
e que achava que os uranistas eram seres supe-
riores justamente porque combinavam aspectos
femininos e masculinos, capazes, portanto, de
formar urea ponte entre os dois. Nos seus argu-
mentos para justificar a homossexualidade, citava
a existencia de homossexuais excepcionalmente
talentosos.
Carpenter no foi apenas um teorico. Procurava
viver a sua teoria e por muito tempo morou
numa casa de campo ao lado de seu amante,
George Merrill , um operario. A casa deles se
tornou uma meca de peregrinac5o nao so para
muitos integrantes do movimento trabalhista,
como tambem para vegetarianos, militantes
contra o alcoolismo, espiritualistas, ateus, anti-
vivisseccionistas, social istas, anarquistas,
artesaos, intelectuais de Cambridge e de Londres
e homossexuais.
Nesta epoca, varios grupos foram constitu idos
em paises europeus para lutar contra a descri-
minalizacao da homossexualidade, mas o mais
importante foi o estabelecido na Alemanha para
abolir o artigo 175 do Codigo Penal daquele
pals, que punia o comportamento homossexual
entre homens. Este foi fundado em 1897 pelo
medico judeu e homossexual Magnus Hirschfeld.
Na sua campanha para abolir o artigo 175 e
interessar os homossexuais a lutar em favor de
seus direitos, o comite publicou varios livros e
0 que e Homossexualidade
panfletos, alem do Anuario Para Tipos Sexuais
Intermediarios. To bern- sucedida foi esta
campanha que conseguiu mais de seis mil assina-
turas de personalidades e medicos importantes
para um abaixo- assinado e a adesao publica do
lider do Partido Social-Democrata, August
Bebel, que chegou a proferir um discurso no
Reichstag em seu favor.
Hirschfeld acreditava, como Ellis e Carpenter,
que as causas do uranismo eram fundamental-
mente biologicas. Discordava dele Benedict
Friedlander, que saiu do Comite para fundar
um grupo dissidente (Comunidade dos Especiais)
e que mencionamos em parte porque suas ideias
se parecem com as nossas. Acreditava ele que
a homossexualidade nao era inata. Ridiculari-
zava a nocao de "estados intermediarios" e
por no concordar com a equiparapdo dos
homossexuais a doentes, atacava a preponde-
rancia de medicos no Comite. Alem disso, ele
percebia que o comportamento sexual nao
coincidia com as categorias de homossexual e
heterossexual , pois os chamados homossexuais
eram capazes de se relacionar heterossexualmente
e vice-versa. Assim, ele antecipava as ideias desen-
volvidas depois da segunda guerra mundial por
Alfred Kinsey. Alem disso, Friedlander achava
que a bissexualidade era a forma mais plena e
menos distorcida da sexualidade humana.
Hirschfeld, entretanto, continuou seu trabalho
87
88 Peter Fry e Edward MacRae
de vento em popa, fundando em 1919 em Berlim
o Instituto de Ciencia Sexual e organizando o
Primeiro Congresso Internacional para a Reforma
Sexual . No segundo congresso, em 1928, em
Copenhage, foi eleito, junto com Ellis, presi-
dente honorario da recem- fundada Liga Mundial
para a Reforma Sexual . Participaram destes
congressos representantes de varios paises, entre
eles Alexandra Kollontai, I ider bolchevista e
pioneira da luta dos direitos das mulheres, pois
na Uniao Sovietica imediatamente pos-revolu-
cionaria dava- se muita importancia a quests"o da
"libertacao sexual", chegando- se ate a propor a
abolicao da instituicao familiar. Em dezembro
de 1917, o governo bolchevique aboliu as leis
contra atos homossexuais. Esta medida fazia
parte de uma serie de iniciativas visando
promover uma verdadeira revolucao sexual:
facilitar o divorcio e o aborto, a legalizacao da
prostituipio, concubinato e incesto. A tomada
de posicao da Uniao Sovietica de que a homosse-
xualidade nao prejudicava ninguem e que no
era problema legal mas sim cientifico, fez com
que os radicais de outros paises tambem apoiassem
as reivindicacoes dos homossexuajs. Porem, ja
no final da decada de 1920, surgiram indicios
de mudanca com a ascens5o de Stalin ao poder.
No Congresso da Liga Mundial de 1929, os
delegados sovieticos de linha mais dura nao
falaram em homossexualismo, mas condenaram
0 que a Homossexualidade
89
J
o aborto, ressaltando a importancia da "cons-
ciencia da maternidade" entre as mulheres
trabalhadoras.
Os stalinistas comecaram a desenvolver uma
visao da homossexualidade como produto da
decadencia do setor burgues da sociedade.
Glorificando a "decencia proletaria", comecou-se
uma campanha contra os homossexuais e esses
passaram a ser expurgados do Partido, discri-
minados, vigiados e denunciados. Em janeiro
de 1934 foram efetuadas detencoes em massa
de homossexuais em Moscou, Leningrado,
Kharkov e Odessa. Artistas, intelectuais e outros
foram condenados a varios anos de prisao ou
exilio na Siberia, e foi gerada desta forma uma
onda de panico e suicidios. Finalmente em
marco de 1934, com o apoio pessoal de Stalin,
foi introduzida uma lei punindo homossexuais
masculinos com ate oito anos de prisao. Esta
medida encontrou o apoio da imprensa que
iniciou uma violenta campanha contra a homosse-
xualidade com a colaboracao do escritor realista
socialista Maximo Gorki.
0 retorno a repressao da homossexualidade
fazia parte de um conjunto major de medidas
stalinistas em defesa da concepcao tradicional
da familia, culminando com a abolicao do direito
ao aborto em 1936. fE interessante notar aqui
a mesma relaca"o "defesa da familia tradicional/
ataque a homossexualidade", que observamos
90 Peter Fry e Edward MacRae
no caso da Europa e ate o Brasil no final do
seculo XIX. Nao era diferente daquela estabele-
cida pelos alemaes nazistas nesta mesma epoca.
Se, na Uniao Sovietica, declarava- se a homosse-
xualidade uma "perversao fascista", na Alemanha
nazista a homossexualidade ou qualquer desvio
da sexualidade procriativa intramarital era vista
como "bolchevismo sexual".
Em maio de 1933 comecou uma campanha
de depuracao das bibliotecas de livros "pouco
germanicos", e o primeiro alvo foi o Instituto
de Hirschfeld, que foi atacado por estudantes
da Academia de Ginastica com o acompanhamento
musical de uma fanfarra. Foram queimados em
praca publica mais de 10.000 Iivros, fotografias,
arquivos e urn busto do proprio Hirschfeld. Este,
ja a partir de 1932, tinha se exilado e veio a morrer
na Franca pouco depois da destruicao de seu
Instituto.
Apesar da esquerda alegar que os nazistas eram
em grande parte homossexuais, a posicao
hitlerista era claramente contra esta forma de
sexualidade. Quando, em 29 de junho de 1934,
uma disputa pelo poder no seio do nazismo
ocasionou o assassinato de Ernst Rohm e outros
I ideres da S.A., conhebidos pelas suas praticas
homossexuais, acabararn os ultimos resquicios
de qualquer tolerancia da homossexualidade
na Alemanha. Em 1935, o numero de conde-
nacoes sob o paragrafo 175 era de 835 . Em 1935,
0 que e Homossexualidade
a abrangencia deste paragrafo foi aumentada para
incluir beijos, abracos e ate fantasias homosse-
xuais, entre os crimes passiveis de punicao.
Assim, em 1936, 5.321 pessoas foram conde-
nadas e em 1939 o numero subiu dramaticamente
paa 24.450. Estes, depois de condenados
, passavam
pelas maos da Gestapo e eram enviados para
campos de concentracao onde eram frequente-
mente castrados e mantidos sob regimes de
trabalho forcado e de subnutricao especialmente
concebidos para acelerar sua morte
. Marcados
com um triangulo cor de rosa costurado nos seus
uniformes,
eles sofriam no so a perseguicao e
as violencias dos seus captores como tambem
dos outros prisioneiros, e, ate hoje
, quando se
fala nas vitimas dos campos de concentracao
eles sao sistematicamente exclu idos.
Nao se sabe o numero exato de pessoas conde-
nadas sob o paragrafo 175 que foram exterminadas
desta forma, embora a cifra oficial estime que
tenham sido entre 50 a 80.000. Muitos consi-
deram esses numeros demasiadamente baixos,
e realmente a dificil a computacao dado o fato
do paragrafo 175 ter sido mantido na Alemanha
Ocidental pos-guerra,
o que levou poucos sobre-
viventes a se pronunciarem e exigirem indeni-
zacao.
Alem de outras coisas, o que se pode
aprender delta historia e o grau de vulnerabilidade
de homossexuais perante mudancas bruscas da
opiniao publica,
mesmo em cidades liberais e
91
92 Peter Fry e Edward MacRae
avancadas como era a Berlim da decada de 1920,
cuja fama de "capital da homossexualidade"
poderia ser comparada corn a de S5o Francisco
hoje em dia.
De 1935 a 1948, os movimentos deixararn
de existir. A proxima marca importante desta
historia e a publicacao em 1948 nos Estados
Unidos do livro 0 Comportamento Sexual do
Homem, de Alfred Kinsey ( Relatorio Kinsey).
Este estudo detalhado e cientificarnente respei-
tavel compilou informacoes estatisticas sobre
urn total de 12.214 entrevistas de hornens brancos.
Mostrou que, em termos de comportarnento,
os homens dos Estados Unidos nao podem ser
divididos em dois grupos estanques : homosse-
xuais e heterossexuais.
Kinsey descobriu que a melhor pensar em
termos de um continuum que se estende do
comportamento exclusivamente heterossexual ate
o comportamento exclusivamente homossexual.
A populaca"o masculina se espalha entre esses
dois polos. Assim, constatou que 37% dos
homens de seu pals tinham tido pelo menos
uma experiencia homossexual que levasse ao
orgasrno. 18% tinham tido pelo menos tantas
experiencias homossexuais quanto heterossexuais
durante urn periodo minimo de tres anos, e 4%
era exclusivamente homossexual . Mostrando a
nao-coincidencia entre as categorias sociais de
"homossexual " e "heterossexual " e o verdadeiro
0 que e Homossexualidade
Escadarias do Teatro Municipal - faixas carregadas no
protesto contra a repressao policial no centro de Sao
Paulo.
93
92 Peter Fry e Edward MacRae
avancadas como era a Berlim da decada de 1920,
cuja fama de "capital da homossexualidade"
poderia ser comparada corn a de Sao Francisco
hoje em dia.
De 1935 a 1948, os movimentos deixararn
de existir . A pr6xima marca importante desta
hist6ria e a publicacao em 1948 nos Estados
Unidos do livro 0 Comportamento Sexual do
Homem, de Alfred Kinsey ( Relat6rio Kinsey).
Este estudo detalhado e cientificamente respei-
tavel compilou informacoes estatisticas sobre
urn total de 12.214 entrevistas de homens brancos.
Mostrou que, em termos de comportamento,
os homens dos Estados Unidos no podem ser
divididos em dois grupos estanques : homosse-
xuais e heterossexuais.
Kinsey descobriu que a melhor pensar em
termos de urn continuum que se estende do
comportamento exclusivamente heterossexual ate
o comportamento exclusivarnente homossexual.
A populacao masculina se espalha entre esses
dois p6los. Assim, constatou que 37% dos
homens de seu pals tinharn tido pelo menos
uma experiencia hornossexual que levasse ao
orgasrflo. 18% tinham tido pelo menos tantas
experiencias homossexuais quanto heterossexuais
durante um periodo minimo de tres anos, e 4%
era exclusivamente homossexual . Mostrando a
na"o-coincidencia entre as categorias sociais de
"homossexual " e "heterossexual " e o verdadeiro
0 que e Homossexualidade
Escadarias do Teatro Municipal - faixas carregadas no
protesto contra a repressao policial no centro de Sao
Paulo.
93
95
0 que e Homossexualidade
Peter Fry e Edward MacRae 94
comportamento sexual dos homens, Kinsey
acabou comprovando as ideias de Friedlander
que mencionamos anteriormente.
Mas o que era mais importante para o movi-
mento de reivindicacao dos direitos dos gays
era a elevadissima incidencia de comportamento
homossexual nos Estados Unidos. Nao era mais
possivel ignorar que a homossexualidade era
um fenomeno bastante amplo na sociedade e
certamente nao restrito a uma pequena minoria
de "desviantes".
No mesmo ano em que foi publicado o Relatb-
rio Kinsey, foi fundada a Sociedade Mattachine,
cujo nome foi tornado de um famoso bobo de
corte renascentista, originalmente uma associa-
q5o secreta cuja estrutura foj copiada do
Partido Comunista Americano. Apesar de ter
sido fundada por pessoas corn posicoes politicas
bastante radicais, a Sociedade Mattachine
adotou uma linha de moderag5o e cautela
visando a integracao do homossexual na socie-
dade atraves da reforma das leis anti- homosse-
xuais dos Estados Unidos. Seus associados
muitas vezes aceitaram a nocao da homossexua-
l idade como doenga, frequentemente adotavam
pseudonimos e enfatizavam a sua "respeitabi-
lidade". A propria palavra "homossexual" tendia
a ser rejeitada devido a sua enfase no "sexual",
e outros neologismos foram adotados, como
"homofilo" e "homoer6tico".
Esta postura aparentemente timida a bastante
compreensivel se levarmos em conta a natureza
repressiva da sociedade americana de entao, e
da ameaca constante que o macartismo apresen-
tava para qualquer atuac5o politica mais radical.
Como os outros grupos que o precederam na
militancia homossexual, a Sociedade Mattachine
sofreu desavencas internas, levando ao surgimento
de novas associacoes, das quais as mais impor-
tantes eram "One I nc. " e o grupo exclusivamente
lesbico "As filhas de Bilits". Em outros paises
tambem surgiram grupos parecidos, como
"Arcadie", na Franca, "Forbundet 48" na
Dinamarca, "COC" na Holanda etc.
Apesar de preconizar atitudes politicas "mode-
radas", essas associacoes tiveram uma atuacao
importante e em alguns casos ate audaciosa,
como uma passeata automobilistica realizada
em Los Angeles em 1 966 para protestar contra
a exclusao de homossexuais das forcas armadas
americanas. A importancia destes grupos homo-
filos pode ser avaliada pelo fato de que em 1 969
havia 1 50 deles nos Estados Unidos.
Mas a partir de 1 969, o movimento homosse-
xual, inicialmente nos Estados Unidos mas depois
em inumeros outros lugares, tomou uma feicao
mais radical. I sto se seguiu ao surgimento do
movimento hippie e ao desenvolvimento da
chamada contracultura. I nicialmente no se
questionava muito os papeis sexuais. De fato,
96
Peter Fry e Edward MacRae
em alguns casos a procura de formas de vida
que fossem mais "naturais" ate reforcou estereo-
tipos destes papeis com uma enfase na versao
idealizada da "mulher camponesa", "meiga e
fertil" como urn novo modelo feminino. Mas
os eventos de maio de 1 968 em Paris e a incor-
poracao de noci es de libertacao sexual pela
contracultura, juntamente com uma nova mili-
tancia negra e feminista, formarn o pano de
fundo social para a criacao da Frente de Liberta-
cao Gay (F LG ), que comecou nos Estados
Unidos, mas logo se espalhou para grande parte
da Europa Ocidental.
0 que parece ter marcado o nascimento deste
grupo foi a "Rebeliao de Stonewall", que a para
o movimento homossexual algo parecido corn
a tomada da Bastilha para a Revolucao Francesa.
Na noite de 28 de junho de 1 969, uma sexta-
feira, alegando o descumprimento das leis sobre
a venda de bebidas alcoolicas, a policia tentou
interditar um bar chamado "Stonewall I nn",
localizado em Christopher Street, a rua mais
movimentada da area conhecida como o "gueto"
homossexual de Nova York.
0 que era para ser simplesmente uma acao
policial rotineira, suscitou uma reacao inedita.
Os frequentadores do bar reagiram e comecou
uma batalha que durou o fim de semana inteiro.
Gritava- se palavras de ordern como "Poder Gay",
"Sou bicha e me orgulho disso", "Eu gosto de
0 que a Homossexualidade
rapazes" etc. Pouco depois a Frente de Libertacao
Gay lancou seu jornal, Come Out (Assuma- se)
e decretou- se a data de 28 de julho "Dia de
Orgulho Gay", em comemoraca"o deste "mito
de origem". Como sempre, os militantes que
pretendiam politizar explicitamente a quests"o
homossexual eram uma minoria. Mas o seu
posicionamento refletia uma mudanca mais
generalizada entre uma proporca"o consideravel
da populaca"o homossexual.
As palavras de ordem "Asuma- se" ou "Saia
da clandestinidade e va para as ruas" foram
levadas a serio por um grande numero de
pessoas nas suas vidas cotidianas. Entre muitos,
o velho habito de esconder as suas preferencias
sexuais passou a ser considerado no somente
prejudicial, mas ate vergonhoso. Nos Estados
Unidos e na Europa Ocidental principalmente
chegou ate a ser moda o use de sinais homos-
sexuais tais como a letra grega X (lambda) ou
boti es com dizeres do tipo: "Como ousa pensar
que eu seja heterossexual?". Mesmo no Brasil,
principalmente entre pessoas que desfrutam de
uma major independencia socio- economica, tor-
nou- se comum a adocao de uma identidade gay.
^ bbvio que sob muitos aspectos este a um
desenvolvimento altamente positivo, diminuindo
em grande parte as antigas tensoes impostas pela
clandestinidade e a vergonha. Mas a relevante
ressaltar que frequentemente embutida nesta
97
98
Peter Fry e Edward MacRae
nova postura esta a adocao de uma identidade
tambem imposta de fora com suas regras pre-
estabelecidas. A principal delas sendo aquela
que restringe a possibilidade de relacoes do
gay
somente a pessoas do seu proprio sexo. Para
resolver problemas causados por esta nova
rigidez, inventou-
se tambem a figura do "bisse-
xual", mas este permanece um personagern
profundamente ambiguo e muitas vezes malvisto
tanto pelos hetero quanto pelos homossexuais.
A exploracao comercial deste novo mercado
tambem acaba impondo padroes de beleza,
consumo e relacionamento, que tambem se
tornam altamente repressivos e prejudiciais
aqueles que por razoes de posicao s6cio- econ6mica,
idade, origem etniaa, comportamento etc., no
se coadunam a moda vigente. Ao mesmo tempo,
a moral sexual normalmente aplicada as relacoes
hetereossexuais se impoe cada vez mais sobre
os relacionamentos homossexuais. 0 ideal e o
"casal feliz", e o homossexual solitario "promis-
cuo" a visto como um coitado, na melhor das
hip6teses, e como um "desajustado", na pior.
Os que preferem a companhia sexual de prosti-
tutos ou o "sexo perigoso" com pessoas de
outras classes sociais e etnias sao tambem mal-
vistos por esta ideologia "heterossexual " reprodu-
zida nos meios homossexuais. 0 ridiculo e ostra-
cismo que estes novos "desviantes" passam a
sofrer muitas vezes deixam pouco a dever as
0 que e Homossexualidade
perseguicoes tradicionais dirigidas as "bichas"
e aos "sapatoes". Surge entao um novo mercado
para os medicos e psicologos "modernos", que
podem se dedicar a tarefa de ajusta- los as novas
regras sociais.
Foi este tipo de preocupacdo que levou a proli-
feracao das alas mais radicais do movimento
homossexual , embora os mais moderados "homo-
filos", continuassem a prosperar. A diferenca
entre os dois tipos de grupo no era so no grau
de militancia a que se dispunham. (Mesmo os
"moderados" se tornaram mais agressivos,
promovendo manifesta(;oes, piquetes, boicotes
etc.) Os "radicais" iam alem da exigencia por di-
reitos civis e desprezavam a posicao dos "homo-
filos" que desejavam provar que os homossexuais
eram simplesmente cidada"os decentes, perfeita-
mente integraveis a sociedade existente.
A FLG e outros grupos colocaram em quests"o
a eficacia de mudancas legais como uma soluca"o
para os problemas dos homossexuais. Na Ingla-
terra, por exemplo, constatou-se um crescimento
no numero de prisoes de homossexuais depois
da abolica"o da lei contra sodomia entre adultos
em recintos fechados. (Continuava crime quando
envolvendo pessoas com menos de 21 anos.)
Os homossexuais continuavam vulneraveis a
uma serie de outras leis como as que punem
a vadiagem, atentado ao pudor etc., que sao
facilmente aplicadas casu isticamente para
99
100
Peter Fry e Edward MacRae
atingir qualquer grupo social que se pretende
intimidar. Foram levados a desenvolver uma
teoria mais complexa e sofisticada sobre a
repressao sexual em geral. Rompendo de vez
com as teorias biologizantes e psicologizantes
dos seus precursores, como 'Hirschfeld, Ellis,
Carpenter etc. , eles reconheceram e incorpo-
raram a diferenca fundamental entre sexo
biologico e "sexo social", isto e, os papeis de
genero, masculinos e femininos.
Como as feministas reconheceram anterior-
mente, estes elementos mais radicais insistiram
nas bases sociais dos padroes estereotipados de
masculinidade e feminilidade. Nessa linha, alguns
chegaram a colocar em quests"o a inevitabilidade
da dicotomia hetero/homossexual e, como
Friedlander, preconizaram a bissexualizacao da
sociedade. Surgiram novos intelectuais que
articularam o ponto de vista que enfatiza os
aspectos sociais, culturais e politicos na
construca"o historica da sexualidade em geral
e a homossexualidade em particular. Segundo
eles, a divisao do mundo em "homossexuais",
"heterossexuais" e "bissexuais" na"o a natural.
Apelam novamente a autoridade de Alfred
Kinsey: "Deveria ser evidente que no se
justifica o reconhecimento de dois tipos de
individuos, homossexual e heterossexual, e que
a caracterizaca"o do homossexual como terceiro
sexo no se coaduna com qualquer realidade. "
b
A^41AP
AS LESBICAS - UMA PEDRA NO
SAPATO DAS FEMINISTAS E
DAS BICHAS
Como foi dito no primeiro capitulo, apesar
do primeiro grupo brasileiro de ativistas homosse-
xuais, o Somos/SP, ter originalmente pretendido
congregar tanto homossexuais masculinos quanto
femininos, depois de alguns meses a maioria
das mulheres saiu do grupo para formar um outro,
que fosse exclusivamente lesbioo. I sto se deu
em grande parte devido ao fato de elas se sensi-
bilizarem por varias diferencas importantes entre
a problematica homossexual masculina e feminina,
que as levaram a se identificar mais intimamente
com as militantes ferninistas.
Porem, no Brasil, como em outros paises, as
lesbicas encontraram uma forte relutancia inicial,
102 Peter Fry e Edward MacRae
mas agora ja superada, por parte das feministas,
em admitir em suas organizacoes mulheres que
faziam questao de se assumirem publicamente
como homossexuais. A opcao sexual das lesbicas
no deixava de causar estranheza e ate repulsa
as ferninistas heterossexuais. I sto ocorria apesar
de muitas mulheres homossexuais ja estarem
vivendo suas vidas de acordo com os ideais de
autonomia pessoal que, pars muitas das femi-
nistas, ainda no passava de aspiracoes a serem
realizadas em um futuro nao- imediato.
Nos primeiros anos de existencia da gigantesca
organizacao feminista "moderada" americana
NOW, a propria fundadora e enta"o presidenta
da organizacao, Betty Friedan, se colocou forte-
mente contra um posicionamento favoravel ao
lesbianismo por pane daquela entidade. Sua
atuacao oportunista, para n5o dizer preconcei-
tuosa, foi justificada sob a alegacao de que era
necessario preservar a imagem das feministas.
0 fato a que ja ha muito tempo aqueles que se
opoem a emancipacao feminina tern usado como
uma de suas primeiras formas de ataque a acusacao
de que mulheres empenhadas em se impor social-
mente seriam lesbicas.
Para mencionar um exemplo brasileiro recente,
lembramos uma manchete do jornal Hora do Povo,
que durante a campanha eleitoral de 1982 apoiava
o peemedebista Miro Teixeira contra sua entao
principal rival ao governo do estado do Rio de
r
0 que e Homossexualidade
Janeiro. Sandra Cavalcanti. Uma das edicoes
vinha com grande parte de sua primeira pagina
preenchida por tetras garrafais na manchete:
"Miro entra de sola em Sandra sapatao". Convem
lembrar que a senhora em questao, longe de
ser feminista, era uma politica extremamente
conservadora e apelava para ideais tradicionais
como a protecao da familia. Mas como uma
mulher ambiciosa e empenhada em disputar
com homens o poder, ela estava inevitavelmente
exposta a este tipo de acusacao.
Mas, embora esta rotulaca"o de mulheres domi-
nantes e de carater forte como homossexuais
tenha geralmente sido usada com o fim de isotar
tais mulheres e evitar a formacao de organizacoes
femininas poderosas, elas nem sempre f"am
destituidas de algum fundamento. Hoje, quando
o movimento feminista em geral ja comeca a
encarar mais abertamente a quests"o, surge o
reconhecimento publico de que numerosas mili-
tantes em organizacoes reivindicatorias femininas
eram ou sao lesbicas.
Recentemente, uma cientista social feminista,
Annabel Faraday, chegou a postular que a lesbica
nao deve ser vista como a simples verso feminina
do homossexual masculino. Afirmando que,
embora os dois tenham em comum o fato de
no serem heterossexuais, eta mantem que se
a heterossexualidade for vista como uma relacao
de poder entre homens e mulheres, entgo o que
103
104 Peter Fry e Edward MacRae
homossexuais masculinos e lesbicas estao
rejeitando sao duas experiencias opostas.
Segundo Faraday, a conceptual izar o corrente
da lesbica, simplesmente em termos de sua ativi-
dade sexual, ignorando o significado e o contexto
social desta sexualidade, serve somente para
restringir e confinar as mulheres dentro de
definicoes masculinas. Ao presumir que esta
preferencia seja um dado da natureza, em vez
de procurar entender o que leva uma mulher
a escoiher outra mulher como parceira, cai- se
na concepr o de "condipgo" ou de "mulheres
que se descobrem homossexuais". Dal a v6- las
como problematicas, neuroticas etc. , a so um
pequeno passo.
Em contrapartida, um grupo radical americano,
as "Radicalesbians", propoe que as muiheres
deixem de ser julgadas em termos de seu
comportamento sexual e que sejam tomadas
em conta as suas identidades totais. Deixando
de lado o termo "lesbicas", elas preferem falar
em "mulheres identificadas com muiheres",
enfatizando a significag o politica de se colo-
carem como mulheres em primeiro lugar,
numa sociedade que exige que etas estruturem
suas vidas em torno dos homens.
Novamente aqui vemos colocada a quests"o
da homossexualidade em termos de um papel
social, neste caso muitas vezes conscientemente
assumido. Adaptando este caso ao nosso esquema,
f
I
0 que a Homossexualidade
I
podemos dizer que, na visao popular, as femi-
nistas seriam consideradas mulheres- homens (ou
"sapati es" como ainda hoje acontece), pois as
qualidades de independencia, questionamento,
inovaca"o, auto- afirmap o etc. , cultivadas por
estas mulheres, sao tradicionalmente atributos
do papel masculino.
Porem, a essencia deste movimento a justa-
mente a contestaca"o desta organizaca"o dos
papeis sexuais. Estando dispostas a levar esta
contestap o ate o fim, algumas feministas
radicais nao recuam perante a adocao de outro
aspecto do papel tradicionalmente reservado
aos homens biologicos, a ado- 99o de mulheres
como suas parceiras. Como esta escoiha muitas
vezes faz bastante sentido, visto no contexto da
luta politica em que esta"o empenhadas, no ha
nada a estranhar. Afinal, como ja vimos, o sentido
mais fundamental de suas exigencias a justa-
mente a negag5o de qualquer limitacao apriorista
em nome de uma "naturalidade" espGria das
formas de comportamento permiss(veis ao
individuo.
Mas, voltando as dificuldades de relaciona-
mento notadas entre os homossexuais masculi-
nos e femininos, vemos que estas se dao em varios
niveis. Um dos mais importantes se relaciona
ao significado diferente atribuido a sexualidade
por homens e mulheres na sociedade contempo-
ranea.
105
106
Peter Fry e Edward MacRae
Uma recente pesquisa sobre homossexuais
maculinos e femininos realizada em Sa"o Francisco
mostra que os homens tendem a ter relacoes
sexuais muito mais frequentes que as muiheres.
De forma menos objetiva, qualquer frequentador
do meio lesbico pode chegar a mesma conclusao,
pois a comum se encontrar casais de muiheres
que, apesar de se considerarem um par ou um
"caso", mantem pouquissimas relacoes sexuais
uma com a outra. Muitas vezes e o vinculo
afetivo que a considerado mais importante,
ou entao o contato sexual pode ser mais uma
questao de caricias feitas em varias regioes do
corpo do que um contato voltado essencialmente
para os 6rgaos genitais. Outro dado constatado
e que, embora haja uma tendencia para os
homossexuais de ambos os sexos serem mais
promiscuos que seus equivalentes heterossexuais,
no geral as lesbicas tern "casos" mais duradouros
que os homens, alem de serem mais "fieis" as
suas parceiras do que eles.
Recentemente tem ate sido defendida a posicao
de que as sexualidades masculina e feminina seriam
intrinsecamente diferentes, tanto as muiheres
heterossexuais quanto as homossexuais dariam
muito menos enfase a genitalidade que os homens,
sendo mais adequado considerar a sua sexuali-
dade como difusa em seu corpo inteiro e muito
menos centrada na experiencia de um climax
cujo modelo geralmente e a ejaculaca"o masculi-
0 que e Homossexualidade
l
na. Isto serviria para explicar as grandes diferentas
geralmente encontraveis no comportamento
sexual de homossexuais de ambos os sexos. Basta
lembrar o quanto a diferente o comportamento
caracteristico de uma grande proporca"o dos
homossexuais masculinos extremamente
promiscuos e muitas vezes quase obsecados
por detalhes fisicos e fisiol6gicos como tamanho
do penis, o seu pr6prio ou o do parceiro, e o
numero de relacoes sexuais que sao capazes de
manter em um dia, independentemente do tipo
de relacao afetiva estabelecida.
Uma outra explicaca"o mais sociol6gica para
estas diferentas levaria em conta o fato da
educacao diferenciada a que sao submetidas
as criancas dos dois sexos tender a desenfatizar
a sexualidade para as meninas, enquanto esta
e apresentada aos meninos como uma impor-
tante forma de auto- afirmaca"o. Portanto, esta
maior incidencia de relacoes sexuais em casais
masculinos em contraste com os casais femininos
seria bastante previsivel. Outra implicaca"o desta
constatada"o e a aparente confirmacao da alega-
ca"o de que o lesbianismo a melhor compreen-
dido se dermos menos enfase as relacoes sexuais
e mais aos seus aspectos de sociabilidade e
apoio mutuo.
Estas diferentas decorrentes da maneira dife-
rente de homens e mulheres encararem a sexua-
lidade sao uma importante fonte de desentendi-
107
J
108 Peter Fry e Edward MacRae
mento entre homossexuais masculinos e femininos.
Alguem ja disse que os homossexuais sao as
Gnicas pessoas que levam o sexo a serio hoje
em dia, pois funcionam em tempo integral. De
fato, entre os homens frequentadores do meio
homossexual, as vezes parece ser quase quests"o
de honra nao deixar escapar nenhuma possibi-
lidade de uma relacao sexual, e este e o tema
constante das conversas. Alguns dao a impressao
de considerarem todos os homens como
possiveis parceiros, manifestando assim uma
adesao pelo menos parcial a visao que aqui
chamamos de "popular" de papeis sexuais.
Quando a dicotomia ativo/passivo predomina,
sempre se pode encontrar gays dispostos a adotar
um papel "passivo", se isto possibilitar uma
relaca"o sexual com um homem atraente que
insista em ser "ativo". I ncluimos aqui a palavra
"atraente" porque, pelo menos ao nivel das
atitudes declaradas, frequentemente parece ser
importante entre os homossexuais masculinos
a aparencia do parceiro, sendo muito prezadas
a juventude e a beleza fisica.
0 que choca as feministas e outran pessoas
"serias" e o fato de geralmente as ligacoes
sexuais entre homossexuais masculinos serem
extremamente fugazes, muitas vezes nao ultra-
passando um unico encontro. Se por acaso no
for possivel encontrar um parceiro, recorre- se
a masturbacao, auxiliada talvez por uma revista
0 que e Homossexualidade
pornografica. Outra alternativa a uma visita a
uma "sauna gay", onde, alem de poder assistir
videocassetes pornogrdficos, o fregues tem a
oportunidade de ocupar um pequeno cubiculo
de repouso juntamente com algum outro fregi en-
tador que tenha despertado o seu interesse. Caso
nenhum the interesse, ele pode ainda pagar o
massagista de plantao e fazer um relax. Hoje,
de fato, em algumas das grandes cidades brasi-
leiras, as oportunidades abertas a um homem
para ter uma relacao sexual descompromissada
com outro homem silo quase infinitas.
Esta propensao ao sexo impessoal agride profun-
damente as mulheres, tanto hetero quanto
homossexuais, criadas como foram a associar
sexo e afeto, e elas frequentemente criticam
asperamente os homossexuais masculinos,
alegando que eles sao inconsequentes e alienados.
0 que as deixa especialmente indignadas e a
prostituicao e a pornografia, por serem instancias
da transformacao de pessoas em "objetos sexuais",
isto e, o isolamento daqueles aspectos vistos
como estritamente relacionados a sexualidade,
da totalidade da personalidade de uma pessoa.
0 que provoca tanta rejeicao entre feministas
e que esta "objetificacao sexual" a considerada
por etas, e com boas razi es, uma das maneiras
como tradicionalmente os homens tern oprimido
as mulheres.
Porem, talvez caiba aqui levantar novamente
109
J
110 Peter Fry e Edward MacRae
a constatacao de que a perigoso ignorar a signi-
ficacao social que envolve a sexualidade em
casos especificos. Poderiamos arriscar a opiniao
de que, em uma sociedade onde os homens
dominam, o sexo impessoal entre eles adquire
um significado diferente e menos opressivo
daquele que envolve parceiros de sexos distintos,
em que ja de inicio um esta em uma posicao
privilegiada somente por ser homem.
0 costume de alguns homossexuais masculinos
de imitar o comportamento das mulheres, e ate
de se referirem a si mesmos usando formas femi-
ninas, a percebido por muitas feministas heteros-
sexuais ou lesbicas como uma forma de agressao.
0 homossexual extremamente desmunhecado
e frequentemente acusado de reforcar, na sua
verso caricatural da feminilidade, os seus
aspectos mais opressivos. Coerentemente elas
tambem antipatizarn com a reproducao dos
papeis "ativo"/"passivo", "fanchona"/"lady"
que hoje parecem predominar mais no "gueto"
lesbico que no homossexual masculino.
Embora estas reacoes sejam bastante compre-
ensiveis, parece- nos importante chamar a atencao
para certos aspectos positivos, como a corrosivi-
dade e o deboche geralmente presentes nestes
pastiches de masculinidade e feminilidade.
Especialmente entre os homossexuais masculi-
nos frequentadores do "gueto", a muito prezada
a "fechacao" (um tipo de desmunhecacao propo-
0 que e Homossexualidade
sital e escandalosa) como forma de humor,
expresso de uma identidade grupal e meio de
agredir os que tern preconceitos anti- homossexuais.
Parece razoavel, portanto, lembrar aqueles
que criticam esta adoca"o de caricaturas dos papeis
de genero normalmente reservados aos membros
do sexo biologico oposto, que quando homens
se portam como vamps da Hollywood da decada
de 1 940, eles no estao necessariamente manifes-
tando um desejo de realmente virarem mulheres
futeis, e sim ridicularizando a artificialidade
daqueles papeis. Era este, por exemplo, o sentido
da atuacao ja mencionada dos Dzi Croquettes.
Ate o travesti, quanto mais parecido consegue
ficar com uma mulher, mais ele esta pondo em
questao a naturalidade de qualquer tipo de
feminilidade, pois tanto ele quanto os que o
cercam, no fundo, nunca podem esquecer- se
completamente que ele a de fato um homem.
Mas a preciso lembrar aqui que estes tipos
de comportamento sa"o extremos e talvez a
nossa representaca"o deles tenha ate exagerado
seus aspectos caricaturais. Normalmente, o
comportamento de individuos homossexuais
segue muito mais fielmente as normas vigentes
para o seu sexo e geralmente a preciso ter uma
percepcao muito aguda para poder identificar
um homossexual (tanto masculino quanto femi-
nino) que nao deseja se mostrar como tal.
Tambem vale a pena ressaltar que as genera-
111
112 Peter Fry e Edviard MacRae
lizaeoes feitas aqui sobre homossexuais masculi-
nos e femininos devem ser matizadas pela
lembranca de que homens e mulheres nunca
formam blocos homogeneos, e que as variaeoes
existentes dentro de cada grupo social podem
ser to grandes quanto as que existem entre
estes mesmos grupos. Apesar das diferengas
mecionadas, homossexuais masculinos e femi-
ninos frequentemente se unem tanto para fins
de lazer quanto para reivindicacoes politicas,
como ocorreu na ja mencionada manifestaeao
contra a violencia policial em Sao Paulo.
Acima de tudo, o grande fator de unia"o dos
homossexuais de ambos os sexos e a posieao
marginalizada e desviante que Ihes a reservada
na sociedade. Alem da discriminaeao a que
estao sujeitos, existern outros poblemas comuns
aos doffs grupos, como, por exemplo, a falta de
modelos tradicionalmente estabelecidos que
norteiem as relaeoes homossexuais. Tanto os
homens quanto as mulheres sao defrontados
com serios problemas quando tentam adotar
os padroes heterossexuais para seus relaciona-
mentos, uma vez que inexistem nos seus casos
os fatores externos importantes para a manuteneao
da estabilidade dos casais heterossexuais, tais
como pressoes familiares, vicinais e de trabalho,
e a responsabilidade pela criacgo dos filhos. Ao
contrario dos heterossexuais, casais homossexuais
nao sao unidos por nenhuma especie de contrato
0 que a Homo sexualidade
social e geralmente a principal base de seus rela-
cionamentos e a atraeao e afeieao mGtuas.
Bases essas que sao notoriamente impermanentes.
De qualquer forma, apesar das difereneas de
experiencia social e sexual entre heterossexuais
e homossexuais, a major parte das quais se deri-
vando do estigma social de que eles sofrem,
alguns problemas fundamentais sao comuns
a todos, e algumas das questoes discutidas
entre homossexuais se repetem, palavra por
palavra, entre mulheres e homens predominan-
temente heterossexuais. Afinal, muita gente,
hoje em dia, se preocupa com as vantagens e
desvantagens do "caso fixo" ou casamento, das
"aventuras sexuais" , do sentido do amor etc.
Entre homossexuais e heterossexuais existem
ideblogos do "casamento aberto", do "amor
livre", do "casamento tradicional" e assim por
diante. Mas como poderia ser de outra forma,
se tanto homossexuais quanto heterossexuais
pertencem a mesma sociedade, compartilhando,
portanto, da mesma cultura?
d a
113
FECHANDO...
Ao longo deste livro mostramos varias maneiras
de pensar e agir em relacao a homossexualidade,
desde antes da criacao do conceito nas paginas
dos artigos medicos de Benkert ate os movimentos
modernos de reivindicac5o homossexual e a
gradual incorporaca"o da homossexualidade
como assunto que vende livros, programas de
televisa"o, boates, saunas etc. Vimos como a
homossexualidade passou de pecado e crime
a ser encarada tambem como doenca. Vimos
que nos anos recentes criou- se a nocao do
"homossexual sadio", mesmo se no Brasil continue
na lista de doencas mentais com o c6digo 302. 0.
No seio do movimento homossexual brasileiro,
observamos como a luta contra a discriminaca"o
sexual se aliou a outras lutas das assim chamadas
minorias a partir do in(cio da "abertura poli-
y
0
i
4
0 que e Homossexualidade
ESTRMOS f) FI MDE CONQUI STRR NOSSOS DIREITO
DE RMRR E vi\ER MELHOR E MPS.
OS HOMOSSEXURI S NRO SPo CI DADPOS DE SEGUN-
DA CRTEGORI R. HOjE, NO NOSSO PRS, 05 PRECON
CEI TOS fA . EMCOMQUE R HOMOSSEXURLI DRDE SE
JR CONSiDERBDR, "OFiCIRLMENTE"
, UM `TRRNSTORNO
SEXURL. MRS TRRNSTORNRDO`
D SEXURIS SRO OS
0.UE RINDR NRO ENTENDERAM QUE TOPE) SEXUA
LIDRDE EE SEMPRE BOAE BELR, E QUE C- PRECI-
SO RMAR Cor RLEGRIR . SEM MCDO.
TWO PRECONCEITO 56 SERVE PRRR CRIRR VIOLEN
OR E OPRESSRo
HOMOSSEXURIS , NEGROS , MULHE. RE5 E TODOS Os
EXPLORRDOS E OPRIMID05 : VRMOS . CONSTRUIR ,
COM 0 PV, UMR NOVR 506EDRDE - SOCiRLl5 ,
LIBERTHRiR, DEMOCRRTiCR E ECOLOGiCR.
NN 0 6 VEMQ99nwMap
d9ve MG3d^34oD0
VOTE twroc V ?S PT
SE VOCE NRO FRX., NINGUEM VRI FREER
r
POR VOCE : 0 FT SOMOS NOS.
fORR COM 05 PRECONCEI TD
Trecho de panfleto distribuido pelo PT no Rio de Janeiro
durante a campanha eleitoral de 1982.
115
116 Peter Fry e Edward MacRae
tica", participando corn etas numa campanha
contra o "machismo" e o "autoritarismo" ern
geral. Em todos estes movimentos sociais ha
uma forte vertente igualitaria que, ao rejeitar
formas "autoritarias" de controle, chega a
rejeitar ate a ideia de representacao politica.
Esta enfase, que a muito mais evidente nos
movimentos brasileiros do que naqueles de
outros paises, se deve, pelo menos em parte,
a uma forte reaca"o aos terriveis anos da ditadura
que os precedera.
Ha muito em comum entre os movimentos
feminista e homossexual . Um dos nossos argu-
mentos principals e o de que a homossexualidade
nao pode ser pensada isoladamente da sociedade
como um todo que a produz. Seria como tentar
compreender uma sociedade indigena sem levar
em conta a FUNAI , o CIMI e as frentes de
expansao geradas pelo desenvolvimento do
capitalismo.
Observamos que, ao longo dos ultimos anos,
o que chamamos de um arranjo "popular" dos
papeis sexuais esta sob forte pressao por parte
de areas das classes medias urbanas que, ao
produzir uma ideologia essencialmente iguali-
taria, colocam em cheque tanto os papeis tradi-
cionais de "homem" e "mulher" como os
papeis tradicionais de "bicha" e "sapata"o'".
E assim que entendemos o surgimento do "enten-
dido" na decada de 60 e a subsegiiente aparicao
t
a
O que a Homossexualidade
1 1 7
do gay e do "
homossexual m it itante". Se os
heterossexuais
estao procurando novas formas
de convivencia, os homossexuais tambem o estao.
Ate mais ou menos 1 975, os partidos politicos
de oposicao consideraram que os
movimentos
feminista, negro e homossexual eram irrelevantes
a luta geral , ou seja, a questao das desigualdades
entre as classes sociais. 0 que marca os anos
mais recentes destas areas ditas minoritarias, e
o fato de etas terem chegado a ser reconhecidas
tambem como "politicas", a partir de uma
visas"o da sociedade que enxerga
o poder nao
apenas no Estado, mas tambem na rua, no
escritorio, no hospital, dentro
de casa e na
cama. Esta "politizac5o da vida cotidiana" e
seguramente um dos fenomenos mais interessan-
tes dos
ultimos anos. Fernando Gabeira, Herbert
Daniel e outros que o digam. E justamente nesta
epoca que Michel Foucault compete com os
velhos herbis para o primeiro
lugar das biblio-
grafias dos cursor de ciencias humanas das
universidades.
Mas, por mais que estas ideias tenham sido
amplamente divulgadas, atingiram apenas uma
pequena minoria da populaca"o e temos as
nossas dGvidas sobre o quanto etas estao postas
em pratica, mesmo por aqueles que mais procla-
mam na imprensa, na televisao e nas reunioes
publicas. 0 fato aque a homossexualidade continua
sendo tratada, na pratica, como uma indigesta
118 Peter Fry e Edward MacRae
mistura de pecado, sem-vergonhice e doenca.
Diariamente, a imprensa marrom estampa
manchetes que contam escandalos envolvendo
homossexuais.
Na procura de emprego, os testes psicologicos
ainda procuram detectar a orientagdo sexual dos
candidatos. Nas familias, muitos meninos e
meninas sofrem horrores ao perceberem que
sentem desejo homossexual ; seus pais continuam
ou rejeitando estes filhos ou, na melhor das hipo-
teses, compartilhando a vergonha, como se
fossem eles os responsaveis. Nas ruas, a pol icia
armada com as leis contra "vadiagem" discrimina
homossexuais assim como discrimina os negros.
Mesmo os amigos mais "tolerantes" ainda
guardam um pouco de "pena" para seus amigos
homossexuais.
Um dos fundadores do jornal Lampiao, Antonio
Crisostomo, foi sentenciado a quase 4 anos de
prisao, acusado de atentado violento ao pudor com
sua filha adotiva, apesar de no constar nenhuma
evidencia de que a menina tenha sido violentada
sexualmente. 0 advogado de defesa, na sua ape-
lacao, mostra claramente que o fator predomi-
nante que levou a sua condenaca"o foi o fato
de ele ser homossexual . Outros exemplos que
certamente incluiriam dezenas de assassinatos
de homossexuais ocorridos anualmente preen-
cheriam muitas paginas, mas a importante frisar
que, apesar de toda a tinta e energia gastas nos
4
r
0 que e Homossexualidade
119
ultimos anos, a homossexualidade continua sendo
alvo de discriminacao em todas as areas da vida
social.
No entanto, temos uma visao otimista do
futuro,
porque realmente a vida dos que sao
chamados e dos que se proclamam homossexuais
nesta decada de 80 a seguramente menos penosa
do que foi aquela dos que vieram antes, gracas
em grande pane aos movimentos homossexuais
no mundo todo.
E de se esperar que este avanco
continue, mesmo se as exemplos que citamos
da Uniao Sovietica mostrem que todo "progresso"
e fragil .
A ameaca de uma reacao contra as
primeiras liberdades conquistadas esta sempre
presente.
Porem, este "avanco" coloca novos problemas
e novas angustias, pois se a verdade que a homos-
sexualidade a em geral menos discriminada
que antes,
o seu reconhecimento como algo
valido e legitimo tanto por parte das elites
culturais quanto das do capital faz com que se
estabelecam novas normas de conduta que no
deixam de cercear a vida social e sexual dos
individuos.
Se no Brasil que chamamos de
popular, as rapazes sao divididos entre "machos"
e "bichas", o mundo moderno opera no sentido
de dividi - los em "homossexuais", "heterossexuais"
e, marginalmente, "
bissexuais", num linguajar
erudito, e "entendidos", gays, "caretas" e
"giletes" na giria corrente.
120 Peter Fry e Edward MacRae
1
Tern muita gente que preferiria nao ter que
se submeter a estas novas categorias sociais que
tendem a empurra- Ios para "guetos" estanques.
Prefeririam que estas categorias sociais fossem
elas mesmas combatidas e acabarn entrando em
choque no sb com a ciencia medica mas tambem
com alguns "homossexuais conscientes" que,
por razoes varias, tern interesse na manutenq o
das distincoes. Afinal, negar a inevitabilidade
da fronteira que separa os "homossexuais" dos
"heterossexuais" colocaria em questao a prbpria
nocao de uma identidade homossexual que, para
muitas pessoas, representa um modo de dar
ordem as suas vidas, cheio de possibilidades de
gratificacao e muitas vezes "assumido" a duras
penas.
0 fato de haver um debate em torno destas
questoes e outras apenas confirma o argumento
deste Iivro, que coloca a homossexualidade,
acima de tudo, como um fato social. E como
tal, a palco das mesmas disputas, paradoxos,
contradicoes e transformacoes que caracterizam
a sociedade como um todo.
J
i
INDICAcOES PARA LEITURA
A bibliografia sobre homossexualidade a enorme. Sugerimos
a leitura das seguintes, que tern o merito de serememportugues
e de publicaca"o recente.
BATI NGA F., A Outra Banda da Mu/her - Encontros sobre a
Sexualidade Feminina, Codecri, 1 981 . Depoimentos de
varias mulheres sobre sexualidade e lesbianismo.
DANI EL, H., Passagem para o Proximo Sonho,
Codecri, 1 982.
Memorias de um guerrilheiro e ultimo exilado politico.
Conta, entre outras coisas, a repressa"o exercida pelos guerri-
I heiros contra sua homossexualidade. I nicialmente excluido
da Anistia, teve sua cause defendida pelo jornal LampiSo.
DANI EL, M. , e BAUDRY, A. , Os Homossexuais, Artenova, 1 977.
Urn catecismo comperguntas e respostas sobre tudo que
voce pode querer saber sobre homossexualidade. ^ o que
evitamos fazer neste Iivro, mas nao deixa de esclarecer
muitas duvidas.
FRY, P., Para ingles Ver - identidade a Politica na Culture Brasi-
leira, Zahar, 1 982. Contem, entre outras coisas, dois ensaios
sobre a homossexualidade no Brasil. Urn sobre a hist5ria
122 Peter Fry e Edward MacRae
da homossexualidade, outro sobre homossexualidade e
candomble.
FOUCAU LT, M., Histdria da Sexualidade 1 -A Vontade de Saber,
Graal, 1 979. Umlivrinho imprescindivel pars aqueles que
desejamse aprofundar numa discussa"o filosbfica sobre a
sexualidade no seu contexto hist6rico. Bastante abstrato,
e de dificil leitura.
FOUCAULT, M., Microfisica do Poder, Graal, 1 979. Entrevistas
e pequenos artigos, este livro e o mais indicado para entender
as ideias do autor a respeito de poder e sexualidade.
GUERI N, D. , A Revoluca"o Sexual, Brasiliense, 1 980. Um velho
anarquista e libertirio frances, bissexual, discute as obras
de Reich e Kinsey.
HERZER, A Queda para o Alto, Vozes, 1 982. Depoimentos e poe-
sias de uma menina que, durante internamento na FEBEM,
"virou homem". E um documento que representa uma
importante denuncia contra aquela instituicao e a repressao
sexual. A autora suicidou- se algumas semanas antes do lanca-
mento do livro, depois de perder seu emprego na Assembleia
Legislativa de Sao Paulo, devido a sua ambigiiidade sexual.
HOCQUENGHEM, G. , A Contestaca"o Homossexual, Brasiliense,
1 980. Obra de umantigo militante do movimento homosse-
xual frances, apresenta uma visao polemica das "conquistas"
daquele movimento e uma apologia das "relacoes perigosas"
contrastadas como conforto de uma homossexualidade
integrada ao sistema.
KI NSEY, A., et a/i/., 0 Comportamento Sexual do Homem, Lisboa,
Meridiana, 1 972. Ainda o unico livro confiavel sobre sexuali-
dade numa perspectiva quantitativa. 0 cap'tulo sobre homos-
sexualidade continua brilhante e fundamental. Do mesmo
autor existe o volume complementar sobre a sexualidade
feminina.
MACHADO, L. C. , Descansa em Paz, Oscar Wilde, Codecri, 1 982.
Reflexo"es sobre as consequencias da repressa"o da homosse-
xualidade no Brasil. Da destaque ao tema da violencia.
MANTEGA, G. , (org. ), Sexo e Poder, Brasiliense, 1 979. I nteressan-
1
I
0 que a Homossexualidade
tes artigos sobre a sexualidade brasileira. I nclui uma entre-
vista comintegrantes fundadores do movimento homossexual
emSa"o Paulo. Vale a pena ler.
MARMOR, J. (org. ), A
lnversao Sexual, As Multiplas Raizes da
Homossexualidade,
I mago, 1 973. Contemartigos de psic6-
logos, medicos, psiquiatras e oferece, portanto, varies visbes
da ciencia medica sobre a homossexualidade, algumas piores
que outras.
MASTERS, W. H. , e JOHNSON, V. E. ,
Homossexualidade em
Perspectiva,
Artes Medicas, 1 979. Os dois famosos pesquisa-
dores da fisiologia do sexo voltamsua atenca'o e "eletrodos"
para as relacoes homossexuais. Concluemque a homosse-
xualidade pode ser "sadia" e, em alguns casos, que os
homossexuais podemser melhores amantes que os heteros.
MONEY, J. , e TUCKER, P., Papals Sexuais, Brasiliense, 1 981 .
Discussa"o da psicologia cl inica emtorno dos aspectos sociais
e biol6gicos na formacao dos papeis sexuais.
NAZARI O, L., Paso/ini, Brasiliense, 1 982 (coleca"o Encanto Radical)
Biografia do cineasta, ensaista e poeta italiano que a certa
altura discute o significado da homossexualidade na sua
obra. Vale a pena ler.
OKI TA, H., Homossexualismo: da Opressa"o a Libertaca"o, Proposta
Editorial, 1 980. Livreto elaborado por militantes da Conver-
gencia Socialista tentando persuadir os homossexuais a se
filiaremaquela organizaca"o ou ao P. T.
ORAI SON, M., A Questao Homossexual, Nova Fronteira, 1 977.
Umpadre, medico e psic6logo escreve positivamente sobre
o assunto levando emconsideracao a posicao crista.
VARI OS AUTORES, Caminhos Cruzados, Brasiliense, 1982.
Contemtres artigos sobre a homossexualidade pelos autores
deste livro, tratando da "fechargo", da homossexualidade
na literatura naturalista e do caso de Febr6nio I ndio do
Brasil, que foi internado como louco em1 927, entre outras
razoes, por ser acusado de ser homossexual.
WOLFF, C., Amor entre Mulheres, Nova Fronteira, 1 978. Uma visao
psicanalitica simpatica ao lesbianismo. I nclui consideraco"es
123
124PeterFry e EdwardMacRae 1p que a Homossexualidade
125
1
sociais tambem.
Deixamos de lado toda a parte de ficca"o, mas recomendamos
os romances: Inter/udio em Sa"o Vicente, de Joao Silverio Trevisan;
RepOib/ica dos Assassinos a No Pais das Sombras , de Aguinaldo
Silva; Os Solteir6es, de Gasparino Damata; A Meta, Cresci/da e as
Espartanos, Teoremambo e Nivaldo a Jeronimo, de Darcy Penteado;
sem esquecer Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha. Ha uma infinidade
de obras de ficq o tratando do tema a esta e, entao, uma pequena
lista pessoal composta estritamente de autores brasileiros. Uma
lista mais abrangente, incluindo estrangeiros, no poderia esquecer
nomes como Andre Gide, Marcel Proust, Jean Genet, James
Baldwin , Radcliffe Hall , Robin Maugham, E. M. Forster,
Christopher Isherwood, Gore Vidal, John Rechy, Tennesse
Williams, William Burroughs, Margherite Yourcenar, Cavafis, Oscar
Wilde, Fernando Pessoa, Shakespeare e muitos outros.
Existem varios trabalhos, de mais dificil acesso, que foram
fundamentais na preparag o deste livro.
BIBLIOGRAFIA
AUFTERHEI DE, P. , 1 973, "True Confessions: The I nquisition
and Social Attitudes in Brazil at the Turn of the XVI I
Century", Luso-Brazilian Review, 1 0 (2), pp. 208- 240.
CLASTRES, P. , 1 978, "0 Arco e o Cesto", in CLASTRES, P. ,
A Sociedade contra o Estado, Rio, Francisco Alves.
DESY, P. , 1 978, "L'homme- femme", in Libre, pp. 57- 1 02.
FARADAY, A. , 1 981 , "Liberating Lesbian Research", in Kenneth
Plummer (Ed. ) The Making of the Modern Homosexual,
London. Hutchinson.
KRAFFT- EBING , R. von, 1 965. Psychopathia Sexualis, New
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Rights Movement (1864- 1935)
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de se perguntar, dissertap5o de mestrado, Unicamp, mimeo.
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Os respeitaveis militantes a as bichas loucas",
in Caminhos Cruzados : Linguagem, Antropologia e Ciencias
Naturais, varios autores, S. Paulo. Brasiliense.
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MOTT, L. R. B., 1982, "Escravid55o a Homossexualidade", trabalho
apresentado no III Congresso Afro-Brasileiro
, Fundaca"o
Joaquin Nabuco, Recife, setembro de 1982, mimeo.
MOTT , L. R. B., 1982b, "
A Homossexualidade: Uma Variavel
Esquecida pela Demografia Hist6rica. Os Sodomitas no
Brasil Colonial", Comunicacao apresentada no 3. Encontro
da Associac5o Brasileira de Estudos Populacionais
, Vit6ria,
mimeo.
PIRES DE A LME I DA, 1906, Homossexualismo (A Libertinagem
no Rio de Janeiro), Rio: Laemmert C.
RAMALHO, J. R., 1979, Mundo do Crime, Rio. Graal.
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Homossexualismo e Endocrinologia, Rio.
Francisco Alves.
VEYNE, P., 1982, "L'homosexualite a Rome",
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New York, Anchor Books.
WHITAKER,
E. de A., 1938, "Contribuicao ao estudo dos homosse-
xuais", Arquivos da Sociedade de Medicina Legal a Crimi-
nologia de Sa"o Paulo, vol. VIII, pp
. 217-222.
4 '
Biografia
Peter Fry nasceu na Inglaterra, pesquisou na Africa,
fez doutoramento em Londres e leciona Antropologia
Social desde 1970 na UNICAMP. Foi um dos fundadores
do jornal Lampiao. Publicou Spirits of Protest (Cambridge
University Press) e Para Ingles Ver (Zahar) e alguns artigos
em jornais e revistas.
Edward MacRae nasceu no Brasil, estudou na Inglaterra
onde se formou em Psicologia Social (Bachelor of Arts,
University of Sussex, 196 8) e em Sociologia da America
Latina (Master of Arts, University of Essex, 1971). No
momento termina seu doutoramento em Antropologia
na USP, com tese sobre o grupo Somos/SP.
Just good friends. apenas bons amigos...
"A colegao PRIMEIROS PASSOS aborda temas pole-
micos, que permitem diferentes posigoes e interpre
tagoes. Os textos de PRIMEIROS PASSOS sao, assim,
expressao das ideias dos intelectuais que os assinam,
como convites a reflexao, a concordancia ou a discor-
dancia. Mas sempre enriquecem e explicam."
QUESTAO
$EXUAL
voce quer discutir sobre sexo, n6o
precisa nem de normas e nem de
t6 cnicas. E s6 chegar a suas pr6 prias
conclusaes e valores, sem deixar de
pensar nurn contexto major.
SEXO E JUVENTUDE apresenta as
t6cnicas de um programa desenvolvido
pela equipe da Fundacao Carlos Chagas
com rapazes e mogas de 15 a 17anos
da periferia de Sao Paulo e de col6gios
publicos e particulares.
Colecao Primeiros Passos Is _ q
Peter Fry
Edward MacRae
Oque^
H O MO S S EX U A L I D A D E
Arrancar a homossexualidade do campo
da Psicologia e da Medicina para
coloca-la no campo do estudo da
cultura e da politica no seu sentido
mais amplo. A afronta de Caetano
("E proibido proibir") e a rigida
separapao do "feminino" e do "masculino".
Politica e vida cotidiana. A sexualidade
nas sociedades indigenas. A atuagao da
Medicina no campo da homossexualidade.
0 surgimento da consciencia homossexual.
CAPA: California S unset. Foto de Cara Moore. The Image Bank.
Abril Cultural / Brasiliense