A Magia Da Imagem - Gullar
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Paulo
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A magia da imagem
20/10/2013 03h00
Quando o homem do Paleoltico encontrou um pedao de slex, que parecia a cabea
de um biso, pensou que aquele era um outro modo de o animal existir. E esse vnculo,
para ele, entre a imagem e a realidade, parecia-lhe to forte que, se atingisse a
imagem do animal, atingiria o prprio animal.
Essa ser possivelmente a razo pela qual o corpo dos bises pintados nas cavernas
esteja cravejado de setas. que isso asseguraria o xito da caada. Essa crena
sobrevive at hoje no que se conhece como "magia simptica", praticada por
feiticeiros. No Brasil mesmo, conhecida essa prtica, que consiste em fazer o
boneco da pessoa e espet-lo no corao, na certeza de que, desse modo, levar
morte a pessoa ali representada.
Esse vnculo entre a imagem e a realidade deu origem s artes visuais, que nasceram
precisamente com o homem das cavernas e se mantm at hoje como um dos
principais meios de que dispomos para inventar o nosso mundo humano.
Como se viu, desde o primeiro momento, a imagem j no mera representao do
real, mas um meio de transform-lo: a arte existe porque a realidade no nos basta.
E, no por acaso, aps milnios, a arte das imagens acompanha a aventura do
homem, seja como expresso de seus desejos e representao de seus valores, seja
como a criao de momentos de beleza e deslumbramento. Das paredes de Lascaux
a dos mosteiros medievais, das primeiras telas renascentistas s imagens fotogrficas
de hoje, das xilogravuras quinhentistas litografia e aos processos eletrnicos de
agora, o universo imagstico tornou-se parte essencial da histria humana, a ponto de
ser impossvel separarmos imagem e realidade.
Esse universo de significaes, no entanto, no se contenta com a expresso visual
das formas, das imagens. Ele necessita decifr-las, entend-las, traduzi-las na
linguagem das palavras. Mas, como disse Ernst Cassirer, as linguagens so
intraduzveis entre si, ou seja, o que a imagem diz, a palavra no consegue dizer.
que os significados s existem nas linguagens e so, portanto, criaes delas.
Certamente, podemos, com palavras, referirmo-nos, por exemplo, a uma gravura de
Oswaldo Goeldi, em que vemos, na noite escura, um homem com um guarda-chuva
vermelho. Podemos, mesmo, no apenas descrev-la --os elementos figurativos que a
compem-- como tentar evocar a atmosfera de solido ali presente. No obstante,
essa ser sempre uma formulao verbal que jamais equivaler, nem muito menos
substituir, a expresso que a imagem visual nos proporciona.
Isso no significa, porm, que a expresso vocabular seja um exerccio descabido e
intil. Pelo contrrio, por ser tambm uma linguagem autnoma, a palavra cria
significaes --leituras-- que se somam expresso visual das imagens. Nesse
26/4/2014 A magia da imagem - 20/10/2013 - Ferreira Gullar - Colunistas - Folha de S.Paulo
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sentido, o texto crtico, analtico ou potico sobre uma obra de arte pode de certo modo
incorporar-se a ela, no como traduo da obra, mas como interpretao que a
enriquece. Exemplo disso o soneto de Rainer Maria Rilke sobre o torso de Apolo,
traduzido para o portugus por Manuel Bandeira e que termina com este verso: "Fora
mudares de vida".
E isso no apenas com respeito arte. Na verdade, a realidade em que vivemos , de
fato, inventada por ns. No simplesmente a realidade material --os instrumentos, as
casas, os veculos etc.-- como tambm a realidade espiritual, constituda pelos valores
ticos, estticos, religiosos, cientfico.
Essa relao entre imagem e a palavra, no mundo da arte, ganha um significado muito
peculiar, j que, neste campo, a interatividade das duas linguagens contribui para o
enriquecimento de ambas, que assim descobrem novas possibilidades de reinventar-
se.
Acredito que estas consideraes evidenciam a importncia que a criao artstica
desempenha na permanente reinveno de nossa realidade. Refiro-me realidade do
homem como ser cultural. A permanncia das obras de arte, criadas h sculos e
mesmo h milnios, a demonstrao cabal do que a arte significa para o homem.
que se de fato, como creio, a vida inventada, nada a torna mais fascinante do que a
arte.
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