A Vida Feliz Na Obra de Agostinho
A Vida Feliz Na Obra de Agostinho
A Vida Feliz Na Obra de Agostinho
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
Prof. Dr. Iraquitan de Oliveira Caminha Orientador
UFPB Universidade Federal da Paraba
__________________________________________
Prof. Dr. Marcos Roberto Nunes Costa Orientador
UNICAP Universidade Catlica de Pernambuco
__________________________________________
Prof. Dr. Edmilson Alves de Azevedo
UFPB Universidade Federal da Paraba
AGRADECIMENTOS
tantas
informaes
indicaes
preciosas
que
muito
DEDICATRIA
RESUMO
Foi a partir do pequeno texto de Santo Agostinho, intitulado De Beata Vita, obra
escrita em um retiro cultural no ano de 388 d.C., que o presente trabalho procurou
compreender as razes que levam a humanidade, em uma atitude universal, a buscar
a vida feliz, bem como entender os caminhos propostos por Agostinho para alcanar
este que , segundo ele mesmo, o nico propsito para o qual se pensa
filosoficamente (Conf. I, I, 1). Verificou-se, ento, que o Bispo de Hipona,
inteiramente submisso f crist e sob forte influncia da tradio grega
eudemonista, desenvolveu uma filosofia prtica, fundamentalmente tico-moral,
que, exaltando a virtude e se desvencilhando dos valores meramente temporais,
buscava a felicidade naquilo que no perecvel. Pois, tudo que sujeito ao tempo
pode ter a sua natureza afetada pelo mal, que, em seu entendimento, ausncia ou
distoro daquilo que bom. Reconhecendo, ento, que somente Deus eterno e
no est sujeito ao tempo, no podendo ser perdido ou modificado, entendia que
buscar a felicidade era, inevitavelmente, buscar a Deus, porm, sabia no ser
atravs dos prprios esforos que o homem chega a Deus, posto que Ele infinito,
ento, necessrio se faz o auxlio divino: a graa. Neste ponto separou-se dos
gregos, pois substituiu a sabedoria humana, pela sabedoria divina. E assim, sem
prescindir das compreenses inteligveis, necessrias para o reconhecimento
daquilo que pode ser chamado de beata vita, tenta por intermdio das experincias e
da autocompreenso da conscincia, encontrar a plenitude espiritual, na qual estaria
a perfeita Verdade e a verdadeira liberdade, sem as quais seria impossvel vivenciar
a verdadeira felicidade.
ABSTRACT
Based on a little text by Saint Augustine, named De Beata Vita, written during a
cultural retreat in 388 B.C., this paper aimed at comprehending the reasons that
drive the mankind, in a universal attitude, to seek a happy life, as well as
understanding the ways proposed by Augustine to reach what is, according to
himself, the only purpose for which people think philosophically (Conf. I, I, 1). It
was possible to verify, then, that the Bishop of Hippo, entirely submissive to
Christian faith and under great influence of the eudemonistic Greeck tradition,
developed a practica, fundamentally ethical and moral philosophy, which, by
exalting virtue and disengaging from merely temporal values, sought happiness in
what was not perishable. For all that is subject to time may have its nature corrupted
by the evil, which, in his comprehension, is the lack or distortion of what is good.
Acknowledging then that only God is eternal and not subject to time, and that He
could not be lost or modified, Augustine inferred that seeking happiness was,
inevitably, seeking God. However, he knew that men could not reach God by their
own effort, given that He is infinite. So, some divine helpe becomes necessary:
grace. At this point, Augustine separated from the Greek, as he substituted human
knowledge whith divine knowledge. Thus, without abandoning intelligible
comprehensio, necessary for recognizing what coud be called beata vita, he tries,
through conscience experience and auto comprehension, to find spiritual plenitude,
in which would be perfect Truth and true freedom, without which living true
happiness would be impossible.
LISTA DE ABREVIATURAS
Conf.
Contra acad.
Contra duas cartas.
De beat. vit.
De civ. Dei
De doc. Chr.
De lib. arb.
De mag.
De mor. Ecc. Cath.
De nat. bon.
De nat. et grat.
De ord.ord.
De quant. na.
De Sp. et Lit.
De Trin.
De vera rel.
Ep.
In Joannis
Ret.
Sol.
Confisses (397-401)
Contra os Acadmicos (386)
Contra duas epstolas Pelagianorum (420-1)
A Vida Feliz (386)
A Cidade de Deus (413-427)
A Doutrina Crist (396 426)
O Livre-arbtrio (388-95)
O Mestre (389)
De moribus Ecclesiae Catholicae (388)
A Natureza do Bem (399)
A natureza e a Graa (413-415)
A Ordem (386)
Sobre a Potencialidade da Alma (388)
O Esprito e a Letra (412)
A Trindade (399-419)
A Verdadeira Religio (389-91)
Carta 130 a Proba (c. 411-412)
Comentrio ao Evangelho de Joo (?408/414-7)
Retrataes (426-7)
Solilquios (386)
SUMRIO
INTRODUO ......................................................................................................................... 11
1 COMO PROCURAR A VIDA FELIZ ................................................................................... 16
1.1 A alegria (De gaudium) como forma de reconhecer a vida feliz ......................................... 21
1.2 Em Cassicaco: a busca filosfica pela beta vita ................................................................. 24
1.3 Uma releitura do De Beata Vita a partir das Confessiones .......................................... 27
2 EM QUE CONSISTE A BUSCA PELA VIDA FELIZ? ....................................................... 33
2.1 Vida feliz e temporalidade ................................................................................................... 40
2.2 Vida feliz, relacionamentos e tica....................................................................................... 45
2.3 A veracidade da felicidade ................................................................................................... 47
2.4 Vida feliz e sabedoria ........................................................................................................... 51
2.5 Vida feliz, carncia e medo .................................................................................................. 53
2.5.1 A indigncia da alma ......................................................................................................... 56
3 A ORIGEM DO MAL E O LIVRE-ARBTRIO DA VONTADE......................................... 60
3.1 A percepo do mal .............................................................................................................. 60
3.1.1 O mal no supre as necessidades do homem ..................................................................... 64
3.1.2 O mal a causa primeira do medo .................................................................................... 65
3.2 A Hierarquia dos bens da natureza ....................................................................................... 66
3.2.1 O eterno como medida do ser ............................................................................................ 68
3.2.2 A finalidade imprime valor ao ser ..................................................................................... 70
3.2.3 O homem na escala de perfeio dos seres ....................................................................... 72
3.2.4 O mal afeta a escala de valores ......................................................................................... 73
3.3 A origem do mal ................................................................................................................... 74
3.3.1 O mal enquanto sofrimento e penalidade .......................................................................... 75
3.3.2 O sofrimento tambm pode ter carter metafsico ............................................................ 76
3.3.3 O mal desde o princpio: a origem metafsico-ontolgica ................................................ 77
3.3.4 O mal moral e a origem da corrupo da natureza ............................................................ 81
3.4 O livre-arbtrio da vontade corrompido pelo mal moral.................................................... 84
4 FELICIDADE E LIVRE-ARBTRIO DA VONTADE .......................................................... 87
4.1 A lei eterna fator limitador do livre-arbtrio? .................................................................... 92
CONCLUSO ........................................................................................................................... 96
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ..................................................................................... 107
10
INTRODUO
PEGORARO, Olinto. tica dos maiores mestres atravs da histria. 1a ed. Petrpolis, RJ: Vozes,
2006. p. 61.
2
Existem mais de 900 ttulos publicados apenas em lngua portuguesa, C.f. DOMINGUES, Joaquim;
GALA, Elsio; GOMES, Pinharanda. Santo Agostinho na cultura portuguesa: contributo bibliogrfico.
Lisboa: Fundao Lusada, 2000. (Col. Lusada Documentos, 3).
3
C.f. BOEHNER, P. & GILSON, E. Histria da Filosofia Crist. 6a ed. Petrpolis: Vozes, 1995. p. 139.
4
C.f. RUFINO, Jos Rivaldo. Eudemonismo dicotmico em A Cidade de Deus, de Santo Agostinho, in
Symposium (1999), n.3, nmero especial, p. 5.
pensamentos dos grupos contra os quais debatia. Alm disso, Agostinho no faz, nem
tenta fazer, definies ontolgicas acerca da vida feliz; ele concentra as suas
investigaes nas experincias resgatadas pela memria e na expectativa de um futuro
composto a partir das elucubraes da sua mente. A busca que Santo Agostinho faz
intimista e subjetiva, pois reconhece que a felicidade entendida de maneira diferente
por cada pessoa. Para ele, o desejo de ser feliz universal, comum a toda humanidade,
mas a noo, ou melhor, a percepo da efetiva realizao da vida feliz uma
experincia, ou uma expectativa, pessoal.
Apesar da grande abstrao em que envolve o termo vida feliz (de beata
vita), Santo Agostinho tem como maior empreitada de sua carreira filosfica, e tambm
religiosa, encontrar, tomar posse e gozar eternamente da realidade representada por esta
expresso. Ele, na verdade, fez desse empreendimento algo muito maior que uma busca
particular. Pelo contrrio, longe de se ater aos limites de uma investigao pessoal, ele
transps o limiar dos seus prprios interesses e em suas investigaes procurou pela
vida feliz entendendo-a sempre como a finalidade da existncia humana. Perseguiu esse
propsito, tanto com o uso do seu acurado esprito filosfico, quanto com o misticismo
da sua profunda religiosidade. Os dois principais instrumentos de sua busca sempre
foram a f (fides) e a razo (ratio). Santo Agostinho jamais se entregou aos extremos do
fidesmo, nem tampouco, do racionalismo, entendia, antes de tudo, que a razo no era
suficiente para explicar tudo que a sua mente desejava e, tambm, sabia que a f,
enquanto explicao para o mundo, carecia de esclarecimentos racionais. Era essa a
base principal da metodologia que Agostinho utilizava para tentar obter o bem supremo
(summum bonum), sem o qual o homem no poderia viver feliz.
O ambiente filosfico de sua poca exigia, ainda, muitas respostas sobre a
questo da felicidade. Era uma poca em que os dogmas religiosos conviviam, de
12
maneira confusa, com a postura ctica dos filsofos racionalistas. Discutia-se com ardor
qual deveria ser o posicionamento da razo e da f em relao ao conhecimento. Os
gregos defendiam o logos, ou seja, o uso pleno da razo, enquanto alguns dos padres
mais influentes de sua poca defendiam uma expresso credo quia absurdum, que
designa exatamente a supremacia da f. Assim, a questo da felicidade, mesmo num
ambiente romano, foi discutida sob forte influncia da tradio eudemonista. Grupos
como os esticos e os epicuritas discutiam, com grande afinco, sobre o que a
felicidade. Uns defendendo conceitos morais com fortes abnegaes materiais visando
conquistas espirituais e outros, em sentido contrrio, defendendo a conquista de honras,
riquezas, glrias e sedues do corpo. E, ainda, por outro lado, correntes filosficas que
iniciaram com Scrates, Plato, Aristteles, defendiam que a felicidade consiste no
aperfeioamento das potencialidades humanas, ou seja, em desenvolver aquelas
atividades que diferenciam o homem dos outros animais. Porm, foi Ccero quem
apresentou a filosofia de maneira mais encantadora aos olhos de Agostinho. Numa
posio conciliadora entre estoicismo e epicurismo, Ccero tratou largamente do tema da
felicidade, despertando, naquele que viria a ser chamado de o Doutor da Graa, um
imenso interesse pela questo. Nesse cenrio, Agostinho, unindo f e razo,
desenvolveu o seu pensamento e influenciou mais de mil anos de histria da filosofia.
O presente trabalho visa acompanhar o percurso de Santo Agostinho nessa
intensa busca pela vida feliz, tentando fazer, sempre que possvel, no transcorrer dessa
investigao, uma releitura da mesma busca enquanto desejo (appetitus) presente na
intimidade da humanidade. O primeiro captulo busca entender, a partir do livro X das
Confisses, o percurso realizado por Santo Agostinho na tentativa de estabelecer um
mtodo para procurar a vida feliz. O material analisado foi escrito entre os anos 397 e
401 d.C., isto , mais de onze anos aps o dilogo De Beata Vita, que foi escrito em
13
386. Assim, este trecho das Confisses funcionar como uma apresentao da leitura
que o prprio Agostinho fez sobre a sua busca. Embora as memrias do autor no
possam ser tomadas como uma reviso do dilogo, podem ser vistas como uma
evoluo sobre o tema. Ver-se-, neste captulo, uma discusso centrada em percepes
extradas das experincias e do entendimento, formando um s conjunto do conhecer.
Este captulo apresentar as percepes, as noes e as ocasies a que Santo Agostinho
se apegou para identificar todos os seus anseios pela busca da vida feliz.
O segundo captulo dedica-se a levantar as impresses que Santo Agostinho
montou a respeito da felicidade ao longo de sua vida. O texto, que se inicia com uma
pequena anlise das terminologias utilizadas por Agostinho para se referir felicidade,
no se preocupa com a formao de conceitos, mas com a compreenso da busca que o
Bispo realizou atravs das experincias e do entendimento que delas consegue formar.
Nesta parte do trabalho esto suas impresses sobre o tempo, a verdade, a sabedoria, o
medo, a carncia e a alma. , na realidade, uma tentativa de demonstrar um Santo
Agostinho para alm dos conceitos metafsco-ontolgicos, posto que, de fato, ele no se
apega a esse campo da filosofia para identificar a vida feliz e defini-la como alvo da
grande busca da humanidade. Ver-se- ai um Santo Agostinho voltado para as prprias
experincias, para o contedo de sua prdiga memria, para a introspeco intelectual,
mas que ao mesmo tempo lana-se ao mundo com ponderaes que influenciariam todo
um milnio e que tm reflexos gloriosos at a contemporaneidade. Um misto de f e
estoicismo, uma divagao entre platnicos e neo-platnicos, um passear pela filosofia
antiga, inaugurando uma nova fase do pensar. esse o Agostinho que se ver discutindo
a busca pela verdadeira felicidade.
A origem do mal e sua relao com o livre-arbtrio da vontade o tema central
do terceiro captulo, que embora, inicialmente, parea meio deslocado no meio do
14
trabalho, ganha significado na ligao que feita no final do tpico. Esta seco tem
incio com a fatdica percepo do mal e dos seus efeitos nas naturezas dos bens. Ento,
ser descrita a corrupo por ele causada na ordem, no modo e na espcie de tais
naturezas. Em seguida, o rumo do trabalho parece, ainda mais, ser desviado, mas, na
realidade, a investigao sobre a hierarquizao dos bens da natureza o verdadeiro
elemento de ligao entre a percepo do mal e as suas implicaes como fator
impeditivo da vida feliz, a ligao comea a ser observada efetivamente ao analisar a
participao do homem na escala de valores dos bens e, logo em seguida, os efeitos do
mal sobre tal escala. A seco termina com o desvelamento da origem do mal e sua
ligao com o livre-arbtrio da vontade, mostrando que a vontade , em ltima instncia,
corrompida e corruptora. H nessa ltima anlise uma genial ligao entre a metafsica e
a subjetividade, onde o homem acaba tornando-se o elemento central da origem e do
desencadeamento do mal que corrompe as naturezas dos bens.
Finalmente, o quarto captulo apresenta a grande tenso entre o desejo de ser
feliz e o livre arbtrio da vontade. Os limites acabam, de alguma maneira, sendo o piv
da discusso, mas no s os limites entre o que se deve ou no fazer, mas entre eterno e
terreno como leis que regem dois grupos distintos da humanidade. Aqui ser
considerado o homem em plena relao com os seus amores, suas perspectivas e suas
esperanas. A anlise feita no propriamente das relaes, mas dos caminhos que ele
toma para alcanar os seus propsitos mximos. Neste ponto a filosofia agostiniana
aponta inexoravelmente para um homem que percebe haver uma finalidade para a vida e
para o alm-vida. Por isso, em certos momentos complicado separar, na obra de
Agostinho, a busca pela felicidade e a sua doutrina da salvao da alma, uma vez que,
em muitos sentidos, significam a mesma coisa.
15
16
11
17
14
ARENDT, Hannah. O conceito de amor em Santo Agostinho. 1 ed. Traduo: Alberto Pereira Dinis.
Lisboa: Instituto Piaget, 2005. p. 17.
15
A reminiscncia em Agostinho na verdade uma teoria de iluminao. Segundo essa teoria, o homem
receberia de Deus certa quantidade de conhecimentos que ficariam armazenados na memria at a hora de
uma necessidade. Embora alguns tericos queiram aproximar essa teoria da reminiscncia de Plato,
mister perceber que so coisas distintas, pois para Plato a alma recebia tal quantidade de memrias no
mundo das idias e ao encarnar em um corpo traria as imagens das coisas. Ou seja, para os platnicos a
reminiscncia a noo da realidade a partir do modelo, enquanto para Agostinho a reminiscncia uma
iluminao intensional, na qual Deus prepara o homem para a realidade.
16
Santo Agostinho toma emprestada parte da teoria platnica da reminiscncia. Plato apresentava a idia
de que a alma ao encontrar um corpo para habitar trazia do mundo das idias as imagens das coisas.
18
nem por que noo a aprenderam. O que me preocupa saber se essa noo habita na
memria. Se l existe, sinal que alguma vez j fomos felizes.17 Sua investigao
remete-se, em primeira instncia, ao fato de que a felicidade conhecida pelo homem;
em segundo lugar, cr na possibilidade de que a vida feliz possa ser recordada, isto ,
encontrada nesta quantidade de memria imputada por Deus na mente do homem; e,
finalmente, admite que o homem pode j ter experimentado de beata vita. Importante
frisar que quando Agostinho assevera que a existncia de tal recordao na memria
sinal que alguma vez j fomos felizes provavelmente no estaria se reportando
felicidade enquanto experincia individual, mas, to somente, vida feliz
experimentada pelo homem como participante da humanidade.18 Parece uma aluso,
essencialmente metafsica, memria trazida, por Deus, acerca do Paraso, de certa
felicidade ocorrida na pessoa de Ado, aquele que primeiro pecou, em que todos
morremos, e nascemos na infelicidade.19 Uma espcie de lembrana essencialmente
metafsica, por causa da ao sobrenatural que a envolve, mas no epistemolgica, pois
no ao conhecimento cognitivo que ela se remete. , sobretudo, o transcender de uma
experincia vivenciada em outra pessoa, porm na mesma humanidade.
A argumentao de que a vida feliz objeto presente na memria ganha fora
quando o Bispo afere, a partir de impressionante silogismo, que existe um desejo e,
portanto, uma idia, de felicidade que comum a toda humanidade.
17
19
20
23
24
21
Esta objeto cobiado por todos os homens indistintamente. Porm, sua forma to
diversa, quanto diversa quantidade dos que a desejam. Como, ento, ter certeza de que
o objeto alcanado aquele outrora cobiado se no se conhece a forma que tem, nem
sequer se h uma substncia que o designa? Agostinho afirma que no alcanar a vida
feliz enquanto no puder afirmar: Basta, ei-la (Sat, est illic)25 , ou seja, enquanto no a
encontrar face-a-face em uma experincia que o deixe em condies seguras de
reconhec-la. Com essa finalidade em mente, o Santo empenha-se numa acurada
caminhada intelectual que, juntamente com a revelao divina26, lhe proporciona a
esperana de chegar ao almejado fim.
Considerando que a felicidade seja conhecida e esteja, de fato, na memria, seria
ela recordada como a cidade de Cartago? Como os nmeros? Ou, talvez, como a
eloqncia?27 No, nenhum dos trs casos funcionaria como uma analogia ao que se
apetece da vida feliz, pois a felicidade no pode ser percebida em nenhum dos termos
acima. Ela no material como a cidade, no uma mera faculdade intelectual como os
nmeros e no pode ser percebida a partir dos sentidos corporais como a eloqncia que
no requer qualquer sentido interior.28 Os nicos lampejos para a elucidao do que
venha a ser uma vida feliz, na concepo agostiniana, esto na comparao com a
alegria (gaudium). Eu lembro-me da alegria passada, mesmo quando estou triste, e
penso na felicidade, quando me encontro desolado.29 A alegria, ainda que efmera, a
nica experincia que se aproxima, como referncia, da vida feliz. nestas suas
lembranas que Agostinho a encontra como um vestgio da felicidade. vestgio posto
25
22
que no vida feliz, pois passada, presente ou futura, mas no permanente como o
estado que se procura. vestgio-da-felicidade por que na alma que afirma senti-la,
como na alma que se deve possuir, e perceber, a vida feliz. Nunca vi, nem ouvi, nem
cheirei, nem gostei, nem apalpei a alegria com os sentidos corporais. Simplesmente a
experimentei na alma quando me alegrei.30 Mas, a alegria apenas referncia para
felicidade, a lembrana que, retirando o carter quase que exclusivamente
transcendental da sua teoria da reminiscncia, traz uma expectativa de encontrar a vida
feliz.
Agostinho apela alegria como a nica lembrana que se assemelha felicidade,
mas ainda assim no entende a vida feliz como um simples prolongar da alegria, pois
reconhece que existiam, em meio s suas prprias memrias, alegrias que eram pura
torpeza, no podendo, assim, ser consideradas caminhos para a felicidade:
30
31
23
outro.32 Para ele a vida feliz, quando referenciada pela alegria, alegrar-se no prprio
Deus, sem existir outra possibilidade. Os que julgam que existe outra apegam-se a uma
alegria que no a verdadeira.33 Entretanto, imbudo da certeza de que o homem tem
discernimento moral prprio, afirma que a sua vontade jamais se afastar de alguma
imagem de alegria.34
Buscando, desde muito cedo, o caminho para a vida feliz, e j cheio dessas
noes sobre o que ela significa. Noes estas que foram trazidas tanto pelo intelecto
quanto pelas experincias. O ento recm convertido Agostinho comeou, em 386,
numa quinta em Cassicaco35, a escrever, sob forte influncia platnica,36 os seus
primeiros dilogos. Agostinho se reuniu com alguns parentes e amigos mais prximos37
em uma espcie de recluso filosfica, visando um otium liberale (cio cultural)38,
costume entre os filsofos daquela poca, e escreveu, dentre outras obras39, De Beata
Vita. Um pequeno dilogo ao qual ele mesmo refere-se como uma disputa com os
32
De nat. bon.. I.
Conf.. X, 22, 32. Agostinho, tambm, apega-se grandemente exigncia de que a felicidade
experimentada seja verdadeira, pois a simples imitao de felicidade no atenderia as verdadeiras
carncias que devem ser supridas definitivamente no estado chamado vida feliz. Assim, tudo aquilo que
alegra o homem fora de um campo moral cristo considerado falsa alegria e, portanto, efmero, fugindo
da prerrogativa maior da beata vita: a eternidade.
34
Ibid.. X, 22, 32.
35
Hoje Cassago de Brianza, prximo a Milo, Itlia.
36
De beat. vit.. I, 4.
37
Estavam nesse retiro: Sua me Mnica, seu filho Adeodato e seu irmo Navgio, alm deles, estavam
presente dois dos seus discpulos, Trigsio e Licencio, e dois primos Lastidiano e Rstico que no
haviam, segundo o prprio Agostinho, freqentado nenhuma escola. Era um grupo bastante ecltico.
38
De ord., I, 2, 4.
39
Naquele retiro, que se estendeu de setembro 386 at maro de 387, ele escreveu, alm de algumas
cartas destinadas a Nebrdio, os seus primeiros dilogos: Contra academicos (um pequeno tratado acerca
da verdade), De Beata Vita (a busca pela felicidade), De ordine (sobre a ordem do mundo e o problema
do mal) e Soliloquia (um novo gnero literrio, onde Agostinho dialoga com a sua prpria razo em busca
do conhecimento de Deus e de si mesmo).
33
24
40
De ord., IX, 4, 7.
41
BROWN, Peter. Santo Agostinho Uma biografia. 3a ed. Traduo: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro So Paulo: Record, 2005. p. 142.
42
Gorg, 508 b.
Estes primeiros escritos de Agostinho, geralmente em forma de dilogo, tm um carter muito mais
filosfico se comparados aos posteriores. Hannah Arendt comenta que ao passar dos anos Agostinho fica
cada vez mais dogmtico, esta uma realidade facilmente observvel em suas obras, entretanto o pensar
filosfico sempre est presente no seu rico acervo.
44
Agostinho contendia ainda, naquela poca, contra os acadmicos e contra os maniqueus. Esses ltimos
foram a sua principal desavena ao longo de toda a vida.
43
25
E, afirmando que naquela poca os seus bens j no estavam fora, nem eram
procurados sob este sol pelos olhos da carne,45 apresentava aos leitores a necessidade
de uma busca interior pela beata vita.
Conquanto a filosofia de Agostinho, e especialmente sua filosofia deste perodo,
tenha sofrido algumas crticas por supostamente apresentar digresses, linhas de
pensamento inconseqentes e uma m utilizao geral da argumentao,46 estes
dilogos, construdos a partir de colquios com filsofos iniciantes, se assim se pode
cham-los, mostram toda a capacidade que aquele que viria a ser um grande bispo num
futuro bem prximo tinha de massificar os seus profundos conhecimentos, tornando-os
acessveis at mesmo queles que no eram instrudos, como alguns dos seus amigos
participantes do dilogo.47 Mas, a inteno, demonstrada pelo prprio bispo,
justamente desenvolver o esprito daqueles que normalmente no tm acesso ao porto da
filosofia. Para Agostinho as coisas realmente grandiosas, quando discutidas por
homens pequenos, em geral conseguem faz-los crescer.48 Ademais, no se pode
deixar de considerar um grave fato, mencionado em suas Retrataes, que pode ter
prejudicado a melhor exposio do contedo da obra. Sobre o qual Agostinho comenta:
Em nosso manuscrito encontrais, de fato, esse livro incompleto e apresentando no
poucas lacunas. Fora assim copiado por alguns irmos e eu no consegui encontrar um
exemplar completo, pelo qual pudesse corrigi-lo ao rev-lo....49
A respeito do De Beata Vita Agostinho fez algumas retrataes importantes,
mostrando que o seu entendimento de felicidade foi sendo mudado ao longo do tempo,
talvez seja isto um reflexo da crescente influncia da f crist sobre os seus escritos,
45
26
mas o fato que ele se confessa arrependido de uma das principais afirmaes feitas em
De Beata Vita, que a felicidade reside exclusivamente na vida dos sbios:
Ora, essas colocaes foram uma releitura do dilogo De Beata Vita a partir das
percepes da vida feliz que Santo Agostinho expe em suas obras posteriores; afim de
que se compreenda melhor cada uma dessas noes que ele utilizou na sua busca pela
vida feliz.
50
Ibid..
Conf.. X, 13, 20.
52
Ibid.. X, 15, 23.
53
Ibid.. X, 16, 24.
51
27
28
SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o nada. 13a ed. Traduo: Paulo Perdigo. Petrpolis: Vozes, 2005.
(Coleo: Textos filosficos). p. 21.
29
felicidade o homem precisa tanto do perceber, quanto do conhecer. Isto implica que o
conhecer a vida feliz viv-la.
Agostinho identifica uma fora mstica (Deus) como causa daquilo que traz na
memria, ou seja, do seu conhecimento da felicidade. Mas, a percepo, enquanto fruto
de uma experincia, faz o intelecto trazer tona tudo aquilo que por meio das sensaes
corpreas foi acrescentado aos recnditos recipientes da sua memria. Ele
surpreendentemente, e a despeito de sua antiguidade, lana suas percepes acerca da
busca pela felicidade nos moldes da fenomenologia de Sartre que afirma que se
comeamos por colocar o ser do conhecimento como algo dado, sem a preocupao de
fundamentar seu ser, e se afirmamos em seguida que esse est percipi, a totalidade
percepo-percebido, no sustentada por um ser slido, desaba no nada.60 Sem
nenhum receio, Agostinho mistura causalidade e experincia na busca pela felicidade,
sem tentar conceituar aquilo que afirma no conhecer. Para ele a anlise da vida feliz
transcende o prprio perceber enquanto experincia, isto , ela faz aquele que percebe
caminhar na direo daquilo que percebido. Em outras palavras, Agostinho admite a
existncia da vida feliz a partir de uma percepo que no se d pela ocasio de uma
experincia especfica, mas atravs de vrias presenas e de vrias ausncias que
59
60
Conf., X, 7, 11.
SARTRE, 2005. p. 21.
30
61
31
64
Ibid., I, 1.
Ibid., I, 1.
66
Ibid., II, 7.
67
Ibid., II, 7.
68
Ibid., IV, 25.
65
32
e no do corpo, a vida feliz , portanto, procurada naquilo que pode ser levado pela
eternidade e no se desfaz com o passar do tempo.
33
Sendo a vida feliz o principal tema da antropologia filosfica de Agostinho, ele discutido sob vrios
aspectos em obras e pocas distintas. As experincias de sua prpria vida so constantemente utilizadas
como base para as suas reflexes, fazendo de sua prpria busca pela vida feliz um grande mosaico que se
espalha ao longo da sua vasta literatura. Sendo assim, no h uma definio clara e conclusiva. Para se
obter uma conceituao desta forma exigir-se-ia um trabalho de interpretao mais acurado e histrico
para identificar suas posies durante toda sua trajetria filosfica.
70
A idia passada por Agostinho na sua introduo do dilogo sobre A Vida Feliz faz perceber que o
Porto da Filosofia apenas um caminho para encontrar a felicidade, mas no a prpria felicidade. C.f.
PAVIANI, Jayme. Alegoria do Porto em Santo Agostinho: Filosofia e Vida Feliz. in STEIN, Ernildo. A
Cidade de Deus e A Cidade dos Homens de Agostinho a Vico. 1a ed. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2004. p. 107-115.
71
De beat. vit. I, I.
34
esta lhe proporcionaria o reconhecimento daquilo que j estava guardado nos recnditos
receptculos de sua memria, coisa que uma investigao meramente epistemolgica
jamais lhe ofereceria. justamente esse mtodo diferenciado que envolve experincias
pessoais, epifanias, teodicias, percepes dos sentidos, f e observaes racionais que
faz de Agostinho um filsofo no sistemtico.
72
72
A filosofia agostiniana baseada na proposio credo ut intelligam, intelligo ut credam que define o
famoso crculo hermenutico de Agostinho, onde a f (fides) e a razo (ratio) so complementares
necessrios. Assim, a f funciona com uma pr-compreenso daquilo que a razo conhece e a razo como
uma espcie de juiz da f.
73
ARENDT, p. 7
74
Na obra De beat. vit., Agostinho utiliza a expresso Beata Vita, em sua forma completa, 9 vezes e a
palavra fortuna foi utilizada 8 vezes. O termo fortuna aplicado, em geral, nesta obra para definir
alegrias materiais, portanto, passageiras. Em suas Retrataes Agostinho afirma se arrepender do uso que
fez dessa palavra ao longo desta obra. C.f. Ret., I, 2.
35
obra, apenas uma vez a palavra felicitate e jamais fazendo uso do vocbulo fortuna com
mesmo sentido com que utiliza beata vita. Esta clara preferncia de Agostinho pelo uso
da primeira expresso revela a sua evidente tentativa de apresentar a conquista da vida
feliz como o exerccio pleno de um modus vivendi. Segundo o professor Jayme Paviani,
apesar de felicidade ser um termo que representa melhor a abstrao metafsica, a
expresso vida feliz parece ser mais direta e revela no jogo da linguagem o mundo das
vivncias, das dificuldades, das contigncias naturais da cotidianidade humana.75
Parece, portanto, haver nessa expresso (beata vita) a revelao de um carter
intencionalmente pragmtico na abordagem agostiniana sobre a questo, ou melhor,
sobre a busca da felicidade.
Considerando o cuidadoso uso que Agostinho fazia das palavras, a expresso
beata vita parece realmente implicar numa referncia a um estado prtico, e
permanente, que no pode ser abalado pelas questes circunstanciais da vida efmera.
Veja-se que a palavra vita, inserida nesta expresso, traz a noo de que o estado
qualitativo determinado pelo adjetivo beata tem continuidade ao longo de todo o curso
da existncia humana. Ainda mais considerando que a vida, no sentido cristo, vai para
alm da morte. J a palavra beata, na mesma estrutura, no apenas adjetiva vita. Essa
qualificao assume um papel muito forte no pensamento de Agostinho, pois esse
adjetivo que faz a ligao entre o tipo de vida que se vive e o alcance de sua finalidade.
A palavra beata encontra sinomia em pius e devotus denotando um comportamento
especfico e voltado para aquela conduta que Agostinho, algures, chama de caste vivit76.
Ao mesmo tempo, a palavra beata, tambm, ope-se ao pecado e hipocrisia
(simulatio, virtutis simulatio, pietatis simulatio, fraus), mostrando que para Agostinho a
beata vita est ligada a um comportamento pius, ou seja, um comportamento moral e
75
PAVIANI, Jayme in STEIN, Ernildo. A Cidade de Deus e A Cidade dos Homens de Agostinho a
Vico. 1a ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p. 107.
76
De beat. vit.: II,
36
tico, virtuoso. Isso leva a crer que, mesmo considerando que ao escrever De Beata Vita
Agostinho ainda era um simples nefito, qualquer definio epistemolgica que possa
ter sido dada por ele felicidade , na realidade, teolgica, ou essencialmente teolgica.
Por isso, as suas percepes mais transparentes sobre o assunto esto impregnadas de
conceitos tico-morais subjugados ao divina do Deus bblico. Este um dos pontos
cruciais para se entender em que consiste a busca pela vida feliz na viso agostiniana: a
sua teologia.
Outro termo que precisa ser considerado neste estudo, embora no seja parte do
vocabulrio do Doutor da Graa, a palavra grega eudaimonia, utilizada
freqentemente para explicar a beata vita agostiniana. Na realidade, esta no apenas
uma palavra, mas um termo filosfico investido de todo um significado metafsico e
epistemolgico que precisa ser compreendido sob diversos pontos de vista, dentre os
quais o religioso, para que se possa compreender a ligao e a influncia exercida, por
esta tradio grega, sobre a filosofia de Santo Agostinho. O fato que quando se diz que
a tradio eudemonista77 exerce uma grande influncia sobre o pensamento agostiniano,
considera-se, obviamente, que existe uma linha de pensamento que faz ligao entre o
tema principal da antropologia filosfica de Agostinho, a felicidade, e a tradio grega
eudemonista que tratando do mesmo assunto, lhe influenciou desde os primeiros passos
filosficos. O professor Idalgo Sangalli observa que um dos pontos em comum entre
essas duas cosmovises (agostiniana e tradio eudemonista) que a atualizao das
potencialidades humanas, e em especial aquela que diferencia os homens dos outros
animais, a razo, o fundamento maior para a busca da felicidade.78 Porm, para
77
A tradio eudemonista constituda pelos ensinos dos grandes pensadores gregos que discutiam e
buscavam a felicidade. As concepes filosficas acerca do tema, levantadas por Plato, Aristteles e
Plotino foram as que mais influenciaram o pensamento de Santo Agostinho.
78
C.f. SANGALLI, Idalgo Jos. A beatitudo como bem supremo em Agostinho. In STEIN, Ernildo. A
Cidade de Deus e A Cidade dos Homens de Agostinho a Vico. 1a ed. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2004. p. 96.
37
79
Ibid.
Por maiores que sejam as virtudes que [os cristos] possam ter nesta vida, atribuem-nas unicamente
graa de Deus que as concedeu aos seus desejos, suas f, s suas oraes. (De mor. Ecc. Cath. XXV,
XLVI); ver tambm: De civ. Dei. V, XIX; De Vera rel. LIV, CVI; De doc. chr. I, XXXVII, 41b; Conf. II,
VI, 9; De trin. XIV, XV, 21; De lib. Arb. I, VI, 15 e I, XV, 32.
81
De beat. vit. II, 10; De civ. Dei. X, 1; De Trin. XIII, 4, 7.
82
Ibid. Os textos mencionados acima (na nota 75) condicionam a felicidade a um comportamento tico
que tem incio no desejo pelo que bom. Assim, citando Ccero, Agostinho afirma: s menos infeliz por
no conseguir o que queres, do que por ambicionar obter algo inconveniente (De beat. vit. II, 10).
80
38
diminui o seu valor filosfico, uma vez que investiga as origens da tica, da moral e da
prpria felicidade.
Em primeiro lugar, faz-se necessrio entender que h, para Agostinho, uma
questo fundamentalmente teolgica que faz uma abismal diferena entre a felicidade a
que se refere por meio da expresso beata vita e a eudaimonia quando esta faz
referncia possesso promovida pelos deuses (damon) da mitologia grega, a exemplo
de Baco, Hstia, Diana, etc. Conquanto se saiba que a palavra eudaimonia, ou o
conceito nela contido, refere-se a um demnio-guardio bom e favorvel, que garantia
uma boa sorte e uma vida prspera e agradvel,83 o problema desse entendimento de
eudaimonia dentro de uma cosmoviso crist consiste justamente na identificao
desses daimon como fonte da felicidade. Alm disso, esse tipo de relacionamento com
outros deuses, ou demnios, no jamais admitido pela doutrina judaico-crist84
seguida por Agostinho. Prova disso que quando ele faz consideraes acerca dos
deuses aos quais a filosofia platnica se remete, ele afirma ser necessrio examinar,
discutir, na medida das foras que Deus nos der, o que preciso acreditar a respeito dos
espritos que os platnicos chamam deuses ou bons demnios ou, conosco, anjos.85
(Veja-se o cuidado que ele tem em mostrar as diversas tradues possveis para a
83
REALE, Giovanni & ANTISERI, Dario. Histria da Filosofia: Filosofia pag antiga. Vol. 1. 1a ed.
So Paulo: Paulus, 2003. Pg. 91.
84
Na cultura judaico-crist, e mais precisamente na doutrina apostlica do novo testamento, todo deus
que seja difere do Deus Uno-Trino, apresentado nas Sagradas Escrituras, considerado um demnio no
sentido de anjo enviado por Satans, para afastar o homem do Caminho. Ainda mais aqueles que
promovem comportamentos diferentes daqueles que a moral crist admite. Assim, considerando as
grandes festas promovidas em torno da deusa Diana, na cidade de Corinto, nas quais o sexo e as bebidas
alcolicas eram sinais da possesso e da felicidade (eudaimonia) promovidas pela deusa, o apstolo
Paulo, visando afastar o povo da igreja que instalara naquela cidade dos comportamentos promovidos
pela cultura pag, escreveu: Vocs no podem beber do clice do Senhor e do clice dos demnios; no
podem participar da mesa do Senhor e da mesa dos demnios (I Cor. 10:21, NVI). Neste sentido a
palavra grega damon, que d origem ao termo eudaimonia, aproxima-se daquilo que Agostinho chama
(ver De beat. vit. II, 12) de spiritus immundus que precisa ser expulso (expellere), pois causa no homem
certa condio de loucura (infert furorem) (ver De beat. vit. II, 18). Para maiores informaes sobre o
sentido cristo (bblico) da palavra damon ver: COENEN, L. & BROWN, C. Dicionrio Internacional
de Teologia do Novo Testamento. Vol. 1. 2a ed. Trad.: Gordon Chown. So Paulo: Vida Nova, 2000. p.
513-18.
85
De civ. Dei., X, I.,1.
39
Neste texto, Agostinho faz clara referncia doutrina crist expressa pelo
Apstolo Paulo no primeiro captulo de sua Carta aos Romanos, pela qual se entende
que h uma revelao divina que comunicada pela natureza criada. Porm, logo
depois, no texto que abaixo se segue, o Bispo inclui os platnicos na classe daqueles
que rejeitaram tal revelao e que tendo conhecido a Deus, no o glorificaram como
Deus, nem lhe renderam graas, mas os seus pensamentos tornaram-se fteis.91
86
40
92
93
41
94
Ibid.. I, 2.
42
Quando o Santo Bispo afirma que ningum pode ser feliz, sem possuir o que
deseja,95 ele no est de modo algum materializando a felicidade. Est, na realidade,
tentando fazer entender que quem vive na nsia de alcanar algum bem e jamais o
consegue no pode ser chamado de feliz, pois est vivendo em constante estado de
carncia. Mas, rapidamente ele tambm afirma que no basta aos que j possuem ter o
ambicionado para serem felizes.96 Fazendo logo em seguida os leitores
compreenderem que quem vive com receio de perder o que possui tambm no
consegue navegar at o philosophiae portum.97 Logo, um outro fator passa a ser
considerado pelo Bispo: o medo. Assim, a tranquillitate, to apetecida, no
simplesmente o possuir, nem o no possuir, pois, nos dois casos essa tal quietude
quebrada pelo medo ou pelo desejo. Isto por que todo o ter dominado pelo medo,
todo o no-ter pelo desejo.98 Parece, ento, residir na noo de temporalidade a razo
de a vida feliz apresentar-se sempre como um ainda-no-ser. Por que a prpria vida a
maior razo para temer, posto que sucumbe continuamente diante da noo de tempo,
tornando-se cada vez mais curta. A inquietude maior da vida o seu caminhar frentico
para a morte. Assim, tudo aquilo que se possui anda junto com a vida em direo
morte. E o prprio gozo do bem amado tambm faz parte do caminhar em direo ao
fim definitivo, por que nesse caminhar que se vive, mas se vive morrendo. Ento, o
que resta? Resta a busca pela posse um bem que no esteja sujeito ao tempo, que no
possa ter a sua posse interrompida nem mesmo pelo medo maior: a morte.
O medo, assim como o desejo, a inquietao do presente em relao ao porvir.
Essa expectativa gerada pelo quadro altamente mutvel no qual o ser humano se
encontra, destri qualquer esperana de tranquillitate. Por isso Agostinho considera o
95
43
homem lanado neste mundo, como em mar tempestuoso, e por assim dizer, ao acaso e
aventura.99 O prprio passar do tempo consolidador de mudanas que so temveis.
a noo do tempo, e a incerteza do que estar presente no misterioso futuro, que faz o
homem temer, ou desejar, o que est por vir.
99
De beat. vit.. I, 1.
ARENDT, p. 21.
101
Ibid., p. 22.
100
44
Ibid., p. 22-23.
Conf.. XI, 11, 13.
104
Ibid.. VI, 16, 26.
105
Ibid.. VI, 16, 26.
103
45
modus vivendi daquele homem preso dissoluo, o qual julgava estar longe das
angstias e do aguilho das paixes, sabia que era melhor viver como ele vivia.106 No
fundo j cogitava, aquilo que no futuro no relutaria em dizer, que a efemeridade
daquilo que apetecia no seria suficiente para faz-lo feliz. Esta confisso que provinha
mais da f que da prpria filosofia encontrava motivao na razo, que desejava
securam laetitiam e no temporalis felicitatis. Porque, para ele, o tempo faz juzo de
todos os bens, inclusive da felicidade.
Ibid.. VI, 6, 9.
ARENDT, p. 34.
46
108
109
47
solido, apega-se justamente quilo que est fora de si, ou seja, o mundo e por ele
apaixona-se, passando a relutar contra a tica que em outro momento aceitara como sua.
Agostinho sempre traz a sua vida para dentro das mais profundas reflexes,
independentemente de elas serem mais teolgicas ou mais filosficas. Por isso, o
perodo de dissoluo pelo qual passou na sua mocidade freqentemente citado
quando ele trata de suas concepes sobre a questo da vida feliz. Talvez por no ter
encontrado nas suas prodigalidades nada que de fato o saciasse, ou, talvez, pela grande
influncia que as palavras de Ccero fizeram em sua vida.
48
112
49
A verdadeira felicidade , portanto, um estado dependente do bom uso do livrearbtrio. Pois, a alegria provinda daquilo que no correto engodo, fraude. Quando
relata, em suas Confisses, um episdio no qual ele havia, com um grupo de colegas,
furtado algumas pras, o Santo Bispo reconhece: Colhi-os simplesmente para roubar.
Tanto assim que, depois de colhidos, os lancei fora, banqueteando-me s na
iniqidade com cujo gozo me alegrara. Se algum dos frutos entrou em minha boca, foi o
118
50
meu crime que lhes deu o sabor.121 Mais uma vez o rememorar de suas inquas
aventuras est envolvido numa profunda reflexo, que faz pensar se possvel que
algum se torne feliz apenas com a mera aparncia do bem. Ser que gozar de alegria
promovida apenas pelas imitaes daquilo que bom pode fazer algum feliz? A
resposta do Bispo, certamente, seria no. Pois, ele afirma que naquele lamentvel roubo
teve o gosto de lutar pela fraude contra a vossa lei, j que o no podia pela fora, a fim
de imitar, sendo cativo, uma falsa liberdade, praticando impunemente, por uma
tenebrosa semelhana de onipotncia.122 Era contra a lei eterna que ele se alegrava em
lutar. Agostinho colocou-se num div e fez uma auto-anlise, percebendo que a sua
alegria estava em praticar impunemente aquilo que a lei lhe proibia e assim sentia-se
superior a ela, onipotente. A verdadeira felicidade no pode, segundo o Bispo, firmar-se
em sentimentos, experincias ou percepes falsas, pelo contrrio ela precisa ser
modelada busca pela verdade. Porque no so felizes? No so felizes porque,
entregando-se com demasiado afinco a outras ocupaes que, em vez de ditosos, os
tornam ainda mais desgraados, recordam, apenas frouxamente, aquela Verdade que os
pode fazer felizes.123
A aparncia mera imagem do ser, sombra, no o ser. Assim, os lampejos de
bem que enganosamente fazem-se presentes naquela substncia corrompida no podem
ofertar o bem que o verdadeiro bem oferta. A veram felicitatem no pode possuir
mcula da corrupo, pois toda e qualquer natureza sujeita a corrupo um bem
imperfeito, porque a corrupo no a pode danar seno destruindo ou diminuindo nela o
que constitui a sua bondade.124 A veram felicitatem bem perfeito, pois s se completa
na quietude da eternidade.
121
51
125
Fazendo,
assim, referncia sabedoria como nica forma de se chegar felicidade. Ali ele afirma
que toda pessoa para ser feliz deve possuir sua justa medida, isto , possuir a
sabedoria.126 Esta sabedoria (sapientiam) simplesmente a moderao do esprito
(modus animi).127 Sob esse ponto de vista, Agostinho tambm relaciona a felicidade
com a moralidade, pois modus animi a medida que rege o homem, uma espcie de
capacidade adquirida para evitar que a alma atire-se em excessos na direo dos
prazeres, da ambio, do orgulho e de todas as outras paixes do mesmo gnero.128
Neste ponto Agostinho lembra Plato falando sobre o homem tirnico em contraponto
com o democrtico, o primeiro tem a alma dissoluta e cheia de vcios, enquanto o
segundo se assegura de no sucumbir aos desejos suprfluos.129 Essa influncia da
filosofia platnica sobre Agostinho, especificamente na relao entre felicidade e
sabedoria, revela-se mais claramente quando ele levanta a seguinte proposio: Plato
estabeleceu que o fim do bem viver de acordo com a virtude, o que pode conseguir
apenas quem conhece e imita a Deus, e que tal a nica fonte de sua felicidade.130
Agostino demonstra, em De Beata Vita, uma alta estima aos homens sbios,
considerando que a felicidade est reservada a eles somente.131 Posto que o homem
125
De beat. vit.. I, 1.
Ibid.. IV, 33.
127
Ibid.. IV, 33.
128
Ibid.. IV, 33.
129
C.f. Rep., IX.
130
De civ. Dei., VIII, VIII.
131
Em suas Retrataes Santo Agostinho demonstra arrependimento por esse raciocnio. Afirma:
lamento haver mencionado diversas vezes o tema fortuna. Enfim, ter declarado que, no curso da vida
presente, a vida feliz existe no sbio exclusivamente, e em sua alma, qualquer seja o estado de seu corpo.
Com efeito, o conhecimento perfeito de Deus, isto , aquele melhor do qual o homem nada pode possuir,
o Apstolo o espera s para a vida futura (I Cor 13, 12). Ela, unicamente, merece o nome de vida feliz,
126
52
sbio tem valores muito mais elevados. Santo Agostinho afirma que no precisamos
indagar se o sbio sofre de necessidades corporais, pois essas coisas no se fazem sentir
na alma sede da vida feliz. A alma do sbio perfeita: ora, ao que perfeito nada
falta.132 Esta certeza firmada no fato de o sbio saber lidar com a escassez e no o
fato de jamais lhe faltar algo. A felicidade est condicionada a uma vida sem carncias,
sem faltas.133 Mas, a sabedoria se coloca acima dessas faltas.
O sbio conselho de Terncio diz: J que as coisas no podem ser tal como
queres, deseja apenas aquilo que for realizvel.134 Tal recomendao encaminha o
homem sbio a um perfeito domnio sobre a sua prpria vontade, e conseqentemente a
uma profunda quietude. Afinal, quem deseja apenas aquilo que lhe possvel em nada
ser contrariado, fato que Agostinho e seus amigos consideram suficiente para garantir
que no haver infelicidade na vida de quem dessa forma agir. Assim julga o Bispo, o
homem alcanar os bens que de modo algum podero ser arrebatados.135 Isso porque
tal homem sbio desejar apenas aquilo que sensato, aquilo que no perece, no
precisando temer a sua perda, nem se revolvendo em desejos inalcanveis.
53
137
O Anticristo. III.
C.f. Evans. Pg. 223.
139
De beat. vit.. IV, 25.
140
Ibid.. IV, 25.
141
Ibid.. II, 10.
142
Ibid.. II, 11.
138
54
143
No que concerne ausncia de desejo e medo a plenitude se assemelha quietude. Porm mais que
isso, a plenitude saciar. Ou seja, a quietude a estabilidade, plenitude o enchimento espiritual que
sacia. A quietude fruto do summum bonum a plenitude o summum bonum.
144
De beat. vit.. IV, 30.
145
Ver: De vera rel. e Doutrina Crist.
146
C.f. Conf.. X, 30, 41 em diante.
55
147
56
excelncia. Uma vez que o sbio no afetado nem pelas necessidades do corpo e nem
mesmo pelo medo da morte, somente a falta de sabedoria faz do homem um ser infeliz.
As necessidades fsicas, segundo o bispo, no atingem a alma, por isso no
afligem os sbios.150 Existiriam, pois, necessidades para a alma?
150
57
que se coloca dos valores eternos153, sendo, assim, terrivelmente atrada pelo pecado.
Desta forma, a alma corrompida, corrompe, tambm, o livre arbtrio da vontade.
Voltando-se, assim, inevitvel prtica do mal e, conseqentemente, infelicidade, pois
se encontra dominada pela paixo.154
A carncia da alma pela liberdade no seu aspecto metafsico, buscando atravs
dessa primeira liberdade, encontrar a libertao moral. Pois, em primeira instncia, o
homem pratica o mal por que herdeiro dessa dominao que aprisiona a alma sob o
julgo das paixes.155 Portanto, o que Agostinho busca o retorno ao bem no qual se
encontrava antes do afastamento daquilo que eterno, Deus.
Para Santo Agostinho, a alma tem a sua liberdade cerceada pela herana trazida
desde o nascimento, pois, conforme explicado acima, a alma herda de Ado a
dependncia do pecado. Herana essa que se evidencia na incapacidade de pessoas que
qualquer regio da terra viverem sem praticar o mal, ou seja, o pecado.157 Assim, Santo
Agostinho entende que quando a natureza do homem foi criada no princpio sem culpa
153
58
e sem nenhum vcio, ela estava num estado em que posse non pecare ( possvel no
pecar).158 J, agora, depois do pecado original que foi cometido por livre vontade do
homem, quando o vcio [...] cobre de trevas e enfraquece os bens naturais, a ponto de
necessitar de iluminao e cura, a alma do homem est sujeita a um outro estado que
condiciona no qual non posse non pecare ( impossvel no pecar).
Na crtica pelagiana, simples, o homem pode voltar ao bem inicial numa
atitude de sua prpria vontade, uma vez que pela prpria vontade ele afastou-se. Ao
contrrio de todos os ensinos de Agostinho, Pelgio159 ensinava que o homem era capaz
de viver de modo perfeitamente obediente vontade revelada de Deus.160 Entretanto,
o conceito pelagiano descarta qualquer possibilidade metafsica de mal, para ele o
homem no traz nenhum tipo de herana do mal, pelo contrrio, para ele as pessoas
nascem puras, intactas, incorruptas.161 Essa possibilidade, de o homem nascer livre das
impurezas, inconcebvel para Agostinho. Pelo contrrio, o filsofo de Hipona,
considera que a vontade de Ado, que era livre, tornou-se corrupta e incapaz de no
pecar, deixando como legado na substncia da alma essa non posse non pecare. Por isso
a alma do homem carece de uma vontade pura, que possa libert-la da condio atual,
que uma espcie de priso trancada pelas suas prprias fraquezas e paixes.
A alma, segundo Agostinho, tem a liberdade reprimida pela sua prpria vontade
que, fraca e debilitada, a compele ao mal e sem a cooperao da graa no consegue
desejar, nem praticar, o bem.162 Portanto, quem de modo conveniente se serve da lei,
chega ao conhecimento do mal e do bem e, no confiando na sua fora, refugia-se na
158
59
graa, cujo auxlio lhe d foras para se afastar do mal e fazer o bem.163 Nesse trecho
eminentemente teolgico o Bispo de Hipona revela a sua percepo acerca da carncia
que a alma tem da plenificao de sua liberdade. E revela, tambm, que perdeu toda a
confiana que antes tinha na capacidade de escolher entre o bem e o mal. Pois relendo
os textos do Novo Testamento, especificamente as cartas paulinas, confrontou-se com o
seguinte trecho:
163
164
60
Para Santo Agostinho impossvel ser feliz em contato com o mal, seja ele o
mal sofrido ou mal praticado.
Onde est o mal? Propositalmente, a pergunta sobre a existncia do mal, ser
ignorada nessa fase inicial. Pois, o que interessa para esse ponto saber como o mal se
apresenta na filosofia de Santo Agostinho e que tipo de influncia exerce sobre a busca
pela vida feliz. Em sua A Cidade de Deus, ele afirma que os maus no sero felizes
nem mesmo de falsa felicidade, mas aparecero desgraados a todas as luzes, e os bons
no estaro sujeitos a misrias alguma, mesmo temporal, mas gozaro de felicidade
gloriosa e eterna.165 A fora dessa afirmao, obriga a qualquer um que queira estudar
o tema da felicidade na obra agostiniana a investigar em que sentido se percebe o mal,
considerando inclusive, em que sentido se percebe a sua existncia.
165
61
questiona pelo criador do mal, e ele, demonstrando sua perspiccia filosfica, retruca:
Dir-te-ei, se antes me explicares a que mal te referes. Pois, habitualmente, tomamos o
termo mal em dois sentidos: um, ao dizer que algum praticou o mal; outro, ao dizer
que sofreu algum mal.166 No entendendo a diferena que havia entre um e outro,
Evdio pede esclarecimentos, assim, o Bispo explica que o mal sofrido , muitas vezes,
justa pena pelo mal cometido, oferecendo ao mal um carter didtico. Neste ponto,
Agostinho trata de mostrar que nem tudo aquilo que se percebe como mal, de fato, o ,
uma vez que o mal que visa punir o erro , na realidade, um bem. Por outro lado, o mal
que se comete o mal que, de fato, se percebe como tal, portanto digno de castigo.
O problema se torna ntido, ou mesmo existente, quando ele pe em dvida a
existncia daquilo que ele percebe como mal, como o faz com toda clareza em A Vida
Feliz IV, 30, afirmando tratar-se apenas de uma ausncia do bem. Em A Natureza do
Bem captulo IV, assim como em A Cidade de Deus livro XI, ele se refere ao mal como
corrupo do bem. At a nenhuma contradio h, pois ser corrupo no implica em
ser substncia criada, no h essncia nisto que se chama corrupo. isso que ele nega
nos textos de A Vida Feliz e O Livre-arbtrio: que o mal seja uma substncia criada. A
grande questo quando em O mestre, centrado em uma discusso com o seu filho
Adeodato, ele afirma que todas as palavras so sinais, [...] todo sinal significa alguma
coisa.167 Deixando transparecer no mesmo texto que a aquilo que tem significado deve,
tambm, ter existncia, fica, por analogia, definido que sendo mal uma palavra, um
sinal, portanto, representante de alguma coisa que de fato existe, compreende-se, ento,
que aquilo que se chama mal deve existir. Esse entendimento d-se pelo fato de que
quando Adeodato afirmou que nihil significa aquilo que no existe, Agostinho,
imediatamente, o retrucou dizendo que no h sinal que no signifique alguma coisa.
166
167
De lib. arb., I, I.
De mag., II.
62
Ora, o que no existe no pode de maneira nenhuma ser alguma coisa.168 Portanto, s
h significao naquilo que alguma coisa, isto , naquilo que existe (o contrrio,
tambm, conclui-se, por fora do raciocnio por eles empregado, aquilo que no existe
no pode ter significado e, portanto, no pode haver um sinal que represente a sua
significao). O mais que podemos dizer de palavras e outros sinais que apontam
para coisas, e sugerem que as procuremos (De mag. XI, 36). Eles no nos mostram
coisas de tal forma que as conheamos, ainda que possam nos predispor a inquirir.169
Ou seja, o pensamento de Agostinho faz uma ligao direta entre a significao de um
sinal e a existncia daquela coisa por ele significada. Assim, ele exemplifica: essas tais
coberturas das cabeas, cujo nome retemos somente pelo som, no as podemos
efetivamente conhecer seno vendo-as, nem mesmo o nome podemos conhecer
adequadamente, seno depois de as ter conhecido.170 Mesmo sabendo que a discusso
no levada a uma concluso, pelos dois partcipes, parece perfeitamente possvel
entender, a partir do exposto, que, para o Bispo, no h significao naquilo que no .
Adeodato, ento, complementou, afirmando que quando no temos nada que significar
completamente estulto proferirmos qualquer palavra.171 Desta forma, deve-se admitir
que o mal, ento, se percebe pela sua efetiva ao, por meio daquela verdade que se
chama sensorial, e, tambm, pela concluso do empreendimento intelectual que exige
que o sinal mal deve ter uma significao para algo que realmente existe e se faz
perceber pela verdade inteligvel.
Ora, ampliando a linha de pensamento e considerando o caso do ponto de vista
da justia, por exemplo, ou mesmo da moral, como se poderia sujeitar algum a uma
punio por algo inexistente? Como existiria moral se no houvesse uma certeza da
168
Ibid.
EVANS, 1995. p. 88.
170
De mag., XI.
171
Ibid., II.
169
63
existncia do bem e do seu oposto, o mal? Como poderia algum se afastar daquilo que
no existe? Agostinho nunca deu cabo dessas questes, embora tenha claramente optado
por tratar o mal como ausncia e corrupo do bem. Neste sentido, tambm, So Toms
de Aquino, refletindo sobre essa questo, assevera ser o mal um ente de razo e no da
coisa. Assim, ele sistematizou com bastante clareza o pensamento agostiniano:
Deve-se dizer que certamente o mal est nas coisas, mas como
privao, no como algo real; no obstante, est na razo como algo
inteligido; e por isto pode dizer-se que o mal um ente de razo e no
da coisa, dado que no intelecto algo, mas no na coisa; e este mesmo
ser inteligido, pelo qual se diz que algo ente de razo, um bem;
pois um bem que algo seja inteligido.172
Agostinho ensina que o nada, enquanto realidade significada pela palavra, pode
ser apenas afeco da mente.173 Por esta propositura, faz-se analogia ao mal que, uma
vez no sendo coisa alguma, apenas representao da ausncia, ou da corrupo, que
se deseja exprimir. Aparentemente, para os dois santos, o fato de ser percebido, parece
no implicar no fato de realmente existir, pelo menos, existir como uma substncia
criada. Destarte, necessrio investigar o sentido da interferncia do mal na busca pela
vida feliz como ser percebido (esse est percipi) e no como ser criado (esse est
generatus). Pois, neste segundo caso o mal poderia ser materialmente destrutvel ou,
ainda, seria perecvel como todo ser criado. Assim, considerando que o mal se percebe
apenas enquanto esse est percipi, torna-se necessrio conhecer o significado da sua
presena na vida que o experimenta, considerando os efeitos correspondentes a sua ao
e ou simples presena.
172
AQUINO, So Toms de. Sobre o mal. 1a ed. Trad. Carlos Ancde Nougu. Rio de Janeiro: Stimo
Selo. 2005. p. 25.
173
De mag., VII.
64
174
65
pode suprir nenhum tipo de carncia, ao contrrio, impede, at mesmo, o prprio bem
de suprir plenamente as carncias provocadas pela sua ausncia.
Percebendo o mal como essa corrupo que avilta o bem por ele atingido,
diminuindo a sua potencialidade como supridor das carncias. Entende-se que aquilo
que se teme acerca da prpria vida temido em razo dos males que se pode sentir em
razo da diminuio ou destruio do bem que se possui ou se apetece, ou seja, tem-se
medo daqueles males que so resultado do prprio mal.178 Teme-se por causa da dor, ou
do sofrimento, ou da doena, ou da perda, ou da separao, ou da priso, ou da morte,
teme-se por esses e por muitos outros resultados causados pelo mal. Teme-se o mal que
o mal provoca e no o mal em si, pois este pode facilmente se encontrar travestido de
bem, enganando a quem o deseja. Porm, sabido que o fruto do mal sempre provoca,
no homem, certo tipo de indigncia que o faz infeliz.179 Mas, teme-se, tambm, e com
grave preocupao, a prpria corrupo. Uma vez que o mal corruptor da natureza boa
e que tambm pode corromper o homem que natureza boa e criado a partir do nada,
portanto sujeito corrupo. Logo, teme-se a corrupo na prpria carne que implica na
corrupo da prpria vida, teme-se o definhar, teme-se o mal resultante de uma natureza
que j , desde muito, corrompida e tendente maior corrupo, a morte.
No h temor pelo desconhecido em si, mas pelo que ele pode trazer nas suas
sombras, no h temor pelo futuro, mas pelo que ele pode reservar para o homem
inexoravelmente sujeito ao tempo. Assim, todo medo provocado pelo receio de, por
qualquer razo, deparar-se com o mal. Mas, o mal temido o mal que pode ser sofrido
178
Para a filosofia crist, assim como para a teologia, impossvel que o mal proceda do bem. Ver Santo
Toms de Aquino, Sobre o Mal, Art. 3. I.
179
De beat. vit.. IV, 28.
66
e, jamais o mal que pode ser realizado, posto que esse ltimo encontra-se entranhado na
natureza humana que, como j visto, est sujeita condio em que non posse non
pecare ( impossvel no pecar). E enquanto ser sujeito condio de pecador, o
homem deseja a prtica do mal, por mais que queira dele livrar-se. Assim, no , de
fato, o mal praticvel que se teme, mas aquele mal que se pode sofrer, justa ou
injustamente.
180
Perceba-se essa presena em: Conf. VII, 9, 20 e VIII, 2; De civ. Dei VIII, 5, 6 e 8, IX, 4; De lib. arb.
II, 9, 26 e 10, 15; dentre outras diversas citaes e elogios facilmente encontrados.
181
C.f. Rep., VII.
182
PEGORARO, 64.
67
primeiros. Em suas palavras: Com efeito, tudo que por causa de outra coisa, merece
necessariamente menos estima do que aquilo por causa do qual .183 Assim, o Bispo
anuncia, a exemplo de Plato, certa escala de valores, na qual os critrios estabelecidos
so muito semelhantes em diversos aspectos, pois ele considera uns bens superiores aos
outros, segundo a origem de cada um, bem como, segundo sua potencialidade para
originar outros. Plato, no seu Timeu, j havia feito tais consideraes acerca da origem
e da potencialidade das coisas, visando estabelecer os seus valores na escala. Portanto, a
busca parece ser a mesma, uma vez que Plato, em seu mito da Caverna, assim como
Agostinho, no xtase de stia, procura o sol da verdade.
De mag., IX.
Conf., IX, 10, 23.
68
jamais tenha escrito um tratado tico, nessa hierarquia, que se faz presente ao longo de
toda a sua busca pela vida feliz, que se revela o seu senso tico-moral.
Em sua escala de valores Plato indica que aquilo que eterno (ou simplesmente
aquilo que ) a melhor causa e o melhor modelo. Ele estabelece que entre as coisas
nascidas no h o que seja mais belo do que o mundo, sendo o seu autor a melhor das
causas.185 Essa idia apia-se na percepo de que se este mundo belo e for bom o
seu construtor, sem dvida nenhuma, este fixara a vista no modelo eterno.186 Para
Plato a efemeridade no apresenta valor em si mesmo devido ao seu alto grau de
mutabilidade. Numa viso bastante anloga, Agostinho entende que a corrupo se faz
presente em todos os bens mutveis, portanto em todo bem criado187. Por isso, o que
eterno ganha, tanto para Plato quanto para Agostinho, o status de valor por excelncia
e at de valor em si mesmo. Ento, aquilo que nasceu necessita ter como referncia um
modelo imutvel, que lhe servir de modelo para o estabelecimento dos seus prprios
valores. At este ponto Agostinho concorda com Plato. Deve haver um modelo eterno
que possibilite a atribuio de valores diferenciados aos seres. Este modelo serve como
medida do ser, pois seria ele o nico arqutipo de ser incorruptvel, uma vez que
eterno e imutvel.
Na filosofia agostiniana a partir da aproximao ou do afastamento da
aparncia com o modelo eterno e imutvel que se referencia, sem nenhum relativismo, o
quanto cada ser bom ou mau. H relatividade apenas entre os seres, mas jamais entre o
ser e o modelo.
185
Tim., 29-a.
Ibdem, 29-a.
187
C.f. De nat. bon.. III.
186
69
191
188
70
193
71
Sob que ponto de vista o homem pode ser considerado superior a todos os
demais animais na escala de perfeio dos seres? O domnio que , pelo ser humano,
exercido sobre todos os animais o primeiro argumento proposto. Agostinho afirma que
os animais domados e domesticados pelos homens, os dominariam [...] se os homens
194
Ibid.. V.
Ibid.. V.
196
Ibid.. V.
195
72
Para Agostinho existe uma articulao das naturezas dos bens de maneira que
cada uma em sua completude, e a despeito da sua possvel corrupo, parte integrante
de um mundo que belo. Alm disso, a beleza desse mundo compe-se justamente da
ordem articulada sob a qual todas as coisas se apresentam, no podendo ser afetada,
nem mesmo pela corrupo dos bens que formam o mundo. As naturezas receberam a
197
73
sua bondade quando foram ordenadas de maneira tal, que as mais fracas se subordinam
s mais fortes, as mais frgeis s mais duradouras, as menos potentes s mais
poderosas.200 Desarticular, ou seja, corromper, essa ordem destruir, ou diminuir, a
bondade de cada natureza. Trata-se, pois, de uma ao do mal sobre a natureza e no do
contrrio, embora que o bem corrompido perca a potencialidade para realizar a sua
finalidade, perdendo tambm a sua prpria natureza de bem e tornando-se em mal.
Essa hierarquia das naturezas dos bens tem uma significao muito forte na
compreenso da influncia do mal sobre a felicidade. Posto que, na ordem das coisas
feitas a partir do nada (ex nihilo factae), nenhuma que seja feita inferior ao spiritus
rationales poder ser feliz ou infeliz.201 Afinal foi a esses espritos mais excelentes que
foi dada a condio de subtrair-se corrupo, obedecendo plenamente lei eterna que
o prprio Deus.202 Antes mesmo de tratar das questes que envolvem a origem do mal,
ou de investigar como ele se faz perceber, basta, por hora, apenas reconhecer que ele se
manifesta enquanto ser, ou no ser203, e que afeta a ordem, o modo e a espcie, ou seja,
que corrompe a prpria natureza dos bens204.
Entendendo, que os bens corrompidos tm a sua potencialidade diminuda, ou
mesmo destruda, pela corrupo, no podendo, desta forma, exercer plenamente a sua
finalidade, isto , suprir as carncias necessrias felicidade de quem os possui,
Agostinho lana-se numa incansvel busca pela origem do mal. De onde vem e o que
a corrupo que afeta a ordem, o modo e a espcie das naturezas dos bens?
200
74
75
Ento, o mal no tido como ser por identificao com uma substncia, mas
simplesmente por identificao com a ao prtica moral, ou com a punio que
tambm um agir moral, ou, ainda, com a prpria carncia que se no ser, mas
identidade.
E eis que a dor mesma, que alguns consideram o mal precpuo, d-se
quer na alma, quer no corpo, no pode existir seno nas naturezas
boas. Com efeito, o que resiste dor recusa, de certo modo, deixar de
ser o que era, porque era algum bem. Mas a dor til quando obriga a
natureza a ser melhor; se porm a leva a ser menos boa, ento
intil.206
205
206
76
207
De lib. arb.. I, 1, 1.
77
78
pois se investiga pelo caminho inverso, busca-se a sua origem, a fim de encontrar uma
fuga, uma vez que j foi experimentado de diversas formas.
Agostinho, assim como Plato, lana-se ao desafio de observar o bom e o belo
sob o prisma de hierarquizao das naturezas dos bens. mister perceber que para estes
dois filsofos o bom e belo esto representados, em sua forma perfeita, apenas, e to
somente, naquilo que perennis, pois s na aeternitas se encontra aquilo que
incorruptvel. O devir, por sua vez, apenas uma imagem, uma mera imitao, da
perfeio encontrada nos modelos platnico e agostiniano (para este ltimo, o prprio
Criador). Na filosofia agostiniana, que sempre esteve sob forte influncia platnica, os
bens so valorados conforme a sua perpetuidade ou efemeridade, pois tudo aquilo que
se destri, que perece, que se pode perder, enfim, tudo que pode sofrer mudanas no
transcorrer do tempo, como riquezas, reputao e sade so bens inferiores.
Embora sejam evidentes as diferenas entre a filosofia de Agostinho e a de
Plato, h algo em comum quando se trata dos valores superiores que estariam
representados naquilo que sempre e nunca teve princpio.
209
209
210
79
algo se distancia do perfeito, torna-se cada vez mais imperfeito. Logo, o mal est
ontolgica e metafisicamente expresso neste afastamento entre o devir (brevis) e o
eterno (aeternitas). Esse distanciamento s possvel, segundo Agostinho, porque uma
coisa ser criado com vistas em um modelo e outra ser criado a partir da substncia
do modelo. Assim, se a criao fosse substncia do modelo, a corrupo no seria
possvel, pois a natureza do modelo eterno incorruptvel devido ao carter de
imutabilidade do seu ser.
211
De nat. bon.. X.
Ibid., X.
213
Ibid.. XVII.
212
80
214
215
81
A fatalidade da diferena entre criatura e criador, isto , entre aquele que devm
e nunca e aquele que no tendo incio sempre foi, no explicao suficiente para a
origem do mal enquanto corrupo das naturezas dos bens. Nem, tampouco, soluo,
afirmar que o mal no nada e que se apresenta como simples ausncia, pois os seus
danosos efeitos so facilmente perceptveis. Uma vez que a natureza criada boa, seria
necessria, para explicar a vivncia do mal, a existncia de um tal impulso que,
aproveitando-se mutabilidade das naturezas dos bens, iniciasse a corrupo neles
ocorrida. Pois, se o mal, do ponto de vista metafsico-ontolgico, no coisa alguma, a
corrupo uma ao modificadora do estado das naturezas dos bens. Ela avilta a sua
ordem, o seu modo, ou a sua espcie, causando um mal que se experimenta nas
percepes do corpo ou da alma.
Permanece, ainda assim, a dvida: qual foi o impulso que gerou a corrupo?
Seria necessrio um impulso vivo que utilizasse, de maneira intencional, a fragilidade
da natureza mutvel dos bens e a corrompesse? Ou seria o acaso o corruptor de tal
natureza? No h, na filosofia agostiniana, a possibilidade de um mal, ou qualquer outra
coisa, ser gerado como fruto do acaso (eis uma grande divergncia com o mundo
216
217
Ibid.. IX.
C.f. De nat. bon.. XVI.
82
contemporneo). Para ele o impulso da corrupo poderia vir de dois fatores: primeiro o
j mencionado castigo de Deus, que embora seja justia, aparece sob forma de mal para
quem o sofre;218 segundo a ao volitiva do homem que corrompe o bem na tentativa de
ser feliz. O primeiro fator pode ser descartado, pois os castigos a que Agostinho se
refere, como j foi dito, no so males, mas justia. Ento resta o segundo fator, que o
prprio Santo Agostinho v assim: o pecado no consiste, como eu j disse, no
apetecer uma natureza m, e sim na renncia de outra, superior, de sorte que o mal
essa mesma preferncia, e no a natureza de que se abusa ao pecar.219 Parece, ento,
que a origem da corrupo pode ser encontrada naquele mal que ocorre em virtude do
defeito moral, que impulsiona o homem a renunciar a natureza superior.
Observe-se, ento, que o mal moral , sobretudo, ao efetivada pelo homem,
que criado bom220, assim como toda natureza, se deixou corromper pelo mau uso do
bem que havia recebido221, o livre-arbtrio da vontade.222 Tornando-se, a partir de ento,
prisioneiro de uma natureza corrompida que o faz voluntrio pecador. , ento, o mal
moral, nico mal volitivo, aquele impulso que se procurava, aquele que originou a
corrupo das naturezas dos bens.
Se o mal fosse gerado apenas a partir da diferena das substncias efmera e
eterna surgiria uma srie de problemas: primeiramente, representaria um aprisionamento
absoluto da criao no mal, no havendo possibilidade de liberdade. Depois, a prpria
diferena implicaria em ser boa uma natureza e outra no, contrariando aquilo que j
havia sido ensinado: que toda natureza criada boa. Retiraria, tambm, qualquer
responsabilidade do homem, pois a volio no existiria nesse caso, tornando toda pena,
seja ela humana, ou mesmo divina, injusta. Se o mal nascesse apenas dessa
218
83
84
que existe uma corrupo das naturezas boas dos bens a partir de uma ao humana que
proveniente de um ser corrompido pela prpria vontade. Assim, afirma o Sbio Bispo:
Esse pequeno trecho de A Natureza do Bem ratifica o que acima foi exposto, o
mal moral ao voluntria fruto de uma determinada escolha que por sua vez de total
responsabilidade daquele que a faz. A escolha entre os bens superiores e inferiores, ou
seja, entre a obedincia lei eterna ou lei terrena, , portanto, ponto crucial do mal
227
85
moral, visto que dela que transcorrem todas as conseqncias. Agostinho considera
que cometer o mal (malefacere) abandonar aqueles bens que se atinge e se goza por
meio da alma, que no se perde por nenhuma razo, e optar por aqueles bens cuja
conquista e o gozo do-se no corpo, sem qualquer segurana ou perspectiva de
continuidade.230 O forte atrativo das paixes poderia ser superado pelo uso correto da
razo231 que proporcionaria escolhas corretas, entretanto no isso que ocorre, pois o
homem, sente-se impulsionado a fazer aquilo que suas paixes determinam como sendo
bom.
86
87
O ponto crucial da questo est no fato de que a vida feliz no pode ser
alcanada atravs de meios corrompidos, ou corruptveis. Ela precisa, outrossim,
realizar-se na segurana daquilo que verdadeiramente moral e, sobretudo, virtuoso, ou
seja, naquilo que bom e belo, por conseguinte, no eterno, imutvel e plenamente
seguro, pois, na viso ofertada pela filosofia agostiniana, a vida feliz acontece num
relacionamento direto com Deus.236 O problema que as foras empregadas pelo
homem na busca pela felicidade, nem sempre so direcionadas pelos caminhos que
realmente podem lev-lo a experimentar o to sonhado estado. Os seus amores so
indicadores do destino de sua alma, assim, aqueles que amarem a retido encontraro a
recompensa divina, mas aqueles que amarem a estultcia deparar-se-o com a punio
eterna. As recompensas e castigos, freqentemente mencionados por Agostinho, so
resultados das aes morais do homem.237 Da se perceber que quando a vontade
humana est declinada para aquilo que agradvel a Deus, ou seja, para aquilo que
moralmente aceito por Deus, o homem encontra redeno e no contrrio a sua
condenao, afastando-se da possibilidade da vida feliz. Pois, o pecado amor a si
mesmo at o desprezo por Deus.238 Agostinho conduz, ento, os seus leitores a
perceber que a busca pela felicidade, universal, no h um homem sobre a terra que
no deseje ser feliz. Trata-se, portanto, de uma busca inconsciente, na qual todas as
aes humanas so exercidas com o objetivo de perseguir a felicidade, uma busca
instintiva, por assim dizer, posto que o homem procura a vida feliz sem mesmo se dar
conta.
236
88
Ora, Agostinho considera que mesmo que no seja aceita, a lei eterna quem
define os reais padres de justia e que dela no se pode fugir. E tal padro de justia
indispensvel para o alcance da verdadeira felicidade, pois ele quem define a
qualidade moral das atitudes que o homem utiliza para tentar alcanar a vida feliz. Neste
sentido, ele busca a Verdade que expressa a justia divina, justia esta que inabalvel
e imutvel, capaz de julgar corretamente o homem frgil e sujeito temporalidade.
Sobre essa questo o professor Marcos Costa observa que:
239
240
89
felicidade,
ento,
segundo
essa
linha
de
pensamento,
firma-se,
Se a vossa justia desagrada aos maus, com muito mais razo lhes
desagradam a vbora e o caruncho que criastes bons e adaptados s
partes inferiores dos seres criados, s quais os prprios malvados so
tanto mais semelhantes quanto mais diferentes de Vs.242
Nisto se v que o senso agostiniano de corrupo moral tem reflexo direto sobre
a corrupo metafsica e vice-versa, pois se aproximar de vboras e carunchos,
apartando-se de Deus significa simplesmente que o mal moral danifica a natureza boa
impondo-lhe maldade a ponto de distanci-la do seu modelo original. Assim, essa
substituio da justia eterna pela justia temporal leva o homem a distanciar-se da
aparncia do modelo perfeito e aproximar-se daquela aparncia que ele mesmo julga
inferior. Na corrida pela felicidade , segundo Santo Agostinho, a lei eterna que deve
ser levada em considerao, pois a partir de sua imutabilidade que so definidos os
justos e os injustos, os bons e os maus, separando assim, o grupo dos amantes da
241
COSTA, Marcos Roberto Nunes. O lugar da justia na doutrina tico-poltica de Santo Agostinho. In:
STEIN, Ernildo. A Cidade de Deus e a Cidade dos Homens de Agostinho a Vico. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2004, p. 118.
242
Conf.. VII, 16,22.
90
Logo, para que os homens que pertencem ao grupo dos insensatos, chamados
por Agostinho de habitantes da Cidade Terrena, pudessem, de fato, chegar vida feliz,
precisariam justamente mudar-se para a Cidade de Deus, atravs do arrependimento.
Sobre isso ele afirma com certo ar de desesperana: No ignoro o esforo necessrio
para convencer os soberbos de todo o poderio da humildade.244 Refere-se a um povo
que tem como valor apenas o realizar a sua prpria vontade, no admitindo a
possibilidade da vera caritas, assim o absoluto no lhes faz sentido e no lhes parece
caminho para a felicidade. Fazer tudo que se deseja, segundo Agostinho pode tornar o
homem cada vez mais miservel.
COSTA, Marcos Roberto Nunes. O lugar da justia na doutrina tico-poltica de Santo Agostinho. In:
STEIN, Ernildo (Org.). A Cidade de Deus e A Cidade dos Homens de Agostinho a Vico Festschrift
para Lus Alberto de Boni. 1a. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 121.
244
De Civ. Dei.. Prlogo.
245
Ep. 130. 5, 10.
91
Fazer tudo o que se deseja, em geral afasta o homem da verdadeira justia, e, por
isso, no garante a conquista da vida feliz, pelo contrrio expe-no a possibilidade da
misria absoluta. Assim, as escolhas do cotidiano devem estar sujeitas lei eterna. Pois,
a verdadeira liberdade encontra-se na capacidade de utilizar corretamente o livrearbtrio da vontade e nisso consiste tambm a justia e a felicidade. Pois, se o caminho
da verdade permanecer oculto, de nada vale a liberdade, a no ser para pecar.246 So
quatro grandes questes envolvidas nesse problema: a Verdade, a Justia, a Liberdade e
a Felicidade, todos iniciados com letra maiscula e precedidos pelo artigo definido, pois
se trata de valores absolutos. Porque, a capacidade de fazer escolhas corretas implica em
conhecimento da Verdade, em aplicao da Justia, em exerccio da Liberdade e em
conseqente alcance da verdadeira Felicidade. Entretanto, tal capacidade no se d por
mritos humanos, Agostinho afirma que:
246
247
92
para tornar-se, verdadeiramente, livre ela precisa ser completamente curada, porm,
enquanto a cura no se concretiza, pois vai acontecer somente na eternidade, a vontade
humana deve ser guiada, por aquela Vontade que perfeita, a de Deus.
Agostinho, conforme se viu no captulo que trata da busca pela vida feliz,
sempre considerou a busca pela felicidade uma atitude universal, ele admite ao longo de
toda sua carreira filosfica e religiosa que todos os homens desejam ardentemente a
felicidade e a procuram pelos mais diversos caminhos. A concluso inevitvel: a
vontade do ser humano voltada para felicidade. Esta concluso comprovada nesta
pequena parte do dilogo De libero arbitrio em que Agostinho questiona o companheiro
Evdio: Mas na tua opinio haver um s homem sequer que no queira e deseje, de
todos os modos, viver a vida feliz?248 Ao que o amigo responde prontamente: Todo
homem a deseja. Quem pode duvidar disso?249 A partir deste ponto a dvida levantada
gira em torno da razo pela qual nem todos os homens que desejam a vida feliz a
conquistam, surge ento a seguinte observao:
Com efeito, aqueles que so felizes para isso preciso que sejam
tambm bons no se tornaram felizes por terem querido viver vida
feliz visto que os maus tambm o querem. Mas sim, porque os justos
o quiseram com retitude, o que os maus no quiseram.250
Agostinho afirma que os so felizes precisam ter duas caractersticas para assim
o ser: bondade e justia. Claro que o juiz dessas duas qualidades, altamente subjetivas,
diga-se de passagem, deve encontrar uma referncia imutvel de bondade e de justia
248
93
para que possa atribu-las, ou no, ao homem. Assim, tal juiz deve tomar como base a
lei eterna, pois ela o padro de retitude e imutabilidade. Ela a referncia dada pelo
prprio para que se possa julgar as decises tomadas pelo homem no uso do livrearbtrio da vontade. Ento, lei eterna que a vontade deve se moldar; so os desgnios
morais da eternidade que devem constituir a virtude do homem, modelando a sua
vontade e lhe possibilitando a tomada de decises certas que o podem conduzir no rumo
da felicidade. Ento, em um pensamento paradoxal, Agostinho afirma que a vontade do
homem verdadeiramente livre quando ele realiza a vontade de Deus:
A livre vontade ser tanto mais livre quanto mais for saudvel; e ser
tanto mais s quanto mais dependente da merc e graa do Senhor.
Por si mesma, a vontade suplica e exclama: Firma os meus passos na
tua palavra; e no me domine iniqidade alguma (Sl 119, 133). Como
pode ser livre uma vontade dominada pela injustia? Observe-se,
alis, quem aquele que invocado a fim de escapar-se dessa
dominao. No se diz dirige meus passos de conformidade com meu
livre-arbtrio, mas dirige meus passos na tua palavra. uma orao
e no uma promessa; uma confisso e no uma profisso; um anseio
por plena liberdade e no uma ostentao de capacidade prpria.
252
94
fato de desejar somente aquilo que a lei lhe permite. Neste caso a deciso nem
consideraria se a lei probe ou permite, simplesmente faria de acordo com a lei, por que
esse seria o seu livre desejo. Assim, vendo como pecado tudo aquilo que se ope lei,
Agostinho afirma: No se pense que, visto os pecados j no poderem causar-lhes
prazer, no tero livre-arbtrio. Sero tanto mais livres quanto mais livres se vejam do
prazer de pecar, at conseguirem o indeclinvel prazer de no pecar.253
Mas, esta realidade, esta mudana interior, est prevista para acontecer no
sbado eterno, ou seja, na concretizao da Cidade de Deus, onde o homem estar
numa realidade espiritual completamente livre das efemeridades da vida terrena. Neste
estado, o livre-arbtrio da vontade no encontraria nenhum tipo de tenso com a vida
feliz por que um estaria concretizado no outro, a vontade seria pura e incorrupta e no
existiria possibilidade de nova corrupo. A pergunta : esta aproximao entre a busca
da felicidade e o livre-arbtrio da vontade possvel nesta vida?
Enquanto a busca no for finalizada, ou seja, enquanto o bem supremo no for
encontrado e possudo, o que ocorrer de maneira definitiva, o livre-arbtrio continuar
sujeito vontade corrupta. Desta forma sempre haver uma tenso impondo e
quebrando limites. Posto que a Sabedoria seria o nico elemento capaz de tornar essa
tenso nula, entretanto o prprio Agostinho afirma:
95
254
96
CONCLUSO
ARENDT, p. 24.
De Lib. Arb. I, 13, 27.
97
enquanto tal um fim existencial,257 pois mera tentativa de sentir-se eterno. Vista por
esse ngulo, a vida parece um grande mergulho no escuro, pois no conseguindo
realizar-se no presente e no sendo suficiente no passado, projeta-se no futuro
alicerada nessa tal perspectiva de eternidade. O que o homem tenta esquecer, portanto,
no a vida, nem a morte, o compasso do tempo. Isso lhe traz a sensao de
eternidade, entretanto, permanece toda a intranqilidade do porvir. O futuro mais que
um mistrio a ser desvendado, o lugar, por assim dizer, onde so projetados os
desejos de ser e ter, a finalidade existencial. finalidade, pois sempre ali, no futuro,
que o homem se v plenamente realizado, entretanto o futuro expectativa e logo ser
presente e depois passado.258 Mas, esse ritmo incansvel imposto pelo tempo, faz o
homem angustiar-se, tambm, diante da ansiedade que o desejo exposto s duras
medidas do tempo, ou seja, a felicidade que se projeta para o futuro desejada no agora.
Essa espera angstia, pois nela a vida no se realiza. A busca pela vida feliz , ento,
uma ingente tentativa de escapar dessa angstia que torna a realizao do homem uma
mera expectativa de um futuro que jamais se consolida como presente, envolvendo-o
num estado de desejo e medo.
Assim, a eternidade, por si s, no basta, no soluo, necessria a eternidade
em Deus. Santo Agostinho vaticina a vida feliz na realizao do sabbato sine fine259
(sbado perptuo), que o encontro definitivo com o Senhor, quando o homem realizarse- como concluso da obra planejada, como plenificao do fruto da criao, cujo
modelo foi o prprio Criador.260 Quando no mais viver sujeito ao tempo e s
instabilidades por ele provocadas, e a morte no mais existir, logo, no ser mais
257
ARENDT, p. 31.
Ver Conf., XI.
259
C.f. De Civ. Dei., XXII, XXX.
260
Diferente de Plato que julgava existir um modelo eterno que diferia do criador do Universo, ou do seu
organizador, o Demiurgo (Ver o Timeu 27a em diante), Agostinho considera que o modelo do Universo
o prprio Criador, Deus.
258
98
temida. Por isso, entende-se que o homem no est lanado ao devir como se ali devesse
se realizar, mas ali est lanado de forma didtica, para que adquira a perfeita
compreenso do contraste que existe entre o presente mutvel no qual se encontra cheio
de ansiedades e a eternidade imutvel para a qual caminha.
Diante do acima exposto, foroso observar que a teleologia agostiniana se
divide em duas grandes vertentes: teleologia para a humanidade (escatologia) e a
teleologia para o homem (sotereologia). Logo, possvel observar que, para o Doutor da
Graa, o fim escatolgico, ou seja, o fim do homem enquanto participante da
humanidade simplesmente a eternidade, porm o seu fim enquanto pessoa (indivduo)
moralmente determinado nesse curto perodo chamado vida, a saber, a salvao ou a
danao da alma.261 Entende-se, necessariamente, sob o ponto de vista da sotereologia,
que o homem no caminha simplesmente rumo a morte fsica como se esta fosse o fim,
mas que ele est, to somente, caminhando para a morte com a ardente expectativa de
encontrar a eterna felicidade, que s se consolida na presena de Deus. E essa
eternidade destino prprio do homem, enquanto possuidor de alma imortal, que gozar
do esplendor da vida feliz ou gemer na dor da condenao.262
Quanto finalidade da humanidade, para Agostinho, ela no se restringe ao
mero perpetuar da espcie, como desejo quase irracional que se d simplesmente pela
continuidade daquilo que o homem, desinteressado pela sua prpria motivao, faria por
mero instinto.263 Mas, a finalizao de uma histria consciente e planejada que leva a
Cidade de Deus em um curso reto e objetivo em direo eterna quietude. Existe, sob a
tica espiritual apresentada ao longo da vastssima obra de Santo Agostinho, um telos
metafsico para a humanidade enquanto sociedade de Deus. A nova Jerusalm celestial
um projeto comunitrio, o destino final para a gerao eleita, nao santa, povo
261
99
exclusivo de Deus.264 Por isso mesmo, no admite, nem em nada se assemelha, com as
teorias gregas de uma histria cclica, ou muito menos, com o eterno retorno que
Nietzsche anunciaria sculos mais tarde. Uma vez que o fim da histria transcende o
tempo e o espao conhecidos para realizar-se fora de ambos.
Assim, imbudo dessa expectativa de uma Jerusalm Celestial e de um destino
prprio para o homem enquanto partcipe da Cidade de Deus ou da Cidade dos Homens,
Agostinho faz, na sua filosofia, uma convocao para a interiorizao, no saias de ti,
volta-te para ti mesmo, a verdade habita no homem interior.265 nessa introspeco
que o homem transcende e, ali, encontra-se com Deus, no seu interior, onde habita a
Verdade, na alma, sede da vida feliz.266 Essa transcendncia esperana e segurana
da salvao que se d enquanto dom exclusivo de Deus, na esperana fomos salvos, e
aguardamos com pacincia o cumprimento das tuas promessas.267 Tal segurana,
embora totalmente sujeita a f, felicidade presente, porm ainda no concretizada,
pela f que comeamos a ser curados, mas nossa salvao ser perfeita quando este
corpo corruptvel for revestido da incorruptibilidade e quando este corpo mortal for
revestido de imortalidade. Essa esperana, no ainda realidade.268 nessa ao
ntima que, partindo do interior do homem, transcende em direo a Deus, que
Agostinho supera o tempo, trazendo para o presente, por meio da f, aquilo que s se
consolidaria num futuro ainda desconhecido. A esta relao transcendente, Agostinho
viria chamar de amizade, pois feliz quem possui a Deus,269 e se corrigindo mais
tarde, diz, ser feliz quem possui a Deus como amigo270 e mais adiante aperfeioa
264
I Pe. 2:29
De Vera Rel. 39, 72.
266
De Beat. Vit. IV, 34.
267
Conf. XI, 9, 11.
268
In Joannis 8,13.
269
De Beat. Vit. III, 17.
270
Ibid. III, 19.
265
100
271
101
toda esperana que lhe traz o sonho intimista da relao transcendente com Deus.
Mesmo no aspecto imanente ainda a f, representada pela esperana, que possibilita
essa movimentao das lembranas e perspectivas entre passado e futuro. Porm, esta
no uma f que nega a racionalidade, pelo contrrio, a f procura e a inteligncia
encontra,274 assim, a introspeco que Agostinho faz, no busca somente o divino, mas
tambm o j-vivido, para entender a possibilidade de experimentar a vida feliz, ainda
nesta vida.
Esta vivncia passada nada mais que se perceber alegre no tempo j-vivido e
encontrar nisso a semelhana necessria para apetecer a felicidade enquanto esperana
para o futuro.276 Para Agostinho as coisas no so apenas o que os homens pensam
delas, mas o homem pensa algo delas, justamente, porque so.277 na realidade, ou
pelo menos no que dela se pode observar, que ele encontra o seu desejo pela vida feliz e
, tambm, nela que ele busca o seu caminho. Assim, entre o rememorar o passado e o
esperar o futuro, que perpetuar as alegrias outrora experimentadas, que o homem se
pode dizer feliz no presente. Mas, s poder dizer-se feliz se nessa busca j tiver
encontrado, na intimidade da alma, a presena de Deus, pois todo o que ainda busca a
Deus tem-no benvolo, mas ainda no feliz.278 Destarte, at mesmo as respostas
274
102
Ento, mesmo nesta vida terrena a vida feliz s atingida com a ajuda divina.
Posto que encontrar-se feliz atravs das lembranas do passado projetadas no futuro s
possvel atravs de uma sabedoria que permita ao homem ignorar at mesmo o
sofrimento fsico pelo qual passa, ou ao qual se sujeita como possibilidade de
279
Contra duas cartas, I, II, 5. In: EVANS, G. R. Agostinho sobre o mal. 1a ed. So Paulo: Paulus,
1995, p.189.
280
EVANS, p. 190.
103
sofrimento. E alm de passar por esse sofrimento sem o sentir na alma, necessrio
remeter os seus desejos somente em direo quilo que pode efetivamente ser
possudo.281 Deste modo, a felicidade no tempo presente est sujeita ao pleno exerccio
da sabedoria divinamente concedida ao homem: que sabedoria ser digna desse nome,
a no ser a Sabedoria de Deus?282 somente numa perspectiva, meio estica meio
crist, que o livre-arbtrio da vontade estaria livre da grande tenso com a busca pela
felicidade. Pois, a razo estaria sobrepujando as paixes pelos bens de ordem inferior
que tanto corrompem o homem, pois so apreciados apenas no corpo e de maneira
completamente efmera.283 A vida feliz, nesta etapa da existncia, , nestes termos de
amizade com Deus, realizada na prpria busca. Pois tal busca um bem e mesmo que
tenha os seus caminhos corrompidos, enquanto busca sempre ser um bem, at que
desaparea a carncia que lhe faz assim ser um bem. Ou seja, at que venha a plenitude,
o homem encontrar-se- feliz na transitoriedade da busca que faz dele um ainda-no
caminhando para um eternamente-sim encontrado na plena sabedoria de Deus e na
comunho com a Trindade.284 Ento, essa no a verdadeira e definitiva felicidade, pois
a busca, embora seja um bem, transitria. Alm disso, Agostinho defende que s
feliz quem vive do jeito que quer e, nessa vida, ningum, nem mesmo os sbios, vive
como quer, pois est sujeito s intempries da vida.285
A felicidade, na perspectiva agostiniana, caracteriza-se por realizar-se sempre na
segurana do eterno. Considerando o absoluto como fundamento insubstituvel de sua
sustentao. Sob o ponto de vista contemporneo o pensamento de Agostinho, sobre a
felicidade, poderia ser considerado anacrnico ou completamente perempto, uma vez
que a relativizao eclodiu com fora total, superando toda tendncia absolutista.
281
104
Entretanto, reler Santo Agostinho, nesse sentido, reconsiderar a busca pela felicidade
como experimento pessoal, altamente subjetivo, e, ainda que embasada no dorso da f
crist, reconhecer que uma procura eminentemente existencialista a despeito de toda
metafsica e teleologia ali empregadas. Nessa ingente e incessante busca, Agostinho
referenda uma realidade que completamente externa ao homem, Deus, por isso lhe
serve como base, talvez como o ponto de apoio que Arquimedes tanto procurou para
mover o mundo. Porm, ele no queria mover outro mundo, se no aquele que se
encontrava no seu prprio interior, evitando em seu presente a dor que um homem, num
longnquo futuro, expressaria nos gemidos de sua poesia dizendo a respeito da sua
prpria felicidade:
286
NIETSCHE, Friedrich. A Gaia Cincia. 1 ed. Traduo: Jean Melville. So Paulo: Martin Claret,
2005. (Coleo a obra-prima de cada autor). Prlogo.
105
humanidade e do destino. Por isso se diz que: A coerncia incoerente e confusa faz de
Agostinho um pensador do sculo XXI, um existencialista e um fenomenlogo muitos
sculos antes que estas teorias aparecessem: ele nosso contemporneo.287 Trazer
Agostinho de volta, seria trazer a moral num status de fundamento absoluto, mas seria,
sobretudo, rever a felicidade como objeto interior, porm na perspectiva de uma
realidade impressa do exterior.
Nisso se v que a filosofia agostiniana torna-se importante no pensamento sobre
a felicidade por duas razes antagnicas: por sofrer grande influncia grega e por
romper, em determinado momento, com alguns pontos dessa influncia, sem, contudo,
abandon-la jamais. A primeira grande ruptura foi com a sabedoria humana,
submetendo-a incondicionalmente a Sabedoria de Deus, neste sentido ele ensina:
Com tal sujeio ao conhecimento divino que se repete em muitos outros textos
de Santo Agostinho, e especialmente, para este estudo, em De Beat. Vit. VI, 36, pois ali
est relacionando diretamente a Sabedoria de Deus felicidade do homem, o professor
287
PEGORARO, Olinto. tica dos maiores mestres atravs da histria. 1a ed. Petrpolis, RJ: Vozes,
2006. p. 76.
288
In Joannis 29, 6.
106
Idalgo Sangalli entende que o homem perde a autonomia de conhecer por suas prprias
faculdades a verdadeira verdade e chegar felicidade. 289 De fato, isso que Agostinho
prope, a Verdade em termos absolutos, inalcanvel pelos esforos humanos, visto que
infinita e o homem finito. E agora, neste mesmo ponto, encontra-se outra ruptura,
rompe-se, justamente, com a autonomia do homem. Para Agostinho o homem no
autnomo, inteiramente dependente de Deus, inteiramente sujeito a Ele e sua
vontade. Se os gregos professavam um homem virtuoso pelos seus prprios esforos,
Agostinho apresenta a medida do ser baseada to somente na pessoa de Cristo.
Agostinho rompe, tambm, com a relativizao do saber, apontando para a Verdade
absoluta centrada, tambm, na pessoa de Cristo, que o prprio Deus e, por
conseguinte, a prpria Sabedoria. E como principal ruptura, volta-se a falar naquilo que,
mencionado neste mesmo tpico, julga-se ser a maior ruptura em direo a vida feliz,
rompe-se com a relao imanente-transcendente dos gregos e entrega-se ao puro
transcendental que a plenitude da relao com Deus.
289
SANGALLI, p. 98.
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