Abrantes - Do Método Biográfico em Sociologia Da Educação
Abrantes - Do Método Biográfico em Sociologia Da Educação
Abrantes - Do Método Biográfico em Sociologia Da Educação
Resumo:
No presente artigo, discutem-se as oportunidades e desafios da aplicao do
mtodo biogrfico na pesquisa em sociologia da educao, partindo de uma
discusso terico-metodolgica e propondo algumas condies e pistas profcuas
para a consolidao desta linha de trabalho. Assente numa reviso bibliogrfica,
esta reflexo sobre o mtodo desdobra-se em trs nveis de abstraco: (1) no
contexto histrico e internacional das cincias sociais, como um todo; (2) no mbito
da sociologia da educao, como se tem vindo a consolidar nas ltimas dcadas; (3)
no quadro do sistema portugus de educao de adultos, cujo enfoque actual nas
abordagens biogrficas nos confere, em simultneo, uma fonte inesgotvel de dados
e um convite estimulante sua desconstruo analtica.
Palavras-chave: metodologia, biografia, sociologia, educao
Abstract:
Opportunities and challenges in the application of the biographical method to
research in sociology of education are discussed, including an initial theoretical and
methodological debate in order to propose some accurate conditions and clues to
1
Doutoranda em Sociologia no ISCTE-IUL. Tcnica Superior do Instituto do Emprego e Formao Profissional, Lisboa,
Portugal.
3
reconhecidas
pelos
prprios
sistemas
educativos,
nomeadamente,
nos
aqueles
que
pretendem
expressar
ou
representar
fragmentos
vizinha,
qualidade
literria
destas
primeiras
obras
superava
desta forma, elaborar uma perspectiva mais rigorosa dessas condies, em figuras
emblemticas de movimentos sociais ou em momentos particularmente intensos de
transformao social (Revel, 2005).
Num movimento anlogo, tem-se vindo a afirmar uma inteligibilidade
sociolgica centrada no indivduo, na qual se procura restituir o sujeito, no quadro
da sua especfica experincia social de subjectividade, atravs do tringulo
memria-identidade-narrao, no cruzamento da noo necessariamente redutora
de trajectria com o conceito forosamente vago e dificilmente operacionalizvel
de vida (Conde, 1994 e 1996). Nesta linha, Denzen (1989) estabelece a diferena
entre vidas vividas, experimentadas e contadas,4 mostrando como estas
ltimas so influenciadas por aspectos estruturais, culturais e conjunturais, pelo
que cabe ao socilogo evitar a busca pela veracidade dos testemunhos todas as
histrias de vida so fices e, por isso, todas so, num certo sentido, verdadeiras
e, ao invs, descobrir que foras sociais, econmicas, culturais e interaccionais
moldam a percepo que o indivduo transmite ao investigador sobre a sua prpria
vida.
Devemos, pois, reconhecer as diferenas entre os modos de anlise
paradigmtico e narrativo, mas aceitar tambm que no so mutuamente
exclusivos (Bolvar, 2002) e que, alis, as cincias sociais, ao longo da sua histria,
tm sido marcadas por inmeros esforos, mais ou menos conscientes, de concililos.5
A vida vivida refere-se ao conjunto de acontecimentos na vida de uma pessoa; a vida experimentada s imagens, s
sensaes, aos sentimentos, aos desejos bem como aos significados que o indivduo atribui a um determinado acontecimento; e
a vida contada, uma narrativa, influenciada por noes culturais e pelas condies em que apresentada e pelo(s)
destinatrio(s).
5
A este propsito, significativo que, aps transcrever entrevistas a actores em diversas posies sociais, em A Misria do
Mundo, a derradeira obra de um dos principais crticos do mtodo (Bourdieu, 2005) seja uma anlise da sua prpria vida
escolar, profissional e intelectual, iniciada com a afirmao orgulhosa isto no uma auto-biografia para nos mostrar, em
seguida, como o mtodo biogrfico , afinal, compatvel com (ou enriquece mesmo) o seu quadro terico.
13
Em analogia, veja-se, por exemplo, como a aplicao do mtodo ao estudo da criminalidade se tende a reduzir
14
(mais
conscientes
intencionais),
as
disposies
distinguem-se,
Segundo o autor, apreender as matrizes e os modos de socializao que formaram tal ou tal tipo de disposies sociais
deveria ser parte integrante de uma sociologia da educao, concebida como uma sociologia dos modos de socializao
(escolares e extra-escolares) e articulada a uma sociologia do conhecimento. Preocupados durante muito tempo
principalmente com a questo da reproduo social pela famlia, a
escola
socilogos satisfizeram-se em fazer a constatao de uma desigualdade face s instituies legtimas (escola e outras
instituies culturais) e/ou de uma herana cultural e social intergeracional (famlia). Resumindo, poderamos dizer que
fora de insistir no isso reproduz-se, acabou-se por negligenciar o que que se reproduz e como, segundo que
modalidades, isso se reproduz
17
investigaes indicam tambm que, para muitos jovens, a socializao entre pares
se converteu no principal sentido da escola, sendo a utilidade das aprendizagens
formais, tanto para sua vida quotidiana como para o seu futuro pessoal e
profissional, muito questionada e frequentemente reduzida obteno pragmtica
do respectivo certificado. Reconhecendo que, obviamente, as aprendizagens no so
redutveis ao seu sentido consciente e intencional, em todo o caso, esta relao
distanciada com o lado formal da escola no deixa de limitar o seu potencial
formativo e transformador.
Neste sentido, salientamos o recente e interessante trabalho de Almeida et
al. (2010), enquadrado numa comparao internacional, no qual se estuda o percurso
de vrias famlias residentes numa cidade brasileira, ao longo de trs geraes,
enfatizando as experincias escolares, bem como os trajectos profissionais
subsequentes, como forma de compreender os processos de constituio e
transgresso de fronteiras sociais. O estudo mostra que as realidades educativas
disponveis para as diferentes classes sociais so profundamente distintas,
demarcando campos de possibilidades muito assimtricos, ainda que se identifiquem
tambm vias escolares que permitem a uma minoria, por uma combinao de
factores, atravessar as referidas barreiras sociais, consagradas pelas relaes de
produo.
8 Este impulso foi dado com a criao da Agncia Nacional de Educao e Formao de Adultos (ANEFA), posteriormente,
Direco Geral de Formao Vocacional (DGFV), estrutura integrana no Ministrio da Educao; hoje, Agncia Nacional para a
Qualificao (ANQ), voltando ao um modelo autnomo, sob a tutela conjunta da Educao e do Trabalho.
20
legtimo
discutir
os
motivos
pelos
quais
princpio
de
uma
Estes percursos formativos de dupla certificao, escolar e profissional, designam-se Cursos de Educao e Formao de
Adultos (Cursos EFA) e tm como ponto de partida um balano de competncias, baseado na histria de vida de cada
formando (vertida num Porteflio Reflexivo de Aprendizagens) e na sequente validao inicial das competncias j adquiridas
atravs das suas experincias de vida. Partindo-se do princpio de que no se deve voltar a aprender o que j se aprendeu, a
formao necessria validao das restantes competncias (exigidas pelo referencial de competncias-chave do nvel e
vertente de qualificao em causa) deve ser ministrada medida, tendo cada adulto de efectuar o seu prprio percurso
formativo, mais ou menos longo, conforme o nmero de unidades de competncia em falta.
10
O Processo de Reconhecimento, Validao e Certificao de Competncias (Processo RVCC), nas vertentes escolar e/ou
profissional, no um processo formativo, centrando-se nos saberes j adquiridos e desenvolvidos pelos adultos ao longo da
vida, em diversos contextos. Este processo tem por base estruturante a construo de um Porteflio Reflexivo de
Aprendizagens, ancorado no relato auto-biogrfico (produzido pelo candidato tendo como grelha orientadora o referencial de
competncias-chave). Pode desembocar directamente numa certificao total das competncias demonstradas pelo candidato,
com emisso do Diploma de Qualificao, ou numa certificao parcial. Neste segundo caso emitido um Certificado de
Qualificaes (em que constam as unidades de competncia validadas) e prescrito ao candidato um Plano Pessoal de
Qualificao (identificao das unidades modulares de formao que o candidato dever frequentar de forma a adquirir as
competncias correspondentes s unidades em falta).
21
para o tema do presente artigo, o que importa ressalvar que, ao abrigo desta nova
metodologia, muitos milhares de adultos, como parte do seu processo formativo
e/ou de reconhecimento de competncias, tm sido sujeitos a extensas entrevistas
biogrficas e elaborado, sob orientao, detalhadas histrias de vida.
claro que esta actividade no escapa s limitaes, iluses e autojustificaes que caracterizam a tradio erudita das autobiografias, alm de que
os constrangimentos dos autores, ao nvel da literacia escrita, reduzem, por vezes,
de forma considervel a riqueza das suas memrias orais. Alm disso, a bem do
rigor cientfico, necessrio advertir que se a abordagem (auto)biogrfica
assumida nestes programas se aproxima da utilizao do mtodo nas cincias
sociais, na medida em que visa a construo de um sentido vital dos factos
temporais (Couceiro, 2002: 31) e apela interrogao permanente,11 os prprios
referenciais assinalam tambm diferenas entre estes dois gneros (Gomes et al.,
2006). Assim, a (auto)biografia tem sido aplicada nos Centros Novas Oportunidades
fundamentalmente como instrumento para orientar o trabalho com os adultos e
para reconhecer as suas competncias, em permanente confronto com um
referencial de competncias-chave, enquanto a produo cientfica de histrias de
vida, como referimos anteriormente, implica uma orientao, mais ou menos
assumida, pela e para a teoria, ou seja, baseada em protocolos tericometodolgicos e pretende alargar o conhecimento cientfico (de uma pessoa, poca,
classe ou processo social).
Porm, considerando a amplitude dos conceitos de competncia e de
experincia geradora de competncias, podemos apreciar que as narrativas
produzidas pelos adultos so frequentemente muito investidas pelos prprios, sendo
verdadeiros espaos de reflexo de si para si e de transformao, potenciadora de
alteraes nas trajectrias de vida. Tendo sido produzidos para fins que se
11
Colocar-se face vida, atribuir-lhe um sentido, construir um pensamento legitimado pela experincia existencial,
compreender o modo como o sujeito se formou e deu forma sua existncia , de facto, um processo de interrogao, de
descoberta, de criao e no de adequao ou eventual transformao em funo de algo previamente definido e conhecido
(Honor, 1992 in Couceiro, 1995:360)
22
23
12
atravs da construo do seu Porteflio Reflexivo de Aprendizagens que cada adulto evidencia as aprendizagens que foi
efectuando ao longo da vida e as competncias que delas decorreram. O Porteflio Reflexivo de Aprendizagens (PRA) dos
candidatos um documento que se articula e decorre do Balano de Competncias. Ao contrrio de um dossier que compila
certificados e provas de aprendizagens feitas, o PRA enquadra-se num processo de investigao/aco/formao. Supe o
desenvolvimento de competncias meta-cognitivas e meta-reflexivas do adulto sobre o prprio conhecimento que devem, elas
prprias, estar evidenciadas no porteflio. A construo de um Porteflio desta natureza , assim, em si mesma, uma
experincia promotora de aprendizagens e de aquisio de novas competncias (Gomes et al., 2006).
24
Notas finais
(e
importante)
desenvolver
estudos
biogrficos,
cuja
validade,
27
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