Anais
Anais
Anais
Programa de Ps-graduao
em Psicanlise da UERJ
Psicanlise e sade: entre o Estado e o sujeito
ISBN: 978-85-88769-54-0
SUMRIO
Objeto do desejo e fetiche da mercadoria: a tica da psicanlise e a demanda perversa do
capitalismo...............................................................................................................................................5
Ligia Gama e Silva Furtado de Mendona
Interveno psicanaltica em UTI neonatal: uma interveno precoce?.........................................13
Alcione da Penha Vargiu Vasconcellos de Andrade
O sem sentido do sintoma e o furo no saber mdico..........................................................................20
Roseane Freitas Nicolau e Aline da Costa Jernimo
Os efeitos da cincia e do capitalismo nos sintomas da contemporaneidade..................................26
Anglica Cantarella Tironi
A concepo do sujeito fundada na categoria da identidade e suas implicaes para a clnica....35
Augusta Rodrigues de Oliveira Zana
Faro tudo o que seu mestre mandar?................................................................................................44
Cintia Ribelato Longhini, Taia Franco de Albuquerque e Wael de Oliveira
Pensando as possibilidades para a psicanlise nas clnicas escolas: a transferncia em questo..51
Emilie Fonteles Boesmans, Antnio Drio Lopes Jnior e Karla Patrcia Holanda Martins
Uma inveno para construir um corpo.............................................................................................58
Fabio Malcher
Psicanlise no batalho da polcia militar: uma aposta tica no sujeito..........................................66
Fernanda Cabral Samico
A direo do tratamento na clnica com anorxicas: a tica da psicanlise frente ao risco de
vida........................................................................................................................................................73
Francisco Anderson Carvalho de Lima, Erika Silva Rocha e Emilie Fonteles Boesmans
A tragdia, o trgico e a tica da psicanlise: dipo em colono e o desamparo.............................80
Isabela Vieira de Almeida
A psicanlise aplicada ao tratamento do autismo: a oficina de teatro como dispositivo clnico...86
Katia Alvares de Carvalho Monteiro, Martina Schneider Rodrigues e Marianna Miranda Bauerfeldt
As funes do diagnstico na psicanlise e na psiquiatria................................................................94
Leonardo de Miranda Ferreira
A presena do analista numa enfermaria de crise psiquitrica: uma aposta no sujeito..............100
Lorenna Figueiredo de Souza e Sonia Leite
O discurso psicanaltico e a modernidade: Foucault, leitor de Freud...........................................108
Luiz Paulo Leito Martins
O acompanhamento teraputico no servio de internao psiquitrico: a afirmao de uma
prtica clnica......................................................................................................................................117
Luiza Medina Tavares
RESUMO
Esse trabalho prope-se a investigara tica da psicanlise e sua relao com a
perverso, alm de abordar as semelhanas entre perverso e o discurso capitalista. Essa
questo nos implica uma vez que constatamos na cultura e na clnica prticas que sobrepem
tica e cerceiam a atuao psicanaltica. A tica se aproxima da perverso uma vez em que
ambas se distanciam de uma moral universal, no entanto, a busca incessante por gozos une o
perverso ao capitalista. Basearemo-nos, sobretudo, em Lacan, no seu seminrio sobre tica
(1959-1960/2008) e nos seu escrito sobre Kant e Sade (1966/1998).
Palavras-chave: perverso, tica, capitalismo.
RSUM
Cet article se propose d'enquter sur l'thique de la psychanalyse et sa relation avec la
perversion, en plus d'aborder les similitudes entre la perversion et le discours capitaliste. Cette
question nous implique une fois que nous remarquons des pratiques dansla culture et dans la
clinique qui se chevauchent l'thique et limite la pratique psychanalytique.
Lthiquesapproche de la perversion car tous les deux se distancient dune morale
universelle, cependant, la jouissancejoint le pervers au capitaliste. Notre recherche est surtout
dans la thorie de Lacan, specialment dans son sminaire sur l'thique (1959-1960/2008) et
dans son crit sur Kant et Sade (1966/1998).
Mots-cls: perversion, thique, capitalisme.
Esse trabalho prope-se a investigar, visto a pertinncia do tema deste Simpsio que
convida-nos a interrogar e evidenciar o papel da psicanlise entre o sujeito e o Estado, a tica
da psicanlise e sua relao com a perverso. Essa questo nos implica uma vez que
constatamos na cultura e na clnica prticas que sobrepem tica e cerceiam a atuao
psicanaltica, como podemos exemplificar atravs da recente campanha ocorrida na Frana
para proibir as equipes de sade em utilizar a psicanlise como abordagem para casos de
autismo. pela perverso que discutiremos a dimenso tica e seu distanciamento da moral,
alm de abordarmos sua afinidade com o discurso capitalista.
Devemos, no entanto, atentar para no confundirmos perverso com perversidade,
nem moral com tica. A perversidade facilmente percebida atravs da violncia alastrada em
nossos dias, nas condutas desviantes e antissociais que vo contra as leis morais,
impossibilitando a construo de laos sociais. A Histria nos fornece diversos exemplos,
como a criao nazista das cmaras de gs, as bombas de nitrognio, os muros de Berlim, na
atual Israel e na fronteira entre EUA e Mxico; no outro o cenrio que temos visto e
ouvido. Com Freud percebemos que esses atos classificados como perversos no predizem a
estrutura do sujeito. A ressalva importante uma vez que a estrutura perversa diz respeito
subjetivao resultante da negao (Verleugnung) da castrao na dialtica edipiana.
O diagnstico diferencial estrutural feito por meio de trs modos de negao do
dipo - negao da castrao do Outro - correspondentes s trs estruturas clnicas. No caso
do neurtico, nega-se o material, mas conserva-o no inconsciente, onde ele se manifesta
atravs do recalque (Verdrngung). Na psicose, seu modo de negao - a foracluso, rejeio
(Verwerfung) - no deixa trao ou vestgio; a resoluo mais definitiva, pois o sujeito se
livra do material, descartando-o. J o perverso nega (Verleugnung) o material conservando-o
no fetiche. como se o sujeito soubesse da existncia daquilo que ele recusa, porm persiste
em negar a sua presena. Com isso, percebe-se que a Verleugnung uma contradio: um
movimento no qual saber e negar este saber coexistem juntamente. Isso bem salientado no
texto de Freud Fetichismo (1927/2007), onde fica explcito que o fetichista tem um saber
sobre a castrao, o que no o impede de gozar como se no soubesse. O fetiche,
paradoxalmente, atua como um triunfo sobre a ameaa de castrao e tambm um smbolo
que relembra a todo instante, justamente, a castrao.H um compromisso intermedirio entre
desmenti-la e reconhec-la.
A perverso-polimorfa pertence a outro terreno, distinto da perverso estrutural e da
perversidade, mas tambm interligado a elas. Nos Trs ensaios sobre a teoria da sexualidade
(1905/2006), Freud entende a perverso como um desvio de uma funo normal,
especialmente no tocante esfera sexual, para assim introduz o conceito de pulso. Ele
demarca outros contornos para as questes que cercam a diferenciao entre normal e
patolgico, pois a noo de pulso, ao contrrio do instinto, desconstri a possibilidade de
uma verso natural do desejo. Deste modo, perverso, desvio, transgresso e aberrao so
facetas da sexualidade humana.
Precisamos distinguir tambm moral de tica. A moral trata das coisas prticas e a
tica debrua-se sobre o comportamento moral, fazendo dele seu objeto de estudo. A moral
est vinculada s normas de conduta que os homens desenvolvem para viver em sociedade,
enquanto a tica teoria, investigao ou explicao de um tipo de experincia humana ou
forma de comportamento dos homens, o da moral, considerado porm na sua totalidade,
diversidade e variedade (VSQUEZ, 1999, p. 21). A moral sustenta a prtica, a tica
constri uma teoria sobre a prtica.
Aqui interessa-nos pensar a perverso atravs da tica, pois assim atrelamos o saber
clnico ao social. Ao abordar o campo da tica, Lacan assimila tpicos tradicionalmente
relacionados a este assunto, tais como o Bem, o Belo, a morte, o prazer, a felicidade. Inspirase na filosofia grega clssica em que a tica refere-se a uma boa maneira de ser ou de se
conduzir na vida. No entanto, como bem diz o ttulo do seu stimo seminrio, a reflexo
lacaniana sobre a noo tica fundamentada com rigor no pensamento psicanaltico, o que
implica precisamente na dimenso do desejo. Pode-se afirmar que a tica da psicanlise est
centrada no desejo e, por conseguinte, se afasta dos imperativos do supereu e dos ideais
sociais, sem os desprezar. Ela, ao contrrio da moral, no est articulada ao Bem supremo: a
tica psicanaltica tem como horizonte o real, enquanto a moral tenta recobrir a
impossibilidade do real atravs de regras e proibies, e por isso que a dimenso do bem
levanta uma muralha poderosa na via de nosso desejo (LACAN, 1959-1960/2008, p. 274).
Afinal, o que fazer o bem para o outro ou para si mesmo?
Por menos que Freud tenha se aprofundado na questo tica em si, seus comentrios
feitos a respeito da alegoria schopenhaueriana dos porcos-espinhos no frio e da afirmao
de Plauto (retomada por Hobbes) de que o homem o lobo do homem (1930/1976)
demonstram que o tema sempre esteve presente em seu pensamento. Mais especificamente,
Freud abre uma via (l onde isso estava, o eu [sujeito] deve advir 1) que enfatiza a funo
fecunda do desejo no direcionamento da ao humana que, por sua vez, est no centro da
discusso tica. Desta maneira, entende-se a posio lacaniana (1959-1960/2008) em defender
que a psicanlise no um idealismo, muito menos uma tica do Bem Supremo.
1
O texto no original em alemo : Wo es war, soll ich werden (FREUD, 1933 [1932]/2006, p. 84).
10
recalcado so uma nica e mesma coisa (LACAN, 1966/1998, p. 794). Sendo assim,
compreende-se que o desejo no naturalista como aponta a concepo kantiana, mas um
efeito da palavra no campo da linguagem, do Outro, o que nos permite entender que a
dimenso moral se enraza no prprio desejo. No caso de Sade, ele s transgride a lei porque,
de alguma forma, est atrelado ela.
Marqus de Sade, fonte de inspirao para o termo sadismo, trouxe luz a violncia
do erotismo que a cultura sempre tentou ocultar. Para ele, se a natureza era o verdadeiro
fundamento, no cabia aos homens reprimirem seu prprio lado destrutivo natural; seria a
civilizao e suas leis morais que desumanizariam o homem. Com que direito deve-se
reprimir aquele que s sente prazer infligindo dor aos outros, se tal prazer ditado pela
prpria natureza, a qual, em verdade, est acima dos homens?
Poderia-se dizer que, para Sade, dar vazo s pulses seria a sua tica e o gozo seria a
sua finalidade. tica esta que estaria acima das meras convenes humanas de bem e mal,
certo e errado. Ele justifica ponto por ponto a demolio dos imperativos fundamentais da lei
moral, e preconiza o incesto, o adultrio, o roubo, e assim por diante. Se em Kant, a lei
impera, mas no sem gozo, para Sade o gozo que o rege, mas no sem lei; um tratado da
moral s avessas. O perverso est no campo da Lei (castrao do Outro), este responsvel por
fundar o desejo. No entanto, o desejo, tanto quanto a Lei, forma uma barreira em relao ao
gozo, e este ltimo, por sua vez, essencial ao perverso para tapar o furo do Outro, a
castrao, que ele insiste em desmentir.
Por essa e outras que Lacan considera A filosofia na alcova (1795/2008) um tratado da
moral, e no do desejo, assim como a Crtica da razo prtica (1788) de Kant. No entanto,
Kant acredita que somente uma lei moral absoluta poderia impedir o homem de ir aos
extremos, enquanto Sade demonstra que no uma lei moralizante que barra o sujeito.
Desta forma, ratificamos que no podemos colocar na conta da perverso estrutural as
condutas desviantes, que desafiam a lei, e muito menos aquelas que sobrepem tica. Pelo
contrrio, a perverso, como nos demonstrou Lacan, pode elucidar os contornos ticos,
afastando-os de uma moral normalizante. Todavia, as condutas sociais que percebemos hoje,
atreladas ao capitalismo, podem ser aproximadas da perverso no que tange ao gozo.
Lacan respondeu aos acontecimentos que balanaram a cultura ocidental em 1968 com
sua conhecida teoria dos quatro discursos de 1969. Segundo Braunstein (2010, p. 143), essa
concepo articulava a compreenso da subjetividade, tal como aparece na clnica
psicanaltica e nos processos histricos. O discurso assumea definio de lao social e
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admite quatro, apenas quatro, formas (do mestre, do universitrio, do analista e da histrica),
sendo a primeira, o discurso do mestre, sua frmula matriz.
Lacan (1969-1970/2007) em seu dcimo stimo seminrio afirma que o discurso do
mestre desenvolvido plenamente demonstra sua clave no discurso do capitalista. Lacan frisa
que no se trata de um novo discurso, mas um pequeno giro do discurso do mestre. Braunstein
(2010, p. 148) demarca a distino do mestre antigo, que promovia a formao de indivduos
juridicamente regulados em sua relao com o Soberano, sditos obedientes dotados de
direitos e deveres, e o mestre moderno que incita a satisfao direta de aspiraes e
demandas, roando e perfurando as linhas de fronteira (borderlines) da lei. Se um mestre era
o da represso, o outro, o do discurso capitalista, comanda o gozo. Assim, todo discurso que
se aparenta com o do capitalismo deixa de lado isso que de maneira simples chamaremos
coisas do amor (LACAN, 1972 apud BRAUNSTEIN, 2010, p. 149).
Desta forma, prximo ao capitalista que busca desenfreadamente um gozo roando e
perfurando a lei e que deixa de fora de seu discurso as coisas de amor, localizamos o
perverso que, fixado no plo pulsional da fantasia, do gozo, do objeto a, elide o plo do amor,
do inconsciente, do $. Coutinho Jorge (2006) fundamenta justamente a fantasia como a
articulao entre o inconsciente ($) e a pulso (objeto a), entre o simblico e o real. Situa,
ainda, no primeiro plo, o amor, e do outro lado, o gozo. Para o perverso, o gozo fica como
uma defesa em relao ao vnculo amoroso, pois este alude a certa castrao do gozo.
Em busca por gozos sem fim, tanto a perverso quanto o capitalismo abolem a
diferena, o desejo do Outro, indo justamente contra a psicanlise e o discurso do analista,
que visam a singularidade irredutvel do sujeito, S1,aquilo pelo qual ele como e, por isso,
no como ningum. Esse objetivo s possvel sustentado por uma tica, tica da
psicanlise, tica do desejo, demonstrado aqui atravs da relao do perverso com a lei. No
estamos indo contra a singularidade e o desejo, ou seja, no estamos indo na contramo da
direo tica quando um governo probe uma forma de tratamento para um sujeito autista,
mesmo esta sendo aquela que o familiar gostaria? No capitalismo, percebemos a fetichizao
da mercadoria, j apontada por Marx (1867),quando a matria bruta da coisa (valor de uso)
passa para o sistema de intercmbio (valor de troca), e se envolve de caractersticas que no
so delas (visveis e inapreensveis), servindo, assim, aos caprichos do capitalismo. A
selvageria do capitalismo no revestiria ento uma relao social entre homens com suas
respectivas singularidades em uma relao entre coisas? O fetichismo aqui representa a
ruptura entre a utilidade e o valor, fazendo com que as mercadorias, como os fetiches,
paream possuir sua prpria energia, elevando um objeto comum a um outro estatuto. Como
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RESUMO
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em psicanlise essa expresso vem sendo correntemente utilizada, haja vista ser tema de
algumas mesas redondas e conferncias em congressos nacionais e internacionais de
Psicanlise. Essa expresso nos coloca de sadaum questionamento acerca do tempo: precoce
em que sentido e para quem?
O que se entende por interveno precoce em psicanlise? Quando se inicia a
constituio do sujeito? Qual seria a especificidade da clnica psicanaltica em UTIN, um
campo que tem em sua essncia mesma, a questo da precocidade da interveno?
A precocidade em neonatologia se estabelece diante de um tempo fixado como
normal, para uma gestao. Um nascimento precoce quando acontece fora do tempo
esperado, adiantado, antecipado; e o beb nasce prematuro, ou seja, ainda no maduro o
suficiente, para respirar ou ser capaz de sugar para se alimentar, por exemplo.
Mas, a UTIN intervm tambm nos casos de atraso do nascimento, no fora do tempo
no sentido de uma demora em relao ao esperado, o que tambm pode acarretar danos para o
beb, como a falta de oxigenao no crebro.
Coriat (1997) prefere o termo castelhano temprana, para falar da estimulao
realizada com bebs, em vez da expressoque normalmente utilizada: estimulao
precoce. Temprano se refere quilo que acontece cedo, nas primeiras horas; enquanto
precoce (precoz em castelhano), relativo ao que est antecipado, adiantado, prematuro, fora
do tempo esperado. Em portugus, no h um adjetivo equivalente a Temprano, utilizandose sempre a palavra precoce.
A neonatologia , nesse sentido, um campo da medicina que intervm cedo, uma vez
que seu objeto de estudo o beb recm-nascido e ao mesmo tempo, intervm precocemente,
j que tambm trabalha com bebs que nascem antes do tempo.
A clnica psicanaltica em UTIN uma interveno temprana, que se d cedo; mas
pode ser considerada precoce, antes de?
Se o inconsciente e o desejo no seguem a norma estabelecida pelo biolgico ou a que
socialmente aceita como normal, o que esse nascimento fora do tempo pode dizer do tempo
dos pais, de seu desejo em relao a esse filho, que enquanto desejo inconsciente sempre
atemporal?
No trabalho que venho realizando na UTIN do HUCAM, meu paciente sempre o
beb, pois o beb o paciente para a equipe da qual fao parte. Mas como pensar a
psicanlise com bebs se eles ainda no falam? No penso fazer psicanlise com os bebs no
sentido de um percurso que visa a passagem de analisando a analista de seu sintoma, at
porque nada garante ainda, que podero constituir para si algum sintoma um dia. Tambm
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diferente de psicanlise com crianas, pois estas j falam, a seu modo, de sua posio no
desejo dos pais. A interveno aqui sobre o infans, aquele que ainda no pode falar.
Esse infans precisa, para se tornar um dia sujeito, das marcas significantes que o Outro
vai produzindo nele. Mas, diante da prematuridade ou do atraso do nascimento, enfim, nesse
descompasso entre o esperado e o acontecido, h sempre a necessidade de um tempo para que
os pais possam tomar esse infans como seu objeto, ou seja, investi-lo com o envoltrio de
imaginrio, fazendo dele o seu beb. Essa a nica possibilidade para que esse beb venha a
ser um dia, sujeito.
No texto Sobre o narcisismo: uma introduo, Freud (1914/1974), reconhece na
atitude afetuosa dos pais para com os filhos, a revivescncia e a reproduo de seu prprio
narcisismo. Assim, tomam seus filhos como objetos de amor, supervalorizando-os, a ponto de
atribuir a eles toda perfeio, numa tentativa de concretizar atravs deles, a iluso narcsica da
qual tiveram que abrir mo em relao a si mesmos, forados pela realidade.
Essa revivescncia do narcisismo dos pais mais fcil de acontecer diante de bebs
que nascem sadios, grandes, gordinhos, bonitos, enfim, bebs que, apesar de jamais
coincidirem totalmente com o esperado, tm mais potencial de encantar os pais e deixa-los
orgulhosos de seu produto.
Os bebs internados na UTIN so geralmente pequenos, frgeis, doentes, feios, com
anomalias congnitas; acarretando uma ferida no narcisismo dos pais, que custam a se
reconhecer neles.
O psicanalista opera em UTIN no tempo de reconhecimento por parte dos pais desse
infans como seu filho; no tempo do reconhecimento da autoria, atravs do reencontro com as
marcas de si mesmo, no beb que se produziu. Opera no tempo do estabelecimento, ou no,
das condies mnimas do advento do sujeito. Nesse sentido, a interveno psicanaltica em
UTIN precoce em relao ao tempo de estruturao do sujeito. Essa sua especificidade.
atravs do trabalho com os pais e com a equipe, que ser possvel intervir junto ao
beb. Na clnica psicanaltica em UTIN, se intervm no momento do acontecimento, da
erupo do real. Em que posio pode se situar o analista nesta clnica?
Ansermet (1997), durante os debates da mesa redonda sobre a questo da psicanlise
diante da medicina perinatal em Lausanne, diz que o analista, nesta clnica, faz face a uma
distoro temporal, num efeito de estranheza, efeito de bscula que faz com que intervenha ao
lado, na defasagem. Como no se tem acesso ao tempo, uma vez que a interveno limitada
pela durao da internao do beb na UTIN, o analista deve criar um espao discursivo,
aberto para uma possvel resposta.
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nesse pouco tempo que se pode operar, com base numa transferncia instituio
hospitalar e ao discurso mdico, sobre uma demanda que no dirigida ao analista, mas que
ele toma para si ao escut-la de um outro lugar. Escuta analtica, na medida em que abrindo
um espao discursivo, possibilita ao sujeito, cada um dos pais no caso, a construo de algum
sentido diante dessa erupo de real, afinal, como nos diz Lacan (1953/1998), no h nada na
urgncia que no gere sua superao na fala.
No entanto ao abrir esse espao discursivo, o psicanalista deve situar o fora-de-sentido
e saber que isso no alguma coisa sobre a qual se pode agir, segundo Laurent:
A interpretao consiste em situar o ponto que escapa nossa ao, em fixar o forade-sentido num ponto e, em seguida, alm deste ponto, abrir para o sujeito tecer
sentido. H a, se quisermos, um certo efeito sugestivo, no pouco de autoridade que
a transferncia instalada permite nestas situaes, transferncia que fraca. Mas ,
mesmo assim, uma alavanca para dizer que a h sentido a ser tecido (LAURENT,
1997: texto indito).
H que se ter cuidado para que a psicanlise no se torne, nesta clnica, um cmulo de
sentidos que tampone qualquer acesso do sujeito ao que se refere a sua verdade. preciso
apontar para o fora-de-sentido, para que os pais possam se angustiar o suficiente ao ponto de
se perguntar o que querem deste infans, e s ento poderem tom-lo como objeto; objeto de
sua angstia uma vez que denuncia a falta. Ao mesmo tempo, cuidar para que a angstia no
seja avassaladora demais, impossibilitando mesmo o menor olhar em direo ao real do corpo
do beb. O analista serve nesse momento de ponte, de mediador, s vezes introduzindo uma
dvida, uma questo; outras vezes emprestando um pouco de sentido, no lugar de um espelho,
num lugar terceiro, funo do Outro.
Mas, a estrutura da interveno psicanaltica no seria sempre a mesma, apesar das
especificidades de cada clnica? Estruturalmente, pode-se falar de interveno psicanaltica
precoce?
Segundo Costa (1998) a interveno psicanaltica baseada numa espcie de saber
operativo responsvel por uma atividade interpretante.
Ele operativo no sentido de que a atividade produzida sabe mais que o eu. (...)
Deste (saber) no se sabe antecipadamente muita coisa, na medida em que se
organiza da mesma forma que a produo do sujeito do inconsciente, num tempo da
posterioridade (COSTA, 1998, p. 12).
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______. Funo e campo da fala e da linguagem em psicanlise [1953]. In: Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 238-324.
LAURENT, E. A atribuio real do corpo, entre cincia e psicanlise. Mesa redonda sobre a
questo da psicanlise diante da medicina peri-natal, no contexto da Jornada de estados da
EEP Desenvolvimento Sade mental e psicanlise aplicada. Texto avulso transcrito por
Franois Ansermet. Lausanne, 1997.
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RESUMO
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ABSTRACT
Considering that there is a structural flaw in the medical and psychoanalytical discourses, this
work discuss the distinct conceptions of symptom to these fields of knowledge. While
Medicine aims to the elimination of these, disregarding its subjective character, the
psychoanalyst offer his listening, and not the sense, allowing that the knowledge that isnt
known about the patient to come into play, promoting through this speech the renounciation of
pleasure.
Keywords: symptom, institution, psychoanalysis.
A psicanlise se inicia a partir das prticas mdicas desenvolvidas por Freud. Porm, o carter
subversivo de suas descobertas encaminhou seu fazer clnico investigao de uma outra
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cena que escapava do saber constitudo at ento. Os sintomas histricos, tais como:
paralisias, cegueiras e outros distrbios funcionais, colocavam prova o modelo antomoclnico, pois este falhava na sua tentativa de explic-los, na medida em que eram marcados
pela total falta de relao entre sintomatologia e anatomia corporal. As histricas, que atravs
de seus corpos denunciavam um furo no saber mdico, uma impossibilidade de tudo saber,
desvelavam essa falha que se apresenta como algo de ameaador ao conhecimento mdico at
ento estabelecido.
Freud, em sua clnica, no recuou diante do enigmtico que se apresentava a ele sob a forma
de sintomas histricos, que denunciavam a existncia de algo que transcendia o biolgico. O
criador da psicanlise se engajou em uma investigao que culminou com a criao de um
novo saber sobre o sintoma, descobrindo a existncia de sofrimento psquico que o causa.
Este que se atualiza hoje nas instituies hospitalares, a partir das queixas direcionadas
equipe mdica que, orientadas pelos ideais positivistas de cincia, fragmentam o corpo em
nmeros, grficos, tabelas, rgos, excluindo o sujeito do desejo, cujo corpo afetado pelas
pulses.
Porm, h um retorno do que foi excludo, ento, o sintoma e o gozo se fazem presente no
corpo. Surge ento um impasse, pois, se a medicina entende o sintoma como uma disfuno, a
psicanlise o considera como um modo particular de gozar, tratando-o de forma diversa. Ou
seja, o confronto de concepes diferentes entre estes campos de saber leva a maneiras
distintas de operar com ele. Se para a medicina o sintoma aponta para um distrbio que deve
ser eliminado, para a psicanlise o sintoma constitui uma metfora que diz do sujeito e de seus
modos de obteno de gozo. Para Freud, o sintoma portador de um sentido
inconscientemente construdo, que formado a partir de uma cadeia de associaes, portanto,
uma construo psquica oriunda de um processo defensivo (SILVA, 2009).
A partir da reviso bibliogrfica e entrevistas realizadas com pacientes e profissionais de
sade do Hospital Universitrio Betina Ferro, em Belm/PA, constatamos a diferena entre as
formas da psicanlise e da medicina de tratar o sintoma, e o benefcio que a presena do
psicanalista traria instituio, na medida em que possibilitaria que a subjetividade implicada
com ele fosse inserida. A abordagem mdica do sintoma difere da exercida pela medicina,
pois enviesada pelos ideais cientficos de positividade, que buscam causas orgnicas e
diagnsticos fechados, aplicando um saber sobre o sujeito que se torna depositrio de um
saber por ela aplicado.
A psicanlise concebe de forma particular a doena pela qual padece o paciente e prope outra
postura profissional perante o mal que o acomete. Para ela a relao verdade est do lado do
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Psicanalista, correspondente da Escola Brasileira de Psicanlise Seo Rio de Janeiro (EBPRJ). Doutora pelo Programa de Ps-Graduao em Psicanlise da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ). Professora dos Cursos de Especializao de Psicopedagogia e de
Psicologia Jurdica da UERJ, e da Escola Preparatria.
Email: angelicatironi@gmail.com
RESUMO
As mudanas scio-econmicas e ideolgicas ocorridas na contemporaneidade pela
associao entre o discurso da cincia e do capitalista contribuem para o surgimento de novas
expresses sintomticas. Esses sintomas acarretam dificuldades em relao ao diagnstico e
fazem com que alguns casos paream inclassificveis em relao clnica freudiana,
formalizada por Jacques Lacan. Neste artigo discuto o inclassificvel em duas vertentes: como
obstculo ao sistema classificatrio, que precisa ser extirpado dos manuais psiquitricos, e
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destacando
sndrome
do
pnico,
as
depresses,
as
doenas
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disponveis a todas as faixas etrias. Aos que no respondem aos programas, ofertam-se
diversos tipos de tratamento que prometem ser rpidos e eficazes.
Nesse contexto, as psicopatologias contemporneas so interpretadas como um
fracasso psquico diante de novos ideais, tais como o mundo idealizado das imagens, o
sucesso profissional, o mximo de eficcia, o culto narcsico e o imperativo da urgncia. Se o
sujeito no atinge os ideais proclamados pela sociedade, ele se encontra na condio de
excluso e de doente.
A relao do sujeito com o tempo outro fator que revela uma mudana na ordem
simblica atual. Estamos vivendo em uma poca na qual o imediato impera por meio da
ligao permanente a dispositivos dessubjetivantes, tais como os telefones portteis e os
sistemas de comunicao virtual que chamam a ateno do sujeito para alm do si mesmo,
sem que isso se conclua em laos. As pessoas esto sempre correndo de um lado para o outro,
se queixando que o tempo escasso para realizarem todos os compromissos listados na
agenda. E quando o tempo sobra, esto to cansadas que no sabem como utiliz-lo, a no ser
se alienando na frente da televiso ou respondendo s pendncias que se acumularam no
mundo virtual.
Trata-se de uma poca marcada pela hiperatividade e pela exigncia do tempo fixado
no instante de ver. O aumento radical dos transtornos de ateno em crianas e jovens em
perodo escolar evidencia que eles esto permanentemente agitados, a tal ponto que, em
determinados locais das Amricas, um tero da populao jovem diagnosticado como
hiperativo e submetido a tratamentos com o uso de Ritalina. Ao lado dessa agitao, nota-se,
sobretudo nos pases asiticos, o aumento vertiginoso das estatsticas de suicdio entre os
jovens. As chamadas fobias escolares, que antes eram dados marginais da educao, se
tornaram fenmenos de massa em determinadas regies.
Vale ainda notar que o discurso capitalista associado ao discurso cientfico interfere de
forma radical na maneira como o sujeito se relaciona com o objeto na atualidade. O comrcio
segmenta os compradores e aprimora a apresentao dos objetos expostos nas vitrines das
lojas, elevando-os ao estatuto de resposta frente busca incessante e imediata do xtase
hedonista. A obsesso em comprar certamente a expresso deste hedonismo, mas tambm
um paliativo ante as inseguranas e incertezas que ameaam o sujeito. O consumo compulsivo
evidencia a busca incessante de sensaes prazerosas e constitui uma espcie de compensao
diante do vazio da prpria subjetividade. Isso se evidencia claramente quando a psiquiatria
entra no discurso do capitalista e os medicamentos se tornam objetos de consumo em massa
que prometem o encontro da felicidade e da satisfao.
30
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32
tenta anular em outros campos, ou seja, o estilo pessoal que faz com que cada sujeito se
apresente em sua diferena absoluta.
Jsus Santiago (2010, p.5)afirma que o DSM representa uma das maiores mutaes da
ordem simblica nos ltimos tempos. Quando o DSM considerado um instrumento
compartilhado em uma determinada sociedade, corre-se o risco da normatizaodo que h de
mais singular no sintoma de cada um, estruturalmente irredutvel a qualquer tentativa de
classificao. Constata-se uma evidente anulao do sujeito do inconsciente por transformar a
existncia em uma teraputica medicamentosa veiculada por uma publicidade que visa
fortalecer o mercado. Sobre este assunto, ric Laurent (2010/2011, p.130) comenta que: a
noo de depresso encontrou um grande xito. A acepo comum do termo depresso passou
a fazer parte da linguagem atual. Agora uma espcie de continuidade que vai da tristeza
acentuada at a depresso grave, a melancolia, etc.
Jorge Forbes (2003/2006, p.IX) considera a avaliao como um efeito da quebra dos
ideais promovida pela globalizao, o que a define como um fenmeno essencial dos tempos
atuais. Ela generalizada a possibilidade de tudo ser cifrado e avaliado, encerrando de forma
ilusria com o que escapa s medidas do avaliador. A radicalidade dessa questo a promessa
de que no h nenhum problema da experincia humana que no tenha uma soluo fornecida
pela cincia. Portanto, tanto a avaliao quanto o sistema classificatrio dos manuais
psiquitricos se aproximam no sentido de fornecer de forma imaginria uma soluo ao que
no cessa de se inscrever no sujeito.
A clnica de orientao lacaniana insiste em transmitir a necessidade de diagnsticos
precisos, bem fundamentados, sem jamais esquecer a perspectiva do caso nico, do um por
um. O lugar ocupado pelo caso nico em psicanlise remete ideia do inclassificvel na
medida em que inscreve sempre este algo que escapa a qualquer classificao diagnstica.
Nesse sentido, o caso nico pode ser considerado como o que existe de mais prprio clnica
psicanaltica.
Apesar de ser uma ferramenta fundamental, a psicanlise est atenta ao fato de que
toda classificaodiagnstica contm algo de artificial, pois ameaa excluir o singular de cada
caso. Miller (2001/2006, p.20) ressalta que as classificaes possuem algo de relativo por
serem fundamentadas em uma verdade que varia de acordo com o discurso nas quais elas se
inserem. Ao mesmo tempo em que essas categorias diagnsticas universais funcionam como
balizas e orientam a prxis, elas escondem exatamente aquilo que a psicanlise evidencia.
Ao utiliz-las, o psicanalista deve saber manej-las para decidir se uma regra se aplica
a singularidade de um determinado caso clnico. Ele deve estar atento para no utilizar o
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35
RESUMO
Nos dias atuais, a identidade aparece como modo hegemnico da apreenso da
experincia subjetiva. Apresentaremos a crtica da categoria da identidade por duas vias: pela
desconstruo empreendida por Butler e pelo descentramento do sujeito trabalhado por
Birman. Essa leitura nos conduziu a uma crtica de uma antropologia normativa, associada a
uma teoria das condies que asseguram o homem em sua humanidade. O modelo
identitrio reduz a experincia subjetiva por meio do apagamento das diferenas, por isso
procuramos discutir outras possibilidades, a partir do campo da singularidade.
Palavras-chave: identidade, tica, teraputica.
RSUM
Aujourd'hui, l'identit apparat comme le mode hgmonique de l'apprhension de
l'exprience subjective. Nous prsentons la critique de la catgorie d'identit de deux faons,
36
partir de la dconstruction entreprise par Butler et par lide de dcentrement du sujet, comme
travaille par Birman. Cette lecture nous conduit une critique dune anthropologie
normative, associe une thorie des conditions susceptibles de garantir lhomme dans son
humanit. Le modle identitaire rduit lexprience subjective au moyen de leffacement des
diffrences, et ainsi nous chercheons discuter dautres possibilits, partir du champ de la
singularit.
Mots-cls: identit, thique, thrapie.
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38
de identidade em que o sujeito se mantm sempre igual, mas uma relao de criao, novas
potencialidades podem se abrir.
Nesse ponto, a anlise de Butler muito interessante, porque nos permite questionar:
existe algo como uma identidade homossexual ou uma identidade feminina? E, mais do
que isso, ser que as classificaes se reduzem a oposies binrias (homem/mulher,
homossexual/heterossexual) ou h espao para outras possibilidades? Assim como Foucault
(1981/1994a) prope inventar um modo de vida completamente novo, seria possvel sermos
reconhecidos a partir de categorias ainda no existentes ou inteligveis?
Numa perspectiva foucaultiana, Butler (1998) afirma que o sujeito constitudo pelo
poder. Tal fato resulta numa contnua produo e reproduo, que indica a dimenso poltica
do sujeito: Pois se o sujeito constitudo pelo poder, esse poder no cessa no momento em
que o sujeito constitudo, pois esse sujeito nunca est plenamente constitudo, mas
sujeitado e produzido continuamente. [...] E como tal, totalmente poltico (BUTLER, 1998,
p. 31). Por isso, a autora discute a categoria de sujeito considerando que preciso interrogar
como tal categoria foi construda.
A partir da perspectiva da psicanlise, Safatle (2012, p. 1) afirma que a categoria de
sujeito, como autoidntico e substancialmente determinado a figura maior das iluses do
pensamento da identidade. Por isso, Safatle (2012) procura pensar uma experincia de outra
ordem, que busca sustentar o princpio da subjetividade sem um pensamento da identidade.
Sujeito no deve ser compreendido como entidade substancial, idntica a si mesmo e capaz
de se autodeterminar, mas, ao contrrio, deve ser visto a partir da no-identidade e da
clivagem.
O Imaginrio promove a subsuno do diverso do sensvel imagem, que unifica o
diverso a partir de um princpio de ligao e de identidade derivado do prprio Eu como
unidade sinttica e autoidntica (SAFATLE, 2012, p. 143). O Eu no sustenta o
reconhecimento da no-identidade, mas, ao contrrio, constitui um princpio rgido de
conformao da experincia forma geral da identidade (SAFATLE, 2012, p. 171).
Acreditamos que o Eu o centro de nossa autonomia e autoidentidade, mas, na
verdade, o eu um outro. A agressividade e rivalidade indicam a impossibilidade do Eu de
assumir o papel constitutivo do outro em sua identidade, pois tudo que no se submete a
autoidentidade aparece de forma conflitiva. Essa crtica do Eu serve de base para a crtica da
identidade (SAFATLE, 2012).
Na viso de Safatle (2012), Lacan reorienta a clnica psicanaltica recorrendo
centralidade da noo de pulso de morte para indicar que o problema clnico no seria limitar
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Podemos pensar ainda que a afirmao da humanidade como aquilo que se contrape
indeterminao no deixa espao para aquilo que no passvel de representao. Para
Birman (2003), a proposio freudiana do descentramento do sujeito implica, na verdade, trs
descentramentos: 1) da conscincia para o inconsciente, 2) do eu para o outro, 3) da
conscincia, do eu e do inconsciente para as pulses.
O terceiro descentramento coloca em questo justamente o registro da representao, e
esse deslocamento est presente na releitura promovida por Lacan (1959-1960/1997) do
estranho como o no representado, por meio do conceito de das Ding. Na experincia do
Nebenmensch, temos o encontro com a alteridade no como a unidadeimaginria na qual o
sujeito reconhece seu semelhante, mas sim ao encontro com das Ding. Podemos pensar,
ento, em uma relao com o outro em que este no se esgota na imagem especular, mas traz
consigo um resto que no passvel de representao e, por isso, causa estranheza. Esse resto
no passvel de representao se faz presente tanto no eu quanto no outro, e, com isso,
podemos problematizar a ideia de um eu ntegro.
Essa concepo de integridade do eu j colocada em xeque no segundo
descentramento (do eu para o outro). Se o eu constitudo por identificaes imaginrias e
destitudo de funo de sntese, temos novamente que os ideais de integridade e permanncia
ficam abalados.
Desde a formulao do inconsciente at a da pulso de morte, podemos pensar que foi
sendo questionada a possibilidade de previsibilidade, controle e inteligibilidade da experincia
subjetiva, que so categorias implicadas na concepo de identidade pautada pela integridade
e permanncia. Como afirma Birman (1997), a existncia da pulso sem representao
implica que no h um sistema de representaes e de objetos que poderia conferir unidade e
constncia s formas estabelecidas de subjetivao, o que coloca a questo da singularidade e
a necessidade de busca pela constituio de possibilidades de subjetivao.
justamente por haver essa falta, esse resto no passvel de representao, que se
coloca a possibilidade do desejo e de outras possibilidades para a experincia subjetiva. Esse
o territrio por excelncia da psicanlise, que no se constitui como uma terapia, mas como
uma tica que comporta o novo, o aberto, o sem soluo.
Referncias bibliogrficas:
BIRMAN, J. Freud e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
______. Estilo e modernidade em psicanlise. So Paulo: Editora 34, 1997.
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RESUMO
Este trabalho discute como os procedimentos burocrticos de uma instituio hospitalar de
Curitiba (PR) influenciam o fazer clnico da Psicologia pautado pela Psicanlise. Esta
discusso advm da experincia construda na Residncia Multiprofissional do HC/UFPR, a
partir de pedidos de consulta feitos aos psiclogos pela equipe multiprofissional. Uma vez
recebido o pedido de consulta devemos respond-lo por dever profissional. Respond-lo a
quem? Respond-lo de modo literal no corroboraria com a viso de que o paciente ocupa o
lugar de objeto, destituindo-lhe o estatuto de sujeito? So estes os questionamentos que
permeiam nosso fazer clnico e que sero abordados neste trabalho.
Palavras-chave: instituio hospitalar, procedimentos burocrticos, psicanlise.
ABSTRACT
This paperdiscusses howbureaucratic proceduresat a hospitalin Curitiba(PR) influence
theclinical practiceof psychologyguidedby psychoanalysis. This discussionstems from
theexperiencebuiltinMultidisciplinary ResidencyHC /UFPRfromconsultation requestsmadeto
45
psychologistsby the multidisciplinary team. Once receivedthe query requestwewill reply you
byprofessional duty. Answer itto whom? Answer itsoliteral does notcorroboratewiththe view
thatthe patienttakes the place ofthe object, removing it the statusof subject? These are
thequestionsthat underlieourclinical practiceandthat will be addressedin this work.
Keywords:hospital institution; bureaucratic procedures; psychoanalysis.
1. INTRODUO
O presente trabalho advm da experincia construda na Residncia Multiprofissional
do Hospital de Clnicas da Universidade Federal do Paran (HC/UFPR), no Programa de
Sade do Adulto e do Idoso, relativa aos pedidos de consulta dirigidos s residentesde
Psicologia
pela
equipe
multiprofissional,
constituda
por
mdicos,
enfermeiros,
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submeter a teoria psicanaltica a uma anlise crtica, com a finalidade de verificar sua lgica
interna, a coeso estrutural dos seus conceitos e as condies de sua possibilidade,
aprimorando suas teorias.
3. DISCUSSO
Em nosso trabalho no hospital percebemos que geralmente a solicitao de
atendimento psicolgico ao paciente parte da equipe multiprofissional. Como residentes,
somos chamadas nestes momentos em que os profissionais pedem ajuda pelo e para o
paciente, ao decidirem que este precisa de acompanhamento com a Psicologia. Formalizado o
pedido de consulta, precisamos respond-lo tanto por dever profissional, como devido
lgica institucional estabelecida. E este se configura como um desafio a ns: afinal, como
atender algum que no pediu para ser atendido, mas que precisa ser acompanhado porque
outros pediram por ele? A quem devemos responder, instituio ou ao paciente?
Responder instituio ao p da letra, compreendemos, seria atender ao que a equipe
nos pede, preparar o paciente para receber um diagnstico grave, tirar informaes do
paciente e familiares, para a equipe, convenc-lo a comer, tomar determinada medicao ou
a aderir certo procedimento/ tratamento, porque o paciente no colaborativo com a
equipe, entre outras referncias literais encontradas nos pedidos. A nosso ver, isto seria
justamente corroborar com a viso de que o paciente ocupa o lugar de objeto, submetendo-o
ainda mais a esta condio, uma vez que no lhe ofereceramos um espao em pudesse se
fazer sujeito, sujeito de si, de suas vontades e de suas queixas. Se respondssemos
solicitao da equipe depositaramos no paciente tticas e estratgias de convencimento, com
o intuito de consolid-lo nesta posio cmoda de passividade.
Por outro lado, ao dirigir a resposta ao paciente, atravs de um espao de escuta, lhe
ofertando a escolha de ser escutado ou no, estaramos lhe devolvendo o estatuto de sujeito.
Neste sentido, concordamos com Freud (1996/1905) quando escreve sobre a tcnica sugestiva
e a analtica:
Na verdade, h entre a tcnica sugestiva e a analtica a maior anttese possvel,
aquela que o grande Leonardo da Vinci resumiu, com relao s artes, nas frmulas
per via de porre e per via de levare. A pintura, diz Leonardo, trabalha per via di
porre, pois deposita sobre a tela incolor partculas coloridas que antes no estavam
ali; j a escultura, ao contrrio, funciona per via di levare, pois retira da pedra tudo o
que encobre a superfcie da esttua nela contida. De maneira muito semelhante,
senhores, a tcnica da sugesto busca operar per via di porre; no se importa com a
origem, a fora e o sentido dos sintomas patolgicos, mas antes deposita algo a
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sugesto que ela espera ser forte o bastante para impedir a expresso da ideia
patognica. A terapia analtica, em contrapartida, no pretende acrescentar nem
introduzir nada de novo, mas antes tirar, trazer algo para fora, e para esse fim
preocupa-se com a gnese dos sintomas patolgicos e com a trama psquica da ideia
patognica, cuja eliminao sua meta. Por esse caminho de investigao que ela
faz avanar to significativamente nossos conhecimentos (FREUD, 1905, p.247).
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haja ali um sujeito que, atravs dos incmodos sentidos pela equipe quando reclama demais,
quando se recusa demais, quando pede demais, questiona demais... deseja.
Portanto, cabe a ns sustentar um discurso do qual no resultem os efeitos imediatos e
impressionantes esperados pela equipe, mas que permita, para o sujeito, que a doena se torne
uma possibilidade do despertar de seu desejo (SOUZA; OHALLEM apud MOURA, 2000).
Assim, acreditamos que a palavra, o verdadeiro bem do ser falante, pode tornar mais
suportvel a condio humana (MOURA, 2000, s/p.).
Referncias Bibliogrficas:
FREUD, S. Dois verbetes de enciclopdia[1923].In:______.Edio standard das obras
psicolgicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. 18, p. 251-274.
______. Sobre a Psicoterapia [1904/ (1905)]. In:______.Edio standard das obras
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FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrpolis: Vozes, 2003.
LACAN, J. Televiso. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
MOURA, D. de (Org). Psicanlise e Hospital. Rio de janeiro: Livraria e Editora REVINTER
Ltda, 2 edio, 2000.
NETO, F. K; MORREIRA, J. O. (Orgs). Pesquisa em Psicanlise: transmisso na
Universidade. Barbacena: Ed UEMG, 2010.
SILVA, M. E. L. da (Coord). Investigao e Psicanlise. Campinas: Papirus, 1993.
SIMONETTI, A. Manual de psicologia hospitalar: o mapa da doena. So Paulo: Caso do
Psiclogo, 6 edio, 2011.
VISENTIN, A.; LABRONICI, L.; LENARDT, M. H. A autonomia do paciente idoso com
cncer: o direito de saber o diagnstico. Acta Paul Enferm, v. 20, n. 4, Curitiba: 2007, p. 509
513.
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RESUMO
Este estudo diz respeito experincia de estgio realizado no Servio de Psicologia
Aplicada de uma Universidade Pblica do Cear. Percebemos, neste espao, uma srie de
questes institucionais que reverberavam no fazer clnico. Apoiados no ensino de Freud e
Lacan, passamos a nos questionar acerca dos efeitos da lgica institucional no
estabelecimento da transferncia. Deste modo, pudemos lanar um olhar crtico sobre o
servio, no que tange s regras estabelecidas para seu funcionamento, e aspectos que
decorrem do tipo de servio oferecido. Os aspectos metodolgicos dizem respeito, ento, ao
relato de experincia dos atendimentos, bem como sua respectiva articulao terica.
Palavras-chave: psicanlise, transferncia, universidade.
ABSTRACT
This study concerns the training experience in Applied Psychology Service of a Public
University of Cear. We realize, in this space, a number of institutional issues that
reverberated in clinical practice. Supported the teaching of Freud and Lacan, we began to
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wonder about the effects of institutional logic in establishing the transfer. Thus, we cast a
critical eye on the service, in regard to the rules for its functioning, and aspects that arise from
the type of service offered. The methodological concern, then the reported experience of care,
as well as its theoretical articulation.
Keywords: psychoanalysis, transference, university.
1. INTRODUO
Este estudo diz respeito experincia de estgio realizado no Servio de Psicologia
Aplicada (SPA) de uma universidade pblica do Cear. Neste, percebemos que, umas sries
de questes institucionais reverberavam no nosso fazer clnico, que se apoiava na Psicanlise.
Desta forma, por meio dos textos de Freud e Lacan, nos questionamos acerca dos efeitos da
lgica institucional no estabelecimento da transferncia.
Assim, pudemos lanar um olhar crtico sobre o servio, no que tange s regras
estabelecidas para seu funcionamento (questes burocrticas), ao fato de ser uma disciplina
obrigatria para a graduao (questes acadmicas) e aspectos que decorrem do tipo de
servio oferecido (questes inerentes ao servio), sempre apoiados na clnica.
Sob o vis metodolgico, optamos pelo relato de experincia, bem como, a posterior
teorizao acerca deste. Neste sentido buscamos uma articulao entre os conceitos de
transferncia e como esta se evidencia dentro da Universidade.
53
As questes que afetam os docentes tambm perpassam o universo discente, mas com
outras caractersticas, entre elas:O que ser levado em considerao para a aprovao na
disciplina: nmero e frequncia dos pacientes? Ou a posio tica do aluno frente sua
responsabilidade? Ao elencarmos estas questes buscamos uma forma de problematizar a
realidade vivenciada pelos acadmicos, evidenciando as implicaes narcsicas que
perpassam esta relao.
Na tentativa de melhorar o servio, foi estabelecida uma srie de regras que visam
normatiz-lo, dentre elas podemos destacas que: com trs faltas (sem alguma justificativa) o
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cliente desligado do mesmo; o terapeuta que mantm contato com o paciente e, com relao
frequncia institucional, cabe aos responsveis funo de assinar a presena do cliente.
Cremos, em parte, que tais caractersticas podem auxiliar em um melhor
funcionamento burocrtico, mas, ao mesmo tempo, dificultam na implicao deste cliente
com o processo.
Em primeiro lugar, consideramos problemtica a questo da assinatura 2. Cremos ser o
cliente, ou o responsvel juntamente com ele que deveriam assinar, uma vez que o nosso
dever com aquele que atendemos. A sua assinatura individualizada, poderia ser considerada
como, um primeiro passo, no processo de separao do mesmo do desejo do outro? Tambm
consideramos problemtica a averiguao das faltas, pois, esta uma funo do analista, a ele
cabe ligar para averiguar o que aconteceu, como se buscando uma tentativa de justific-la;
assim, quem se responsabiliza pelo processo passa a ser, ou o responsvel, ou o analista e,
apenas em ltimo caso o paciente.
3. TRANSFERNCIA EM FREUD E LACAN
As questes inerentes transferncia ocupam papel central para o desenvolvimento da
tcnica psicanaltica, neste sentido, Freud publica diversos textos na tentativa de compreendla. Neste contexto podemos situar: A dinmica da transferncia (1912), e Observaes
sobre o amor transferencial (1915). Entre eles temos o Recordar, Repetir e Elaborar (1914),
texto no qual autor a anuncia como uma repetio. O paciente tende a repetir com o analista
um modo de relacionar-se com outra pessoa. O lugar onde o paciente o coloca a encenao,
a atuao da relao dele com um outro e disso o analista deve estar advertido para no
responder deste lugar de onde colocado pelo paciente.
Freud traz que o mtodo que o neurtico conduz a vida ertica formando clichs
estereotpicos constantemente repetido. Parte da catexia libidinal do paciente direciona-se ao
mdico, de modo que o estabelecimento da transferncia a identificao pelo paciente de um
desses clichs na figura do mdico, ou seja, a incluso, por parte da catexia libidinal, do
mdico numa das sries psquicas que o paciente j formou (FREUD, 1912/1996, p. 112).
Mas a transferncia no exclusividade da cena analtica, ela faz parte da neurose.
Mas o que Freud se indaga porque ela aparece na psicanlise como resistncia. Quando algo
do material complexivo do paciente, no decurso do tratamento, serve para ser transferido para
2
Quando da implantao do servio crianas e adolescentes no podiam assinar sua prpria frequncia.
Consideramos que os adolescentes teriam total possibilidades de assinar sua frequncia, tendo em vista que para
ns isso se colocava inclusive como um modo de assumir autonomia frente aos pais.
55
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transferncia que surge, a incluso do analista das sries psquicas do sujeito? inegvel que
ela surge e ento nos perguntamos como lidar com ela diante de todas essas questes que
permeiam essa prtica no espao institucionale suas sucessivas interrupes.
Referncias bibliogrficas:
FREUD, S. A dinmica da transferncia [1912]. In:______. Edio standard brasileira das
obras psicolgicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
______.Recordar, Repetir e Elaborar [1914]. In:______. Edio standard brasileira das obras
psicolgicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
______.Observaes sobre o amor transferencial [1912]. In:______. Edio standard
brasileira das obras psicolgicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LACAN, J. O seminrio, livro 8:a transferncia [1960-1961]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1992.
______. O seminrio, livro 11:os quatro conceitos fundamentais da Psicanlise[1963-1964].
Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
OLIVEIRA, G. F. T.; BARROS, R. M. M. Efeitos analticos da superviso na Universidade.
Escola Letra Freudiana, v. 32, Rio de Janeiro: 2013, p. 175-180.
Fabio Malcher
Doutorando em Teoria Psicanaltica pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (PPGTP/UFRJ). Psicanalista na Associao Cultural Centro de Estudos e
Tratamento em Sade Mental CLITOP. Participante do projeto de pesquisa Circulando e
traando laos e parcerias: atendimento para jovens autistas e psicticos - do circuito
pulsional ao lao social na UFRJ, financiado pela FAPERJ e CNPq, em convnio com o
Servio Infanto-Juvenil do Instituto Municipal Philippe Pinel, coordenado pela profa. Ana
Beatriz Freire.
Email:fabiomalcher@hotmail.com
58
RESUMO
Sandro3 trabalha em anlise para construir e se apropriar de um corpo, recorrendo a
encenaes ldicas com bonecos, uma inveno, objeto autstico complexo capaz de localizar
o gozo em uma borda, mediando a troca com o Outro. H um mapeamento ergeno nos
bonecos, partindo da pequena diferena, anatmica, no chegando diferena lgica, que
depende do preo da castrao, da renncia ao gozo do rgo, para ficar com o gozo ordenado
pelo falo. Porm, como veremos, ele revela em seu trabalho um esboo simblico para lidar
com a questo da diferena sexual na construo de um corpo.
Palavras-chave: psicose, corpo, gozo, inveno.
RSUM
Participante do projeto de pesquisa Circulando e traando laos e parcerias: atendimento para jovens autistas e
psicticos - do circuito pulsional ao lao social, na UFRJ, financiado pela Faperj e CNPq, em convnio com o
Servio Infanto-Juvenil do Instituto Municipal Philippe Pinel, coordenado por Ana Beatriz Freire e superviso de
Ana Beatriz Freire, Ktia Alvares e Doris R. Diogo. Projeto possui parcerias com UNIRIO, CPRJ e outras em
andamento.
59
Sandro4 travaille en analyse pour construire et sapproprier dun corps, ayant pour
recour des mises en scnes ludiques avec des poupes, une invention, objet autistique
complexe capable de localiser la jouissance sur un bord, biais par lequel est possible un
change avec lAutre. Il existe l une cartographie rogne chez les poupes, partant de la
petite diffrence, anatomique, mais naboutissant point la diffrence logique qui dpend,
elle, du prix de la castration, du renoncement la jouissance de lorgane, pour rester avec la
jouissance ordonne par le phallus. Cependant, comme nous verrons, il montre dans son
travail une esquisse symbolique qui lui permet de faire face la question de la diffrence
sexuelle lors de la construction dun corps.
Mots-clefs: psychose, corps, jouissance, invention.
Iniciei minhas reflexes para esse depoimento de trabalho a partir da questo: o que
preocupa esse sujeito? A preocupao de Sandro5, 18 anos, parece estar muito ligada questo
do crescimento, preocupao que se estende em algumas direes. Como ocupar um lugar
subjetivo diferente de beb? Como se apropriar de um corpo pbere, diante dos impasses da
partilha sexual? O presente depoimento pretende testemunhar, de que maneira Sandro vem
trabalhando no dispositivo de anlise de forma a produzir algo da diferena que possa atuar na
construo de um corpo, articulado a um novo lugar diante do Outro que o fornea maior
abertura ao lao social.
Em entrevista com a me, ela relata que por vezes Sandro lhe faz a pergunta eu sou
seu nenm?, geralmente seguida de voc me ama?. Essa posio de nenm, beb,
parece fornec-lo um lugar mais bem definido, mais estvel no campo do Outro. Por outro
lado, voc no mais criana uma fala muito recorrente sua volta, o que parece ser
muito demandante para ele. A me de Sandro no gosta quando ele brinca com bonecos em
4
Participant du projet de recherche Circulando e traando laos e parcerias: atendimento para jovens autistas
e psicticos - do circuito pulsional ao lao social [Circulant et traant des liens et des partenariats:
consultations pour jeunes autistes et psychotiques du curcuit pulsionnel au lien social], lUniversit Fdrale
de Rio de Janeiro (UFRJ), avec financement de la Faperj et du CNPq, en partenariar avec le Servio InfantoJuvenil do Instituto Municipal Philippe Pinel coordonn par Ana Beatriz Freire, Ktia Alvares e Doris R. Diogo.
L projet est aussi partenaire de l UNIRIO, du CPRJ et dautres institutions.
5
Participante do projeto de pesquisa Circulando e traando laos e parcerias: atendimento para jovens autistas e
psicticos - do circuito pulsional ao lao social, na UFRJ, financiado pela Faperj e CNPq, em convnio com o
Servio Infanto-Juvenil do Instituto Municipal Philippe Pinel, coordenado por Ana Beatriz Freire e superviso de
Ana Beatriz Freire, Ktia Alvares e Doris R. Diogo. Projeto possui parcerias com UNIRIO, CPRJ e outras em
andamento.
60
casa, considera coisa de criana. Como analista, minha deciso foi a de no tomar seu
brincar como algo meramente infantil ou sem propsito, pelo contrrio, esse recurso tem sido
valorizado enquanto uma interessante forma de ampliar suas possibilidades de trabalhar suas
questes. A encenao com o uso de bonecos parece funcionar para Sandro como um recurso
capaz de mediar sua relao com o Outro, protegendo-o em certa medida, e possibilitando
alguma localizao de gozo, alguma abertura ao lao social.
Assim, Sandro recorre ao uso de bonecos em encenaes ldicas nas sesses, sempre
comandando as cenas. Os personagens so quase sempre os mesmos, e dividem-se de maneira
clara entre crianas e adultos, ambos com funes definidas. As crianas seguidamente atuam
de maneira a burlar as regras e convenes sociais; aos adultos cabe a funo de punir tais
atos, bem como fornecer os cuidados, como dar mamadeira, chupeta, trocar fralda, dar banho,
momentos em que o corpo fica em evidncia.
Embora no haja uma definio diagnstica pelo autismo, entendo o recurso aos
bonecos como o uso de um duplo, de um objeto autstico complexo, que [...] afasta o gozo do
corpo do sujeito, localizando-o em uma borda, que no apenas faz barreira ao mundo externo,
mas tambm promove uma conexo realidade social. (PIMENTA, 2012, p.171). Segundo
Maleval, esse importante objeto tem como funo:
[...] deslocar o lugar de emisso da enunciao, fazendo falar um duplo ou um objeto
no lugar do sujeito [...] o duplo que fala, e no eles [...] dominar a troca,
protegendo o sujeito, que permanece distncia dela, essa a funo do duplo,
como suporte de uma enunciao artificial. (MALEVAL, 2012, p. 63)
Embora a posio de enunciao seja difcil para Sandro, no h uma recusa radical
tpica do autismo, falando por diversas vezes em primeira pessoa, respondendo algumas
perguntas diretas, ou pedindo algo que queira; de qualquer forma, durante as encenaes sua
fala fica visivelmente mais fluente, havendo maior cesso de gozo vocal em tais momentos.
Sobretudo, esse recurso cumpre a funo de aparelhar um excesso pulsional, localizando o
gozo nas falas e nos atos dos bonecos, mediando a relao do sujeito com o Outro.
Entretanto, um excesso de gozo tambm surge em alguns momentos das prprias
encenaes, na forma de movimentos exagerados, descontrolados, com riso muito intenso, em
especial quando alguma criana faz algo errado, bem como quando o adulto aplica um limite
ou punio, algo que nunca deixa de acontecer, sempre surgindo essa figura que representa
alguma lei. Chama ateno como ambos os casos so igualmente deleitosos para Sandro,
revelando-se certa indiferenciao entre os registros do gozo e da lei.Tal relao do sujeito
com a dimenso da lei revela que, embora a forcluso do significante Nome-do-Pai no tenha
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possibilitado a Sandro a introjeo da Lei, essa questo o ocupa bastante, sendo grande parte
de seu trabalho justamente em torno desse ponto, em um esforo repetitivo na tentativa de
circunscrever alguma borda em torno desse furo. Logo, mesmo com sua dificuldade
estrutural, Sandro enfrenta, ao seu modo singular, a questo da lei.
O primeiro momento lgico da anlise de Sandro se deu dessa maneira, com o recurso
ao duplo em encenaes repetitivas. Como possibilitar o aparecimento de algo novo nessa
repetio? Certamente que a resposta a essa questo teria de vir atravs do recurso eleito pelo
prprio sujeito, de sua inveno, as encenaes com os bonecos. Primeiramente, refleti acerca
da prpria construo de tal recurso por parte do Sandro, na medida em que uma inveno
tende a surgir diante de algum ponto de insuportvel, de avassalador ou inassimilvel ao
sujeito, como parece ser, para ele, a questo da diferena sexual, articulada questo do
crescimento. Decido esperar o tempo lgico do sujeito at que ele prprio opte por uma
posio de buscar, sempre a partir de sua inveno, o novo, a diferena. Assim, tem incio um
segundo momento lgico da anlise em que temos o surgimento do novo a partir das
repeties nas encenaes.
A condio beb ou nenm se articula privilegiadamente aos significantes chupa
chupeta, toma mamadeira e usa fralda, cuidados pessoais que os adultos fornecem com
maior frequncia nas cenas. O trabalho de Sandro em anlise passa pela possibilidade de
destacar algum significante que seja capaz de se articular a essa condio diferente de beb,
algum S1 que se extraia de alngua (LACAN, 1972-1973/1985) e que possa aparelhar o gozo
de maneira a fornecer ao sujeito um novo lugar diante no Outro. Esse importante trabalho se
d no ngulo aberto entre o beb, significante privilegiado ao sujeito, mas que no aponta
para o lao social, e o voc no mais criana, significante que vem do Outro, mas que
parece ser avassalador para ele. Em suma, uma misso nada simples se levarmos em conta sua
condio estrutural, sem poder contar com o Nome-do-Pai nessa empreitada.
Entre os bebs, h uma personagem central. Em determinada sesso, Sandro a
denominou como muito beb, enquanto as outras bonecas eram somente beb. Pergunto o
que cada personagem faz sozinho, sem a ajuda de um adulto. Sandro indica que uma beb
toma banho, enquanto outra toma mamadeira sozinha; a muito beb no fazia nada sem
ajuda. Entendo a produo desse significante muito beb enquanto uma nomeao, algo
novo que surge na encenao, na inveno singular do sujeito.
Um terceiro momento se constitui a partir da disposio de Sandro para passar certo
tempo de suas sesses sem recorrer ao duplo. Pergunta se tem jogo do seu time na televiso,
indica suas preferncias musicais. Diante disso, ofereo a possibilidade de termos na sesso
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um aparelho de som. Ele gosta da proposta, e escolhe a estao de rdio que costuma ouvir
em casa e que toca o estilo de msica que ele quer ouvir no momento. Lista outras estaes
que gosta, bem como outros estilos musicais e artistas. Indico que ele pode trazer de casa
algum CD que queira ouvir na sesso, o que ele faz algum tempo depois. Cada vez mais h
momentos em que ele prescinde do duplo nas sesses, mesmo que recorra a ele depois. Por
vezes, foi possvel articular o uso do som com as encenaes, surgindo um rdio na escola,
um baile funk com os alunos, ou alunos que choram pelo volume alto do som. H momentos
em que ele conversa sem recorrer nem ao som, nem ao duplo, falando em primeira pessoa e
sobre assuntos variados, embora haja situaes em que no d prosseguimento ao assunto,
revelando sua dificuldade em sustentar uma enunciao.
Entendo essa abertura por parte de Sandro tambm enquanto algo novo que pde
surgir em anlise, construo de um novo lugar subjetivo diante do Outro, um posicionamento
com maior abertura ao lao social. Contudo, isso no significa que o recurso ao duplo nas
encenaes com os bonecos tenha sido deixado de lado, sendo tal recurso ainda muito valioso
na mediao de sua relao com o Outro. Ao longo das encenaes, a professora ajuda os
alunos em seus cuidados pessoais, dando banho, trocando fralda, momentos em que outros
alunos tentam espiar o corpo nu e Sandro, entre risos, aponta e nomeia partes do corpo, como
peito, mamilo, bumbum e isso ou aqui para os genitais.
Esse mapeamento ergeno do corpo dos bonecos tambm surge nas incessantes
oportunidades em que as crianas tiram a roupa em locais imprprios, e parece fazer parte de
um esforo de Sandro na construo de um corpo, algo mais premente a partir das mudanas
corporais que vem experimentando na puberdade. Temos aqui a fundamental questo de como
se apropriar de um corpo pbere, algo que sempre implica em um chamado partilha sexual.
Neste sentido, a fralda parece ter certa funo de vu com relao diferena sexual, com um
constante trabalho em torno desse velamento e desvelamento nas encenaes. As trocas de
fralda so frequentes, bem como o uso da mamadeira e da chupeta, as idas ao banheiro e os
banhos dados nas personagens. Com o tempo, Sandro indica a diferena entre os genitais dos
meninos e das meninas. Ele pega um boneco que possui um pequeno barbante no lugar do
genital e diz de menino, pegando em seguida o boneco do pai, que tem a rea genital lisa,
dizendo ele tambm tem. Quando pergunto sobre a boneca de uma menina, ele diz ela no
tem. Ao enfrentar a questo da diferena entre os sexos, Sandro parte da pequena diferena
(LACAN, 1971-1972/2012),anatmica, no chegando diferena lgica, sustentada na ordem
flica. Embora no tenha condio estrutural para chegar diferena lgica, que dependeria
do preo da castrao, da renncia ao gozo do rgo, do pnis, para ficar com o gozo do
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significante, ordenado pelo falo, sua fala de que o boneco liso tambm tem revela um
esboo simblico para lidar com a questo da diferena entre os sexos, promovendo algum
aparelhamento de gozo.
O corpo de Sandro vem se apresentando cada vez mais organizado, com um caminhar
mais firme, uma maior coordenao de movimentos, e, segundo a famlia, com avanos em
seus cuidados pessoais. Tambm como forma de dar lugar dimenso corporal nas
encenaes, aponto a necessidade de encaminhar enfermaria os personagens que sofrem
agresses, e que ficam, assim, ausentes da sala de aula. Essa ausncia de determinados locais
foi possvel com a delimitao de espaos estanques, a partir da introduo de bordas que fiz
com tampas de caixas designando a sala de aula, o banheiro, a coordenao, a enfermaria, etc.
Uma das maiores consequncias da diferenciao entre os espaos foi a sala de aula ficar
vazia depois de todos os alunos serem conduzidos coordenao por atitudes como tirar a
roupa ou ofender colegas e professora. Uma ofensa privilegiada entre as crianas ,
curiosamente, beb chorona.
As infraes por parte dos adultos passam a surgir tambm em outras ocasies,
embora com frequncia muito menor s das crianas. Conforme avana no trabalho de
deslocar-se do lugar de beb, seria importante para Sandro garantir algum gozo ao lugar de
adulto? Seria essa uma forma de tornar esse lugar menos ameaador em relao perda de
gozo? No podemos afirmar isso, mas temos indicaes da dificuldade de tal lugar para
Sandro. A me relata que ele questiona e reclama muito do fato de ela trabalhar, e quando ela
diz que preciso e que um dia ele tambm trabalhar, ele responde que no quer, pois
trabalho di.Apesar disso, Sandro vem trabalhando intensamente em anlise. Embora
persista a dificuldade de inscrever simbolicamente algo da diferena, sustentando-a ao longo
do tempo, o novo surge atravs das encenaes ldicas nas sesses.
A forcluso do Nome-do-Pai reduz significativamente os recursos simblicos para o
tratamento do gozo, o que torna o trabalho pela via do objeto uma interessante possibilidade
na psicose. Segundo Faleiro, Operar clinicamente com o objeto a permite construir um lao
social a partir do gozo e no do Outro, a partir de alngua e no da linguagem, com a
finalidade de viabilizar a constituio de um corpo. (FALEIRO, 2012, p.107). Sabemos que
o psictico no tem o objetoa a sua disposio para o tratamento do gozo, mas extramos
dessa passagem o valor da dimenso do objeto enquanto importante recurso na exteriorizao
de gozo. Mesmo sem dispor do Nome-do-Pai e do objeto a, o sujeito psictico pode recorrer a
outros significantes e objetos no tratamento de gozo. O recurso de Sandro a um duplo para
mediar sua relao com um Outro no barrado, localizando gozo fora do corpo, pode ser
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RESUMO
Debatemos a psicanlise e seu papel de dispositivo, a partir da atuao de estagirios
do curso de Psicologia da USS no 10 BPMRJ. preciso pensar a criao de uma prtica
psicanaltica construda a partir da especificidade de um contexto dominado pelo Estado, cuja
imposio de uma obedincia sem questionamento, aliada sobrecarga de trabalho e situaes
de risco e estresse que levam ao adoecimento e ao suicdio. Acreditamos que, com a aplicao
da psicanlise e seu dispositivo, possvel acolher e fazer falar o prprio de cada um em
detrimento do apagamento subjetivo que o uniforme representa.
Palavras-chave: psicanlise, tica, polcia, dispositivo.
RESUMEN
Discutiremos el psicoanlisis y su papel de dispositivo a partir de la actuacin de los
alumnos de la USS en prctica de psicologia clnica en el 10 BPMRJ. Se hace necesrio
pensar la creacin de uma prctica psicoanaltica construyida sobre la especificidad de un
contexto dominado por el Estado, cuya imposicin de una obediencia ciega, junto con una
dura carga de trabajo y situaciones de riesgo y estrs conducen a la enfermedad yn al
suicdio. Creemos que, con la aplicacin del psicoanlisis y su papel de dispositivo es posible
acojer y hacer ablar el prpio de cada uno sobre el borramiento sujetivo que la farda
representa.
Palabras-clave: psicoanlisis, tica, policia, dispositivo.
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pela verdade, mas que no elide o abismo que h entre esta e o saber (MAURANO, 2006, p.
222). Ns permitimos que o aluno experimente o hiato entre saber e verdade, entre a produo
cientfica produzida pela academia e a produo subjetiva produzida pelo inconsciente. E
conseguimos demarcar um espao onde seja possvel o engajamento do aluno no que mais
caro psicanlise: a questo do que pode determinar o sujeito, o que pode caus-lo, produzilo, faz-lo emergir (MAURANO, 2006, p. 215).
E assim, pelo caminho do contingencial, comeamos o trabalho de pesquisa e estgio
com os policiais do 10 BPMRJ. Comeamos nossa atuao com a certeza da importncia da
prtica da psicanlise em um contexto dominado pelo Estado, cuja imposio de uma
obedincia sem questionamento, aliada sobrecarga de trabalho e situaes de risco e
estresse, leva ao adoecimento e a atitudes extremas como o suicdio. A aposta tica no sujeito
do inconsciente, como aponta Birman (1994), e na psicanlise como dispositivo, foram (e
ainda so) os pontos de sustentao e norteadores da atuao dos estagirios pesquisadores.
Era preciso, portanto, possibilitar a criao de uma prtica construda a partir da
especificidade de um campo institucional e pblico, como o 10 BPMRJ, para que, a partir da
aplicao da psicanlise e seu dispositivo, pudssemos acolher e fazer falar o prprio de cada
um em detrimento do apagamento subjetivo que o uniforme representa.
Nossa primeira frente de atuao foi disponibilizar uma agenda e uma escala com os
horrios que os estagirios estariam disposio para marcao de consultas. Em
contrapartida, o Batalho nos forneceu uma sala e divulgou aos policiais o servio que
ofereceramos. Esta estratgia no funcionou e durante algumas semanas nenhum atendimento
foi marcado. Os estagirios, ociosos, comearam a circular no espao do Batalho,
interagindo com os policiais que freqentavam os ptios, cafeterias e estacionamentos.
Percebemos que ao possibilitarmos a entrada da psicanlise e sua atuao na contramo do
universalizante da farda e da patente, permitimos que os estagirios comparecessem, neste
espao, como promotores de implicaes subjetivas. O resultado disso foi uma enorme
resistncia por conta dos prprios policiais, que no princpio no aderiram proposta e
reagiram presena dos estagirios com brincadeiras, piadas e chistes.
Sabemos a ateno que a psicanlise tem com o humor e principalmente com o chiste,
formalizando-o como uma formao do inconsciente, ao lado dos sonhos e atos falhos.
Portanto, entendemos as piadas como indicadores que nos apontavam para um fenmeno
clnico bastante conhecido: a resistncia.
Freud nos ensina que resistncias so passveis de interpretao. So dados clnicos
porque so indicadores do que estaria recalcado. (ROUDINESCO, 1998) Entendemos que os
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Aprendemos que, assim como na clnica, nossa prtica na instituio e sempre ser
contingencial. Devemos nos manter sensveis para o sujeito e suas singularidades, acolhendo
o real no sentido da impossibilidade de previso de resultados, mas nem por isso recuando da
posio de produtores de incompletudes no seio dos saberes que so estabelecidos e sustentam
o adoecimento nas instituies. Nossas regras so congruentes ao real que existe e insiste em
qualquer montagem da cultura do ser falante. E nosso grande aprendizado foi dar lugar
impossibilidade de previso que toda atuao com o real traz.
Referncias bibliogrficas:
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RESUMO
Os transtornos alimentares mais comuns so a anorexia e a bulimia nervosa. Os
estudos psicanalticos apontam ambas como sintomas. Neste trabalho pretendemos discutir as
questes relacionadas ao atendimento clnico individual realizado no CETRATA (Centro de
Tratamento de Transtornos Alimentares, situado no Cear) com pacientes que apresentam
sintomas de anorexia e como a psicanlise, em sua tica, pode apontar caminhos para as
dificuldades encontradas neste trabalho que tem carter de urgncia e de risco de vida. Para
tal nos guiaremos pela obra de Freud, Lacan e comentadores, no que tange tica da
psicanlise, transferncia e clnica das pulses.
Palavras-chaves: psicanlise, transtornos alimentares,tica, transferncia, pulso.
ABSTRACT
The most common eating disorders are anorexia and bulimia nervosa. The psychoanalytic
studies indicate both like symptoms. In this paper we intend to discuss issues related to
clinical care conducted in individual CETRATA (Treatment Center of Eating Disorders,
located in Cear) with patients who have symptoms of anorexia and how psychoanalysis in
his ethics, may point the way to the difficulties encountered in this work that has an
emergency and "life-threatening". To do this we will be guided by the work of Freud, Lacan
and commentators, regarding the ethics of psychoanalysis, and the transfer of vibrations to the
clinic.
Keywords: psychoanalysis, eating disorders,ethics, transference, drive.
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1. INTRODUO
Os Transtornos Alimentares so, sob o ponto de vista da Psicologia e Psiquiatra,
psicopatologias de etiologia complexa, que envolvem aspectos biopsicossociais e
caracterizam-se por comportamento alimentar inadequado, acompanhado de medo mrbido
do ganho de peso e disfuno da imagem corporal. Os mais comuns so a Anorexia e a
Bulimia Nervosa e a prevalncia maior em mulheres jovens, sobretudo, adolescentes. Os
estudos psicanalticos, porm, apontam a anorexia e a bulimia como um sintoma, sendo este
um sintoma que representa risco vida do sujeito, trazendo tona questes relativas tica da
psicanlise na conduo do tratamento. Frente a isto, em 1998 surge o CETRATA (Centro de
Tratamento de Transtornos Alimentares), que funciona em um Hospital Universitrio de
Fortaleza.
Neste trabalho, pretendemos discutir questes relacionadas ao atendimento clnico
individual com pacientes que apresentam sintomas de anorexia, bem como as dificuldades
encontradas nestes atendimentos e como a psicanlise, em sua tica, pode apontar caminhos
para este trabalho, tendo em vista questes como a do no reconhecimento do sintoma pelo
sujeito, a no responsabilizao pelo tratamento, sendo obrigados por outrem a continu-lo e,
sobretudo, o carter de urgncia e de risco de vida ocasionados pela recusa a comer ou pelo
comer nada, principalmente a desnutrio.
Iniciaremos com uma breve descrio do servio oferecido pelo CETRATA. Faremos
um percurso terico em Freud, Lacan e comentadores, partindo da clnica das pulses e de sua
relao com a tica da psicanlise apontando como apenas uma interveno com base na
transferncia pode permitir a emergncia do sujeito da psicanlise. Ilustraremos estas questes
com vinhetas clnicas dos atendimentos.
2. CARACTERIZAO DO SERVIO
O CETRATA realiza atendimento de pacientes diagnosticados com Anorexia Nervosa,
Bulimia Nervosa e Transtornos Alimentares No Especificados, atravs de uma equipe
interdisciplinar que conta com profissionais e estudantes de Medicina (Psiquiatria), Nutrio e
Psicologia.
O programa se fundamenta nos eixos de Ensino, Pesquisa e Extenso, realizando, alm
dos atendimentos clnicos, aes de educao e organizao de eventos voltados para o
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vezes, como uma oposio a uma determinada estrutura familiar, sexualidade se tornar
mulher adulta. O processo teraputico e o tratamento entra nesta srie.
Desde sua fundao nunca houve caso de bito de paciente no CETRATA. Porm, so
frequentes os casos de internamento, que ocorrem, geralmente, quando o tratamento chega a
um estado que mexe na configurao familiar. A adolescente que at ento era passiva,
mantendo um posicionamento de aceitar tudo que imposto pelos pais passa a se colocar de
maneira efetiva em suas relaes, emergindo como sujeito, o que promove ajustamentos
familiares que ocasionam desconforto para a famlia. Nesses casos geralmente alguma medida
tomada pela famlia, que leva ao agravamento do quadro clnico da paciente, sendo assim a
equipe forada a lanar mo do internamento.
Citamos o exemplo de uma paciente, poca com 16 anos que era acompanhada h
cinco meses no servio, a qual passa a discutir com os pais, se posicionando em questes que
lhe diziam respeito, diferentemente de quando iniciou o tratamento. O pai, alcoolista, poltico
da cidade e uma figura autoritria, exercia controle em toda a famlia, fornecendo sustento
financeiro e ditando as regras na casa, bate nela aps ela ter se recusado a voltar da casa da
amiga assim que o pai solicitou. Ele vai peg-la a fora e bate nela como punio. A me em
nada se ope s atitudes do pai. A paciente passa a no se alimentar durante a semana toda,
perdendo muito peso. Quando comparece ao servio, pesando 32 quilos, encaminhada para
o internamento. Depois da alta a paciente vai ainda a duas sesses e retirada do tratamento
pelos pais, pela sua insatisfao com os resultados do atendimento (rebeldia e no ganho de
peso). A paciente s trazida ao servio quase um ano depois, por conta de uma pneumonia
agravado por conta do baixo peso.
A paciente diz que no quer estar ali. Diante de tal situao o analista diz: sua me
pode lhe obrigar a estar aqui, mas eu no vou assumir esse papel, como voc sabe a porta est
sempre aberta, levantando e segurando a maaneta da sala. A paciente ento responde que
sim, desejo continuar aqui de verdade, o que no gosto de falar com a nutricionista porque
ela quer me engordar e eu no acho que precise disso, estou bem assim, no estou aqui
especificamente obrigada pela minha me no, pudemos ento continuar a sesso. Percebi
que a paciente estava mais espontnea, falando sem a necessidade de perguntas e mais
abertamente, olhando no rosto, sem cabea baixa e com menores espaos de silncio, apesar
de relatar eu prefiro responder, o que pode apontar para o seu processo apassivador.
4. CONSIDERAES DA PSICANLISE
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um sintoma que pode surgir em qualquer das estruturas clnicas, podemos nos utilizar deste
paradigma acima para entender, de que modo, a anorxica se coloca em situao de risco para
sua vida, sabe disso, mas no pode abrir mo desse modo de satisfao e desse gozo. claro
que h ainda uma srie de outras questes envolvidas e que s podemos analisar o caso a
caso.
5. CONSIDERAES FINAIS
O que pode ento a psicanlise frente escolha mortfera do sujeito, j que tica da
psicanlise no a tica do bem e do belo, mas a tica do desejo? A psicanlise compreende,
pelas consideraes de Lacan, em seu seminrio 7: a tica da psicanlise, que o que seria o
bem supremo do sujeito a satisfao da pulso. O sujeito que consideramos na psicanlise
um sujeito que visa a baixa das excitaes. E aqui curioso pontuar que Freud utiliza o termo
sujeito em poucas ocasies (o sujeito elevado ao estatuto de conceito na obra de Lacan) e
uma delas exatamente no texto sobre as pulses para dizer que, no circuito da pulso que
se v criar algo novo, um sujeito.
Alberti (2007) aponta, que quando passamos a tratar do mundo do semblante, para
alm do biolgico, entra em questo primordialmente a satisfao do desejo de repetio. Para
manuteno da vida necessrio que o gozo seja regulado levando em conta o desejo. Ou
seja, o desejo vem regular o funcionamento que permite ao sujeito retornar ao estado do
prazer, mesmo tendo chegado ao gozo perigoso. O mais-de-gozar o prprio objeto a, causa
do desejo e promovente do semblante no campo do vivo (ALBERTI, 2007). Est ai uma
direo que a psicanlise aponta: a aposta do analista, pautada na transferncia, de acordo
com a tica na psicanlise e que apela para um desejo do sujeito, fazendo emergir o sujeito do
desejo.
Referncias bibliogrficas:
ALBERTI, S. O bem que se extrai do gozo. Stylus Revista de Psicanlise, n. 14. Rio de
Janeiro: 2007, p. 65-76.
FREUD, S. Pulses e os Destinos da Pulso [1915]. In:______. Escritos Sobre a Psicologia
do Inconsciente. v. 1.Rio de Janeiro: Imago, 2004.
LACAN, J. O Seminrio, livro7: a tica da psicanlise [1959-1960]. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1986.
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RESUMO
As tragdias gregas citadas por Freud e Lacan apontam-nos que na bscula entre
pulso e cultura que se funda a constituio subjetiva. A sequncia entre ambas mediada
por dipo em Colono, enriquecedora para se pensar o desamparo na atualidade. dipo exilado
em Colono pode ser correlato da neurose em tempos de destituio dos ideais. A existncia do
heri trgico no desvalida porque ele no foi aniquilado, pois o trono de Tebas ainda se
vale do familiar que tiver seus restos mortais. dipo capaz de r-existir moralmente, sendo
obrigado a assumir seu abandono e sua experincia errante.
Palavras-chave: pulso, cultura, prxis psicanaltica.
RSUM
Les tragdies grecques cites par Freud et Lacan nous montrent que la constitution
subjective est fonde dans la bascule entre pulsion et culture. La squence entre les deux est
mdie par Ldipe Colone, mite enrichissant nous faire rflchir sur la condition
humaine daujourd'hui. Ldipe exil Colone nous remet la nvrose dans les temps de la
chute des idaux. L'existence du hros tragique nest pas dvalis parce quil na pas t
ananti, aprs tout, le trne de Thbes est encore valable par le familier qui russira d'obtenir
ses restes mortels Ldipe est capable de r-exister moralement, en entant oblig dadmettre
son abandon et son exprience errante.
Mots-cl: pulsion, culture, prxis psichanalytique.
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aquilo que recebe em plena face o feixe de trevas que provm do seu tempo 6 (AGAMBEN,
2008, p.22). dipo Rei lido pela psicanlise de forma a nos atentar para a inexorabilidade do
destino pulsional em um momento cultural que se esfora por viabilizar sua negao. J
Antgona trata-se da visada do desejo como fim da prxis, sendo essa apetecida sem quaisquer
mediaes da lei da Plis, em poca onde a validade de toda ordem questionada.
dipo carrega consigo o peso de uma condenao que tem suas origens nas relaes
libidinais mais primitivas e nos atenta para os perigos da monstruosidade da natureza humana,
sugerindo-nos desgraadamente neg-las via leis civilizatrias. Antgona, ao supor se
libertar delas rompendo com quaisquer reivindicaes culturais, alcana se amarrar nas
mesmas novamente, fazendo valer a qualquer preo sua herana familiar da lealdade e dos
atos hericos e mortferos dos Labdcidas. As tragdias condizem inexorabilidade do
destino trgico. Pois, segundo Freud, o destino encarado como substituto do agente
parental (FREUD 1930/2006, p.130).
Badiou nos atenta para o fim do sculo que se esbarra no espetacular do semblante.
Conceito extrado do teatro, que diz do fazer no real com base na verdade. Como articular a
inveno do sentido submersa ao real devassado como inquestionvel, tanto por ser fato,
como por ser intraduzvel?
Lacan revisita a teoria freudiana do Complexo de dipo no seminrio As formaes do
inconsciente por considera-la relevante para a perspectiva clnica. Relaciona-a direo do
tratamento ao aproxim-la da dialtica do sujeito, ou, da experincia trgica da constituio
subjetiva. Segundo o autor, pelo fato de o homem ter de atravessar toda a floresta do
significante, para se reunir a seus objetos instintivamente vlidos e primitivos, que lidamos
com toda a dialtica do Complexo de dipo. (LACAN, 1958/1999, p. 213) Algo da narrativa
fantasmtica do sujeito deve sim ser acolhido em anlise, para fins de compreenso dos
paradoxos do gozo, uma vez que a partir da anlise do sujeito com os objetos que
apreendemos os enigmas de seu movimento pulsional.
dipo se cega e faz de conta no ver o crime que cometeu. Talvez sua experincia
errante em Colono seja o que mais se aproxima dos infortnios da neurose em tempos onde j
se sabe dos efeitos de limite dos atravessamentos do real na experincia subjetiva. O vu que
o recobre sim, muito necessrio.
Freud questiona se existe alguma tentativa de reforma ligada natureza da civilizao.
Ao discorrer sobre a tica da psicanlise, Lacan nos atenta para tal impasse ao apontar que
na medida em que o sujeito se situa e se constitui em relao ao significante, que nele se
6
Traduo da autora.
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produz essa ruptura, essa diviso, essa ambivalncia em cujo nvel se situa a tenso do desejo
(LACAN, 1960/1997, p. 380). Uma anlise se sustenta no equvoco da neurose. No cura,
apenas articula irreconciliveis via insuficincia de sua envoltura pelo simblico, fazendo jus
ao recurso do semblante. Segundo seu fundador, o programa de tornar-se feliz, que o
princpio do prazer nos impe, no pode ser realizado; contudo, no devemos na verdade,
no podemos abandonar nossos esforos de aproxim-lo da consecuo, de uma maneira ou
de outra (FREUD, 1930/1996, p.90).
Referncias bibliogrficas:
AGAMBEM, G. Quest-ce le contemporain? Paris: Ed. Rivages Poche/Petite biblioteque,
2008.
BADIOU, A. O sculo. So Paulo: Editora Ideias e Letras, 2012
FREUD, S. O mal estar na civilizao [2006 (1930)]. In:
.Edio standard brasileira
das obras psicolgicas completas de Sigmund Freud.Rio de Janeiro: Imago, 2006, v. 21.
LACAN, J. O seminrio, livro 5: as formaes do inconsciente [1957-1958]. Rio de Janeiro:
JZE, 1999.
______. O seminrio, livro 7: a tica da Psicanlise [1959/1960]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1997.
MACHADO, R. O nascimento do trgico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2006.
ROCHA, G. O olho clnico: ensaios e estudos sobre arte e psicanlise. Belo Horizonte:
Scriptum livros, 2008.
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RESUMO
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A clnica do autismo nos conduz a diversos impasses e desafios e nos faz questionar o saber
psicanaltico. Diante de pacientes autistas que parecem ignorar os outros e demonstram no
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utilizar a linguagem com fins de comunicao, nos questionamos: como possvel realizar
com eles uma clnica orientada pela psicanlise?
Apresentaremos um dos dispositivos clnicos oferecidos pelo Projeto Circulando, da
UFRJ, a jovens autistas, a saber, a oficina de teatro. Essa oficina acontece na UNIRIO e
participam dela alunos do curso de teatro da UNIRIO e estagirios do projeto. A proposta
clnica da oficina orientada pela psicanlise, apesar de nem todos os oficineiros estudarem
psicanlise, como o caso dos atores. Mesmo assim, acreditamos que h uma orientao em
comum que perpassa o saber-fazer de cada um junto ao paciente: a aposta no trabalho do
sujeito e o acolhimento do modo do autista estar no mundo.
Partindo da noo de que a forma particular do autista se relacionar com o mundo j
um trabalho realizado por ele enquanto sujeito (RIBEIRO, 2005), buscamos, na oficina, nos
inserir e acompanhar o trabalho de cada paciente. Operamos nos utilizando de objetos,
instrumentos musicais, sons, e inclusive, nosso prprio corpo.Como exemplo: uma de nossas
pacientes se interessa especialmente por instrumentos de percusso. Atentando-nos para esse
interesse, inserimo-nos em seu trabalho utilizando esses instrumentos como mediadores,
atravs dos quais interagimos com ela. Notamos que outro paciente privilegia os objetos, ele
sempre traz consigo alguns e durante as oficinas escolhe outros, que colocamos espalhados no
cho, disposio dos pacientes. Uma das formas de interao estabelecidas com esse
paciente durante as oficinas, ento, faz-se por meio da utilizao de objetos, tanto os trazidos
pelo paciente, quanto aqueles que so por ns oferecidos.
Acreditamos que como direo clnica necessria para se trabalhar com autistas,
devemos nos dirigir aos pacientes de maneira regulada, adotando uma posio esvaziada de
demanda e saber. Questionamo-nos se esse lugar por ns assumido permite que sejamos, em
algumas situaes, tomados como duplo pelos autistas. Apostamos que o duplo um recurso
importante na clnica do autismo, podendo propiciar efeitos de modalizao de gozo e
construo de corpo, tal como verificamos nos pacientes da oficina. Para conseguirmos
circunscrever a funo do duplo para o autista vamos abordar questes relativas constituio
do corpo no autismo e suas relaes com o gozo.
1. OS IMPASSES DA CONSTRUO DO CORPO NO AUTISMO.
Na clnica com autistas, verificamos com frequncia especificidades no que diz
respeito relao destes com o corpo. Como exemplo: muitos autistas se agridem, alguns no
sentem dor, outros tm uma relao muito particular com os objetos do corpo o olhar, a voz,
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fazendo com que a criana advenha significao flica e passe a dispor do falo, como objeto
imaginrio, que lhe permite responder: o que o Outro deseja para alm de mim o falo. O falo
atua, portanto, como um mediador na relao da criana com o Outro. O Nome-do-Pai
tambm permite criana se situar diante de uma lei no caprichosa. o pai, enquanto
significante, que cumpre a funo de barrar o acesso da me criana, submetendo ambas a
uma lei que est para alm delas, uma lei que compartilhada (LACAN, 1957-1958).
No caso dos autistas, a foracluso do Nome-do-Pai e a consequente ausncia da
metfora paterna implica em uma relao no mediada com o Outro. No advindo a uma
significao e lei compartilhadas, o autista est assujeitado ao desejo do Outro, percebido
como caprichoso. O Outro no autismo se constitui, ento, como invasivo.
Na ausncia dos recursos que lhe permitiriam se situar de uma maneira dialtica com
relao ao Outro, o autista ocupa a posio de objeto de gozo do Outro (Lima, 2010).
Segundo Ribeiro (2005, p. 60), o trabalho que o autista realiza se constitui como uma
tentativa de escapar do lugar de gozo do Outro, para barrar o gozo do Outro.
A frmula lacaniana de que nas psicoses o que foi rejeitado do simblico reaparece
no real (LACAN, 1955-1956, p. 59), pode ser compreendida, no caso do autismo, se
considerarmos que o real de que se trata o corpo. Na falta de referncia simblicas, o gozo
sentido como desordenado (RABINOVITCH, 2001 apud LIMA, 2010) e retorna no real do
corpo como imperativo, como podemos verificar, por exemplo, nos casos de autismo em que
so comuns as auto-agresses.
Apesar de no compartilharem de um discurso comum, acreditamos que possvel
para o autista, construir um corpo e operar com o gozo que os invade. A clnica do autismo
nos permitiu verificar que os autistas se utilizam de recursos diversos que lhe permitem tratar
o que lhes avassalador, entre eles se situam o duplo e o objeto autstico.
2. O DUPLO E A CLNICA DO AUTISMO.
A partir da clnica do autismo, constatamos que o duplo, que pode ser tanto um objeto
quanto um outro, um recurso importante para o autista, uma vez que possibilita ao sujeito:
realizar uma localizao do gozo pulsional desregulado em algo que no o prprio do corpo,
contribuindo num engendramento de uma dinmica pulsional e; realizar um tratamento do
Outro, uma vez que possvel para o autista, atravs do duplo, se ligar aos outros e apoiar a
sua enunciao (MALEVAL, 2009). Considerando que objeto autstico complexo opera como
um duplo e, portanto, estendo suas funes ao duplo, citamos Maleval (2009, p. 235): o
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objeto autstico complexo afasta o gozo do corpo do sujeito para localiz-lo em uma borda,
que no mais somente barreira ao Outro, mas tambm conexo realidade social.
Apresentaremos, a seguir, algumas vinhetas da oficina, que nos permitiro realizar
uma transmisso da clnica do autismo, nos questionando sobre lugar ocupado pelos
oficineiros e como este pode nos ajudar a pensar a questo do duplo enquanto recurso na
clnica do autismo.
Nadia, uma de nossas pacientes, tem o seu olhar capturado por objetos que apresentam
movimentos circulares. Ela costuma escolher objetos e realizar movimentos circulares com
eles. Em uma oficina, Nadia pegou uma mola e, enquanto a girava, permaneceu fixamente
olhando apenas para esse objeto. Enquanto isso, outros oficineiros comearam a girar em
torno de si um grande chocalho. Fizeram com isso um jogo, giravam o chocalho ao redor de si
e o passavam para o prximo, que repetia o movimento. Percebemos que Nadia passou a
observar o jogo dos oficineiros. Em determinado momento, passamos a incluir Nadia na
brincadeira, lhe passando o chocalho. Em um primeiro momento, ela apenas o tocou. Depois
o empurrou sutilmente em direo a um dos oficineiros, participando da dinmica da
brincadeira.
Por meio dessa vinheta, verificamos como foi possvel para a paciente, atravs da
interveno realizada na oficina, localizar o excesso pulsional desregulado do objeto olhar, de
maneira a estabelecer uma conexo com o outro, mesmo que pontual, atravs do olhar. No
momento em que ela dirige seu olhar para os oficineiros, ela abre mo de uma satisfao
solitria, excludente do outro, incluindo um outro em sua atividade. Considerando que essa
interveno permitiu a paciente realizar uma regulao do gozo pulsional, nos questionamos
se os oficineiros, nesse momento, podem ter funcionado como um duplo para ela.
Andr, um outro paciente, se interessa particularmente por msica. Nas oficinas,
comum ele se dirigir a um dos oficineiros e cantar um pequeno trecho de alguma msica. Ele
repete esse mesmo trecho at o momento em que algum identifica a msica e passa a cantar
junto com ele, o que lhe gera grande satisfao.
Percebemos, por meio desse exemplo, que Andr pde dar um tratamento s pulses,
nesse caso, ao gozo pulsional vocal. Ao interagir com os oficineiros por meio da msica,
Andr se utiliza da linguagem como forma de se conectar ao outros, mesmo sem engajar
plenamente sua enunciao na fala. Segundo Maleval (2010), a enunciao ameaadora para
o autista, pois apontaria para uma cesso do gozo vocal cesso recusada pelo autista. No
entanto, h maneiras possveis do autista se comunicar por meio da fala, tais como: falar por
intermdio de um objeto ou duplo, cantar, falar para nada dizer, entre outras.
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RESUMO
A insero da psiquiatria nas neurocincias a distanciou gradativamente da psicanlise
em seus mtodos, pesquisas e objetivos. Neste trabalho, falaremos desses trs aspectos, mas
focaremos naquele que diz respeito ao diagnstico. Para cada abordagem, o diagnstico ter
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uma funo, uma importncia e ser estabelecido num momento distinto do tratamento. Para a
medicina, ele o ponto de partida, pois sem diagnstico no h procedimento a ser realizado.
Por outro lado, a psicanlise no possui manuais de classificao de doenas e a hiptese
diagnstica, primordial para o incio da anlise, s concluda no fim.
Palavras-chave: diagnstico, psicanlise, psiquiatria.
ABSTRACT
The psychiatry is being gradually inserted in the neuroscience, which has caused its
departure from the psychoanalysis in the methods, researches and goals. In this study, we will
discourse about these three aspects, but we will focus on that which relates to the diagnosis
For each approach, the diagnosis will have an importance and it will be set to a specific time
of treatment. For medicine, its the starting point, because there isnt medical procedure
without diagnosis. On the other hand, the psychoanalysis doesnt have a disease manual
classification. The diagnostic suspicion is so important to beginning of the treatment, it will
conclude in the end of analisys.
Keywords: diagnosis, psychoanalysis, psychiatry.
Ao tratar do tema psicanlise e psiquiatria, Freud no negava sua inteno de que esses dois
campos do saber caminhassem lado a lado complementado um ao outro. Assim como no
admitia que esta convergncia se transformasse numa confuso de saberes. Para ele, o ponto
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que os afasta a base organicista da psiquiatria que no deve ser assimilada pela psicanlise
(FREUD, 1916/1969). O autor se utilizou da nosologia, bem como da clnica psiquitrica na
formalizao da psicanlise, o que serve para demonstrar uma relao de herana de uma para
com a outra. Da mesma forma, as contribuies da psicanlise marcaram o saber psiquitrico
e isso pode ser constatado no dilogo que havia entre Freud e os grandes tericos da
psiquiatria na primeira dcada do sculo XX. Vinte anos mais tarde, o psiquiatra Jacques
Lacan faz o caminho oposto ao de seus colegas de poca e se dirige psicanlise para
compreender a loucura e criar a possibilidade de um tratamento da psicose. dito caminho
oposto, pois nos anos 20, a proliferao dos psicofrmacos envenenou a proximidade da
psicanlise com a psiquiatria, sobretudo quanto ao esforo de sistematizao dos diagnsticos
que passou a sofrer a influncia da incidncia dos medicamentos. O avano na estrutura
nosogrfica que vinha desde o incio do sculo, estagnou-se totalmente neste perodo. No
lugar da investigao sobre os fenmenos e novas entidades clnicas, a psiquiatria se limitou a
pesquisar os efeitos da administrao dos medicamentos. Quer dizer, no se classifica mais a
manifestao fenomnica de certos sintomas e faz-se o diagnstico a partir de uma articulao
combinatria desses sintomas. A clnica psiquitrica, incluindo a atual, a clnica da resposta
dos sujeitos aos psicofrmacos (MILLER, 1987).
Mais adiante, com o avano das neurocincias e formalizao dos manuais de
classificao de doenas, a psiquiatria afastou-se ainda mais da psicanlise e fez sua evidente
opo pela compreenso da mquina neuronal em detrimento da causalidade psquica, do
sujeito do inconsciente e do critrio da transferncia. A biologizao e adoo do binmio
para cada transtorno, um remdio, levantam a suspeita de que houve um posicionamento
poltico-capitalista, considerando os enormes lucros que a indstria farmacutica vem obtendo
com isso (QUINET, 2001). Por outro lado, os manuais de classificao de patologias se
pretendem universais, inclusive no que diz respeito s doenas mentais. Vrios
questionamentos podem ser levantados sobre este tema, como por exemplo, o fato de o
diagnstico em medicina ser balizado por uma noo de sade que no pode ser replicada em
se tratando do psiquismo. No h um sinal objetivo, no h uma norma, nem padro de
referncia do que seja sade psquica. H sim um consenso cultural sobre comportamento e
desvio que ainda assim, modificado de tempos em tempos, de uma regio para outra, etc.
Dessa forma, no h possibilidade de uma classificao diagnstica ser unvoca e
globalizante, j que ela obrigatoriamente dever se inserir num contexto cultural (ZARIFIAN,
1989).
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Para citar os dois manuais mais importantes, comecemos pelo CID (Classificao
Internacional de Doenas). estabelecido por grupos de trabalho internacional a partir de
listas de diagnstico e definio prvia de cada termo, visando a forma mais sucinta possvel.
Qualquer diferena em relao aos termos da definio probe o diagnstico, sendo estratgica
a utilizao de diversas rubricas inclassificveis. A base para a classificao
eminentemente mdica, portanto sintomtica. O outro sistema norte-americano, sofre
influncia da poderosa Associao Americana de Psiquiatria e conhecido como DSM. Busca
uma linguagem comum e universal. Leva em conta to somente os sintomas objetivos e exclui
qualquer referncia terica ou etiolgica, justificando por exemplo, o banimento do termo
neurose. Obviamente que os sintomas neurticos so descritos, mas precisam apresentar
frequncia estatstica significativa para serem includos neste manual (ZARIFIAN, 1989). O
mdico trabalha reverenciando e referenciado a esses instrumentos, comparando os sintomas
do paciente com aqueles descritos no manual.
Na tica da psicanlise, dar valor de verdade ao fenmeno estar fadado a cometer
erros crassos de diagnstico. O exemplo mais comum o da histeria que pode se apresentar
com sintomas tipicamente psicticos.
verdade que, ao nvel dos fenmenos, no caso de fenmenos corporais, por
exemplo, pela distncia tomada em relao ao corpo, ou sentimento do corpo
como outro, difcil distinguir entre psicose e histeria. Um sujeito psictico e um
histrico podem, num dado momento expressar-se mais ou menos da mesma
maneira. (MILLER, 1988, p. 94)
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RESUMO
O presente trabalho parte da experincia em uma enfermaria psiquitrica pblica para
pensar o momento da crise psictica, a partir da perspectiva da psicanlise. Para tal,
apresenta as formulaes de Jacques Lacan sobre o desencadeamento da psicose, atravs das
quais possvel abordar os fenmenos que se testemunha na crise como decorrentes de uma
particular relao do sujeito com o campo da linguagem. Com isso, aposta que a presena do
analista junto ao psictico, no momento do desencadeamento, pode favorecer o trabalho de
estabilizao desse sujeito.
Palavras-chave: psicose, desencadeamento, psicanlise, enfermaria de crise psiquitrica.
ABSTRACT
This work comes from the experience in a public psychiatric ward to think the moment
of "psychotic break" from the perspective of psychoanalysis. For such, it presents the
formulations of Jacques Lacan on the onset of psychosis, through which it is possible to
address the phenomena we witness at this moment as resulting from a particular subject's
relation to language. We bet that the presence of an analyst with the psychotic at the time of
triggering can facilitate the work of the stabilization of this subject.
Keywords: psychosis, triggering, psychoanalysis, psychiatric crisis ward.
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O direito de asilo est estabelecido no artigo XIV da Declarao Universal dos Direitos Humanos, Adotada e
proclamada pela resoluo 217 A (III) daAssembleia Geral das Naes Unidas em 10 de dezembro de 1948:
Toda pessoa, vtima de perseguio, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros pases. In:
http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm. Verificado em 11/08/2013.
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O termo desencadeamento tem, segundo o dicionrio Caldas Aulete, dentre outros significados: soltura de algo
ou de algum preso ou atado por cadeias; ao ou resultado de provocar certo acontecimento, resultado, reao
ou resposta; manifestao sbita e violenta http://aulete.uol.com.br/desencadeamento. Verificado em04/06/2013.
9
Alm disso, a ideia de desencadeamento nos distancia do conceito de crise da Psiquiatria Preventiva
americana:crises evolutivas geradas pelos processos normais de desenvolvimento fsico, emocional ou social;e
crises acidentais, imprevistas, precipitadas por uma grande ameaa de perda ou por uma perda. Por sua
capacidade de perturbao emocional teriam a capacidade de levar futuramente doena e deveriam ser
acompanhados por tcnicos da sade mental para prevenir esse desdobramento.
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sentido,o que importa menos o pai da realidade do que a posio do pai no Complexo de
dipo: A funo do pai no Complexo de dipo ser um significante que substitui o primeiro
significante introduzido na simbolizao, o significante materno (LACAN, 1957-1958/1998,
p. 180).
O Nome-do-Pai representa, no grande Outro, o Outro que d alcance lei. Com a
interveno do pai, a demanda que a criana enderea ao Outro primordial, representado pela
me, ser encaminhada a um tribunal superior. Por esse motivo, Lacan considera que o que
constitui o carter decisivo do Complexo de dipo deve ser isolado como a relao da me,
no com o pai, mas com a palavra do pai.
Lacan (1957-58/1998) afirma que a aceitao ou recusa pelo sujeito da privao da
me um ponto nodal de sua estruturao, pois coloca para ele a questo de aceitar, registrar,
simbolizar, tornar significante essa privao da qual a me revela-se objeto. Ou seja, aquilo
que desvincula o sujeito de sua identificao liga-o, ao mesmo tempo, ao primeiro
aparecimento da lei. Atravs dele, o pai perfila-se, por trs da relao da me com o objeto de
seu desejo, como aquele que castra.
Vai considerar que se a criana no ultrapassa esse ponto nodal, no aceita a privao
do falo efetuada na me pelo pai, ela mantm em pauta uma certa forma de identificao com
o objeto da me, objeto-rival, o falo.
o que podemos observar nas psicoses antes do desencadeamento. Quinet (2000)
afirma que estruturalmente a essa identificao com o falo que se encontra atrelado, no nvel
imaginrio, o sujeito antes da entrada na psicose. Identificao que d sustentodevido a nointerveno do pai simblico, foracludo.
Segundo Lacan, o equilbrio puramente imaginrio com o outro marcado por uma
profunda instabilidade. No texto De uma questo preliminar (1966/1998), indica que ao se
abalar a identificao pela qual o sujeito assumiu o desejo da me, que a psicose
desencadeada. Nesse texto,utiliza o esquema L para demonstrar a funo imaginria do eu e o
fato de que o estado do sujeito S (neurose ou psicose) depende do que se desenrola no grande
Outro. O sujeito s pode estar implicado no discurso se for parte integrante do mesmo e ele o
no esquema L sendo repuxado para quatro cantos: em S, sua inefvel e estpida existncia;
a, seus objetos; a, seu eu, isto , o que se reflete de sua forma em seus objetos; e A, lugar de
onde lhe pode ser formulada a questo de sua existncia. Esses termos esto dispostos em dois
eixos: o imaginrio, composto pelos termos a-a; e o eixo simblico, composto por S e A.
em A, no grande Outro, que estaria situado o significante Nome-do-Pai, fato que no
ocorre na psicose. O desencadeamento acontece quando o Nome-do-Pai invocado em
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oposio simblica ao sujeito, ali onde ele nunca esteve. Isso ocorreria no encontro no com o
pai do seu cotidiano, mas com Um-pai situado numa posio terceira em relao ao eixo
imaginrio a-a, eixo que como foi indicado anteriormente, sustentou o sujeito at esse
momento. Lacan afirma que a referncia a essa posio terceira do significante paterno
fundamental para desfazer equvocos e contradies na compreenso do que enseja a entrada
na psicose.
A falta do significante Nome-do-Pai nesse lugar abre um furo no significado, o que
Lacan vai colocar no esquema I apresentado no referido texto de 1966, a propsito da
soluo encontrada por Schreber para sua psicose como P0 e o, pois o Nome-do-Pai no
podendo responder no grande Outro, no viabiliza a significao flica.
Isso d incio cascata de remanejamentos do significante de onde provm o desastre
crescente do imaginrio, visto que no campo humano, o simblico e o imaginrio se
sobrepem. So os fenmenos decorrentes desse desastre, dessa debandada do significante,
que so acompanhados numa internao psiquitrica, no momento do desencadeamento e que
caracterizam a posio peculiar dos psicticos em relao linguagem.
Vidal (2005) afirma que com o termo foracluso, Lacan funda um conceito que no
um mecanismo, mas uma posio na linguagem:
A Verwerfung a rejeio de certos significantes que ficaro para sempre fora do
inconsciente. Consiste, pois, numa posio ativa do sujeito face ao insuportvel, um
dos nomes do impossvel. A forcluso no se reduz ao ato de rejeio, mas tambm
ao seu efeito, ao modo de apario do real (VIDAL, 2005, p. 152).
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RESUMO
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Este texto investiga a leitura empreendida por Michel Foucault sobre os textos de
Freud em sua arqueologia e nos estudos sobre a Antiguidade. Inicialmente, aborda-se a
referncia ambgua do filsofo psicanlise ao pens-la ora por uma tradio crtica, ora por
uma tradio trgica de abordagem da loucura. Depois, contrapem-se as formaes
discursivas das cincias humanas e da psicanlise na modernidade a partir das categorias de
impensado e finitude. E, por fim, discorre-se sobre a hiptese do ltimo Foucault de a
psicanlise retomar o problema da espiritualidade ao recorrer dimenso tica da relao
entre sujeito e verdade.
Palavras-chave:arqueologia, psicanlise, modernidade,subjetividade.
ABSTRACT
This paper investigates the reading undertaken by Michel Foucault on Freuds writings in his
archeology and in the studies on Antiguity. Initially,we approache the ambiguous reference of
the philosopher to psychoanalysis by thinking it both in a critical tradition andin a tragic
tradition of approach to madness. Then wecomparethe discursive formations ofhuman
sciences and psychoanalysis in modernity, considering the categories of thoughtless and
finitude. And finally we talk about the last Foucaults hypothesis that psychoanalysis resumes
the issue of spirituality by referring to the ethical dimension of the relationship between
subject and truth.
Keywords:archeology, psychoanalysis, modernity,subjectivity.
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ocidental, aquela entre o Renascimento e a idade clssica, e aquela entre a idade clssica e a
modernidade. A noo de acontecimento aqui central, visto que trata do aparecimento de
uma abertura no pensamento que modifica o nvel estrutural de sua articulao: de alguma
maneira o pensamento deixa de pensar algumas coisas e passa a pensar outras (FOUCAULT,
1966). Desse sistema geral, as disciplinas podem formar conceitos, objetos, enunciados,
operar escolhas estratgicas, constituindo-se como unidades discursivas esse o segundo
ponto. A psicanlise como discursividade surge a partir de um sistema de formao, sendo da
que pode criar conceitos. Os conceitos so como acontecimentos: remetem ruptura de um
discurso relativamente a seu sistema de formao, de modo que da mesma forma que um
discurso determinado por sua episteme, ele pode produzir coisas novas, novas formas de
pensar, e isso criando conceitos. O terceiro ponto fala da possibilidade de transgresso, da
problematizao da atualidade de um discurso e de como a sua crtica pode permitir o seu
ultrapassamento, o seu devir emancipatrio em autonomia e novidade no pensamento
(FOUCAULT, 1982/1994; FOUCAULT, 1990). Esse aspecto quer dizer da psicanlise como
forma de subjetivao que seja resistncia aos processos de normatizao da vida regulados
pelos dispositivos de saber e de poder na modernidade. Posto isso, anunciamos o nosso
objetivo: pensar as relaes entre psicanlise e modernidade a partir da leitura de Freud
empreendida por Foucault. Nossa metodologia partir do diagnstico de Foucault, e isso no
significa que se trata de um estatuto j definido para a psicanlise nem de uma contribuio j
estabelecida, mas sim de um enunciado bastante significativo e que pode contribuir para a
prtica discursiva em psicanlise. Queremos considerar a sua leitura visando tom-la como
um ponto de partida para da estabelecer pontos de concordncia ou de discordncia, pontos
de construo ou de desconstruo, de modo que problematizar a psicanlise seja
desenvolv-la, alcanar nela pensamentos outros, ultrapassando aqueles determinados pela
atual possibilidade. Num primeiro momento, abordaremos os estudos de Foucault sobre a
Histria da Loucura e sobre As palavras e as coisas, visando pensar uma descontinuidade da
psicanlise em relao ao solo de formao discursiva da episteme moderna. Num segundo
momento, examinaremos a hiptese presente no ltimo Foucault de a psicanlise retomar a
problemtica da espiritualidade. Ao reclamar em sua prtica discursiva a dimenso tica por
um vnculo estreito do sujeito com a verdade, a psicanlise operaria contra os imperativos
polticos de assujeitamento e a favor da liberdade e da produo de sina clnica.
Primeira grande obra de Foucault, a Histria da loucura consistiu numa tentativa de
retomar a loucura como uma experincia de obra, uma vez que desde o classicismo e at a
modernidade ela teria sido marcada pelo silncio, pela negatividade e pela ausncia de
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Ora, enquanto que nessa histria, ter-se-ia feito uma histria do outro, seria preciso
tambm fazer uma histria domesmono pensamento ocidental; seria preciso pensar no lugar
comum de constituio dos diferentes domnios discursivos, levando em conta a identidade de
suas referncias num dado perodo da histria. A obra que Foucault dedica para isso As
palavras e as coisas, preocupando-se ali em definir em linhas gerais uma arqueologia do
pensamento moderno (FOUCAULT, 1966). Para Foucault, na modernidade existiriam
algumas descontinuidades do pensamento em relao ao classicismo, a saber, o aparecimento
do homem, e as relaes desse homem com o impensado e com a finitude. Num mundo no
mais redobrado sobre si por uma semelhana entre as palavras e as coisas tal qual o da
Renascena, nem mais representado pela ordem do pensamento tal qual o do classicismo, o
homem moderno ver-se-ia atravessado por uma abertura mltipla da linguagem e do mundo
caracterstica de uma histria; seria obrigado a pensar um impensado, um termo ltimo do
pensamento que lhe escaparia e que na realidade tambm o fundaria. que os processos da
vida aconteceriam antes da subjetividade, e quando o pensamento pudesse se desdobrar para
pens-los s poderia faz-lo a partir dessa constatao. Para Foucault, essa teria sido uma
modificao fundamental da modernidade em relao ao classicismo, uma vez que se
desfariam as relaes de continuidade entre ser e representao, sendo o homem levado a ser
tanto o pensamento quanto o no-pensamento. Ademais, o atravessamento da subjetividade
por processos e por positividades que lhe escapam tambm marcaria justamente a dimenso
de finitude de todo saber. Este seria confrontado a todo momento com um processo no
exterior vida, mas como que presente em seu interior, atravessando a sua existncia. Nas
experincias da vida, da linguagem e do trabalho, o homem ver-se-ia diante de seu limite, ou
seja, a morte, de modo que a modernidade seria definitivamente determinada a pensar o
impensado e a ser a finitude. da que surgiria para Foucault a figura do homem, e isso pela
primeira vez na histria do ocidente. Tratar-se-ia de um personagem suposto na idade clssica,
mas que por consistir em condio de possibilidade da representao no pde ser por ela
pensado. Teria sido necessrio ao pensamento encontrar o seu limite no negativodo
impensado e da finitude para que o lugar vazio da representao surgisse ao discurso
moderno. No entanto, se por um lado, a partir da a determinao do homem passaria
necessariamente por essa negatividade, por outro, no campo das ditas cincias humanas, ela
se constituiria com base no prprio homem como princpio de todo saber. nesse, pelos
registros da conscincia e do pensamento, que se constituiria a possibilidade mesma do
conhecimento. Nesse ponto, a contribuio da psicanlise, segundo Foucault, torna-se
bastante importante, uma vez que surgindo como que deliberadamente para pensar o
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irredutvel: ele seria herdeiro de uma tradio crtica sobre a loucura, que a entendia como
desrazo e ausncia de obra, sendotambm alinhado a uma perspectiva trgica, que tomaria a
loucura no campo da verdade e da obra. Num segundo momento, a psicanlise apareceria na
modernidade como que positivando as dimenses do impensado e da finitude na experincia
do pensamento, colocando em questo as categorias de representao e de sujeito como
fundamentos de si. E, por fim, a psicanlise retomaria a problemtica da espiritualidade, por
um vnculo estreito de seu discurso com a verdade. V-se que possibilidade de
ultrapassamento da tradio crtica da loucura, do humanismo no pensamento, e das prticas
ticas e polticas de normatizao est justamente na insistncia da psicanlise na manuteno
da loucura, do impensado, da finitude e da verdade pelo inconsciente visando formao de
um sujeito e de um modo especfico de pensar na modernidade.
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LACAN, J. Linstance de la lettre dans linconscient ou la raison depuis Freud [1957]. In:
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RESUMO
Problematizamos a prtica do Acompanhamento Teraputico circunscrita ao espao
interno da enfermaria e hospital psiquitrico, bem como suas tarefas e rotina diria da
enfermaria. Como pensar a prtica do AT como uma prtica clnica? O que o acompanhante
teraputico pode fazer para acompanhar o sujeito e no se limitar rotina da enfermaria?
Partimos da Psicanlise, como referncia clnica e terica, para afirmar a funo clnica do AT
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tanto daquele que o enuncia como daquele que o escuta (JORGE, 1978, p.11), o at insiste em
reconhecer o sujeito (do inconsciente).
Obedecendo a marcao do tempo das refeies, banhos e medicaes, a esttica
rotina das pacientes na internao traduz algo de uma homogeneizao. s 8h as pacientes
eram chamadas para tomar a medicao e o caf. Em seguida, eram encaminhadas ao banho.
s 9:30 min era aberto o ptio interno, onde elas podiam fumar e circular num espao um
pouco maior que o corredor da enfermaria. s 11h era fechado o ptio e elas eram chamadas
para o almoo. s 14h era o horrio da medicao da tarde. O ptio era aberto novamente e s
15h era a hora do lanche. s 17h era fechado o ptio e s 16h era servido o jantar. s 20h elas
eram chamadas para a ceia e a medicao. s 22h todas deviam estar em seus leitos. No dia
seguinte, s 8h elas eram chamadas para tomar a medicao e o caf... E assim seguia a rotina
diria.
Nessa rotina e nos intervalos, o at devia estar presente. tomando ao p da letra a
indicao lacaniana de secretrio do alienado (LACAN, 1955-1956/2008), que podemos
situar a funo do at tal como a funo do analista. O at, com sua presena constante na
enfermaria (24h por dia) acompanha o sujeito, situa-se numa posio de secretrio, como
aquele que testemunha e secretaria a produo delirante ou outras solues que o sujeito pode
construir para fazer barra ao gozo excessivo.
Diante da rotinizao e uma certa homogeneizao existente na internao, o at
favorece que cada paciente, na sua singularidade, possa encontrar um lugar para expresso da
sua palavra, da sua vivncia, e das suas escolhas. Por exemplo, quando uma paciente que
recusava h dias o almoo, pude me aproximar dela e escutar que a comida estava vindo
envenenada e, aos poucos, descobrir junto com ela, que a comida que no vinha envenenada
era quando certa copeira (a qual demonstrava grande afeto por ela) trazia e lhe servia. Foi
necessrio percorrer outros setores do hospital para que essa copeira pudesse servi-la na hora
do almoo. Outro exemplo se refere ao momento de acompanhar os banhos, junto com os
tcnicos de enfermagem, onde pude perceber o quanto era difcil para certa paciente ensaboar
seu corpo e se vestir. Ao mesmo tempo em que ia lhe indicando as partes do corpo, para que
pudesse se banhar e se vestir, ela ia me dizendo atravs de uma fala bastante desconexa,
entrecortada, que sentia uma angstia no peito, um pnico que lhe fazia ficar doente. Ou,
em outro exemplo, em que pude escutar de certa paciente que esta precisava fumar porque
cada cigarro tragado era um desastre a menos no mundo, Eu mantenho o mundo a salvo. Se
eu no fumar eu vou explodir, vou ficar agressiva. T vendo essa chuva, ento, pode alagar a
cidade se eu no fumar; Jesus t pedindo pra fumar, ele t me falando aqui. Se eu no fumar
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pode haver o Apocalipse, o fim do Mundo. Nesse caso, busquei abrir brechas na regulao
institucional, levando-a para fumar em horrios extras ao da rotina do cigarro.
Eram-nos atribudas vrias tarefas, como exemplo, acompanhar os momentos no
refeitrio, o horrio do banho, as visitas familiares; acompanhar as pacientes nos horrios em
que o ptio interno era aberto; organizar as pacientes para participarem das oficinas
teraputicas, sadas em grupo e individuais para o ptio do hospital; coordenar os grupos
chamados Bom dia e Boa tarde e at, acompanhar os momentos de conteno mecnica11.
Diante de tantas tarefas a cumprir como pensar a prtica do AT como uma prtica
clnica? Como no cair facilmente numa posio de tarefeiro? Posio essa tarefeiro que era muito discutida em reunies de superviso, em que alguns ats reclamavam a
quantidade de atribuies que deveriam cumprir e no conseguir tempo para os detalhes
importantes de cada caso. Outras questes ficavam em aberto, tais como: era possvel
acompanhar um caso mais de perto? ou quando uma paciente nos atribua o lugar de
referncia na internao, poderamos ser a referncia do caso? Ao at no era permitido atender
pacientes em sala de consultrio existentes dentro da enfermaria. O AT estava circunscrito ao
coletivo da enfermaria. Como pensar, ento, AT enquanto um dispositivo clnico na
enfermaria de crise? Como afirmar uma prtica clnica?
O at tem no dispositivo analtico o lugar onde o psicanalista comparece o discurso
do analista orientado pela tica da psicanlise e o desejo do analista. Sobre o dispositivo
analtico, podendo operar em qualquer lugar onde se quer que a psicanlise acontea, Luciano
Elia escreve:
Jacques Lacan, ao empreender sua famosa leitura dos textos freudianos [...]
introduziu um outro modo de conceber o lugar em que se pratica uma psicanlise,
situando-o como lugar estrutural, em que um analista estabelece um modo
inteiramente particular, definido pelo discurso analtico, de relacionar-se com um
sujeito o analisante no trabalho de anlise. Deu a esse lugar o nome de
dispositivo analtico. (ELIA, 2000, p.29).
A conteno mecnica um procedimento emergencial, visto como o ltimo recurso para controlar agitaes
psicomotoras, condutas violentas, ameaadoras e de alto risco para o prprio paciente, para os demais pacientes e
para a equipe. Somente realizado com prescrio mdica, para os casos de extrema necessidade. Utilizam-se
faixas de tecido para amarrar os quatro membros na cama, e se necessrio, um lenol torcido pode ser utilizado
para restringir o tronco.
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interno e externo, espao do refeitrio, sala de tv, espaos onde ficam os leitos, sala de terapia
ocupacional.
Estamos falando de uma prtica (AT) situada numa enfermaria psiquitrica, lugar por
excelncia do discurso do mdico. Partindo da psiquiatria enquanto instituio, o que se
observa e se reproduz nos procedimentos rotineiros da enfermaria o aniquilamento do
sujeito. Como pensar o at tal como o analista numa enfermaria psiquitrica, onde lhe so
cobrados o cumprimento de certas tarefas associadas a uma rotina?
O at se aproxima da tica da psicanlise, com seu desejo de analista, quando
acompanha o paciente em suas tarefas dirias, escutando-o, portando-se como agente, aberto
ao imprevisvel e a correr riscos, desviando-se de ter um guiar a partir de um saber a priori.
visando ao sujeito que s pode advir no intervalo entre os significantes, imprevisvel - que o
analista (at) se situa no seu discurso. O analista deve ocupar um lugar vazio de saber, propcio
s invenes e ao imprevisvel.
O discurso do analista se contrape-se ao discurso do mdico podendo dizer aqui,
discurso do psiquiatra que bastante prximo do discurso do mestre, onde o mdico s
existe em sua referncia constante ao saber mdico, ao corpo mdico, instituio mdica
(COUTINHO JORGE, 1978, p. 11) e como aquele que sabe, anulando o sujeito. Atravs das
diversas etapas pelas quais se efetua o ato mdico, ou seja, as etapas do diagnstico, do
prognstico e da teraputica, o que se configura um discurso totalitrio que exclui a
diferena, o nico modo pelo qual a subjetividade poderia se manifestar (JORGE, 1978, p.
18).
O discurso do psiquiatra busca a apropriao do paciente por meio de um saber sobre
ele, a psicofarmacologia, totalmente inserida nesse discurso, sendo utilizada como nico
recurso no tratamento, pode oferecer solues que podem obstruir a escuta daquilo que o
sujeito traz como sofrimento.
S. Freud em sua Conferncia XVI Psicanlise e Psiquiatria enfatiza a importncia
dos detalhes de cada caso, em que, ns, psicanalistas, devemos estar atentos s diferenas,
singularidade de cada um, ao que cada sujeito traz como sofrimento, sem considerar, no
entanto, efeitos benficos imediatos.
O at com seu desejo de analista se contrape ao ato mdico e a todas as
prticashomogeneizantes presentes na instituio psiquitrica, tal como o uso de uniformes,
rotina, horrios, roupas e pertences retirados, material de higiene padronizado e proibio de
entrada de outros alimentos que no so os do hospital. Essa contraposio dita acima, diz
respeito possibilidade do at de operar com o sujeito diante desses atos do discurso
mdico/mestre, de manejar com a diferena de cada caso no fluxo dos acontecimentos
institucionalizantes.
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Convivncia um termo que designa o espao de circulao dos pacientes, seja na enfermaria ou no espao
interno do hospital. O at no pode fazer uso das salas de atendimento individual, nem de oficinas teraputicas,
como tambm no pode fazer sadas individuais ou em grupo durante um perodo de tempo prolongado.
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RESUMO
Em 1972 Jacques Lacan nos fala do discurso capitalista, resultado da sedimentao do
capitalismo e da globalizao. Neste, a operao em jogo a foracluso da castrao, no
havendo a possibilidade de se fazer lao. No hospital universitrio, um dos efeitos deste
discurso so as avaliaes, que pretendem diagnosticar e classificar o sofrimento do paciente,
e tambm verificar objetivamente a eficcia da escuta do analista. Assim, pergunta-se: o que
pode o analista frente ao empuxo avaliativo?
Palavras-chave: avaliao, psicanlise, discurso capitalista.
ABSTRACT
In 1972, Jacques Lacan tells us about the capitalist speech which is the result of
capitalism and globalization. In this speech, the operation involved is the forclosure of the
castration and the impossibility of making social link as a result. In a University Teaching
Hospital, one of the effects of this speech is the evaluations, which intend to diagnose and
classify the suffering of patients and also verify the efficiency of the analysts work. Thus a
question arises: what can an analyst do before this evaluation tendency.
Keywords: evaluation, psychoanalysis, capitalist speech.
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Nos anos que sucederam o fim da Primeira Grande Guerra, psicanalistas foram
solicitados por instituies militares para tratar de soldados traumatizados pelos campos de
batalha. Com isso, durante os anos de 1918 e 1919, muitos militares passaram a assistir aos
congressos de psicanlise e propuseram a criao de centros clnicos dedicados ao tratamento
psicolgico de neurticos, que sofriam com os efeitos da guerra. Foi nesse cenrio que se deu
a criao do Instituto de Berlim, o primeiro servio ambulatorial de orientao psicanaltica.
Hoje, a psicanlise continua fazendo o mesmo movimento e no mais se define como
uma prtica que se restringe s quatro paredes de um consultrio particular. Atualmente, h
psicanalistas atuando em escolas, penitencirias, empresas e hospitais. Dessa forma, muitas
vezes, o psicanalista, encarnado na figura do psiclogo, encontra-se compondo o quadro de
funcionrios de um hospital universitrio. Neste contexto, percebe-se, cada vez mais, a
incidncia de algo que permeia nosso movimento simblico contemporneo: o empuxo a
avaliao como efeito do discurso capitalista.
Para abordarmos essa questo, retomemos, primeiramente, um perodo bastante
frutfero do ensino de Jacques Lacan. Entre os anos 1968 e 1972, o psicanalista francs,
influenciado pela conferncia O que um autor?de Michel Foucault, d uma nova tonalidade
a seu retorno a Freud e comea a tratar a as questes freudianas pela via discursiva. Assim,
Lacan passa a seguir risca o apontamento feito pelo filsofo de que o estatuto do sujeito
deve ser analisado como uma funo complexa e variada do discurso (ALBERTI, 2002).
Portanto, em seu O seminrio, livro 17: O avesso da psicanlise Lacan (19681969)propor que a linguagem quase um parasita que, ao habitar o corpo do homem, opera a
perda de um gozo, de um gozo natural. O significante ento tira o sujeito da natureza para
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inseri-lo na cultura. Todavia, essa operao o divide, criando um vale entre o ser e o corpo e
engendrando uma falha epistemo-somtica. Ou seja, no h simblico que d conta do real do
corpo e, com isso, o sujeito se coloca sempre procura de um gozo a mais, de um mais-degozar, tentando ilusoriamente suturar essa falha (LACAN, 1966/2001).
Dentro desta perspectiva, a partir das trs tarefas ditas impossveis por Freud
(1937/1996) governar, educar e psicanalisar Lacan acrescenta uma quarta fazer desejar -,
formalizando quatro modalidades de lao social. Ou seja, o homem, diante de seu desamparo,
de sua perda ao entrar na cultura, tem como possibilidade, ainda que precria, a troca com o
Outro e os discursos representam as diferentes maneiras que isso pode se dar. Assim, mesmo
demarcando possibilidades de lao, o discurso do mestre, o discurso do universitrio, o
discurso do analista e o discurso da histrica, carregam a falta em sua estrutura e estabelecem
relaes permeadas pelo saber e pelo gozo. Alm disso, apesar de algo ser produzido dessas
relaes, uma impossibilidade est posta: no h como se equivaler o produto verdade.
Entretanto, em um momento posterior de seu ensino, Lacan nos falar de um quinto
discurso que, ao contrario do outros, parece no fazer lao. Vejamos a que Lacan se refere e
qual o efeito disso no hospital universitrio.
1. O DISCURSO DO MESTRE MODERNO E A AVALIAO
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Discurso capitalista
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Portanto, a medida instaurada pela avaliao cria, uma alta autoridade para a sade,
um ideal no qual pode-se basear, que parece remediar a angstia daquele que tem que tomar
uma deciso no mbito da clnica. No entanto, longe de restaurar a autoridade, ela (a
avaliao) acentua ali a miragem tornando-se cada dia mais, o nico modo de governana
(AFLALO, 2011, p.55).
Alm disso, rejeitando a singularidade no nvel das palavras mestras e almejando
vencer o gozo incluindo-o em clculos sem resto,a avaliao um cientificismo que afirma
que o saber totalizvel sem que nenhum impossvel lhe imponha limite (AFLALO, 2011, p.
56). Entretanto, nenhum questionrio passvel de eliminar a relao ntima entre o sujeito e
o gozo. Toda Curva de Gauss aceita um desvio padro e ele que recebemos em nossos
consultrios! Ou seja, sempre haver um descompasso na passagem da qualidade para a
quantidade, do sensvel para o mensurvel e entre o gozo perverso do avaliador e o avaliado
que se permite colocar na posio de objeto (BRODSKY, 2004). Afinal, o sujeito do
inconsciente subversivo!
Atrelado a isso, em Televiso, Lacan formula que (...) o discurso cientfico e o
discurso histrico tem quase a mesma estrutura (1974/1993, p.40) e de o mesmo conseguir a
alunissagem, em que se atesta para o pensamento a irrupo de um real (LACAN,
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1974/1993, p.65). No pretendemos aqui discorrer sobre a cincia, tal tema por demais
complexo e mereceria um trabalho a parte. Entretanto, essas colocaes de Lacan ecoam e nos
mostram que semelhantemente ao discurso da histrica, o discurso cientfico reivindica uma
verdade e que essa tem a ver com o real.
O discurso da cincia, tal qual o discurso histrico apoia-se sobre o simblico na
esperana que este de conta do real, recobrindo-o sem resto. No entanto, independente do que
se faa, independente do S1 produzido pela avaliao, o real escapa. Mas o real no apenas
escapa. A prpria operao do simblico sobre o real faz com que esse se produza mais a
diante, sem cessar. Portanto, h aqui um paradoxo: a avaliao, to presente no discurso
cientfico atual, produz o real que lhe escapa. (ANSERMET, 2011)
Diante disso, podemos nos questionar: no teria sido o casamento entre a cincia e o
capitalismo, uma sada sintomtica, uma estratgia histrica de fazer Um? Seria mesmo o
discurso capitalista sem furo e impossibilitado de fazer lao? A visada do ter, presente no
discurso capitalista, no seria uma demanda histrica ter para ser para o Outro? No seria
esta a lgica da avaliao, em sua pretenso de produzir um S1 que tudo diga sobre o sujeito?
Essas so perguntas que no temos a pretenso de responde-las todas e, muito menos
completamente.
Entretanto, como analistas, somos convocados a fazer falar nosso movimento
simblico, uma vez que, em psicanlise, trata-se justamente desse real que escapa cincia.
No nos esqueamos de Lacan (1966/1998) que comea seu texto A Cincia e a Verdade nos
alertando para o fato de a psicanlise operar justamente sobre o sujeito da cincia sujeito
dividido pela dvida metdica, pelo real da castrao. Afinal, como aponta Jorge (2002), o
discurso do analista o nico que no lugar do agente localiza-se um objeto e que considera o
Outro como sujeito.
Assim, no mbito hospitalar ou em qualquer contexto em que a escuta analtica seja
possvel, o analista deve deixar que o real da clnica toque sua prtica (LAMBERT, 2003).
preciso dar ouvidos aos efeitos de real produzidos no s pelos fenmenos clnicos, como
tambm pela tenso entre o Bem de todos/para todos e o gozo de cada um. nesse entre,
nesses pontos de no relao, que se apresentam no s na fala dos pacientes, mas tambm no
saber da equipe sobre o paciente, no funcionamento da instituio e, at mesmo, nos
resultados das avaliaes, que o trabalho do analista no hospital universitrio - sempre via
transferncia - torna-se possvel.
Referncias bibliogrficas:
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RESUMO
O trabalho parte da nova ordem simblica no sculo XXI e seus impasses para a
clnica psicanaltica. Sujeitos refratrios ao sentido e associao livre buscam atendimento
psicanaltico, apresentando o padecimento de seus corpos, marcados por significantes mestres
universais, que parecem dizer tudo sobre seu sofrimento. Como re-conceitualizar a
interpretao psicanaltica visando transformar a relao atual entre o sujeito e seu sintoma?
Discutimos a inovao lacaniana do corte como bssola para orientar a direo real da
interpretao e como modo de incidir no sinthoma, ponto singular de amarrao entre o corpo,
o significante e o impossvel de ser simbolizado.
Palavras chave: interpretao, corte,sinthoma.
RSUM
Le travail sinterresse la nouvelle ordre symbolique du vinte-et-unime scicle et
aux impasses pour la clinique psychanalytique. Les sujets rfractaires au sens et
lassociation libre, qui cherchent lattention psycanalytique, prsentent la souffrance de leur
corps, marqus par les significants mtres universels, qui semblent tout dire sur leur douleurs.
Comment re-conceptualiser linterprtation psycanalytique, ayant pour but transformer la
relation actuelle entre le sujet et son symptme? On discute linnovation lacanienne de la
coupure comme une boussole pour orienter la direction rele de linterprtation et comme
moyen de tomber sur le sympthme, point denchorage entre le corps, le signifiant et
limpossible dtre symbolis.
Mots-cles: interpretation, coupure, sympthme.
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O desafio da clnica psicanaltica atual se localiza nos impasses produzidos por dois
discursos da cincia e do capitalismo que, ao se combinarem, atingiram o fundamento da
tradio da experincia humana e produziram uma nova ordem simblica no sculo XXI
(MILLER, 2012). Lacan nos mostra que o significante primordial o nome-do-pai, que tem o
incesto e o parricdio como operadores estruturais em torno do qual o universo da
representao neurtica se assenta e que Freud demonstra, por analogia, constituir o que
regula a ordem civilizatria. Se o sintoma neurtico produzido pelo recalque permitiu uma
leitura freudiana da sociedade moderna, podemos ler a sintomatologia que chega s
instituies de sade pblica, de sade mental, bem como demanda de atendimento em
consultrio como forma de interrogar a civilizao hipermoderna. Eric Laurent (2013) aponta
que no mais o sintoma histrico que est no horizonte da prtica psicanaltica; constata-se,
outrossim, que h uma queda do nome-do-pai como operador que regula a civilizao atual.
Recebemos sujeitos hoje que no trazem um sentido, um interpreteque os acompanha
em sua queixa sobre o sintoma, como se a linguagem da medicina tecnologizada dissesse tudo
sobre seu corpo ou como se o corpo falasse por si mesmo. Laurent nos chama ateno para
uma biologia atual, vinculada s ultimas descobertas genticas associada ao avano
tecnolgico, que se apodera dos corpos recortando suas mensagens sem levar em
considerao
seus
equvocos
de
linguagem,
promovendo
corpos
geneticamente
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interpretao incide sobre a causa de desejo e, portanto, que marca o cavo, a ausncia, a perda
deixada pelo objeto. Com o avano do ensino lacaniano, o corte vai, paulatinamente,
assumindo diversas concepes a ponto de se tornar o propsito da sesso analtica, o que
Laurent denomina como interpretao-corte. De acordo com Miller, A sesso analtica
uma unidade a-semantica reconduzindo o sujeito para a opacidade de seu gozo (MILLER,
1996, p. 98).
A concepo de interpretao conforme apresentamos se situa em relao ao
inconsciente recalcado, circunscrito pelo nome-do-pai, mesmo apontando para o seu fracasso.
Considerando a psicanlise atual como uma clnica ps-pluralizao dos nomes-do-pai, temos
o desafio de fazer operar a interpretao lacaniana a partir da originalidade das diversas
amarraes (LACAN, 1975-1976) possveis para aqueles que no esto referidos norma
edpica, ou para sujeitos cujos corpos no encontram vias para metaforizao de seus
sintomas. Desse modo, visamos reorientar a escuta analtica a partir do sinthoma, reabilitando
o imaginrio enquanto consistncia corporal.
Mesmo que o corte tenha surgido como inveno para reduzir o excesso de sentido
produzido pelas analises ps-freudanas, Laurent (2013) alerta para um movimento delirante,
na prpria psicanlise atual, de privilegiar a vertente simblica da interpretao e prope o
real como limite tendncia de tomar o sentido do sintoma edpico como horizonte da prtica
analtica: preciso sair do tringulo edpico para a trade borromeana e trazer para o primeiro
plano o quarto elo como produto de uma escrita.
O sinthoma joyciano concebio por Lacan como um acontecimento de corpo, diverso
do sintoma de corverso histrica. Se o quarto elo na neurose o nome-do-pai, o inconsciente
recalcado, Joyce mostra que possvel amarrar os trs registros prescindindo do pai edpico,
do amor ao pai. Desabonado do inconsciente, Joyce constri o sinthoma que amarra o n,
atravs de uma escrita, a escrita do ego, a construo de um corpo pela letra e no pela
vertente da imagem narcsicaou da identificao ao pai.
Assim, a escrita do ego operada pela obra constri um corpo pela letra e no pela
vertente da imagem narcsica, da identificao ao pai, da significao flica. Se o
impedimento de dar um mal passo na vida produz na histrica uma metaforizao no
prprio corpo, como vemos operar na converso, que a impede efetivamente de andar, Joyce
demonstra a impossibilidade de consistir o imaginrio e enod-lo ao simblico e ao real
atravs do acontecimento de corpo.
No Retrato do artista quando jovem (JOYCE, 1992) ocorre a cena com o
personagem principal do romance, Stephen Dedalus, que convocaria a vertente narcsica de
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qualquer sujeito pela rivalidade com seus colegas. Devido divergncia com o lder da turma
Stephen foi covardemente agredido:
No esquecera nem um pouquinho a covardia e a crueldade deles mas a lembrana
daquilo no lhe despertava nenhuma raiva... sentira naquela noite que alguma fora
o estava despojando daquela raiva subitamente tecida to facilmente quanto um
fruto despojado de sua casca madura e macia (JOYCE, 1992, p.87).
O unbewusst freudiano (em alemo), traduzido em francs por une-bevue (um equvoco) tratado em 1976
como o no-sabido-que-se-sabe no qual Lacan marca o havia do um-equvoco (no sentido do partitivo).
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cidade em que seu pai nascera. Ele no utiliza a fantasia para enquadrar a realidade ou toma
um trao do pai como suporte da identificao e da construo do sintoma. Utiliza a
materialidade significante para produzir seu enquadre e barrar a intromisso que a
linguaguem, que o objeto voz, exerce sobre seu corpo. Articula o significante pelo real de sua
materialidade, pela letra, fazendo o corpo consistir.
Essa articulao produz uma ao suplementar, um quarto elo, externo aos outros trs
- produz um remendo que localiza o objeto a e permite aos registros se diferenciarem.
construo absolutamente original do sinthoma Lacan ressalta que o importante dar conta
do que ex-siste enquanto interpretao (LACAN, 1974, p. 30). O motivo pelo qual pelo
equivoco que a interpretao incide no sintoma explicitado por Lacan na citao: as
pulses so, no corpo, o eco do fato de que h um dizer (LACAN, 1975-1976/2007, p. 18).
Para fazer ressoar, ecoar esse dizer do sintoma preciso evocar os orifcios corporais, que
correspondem ao objeto a, no tanto em sua vertente de falta, mas em sua vertente de dejeto,
do que resta de nonsense do gozo de cada um.
Referncias Bibliogrficas:
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psicolgicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1975, v.1, p.161-202.
JOYCE, J. Um retrato do artista quando jovem. Siciliano: So Paulo, 1992.
LACAN, J. O seminrio, livro 24: linsu-que-sait de lune-bvue saile a mourre. Lio de
16 de novempro de 1976. Indito.
______.O Seminrio, livro 23: o sinthoma, [1975-76]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
______. A Terceira. Opo Lacaniana [1974], n. 62. So Paulo: Edies Elia, 2011.
______. O aturdito [1973]. In: Outros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
______. O Seminrio, livro 20: mais, ainda [1972-73]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1982
______. A direo do tratamento e os princpios de seu poder [1958]. In:Escritos, So Paulo:
Perspectiva, 1999, p. 591-652.
______. Funo e campo da fala e da linguagem em psicanlise [1953]. In: Escritos, So
Paulo: Perspectiva, 1999, p. 238-324.
LAURENT, E. Falar com o seu sintoma, falar com o seu corpo. In: Encontro Americano do
Campo Freudiano, 2013. Disponvel em:http://www.enapol.com/pt/template.php?
file=Argumento/Hablar-con-el-propio-sintoma_Eric-Laurent.html
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RESUMO
Este trabalho pretende apresentar algumas notas sobre a pesquisa de doutorado
Educao e Lao Social na Atualidade. Nosso ponto de partida a transformao da demanda
escolar em sintomas mdicos, cujos indcios so o aumento de diagnsticos de Transtorno do
Dficit de Ateno / Hiperatividade em crianas e de Burnout em professores. Para analisar tal
questo, recorreremos a Lacan, para quem a atualidade vem sendo caracterizada pela peculiar
"copulao" entre a cincia e o discurso do capitalista. Pretendemos examinar a transformao
da demanda escolar em sintomas mdicos como marca da incidncia da aliana entre os dois
discursos na educao.
Palavras-chave: transtorno de dficit de ateno e hiperatividade, burnout, educao, discurso
da cincia, discurso do capitalista.
RESUMEN
Este trabajo pretende presentar algunas notas sobre la investigacin de doctorado
Educacin y Lazo Social en la Actualidad. Nuestro punto de partida es la transformacin de la
demanda escolar en sntomas mdicos, cuyos indicios son el aumento de diagnsticos de
Transtorno de Dficit de Atencin / Hiperatividad en nios y del Burnout en maestros. Para
analizar esta cuestin, recorrimos a Lacan, para quien la actualidad viene siendo caracterizada
por la peculiar "copulacin" entre la ciencia y el discurso del capitalista. Pretendemos
examinar la transformacin de la demanda escolar en sntomas mdicos como marca de la
incidencia de la alianza entre los dos discursos en la educacin.
Palabras-clave: transtorno de dficit de atencin / hiperatividade, burnout, educacin, discurso
de la cincia, discurso del capitalista.
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Este trabalho pretende apresentar algumas notas sobre a nossa pesquisa de doutorado
intitulada Educao e Lao Social na Atualidade, cujo projeto surge dos questionamentos de
uma analista acerca da sua experincia de trabalho em escolas municipais do Rio de Janeiro.
Mais especificamente, o que o trabalho em escolas produz como questo a proliferao de
diagnsticos psiquitricos entre alunos e professores. Pretendemos demonstrar que tal
proliferao indcio da transformao da demanda escolar em sintomas psiquitricos,
reduzindo a complexidade da tarefa educativa e do fenmeno do fracasso escolar, entendido
aqui como evaso escolar e defasagem srie/idade, a patologias individuais de cunho mdico.
Com base em autores como Voltolini (2009), abordaremos essa metamorfose da demanda
escolar em sua relao com as noes lacanianas de discurso da cincia e do capitalista, cuja
aliana indicada por Lacan (1969-70/1992) como marca da atualidade.
1. TEMPO DE VER
O anncio feito pela Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria de que o Brasil o
segundo maior consumidor de ritalina do mundo 14, como popularmente conhecido o
estimulante metilfenidato, despertou a ateno da mdia e de profissionais da rea da sade
para as determinantes do aumento de seu consumo.
Lima (2005), em seu livro Somos todos desatentos?:o TDA/H e a construo de
bioidentidades, traz os seguintes dados sobre o Brasil: em relao ao consumo, o pas atingiu
23 kg no ano 2000 e 93 kg em 2003. Em 2006, a fabricao nacional alcanou 226kg, alm
dos 91kg importados. O autor traz ainda dados retirados do relatrio de 2008 da Organizao
das Naes Unidas sobre a produo e o consumo de psicotrpicos, esclarecendo que o
aumento do consumo de ritalina uma tendncia mundial, pois a sua produo global
aumentou em mais de 580% entre 1990 e 1999, partindo de uma produo anual de 2,8
toneladas para 19,1 toneladas. Se considerarmos o perodo at 2006, o aumento ultrapassa
1200% ante 1990. De acordo com as fontes do autor, a produo e o consumo de ritalina no
s aumentaram, como essa passou a ser o estimulante mais consumido no mundo e no Brasil,
superando em quantidade a soma de todos os outros.
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147
bsica da rede pblica na regio Centro-Oeste do pas, a partir da qual estimou-se que 15,7%
dos entrevistados apresentavam a sndrome.
Outros diagnsticos tambm vm crescendo entre os professores. Na Rede Municipal
de Ensino de Belo Horizonte, os transtornos mentais, j em 1998, figuravam como o segundo
motivo para a concesso de licenas mdicas aos educadores, representando algo em torno de
9,24% do total de laudos existentes, com predominncia do diagnstico de depresso (DINIZ,
1998).
A reportagem de Alessandra Horto para o jornal virtual O Dia, de 26 de Junho de
2011, traz os seguintes dados sobre a rede pblica do Estado do Rio de Janeiro: diagnsticos
de depresso, ansiedade e sndrome do pnico so responsveis por 70% dos casos de
afastamento de professores, superando os problemas de voz, que constam em segundo lugar,
responsveis por 25% das licenas. Naquela ocasio, 11 mil docentes estariam licenciados.
Segundo a consulta feita a Eduardo de Oliveira Santos, superintendente da Central de Percia
Mdica e Sade Ocupacional, metade dos professores licenciados por transtorno do humor
acaba se aposentando por invalidez permanente.
Tais dados sobre o crescimento do diagnstico de TDA/H entre os alunos e de
transtornos do humor entre os professores indicam que as queixas escolares vm recebendo
respostas de cunho individualizante, patologizante e medicamentoso. Trata-se da
transformao da demanda escolar em transtornos mdicos, fenmeno chamado por Monteiro
(2006) de "medicalizao da vida escolar", cujos nmeros, como vimos, so alarmantes.
Tamanha medicalizao tem gerado reaes de entidades e instituies, dando origem a um
cenrio de debate entre os adeptos da psiquiatria biolgica e aqueles contrrios
medicalizao dos problemas escolares.
2. TEMPO DE COMPREENDER
Na dcada de 80, Carlos Drummond de Andrade escreveu uma crnica para o Jornal
do Brasil, cujo tema era a peculiar relao do homem contemporneo com o medicamento.
Ultimamente venho sendo consumidor forado de drgeas, comprimidos, cpsulas e
pomadas que me levaram a meditar na misteriosa relao entre a doena e o
remdio. No cheguei ainda a concluses dignas de publicidade, e talvez no chegue
nunca a elabor-las, porque se o nmero de doenas enorme, o de medicamentos
destinados a combat-las infinito, e a gente sabe o mal que habita em nosso
organismo, porm fica perplexo diante dos inmeros agentes teraputicos que se
oferecem para extingui-lo. E de experincia em experincia, de tentativa em
tentativa, em vez de acertar com o remdio salvador, esbarramos com uma nova
148
molstia causada ou incrementada por ele, e para debelar a qual se apresenta novo
peloto de remdios, que, por sua vez
De modo geral, quer me parecer que o homem contemporneo est mais escravizado
aos remdios do que s enfermidades (ANDRADE, 1980).
Assim como Drummond - mas antes dele - Lacan(1966/2001) tambm identificou uma
nova relao do homem com a medicina e com o mdico; uma relao nova, mas tpica e
caracterstica de nossa poca. Era o ano de 1966 e Lacan participava de um colquio
organizado por Jeanne Aubry cujo tema era "O lugar da psicanlise na medicina". Diante de
um pblico de mdicos, Lacan discorreu sobre as modificaes ocorridas na funo social
desses e ainda sobre a sua causa, a saber, a entrada da medicina numa fase cientfica. Isso
porque, para Lacan (1966/2001), a cincia, a partir do seu intenso desenvolvimento e dos seus
novos poderes de investigao e pesquisa, passou a se apresentar como um discurso cujo
poder generalizado.
Atravessada por essa "nova" cincia, a medicina transforma o direito sade em uma
espcie de toxicomania generalizada, em que, do lado da medicina cientfica, h uma
proliferao de produtos de consumo ofertados ao homem, enquanto que esse se dirige
medicina como algum que detm um "ticket de benefcio" (LACAN, 1966/2001, p. 10). Tal
como colocado por Carlos Drummond de Andrade (1980), o homem passa a se relacionar com
a medicina enquanto um consumidor, de modo que o direito sade torna-se um direito ao
consumo dos produtos criados pela medicina cientfica.
Mais tarde, em O Seminrio, livro 17 (1969-70/1992), Radiofonia (1970/2003) e
Televiso (1974/2003), Lacan voltou a abordar as especificidades do que seria o discurso da
cincia atual, muito embora no apresentasse nenhum matema para o mesmo. Para
compreender os efeitos da cincia sobre a medicina, descritos em 1966, Lacan definiu essa
"nova" cincia como um discurso que coloca no lugar do outro o objeto a, ou melhor, como
um discurso que se dirige ao outro como objeto de estudo e gozo, rejeitando a verdade do
sujeito e promovendo a disjuno entre saber e verdade. O saber, deixando de ser sustentado
por uma verdade, apresenta-se como um modelo que pretende tudo explicar, criando a iluso
de a verdade poder ser toda dita.
Embora em "O lugar da psicanlise na medicina" Lacan no faa referncia ao
discurso do capitalista, no Seminrio, livro 17, indica que, em nossos dias, a cincia est em
uma relao de "copulao" com o mesmo (LACAN, 1969-1970/1992). Dessa forma, a
"nova" cincia aquela determinada pelo discurso do capitalista, definido como aquele em
que o sujeito est fixado ao lugar que o capital lhe reserva, o de consumidor. Nele, o objeto a,
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151
152
RESUMO
Entende-se que a discusso que se trava no mbito da sade mental em torno da
cientificidade dos tratamentos de transtornos psiquitricos, antes de ser uma discusso
cientfica, uma discusso tico-filosfica. Trata-se de considerar o sujeito humano um objeto
passivo no mundo, objetalizado pelo cientificismo; ou um sujeito ativo, criador de suas
prprias leis e inventor de seu prprio modo de funcionamento no mundo. O diagnstico
psiquitrico tomado pelo cientificismo acaba por foracluir o sujeito, objetalizando-o ante seu
sintoma; em contrapartida, se tomado pela via do sintoma, o diagnstico pode ser importante
para uma demanda que ultrapassa o pedido de ajuda e chega demanda de anlise.
Palavras-chave: psicanlise, diagnstico psiquitrico, cientificismo.
ABSTRACT
It is understood that the discussion on mental health, about the scientificity of the
treatment of psychiatric disorders, before being an scientific discussion, is an is an ethical and
philosophical discussion. It comes to considering the human subject a passive object in the
world, made an object by the scientificism; or an active subject, inventor of their own laws
and its own way of operating in the world. The psychiatric diagnosis taken by scientificism,
foracludes the subject, making it an object front of his symptom; by contrast, when taken by
way of symptom diagnosis may be important to a demand which exceeds the help request,
and reaches a demand of psychoanalysis.
Keywords: psychoanalysis, psychiatric diagnosis, scientificism.
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conseguia agir de um modo diferente nessas situaes. E foi falando de si. Um certo tempo se
passou at o dia em que Anglica, depois de todo um movimento de desidentificao,
comunicou-me que havia parado com os remdios. Para ela, foi um ponto importante.
Passaria a tentar controlar seus impulsos consigo mesma, implicando-se nas situaes. Me
chamava ateno no discurso de Anglica a importncia de sentir que sua loucura era comum,
e que embora sasse dos trilhos da razo, s vezes, quem no o fazia? Mas, sobretudo, que
aquilo no acontecia totalmente sua revelia.
Os escritos de Anglica, em forma de poemas, transmitem muito bem seu
movimento. Aqui, eles sero omitidos, para preservar o anonimato do caso. Entretanto, seu
contedo pode ser apontado. Seus poemas, nessa poca, falavam das dificuldades de ser
louco, mas tambm da loucura de todo mundo. Nessa poca, Anglica assinava com um
pseudnimo. Esse pseudnimo, embora claramente fictcio e at jocoso, era muito
representativo. Com um nome comum e um sobrenome que remetia loucura, Anglica
transmitia a ideia de que aquela que escrevia podia ser uma louca qualquer. Qualquer um
podia se identificar ali, em sua poesia. Sua loucura era do tipo mais comum. Com o tempo,
Anglica passou a assinar suas poesias com seu prprio nome.
A descrio acima no diz respeito ao trabalho de anlise que Anglica faz at hoje.
Mas, ao contrrio, diz respeito ao que possibilitou sua entrada nesse trabalho.
importante destacar, portanto, essas duas formas de demanda que se constituem na
transferncia, das quais apenas a segunda seria peculiar ao tratamento analtico. A demanda de
amor aquela que solicita, no Outro, o objeto de desejo para estancar sua falta. Tal demanda
pode ser identificada na demanda de cura, um pedido de ajuda que no distingue o analista
da srie de mestres, tais como o amante, o mdico, o padre, o pai de santo, etc. apenas a
segunda demanda, ou seja, aquela que demanda um saber sobre o objeto - o que j diferente
de demandar o objeto em si que dirigida ao analista enquanto tal. Aqui, o analista
deslocado do lugar de Outro e colocado no lugar de Sujeito suposto Saber, como Lacan
(1964/1998) o designa.
Muitas vezes, o diagnstico psiquitrico o que torna possvel ao sujeito buscar um
analista. o diagnstico que atesta ao sujeito que as coisas no vo bem, que preciso sim
procurar ajuda, que talvez no seja possvel resolver sozinho. E assim que chega muitas
vezes o sujeito encaminhado pelo psiquiatra: em busca de alvio.
Entretanto, para que o sujeito chegue a se implicar em seu sintoma, preciso mais
que um pedido de ajuda, preciso uma demanda de anlise. A medicao e mesmo o desabafo
inicial podem at dar conta do alvio que o sujeito procura e ele sai dali satisfeito. Ou podem
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157
158
159
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(ADHA): A public health view. Ment Retard Dev Disabil Res Rev. n. 8, p. 162-70, 2002.
PMIID 12216060.
160
161
RESUMO
Sigmund Freud sempre se mostrou prevenido quanto a confuso da funo educativa e
da funo da psicanlise, colocando, de sada, um limite entre os dois campos, se afastando da
ambio da psicologia de que, com sua aplicao ao campo educacional, obtivesse um
aumento da eficcia do desempenho da aprendizagem. Desse modo, frente a incidncia
universal das polticas pblicas, a aposta da psicanlise vai na direo da escuta do sujeito
sobre a verdade singular de seu mal-estar.
Palavras-chave: educao, polticas pblicas, psicanlise.
RSUM
Sigmund Freud a toujours t mis en garde contre la confusion du rle dducation et
de la fonction de la psychanalyse, en plaant une frontire entre les deux domaines, donc il
sloigne de lambition de la psychologie qui, aplique a lducation, a lobjective d
augmenter lefficacit dapprentissage. Par rapport lincidence des politiques publiques
universelles, le pari de la psychanalyse va vers lcoute de sujet sur la verit singulire de son
malaise.
Mots-cls: ducation, politique publique, psychanalyse.
162
Na mesma direo seguem os ditos lacanianos de que cada analista deve reinventar a
psicanlise e de que o analista se autoriza enquanto tal, ou seja, se faz autor de sua prxis,
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15
Conforme explica Barbosa e Souza (2012, p. 170): Com finalidades liberais e ajustatrias, a teoria da carncia
cultural, nascida nos Estados Unidos como forma de explicaco das diferenas individuais entre as minorias
pobres, negras e latinas no pas ().
164
No entanto, uma questo se coloca: possvel levar em conta o singular no mbito das
polticas pblicas? O no aprende vira para todos, universal. Nosso trabalho justamente
situar o no aprende de cada um. Dar lugar ao no funcionamento para que se possa
produzir algo a partir disso, saindo da posio queixosa. Assim, o que podemos oferecer na
instituio um lugar do no saber, uma escuta, um vazio de representao a partir do qual
cada sujeito construir seu saber. No somos ns que temos a resposta. o prprio paradoxo
da existncia do PROINAPE: convocado, no lugar de especialista, a responder a todo e
qualquer problema que emerge no cotidiano escolar. Ao nos colocarmos na posio de no
saber, suspendemos o saber pr-concebido, uma vez que o analista possuidor daquilo que
Lacan (1953-1954) designa como ignorncia douta: responde do lugar daquele que nada sabe,
colocando o sujeito na posio de produo dos significantes mestres da sua histria.
Podemos falar que, hoje, h uma acentuao da excluso do sujeito, evidenciada no
contexto escolar. Em um espao de produo de indivduos desadaptados e desajustados, a
aposta da psicanlise vai na direo da escuta do sujeito sobre a verdade singular de seu malestar, possibilitando a emergncia do sujeito. A partir de Freud, o discurso do analista
representa uma revoluo discursiva:
Este, j no mais o mestre, que j no pergunta ao paciente (na posio de escravo)
o que vai mal para se apoderar desse saber, e com ele trabalhar para o mestre posio que surge tambm na medicina quando o mdico, no lugar do mestre, diz ao
paciente que ele quem sabe sobre seu sofrimento e pode cur-lo, fazendo de seu
paciente o objeto de aplicabilidade de sua cincia -, tampouco o analista outro
sujeito que, numa relao intersubjetiva, procura compreender de forma jaspersiana,
por identificao imaginria, o que se passa com seu paciente, mas o analista , com
o novo discurso criado por Freud, o objeto que pode causar o sujeito, seu paciente, a
querer saber o que vai mal (ALBERTI; ELIA, 2008, p. 799).
Na mesma direo, Dunker (2011) destaca essa mudana na estrutura do saber entre a
medicina antiga, que inclua o saber do sujeito sobre sua doena ao processo de cura e a
medicina moderna, em que o sujeito destitudo do seu saber sobre seu mal-estar. somente
com Freud que o sujeito recupera seu espao de fala. Podemos afirmar, ento, que o discurso
introduzido por Freud, alm de dar lugar ao mal-estar, oferece ao sujeito condies de
elaborao daquilo que vai mal. Nas instituies, este o quarto de giro que pode fazer
alguma diferena.
Nesse sentido, em uma direo contrria Psicologia, a insero da Psicanlise na
escola no busca o aumento da eficcia do desempenho escolar, no estamos a servio de um
ideal institucional; cabe ressaltar que a medida da aoda psicanlise , sobretudo, uma
medida tica. Entretanto, isso no significa que a interveno analtica no produza efeitos.
165
166
Desse modo, o corte operado pela psicanlise em relao clnica clssica funda,
conforme apontado por Foucault, uma nova discursividade: por isso que sua semiologia,
constituda a partir da fala e da linguagem, sua diagnstica baseada na transferncia e sua
concepo etiolgica baseada no inconsciente e na pulso, fundam, de fato, uma clnica
(DUNKER, 2011, p. 478).
Assim, podemos falar que nossa atuao na instituio clnica na medida em que
onde o psicanalista est h clnica, compreendendo uma infinidade de possibilidades de
atuao, de dispositivos que comportam uma dimenso criativa no dia-a-dia institucional.
essa nossa aposta.
Quando oferecemos um espao de fala para os sujeitos na escola, nos deparamos com
algo extremamente impactante e que de certo modo vai de encontro quilo que se fala ou se
espera desses sujeitos. Damos a possibilidade dessas crianas e adolescentes se colocarem
como sujeitos, damos lugar fala desses sujeitos, distinto do lugar de objeto que so, na
maioria das vezes, colocados.
Pensamos, assim, como algo do discurso analtico pode ter um efeito, atravs da
transferncia, mesmo que no seja possvel para todos. Alm disso, o atendimento individual
no significa que no haja efeito no coletivo, afinal, Freud (1921/2006) nos fala que indivduo
e grupo so indissociveis. Assim, os efeitos da escuta analtica tero efeitos tambm no
social. importante destacar que tais efeitos no so calculveis a priori, o que aponta que a
psicanlise no uma teraputica como as outras, afirma Lacan (1966/1998).
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MELO, R. Ensino e Poltica da Escola. Opo Lacaniana, v. 18, 1997.
168
169
RESUMO
O gozo desmedido que se apresenta vinculado paixo feminina pode ser observado
tanto na clnica como na arte. Em certos casos, amor e dio comparecem de modo
avassalador, como uma satisfao paradoxal regida por uma outra lgica. Em A terceira
(1974), Lacan situa topologicamente o gozo Outro na interseo dos registros do Imaginrio e
do Real. Do ponto de vista dessa outra lgica mais alm do dipo, no toda referida funo
flica, pode se pensar que um excedente da pulso que escapa ao funcionamento Simblico,
da linguagem, restaria como dio e rivalidade no registro do Imaginrio, e como sensaes no
corpo, no registro do Real? Tomando como referncia um fragmento da pera Erwartung
opus 17, de Arnold Schoenberg, este trabalho se prope a pensar as manifestaes do gozo
sem medida, sejam elas o dio e os cimes, ou as perturbaes no corpo, to resistentes ao
trabalho de anlise. O que se experimenta diante de uma obra de arte pode ser da ordem do
indizvel, desconhecido, estranho, esplendoroso, devastador, como um gozo suplementar,
especfico do feminino. O gozo feminino est referido ao ilimitado e ao Real indizvel, e pode
ser apenas esboado por outros meios.
Palavras-chave: gozo, feminino, arte.
ABSTRACT
The unbounded, unlimited jouissance can be observed in feminine love both in art and
in clinical practice. In some cases, love and hate appear in a most overwhelming way as a
paradoxical form of satisfaction, ruled by other logic. In La Troisime (1974), Lacan places
the Other jouissance at the intersection of the registers of the imaginary and the real. From the
perspective of this other logic, beyond the Oedipus, not all related to the phallic function, is it
appropriate to think that the excess of drive left out of the field of the symbolic (the language)
could remain as hate and rivalry within the imaginary register, and as bodily sensations within
the register of the real? Using a fragment of Schoenbergs opera Erwartung, opus 17 as a
reference, this article attempts to reflect upon the experiences of unlimited jouissance in
devastated women as they appear as an obstacle to the analytic process.The experience an
artwork evokes can be of an unspeakable, ineffable, unknown, splendorous, devastating order
as a supplementary jouissance, specifically feminine. Feminine jouissance is referred to the
unlimited and to the unutterable register of the Real, and could only be sketched by other
means.
Keywords: Jouissance, feminine, art.
170
Na clnica, com todo o cuidado de uma escuta que leve em conta a singularidade,
conforme deve ser a escuta psicanaltica, possvel perceber um aspecto de repetio nas
questes e na posio de muitas mulheres, quanto forma de experimentar o amor e o gozo,
que convoca o analista a pensar na relao destes sujeitos com o feminino. Nesse sentido,
destacamos alguns ditos recolhidos da clnica, que apontam para uma experincia de gozo
sem medida, fora do domnio do falo, mais alm do simblico em relacionamentos aos
quais estes sujeitos se entregam loucamente a um gozo que se mostra devastador. "Entrar em
desespero, descontrolar-se, enlouquecer, sair do corpo ou ficar fora de si so alguns
exemplos da tentativa de dizer algo em torno de uma vivncia de excesso. Como entender
esse gozo em termos da experincia clnica com as mulheres, estas mulheres que existem e
que buscam um destino para o seu sofrimento nos consultrios dos analistas, da poca de
Freud aos nossos dias?
O trabalho dos artistas auxilia os psicanalistas no cotidiano de lidar com as questes
do inconsciente e os impasses clnicos. Conforme observava o pai da psicanlise,
provavelmente, bebemos na mesma fonte e trabalhamos com o mesmo objeto [que os
artistas], embora cada um com seu prprio mtodo. A concordncia entre nossos resultados
parece garantir que ambos trabalhamos corretamente (FREUD, 1907[1906]/ 1976, p. 93).
Mais do que isso, Freud acreditava que a arte se antecipa psicanlise.
Assim como Freud e Lacan dedicaram estudos tentativa de esclarecer o que quer
uma mulher, tambm Schoenberg, na sua pera para uma solista, intitulada Erwartung Opus
17 (1909), envereda pelos enigmticos caminhos do feminino e seus turbilhes pulsionais,
encenando uma busca por amor que s encontra limite na morte. Tambm, assim como Freud
e Lacan, buscamos nesta obra de arte elementos que nos ajudem a refletir sobre o gozo.
A pera um monodrama 16(FRIEDLANDER, 1999, p. 3)encenado em um nico
ato que contm quatro cenas. H apenas uma personagem, uma mulher sem nome,
denominada die Frau ou a mulher. Erwartung op.17 conta sobre uma mulher que vaga
sozinha por uma densa floresta, na assustadora escurido da noite, espera do homem amado.
O texto que a personagem canta cheio de tropeos, fragmentos de frases que no se
completam, entrecortadas por gritos e gemidos, dando a ideia do estado de desamparo,
desespero e confuso mental; um lugar que a palavra no alcana. Depois de muito
sofrimento, angstia e temor, na ltima cena ela encontra seu amado morto, ensanguentado. A
cena rene uma mistura de afetos que vo da paixo ira e aos cimes, passando pela tristeza
16
pera ou pea teatral encenada por apenas um ator ou cantor que interpreta um s personagem.
171
e luto, numa intensidade emocional tal, que toca profundamente o espectador. um encontro
com o traumtico, com o real, envolvendo amor, desejo, gozo, sexo e morte.
Para este trabalho, faremos referncia a um fragmento da pera 17, que faz parte da
ltima cena e nos remete questo do excesso ligado ao amor, paixo e ao gozo femininos.
Na parte final da pera, ao encontrar o homem amado morto, a Mulher enche de beijos seu
corpo inerte, para logo em seguida ser tomada de ira pela suposio de infidelidade. Chama a
suposta outra mulher de bruxa e prostituta. Volta seu dio para o amante, chuta seu corpo
e chama-o de traidor, mentiroso. Na cena, testemunhamos uma intensa participao do
corpo que parece preencher os silncios das frases, indicando a presena de algo que no pode
ser dito, que est alm do sentido. O corpo ali goza, fao aqui uma referncia ideia de um
corpo que se goza, o isso se goza, que Lacan apresenta no Seminrio 20, mais, ainda
(LACAN, 1972-1973/ 2008, p. 29).
Nesta encenao de gozo, alm do excesso pulsional que se descarrega pela via dos
movimentos corporais, nota-se que o cime e o dio se apresentam como afetos centrais em
jogo. Quanto ao primeiro, Freud (1925/1976) o descrevia como um trao feminino, uma das
possveis consequncias psquicas da inveja do pnis (penisneid). Atravs de um
deslocamento, a inveja persistiria na mulher adulta no trao do cime.
Tambm destacamos a encenao da convergncia do amor e do dio. Enquanto Freud
nos alerta para o dio em que se converte o amor da menina pela me, Lacan introduz um
neologismo hainamoration para falar da enamorao feita de dio (LACAN, 19721973/ 2008, p. 97), que parece ser o caso deste amor louco feminino.
Como poderamos articular essa vivncia do fora de si, em que, embaraada entre o
amor e o dio, die Frau pode ter matado o parceiro e na qual no ela se reconhece? No foi
ela, h uma Outra mulher a quem o crime imputado: bruxa ou prostituta, A suposta Mulher,
toma o lugar de uma rival que atrairia seu parceiro. Poderamos dizer que se trata aqui da
inquietante estranheza que Lacan localiza na geometria dos ns, como sendo proveniente do
Imaginrio, ou ainda, escrita na articulao do imaginrio do corpo (LACAN, 19751976/2007, p. 47).
Lacan admite que a adorao [sexual] a nica relao que o falasser tem com seu
corpo seno quando ele adora assim um outro, um outro corpo (LACAN, 1975-1976/2007,
p. 64). Podemos entender esta afirmao como se referindo prpria constituio do eu como
uma imagem, conforme o Estdio do Espelho, como sendo um outro, o outro refletido no
17
Por conta do difcil acesso ao texto original, em alemo, foi utilizada uma traduo do libreto para o ingls,
extrada da tese de doutorado sobre a pera Erwartung Op. 17, defendida pela soprano e professora de canto
Claudia Lynn Friedlander, na McGill University, em Montreal, Canad, 1999.
172
espelho?Por outro lado, como incluir neste contexto a pulso, ligada no ao corpo como
imagem mas ao corpo como substncia gozante, em referncia ao registro do real?
(LACAN, 1972-1973/2008, p. 29).
Para introduzirmos a questo da pulso, cabe observar que o conceito de gozo
formulado por Lacan nasce em vinculao com o conceito freudiano de trieb, bem como com
sua finalidade que a satisfao. Assinalamos tambm que a noo de satisfao pulsional,
em Freud, apresenta as duas vertentes, a ertica e a mortfera, numa correlao com as duas
correntes pulsionais, a saber, Eros, pulso sexual ou pulso de vida, e a pulso de morte. Estes
dois aspectos da pulso, diz Freud a Einstein, nada mais so do que a universalmente
conhecida oposio entre amor e dio (FREUD, 1933[1932]/1976, p. 252). No seminrio 20,
no qual introduz a suposio de um Outro gozo no limitado ao gozo flico, Lacan tambm
retoma esta articulao entre amor e dio, criando, conforme j mencionado, a palavra
hainamoration (LACAN, 1972-73/2008, p. 97), para indicar que, do lado do feminino, h
uma alternncia dos dois afetos, que no passa pela limitao do significante (MURTA,
2006/2013, p. 67).
Assim como die Frau, encontramos uma outrafrau devastada, tanto na relao com a
me quanto com o parceiro amoroso, que frequenta o consultrio de um psicanalista nos dias
de hoje. Gyna queixa-se da conturbada relao que mantm com sua me, descrita como uma
mulher autoritria, louca e manipuladora, que sente cimes ou inveja da filha. Sua vida
amorosa gira em torno de um homem por quem loucamente apaixonada e que tem, sobre
Gyna, efeitos devastadores. Ele mantm um relacionamento formal e longo com uma mulher
a quem diz no amar e no sentir mais desejo. O enigma desta outra a instiga: quem ser esta
mulher? O que ser que ela tem ou faz para manter ao seu lado esse homem, sem sexo, sem
desejo e sem amor? Aqui, os significantes maternos (ou seriam femininos!), cimes e
inveja, parecem retornar, mas desta vez tendo lugar na prpria analisanda.
Na ligao com seu parceiro, experincias estranhas surgem nos momentos em que ele
no atende aos seus chamados, circunstncias em que a paciente acredita que ele esteja
acompanhado da outra mulher. A vivncia desta espera (Erwartung) arrebatadora, chegando
a afetar o corpo, provocando episdios de presso alta 18 e seguindo num crescente at
atingir um clmax, ao qual um sujeito mulher se refere nos seguintes termos: eu fico
descontrolada, quase surto, parece que vou sair do corpo. Alm disso, revela que, nessa hora,
sente que poderia mat-lo.
18
Sabemos que o termo mdico para presso alta hipertenso. O prefixo hiper denota um alm, ou
excesso (FERREIRA, 2010), noes importantes para a presente pesquisa.
173
Esta e outras anlises de mulheres que mantm relacionamentos amorosos nos quais
h uma satisfao paradoxal, um gozo desmesurado e em certo sentido destrutivo, suscitam
perguntas tais como: que gozo esse, to devastador quanto poderoso, do qual elas no
podem abrir mo? Estaria alinhado do lado do gozo feminino, gozo desmedido da ordem do
infinito (LACAN, 1972-1973/2008, p. 110), no-todo inscrito no registro flico, registro que
encontra seu limite na funo da castrao? Como avanar nestas anlises em que um gozo
desse tipo parece colocar-se como obstculo to imperativo ao prazer e, nos casos mais
graves, vida?
Nos seus ltimos seminrios, Lacan no trata mais apenas do sujeito sem substncia,
efeito do significante, mas do falasser que inclui o corpo como substncia, substncia
gozante (LACAN, 1972-1973/2008, p. 29). O corpo precisa ser includo para se pensar as
questes do feminino, uma vez que estas incluem uma dimenso que excede linguagem.
Lacan mesmo adverte que no h outro jeito de abordar o gozo seno pela via do significante.
Se desse gozo excessivo, sem medida, nada se pode dizer, h que se dizer algo em torno dele,
por vezes, atravs da criao de enunciados como sair do corpo, ou da utilizao de
expresses como enlouquecer ou ficar fora de si, como escutamos em algumas anlises
contemporneas e que no diferem tanto das que inauguraram a psicanlise.
Referncias bibliogrficas:
FRIEDLANDER,C.L. Man sieht den Weg nichtMusical, cultural and psychoanalytic sign
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MURTA, C. O amor entre filosofia e psicanlise.Revista do Departamento de Psicologia UFF, v. 18, n. 1, 2006, p. 57-70. Disponvel em:
<http://www.scielo.br/pdf/rdpsi/v18n1/a05v18n1.pdf>. Acesso em: 07 jul. 2013.
175
RESUMO
176
177
178
179
180
Ao se referir ao discurso universitrio, Alberti (2000) afirma que este produziu uma
modificao da relao do homem com o saber, pois nesse discurso, o saber se sustenta pelo
S1 no lugar na verdade, sendo esse significante-mestre as produes acadmicas, os ttulos, as
citaes, entre outros, que subordinados a nmeros, simbolizariam a completa competncia
desses profissionais. Como nos diz Alberti (2000, p. 51), no Discurso Universitrio, o saber
se conta em ttulos acadmicos, pouco importando se esses ttulos efetivamente condizem a
algum estofo de sujeito, a consequncia, o que se produz, o que se joga fora, no discurso da
universidade, o prprio sujeito.
Como nos diz Bousseyroux (2013), o discurso universitrio, ou do mestre pervertido,
produz o ensinante, a partir de um discurso doutoral e burocrtico. Esse discurso funciona a
partir de uma lgica concentracionista, como um campo de concentrao que recusa as
diferenas e a segregao, promovendo uma reduo das formas humanas ao informe. Sendo
assim, o discurso universitrio produz um ensinante da universidade marcado pelo
significante unidade de valor. E isso s foi possvel com a ascenso da cincia moderna e do
capitalismo.
Quanto insero do discurso capitalista nas instituies de sade, podemos afirmar
que, justamente pelo fato do discurso universitrio abrir as portas para o capital financiar
diversas pesquisas, o discurso universitrio pode facilmente ser substitudo pelo discurso do
capitalista. Como aponta Alberti (2000), a partir de uma perverso no discurso universitrio,
que as portas se abrem nas instituies de sade esse discurso.
Segundo Bousseyroux (2013), o discurso capitalista faz lao a-social e anti-social e
por isso no h seta entre o agente e o Outro. Ele no admite uma perda de gozo, como os
outros discursos e a se localiza a sua virulncia. Nesse caso, existe uma impossibilidade de
saciao da falta-a-gozar do sujeito consumidor: h a produo de uma falta-a-gozar atravs
do universo do consumo.
A partir de tais constructos, v-se a possibilidade do discurso do analista, o qual
segregativo no sentido de apontar para um saber do inconsciente que se separa do sujeito e se
mostra, radicalmente, como um saber sem sujeito, como o nico discurso capaz de subverter
essa lgica perversa nos hospitais universitrios. O analista, no seu lugar de objeto a, de
semblante de silncio, pode operar a partir de um saber capaz de fazer furo no saber mdico
totalizante e fazer emergir o sujeito da enunciao, ou seja, o sujeito do inconsciente latente
no sintoma, apontando para o saber segregativo, o saber sem sujeito.
Referncias bibliogrficas:
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2003, p. 560-566.
182
Tatiana Borsoi
Mestre em Sade Coletiva pelo Instituto de Estudos em Sade Coletiva da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Psicloga e Assistente Social. Aluna do Curso de Especializao
em Psicologia Jurdica/UERJ.
Email: tatianaborsoi@gmail.com
RESUMO
Este trabalho apresenta e delineia a orientao terica de um Ateli Ldico e
Expressivo, com crianas que se encontram sob medida protetiva, vivendo em um Centro de
Acolhimento Municipal. realizado no SPA/UERJ, por uma professora e seus alunos, desde
2012. O ateli visa a propiciar um lugar de acolhimento s crianas, suas angstias, tristezas,
183
184
Este trabalho apresenta e delineia a orientao terica do que denominamos de Ateli Ldico
e Expressivo, com crianas de 4 a 7 anos e de 7 a 10 anos, meninos e meninas, de um Centro
de Acolhimento Municipal, sendo realizado no SPA/UERJ. O ateli se iniciou, em setembro
de 2012, com as crianas menores, e em abril de 2013, com as maiores. semanal, com
durao de 90 minutos. Trata-se de uma experincia ainda recente, na qual se busca oferecer
um espao ldico e expressivo para crianas separadas de seus pais e que moram num Centro
de Acolhimento Municipal, enquanto aguardam a deciso da Justia para voltar para o
convvio de seus familiares, ir para uma famlia acolhedora, ou ainda, para uma famlia
substituta (adoo). Elas se encontram sob medida protetiva devido situao de rua, aos
maus-tratos, negligncia, ao uso de drogas ou priso dos pais, e laos familiares frgeis ou
inexistentes. Em geral, a famlia encontra-se com grandes dificuldades financeiras e/ou de
relacionamento e no conta com o apoio da rede de proteo a infncia e adolescncia, que o
Estado deve assegurar, conforme o Estatuto da Criana e do Adolescente (1990).
importante levar em conta que esta atividade o ateli tem tambm outro objetivo,
uma vez que ocorre dentro de uma universidade estadual: faz parte da iniciao formao
profissional para os alunos de graduao em psicologia e da ps-graduao lato-sensu
(Curso de Especializao em Psicologia Jurdica) e stricto-sensu (Programa de Psicanlise).
Conta com a presena de uma professora pesquisadora e supervisora do SPA/IP/UERJ.
A proposta deste ateli propiciar um lugar de acolhimento s crianas, s suas
angstias, tristezas, conflitos e agressividade buscando favorecer a capacidade do brincar e a
experincia criativa. A construo e realizao deste trabalho tem como fundamentao
terica a psicanlise, sendo dado relevo, inicialmente, aos trabalhos de Donald Winnicott e de
Franoise Dolto. Partimos da teoria do brincar de Winnicott, segundo a qual: Conseguir que
as crianas possam brincar em si mesmo uma psicoterapia que possui aplicao imediata e
universal e inclui o estabelecimento de uma atitude social positiva com respeito ao brincar
(WINNICOTT, 1975, p.74-75). Seguimos tambm a recomendao de que importante a
presena e a disponibilidade de pessoas responsveis. Com F. Dolto, damos importncia aos
seus escritos, cujo propsito de:
... despertar no pblico adulto, que vive em contato com crianas, o fato de que todo
ser humano antes de tudo um ser de linguagem. Esta linguagem exprime seu
desejo inextinguvel de encontrar um outro, semelhante ou diferente dele, e
estabelecer com este outro uma comunicao. Que este desejo inconsciente...
(traduo nossa) (DOLTO, 1987, p.5-6).
Em termos de experincias anteriores, que nos permitiu criar este projeto, temos a
prtica profissional da pesquisadora como psicanalista de crianas, sua larga experincia no
185
I.R.A.E.C. LInstitut de Recherche Applique pour lEnfant et le Couple, criada em 1976, Paris, Frana.
20
ALTO, S. Equipamentos sociais, universidade e psicanlise acolhimento de crianas e adolescentes e a
(re)construo de histrias e filiaes, Procincia 2010/2014.
186
buscamos fazer um diagnstico. Mas, frente observao de casos que consideramos graves,
orientamos que sejam encaminhadas para um atendimento individual. O pedido de entrevista
nos feito pelos assistentes sociais e psiclogos do Centro de Acolhimento. Em reunio, na
universidade, eles nos falam sobre as crianas, seus pais, motivos do acolhimento e
perspectivas de encaminhamento. Buscamos receber aquelas que tm, como tempo provvel
de permanncia, seis meses ou mais, para evitar uma grande rotatividade no ateli.
Uma dificuldade que se apresenta, com maior ou menor intensidade, ligada ao Centro
de Acolhimento, de ordem organizacional. Por exemplo: chegar no horrio marcado,
confuso quanto ao dia, regularidade na vinda de todas as crianas ou a troca de uma das
participantes. Este trabalho requer uma insistncia de nossa parte para que tenha continuidade
- telefonamos com frequncia para contornar e resolver estes problemas. Este estabelecimento
de grande porte, pois acolhe mais de cem crianas; so muitos os adultos que ali trabalham e
o rodzio dos educadores e a troca de tcnicos so fatores que dificultam a comunicao.
Outra questo referente instituio, em pauta, a sada abrupta das crianas do ateli devido
ao seu desligamento frente a uma deciso do Juiz da Infncia, da Juventude e do Idoso.
Quando conseguimos ser informados sobre a possibilidade de desligamento, conversamos
com a criana e observamos que isto produtivo, permitindo que ela possa expressar seu
contentamento com a possiblidade da volta para casa ou novo encaminhamento, e suas
brincadeiras ganham novo vigor e maior expresso. Na sala onde realizamos o ateli,
colocamos disposio das crianas materiais e diversos brinquedos.
Iniciamos as atividades fazendo uma roda de mos dadas, crianas e adultos; em geral,
temos de quatro a seis crianas e quatro adultos. Nesta roda, a regra principal lembrada: no
ateli se pode brincar de faz de conta e conversar vontade, mas proibido machucar a si
prprio, o colega ou o adulto. Esta roda marca o incio (quando fazemos a apresentao de
uma criana) e o fim do ateli (quando nos despedimos e renovamos o dia do encontro
seguinte ou repetimos a informao de modificaes que podem ocorrer).
Para mostrar o desenrolar do ateli e algumas caractersticas das crianas, optamos por
escrever sobre uma delas, devido ao espao reduzido deste texto.
W, um menino de cinco anos, iniciou sua participao no ateli, em outubro de 2012,
permanecendo por nove meses. Vejamos, a seguir, alguns dados fornecidos pela assistente
social: W tem trs irmos e todos foram acolhidos, em julho de 2012, pelo Conselho Tutelar,
por motivo de negligncia; quando W foi abrigado no sabia seu nome, respondia por um
apelido; a me usava a casa como ponto de consumo de drogas e prostituio, cobrando para
187
188
No encontro seguinte, W fala sobre agresses sofridas por ele, por parte de sua me:
W desenhava na mesa maior com Fernanda (F). Em certo momento W se coloca
debaixo da mesa e comea a chutar a mesma por baixo. F pergunta se ele quer
desenhar ali embaixo, ele diz que sim. Ela lhe oferece uma folha e canetas. W
desenha e fala sobre sua me e as agresses que esta lhe fazia. E desenhou em sua
bermuda, com caneta vermelha, dizendo que era sangue.
Atitudes agressivas com os colegas ocorreram muitas vezes, em especial, quando estes
queriam de volta o brinquedo que W havia retirado da brincadeira deles. Por vezes, apenas o
fato de uma criana passar perto, ele reagia com agressividade, mas nunca com os adultos.
G estava brincando de recortar e colar com Sonia (S). W se dirige mesa onde elas
estavam e tenta tirar uma folha da mo de G. Depois pega outra folha e diz: Que
lindo! Mas G pega a folha da mo dele. Ele fica muito zangado, irritado, deita no
cho, roda em crculos, chuta a mesa, a cadeira, tira a sandlia, chora
desconsolado, depois fica prostrado, inerte, no cho durante um tempo, chegando
quase a dormir. Ele demorou a se refazer apesar de nossas tentativas de
aproximao e conversa.
189
Referncias Bibliogrficas:
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______. Privao e Delinquncia. So Paulo: Martins Fontes, 1939/2002.
190
RESUMO
Oswaldo Frana Neto assinala que o movimento de Reforma Psiquitrica pode ser
dividido em dois momentos: o da discusso poltica e luta contra excluso social; e um
segundo momento, mais atual, que seria a ps-incluso do louco na polis: como sustent-la?
O que temos visto atualmente na sade mental o direcionamento clnico nas instituies ser
atravessado pela demanda, sempre urgente, de eficcia. Sabemos que tal demanda pode ter
como consequncia a anulao do desejo. Entendendo que tais problemas esto ligados
formatao da poltica contempornea amparada pela lgica do capital, este trabalho visa
investigar tal problemtica partindo do desenvolvimento de Alain Badiou e Zizek acerca da
Poltica, para encontrar a tica do desejo formalizada por Jacques Lacan.
191
192
193
tm em comum a multiplicidade
de demandas
que evidenciam
um
descontentamento, um mal estar: O que une protestos em todo o mundo por mais diversos
que sejam, na aparncia que todos reagem contra diferentes facetas da globalizao
capitalista (ZIZEK, 2013, s/p).
O filsofo argumenta ainda que o descontentamento surge a partir de dois problemas
intimamente interligados: o poltico-ideolgico, que engendra a demanda por uma renovao
da democracia, de um para-alm do multipartidarismo; e o econmico, com a ineficincia do
capitalismo.
Em fins da dcada de 60 e incio da dcada de 1970, Jacques Lacan prope uma
teorizao acerca dos laos sociais, onde aponta para o discurso do capitalista como uma nova
verso do discurso do mestre. As formulaes lacanianas sobre o lao social incidem
diretamente sobre a questo da poltica, pois esta aponta justamente para a relao dos sujeitos
entre si e com a plis. Lacan desenvolve suas formulaes, acerca do lao social, na dcada de
1970, quando j conceitualizava a noo de gozo e de objeto. Todavia, de particular
importncia o enquadre dado a tais conceitos no Seminrio 17 e, posteriormente, em parte do
Seminrio 20. Lacan nomeia o campo destes conceitos como o campo do gozo. Este um
194
campo operatrio e conceitual, estruturado pela linguagem por meio de seus aparelhos, que
so aparelhos de tratamento do gozo nos laos sociais: os discursos (QUINET, 2006, p. 27).
Lacan forja o conceito de discurso do mestre a partir da relao senhor-escravo da dialtica
hegeliana. A estrutura deste discurso aponta para a produo de objetos de gozo (a) que o
mestre (S1) obtm a partir do comando que impe a seu escravo (S2) para produz-los. O
escravo detm o saber, savoir faire, e da mesma forma utiliza deste saber como modo de
gozo. Mas vemos que h uma disjuno entre mestria e saber. A mestria um comando
insensato; o saber, insuficiente para supri-la. Ao sujeito, s resta ficar entre estes dois
significantes.
Marc Darmon (1994) acentua que o discurso do mestre calcado na frmula em que
um significante representa o sujeito para outro significante, este discurso que organiza
lugares que sero ocupados nos outros discursos por outros termos. De igual forma, Alberti
(2009) pontua que um discurso o que possibilita que se articule alguma coisa entre o sujeito
e o outro, para que algo seja produzido a partir desta relao. Tal articulao possibilitada
pelo fato de que um discurso engendra um agenciamento. No discurso universitrio o saber
que est no lugar do agente. Portanto, esse agenciamento efetuado pelo saber. Neste tipo de
discurso, o saber move as relaes que nele se fazem. Alberti segue dizendo que, no discurso
universitrio, o sujeito jogado fora, como produto. Conforme seu matema, o que dele resta,
o que produzido por ele e jogado fora justamente o sujeito (ALBERTI, 2009, p. 121).
Quinet, em concordncia com Alberti, nos diz que a verdade do sujeito rejeitada neste
discurso em prol do mandamento de tudo saber (QUINET, 2006, p. 20). Mandamento que
indica que a verdade velada deste discurso uma vontade de mestria. A ponto de Lacan, no
seminrio 17, afirmar que o discurso universitrio o discurso do mestre moderno.
Em 1972, em Milo, Lacan profere uma conferncia em que ele muda sua posio em
relao ao mestre moderno. Nessa conferncia, o discurso do mestre moderno no mais o
discurso universitrio e sim o discurso capitalista. A estrutura do discurso capitalista, apesar
de desenvolvida posteriormente, j havia sido anunciada no seminrio 17, quando Lacan
acentua que o que se opera entre o discurso do mestre antigo e do mestre moderno, chamado
capitalista, uma modificao no lugar do saber. Posteriormente, Lacan afirmar que este
discurso capitalista o lao social predominante em nossa sociedade. Quinet (2006) pontua
que o discurso capitalista exclui o outro do lao social, uma vez que o sujeito s se relaciona
com os objetos-mercadoria comandados pelo significante-mestre que o capital. No h
relao entre o agente e o outro a quem o discurso se dirige.
195
Aqui podemos retomar Frana Neto (2009) quando o autor levanta a importncia de
pensar uma tica para a sade mental, o que pode ser compreendido como repensar a prtica,
sustentar o lugar da clnica, entendendo que a poltica de sade mental deve ser um guia de
aes, de forma alguma aplicado como prtica diria na instituio.
Com frequncia os tcnicos se vem investidos em medidas adaptativas, algumas
vezes mesmo de cunho coercitivos, visando uma incluso mais suave do paciente.
Essas atitudes no deixam de provocar discusses, logo identificadas por alguns
como estando em contradio com os objetivos da Reforma () Ao mesmo tempo,
tem-se a impresso que, para os pacientes, os profissionais da Reforma so quase
sempre vistos mais como obstculos do que facilitadores, como se as tentativas de
incluso () se apresentassem para eles j como interveno externa. () Se aos
agentes cabe a incluso dos pacientes, nem por isso eles deixam de ser um dos
Outros contra os quais devero resistir para assegurar uma existncia no
assujeitada. Ou seja, se quisermos nos manter fiis Reforma, os profissionais
devem ter em vista que sua ao deve implicar, desde o princpio, a construo de
sua prpria destituio. (FRANA NETO, 2009, p. 127).
Tais formulaes levantam algumas questes: possvel pensar uma clnica na sade
mental hoje? especialmente no tocante s dependncias qumicas, onde vemos mais
claramente nas instituies uma demanda por resolutividade, a despeito da questo desejante e
da escuta do sujeito. Cito aqui um fato ocorrido num CAPS onde a equipe recebe a
informao de que um sujeito havia solicitado sua internao compulsria. Sabemos que
por definio a internao compulsria aquela que se d revelia do sujeito, de modo que
no caberia ao mesmo solicit-la. Mas o fato revela o grave problema que tm se constitudo
como grande desafio ao campo da sade mental: onde no h clnica, o enclausuramento
ganha fora. Ora, no era essa nossa luta nos tempos ureos da luta poltica da reforma
psiquitrica?
196
Alm disso, como sustentar as premissas da reforma psiquitrica num momento onde a
clnica vem sendo rechaada em funo do cumprimento de leis e portarias que no
consideram a singularidade?
Sabemos que, de modo algum, seria possvel esgotar nenhuma das formulaes
levantadas no momento. Por ora, gostaria de expor dois fragmentos de caso, o primeiro de um
CAPS, o segundo de um Servio Residencial Teraputico. Em ambos, foi possvel sustentar
um direcionamento clnico, em articulao com a poltica de sade mental vigente. No
primeiro caso, Jos um senhor que vive com sua famlia (esposa e trs filhos) na zona rural
de um municpio do interior de Minas Gerais. Figura emblemtica na cidade, conhecido por
todos e por muitos responsabilizado por oferecer sua famlia condies sub-humanas de
subsistncia. Residiam em casa de pau-a-pique. Jos e dois de seus filhos tm pronturio no
CAPS com diagnstico de psicose, muito embora no fizessem tratamento contnuo. Eis que,
em meados de 2011, a partir de um processo jurdico contra Jos, a rede de assistncia social
do municpio inicia um processo visando a retirada da famlia do local onde residiam. O
CAPS acionado e discute amplamente o caso com CRASS, CREAS e Frum Municipal. A
equipe do CAPS levanta a possibilidade de tanto Jos quanto seus filhos terem construdo seu
modo de vida a partir de construes delirantes e do risco de desencadeamento de surto a
partir da destituio desse ordenamento. Aps muitas reunies intersetoriais no municpio, foi
possvel chegarmos a um consenso: manter a famlia ordenada como estava e apenas traz-los
mais para perto dos servios de sade. No incio deste ano, o desenrolar do processo jurdico
citado levou Jos a um Manicmio Judicirio para avaliao, e foi possvel observar o que
nossa equipe havia salientado: os filhos de Jos foram residir com uma tia e um deles entrou
em surto acarretando grave sofrimento ao mesmo.
O segundo caso foi acompanhado em uma Residncia Teraputica em processo de
implantao. Um paciente asilar de hospital psiquitrico fora indicado para iniciar processo de
adaptao ao Servio Residencial Teraputico. De acordo com convnio formalizado entre a
prefeitura e a organizao responsvel pela gesto dos SRTs este processo de adaptao no
poderia exceder 30 dias. Contudo, questes clnicas atravessaram o processo, o paciente
apresentou quadro agudo de clculo biliar, de modo que no era possvel encaminh-lo a um
SRT que por princpio s possui suporte mdico externo, pois , e deve ser, uma casa. No
obstante, com o trabalho j iniciado, houve o estabelecimento de um vnculo do paciente
conosco, alm da grande expectativa do mesmo em sair do hospital. Aps discusso clnica
entre equipe da organizao no-governamental (responsvel pela implantao e gesto do
197
SRT) e equipe do hospital psiquitrico, foi possvel sustentar a ida deste paciente para
Residncia Teraputica, a despeito do perodo que o mesmo permaneceria em adaptao por
conta de problemas clnicos. Atualmente Sebastio est residindo no SRT e faz
acompanhamento mdico na Unidade de Ateno Primria em Sade do bairro onde se
localiza a residncia teraputica.
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198
199
RESUMO
O presente artigo traz algumas consideraes quanto aos impactos e efeitos do contato
dirio com a dor, com o sofrimento e com a morte nos profissionais da sade e uma reflexo
quanto ao lugar do psicanalista em uma equipe. Esse contato dirio promove em cada um o
despertar de dores ntimas e antigas. Tocam neste ponto de desamparo e na ambivalncia
quanto ao amor e a hostilidade; gerando as mais diversas consequncias.
Palavras-chave: dor, morte, profissionais, oncologia.
RSUM
Le prsent article se rapporte a quelques remarques sur les impacts et les effets du
contac quotidien avec la douleur, la souffrance et la mort aux proffessionnels de la sant et
une rflexion en ce qui concerne la place du psychanalyste dans une equipe.Ce contacte
quotidien provoque chacun le rveille des douleurs intimes et anciennes. Il touche dans ce
point dabandon et dans lambivalence en ce qui concerne l amour et l hostilit; ce qui
devient pour engendre les plus diffrents consquences.
Mots-clefs: douleur, mort, proffessionnels, oncologie.
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sexual do gozo, mas de uma tenso mxima suportada pelo psiquismo, da ordem de um
foramento. A dor o ltimo grau de um gozo no limite do tolervel (LACAN, 1966, p. 32).
Afirma Patrick Valas: Neste registro todo excesso de tenso participa do gozo do
Outro, que se manifesta como sofrimento, desde a dor refinada at as dores lancinantes das
grandes patologias orgnicas (VALAS, 2001, p. 46).
Tais apontamentos mostraram-se preciosos para avanar na elaborao quanto ao que
subjaz aos impasses e dificuldades vivenciadas pelos profissionais que diariamente trabalham
com a dor e com a morte.
Cada profissional, antes de tudo, um sujeito constitudo a partir de uma histria
pessoal e familiar singular. E, nesta constituio, na sua relao com o seu Outro, recebeu
marcaes que constituram o seu corpo, a sua subjetividade, a sua posio fantasmtica;
determinaram suas escolhas, os seus movimentos desejantes, ou os seus emperramentos. Os
conflitos intensos vivenciados pelos profissionais de sade e por uma equipe, os
emperramentos, podem falar destes pontos de sofrimento nos profissionais, pontos em que a
dor do outro suscita algo de seu que, no tocante morte, engendra um encontro com o Real.
Na unidade de oncologia peditrica, os profissionais acompanham a criana e seus
familiares do incio do tratamento ao seu trmino por cura ou por bito. Como ocorrem em
todas as relaes do ser humano, a estes so transferidos sentimentos de amor, confiana,
admirao, raiva, dio, rivalidade. Percebemos que existe uma maior dificuldade dos
profissionais em suportar a transferncia negativa. Quando isso ocorre, o profissional se sente
desafiado sendo comuns as reaes de agressividade ou pela via do autoritarismo. Essas
reaes tambm so observadas diante o uso da negao por pacientes ou familiares; diga-se
de passagem, uma primeira resposta diante uma situao ou fato difcil de aceitar.
A questo de promover o sofrimento por meio de procedimentos necessrios e
imprescindveis comparece quase sempre associada a uma culpa velada. No raro a
intensificao de atos de cunho compensatrios, ou por seu avessamento, sob a forma de
irritabilidade e impacincia e at indiferena para com aquele que se queixa da dor
promovida. Cabe ressaltar que uma dissociao se faz necessria para a realizao dos
procedimentos, caso contrrio no seria possvel a um profissional realizar procedimentos
muitas vezes dolorosos e mutilantes. Contudo, quando h uma dissociao excessiva,
predomina a falta de considerao pelo o sofrimento alheio, e a sua banalizao. Posturas que
acabam por no incluir o paciente, a no preservar espaos de fala, e, certamente, serve de
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proteo ao profissional, uma defesa contra sua prpria angstia. Para o paciente e seus
familiares, tal postura s aumenta o sofrimento e o desamparo.
A pressa to comum nos hospitais denota que profissional no apenas est absorvido
pelo funcionamento hospitalar, com as exigncias de anotaes e prescries; diz mais das
dificuldades no contato com pacientes e seus familiares, no trato com a dor, com o sofrimento,
com a morte; com os limites pessoais e os da situao. o que os leva a se aterem rea
orgnica, que se configura em algo palpvel seguro e objetivo, afastando-os do contato com
os prprios medos e inseguranas diante das questes supracitadas.
Quando os bitos so frequentes, estes podem ser sentidos como um fracasso ou
impotncia; efeitos tanto da dificuldade do reconhecimento da facticidade que a morte impe,
quanto da fantasia de onipotncia,( iluso de um controle da vida e da morte), que dificulta o
reconhecimento dos referidos limites. O quadro leva a iatrogenias, a um vale tudo a qualquer
custo. preciso um investimento na vida, mas fundamental o zelo por uma morte digna.
Cada qual com a cota de sofrimento que lhe cabe.
nesse contexto que o analista situa a sua prxis. Segundo nos aponta a elaborao do
Grupo de trabalho de psicanlise e medicina, da Letra Freudiana, para que possa sustentar,
ainda que de forma pontual, o discurso analtico, preciso que o analista, mesmo que parte de
uma equipe, no se identifique com o lugar de mais uma especialidade que lhe suposto.
Eticamente, a psicanlise no se inscreve em uma srie de especialidades que se somaria ao
resto visando um todo saber ideal. No se trata de um problema de incluso ou excluso, de
dentro ou de fora, refere-se a uma topologia que aponta para uma extimidade. dessa
posio, construda caso a caso, que um analista sustenta suas intervenes, que visam
preservar a singularidade de cada sujeito ali implicado, e se interpe tendncia de
objetificao e de excluso do sujeito inerente ao discurso mdico.
No sem a transferncia, as intervenes ocorrem tambm com a equipe, incidindo nas
condutas, a partir do recorte de significantes de cada sujeito (paciente). Muitas destas visam a
prpria equipe. Equivocam efeitos de grupo, assim como incidem em tendncias tais como: as
compensatrias ou superprotetoras tpicas do senso comum, (que contribuem para reforar o
ganho secundrio, a fixao no sofrimento ou posio de dependncia); e as de anulao ou
banalizao do campo subjetivo. Inmeras vezes intervimos para sustentar que a tristeza de
um paciente no deve ser logo medicada como sinal de patologia, ao contrrio, precisa ser
suportada como tempo de elaborao.
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Cabe ressaltar que a identificao com a dor do outro, aliada posio de no querer
causar dor, apesar de ter que realizar procedimentos dolorosos, toca em um ponto inerente a
todos ns, relativo constituio a partir com o campo do Outro. Mesmo na posio de
agenciar dor, o que est em questo o ponto do masoquismo primordial em cada um, onde o
sujeito se fez puro objeto para o suposto gozo do Outro, sendo este referido ao desamparo
constitutivo de todo sujeito.
Vimos, portanto, que lidar face a face com a morte e com o sofrimento do outro
promove o despertar de dores primitivas, tocam no ponto de desamparo de cada um e na
ambivalncia quanto ao amor e o dio. Pode fazer com que uma equipe se torne rgida em
suas condutas, e, ao mesmo tempo fragmentada, pois os profissionais, ao se aterem apenas em
sua rea de trabalho, oportunizam poucas trocas entre si. o momento onde se exacerbam as
rivalidades, intensificam-se comportamentos hostis, onde o que impera a intolerncia nas
relaes. Tais situaes no deixam de ter consequncias, at nefastas, para o trabalho, para os
prprios profissionais, com srios reflexos para o paciente.
Portanto, de fundamental importncia que cada equipe esteja alerta e disposta para
constantemente elaborar as suas questes, os seus impasses e as suas dificuldades com o
trabalho, no trabalho em equipe. Nesse contexto, o analista tem uma funo importante, a de
sustentar o lugar para circulao da palavra e insistir no resgate do sujeito. O sofrimento, as
crises, as perdas, os conflitos fazem parte do humano, assim como a morte faz parte da vida.
A soluo no neg-los, nem se paralisar frente a eles, mas poder discuti-los, dialetiz-los,
revisar posies, reconhecer emperramentos, e seguir em busca da construo incessante do
caminho, sempre na tentativa de dizer sempre mais e da melhor forma possvel o que
impossvel de dizer totalmente: sobre a morte e a vida.
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VALAS, P. As dimenses do gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
O NORMAL E O PATOLGICO SOB O OLHAR DA PSICANLISE
206
RESUMO
O normal e o patolgico tem origem na medicina, perpassa a primeira tpica freudiana
e chega aos nossos dias como uma bssola para profissionais e sujeitos que esto em busca de
uma nomeao para seu sofrimento. Freud foi influenciado por uma viso que separa o
normal do patolgico por um vis quantitativo. Revolucionou, porm, ao afirmar uma
continuidade entre eles e a existncia da pulso de morte. Abordamos as contribuies de
Canguilhem relacionadas ao tema, de Lacan acerca do sintoma e da tica da psicanlise, o
lugar que a avaliao possui na atualidade e o que Freud chamou de psicopatologia da vida
cotidiana.
Palavras Chaves: psicanlise, normal, patolgico, avaliao.
ABSTRACT
The normal and the pathological have their origins in medicine, goes through the first
freudian topic and arrive in actual days as a compass for professionals and subjects whom
seeking a nomination for their suffering.Freud was influenced by a perspective that segregates
the normal from the pathological using a quantitative bias. He revolutionized, however,
affirming continuity between them and a death instinct existence. We approach Canguilhem
contributions related to this subject, from Lacan regarding symptoms and ethics in
Psychoanalysis, the current assessments place and what Freud called psychopathology of
daily life.
Key Words: psychoanalysis, normal, pathological, assessment.
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O presente artigo prope uma discusso sobre o binmio normal e patolgico que
tem sua origem na medicina, perpassa a primeira tpica freudiana e chega aos nossos dias
como uma bssola para profissionais e sujeitos que esto em busca de uma nomeao para seu
sofrimento que seja certificada por um discurso dito cientfico.
O DSM surgiu em 1952, no ps guerra, como uma resposta imensa dor vivenciada
nesses tempos traumticos. A partir da dcada de 80 ele ganha fora como instrumento
necessrio para a clnica mdica. Vrias transformaes marcam sua numerao, sobretudo a
eliminao gradual dos termos que fazem referncia ao saber psicanaltico como neurose,
histeria, fobia. Tudo virou um transtorno. O DSM se tornou uma espcie de fetiche
popularizado pelos meios de comunicao de massa, alimentando, ainda mais, a
psicopatologia da vida cotidiana (JERUSALINSK; FENDRIK. 2011).
Esse, porm, o ttulo de um dos textos mais importantes de Freud (1901/1996) onde
o psicanalista introduz a importncia e sentido que nossos atos, mais cotidianos, possuem,
servindo de mensageiros do desejo inconsciente. Freud tambm sofreu a influncia de uma
viso que separa o normal do patolgico por um vis quantitativo. Temos prova disso na
prpria definio do princpio do prazer ou na primeira teoria da angstia. Revoluciona,
porm essa viso ao afirmar uma continuidade entre o normal e o patolgico e a existncia da
pulso de morte. Na prpria vida existem foras desarmnicas.
O referencial para o analista no a norma e sim a singularidade. As contribuies de
Canguilhem (1978) sobre o normal e o patolgico, do ensino de Lacan (1966/1998) que
destaca o gozo do sintoma e a tica da psicanlise em seu descompasso com o mercado, o
lugar que a avaliao possui na atualidade (MILLER; MILNER. 2006) e o que Freud nos
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ensina sobre um trio que quase caiu em desuso - a inibio, o sintoma e a angstia fazem
parte dessa discusso.
1. O DSM
Alguns dos que defendem a medicalizao para suprimir os conflitos ou que enaltecem
os exerccios comportamentais de reeducao da diferena, lanam-se em uma srie de
ataques psicanlise na tentativa de conquistar um imenso pblico desejoso de respostas e
garantias. Esse discurso tem realmente fascinado bastante.
Vemos na ltima dcada um retorno ao ideal de um corpo rob - sem desejos, sem
envelhecimento, sem doenas, com automatismos garantidos para cada situao. Tudo
positivado em um pensamento positivo. Aliado a isso, o ideal de felicidade parece estar
ligado a uma reduo da memria unida capacidade do homem selecionar respostas corretas
para estmulos esperados.
O DSM assume mesmo sua vigncia a partir da dcada de 80 e vem tendo, cada vez
mais, as presenas da neurocincia, da psicofarmacologia e da gentica em seu discurso
(IZAGUIRRE, 2011). O DSM um discurso e, como tal, possui seus efeitos. Um diagnstico
no nos informa apenas sobre uma doena que est dada na natureza, ele a cria. Como a
grande maioria dos sintomas considerada transtornos de comportamentos, eles no seguem
uma sequncia clssica de descrio de doenas nem se agrupam por alguma causalidade. Na
realidade, no h doenas e sim transtornos, dficits.
O prprio termo transtorno aponta a existncia de um suposto normal que est
alterado, portanto, a existncia de uma patologia que, logo, precisa ser localizada, nomeada,
medicada, eliminada.
Se vemos nos dois primeiros DSMs grande influncia da psicanlise, oriunda de sua
prpria proximidade com a psiquiatria da poca, o impulso empirista que marca os prximos
resulta da necessidade de que as doenas mentais sejam descritas com maior clareza e
preciso, no sendo to fundamental a anamnese do paciente para que o profissional possa
observar e classificar o que est de errado ali. Vale destacar que essa parte da psiquiatria, no
igualemos todo esse campo de tratamento e pesquisa a um manual, faz sucesso em um mundo
que exclui a subjetividade, que contabiliza o tempo como moeda de produo e satisfao,
que prega a cincia como verdade.
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Canguilhem (1978) destaca que no foi por acaso que a palavra normal oriundo de
norma em latim, lei - surge no sc. XVIII, em 1759, juntamente com o movimento da
Revoluo Francesa. A burguesia tenta fundar uma nova ordem capaz de funcionar como
norma para toda a sociedade: a ordem econmica capitalista. Rendimento e sade individual
passaram a ser indispensveis ao bom funcionamento do social. E isso at hoje.
2. A AVALIAO
A avaliao traz consigo um tom de cientificidade e eficincia que nem sempre
correspondem realidade. Ela uma resposta a um dos paradigmas que marca a
modernidade, o paradigma problema-soluo (MILLER; MILNER. 2006). Se h um
problema, precisamos localiz-lo e, com isso, descrev-lo e medi-lo, para assim encontrarmos
uma soluo para o mesmo, eliminando-o sem perda de tempo. Logicamente, precisamos
avaliar no s o problema, mas tambm a suposta soluo, ou seja, se solucionou mesmo o
problema ou no e, sobretudo, avaliar quem o solucionou.
Em um momento de medicina baseada em evidncias, a avaliao tem como objetivo
encontrar a teraputica mais rpida e eficaz para todos, sem perder de vista, obviamente, a
relao entre custo e benefcio (ZUCCHI, 2003). Alis, atualmente, a maneira como o homem
tem vivido sua relao com o tempo sempre acelerado faz com que exista a forte ideia de
que no possvel perder tempo, sendo necessria uma segurana em relao ao
homem. Essa segurana, acredita alguns, advm, dos mtodos de avaliao. A avaliao
permite a iluso de um tempo bem aproveitado, um tempo sem perdas ou enganos.
Kehl (2009) ressalta que a temporalidade contempornea, frequentemente vivida como
pura pressa, atropela a durao necessria que caracteriza o momento de compreender a
experincia vivida pelo homem. Quando cada minuto exige uma deciso e promete alguma
forma de satisfao temos, como retorno disso, pacientes que chegam clinica tambm com
essa pressa de respostas, de resultados e at de acolhimento, caracterizando uma certa
urgncia subjetiva que muitas vezes localiza a escuta do analista como um mero apagador de
incndio. O homem contemporneo vive to completamente imerso na temporalidade
urgente dos relgios de mxima preciso, do tempo contado em dcimos de segundo, que j
no possvel conceber outras formas de estar no mundo que no sejam as da velocidade e da
pressa (KEHL, 2009, p. 123). Isso pode ser percebido na clnica quando recebemos em
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outro sentido, outra roupa, outra direo que no a de vtima do mesmo e sim de se haver com
ele.
O sujeito, quando procura uma anlise, tambm busca uma soluo, encarnada na
figura do analista, para o seu sofrimento. Ele quer um remdio para sua falta-a-ser, algo que
possa resolver seu problema, de preferncia, sem que nada seja alterado, mudado de lugar.
Sofrendo os efeitos desse discurso capitalista, a psicanlise o campo propcio e talvez nico
para o recolhimento do que excludo nesse discurso, ou seja, o sujeito (LACAN, 196566/1998).
A experincia psicanaltica nos ensina que o sujeito, enredado em suas estratgias
mortferas de recuperao do essencialmente perdido, encontra na ordem do discurso a via
possvel para atravessar a vida (COSTA-MOURA, 2010, p.7). Assim, esperado que ele se
engendre cada vez mais nessa maneira de levar a vida que prega a certeza de uma satisfao
garantida. O que vemos porm , ao contrrio, uma insatisfao cada vez mais crescente
sobretudo naqueles que chegam anlise.
Onde h enigma h sujeito. com ele que trabalhamos na clnica psicanaltica, a partir
de sua diviso, seu desejo e seu modo de gozo. Se houvesse uma resposta prtica e rpida
sobre a felicidade do homem, ela j teria sido encontrada.
Na contramo do discurso cientfico, a psicanlise oferece uma sada tica ao sujeito,
pela via do desejo, da falta. Inaugura um campo de saber que no pretende mascarar o real e
sim sustentar uma prxis que prima pela possibilidade do sujeito se desdobrar diante do que
no possvel, marcando a presena do furo e da falta-a-ser em seu discurso. Continuemos,
ento, no percurso!
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214
RESUMO
A psicanlise tem demonstrado que as tentativas de decifrao do que uma mulher
tem atravessado sculos sem resposta. Lembramos que Freud, diante desse enigma do
feminino, refere-se mulher como continente negro e se interroga: O que quer uma
mulher?. Essa pergunta levou Freud a verificar nas mulheres uma forte relao com a falta
que ele veio a denominar de Penisneid. A busca da beleza seria um recurso diante da angstia
do sujeito frente Mulher que no-existe, mas insiste?
Palavras chave: Feminino, beleza, corpo.
ABSTRACT
Psychoanalysis has demonstrated that attempts to decipher what a woman is have
crossed centuries without answers. We remark that Freud, confronted by this enigma of the
feminine, refers to a woman as "a dark continent" and questions himself: "What does a
woman want?" That inquiry led him to confirm in the women a strong relationship with what
he called the lack Penisneid. The aim of this paper is to question, according to a Lacanian
reading of those Freudian considerations, whether the pursuit for beauty would be a resource
to confront a subjects anxiety coping with the Woman who does-not-exit, but insists.
Keywords: Feminine, beauty, body
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1. INTRODUO
O cenrio atual da sociedade mostra que h um movimento por parte das mulheres em
direo a um ideal de perfeio esttica fundamentado no culto ao corpo belo e perfeito.
Mesmo aps um sculo de luta feminista e conquistas, dentre elas a insero no mercado de
trabalho, mulheres parecem ainda buscar responder questo sobre o feminino atravs da
beleza. Procuram a beleza to exageradamente, s vezes, que so levadas anorexia, bulimia,
excessos de silicone, lipoescultura, entre outras inmeras intervenes plsticas. Duas normas
parecem dominar a nova galxia feminina da beleza: o antipeso e o antienvelhecimento. A
identidade do corpo das mulheres equivale harmonia da trade beleza/sade/juventude.
Influenciadas especialmente pela mdia capitalista, elas esto, cada vez mais, colocando-se a
servio de seus corpos, sendo incitadas a identificar beleza com juventude assim como
juventude com sade. Resta-lhes, portanto, fazer qualquer tipo de concesso para alcanar
essa finalidade norteada por um ideal inatingvel. Funda-se, assim, um ciclo gerador de
constante insatisfao e frustrao. Ainda que os padres estticos tenham se modificado nos
ltimos tempos, a luta para atingir o ideal de beleza algo que tem marcado a relao da
mulher com seu corpo. O corpo dessa forma tido como uma mquina que deve sempre
funcionar da forma mais perfeita.
Para GillesLipovetsky (1997/2007), em seu livro A terceira mulher, o que se manifesta
atravs das prticas femininas da beleza ilustra; o triunfo da razo prometeica, o impulso da
cultura da eficcia e do controle (LIPOVETSKY, 1997/2007, p.142). Permanecer jovem e
esbelto trata-se ento de se tornar dono e possuidor do corpo, de corrigir a obra da natureza,
de vencer as devastaes ocasionadas pela marcha do tempo e de substituir um corpo recebido
por um corpo cultuado. Segundo este mesmo autor, a beleza feminina deve ser considerada
como um fenmeno histrico, uma instituio social construda cuja origem no remonta
muito alm da aurora dos tempos modernos. O estudo da pr-histria e das sociedades
selvagens mostra que o atributo do belo na mulher nunca ocupou uma posio privilegiada.
Seu atributo era, sobretudo, a fecundidade e o poder superior de vida e de morte. A idolatria
216
do belo sexo uma inveno da Renascena, dos meados do Sculo XIII at XVII e seu
valor apresentava dissonncias no que se refere diferena sexual. Para os homens, a imagem
da virilidade no se dava em funo da beleza, mas para as mulheres, segundo sexo e belo
sexo era a mesma coisa. At o fim do sculo XIX, a idolatria da beleza feminina se
desenvolveu em um quadro social estreito dentro dos limites de um pblico elitista.
Ao longo do sculo XX, o culto da beleza ganhou a dimenso social indita das massas. O
desenvolvimento da cultura industrial e miditica permitiu o advento de uma nova fase
mercantil e democrtica da histria da beleza feminina. Essa democratizao no apenas se
intensificou como tambm foi acompanhada por um deslocamento da prioridade que institui o
primado da relao com o corpo. O corpo como jovem o que mobiliza cada vez mais as
paixes e a energia das mulheres em busca de uma esttica feminina.
Para a psicanlise, o atributo da beleza serve como um recurso para que o corpo possa
ser identificado ao falo, o significante do desejo do Outro, escamoteando a castrao atravs
do ornamento que, como uma cobertura, pode ocultar o insuportvel.Trata-se de encobrir o
real que, para alm do bem e do mal, no to bonito de se ver. Lembramos que Freud
(1937/2006), em Anlise terminvel e interminvel, alerta sobre o mal-estar na civilizao
que gera um repdio feminilidade, ou seja, diante da castrao encontramos um rochedo,
uma resistncia em aceitar a condio de sujeito castrado. Nada to universal em psicanlise
quanto somos todos castrados. O tratamento dado a essa condio, no entanto, passa pela
representao simblica de cada poca e pode se singularizar, em cada sujeito, quando o
feminino no repudiado tocado pelo real que escapa ao enquadre representacional. Essa
conquista consiste em poder admitir a falta, a no completude, em se deparar com a castrao
e reconhecer nela um elemento estruturador do psiquismo e da cultura.
O corpo feminino em questo na psicanlise.
O feminino est no cerne da descoberta da psicanlise, pois, ao escutar as pacientes
histricas, em sua maioria mulheres, Freud (1896/2006) descobre um corpo sexuado e afetado
pela linguagem. O caso Dora, paradigma da histeria, publicado em 1905, exemplar do
modo como o corpo usado para transmitir a histria ergena do sujeito. Tratava-se de uma
histeria com acessos de tosse e afonia, apontados por Freud, (1905/1901/2006) como uma
complacncia somtica, que proporcionavam expresso, pela via corporal, aos processos
psquicos inconscientes. Assim, Freud conclui que os sintomas tem uma significao sexual e
expressam a realizao de um desejo. No entanto, essa significao, expressa atravs do
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corpo, sempre cifrada. Dessa forma, o corpo fala, embora o sintoma expresso no corpo no
traga com clareza do que se trata.
Dora, por exemplo, no sabia o que se passava com ela. Seus sintomas eram enigmticos. Ao
mesmo tempo, durante sua anlise, surgiu uma questo sobre a feminilidade e o indizvel do
corpo feminino. Esse corpo questo, atravessado pela linguagem que obedeces leis do desejo
inconsciente e pela pulso colocado como objeto para o psiquismo. O inconsciente revelase ento como um saber que no sabe de si na medida em que opera para dar a esse corpo uma
significao, ao mesmo tempo em que causado por ele. Vemos ento que, ao elaborar uma
teoria da sexualidade, Freud iniciou uma verdadeira revoluo que distingue a concepo que
o corpo tem para a psicanlise daquela tradicional sustentada pela perspectiva biolgica e
organicista do corpo. Para a psicanlise, o corpo constitudo pela lgica da representao
inconsciente sendo o lugar no qual uma subjetividade se inscreve. Lacan vai destacar, nesse
sentido, que o corpo o lugar da inscrio simblica inconsciente e da histria de cada um
(1953/1998). Tal inscrio tem, ento, uma dimenso da alteridade uma vez que o corpo
constitudo por marcas de um investimento libidinal que vem do campo do Outro. So os
cuidados realizados pelo Outro materno no corpo da criana que, ao torn-lo ergeno, lhe
permitem o acesso simbolizao. Segundo, Luciano Elia:
Trata-se, portanto, de um corpo simblico, um corpo mapeado por marcas e traos
significantes, irredutveis ordem biolgica. Mas tambm um corpo imaginrio, um
corpo de identificaes, isto , modificado pelos efeitos gerados pela assuno, no
sujeito, da imagem dos objetos por ele investidos e amados. Finalmente, o corpo
tambm real, no porque ele seja, afinal de contas, tambm orgnico: o corpo real
na medida em que no totalmente imaginarizado e simbolizado, ou, antes, porque
o no-todo, pois, a partir do corte representado por sua entrada na ordem
simblica, que torna o corpo passvel de recobrimento imaginrio, o corpo orgnico,
para sempre perdido na experincia do sujeito, d lugar a um vazio no
imaginarizvel nem simbolizvel, lugar, inclusive, que se constitui como furo no
campo das representaes. (ELIA, 1995, p. 107)
218
219
Para concluir, podemos dizer que o contnuo rearranjo entre aquilo que falta e que
excede na feminilidade, vivido simbolicamente nos muitos procedimentos estticos que
sempre acrescentam ou retiram algo do corpo. inegvel, portanto, a nfase com que a
mulher se serve do real do corpo, este real que se constitui como furo no campo das
representaes. Sem dvida, o atributo da beleza vem representando mais uma, dentre tantas
outras tentativas de contornar as vias da feminilidade, de modo que o feminino no para de
inscrever sob a condio de enigma. Nesse sentido, a condio feminina atual, s nos mostra
o quo multifacetada pode ser a feminilidade e o quanto ainda temos que pensar sobre isso.
Referncias Bibliogrficas:
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Murta, C. (Org.) O feminino que acontece no corpo. Belo Horizonte: Scriptum, 2012,p. 267273.
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LIPOVETSKY, G. A terceira mulher. Rio de Janeiro: Schwarcz, 2007.
221
Heloisa Shimabukuro
Aluna do Curso de Especializao em Psicanlise e Sade Mental (UERJ), sob superviso de
Heloisa Caldas.
E-mail: heloisasds@hotmail.com
Nelly Brito
Aluna do Curso de Especializao em Psicanlise e Sade Mental (UERJ), sob superviso de
Heloisa Caldas. Mestranda em Teoria Psicanaltica (UFRJ), sob superviso de Simone
Perelson.
E-mail: nellybrito3@hotmail.com
RESUMO
Este trabalho enfatiza a tentativa de nomear o sexo, buscando a criao de um lugar
para o sujeito. Este ano, o Par outorgou a carteira de nome social, documento que apresenta
o nome adotado por travestis e transexuais, substituindo o nome que consta nos registros de
222
223
224
225
sua representao. Da a importncia da operao simblica que tenta dar sentido s coisas a
partir de sua nomeao.
Nessa operao, o sujeito inscreve-se na ordem da linguagem, usando palavras para
simbolizar uma falta. Ao nomear essa ausncia, algo se perde, havendo sempre um equvoco
na linguagem. Portanto, a condio de ser um sujeito falante essencialmente a de ser um
sujeito faltante. A ausncia de acesso ao objeto como tal marca a falta constituinte do sujeito,
que jamais ser recoberta pelas representaes. Esta impossibilidade radical e permanente o
que demarca a castrao, isolando um real impossvel de nomear, revelia do que rege a
sociedade em suas incessantes demandas.
Ao abordarmos o sujeito do inconsciente, no podemos desprezar os efeitos que a
poca, a cultura, a sociedade e a poltica engendram, podendo ser determinantes em sua
posio social, entretanto, a psicanlise no parte desse aspecto. No se trata, como refere Elia
(2000, p. 27), de desprezar as determinaes sociais da subjetividade, mas de evidenciar a
relativa independncia que o processo de constituio da subjetividade mantm em relao s
referidas determinaes.
No que tange carteira de nome social, destacamos a legitimidade de categorias
sexuais outorgadas pelo Estado como uma possvel resposta s demandas que surgem na
tentativa de dar nome ao real, forjando uma espcie de vu para o sem emblema da castrao.
Segundo Caldas (2012, p. 232) o continuo do arco ris parece no bastar para nomear tantos
semblantes de seres para o sexo. Inmeras identidades sexuais novas proclamam sua
nomeao e reclamam seus direitos.
Nesse contexto, perguntamos: ser que a criao de significantes para o inominvel do
sexual torna familiar o que h nele de estranho? E, sabendo que o sintoma , segundo Freud
(1916 [1917] 2006), uma formao de compromisso que busca aplacar a angstia,
questionamos: no seria a tentativa de tamponar a falta de nomes para o sexo um sintoma
entre Estado e sujeito?
Comecemos observando que no h resposta que no deva ser considerada
eventualmente como um sintoma em que o sujeito se refugia para abrigar e esquivar dilemas a
respeito de suas fantasias. na vida imaginria e fantasmtica que se recupera um pouco da
satisfao perdida. Assim, pode-se dizer que o sujeito se posiciona sempre a partir de seu
sintoma.
O sintoma surge para satisfazer, por um lado, o desejo inconsciente e, por outro lado, a
estrutura psquica que reage contra este desejo, sendo definido por Freud (1916 [1917] b /
226
2006) como uma formao do inconsciente que tenta aplacar a angstia. Dito isto, Freud
prope que a satisfao sentida pelo sintoma apenas parcial, pois est relacionada pulso e
sua finalidade. Segundo o autor (1915/2006), a meta (ziel) da pulso, que a obteno de
satisfao, por estrutura, no se d de forma completa. Sempre resta algo a satisfazer, para
alm do princpio do prazer, uma demanda inesgotvel que se repete de forma constante
(FREUD, 1920/2006).
No caso da carteira de nome social, observamos a diferena entre o que pedido e o que
alcanado. Afinal, a garantia de um nome equivalente a determinado gnero se equipara a
possuir uma identidade? A demanda de reconhecimento por parte do sujeito no
necessariamente corresponde resposta dada pelo Estado, ou seja, um novo nome. O
reconhecimento demandado tende a deslizar-se. Hoje, um novo nome, amanh, um novo
apelo. Pode haver quem ouse afirmar que quando algum pede-nos, demanda alguma coisa,
isto no absolutamente idntico e mesmo por vezes diametralmente oposto quilo que ele
deseja (LACAN, 1966/2001, p. 10). a, no lugar do impossvel de responder, que se torna
possvel a entrada da escuta analtica.
Nesse contexto, podemos apontar duas sadas diante da demanda: respond-la e fixar o
sujeito em seu sintoma ou no responder e deixar emergir o sujeito do desejo. Se o Estado
parece atender s reivindicaes, a psicanlise opera a partir da realidade psquica, apontando
que no h assujeitamento integral ao Social e seus signos (ELIA, 2000, p. 28).
Ao pensar nas possibilidades de nomeao do sexo, como a carteira de nome social,
vemos que elas so empreendidas a fim de retirar a estranheza que o inominvel engendra.
No h, contudo, correspondncia entre o corpo e o significante. H uma disjuno entre o
sexual e o que a linguagem nos permite demarcar. Aquilo que tenta a todo custo tamponar a
falta, apenas indica o caminho do impossvel. Assim, haver sempre algo no exaurido na
representao, algo malogrado, como afirma Lacan (1957/1998, p. 501).
Diante do exposto, resta uma questo: se entre sujeito e Estado demandas e respostas
se apresentam na busca incessante de um suposto bem comum, seria possvel apontar para o
desejo, ultrapassando as identidades, para alm das fronteiras que os nomes impem? Apesar
de haver uma contradio aparentemente intransponvel entre o modo como o analista e como
o Estado respondem s demandas de saber acerca do sexual, nossa proposta visa articular
esses campos a partir de seu eixo convergente, isto , o sujeito. Como afirma Elia (2000, p.
28): as formas de aplicao da psicanlise so inmeras (...). possvel, assim, fazer
227
psicanlise em qualquer estrato social, em qualquer ambiente institucional, desde que haja
analista, de um lado e sujeito dividido de outro.
Referncias Bibliogrficas:
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STOLLER, R. J. A experincia Transexual. Rio de Janeiro: Imago, 1982.
228
229
E-mail: luciana.torquato@pbh.gov.br
RESUMO
Neste artigo, apresentamos o momento histrico da entrada da teoria freudiana no Brasil
como um processo que esteve intimamente relacionado s demandas da intelligentsia
nacional, especialmente da cincia mdica, visando a regulao do funcionamento social na
perspectiva sanitria, supervisionando a sade da populao, garantindo a segurana e
prosperidade da nao. Ao identificarmos a medicina higienista como uma via discursiva de
apropriao da psicanlise no Brasil, pretendemos, neste estudo, indicar os traos que esse
ponto de ancoragem deixou no processo de construo do movimento psicanaltico nacional.
Palavras-chave: Psicanlise, Histria, Higienismo, Brasil.
230
ABSTRACT
This article presents the historical period of Freudian theorys introduction in Brazil as a
process that was closely related to the national intelligentsia's interests, especially of the
medical science, in their efforts to regulate the social functioning in a social health
perspective, overseeing the populations health to provide the nations security and prosperity.
By identifying the medicine hygienist as one way appropriation of psychoanalysis in Brazil,
this article also indicates the impact and the consequences of this movement on the beginning
of psychoanalytical movement in Brazil.
Key-words: Psychoanalysis, History, Hygienist, Brazil.
231
reconhecidos
pela
International
Psychoanalytical
Association
(IPA) 21,
A IPA foi criada por iniciativa do prprio Freud e de seus colaboradores durante o segundo Congresso
Internacional de Psicanlise realizado em Nuremberg, na Alemanha, em maro de 1910. A proposta de fundar a
IPA surgiu dois anos antes, durante uma reunio realizada em Salzburgo, na ustria, em 27 de abril de 1908
(ROUDINESCO; PLON, 1997)
232
processo de urbanizao das cidades, pela promoo da sade da populao, ou seja, pela
formulao de solues para esses problemas advindos com a urbanizao e crescimento, se
fazia cada vez mais urgente.
Nesse contexto, a cincia mdica no pas se lana na tentativa de regulao e
organizao do funcionamento social na perspectiva sanitria. Passa a tratar no s do corpo
doente do sujeito, mas do corpo social, supervisionando a sade da populao com o intuito
primordial de garantir a segurana e prosperidade da nao. Nesse sentido, a comunidade
mdica e cientfica empenhava-se na construo de um projeto civilizatrio-educativo na
primeira repblica. Tratava-se de educar a populao a partir de uma concepo mais amplade
pedagogia moral e cvica: educar o povo indisciplinado, inculto, de maus hbitos. Para a
medicina higienista de ento, fortemente influenciada pela teoria da degenerescncia, a
miscigenao do povo era tomada como um entrave crucial para a realizao do projeto de
civilizao da nao(ROCHA, 1983). Nosso primitivismo, marcado pela herana afro e
indgena, era tomado como o excesso de paixes, instintivo, contrrio ao controle esperado
para a afirmao de um estado nacional moderno e civilizado. Nesse momento, a psiquiatria
apresenta-se como um saber que poderia auxiliar sobremaneira esse projeto educativo e
civilizatrio do povo brasileiro.
O discurso psicanaltico ia gradativamente se inscrevendo nesse movimento eugnico
que se alastrou pelo pas. As ideias freudianas passam a servir como possibilidade de
tratamento para a classe dbil e impotente do povo brasileiro, fruto de sua miscigenao, que
precisaria ser reformado para se modernizar e evoluir (PORTO-CARRERO, 1933).
As primeiras referncias diretas a Freud ocorreram no meio psiquitrico. Porto-Carrero,
primeiro historiador da psicanlise no pas, comenta ter sido Juliano Moreira o fundador da
nossa psiquiatria moderna e pioneiro na difuso das teses freudianas. Em 1914,Moreira teria
apresentado um trabalho sobre o tema na Sociedade Brasileira de Psiquiatria, Neurologia e
Medicina Legal. Ele aplicou a psicanlise em sua clnica e estimulou vrios de seus discpulos
ao estudo da nova disciplina.
tambm em 1914, ano ainda em que Freud introduz formalmente o conceito de
narcisismo, examinando o lugar por ele ocupado no desenvolvimento sexual do sujeito,
implicando efetivamente numa primeira reformulao da teoria pulsional, que o cearense
Genserico Arago de Souza Pinto publica sua tese de medicina batizada de Da Psychanalyse:
a sexualidade das neuroses no Rio de Janeiro. O foco da pesquisa a compreensodas
neuroses e perverses em sua relao com a teoria das pulses. A psicanlise, nessa tica,
233
234
235
raa; no plano moral, seria preciso educar o povo quanto aos hbitos e comportamentos
condizentes aos de uma vida sadia.As palavras de Porto-Carrero so elucidativas nesse
sentido:
[...] o interesse da espcie est acima do interesse da sociedade contempornea e
muito acima do indivduo que nada mais do que a clula periodicamente renovvel
do grande organismo da espcie. Urgiria, pois que o Estado-providncia assumisse o
encargo de prover o bom resultado de unies reprodutoras na espcie humana, tal
como o faz a respeito dos animais de corte. Para esse fim, o meio que mais
rapidamente ocorre o do exame mdico pr-nupcial, como forma a assegurar a
perfeita validez da prognie(PORTO-CARRERO, 1929, p.77)
236
237
238
RESUMO
Neste artigo, abordamos a relao do envolvimento de uma adolescente no trfico de
drogas com seu embarao com a feminilidade, a partir de um caso clnico atendido na Medida
Socioeducativa de Liberdade Assistida. Defendemos que se para o Estado, aqui encarnado
pelo Juizado Infracional, a adolescente apenas infratora, o crime, na realidade, aparece como
contingente em sua vida, enquanto a parceria amorosa lhe foi necessria na sua construo de
uma posio feminina.
Palavras-chave: feminilidade, infrao, Medidas Socioeducativas.
ABSTRACT
This paper discussesthe relationshipof the involvement ofa teenagerin the drug
tradewithhis
embarrassmentwith
femininity,
from
aclinical
casetreatedinSocioMeasureofProbation. We arguethatfor the state, hereembodied by theCourt
foroffense, the teenis justoffending, crime actuallyappearsas contingenton hislife whilehe
wasaloving partnershipneededin its constructionof afeminine position.
Keywords: femininity, offense, Socio-EducationalMeasures
239
A cidade de Belo Horizonte divida em nove regionais. Em cada regional h um equipamento pblico que
atua como micro prefeitura, e em cada um destes equipamentos existe uma equipe de acompanhamento das
medidas de Prestao de Servios Comunidade e de Liberdade Assistida, alocados dentro do CREAS Centro
de Referncia Especializado da Assistncia Social.
240
Como ndices de cumprimento da LA, o adolescente deve retomar os estudos, quando este
estiver sido interrompido, comparecer a atendimentos semanais, providenciar documentao e
romper com a trajetria infracional, objetivando, afinal, a responsabilizao do adolescente
pelo ato cometido. No caso especfico de Belo Horizonte, tem-se a psicanlise como
orientao e todos os tcnicos fazem superviso semanalmente. Sobre o atendimento ao
adolescente nesta medida, Ribeiro, Mezncio e Moreira (2010) indicam o seguinte:
Trata-se de um trabalho de recolhimento das passagens subjetivas que possam
esclarecer a relao do sujeito com o Outro, assim como pontos de repetio ou
aqueles em que o jovem s tem como sada a prtica de um ato infracional. Essa
construo permite que o tcnico que o acompanhe opere numa lgica de trabalho
no qual o prprio adolescente dir qual a possibilidade de novos enlaamentos
sociais. importante compor a histria do sujeito, delimitando assim os fatores que
favorecem o incio da prtica de atos infracionais, buscando reconhecer as
repeties, assim como as intervenes realizadas. (RIBEIRO, MEZNCIO E
MOREIRA, 2010, p.34)
Assim, ainda que se trate de uma poltica pblica o trabalho com a medida de LA, no
se faz sem uma escuta clnica refinada. Amanda 23, adolescente atendida, deixa evidente como
questes subjetivas esto lado a lado com as questes sociais em seu envolvimento
infracional, ao demonstrar que, em seu caso, o ato infracional veio colado com a dificuldade
de se tornar mulher. Enquanto o Estado exige, como sua funo, que no haja reiterao
infracional, bem como que a adolescente volte aos estudos, retire documento e etc., lidamos,
na conduo do caso, com o desafio de saber como operar com Amanda quando sua infrao
caminha lado a lado com a prpria dificuldade de se saber o que ser uma mulher,ou seja,
quando a dimenso poltica e a e vida ntima se auto-influenciam na composio de uma
posio no lao social.
1. CASO AMANDA: FRAGMENTOS CLNICOS
Amanda iniciou o cumprimento da Medida aps apreenso com grande quantidade de
drogas e trazia como marca, nos atendimentos, muito silncio. Ao ser questionada sobre a
razo para o envolvimento com o trfico de drogas, dizia que a responsabilidade era de seu
ex- namorado, Ronaldo, pois havia sido ele quem a iniciara na venda de drogas: comecei a
vender por causa do meu namorado. Este tambm era responsabilizado pela interrupo de
seus estudos, bem como pela sua restrio de circulao pelo bairro.
23
Todos os nomes utilizados nos casos foram alterados para preservar a privacidade dos envolvidos.
241
Sobre a famlia de Amanda, os pais eram separados e o genitor era usurio de drogas e
traficava quase que exclusivamente para manter seu uso. O irmo mais velho de Amanda
trabalhava e morava perto de sua residncia, e sua irm mais velha, Paula, soube-se aps certo
tempo, era traficante em seu bairro e uma liderana do trfico de drogas. A me da
adolescente, Sra. Maria, apresentava-se sempre cansada e pouco investida em Amanda. Esse
cenrio poderia nos indicar que a sada de Amanda pelo trfico era motivada pela prpria
estrutura familiar, no entanto, a adolescente nos indica mais uma leitura ao no se identificar
como traficante. Amanda dizia sempre: eu vendia drogas para ele [Ronaldo], ele
mandava!. Na verdade, Amanda era quem muitas vezes atravessava as drogas (levava de
um ponto a outro, ou as escondia) para Ronaldo.
Aos 13 anos, a adolescente iniciou esse namoro, sem saber dizer o que lhe atraiu em
Ronaldo, e por um longo perodo de tempo, residiu com ele. Nessa situao, era a nica, pois
apesar de ele manter outros relacionamentos na rua, era apenas ela que vivia na mesma
residncia dele. Quando relata esse fato, mostra-se orgulhosa da situao, o que raramente
aparecia, pois o mais comum eram frases do tipo: eu era burra, ou eu no ouvia ningum,
minha me falava comigo para eu terminar com ele, mas no adiantava.
A adolescente nos relata que o relacionamento foi muito ruim. Ele j me bateu e
tinha outras mulheres. Eu era boba demais. Ele me batia. Tinha um tanto de namorada. O
fato de Ronaldo ter vrias outras mulheres era um ponto da queixa de Amanda, mais do que as
prprias agresses e proibies que ele lhe impunha, como as de estudar e passear com as
amigas, no entanto dizia em seguida: mas s eu que morava com ele.
Sobre o fim do relacionamento, Amanda conta que Ronaldo foi expulso do bairro por
outras pessoas tambm envolvidas com o trfico de drogas e a abandonou sem se despedir
dela. Ou seja, ela foi abandonada, no foi ela quem colocou um fim no namoro.
Em um atendimento, Amanda conta que foi igreja porque lhe disseram que Ronaldo
havia feito macumba para ela e por isso ela estava sentindo tanto medo dele. Contou que na
igreja desfizeram esse processo e agora estava livre dele. Ela relata que tinha medo de que
ele voltasse para o bairro, mas no sabia a razo do medo de sua presena, mas de qualquer
maneira, ainda que por meio de uma sada mtica, Amanda consegue colocar um ponto final
nesse medo e mesmo nesse relacionamento.
Sempre que se tentava trabalhar com Amanda a sua responsabilidade em relao aos
seus atos infracionais (ela foi apreendida mais de uma vez), ela repetia: j te falei, fui vender
drogas quando comecei a namorar. E assim ia se desresponsabilizando por esse
242
envolvimento infracional, indicando que o que estava ali em jogo no era uma trajetria
infracional, mas um relacionamento amoroso fracassado com todas as vicissitudes advindas
da.
Amanda dizia que era muito difcil o convvio com a me, que a agredia verbalmente,
toda hora ela fica jogando na minha cara que eu estraguei a minha vida com meu
namorado, e dizia que a me no a deixava esquecer esse perodo de sua vida. Foram
marcados alguns atendimentos com a me, mas ela nunca comparecia. Dizia-se muito
ocupada com o neto e as tarefas domsticas.
O atendimento de Amanda interrompido, pois a tcnica muda de regional, e segundo
ltimas informaes, Amanda passou a queixar-se de uma vontade repentina de chorar,
principalmente aps a priso da irm e do cunhado por trfico de drogas, mas aps algum
tempo, retomou os estudos e encerrou o cumprimento da Medida Socioeducativa.
2. ARTICULAES TERICAS
O caso de Amanda mostra-se complexo por no haver, pela adolescente, uma
identificao como infratora, o que a levou ao cumprimento de uma MSE. Chama a atenoo
fato de Amanda se encontrar no momento da puberdade, perodo no qual haver, para o
sujeito adolescente, a tomada de posio na sexuao. Assim, Amanda faz a construo de sua
feminilidade, recorrendo s insgnias que so disponibilizadas a ela, orienta Guerra, Cunha,
Costa e Silva (2013). A irm criminosa, que poderia servir de anteparo identificatrio, o pai
tambm criminoso, mas que fracassado no crime exige reparao, a me opaca que no
transmite filha uma resposta ao enigma da feminilidade, e por fim, o que parece mais
central, um parceiro que, mesmo que ao preo da violncia, a marca como diferente das outras
mulheres.
Apesar da considerao de todas essas insgnias que levariam Amanda construo de
sua feminilidade, acredita-se que o namoro e o lugar de exceo em que ela colocada por
Ronaldo parecem indicar sua soluo feminina, uma vez que justamente esse fato o que
mais aparece em sua fala.
Lacan (1972-73/2008), ao nos apresentar a tbua da sexuao, indica que a mulher vai
se direcionar ao Falo e ao significante da falta no Outro na parceria amorosa e que se na
primeira direo se encontra no registro flico, na outra est para alm dele. H, portanto, uma
243
244
Amanda faz perguntar como se poderia tratar a questo infracional e, principalmente, sua
responsabilidade pelo ato de trfico de drogas, desconsiderando os aspectos subjetivos em
jogo.
O trabalho em uma instituio pblica socioeducativa no pode se fazer sem a
dimenso clnica e pode-se considerar que uma mudana subjetiva implica tambm numa
posio diferente em relao infrao, pois somente ao poder falar e escutar sobre si
mesmo e sobre seu ato que o adolescente poder posicionar-se de forma diferente no lao
social.
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245
246
RESUMO
O Burnout tomado como ndice do fracasso do sujeito em sustentar seu desejo no
campo profissional, atualmente atravessado pelo discurso neoliberal que subverte a tica
clssica que orientava a prtica mdica, agora no mais regulada pelos sacrifcios em prol do
outro e sim pela relao custo-benefcio e produtividade.No lugar da surpreendente
negligncia com sua prpria sade, sintomtica da construo fantasmtica de serum
missionrio imortal capaz de vencer a morte e prolongar a vida, surge o profissional exaurido,
salarialmente desprestigiado, capaz de abandonar seu trabalho.
Palavras-chave: Burnout, prtica mdica, discurso neoliberal, desejo, fantasma.
ABSTRACT
Burnout is here taken as an index of subject failure in sustaining his desire in
professional field, currently crossed over by neoliberal discourse, which subverts classical
ethics in medical practice, nowadays no more regulated by personal sacrifices towards others,
but by cost-benefit and productivity relations. Instead of the surprising negligence with his
own health, symptomatic of fantasy construction of being an immortal missionary, able to
overcome death and extend life, emerges an exhausted professional, discredited in his salaries,
willing to leave his work.
Keywords: Burnout, medical practice, neoliberal discourse, desire, fantasy
247
Uma nova manifestao clnica, nomeada como sndrome de burnout, vem chamando
a ateno no campo do trabalho em sade, particularmente entre mdicos e enfermeiros.
Trata-se de uma resposta que indica que a satisfao profissional e a realizao no trabalho
desapareceram da vida desses sujeitos, que se mostram exauridos, desmotivados, propensos a
abandonar o trabalho e at mesmo a profisso.Tal fenmeno, surgido recentemente no cenrio
mundial, tem despertado interesse na comunidade cientfica dedicada ao estudo das doenas
relacionadas ao trabalho. O termo de burnout foi originalmente referido exausto do
funcionamento de um motor que entra em colapso, at o ponto em que se queima; e a partir da
dcada de 70, passou a ser utilizado para descrever a resposta emocional de desencantamento
profissional, inicialmente observado em profissionais americanos dedicados a atividades
sociais: enfermeiros, professores, mdicos e assistentes sociais, entre outros.
Adoecimento fsico e mental vem sendo relacionado, nas pesquisas sobre o tema,
presena simultnea dos trs fatores que compem tal sndrome: exausto, despersonalizao
e perda da realizao profissional. Os estudos sobre o tema vm se multiplicando em todo o
mundo, com maior ateno sua incidncia em profissionais da rea de sade e da educao
(CARLOTTO; CMARA, 2008). No Brasil, o burnout parece ter se estabelecido como uma
realidade no campo da medicina do trabalho, tendo sido reconhecido como doena
profissional pelo Ministrio do Trabalho atravs de decreto em 1999.
preciso destacar que esse novo fenmeno afeta sujeitos que escolheram profisses
onde preciso dedicar muita ateno ao outro, como o caso do ensino, e tambm do ato de
cuidar da sade de pacientes. Ao longo de sculos da histria da humanidade, a tica
profissional de mdicos e enfermeiros exigiu a formao de uma posio subjetiva peculiar,
de renncia e capacidade de realizar sacrifcios pessoais, numa tica do amor prxima de uma
postura religiosa. Tradicionalmente, mdicos e enfermeiros se habituaram s perdas de horas
de sono, de cuidado pessoal, de cio ou lazer, de contato com a famlia, de fins de semana,
entre outros aspectos, trocados pelos plantes diurnos e/ou noturnos, onde acompanham
doentes e moribundos tomados pela dor e pelo sofrimento, ao lado de familiares aflitos que
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249
250
financeiras para desenvolver seu trabalho, numa sociedade que no mais reconhece o valor do
seu sacrifcio, que no regula sua autoridade social sua capacidade de renncia.
Observamos mudanas nos valores ticos e morais que se manifestam na sociedade
capitalista contempornea, e que determinam novas formas de subjetivao, evidenciadas nos
novos sintomas que se presentificam nas clnicas psicanalticas. No tocante ao campo do
trabalho, particularmente no que se refere aos profissionais de medicina, escutamos com
frequncia a surpresa com que os profissionais mais antigos se referem ao comportamento dos
que recm ingressam no mercado profissional.
Inserida num programa institucional de um hospital universitrio da regio serrana do
Estado do Rio de Janeiro, cuja proposta estudar e prevenir o burnout entre os profissionais
de sade que ali trabalham, tenho testemunhado o altssimo nvel de estresse e de sofrimento
psquico dos funcionrios que ali atuam, em condies muitas vezes precrias do ponto de
vista de recursos materiais, financeiros e organizacionais; e mais recentemente, pela carncia
de mdicos habilitados que se interessem em ocupar vagas abertas em determinados setores
do hospital, como a clnica mdica, obstetrcia e ginecologia.
Alis, a imprensa nacional tem se dedicado, nos ltimos meses, a noticiar as pssimas
condies de trabalho de nossos hospitais, bem como o conflito entre o governo e os mdicos
brasileiros, representados por seus rgos de classe, que lutam contra a precariedade dos
servios de sade em nosso pas. Observa-se que os mdicos se recusam a atuar em
municpios isolados, onde o sacrifcio pessoal exigido do profissional de sade ultrapassa sua
disposio em submeter-se a tais condies de trabalho. Na regio serrana do Rio de Janeiro,
muitos mdicos vm desistindo de trabalhar nestas condies, e muitas vagas para trabalho no
hospital esto, no momento, em aberto, por falta de profissionais interessados em preenchlas.
O fracasso da fantasia de ser um salvador de vidas, um missionrio, um semideus, e
que funcionou como suporte ao seu desejo de combater a morte e prolongar a vida mesmo
custa de enorme sacrifcio pessoal transparece na relao contempornea do mdico com
seu trabalho, regulada agora pela contabilidade da relao custo-benefcio, e pelo apelo
lgica da produtividade: o maior nmero possvel de atendimentos a pacientes pelo menor
pagamento cabvel. Por outro lado, no lugar da tica tradicional de sacrifcio pessoal em
benefcio da cura do paciente, um nmero crescente de mdicos prefere atuar no campo das
tecnologias sofisticadas, dos exames de imagem, onde no precisam lidar diretamente com os
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252
253
RESUMO
254
Fundada sob uma tica orientada pelo Real, a psicanlise aqui convocada para fazer
falar, atravs do discurso do analista (LACAN, 1969-70/1992), o campo do capitalismo. Se,
por um lado, o objeto a no discurso do analista denuncia a hincia do sujeito, em
contrapartida, no discurso do capitalista, o objeto a marcado por seu mais-de-gozar.
Questionamos: O que pode a psicanlise, em seu estatuto de no-todo, dizer sobre o
capitalismo? Em companhia da psicanlise, a Arte desfaz a iluso do Um a massificao das
semelhanas apontando o Panis et Circenses do Capital.
Palavras-chave: Discurso do analista. Discurso do capitalista. Objeto a. No-todo. Arte.
ABSTRACT
Established under the Real ethic-orientation, the psychoanalysis is here requested to
make the premisses of capitalism speak through the discourse of the analyst (Lacan, 196970/1992). If, by one side, the object a in the analysts reveals the hiatus of the self, from
another perspective, through the capitalists discourse, the object a is referred by its plus-dejoir. Henceforth we ask: what can psychoanalysis, in its status of not-whole, say about
capitalism? Alongside the psychoanalytic discourse, Art helps breaking the illusion of the Self
built over the massification conceptions of identities pointing out the Capitals Panis et
Circenses.
Keywords: Analysts discourse. Capitalists discourse. Object a. Not-whole. Art.
O que pode a psicanlise dizer sobre o capitalismo? Fundada sob uma tica orientada
pelo Real que aponta a impossibilidade da completude e principalmente da relao sexual
(LACAN, 1972-73/2008), a psicanlise aqui convocada para fazer falar ou melhor fazer
255
256
haver o objeto do desejo, uma srie de objetos so mobilizados pelo sujeito na expectativa
de reaver sua falta irremedivel. O que, por ora, um deslizamento sempre reticente: O
objeto se apresenta, inicialmente, em uma busca do objeto perdido. O objeto sempre o
objeto redescoberto, o objeto tomado ele prprio numa busca [...] (LACAN, 1956-57/1995,
p. 25).
A falta que acomete o falasser por sua inscrio na linguagem do Outro tesouro dos
significantes (LACAN, 1972-73/2008) incita-o e invoca-o a uma busca incessante daquilo
que um dia perdera. A perda, por excelncia, perda de gozo. E disso a nostalgia de das Ding
testemunha. A travessia pela e na linguagem cava um sulco de vazio. Vazio de que? De
gozo. Da o sujeito resultar de uma operao travada pela falta. Em outras palavras, a
condio de falta-a-ser do sujeito do inconsciente se revela pelos meandros do Discurso do
Analista (LACAN, 1969-70/1992) que faz com que o objeto a mobilize o sujeito e sua hincia
na tentativa de se abordar a verdade, que em psicanlise, no-toda. E eis que tropeamos no
campo do indizvel, isto , do Real.
O Discurso do Analista, proposto por Lacan em seu Seminrio 17 O avesso da
psicanlise (1969-70/1992), aquele em que o objeto a, no lugar do agente, est como causa
de desejo e, assim, agindo sob a falta de objeto, no para obtur-la, mas, ao avesso, para que o
sujeito possa se haver com sua meia-verdade. Podemos assinalar que, da feita que o Discurso
do Analista opera a falta constituinte do sujeito mobilizando-o, o discurso do Mestre, por
outro lado, atua na desmesura de o significante-mestre (S1) dominar o saber (S2) que no se
sabe, de governar aquilo que no se domina, ou seja, o gozo do Outro. Aqui, ressaltamos com
Lacan a dialtica hegeliana do senhor e do escravo:
Eis o que constitui a verdadeira estrutura do discurso do senhor. O escravo sabe
muitas coisas, mas o que sabe muito mais ainda o que o senhor quer, mesmo que
este no o saiba, o que o caso mais comum, pois sem isto ele no seria um senhor.
O escravo o sabe, e isto sua funo de escravo. tambm por isso que a coisa
funciona [...] (LACAN 1969-70/1992, p. 30).
No artigo Jacques Lacan e a clnica do consumo, a psicanalista Mrcia Rosa (2010) traa um paralelo entre
os termos consumismo e consumio ao trabalhar o discurso do capitalista. Ela aponta que consumio est
para alm do consumo exagerado indicando o ato de consumir-se, efeito de consumir, uma mortificao (p.
169). Portanto, optamos aqui pela expresso consumio que implica no s o gozo do consumo, mas tambm
o gozo provocado por estar consumido pelo prprio capital.
257
nomeou como o discurso do mestre moderno: o Discurso do Capitalista. Karl Marx avista, de
maneira capital, o eixo da nova lgica entre o detentor dos meios de produo e o operrio
que vende sua fora de trabalho o plus sintomtico da modernidade: a mais-valia. Sim,
Marx o inventor do sintoma, declara Lacan.
Freud (1920/2006) j nos ensinara que certas experincias, por mais desprazerosas ou
traumticas que sejam, retornam; e retornam de modo compulsivo e repetitivo. H um ganho
secundrio no corao do sintoma. Corao este que bate no somente por Eros, mas tambm
e, com tamanha intensidade, por Thanatos. H um plus, um a mais, no sintoma, como Freud
magistralmente escutou em sua clnica. a pulso de morte em seu meio e fim, o gozo.
Da economia do capital, Marx descobre seu cerne desvelando o excedente da
produo: a mais-valia. Da economia psquica, Freud revela o fort-dado gozo no cerne do
sintoma. Com Lacan (1968-69/2008), convergimos mais-valia em mais-de-gozar. Temos
agora condies de acesso ao excesso encoberto ora na produo de mercadoria, ora na
produo de sintoma. Pelo mesmo sulco que cai o objeto a com a operao de constituio do
sujeito na linguagem, retorna ali mesmo sua face mais-de-gozar silenciando a falta-a-ser
cunhada pelo desejo. com este desdobramento de mais-de-gozar do objeto a que o modo de
produo capitalista faz do sujeito isca de consumo.
No Discurso do Capitalista, os objetos mais-de-gozar esto no lugar da produo,
enquanto que o sujeito ocupa o lugar de consumidor. Desta forma, o sujeito se coloca em cena
e, dirigindo-se a um saber de mercado (S2), portanto saber do Outro, tem por fim o gozo (em
forma de consumo) de um objeto-mercadoria (CASTRO, 2009, p. 7). Consideramos, ento,
que o que est em jogo no modo de produo capitalista no tanto a vasta gama de objetos
dispostos para o consumo, mas sim o valor que est no suporte dos objetos. como se, por
exemplo, no bastasse ter um caderno para a funo de escrever, ao contrrio, para que o
sujeito possa responder ao Outro (o mercado e sua ideologia) torna-se necessrio ter o
caderno com determinada marca e etiqueta. Estamos aqui na essncia de um discurso
publicitrio. Portanto, a produo capitalista tem como finalidade e objetivo a produo de
valor, um valor a mais, um valor agregado mercadoria, a mais-valia (GES, 2008, p. 168).
Agregadas de valor, logo determinadas mercadorias imprimem em si uma condio de
fetiche25 ocultando a rede positiva de relaes sociais (ZIZEK, 1996, p. 327). Do fetichismo
existente nas sociedades pr-capitalistas, isto , a relao de servido e dominao entre servo
25
O termo fetiche est de acordo com as formulaes discutidas pela teoria marxista.
258
e senhor, tem-se agora, com o avano do capitalismo, uma relao de fetichismo entre os
objetos. De acordo com Zizek (1996, p. 310):
O fetichismo nas relaes entre os homens tem que ser chamado por seu nome
apropriado: o que temos aqui, como assinala Marx, so relaes de dominao e
servido ou seja, precisamente a relao do Senhor e do Escravo no sentido
hegeliano; e como se o recuo do Senhor no capitalismo fosse apenas um
deslocamento, como se a desfetichizao das relaes entre os homens fosse paga
com a emergncia do fetichismo nas relaes entre as coisas com o fetichismo
da mercadoria. (Grifo do autor).
259
significante (BARROS; CALDAS, 2013). justamente pela letra que pensamos a criao
do artista como alteridade, como impresso sobre o vazio de significao. Aqui no h uma
receita ou molde a ser seguido. Ainda que existam particularidades na Arte, como os
movimentos artsticos ao longo da Historia, nossa hiptese que a criao da ordem da
alteridade, da pura diferena que faz de cada obra nica.
Se, de acordo com o que estamos discutindo, a Arte se esmera em um savoir y faire a
partir da alteridade, o modo de produo capitalista est na contracorrente deste ato. Na lgica
capitalista o que est em jogo a disseminao das semelhanas, o mais do mesmo. O que
equivale a dizer que pouco h lugar para a inscrio da diferena. Todos parecem caminhar de
acordo com os padres estabelecidos pelo Outro, mercado capitalista, que sabiamente joga
seus tentculos sem vacilo sobre a cultura. Tornamo-nos ovelhas de um mesmo rebanho. Em
Psicologia de grupo e anlise do ego, Freud (1921/2006) lembra-nos da necessidade que os
homens tm de ser iguais, com exceo do lder, quem determina a identificao, isto , todo
o conjunto de caractersticas que devem ser adotadas constituindo, assim, um lao emocional:
J aprendemos do exame de dois grupos artificiais, a Igreja e o Exrcito, que sua
premissa necessria que todos os membros sejam amados da mesma maneira por
uma s pessoa, o lder. No nos esqueamos, contudo, que a exigncia de igualdade
num grupo, aplica-se apenas aos membros e no ao lder. Todos os membros devem
ser iguais uns aos outros, mas todos querem ser dirigidos por uma s pessoa. Muitos
iguais, que podem identificar-se uns com os outros (FREUD, 1921/2006, p. 131.
Grifo nosso).
260
261
262
263
RESUMO
A Psicanlise confere importncia ao papel do referencial identitrio para o
adolescente. Objetivo: Discorrer sobre os efeitos da promoo de uma oferta de escuta
queles que desempenham a tarefa do cuidado de adolescentes. Mtodo: Apresentao do
caso de um cuidador atendido em ambulatrio especializado. Discusso: A ampliao do ato
psicanaltico na clnica de adolescentes consiste numa ttica para fazer circular o discurso no
s do doente, mas tambm, daquele que pode ser /ter a chave da significao do sofrimento.
Consideraes finais: No caso ilustrado, o resgate da funo paterna fundamental e pode
verdadeiramente conferir lugar Lei.
Palavras-chave: Adolescncia; Psicanlise; Funo paterna; Sade Pblica.
ABSTRACT
Psychoanalysis attaches importance to the role of referential identity for the
adolescent. Objective: To discuss the effects of the promotion of an offer to listen to those
who perform the task of care for adolescents. Methods: Case presentation of a caregiver
attended an outpatient clinic. Discussion: The expansion of the psychoanalytic act in clinic for
adolescents is a tactic to circulate the speech not only the "sick", but also that it can be /have
the key to the meaning of suffering. Final Thoughts: In the case illustrated, the rescue of the
paternal role is crucial and can truly give place to the Law
Keywords: Adolescence, Psychoanalysis; Paternal role; Public Health.
264
1. INTRODUO
A postulao freudiana a respeito da travessia da puberdade metaforicamente
equivalente a um tnel cavado pelas duas extremidades (FREUD, 1905/1996) recebeu ao
longo tempo, por parte de vrios comentadores, diversas interpretaes com o objetivo de por
em causa de anlise os percalos do sujeito que vivencia a adolescncia. justo e pertinente
salientar que essa afirmativa tambm confere destaque importncia do papel daquele que
assume o lugar de principal referencial identitrio para este adolescente, seja em mbito
parental, familiar ou social.
Quando neste perodo de importantes transies que adolescncia, em que o sujeito se v
s voltas com as vicissitudes do real do corpo e com o trabalho de desligamento da autoridade
dos pais, aquilo que sustenta a travessia empreendida da infncia fase adulta posto prova
(ALBERTI, 2010). O risco de uma destituio subjetiva se faz ainda mais urgente. Trata-se de
um contexto que convoca os psicanalistas atuantes nos servios pblicos de sade a um
radical questionamento acerca das estratgias que tornam possvel fazer operar o discurso de
quem sofre.
2. OBJETIVO E MTODO
Discorrer sobre os efeitos da promoo de uma oferta de escuta queles que desempenham
a tarefa do cuidado e proteo de adolescentes: no caso pais, familiares ou substitutos
independentemente da consanguinidade.
O mtodo adotado nesta apresentao consiste na apresentao de recortes pontuais de um
caso de cuidador atendido em um servio especializado em sade do adolescente, articulando
os desdobramentos clnicos com a Psicanlise.
3. A CONJUNTURA INSTITUCIONAL
Um dispositivo pblico que tem como premissa a promoo da sade do adolescente nos
trs nveis de ateno (primrio, secundrio e tercirio) como justamente a meta do
Ncleo de Estudos da Sade do Adolescente (NESA) compartilha de um arranjo
institucional deveras especfico, principalmente por englobar como parte do cuidado o
trabalho multiprofissional frente a questes, que em numerosos casos, transpem uma
eventual crise de cunho orgnico. Como exemplo podemos mencionar as famlias submetidas
a situaes de vulnerabilidade diversas e de tal magnitude, que acabam por repercutir num
notvel afrouxamento dos laos entre seus integrantes. questionando este problemtico
265
contexto que nos permitido interver com o dispositivo analtico, necessariamente cientes da
improbabilidade destes agravos serem vivenciados sem efeitos na sade de um adolescente.
4. OFERTA DE ESCUTA E FUNO PATERNA
Em determinados casos, quando se faz evidente o peso dos conflitos familiares no
sofrimento que o adolescente traz em sua demanda, uma das possibilidades de manejo que o
setor de Sade Mental do NESA resguarda incumbir um outro psicanalista, certamente no
aquele que previamente atenda o adolescente, a fazer a oferta de escuta ao familiar que ocupa
o lugar de principal referncia do sujeito em questo.
Independentemente da idade do sujeito, sendo o Inconsciente operante unicamente em
tempo lgico, soberano em seu mal-estar aquilo que decorre do seu posicionamento
primordial na triangulao edpica, constituindo essa, para todos os efeitos, o fator
estruturante do psiquismo. Assim, podemos percorrer na fantasia do paciente o lugar
conferido funo paterna sabendo que a trama edpica se desdobra a partir da interveno
simblica do pai, sob a forma de lei para privar a me do gozo desregulado, evocando assim a
dialetizao e a exigncia universal da castrao (ROUDINESCO; PLON, 1998).
A eficincia da funo paterna no tem relao com a presena ou ausncia do homem na
famlia e, ainda que haja um homem, no a qualidade de sua conduta social, seu papel,
que sero decisivos para a orientao do desejo do filho no simblico, mas sim de sua
capacidade de deslocar a criana de seu papel imaginrio, no qual representa o falo da me
(ALBERTI; MARTINHO, 2005).
5. ELE TEM ALGUM DISTRBIO... NO POSSVEL!
com essa afirmao que Vnia, av adotiva de Anderson (16 anos de idade), responde
ao analista quando lhe feita a proposta de um atendimento parte do acompanhamento j
dispensado ao adolescente, que fora encaminhado para a psicloga por supostamente estar
fazendo uso de drogas, agindo de forma violenta em casa e indo mal na escola. Tambm
preocupava a av o direcionamento dos trmites legais quanto guarda do rapaz, sendo que
nenhum dos genitores (separados) tem interesse em abrigar Anderson por causa do seu mau
comportamento, cabendo ento Vnia exercer esse papel desde os 9 anos de idade do neto.
A razo da angstia de Vnia falada no outro (neto) e a fortuita soluo do sofrimento
estaria, princpio, no discurso do Outro da Medicina e do Direito tal como quando a av
pede para ser feito algum exame nele, um encefalograma pra ver que problema esse menino
tem; ou ao afirmar que no tem condies mais de ficar com Anderson, que o Juiz precisa
resolver isso.
266
267
Para isso imprescindvel que o sintoma seja tomado, em ltima instncia, no como
causa de cura, mas sim causa de fala e que por meio da transferncia com o analista haja a
implicao do sujeito com seu prprio sofrer. unicamente na fala que se faz inteligvel o
lugar que a falta ocupa, delimitando a estruturao do sujeito.
Referncias Bibliogrficas:
ALBERTI, S. O adolescente e o Outro. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
______; MARTINHO, M.H. Sobre o pai da criana atendida na escola e sua funo.
Psicologia Cincia e Profisso, v.25, n.3. Braslia: CFP, 2005, p. 398-413
FREUD, S. Trs ensaios sobre a teoria da sexualidade [1905]. In:______. Edio Standard
Brasileira das Obras Psicolgicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1996, v.7.
MEZENCIO, M. Adolescentes e o desatino do gozo. Almanaque online,n.2, v.3, 2008.
Disponvel em: <http://www.institutopsicanalise-mg.com.br/psicanalise/almanaque/textos/nu
mero3/2.%20Adolescentes%20e%20o%20destino%20do%20gozo%20-20M%C3%A1rcia%2
0Mezencio.pdf>. Acesso em: 25 mai. 2013.
ROUDINESCO, E.; PLON M. Dicionrio de psicanlise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
268
RESUMO
Este trabalho tem o objetivo de problematizar o estigma de periculosidade e o ideal
securitrio atribudos ao louco infrator nas prticas institucionais a partir do entrecruzamento
dos discursos da Psicanlise, da Sade Mental e do mbito jurdico. No avesso do discurso
generalista das prticas psiquitricas do mbito jurdico, fundados no discurso universitrio e
no discurso do mestre, se constitui o discurso da Psicanlise, fundado na tica do desejo. A
partir de sua posio de falta-a-ser, cabe ao analista escutar o louco infrator para que eles
mesmos apontem para a construo do caso e direo da conduta a ser tomada.
Palavras-chave: Louco infrator. Discursos. Instituio. Psicanlise.
RESUME
269
1. INTRODUO
Este trabalho tem o objetivo de problematizar sobre o estigma de periculosidade e o
ideal securitrio atribudos ao louco infrator nas prticas institucionais a partir do
entrecruzamento dos discursos da Psicanlise, da Sade Mental e do mbito jurdico.
A respeito da loucura podemos considerar que sua conceituao muito complexa,
varia de acordo com o contexto scio histrico das sociedades. No entanto, um fato possvel
de se afirmar que a loucura inerente ao humano, fazendo-se presente ao longo da
civilizao, desvendando a verdade mais intrnseca ao homem, como afirma Foucault
(1961/2008).
270
Muito influente no campo da criminologia positivista, Lombroso atribuiu uma causalidade fsico-biolgica
etiologia do crime e na classificao dos criminosos, alm de afirmar em sua teoria que o louco, assim como o
delinquente, um sujeito perigoso devido sua falta de sendo moral.
27
A medida de segurana era cumprida em manicmios judicirios, mas a partir dos artigos 96 e 97 do Cdigo
Penal brasileiro de 1984 e do artigo 99 da Lei de Execuo Penal, desde ento os manicmios judicirios
passaram a ser chamados Hospitais de Custdia e Tratamento Psiquitrico (HCTP). A medida estabelecida por
uma autoridade judicial, que determina a realizao de um exame pericial psiquitrico para avaliar o estado de
sanidade mental do sujeito que cometeu infrao. Caso seja considerado inimputvel, ou seja, incapaz de
compreender o ato cometido, deve este cumprir medida de segurana, seja na modalidade ambulatorial ou de
internao em HCTP.
271
10.216/2001 no Brasil, nas quais a internao passa a ser ltimo recurso de tratamento,
mantida no sistema penal a aplicao da medida de segurana at os dias de hoje em relao
ao louco infrator considerado inimputvel, sendo tal medida jurdica baseada no ideal
securitrio que permanece muito presente na sociedade e na presuno da periculosidade do
louco que to naturalmente impregnada nas instituies.
Um fato interessante constatado nas prticas da sade mental e na aplicao da medida
de segurana realizada pelo judicirio justamente o estigma de periculosidade em relao ao
louco infrator. Uma pesquisa de campo realizada por Castro (2009) evidenciou que tanto o
CAPS quanto os HCTP manifestam prticas em que a equipe mantm concepes de
periculosidade do louco infrator, o que demonstra uma incompatibilidade entre a realidade
prtica e os ideais polticos da reforma psiquitrica. J no mbito judicirio, Carneiro (2011)
afirma que, devido presuno da periculosidade quanto loucura ainda ser muito presente
no sistema penal brasileiro, na maioria dos casos, a medida de segurana adotada a
internao nos HCTP, em detrimento do tratamento ambulatorial, independente da
modalidade de crime cometido pelo sujeito.
A partir desses aspectos explicitados que apontam para a presuno da periculosidade
do louco, tanto na sade mental quanto no mbito jurdico, nos perguntamos: qual a
incidncia do discurso psiquitrico e do discurso jurdico sobre o sujeito psictico infrator?
Quais as contribuies do discurso psicanaltico para o lao social desses sujeitos?
2. O LUGAR DO LOUCO INFRATOR NO DISCURSO PSIQUITRICO, NO
DISCURSO JURDICO E NO DISCURSO DA PSICANLISE
De acordo com Cavalcanti (2005) por se constituir como um ser de linguagem e est
inserido no discurso, o homem tem seu lugar demarcado na sociedade atravs dos laos
sociais. Isso implica dizer que a sociedade e seus discursos incidem sobre a posio subjetiva
do sujeito, ordenando seu gozo, sua singularidade e estabelecendo suas relaes com o grupo
social a que pertence.
O discurso psiquitrico, hoje assumido pela poltica de Sade Mental sob novas
roupagens, est pautado no que Lacan (1959-1960/2008) chamou em seu seminrio 17 de
discurso universitrio. Sob a gide dos ditames capitalistas, desde o sculo XX o modelo
psicofarmacolgico tem sido cada vez mais assumido pela OMS (Organizao Mundial de
Sade), em que h uma busca arraigada de bem-estar e promoo da sade. nesse contexto
que a Poltica de Sade Mental na sociedade atual tem sustentado um discurso baseado na
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274
experincia subjetiva e que a qualidade da reao agressiva na psicose tem relao com a
gnese mental representada no delrio sintomtico, de forma que o ato agressivo desfaz a
construo delirante.
No sentido dessa compreenso, Lacan (1950/2003) aponta que, em relao ao sujeito
infrator, a cura pode se dar pela responsabilidade, que inclusive to buscada pela via da
punio na criminologia, de modo que no se trata de construir o ideal de um sujeito adaptado
em uma realidade sem conflitos, porque alm da ordem social, faz parte da vida humana
tambm as relaes subjetivas de alienao do sujeito com o outro imbuda de agressividade.
A ao concreta da psicanlise de benefcio numa ordem rija. As significaes que
ela revela no sujeito culpado no o excluem da comunidade humana. Ela possibilita
um tratamento em que o sujeito no fica alienado em si mesmo. A responsabilidade
por ela restaurada, nele corresponde a esperana, que palpita em todo ser condenado,
de se integrar num sentido vivido. Mas por esse fato, ela afirma tambm que
nenhuma cincia das condutas pode reduzir as particularidades de cada devir
humano, e que nenhum esquema pode suprir, na realizao de seu ser, a busca em
que todo homem manifesta o sentido da verdade (LACAN, op. cit, p. 131).
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277
RESUMO
Diante do Outro que se constitui para o psictico e autista como intrusivo necessrio
um trabalho, isto , um posicionamento de proteo diante do que provm do Outro.Cabe ao
analista sustentar seu ato que far com que o trabalho do sujeito tenha um endereo e uma
notificao de chegada. E desta forma poder vir a, quem sabe, ser pelo sujeito includo no
trabalho que ele j chega desempenhando.Nossa proposta trabalhar com a formulao
nomeada de a prtica entre vrios generalizada para extrairmos possveis inspiraes para
uma direo de tratamento psicanaltico da psicose.
Palavras-Chave: psicose, psicanlise, prtica entre vrios generalizada
ABSTRACT
Facing the Other that constitutes for the psychotic and autistic as intrusive work is
required, it means a position of protection that comes from Other.Its a duty for the analyst
that must sustain his act that will make the effort done for the of the one that has an address
and a notification of arrival. And so being able to perhaps be the one included in the work that
he is developing.Our proposal is to work with the formulation named "practice among several
generalized" to extract possible inspiration for a direction of psychoanalytic treatment of
psychosis.
Keywords: psychosis, psychoanalysis practice among several generalized
278
279
Testemunhamos no contato com os sujeitos psicticos e autistas que tudo o que possa
vir a presentificar o desejo do Outro, o olhar e a voz, vivido como pura invaso. Parece que
diante deste Outro que se constitui para eles como intrusivo necessrio um trabalho, isto ,
um posicionamento de proteo diante do que provm do Outro. Da decorrer a rica
fenomenologia com a qual nos deparamos nesta clnica: a ausncia de fala, a relao singular
com o corpo, o no endereamento do olhar, os ditos distrbios alimentares.
Cabe ao analista sustentar seu ato que far com que o trabalho do sujeito tenha um
endereo e uma notificao de chegada. E desta forma poder vir a, quem sabe, ser pelo
sujeito includo no trabalho que ele j chega desempenhando.
Assim podemos j apontar outra coordenada que se refere ao remanejamento de saber.
Se o sujeito j chega em trabalho, que posio cabe ao analista? Dito de outra forma, se o
trabalho do sujeito prvio ao encontro com o analista, ento como o analista pode vir a ser
includo neste trabalho?
preciso que o analista esteja advertido de que seja preciso sustentar uma determinada
posio: remanejamento de saber. Trata-se de uma posio de saber-no-saber (BAO,
2000) , alunos da clnica (ZENONI, 1991), desespecializao (STEVENS, 2003).
Enfatizamos que no nos referimos a posio de humildade frente ao saber. mais
radical que isso. Porque o saber est do lado do sujeito psictico cabe ao analista sustentar a
posio de secretariar, no sentido de acompanhar as construes e invenes dos sujeitos.
Posio de sustentar o saber do lado sujeito s possvel quando se reconhece e
legitima o trabalho que o sujeito j realiza para tratar o excesso pulsional.
Estamos nos referindo a uma posio de nos deixarmos regular pelos sujeitos
psicticos. Encontramos em Lacan uma enunciao que por ora nos cabe citar, porque se
refere a essa posio: Uma submisso completa, ainda que advertida, s posies
propriamente subjetivas do doente (...) (LACAN, 1955-56/1998p. 540). Encontramos
correspondncia em Freud para esta ideia, quando da sua afirmao de que no devemos
dirigir reparo a nada especfico, mantendo assim a ateno flutuante, pois se fizermos preleies estamos arriscados a no descobrir nada alm do j sabido (FREUD, 1912/1996).
A terceira das balizas nomeada de pluralizao dos parceiros na clnica. Colocamonos entre vrios para que o sujeito encontre parceiros para seu trabalho. Testemunhamos que
entre muitos, o olhar e a voz, signos da presena do Outro, podem no se caracterizar
demasiadamente invasivos como quando numa situao de atendimento individualizado.
preciso submeter a determinadas condies para que o sujeito nos convoque como
parceiros. possvel verificar que fazer uma economia da demanda, estar atentamente
280
distrado (BAO, 1999b) ou dito de outra forma, numa presena/ausente (LAMY, 2000)
possibilita com que o trabalho acontea.
Neste ponto devemos esclarecer que a pluralizao dos parceiros na clnica pode se
apresentar de duas maneiras, uma delas consiste no real da cena, com a presena de mais de
uma pessoa, seja equipe ou crianas, adolescentes e adultos em tratamento. Mas h ainda
outra forma que no se trata do real da cena mas no discurso do analista. Sobre este ponto
Zenoni nos esclarece: Ns no estamos l para fazer respeitar a lei, mas para presentificar
um Outro que respeita a lei e est, ele mesmo submetido lei (...). (ZENONI, 2000).
Alberto nos d testemunho de seu trabalho incansvel e dirio. Certa vez chega ao
posto de sade para o atendimento individual demasiadamente visado pelo Outro. Diz que
alguns profissionais do posto falam mal dele e olham para ele de modo estranho.
Imediatamente diz que ali era um servio de sade e que no poderiam tratar as pessoas desta
forma. Ele se coloca ao trabalho de enderear a Ouvidoria uma carta de reclamao sobre
alguns funcionrios do posto e pede a analista ajuda para escrever a carta.
Desta forma extramos como consequncia que a direo dada por Alberto ao trabalho
imprimiu o remanejamento de saber j que ele prprio faz aluso confeco da carta. Inclui
a analista como parceira de seu trabalho para tratar o Outro e pluraliza os parceiros na medida
em que convoca um terceiro, a lei, para fazer as vezes de um possvel anteparo ao excesso que
o atormenta.
tambm este mesmo jovem que algumas vezes endereou a diretora do posto uma
reclamao sobre a analista. Neste endereamento dirigido a outros, que no a analista, tratase de valid-lo enquanto tratamento do excesso pulsional na medida em que neste tempo do
trabalho a analista estava para ele num lugar persecutrio.
E para concluir devemos enfatizar que no estamos nos referindo a um modelo a ser
seguido. A generalizao de uma prtica entre vrios trata-se antes de coordenadas que podem
nos inspirar para a orientao de um tratamento psicanaltico da psicose.
Referncias Bibliogficas:
BAIO, V. Les conditions de lAutre et lancrage. Les Feuillets du Courtil. Point dancrage, la
cration des repres subjectifs en institution, n.18/19. Belgique, 2000, p. 14-26.
______. Une pratique plusieurs gnralise. Preliminaire n.11. Bruxelles: Revue de
lAnthnne 110, 1999a, p.143-151.
______. O ato a partir de muitos.Revista Curingan.13. Belo Horizonte: EBP-MG, 1999b, p.
66-73.
281
282
283
RESUMO
Neste trabalho pretendemos abordar o excesso nos primeiros escritos freudianos no
perodo entre 1890-1897. Extramos formulaes sobre afeto enquanto intensidade, de modo a
compreender como Freud introduziu o excesso na psicanlise, quando apresentou dois
quadros nosogrficos distintos: as neuropsicoses de defesa e as neuroses atuais. A partir da,
pudemos pensar a pregnncia do excesso na atualidade, quando exploramos a distino entre
afeto de angstia e neurose de angstia, onde este excesso incide sobre o corpo paralisando o
psiquismo e constatamos as similaridades dos sintomas da neurose de angstia nas diversas
formas de sofrimento contemporneo.
Palavras-chave: Psicanlise excesso afeto - neurose de angstia.
ABSTRACT
This article intends to address the excess in the early Freuds writings from 1890 and
1897. We extracted formulations about affection as intensity in order to understand how Freud
introduced the excess in the psychoanalysis when two distinct nosological panoramas were
showed: the neuropsychoses defense and the anxiety neurosis. We also reflected on the
presence of the excess in the current days, when we explored the difference between the
defense neuropsychoses and the contemporary neurosis, where this excess hits the body,
paralyzing the psychic and marking the similarities of the symptoms of the anxiety neurosis in
the various forms of contemporary malaise these days.
Key words: Psychoanalysis excess affection - anxiety neurosis.
284
Neste
trabalho
primeirosescritosfreudianos,
pretendemos
no
abordar
perodo
questo
entre1890-1897.
do
Para
excesso
isso,
nos
buscamos
285
vivenciadas como traumticas. A lembrana de tais acontecimentos, por essa razo, era
afastada da conscincia.
o que Freud mostra no caso clnico Elisabeth Von R., quando narra o conflito vivido
pela paciente, evidenciando que: Ela conseguiu poupar-se da dolorosa convico de que
amava o marido da irm induzindo dores fsicas em si mesma. (FREUD, 1895b p. 180). O
desenvolvimento da observao e de suas implicaes o suficiente para que ele possa
concluir que uma ideia intensiva de Elisabeth em confronto com a sua moral instalou um
conflito, e como forma de defesa a paciente colocou em ao um conjunto de sintomas.Assim
que no artigo As neuropsicoses de defesa (1894a), Freud, articulando representao,
quantum de afeto e defesa psquica, expe sua hiptese de trabalho evidenciando a um ponto
de ruptura com a medicina de sua poca.
...nas funes mentais, deve-se distinguir uma carga de afeto ou soma de excitao
que possui todas as caractersticas de uma quantidade (embora no tenhamos meio
de medi-la) passvel de aumento, diminuio, deslocamento e descarga, e que se
espalha sobre os traos mnmicos das representaes como uma carga eltrica
espalhada pela superfcie de um corpo. (FREUD, 1894a, p. 66)
286
287
O que Freud mostra que na neurose de angstia, parece no haver nenhuma ideia
definida que possa ser considerada a contraparte deste afeto, um quantum em estado livre de
flutuao pronto a se ligar em qualquer contedo solto, desimpedido (FREUD, 1895c). Na
neurose de angstia, dado a precariedade do psquico em possibilitar uma resposta articulando
ambos os registros, corpo e psquico, a tenso permanece no corpo. Logo, ao trabalharmos a
noo de afeto enquanto intensidade nesses primeiros artigos, podemos enunciar que: todo
afeto enquanto intensidade implica uma representao psquica ou no.
A questo torna-se problemtica para Freud em termos de uma teraputica em que a
fala e a produo de sentido vo assumindo uma primazia. Se o afeto no se situa na esfera
psquica, no sentido de no ter passado por uma inscrio, em virtude do fracasso de
simbolizao, como articular o registro psquico com o do campo das intensidades no
simbolizadas? Se a produo de significao no for realizada, a tenso sexual fsica
transformada em angstia, cujos sintomas fsicos podem se manifestar no corpo por meios
variados: dispneia, sudoreses, palpitaes. Tais sintomas fsicos da neurose de angstia so
substitutos da ao especfica omitida posteriormente excitao sexual (FREUD, 1895c.).
No h, portanto, uma regulao psquica desse excesso de excitao.
Podemos inferir que, nesses casos, estamos diante de outra modalidade de excesso,
diferente do excesso da histeria, pois se trata de um acmulo de excitao sexual que incide
sobre o somtico e para o qual no h uma participao psquica, um excesso para o qual no
concorre o recurso da simbolizao.
A partir destas leituras constatamos as similaridades dos sintomas da neurose de
angstia nas diversas formas de mal estar contemporneo, em que predomina uma linguagem
instrumental e empobrecida de suas dimenses simblicas. Isto nos auxilia a pensar que as
formas de adoecimento psquico da atualidade se constituem de um excesso pulsional sem
simbolizao, e que este excesso incide sobre o corpo, paralisando o psiquismo.
Referncias Bibliogrficas:
HANNS, L. Dicionrio comentado do alemo de Freud, Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LALANDE, A. Vocabulrio tcnico e crtico de filosofia, So Paulo: Martins Fontes, 1999.
FREUD, S. Carta 69 [1897]. In: ______.Edio Brasileira das Obras Psicolgicas Completas
de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. 1, pg. 309-311.
______. Carta 59 [1897]. In:______.Edio Brasileira das Obras Psicolgicas Completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v. 1, pg. 293.
288
289
290
RESUMO
Pretendo tratar de questes referente a clnica das toxicomanias e o tratamento
oferecido a esses sujeitos. Segundo Freud (1930[1929]), em o Mal-estar da civilizao, a vida
extremamente difcil de suportar, impondo como recurso algumas satisfaes substitutivas.
Assim, a droga pode assumir significaes diferentes para cada um, porm no encontro com
alguns sujeitos constatamos que o uso da droga pode conduzir radicalidade do rompimento
do lao social. Apresentarei o relato de um caso clnico, atendido numa instituio de sade
pblica, onde constatamos o enlace desse sujeito com esse objeto, para posteriormente
pensarmos como o tratamento pode incidir.
Palavras-chave: toxicomania, lao social, clnica.
ABSTRACT
I intend to address issues related to the clinical addictions and treatment offered to
these subjects. According to Freud (1930[1929]), in the Malaise of Civilization, life is
extremely difficult to bear, imposing, as resource, some substitutive satisfactions. Thus, the
drug can take different meanings for each one, but after meeting with some individuals, we
conclude that drug use can lead to radical disruption of the social bond. I will present the
report of a clinical case that was treated in a public health institution, where we may see the
link between this individual to this object, so we may figure out how treatment can focus.
Keywords: addictions, social bond, clinical case.
291
292
qual nos encontramos. Coloc-los em uma mesma categoria, usurios de lcool e drogas, sem
considerar as particularidades de cada um, os coloca numa posio de objeto da droga. Pensar
o sujeito como um objeto da droga pressupe que no h escolha subjetivae que o usurio, ou
toxicmano, nada tem a ver com o que lhe acontece.
1.
293
De incio importante fazer uma pontuao e destacar que o uso da droga pode
adquirir significaes diferentes para cada um e em cada momento de sua vida, podendo ser
apenas um recurso em alguns momentos difceis. Por isso, to importante que na clnica no
se escute o toxicmano, mas sim o sujeito. Uma vez que a partir da escuta desse sujeito
que poderemos analisar que uso feito desse objeto. Ou seja, o uso da droga pode ser apenas
um recurso utilizado para aliviar o mal-estar, sem que haja um rompimento do lao com a
realidade.
Porm, aqui trataremos de um outro modo de utilizao da droga, modo este que retira
o sujeito do lao social e fornece a iluso de um gozo pleno, total, to almejado pelo sujeito,
porm to ilusrio.
So sujeitos que na maioria das vezes no nos procuram solicitando ajuda e sim so
levados por terceiros. Normalmente, so os familiares quem solicitam o tratamento, porm h
um nmero cada vez maior de solicitao de tratamento feito pela justia, o chamado
tratamento compulsrio.
Enfim, so sujeitos que no nos pedem nada, uma vez que a demanda no provm
deles. Algumas vezes, so esses terceiros que relatam a gravidade do uso de drogas e as
consequncias disso.
Observamos,na fala desses sujeitos, um vazio de significaes, uma vez que os efeitos
dessas significaes desaparecem, ou seja, no se faz tecido discursivo. So sujeitos que nos
dizem: eu uso crack e isso, no tenho mais nada a dizer ou me d uma fissura, uma
vontade e a eu uso.
Cabe a ns, regidos pela tica da psicanlise, perguntarmos que outro modo de gozar
esse e que tratamento que podemos oferecer a tais sujeitos. importante estarmos atentos
sobre a nossa posio frente a tais sujeitos, para que no se caia na cilada de tentar introduzir
e impor o nosso modo de gozar.
3. A CLNICA NO CAPS AD: UM LUGAR POSSVEL.
Trarei a seguir o relato da chegada de um sujeito para o tratamento no CAPS ad e
algumas elaboraes que conseguimos formular a partir desta chegada.
Fernando28 iniciou tratamento no servio logo aps uma internao no Servio de
lcool e Drogas (SAD). J havia comparecido ao CAPS numa outra ocasio, mas no deu
continuidade. Apesar disso, construiu um vnculo importante com o psiclogo que o recebeu,
28
294
sendo uma referncia de acolhimento para ele mesmo na sua ausncia. No momento do seu
retorno, esse profissional no trabalhava mais na assistncia do servio.
Aps a alta do SAD, compareceu ao servio e relatou estar no fundo do poo, sem
sada. Estava em situao de rua, pois no perodo em que morou com a me vendeu tudo em
casa e ambos foram despejados. A me foi morar com a irm, enquanto Fernando ficou em
situao de rua.
Na rua fez uso abusivo de crack e pequenos furtos, sempre sozinho. Dizia que
ningum o cumprimentava, ningum o olhava e quando o faziam atravessavam a rua para
evitar um possvel furto. Numa ocasio, disse que a nica que pessoa que o olhava e o
cumprimentava era o psiclogo que o recebeu pela primeira vez no CAPS.
Emagrecido, fraco e cansado pediu ajuda e procurou o Hospital Psiquitrico de
Jurujuba buscando uma internao. J havia tido outras internaes em instituies diferentes.
No conseguia aderir, ficar, se submeter as normas e sempre pedia para sair aps alguns dias.
Desta vez foi diferente. Permaneceu durante todo o perodo estabelecido, participou
das atividades indicadas e dos atendimentos, onde fez um trabalho importante.
De acordo com relatos, em diversos momentos Fernando dizia que estava angustiado e
solicitava alta ou dizia que estava pensando em fugir. Nessas situaes, era acolhido pela
psicloga, que o acompanhou durante a internao, que tentava retomar com Fernando seu
pedido de ajuda. Isso foi essencial para a permanncia e vinculao desse sujeito durante todo
o perodo. Alm disso, aconteceu um trabalho de construo da sua histria que ele poderia
continuar num servio extra-hospitalar, no caso o CAPS ad. A partir disso, conseguiu chegar
ao CAPS ad e ser recebido.
preciso pontuar o valor desse trabalho que foi realizado com Fernando durante a
internao e a importncia que este dispositivo, o SAD, possui na rede de sade mental de
Niteri. Visto que a internao, pautada na escuta do sujeito, um recurso que se faz
necessrio em alguns momentos do tratamento.
Retomando o caso clnico, Fernando, em situao de rua, dizia que para no dormir
noite, passava a madrugada inteira utilizando crack e vagando pelas ruas de Niteri. Afirmava
que tinha receio de ser espancado ou morto, caso adormecesse. Assim, chegava sempre cedo
no servio, sujo, com fome e muito sono.
Aps tomar o caf da manh e um banho, ele simplesmente desaparecia. Ningum o
encontrava mais, at que num determinado momento notvamos que ele estava dormindo em
uma das salas de atendimento. No participava de nenhuma atividade coletiva e passava o dia
deitado em algum canto.
295
A chegada no tratamento para esses sujeitos muito difcil. Fernando sempre esteve
sozinho. Na rua no fazia lao, estava fora, desaparecido. Exigir que ele estivesse presente
sempre, participando dos grupos e oficinas, faria com que Fernando no suportasse estar
naquele espao. Precisvamos aceitar que ele desaparecesse em alguns momentos para que ele
pudesse aparecer nos atendimentos, tentando articular sua histria, construindo significaes.
Nos atendimentos o trabalho era rduo e muito delicado. Aos poucos passou do no
tenho nada a dizer para a tentativa de construo de uma narrativa.
Associava o incio do uso da droga a uma revolta pelo assassinato do pai quando ele
tinha dois anos. Relatava uma relao difcil com o padrasto e a sada de casa no incio da
adolescncia. Falava de uma falta de referncia, orientao, o que tentou buscar se associando
ao trfico.
Contou que na adolescncia, via os traficantes com armas na mo e isso impunha
respeito, justamente o que ele no tinha perante ao padrasto. Sentia-se desrespeitado por ele,
diminudo.
Na rua foi desaparecendo, rompendo todos os vnculos, inclusive com o trfico, e no
CAPS no poderia ser diferente.
Esse breve relato ilustra como importante pensar sobre como poderemos receber
cada um desses sujeitos. preciso levar em considerao o que possvel para eles no
momento de sua chegada e no definir de antemo um projeto teraputico sem levar isso em
considerao.
Talvez possamos analisar que a especificidade desse dispositivo o modo como este
servio acolhe alguns sujeitos, que no conseguem circular por outras instituies nem outros
espaos e que fazem do CAPS o nico lugar de endereamento e socializao possvel.
Poderamos localizar essa especificidade na plasticidade a que esta instituio se
dispe na inverso da adequao entre servio e perfil de usurio. Assim, o servio se prope
a se adequar a cada usurio, proporcionando um CAPS para cada um. Dessa forma, no
haveria um perfil para se tratar neste lugar, mas a construo de um dispositivo para cada
usurio.
Talvez possamos dizer que especificidade do CAPS o que torna este dispositivo
diferente dos outros. Poderamos ir alm e dizer que isso o que sustenta a nossa interveno
com os pacientes, uma vez que a partir de cada caso, cada situao, com a particularidade de
cada um que podemos construir um trabalho com esses sujeitos. Portanto, a partir dessa
construo, de um CAPS para cada um, que nos autorizamos a intervir.
Perceber o que possvel para o tratamento de um sujeito no se faz sem uma
escuta atenta e nem sem essa plasticidade a que esse servio se prope. Escutar implica fazer
296
algo com isso que escutamos, mas importante ter a clareza de que no devemos intervir pelo
sujeito. Muitas vezes apenas ouvir a interveno que permite o sujeito responder de um
outro lugar. isso o que muitas vezes possibilita que alguns pacientes possam se tratar.
Referncias Bibliogrficas:
BRASIL, MINISTRIO DA SADE. A Poltica do Ministrio da Sade para a Ateno
Integral a Usurios de lcool e outras Drogas. Braslia: Ministrio da Sade, 2004.
FREUD, S. O Mal-Estar na Civilizao. [1930 (1929)]. In: ______.Edio Brasileira das
Obras Psicolgicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, 1996 vol. 21.
JORNAL DO CRP. Recolhimento Compulsrio. Rio de Janeiro, n.34, 2012.
LAURENT, E. Tres observaciones sobre la toxicomania.In: Sujeto, goce y modernidad II: Los
fundamentos de la clnica. Buenos Aires: Atuel-Tya, 1994.
NAPARSTEK, F. et al.. Introduccin a la clnica com toxicomanas y alcoholismo. Buenos
Aires, Grama Ediciones, 2005.
297
Sonia Alberti
Professora Associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Procientista da
UERJ e Pesquisadora do CNPq. Psicanalista Membro da Escola de Psicanlise dos Fruns do
Campo Lacaniano.
E-mail: sonialberti@gmail.com
RESUMO
Relata-se um caso clnico acompanhado em uma instituio de cumprimento de
medidas socioeducativas, articulando-o s formulaes de Lacan sobre a tica da psicanlise e
a constituio do sujeito. A razo pela qual tambm desenvolvemos o caso com vistas tica
da psicanlise o fato de nossa clnica apontar a falcia de querer-o-bem-do-sujeito. Para a
psicanlise, o sujeito constitudo em relao ao real e resiste a qualquer tentativa de pastoral
apregoada pela moral. Objetivamos apontar a pertinncia do psicanalista na instituio e
articular uma experincia de trabalho com a teoria e clnica psicanaltica sobre adolescncia.
Palavras-Chave: adolescncia, tica da psicanlise, instituio.
ABSTRACT
298
De acordo com o Estatudo da Criana e do Adolescente, verificada a prtica de ato infracional, a autoridade
competente poder aplicar ao adolescente as seguintes medidas socioeducativas: advertncia, obrigao de
reparar o dano, prestao de servios comunidade, liberdade assistida, insero em regime de semiliberdade,
internao em estabelecimento educacional (BRASIL, 1990).
299
tem seu ato infracional considerado como cometido mediante grave ameaa ou violncia
pessoa; 2) quando o jovem reincidente no cometimento de outras infraes graves; 3)
quando houve descumprimento reiterado e injustificado de medida anteriormente imposta.
Nos demais casos, o adolescente responde seu processo e aguarda a data de sua audincia com
o juiz em liberdade (BRASIL, 1990).
Ruan entra na sala de atendimento numa cadeira de rodas. O adolescente no fez
qualquer demanda de atendimento, este faz parte da rotina institucional: todos os adolescentes
devem passar por avaliao mdica, odontolgica e psicossocial e esta ltima realizada, ou
pelo Psiclogo ou pelo Assistente Social em servio. Alis, bastante comum, no DEGASE, a
identificao de ambos, o que introduz um trabalho a mais para o psicanalista que visa
efetivamente a um trabalho clnico, o de delimitar seu campo de atuao junto chefia dos
servios. O que ocorre nessa instituio que porta de entrada, no entanto, ainda mais
complexo, porque essa primeira entrevista tem roteiro prvio: dizemos a Ruan que estamos ali
para inform-lo se ter audincia, se ser transferido, quais medidas socioeducativas o juiz
pode lhe aplicar, como e onde elas sero cumpridas. Ao escrever sobre a funo considerada
do psiclogo pela instituio, percebemos o quanto esta se assemelha, nem mesmo do
assistente social e sim, de um advogado: informar a seu cliente sobre seus direitos, sobre o
que pode ou no lhe acontecer. inegvel que as informaes supracitadas so fundamentais
para o jovem, principalmente aquele que adentra o sistema socioeducativo pela primeira vez,
isto , que alheio a seu modo de funcionamento e que muitas vezes chega assustado
instituio, sem saber qual ser seu destino. Porm, por que elas precisam ser dadas pelo
psiclogo? Por que no instituir junto ao procedimento de acolhimento/entrada, um momento
onde o agente socioeducativo fornece essas informaes ao jovem, ao invs de ser apenas
portador de ms notcias j que o agente o insere na rotina institucional, lhe dando um
uniforme e lhe explicando as regras da instituio , ou ainda, portador de nenhuma notcia,
o que deixa o adolescente ainda mais ansioso e angustiado, at o dia em que tem seu
atendimento com o psiclogo... Talvez esta fosse uma forma de diminuir a distncia e
rivalidade existente entre adolescentes e agentes socioeducativos, uma vez que para muitos
adolescentes os agentes so quase o inimigo, uma vez que esto ali para vigi-los e punilos.
Conforme ressalta Martinho (2005), as instituies demandam que tcnicos
normalizadores ocupem funes valorizadas por reafirmarem uma ordem que funciona sobre
o recalcamento da subjetividade, e a maioria das pessoas acredita que o profissional psi ir
influenciar, moralizar, estimular, aconselhar, levando o sujeito a se comportar bem.
300
301
Pergunto a Ruan o que o mdico lhe disse sobre sua perna, qual seu prognstico. O
jovem responde que o mdico no lhe disse nada concreto, afirmando apenas que em algum
momento ele precisar fazer fisioterapia. Ruan acredita que voltar a andar logo e no levanta
a hiptese de que poder encontrar dificuldades para retomar essa atividade. Entretanto, a
ferida aberta na perna do adolescente, a pingar sangue no cho da sala o que ele mesmo me
informa, preocupado com a sujeira que est causando, no com a gravidade de seu estado
fsico -, indica uma desimplicao do adolescente quanto a gravidade dos ferimentos sofridos,
sendo esta tambm uma forma de no se responsabilizar pelo que lhe aconteceu.
Durante o atendimento, Ruan diz que s vezes fazia bicos na boca para conseguir
dinheiro. Assim, embora numa primeira verso de sua histria ele fosse quase um inocente,
que apenas segurou a arma e o radinho do colega na hora errada, logo observamos que o
colega no lhe pedia tal favor sem que houvesse um contexto. A esse respeito, Zeitoune
(2009) observa que por mais que o adolescente negue seu envolvimento com o ato infracional,
ele est na cena, sendo possvel tomar sua negativa como algo da ordem do que no pode
aparecer de seu desejo e que vem luz sob a forma de um ato.
De acordo com Alberti (1996), a passagem ao ato na adolescncia denota uma
dificuldade no relacionamento com aquele que o sujeito instituiu no lugar do Outro, denota
algo que passou despercebido ao Outro, mesmo se, muitas vezes, o sujeito de outras maneiras
tentou chamar ateno para isso.
Em O Seminrio, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanlise, Lacan
(1964/2008) ressalta que diante do ponto de falta vislumbrado no Outro, o sujeito pode se
oferecer como objeto de perda. Assim, ao testemunhar a falta-a-ser que os adolescentes se
confrontam com o mundo no intuito de se livrarem do que no est bem em suas vidas.
Quando pergunto a Ruan em que momento de sua vida ele comeou a fazer esses
bicos na boca, o adolescente fala um pouco de sua histria. Relata que quando era ainda
beb, seus pais se separaram, tendo ficado decidido que seu irmo mais velho iria morar com
a me e ele com o pai. Aponta que foi criado por sua av paterna e por seu pai e que tinha de
tudo, era mimado, estudava em escola particular, fazia curso de ingls. Porm, refere que
quando fez onze anos de idade comeou a pedir insistentemente para ir morar com sua me,
pedido que foi aceito pela famlia paterna, tamanha sua insistncia. Questiono o que o fez
querer ir morar com a me, ao que Ruan comea a afirmar de modo veemente que um filho
tem o direito de ir morar com a me e que sua av no lhe deixava fazer nada. Segundo
Coutinho Jorge (2010), a insistncia repetitiva de determinado elemento no discurso do
sujeito pode consistir numa forma sofisticada de defesa denegatria em relao a seu oposto.
302
303
haja vista que o termo responsabilidade recebe sua origem do latim respondere: responder
diante de um Outro.
fundamental, portanto, operar uma escuta, porque esta poder implicar um outro que
fala. Sem este elemento, no h medida scioeducativa ou mesmo punitiva que atinja seu
objetivo. nesse sentido que Lacan (1959-60/2008) no cessou de afirmar que a psicanlise
no um idealismo ou tica do Bem Supremo, mas tica do Bem-dizer, apontando a falcia
de querer-o-bem-do-sujeito, j que este, constitudo a partir do real, resiste a qualquer
tentativa de pastoral apregoada pela moral.
Este, no entanto, foi nosso nico encontro com Ruan. No dia seguinte ele foi
transferido para uma unidade do Departamento de Aes Scio-Educativas na cidade de Barra
Mansa, onde sua famlia reside. Entramos em contato com a equipe tcnica desta unidade de
forma a indicar a pertinncia de que os atendimentos psicolgicos ao adolescente tivessem
continuidade, mas no sabemos se tal ocorreu. A importncia da continuidade aos
atendimentos de Ruan pode ser justificada pelas palavras do prprio Lacan (1959-60/2008):
a partir do momento em que falamos de nossa vontade, ou de nosso entendimento,
como faculdades distintas que temos pr-conscincia, e que somos capazes, com
efeito, de articular num discurso algo desse palavrrio pelo qual nos articulamos em
ns mesmos, justificamo-nos, racionalizamos para ns mesmos, em tal ou tal
circunstncia, o encaminhamento de nosso desejo (LACAN, 1959-60/2008, p. 78).
Referncias Bibliogrficas:
ALBERTI, S.Esse sujeito adolescente. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1996.
BRASIL. Estatuto da Criana e do Adolescente. Lei Federal 8069/1990.
COUTINHO JORGE, M. A.Fundamentos da psicanlise de Freud a Lacan vol. 2: a clnica
da fantasia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.
DZU, R. Discurso jurdico e discurso analtico: sobre a responsabilidade do sujeito e as penas
alternativas. In: Mello de Lima, M.; Alto, S. (Orgs). Psicanlise, Clnica e Instituio. Rio
de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2005, p.198-214.
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2008.
______. O Seminrio, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanlise[1964]. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
_______________ A cincia e a verdade[1966]. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1999, p. 869-892.
304
305
RESUMO
A psicanlise nas instituies vem ganhando espao nos ltimos anos. Esse novo lugar
de atuao da prtica analtica nos permite pensar sobre a clnica ampliada e sua relao com
a tica da psicanlise. A atuao nessas instituies passa pelo trabalho em equipe
multidisciplinar, ento, como a psicanlise poder inserir-se nesse meio e fazer causa para que
algo do inconsciente possa emergir? Para pensar tal proposta, faremos um dialogo entre
Freud, Lacan e psicanalistas da atualidade que vm teorizando sobre o assunto, a partir de
suas respectivas inseres no campo. Tambm traremos a experincia que as autoras tm em
instituies de sade (hospital).
Palavras-chave: Clnica ampliada, tica; Psicanlise, Instituio.
ABSTRACT
The use of psychoanalysis in institutions has being increased along the last years.
These new places of operating instigate us to think about the expanded clinicand its
relationship with the etic of the psychoanalysis. The performance of the psychoanalysis is part
of a multidisciplinary teamwork, so how can the psychoanalysis be part of this environment
and to cause with the intent of something from unconscious could emerge? With this in mind,
we will create a dialogue involving Freud, Lacan and psychoanalysts of today that theorizes
about this subject, as from there insertion in field. We will also treat about the experience of
the writers about health institutions (hospitals).
Key-words: Expanded clinic, etic, psychoanalysis, Institution.
306
A psicanlise nas instituies vem ganhando espao nos ltimos anos. Pensar na
possibilidade da clinica ampliada incita questes referentes tica da psicanlise. Machado e
Chatelard (2013) apontam que a entrada da psicanlise nos hospitais deu-se no inicio da
dcada de 70 com os trabalhos de Sonia Alberti e Consuelo de Almeida no Rio de Janeiro e
em Belo Horizonte com Marisa Decat.
Inicialmente, a psicanlise encontra obstculos por parte dos prprios analistas e dos
outros profissionais que compe a equipe de sade. As discusses levavam em considerao a
entrada da mesma nesses lugares por pensar que poderia se distanciar da essncia da
psicanlise.
As resistncias eram tanto por parte da instituio quanto por parte dos prprios
psicanalistas, que recusavam a autenticidade de um trabalho analtico fora do
setting analtico enquadramento que define o nmero de sesses, a durao do
tempo de cada uma e o mobilirio da sala de atendimento. (MACHADO;
CHATELARD, 2013, p.447)
307
Portanto, quando entramos em cena no para fazer com que o paciente ou familiar
atenda s regras da instituio, seja mais paciente e colaborador, mas permitir que o sujeito
aparea. O efeito que a psicanlise produzir depender de cada caso, da direo a que cada
uma levar. E esses efeitos devero ser as conseqncias e no o objetivo do processo
teraputico. O efeito que a psicanlise produz, como Moura (2007) nos relata, depende do
psicanalista, pois ele que direcionar, atravs do manejo da transferncia e do discurso
trazido pelo sujeito, os caminhos a serem traados bem como o surgimento do sujeito do
inconsciente.
308
309
se aplicava era um diasepan. Assim a fala da paciente foi sumindo at o seu sbito adormecer.
Com seu ato, o sintoma silenciado, bem como qualquer saber produzido sobre o mesmo.
Aps o ocorrido, fui conversar com a enfermeira responsvel por tal ao. Perguntei o
que estava acontecendo? E ela disse: - Eu dei um diasepan, liguei pra mdica e disse que ela
no estava querendo dialisar. - Que conversa essa? Ela tem que dialisar querendo ou no.
No ela quem decide (sic). Nesse mesmo dia, a enfermeira complementa: - Essa menina
precisa de atendimento, ela no normal. Eu no agento mais. Ela cansa a gente (sic).
A deciso da continuao do tratamento com a interrupo da fala da paciente no
passa pela mesma, mas pela enfermagem, pela medicina, pela instituio. A equipe
representada aqui pela enfermagem ocupa a posio de mestria, sustentado pelo significante
S- saber-, assim como no discurso do mestre. O giro no discurso que possibilita a mudana de
posio passando do S para S barrado (sujeito) o ato analtico.
na produo de giros no discurso, pela considerao de cada caso singular que
algo do discurso do analista pode operar. Sublinhemos: operar sem pretender
resolver. No com o sentido herico da revoluo (retorno ao ponto de partida, como
um saber entre outros no campo dos saberes), mas incluindo a considerao do no
todo num lao discurso (COSTA, 2009, p.247).
310
A psicanlise encontra-se ali tambm para apontar os limites de cada um. O trabalho
nas instituies tambm passa pela escuta da equipe. Quando decidiram pela aplicao do
medicamento, no consideraram a presena da interveno do analista na situao. Ele estava
com a paciente realizando sua escuta e de repente interditado. H um muro passando entre o
dito e o no dito, ou entre ditos. O que fazer? A escuta agora volta-se para a equipe.
No trabalho em equipe o espao de cada um deve ser definido e respeitado para que
seja possvel um trabalho coletivo. Caso contrrio, que sentido teria o psicanalista ali se o que
interessa o silncio? essa tentativa de resgate da fala, do incomodo, de indagar o mal estar
que o psicanalista pode iniciar o seu trabalho na instituio.
H uma crena de que a tica que est em jogo a tica do bem. A tica aristotlica no
qual se busca a felicidade e que os caminhos para alcanar tal objetivo no podem ser
impedidos, portanto nenhuma tica poder se opor a essa. Os progressos para a sade
transcendem aos sujeitos. A psicanlise entra em jogo para resgatar o sujeito que fora
foracludo pela equipe. A funo do analista na instituio o de trazer tona o sujeito,
coloc-lo em questo para a equipe.
Referncia Bibliogrfica:
CHATELARD, D. VAL MACHADO, M. A difuso da psicanlise e sua insero nos hospitais
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standard brasileira das obras psicolgicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
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FIGUEIREDO, A. C. Uma proposta da psicanlise para o trabalho em equipe na ateno
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MOURA, M. D. Psicanlise e hospital: se ao a deve o analista chegar, por onde andava ele?
Epistemo-somtica, v.4, n2. Belo Horizonte: Clnica de psicologia e psicanlise do hospital Mater
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311
RINALDI, D. Psicanlise e Sade Mental: a pesquisa na universidade. In: Caldas, H.; Alto, S.
(Org.). Psicanlise, Universidade e Sociedade. Rio de Janeiro:Cia. de Freud, 2011, p. 175-184.
30
Este artigo parte da Tese em andamento Errncia: para alm do erro, a inveno orientada pela Prof Dr
Anglica Bastos, do Programa de Ps-Graduao em Teoria Psicanaltica, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro.
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RESUMO
O presente trabalho discute a questo da inveno. Partimos da questo: por que
preciso inventar? A vida e o real nela em jogo nos coloca diante de problemas que nos
desafiam a inventar uma forma de habitar no mundo. A experincia subjetiva composta
pelos trs registros: Real, Simblico e Imaginrio. O sinthoma, como quarto elo, se faz
necessrio para o enodamento dos registros. Sempre lembrando que o artista precede o
analista, recorremos ao artista James Joyce para nos ensinar sobre a questo da inveno.
Palavras-chave: sade, inveno, sinthoma.
RESUME
Cet articletraite de l'invention. Nous partons de laquestion:pourquoi est-ilncessaire
d'inventer? La vie et le rel en jeunous confronte des problmes quinous interpellent
inventerune manired'habiter lemonde. L'exprience subjectiveest compos de troisregistres:
Rel, Symbolique etImaginaire.Lesinthomecomme une quatrime anneau, il est ncessaire
pourlenouagedes registres.Rappelant toujoursque l'artisteprcdel'analyste, a fait appel
l'artisteJamesJoyce
nous
apprendre
surla
questionde
l'invention.
Mots-cls:sant, invention, sinthome.
313
Partimos da seguinte questo: Por que o sujeito precisa inventar? Todo ser falante tem
que lidar com o real. Esse todo indica um universal. H um corpo que pulsa e no importa o
que faamos, ela, a pulso, sempre exigir satisfao. Isso nos coloca problemas, nos pe
diante do mal-estar na civilizao, dos infortnios, dos sofrimentos e da estranheza da vida.
Ante o encontro com o real, precisamos encontrar maneiras de lidar com ele. A vida e o real
nela em jogo nos desafiam a inventar uma forma de habitar no mundo. Lacan, ao longo do seu
ensino, demonstrou que a experincia subjetiva composta por trs registros: Real, Simblico
e Imaginrio. No h realidade dada, a priori. Ela depende de os registros estarem articulados.
A inveno se faz necessria para tal enodamento, para que o sujeito ordene seu mundo, e
aqui entramos no terreno da singularidade, pois a forma de corrigir a falha do n nica.
Trata-se do sinthoma, o que h de mais singular em cada indivduo (LACAN, 197576/2007, p. 163). Em psicanlise sempre se busca algo de singular, nico, incomparvel.
Todo mundo louco, ou seja, delirante. o que conclui Lacan (1979/2010, p. 31),
em um de seus ltimos textos publicados, ao colocar em questo o ensino da psicanlise na
universidade, no caso a Paris VIII (Vincennes/Saint Denis) onde se encontra o Departamento
de Psicanlise. Isso no contexto freudiano da educao e da psicanlise como sendo da ordem
do impossvel. Porm, isso no deve servir como desalento e sim como desafio para os
analistas. Freud no recuou diante disso, tampouco Lacan. Por que todo mundo delirante?
Porque no existe a ideia de normalidade ou de uma sade mental universal. Mais ainda,
Lacan sustenta que no h relao sexual! No h encaixe, no h complementaridade, a ideia
de completude do mito de Aristfanes, o personagem que, em OBanquete de Plato, fez um
discurso sobre o amor assentado na busca do homem por sua outra metade.
O que esse aforismo de Lacan explicita que todo sujeito ter que se virar frente ao
real, ter que inventar uma soluo diante da inexistncia da relao sexual. Como explica
Miller (2011, p. 87) o sinthoma singular tambm uma verdade que se expressa: Todo
mundo louco, todo mundo faz uma elucubrao de saber sobre o sinthoma. Quer dizer,
todos elocubram, realizam um trabalho prolongado e incessante de saber sobre o modo de
gozar. Ao afirmar que todo mundo delira, Lacan aponta que toda relao precisa ser
construda, trata-se de uma inveno. Isso delirante porque no h relao previamente
314
315
dos psicanalistas deve ser reconhecer o que est fazendo funo de sinthoma, ou seja, o que
mantm amarrados os registros, e preserv-lo. Ou, ento ajudar o sujeito a construir esse
quarto elo, ali onde essa funo no est presente.
Esse seminrio foi dedicado ao escritor James Joyce. Lacan estava interessado nele
como uma maneira de avanar certas ideias em psicanlise. Como destaca Marie-Hlne
Brousse (2007, p. 13), ele no discute sobre esse artista para demonstrar que Joyce era
psictico, embora acontea de ele fazer essa hiptese. O que o interessava em Joyce era
aprender dele a via pela qual um sintoma pode ser definido de uma maneira diferente da
definio clssica de sintoma em psiquiatria e em psicanlise. Com o auxlio do exemplo de
Joyce, Lacan inventa no apenas uma nova definio, mas tambm uma nova funo do que
o sintoma em psicanlise. Conclui que este um exemplo perfeito de que o artista ensina ao
psicanalista e Joyce ensinou a Lacan o sentido do sintoma naquele momento na histria da
lngua. O que est em jogo aqui muito mais um novo saber sobre o ser falante, o sinthoma,
do que um diagnstico. A nfase recai no saber fazer com isso que lhe acomete e no numa
limitao nosolgica.
Partindo de uma questo sobre a arte: Em que a arte, o artesanato, pode desfazer, se
assim posso dizer, o que se impe do sintoma? Lacan (1975-76/2007, p. 23) inicia este
seminrio, introduzindo o novo conceito de sinthoma. Para responder tal questo, ele se vale
da vida e da obra do escritor irlands James Joyce, famoso por ter realizado uma nova
literatura, nos ensinando uma nova maneira de estabilizao. Lacan considera o caso de
Joyce como respondendo a um modo de suprir um desenodamento do n (1975-76/2007, p.
85). Nesse sentido, a arte de Joyce teria feito um papel estabilizador, funcionando como
sinthoma. Especialmente o sentido inventivo que este escritor deu literatura, fazendo um uso
original e livre da linguagem, a ponto de impor prpria linguagem um tipo de quebra, de
decomposio, que faz com que no haja mais identidade fonatria (1975-76/2007, p. 93).
Possivelmente como uma reao contra as falas impostas, no se submetendo ao Outro da
linguagem.
Nesse seminrio de Lacan, observamos um deslocamento de uma importante questo
da clnica psicanaltica: A partir de quando se louco? Para o seu avesso: Como que se
pode no ser louco? Questo por trs das falas impostas, sobre as quais Lacan questiona o
fato de o homem dito normal no perceber que a a fala um parasita, que a fala uma
excrescncia, que a fala a forma de cncer pela qual o ser humano est afligido (197576/2007, p. 92). Joyce percebe isso e reage, quebrando e dissolvendo a prpria linguagem.
316
317
costura, pois de suturas e emendas que se trata na anlise. Assim como as tecels tecem
delicadamente fio por fio de um tecido, um trabalho de anlise pressupe a costura, algo
artesanal, do n.
Nos primrdios da psicanlise, Freud percebeu que smbolo e sintoma estavam
articulados e assim, o sintoma histrico era tratado como a expresso de uma linguagem cujo
sentido oculto poderia ser encontrado. A temos o discurso do inconsciente, no qual um
significante liga-se a outro produzindo um outro sentido. Com Joyce, Lacan notou um outro
enlace possvel da linguagem, no mais visando o sentido, mas a produo de gozo. Na
conferncia Joyce, o sintoma (1975-76/2007), realizada cinco meses antes do incio de seu
Seminrio dedicado a Joyce, Lacan deixa bem claro a diferena entre smbolo e sintoma e a
justificativa da escolha deste ltimo para se referir a Joyce. Embora o ttulo venha escrito com
o termo tradicional, sintoma, nele j aparece a distino entre o pai como nome e o pai
como aquele que nomeia, este ltimo suscetvel de pluralizao, segundo artifcios de
nomeao que cada um forja (Bastos, 2008, p. 355).
Podemos perceber na leitura da obra de Joyce, especialmente em Finnegans Wake, que
ele inventava palavras. Mais ainda, Joyce inventou uma nova literatura, feita no para se ler,
mas para se escutar, privilegiando no mais o sentido e sim o gozo. Para ele, seus livros no
deveriam ler lidos, mas escutados como msica. Numa nica palavra, por exemplo, riverrun
que abre o Finnegans (JOYCE, 1939/2004), ressoa:
o francs riverain (ribeirinho), o italiano riverranno (voltaro a vir), o francs
rverons (sonhemos), alm, claro, do ingls river run (um rio que corre, ou um
trecho de um rio) e da possibilidade de um river ann (rio Ana, nome da
protagonista), todas possibilidades, diga-se de passagem, em estreita consonncia
com temas e ideias da abertura do romance. E todas possibilidades simultaneamente
vlidas. E nenhuma plenamente realizada. (GALINDO, 2010, p. 295)
Joyce busca o novo a fim de dotar sua obra de originalidade. Ele inventa artifcios
estilsticos, neologismos. Parece brincar com as infinitas possibilidades do uso da lngua,
alis, diversas lnguas. Antes de criar suas histrias faz um estudo criterioso, seja em relao
descrio fiel da cidade de Dublin, seja em relao ao estilo do fluxo da conscincia, a
partir da anlise do monlogo interior de Dujardin. Mais que um falasser, Joyce um
escritosser [scriptutre], j que dele temos a escrita (MILLER, 2011, p. 83). Joyce soube
fazer com seu sinthoma, servindo-se de sua singularidade ou daquilo que se chama
comumente como meu jeito, de certa precariedade que poderia ser tida como desvantagem,
mas no por ele. O sinthoma vale para todos uma vez que a singularidade do sinthoma est
para todos. Todos precisam inventar um modo de habitar o mundo, mas nem todos precisam
318
fazer uma obra, como fez Joyce. O que podemos concluir preliminarmente que a
inexistncia da relao, o impossvel, um convite inveno!
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Janeiro: Jorge Zahar, 2011.
319
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo investigar o lugar do diagnstico em psicanlise e
psiquiatria. Esta diferenciao se torna clara na medida em que apontada na prpria histria
320
321
novos fatores que o faz avanar para outro campo, o do inconsciente, que vem instaurar uma
nova proposta discursiva, no equivalente a medicina. Devido a essa origem, para estudar o
diagnstico em psicanlise, torna-se indispensvel investigar a lgica do diagnstico mdico,
mas especificamente o da psiquiatria e para que se compreenda de que lugar e em que
contexto a psicanlise nasceu. Destacamos esta rea da medicina j que tanto Freud, que
funda a psicanlise, quanto Lacan, que faz uma releitura da obra freudiana, possuem sua
primeira formao em medicina, nas especialidades de neurologia e psiquiatria
respectivamente.
Para a psiquiatria do sculo XIX era fundamental discernir a cerca da existncia ou
no de uma leso anatmica relacionada a determinados sintomas. A partir desta ideia,
formavam-se dois diferentes tipos de doenas: as com sintomatologia regular e que podiam
ser observadas pela anatomia patolgica devido s leses orgnicas e as neuroses, que eram
identificadas atravs da ausncia dessas leses e quando a sintomatologia no era apresentada
de forma regular. Nesses casos, a histeria era diagnosticada e em seguida muitas vezes
deixada de lado. No entanto ela interessava a Charcot e tambm a Freud, pois ambos
acreditavam que a histeria era uma doena funcional e que no se tratava de uma simulao,
como muitos psiquiatras anteriores a dcada de Freud afirmavam ser. Em um primeiro
momento, a psicanlise nascia como uma teraputica auxiliar, a partir de uma doena em que
muitos profissionais no tinham motivao para estudar. (FREUD, 1886/1956)
Assim, nesse perodo, quando Freud ainda estudava e trabalhava com a hipnose, o
diagnstico j era uma questo. Ainda trabalhando como neurologista dedicava-se a
diferenciar a doena orgnica da histeria, utilizando a hipnose apenas em casos j
diagnosticados como neurose histrica, casos de dependncias ou em outros em que no era
clara a etiologia orgnica (FREUD, 1891/1969). Podemos entender que nesse perodo ainda
havia a lgica diagnstica mdica predominante, isto , para que o tratamento hipntico fosse
realizado era necessrio uma avaliao diagnstica prvia que apontasse para uma ausncia de
leso orgnica ou no mximo uma dvida da origem orgnica. O que destacamos a partir
desse momento do incio da obra freudiana que vai se delineando um diferencial entre a
psicanlise e a psiquiatria a respeito do diagnstico; para essa, o diagnstico deve ser
estabelecido a priori enquanto que para a psicanlise ele feito a posteriori, o que
entendemos como sendo uma vantagem na preciso diagnstica.
Em Sobre o Incio do Tratamento (1913/1969), isso permanece ainda mais claro. Ao
dar novas recomendaes queles que exercem a psicanlise, Freud alerta os analistas acerca
de uma das funes das entrevistas preliminares: aproveit-la para que neste tempo prvio
322
anlise seja realizado um diagnstico a posteriori, por mais que este tempo preliminar no
garanta uma certeza diagnstica. Freud ressalta tambm que o psicanalista que comete um
erro ao diagnosticar um paciente comete um erro prtico, diferente do psiquiatra que realizaria
no caso de um equvoco, um erro terico, de importncia apenas acadmica, j que para Freud
no era possvel prometer uma cura no caso de psicose. Dessa forma, como podemos
perceber, j em 1913, o diagnstico diferencial para Freud era dedicado a estabelecer uma
diferena entre neurose e psicose e no mais entre uma doena orgnica e uma possvel
histeria. A partir do ensino de Lacan observamos modificaes: j no se promete uma cura,
no entanto, diferente de Freud, Lacan acolhe em tratamento casos de psicose e por isso que
este momento preliminar anlise continua sendo importante para a direo do tratamento,
mesmo no ensino de Lacan.
O discurso mdico sustenta-se por sua cientificidade e objetividade; e a psicanlise,
que nasce do seio da medicina, tendo como origem a prtica mdica, logo rompe com esse
discurso, atravs das elaboraes de Freud. Na relao estabelecida entre psicanlise e
medicina, h elementos como demanda de cura, transferncia e diagnstico que permeiam
ambas, mas ocupam lugares diferentes em cada uma delas. Ao nos debruarmos sobre a
maneira como a medicina e, mais especificamente a psiquiatria, compreende o diagnstico,
em comparao psicanlise, de sada, pode-se dizer que na primeira, o diagnstico
formulado a partir do mtodo fenomenolgico e na segunda este estrutural. Entretanto, foi
necessrio um percurso que, em um movimento de retro-ao, nos faz chegar a essa
concluso.
O diagnstico psiquitrico, de onde se origina o diagnstico em psicanlise,
fundamentado a partir de duas principais classificaes: o diagnstico sindrmico e o
nosolgico. O primeiro descreve o conjunto de sinais e sintomas, sem determinar a doena de
base e prope uma interveno rpida atravs da remisso dos sintomas. J o segundo,
identifica a doena e no apenas os sintomas, trabalhando com uma interveno longa e com
alcance menos superficial. O diagnstico sindrmico, alm de ter a funo de combater os
sintomas de maneira mais direta, possui tambm a funo de orientar o diagnstico
nosolgico. Eles so claramente diferentes entre si e, alm disso, Deve-se notar que essa
distino entre sndrome e nosologia, entre sintomas e doena, no equivale distino
psicanaltica entre fenmenos e estrutura, porque mesmo o diagnstico nosolgico
Fenomenolgico (FIGUEIREDO; TENRIO, 2002, p. 33).
Para a psiquiatria, o estudo da doena mental inicia-se a partir da observao das suas
manifestaes, ou seja, o diagnstico psiquitrico realizado a partir da soma dos sintomas
323
324
Quando nos
325
326
RESUMO
O presente trabalho prope refletir sobre as possibilidades do fazer do praticante de
psicanlise diante da psicose no acompanhamento clnico de um caso em um Centro de
Ateno Psicossocial (CAPS). A oferta de uma escuta que particulariza os significantes
trazidos por Lucas aponta para a responsabilidade do praticante de psicanlise de oferecer
outra leitura da realidade, ao colocar a transferncia e a tica do bem-dizer como pilares da
clnica. Concebe-se que, a partir da poltica do real operada pela clnica psicanaltica, as
dimenses sujeito e cidado podem ser articuladas de modo que o sujeito pode encontrar um
lugar na poltica.
Palavras-chave: psicose, tica do bem-dizer, transferncia, poltica do real.
RESUME
Le presente travail a pour objectif reflechir sur les possibilites du travail du praticien
en psychanalyse devant la psychose dans un cas clinique suivi dans un Centre dAttention
Psychossocial (CAPS). Loffre dune cute que particularise les signifiants ports par Lucas
montre la responsabilit du praticien en psychanalyse doffre une autre lecture de la realit,
dans la mesure que le transfert et lthique do bien-dire sont utlilises comme les piliers de la
clinique. La politique du rel opre par la psychanalyse montre que les dimentions du sujet et
du citoyen peuvent rencoontrer une place dans la politique em gnral.
Mot-cls: psychose, thique du bien-dire, transfert, politique du rel.
31
Lucas o personagem central do projeto de literatura e quadrinhos Fala Menino!, criado por Luis Augusto,
cartunista e escritor baiano. Em uma parceria entre o Fala Menino! e a COELBA (Companhia de Eletricidade do
Estado da Bahia), surge o projeto Energia Amiga, sendo produzido o livro Energia Amiga em Quadrinhos,
no qual Lucas um dos personagens que tratam sobre o desenvolvimento de uma nova conscincia sobre o uso
da energia eltrica. Este livro foi entregue a mim por Lucas em seu segundo atendimento.
todo lugar, nas coisas, na caneta, na parede, no asfalto, nas nuvens, na minha pele. Ela fora
meus olhos, fica triscando minha pele, coa, quer que eu olhe pra outro lugar, vira meu
pescoo e meu crnio pra trs.
Por vivenciar as alucinaes em seu corpo, Lucas sofre e ilustra isto ao dizer: minha
esquizofrenia apertou, tenho alucinaes, acordo agitado. No aguento mais, agora est
difcil. Penso em me suicidar, em me jogar na frente dos nibus, mas, se eu me jogar, meus
ossos vo doer, a, eu desisto. Ele relata: a esquizofrenia aperta tarde, quando vou tomar
banho, e explica: durante o banho, a massa de cimento no intervalo entre os blocos da
parede do banheiro fala comigo. Lucas acrescenta e revela sua interpretao: ela diz antena
um que significa apenas um, e este um sou eu. Sei que coisa da minha mente, da minha
esquizofrenia, mas d a entender que Deus existe e que eu o estou substituindo. E quem quer
tomar o lugar de Deus Lcifer, tomar a humanidade pra ele, mas ele est com os dias
contados, desvirtuou Ado e Eva, por isso a dificuldade do mundo hoje, somos frutos do
pecado.
No campo da linguagem e do gozo, o Um o S1, significante-mestre que constitui o
ser falante e que representa o significante traumtico condenado repetio. Na neurose, o S1
se encontra recalcado, enquanto que, na psicose, ocorre uma diferenciao no destino deste
significante na esquizofrenia e na paranoia. Nas palavras de Quinet, o esquizofrnico
pulveriza o Um e o paranoico lhe d consistncia com seu ser de gozo ao se propor a encarnlo (QUINET, 2006, p. 94).
Lucas declara: como se eu fosse um Deus, me sinto constrangido, porque acredito
num Deus nico. s vezes, eu choro, porque no quero ser Deus nenhum, quero ser uma
pessoa normal. Quem tomou o lugar de Deus foi Satans, eu no quero tomar o lugar do meu
pai celestial, Jeov, criador de todas as coisas. Sinto-me culpado, estaria tomando tudo o que
do meu pai. A lgica da construo de Lucas parece indicar uma pulverizao nas figuras de
Deus/Jeov e de Lcifer/Satans, em que cada S 1 se apresenta como mais um do enxame.
Lucas, ento, apenas um, mais um entre outros da esquizofrenia, que se constitui por uma
disperso deste significante, que se manifesta nas vozes, nos olhares, nas palavras
entrecortadas e frases interrompidas (QUINET, 2006, p. 94).
Sobre a energia, ele traz: tento dar rasteira na energia, mas ela inteligente, sabe o
que eu penso. Tento pensar em uma coisa boa, mas ela muda meu pensamento, atrapalha
minhas atitudes. uma batalha espiritual, psicolgica, fico esgotado. A energia uma fora
forte. A incidncia da energia em Lucas aponta para o gozo no exteriorizado da psicose, que
revela e determina uma posio de alienao ao Outro invasivo e devastador. O fato de o gozo
no estar localizado no campo do Outro, por ocasio de uma falha na inscrio da significao
flica, torna o corpo do psictico lugar da disperso significante, lugar do gozo impossvel de
ser metaforizado e que retorna ao sujeito no real como uma lngua dos rgos (FREITAS,
2010).
Em suas lembranas da infncia, o pai ocupa uma figura central, o que se estende at o
presente: quando eu era criana, meu pai no me deixava ficar com outros jovens. No
interior, no tinha colgio, aprendi a ler com ele. No tive infncia, era s trabalho, porque
sou o mais velho; ele tem dois irmos do mesmo pai e da mesma me e outros trs por parte
de pai. A me saiu de casa grvida, deixando o filho aos oito meses de vida com o genitor.
Com o desencadeamento da psicose, foi o pai quem assumiu a responsabilidade por Lucas,
que fala: dependo do meu pai, ele responsvel por mim, tem minha tutela e curatela. Ele
o dono do meu dinheiro, ele sabe o que tem que ser feito, eu no sou mais responsvel por
mim, sou incapaz, tudo o que era meu dele agora.
Lucas relata que aposentado por invalidez e que no tem mais condies de
trabalhar por causa da energia; ele j atuou com carteira assinada em depsitos e em
quitandas. Quando afirma que aposentado por invalidez, est se referindo ao recebimento do
Benefcio de Prestao Continuada (BPC) pelo INSS, o qual assume o papel de retir-lo da
posio de vagabundo. Ele diz: no sou vagabundo, eu preciso do dinheiro do benefcio
para comer, para sustentar minhas filhas.
Ao destacar os significantes tutela e curatela, trazidos no discurso de Lucas,
proponho a leitura de que ambos apontam para sua posio de assujeitamento ao Outro, pois o
mantm alienado ao pai. No momento, Lucas deixou de viver com a esposa e as filhas e foi
morar com o genitor, para que fique mais perto deste a fim de resolverem as questes do
benefcio que foi cortado recentemente. Figueiredo aponta para a responsabilizao do sujeito,
ainda que psictico.
O sujeito responsvel por sua existncia (ou ex-sistncia) e como tal responde
seja como for, ao que lhe apresentado, oferecido ou mesmo imposto, seja no surto
ou na estabilizao. No h como desresponsabiliz-lo nesse ponto retirando-lhe
qualquer possibilidade de resposta. A responsabilidade civil ou jurdica deve ser
auferida a partir dessa responsabilidade de existncia inicial. (FIGUEIREDO, 2007,
p. 4 apud FIGUEIREDO; FRARE, 2008, p. 88).
opostas, sujeito e cidado, podem ser articuladas ao se pensar na poltica do real operada pela
clnica psicanaltica.
Em um de seus atendimentos, Lucas me entrega um livro cujo ttulo Energia Amiga
em Quadrinhos, dizendo: achei que a senhora iria gostar do livro, e complementa: um
livro interessante, tem histrias engraadas. Em outra sesso, ele afirma: voc e minha
tcnica so minhas amigas. Sobre como a transferncia se estrutura na psicose, Soler coloca
que
(...) apesar de estarem fora tanto da transferncia quanto do discurso, esses sujeitos
no deixam de estabelecer uma eventual relao de confiana com alguns de seus
semelhantes. Isso no constitui propriamente uma transferncia, porque a
transferncia uma relao simblica que inclui o sujeito suposto saber, e o
esquizofrnico no entra nela. Mas d margem a uma possvel relao objetal, a um
tempo real e imaginria, que se presta confuso com a transferncia e a partir da
qual s vezes se podem obter alguns efeitos. Se eles so analticos, duvidoso, mas
s vezes podem ser benficos para o sujeito. (SOLER, 2007, p. 124)
______. Televiso [1974]. In: ______. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.
508-543.
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p. 869-892.
QUINET, A. O Um paranico e a Verhaltung. In: ______. Psicose e lao social. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 91-105.
RINALDI, D. Clnica e Poltica: a direo do tratamento psicanaltico no campo da sade
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Janeiro: Rios Ambiciosos, 2005, p. 87-106.
SOLER, C. O dito esquizofrnico. In: ______. O inconsciente a cu aberto da psicose. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 116-124.
32
Este trabalho foi elaborado a partir das reflexes apresentadas na dissertao de Mestrado "A recepo de
usurios em um ambulatrio de sade mental: a importncia da escuta do sujeito" elaborada por Renata Fidelis
sob a orientao da Dr Doris Luz Rinaldi no Programa de Ps-graduao em Pesquisa e Clnica em Psicanlise
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
RESUMO
Este trabalho traz reflexes sobre os impasses enfrentados pelos profissionais que
trabalham na porta de entrada de um ambulatrio de Sade Mental na interlocuo com outros
dispositivos da rede. Na clnica da recepo importante a articulao entre diferentes
servios da rede, para a construo de um encaminhamento dos usurios ou para o
compartilhamento do cuidado. Neste trabalho, mostra-se necessrio esperar que se produza
algum endereamento de questes, pois a partir da que podemos comear a pensar em um
projeto teraputico que se guiar pelas indicaes do sujeito.
Palavras-chave: sade mental, recepo, rede, sujeito.
RESUME
Ce travail apporte des rflexions sur las impasses que les professionnels sont
confronts lentre dun service de la sant mentale dans le dialogue avec autres dispositifs.
Dans la clinique de laccueil larticulation entre les diverses services est important pour la
constrution des rfrences ou pour partager le soins. Dans ce travail, est montr ncessaire
attendre la prodution des questions adresses aux professionnels, parce que cest la manire
de commencer penser dans um projet du traitement qui est guide pour lindications du
sujet.
Mots-cl: sant mentale, accueil, rseau, sujet.
Este trabalho procura analisar os impasses enfrentados por profissionais que trabalham
na porta de entrada de um ambulatrio pblico de sade mental da zona oeste do Rio de
Janeiro. As dificuldades no acolhimento de novos usurios ocorrem tanto no mbito interno,
onde nem sempre h disponibilidade para a realizao deste trabalho e so raros os momentos
de interlocuo com a equipe, quanto externo, na articulao com outros servios. Em nossa
prtica verificamos a importncia que tem, para a clnica da recepo, a articulao com os
diversos dispositivos da rede de sade para a construo de um encaminhamento e formao
de uma rede de suporte para o usurio.
Se quem recebe o usurio sustenta sua prtica na psicanlise possvel aguardar um
tempo de espera para propiciar a construo de uma demanda, apostando na emergncia do
sujeito. No trabalho de recepo importante esperar que se produza algum endereamento
de questes, pois a partir da que podemos comear a pensar em um projeto teraputico que
se guiar pelas indicaes do sujeito.
A articulao e a criao de novos servios na rede propicia um questionamento sobre
o tipo de tratamento que se desenrola no ambulatrio e quais as possibilidades de criao de
novos arranjos assistenciais neste dispositivo, como veremos em fragmentos clnicos mais
adiante.
O Centro de ateno psicossocial (CAPS) passou a ser a principal alternativa para os
casos mais graves, no mbito da Reforma Psiquitrica, como servio substitutivo ao
manicmio. No entanto, a rede de sade mental que passa a ter o CAPS como unidade
estratgica, no prescinde do ambulatrio e de outras estruturas como unidades de
Emergncia e internaes psiquitricas, programas de residncia teraputica, entre outras.
Cada servio tem sua importncia e no a criao de um novo dispositivo que garante a
resoluo de problemas que o desafio de atender com qualidade os usurios que buscam um
servio de sade mental traz (TENRIO; OLIVEIRA; LECVCOVITZ, 2000).
O ambulatrio de sade mental, mantendo o seu funcionamento tradicional, corre o
risco de produzir cronificao, por no dar crdito palavra do usurio e no considerar a
necessidade de produzir aes que contemplem dispositivos da rede, possibilitando a criao
de portas de sada e a circulao do usurio na rede.Na prtica, a integrao do ambulatrio a
um novo modelo de cuidado em sade mental ocorre de uma forma lenta e enfrentando
obstculos de diversos tipos. Rinaldi 33 alerta para uma nova cronicidade que pode ocorrer
tambm do lado dos tcnicos, que no conseguem ou no querem ouvir nada alm daquilo
que j sabem. Neste sentido, corre-se o risco de reproduzir prticas que se enquadram no
modelo hospitalocntrico e medicalizador.
Devemos considerar que a mudana na concepo de tratamento para usurios que
apresentam transtorno mental no algo terminado, mas precisa ser sustentada
cotidianamente pelos diversos dispositivos da rede. Uma das funes includas na proposta de
atuao do CAPS regular a porta de entrada da rede assistencial de seu territrio. Ele pode
ter uma funo importante ao auxiliar os outros servios da rede a repensar as formas de
acolhimento e cuidado. No entanto, a articulao entre os dispositivos da rede tem se
mostrado muito complicada, devido aos entraves burocrticos de alguns servios e sada de
profissionais, sendo preciso reconstruir laos de trabalho frequentemente. Alm disso, nem
todos os profissionais que esto na rede acham importante esta articulao.
Os ambulatrios parecem que esto sem flego para realizar o trabalho que lhes
compete, pois alm de contarem com poucos profissionais, situaes complexas chegam
nestes servios que tm o desafio de construir respostas a elas. Casos de violncia, uso
abusivo de drogas e tentativas de suicdio so exemplos de situaes que demandam muita
ateno e investimento dos profissionais, gerando preocupao nas equipes que os recebem.
A rede est em constante mudana com a criao de novos servios e a chegada de
novos profissionais. Nos ltimos anos, houve um investimento poltico nos programas de
Estratgia de Sade da Famlia34(ESF). Os princpios de atuao das equipes de sade da
famlia se aproximam dos propostos pela poltica de Sade Mental, pautados na Reforma
33
Considerao extrada do trabalho Que desafios o psicanalista enfrenta em sua prtica no campo da sade
mental? O que essa prtica pode ensinar aos psicanalistas? apresentado no VIII Simpsio do Programa de Psgraduao em Psicanlise da UERJ - A importncia da Psicanlise para a Psiquiatria no sc. XXI: clnica e
pesquisa, em 5 de julho de 2012, UERJ.
34
A ampliao da assistncia em sade de base comunitria uma meta da poltica nacional. O atual governo
municipal do Rio de Janeiro tomou como prioridade esta meta atingindo no primeiro semestre de 2012 uma
cobertura aproximada ao percentual de 35% (COELHO, BURSZTYN, RAULINO E ARCA, 2012).
profissionais que apesar das dificuldades acreditam que podem fazer a diferena com seus
atos.
importante que se busque eliminar a disputa imaginria entre os servios e que eles
passem a trabalhar articulados para a produo de cuidados em sade mental no territrio.
Muitas vezes, observamos que ao se tentar discutir os casos vm tona acusaes entre os
membros das equipes e a discusso do caso fica em segundo plano. Trabalhar em equipe e em
rede traz novas perspectivas para casos graves, que exigem a interlocuo de profissionais de
diferentes servios, num modelo de ateno baseado no cuidado compartilhado e na
corresponsabilizao dos diferentes atores da rede.
Referncias Bibliogrficas:
COELHO, D. A. M.; BURSZTYN, D. C.; RAULINO, L. E. G.; ARCA, S. R. S. Sobre o
incio do matriciamento em sade mental na cidade do Rio de Janeiro: reflexes, relatos e
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em: <https://docs.google.com/file/d/0B_HpM8Lq6o5MRkZ1ZFhqMktRTTg/edit?
usp=drive_web&pli=1>. Acesso em: 01/10/2013.
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MEYER, G.R. A clnica da psicose no campo da sade mental: transferncia e desejo do
analista.Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 10. So Paulo: Escuta,
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01/10/2013.
TENRIO, F.; OLIVEIRA, R.; LECVCOVITZ, S. Apresentao: a importncia estratgica
dos dispositivos de recepo. Cadernos do IPUB: a clnica da recepo nos dispositivos de
Sade Mental, UFRJ, v. 6, n. 17. Rio de Janeiro: IPUB, 2000, p. 7-14.
RESUMO
Na psicose h uma dificuldade do sujeito posicionar-se sexualmente, uma vez que ele
no tem acesso castrao. Na feminizao, o psictico alucina um corpo de mulher e disso
ele tem certeza. Na psicose, o delrio uma tentativa de dar sentido a algo que no faz. J-A
Millerintitula inveno aquilo que Jacques Lacan nomeia construo. Atendo um rapaz que,
de modo singular, prende sua ateno s bolsas e unhas pintadas, insgnias do universo
feminino. Entretanto, aponta uma dificuldade no lao com o gnero masculino, poisessa
ligao s suportvel com a distncia ntima da figura feminina.
Palavras-chave: psicose, empuxo--mulher, lao social, gozo, pulso.
RESUME
Dans la psychose, il y a une difficult du sujet se positionner sexuellement, car il n'a
pas daccs la castration. Dans la fminisation, le psychotique hallucine le corp d'une femme
et qu'il est sr. Dans la psychose, le dlire est une tentative de donner un sens quelque chose
qui nen pas. J-A Miller appele invention ce que Jacques Lacan nomme construction. J'assiste
un gars que, de une manire singulier, retient sa attention pour les sacs et les ongles peints,
des insignes de lunivers fminin. Toutefois, souligne une difficult dans le lien social avec les
hommes, parce que cette liaison est seulement supportable avec la distance intime de la figure
fminin.
Mots-cls: la psychose, pousse la femme, lien social, la jouissance, la pulsion.
Outro. Para o paciente, as pessoas que conversam na rua, riem, falam alto, referem-se na
realidade a ele, falam sobre ele.
Em Sobre o narcisismo: uma introduo (1914/1996, p.102), Freud aponta que os
chamados delrios de sermos observados, que constituem a sintomatologia das
enfermidades paranoides, podem se apresentar como uma forma isolada da enfermidade, ou
intercalada numa neurose de transferncia. Os pacientes se queixam de que algum conhece
seus pensamentos e suas aes so vigiadas. Eles so informados do imperativo sobre o
funcionamento dessa instncia psquica (supereu) por vozes que lhes falam na terceira pessoa.
comum o paranoico queixar-se dos delrios de observao. No entanto, convm observar
que em todas as estruturas clnicas neurose, psicose e perverso o que induz o sujeito a
formar um ideal do eu a assim chamada voz da conscincia moral, ou melhor, do supereu
sempre vigilante que funciona como se fosse uma autocrtica.No caso da psicose, as queixas
revelam que essa autocrtica pode ter relao com a tendncia dos paranoicos formarem
sistemas especulativos. A hierarquia da organizao pulsional pode entrar em choque quando
vacila a ordem imaginria que a sustenta. O corpo se v invadido pelo gozo do Outro. A
ausncia da funo paterna afeta o registro simblico, bem como tudo que Freud chamou de
conscincia moral ou supereu.
Nas ocasies do acompanhamento pelo seu bairro, Charles sempre prende sua ateno
s vitrines das lojas de sapatos e roupas, frequentemente repara se estou de unhas pintadas,
cabelos feitos ou sapatos novos, tambm j me perguntou se eu tinha uma bolsa da Louis
Vuitton como a madrinha dele tem que uma mulher bem sucedida e posicionada
falicamente. Gostaria de ver voc comprando as coisas, disse-me sorrindo. Em outro dia de
trabalho, Charles lana a seguinte frase: Semana passada fiquei com desejo de comer
chourio e ova. A minha me fez. E de maneira descontrada e jocosa questionei: mas no
so as mulheres grvidas que tm desejo? Charles ri e responde: Minha me disse a mesma
coisa!.
A sexuao um processo que exige a lgica formalizada por Lacan. Freud
(1923b/1996, p. 158) havia afirmado, no texto A organizao genital infantil (Uma
interpolao na teoria da sexualidade), que para ambos os gneros masculino e feminino
existe apenas um rgo genital nos quais so submetidos: o falo. Lacan (1972-1973/ 2008, p.
104 e sgs.) avana sobre este ponto e formaliza as frmulas da sexuao em um quadro que
contm dois lados: o masculino e o feminino. Ele ento elucida a regra universal afirmativa
do lado masculino todo homem est submetido castrao, todo homem est submetido
funo flica , sem deixar de afirmar uma particular afirmativa deste mesmo lado: h uma
exceo fundamental no conjunto dos homens que remete ao pai da horda. Ou melhor, h Um
seu gozo maligno, ele que se prope como verdadeiro problema para o meu amor
(LACAN, 1959-1960/1997, p. 229).
Para Charles h um impasse no lao com a figura masculina, pois essa aproximao
torna-se invasiva e manipulada pelo Outro. Este lao s se torna possvel e suportvel com a
distncia ntima da figura feminina cujos atributos flicos do sentido ao seu gozo que h
pouco era sem sentido e desorganizado. Charles, na presena de qualquer rapaz, acometido
pelas vozes e explica: a voz que est em mim diz que vai me destruir. Essa voz fala atravs
da boca das pessoas (...), o diabo est em mim, mas Deus tambm est e eu quero que ele
venha logo me salvar.
Em psicanlise, a tica est vinculada lei inconsciente que estrutura o desejo e faz
com que o objeto do desejo seja mantido uma distncia ntima, xtima. Neste trabalho, o
desejo do analista no objetiva a cura. Esta promessa apenas atrapalha o trabalho analtico,
pois pensar o bem do sujeito um engodo na via do desejo e o que implica em psicanlise a
possibilidade de o sujeito construir um sentido para aquilo que o devasta.
Referncias Bibliogrficas:
FREUD, S. Notas psicanalticas sobre um relato autobiogrfico de um caso de parania
(dementia paranoides) [1911]. In: ______. Edies Standard das Obras Completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, v.12.
______. Sobre o Narcisismo: uma introduo [1914]. In: ______. Edies Standard das
Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. 14.
______. Luto e melancolia (1917 [1915]). In: ______. Edies Standard das Obras
Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. 14.
______. O estranho [1919]. In: ______. Edies Standard das Obras Completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. 17.
______. O ego e o id [1923]. In: ______. Edies Standard das Obras Completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol.19.
______. A organizao genital infantil (uma interpolao na teoria da sexualidade) [1923b].
In: ______. Edies Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1996, vol.19.
LACAN, J. O estdio do espelho como formador da funo do eu: tal como nos revelada na
experincia psicanaltica [1949]. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
______. O seminrio, livro 2: o eu na teoria de Freud e na tcnica da psicanlise[1954-1955].
Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
______. O seminrio, livro 3: as psicoses [1955-1956]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
RESUMO
O presente trabalho centra-se na discusso das seguintes patologias: o transtorno da
compulso alimentar peridica e os transtornos do controle dos impulsos. Buscou-se
identificar e diferenciar, em termos tericos, tais transtornos, bem como desenvolver
consideraes acerca da prtica diagnstica desenvolvida nas clnicas mdica e psicanaltica.
Para a realizao da anlise comparativa, foram delimitadas categorias referentes descrio
e caracterizao dos quadros, experincias subjetivas frente ao sintoma e objetos envolvidos
O presente trabalho intenta viabilizar uma investigao acerca das seguintes patologias:
o transtorno da compulso alimentar peridica e os transtornos do controle dos impulsos.
Desse modo, busca-se identificar e diferenciar, em termos tericos, tais transtornos, bem
como desenvolver consideraes acerca da prtica diagnstica realizada nas clnicas mdica e
psicanaltica. Para tanto, com vistas a realizar uma anlise comparativa, so delimitadas
categorias referentes descrio e caracterizao dos quadros, experincias subjetivas frente
ao sintoma e objetos envolvidos na compulso e no impulso.
planejamento insuficiente. Assinala-se, por fim, que os transtornos do controle dos impulsos
possuem o seu incio marcado por tentaes ou desejos destrutivos, aos quais so difceis de
resistir, bem como, penosos e acarretam prejuzos ao sujeito (ABREU; TAVARES; CORDS,
2008; BARLOW; DURAND, 2008).
Frente definio e caracterizao das patologias em destaque, possvel tecer algumas
relaes. Observa-se que ambas apresentam as semelhantes caractersticas: a ausncia de
liberdade para optar em realizar ou no o ato e a sensao de falta de controle, marcada por
um fracasso em resistir a um impulso ou tentao; ao realizar a ao, vivencia-se uma
sensao de tenso ou excitao crescente e, no momento de comet-la, experimenta-se
prazer, alvio ou satisfao; durante ou ao final da ao, identifica-se a presena acentuada de
sofrimento e angstia, bem como, sentimentos desagradveis (culpa, arrependimento,
remorso, sensao de impotncia, vergonha etc); ambos so caracterizados por atos repetidos
que acarretam danos e prejuzos aos interesses do paciente, comprometendo a sua vida
pessoal, bem como so caracterizados pela dimenso do excesso.
No tocante classificao oferecida pelo Manual Diagnstico e Estatstico de
Transtornos Mentais DMS-IV-TR (2002), a seo destinada categorizao dos transtornos
do controle dos impulsos contempla os seguintes transtornos: transtorno explosivo
intermitente, cleptomania, piromania, jogo patolgico, tricotilomania e transtorno do controle
dos impulsos sem outra especificao. Com base nas diretrizes diagnsticas estabelecidas,
elege-se o transtorno explosivo intermitente com a inteno de explorar acerca da experincia
subjetiva frente ao sintoma especfico a cada patologia em anlise.
Para a delimitao do transtorno explosivo intermitente, so estabelecidos trs critrios
diagnsticos:
A. A ocorrncia de episdios circunscritos em que ocorre fracasso em resistir a
impulsos agressivos, acarretando srios atos agressivos ou a destruio de
patrimnio;
B. O grau de agressividade expressada durante um episdio amplamente
desproporcional a qualquer provocao ou estressor psicossocial desencadeante;
C. Os episdios agressivos no so melhor explicados pela presena de outra
Perturbao Mental; e no so resultado de efeitos fisiolgicos diretos de uma
substancia ou de um estado fsico geral (DSM-IV-TR, 2002, p. 623-624).
Por fim, ainda de acordo com o DSM-IV-TR (2002), observa-se que estes eventos
agressivos so vivenciados como crises ou ataques em que sentimentos de tenso ou excitao
antecedem o comportamento explosivo e, imediatamente aps o ato, segue-se uma sensao
de alvio. Desse modo, pacientes diagnosticados com tal transtorno relatam sentirem-se
tomados por um impulso para a agresso de modo incontrolvel, contudo, tambm fazem
Referncias Bibliogrficas:
ABREU, C.N; TAVARES, H. CORDS, T.A. Manual clnico dos transtornos do controle dos
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BARLOW, D.H; DURAND, V.M. Psicopatologia: uma abordagem integrada. So Paulo:
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Barbara Zenicola
Mestranda do Programa de Ps-Graduao em Psicanlise
E-mail: barbarazenicola@hotmail.com
RESUMO
O presente trabalho traz para discusso o transexualismo assim como alguns temas que
costumam ser associados a ele. Para isso, tomaremos o artigo Travestismo, transexualismo,
transgneros: identificao e imitao, de Simona Argentieri publicado no Jornal de
Psicanlise de So Paulo em dezembro de 2009 que localiza o transexualismo e o
travestismo como sendo prprios da estrutura perversa. A partir deste artigo, levantamos as
seguintes questes: o que h de comum e em que diferem transexualismo e travestismo? A
perverso , de fato, a estrutura que os une?
Palavras-chave: transexualismo, travestismo, psicanlise.
ABSTRACT
This work brings transsexualism to discussion as well as some topics that are often
associated with it. For this, we will take the "Transvestism, transsexualism, transsexuals:
identification and imitation," by Simona Argentieri - published in the Journal of
O presente trabalho traz para discusso o transexualismo assim como alguns temas que
costumam ser associados a ele. Para isso, tomaremos o artigo Travestismo, transexualismo,
transgneros: identificao e imitao, de Simona Argentieri publicado no Jornal de
Psicanlise de So Paulo em dezembro de 2009 que localiza o transexualismo e o
travestismo como sendo prprios da estrutura perversa, e os exemplifica atravs de dois casos:
o de uma mulher em processo de transgenizao e um caso de travestismo. A partir deste
artigo, levantamos as seguintes questes: o que h de comum e em que diferem
transexualismo e travestismo? A perverso , de fato, a estrutura que os une? Nossos
questionamentos basear-se-o nas referncias tericas encontradas, fundamentalmente, nos
textos de Freud e de Lacan.
O conceito de transexualismo foi criado pelo mdico endocrinologista, doutor Harry
Benjamin, a partir de seus estudos voltados s reivindicaes de homens e mulheres,
homossexuais e travestis, por tratamentos hormonais e cirrgicos. De acordo com a
Organizao Mundial de Sade (OMS), o transexualismo considerado um transtorno de
identidade de gnero, onde o indivduo se reconhece como sendo do gnero oposto ao seu
biolgico. Ainda no terreno da medicina, para diagnosticar o transtorno que designa o
transexualismo, necessrio excluir a hiptese de psicose e de anormalidades intersexuais.
transexualismo (2002), a propor, a partir de sua prtica clnica, uma nova abordagem que
distingue transexuais, aqueles que estariam localizados na estrutura psictica, dos
transexualistas37, uma manifestao do transexualismo fora do mbito da psicose.
Encontramos um exemplo de fenmeno transexual fora do mbito da psicose na
autobiografia de Joo Nery (2011), onde ele relata que nasceu com o corpo feminino, mas se
sentia como um menino. Quando criana, sabia que no possua um pinto to grande como o
dos meninos de sua idade, mas tinha esperana que um dia ele fosse crescer. Joo, que na
poca era Joana, expe exatamente o que Freud, em 1923, evidenciara: que a principal
caracterstica da organizao genital infantil consiste no fato de crianas de ambos os sexos
considerarem apenas o rgo sexual masculino.
Constatamos outro ponto da teoria freudiana na biografia de Joo Nery que
exemplifica uma das trs direes possveis no desenvolvimento da menina a partir da
constatao de sua castrao: o complexo de masculinidade. A menina se apega
masculinidade ameaada e alimenta tanto a esperana de um dia voltar a ter um pnis
quanto fantasia de ser um homem, e a fantasia de apesar de tudo ser um homem prossegue,
com freqncia, atuando formadoramente em longos perodos da vida (FREUD, 1931[2010]
p. 378).
Ainda h outra questo estrutural que influencia o aparecimento do fenmeno
transexual que a pergunta histrica: sou homem ou sou mulher?. Na tentativa de responder
a essa pergunta, assim como ao seu desdobramento - o que ser um homem? e o que ser
uma mulher - que tambm se localiza o travestismo histrico. Na tentativa de resposta o
sujeito histrico, nesse caso, responde travestindo-se.
A prtica de se travestir de mulher tambm pode estar relacionada identificao do
menino com a me, quanto ao desmentido da castrao. Desse modo, ao travestir-se, o sujeito
apresenta um corpo vestido como uma mulher que tem pnis. Logo, no jogo de mostraesconde, o travesti exibe o pnis fetichizado para o olhar do Outro. Portanto, o fetiche o
substituto do pnis que falta me, mas que o perverso tenta esconder que sabe desta falta38.
Estamos traando um paralelo entre o transexualismo e o travestismo, pois comum
ocorrer confuso a respeito da conceituao de ambos. De fato, quando uma pessoa recorre ao
mdico com a demanda de cirurgia de redesignao de gnero, um dos pontos investigados
pela equipe mdica, a fim de constatar a transexualidade, se esta pessoa vive travestida do
gnero com o qual se identifica psiquicamente.
Portanto, nesta linha de raciocnio, o transexual apto a operar, dentre outros requisitos,
teria tido a experincia de viver travestido, uma vez que se reconhece como pertencente ao
37
38
gnero diferente ao seu biolgico. Entretanto, o travestismo, por si s, no tem ligao com o
transexualismo, uma vez que no apresenta tal demanda cirrgica, j que no v problema em
seu sexo biolgico.
No entanto, a diferena primordial entre o transexualismo e o travestismo est no
modo como cada um se relaciona com o seu corpo. O sujeito transexual sente repulsa;
vergonha de sua genitlia. comum, em relatos de transexuais, a recusa ao toque do parceiro
em partes do corpo que denuncie seu sexo biolgico. O mesmo no ocorre com o sujeito que
se traveste. Enquanto o transexual se traveste para esconder o sexo biolgico, o travesti goza
com o jogo de mostra e esconde, uma vez que seu corpo investido de libido. O ato de se
travestir, mesmo que com uma nica pea de roupa, feita com a finalidade de obteno de
prazer do sujeito e de seu parceiro, e no como o ato perverso que visa dividir o Outro, para
dele extrair o gozo.
Sendo assim, podemos dizer que uma premissa equivocada afirmar que o
transexualismo e o travestismo so ambos manifestaes da estrutura perversa, uma vez que
verificamos que no so necessariamente exclusivas desta estrutura. O perverso aquele que
desmente a castrao. No lugar da castrao materna, o perverso responde com o fetiche, que
ao mesmo tempo afirma e nega a castrao. Para localizar o transexualismo ou o travestismo
dentro da estrutura perversa, necessrio que o sujeito o faa a fim negar os opostos:
masculino/feminino, j que o perverso se apega aquilo que recobre a castrao materna.
No podemos esquecer que a autora afirma que a mulher pode se localizar na estrutura
perversa, na seguinte passagem: o transexualismo uma refutao explcita da antiga
suposio de que as mulheres esto isentas da patologia das perverses (ARGENTIERI,
2009 p.175) Tal argumento nos alerta para o moralismo que, muitas vezes, influencia na
identificao, equivocada, da estrutura perversa.
Podemos falar que, segundo Martinho (2013) as mulheres se aproximam da perverso
quando colocam o filho como substituto flico, ou ainda, que o rgo masculino pode tomar
valor de fetiche na atividade sexual. No entanto, isto no o mesmo que dizer que as
mulheres so perversas, no sentido da estrutura clnica. Significa que esta a forma com que
as mulheres se inscrevem na perverso universal, o que implica colocar o objeto a da
fantasia no lugar do Outro sexo, ou seja, na funo flica. Sendo assim, para localizar um
sujeito dentro da estrutura clnica da perverso no basta apontar aquele que tem acesso a
gozos perversos, uma vez que todos os gozos assim o so. Estas, sim, so as inclinaes das
mulheres perverso, mas no quanto estrutura (MARTINHO, 2013).
O transexualismo um tema novo e bastante controverso. Tal fenmeno nos desperta
reflexes, no apenas a respeito de seu enquadramento estrutural, uma vez que pudemos
perceber que possvel a sua ocorrncia em diferentes estruturas, mas tambm sobre o que
ser um homem e o que ser uma mulher.
As formulaes aqui colocadas permitem pensar o tema do transexualismo menos
aprisionado s definies das estruturas clnicas, valorizando o singular da escolha quanto
posio frente ao gozo de cada sujeito.
Sendo assim, importante que pensemos na influncia que o discurso da cincia tem,
de fato, para a ocorrncia e aumento deste fenmeno, pois, afinal de contas, o transexual
demanda uma equipe mdica para transformar o seu corpo, e, at mesmo para se definir como
transexual preciso o diagnstico de um mdico.
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MILLOT, C. Extrasexo. Ensaio sobre o transexualismo. So Paulo: Escuta, 1992.
RESUMO
O presente artigo problematiza o diagnstico do abuso sexual no mbito jurdico a
partir da psicanlise. No mbito jurdico, verifica-se que este diagnstico est amparado na
investigao de determinados sintomas, perfis ou sinais da vtima abusada e do abuso
sexual. Por considerar que em todo ato h um sujeito implicado com seu desejo, a psicanlise
opera de maneira distinta. A partir do conceito de fantasia, prope-se aqui estabelecer a
distino entre realidade material e realidade psquica, buscando destacar o fato de que esta
ltima determina o sentido dado pela criana s vivncias sexuais precoces.
Palavras-chave: abuso sexual, diagnstico, fantasia.
ABSTRACT
This articlediscussesthe diagnosisof sexual abuse from legal ambit to
psychoanalysis.In the legal field, it checks thatthis diagnosticis supported,in the investigation
ofcertainsymptoms, "profiles" or"signs" the victim"abused" and sexual abuse. Considering
thatin every actthere isa subject involvedwithhis desire, psychoanalysis operatesdifferently.
From theconcept offantasy,it proposedhereto distinguish betweenmaterial realityandpsychic
reality, seeking to highlight the factthat the latterdetermines the directiongivenby the childto
precocious sexualexperiences.
Key words: sexual abuse, fantasy, psychicreality.
Jorge (2010) nos fala que o conceito de fantasia passa pela oposio entre duas
realidades, uma interna e outra externa e:
implica a existncia de uma abertura na relao do sujeito com o mundo externo que
vem a ser preenchida por representaes singulares (...). Tais representaes
constituem uma verdadeira matriz psquica que funciona como uma espcie de filtro
em relao ao mundo externo, do qual so retirados apenas os traos que com elas se
coadunam (JORGE, 2010, p. 10).
Assim, a fantasia aponta para uma espcie de filtros da realidade que funcionam como
estruturas protetoras, sublimaes dos fatos, embelezamentos deles (FREUD, 1897/1987,
Carta 61, p.341). Fazem com que o sujeito veja a realidade de modo particular, diferente do
que ela de fato. A fantasia assim, o que anima a percepo da realidade, modelando-a e
distorcendo-a. Ela pe o aparelho psquico em movimento governando as aes do sujeito,
seus comportamentos afetivos e sociais, suas vivncias, suas escolhas e seus atos (NASIO,
2007, p. 17).
sentido
conceito
de
fantasia
possibilita
estabelecer
uma
Ele parte do no-saber sobre o sujeito, silenciando suas intenes de cura, de verdade, seu
desejo, possibilitando,
questionar, verificar, apontar, desconstruir imaginariamente o lugar fortalecido pela
dualidade imposta pela justia (vtima ou algoz), a fim de instar o sujeito a recontar
sua histria, diferencial e simbolicamente, podendo ter como efeito, para o sujeito, a
busca de um sentido novo (ALMEIDA, 2009, p.116).
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Glria Castilho
Psicanalista; Doutora em Teoria Psicanaltica pelo PPGTP/UFRJ; Preceptora/Supervisora do
Curso de Especializao em Psicologia Clnica Institucional: Modalidade Residncia
Hospitalar/IP/UERJ.
E-mail: gloria.castilho@gmail.com
Giselle Falbo
Psicanalista; Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da UFF e do Programa de
Ps-Graduao em Psicologia da UFF.
E-mail: gifalbo@centroin.com.br
RESUMO
Nas nossas regies dos Alpes diz-se habitualmente quando dois conhecidos se
encontram ou se despedem: deixa [fluir] o tempo [Zeit lassen]. Ns j fizemos
muita gozao sobre esta frmula, mas frente precipitao americana,
aprendemos a discernir quanta sabedoria de vida se encontra nela
1. INTRODUO
Alm da importncia de localizar a velhice como evento inexorvel da vida, Beauvoir
(1970) lembra-nos que esta comporta algo de irrealizvel. O termo irrealizvel em
consonncia com o termo em ingls realize que significa dar-se conta, apreender algo faz
ecoar algo da impossvel apreenso da prpria velhice: velho sempre o outro, ainda que
atualizado pela prpria imagem no espelho. Na mesma direo Lacan (1964/1990, p.195), ao
indicar a libido como rgo irreal, esclarece a importncia de referir o termo irreal ao real,
diferenciando-o do imaginrio. Por esta via, situar a velhice como inexorvel e irrealizvel,
implica indic-la como evento da vida que prima pela ausncia de recobrimentos, e que expe
algo do real que exige trabalho psquico.
J a construo da categoria 39 idoso define-se no entrecruzamento dos discursos
mdico e jurdico. As prticas de ambas as reas circunscrevem o idoso como fato
discursivo. Neste contexto, preciso indicar que o saber geritrico-gerontolgico constri-se
orientado pelos avanos da cincia tecnolgica fortemente articulada, em nossos dias, lgica
capitalista.
A prevalncia do discurso capitalista tende a situar rapidamente o velho improdutivo
como obsoleto, em um mundo no qual imperam as referncias juventude e ao novo.
Beauvoir (1970) avalia que o: ... velho tem um destino biolgico que acarreta fatalmente
uma consequncia econmica: torna-se improdutivo. Mas sua involuo mais ou menos
precipitada segundo os recursos da comunidade: em algumas delas, a decrepitude comea aos
40 anos, em outras aos 80 (BEAUVOIR, 1970, p.107). Como esclarece a autora, Carlos V,
por exemplo, morre aos 42 anos com a reputao de ser um velho sbio (BEAUVOIR, 1970,
p. 174).
2. EFICINCIA E EVIDNCIA NA CLNICA COM IDOSOS
Na ltima dcada foram criados espaos como a Universidade Aberta da Terceira Idade
UNATI/UERJ que promove o estabelecimento de laos entre os idosos a partir de 60
anos atravs de oficinas e cursos diversos. H tambm uma face assistencial do trabalho
desenvolvido pela UNATI: o Ncleo de Ateno ao Idoso NAI/UNATI que se localiza no
39
Neste ponto nos remetemos tambm aos estudos de Philippe Aris (1981), autor atravs do qual podemos
discernir que as escanses temporais que dividem o desenvolvimento humano criana, adolescente, adulto e
idoso so fatos de discurso.Desta forma, utilizaremos ao longo de todo o texto aspas no termo idoso para
indicar a dissimetria entre a categoria idoso e o sujeito dividido da experincia analtica
via simblica, a enorme perda de seu companheiro de toda a vida. Como esclarece Lacan, o
luto um trabalho que se realiza no nvel do logos (LACAN, 1958-59/1989, p. 75).
Consideramos que esta discusso nos indica a complexidade de uma queixa na velhice.
Esta concerne realidade psquica e convoca a um trabalho psquico que nem sempre ocorre,
fato que no sem consequncias para o sujeito. Desde Freud e Lacan, apreendemos que as
conjunturas traumticas no se articulam de forma direta, linear com os acontecimentos. Para
a psicanlise, h uma dissimetria entre causa e efeito que implica que efeitos traumticos s
possam ser situados um a um e a posteriori. a partir da escuta que se torna possvel situar o
valor de trauma ou no de um dado evento, para o sujeito dividido da experincia analtica.
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indito.
SOARES, M. J. Eficincia versus eficcia. Disponvel em: www.hospitaldofuturo.com
RESUMO
Neste texto, abordamos a prtica da psicanlise com jovens institucionalizados, que
utilizam-se do ato para apelar ao Outro da identificao e, consequentemente, revelam uma
dificuldade singular em delimitar o campo do Outro sexo podendo, assim, implicar em um
excesso de gozo que escapa significao flica. Abordamos um caso clnico em que o acting
outfoi utilizado pelo sujeito comoum recurso para manejar essa invaso de gozo proveniente
de um encontro com o real sexual, atravs da anlise do caso, vislumbraremos de que forma a
psicanlise, com a poltica do sujeito, pode operar ofertando um contorno ao real.
Palavras-chave:adolescncia; agressividade; acting out; feminino.
ABSTRACT
The real insist where the state fail. In this text, we discuss the practice of
psychoanalysis with youngs in institutions, that utilize the act to appeal for the Other of
identification and, consequently, reveal a singular difficulty in delimit the field of the Other
sex, this can implicate in a excess of delight that escapes from the phallic signification. We
board a clinical case in that acting outwas utilizedby thesubjectas a form to resource that
invasion of delight that is proceeding from a encounter with the sexual real, through the
analyses from case, we will have a notion how the psychoanalysis, with the policyof the
subject, can operateofferinga outline to the real.
Keywords: adolescence; aggression, acting out, female.
Com a fineza clnica dos seus conceitos, Lacan nos aponta uma direo de tratamento
vlida para qualquer realidade: no acreditar na iluso do querer o bem do sujeito. Portanto,
nos aponta que devemos apostar que mais alm da misria social, existe a misria psquica
inerente a qualquer sujeito.
Ento, o que nos autoriza a denominar a nossa prtica nesse contexto de uma prtica
guiada pelos princpios psicanalticos? Uma aposta no real. O que inclui a surpresa da
contingncia, o encontro com o sem-sentido e a crena na realidade subjetiva.
Ao trabalhar em um centro de referncia que prestava apoio psico-pedaggico a
crianas e adolescentes em situao de risco e vulnerabilidade social conheo um jovem de 16
anos. Seu nome era Alex. O adolescente sempre que me via pelo Centro me chamava para
perguntar ou comentar alguma coisa sobre as mulheres: Tia, como que se namora, assim
como que a gente ganha uma garota? sempre que conversava comigo me descrevia as
qualidades que uma mulher deveria ter para que ele a namorasse e que lamentava muito o fato
de no poder sair para conhecer as meninas da rua. Sabe, tia, queria tanto conhecer um
mulhero com um corpo e rosto bonito! Mas, aqui no d nem para colocar a cabea para
fora!.
Aps a morte da me, Alex ainda com 12 anos, seu pai e seu irmo Joo, oriundos da
cidade de So Paulo, mudaram-se para a Paraba. Seu pai decidiu vir Joo Pessoa procurar
por seu filho do seu primeiro casamento. Ao chegar, sem as mnimas condies financeiras,
pai e filhos constroem um barraco onde passam a morar, em um bairro local, sobrevivendo da
ajuda recebida pelos moradores do bairro.
Mesmo sobrevivendo em uma situao precria, segundo Alex, seu pai sempre ensinou
aos filhos a noo do que era certo e do que era errado. Alex nunca estudou. No sabia
escrever, porm lia muito bem. De acordo com Alex o pai lhe ensinou a ler. Aos quatorze
anos, Alex perde o pai, vtima de um infarto fulminante.
Os garotos tem a sua casa demolida pela prefeitura, pois tratava-se de uma construo
irregular e os irmos vo morar perto de uma boca de fumo em uma favela local. Alex diz
que detestava o lugar e que at preferia andar pelas ruas e ganhar alguns trocados olhando os
carros a se submeter aos traficantes do lugar. Perambulando pelas ruas, Alex conhece um
amigo que o chamou para procurar o conselho tutelar, pois assim seria encaminhado casa de
passagem onde poderia ter abrigo e comida.
A secretaria tenta encontrar algum parente dos meninos, mas no os encontra nem em
Joo Pessoa nem em So Paulo. Alex e Joo ficam sob a guarda do estado e so
encaminhados para residir na casa de acolhida masculina. Ao matricular os irmos na escola
descobre-se que apenas Alex, no possuia certido de nascimento. A partir desse evento foi
levantada a hiptese de uma suposta traio da sua me e uma ilegitimidade em sua
paternidade - hiptese suscitada e incitada pelos prprios funcionrios da casa de acolhida.
Guiada pela verdade falaciosa de estar fazendo um grande bem ao jovem Alex, a
secretaria de assistncia social determina que Alex deve fazer um teste de DNA para assim
obter o benefcio de saber se era ou no filho do seu pai e que efetuaria o exame atravs do
DNA do seu irmo Joo. Imposio que, para Alex teve um efeito desastroso.
Ao mesmo tempo em que surgiam os impasses e questionamentos sobre um encontro
sexual com uma parceira, o que para cada sujeito suscita a tarefa de situar-se na partilha
sexual, Alex tambm se depara com o inominvel da sexualidade feminina exposta na
possvel traio da sua me. Diante desse impasse sobre a legitimidade da sua filiao, o
jovem antes falante e muitas vezes brincalho comea a apresentar-se bastante agressivo com
todos no Centro de formao, chutando portas, envolvendo-se em brigas e xingando
constantemente as mulheres do Centro.
Ao desenvolver seu texto intitulado A organizao genital infantil: uma interpolao
na teoria da sexualidade (FREUD, 1923/1989), Freud nos ensina que a sexualidade infantil
regida apenas por uma marca diferencial: o falo. Este ser, ento, o nico significante da
sexualidade que orientar a criana em direo sua identificao sexual e sua escolha de
objeto. O primado do falo na infncia revelar suas consequncias psquicas na adolescncia
ao demarcar o territrio da sexualidade e a fronteira psquica da representao no
inconsciente: o Outro do sexo irrepresentvel na medida em que ultrapassa, como
acontecimento de corpo, o que se pode saber.
A puberdade sofre a incidncia de um golpe de real. Representado durante esse
percurso, por um mais-alm do despertar do real biolgico e caracterizado como um
movimento lgico marcado pela descoberta de um novo objeto sexual, possibilitando a
entrada em jogo da pulso sexual que at ento, era apenas auto ertica. (LACADE, 2012, p.
254)
Certa vez, durante um ataque sofrido por um educador que o chamara de filho de
rapariga, Alex responde: Ainda bem, que voc disse que a minha me era uma rapariga,
porque se fosse com o meu pai....
Como lidar com esse irrepresentvel? A agressividade utilizada por Alex parece ser
uma forma utilizada para responder a isso. A clnica nos ensina que a agressividade, pode ser
situada como uma tentativa de apelo ao saber do Outro. Trata-se de pensar a agressividade
como inteno de significao. Essa tese aponta que na estrutura neurtica, a agressividade
tratada como uma demanda de significao do que no passa pela estrutura da linguagem.
(LACAN, 1948/1998, p. 106-107)
Comeo ento a conversar com ele na oficina de artes, e ele extremamente grosseiro,
mas lhe asseguro que se quisesse poderia conversar comigo sobre qualquer coisa. Ele
desdenha e parece no dar ateno. Retorno a abord-lo perguntando sobre as garotas que ele
tanto falava, onde elas estavam? Porque no falava mais delas? Ele me responde: Tia, no
estou com cabea para as meninas!, lhe digo: Eu sei, elas so difceis, no !?Mas se
quiser a gente conversa sobre todas as outras coisas.
Como, diante de um gozo que lhe inundava de uma falta de sentido, Alex poderia
manejar com as consequncias psquicas desse encontro com o inominvel do Outro sexo a
que cada sujeito adolescente tem a responsabilidade de se deparar? A aposta na direo do
tratamento foi recorrer ao que para Alex tinha valor de transmisso: o amor de um pai que o
criou como filho por amor a uma mulher. Lacan nos lembra dessa eleio por parte do filho:
na medida em que o pai amado que o sujeito se identifica com ele, e que
encontra a soluo terminal do dipo numa composio do recalque amnsico com a
aquisio, nele mesmo, do termo ideal ao qual ele se transforma no pai. [] quando
chegar o momento, se tudo correr bem, se o gato no com-lo, no momento da
puberdade, ele ter seu pnis prontinho, junto com o seu certificado. (LACAN,
1957-58/1998, p. 176)
nesse momento de abertura ao enigma do Outro sexo que Alex far o seu apelo ao
saber paterno. Quando sua origem colocada a prova e a sua identidade exposta em
questo, o jovem chamado a testar o valor de significao flica que o pai tinha para ele.
(COSTA, 2001, p. 104) destaca que:
Nesse lugar, o sujeito, lana mo do recurso de um apelo ao saber paterno, aquele
que o situa na referencia ao Outro sexo, na referncia ao feminino. Cabe acrescentar
que feminino traz uma dimenso de indeterminao, que vai caracterizar sempre o
desejo materno como enigma, marcando essa impossibilidade de definir uma
representao nica para o desejo.
Sempre que nos encontrvamos, conversvamos sobre diversas coisas, sobre a casa de
acolhida, as atividades que andava fazendo, fala da vida em So Paulo, do pai e algumas
conversas depois, surge o assunto do exame de DNA: tia, to querendo tirar o meu
sangue para fazer o tal do DNA..., fica calado cabisbaixo, lhe digo: , estou
sabendo...como est sendo isso para voc?, fica calado por bastante tempo e responde:
Assim tia...sei l! Posso no ser irmo de Henrique e lhe pontuo: Alex, o que une os
irmos so os laos de amor e isso no h como tirarem de voc. Ele pede para ir embora e
encerramos a conversa.
Suscitar os laos de amor entre os irmos, na transferncia, evidenciou o que
realmente est em jogo no reconhecimento de um pai por um filho: o desejo de um homem
por uma mulher. A sua escuta lhe oferta a possibilidade de construir uma outra forma de
acolher a dimenso de irrepresentabilidade do feminino fora do campo da agressividade. As
mulheres que outrora eram nomeadas da pior forma, puderam ser circunscrita na dimenso de
indecisas, complicadas e difceis.
Continuo a acompanh-lo e ele caba sendo beneficiado por uma contingncia
corriqueira aos orgos pblicos. A Secretaria cancela o teste de DNA por falta de verba. At o
meu desligamento do Centro de referncia o exame ainda no havia sido feito. Com o passar
do tempo, aos poucos, suas atuaes agressivas diminuem consideravelmente e se engaja cada
vez mais nas atividades do Centro. Certa vez, ao discutir com uma professora do centro pela
indeciso desta em determinar qual seria a matria escolhida para o reforo dos alunos se
exalta e diz: Ai, tia! Mulher tudo indecisa! Me d logo raiva! Onde est Mingnon, hein!?
A voz daquela tia me acalma!. Ao invs de recorrer a agressividade, que trabalha a favor da
voz silenciosa do supereu e da pulso de morte, parece acolher a voz que acalma, destinando
o pulsional do seu gozo ao objeto que se oferta como possibilidade de uma voz serena.
Referncias bibliogrficas:
CALDAS, H. Grafito: O Nome do Nome do Nome. In: Caldas. H. E Pollo,V. (Org.).
Adolescncia: O despertar/ kalimeros Escola Brasileira de Psicanlise. Rio de Janeiro:
Contra capa livraria, 1996, p. 49-56.
COSTA, A.Corpo e escrita -Relaes entre memria e transmisso da experincia. Rio de
janeiro: Relume Dumar editora, 2001.
FREUD, S. A organizao genital infantil: uma interpolao na teoria da sexualidade [1923].
In:______. Edio Standard Brasileira das Obras Psicolgicas Completas.Rio de Janeiro:
Imago, 1989, v. 19, p.177-187.
LACADE,P. A clnica do ato e da lngua dos adolescentes. Revista Responsabilidades,n.2,p.
253-268, set 2011-fev. 2012. Disponvel em:
http://www8.tjmg.jus.br/presidencia/programanovosrumos/pai_pj/revista/edicao02/7.pdf .
Acesso em 20 de abril de 2013.
LACAN, J.O Seminrio, livro 5: as formaes do inconsciente [1957-1958]. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1998.
______. O Seminrio, livro 7: a tica da Psicanlise [1959-1960]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2008.
LACAN, J. A agressividade em Psicanlise. [1958] In. Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar
editor, 1998, p.104-126.
RESUMO
Este trabalho questiona: que fazem os agentes de rua nas redes de ateno
psicossocial? Problema importante considerando que h diversos programas operando sem
que haja suficiente rigor quanto delimitao de suas funes. Tal cenrio coloca a questo da
direo do tratamento, considerando que a demanda para esses servios plural. Os
trabalhadores acabam realizando aes sem direcionamento claro, cuja inteno acaba se
reduzindo supresso dessa populao desajustada socialmente. Sem formalizaes
Com o intuito de especificar o problema deste trabalho, necessrio comear pelo que
est entendido como vulnerabilidade, quais as condies que colocam algum numa situao
vulnervel, e mais especificamente, vulnervel no contexto pblico. A condio de
vulnerabilidade a ser trabalhada aqui diz da condio de rua. O que faz algum que est em
situao de rua ficar vulnervel? Como pensar na questo primeira que se coloca, a saber: a
prpria ideia de reinsero social que coloca essas pessoas em um suposto lado de fora? Esto
fora do que?
Como realizar um trabalho na rua, escutando as condies que ela coloca a algum,
sem, no entanto, naturalizar esse fenmeno? Do que se trata a condio de rua enquanto
fenmeno discursivo?
Isso se faz importante porque ao mesmo tempo em que a condio de rua evidencia, de
fato, a misria, a desigualdade social de um Pas, ela coloca para os seus representantes a
carga de portar o smbolo daquilo que tido como algo que precisamos enfrentar, combater,
coloca no corpo dos seus representantes uma marca do limite, de um estado limite do qual no
queremos, no desejamos, no podemos nos aproximar, assegura um lugar para ns,
mantendo distante um lugar para eles.
Com Agamben (2008), a partir de sua conceitualizao da figura do muulman,
podemos avanar no que diz respeito a uma modalidade de existncia que, segundo Rosa e
Poli (2009), subtrada de qualquer possibilidade de lao com o outro e pode expressar certo
destino dos sujeitos na contemporaneidade, exilados que esto de sua identidade, em um nolugar em relao ao semelhante. Nesse sentido, Agamben (2008) introduz a ideia de campo,
como sendo um espao que se abre quando o estado de exceo comea a tornar-se regra,
norma, na medida em que os seus habitantes so despojados de todo estatuto poltico e
reduzidos completamente ao que o autor coloca como vida nua. Passaremos a entender a rua
como um campo, tal qual colocado nessa acepo e gostaramos de destacar que a ideia de
campo faz meno direta ao campo de concentrao.
Entende-se a misria no espao pblico como resultado das desigualdades sociais num
tempo dominado pelo capitalismo, alm de se constituir como um fenmeno urbano que
ganha amplitude, especialmente, nas principais metrpoles brasileiras. A supremacia do
capital impe uma lgica individualista, a perspectiva de que na vida est cada um por si o
que gera medo. Nesse contexto, h intensificao do trabalho diante de um imperativo de
consumo e o consequente aumento do sofrimento subjetivo. Acontece que, se no existem
espaos abertos e democrticos de convvio, criam-se condies para a emergncia do
individualismo, dos comportamentos desleais, intrigas e traies, ou seja, a possibilidade de
fazer sofrer e de ser injusto com o outro sob uma suposta legitimidade da busca de gozo a
qualquer custo, trazida pelo lao discursivo inaugurado pelo capitalismo.
Para Bottega e Merlo (2010) o enfraquecimento da solidariedade (...) criou as
condies para o surgimento de um sujeito que no se sente responsvel pelo lao social ou
nele implicado. (p.60). O sujeito estaria abandonado prpria sorte, na medida em que so
Esse carter relacional entre determinadas prticas de sujeitos e modos de sua gesto
fica muitas vezes encoberto ou menosprezado nos esforos de interveno sobre o assunto,
cujo interesse principal tem sido a construo de perfis populacionais ou mesmo a busca por
causalidades para a situao de rua. O que se enfatiza nesses casos so atributos
individualizados e no as variadas mediaes institucionais, histricas e polticas que
engendram a construo dessa populao como uma problemtica social (DE LUCCA, 2007)
Passou-se a considerar a itinerncia e mobilidade como caractersticas prprias dos
classificados em situao de rua e como prticas de resistncia produo de legibilidades
das prticas de governo. Nesse caso a itinerncia e mobilidade no so apenas faltas a serem
civilizadas por prticas de interveno, mas podem expressar a agncia poltica de certas
pessoas que no raro so consideradas brbaras e primitivas pelas instituies estatais, o
que os levaria a uma despossesso simblica.
Quando consideramos a agncia poltica dessas pessoas, preciso refletir sobre a
possibilidade de que certos grupos desejam manter prticas autnomas em relao s formas
normalizadas de insero social. Sendo assim a mobilidade e a recusa ao sedentarismo podem
significar contrariedade com certa lgica de captura das instituies do governo. Isso aponta
para a necessidade de rever a histria branca e europeia e pensar que determinadas
populaes, mais do que estarem sendo deixadas para trs podem estar praticando uma
recusa em ser incorporada em recursos e programas estatais nas suas lgicas de fixao e
controle de mobilidades. (SCHUCH; GEHLEN, 2012)
importante considerar que as possibilidade de recusa no podem ser lidas como
formas voluntaristas, como se fossem apenas fruto de vontades individuais, mas so opes
configuradas na prpria experincia social e, para um entendimento psicanaltico, podem
representar a manifestao sintomtica de sujeitos que, pela via mesma desse sintoma, fazem
barreira boa ordem do Mestre e do notcia de sua singularidade.
A terminologia morador de rua, povo da rua, esconde uma importante
heterogeneidade a respeito dos estilos de vida e as vrias situaes diferentes quanto
permanncia nas ruas. Tal aspecto poderia ser dimensionado, como fizeram Viera, Bezerra e
Rosa (1992 apud SCHUCH; GEHLEN, 2012) a respeito da diferenciao entre ficar, estar e
ser de rua. A ruptura com a terminologia sofredores de rua para moradores de rua, ou
povo de rua significou uma mobilizao poltica que visou, de um lado, atentar para a
situacionalidade da experincia nas ruas e, de outro, combater processos de estigmatizao
dessa populao. Vistos, em geral, como vitimas ou algozes o conceito de pessoas em
situao de rua busca reconstituir certa agncia dessa populao apontando que o
RESUMO
Na sade pblica, a Sade do Trabalhador um campo novo e em construo nas
ltimas duas dcadas, contando com poucas articulaes com a psicanlise. Segundo
estimativas da Organizao Mundial da Sade, em 2020 a depresso ser uma das principais
causas de incapacidade para o trabalho no mundo, juntamente com as doenas
cardiovasculares, fato este que j realidade no Brasil. Assim, a proposta deste trabalho
elaborar uma articulao sobre as possibilidades da psicanlise no campo da sade pblica,
especialmente na sade do trabalhador, atuando nos casos de trabalhadores em situao de
afastamento do trabalho por motivo de sade/doena mental.
Palavras-chave: psicanlise, sade mental e trabalho, sade do trabalhador.
RESUME
Dans la sant publique, le domaine de la sant du travailleur est nouveau et en
construction depuis ces vingt dernires annes. Il sarticule encore peu avec la psychanalyse.
Selon lOrganisation Mondiale de la Sant, en 2020 la dpression sera lune des principales
causes dincapacit au travail dans le monde, ainsi que les maladies cardiovasculaires. Ceci
tant dj un fait au Brsil. Ce travail se propose donc dlaborer une articulation sur les
possibilits de la psychanalyse dans le domaine de la sant publique, en particulier dans celui
de la sant du travailleur. Le champ daction sera celui des travailleurs carts de leurs postes
en raison de sant/maladie mentale.
Mots-clefs: psychanalyse, sant mentale et travail, sant du travailleur.
humanas e mdicas, mas tambm e especialmente pelo ideal de controle e de bem que
propagado para a humanidade. Manter sob o controle e o domnio do Estado a sade e a vida
dos cidados um quesito imprescindvel para a reproduo da vida humana e do sistema de
produo social em seu atual estgio de desenvolvimento. No entanto, esse domnio sobre a
sade, com o ideal de buscar seu perfeito equilbrio, desconsidera as consequncias que o
modo de lao e de gozo produz nos sujeitos viventes desta civilizao.
O campo denominado Sade do Trabalhador, como rea da Sade Pblica brasileira,
inaugura outro modo de abordar a sade, compreendendo-a a partir do processo social de
produo de sade e doena e incluindo o processo de trabalho nessas determinaes. Neste
sentido, a Sade do Trabalhador
Representa um esforo de compreenso deste processo como e porque ocorre e
do desenvolvimento de alternativas de interveno que levam transformao em
direo apropriao pelos trabalhadores, da dimenso humana do trabalho, numa
perspectiva teleolgica. Nessa trajetria, a sade do trabalhador rompe com a
concepo hegemnica que estabelece um vnculo causal entre a doena e um agente
especfico, ou a um grupo de fatores de risco presentes no ambiente de trabalho e
tenta superar o enfoque que situa sua determinao no social, reduzido ao processo
produtivo, desconsiderando a subjetividade. (...) a sade do trabalhador considera o
trabalho, enquanto organizador da vida social, como o espao de dominao e
submisso do trabalhador pelo capital, mas, igualmente, de resistncia, de
constituio, e do fazer histrico. (MENDES; DIAS, 1991, p.347).
forma do sujeito viver e trabalhar. A conscincia, bem visado pelos pressupostos tericos que
sustentam a Sade do Trabalhador, deve ser trabalhada naquele que adoece e sua fora estaria
na possibilidade de uma revoluo, de uma luta que culminaria em uma forma de produo
social e da vida mais democrtica e socialista. Assim, quando se fala em Sade do
Trabalhador, a interveno no se d apenas para o reestabelecimento da sade fsica dos
trabalhadores ou no controle dos riscos sade, sejam eles ambientais, fsicos e qumicos
presentes no ambiente de trabalho, mas alcana um aspecto sanitarista, epidemiolgico e
intervencionista nas organizaes de trabalho, nas polticas pblicas e nas relaes sindicais.
No entanto, mesmo que v alm da compreenso fisiolgica/biolgica da doena,
desconsidera os efeitos do inconsciente no processo de adoecimento.
Numa outra apreenso do processo de adoecimento, em que o sujeito posto em
causa, verifica-se os efeitos deletrios das classificaes diagnsticas e da medicalizao da
vida, que impedem que o sujeito possa se haver com seu adoecimento e seu mal-estar. Nesta
via, compreende-se que a depresso o sintoma emergente do mal-estar contemporneo, um
sinal de que o sentido da vida (KHEL, 2002) e a vivncia da experincia humana j no tem
mais valor (KHEL, 2009). De algum modo, isso se refere maneira como o sujeito estabelece
o lao social na contemporaneidade, ligado ao discurso capitalista (LACAN, 19691970/1992).
No campo da sade, percebe-se a quase ausncia da discusso sobre o que a
condio humana e o sentido da vida na sociedade contempornea. Guiados pelo estandarte
da cincia e da eficcia, o modo de vida e a sade passam a ser parametrizados pelo ideal de
uma boa vida, com a ausncia de sofrimento e a constante busca pela felicidade. Tudo aquilo
que foge a esse ideal percebido como algo que no vai bem, que precisa ser classificado
para ser tratado. o caso dos sintomas mais comumente encontrados na clnica
contempornea, como fadiga, estresse, pnico, depresso e distrbios do excesso, como a
compulso (BIRMAN, 1999). Para cada queixa, h uma nosografia e uma classificao
diagnstica, que universalmente conhecida e a partir da qual se constroem as intervenes
para restituir o estado de sade perdida. Esse modo de compreender o que aparece na clnica e
seu consequente tratamento, no considera o sintoma do sujeito em sua particularidade e no
possibilita que a subjetividade e as formas de subjetivao contemporneas sejam
consideradas e que o sujeito possa ser tratado.
na subverso do ideal de sade e sua universalizao que a psicanlise aventa outra
forma de compreender os fenmenos clnicos e de tratar os pacientes. Desde Freud uma
ruptura se instaura, nas cincias mdicas e humanas, na forma de conceber, conhecer e tratar o
psiquismo humano. O inconsciente, como formulado por Freud e Lacan, passa a ser a via de
compreenso do sujeito, de seu adoecimento e de seus sintomas, bem como de sua cura. A
descoberta do inconsciente no pde ocorrer sem que se levasse em considerao outra
posio frente ao fenmeno clnico, bem como outra tica na conduo do tratamento, ou seja,
uma tica que considera o desejo e responsabiliza o sujeito por suas escolhas, como proposto
por Lacan (1959-60/2008).
A noo de sujeito que situamos na experincia e na obra freudiana deve-se
incidncia dessa posio tica e, consequentemente, dependente de uma nova
direo para a cura que sustentamos j se delinear em 1895. O nico sujeito com que
a psicanlise pode operar esse que advm como incidncia tica da experincia
freudiana. Sujeito fundado, ento, em uma direo de cura que toma a dificuldade
como no eliminvel, tendo por visada justamente aquilo que resiste aplicao do
mtodo psicoteraputico. (DARRIBA, 2012, p.94).
Partindo da elaborao freudiana sobre o mal-estar, entende-se que aquilo que hoje
lido como sintoma ou doena, deve antes ser compreendido luz do mal-estar que inerente
relao do sujeito com a civilizao. Acredita-se que as incidncias diagnsticas de depresso
e os outros males que acometem os trabalhadores (assdio, violncia no trabalho, acidentes de
trabalho e suicdio), so as formas de manifestao do mal-estar do sujeito na relao com a
cultura, ou seja, so os efeitos do discurso capitalista sobre o sujeito e suas formas de
estabelecer o lao social. Neste sentido, a pesquisa e a clnica psicanaltica tem uma valiosa
contribuio para o trabalho com aquilo que acomete os sujeitos. Ao invs de tomar o ideal de
sade e felicidade e ignorar aquilo que prprio do sujeito, seu mal-estar, a proposta incluir
o impossvel, o incurvel de cada sujeito, tomando-o na sua singularidade (DARRIBA, 2012)
e fazendo-o se responsabilizar pelo seu adoecimento e encontrar uma soluo para o que lhe
acomete e inclui seu desejo.
Como sugere Aflalo (2012, p.32), relembrando uma demanda de Lacan aos
psicanalistas, tempo de assumir o comentrio permanente do movimento analtico e o
recenseamento das publicaes conexas psicanlise, em particular as psiquitricas. No s
refletir sobre o que vem sido produzido se faz necessrio, mas tambm fazer incidir no mbito
das prticas um discurso, uma posio, que considere o sujeito do inconsciente. Ao dar crdito
a isso, pode-se inferir que o campo denominado Sade do Trabalhador sofre ainda da ausncia
da incidncia do discurso psicanaltico na sua prtica de sade.
Referncias Bibliogrficas:
AFLALO, A. O Assassinato Frustrado da Psicanlise. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2012.
RESUMO
Crianas abaixo de cinco anos so atendidas constantemente no Servio Pblico na
cidade de Campos dos Goytacazes, algumas encaminhadas com diagnstico de princpio de
autismo. Pretende-se discutir sobre o prognstico do tratamento destas crianas no incio do
estabelecimento do quadro. Em dois casos de crianas muito pequenas que regrediram na fala,
no estabelecimento do lao social e apresentavam algumas estereotipias, pode-se observar um
bom prognstico ao ingressarem no tratamento. Qual a contribuio da psicanlise para o
A Rede Globo de televiso tem transmitido todo o domingo, no programa Fantstico, as entrevistas feitas pelo
mdico Druzio Varela, que mantm uma posio extremamente parcial. Nenhum psicanalista foi ouvido at
agora (28/08/2013).
41
http://www.dsm5.org/Documents/Autism%20Spectrum%20Disorder%20Fact%20Sheet.pdf
Under the DSM-5 criteria, individuals with ASD must show symptoms from early childhood, even if those
symptoms are not recognized until later. This criteria change encourages earlier diagnosis of ASD but also
allows people whose symptoms may not be fully recognized until social demands exceed their capacity to receive
the diagnosis(APA, 2013).
42
Esta abrangncia vem causando polmica por conta da incluso de pessoas que
apresentam sintomas tpicos do autismo nesta categoria diagnstica, o que poderia ter efeito
iatrognico e selar destinos catastrficos com tal decreto de morbidade.
Entretanto poder-se- aqui constatar que o diagnstico do autismo ainda na primeira
infncia pode ser bem vindo, j que o quadro autstico ainda no est configurado por
completo, propiciando uma reverso da desordem. Como explica Vorcaro, a constituio do
sujeito na criana ainda no est decidida, pois ono decidido da criana implica a
impossibilidade de fazer equivaler a estruturao de uma criana estrutura do adulto. Assim,
a incidncia da nossa fala pode mudar o modo de gesto do gozo dessas crianas
(VORCARO, 1999, p. 41).
Sabemos que a clnica infantil um tenro e frtil terreno de onde possvel colher os
melhores frutos do que for plantado. A criana, ainda em constituio de sua subjetividade,
sofre efeitos mais efetivos e diretos de seu tratamento.
Ao contrrio do entendimento comum que se propagou de que os autistas no falam,
Lacan se refere aos autistas como personagens verbosos na Conferncia de Genebra (1975)
sobre o sintoma:
Trata-se de saber por que h algo no autista ou no chamado esquizofrnico, que se
congela, poderamos dizer. Mas o senhor no pode dizer que no fala. Que o senhor
tenha dificuldade para escut-lo, para dar seu alcance ao que dizem, no impede que
se trate, finalmente, de personagens de preferncia verbosos. (LACAN, 1975, p. 12).
Alguns autistas falam, mas no sabemos o que dizem, seria mais exato afirmar. At
por que na maioria dos casos de autismo, at aproximadamente os dois anos o
desenvolvimento da fala normal, quando ento esta regride em sua funo social.
Na perspectiva lacaniana da psicanlise, para que se crie o lao social que vem a
inserir a criana no mundo simblico, preciso que o puro real do corpo do vivo, do indiviso,
seja atravessado pela linguagem, tornando-o sujeito dividido. No autismo sabe-se que a
linguagem, esse campo do Outro, produz eco por ser o autista refratrio aos seus efeitos.
Por falta de ter um p no Outro, ele pode apenas fazer-se de seu eco. A frequncia e
a insistncia dessas inverses pronominais [tu no lugar o eu] demonstram a
posio de um sujeito que no se inscreveu no discurso do Outro, embora seja capaz
de utiliz-lo mecanicamente. (MALEVAL, 2012, p 48).
Para este autor, para que se constitua como sujeito desejante, a criana deveria alienarse ao campo do Outro, o que no vem a acontecer, defende ele, na sndrome autstica, j que
no ocorre a mutao do real em significante, o que faz com que no haja integrao dos
objetos no circuito pulsional, e sendo assim so objetos cuja presena angustiante por falta
do distanciamento que seria proporcionado pela linguagem: seu excesso de presena obrigao ao intenso trabalho de distanciamento e regulagem (MALEVAL, 2012, p. 48).
Diariamente crianas abaixo de cinco anos so recebidas no servio pblico para
tratamento de crianas e adolescentes no Municpio de Campos dos Goytacazes-RJ,
encaminhadas por pediatras, neurologistas e mdicos em geral, pela creche e at pelo juizado.
Entre os variados casos clnicos foram encaminhados dois casos de crianas ainda muito
pequenas com o diagnstico de princpio de autismo.
Apresentamos dois desses sujeitos. Any43 nasceu em outubro de 2006 e tem seu nome
quase igual ao de sua me, diferenciando-se apenas pela letra a. Sua me queixa-se de que a
filha falava aos 12-14 meses chamando irm, papai, mame, gua, mas deixou de falar aos
18 meses. A me atribui o fato ao de sua sobrinha, ento com 17 anos, que era rf de me
e residia com a tia, que mandava a pequena sair de perto, calar-se, engolir o choro. Somente
quando a pequena tinha dois anos, a me descobriu que a sobrinha expulsava a filha de perto
de si. Ela ainda relata quedas da filha desde um ano, quando caiu do carrinho, na presena da
sobrinha que alegou no ter visto a queda por ter cochilado.
Any nasceu com refluxo e intolerncia lactose. A me, recm-formada em
enfermagem, nunca chegou a exercer a profisso, mas explica tudo com jargo tcnico da
enfermagem, sem a implicao que se esperaria de uma me aflita. Quando Any fez dois anos,
a me tentou coloc-la no colgio, mas ela chorava todo o tempo. Para a pediatra, Any
chorava todo o tempo desde que nasceu porque o leite causava queimao no esfago pelo
refluxo e intolerncia lactose, o que parece fechar o sentido de modo lgico para a
enfermeira-me.
Any chega primeira entrevista acompanhada de sua me. Grita emitindo sons sem
sentido quando quer mostrar ou pegar algo, chamando ateno para suas vontades pelo grito.
Laurent nos afirma que as crianas autistas nos ensinam o que real (LAURENT, 2012, p.
28) e o objeto que Any aponta real, no trabalhado pelo significante, pois a menina aponta
diretamente para o objeto no intermediandocom a palavra ao lhe fazer referncia.Pega o
hidrocor e comea a rabiscar o papel que lhe foi dado de um lado para o outro, rabiscando
tambm a cadeira que apia o papel, ou seja, desconhecendo as bordas do papel, e talvez as
43
Nome fictcio.
suas prprias, lambuzando toda a mo e sujando o vestido sob a repreenso da me, que ora
relata o caso, ora corrige a filha. A neuropediatra de Any diagnostica que ela est com
princpio de autismo. Contudo, Any vem melhorando e interagindo melhor desde que a
prima foi embora para a casa de outra tia, o que pode ter ocasionado uma maior intimidade
entre me e filha.
Na segunda entrevista, a me de Any vem acompanhada do marido, que mal pode falar
dado s interrupes da esposa, e diz ter muito a contar sobre as dificuldades pelas quais
passou na gravidez da filha, acrescentando ainda que quando pedia um beijo filha, a menina
vinha de boca aberta para beijar de lngua e que a sobrinha j passou a mo no rgo genital
de Any. Chama a sobrinha de pedfila. Pode-se hipotetizar que a presena ostensiva,
excessiva e invasiva dessa prima, que arromba o corpo da pequena Any com seu abuso sexual,
poderia provocar como defesa o distanciamento autstico. Aps esta segunda entrevista no
mais retornaram, fato comum no servio pblico, ou talvez alguma interpretao tenha se
produzido para eles de tudo que disseram e da forma como foram escutados.
Um segundo caso, recebido em maio de 2013, foi encaminhado por suspeita de
princpio de autismo. Um menino de dois anos e meio, Rafael 44, vem regredindo
progressivamente: voltou a fazer xixi e coc nas calas, embora j tivesse aprendido a fazer
no penico. Falava bem e agora fala de um jeito que a me no entende, o que ela repete a
todo o momento: no entendo o que ele diz, demonstrando seu prprio distanciamento do
filho. Para esta me no est em funcionamento a loucura prpria s mes, ao interpretar as
vocalizaes que sua criana emite, nem a antecipao de sua imagem especular, que viria a
lhe ceder lugar no mundo humano:
Esta loucura das mes indispensvel para que um dia o sujeito da fala se constitua.
preciso que algum seja capaz desta iluso antecipadora frente ao beb: escut-lo
como sujeito, j em sua potencialidade de sujeito de uma fala, bem antes de esta
aparecer. Os psicolinguistas falam de protoconversao para descrever estes volteios
de fala durante os quais a me ocupa, alternadamente, o lugar do beb quando ela
traduz o som que ele produziu e o seu prprio, quando lhe responde. (LAZNIK,
2013, s/p).
Fort-da freudiano, e tolhe o filho contribuindo para seu isolamento. Ela relata que o filho tem
reaes de bebezinho, pois quando ela vai busc-lo na creche ele se agarra a ela como se
estivesse com muitas saudades, no quer deixar o colo e fica com dificuldade de beber e
comer, comendo bem devagarzinho e aos poucos, diz ela. Aqui o no entendo d lugar a
algum entendimento, a uma interpretao daquilo que ela parece desejar, que que o filho
permanea bebezinho.
Quando Rafael trazido na entrevista seguinte, a me o apresenta dizendo seu nome e
ele diz ele. Diante do pote de bichinhos da fazenda e do mar, e dos sons que o psicanalista
emite como miauuu quando mostra o gato, muuu quando mostra a vaca, auau quando
mostra o cachorro, Rafael sorri pegando os bichinhos dizendo aaae e eventualmente
ele.Ao final desse encontro a criana, a pedido do psicanalista, lhe d um beijo quase
encostando seus lbios no seu rosto para a surpresa da me, que diz que ele s carinhoso
com ela e nunca deu beijo em mais ningum.
Na terceira entrevista, retornam sorridentes. Depois de algumas brincadeiras
acompanhadas de muitas risadas, Rafael se enfia debaixo da mesa eufrico e grita titia, titia.
Quando a psicanalista finge surpresa dizendo Ah, voc est a?, ele ri muito ao ser achado.
Durante essa entrevista a me relata que agora est mais paciente com o filho, tento brigar
menos; quando ele no quer comer no foro, depois dou outra coisa, pois ele come do
mesmo modo que dorme, diz ela, aos poucos, em intervalos. A me deixa ento de invadir,
com sua assistncia maternalizante, o corpo de seu filho, que era tratado como um objeto no
habitado. Sabemos que, para que do vivente emerja um sujeito desejante, se faz necessrio o
investimento libidinal materno na falicizao da criana. Como afirma Cato (2010) o
autismo caracteriza-se justamente por uma ausncia de auto-erotismo na relao com o Outro.
Retornaram depois de trs semanas, e desta vez a me sorri, algo que observado a ela
pela psicanalista. Esta me ento alega que realmente se sentiu deprimida desde que se
separou do marido, quando o filho tinha cinco meses de idade, mas que agora resolveu
superar esta separao. Este filho ocupou o lugar de uma perda mortificante para esta me,
como um lugar sintomtico que a criana vem a ocupar na estrutura familiar (LACAN,
1969/2003), mas teve seu destino retraado e seu auto-erotismo restabelecido.
Pode-se observar tambm que a prpria presena deum Outro intermediador, que o
psicanalista, na relao entre a me e a criana, podepor si s produzir um efeito de retorno
simblico, como se a me a partir da se colocasse em outro plano, propiciando que ceda lugar
ao sujeito a advir.
Pode-se observar um bom prognstico dos casos destas pequenas crianas que,
regredidas na fala, no estabelecimento do lao social, com algumas estereotipias, que logo
foram diagnosticadas e encaminhadas para o tratamento psicanaltico. Mas nem todos os
profissionais o fazem, infelizmente. Como pretendamos demonstrar com nossas questes
lanadas no incio, fica claro com esses casos, a importncia da psicanlise para o tratamento
de crianas muito pequenas que apresentam o quadro de princpio de autismo. Contudo, ficanos a questo de por qual motivo a psicanlise vem sendo to atacada a ponto de ser
eliminada pelos DSM nas recomendaes ao tratamento do autismo?
Um bom incio de resposta est no excelente livro de Agns Aflalo (2012) que critica
os interesses econmicos embutidos nesses manuais. Ela chama a ateno para a diferena do
nmero de pginas dedicadas ao autismo nas variadas edies dos DSM, revelando o quanto
eles envolvem implicaes ideolgicas e mercadolgicas, mais do que uma preocupao em
diminuir o sofrimento humano, que envolve no s o prprio autista como tambm os que o
cercam: pais, avs, professores. Esta pode ser uma resposta s indagaes que fizemos.
Nossas pesquisas prosseguem nessa direo.
Referncias bibliogrficas:
AFLALO, A.Autisme: nouveaux spectres, nouveaux marches. Paris: Navarin, 2012.
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION.Autism Spectrum Disorder.DSM-V
Development.American Psychiatric Publishinghttp://www.dsm5.org/Documents/Autism
%20Spectrum%20Disorder%20Fact%20Sheet.pdf
Acesso em: 31 ago. 2013.
CATO, I. O beb nasce pela boca: voz, sujeito e clnica do autismo. So Paulo: Instituto
Langage, 2009.
LACAN, J. Duas notas sobre acriana [1969].In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
editor, 2003.
______. Conferncia em Genebra sobre o sintoma. Transcrio de Mrio Cifali, 1975.
www.campopsicanalitico.com.br/biblioteca/genebra.doc Acesso em 31/08/2013.
RESUMO
A histria que ser relatada a seguir revela que a ausncia do sobrenome paterno, na
certido de nascimento do filho, uma forma, inconsciente, de uma me fazer ex-sistir o
nome do pai para ela, portanto, paradoxalmente, fazer valer um pai para ela na indeterminao
de uma paternidade biolgica do filho. Neste caso, o reconhecimento da paternidade biolgica
ameaa a prpria subjetividade da me, que nessa ex-sistncia do sobrenome paterno, ordena,
mesmo que precariamente, um gozo desmedido
Maria como sua filha. Maria ento vai morar com a av materna e l permaneceu, mesmo sua
me recuperando a conscincia, quatro meses depois.
Maria casa-se aos 17 anos e tem um menino. Separa do marido, dentre outras coisas, por ele
dizer que no gostava do filho: No posso conviver com um homem que rejeita um filho
meu.
Numa conversa com as amigas, Maria descobre que nunca experimentou um orgasmo.
Mas agora separada, se envolve com vrios homens na busca por tal prazer que ela mesma
denominou de Uma fantstica busca que s serviu para gerar Junior. O nascimento de
Junior que deu um freio. No entanto, esses encontros amorosos nunca lhe proporcionaram
a satisfao esperada.
Uma vez grvida de Junior, Maria comunica o fato ao suposto pai, Jos, o homem com
quem estivera mais tempo. Ele sugere o aborto, pois j mantinha um relacionamento com
outra mulher, inclusive que esperava um filho seu. Maria no realiza o aborto e vai cuidar do
filho sozinha.
Maria se casa novamente e tem outro menino. O padastro cria Junior como se filho
fosse, desde os seis meses de vida. Ele quis reconhec-lo como filho, mas Maria no deixou,
alegando que ele no o pai: E se amanh agente se separa, como ficaria a situao de
Junior?, justifica-se.
No pedido de averiguao de paternidade, Maria supe que Jose o pai. Mas por que
este homem, pergunto? E ela me diz que se encantara com seu jeito de falar, meio arrastado,
prolongado, que acentua o tom final das vogais: bom demais, muito gostooooso!.
Mas eis que um dia ela se surpreende com seu filho Junior chupando deliciosamente uma
fruta: Que caj gostooooso, s! [E Maria com certa admirao, comenta]: Como pode ele
falar assim, se nunca esteve com o pai?. Maria no se d conta de que, no encontro sonoro
das vogais (ooooso), ela chamara Jose de pai.
Maria comenta que se apaixonara pela aquela voz, pelo jeito de falar, que Junior a
fazia lembrar: a mesma coisa de estar ouvindo o Junior falando, aquele sotaque, aquela
coisa diferente e legal. Ficava assim encantada.
Sua av recentemente sofreu um AVC (Acidente Vascular cerebral) e ficou impossibilitada de
falar, tendo que fazer uso de gestos e murmrios para se comunicar. Assim relata Maria a
importncia de sua av... (a-voz): Quando minha av perdeu a voz, eu fiquei cega. Ela
sempre me orientava na educao dos filhos. Ela conseguia ver o que estava certo ou errado.
Hoje me sinto perdida, tenho vontade de me matar. Minha av como um espelho para mim,
ela tem a fora e motivao para fazer as coisas.
Sobre Junior importante dizer que apresentou duas crises de ausncia: a primeira,
quanto tinha um ano de idade, aps uma convulso e outra, aos sete anos, quando foi tirar
sangue. Junior disperso em sala de aula, se mostrando ausente. Encaminhado ao
neurologista, toma remdio para ter foco. A mdica pergunta a me pelos antecedentes
paternos e a me relata que o suposto pai tem um filho deficiente. nessa ocasio que Maria
procura Jose para saber se essa crise de ausncia viria do lado do pai.
Maria muito grudada nos filhos. No os deixa sair sozinhos ou ficar na casa dos
amigos, principalmente Junior, devido suas crises de ausncia. Diz no conseguir ficar longe
deles, que s de pensar, entra em desespero. Sobre Junior, sua preocupao parece maior: Se
eu faltar, com quem ele vai ficar? Os outros tm pai.
No entanto, ela revela ter uma impacincia para com eles, que no lhe permite ficar
muito tempo juntos ou ouvi-los com ateno. Quando eles comeam a crescer, se afasta deles,
mas quando so bebes, no. Maria associa essa dificuldade de abra-los, de ter intimidade
com os filhos, com o seu pai, que no se aproximava e nem expressava os afetos, ele que,
segundo Maria, era descendente de ndio, andava descalo, comia na bacia e vivia largado,
pois perdera a me quando ainda tinha 8 anos de idade. Sobre o pai, observa Maria: Talvez
meu pai no fizesse contato porque eu era mulher.
O resultado do exame marcado e as partes esto reunidas. Antes de abrir o envelope
pergunto a Jos como foi a viagem, j que ele viera de uma cidade distante. Ah, doutor, eu
fui encostaaaaando o carro assim [...]. Maria riu e chamou minha ateno para o jeito de
Jos falar: Olha doutor, o jeito que ele fala, aquilo que eu falava do Junior. Pude constatar,
naquele breve instante, o encanatmento de Maria por aquela modalidade de voz. Em seguida,
ela me diz: Talvez Junior veio porque eu achava ele bonito; na gravidez eu lembrava dele.
Jose chega a dizer que o menino j o cativara, que at nem precisava fazer o exame.
Abro o envelope e comunico o resultado conforme est escrito: O Sr. Jose est excludo de
ser o pai biolgico de Junior.
O suposto pai, diante do resultado, sugere a Maria fazer outro exame, particular. Mas
Maria resiste dizendo que no, que sempre correu disso (sic), do exame de DNA, que
gostaria de deixar pra l.
O resultado do exame de DNA, excluindo a possibilidade de Jose ser o pai biolgico
de Junior, faz com que Maria realize outro exame. Ela pondera ter se envolvido com outro
homem, tambm por mais tempo. Maria ento viaja, com Junior, para a cidade do suposto pai
para fazer o exame de DNA. O resultado ento ratifica o que foi anunciado no primeiro
exame: O Sr. X est excludo de ser o pai biolgico de Junior. Na ocasio do exame, Maria
comenta que Junior, ao tirar o sangue para o exame de DNA, desmaia e fica desacordado por
um tempo, tendo de ser socorrido pela enfermeira. Vendo o filho desmaiar, desabafa: H se
eu perder esse filho por causa do DNA!.
Maria, tendo o resultado do exame de DNA dado negativo, j no sabe mais quem o
pai de Junior. Mas Junior insiste em manter a pergunta O que (quem) um pai?, agora por
ocasio da penso recebida por seu irmo mais velho: Por que eu no tenho penso, igual ao
meu irmo?. A me e o padastro, diante da surpresa da pergunta, tentam se justificarem, mas
no convencem Junior, que indaga:
- Mas me, voc sabe quem meu pai, no sabe?
- Sei, mas no sei onde ele est.
-Esta a, do seu lado, se referindo ao padrasto.
Maria diz ter ficado em silncio. Ela nada pronuncia. Nem mesmo o padrasto.
Pergunto por qu? No sei!, ela responde e brinca dizendo que deve Estar tapeando os
dois.
Por que Maria sempre evitou o exame de DNA? O que pode acontecer se Maria
perder esse filho por causa do DNA? Maria, ao longo dos atendimentos preliminares, me
confessou que sente uma solido, um vazio estranho, uma vontade de morrer, de se jogar
embaixo de um carro. S no o faz pelo filho: Eu no fao isso por causa de Junior, que no
tem pai, pois os outros dois filhos tm.
Lembremos que a vinda de Junior d um freio em Maria, na sua fantstica busca por
um gozo sem limite. A ausncia do sobrenome paterno, ex-sistindo, sustenta um lugar para
Maria no mundo, faz algum intervalo, d alguma boda para o seu vazio estranho, evitando
que Maria desaparea, numa ex-sistncia tambm sem limite.
Referncias Bibliogrficas:
LACAN, J. O Seminrio livro 19: ...ou pior [1971-1972]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.
______. O seminrio livro 23: o sinthoma [1975-1976]. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2007.
______. Nomes-do-pai [1953].Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
______. A direo do tratamento e os princpios de seu poder [1966]. In: ______. EscritosRio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
______.O Seminrio livro 22: R.S.I. [1974-1975]. Indito. Rio de Janeiro: Escola Lacaniana
de Psicanlise, 1991. (Traduo livre para estudo).