A Democracia Como Valor Universal - Nelson Coutinho
A Democracia Como Valor Universal - Nelson Coutinho
A Democracia Como Valor Universal - Nelson Coutinho
metafisicamente concebida como ruptura absoluta de conceber essa relao entre socialismo
e democracia.
Uma prova dessa universalidade so as acesas polmicas que tm hoje lugar entre as
foras progressistas brasileiras, envolvendo o significado e o papel da luta pela democracia em
nosso Pas. Pode-se facilmente constatar nesse sentido, a presena de diferentes e at mesmo
contraditrias concepes de democracia entre as correntes que se propem representar os
interesses populares e, em particular, os das massas trabalhadoras. Trata-se de um fato normal e
saudvel, contanto que no se perca de vista a necessidade imperiosa de acentuar na presente
conjuntura aquilo que une a todos os oposicionistas, ou seja, a luta pela conquista de um
regime de liberdades poltico-formais que ponha definitivamente termo ao regime de exceo
que, malgrado a fase de transio que se esboa, ainda domina em nosso Pas.
No creio que nenhuma formao popular responsvel ponha hoje em dvida a
importncia dessa unidade em tomo da luta pelas liberdades democrticas tais como essas so
definidas, entre outros, no atual programa do MDB. Todavia, h correntes e personalidades que
revelam ter da democracia uma viso estreita, instrumental, puramente ttica; segundo tal viso,
a democracia poltica embora til luta das massas populares por sua organizao e em
defesa dos seus interesses econmico-corporativos no seria mais, em ltima instncia e por
sua prpria natureza, do que uma nova forma de dominao da burguesia, ou, mais
concretamente, no caso brasileiro, dos monoplios nacionais e internacionais.
Essa viso estreita se baseia, antes de mais nada, numa errada concepo da teoria
marxista do Estado, numa falsa e mecnica identificao entre democracia poltica e dominao
burguesa. Mas implica, em segundo lugar, ainda que por vezes implicitamente, uma concepo
equivocada das tarefas que se colocam atualmente ao conjunto das foras populares brasileiras:
essas tarefas no podem ser identificadas com a luta imediata pelo socialismo, mas sim com um
combate rduo e provavelmente longo pela criao dos pressupostos polticos, econmicos e
ideolgicos que tomaro possvel o estabelecimento e a consolidao do socialismo em nosso
Pas.
Nosso objetivo, no presente artigo, esboar sumariamente muito mais levantando
questes do que propondo respostas sistemticas os tpicos essenciais dessas duas ordens de
questes. Em primeiro lugar, tentaremos indicar como o vnculo socialismo-democracia parte
integrante do patrimnio categorial do marxismo; e, em segundo, mostraremos como
a renovao democrtica do conjunto da vida nacional enquanto elemento indispensvel
para a criao dos pressupostos do socialismo no pode ser encarada apenas como objetivo
ttico imediato, mas aparece como o contedo estratgico da etapa atual da revoluo brasileira.
2
contra
formalismo
oportunista
de Kautsky,
no
era
negar
validade
do substantivo democracia, mas lembrar que no plano do contedo concreto ele aparece
sempre adjetivado. Em outras palavras: fiel ao ensinamento de Marx e Engels, Lnin afirmava
no poder existir salvo em breves perodos de transio regime estatal sem contedo de
classe determinado, sem que uma classe fundamental no modo de produo determinante exera
atravs desse regime (no importa por meio de quantas mediaes) sua dominao sobre o
conjunto da sociedade.
Tendo sempre combatido, desde sua juventude, as interpretaes redutoras e economicistas
do marxismo, Lnin no podia negar a autonomia relativa das superestruturas no seio da
totalidade social; a acentuao lenineana do papel da subjetividade humana na prxis, do papel
da poltica, em oposio s interpretaes economicistas (objetivistas) dominantes no marxismo
da II Internacional, tem sua base terica nessa viso dialtica da autonomia relativa das
superestruturas. Portanto, se quisermos ser fiis ao mtodo de Lnin(1), temos de chegar
seguinte concluso: verdade que o conjunto das liberdades democrticas em sua forma
moderna (o princpio da soberania e da representao popular, o reconhecimento legal do
pluralismo etc.) tem sua gnese histrica nas revolues burguesas, ou mais precisamente, nos
amplos movimentos populares que terminaram (mais ou menos involuntariamente) por abrir o
espao poltico necessrio consolidao e reproduo da economia capitalista; mas
igualmente verdade que, para o mate- rialismo histrico, no existe identidade mecnica
entre gnese e validade, Lnincertamente conhecia a observao de Marx segundo a qual a arte
de Homero no perde sua validade universal e inclusive sua funo de modelo com o
desaparecimento da sociedade grega primitiva que constitui sua necessria gnese histrica.
Se, como acreditamos, a observao de Marx tem alcance metodolgico geral (malgrado
as concretizaes que devem ser feitas em cada esfera concreta do ser social), podemos extrair
dela uma concluso acerca da questo da democracia: nem objetivamente, com o
desaparecimento da sociedade burguesa que lhes serviu de gnese, nem subjetivamente, para as
foras empenhadas nesse desaparecimento, perdem seu valor universal inmeras das
objetivaes ou formas de relacionamento social que compem o arcabouo institucional da
democracia poltica.
E no se trata apenas de constatar o bvio: o valor que continuam a ter para as foras do
progresso, nas sociedades capitalistas de hoje a conservao e a plena realizao desses
institutos democrticos, conservao e realizao que so asseguradas em grande parte e
muitas vezes em oposio aos interesses burgueses atuais pela luta do movimento operrio
organizado. preciso ir alm dessa constatao e afirmar claramente que, tanto na fase de
transio quanto no socialismo plenamente realizado, continuaro a existir interesses e opinies
divergentes sobre inmeras questes concretas; e isso porque ao contrrio do que afirma a
concepo stalinista o processo de extino das classes faz certamente com que a
sociedade tenda unidade, mas no significa de modo algum a sua completa homogeneizao.
E, dado que mesmo essa unidade tendencial uma unidade na diversidade, fundamental que
tais interesses divergentes encontrem uma forma de representao poltica adequada.
A pluralidade de sujeitos polticos, a autonomia dos movimentos do massa (da sociedade
civil) em relao ao Estado, a liberdade de organizao, a legitimao da hegemonia atravs da
obteno do consenso majoritrio: todas essas conquistas democrticas, portanto, continuam a
ter pleno valor numa sociedade socialista. (E no preciso recorrer a Gramsci ou aos tericos
atuais do eurocomunismo para afirmar isso: Lnin foi um dos primeiros a reconhecer esse valor
quando se ops transformao dos sindicatos em correias de transmisso do Estado
socialista, na famosa polmica que travou com Trtski em 1921). Estamos diante de formas de
relacionamento social sem as quais no se cumpre o que Marx e Engels exigiam do socialismo:
que o livre desenvolvimento de cada um fosse a condio
necessria para o livre desenvolvimento de todos.
Portanto, para aqueles que, em nome dos interesses histrico-universais dos trabalhadores,
lutam pelo socialismo, a democracia poltica no um simples princpio ttico: um valor
estratgico permanente, na medida em que condio tanto para a conquista quanto para a
consolidao e aprofundamento dessa nova sociedade.
Isso no significa, decerto, que a democracia socialista, mesmo do ponto de vista polticoinstitucional (ou seja, mesmo deixando de lado as profundas transformaes econmicas e
sociais gradativa abolio da propriedade privada dos meios de produo que ela implica
para sua completa realizao), possa ser vista como uma simples continuao da democracia
liberal tal como essa foi concebida pelos tericos do sculo XVIII (Locke, Montesquieu, etc.),
ou mesmo tal como aparece na prtica dos mais avanados pases capitalistas de hoje. A
concepo segundo a qual a velha maquina estatal deve ser destruda para que se possa
implantar a nova sociedade uma metfora que muitas vezes entendida em sentido
demasiadamente literal quer indicar precisamente que a democracia poltica no socialismo
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pressupe a criao (e/ou a mudana de funo) de novos institutos polticos que no existem,
ou existem apenas embrionariamente, na democracia liberal clssica. E, do mesmo modo como
as foras produtivas materiais necessrias criao da nova formao econmico-social j
comeam a se desenvolver no seio da velha sociedade capitalista, assim tambm esses
elementos da nova democracia j se esboam freqentemente em oposio aos interesses
burgueses e aos pressupostos tericos e prticos do liberalismo clssico no seio dos regimes
polticos contemporneos dominados pela burguesia. Refiro-me aos mecanismos de
representao direta das massas populares (partidos, sindicatos, associaes profissionais,
comits de empresa e de bairro, etc.), mecanismos atravs dos quais essas massas populares
e em particular a classe operria se organizam de baixo para cima e constituem aquilo que
poderamos chamar de sujeitos polticos coletivos.
No seria difcil mostrar como a formao desses sujeitos polticos coletivos no
previstos pela atomista teoria liberal clssica corresponde aos processos de socializao da
produo que se acentuam no capitalismo e, em particular, no capitalismo monopolista de
Estado. Portanto, a prpria reproduo capitalista enquanto fenmeno social global que impe
essa crescente socializao da poltica, ou seja, a ampliao do nmero de pessoas e de grupos
empenhados politicamente na defesa dos seus interesses especficos. A essa socializao
objetiva da participao poltica deve corresponder, em medida cada vez maior, uma
socializao dos meios e dos processos de governar o conjunto da vida social, Nesse sentido, o
socialismo no consiste apenas na socializao dos meios de produo, uma socializao
tornada possvel pela prvia socializao do trabalho realizada sob o impulso da prpria
acumulao capitalista; ele consiste tambm ou deve consistir numa progressiva socializao
dos meios de governar, uma socializao tambm aqui tomada possvel pela crescente
participao das massas na vida poltica, atravs dos sujeitos polticos coletivos que as
vicissitudes da reproduo capitalista sobretudo na fase monopolista impem s vrias
classes e camadas sociais prejudicadas pela dinmica privatista dessa reproduo (3).
Em outras palavras: o socialismo no elimina apenas a apropriao privada dos frutos do
trabalho coletivo; elimina tambm ou deve eliminar a apropriao privada dos
mecanismos de dominao e de direo da sociedade como um todo. A superao da alienao
econmica condio necessria mas no suficiente para a realizao do humanismo socialista:
essa realizao implica tambm a superao da alienao poltica. (Uma necessidade de
que Lnin era tambm consciente: basta lembrar a sua concepo da cozinheira que dirige o
Estado.) A superao da alienao poltica pressupe o fim do isolamento do Estado, sua
progressiva reabsoro pela sociedade que o produziu e da qual ele se alienou; ora, isso s se
tomar possvel atravs de uma crescente articulao entre os organismos populares de
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econmicos, ou seja, ao abstrair-se do fato de que uns so donos dos meios de produo e outros
apenas de sua fora de trabalho o modoprtico pelo qual se dava aquela harmonizao era
a subtrao do poder executivo de qualquer controle pblico, mesmo atravs do parlamento
burgus. (Uma tendncia que s iria se acentuar na poca do capital monopolista, quando o
desaparecimento da taxa mdia nica de lucro agua as contradies intercapitalistas entre
setores monopolistas e no monopolistas; e quando a classe operria comea a ganhar uma
representao parlamentar prpria.) O poder executivo passa assim a ser encarnado por um
grupo de burocratas que se subtrai ao controle pblico e, com isso, transforma o Estado num
corpo separado e posto acima da sociedade (6). No aqui o local para insistir sobre o carter
aparente ainda que se trate de uma aparncia necessaria (Marx) dessa separao e desse
isolamento do Estado: o que a burocracia ligada ao Executivo faz, na realidade, harmonizar
os interesses do capital em seu conjunto, pondo-se acima das paixes individuais dos
capitalistas singulares, e operar ao mesmo tempo no sentido de que tais interesses se imponham
automaticamente sobre o conjunto da sociedade.
Nada disso impede, contudo, que na teoria liberal moderna (que foi inteiramente
assimilada pela hodierna social-democracia) se continue a afirmar que democracia sinnimo
de pluralismo e que a defesa da hegemonia de uma classe ou conjunto de classes , por sua
prpria natureza, sinnimo de totalitarismo e de despotismo. A teoria socialista deve criticar a
mistificao que se oculta por trs dessa formulao liberal: deve colocar claramente a questo
da hegemonia como questo central de todo poder de Estado. Se a burguesia disfara sua
dominao por meio do isolamento e da neutralidade da burocracia estatal, as classes
populares devem pr abertamente sua candidatura a hegemonia, ao mesmo tempo em que lutam
para superar a dominao efetiva de uma restrita oligarquia monopolista sobre o conjunto da
sociedade. Mas, se socialismo tambm sinnimo de apropriao coletiva dos mecanismos de
poder, a hegemonia dos trabalhadores no pode (e no deve) se fazer por intermdio de uma
nova burocracia que governe de cima para baixo; a libertao do proletariado, como
disse Marx, obra do prprio proletariado; e deve se fazer mediante a criao de uma
democracia de massas que inverta essa tendncia burocratizao e alienao do poder. Nessa
democracia de massas, a dialtica do pluralismo a autonomia dos sujeitos polticos coletivos
no anula, antes impe, a busca constante da unidade poltica, a ser construda de baixo para
cima, atravs da obteno do consenso majoritrio; e essa unidade democraticamente
conquistada ser o veculo de expresso da hegemonia dos trabalhadores.
A democracia socialista , assim, uma democracia pluralista de massas; mas uma
democracia organizada, na qual a hegemonia deve caber ao conjunto dos trabalhadores
alto tiveram como causa e efeito principais a permanente tentativa de marginalizar as massas
populares no s da vida social em geral, mas sobretudo do processo de formao das grandes
decises polticas nacionais(8). Os exemplos so inmeros: quem proclamou nossa
Independncia poltica foi um prncipe portugus, numa tpica manobra pelo alto; a classe
dominante do Imprio foi a mesma da poca colonial; quem terminou capitalizando os
resultados da proclamao da Repblica (tambm ela proclamada pelo alto) foi a velha
oligarquia agrria; a Revoluo de 1930, apesar de tudo, no passou de uma rearrumao do
velho bloco de poder, que cooptou e, desse modo, neutralizou e subordinou alguns setores
mais radicais das camadas mdias urbanas; a burguesia industrial floresceu sob a proteo de
um regime bonapartista, o Estado Novo, que assegurou pela represso e pela demagogia a
neutralizao da classe operaria, ao mesmo tempo em que conservava quase intocado o poder
do latifndio, etc. Mas essa modalidade de via prussiana (Lnin, Lukcs) ou de revoluorestaurao (Gramsci) encontrou seu ponto mais alto no atual regime militar, que criou as
condies polticas para a implantao em nosso Pas de uma modalidade dependente (e
conciliada com o latifndio) de capitalismo monopolista de Estado, radicalizando ao extremo a
velha tendncia a excluir tanto dos frutos do progresso quanto das decises polticas as grandes
massas da populao nacional.
Para o conjunto das foras populares, coloca-se assim uma tarefa de amplo alcance: a luta
para inverter essa tendncia elitista ou prussiana" da poltica brasileira e para eliminar suas
conseqncias nas vrias esferas do ser social brasileiro. (No se deve esquecer, antes de mais
nada, que a via prussiana levou sempre construo das superestruturas adequadas
dominao de uma restrita oligarquia primeiro latifundiria, agora monopolista sobre a
esmagadora maioria da populao.) A luta pela eliminao dessa tendncia confunde-se com
uma profunda renovao democrtica do conjunto da vida brasileira; essa renovao aparece,
portanto, no apenas como a alternativa histrica via prussiana, como o modo de realizar em
condies novas as tarefas que a ausncia de uma revoluo democrtico-burguesa deixou
abertas em nosso Pas, mas tambm e precisamente por isso como o processo da criao
dos pressupostos necessrios a um avano do Brasil no rumo do socialismo.
Uma direta conseqncia da via prussiana foi gerar uma grande debilidade histrica da
democracia no Brasil. Essa debilidade no se expressa apenas no plano do pensamento social
(basta lembrar o carter conciliador do nosso liberalismo), ela tem conseqncias na prpria
estrutura do relacionamento do Estado com a sociedade civil, j que ao carter extremamente
forte e autoritrio do primeiro corresponde a natureza amorma e atomizada da segunda. Essa
debilidade histrico-estrutural da democracia, aliada presena de um regime profundamente
antidemocrtico, faz com que o processo de renovao democrtica assuma como tarefa
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todas as foras interessadas (partidos, sindicatos, associaes profissionais, etc.); s assim ele
obter o consenso majoritrio sua aplicao conseqente e, mais que isso, contribuir ao
transformar as camadas trabalhadoras em sujeitos ativos do governo da economia para o
processo geral de renovao democrtica do Pas.
Mas a elevao a nvel superior pressupe igualmente um aprofundamento poltico da
democracia: a ampla incorporao organizada das grandes massas na vida poltica nacional a
socializao crescente da poltica o nico antdoto de eficcia duradoura contra o veneno
da via prussiana. E essa socializao da poltica j no mais, em nosso Pas, um simples
desejo subjetivo. Embora duramente reprimida, a sociedade civil brasileira impulsionada
indiretamente pelo processo de modernizao conservadora e de diferenciao social favorecido
pela nossa ltima revoluo pelo alto cresceu e se tomou mais complexa nos ltimos 15 anos.
Multiplicaram-se sobretudo nos ltimos tempos, organismos de democracia direta, sujeitos
polticos coletivos (comisses de empresa, associaes de moradores, comunidades religiosas
de base, etc.); e, alm disso, ganharam autonomia e representatividade, na medida em que se
desligaram praticamente da tutela do Estado, antigos organismos de massa, como alguns dos
principais sindicatos do Pas, ou poderosos aparelhos privados de hegemonia, como a OAB, a
CNBB, etc. Isso abre a possibilidade concreta de intensificar a luta pelo aprofundamento da
democracia poltica no sentido de uma democracia organizada de massas, que desloque cada vez
mais para baixo o eixo das grandes decises hoje tomadas pelo alto.
Ampliar a organizao e a articulao desses vrios sujeitos polticos coletivos de base e
ao mesmo tempo, lutar por sua unificao (respeitadas sua autonomia e diversidade) num
poderoso bloco democrtico e popular no apenas condio para extirpar definitivamente os
elementos ditatoriais que devero permanecer ao longo do perodo de transio que se anuncia:
tambm um passo decisivo no sentido de criar os pressupostos para o aprofundamento e
generalizao do processo de renovao democrtica e consequentemente, para o xito do
programa antimonopolista de democratizao da economia no rumo do socialismo. Esse bloco
unitrio dos organismos do democracia de base j hoje e dever se tomar cada vez mais
um poderoso instrumento de presso e controle sobre a ao dos mecanismos de representao
indireta, como os parlamentos.
A necessidade de que o processo de renovao democrtica proceda de baixo para cima,
consolidando e ampliando suas conquistas atravs de uma crescente incorporao de novos
sujeitos polticos, impe s foras populares enquanto mtodo de sua batalha poltica a
opo por aquilo que Gramsci chamou de guerra de posio. A progressiva conquista de
posies firmes no seio da sociedade civil a base no s para novos avanos, que
gradativamente tomaro realista a questo da conquista democrtica do poder de Estado pelas
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classes trabalhadoras, mas sobretudo o meio de evitar precipitaes que levem a recuos
desastrosos. Nesse sentido, as foras realmente populares devem estar permanentemente alertas
contra as tentaes do golpismo, o qual mesmo quando se apresenta sob vestes falsamente
progressistas no faz seno repetir os procedimentos elitistas que caracterizam a via
prussiana. Qualquer tentativa de impor modificaes radicais por meio da ao de minorias
(militares ou no) levar as foras populares a grandes desastres polticos; alm disso,
significar o truncamento do processo de renovao democrtica, um processo que nunca e
demais insistir s ser efetivo e realmente popular quando crescer de baixo para cima e
quando representar a incorporao de amplas maiorias ao cenrio poltico. O golpismo de
esquerda que infelizmente marcou boa parte do pensamento e da ao poltica das correntes
populares no Brasil apenas uma resposta equivocada e igualmente prussiana aos processos
de direo pelo alto de que sempre se valeram as foras conservadoras e reacionrias em
nosso Pas. Quanto mais se tome efetiva e sociao da poltica, tanto menos ser possvel
invocar a justificao relativa de processos desse tipo.
A luta pela renovao democrtica precisamente por recorrer a guerra de posio
como mtodo e por afastar resolutamente qualquer tentao golpista ou militarista
implica em conceber a unidade como valor estratgico. J nos referimos ao fato de que o
necessrio pluralismo dos sujeitos coletivos de base degenera em formas de corporativismo
quando no se verifica um processo de unificao poltica, atravs da mediao dos organismos
representativos de mbito nacional; por outro lado, a democracia de massas enquanto
democracia real pressupe que a conquista a hegemonia se faa atravs da obteno do
consenso majoritrio dascorrentes polticas e das classes e camadas sociais (9). (Talvez no seja
intil lembrar que maioria implica minoria, cujos direitos na medida em que sua ao
oposicionista no viole a legalidade constitucional democraticamente fundada tero de ser
respeitados.) Mas essa afirmao do valor estratgico da unidade ganha um trao concreto
especfico quando referido ao Brasil: a tarefa da renovao democrtica implica a crescente
socializao da poltica, a incorporao permanente e anti-prussiana de novos sujeitos
individuais e coletivos ao processo de transformao da realidade. Como a autonomia e a
diversidade desses sujeitos devero ser respeitadas, a batalha pela unidade uma unidade na
diversidade torna-se no apenas um objetivo ttico imediato na luta pelo fim do atual regime,
mas tambm um objetivo estratgico no longo caminho para elevar a nvel superior a
democracia.
Embora no quadro de uma busca permanente da mxima unidade possvel certo que se
alteraro em funo das tarefas concretas a natureza e a amplitude das alianas visadas
pelas foras populares. De modo esquemtico poderamos dizer que as tarefas da renovao
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Notas de rodap:
(1) E no apenas a seu mtodo, mas a muitas de suas afirmaes literais, Num artigo intitulado Sobre o
Dualismo do Poder, escrito em 1917, Lnin observa: Para conquistar o poder, os operrios conscientes
devem obter a maioria; at o momento em que no haja violncia contra as massas, no h outro modo de
chegar ao poder, No somos blanquistas, no visamos tomada do poder por parte de uma minoria
(Lnin, Opere Complete. Trad. italiana, Roma, 1958, vol. 24, p. 31). (retornar ao texto)
(2) A idia da socializao da poltica um dos pontos fortes da reflexo marxista contempornea na
Itlia; basta pensar em autores como Umberto Cerroni, Luciano Gruppi e, sobretudo, Pietro Ingrao, Mas
j Lnin observava em 1917: Se todos os homens participarem efetivamente na gesto do Estado, o
capitalismo no mais poder se manter, E o desenvolvimento do capitalismo cria
os pressupostosnecessrios para que todos possam efetivamente participar da gesto do Estado
(Lnin, Stato e Rivoluzione. Trad, italiana, Roma, 1963, p, 87). (retornar ao texto)
(3) Max Adler, Conselhos Operrios e Revoluo. Trad, portuguesa, Coimbra, s.d., passim. (retornar ao
texto)
(4) Cf, Pietro Ingrao, Masse e Potere. Roma, 1977, passim; e Crisi e Terza via. Roma, 1978, em particular
pp, 31-46. (retornar ao texto)
(5) Talvez no seja justo dizer marxista, Pois j Rousseau, no Contrato Social, ao distinguir entre a
vontade de todos e a vontade geral, indicava o momento da hegemonia como elemento integrante
essencial da democracia. (retornar ao texto)
(6) interessante constatar que em Hegel um filsofo da sociedade burguesa ps- revolucionria
essa burocracia j assume explicitamente funes de controle da sociedade civil, de harmonizao
dos interesses econmicos particularistas, o que seria impensvel no liberalismo clssico da poca prrevolucionria. (retornar ao texto)
(7) No casual, portanto, que a filosofia adequada ao liberalismo seja o empirismo positivista
(de Locke a Popper); aquela prpria ao totalitarismo seja o irracionalismo organicista, que afirma uma
totalidade sem determinaes (basta lembrar a anlise de Lukcs sobre o movimento que vai do
ltimo Schelling a Hitler, em A Destruio da Razo); enquanto a dialtica que afirma uma totalidade
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concreta, uma sntese de mltiplas determinaes (Marx) aparece como a base filosfica da
democracia, desde a dialtica idealista de Rousseau at aquela materialista de Gramsci ou Lukcs.
(retornar ao texto)
(8) Entre os autores que analisaram aspectos da histria brasileira valendo-se do conceito de via
prussiana, pode-se citar: Carlos Nelson Coutinho, O Significado de Lima Barreto na Literatura
Brasileira, In:vrios autores, Realismo e Anti-Realismo na Literatura Brasileira, Rio de Janeiro, 1974,
pp, 3 e ss.; e Notas sobre a questo Cultural' no Brasil, In: Escrita/Ensaio, n. 1, 1977, pp, 6-15; J,
Chasin, 0 Integralismo de Plnio Salgado. So Paulo, 1978, pp, 621 e ss.; e Luiz Werneck
Vianna, Sindicalismo e liberalismo no Brasil, Rio de Janeiro, 1976, em particular pp, 128 e ss. (retornar
ao texto)
(9) Em seu livro de entrevistas recentemente publicado, Fernando Henrique Cardoso afirma: Quem
busca consenso regime autoritrio, Democracia, no, Democracia o reconhecimento da legitimidade
do conflito, a busca da negociao e a procura de acordo, sempre provisrio, em funo da correlao de
foras (F, H, Cardoso, Democracia para Mudar, Rio de Janeiro, 1978, p, 22), A negao do valor do
consenso conseqncia necessria da negao da hegemonia; como vimos antes, para o pensamento
liberal (assimilado pela social-democracia contempornea), democracia sinnimo de pluralismo de
reconhecimento da legitimidade do conflito enquanto a busca do consenso (ou da hegemonia) seria
sinnimo de totalitarismo, No casual, portanto, que F, H, Cardoso tambm afirme o seguinte {op. cit,p,
35): O democratismo radical do Rousseau inspirou historicamente momentos polticos que poderiam ser
qualificados como de democracias totalitrias , Estamos diante de um bom exemplo da diferena entre
liberalismo e democracia, entre afirmao abstrata do pluralismo (reconhecimento emprico de uma
situao de fato) e afirmao concreta da articulao pluralismo-hegemonia (concepo dinmicodialtica do movimento social), Porm em vrios outros pontos de sua reflexo, F, H, Cardoso supera os
Incluso
31/08/2014
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