Lenda A Salamanca Do Jarau
Lenda A Salamanca Do Jarau
Lenda A Salamanca Do Jarau
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A Salamanca do Jarau
(J. Simes Lopes Neto)
O Cerro do Jarau
A Salamanca
Era um dia...,
um dia, um gacho pobre, Blau, de nome, guasca de bom porte, mas que s tinha de seu
um cavalo gordo, o faco afiado e as estradas reais, estava conchavado de posteiro, ali
na entrada do rinco; e nesse dia andava campeando um boi barroso.
E no tranquito andava, olhando; olhando para o fundo das sangas, para o alto das
coxilhas, ao comprido das canhadas; talvez deitado estivesse entre as carquejas - a
carqueja sinal de campo bom -, por isso o campeiro s vezes alava-se nos estribos e,
de mo em pala sobre os olhos, firmava mais a vista em torno; mas o boi barroso,
crioulo daquela querncia, no aparecia; e Blau ia campeando, campeando...
Campeando e cantando:
Meu bonito boi barroso.
Que eu j contava perdido.
Deixando o rastro na areia
Foi logo reconhecido.
Montei no cavalo escuro
E trabalhei logo de espora;
E gritei - aperta, gente,
Que o meu boi se vai embora! No cruzar uma picada,
Meu cavalo relinchou.
Dei de rdea para a esquerda,
E o meu boi me atropelou!
Nos tentos levava um lao
De vinte e cinco rodilhas,
Pra laar o boi barroso
L no alto das coxilhas!
Mas no mato carrasquento
Onde o boi stava embretado,
No quis usar o meu lao,
Pra no v-lo retalhado.
E mandei fazer um lao
Da casca do jacar,
Pra laar meu boi barroso
Num redomo pangar.
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No tranquito ia, cantando, e pensando na sua pobreza, no atraso das suas cousas.
No atraso das suas cousas, desde o dia em que topou - cara a cara! - com o Caipora num
campestre da serra grande, pra l, muito longe, no Botucara...
A lua ia recm saindo...; e foi boquinha da noite...
Hora de agouro, pois ento!...
Gacho valente que era dantes, ainda era valente, agora; mas, quando cruzava o faco
com qualquer paisano, o ferro da sua mo ia mermando e o do contrrio o lanhava...
Domador destorcido e parador, que por s pabulagem gostava de paletear, ainda era
domador, agora; mas, quando gineteava mais folheiro, s vezes, num redepente, era
volteado...
De mo feliz para plantar, que lhe no chochava semente nem muda de raiz se perdia,
ainda era plantador, agora; mas, quando a semeadura ia apontando da terra, dava a praga
em toda, tanta, que benzedura no vencia...; e o arvoredo do seu plantio crescia
entecado e mal floria, e quando dava fruta, era mixe e era azeda...
E assim, por esse teor, as cousas corriam-lhe mal; e pensando nelas o gacho pobre,
Blau, de nome, ia, ao tranquito, campeando, sem topar com boi barroso.
De repente, na volta duma reboleira, bem na beirada dum boqueiro, sofrenou o
tostado...: ali em frente, quieto e manso, estava um vulto, de face tristonha e mui branca.
Aquele vulto de face branca... aquela face tristonha!...
J ouvira falar dele, sim, no uma nem duas, mas muitas vezes...; e de homens que o
procuravam, de todas as pintas, vindos de longe, num propsito, para endrminas de
encantamentos..., conversas que se falavam baixinho, como num medo; pro caso, os que
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podiam contar no contavam, porque uns, desandavam patetados e vagavam por a, sem
dizer cousa com cousa, e outros calavam-se muito bem calados, talvez por juramento
dado...
Aquele vulto era o santo da salamanca do cerro.
Blau Nunes sofrenou o cavalo.
Correu-lhe um arrepio no corpo, mas era tarde para recuar: um homem para outro
homem!...
E como era ele quem chegava ele que tinha de louvar; saudou:
- LausSus-Cris!...
- Para sempre, amm! disse o outro, e logo ajuntou: O boi barroso vai trepando cerro
acima, vai trepando... Ele anda cumprindo o seu fadrio...
Blau Nunes pasmou do adivinho; mas repostou:
- Vou no rastro!...
- Est enredado...
- Sou tapejara, sei tudo, palmo a palmo, at boca preta da furna do cerro...
- Tu... tu, paisano, sabes a entrada da salamanca?...
- l?... Ento, sei, sei! A Salamanca do cerro do Jarau!... Desde a minha av charrua,
que ouvi falar!...
- O que contava a tua av?
- A me da minha me dizia assim:
- Na terra dos espanhis, do outro lado do mar, havia uma cidade chamada - Salamanca
- onde viveram os mouros, que eram mestres nas artes de magia; e era numa furna
escura que eles guardavam o condo mgico, por causa da luz branca do sol, que diz
que desmancha a fora da bruxaria...
O cordo estava no regao duma fada velha, que era uma princesa moa, encantada, e
bonita, bonita como s ela!...
Num ms de quaresma os mouros escarneceram muito do jejum dos batizados, e logo
perderam uma batalha muito pelejada; e vencidos foram obrigados a ajoelharem-se ao
p da Cruz Bendita... e a baterem nos peitos, pedindo perdo...
Ento, depois, alguns, fingidos de cristos, passaram o mar e vieram dar nestas terras
sossegadas, procurando riquezas, ouro, prata, pedras finas, gomas cheirosas... riquezas
para levantar de novo o seu poder e alar de novo a Meia-Lua sobre a Estrela de
Belm...
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E para segurana das suas traas trouxeram escondida a fada velha, que era a sua
formosa princesa moa...
E devia ter mesmo muita fora o condo, porque nem os navios se afundaram, nem os
frades de bordo desconfiaram, nem os prprios santos que vinham, no sentiram...
Nem admira, porque o condo das mouras encantadas sempre aplastou a alma dos
frades e no se importa com os santos do altar, porque esses so s imagens...
Assim bateram nas praias da gente pampiana os tais mouros e mais outros espanhis
renegados. E como eles eram, todos, de alma condenada, mal puseram p em terra, logo
na meia-noite da primeira sexta-feira foram visitados pelo mesmo Diabo deles, que
neste lado do mundo era chamado de Anhang-pit e mui respeitado. Ento, mouros e
renegados disseram ao que vinham; e Anhang-pit folgou muito; folgou, porque a
gente nativa daquelas campanhas e a destas serras era gente sem cobia de riquezas, que
s comia a caa, o peixe, a fruta e as razes que Tup despejava sem conta, para todos,
das suas mos sempre abertas e fazedoras.
Por isso Anhang-pit folgou, porque assim minava para o peito dos inocentes as
maldades encobertas que aqueles chegados traziam...; e pois, escutando o que eles
ambicionavam para vencer a Cruz com a fora do Crescente, o maldoso pegou do
condo mgico - que navegara em navio bento e entre frades rezadores e santos
milagrosos -, esfregou-o no suor do seu corpo e virou-o em pedra transparente; e
lanando o bafo queimante do seu peito sobre a farda moura, demudou-a em teiniagu,
sem cabea. E por cabea encravou ento no novo corpo da encantada a pedra, aquela,
que era o condo, aquele.
E como j era sobre a madrugada, no crescimento da primeira luz do dia, do sol
vermelho que ia querendo romper dos confins por sobre o mar, por isso a cabea de
pedra transparente ficou vermelha como brasa e to brilhante que olhos de gente vivente
no podiam parar nela, ficando encandeados, quase cegos!...
E desfez-se a companha at o dia da peleja da nova batalha. E chamaram - salamanca -
furna desse encontro; e o nome ficou pras furnas todas, em lembrana da cidade dos
mestres mgicos.
Levantou-se um ventarro de tormenta e Anhang-pit, trazendo num boc a teiniagu,
montou nele, de salto, e veio correndo sobre a correnteza do Uruguai, por lguas e
lguas, at as suas nascentes, entre serranias macotas.
Depois, desceu, sempre com ela; em sete noites de sexta-feira ensinou-lhe a
vaqueanagem de todas as furnas recamadas de tesouros escondidos... escondidos pelos
caulas, perdidos para os medrosos e achadios de valentes... E a mais desses, muitos
outros tesouros que a terra esconde e que s os olhos dos zaoris podem vispar...
Ento Anhang-pit, cansado; pegou num cochilo pesado, esperando o cardume das
desgraas novas, que deviam pegar pra sempre...
S no tomou tenncia que a teiniagu era mulher...
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Aqui est tudo o que eu sei, que a minha av charrua contava minha me, e que ela j
ouviu, como cousa velha, contar por outros, que, esses, viram!...
E Blau Nunes bateu o chapu para o alto da cabea, deu um safano no cinto,
aprumando o faco...; foi parando o gesto e ficou-se olhando, sem mira, para muito
longe, para onde a vista no chegava mas onde o sonho acordado que havia nos seus
olhos chegava de sobra e ainda passava...ainda passava, porque o sonho no tem
lindeiros nem tapumes...
Falou ento o vulto de face branca e tristonha; falou em voz macia. E disse assim:
certo: no tomou tenncia que a teiniagu era mulher... Ouve, paisano.
No costado da cidade onde eu vivia havia uma lagoa, larga e funda, com uma ilha de
palmital, no meio. Havia uma lagoa...
A minha cabea foi banhada na gua benta da pia, mas nela entraram soberbos
pensamentos maus... O meu peito foi ungido com os santos leos, mas nele entrou a
doura que tanto amarga, do pecado...
A minha boca provou do sal piedoso... e nela entrou a frescura que requeima, dos beijos
da tentadora...
Mas, que assim era o fado...; tempo e homem viro para me libertar, quebrando o
encantamento que me amarra; duzentos anos ho de findar; eu esperarei no entanto,
vivendo na minha tristeza seca, tristeza de arrependido que no chora...
Tudo o que volteia no ar tem seu dia de aquietar-se no cho...
Era eu que cuidava dos altares e ajudava a missa dos santos padres da igreja de S.
Tom, do lado ao poente do grande rio Uruguai. Sabia bem acender os crios, feitos com
a cera virgem das abelheiras da serra; e bem balanar o turbulo, fazendo ondear a
fumaa cheirosa do rito; e bem tocar a santos, na quina do altar, dois degraus abaixo,
direita do padre; e dizia as palavras do missal; e nos dias de festa sabia repicar o sino; e
bater as horas, e dobrar a finados... Eu era o sacristo.
Um dia, na hora do mormao, todo o povo estava nas sombras, sesteando; nem voz
grossa de homem, nem cantoria das moas, nem choro de crianas: tudo sesteava. O sol
faiscava nos pedregulhos lustrosos, e a luz parecia que tremia, peneirada no ar parado,
sem uma virao.
Foi nessa hora que eu sa da igreja, pela portinha da sacristia, levando no corpo a
frescura da sombra benta, levando na roupa o cheiro da fumaa piedosa. E sa sem
pensar em nada, nem de bem nem de mal; fui andando, como levado...
Todo o povo sesteava, por isso ningum viu.
A gua da lagoa borbulhava toda, numa fervura, ronquejando tal e qual como uma
marmita no borralho. Por certo que l embaixo, dentro da terra, que estaria o braseiro
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que levantava aquela fervura que cozinhava os juncos e as traras e pelava as pernas dos
socs e espantava todos os mais bichos barulhentos daquelas guas...
Eu vi, vi o milagre de ferver, toda uma lagoa..., ferver, sem fogo que se visse!
A mo direita, pelo Costume, andou para fazer o Pelo-Sinal... e parou, pesada como
chumbo; quis rezar um Credo, e a lembrana dele recuou; e voltar, correr e mostrar o
Santssimo... e tanger o sino em dobre... e chamar o padre superior, tudo para esconjurar
aquela obra do inferno... e nada fiz... nada fiz, sem fora na vontade, nada fiz... nada fiz,
sem governo no corpo!...
E fui andando, como levado, para de mais perto ver, e no perder de ver o espanto...
Porm logo outra fora acalmou tudo; apenas a gua fumegante continuou retorcendo os
lodos remexidos, onde boiava toda uma mortandade dos viventes que morrem sem
gritar.
Era o fim de um lanante comprido, estrada batida e limpa, de todos os dias as mulheres
irem para a lavagem; e quando eu estava na beira da gua, vendo o que estava vendo,
ento rompeu dela um claro, maior que o da luz a pino do dia, claro vermelho, como
dum sol morrente, e que luzia desde o fundo da lagoa e varava a gua barrenta...
E veio crescendo para a barranca, e saiu e tomou terra, e sem medo e sem ameaa veio
andando para mim a sempre escapada maravilha... maravilha que os que nunca viram
juravam sempre ser - verdade - e que eu, que estava vendo, ainda jurava ser - mentira! Era a teiniagu, de cabea de pedra luzente, por sem dvida; dela j tinha ouvido ao
padre superior a histria contada dum encontradio que quase cegou de teimar em
agarr-la.
Entrecerrei os olhos, coando a vista, cautelando o perigo; mas a teiniagu veio-se me
chegando, deixando no cho duro um rastro dgua que escorria e logo secava, do seu
corpinho verde de lagartixa engraada e buliosa...
Lembrei-me - como quem olha dentro duma cerrao -, lembrei-me do que corria na
voz da gente sobre o entanguimento que traspassa o nosso corpo na hora do
encantamento: como o azeite fino num couro ressequido...
Mas no perdi de todo a retentiva: pois que da gua saa, que na gua viveria. Ali
perto, entre os capins, vi uma guampa e foi o quanto agarrei dela e enchi-a na lagoa,
ainda escaldando, e frenteei a teiniagu que, da vereda que levava, entreparou-se,
tremente, firmando nas patinhas da frente, a cabeo cristalina, como curiosa, faiscando...
De olhos apertados, piscando, para no me atordoar dum golpe de cegueira, assentei no
cho a guampa e preparando o bote, num repente, entre susto e coragem, segurei a
teiniagu e meti-a para dentro dela!
Neste passo senti o corao como que martelar-me no peito e a cabea sonando como
um sino de catedral...
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Corri para o meu quarto, na casa-grande dos santos padres. Entrei pelo cemitrio, por
detrs da igreja, e desatinando, derrubei cruzes, pisoteei ramos, calquei sepulturas!...
Todo o povo sesteava; por isso ningum viu.
Fechei a guampa dentro da canastra e fiquei estatelado, pensando.
Pelo falar do padre superior em bem sabia que quem prendesse a teiniagu ficava sendo
o homem mais rico do mundo; mais rico que o Papa de Roma, e o imperador Carlos
Magno e o rei da Trebizonda e os Cavaleiros da Tbula...
Nos livros que eu lia estes todos eram os mais ricos que se conhecia.
E eu, agora!...
E no pensei mais dentro da minha cabea, no; era uma cousa nova e esquisita: eu via,
com os olhos, os pensamentos diante deles, como se fossem cousas que se pudesse
tantear com as mos...
E foram se escancarando portas de castelos e palcios, onde eu entrava e saa, subia e
descia escadarias largas, chegava s janelas, arredava reposteiros, deitava-me em camas
grandes, de ps torneados, esbarrava-me em trastes que nunca tinha visto e servia-me
em baixelas estranhas, que eu no sabia para o que prestavam...
E foram-se estendendo e alargando campos sem fim, perdendo o verde no azul das
distncias, e ainda lindando com outras estncias, que tambm eram minhas e todas
cheias de gadaria, rebanhos e manadas...
E logo cancheava erva nos meus ervais, cerrados e altos como mato virgem...
E atulhava de planta colhida - milho, feijo, mandioca - os meus pais.
E detrs das minhas camas, em todos os quartos dos meus palcios, amontoava surres
de ouro em p e pilhotes de barras de prata; dependuradas na galhao de cem cabeas
de cervos, tinha bolsas de couro e de veludo, atochadas de diamantes, brancos como
gotas dgua filtrada em pedra, que os meus escravos - sados mil, chegados dez -,
tinham ido catar nas profundas do serto, muito para l duma cachoeira grande, em
meia-lua, chamada de Iguau, muito pra l doutra cachoeira grande, de sete saltos,
chamada de Iguara...
Tudo isto eu media e pesava e contava, at cair de cansao; e mal que respirava um
descanso, de novamente, de novamente pegava a contar, a pesar, a medir...
Tudo isto eu podia ter - e tinha, de meu, tinha! -, porque era o dono de teiniagu, que
estava preso dentro da guampa, fechada na canastra forrada de couro cru, tauxiada de
cobre, dobradias de bronze!...
Aqui. ouvi o sino da torre badalando para a orao da meia-tarde...
Pela primeira vez no fui eu que toquei; seria um dos padres, na minha falta
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E foi se adelgaando
no silncio a cadncia embalante da fala induzidora...
A cruz do meu rosrio...
Fui passando as contas, apressado e atrevido, comeando na primeira... e quando tenteei
a ltima... e que entre as duas os meus dedos, formigando, deram com a Cruz do
Salvador... fui levantando o Crucificado... bem em frente da bruxa, em salvatrio... na
altura do seu corao... na altura da sua garganta... da sua boca... na altura dos...
E a parou, porque olhos de amor, to soberanos e cativos, em mil vidas de homem
outros se no viram!...
Parou... e a minha alma de cristo foi saindo de mim, como o sumo se aparta do bagao,
com o aroma sai da flor que vai apodrecendo...
Cada noite
era meu ninho o regao da moura; mas, quando batia a alva, ela desaparecia ante a
minha face cavada de olheiras...
E crivado de pecados mortais, no adjutrio da missa trocava os amm e todo me
estortegava e doa quando o padre lanava a bno sobre a gente ajoelhada, que rezava
para alvio dos seus pobres pecados, que nem pecados eram, comparados com os
meus...
Uma noite ela quis misturar o mel do seu sustento com o vinho do santo sacrifcio; e eu
fui, busquei no altar o copo de ouro consagrado, todo lavorado de palmas e
resplendores; e trouxe-o, transbordante, transbordando...
De boca para boca, por lbios incendiados o passamos...
E embebedados camos, abraados.
Sol nado, despertei;
estava cercado pelos santos padres.
Eu, descomposto; no cho o copo, entornado; sobre o oratrio, desdobrada, uma charpa
de seda, lavrada de bordaduras exticas, onde sobressaa uma meia-lua prendendo entre
as aspas uma estrela... E acharam na canastra a guampa e no porongo o mel... e at no ar
farejaram cheiro mulherengo... Nem tanto era preciso para ser logo jungido em
manilhas de ferro.
Afrontei o arrocho da tortura, entre ossos e carnes amachucadas e unhas e cabelos
repuxadas. Dentro das paredes do segredo no havia gritos nem palavras grossas; os
padres remordiam a minha alma, prometendo o inferno eterno e espremiam o meu
arquejo decifrando uma confisso...; mas a minha boca no falou... no falou por senha
firme da vontade, que no me palpitava confessar quem era ela e que era linda...
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E raivado entre dois amargos desesperos no atinava sair deles: se das riquezas, que eu
queria s pra mim, se do seu amor, que eu no queria que fosse seno meu, inteiro e
todo!
Mas por senha da vontade a boca no falou.
Fui sentenciado a morrer pela morte do garrote, que infame; condenado fui por ter
dado passo errado com bicho imundo, que era bicho e mulher moura, falsa, sedutora e
feiticeira.
No adro e no largo da igreja o povo ajoelhado batia nos peitos, clamando a morte do
meu corpo e a misericrdia para a minha alma.
O sino comeou dobrando a finados. Trouxeram-me em braos, entre alabardas e
lanas, e um cortejo moveu-se, compassando a gente darmas, os santos padres, o
carrasco e o povaru.
Dobrando a finados... dobrando a finados...
Era por mim.
E quando, sem mais esperana nos homens nem no socorro do cu, chorei uma lgrima
de adeus teiniagu encantada, dentro do meu sofrer floreteou uma rstia de saudade do
seu cativo e soberano amor..., como em rocha dura serpenteia s vezes um fio de ouro
alastrado e firme, como uma raiz que no quer morrer!...
E aquela saudade parece que saiu para fora do meu peito, subiu aos olhos feita em
lgrima e ponteou para algum rumo, ao encontro doutra saudade rastreada sem
engano...; parece, porque nesse momento um ventarro estourou sobre as guas da lagoa
e a terra tremeu, sacudida, tanto, de as rvores desprenderem os seus frutos, de os
animais estanquearem-se, medrosos, e de os homens carem de ccras, agentando as
armas, outros, de bruos, tateando o cho...
E nas correntezas sem corpo, da ventania, redemoinhavam em chusma vozes guaranis,
esbravejando se soltasse o padecente...
Para trs do cortejo, desfiando o som entre as poeiras grossas e folhas secas levantadas,
continuava o sino dobrando a finados... dobrando a finados!...
Os santos padres, pasmados mas sisudos, rezavam encomendando a minha alma: em
roda, boquejando, chinas, pis, ndios velhos, soldados de couraa e lana, e o alcaide,
vestido de samarra amarela com dois lees vermelhos e a coroa del-rei brilhando em
canutilho de ouro...
A lgrima do adeus ficou suspensa, como uma cortina que embacia o claro ver: e o
palmital da lagoa, o boleado das coxilhas, o recorte da serra, tudo isto, que era grande e
sozinho cada um enchia e sobrava para os olhos limpos dum homem, tudo isso eu
enxergava junto, empastalhado e pouco, espelhando-se na lgrima suspensa, que se
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encrespava e adelgaava, fazendo franjas entre as pestanas balanantes dos meus olhos
de condenado sem perdo...
A menos de braa, estava o carrasco atento no garrote!
Mas os olhos do meu pensamento, altanados e livres, esses, esses viam o corpo bonito,
lindo, belo da princesa moura, e recreavam-se na luz cegante da cabea encantada da
teiniagu, onde reinavam os olhos dela, olhos de amor, to soberanos e cativos como em
mil vidas de homem outros se no viram!...
E por certo por essa fora que nos ligava sem ser vista, como naquele dia em que o povo
sesteava e tambm nada viu.., por fora dessa fora, quanto mais os padres e alguazis
ordenavam que eu morresse, mais pelo meu livramento forcejava o irado peito da
encantada, no sei se de amor perdida pelo homem, se de orgulho perverso do perjuro,
se da esperana de um dia ser humana...
O fogo dos borralhos foi-se alteando em labaredas e saindo pela quincha dos ranchos,
sem queim-los...; as crianas de peito soltaram palavras feitas, como gente grande...; e
bandadas de urubus apareceram e comearam a contradanar to baixo, que se lhes
ouvia o esfregar das penas contra o vento..., a contradanar, afiados para uma carnia
que ainda no havia porm que havia de haver...
Mas os santos padres alinharam-se na sombra do Santssimo e borrifaram de gua benta
o povo amedrontado; e seguiram, como num propsito, encomendando a minha alma; o
alcaide levantou o pendo real e o carrasco varejou-me sobre o garrote, infmia de
minha morte, por ter tido amores com mulher moura, falsa, sedutora e feiticeira...
Rolou, ento, sobre o vento e nele foi a lgrima do adeus, que a saudade destilara.
Deu logo a lagoa um ronco bruto, nunca ouvido, to dilatado e monstruoso...: e rasgouse cerce em um sango medonho, entre largo e fundo... e l no abismo, na caixa por
onde ia j correndo, em borboto, a gua lamenta sujando as barrancas novas, l, eu vi e
todos viram a teiniagu de cabea de pedra transparente, fogachando luminosa como
nunca, a teiniagu correr, estrombando os barrocais, at rasgar, romper, arruir a boca do
sango na alta barranca do Uruguai, onde a correnteza em marcha despencou-se,
espadanando em espumarada escura, como caudal de chuvas tormentosas!
A gente levantou pro cu um vozear de lstimas e choros e gemidos.
- Que a Misso de S. Tom ia perecer... e desabar a igreja... a terra expulsar os mortos
do cemitrio... que as crianas inocentes iam perder a graa do batismo... e as mes
secar o leite... e as roas o plantio, os homens a coragem...
Depois um grande silncio balanou no ar, como esperando...
Mas um milagre se fez: o Santssimo, de si prprio perpassou a altura das cousas, e l
em cima, cortou no ar turvado a Cruz Bendita!... O padre superior tremeu como em
ter e tartamudo e trpego marchou para o povoado: os aclitos seguiram, e o alcaide,
os soldados, o carrasco e a indiada toda desandou, como em procisso, emparvados,
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num assombro, e sem ter mais do que tremer, porque ventos, urubus e estrondos se
humilharam, fenecendo, dominados!...
Fiquei sozinho, abandonado, e no mesmo lugar e mesmo ferros posto.
Fiquei sozinho, ouvindo com os ouvidos da minha cabea as ladainhas que iam
minguando, em retirada... mas tambm ouvindo com os ouvidos do pensamento o
chamado carinhoso da teiniagu; os olhos do meu rosto viam a consolao da graa de
Maria Purssima que se alonjava... mas os olhos do pensamento viam a tentao do riso
mimoso da teiniagu; o nariz do meu rosto tomava o faro do incenso que fugia, ardendo
e perfumando as santidades... mas o faro do pensamento sorvia a essncia das flores do
mel fino de que a teiniagu tanto gostava; a lngua da minha boca estava seca, de
agonia, dura, de terror, amarga, de doena... mas a lngua do pensamento saboreava os
beijos da teiniagu, doces e macios, frescos e sumarentos como polpa de guabiju
colhido ao nascer do sol; o tato das minhas mos tocava manilhas de ferro, que me
prendiam por braos e pernas... mas o tato do pensamento roava sfrego pelo corpo da
encantada, torneado e rijo, que se encolhia em nsias, arrepiado como um lombo de
jaguar no cio, que se estendia planchado como um corpo de cascavel em fria...
E tanto como o povo ia entrando na cidade, ia eu chegando barranca do Uruguai; tanto
como as gentes, l, iam acabando as oraes para alcanar a clemncia divina, ia eu
comeando o meu fadrio, todo dado teiniagu, que me enfeitiou de amor, pelo seu
amor de princesa moura, pelo seu amor de mulher, que vale mais que destino de
homem!...
Sem peso de dores nos ossos e nas carnes, sem peso de ferros no corpo, sem peso de
remorsos na alma passei o rio para o lado do Nascente. A teiniagu fechou os tesouros
da outra banda e juntos fizemos ento o caminho para o Cerro do Jarau, que ficou sendo
o paiol das riquezas de todas as salamancas dos outros lugares.
Para memria do dia to espantoso l, ficou o sango rasgado na baixada da cidade de
Santo Tom, desde o tempo antigo das Misses.
Faz duzentos anos que aqui estou; aprendi sabedorias rabes e tenho tornado contentes
alguns raros homens que bem sabem que a alma um peso entre o mandar e o ser
mandado...
Nunca mais dormi; nunca mais nem fome, nem sede, nem dor, nem riso...
Passeio no palcio maravilhoso, dentro deste Cerro do Jarau, ando sem parar e sem
cansao; piso com ps vagarosos, piso torres de ouro em p, que se desfazem como
terra fofa; o areo dos jardins, que calco, enjoado, todo feito de pedras verdes e
amarelas e escarlates, azuis, rosadas, violetas.., e quando a encantada passa todas
incendeiam-se num ris de cores rebrilhantes, como se cada uma fosse uma brasa viva
faiscando sem a mais leve cinza...; h poos largos que esto atulhados de dobles e de
onas e peas de jias e armaduras, tudo ouro macio do Peru e do Mxico e das Minas
Gerais, tudo cunhado com os trofus dos senhores reis de Portugal e de Castela e
Arago...
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E eu olho para tudo, enfarado de ter tanto e de no poder gozar nada entre os homens,
como quando era como eles e como eles gemia necessidades e cuspia invejas, tendo
horas de bom corao por dias de maldade e sempre aborrecimento do que possua,
ambicionando o que no possua...
O encantamento que me aprisiona consente que eu acompanhe os homens de alma forte
e corao sereno que quiserem contratar a sorte nesta salamanca que eu tornei famosa,
do Jarau.
Muitos tm vindo.., e tm sado piorados, para l longe irem morrer do medo aqui
pegado, ou andarem pelos povoados assustando as gentes, loucos, ou pelos campos
fazendo vida com os bichos brutos...
Poucos toparam a parada... ah!... mas esses que toparam, tiveram o que pediram, que a
rosa dos tesouros, a moura encantada no desmente o que eu prometo, nem retoma o
que d!
E todos os que chegam deixam um resgate de si prprios para o nosso livramento um
dia..
Mas todos os que vieram so altaneiros e vieram arrastados pela nsia da cobia ou dos
vcios, ou dos dios: tu foste o nico que veio sem pensar e o nico que me saudou
como filho de Deus...
Foste o primeiro, at agora; quando terceira saudao de cristo bafejar estas alturas, o
encantamento cessar, porque eu estou arrependido... e como Pedro Apstolo que trs
vezes negou Cristo foi perdoado, eu estou arrependido e serei perdoado.
Est escrito que a salvao h de vir assim; e por bem de mim, quando cessar o meu
cessar tambm o encantamento teiniagu: e quando isso se der a salamanca
desaparecer, e. todas as riquezas, todas as pedras finas, todas as peas cunhadas, todos
os sortilgios, todos os filtros para amar por fora... para matar... para vencer.., tudo,
tudo, tudo se virar em fumaa que h de sair pelo cabeo roto do cerro, espalhada na
rosa dos ventos pela rosa dos tesouros...
Tu me saudaste - o primeiro tu! - saudaste-me como cristo.
Pois bem:
alma forte e corao sereno!... Quem isso tem, entra na salamanca, toca o condo
mgico e escolhe do quando quer...
Alma forte e corao sereno! A fuma escura est l: entra! Entra! L dentro sopra um
vento quente que apaga qualquer torcida de candeia... e tramado nele corre outro vento
frio, frio.., que corta como serrilha de geada.
No h ningum l dentro... mas bem que se escuta voz de gente, vozes que falam...
falam, mas no se entende o que dizem, porque so lnguas atoradas que falam, so os
escravos da princesa moura, os espritos da teiniagu... No h ningum... no se v
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ningum: mas h mos que batem, como convidando, no ombro do que entra firme, e
que empurram, como ainda ameaando, o que recua com medo...
Alma forte e corao sereno! Se entrares assim, se te portares l dentro assim, podes
ento querer e sers servido!
Mas, governa o pensamento e segura a lngua: o pensamento dos homens que os
levanta acima do mundo, e a sua lngua que os amesquinha...
Alma forte, corao sereno!... Vai!
Blau, o guasca,
apeou-se; mancou o flete e por de seguro ainda pelo cabresto prendeu-o a um galho de
cambuim que verga sem quebrar-se; rodou as esporas para o peito do p; aprumou de
bom jeito o faco; santiguou-se, e seguiu...
Calado fez; calado entrou.
O sacristo levantou-se e o seu corpo desfez-se em sombra na sombra da reboleira.
O silncio que ento se desdobrou era como o vo parado das corujas: metia medo..
Blau Nunes foi andando.
Entrou na boca da toca apenas a clareada e isso pouco, por causa da enredia da
ramaria que se cruzava nela; pra o fundo era tudo escuro...
Andou mais, num corredor dumas braas; mais, ainda; sete corredores nasciam deste.
Blau Nunes foi andando.
Enveredou por um deles; fez voltas e contravoltas, subiu, desceu. Sempre escuro.
Sempre silncio.
Mos de gente, sem gente que ele visse, batiam-lhe no ombro.
Numa cruzada de carreiros sentiu rudo de ferros que se chocavam, tinir de muitas
espadas, seu conhecido.
Por ento o escuro ia j mudando num luzir de vagalume.
Grupos de sombras com feitio de homens peleavam de morte; nem pragas nem fuzilar
dolhos raivosos, porm furiosos eram os golpes que elas iam talhando umas nas outras,
no silncio.
Blau teve um relance de parada, mas atentou logo no dizer do vulto de face branca e
tristonha - Alma forte, corao sereno...
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E meteu o peito por entre o espinheiro das espadas, sentiu o corte delas, o fino das
pontas, o redondo dos corpos... mas passou, sem nem olhar aos lados, num entono,
escutando porm choros e gemidos dos peleadores.
Mos mais leves bateram-lhe no ombro, como carinhosas e satisfeitas.
Outro mais rudo nenhum ouvia ele no ar quieto da furna que o rangido dos cabrestilhos
das suas esporas.
Blau Nunes foi andando.
Andando numa luz macia, que no dava sombra. Enredada como os caminhos dum
cupim era a furna, dando corredores sem conta, a todos os rumos; e ao desembocar do
em que vinha, Justo num cotovelo dele, saltaram-lhe aos quatro lados jaguares e pumas,
de goela aberta e bafo quente, patas levantadas mostrando as unhas, a cola mosqueando
numa fria...
E ele meteu o peito e passou, sentindo a cerda dura das feras roarem-lhe o corpo;
passou sem pressa nem vagar, escutando os urros que pra trs iam ficando e morrendo
sem eco...
As mos, de braos que ele no via, em corpos que no sentia, mas que, certo, o
ladeavam, as mos iam-lhe sempre afagando os ombros, sem bem o empurrar, mas
atirando-o para adiante... adiante...
A luz ia na mesma, cor da de vaga-lume, esverdeada e amarela...
Blau Nunes foi andando.
Agora era um lanante e ao fim dele parou num redondel topetado de ossamentas de
criaturas. Esqueletos, de p, encostados uns nos outros, muitos, derreados, como numa
preguia; pelo cho cadas, partes deles, despencadas; caveiras soltas, dentes
branqueando, tampos de cabeas, buracos de olhos; pernas e p em passo de dana,
alcatras e costelas meneando-se num vagar compassado, outras em saracoteio...
A o seu brao direito quase moveu-se acima, como para fazer o sinal da cruz;... porm alma forte, corao sereno!
- meteu o peito e passou entre as ossadas, sentindo o bafio que elas soltavam das suas
juntas bolorentas.
As mos, aquelas, sempre brandas, afagavam-lhe outra vez os ombros...
Blau Nunes foi andando.
O cho ia alteando-se, numa trepada forte que ele venceu sem aumentar a respirao; e
num desvo, a modo dum forno, teve de passar por uma como porta dele, e a dentro era
um jogo de lnguas de fogo, vermelho e forte, como atiado com lenha de nhanduvai; e
repuxos dgua, sados das paredes, batiam nele e referviam, chiando, fazendo vapor;
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um ventarro rondava ali dentro, enovelando guas e fogos, que era uma temeridade
cortar aquele turbilho...
Outra vez ele meteu o peito e passou, sentindo o mormao das labaredas.
As mos do ar mais o palmeavam nos ombros, como querendo dizer - muito bem! Blau Nunes foi andando.
J tinha perdido a conta do tempo e do rumo que trazia; sentia no silncio como que um
peso de arrobas; a claridade mortia, porem, j se lhe assentara nos olhos e tanto, que
viu adiante, em sua frente e caminho, um corpo enroscado, sarapintado e grosso,
batendo no cho uns chocalhos, grandes como ovos de tu-tu.
Era a boicininga, guarda desta passagem, que levantava a cabea flechosa, lanceando o
ar com a lngua de cabelos preta, firmando no vivente a escama dos olhos, luzindo,
preto, como botes de veludo...
Das duas presas recurvas, grandes como as aspas dum tourito de sobreano, pingava uma
goma escura, que era a peonha sobrante por um muito jejum de mortandade, l fora...
A boicininga - a cascavel amaldioada - toda se meneava, chocalhando os guizos, como
por aviso, fueirando o ar com a lngua, como por prova...
Uma serenada de suor minou na testa do paisano... porm ele meteu o peito e passou,
vendo, sem olhar, a boicininga altear-se e descair, chata e tremente... e passou, ouvindo
o chocalho da que no perdoa, o silbido da que no esquece...
E logo ento, que era este o quinto passo da valentia que vencera sem temer - de alma
forte e corao sereno - logo ento as mos voantes anediaram-lhe o cabelo, palmearamlhe mais chegadas os ombros.
Blau Nunes foi andando.
Desembocou num campestre, de gramado fofo, que tinha um cheiro doce que ele no
conhecia; em toda a volta rvores enfloradas e estadeando frutos; veadinhos mansos;
capororocas e outro muito bicharedo, que recreava os olhos; e listando a meio o
campestre, brotado duma roca coberta de samambaias, um olho-dgua, que saa em
toalha e logo corria em riachinho, pipocando o quanto-quanto sobre areo solto,
palhetado de malacachetas brancas, como uma farinha de prata...
E logo uma ronda de moas - cada qual que mais cativa! - uma ronda alegre saiu dentre
o arvoredo, a cerc-lo, a seduzi-lo, a ele Blau, gacho pobre, que s mulheres de
anguas resvalonas conhecia...
Vestiam-se umas em frouxo tranado de flores, outras de fios de contas, outras na
prpria cabeleira solta...; estas chegavam-lhe boca caramujos estrambticos, cheios de
bebida recendente e fumegando entre vidros frios, como de geada; danavam outras
num requebro marcado como por msica... outras l acenavam-lhe para a lindeza dos
seus corpos, atirando no cho esteiras macias, num convite aberto e ardiloso...
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Porm ele meteu o peito e passou, com as fontes golpeando, por motivo do ar malicioso
que o seu bofe respirava...
Blau Nunes foi andando.
Entrou no arvoredo e foi logo rodeado por uma tropa de anes, cambaios e cabeudos,
cada qual melhor para galhofa, e todos em piruetas e mesuras, fandangueiros e
volantins, pulando como aranhes, armando lutas, fazendo caretas impossveis para
rostos de gente...
Porm o paisano meteu o peito neles e passou, sem nem sequer um ar de riso no canto
dos olhos...
E com este, que era o ltimo, contou os sete passos das provas.
E logo ento, aqui, surdiu-lhe em frente o vulto de face tristonha e branca; que, certo,
lhe andara nas pisadas, de companheiro - sem corpo - e sem nunca lhe valer nos apuros
do caminho; e tomou-lhe a mo.
E Blau Nunes foi seguindo.
Por detrs de um cortinado como de escamas de peixe-dourado, havia um socavo
reluzente. E sentada numa banqueta transparente, fogueando cores como as do arco-ris,
estava numa velha, muito velha, carquincha e curvada, e como tremendo de caduca.
E segurava nas mos uma varinha branca, que ela revirava e tangia, e atava em ns que
se desfaziam, laadas que se deslaavam e torcidas que se destorciam, ficando sempre
linheira.
- Cunh, disse o vulto, o paisano quer!
- Tu, vieste; tu, chegaste; pede, tu, pois! respondeu a velha.
E moveu e ergueu o corpo magro, dando estalos nas juntas e levantou a varinha para o
ar: logo o condo coriscou por sobre ela uma chuva de raios, mais que como num
temporal desfeito das nuvens carregadas cairia. E disse:
- Por sete provas que passaste, sete escolhas dar-te-ei... Paisano, escolhe! Para ganhar a
parada em qualquer jogo;... de naipes, que as mos ajeitam, de dados, que a sorte revira,
de cavalos, que se cotejam, do osso, que se sopesa, da rifa... queres?
- No! disse Blau, e todo o seu parecer foi se mudando num semblante como de
sonmbulo, que v o que os outros no vem.., como os gatos, que acompanham com os
olhos cousas que passam no ar e ningum v...
- Para tocar a viola e cantar... amarrando nas cordas dela o corao das mulheres que te
escutarem..., e que ho de sonhar contigo, e ao teu chamado iro - obedientes, como
aves varadas pelo olhar das cobras -, deitar-se entregues ao dispor dos teus beijos, ao
apartar dos teus braos, ao resfolegar dos teus desejos... queres?
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Chegou ao posto, e como homem avisado, no falou do que fizera durante o dia, apenas
do boi barroso, que campeou e no achou: e no dia seguinte, logo cedo saiu a empear a
prova do prometido.
Naquele mesmo negociante ajustou umas roupas tafulonas; e mais uma adaga de cabo e
bainha com anis de prata; e mais as esporas e um rebenque de argolo.
Toda a compra passava de trs onas.
E Blau, as fontes latejando, a boca cerrada, num aperto que lhe fazia doer o carrinho,
piscando os olhos, a respirao atropelada, todo ele numa desconfiana, Blau, por
debaixo do seu balandrau remendado comeou a gargantear a guaiaca... e caiu-lhe na
mo uma ona... e outra... e outra... e outra!... As quatro, que por agora eram to de
jeito!...
Mas no caram duas e duas ou trs e uma, ou as quatro, juntas, porm sim de uma a
uma, as quatro, de cada vez s uma...
Voltou ao rancho com a maleta atochada, mas, como homem avisado, no falou do
acontecido.
No outro dia seguiu a outro rumo, para outro negociante mais forte e de prateleiras mais
variadas. J levava alinhavado o sortimento que ia fazer, e muito em ordem foi
encomendando o aparte das cousas, tendo cuidado em no querer nada de cortar, s
peas inteiras, que era para, no caso de falhar a ona, recuar da compra, fazendo um
feio, verdade, mas no sendo obrigado a pagar estrago algum. Notou a conta, que
andava por quinze onas, uns cruzados pra menos.
E outra vez, por debaixo do seu balandrau remendado, comeou a gargantear a guaiaca,
e logo lhe foi caindo na mo uma ona... e segunda... outra... e quarta, mais outra, e
sexta... e assim de uma em uma, as quinze necessrias!
O negociante ia recebendo e alinhando sobre o balco as moedas conforme vinham elas
minando da mo do pagador, e quando estavam todas disse, entre risonho e
desconfiado:
- Cu-pucha!... cada ona das suas parece que um pinho, que preciso descascar
unha!...
No terceiro dia passou na estrada uma cavalhada; Blau fez parar a tropa e ajustou uma
quadrilha, apartada por ele, sua vontade, e como facilitou o preo, fechou-se o trato.
Ele e o capataz, ss no meio da cavalhada, iam fazendo mover-se os animais; no
apinhado de todas Blau marcava a cabea que mais lhe agradava pelo focinho, pelos
olhos, pelas orelhas; com um sovu fino, de armada pequena, reboleava por dentro e ia,
certo, laar o bagual escolhido; se ainda, sem ovas e bons cascos, aprazia-lhe, tirava-o
ento, como seu, para o potreiro do piquete.
Olho de campeiro, no errou vez alguma a escolha, e trinta cavalos, a flor, foram
apartados, custando quarenta e cinco onas.
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E enquanto a tropa verdeava e bebia, os tratistas foram para a sombra duma figueira que
havia na beira da estrada.
Blau por debaixo do seu balandrau remendado, ainda desconfiando, comeou a
gargantear a guaiaca... e foi logo aparando, ona por ona, uma, trs, seis, dez, dezoito,
vinte e cinco, quarenta, quarenta e cinco!...
O vendedor, estranhando aquela novidade e demora, no se conteve e disse:
- Amigo! As suas onas parecem talas de jeriv, que s cai uma de cada vez!...
Depois desses trs dias de prova Blau acreditou na ona encantada.
Arrendou um campo e comprou o gado, pra mais de dez mil cabeas, aquerenciado.
O negcio era muito acima de trs mil onas, a pagar o recebimento.
A o coitado perdeu quase o dia inteiro a gargantear a guaiaca e a aparar ona por ona,
uma atrs da outra, sempre uma a uma!...
Cansou-lhe o brao; cansou-lhe o corpo; no falhava golpe, mas tinha de ser como
martelada, que no. se d duas ao mesmo tempo...
O vendedor, espera que Blau completasse a soma, saiu, mateou, sesteou; e quando,
sobre a tarde, voltou ramada, l estava ele ainda aparando ona, trs ona!...
Ao escurecer estava completo o ajuste.
Comeou a correr a fama da sua fortuna. E todos espantavam-se, por ele, gacho
despilchado de ontem, pobre, que s tinha de seu as chilcas; afrontar os abonados,
assim, do p para a mo... E tambm era falado o seu esquisito modo de pagar - que
pegava sempre, valha a verdade -s de ona por ona, uma depois de outra e nunca,
nunca ao menos duas, acolheradas!...
Aparecia gente a propor-lhe negcio, ainda de pouco preo, s para ver como aquilo
era; e para todos era o mesmo mistrio...
Mistrio para o prprio Blau... muito rico... muito rico... mas de ona em ona, como
tala de jeriv, que s cai uma de cada vez... como pinho da serra, que s se descasca de
um a um!...
Mistrio para Blau, muito rico... muito rico... Mas todo o dinheiro que ele recebia, que
entrava das vendas feitas, todo o dinheiro que lhe pagavam a ele, todo desaparecia,
guardado na arca de ferro, desaparecia como desfeito em ar...
Muito rico... muito rico das onas que precisasse, e nunca faltaram para gastar no que
lhe parecesse: bastava-lhe gargantear a guaiaca, e elas comeavam a pingar;... mas nem
uma das que recebia lhe ficava, todas evaporavam-se, como gua em tijolo quente...
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Ento comeou a correr um boquejo de ouvido para ouvido... e era que ele tinha parte
com o diabo, e que o dinheiro dele era maldito porque todos com quem tratava e
recebiam das suas onas, todos entravam, ao depois, a fazer maus negcios e todos
perdiam em prejuzos exatamente a quantia igual de suas mos recebida.
Ele comprava e pagava vista, certo; o vendedor contava e recebia, certo... mas o
negcio empreendido com esse valor era de prejuzo garantido.
Ele vendia e recebia, certo; mas o valor recebido, que ele guardava e rondava, sumiase como um vento, e no era roubado nem perdido; era sumido, por si mesmo...
O boquejar foi alastrando, e j diziam que aquilo, por certo, era mandinga arrumada na
salamanca do Jarau, onde ele foi visto mais de uma feita... e que l que se jogava a
alma contra a sorte...
E os mais vivarachos j faziam suas madrugadas sobre o Jarau; outros, mais sorros, pra
l tocavam-se ao escurecer, outros, atrevidaos, iam meia-noite, outros ainda ao
primeiro cantar dos galos...
E como nesse carreiro de precatados cada um fazia por ir de mais escondido, sucedeu
que como sombras se pechavam entre as sombras das reboleiras, sem atinar coa
salamanca, ou sem topete para, na escurido, quebrar aquele silncio, chamando o
santo, num grito alto...
No entanto Blau comeou a ser tratado de longe, como um chimarro rabioso...
J no tinha com quem pautear; churrasqueava solito, e solito mateava, rodeado dos
cachorros, que uivavam, s vezes um, s vezes todos...
A peonada foi saindo e conchavando-se noutras partes; os negociantes nada
compravam-lhe e negaceavam para vender-lhe; os andantes cortavam campo para no
pararem nos seus galpes...
Blau deu em cismar, e cisma foi que resolveu acabar com aquele cerco de isolamento,
que o ralava e esmorecia...
Montou a cavalo e foi ao cerro. Na trepada sentiu aos dois lados barulho nos bamburrais
e nas restingas, mas pensou que seria alguma ponta de gado xucro que disparava, e no
fez caso; foi trepando. Mas no era, no, gado xucro espantado, nem guaraxaim corrido,
nem tatu vadio; era gente, gente que se escondia uns dos outros e dele...
Assim chegou reboleira do mato, to sua conhecida e recordada, e como chegou, deu
de cara com o vulto de face branca e tristonha, o sacristo encantado, o santo.
Ainda desta vez, como era ele que chegava, a ele competia louvar; saudou, como da
outra:
- Lau Sus-Cris!...
- Para sempre, amm! respondeu o vulto.
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do cerro, com o corao aliviado e retinindo como se dentro dele cantasse o passarinho
verde...
E agora, estava certo de que era pobre como dantes, porm que comeria em paz o seu
churrasco...; e em paz o seu chimarro, em paz a sua sesta, em paz a sua vida!...
Assim acabou a salamanca do Cerro do Sarau, que a durou duzentos anos, que tantos se
contam desde o tempo das Sete Misses, em que estas cousas principiaram.
Anhang-pit, tambm, desde a, no foi mais visto. Dizem que, desgostoso, anda
escondido, por no haver tomado bem tenncia que a teiniagu era mulher...
ELUCIDAO
I - Cerro do Jarau - Na Coxilha Geral de Santana, sobro a linha divisria com a
Repblica do Uruguai.
Fica um pouco ao N. da cidade de Quara, em campos da famlia Assuno, do Pelotas.
o ponto culminante (... metros) daquela zona, sendo avistado de muito longo. No fim
da guerra dos Farrapos (1845) notaram-se sobre o espigo do Cerro, e perecendo dele
sair, grossos rolos de fumaa. essa a primeira notcia que h do fenmeno.
Outras combustes registraram-se depois, notadamente por 1904, em que se disso
mesmo que havia expulso de vapores gneos
IV - Boi Barroso - a vaga relembrana dum boi encantado, que aparecia porm nunca
era encontrado por muito procurado que fosse; e tambm denominao duma antiga
dana camponesa, cuja msica era ornada de versos que eram cantados durante o
folguedo.
VI - Teiniagu - Idem: lagartixa. A teiniagu encantada tambm era chamada cerbnculo, farol - e trazia engestada na cabea uma pedra preciosa que cintilava como
brasa e de cor de rubim...
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Semelhante animal nunca puderam apanhar nem vivo nem morto, porque por suas
irradiaes desvia os olhos e mos dos perseguidores. (Rev C. Teschauer, S. J. na
Rev. do Inst do Cear, 1911).
VII - Zaoris - V. adiante a lenda referente.
X - ... tangido pelo Destino - caracterstico este trao no indivduo rio-grandense, que
at por hbito domstico emprega como vulgares as expresses - sorte, destino, fado -.
Na gente inculta torna-se curiosa a indistinta venerao prestada ao divino e ao
diablico, como foras superiores que atuam sobre os homens.
XI - ... a durou duzentos anos, etc. - Coincide coma lamentao do sacristo encantado
a era do perodo mais calmo das Misses sobre o Rio Uruguai, 1650, em que formou-se
a lenda.