O Espaço Modo de Usar Georges Perec - Artigo PDF
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GEORGES PEREC
Claudia Amigo PINO1
RESUMO: Este artigo tem como objetivo discutir o papel do espao no romance
contemporneo, especialmente no romance do escritor francs Georges Perec
(1936-1982). Escolhemos um espao particular para essa anlise: a pgina. Para
isso, usamos primeiro as teorias de Bachelard, Bakhtin e do prprio Perec e depois
apresentamos uma anlise de dois tipos de pginas propostas por Perec no livro
La vie mode demploi (1978).
Em sua Esttica da criao verbal, Mikhail Bakhtin (1997) pra a sua histria
do romance no romance de formao, centrado na mudana da personagem.
Seria um tipo de narrativa que privilegiaria a noo de tempo: a personagem
poderia estar reclusa em um quarto, poderia no sair do seu colgio, mas
ela teria que mudar. Segundo Bakhtin, o romance antigo seria justamente o
contrrio: as personagens no mudariam e o espao necessariamente teria que
mudar.
O heri, carente de traos particulares, um ponto mvel no espao e no constitui, por
si s, o centro de ateno do romancista. Os deslocamentos no espao as viagens e,
em parte, as aventuras e peripcias (de preferncia de um tipo que pe prova o heri)
possibilitam ao romancista mostrar e evidenciar a diversidade esttica do mundo atravs
do espao e da sociedade (pases, cidades, etnias, grupos sociais, condies especficas
de vida). (BAKHTIN, 1997, p.223).
1
USP Universidade de So Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas Departamento de Letras
Modernas. So Paulo SP Brasil. 05508-000 hadazul@usp.br
Os espaos de Perec
Por que voltar a se perguntar pelos espaos? O prprio Perec (2000)2, no
seu livro Espces despaces, esboa algumas explicaes:
Le problme nest pas dinventer lespace, encore moins de le r-inventer (trop de gens bien intentionns
sont l aujourdhui pour penser notre environnement), mais de linterroger ou, plus encore, de le lire;
car ce que nous appelons quotidiennet nest pas vidence, mais opacit: une forme de ccit, une manire
danesthsie.
Ou seja, para Perec, a pergunta pelo espao est ligada ao fato de que somos
cegos em relao quilo que nos constitui, a cotidianidade. Mas eu acrescentaria
uma outra justificativa: necessrio ver a nossa cotidianidade, porque ela est
escapando das nossas mos. Devemos olhar para esse espao porque corremos
o perigo de perd-lo.
Isso me lembra outro autor preocupado tambm em entender o espao:
Gaston Bachelard (2004). Em sua Potique de lespace, ele prope estudar os espaos
na poesia como imagens do sistema psquico. Mas em que espaos ele se detm?
Especialmente naqueles que de alguma forma hoje perderam o seu valor de uso:
o poro, o sto (se algum de vocs vive em uma casa com sto e poro, duvido
que os usos sejam os mesmos), as caixas (hoje no precisamos mais guardar cartas,
nem fotografias, por causa do formato digital), os cantos (todos conhecemos o
cultivo de hoje pelas formas arredondadas!, que eliminam os cantos).
2
Trata-se de um encarte avulso da edio.
Poderia falar de muitos espaos que Perec aborda em sua obra. Por exemplo,
poderia me deter no quarto de empregada (chambre de bonne), no qual se centra o
livro Un homme qui dort (PEREC, 1967). Ou poderia me concentrar no minsculo
apartamento de Sylvie et Jerme em Les choses (PEREC, 1965). Ou, finalmente,
o prdio que um universo de La vie mode demploi (PEREC, 1978). Mas eu vou
me concentrar em um outro espao, um espao que por um lado no est nas
narrativas, mas que por outro lado sustenta todas as narrativas: o espao da
pgina.
cada um dos eixos, ele disps uma categoria narrativa (personagens, posio,
espao, citaes, mveis, estilo, nmero de pginas, etc.), com dez elementos
cada uma (por exemplo, posio: subindo, descendo, sentado, de joelhos, etc.).
Assim para cada casa-cmodo, o escritor obtinha dois elementos narrativos por
tabuleiro. Dessa forma, Perec conseguia chegar a listas de 42 elementos que ele
devia incluir em cada captulo, ou seja, em cada cmodo ou em cada romance
do livro3.
As pginas manuscritas dos cadernos desse livro so basicamente listas. No
poderamos pensar em uma pgina que tivesse mais margens que uma lista. O
texto constitudo por uma palavra: todo o resto da pgina feito de espaos em
branco, descontinuidades. De fato, Perec como leitor dele mesmo usa bastante
essas margens em outros captulos.
3
Esta uma descrio bastante resumida dos procedimentos de criao deste livro. Os procedimentos combinatrios
so bem mais complexos: para descrev-los seria necessrio um artigo inteiro. Remeto s explicaes de Hartje,
Magn e Neefs, em Cahier de charges de la vie mode demploi (PEREC, 1993a).
A primeira: o quebra-cabea
Uma das histrias mais importantes do livro refere-se a Bartlebooth, um
americano milionrio que se dedicava a armar quebra-cabeas. E a lgica do
sistema de criao tambm se assemelha lgica dos quebra cabeas: podemos
pensar que os elementos listados na pgina so peas de um jogo, que basta ser
montado para termos uma narrativa. Mesmo se, como veremos, a criao toma
um caminho diferente, o prprio autor tem a impresso de ter ali um ready-made,
um romance j pronto. Vocs devem pensar que de qualquer forma ele deve
inventar uma histria que enlace esses elementos, porm o quesito citaes
permite (ou obriga a) incorporar uma srie de histrias alheias. Ali est o texto,
o autor s tem o papel de arm-lo. De certa forma, a idia de que algum arma
um texto a partir de algumas peas j prontas existe, mas no exatamente o
autor, o leitor. O leitor novamente toma o lugar do criador. interessante
lembrar que, fora do manuscrito, no prprio romance, Bartlebooth, o armador
de quebra-cabeas, o protagonista. O arteso, fazedor de quebra-cabeas, que
corresponderia ao papel do escritor, no est ausente do texto, tambm uma
personagem, mas j morreu h algum tempo e seu apartamento est cheio de
p.
A segunda: o poema
Observemos bem essa lista do captulo XXV: quais so os seus elementos?
impossvel pensar na histria que eu contei para vocs a partir dessa lista. Isso
fica mais claro se examinarmos o que acontece com cada elemento pontual, por
exemplo, pices (o quarto do fim ao comeo). Nada na histria vai girar em
torno de tempero algum: a palavra myam, usada pelos Kubus, simplesmente
tambm designar um tipo de condimento. Ou seja, um dos elementos narrativos
que deve ser usado transforma-se em apenas um detalhe. O que Perec realiza
de fato uma anti-criao: os elementos esto a para se fugir deles, ou para
transform-los.
Jacques Roubaud (1990), outro escritor oulipiano, afirma que com sua
arte de listas, Perec no mais que um prosador nostlgico da poesia. E talvez
devamos pensar assim essa nova funo da pgina manuscrita: ela no serve mais
para estabelecer verses da narrativa, verses de uma dissertao, de um texto
de colquio, mas um espao com grandes margens e anotaes esparsas, que
funcionam como pequenos versos evocatrios para a nossa memria.
hoje deixou um trao escrito em vocs. A viagem de nibus? No, agora existe o
bilhete nico. O convite para este colquio? Talvez, se vocs no receberam por
e-mail. O almoo? Talvez a funo da pgina cotidiana tambm esteja mudando
e, este texto, como o de Bachelard e o de Perec, talvez s seja apenas uma forma
de constatar que um espao est se perdendo.
REFERNCIAS
BACHELARD, G. La Potique de lespace. Paris: Presses Universitaires de France,
2004.
______. Cahier des charges de la vie mode demploi. Paris: CNRS, 1993b.
ROUBAUD, J. Notes sur la potique de listes chez Georges Perec. In: DIDIER, B.;
NEEFS, J. (Org.). Penser, classer, crire: de Pascal Perec. Saint-Denis: Presses
Universitaires de Vincennes, 1990. p.201-208.