Artigo Sobre SL 139
Artigo Sobre SL 139
Artigo Sobre SL 139
PUC-SP
MESTRADO EM TEOLOGIA
SO PAULO
2013
PGINA DE APROVAO
Banca Examinadora
____________________________________________
Prof. Dr. Matthias Grenzer PUC-SP
_____________________________________________
Prof. Dr. Pe. Boris Agustin Nef Ulloa PUC-SP
Ao Deus da vida e de amor, que sem Ele essas pginas no teriam sido escritas.
Aos meus pais, familiares e amigos pelo apoio e incentivo.
tia Tassivi Marie Marguerite (in memoriam), que soube viver admiravelmente os
ideais evanglicos.
A todos que continuamente experimentam diferentes situaes de xodo e de Exlio no
seu dia a dia por causa da injustia e do egosmo humano.
A todas as pessoas que promovem os valores evanglicos e lutam para a construo de
uma sociedade mais humana, mais fraterna e justa.
AGRADECIMENTOS
Agradeo a Dom Jos Maria Pinheiro, Bispo emrito da Diocese de Bragana Paulista,
por sua simplicidade e pacincia e tambm pelo seu apoio, que contribuiu com a presente
pesquisa.
O Salmo 139 medita sobre a existncia humana enquanto determinada por Deus. Impressiona
imaginar, junto ao poema bblico, a oniscincia divina, a onipresena divina, a onipotncia
criadora de Deus e o agir do Deus libertador e pastor. Para quem se sente injustiado e
ameaado em sua sobrevivncia, esta perspectiva religiosa oferece esperana, pois,
finalmente, toda a realidade ligada a um Deus conhecedor, potente e libertador.
This thesis is a study on Psalm 139. The principal aim of the research is to present the image
of God transmitted by this poem and investigate how mankind, created and known by God
can relate to his experience of faith with the struggle for survival in this world, marked by
people who insist on injustice and violence due to their wickedness. In order to justify the
research on psalm 139, the Hebrew text was chosen, since it is the language in which the text
was originally composed. By so doing the guarantee of being close to the first meaning of the
text is more assured. Particularly being a language that lays emphasis, on knowledge of other
important parallels in the whole canon of the Scriptures, especially other writings (books) that
form the Hebrew Bible. In the light of what has been stated above, the Hebrew Concordance
of Old Testament has become the most important research tool. Always attentive to the
literary-stylistic dimensions of Psalm 139, the study aims to describe the theological
dimensions of this biblical prayer. The research progresses along the verses and stanzas that
compose the poem, commenting word by word, sentence by sentence and stanza by stanza.
Psalm 139 meditates on human existence as determined by God. For someone who feels
unjustly treated and threatened in his life. It is interesting to see from this biblical poem, the
divine omniscience, omnipresence, divine omnipotence and God's creative act; God, the good
shepherd and liberator. This religious perspective offers hope because at the long run GOD is
aware of all life experience: being omniscient, powerful and the one who liberates mankind
from all sort of danger and slavery.
Cf. Confira
p. pgina
v. versculo
sc. sculo
Vol. Volume
Sl Salmo
ndice
INTRODUO ...................................................................................................................................12
CONCLUSO ...................................................................................................................................143
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................................149
1. FONTES ...................................................................................................................................149
Primria ..................................................................................................................................149
Secundria ..............................................................................................................................149
2. DOCUMENTOS ECLESIAIS .........................................................................................................149
3. ESTUDOS EXEGTICOS E TEOLGICOS ......................................................................................150
4. GRAMTICAS...........................................................................................................................155
5. ARTIGOS ..................................................................................................................................156
5.1 REVISTAS ...........................................................................................................................156
5.2 ELECTRNICOS ..................................................................................................................157
6. LXICO.....................................................................................................................................157
7. CONCORDNCIA ......................................................................................................................157
8. DICIONRIOS BBLICO-TEOLGICOS.........................................................................................157
Introduo
Esta pesquisa versa sobre o estudo do Salmo 139 cujos objetivos so apresentar a
imagem e/ou o rosto de Deus revelado nesse poema e investigar como o homem conhecido
por esse Deus pode conciliar sua experincia de f com a injustia e violncia instaurada pelos
homem.
filhos de Israel, seu olhar de solicitude com esse padecimento humano. Esse olhar divino
descrito: Eu vi, eu vi a misria do meu povo no Egito. Ouvi seu grito por causa de seus
opressores; pois eu conheo suas angustias (Ex 3,7-8). Existe ainda no Antigo Testamento a
realidade de no conhecer, isto , o novo rei que chegou ao poder no Egito no conhecia Jos
e, por isso, imps aos filhos de Israel trabalhos pesados para tornarem lhes dura a vida (cf. Ex
1,8-14).
pessoa de Jesus, que em um de seus discursos diante dos judeus afirma: Eu sou o bom pastor;
conheo as minhas ovelhas (Jo 10,14). Nessa perspectiva, conforme o mandato que recebeu
de seu Mestre e SENHOR, a Igreja na Amrica Latina, na sua misso de levar aos homens a
13
Para o homem bblico meditar sobre o conhecimento que Deus tem da existncia do ser
princpio at o fim e, assim, manter viva a esperana, ou seja, o homem de f sabe e cr que
Deus o conhece, o faz participar de sua vida e, por isso, sempre atua para libert-lo de todas as
justificar que esse poema forma uma unidade literria prpria, ou seja: trata-se de um texto
bem delimitado. Sua transmisso diferente no texto massortico e nas antigas verses como
expresses apresentam palavras duvidosas6, assim como palavras raras se repetem e, por isso,
sua traduo s vezes especulativa. Muitos desses termos raros so encontrados no livro de
J, a ttulo de exemplo.
exemplo da Torah, que contm diferentes gneros literrios, estilos prprios e mecanismos
1
Puebla-1979. Evangelizao no presente e no futuro da Amrica Latina, n. 3. In: DOCUMENTOS DO
CELAM. RIO-Medelln-Puebla-Santo Domingo, p. 291-292.
2
Cf. ZENGER, Erich. O Deus da Bblia, p. 99.
3
Cf. MARTINI, C. Maria. Le Dsir de Dieu. Prier les Psaumes, p. 11.
4
Cf. FRANCISCO, E. Faria. Manual da Bblia Hebraica. Introduo ao Texto Massortico, p. 61-62.
5
As variantes intencionais e no intencionais que se originaram dos textos bblicos(Cf. SCHREINER, Josef. O
estudo cientfico do Antigo Testamento. In: SCHREINER, Josef. Palavra e Mensagem do Antigo Testamento, p.
56-59).
6
Trata-se dos variantes textuais que informam sobre a situao do texto bblico ao longo de sua transmisso(Cf.
SCHREINER, Josef. O estudo cientfico do Antigo Testamento. In: SCHREINER, Josef. Palavra e Mensagem
do Antigo Testamento, p. 58).
14
Para Lelivre et Maillot, Sl 139 um dos mais belos do Saltrio, tanto pelos
pensamentos que exprime como pelo seu estilo.8 Tambm para Alonso Schkel e Carniti, esse
poema sem dvida um dos Salmos mais belos e sugestivos do Saltrio, reconhecido e
louvado com profuso9. Por causa de sua beleza, na tentao de coment-lo, corre-se o risco
devidamente, devolvendo-lhe seu justo valor. Desse modo, prudente ser controlar o
economia de mercado12, uma vez que o ser humano vive submerso no secularismo 13, no
Nesse sentido, relevante ressaltar o quanto o conhecimento que Deus tem da vida do
homem serve como premissa para uma Teologia da esperana 14 e uma tica de Deus como
amigo15. Com efeito, Deus conhece o homem, entra em dilogo16 com ele, age na histria a
7
Cf. WEISER, Artur. Os Salmos, p. 10-12.627-628.
8
LELIVRE, Andr.; MAILLOT, Alphonse. Les Psaumes. Chants damour, 76 150, p. 406.
9
ALONSO SCHKEL, Lus.; CARNITI, Ceclia. Salmos II (Salmos 73-150), p. 1580.
10
Cf. BROOKS, W. Chris. Globalisation: une perspective politique. In: BRETON, Gilles; LAMBERT, Michel.
Globalisation et Universits. Nouvel espace, nouveaux acteurs, p. 45-51.
11
A civilizao do amor repudia a violncia, o egosmo, a injustia, a intolerncia, a falta de perdo e de
solidariedade, a explorao e os desatinos morais (Cf. PUEBLA 1979. Evangelizao no Presente e no Futuro da
Amrica Latina. In: DOCUMENTOS DO CELAM. Rio-Medelln-Puebla-Santo Domingo, p. 288).
12
Cf. MORIAM, Benjamin. Le loup face l'conomie de march. Le sacrifice de la nature et du loup sur l'autel
de l'conomie, p. 27.
13
Cf. KLINGE, D. Germn. Dicionrio Rio, Medelln, Puebla, p. 500.
14
Cf. ZENGER, Erich. O Deus da Bblia, p. 99-100.
15
Cf. McFAGUE, Sallie. Teologia para uma Era Ecolgica e Nuclear, p. 240-241.
16
O Deus da Bblia um Deus que entra em comunicao com os homens e que fala a eles. A Bblia descreve,
em modalidades diversas, a iniciativa tomada por Deus de se comunicar com a humanidade escolhendo para si o
povo de Israel (PONTIFCIA COMISSO BBLICA. O Povo Judeu e as suas Sagradas Escrituras na Bblia
Crist, p. 63).
15
fim de salv-lo. Quer dizer, o sofrimento e o mal esto com os dias contados. Por isso, para o
homem conhecido por Deus, hora de anunciar a novidade da vida. No intuito de alcanar os
Que rosto e/ou imagem de Deus apresentado pelo Sl 139? Como o homem conhecido pelo
SENHOR pode conciliar sua experincia desse Deus com a injustia e violncia instaurada
relao ao sofrimento humano, como pode-se perceber, por exemplo, pelos estudos de Faria 17,
Murphy18, Martini19, Klein20, e Westermann21 entre outros, necessrio destacar que esses
autores no trataram em sua anlise do Sl 139, de aspectos que esta pesquisa est abordando,
de modo que, dessa forma, no se esgotaram questes a serem investigadas nesse poema.
Acredita-se que ainda h muito o que explorar, principalmente com as preocupaes da Igreja
contribuir para que tanto as comunidades religiosas como os cristos recuperem uma
espiritualidade mais bblica, ligada aos contedos centrais e originais da f (cf. Dt 6,20-24)
17
Cf. FARIA, F. Jacir. Salmos de sofrimento-Expresso da interiorizao das relaes com Deus! In: REVISTA
DE INTERPRETAO BBLICA LATINO-AMERICANA. Salmos, p. 105-114.
18
Cf. MURPHY, E. Roland. J e Salmos. Encontro e confronto com Deus, p. 45-56.
19
Trata-se da experincia da aparente ausncia de Deus na histria (Cf. MARTINI, C. Maria. Le Dsir de Dieu.
Prier les Psaumes,p. 88-96).
20
Deus est sempre no meio de seu povo, por isso, o fiel deve proclamar a esperana nos exlios desse mundo
(Cf. KLEIN, W. Ralph. Israel no Exlio. Uma interpretao teolgica, p. 168-174).
21
Desde os debates no livro de J consta que o sofrimento humano no precisa ser maldio ou castigo de
Deus; e os padecimentos do Cristo completam positivamente este ponto de vista (WESTERMANN, Claus.
Teologia do Antigo Testamento, p. 194).
16
forma, o ser humano conhecido por Deus chamado a ser protagonista e construtor de uma
Aps essas consideraes, neste momento, relevante discorrer sobre alguns aspectos
paralelismos so pesquisados na base dos textos que figuram na Bblia Hebraica. Contudo, em
alguns casos, so considerados tambm livros deuterocannicos 23, escritos em grego, que
junto aos livros da Bblia Hebraica formam o Antigo Testamento, acolhendo a tradio
catlica24.
No incio de cada captulo, o leitor encontra uma nova traduo do texto bblico,
originalmente escrito em hebraico. Para uma boa exegese do Sl 139, necessrio usar a
traduo formal25 do texto bblico, sendo que determinadas decises tomadas durante a
traduo26 so justificadas no decorrer do estudo. Tal traduo pretende ser fiel ao texto
hebraico e, ao mesmo tempo, espelhar a beleza literria que o poema revela na lngua em que
22
Cf. PONTIFCIA COMISSO BBLICA. A Interpretao da Bblia na Igreja, p. 142.
23
Eclesistico, Baruc, Tobias, Judite, Sabedoria, 1 e 2 Macabeus e algumas partes de Ester e Daniel (Cf.
PONTIFICIA COMISSO BBLICA. O Povo Judeu e as suas Sagradas Escrituras na Bblia Crist, p. 44).
24
Cf. Bblia de Jerusalm, p. 10-11.
25
Segundo SILVA, a traduo literal no busca a compreenso imediata. Mas, trata da forma lingustica do
original, mantendo repeties e redundncias; e por isso procura na lngua de chegada o melhor vocbulo para
traduzir o original. (Cf. SILVA, D. M. Cssio. Leia a Bblia como literatura, p. 15-16).
26
Segundo SIMIAN-YOFRE, um dicionrio deve oferecer os subsdios para a traduo e a interpretao, no,
porm a traduo e a interpretao j realizadas. (Cf. SIMIAN-YOFRE, Horcio. Diacronia: os mtodos
histrico-crticos. In: SIMIAN-YOFRE, Horcio (coord.). Metodologia do Antigo Testamento, p. 96).
27
Cf. PISANO, Stephen. O texto do Antigo Testamento. In: SIMIAN-YOFRE, Horcio (coord.). Metodologia
do Antigo Testamento, p. 64-69. Segundo SILVA, o estudo comparativo das diferenas entre os manuscritos
chamado de critica textual um passo metodolgico na exegese dos textos bblicos (cf. SILVA, D. M. Cssio.
Leia a Bblia como literatura, p. 15.)
17
quatro estrofes30, sendo que cada uma delas ser apresentada em captulo prprio.
por versculo e s vezes meio-versculo por meio-versculo. o texto a ser estudado que
misturam-se. Muitas vezes observado algo em relao forma literria 31 do Sl 139, ora
estuda-se algo de seu contexto histrico-geogrfico ou cultural32, ora o estudo insiste numa
Para tanto, esta pesquisa ter por base a exegese do Sl 139, com ateno aos estudos
publicados sobre o assunto proposto. Em particular, destacam-se como obras essenciais a este
Hebrew and English Lexicon of the Old Testament, Art of Biblical Poetry, a Metodologia da
No mais, ser dado um primeiro olhar estrutura desse texto altamente potico. Por
mais que esse olhar seja provisrio, apresenta-se uma primeira proposta em vista da
estruturao do Sl 139. Antes de dar espao para a exposio propriamente dita, interessante
28
Cf. SIMIAN-YOFRE, Horcio. Diacronia: os mtodos histrico-crticos. In: SIMIAN-YOFRE, Horcio
(coord.). Metodologia do Antigo Testamento, p. 95.
29
Cf. SIMIAN-YOFRE, Horcio. Diacronia: os mtodos histrico-crticos. In: SIMIAN-YOFRE, Horcio
(coord.). Metodologia do Antigo Testamento, p. 97-98.
30
Cf. TERRIEN, Samuel. The Psalms, p. 874.
31
Cf. SIMIAN-YOFRE, Horcio. Diacronia: os mtodos histrico-crticos. In: SIMIAN-YOFRE, Horcio
(coord.). Metodologia do Antigo Testamento, p. 95.
32
Cf. SIMIAN-YOFRE, Horcio. Diacronia: os mtodos histrico-crticos. In: SIMIAN-YOFRE, Horcio
(coord.). Metodologia do Antigo Testamento, p. 100-104.
33
Cf. PONTIFCIA COMISSO BBLICA. A Interpretao da Bblia na Igreja, p. 124-127.
18
Bblia de Jerusalm,
g) o tamanho das fontes hebraicas varia de acordo com os lugares que ocupam, visando
h) a fonte principal a BHS, cuja traduo do hebraico procura ser a mais exata possvel,
i) opta-se para o emprego da palavra SENHOR, onde o texto hebraico trouxer o tetragrama
34
Na leitura, os judeus o substituem com outras palavras, sobretudo com Adonai, SENHOR (Cf. LAMBDIN, O.
Thomas. Gramtica do Hebraico Bblico, p. 84).
CAPTULO I: Conhecido pelo Deus onisciente
O objetivo deste captulo apresentar tanto a imagem de quem reza nesse poema
quanto o rosto do Deus onisciente conhecedor do orante. Nesta primeira estrofe o orante
inicia sua meditao com a declarao de que o SENHOR, o Deus de Israel, o investigou e o
conheceu inteiramente.
anterior: Para o dirigente: de Davi. Um salmo. Da mesma forma, o prximo poema, ou seja,
Sl 140 comea com outro ttulo. Com isso, Sl 139 ganha a caracterstica de ser uma unidade
literria prpria e, de certa forma, autnoma. Mesmo assim, vo ter que ser contempladas,
daqui para frente, as relaes literrio-teolgicas que existem entre Sl 139 e seu contexto
literrio. Quer dizer: a autonomia literria de Sl 139 relativa. Para sua compreenso, pois, as
relaes existentes entre Sl 139 e os demais Salmos e todo o contexto literrio da Bblia
observao: a mesma seqncia de conceitos - encontra-se em doze Salmos (cf. Sl 13,1; 20,1;
21,1; 31,1; 40,1; 41,1; 51,1; 65,1; 68,1; 69,1; 139,1; 140,1). O Sl 139 termina com um apelo:
eternidade! Trata-se de uma splica. Duas ordens so apresentadas. Nota-se que uma ordem
dada a Deus precisa ser compreendida como um apelo forte. Veja a presena dos dois
imperativos.
(cf. Sl 9,21; 20,10; 21,14; 25,22; 28,9; 33,22; 38,23; 39,14; 44,27; 57,12; 67,8; 70,6; 74,23;
Ao mesmo tempo, uma breve analise literria do Sl 139 oferece o seguinte resultado: v.
1b, no incio do poema, e v. 23a-23b, no final do texto, constituem uma incluso 36.
Em geral, o emprego da incluso serve criao de uma moldura para um texto ou uma
parte de um texto. Com isso, surge uma delimitao audvel, no sentido de o texto, no final,
fazer referncia ao que foi dito no incio. Assim, o ouvinte-leitor percebe que o pensamento
foi finalizado.
poema tem suscitado grande variedade de interpretaes.37 Na mesma ordem de ideia, Booij
36
Cf. SIMIAN-YOFRE, Horcio. Diacronia: os mtodos histrico-crticos. In: SIMIAN-YOFRE, Horcio.
Metodologia do Antigo Testamento, p. 97.
37
TERRIEN, Samuel. The Psalms, p. 874.
21
afirma que Sl 139 ganha maior destaque por sua profundidade e beleza, por mais que seja um
pensamentos desenvolvidos pelo Salmo se movimentam por blocos de idias39. Tais blocos
podem formar estrofes, ou seja, unidades literrias menores, interligadas entre si. Quais so,
ento, as unidades literrias ou estrofes que formam o conjunto de Sl 139? apresentada aqui
uma proposta inicial, quer dizer, ainda bastante provisria, em relao estrutura de Sl 139. A
inteno organizar o trabalho de interpretao, que vem pela frente, de acordo com a
estrutura potica do texto bblico. Ser dedicado um captulo interpretao de cada estrofe.
sero discutidos.
diferentes tipos de paralelismo que aparecem como jogo literrio usado pelo orante para
decises sobre quais metodologias fundamentais a serem seguidas. 40 A presente traduo foi
38
Cf. BOOIJ, Thijs. Psalm CXXXIX. In: Vetus Testamentum, p. 1.
39
WEISER, Artur. Os Salmos, p. 628.
40
Cf. JOOSTEN, Jan. La critique textuelle. In: NIHAN, Cristophe (ed.). Manuel dexgse de lAncien
Testament, p. 44.
41
Cf. SIMIAN-YOFRE, Horcio. Diacronia: os mtodos histrico-criticos. In: SIMIAN-YOFRE, Horcio
(coord.). Metodologia do Antigo Testamento, p. 95-97.
22
sero discutidas no comentrio. Para obter uma ajuda mais detalhada sobre os referidos
aspectos, o leitor poder usar os comentrios exegticos sobre os textos hebraicos.42 Segue
42
Alm disso, para ter uma ajuda especfica na apreciao e na anlise da poesia, consultar as obras: Interpreting
Hebrew Poetry de PETERSEN e de RICHARDS; Interpreting the Psalms de MILLER e The Art of Biblical
Poetry de ALTER.
43
Optou-se por escrever em itlico as palavras da Bblia referentes ao Salmo em estudo. Alm disso, foi realado
as expresses importantes no texto traduzido da primeira estrofe: a cor vermelha (nome do SENHOR o Deus de
Israel), a cor amarela (os verbos do mesmo campo semntico que conhecer), a cor azul clara (as expresses
polares) e na cor verde (os pronomes).
23
A primeira estrofe ocupa v. 2a-6b. O texto comea, de forma tpica para o livro das
oraes do Antigo Israel, com a invocao do nome de Deus: veja o tetragrama hwhy,
traduzido por SENHOR (cf. Sl 6,2a; 7,2a; 8,2a; 21,2a; 38,2a; 88,2a; 99,2a; 102,2a; 120,2a).
Nos v. 2a-6b, Deus aparece como sujeito das aes principais, sendo que os verbos se
referem a ele. Isso vale para todos os verbos na primeira estrofe. Alm disso, pode ser
observado um determinado campo semntico, formado por verbos paralelos, que promovem a
mesma ideia bsica. Deus quem investiga (v.1b) conhece (v.2a-2b. 4b), compreende (v.2c),
Em v. 6a-6b, o orante parece fazer uma pausa, a fim de declarar sua incapacidade de dar
conta do conhecimento de Deus. Tal declarao ganha carter de uma confisso, capaz de
de acolher o conhecimento divino em seu conhecimento de Deus. Quer dizer: o ser humano
primeira estrofe, tem-se, portanto, um fecho bem chamativo. O poeta brinca, de certa forma,
Como de regra uma ateno dedicada forma literria do Sl 139, 1b-6b a fim de
compreend-la como uma pea de literatura potica, aplicando critrios literrios para
descobrir sua possvel estrutura. De acordo com uma viso comumente aceita, uma boa
literria, no sentido de promover uma anlise exegtica que siga os passos habitualmente
a ateno sobre os traos especficos da tradio literria bblica enraizada na cultura semtica.
critrio de construo a serem avaliados so: o nmero de lexemas utilizados, a posio dos
linguagem que tem significado absoluto (nomes, adjetivos, advrbios e verbos) 46. Assim, o
teor do Sl 139,1b-6b pode ser elucidado pela anlise da articulao da forma literria. Para
este fim, o estudo se far seguindo as indicaes correntes em anlise literria 47:
-a palavra chave que se repete, a fim de estabelecer uma ligao verbal entre duas sees;
44
PONTIFCIA COMISSO BBLICA. Interpretao da Bblia na Igreja, p 48.
45
Cf. SIMIAN-YOFRE, Horcio. Diacronia: os mtodos histricos-crticos. In: SIMIAN-YOFRE, Horcio
(coord.). Metodologia do Antigo Testamento, p. 97-98.
46
SIMIAN-YOFRE, Horcio. Diacronia: os mtodos histricos-crticos. In: SIMIAN-YOFRE, Horcio (coord.).
Metodologia do Antigo Testamento, p. 95.
47
Cf. HOLMAN, Jan. The Structure of Psalm CXXXIX. In: Vetus Testamentum, p. 300.
25
-a incluso que consiste na retomada, no final de uma passagem, de uma frmula utilizada no
incio, isto , uma indicao que delineia os limites de um desenvolvimento e mostra a sua
coerncia;
Acolhendo essas indicaes, nota-se que a unidade literria bblica aparece como um
texto potico autnomo ao considerar a evidncia do tema, do tom e do estilo verbal. Dessa
configuram a concluso da orao que tomou forma na boca do orante. Essa estrutura
v. 1b v. 2a-5b v. 6a-6b
verbais apresentadas no quadro acima. Trata-se das duas intervenes divinas (v. 1b e v. 2a-
48
Para uma ampla literatura sobre a interpretao dos textos bblicos poticos, veja: ALTER, Robert. The Art of
Biblical Poetry, p. 27-84; ALONSO SCHKEL, Louis. Manual de Poetica Hebrea, p. 26-69.
26
5b) concludas pelo monlogo do orante (v. 6a-6b). Observa-se que a segunda interveno
divina (v. 2a-5b) a dobradia do texto bblico potico, pois retoma em detalhes o agir de
Deus evocado no v.1b. Alias onde o texto emociona. O orante se d conta que estar sempre
Basicamente a unidade literria bblica a ser pesquisada ocupa os v. 1b-6b onde Deus
aparece como sujeito das aes principais. O texto potico comea de forma tpica para o
livro das oraes do Antigo Israel, com a invocao do nome de Deus: veja o tetragrama
hwhy, traduzido por SENHOR (Sl 6,2a; 7,2a; 8,2a; 21,2a; 38,2a; 88,2a; 99,2a; 102,2a; 120,2a).
excelncia investiga e conhece. Nos v. 2a-5b nota-se o tom de intimidade pessoal de quem
reza aqui com Deus.50 O orante fala de sua experincia com o SENHOR servindo-se de
contrastes extremos ou merismas para expor a sua reflexo. Em geral, os merismas tm como
funo de contrapor dois aspectos de um objeto, mas ao mesmo tempo incluem todos os
Por meio de um monlogo, o orante afirma que o SENHOR conhece sua vida, suas aes,
seus propsitos e/ou desejos, do primeiro ao ltimo. As expresses verbais que se aplicam a
Ou seja, pode ser observado um determinado campo semntico, formado por verbos paralelos,
que promovem a mesma ideia bsica. O SENHOR Aquele que: investiga (v. 1b) conhece (v.
1b.2a.4b), discerne (v. 2b), mede (v. 3a), acostuma-se (v. 3b), encerra (v. 5a), pe a palma de
49
Cf. WESTERMANN, Claus. Teologia do Antigo Testamento, p. 7-13.
50
Cf. Veja o emprego repetitivo dos pronomes pessoais Tu e eu.
51
Cf. SIMIAN-YOFRE, Horcio. Diacronia: os mtodos histrico-crticos. In: SIMIAN-YOFRE, Horcio
(coord.). Metodologia do Antigo Testamento, p. 97.
27
Se por um lado sete verbos tem o SENHOR como sujeito (investigaste, conheceste,
discerniste, mediste, acostumaste, encerraste, puseste) de outro lado apenas cinco verbos tm
como sujeito o orante (sentar, levantar, andar, deitar e alcanar). Ou seja, o SENHOR quem
age na vida deste ltimo. Imagina-se que quem reza nesse poema estaria experimentando
Por fim, nos v. 6a-6b, o orante parece fazer uma pausa, a fim de declarar sua
incapacidade de dar conta do conhecimento de Deus. Tal declarao ganha carter de uma
dizer: o ser humano sente dificuldades de (re-)conhecer o que Deus, supostamente, conhece.
Olhando para a referida unidade bblica, tem-se, portanto, um fecho bem chamativo. Quem
que tem Deus das coisas e da sua vida. A multiplicidade das atividades do orante expressada
pela presena de cinco verbos (v. 2a sentar e levantar; v. 3a andar e deitar; v. 6b alcanar)
contrastada pela dominante oniscincia de Deus mencionada pelas ocorrncias de nove verbos
que levou o orante a proclamar a sua rendio diante do mistrio da essncia de Deus. Por
fim, o estudo do ambiente estilstico do Sl 139,1b-6b traz no quadro abaixo as diversas figuras
encontradas.
28
Merisma meu sentar e meu levantar (v. 2a); meu andar e meu
Ao ler os versculos 1b-6b do Sl 139 em hebraico descobre-se um amplo uso das aes
composto, ou, de acordo com o contexto, com um dos outros tempos que, na Lngua
52
Cf. SILVA, M. D. Cssio. Leia a Bblia como literatura, p. 34-35.
53
Cf. LAMBDIN, O. Thomas. Gramtica do Hebraico Bblico, p. 142-143.
54
Cf. LAMBDIN, O. Thomas. Gramtica do Hebraico Bblico, p. 69-72.
55
Cf. LAMBDIN, O. Thomas. Gramtica do Hebraico Bblico, p. 133-134.
56
Cf. LAMBDIN, O. Thomas. Gramtica do Hebraico Bblico, p. 71.
29
futuro, sobretudo, quando uma ao ainda no concluda imaginada como certa. Ou, com
outras palavras: quem fala tem certeza que algo est acontecendo ou que algo acontecer. Em
Neste sentido, no que se refere ao Sl 139, pode se imaginar que o orante esteja falando
passado.58 Quer dizer, tal sentimento se mantm na atualidade, isto , atinge o momento
57
Cf. BOOIJ, Thijs. Psalm CXXXIX. In: Vetus Testamentum, p. 1-2.
58
Cf. HOSSFELD, Frank-Lothar; ZENGER, Erich. Psalmen 101-150, p. 716.
59
Cf. WOLFF, W. Hans. Bblia. Antigo Testamento, p. 18-21. A consulta de obras com relao semntica do
nome do Deus de Israel ser uma contribuio notvel para melhor compreender este assunto.
30
De ponto de vista teolgico, surge aqui reflexo de que o presente sempre ligado ao
passado.60 Ou seja, nosso conhecimento de Deus depende sempre da Histria da Revelao 61,
quer dizer, daquilo que Deus revelou de si a seu povo na histria deste ltimo. Nunca se sai da
Neste estudo, prefere-se a traduo dos verbos hebraicos que aparecem na forma do
perfeito ou imperfeito invertido na dimenso do passado, justamente por causa dos motivos
reflexo a seguir.
Antes de estudar essa unidade literria do poema versculo por versculo, convm situar
o Sl 139 dentro de seu contexto literrio 64 e dentro de seu provvel contexto histrico 65, a
60
Cf. FOHRER, Georg. Estruturas Teolgicas Fundamentais do Antigo Testamento, p. 64-69.
61
Cf. FOHRER, Georg. Estruturas Teolgicas Fundamentais do Antigo Testamento, p. 51.
62
Cf. WESTERMANN, Claus. Teologia do Antigo Testamento, p. 48-50. Veja tambm neste sentido, o Salmo
77,12-16.
63
Cf. MCKENZIE, L. John. Os Grandes Temas do Antigo Testamento, p. 77-83.
64
Cf. SCHILLING, Othmar. Os Salmos, Louvor de Israel a Deus. In: SCHREINER, Josef Palavra e Mensagem
do Antigo Testamento, p. 360-366.
65
Cf. SCHILLING, Othmar. Os Salmos, Louvor de Israel a Deus. In: SCHREINER, Josef Palavra e Mensagem
do Antigo Testamento, p. 356-359.
31
partir da leitura atenta do ttulo em v. 1a. Talvez haja indcios no que se refere, por exemplo, a
- De Davi (dwdl);
- Um salmo (rwmzm).
No caso, a primeira expresso provm da raiz verbal dirigir ou conduzir (xcn). Trata-se
do particpio Piel (xcnm), acompanhado pela preposio para (l) e pelo artigo definido. Por
isso: para o dirigente. Aparentemente, imagina-se que haja algum responsvel pela
conduo desta orao no ambiente do templo 67. O termo tcnico ocorre 55 vezes nos ttulos
dos Salmos. Sua significao obscura. Com base em 2Cr 2,1.17 porm, geralmente
primeiro grande rei de Israel, que governou de 1002 a 970 a.C. 69 Devido s epigrafes de um
grande nmero de Salmos, imagina-se que h informao plausvel sobre os seus autores.
A terceira expresso do ttulo define a orao como salmo71 (rwmzm), palavra tcnica que
se faz presente nos Salmos por 57 vezes. Em hebraico a raiz verbal da qual provm este
66
Cf. WEISER, Artur. Os Salmos, p. 11.
67
Cf. BENTZEN, Aste. Introduo ao Antigo Testamento, vol.1, p .163
68
WEISER, Artur. Os Salmos, p.11.
69
Cf. DRANE, John. (org.). Enciclopdia da Bblia, p. 27.
70
Cf. WEISER, Artur. Os Salmos, p. 63. O nome da pessoa com a qual o salmo posto em relao introduzido
pela preposio a, que corresponde letra (). A tradio pensou muitas vezes que esse ()introduzisse o
nome do autor. Esse () seguido setenta e trs vezes do nome de Davi; imps-se, por isso, o costume de se
considerarem os Salmos introduzidos por le David como salmos de Davi. Cf. MONLOUBOU, Louis Os
Salmos e outros Escritos, p. 25-26.
71
Cf. WEISER, Artur. Os Salmos, p. 10.
72
Cf. LISOWSKI, Gerhard. Konkordanz Zum Hebrischen Alten Testament, p. 448.
32
Enfim, o ttulo faz o leitor-ouvinte imaginar uma comunidade que ouve a orao
apresentado como canto, talvez acompanhado por instrumentos musicais.74 Mais ainda, trata-
se de uma comunidade que tem Davi como ponto de referncia. 75 Assim, Israel quem reza
A orao no Sl 139 comea com o tetragrama ( hwhy), palavra formada por quatro
letras que apresentam o nome do Deus de Israel. Nas Sagradas Escrituras deste povo, Deus
conhecido por um nome pessoal.76 Semelhante a alguns outros Salmos de splica 77 (cf. Sl 3,2;
5,2; 6,2; 7,2; 13,2), este nome sagrado do Deus de Israel ( )inicia tambm o poema
presente no Sl 139 (v. 1b).78 Essencialmente, o tetragrama aparece nos Salmos por 695
vezes. Em princpio, o leitor se lembra, por primeiro das tradies do xodo79, ao ouvir o
Quando Moiss pergunta o SENHOR a respeito de seu nome80, o profeta recebe a seguinte
resposta: Sou quem sou ou Serei quem serei! [hy<h.a, hy<h.a,] (Ex 3,14). Na lngua hebraica, o
73
Cf. WEISER, Artur Os Salmos, p. 10-12.
74
Cf. MOWINCKEL, Sigmund. The Psalms in Israels Worship, p. 4-13.
75
Cf. MOWINCKEL, Sigmund. The Psalms in Israels Worship, p. 3.77-80.
76
Cf. FOHRER, Georg. Estruturas Teolgicas Fundamentais do Antigo Testamento, p. 55.
77
Cf. SCHILLING, Othmar. Os Salmos, Louvor de Israel a Deus. In: SCHREINER, Josef. Palavra e Mensagem
do Antigo Testamento, p. 361. Segundo SCHILLING, na prece de Israel h sempre uma splica e um louvor;
uma vez que todo colquio com Deus se realiza conforme estes dois fundamentais. Dessa forma, eles so a fonte
primria da qual se originam os Salmos.
78
Cf. MONLOUBOU, Louis. Os Salmos e outros Escritos, p. 45-54.
79
CERESKO, R. Anthony. Introduo ao Antigo Testamento numa perspective libertadora, p. 88.
80
Cf. WOLFF, W. Hans. Bblia. Antigo Testamento, p. 19-20.
33
autor parece aproveitar-se da semelhana entre as consoantes que do origem ao verbo ser
(hyh) e as quatro letras que formam o tetragrama ( hwhy). Veja a visualizao da semelhana:
hyh hwhy
Todavia, o nome de Deus ganha a partir desta semelhana um significado interessante.
Por primeiro o SENHOR livre81 por excelncia, ao dizer: Serei quem serei!
Num segundo momento, surge uma relao82. Em hebraico, o verbo ser um termo
relacional, no sentido de o SENHOR ser algum para Moiss e seu povo, e no, como na
futuramente, importncia na histria de seu povo, no sentido de ser algum para tal
comunidade: Serei quem serei!83 justamente o evento do xodo que vai revelar quem ele
ser para seu povo: o Deus Libertador que faz os oprimidos sarem da escravido (cf. Ex
20,1). Por consequncia, o SENHOR, ao revelar sua fora na histria do povo, comea a ser
139, o SENHOR quem tem investigado seu fiel, portanto, chegou a conhec-lo. Enfim, o
tetragrama (hwhy) aparece, no Sl 139, por trs vezes (v. 1b.4b.21a). Parece ser significativo
81
Cf. WOLFF, W. Hans. Bblia. Antigo Testamento, p. 21. Veja tambm em Ex 33,19: [...] Terei piedade de
quem eu quiser ter piedade [...].
82
Cf. WOLFF, W. Hans. Bblia. Antigo Testamento, p. 17. Segundo WOLFF, o prprio Deus se uniu a Israel
desde o tempo de suas promessas aos patriarcas e atravs de Moiss, o mediador. Assim, o SENHOR o Deus de
Israel chama os seres humanos para ouvi-lo e falar por Ele.
83
Cf. WOLFF, W. Hans. Bblia. Antigo Testamento, p.20-21
84
Cf. WESTERMANN, Claus. Teologia do Antigo Testamento, p. 30.
34
que o nome de Deus ocupa, justamente, a primeira posio na orao. 85 Surge desta forma a
impresso de que tudo depende deste nome 86. Nele se concentram as lamentaes, os
agradecimentos e os louvores de Israel, assim como a reflexo da pessoa sobre a vida como
um todo.87
Convm pesquisar o significado da raiz verbal conhecer (), presente por trs vezes
(v. 1b.2a.4b) na primeira estrofe do Sl 139. Nos trs casos, o sujeito Deus.
1b, a expresso e conheceste () , formada pela conjuno (), seguida pelo verbo na
aparece por novecentos e cinquenta e seis vezes na Bblia Hebraica, noventa e trs vezes
somente no Saltrio.
85
A proclamao do nome divino um ato ritual que menciona Aquele ao qual so destinados cntico e orao;
o orante tenta estabelecer com Deus laos estreitos que garantem o atendimento. (Cf. MONLOUBOU, Louis. Os
Salmos e os outros Escritos, p. 48).
86
Trata-se de uma abertura para entrar em contato e em comunho com Deus. (Cf. ANSESIO Vitor. Livros
Sapienciais e outros Escritos, p. 291).
87
Cf. WESTERMANN, Claus. Teologia do Antigo Testamento, p. 134-135.
35
eleitos.88
Dessa forma, o SENHOR conhece a misria do fiel e o salva (Sl 31,8), conhece os dias
dos ntegros para lhes preservar a vida (Sl, 37,18), conhece o comportamento do fiel (Sl 40,
10), conhece os segredos do corao e os pensamentos do homem (Sl 44,22; 94,11), conhece
a afronta sofrida pelo justo (Sl 69,20), conhece a estrutura dos homens (Sl 103,14), conhece
Alm disso, Deus se d a conhecer ao ser humano, isto , revela-se. 89 Por isso, o
SENHOR concede o conhecimento90 do qual Ele a fonte (J 12,13; Eclo 1,8-9.19; Is 11,2); de
modo especial aos que seguem suas determinaes (Sl 9,17.21; 16,11; 25,14; 39,5; 48,4; 51,8;
77,15; 98,2; 103,7; 106,8). Ao contrrio, do fiel os mpios so vistos como quem no tem
conhecimento (Sl 14,4; 73,11; 79,6; 82,5; 92,7). Acolhendo estas conotaes, imagina-se que
o orante no Sl 139 afirma ser perfeitamente conhecido pelo SENHOR (v. 1b.2a.4b).
Os dois verbos empregados no v. 1b tem o SENHOR como sujeito. O orante afirma que o
A expresso investigaste-me (
), formada pela raiz verbal investigar ( )na
primeira pessoa do singular (). Como este verbo antecede o verbo conhecer, a expresso
investigar parece determinar o termo conhecer que mais comum. Por isso, a pesquisa aqui
88
Cf. WESTERMANN, Claus. Teologia do Antigo Testamento, p. 32-40.
89
Trata-se da autocomunicao de Deus ao homem (Cf. FOHRER, Georg. Estruturas Teolgicas Fundamentais
do Antigo Testamento, p. 51-69).
90
De ponto de vista teolgica, Deus concede ao fiel o conhecimento como dom (Sl 4,4; 9,11; 20,7; 36,11; 41,12;
56,10; 76,2; 91,14; 119,75; 135,5; 140,13).
91
Cf. FOHRER, Georg. Estruturas Teolgicas Fundamentais do Antigo Testamento, p. 54-55.
36
apresentada parte de um olhar mais exato para todos os paralelos, nos quais aparece o verbo
investigar (rqx).
No livro dos Salmos92, o verbo investigar (rqx) aparece apenas por trs vezes. Por duas
vezes, se faz presente no Sl 139, figurando no incio e praticamente no final da orao (veja v.
1b.23b). Surge, portanto, uma moldura ou incluso 93 a partir do uso deste verbo. A terceira
Hebraica, essa expresso verbal aparece por vinte e sete vezes. Alm do verbo investigar,
existe um substantivo formado a partir da mesma raiz verbal que ganha doze presena nas
Sagradas Escrituras: veja a palavra rq,xe, com os significados de investigao e/ou segredo.
Na maioria dos textos paralelos o homem que investiga algum ou algo. Em relao
outra pessoa, procura e questiona, a fim de que a verdade seja estabelecida. Dessa forma faz
o bem (Dt 13,15). Ao investigar chega a conhecer a inteno do outro (1Sm 20,12). No caso
de uma briga, torna-se necessrio promover a investigao dos participantes, para realmente
saber quem justo (Pr 18,17). Mais ainda: ao investigar um rico, o indigente se torna
inteligente (Pr 28,11). Do contrrio, preciso tambm investigar a causa dos pobres
desconhecidos, a fim, aps conhecer as origens de sua misria, tornar-se pai deles (J 29,16).
Enfim, o homem convidado e investigar seus caminhos (Lm 3,40), mas tambm os
caminhos e a sorte dos outros (J 5,27). Da surge a oportunidade de se tornar mais sbio 94 e
realidades. No caso, pode investigar a terra, no sentido de espion-la (Jz 18,2; 1Cr 19,3; Ez
39,14), ou uma cidade (2Sm 10,3). Alm disso, o homem pode investigar as montanhas, a
92
Cf. BENTZEN, Aste. Introduo ao Antigo Testamento, vol.1, p. 163.
93
Cf. SILVA, D. M. Cssio Leia a Bblia como literatura, p. 35.
94
A sabedoria ajuda o homem a se tornar um ser humano autntico: imagem de Deus, irmo respeitoso de seus
irmos, justo. (Cf. VLCHEZ LNDEZ, Jos Sabedoria e Sbios em Israel, p. 245).
37
fim de descobrir metais (cf. J 28,3), o vinho (Pr 23,30), a floresta (Jr 46,23), o peso do
bronze (1Rs 7,47; 2Cr 4,18) e aparentemente at os fundamentos da terra (Jr 31,37). Mais
32,11).
Em todos estes casos o homem que investiga algum ou algo. Ou seja: o homem
capaz de investigar. Suas intenes de investigar algum ou algo podem ser mltiplas. Nem
experincia humana, o homem reflete, de forma analgica sobre Deus. Imagina que o SENHOR
tambm investigue. H alguns textos na Bblia Hebraica que destacam este pensamento. Em
vista do Sl 139, tais paralelismos precisam ser avaliados agora com maior cuidado.
Alm do Sl 139, existem apenas outros quatro textos que apresentam o verbo investigar
sendo que Deus o sujeito. J, ao ser motivo de chacota por parte de seus amigos, pede a
sabedoria96, confessa que Deus investiga esta ltima da mesma forma que perscruta, por
Deus em vista do pecado de Jud, se prope a investigar corao e rins do homem, a fim de
lhe retribuir98 conforme seu caminho (Jr 17,10). Por fim, Israel ao viver a catstrofe99, se
lamenta de no poder experimentar a vitria vinda de seu Deus, por mais que tenha se
mantido fiel100 a ele, sem se esquecer do nome dele e sem esticar as palmas das mos a um
95
Cf. VLCHEZ LNDEZ, Jos. Sabedoria e Sbios em Israel, p. 167-223.
96
Cf. VLCHEZ LNDEZ, Jos. Sabedoria e Sbios em Israel, p. 225-259.
97
Cf. CERESKO, R. Anthony. Introduo ao Antigo Testamento numa perspectiva libertadora, p. 213-225.
98
A problemtica da retribuio tem sua origem na poca do exlio, quando desabaram a monarquia e o culto
comunitrio que sempre promoveram a sensao de abrigo e segurana. (Cf. WESTERMANN, Claus. Teologia
do Antigo Testamento, p. 96).
99
Cf. KLEIN, W. Ralph. Israel no exlio. Uma interpretao teolgica, p. 11-18.
100
De acordo com a concepo do Antigo Testamento, o duplo objetivo de cada pensamento, desejo ou ao de
Deus a soberania de Deus e a comunho do homem com Ele. Todo o restante se subordina e ordenado por
isso. Tudo converge no sentido de atingir esse duplo fim. (Cf. FOHRER, Georg. Estruturas Teolgicas
Fundamentais do Antigo Testamento, p. 202).
38
deus estrangeiro, pois Deus, certamente iria investigar este tipo de comportamento (Sl 44,21-
22).
Nestes quatro textos paralelos, Deus apresentado, sobretudo, como quem investiga a
sofrido (J 13,9), a confiana no ser humano em vez de confiar no SENHOR (Jr 17,10) e a
questo da infidelidade ao Deus de Israel acompanhada pela idolatria 102 (Sl 44,21s).
dele, seja no que se refere ao pensamento e reflexo, seja em vista da conduta e dos
conhecido pelo SENHOR declara de antemo que sua vida como um livro aberto para Deus.
Interessante lembrar que o verbo investigar, empregado por duas vezes no Sl 139 (v.
1b.23a) moldura o poema, surgindo uma incluso. De acordo com Simian-Yofre, a incluso
nasce quando uma expresso do incio de um texto ou de uma seo de texto retomada, de
modo igual ou semelhante, no fim, para enquadrar o texto ou a seo103. Assim, Monloubou
101
Cf. MURPHY, E. Roland. J e os Salmos, p. 79.
102
Cf. GERSTENBERGER, Erhard. Teologias no Antigo Testamento, p. 270-334.
103
SIMIAN-YOFRE, Horcio. Diacronia: os mtodos histrico-crticos. In: SIMIAN-YOFRE, Horcio.
Metodologia do Antigo Testamento, p. 97.
104
MONLOUBOU, Louis. Os Salmos, p. 35.
39
No demais, segundo Monloubou, a repetio antes de tudo a testemunha dos temas maiores
Os v. 2a.3a formam um paralelismo constitudo por quatro elementos: meu sentar, meu
levantar, meu andar e meu deitar Mais ainda, surge um merisma, sendo que quatro partes
indicam a realidade que o ser humano como um todo. Contudo, quais as conotaes que as
sentar () no qual, seguido pelo sufixo pronominal da primeira pessoa no singular meu (y).
por mil e oitenta e sete vezes na Bblia Hebraica. Em geral, h de ser traduzido porsentar-se
ou habitar. A forma meu sentar ( ) aparece por duas vezes em toda a Bblia Hebraica: Sl
casa do SENHOR.
105
MONLOUBOU, Louis. Os Salmos, p. 36.
40
elevado que recebe destaque. No caso, podem ser lembrados o assento do rei (cf. 1Sm 18,25)
ou dos chefes mais proeminentes numa cidade (cf. J 29,7.25) quer dizer, traz memria o
lugar de honra ,com isso, a posio decisiva e influente que algum ocupa numa
sociedade106. Neste sentido pode surgir a ideia de quem reza no Sl 139 possa ser um chefe
a presena do rei Davi em v. 1a, de fato, um chefe poltico est rezando aqui a Deus.
interessante fazer as seguintes perguntas: Quem est assentado? Onde? E, sobretudo, o que
Na maioria dos casos, o SENHOR, Deus de Israel, quem se assenta, a fim de reinar,
julgar, presidir, dominar. Este detalhe talvez seja surpreendente. Trata de certa forma, de uma
compreenso mais antropomrfica 108 de Deus, neste ltimo se assentar como se fosse um ser
humano. Contudo, o que prevalece ligado ao que essa postura significa e representa. No
Desta forma, o SENHOR se assenta nos cus para zombar dos reis (Sl 2,4). O SENHOR se
assenta no seu trono como justo juiz (Sl 9,5), se assenta sobre os louvores de Israel (Sl 22,4),
se assenta no seu trono para julgar (Sl 9,8), se assenta em Sio (Sl 9,12; 132,14), se assenta
sobre os dilvios. Tambm, Ele se assenta como rei para sempre (Sl 29,10), se assenta no seu
santo trono (Sl 47,9), se assenta desde a eternidade (Sl 55,20; 102,13), se assenta acima dos
querubins (Sl 80,2; 99,1), se assenta nas alturas (Sl 113,5), se assenta nos cus (Sl 123,1).
106
GRENZER, Matthias. O Salmo 1, p. 14.
107
Cf. WEISER, Artur. Os Salmos, p. 10.
108
Cf. LORETZ, Oswald. As linhas mestras da Antropologia Veterotestamentria. In: SCHREINER, Josef.
Palavra e Mensagem do Antigo Testamento, p. 408-417.
109
Cf. MONLOUBOU, Louis. Os Salmos e outros Escritos, p. 80-82. No Sl 9,5, o SENHOR o Deus de Israel
apresentado sentado em seu torno como justo juiz.
41
Alm disso, na perspectiva bblica o SENHOR um Deus justo que faz justia aos pobres
e humildes 110. Por isso, Ele os faz se assentarem em lugar de honra. O SENHOR faz assentar
seu fiel em segurana (Sl 4,9) e o solitrio em casa (Sl 68,7), faz assentar o pobre ao lado
dos prncipes (Sl 113,8) e a mulher estril em sua casa (Sl 113,9).
H outros casos onde o mpio apresentado como que est assentado. Ou seja, o mpio
se assenta de tocaia nas vilas para trucidar os inocentes (Sl 10,8), se assenta para difamar o
irmo (Sl 50,20). Eles se assentam para investir contra o justo (Sl 17,12), se assentam para
maldizer o justo (Sl 69,13). O fraudulento no se assentar na casa do Senhor (Sl 101,7). Os
prncipes se assentaram para maldizer o justo (Sl 119,23). O mpio faz assentar o justo nas
trevas (Sl 143,3). Neste sentido, nota-se que nos casos onde o verbo assentar ou sentar-se tem
o mpio como sujeito, alude-se atitude blica desse ltimo que constantemente ameaa a
vida dos pobres. Todavia, o justo por sua vez, no se assenta na roda dos zombadores (Sl
1,1), no se assenta com os mpios (Sl 26,5). Mas, o justo deseja assentar- se na casa do
SENHOR (Sl 27,4) os justos da terra se assentam com o SENHOR (Sl 101,6). Por fim, os retos
Quem mais apresentado nos Salmos como quem se assenta? s vezes, assentar-se
significa tornar-se habitante ou morador estvel. Isto , os habitantes do mundo (Sl 24,1;
33,8.14; 49,2; 65,9; 75,4; 98,7), os habitantes de Tiro (Sl 83,8), os habitantes da casa do
Afinal, observa-se que nos casos onde o verbo sentar-se tem por sujeito o justo, o
referido verbo expressa o estado de quem quer assemelhar-se para se difundir na unidade com
Deus (Sl 27,4; 101,4; 140,14). Por isso, o justo no se assenta na companhia dos mpios a fim
de no assemelhar-se a eles (Sl 1,1; 26,5). Neste sentido, o referido verbo significa: sentar-se
110
Cf. MURPHY, E. Roland. J e os Salmos, p. 53.
42
para estar com111. Portanto, a expresso Tu conheceste meu sentar (Sl 139,2a) sugere a ideia
que o orante tem conscincia que o SENHOR conhece suas relaes e o seu ambiente
socioexistencial. 112
formada por um infinitivo construto da raiz verbal ( ), do Qal, seguido pelo sufixo
substantivado. A referida raiz verbal significa levantar ou erguer-se (). Esta forma
dos textos paralelos, o verbo levantar-se pode ter por sujeito: Deus, o mpio, o justo, o doente,
os pais. Isto , o levantar-se faz referncia tanto postura de Deus como do homem. Limito a
pesquisa, neste primeiro momento, s trinta e cinco presenas do verbo no livro dos Salmos.
Por isso, convm fazer as seguintes perguntas: Quem est se levantando? Onde? E, sobretudo,
Nos casos onde o verbo levantar-se tem o SENHOR o Deus de Israel por sujeito, refere-
se ideia de sua interveno 113 em socorro e salvao dos seus eleitos. Sua interveno deve
acontecer agora, nesta vida 114. Por isso, o SENHOR se levanta para salvar os pobres (Sl 12,6).
Deus se levanta para julgar e para salvar 115 os pobres da terra (Sl 76,10). O SENHOR se
levantar para ter piedade116 de Sio (Sl 102,14). Deus se levanta para enfrentar seus
inimigos (Sl 68,2). O SENHOR se levanta para afrontar os mpios (Sl 94,16).
111
MOULOUBOU, Louis. Os Salmos e os outros Escritos, p. 42.
112
Cf. FOHRER, Georg. Estruturas Teolgicas Fundamentais do Antigo Testamento, p. 236-238.330-337.
113
Cf. WESTERMANN, Claus. Teologia do Antigo Testamento, p. 32-40.
114
MURPHY, E. Roland. J e os Salmos. p. 53
115
Cf. WESTERMANN, Claus. Teologia do Antigo Testamento, p. 13-14.
116
Cf. MONLOUBOU, Louis. Os Salmos e os outros Escritos, p. 84-86.
43
Novamente trata de uma perspectiva antropomrfica 117 de Deus. Por isso surge a
seguinte pergunta. Em que sentido pode ser atribudo a Deus descries e atitudes humanas?
indicaria uma correspondncia entre Deus e o homem, isto impossvel. Por isso, o carter
peculiar do homem na criao deve ser entendido a partir da sua relao especial para com
Deus (Gn 1,26). Melhor ainda, seria falar da relao de Deus para com o ser humano como
suposio para a compreenso de que o homem de si mesmo. 118 Por conseguinte, deve se
perspectiva antropomrfica de Deus como apenas uma maneira do ser humano para descrever
nos eventos e no desenrolar da histria do seu povo, reconhecido como Algum com traos
humanos e que participa ativamente das lutas, derrotas e conquistas de seu povo. Isso no
deve causar surpresa e dvida quando se recorda a experincia e a histria que deu origem ao
divina autenticamente humana e humanitria. Isto , um Deus que adote traos prprios do
a figura do Deus misericordioso: um Deus que aparece com traos de sentimentos e emoes
117
Cf. MCKENZIE, L. John. Os Grandes Temas do antigo Testamento, p. 293-301. O Antigo Testamento fala de
Deus em termos humanos: seus olhos, ouvidos, lngua, brao, mo, ira, complacncia, cime (Cf. p. 296).
118
Cf. FOHRER, Georg. Estruturas Teolgicas Fundamentais do Antigo Testamento, p. 155-157.
119
Cf. WESTERMANN, Claus. Teologia do Antigo Testamento, p. 72-87.
120
Cf. ZENGER, Erich. O Deus da Bblia.
121
Cf. CERESKO, R. Anthony. Introduo ao Antigo Testamento numa perspectiva libertadora, p. 315.
44
Todavia, se os maus e mpios apregoam sua maldade (Sl 73,8-9) a Teologia do Saltrio
ensina que esses ltimos sero punidos por Deus. 122 Do contrrio, onde estaria a sua justia,
se os pobres so oprimidos pelos maus123? Pode Ele ficar inativo, enquanto os pobres so
massacrados pelos mpios (Sl 7,10; 14,4; 71,4)? Da a agonia dos justos que exigem e pedem
a justia124 divina para que os maus sejam castigados (Sl 7,9-10; 35,24; 94,14-15; 98,2).
Neste sentido, o justo pede que o SENHOR o Deus de Israel se levante para salv-lo (Sl
3,8), se levante para enfrentar aqueles que os perseguem ( Sl 7,7; 35,2), se levante para
enfrentar o mpio (Sl 17,13), se levante para ajudar os pobres (Sl 10,12), se levante para
julgar a terra e as naes (Sl 9,20; 82,8). Por fim, Israel pede que o SENHOR se levante tanto
para proteg-lo dos inimigos ( Sl 44,27) como para se defender contra aqueles que ultrajam o
Interessante observar nos casos citados, o uso da raiz verbal levantar-se ( )no
que o SENHOR o Deus de Israel estaria recebendo uma ordem a ser executada. Isto ,
teologicamente impossvel. Por isso, a forma imperativa da referida raiz verbal expressa no
uma ordem, mas um pedido: o pedido do justo acuado pela maldade do mpio.
Nos casos onde o verbo levantar-se tem por sujeito os mpios, trata-se de uma atitude de
hostilidade da parte desses ltimos. Os mpios se levantam contra o justo ou o servo de Deus
(Sl 3,2; 27,3.12; 35,11; 54,5; 86,14; 109,28), se levantam contra Israel (Sl 124,2). Tambm
nos casos onde o referido verbo tem o justo como sujeito, trata-se de uma atitude de orao e
122
Cf. MONLOUBOU, Louis. Os Salmos e os outros Escritos, p. 79-83.
123
A corrupo na administrao da justia levava os suplicantes a se refugiarem no SENHOR o Deus de Israel (
Am 2,6-8).
124
Cf. MORLA ASENSIO, Vctor. Livros Sapienciais e outros Escritos, p. 293-295. Os frequentes protestos do
inocente no Saltrio so apelaes ao Senhor o Deus de Israel, juiz supremo (Cf. p. 295).
45
do SENHOR (Sl 24,3). O justo se levanta para louvar o SENHOR pelos seus justos juzos (Sl
119,62). Os justos se levantam enquanto os mpios caem (Sl 20,9). Alm disso, os pais se
de ausncia de vida. Neste sentido, o doente est deitado e no pode se levantar (Sl 41,9), os
mortos126 no podem se levantar para louvar o SENHOR (Sl 88,11). Mais ainda, no se
levantaro no julgamento (Sl 1,5; 36,13). Alm disso, existe tambm a possibilidade de o
homem se levantar em vo, por mais que se levante para trabalhar. Todavia, caso o SENHOR
no acrescentar sua beno ao trabalho do homem, este ltimo se esfora inutilmente (Sl
127,2).
Resumindo: no Sl 139 a expresso meu levantar (v. 2a) sugere tanto a ideia de vigor
quanto a atitude de orao e de louvor da parte do orante. Portanto, as expresses meu sentar
e meu levantar noticiam sobre a pessoa do orante do Sl 139. Ou seja, o binmio meu, sentar-
Seja lembrado ainda Dt 6,7 no qual as mesmas expresses verbais aparecem, sendo
tua casa, ao andar em teu caminho, ao te deitar ou ao te levantar, [...]. A ideia mestra aqui
defendida insista no permanente apego aos mandamentos128 de Deus, quer dizer, s leis que
125
Cf. WOLFF, W. Hans. Antropologia do Antigo Testamento, p. 193-200.
126
Cf. WOLFF, W. Hans. Antropologia do Antigo Testamento, p. 137-160.
127
Cf. MORLA ASENSIO, Vctor. Livros Sapienciais e outros Escritos, p. 301-302. Na realidade o SENHOR o
Deus de Israel o nico objeto de louvor: pela criao do cosmos e/ou do homem, pela relao com seu povo,
por seu reinado sobre o universo e os povos, pela eleio de Sio (Cf. p. 301).
128
Cf. ZENGER, Erich. O Deus da Bblia, p. 56-73.
46
formam o direito do antigo Israel. Surge, portanto, o ideal de um israelita justa e fiel como
caminhar.
A expresso meu andar ( ) formada pelo infinitivo construto da raiz verbal andar
(xra) no Qal e pelo sufixo pronominal da primeira pessoa no singular meu (y). Trata-se de
outro verbo substantivado na forma do infinitivo. Esta forma gramatical aparece somente por
substantivado (
) traduzido por meu caminho. Percebe-se que o referido infinitivo
O verbo andar (xra) aparece por seis vezes na Bblia Hebraica: Jz 19,17; 2Sm 12,4; J
34,8; Sl 139,3; Jr 9,1; 14,8. Ao pesquisar essas seis presenas, interessante fazer as
seguintes perguntas. Quem est andando? Aonde? E, sobretudo, o que faz andando? Quais
Em Jz 19,17, 2Sm 12,4, Jr 9,1 e 14,8, o verbo andar (xra), na forma de um particpio
hospedagem, quer dizer, de um lugar para descanso. Em J 34,8 por sua vez, o verbo andar
Existe ainda o substantivo formado pelas mesmas trs consoantes, portanto, provindo da
mesma raiz: lugar onde se anda, ou seja, a senda (xr:ao)o . Ao total, este termo aparece
cinquenta e nove vezes na Bblia Hebraica, sobretudo nos Escritos Sapienciais. A senda
129
LAMBDIN, O. Thomas. Gramtica do Hebraico Bblico, p. 49-51.60.
47
direo e processo, ou seja, orientao para um fim 130. Em especial, andar e/ou caminhar
fazem imaginar um comportamento que acolhe o projeto indicado pela Tor131, modelo de
justia previsto pelo direito do Antigo Israel, presente nas tradies jurdicas do Pentateuco 132.
transeunte e/ou de um exrcito (Jz 5, 6; Is 33,8; 41,3; Jl 2,7; Pr 9,15). Em outros casos, o
substantivo senda indica o destino da vida do homem (J 8,13; 13,27; 19,8; 33,11). De modo
particular, o referido substantivo faz referncia ao destino da vida do justo (J 16,22; Pr 4,18;
Sl 142,4), do preguioso (Pr 15,19) ou do filho (Pr 3,6). No mais, o substantivo senda
(Is 2,3; 26,8; 40,14; Pr 2,8; Sl 14,19; 16,11; 25,5.10; 119,15). Em contrapartida, existe o
caminho do violento, dos maus e/ou do iracundo (Sl 17,4; Pr 4,14; 22,25).
referncia histria de vida e/ou o ciclo de vida de quem reza aqui, especialmente ao
verbal deitar-se ([br), do Qal,o qual, outra vez, seguido pelo sufixo pronominal da
primeira pessoa no singular meu (y). Novamente, funciona como um verbo substantivado na
130
MONLOUBOU, Louis. Os Salmos e os outros Escritos, p. 42.
131
Cf. ZENGER, Erich. Introduo ao Antigo Testamento, p. 45-69.
132
Cf. CERESKO, R. Anthony. Introduo ao Antigo Testamento numa perspectiva libertadora, p. 71-80.
48
forma do infinitivo. Nota-se que a raiz verbal deitar-se ([br) aparece por quatro vezes na
Bblia Hebraica.
Em trs casos, a raiz verbal [br sugere a ideia de um animal ou algum deitar-se, de
forma ilcita, com um animal. Veja a proibio contra o ato de copular dois animais de
diferentes espcies (Lv 19,19). Nos casos de Lv 18,23 e 20,16 a referida raiz verbal visa a
delinquente. Portanto, nos casos de a raiz verbal deitar-se ([br) fazer referncia ao ser
humano, est em jogo um deitar-se vergonhoso e ilegtimo, sendo este ser censurado com a
pena de morte do acusado e ou acusada dentro do contexto da legislao 133 do Antigo Israel.
Parece que ao falar de um deitar-se legtimo, usa-se outro verbo, confira as seis
presenas da raiz verbal deitar-se (bkv) no Saltrio. Neste sentido, visa-se um deitar-se para o
descanso no sono (Sl 3,6; 4,9; 68,14) ou um deitar-se para morrer (Sl 41,9; 57,5; 88,6).
Provavelmente, a expresso meu deitar (v. 3a) assume uma conotao bem diferente e
sugestiva. Como foi sublinhado anteriormente, o emprego da raiz verbal deitar-se ([br), tanto
em Lv 18,23 como em Lv 20,16 se refere de forma enftica ao ato sexual da mulher com o
animal. Isto , trata-se de um deitar-se vergonhoso e imoral, pois constitui um delito grave
passvel de pena de morte, conforme prevista na Lei de Israel. Ao ler Sl 139, pode se imaginar
que quem reza aqui seja uma mulher, uma vez que a raiz verbal deitar-se ([br)
133
Cf. SCHMIDT, Werner. Introduo ao Antigo Testamento, p. 109-133.
49
Parece que o orante acusado pelo crime de transgresso sexual (o deitar-se com um animal)
Concluindo as quatro expresses paralelas meu sentar, meu levantar, meu andar e
momentos. Contudo, a ideia mestra que o SENHOR conhecedor135 de tudo isso. No mais, o
orante apresenta sua orao por intermdio de uma linguagem136 altamente retrica, figurativa
e, ao mesmo tempo, significativa. Por isso, compe sua descrio no de maneira abstrata,
adjetivo possessivo da primeira pessoa do singular: meu). descrita uma experincia pessoal.
Para o orante-telogo, o SENHOR quem tudo conhece. A raiz verbal conhecer (), pois,
repetida por trs vezes no Sl 139 (v. 1b.2a.4b), carrega o pensamento central desta unidade
literria. Ou seja, apresentado um Deus que est ciente da vida prtica do ser humano. Deus
entra numa relao com o homem. 137 Investiga este ltimo e o conhece.
importa se este ltimo est sentado, levantado, andando ou deitado. Uma segunda expresso
ainda acompanha o verbo conhecer. Trata-se da raiz verbal que, provavelmente, signifique
medir ( )sendo que este verbo aparece somente aqui na Bblia Hebraica. 138 Todavia, o
contexto imediato de Sl 139,2-3 parece indicar que o termo medir, simplesmente ilustre o
conhecimento exato do SENHOR. Quer dizer: ao medir algo, este se torna conhecido.
134
Na afirmao de inocncia, o orante deseja passar em revista sua vida passada, porque nesses momentos sabe
que est na presena do SENHOR, o Deus onisciente (Cf. Asensio. V. MORLA. Livros Sapienciais e outros
Escritos, p. 291).
135
Cf. Ex 3,7.
136
No h verdadeiro conhecimento do Saltrio sem o estudo estrutural de sua linguagem simblica (Cf.
MONLOUBOU, Louis. Os Salmos e os outros Escritos, p. 43).
137
O Antigo Testamento fala de Deus e de sua relao com o ser humano, da correlao existente entre o agir de
Deus e a escolha do homem. Veja: Is, 1,19-20; Ex 33,19 -23 (Cf. FOHRER, Georg. Estruturas Teolgicas
Fundamentais do Antigo Testamento, p. 138).
138
Existe uma segunda raiz, composta pelas mesmas trs consoantes: (). O significado desta raiz aventar,
dispersar, espalhar (Cf. LISOWSKI, Gerhard. Konkordanz Zum Hebrischen Alten Testament, p. 454).
50
SENHOR
referida raiz verbal tem vinte e seis presena no livro dos Salmos. Ao olhar para essas vinte e
seis ocorrncias do verbo discernir, interessante fazer as seguintes perguntas: Quem est
Na maioria dos textos paralelos nos Salmos, o SENHOR, que discerne algo em relao
ao homem, a fim de que a justia e direito sejam estabelecidos. Tambm o justo e o sbio
podem discernir algo. Ou seja: estes ltimos desejam discernir os caminhos e os preceitos do
SENHOR, para permanecerem fiis Aliana 139. Ao contrrio disso, os mpios so incapazes de
Neste sentido, o SENHOR discerne o agir dos habitantes da Terra (Sl 33,15). Mais
ainda: o justo pede que o SENHOR discirna o seu gemido a fim de salv-lo (Sl 5,2). Surge a
139
Cf. WEISER, Artur. Os Salmos, p. 21.
51
ideia de que o SENHOR, ao discernir algo em relao situao do homem, atua para fazer
Alm disso, o justo sabe discernir o caminho dos mpios (Sl 73,17). Todavia, os mpios no
sabem discernir a vontade e os mandamentos do SENHOR (Sl 28,5; 49,21; 82,5; 92,7; 94,7.8)
religio do Antigo Israel, acontece que o comportamento moral do homem deve adequar-se
vontade de Deus.140 Por isso, o SENHOR visto como quem melhor sabe discernir os
pensamentos do homem.
orante (Sl 139, 2b) e a Deus (Sl 139,17b). O termo pensamento traduz uma noo
masculino singular longe, distante, longnquo (). O referido adjetivo tem sete presenas
140
Cf. WESTERMANN, Claus. Teologia do Antigo Testamento, p .27-28.
52
Em trs dos textos paralelos, o adjetivo longe ou distante sugere a ideia de ausncia ou
de abandono. Por isso, o justo grita para o socorro do SENHOR que parece estar longe dele
no momento de angstia (Sl 10,1; 22,2). Semelhantemente, o justo perseguido afirma que os
seus parentes ficaram longe dele no momento da desgraa (Sl 38,12). Nos outros quatro
casos, o adjetivo traz a noo de grande distncia, no espao e no tempo (Sl 56,1; 65,6;
119,155; 139,2b).
do SENHOR em conhecer quem reza aqui. Tal conhecimento do SENHOR no que se refere ao
pensamento. Afirma-se que o SENHOR conhece a gnese dos pensamentos do orante. Ou seja:
contrrio dos seres humanos que somente podem avaliar as intenes dos seus companheiros
seres humanos pelas suas aes e palavras, Deus conhece e discerne o pensamento da pessoa
homem (cf. J 38-40). Enquanto o homem avalia apenas olhando pela aparncia, Deus, ao
contrrio, capaz de ajuizar e discernir o pensamento do ser humano (cf. Jr 12,3; Ez 11,5;
1Cr 28,9; Sl 44,22; 94,11). Desta forma, o SENHOR desmascara a falsidade e/ou a verdade
presente no intimo do ser humano. Por isso, diante de Deus, o homem no tem como se
esconder, surge o que est no seu interior. (Hb 4,12-13). Entrar em relao com o SENHOR
significa expor seu pensamento. Ou seja: imagina-se que diante de Deus o pensamento do
53
orante. Menciona com poucas palavras a natureza e o teor da relao entre o SENHOR e quem
reza aqui.
no masculino singular da raiz verbal acostumar (). O SENHOR sujeito. Ele quem pratica
tem dez presenas em toda a Bblia Hebraica. Ao pesquisar essas presenas, interessante
fazer as seguintes perguntas. Quem est acostumado? Com quem ou que? Quais so os
A raiz verbal pode expressar o costume da jumenta (Nm 22,30). H casos onde a ela
indica que algo til ou no a Deus ou ao homem (J 15,3; 22,2; 34,9). Alm disso, o homem
familiar com o orante. Imagina-se uma maior harmonia entre o SENHOR e quem aqui reza. O
insiste na questo que Deus conhece at as decises morais do homem, assim como estas que
54
ocorrem no pensamento (v. 2b) e depois ganham visibilidade por meio do comportamento da
pessoa (v. 3b). Quer dizer: esto sendo contempladas decises e aes do homem.
causa da exortao de louvar a Deus (Sl 136). 143 Nesta perspectiva Monloubou afirma:o ki
hebraico, que introduz a narrao dos atos de Deus, no tem sentido causal e no diz por que
pensamentos (v. 2b), consequentemente de seus discursos. Antes que estes ltimos so
141
Cf. MURAOKA, Takamitsu. Emphatic Words and Structures in Biblical Hebrew, p. 158-164.
142
Cf. JOON, Paul.; MURAOKA, Takamitsu. A Grammar of Biblical Hebrew, p. 580-581.
143
Cf. BENTZEN, Aste. Introduo ao Antigo Testamento, vol. 1, p. 168.
144
JOON, Paul. Grammaire de lHbreu Biblique, p. 517. In: MOULOUBOU, Louis. Os Salmos e outros
Escritos, p. 60.
55
feminino no singular. No Saltrio, a referida palavra tem duas presenas: Sl 19,5 e Sl 139,4a.
Em Sl 19,5 ela se refere aos discursos dos cus que contam a glria de Deus. No Sl 139,4a
provavelmente ela se refere ao discurso do orante.146 Alm disso, a expresso traduzida aqui
como inteiramente, formada em hebraico pelo adjetivo todo ( ) e pelo sufixo pronominal
da terceira pessoa do feminino singular ( ). Literalmente, v. 4b diz: Eis que conheceste todo
masculino singular lngua (), seguido pelo sufixo pronominal da primeira pessoa do
singular (). O substantivo lngua ( )tem trinta e cinco presenas no Saltrio. A lngua no
sobretudo no sentido tico-moral. 147 Isso vale, sobretudo, para o contexto da sabedoria de
145
Cf. LAMBDIN, O. Thomas. Gramtica do Hebraico Bblico, p. 62 e 207.
146
A raiz ( )aparece por trinta e oito vezes na Bblia Hebraica, e deste total ela tem trinta e quatro presenas
no livro de J; significando discurso (Cf. LISOWSKI, Gerhard. Konkordanz Zum Hebrischen Alten Testament,
p. 800).
147
A lngua como membro do paladar, mas principalmente designa a fala verdadeira: 2Sm 23,2; Is 35,6 ou falsa:
Sl 5,10; 12,4; 109,2; Is 59,3; Pr 6,17 (Cf. WOLFF, W. Hans. Antropologia do Antigo Testamento, p. 111).
148
Em uma cultura fundamentalmente oral, a sabedoria se transmite pela palavra e/ou lngua; por isso
importante quer e saber escutar (Cf. VLCHEZ LNDEZ, Jos. Sabedoria e Sbios em Israel, p 45).
149
SCHROER, Silvia.; STAUBLI, Thomas. Simbolismo do Corpo na Bblia, p. 179.
56
Usando a lngua, o homem se comunica com seu prximo e apresenta ao seu Criador os
sentimentos de seu corao: louvor, splica, angstia e alegria. 150 Estar privado do seu uso
pode significar um castigo divino (Sl 137,6; Lc 1,20). Por isso, a obra messinica consistir
em devolver o uso da lngua aos mudos (Is 35,6; Mc 7,33-37) o que lhes oferece a
Alm do mais em v. 4b, invocado o nome do Deus de Israel. Lembra-se que no incio
do poema o orante comeou a sua prece referindo-se a Deus como quem o investigou e
conheceu (v. 1b). Segundo Morla, a invocao do nome do Deus de Israel uma
manifestao de confiana, durante a qual o orante declara o que o SENHOR significa para ele.
No tocante realidade da presena divina, Israel concebia o SENHOR como algum que
habita nos cus, acima do firmamento (1Rs 8,49). O SENHOR, no entanto, se faz presente em
Israel e no meio do seu povo de forma particular. O livro de Deuteronmio aponta esse fato
Assim, o SENHOR no somente reside nos cus, mas tambm pelo nome habita no
Templo (Sl 48,10-11; 74; 79,2). Neste sentido, para Israel, o nome a pessoa 152. Ou seja,
invocar o nome do SENHOR o meio privilegiado para entrar em contato com Ele. Portanto, o
orante do Sl 139, ao invocar o nome do Deus de Israel nos v. 1b.4b provavelmente estaria
150
Cf. WOLFF, W. Hans. Antropologia do Antigo Testamento, p. 112. Veja: Ex 15,1-21; Mt 9,8; Lc1,46-55.
151
MORLA ASENSIO, Vctor. Livros Sapienciais e outros Escritos, vol.5, p. 291.
152
MURPHY, E. Roland. J e Salmos, p. 58.
153
Surge deste modo, a problemtica teolgica inerente maneira de como Deus se faz presente junto a seu povo
(1Rs 8,27-28). Contudo, Israel tinha a certeza que em seu meio o SENHOR se achava presente. A prova disso so
as queixas a respeito da aparente ausncia divina nos momentos de desgraa. Por isso, um dos frequentes
desafios feitos ao fiel era o seguinte: onde est o vosso Deus? (Sl 79,10; 115,2). O Saltrio ilustra em parte o
imediatismo da presena divina: Deus sobe por entre ovaes (Sl 47,6), tributai ao SENHOR a glria do seu nome
(Sl 96,8).
57
sendo que esta ltima ser descrita, com amplitude, na prxima estrofe. O v. 5a inicia com
da ao verbal do perfeito, do Qal, sendo a raiz verbal , seguido pelo sufixo da primeira
pessoa do singular (). Tal raiz verbal tem trinta e seis presenas na Bblia Hebraica, com
somente uma presena no livro dos Salmos.154 Tanto Deus como o homem pode ser pensados
Quando o homem o sujeito, trata-se de uma realidade blica. Assim, o SENHOR probe
Israel a fazer cerco contra Moab (Dt 2,9). Saul convoca todo o povo s armas e cerca Davi e
seus homens (1Sm 23,8). Os caldeus e o rei da Babilnia cercam Jerusalm (Jr 21,4; 32,2;
37,5).
154
Existem outras duas raizes verbais compostas pelas mesmas trs consoantes. O significados destas duas razes
so hostilizar e dar forma a algo (Cf. LISOWSKI, Gerhard. Konkordanz Zum Hebrischen Alten Testament, p.
1214-1215).
58
Nos casos onde Deus o sujeito do verbo cercar, faz se referncia atitude blica e/ou
protetora do SENHOR. Em linguagem antropomrfica, dito que o SENHOR faz cerco contra
os inimigos de Israel (Ex 23,22), a fim de atacar estes ltimos, ou que cerca Israel (Is 29,3)
para proteg-lo. Imagina-se que o SENHOR faz cerco contra os inimigos de Israel, protegendo
este ltimo contra os invasores (Ex 23,22). Em Is 29,3 por sua vez, Deus fecha o cerco ao
Acolhendo estas conotaes, o verbo cercar traduz tanto uma realidade de proteo e de
O que o orante quer afirmar no Salmo 139? Um primeiro olhar para v. 5a parece indicar
que o fiel aqui descrito no veja mais a possibilidade de escapar do SENHOR, o qual o cerca de
todos os lados. Por isso, o orante estaria apresentado imagem de um Deus protetor que cerca
O verbo cercar nada tem de delicado! Ele sugere uma realidade que mais paralisa do
que liberta. Parece que o orante esteja experimentando algo de misterioso pairando sobre
ele. 156 Neste sentido, a expresso cercaste-me assume uma conotao sugestiva. Apesar da
vinculao do verbo cercar com a imagem de hostilidade h pelo menos um indcio textual
parece que o relacionamento entre Deus e o fiel contemplado como amigvel e benfazejo.
Prevalece a ideia que o SENHOR cerca para cuidar. O cerco em questo um cortejo
propsito dele, mediu seu andar e seu deitar, acostumou-se com os caminhos dele, o
155
Veja a concepo do SENHOR, Deus de Israel, como forte, poderoso e valente na batalha (Sl 24,8); ou seja,
do Deus de Israel como o SENHOR dos exrcitos (Sl 24,10).
156
Cf. WEISER, Artur. Os Salmos, p. 629.
59
conheceu e por fim, o cercou de todos os lados a fim de cuid-lo. Portanto, imagina-se que
pela raiz verbal pr ( )no imperfeito da segunda pessoa do masculino singular, do Qal. Ela
tem trinta e uma presenas no Saltrio. Nos casos onde o verbo pr tem por sujeito o SENHOR,
trata-se da presena ativa de Deus. O SENHOR age constantemente com seu povo. Neste
sentido, o SENHOR pe medo nas naes (Sl 9,21), pe o pobre e o infeliz a salvo (Sl 12,6),
pe uma coroa de ouro sobre a cabea do rei (Sl 21,4) ou pe os inimigos em uma fornalha
A expresso sobre mim ( ) formada pela preposio sobre ( )seguida pelo sufixo
substantivo feminino singular (), seguido pelo sufixo da segunda pessoa do masculino
singular (). O substantivo (), traduzido por palma da mo diferente de mo (dy:), tem
vinte e uma presenas no Saltrio. Contudo, importante ressaltar que somente aqui se fala da
Todavia, existem textos paralelos na Bblia Hebraica, nos quais se fala da atuao de Deus
O SENHOR revela sua glria e essncia sobre a montanha, cobrindo Moiss com a
palma da mo (Ex 33,22-23); J pede que Deus afaste a palma da mo dele, para no o
SENHOR grava Israel nas palmas das mos para proteg-lo (Is 49,16); Israel uma coroa
Acolhendo estes paralelos, a expresso palma de tua mo pode ser interpretada como
proteger, pode tambm destruir (Ex 33,22-23; Is 49,16; 62,3; J 13,21; 40,32). Isto , a palma
da mo de Deus se torna smbolo do poder e da fora dele (Dt 3,24; 5,24; 11,2-7; Sl 35,10;
86,8; Jr 10,6).
Israel celebra tambm o poder libertador de seu Deus no canto (Ex 15). No mais, seja ainda
Se o ntimo da pessoa no pode ser conhecido pelos olhos humanos, quanto mais
157
Ao lado dessas representaes da poderosa iniciativa de Deus na histria humana por meio da mo, existe
tambm a imagem de uma divindade que formou todo o universo com suas mos (Sl 8; J 12,7-10), e mantm
em vida, num ato de permanente recriao; tudo o que foi criado e/ou feito (Sl 145,16). Portanto, todo ser
vivente e todo ser humano dependem da mo generosa do SENHOR (Sl 104).
158
Cf. AGOSTINHO, Comentrio aos Salmos. Salmos 101-150, p. 867-869.
61
Nos v. 6a-6b, o orante revela seu fascnio e/ou xtase diante do prodgio que a
sabedoria divina. Quem reza aqui descreve o conhecimento divino como algo maravilhoso. O
adjetivo, aparece somente duas vezes na Bblia Hebraica (Jz 13,18; Sl 139,6). No caso de Jz
13,18; o anjo do SENHOR responde a Manu dizendo: Por que me perguntas meu nome? Ele
primoroso que o SENHOR tem da vida do orante. Ou seja, ao qualificar essa experincia como
algo maravilhoso, quem reza aqui parece querer se aproximar realidade mstica.
que um dia declara a outro e uma noite transmite o conhecimento a outra noite (Sl 19,3) e
que o SENHOR ensina o conhecimento ao homem (Sl 94,10) e ao fiel (Sl 119,6).
conhecimento ao ser humano (Eclo 1,26; 6,37; Sb 7,7; 9,11; 1Rs 3,12; 5,9.26; 2Cr 1,11s). Por
isso, no caso paradigmtico de Salomo, o SENHOR concede ao rei o que pede: D-me a
sabedoria e o conhecimento para dirigir este povo (2Cr 1,10). Assim, no Sl 139,6a o
pessoa do singular (). A preposio () , em geral, significa de, a partir de, mais do que, da
terceira pessoa no singular feminino. Essa raiz verbal significa ser inacessvel, ser elevado,
No caso, o SENHOR eleva o fiel em segurana (Sl 20,2), eleva o fiel contra os inimigos
(Sl 59,2), eleva o fiel perseguido (Sl 69,30). No mais, o SENHOR eleva aquele que conhece seu
nome (Sl 91,14) como eleva o necessitado da misria (Sl 107,41). Em contrapartida, o nome
orante. O verbo conhecer aparece por trs vezes (v. 1b.2a.4b). Quem reza imagina e descreve
a oniscincia divina como mistrio inacessvel e incompreensvel ao homem. No final (v. 6a-
Enfim, para o orante, o SENHOR maior que seu corao, seus propsitos e segredos.
Conhece tudo dele, acostuma-se com ele, discerne os pensamentos dele (cf. 1Jo 3,20). Por
isso, quem reza se sente continuamente investigado e conhecido pelo SENHOR (v. 1b-4b).
Diante da majestade do conhecimento e da presena divina, nada mais resta ao orante do que
mistrio de Deus. Dentro deste mesmo contexto da profunda experincia de Deus, o apstolo
Nos v. 7a-12c, esto sendo descritas aqui novas aes e ideias. Os v. 7a-7b iniciam-se
com uma pergunta dupla articulada pelo pronome interrogativo ( )repetida duas vezes
que aparentemente revelam o desejo do orante de fugir da onipresena de Deus. Nos v. 7a-7b
os verbos ir e fugir de um lado e, os merismas esprito efacede outro lado expressam o tom
do pensamento mais ousado de quem reza para esquivar-se da onipresena divina. Mais uma
vez, o SENHOR apresentado como o protagonista principal da experincia vivida pelo orante.
Nos v. 11a-12c, o fiel conclui a reflexo expressada nos v. 7a-10b com uma declarao de
diferentes tipos de paralelismo que aparecem como jogo literrio usado pelo devoto para
Imagina-se que para onde se volte, o orante se depara com a presena divina. Quem reza aqui
159
Cf. BOOIJ, Thijs. Psalm CXXXIX. Text, Syntax, Meaning. In: Vetus Testamentum, p. 3.
66
Nesta segunda estrofe, o orante trabalha a ideia do espao. Em geral, quando algum
deseja que outro no o encontre, vai para longe ou busca um lugar escuro onde possa
esconder-se. Porm, com Deus semelhantes estratagemas e artimanhas no valem. Ele est em
todos os lugares: perto ou longe, em cima no cu ou nos abismos mais profundos, nos confins
do mar ou onde costuma habitar a aurora, por fim, Deus atravessa com seu olhar o manto da
fugir da onipresena divina. Quem reza nesse poema do Sl 139 se d conta que o SENHOR est
presente em todos os lugares! Ele est, se faz presente em toda a sua criao!
Progressivamente, o orante descobre que o SENHOR est mais presente do que ele prprio est
presente a si mesmo.
Deus imaginado num lugar central, definido por seu esprito e por sua face, ao passo
que suas mos abarcam simultaneamente os dois extremos do horizonte. Ainda que o orante
se dirija a Deus, seu discurso soa como monlogo, as perguntas retricas dos v. 7a-7b so
O contedo desta estrofe pode ser explicado pela anlise da forma literria. Para este
fim, utiliza-se as indicaes correntes em anlise literria. 160 Tem-se o seguinte resultado: v.
160
Cf. HOLMAN, Jan. The Structure of Psalm CXXXIX. In Vetus Testamentum, p. 300.
67
7a-9b formam o preldio, v. 10a-10b constituem o centro da unidade e por fim, v. 11a-12c
acima. Trata-se das trs hipotticas fugas do orante da presena divina (v. 7a-9b) que
impossibilidade de fugir de Deus, quem reza pensa finalmente em refugiar-se nas trevas, mas,
tambm l ele envolvido por Deus, o Criador da luz. Observa-se que essa interveno divina
a dobradia da estrofe, pois descreve tanto o agir quanto o rosto de Deus. O orante percebe
do fiel da presena divina. Quem reza nesse poema, planeja hipoteticamente ir longe de Deus.
A dupla pergunta retrica (v. 7a-7b) faz observar que impossvel ao homem esquivar-se da
presena de Deus. Os v. 10a-10b mostram o tom de intimidade pessoal de quem aqui reza ao
68
SENHOR.161 O fiel fala de sua experincia com Deus servindo-se de contrastes extremos ou
merismas para expor sua reflexo. Por meio de um monlogo, o orante afirma que o SENHOR
ltimo. Imagina-se que essa onipresena divina no uma ameaa vida de quem reza nesse
poema.
Por fim, nos v. 11a-12c o orante parece fazer uma pausa, a fim de declarar sua
incapacidade para descrever essa experincia. Essa declarao ganha carter de uma
confisso, finalizando a meditao. Deus luz (1Jn 1.5). Por isso, as trevas para o SENHOR
no so escuras, elas iluminam como o dia. Dessa forma, no h lugar onde o homem possa
Merisma cu (v. 8a) e manso dos mortos (v. 8b); aurora (v. 9a) e
confim do mar (v. 9b); treva (v. 11a) e luz (v. 11b); noite
161
O verbo conduzir parece reforar a ideia de Deus como pastor.
69
Uma anlise do texto hebraico dos v. 7a-12c proporciona aes verbais no imperfeito.162
Que traduo e interpretao sugere esse tempo verbal? De acordo Lambdin, o imperfeito a
segunda flexo principal do verbo hebraico e usado normalmente para descrever uma ao
concebida pelo orador como geral, no especfica, habitual, potencial, ou em certa medida at
provvel. 163 Alm disso, de acordo com Booij, o imperfeito apresenta situaes em
andamento.164 Dessa forma, no poema do Sl 139 o enfoque no futuro o mais apropriado para
se daquele de quem desejaria fugir! Diante disso, surge a pergunta: aonde haver de partir o
orante se seus prprios limites foram investigados pelo SENHOR? (cf. v. 1b-5a). Sua pretenso
era de buscar um lugar aonde ele ir para longe do esprito do SENHOR. Mas, as Sagradas
162
Cf. LAMBDIN, O. Thomas. Gramtica do Hebraico Bblico, p. 133.
163
LAMBDIN, O. Thomas. Gramtica do Hebraico Bblico, p. 134.
164
Cf. BOOIJ, Thijs. Pslam CXXXIX: Text, Syntax, Meaning. In: Vetus Testamentum, p. 2.
70
Escrituras afirmam que o esprito do SENHOR enche o universo (Sb 1,7)! Quem ento poderia
pretenso do orante para esquivar do SENHOR. Neste sentido, os verbos irei e fugirei
expressam, pelo menos hipoteticamente, o desejo deste ltimo de permanecer longe de Deus.
Isto , ele anseia subtrair-se ao menos por um instante da presena divina. Quais so de fato e
(), do Qal. Ela aparece por sessenta e oito vezes no Saltrio. A forma ( ) aparece por
sete vezes no Saltrio: Sl 23,4; 26,11; 39,14; 42,10; 138,7; 139,7a e 143,8. O paralelismo
nestes casos indica especificamente o ato de andar e/ou ir. Ao olhar para as setenta e oito
presenas do verbo ir no livro dos Salmos, interessante pesquisar o que o verbo ir representa
de fato e simbolicamente. Na maioria dos textos paralelos tanto o fiel e/ou o justo como o
Nos casos em que o verbo ir tem por sujeito o fiel e/ou o justo, trata-se de atitude tico
moral deste ltimo e de sua confiana em Deus. Desta forma, o justo no anda segundo o
conselho dos mpios (Sl 1,1); o fiel anda na verdade do SENHOR (Sl 26,3; 86,11); os fiis vo
casa do SENHOR (Sl 55,15); o fiel anda na presena de Deus (Sl 56,14; 116,9); o fiel anda
no caminho dos ntegros (Sl 101,6); os justos vo conforme a lei do SENHOR (Sl 119,1); os
fiis vo a casa do SENHOR (Sl 122,1); os justos andam no caminho do SENHOR (Sl 128,1); o
justo pede que o SENHOR lhe indique o caminho aonde ele deve andar (Sl 143,8).
71
Nos casos em que o verbo ir tem por sujeito o mpio, trata-se de atitude de infidelidade
deste ltimo em relao aos preceitos divinos. Assim, a lngua dos mpios anda pela terra (Sl
73,9); os filhos de Israel desobedientes e rebeldes no andam segundo a lei do SENHOR (Sl
78,10; 81,13; 89,31); os prncipes mpios andam nas trevas (Sl 82,5); os inimigos vo
Alm disso, h casos em que o verbo ir significa locomover-se, andar. Isto , a situao
de andana do homem. Dessa forma, os mpios vo por toda parte (Sl 12,9), ainda que o fiel
v pelo vale da sombra, no temer mal algum (Sl 23,4); o homem abatido vai lamentando o
dia todo (Sl 38,7); o exilado vai chorando ao levar a semente (Sl 126,6); quando o justo anda
em meio da angstia o SENHOR o faz viver (Sl 138,7); no caminho em que anda o justo os
De tudo o que foi dito, convm ressaltar que no Sl 139 o verbo ir (v. 7a) sugere a ideia
de andar, percorrer. Por isso, quem reza aqui, planeja retirar-se de Deus.
pelo substantivo feminino singular esprito () , seguido pelo sufixo da segunda pessoa no
setenta e oito presenas165 na Bblia Hebraica e, trinta e nove ocorrncias no Saltrio. Antes
de tudo, importante lembrar que esprito se refere mais a Deus (136 vezes) do que aos
Segundo a tradio bblica, Deus esprito e no se acha ligado ao espao. Por isso, na
verso dessa pesquisa optou-se pela expresso esprito para a traduo do substantivo (
).
165
Cf. CHEVALLIER, Max-Alain. Souffle de Dieu. Le Saint-Esprit dans le Nouveau Testament, p. 23.
166
Cf. WOLFF, H. Walter. Antropologia do Antigo Testamento, p. 51.
72
esprito de Deus uma noo teolgico-antropolgica. 167 Ao olhar para essas trinta e nove
em relao a Deus.
Nos casos em que a expresso esprito se refere a Deus, trata-se da ideia de fora
criadora e/ou vital. Isto , uma fora divinamente poderosa. Neste sentido, pelo esprito da
boca do SENHOR foram feitos o exrcito dos cus (Sl 33,6); o pecador pede Deus que no
retire dele o seu santo esprito (Sl 51,13); o esprito do SENHOR criou o universo (Sl 104,30);
os filhos de Israel foram rebeldes ao esprito do SENHOR (Sl 106,33); o fiel pede que o bom
interessante observar que, no Sl 33,6 a expresso esprito usada como sinnimo de palavra,
pois, ambos saem da boca. Desta forma, o hlito do SENHOR fora vital, criadora. Por isso,
como fora vital, o esprito do SENHOR tambm determina a durao da vida do homem (cf. Sl
51,13; 143,10). Alm disso, o esprito e/ou sopro de Deus domina as foras da natureza.
Deste modo, Ex 15,8 canta: ao sopro de teu nariz as guas se amontoam, as ondas se
tambm o jeito da pessoa, sua conscincia, seu entusiasmo ou dinamismo. 168 Segundo a
167
Cf. CHEVALLIER, Max-Alain. Souffle de Dieu. Le Saint-Esprit dans le Nouveau Testament, p. 14-15.23-24.
168
Cf. GRUEN, Wolfgang. Pequeno Vocabulrio da Bblia, p. 23.
73
igualmente fora vital e ativa, fora criadora e fora divina. 169 Assim, o esprito de Deus um
esprito que vivifica e dinamiza. De acordo com o relato de Gn 1,2, no incio da obra criadora,
Alm disso, o mesmo esprito do SENHOR que torna o ser humano um ser vivente (cf.
criaturas (cf. Nm 16,22; 27,16; J 12,10). Nesta mesma perspectiva, na viso proftica de
Ezequiel, somente o esprito de Deus que conduzir o povo de Israel para fora da situao
de tragdia e de morte que representa o exlio, para a vida nova (Ez 37,9-10). Ezequiel, numa
viso, v um imenso vale cheio de ossadas que simboliza o povo de Israel sem esperana, sem
esprito, sem vida (Ez 37,1-6). Por isso, ao profetizar o orculo conforme a ordem recebida do
SENHOR, o esprito entrou nelas e elas viveram; firmando-se sobre os seus ps como um
No mais, de forma acintosa o livro da Sabedoria afirma que o esprito do SENHOR enche
o universo; mantm unidas todas as coisas e conhece toda palavra (Sb 1,7). Desse modo,
Latina.170
Acolhendo essas conotaes, imagina-se que o orante tenta idealizar um lugar para
primeira pessoa no singular, do Qal. Essa raiz verbal aparece por sessenta e cinco vezes na
169
Cf. SCHROER, Silvia.; STAUBLI, Thomas. Simbolismo do Corpo na Bblia, p. 270.
170
Cf. Missal Romano, p. 318.
74
Bblia Hebraica, trs vezes no Saltrio.171 importante pesquisar o sentido do verbo fugir
nestas presenas: Sl 3,1; 57,1 e 139,7b. Nos dois primeiros casos, esse verbo se refere fuga
de Davi diante de seus inimigos e perseguidores. Neste sentido, Davi foge de Absalo (Sl 3,1)
e de Saul (Sl 57,1). Com base nestes elementos, no Sl 139, 7a, esse verbo expressa o desejo
de fuga do orante.
O verbo fugir expressa o ato de mover-se rapidamente para longe de uma pessoa ou
uma situao perigosa, hostil, ou intolervel (Gn 16,8; 31,27; Ex 2,15; 1Rs 2,7; 12,2; J
27,22).172 Em geral, foge-se de um campo de batalha ou de uma catstrofe natural. Assim, por
substantivo () , masculino plural do construto que, por sua vez, seguido pelo sufixo da
segunda pessoa do masculino singular (). O referido substantivo ( ) traduzido por face,
rosto, frente, tem duas mil cento e vinte trs presenas na Bblia Hebraica, e cento e vinte oito
verso face.
Ver a face de algum uma expresso habitual para noticiar o fato de estar vendo ou ser
admitido em sua presena. Em geral, a face o aspecto exterior de uma coisa (cf. Sl 104,30;
31,2). Nesta perspectiva, segundo Gruen, a expresso face representa tanto a pessoa quanto o
que ela tem de mais seu 173. Por isso, ela pode assim, designar a personalidade: minha face
(cf. Sl 42,6.12; 43,5) e a presena de modo especial de Deus dirigindo-se ao homem. Com
efeito, a referida expresso se refere tanto a Deus como ao homem. Novamente, trata-se de
171
Existe ainda um substantivo formado pelas mesmas consoantes (), significando o ato de planar, voar (Cf.
LISOWSKI, Gerhard. Konkordanz Zum Hebrischen Alten Testament, p. 282).
172
Cf. TERRIEN, Samuel. The Psalms, p. 876.
173
GRUEN, Wolfgang. Pequeno Vocabulrio da Bblia, p. 60.
75
Nos casos em que a expresso face, se refere a Deus, questo tanto de sua generosa e
amorosa ao com o fiel e de sua presena dominadora como sobre os mpios. Dessa forma, o
fieis pedem que o SENHOR levante sobre eles a luz de sua face (Sl 4,7), que os mpios
tropecem e peream diante da face do SENHOR (Sl 9,4), as naes so julgadas diante da face
do SENHOR (Sl 9,20), o fiel e/ou o justo vive na plenitude da alegria diante da face do SENHOR
(Sl 16,11), a sentena do inocente vem da face do SENHOR (Sl 17,2), o rei se enche de alegria
diante da face do SENHOR (Sl 21,7), o SENHOR far dos inimigos uma fornalha no dia de sua
face (Sl 21,10), as naes e os poderosos se prostraro diante da face do SENHOR (Sl
22,28.30), o inocente e o homem de corao puro buscam a face do SENHOR (Sl 24,6), o
SENHOR esconde aqueles que o temem no segredo de sua face longe das intrigas dos homens
(Sl 31,21), o SENHOR pe o justo diante de sua face para sempre (Sl 41,13; 61,8), o fiel
louvar o SENHOR pela salvao de sua face (Sl 42,6.12; 43.5), a destra, o brao e a luz da
face do SENHOR conquistaram a terra para Israel estabelecer-se (Sl 44,4), o suplicante pede
que Deus no o rejeite para longe de sua face e no lhe retire seu santo esprito (Sl 51,13), o
SENHOR salva o fiel para que ele ande diante de sua face, na luz dos viventes (Sl 56,14), os
inimigos e os mpios fogem e perecem diante da face de Deus (Sl 68,2-3), os justos se
rejubilam e exultam diante da face de Deus (Sl 68,4-5), a terra tremeu, tambm os cus
gotejaram diante da face de Deus; o prprio Sinai perante a face de Deus de Israel (Sl 68,9),
o SENHOR coloca as iniquidades e os pecados ocultos dos homens diante da luz de sua face
(Sl 90,8), diante da face do SENHOR ser julgada a terra (Sl 98,9), o SENHOR esconde sua face
e os seres vivos se apavoram (Sl 104,29), a terra treme diante da face do SENHOR, diante da
face do Deus de Jac (Sl 114,7), o fiel caminhar diante da face do SENHOR na terra dos
viventes (Sl 116,9), o fiel espera que seu grito e sua splica cheguem diante da face do
76
SENHOR (Sl 119, 169-170), os justos habitaro diante da face do SENHOR (Sl 140,14), o fiel
almeja que sua prece suba como incenso diante da face do SENHOR (Sl 141,2), o fiel derrama
sua queixa diante da face do SENHOR (Sl 142,3), diante da face do SENHOR nenhum vivente
justo (Sl 143,2), o fiel pede que o SENHOR no lhe esconda sua face, para que ele no se torne
De tudo o que foi dito, tira-se algumas dedues. Nota-se que a expresso face pode ser
De acordo com Schroer e Staubli, para tradio bblica a face voltada expresso de
SENHOR, Deus de Israel, revelou-se face a face aos seus adoradores (cf. Ex 33,11; Nm 12,8;
Dt 34,10; Sl 119,58.135).
acrescenta que o SENHOR no os fez morrer. Tambm, por privilgio especial, Moiss (cf. Dt
34,10) e Gedeo (cf. Jz 6,22) conversaram face a face com o SENHOR. Igualmente, Dt 5,4 diz
Alm disso, no caso paradigmtico de Jac, l-se que este ltimo reconheceu que
batalhou com o SENHOR e chamou o lugar da luta de Fanuel. Quer dizer, a face de Deus;
Portanto, nestes casos em que descrito a relao entre SENHOR e o fiel e/ou o justo, a
expresso de tua face ( ) traduz a presena magnnima e generosa do Deus (cf. Sl 4,7;
174
SCHROER, Silvia.; STAUBLI, Thomas. Simbolismo do Corpo na Bblia, p. 113.
77
16,11; 21,7; 31,17.21; 44,4; 80,4.8.20; 89,16; 90,8; 119,135; 140,14). Ou seja, refere-se
manifestao imediata e vivificante de Deus com relao ao homem. Por isso, o devoto do Sl
51,13 reza: no me rejeites longe de tua face, no retires de mim teu santo esprito.
importante lembrar que na religio do Antigo Israel coisa terrvel quando o SENHOR,
por causa do pecado do povo, desvia sua face ou lhe vira as costas (cf. Dt 31,17; J 13,24; Ez
7,22; Sl 51,12s).175 Assim, dito para Deus ocultar sua face. Dessa forma, imagina-se que Ele
no mais visto. Isto , Ele no mais favorvel ao homem (cf. Sl 69,18; 102,3).
Essa concepo tem sua base na ideia que todo ser vivente, vive pelo fato da face de
Deus estar voltada para ele num sinal de compaixo e cuidado, de amizade e
beno de Aaro apresenta a conscincia da dependncia vital do homem para com Deus
nessas palavras: O SENHOR te abenoe e te guarde! O SENHOR faa resplandecer o seu rosto
sobre ti e te seja benigno! O SENHOR mostre para ti a sua face e te conceda a paz! Nesta
orao, nota-se a dupla repetio da expresso face. Assim sendo, a face voltada refere-se
amizade do SENHOR para com o fiel israelita; a amizade leva este ltimo a viver tambm em
Alm disso, h textos paralelos nos quais se afirma que o homem contempla e/ou
procura Deus. Ou seja, o homem busca a face de Deus (cf. Sl 24,6; 27,8; J 33,26; Am 5,4-6).
Em contrapartida, h textos bblicos que afirmam que o homem no pode ver a face de Deus e
continuar a viver. Quer dizer, impossvel ao homem ver a Deus e permanecer vivente (cf. Ex
175
Cf. SCHROER, Silvia.; STAUBLI, Thomas. Simbolismo do Corpo na Bblia, p. 119.
78
Alm disso, h textos paralelos em que a face de Deus simboliza algo terrificante e
para o homem amante e praticante da Tor. Ou seja, a face de Deus constitui uma presena
especial sendo ela fonte de vida feliz para o justo e/ou o fiel. Por isso, o contexto de Dt 34,10,
em que est descrito o privilgio excepcional e inexprimvel de Moiss, indica que apenas
quem vive em perfeita comunho e intimidade com Deus ter a possibilidade de estar diante
da face dele. Assim, somente o fiel tem o privilgio de estar em paz e alegria diante da face de
Neste sentido, imagina-se a existncia de uma singular e pessoal relao entre Deus e o
orante do Sl 139. O fiel que reza neste poema, ao ser investigado e profundamente conhecido
pelo SENHOR, no ter como repelir essa presena. Por isso, lhe ser impossvel fugir e viver
longe da presena do SENHOR. De fato, na presena de Deus o fiel admitido, uma presena
Para Weiser, a expresso para onde irei de teu esprito faz aluso a um forte grau de
experincia pessoal do orante com o SENHOR; por isso, o que descrito nessas palavras revela
divina.176
O fiel do Sl 139 est ciente que no h como rechaar nenhuma relao de proximidade
com o SENHOR (cf. v. 1b-5b). Por isso, o orante poderia at deixar um pouco suas ocupaes,
subtrair-se por um instante ao tumulto dos seus pensamentos, deixar de lado as inquietaes
que o oprimem. Mas, impossvel ele esquivar-se de Deus; ele pode afastar-se de tudo exceto
176
Cf. WEISER, Artur. Os Salmos, p.629.
79
do SENHOR! importante se perguntar que lugar acolheria o fugitivo de Deus? Com efeito,
onde que o SENHOR no est (cf. Jt 16,13-14; Sl 24,1-2; 33,6-9; 47,3.8)? Quem poderia
engan-lo (cf. Sl 1,6; 33,14-15; 53,3; 82,1-2)? Quem poderia escapar do seu olhar (cf. Sl 94,7-
Neste sentido, vrios episdios em textos bblicos paralelos assinalam que impossvel
fugir do SENHOR como constam, entre outros, os relatos da queda do homem e da mulher no
paraso (cf. Gn 3,8-10) e de Jonas na sua tentativa de fuga do SENHOR (cf. Jn 1-2). Ento,
para onde ir quem decidir fugir da face do SENHOR? Virar-se para c e para l, procurando
um lugar para fugir! Afinal Deus esprito (cf. v. 7a; Gn 1,2) e no se acha ligado, confinado
Assim, o termo esprito se refere essncia da realidade divina (Gn 1,2; 2,7), enquanto
face designa simbolicamente a abertura e/ou a vontade de Deus se revelar ao homem (Jr 23,
24; Am 9,2).177 A revelao realiza-se num face a face concreto entre Deus e o homem,
Com relao figura estilstica presente nos v. 7a-7b, observa-se dois versos ou
sinonmico. Neste sentido, o segundo hemistquio repete a ideia do primeiro com termos ou
orante da presena de Deus. Por isso, a expresso face (v. 7b) do segundo hemistquio usada
segundo hemistquio paralelo tem como funo tornar mais expressivo o pensamento
177
Cf. TERRIEN, Samuel. The Psalms, p. 874.
178
FOHRER, Georg. Estruturas Teolgicas Fundamentais do Antigo Testamento, p. 74.
179
Cf. VLCHEZ LINDEZ, Jos. Sabedoria e Sbios em Israel, p. 68.
80
veiculado pelo primeiro hemistquio. Ou seja, o segundo hemistquio exprime uma proposio
palavra esprito. Por outro lado, a dupla repetio da expresso para onde, sugestiva. De
acordo com Simian-Yofre, a repetio de termos e/ou expresses contribui para descrever
nas quais a primeira expressa uma condio (real ou hipottica), e a segunda uma
abismo. Surge um merisma, sendo que os dois lugares extremos: cu e abismo indicam a
consigo?
(), sendo que o verbo aparece no imperfeito na primeira pessoa do singular, no Piel. A raiz
180
Cf. MOULOUBOU, Louis. Os Salmos e os outros Escritos, p. 37.
181
Cf. SIMIAN-YOFRE, Horcio. Diacronia: os mtodos histrico-crticos. In: SIMIAN-YOFRE, Horcio.
Metodologia do Antigo Testamento, p. 97.
182
Cf. LAMBDIN, Thomas. Gramtica do Hebraico Bblico, p. 328.
81
verbal ( )aparece uma nica vez na Bblia Hebraica. Provavelmente, a referida raiz verbal
significa subir.
por quatro centos e vinte e uma vezes na Bblia Hebraica, vinte oito vezes no Saltrio. O
substantivo, a fim de saber o que ele representa de fato e simbolicamente. Na maioria dos
Neste sentido, o SENHOR inclinou o cu e desceu (Sl 18,10), o cu foi feito pela palavra
do SENHOR (Sl 33,6), o cu anuncia a justia do SENHOR (Sl 50,6), Deus se eleva acima do
cu (Sl 57,12; 108,6), o SENHOR abriu as portas do cu (Sl 78,23), o SENHOR d de comer, aos
filhos de Israel, o trigo do cu (Sl 78,24; 105,40), o cu celebra a maravilha do SENHOR (Sl
89,6), o cu do SENHOR (Sl 89,12), o SENHOR fez o cu (Sl 96,5; 115,15.16; 121,2; 124,8;
134,3; 146,6), o SENHOR estende o cu como tenda (Sl 104,2), a misericrdia de Deus se
eleva acima do cu (Sl 108,6), o SENHOR cobre o cu com nuvens (Sl 147,8).
morada de Deus (cf. Sl 2,4), mas, simbolicamente os israelitas compreendiam que Deus
maior que qualquer espao (cf. 1Rs 8,27). 184 O Cu a obra ( Gn 1,1; Tb 13,7; Is 45,18; Sl
8,4; 96,6) e a morada do SENHOR ( Sl 33,13-14; 80,15; Sl 93,4; Sl 113,4-6; 115,3. 16; 148,1).
rege o universo e a histria dos homens (cf. Dn 2,20; 3). Assim, a onipresena do SENHOR
183
Cf. LAMBDIN, Thomas. Gramtica do Hebraico Bblico, p. 72.
184
Cf. GRUEN, Wolfgang. Pequeno Vocabulrio da Bblia, p. 17.
82
proclamada pelo orante do Sl 113,5-6 nesses termos: quem como o SENHOR nosso Deus! Ele
Alm disso, a expresso se subir aos cus pode significar simbolicamente tentar
alcanar o SENHOR, ou seja, tomar seu lugar, rivalizar com Ele. 185 Atitude paradoxal para
algum que planejava fugir de Deus! Neste sentido, rivalizar com o SENHOR lembra o
episdio de Babel, em que os homens decidiram construir uma cidade e uma torre, cujo pice
penetre os cus a fim de se igualarem a Deus (cf. Gn 11,1-9). Nesta mesma perspectiva, o
livro de Isaas apresenta a postura do rei da Babilnia, que em seu corao dizia: Subirei at o
cu, acima das estralas de Deus colocarei meu trono, estabelecer-me-ei na montanha da
Assemblia, nos confins do norte. Subirei acima das nuvens, tornar-me-ei semelhante ao
Afinal, de forma alguma quem reza no Sl 139 poder apartar-se, nem distanciar-se do
SENHOR. Eis que o SENHOR se encontra em toda parte e, por isso, no teria como o orante
A expresso e me estender (
) formada pela conjuno e (), seguida pelo verbo
estender ( )que aparece na primeira pessoa do singular, no Hifil. A raiz verbal aparece
por quatro vezes na Bblia Hebraica, sendo uma nica vez no Saltrio. Qual o significado
desse verbo?
Os judeus em grande luto estavam estendidos em pano de saco e em cinza (Est 4,3); os
vermes se estendero de baixo do corpo do rei da Babilnia (Is 14,11); o penitente se estende
acima de saco de pano e de cinza (Is 58,5). Nestes trs casos, a referida raiz verbal traduzida
por estender.
185
Cf. MANNATI, Marina. Para rezar os Salmos, p. 73.
83
substantivo aprece por sessenta e cinco vezes na Bblia Hebraica, dezesseis vezes no
Saltrio. Parece ser paradoxal essa hipottica viagem para o abismo. Por isso, convm
Desse modo, na manso, o defunto no louva o SENHOR (Sl 6,6); os mpios voltam
manso dos mortos (Sl 9,18); o SENHOR no abandona a alma do fiel na manso dos mortos
(Sl 16,10). H textos paralelos nos quais, se imagina que na manso dos mortos, os finados
tm vida diminuda e silenciosa, sem relaes com o SENHOR (cf. Sl 6,6; 30,10; 88,6. 11-13;
115,17-18).
Atitude curiosa querer deitar na manso dos mortos, tida como regio do mal
absoluto, regio de ausncia de Deus (cf. Is 38,10-11.18-19). Foras mgicas emanavam dos
cadveres. Por isso, usava-se um hbito de saco, em vez da vestimenta de todos os dias, para
tornar-se irreconhecvel ao morto e no cair na esfera de seu nefasto poder (cf. Lv 19,26-28;
Dt 14,1).186. Nesta perspectiva, para Mannati, deitar-se na manso dos mortos pactuar com
as foras do mal, mediante prticas mgicas. 187 interessante lembrar a proibio da Lei com
Em outros textos paralelos, manso dos mortos designa as profundezas da terra (cf. Dt
32,22; Is 14,9), para onde os mortos descem (cf. Gn 37,35; 1Sm 2,6; J 14,13-14), onde bons
(cf. Eclo 9,10). Porm, o poder do Deus vivo (cf. Dt 5,26s) se exerce tambm nesta habitao
186
Cf. FOHRER, Georg. Estruturas Teolgicas Fundamentais do Antigo Testamento, p. 88.
187
Cf. MANNATTI, Marina. Para rezar os Salmos, p. 73.90.
84
entrada comea na tumba; assim, a manso dos mortos considerada como um lugar distante
No mais, com relao manso dos mortos, Gruen esclarece que os israelitas pensavam
que aps a morte, as pessoas ficariam embaixo da terra num lugar comum, que no o
tmulo; este lugar chamado de manso dos mortos.189 Assim, descer manso dos mortos
significa morrer.
lugares extremos, onde se encontra a presena de Deus. O profeta Amos assim o amplia:
Ainda que perfurem at ao abismo, da os tirar minha mo; ainda que escalem o cu, da os
derrubarei; [...] ainda que se me ocultem no fundo do mar, para l enviarei a serpente para
Enfim, quem reza no Sl 139 planeja descer para a manso dos mortos a fim de fugir de
Deus. Ao pensar em estender-se na manso dos mortos, o orante constata que ele estar ainda
com o SENHOR. Por isso, a presena do SENHOR na manso dos mortos contradiz as crenas
da Mesopotmia e algumas concepes bblicas que declaram Deus estranho ao mundo dos
mortos (cf. Eclo 16,17). O orante do Sl 139, contudo, se separa dessas concepes que
Acaso, pode algum esconder-se em lugares secretos, sem que o SENHOR o veja e o
encontre (cf. Jr 23,24)? Neste sentido, mesmo que o orante descesse manso dos mortos, ele
encontrar Deus, pois, este o teria precedido (cf. J 26,6; Pr 15,11). Quando se sabe que a
manso dos mortos era para o israelita o lugar da ausncia divina (cf. Sl 6,6; 88,6-13), pode-
se avaliar melhor a intuio muito ousada e inovadora de quem reza no poema do Sl 139.
188
Cf. PARRA SNCHEZ, Toms. Palavras Bblicas, p. 52.
189
Cf. GRUEN, Wolfgang. Pequeno Vocabulrio da Bblia, p. 46.
85
Deus pode ir ao encontro do homem, at mesmo na morte. Dessa forma, tudo que dito no
Antigo Testamento sobre a ausncia de Deus na manso dos mortos muda completamente.
escapa do SENHOR. Por isso, o orante no escaparia de Deus. A fuga -lhe impedida.
Provavelmente, tem-se aqui um dos embasamentos, em que a crena na vida eterna pode
dos mortos.
ordenado, o resultado da criao realizada por Deus (cf. 2Mc 7,28). As polaridades cu e
manso dos mortos formam a figura de pensamento chamada de merisma, que consiste em
presena divina permanece em todos os lugares, tanto no cu, como na manso dos mortos,
no abismo ou submundo.
mar a fim de escapar do SENHOR. Mais uma vez uma atitude inconcebvel e adventcia para
190
Cf. SILVA, M. D. Cssio. Leia a Bblia como literatura, p. 34-35.
86
do imperfeito, do Piel, como primeira pessoa do singular. Na verso desta pesquisa optou-se
pelo infinitivo levantar para a traduo dessa raiz verbal que aparece por seiscentos e
cinquenta e cinco vezes na Bblia Hebraica, sendo quarenta e nove vezes no Saltrio.
( )no construto do masculino plural seguido pelo substantivo masculino singular aurora
(). interessante ressaltar que a expresso: as asas da aurora, precede o verbo levantar
Para Lelivre e Maillot, os v. 9a-9b, so uma evidente aluso mitologia e aos cultos
verbal do imperfeito da raiz verbal ( ), do Piel. Essa raiz verbal aparece por cento e vinte
noventa e seis vezes na Bblia Hebraica, sendo trinta e oito vezes no Saltrio. Na tradio
bblica o mar aparece como criao de Deus (cf. Gn 1,10.22.26.28; Sl 33,7), mas tambm
191
Cf. LELIVRE, Andr.; MAILLOT, Alphonse. Les Psaumes. Chant damour 76 150, p. 412
192
Existe ainda um substantivo formado pelas mesmas consoantes ( ;)significando habitante, morador. (Cf.
LISOWSKI, Gerhard. Konkordanz Zum Hebrischen Alten Testament, p. 1433).
87
como o reino das foras hostis criao divina (cf. J 7,12 Sl 65,8; 69,3.16; 74,13; 89,10; Is
apresentada no texto de Isaas nestes termos: naquele dia, o SENHOR punir, com a sua espada
dura, grande e forte a Leviat, serpente escorregadia, Leviat, serpente tortuosa, matar o
monstro que habita o mar (Is 27,1). Desta forma, a expresso: residir no confim do mar traz
O mar grande, imenso e vasto; induz ao perigo, destruio, pavor e medo! Ela citada
como smbolo para representar as foras hostis ao SENHOR, embora dominadas por Ele (cf. Ex
soberania do SENHOR sobre todo o universo: do SENHOR a terra e o que nela existe [...]. Ele
No mais, preciso ressaltar que no Novo Testamento Jesus, pisoteia e vence o mar
smbolo do mal (cf. Mc 4,35-41; 6,45-52) relembrando as antigas travessias do mar (cf. Ex
14,15-22) e sua extenso ao Rio Jordo (cf. Js 3,13-17; 2Rs 2,8.14). Afinal, a viso dos
israelitas sobre as origens do mundo proporciona uma divindade criadora suprema sem igual,
com clareza: a aurora o extremo oriental onde se d a aurora do sol, no confim do mar e se
encontra com o ocidente onde o mar encontra seu fim. De qualquer forma, trata-se de fugir da
presena divina. Mas, Deus est tanto no extremo leste como no extremo oeste.
193
Cf. PARRA SNCHEZ, Toms. Palavras bblicas, p. 66
194
McKENZIE, L. John. Os grandes temas do Antigo Testamento, p. 92.
88
imaginao a ideia de fuga mgica.195 Metfora uma figura estilstica que associa a
Nesta perspectiva, Mannati assinala que levantar as asas da aurora para residir no
confim do mar no apenas uma simples expresso potica; a aurora alada tida como
pessoa, como divindade, por isso, suspender-se nela aceitar ser conduzido ao mundo
infernal. 197 Imagina-se que o orante deseja transportar-se para bem longe do SENHOR, at ao
mundo infernal. Assim, quem reza nesse poema planeja vencer os limites espaciais s quais
so submetidas a vida humana a fim de esquivar-se da presena divina. Mas, ele alcanado
pelo SENHOR.
A expresso tambm l (
) formada pelo advrbio tambm ( ;)seguido pelo
quem reza nesse poema uma vez que as trs tentativas do fiel de se subtrair ao alcance de
Deus redundam em frustrao. Com efeito, o Sl 24,1 afirma que o SENHOR tudo encerra (Sl
195
Cf. WEISER, Artur. Os Salmos, p. 630.
196
Cf. SIMIAN-YOFRE, Horcio. Diacronia: os mtodos histrico-crticos. In: SIMIAN-YOFRE, Horcio.
Metodologia do Antigo Testamento, p. 98.
197
Cf. MANNATI, Marina. Para rezar os Salmos, p. 73.
89
24,1). Quer dizer, no h espao, lugar, ambiente onde Deus no est presente. Mas, por que
pelo sufixo da segunda pessoa do masculino singular (). O substantivo mo ( )tem mil
Saltrio.
A palavra hebraica ( )abarca uma rica e ampla conceituao na tradio bblica. 198
aes humanas a Deus. Quais so as conotaes deste termo clssico da antropologia bblica?
Na maioria dos textos paralelos nos quais mo refere-se a Deus trata-se tanto de seu
agir salvador em favor dos pobres (cf. Sl 31,6.16; 37,24; 73,23; 78,42; 89,14; 136,12 138,7)
como de seu poder para enfrentar, ferir os inimigos (cf. Ex 3,19; Sl 21,9; 81,15; 106,26; Is
11,15; Ez 36,7; Mq 5,8). Ainda, a mo de Deus refere-se s obras que Ele realizou (cf. Sl 8,7;
Alm disso, no Antigo Testamento estender a mo o gesto de algum que tem poder.
Quando Deus estende a mo, isto pode significar doena, praga, morte para os inimigos de
Oriente Prximo, com o passar do tempo, a mo direita de Deus, a que abenoa e que,
198
A mo sinnimo de poder, autoridade, castigo e dinamismo[...]. Com seus ademanes se mostra ameaa,
clera, alegria, petio, juramento e consagrao (cf. Mq 7,16; Is 10,32; 55,12; Jr 2,37; Pr 14,21) e tambm
escrnio, medo e gestos rituais ou conjuros para proteger-se do mal (cf. Sf 1,15) (PARRA SNCHEZ, Thomas.
Palavras bblicas, p. 66)
199
Cf. GRUEN, Wolfgang. Pequeno Vocabulrio da Bblia, p. 47.
90
sobretudo traa o destino, tornou-se o smbolo do Deus Altssimo, uma ideia que os judeus
o SENHOR, como poder ltimo que julga esses poderes. Ele que entrega
Cana nas mos de Israel, Israel nas mos dos filisteus, ou o Egito nas mos
Deus so lembrados como um ato libertador: num primeiro momento na libertao dos
hebreus do Egito (cf. Ex 3,19-20; 6,7; 7,4; 14,21-31), e num segundo momento a mo do
SENHOR foi de novo experimentado no retorno do exlio da Babilnia (cf. Is 59,16; 62,8;
63,5. 12).
apresentando a terceira pessoa no feminino singular da raiz verbal ( ), seguido pelo sufixo
da primeira pessoa (). Essa raiz verbal traduzida por conduzir, guiar aparece por quarenta
vezes na Bblia Hebraica, sendo dezoito vezes no Saltrio. Observa-se que essa raiz verbal
empregada por duas vezes nesse poema (Sl 139,10a.24b). Ao pesquisar essas presenas,
interessante fazer as seguintes perguntas. Quem est conduzindo? Quem est sendo
Na maioria dos textos paralelos no Saltrio, o verbo conduzir tem Deus por sujeito. A
forma, o justo pede para que o SENHOR o conduza segundo sua justia (Sl 5,9), o SENHOR
conduz o fiel pelos caminhos da justia (Sl 23,3), o fiel pede que o SENHOR o conduza por
200
Cf. SCHROER, Silvia.; STAUBLI, Thomas. Simbolismo do Corpo na Bblia, p. 207.
201
Cf. SCHROER, Silvia.; STAUBLI, Thomas. Simbolismo do Corpo na Bblia, p. 211.
91
vereda plana (Sl 27,11), o SENHOR conduz o fiel e/ou o justo (Sl 31,4; 61,3; 73,24; 139,24), a
luz e a verdade de Deus conduzem o fiel (Sl 40,3), Deus conduz Israel a Edom (Sl 60,11;
108,11), Deus conduz Israel como um rebanho (Sl 77,21), o SENHOR conduz seu povo com
uma nuvem (Sl 78,14), o SENHOR conduz seu povo com segurana (Sl 78,53), o SENHOR
conduz seu povo com mo sbia (Sl 78,72), o SENHOR conduz seu povo ao porto desejado (Sl
107,30), a mo do SENHOR conduz o fiel (Sl 139,10), o justo pede que o bom esprito do
prerrogativas do Deus soberano de Israel. Tambm nota-se que o verbo conduzir e o termo
frequentemente ao SENHOR Deus de Israel a imagem ou o ttulo de pastor (Sl 23,1; 28,9;
seguida pela raiz verbal ( )do imperfeito da terceira pessoa no feminino singular no Qal,
que por sua vez, seguida pelo sufixo da primeira pessoa do singular ( ). A raiz verbal ( )
traduzida por agarrar, apoderar-se tem sessenta e seis presenas na Bblia Hebraica, sendo
Considerando o que foi dito, o v. 10b sugere a ideia da generosa mo divina, que
protege, sustenta; possibilitando a confiana, mesmo estando em perigo de morte diante das
foras inimigas: sociais, polticas, econmicas e religiosas. Convm lembrar que em oposio
202
O conceito do pastor percorre as Sagradas Escrituras desde Abrao at Jesus Cristo (Cf. ELLIS. F. Peter. Os
Homens e a Mensagem do Antigo Testamento, p. 223).
203
Existe ainda um substantivo formado pelas mesmas letras (). O significado desse ltimo segurando (Cf.
LISOWSKI, Gerhard. Konkordanz Zum Hebrischen Alten Testament, p. 47-48).
92
como sendo algo que d segurana. Parece aqui que os braos do SENHOR so de grandeza
SENHOR, o fiel do Sl 139 parece chegar a uma grande verdade: a oniscincia e a onipresena
Portanto, a expresso tua mo me conduziria (v. 10a) parece evocar a ideia de rendio
do orante. Esse ltimo percebe que as tentativas de fuga so ilusrias, frustradas. Que
verdade que ele descobriu estar sempre envolvido pelo SENHOR em todos os momentos e
situaes. Pelo veredicto materializado pela mo, Deus redefine as condies de vida do
Assim, no h como esconder-se do SENHOR. Neste sentido, o cerco (v. 5a) tido como
uma soma de gestos de amor de Deus para proteg-lo. Assim, a expresso: tua direita me
agarraria pode ser entendida tambm como: tua direita abraaria. Supe-se aqui a existncia
Afinal, no v.10b o orante confessa sua rendio: tua direita me agarraria! como se
ele dissesse: minha vida depende de tua mo generosa. Desta forma, v. 10b mostra que o que
parecia ser uma investida brutal, na realidade um gesto de amor, uma afeio divina. Nada,
nem mesmo a manso dos mortos e/ou o abismo pode separar o orante do Sl 139 do amor
do imperfeito da primeira pessoa do singular, do Qal. Essa raiz verbal traduzida por pensar,
dizer aparece por cinco mil duzentas e oitenta e sete vezes na Bblia hebraica. 204 Na verso
aqui apresentada opta-se pelo verbo dizer. Imagina-se que a expresso: e disse pode ser
Nos v. 7a-10b o orante afirma que a proximidade do SENHOR no constitui uma ameaa
para ele. Por isso, tanto o cerco (v. 5a) quanto a mo posta sobre ele (v. 5b), no so
sinnimos de opresso divina. Assim, fugir no seu verdadeiro desejo. Quem reza aqui est
A expresso certamente a treva ( ) formada pelo advrbio () , seguido pelo
substantivo masculino singular () . Esse substantivo traduzido por treva aparece oitenta
vezes na Bblia Hebraica sendo treze vezes no Saltrio. Na maioria dos textos paralelos, a
204
Existe ainda um substantivo e um verbo formado pelas mesmas letras (). O significado do substantivo :
discurso, expresso; enquanto do verbo vangloriar-se (Cf. LISOWSKI, Gerhard. Konkordanz Zum
Hebrischen Alten Testament, p. 109-124).
94
treva tida como smbolo de foras hostis de morte e destruio (cf. Is 5,30; Sl 35,6; 88,7
terceira pessoa do singular masculino, seguida pelo sufixo da primeira pessoa do singular ( ).
Essa raiz verbal traduzida por cobrir aparece por quatro vezes na Bblia Hebraica sendo uma
vez no Saltrio.
masculino singular noite () . Esse substantivo aparece por duzentas quarenta e duas vezes
na Bblia Hebraica.
tambm prenunciar o fim da pessoa e da vida (cf. Sl 6,7; 91,5; J 7,3; Sb 17;13-14).205 Por
isso, o prolongamento da noite sinal de castigo (cf. Jl 2,2; Sf 1,15; Am 5,18-20). Alm
disso, no Novo Testamento a noite descrita como um poder negativo que destri o ser
humano (cf. Lc 22,53; Jo 3,2; 9,4; 11,10; 12,35; 19,39). Contudo, sua dissipao total indica a
No Sl 139, o devoto ao imaginar ser invadido pela treva confessa que o SENHOR ainda
est com ele. Pois, a noite e/ou a treva luminosa e transparente como o dia na presena do
SENHOR (cf. Mq 7,8; Sl 27,1; 119,55. 62; Is 26,9;). Desta forma, o SENHOR pode inverter a
situao tenebrosa a qualquer momento e situao. Compreende-se que nem a treva, nem a
noite, podero esconder o orante do olhar de Deus. Ou seja, nada est imperceptvel e
205
Cf. PARRA SNCHEZ, Toms. Palavras bblicas, p. 75.
95
Parece que Sl 139,7a-12c lembra os relatos da fuga de Elias no deserto de Jud (cf. 1Rs
19,1-8) e de Jonas que procurava escapar de Deus fugindo para Trsis, uma terra pag. Mas,
mesmo assim esse ltimo encontra o SENHOR aps a fuga (cf. Jn 1-3).
porque seus olhos acompanham o proceder de cada um e ele olha todos os seus passos. No
Assim, o Sl 139 afirma que Deus v perfeitamente em plenas trevas. Seu conhecimento e seu
redundam em fracasso. Desta forma, os v. 11a-12c mostram que ainda que esse ltimo
desejasse convidar as trevas para encobri-lo com um manto a fim de torn-lo magicamente
invisvel aos olhos de Deus; no haveria treva alguma que sua presena no pudesse
iluminar. Neste sentido, se l na pericpe de Isaas 45,7: Eu formo a luz e crio as trevas,
asseguro o bem-estar e crio a desgraa: sim eu, o SENHOR, fao tudo isso. Tambm, na
mesma perspectiva Ams declara: Ele que faz as Pliades e o rion, que transforma as trevas
em manh, que escurece o dia em noite que convoca as guas do mar e as despeja sobre a
tenebrosa, mas se transforma em luz. Quem reza nesse poema faz a experincia do domnio de
Este captulo tem por objetivo apresentar a atividade criadora de Deus em relao
gnese da vida do orante. Deus apresentado como aquele, cujo agir e sabedoria suplantam
V. 13a-16c apresentam uma srie de ideias com menes e referncias ao corpo humano
e sua constituio. Imagina-se que Deus tenha criado e tecido o orante no tero materno.
Alm disso, v. 18b parece apresentar a mensagem central, tanto dessa terceira estrofe como do
conjunto do Sl 139. Isto , a confisso da relao pessoal e particular do orante com Deus, ou
seja, quem aqui reza fala de sua relao com Deus como sendo a experincia de amizade entre
duas pessoas. A situao parece evocar o conceito de Aliana. Quer dizer, a Aliana de Deus
com o individuo e/ou com Israel. 206 Convm ressaltar que cada uma das trs primeiras
terminado. Com efeito, em cada estrofe, a parte final apresenta a voz do orante em relao a
206
Cf. WESTERMANN, Claus. Teologia do Antigo Testamento, p. 9-10.
97
crtica textual ir ajudar a ter mais clareza a respeito do que existe desde o incio no Sl 139 e
nos versculos anteriores. Descreve-se aqui uma embriologia elementar, cheia de fantasia. O
A meditao leva o orante a reconhecer que foi o SENHOR quem lhe deu a vida e lhe
formou o corpo, pois foi ele que definiu seus dias antes de existirem na realidade (v. 13a-
16c). Sua vida, tanto no seu incio como no seu decorrer, contemplada pelo olhar
do orante, desde seu comeo at seu fim. Parece que nada escapa do domnio de Deus. Por
ressaltar o paralelo em relao prescincia do SENHOR nos v. 1b-6b e nos v 15a-16d, uma
vez que o ltimo pr-histrico. Alm disso, o orante apresenta o conhecimento prvio que
Deus tem do seu interior (v. 13a-13b). Isto , antes que foi formado no tero materno, o
SENHOR j o conhecia.
Aps seu nascimento, ele continua sendo conhecido pelo Criador. Imagina-se que Deus
conhea os dias da vida do homem, os quais esto inscritos num livro (Sl 56,9; Sl 69,29).
Provavelmente, a expresso contigo (v. 18b) sublinha o grau de comunho entre o SENHOR e o
devoto. Assim, quem reza no Sl 139,13a-18b confessa a familiaridade com o Deus criador do
homem.
99
O contedo do Sl 139,13a-18b pode ser elucidado pela anlise da forma literria. Para
este fim, baseia-se nas pesquisas existentes na rea.207 Tem-se o seguinte resultado: os v. 13a-
16d formam a introduo e descrevem a criao do orante por Deus. Em seguida,os v. 17a-
17b constituem o centro da unidade e apresentam o mistrio dos desgnios divinos. Por fim,
os v. 18a-18b formam a concluso, onde o orante confessa sua reao, a qual consiste na
entrega serena a Deus. Essa estrutura apresentada em trs momentos retomada no quadro
abaixo.
criadora de Deus
quadro acima. Num primeiro momento, trata-se do prodgio da gnese do orante (v. 13a-16d).
Num segundo momento, quem reza aqui proclama a grandeza e o nmero dos pensamentos
207
Cf. HOLMAN, Jan. The Structure of Psalm CXXXIX. In Vetus Testamentum, p. 300.
100
desvendar esses pensamentos, o fiel descobre que ainda est com Deus. Ele percebe que est
Nos v. 13a-18b, em geral Deus quem age, sobretudo, como criador. Com isso,
poder criador divino. Esses versculos parecem ser um pequeno hino que louva a Deus pela
criao do homem. Alguns verbos descrevem a ao criadora de Deus: criar, tecer, fazer.
tom de espanto e de temor. Quem reza aqui proclama a grandeza e o nmero incalculvel dos
pensamentos divinos.
com e a confiana no SENHOR por parte de quem reza aqui. 208 O devoto fala de sua
experincia com Deus, servindo-se da linguagem metafrica para expor sua meditao. Por
meio de um monlogo, o orante afirma que o SENHOR o conhece intimamente. Imagina-se que
o orante esteja pasmo diante do governo divino no que se refere aos acontecimentos e s
Com efeito, nos v. 18a-18b, o orante parece fazer uma pausa, a fim de declarar sua
pertena e dependncia de Deus. Tal declarao ganha carter de uma confisso, capaz de
finalizar o pensamento. O homem obra e imagem de Deus (Gn 1,27). Para o fiel, os
abaixo, uma descrio das diversas figuras literrias encontradas neste poema.
208
O advrbio novamente parece reforar a ideia da intimidade do devoto com o SENHOR.
101
Deus.
pessoa do masculino singular () . Essa raiz verbal aparece cinco vezes na Bblia Hebraica
(Gn 14,19.22; Dt 32,6; Sl 139,13; Pr 8,22). Existe uma segunda raiz verbal formada pelas
102
mesmas trs consoantes, com o sentido de adquirir. Contudo, este verbo no ganharia sentido
na formulao de v. 13a.
Nos textos paralelos, a raiz verbal ( )se refere ao criadora de Deus, sobretudo em
relao ao cu, terra e seus habitantes. No caso, Melquisedec bendiz o Deus de Abro que
criou o cu e a terra (Gn 14,19); e Abro levanta a mo diante do Deus Altssimo que criou o
cu e a terra (Gn 14,22). Num outro pensamento, o SENHOR criou e formou Israel (Dt 32,6).
() , seguido pelo sufixo da primeira pessoa do singular ( ). Esse substantivo aparece por
trinta e uma vezes na Bblia Hebraica, sendo que cinco vezes no Saltrio.
animal (Ex 29,13; Is 34,6). No entanto, quais so as conotaes simblicas deste rgo
interno?
No sacrifcio dos animais, durante o culto em Israel, os rins so oferecidos como a parte
Em relao ao homem, os rins so tidos como sede dos sentimentos sutis como emoo,
reao e afeio (J 19,27; Sl 73,21; Pr 23,16).209 Com efeito, no pensamento bblico, os rins
constituem o lugar, onde o carter tico-moral do homem testado por Deus (Sl 7,10; 16,7; Jr
12,2).210 Tambm l-se em Jr 12, 2-3 a frase: Ests perto de sua boca, mas longe de seus rins.
Mas tu, SENHOR, me conheces e me vs, provaste o meu corao, que est contigo. Enfim, os
Para os israelitas, os rins se referem tanto esfera dos sentimentos humanos como
atitude tico-moral; por isso, so objeto do inqurito divino. Neste sentido, Schroer e Staubli
afirmam:
209
Cf. LELIVRE, Andr; MAILLOT, Alphonse. Les Psaumes. Psaumes 76 150, p. 414.
210
Cf. BOOIJ, Thijs. Psalm CXXXIX. In: Vetus Testamentum, p. 6.
103
no mais das vezes os orantes e as orantes dos salmos colocaram os rins como lugar
do sentimento, ao lado do corao, j reconhecido como sede do entendimento [...].
A integridade de uma pessoa era comprovada pela integridade do corao e dos
rins, vale dizer, da razo e do sentimento. O prprio Deus assume o teste de
probidade e coloca ambos os rgos em um forno como se fossem barras de ouro
ou de prata, a fim de constatar se tambm eles, com intenes enganosas, no se
misturaram com a ganga inferior. Essa imagem tirada da linguagem do fundidor
aparece, no raro, nos salmos, onde os orantes mesmos so aqueles que, na certeza
de sua integridade, desafiam SENHOR a prov-los: Examina-me, SENHOR, submete-
me prova, faze passar pelo fogo meus rins e meu corao (cf. Sl 26,2).211
17,7) apresentado aqui por meio de uma biologia arcaica. Mas, em que contexto o devoto
chega a isto?
Ao que parece, ele est envolvido num inqurito judicial e assevera sua inocncia (v.
nomeie em primeiro lugar como criados pelo SENHOR os rins, rgo altamente sensvel do
conhecimento da culpa213. Isso posto, parece que Sl 139 apresenta o contexto do culto
acerca do contexto vital do Sl 139 que pode ser situado no culto divino onde se realiza a
representado pelos rins, formado por Deus, sendo que Deus, como Criador, comparado a
211
SCHROER, Silvia; STAUBLI, Thomas. Simbolismo do Corpo na Bblia, p. 93-94.
212
Cf. WRTHWEIN, Ernest. Psalm 139. In: WOLFF, H. Walter. Antropologia do Antigo Testamento, p. 133.
213
WOLFF, H. Walter. Antropologia do Antigo Testamento, p. 133.
214
WEISER, Artur. Os Salmos, p. 628.
215
WEISER, Artur. Os Salmos, p. 50-51.
104
um tecelo. No por acaso que o devoto afirma ser conhecido pelo SENHOR (cf. v. 1b-5b);
imagina, pois, que Deus criou seus rins e, portanto, tem domnio sobre este rgo interior.
Neste sentido, no somente seus movimentos e propsitos so conhecidos pelo SENHOR, mas
tambm seus sentimentos e sua atitude tico-moral. Enfim, o SENHOR possui os segredos e os
desejos onde se originam da vida do homem. A esse respeito, Wolff comenta a importncia
dos rins:
sentimento e, com isso, a conscincia se concentram na regio dos rins (cf. Ex 12, 11; J
16,13).217
ponde-vos de p e cingi os rins com a verdade (Ef 6,14). Ademais, nesta perspectiva, segundo
Lucas, o discpulo de Jesus deve estar com os rins cingidos e com a lmpada acessa, para
seguido pelo sufixo da primeira pessoa do singular ( ). Esta raiz verbal aparece por vinte
216
WOLFF, H. Walter. Antropologia do Antigo Testamento, p. 96-97.
217
Cf. HOLMAN, Jan. The Structure of Psalm CXXXIX. In: Vetus Testamentum, p. 305-306.
105
Em J 10,11 o verbo aparece com o mesmo significado. J diz a Deus: De pele e carne
que o SENHOR teceu o orante, quando este ainda estava no tero materno. Deus o criou, no
feminino singular () . Esse substantivo tem setenta e duas presenas na Bblia Hebraica.
pertence a Deus. Neste sentido, o orante pode pensar sobre o tero que Deus no somente
criou, mas tambm tem o poder de fech-lo ou de abri-lo218. Ana, por exemplo, estril e
pede, em seu desespero, um filho a Deus (1Sm 1,10-13). Somente Deus podia mandar a
gravidez (Gn 18, 9-15; 21,1-7; 30,1-2 Jz 13,3-5). Quer dizer, o SENHOR envia os filhos, sendo
que ele mesmo os modela e forma no tero materno. Alm disso, escuta-se de Deus: Antes
um pasmo e/ou prodgio, o qual o convida admirao e ao de graas. Deus aparece como
tecelo. interessante lembrar que, hoje, a biologia celular fala de tecidos orgnicos.
218
SCHROER, Silvia; STAUBLI, Thomas. Simbolismo do Corpo na Bblia, p. 96.
106
imperfeito da primeira pessoa do singular, do Hifil, seguida pelo sufixo da segunda pessoa do
masculino singular (). Essa raiz verbal aparece por cento e quatorze vezes na Bblia
Nos textos paralelos nos quais a referida raiz verbal tem por sujeito o homem,
Nos casos onde a raiz verbal traduzida por louvar, trata-se da atitude de orao e/ou de
reconhecimento do homem diante da bondade e da solicitude divina (Sl 7,18; 9,2; 18,50; 28,7;
30,5.10.13; 33,2; 35,18; 45,18 ). Todavia, as criaturas tambm podem louvar o SENHOR.
Nos casos onde a referida raiz traduzida por confessar, trata-se da atitude de pedido de
Nifal, da raiz verbal temer (). Essa raiz verbal aparece por trezentas vinte e duas vezes na
(
) , como Nifal, perfeito da primeira pessoa do singular da raiz verbal ( )ser
ser separado.
219
Existe uma segunda raiz verbal composta pelas mesmas trs letras (). Esta raiz verbal significa atirar
grant(Cf. LISOWSKI, Gerhard. Konkordanz Zum Hebrischen Alten Testament, p. 571).
220
Existe um substantivo composto pelas mesmas trs letras (). Ele significa com medo (Cf. LISOWSKI,
Gerhard. Konkordanz Zum Hebrischen Alten Testament, p. 634).
107
A referida raiz verbal tem quatro presenas na Bblia Hebraica. Trate-se da afeio de
Deus com seus eleitos. Dessa forma, Moiss diz ao SENHOR: como se poder saber que
encontramos graa aos teus olhos, eu e o teu povo? No ser pelo fato de ires conosco?
Assim seremos distintos, eu e o teu povo, de todos os povos da face da terra (Ex 33,16).
Tambm no Sl 4,4.9 l-se: o SENHOR separou parte seu fiel [...] e o faz viver em segurana.
similares. Que as obras de Deus so maravilhosas, isso confessado pelo orante (v. 6a-
6b.14a-14b.17a-18a).
Alm disso, importante analisar a quarta parte do v. 14. A expresso e minha alma
(), seguido por sua vez sufixo da primeira pessoa do singular ( ). Esse substantivo aparece
por setecentos e cinquenta e cinco vezes no Antigo Testamento e, traduzido por respirao,
O relato javista da criao utiliza-a da seguinte forma: Ento o SENHOR Deus modelou o
homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hlito de vida e o homem se tornou
A nfesh deve ser compreendida aqui em conjunto com a figura total do homem e
especialmente com sua respirao; por isso, o homem no tem nfesh, mas nfesh, vive
221
Existe ainda uma raiz verbal formada pelas mesmas consoantes ( )significando tomar flego, tomar alento
(Cf. LISOWSKI, Gerhard. Konkordanz Zum Hebrischen Alten Testament, p. 943).
222
WOLFF, H. Walter. Antropologia do Antigo Testamento, p. 22.
223
SCHROER, Silvia,; STAUBLI, Thomas. Simbolismo do corpo na Bblia, p. 49.
108
inimizades224.
Segundo Parra Snchez, o conceito hebraico nfesh reflete a situao humana da pessoa
e indica o eu mesmo do indivduo; mais que um elemento do ser, uma dimenso e uma
forma em que a pessoa se manifesta (Gn 2,7; 2Sm 1,9; Am 6,8). 225
O v. 14d diz literalmente: minha alma ( que sabe muito) o sabe muito bem. Com efeito,
consegue alcanar (v. 6a-6b). Por isso, a fim de evitar uma contradio interna no poema
convm traduzir essa quarta parte do v. 14 da seguinte forma: E conheces bem minha alma.
Essa traduo tem sentido e parece convincente uma vez que Deus apresentado no Sl 139
O fiel na condio de criatura sente temor diante do agir extraordinrio do SENHOR. Por
isso, louva a Deus pela sua oniscincia e onipotncia que no tm nem limite, nem medida.
Deste modo, ao contemplar sua prpria existncia que se insere no mistrio das obras divinas,
Nestes versculos o orante se reconhece como criado por Deus. Sua relao com o
seguido pela raiz verbal do perfeito da primeira pessoa no singular, do Pual. Essa raiz
verbal traduzida por fazer, formar, criar aparece por dois mil seiscentos vinte e duas vezes na
pelo sufixo da pessoa no singular (). Na tradio bblica osso e/ou ossada se referem
estabilidade existncial, vigor fsico (Dt 8,17; J 30,21; Is 11,15). 226 De acordo com Schroer e
Staubli:
humana, que nele se reconhece 228. Neste sentido, o relato de Gnesis descreve a criao de
226
Cf. BOOIJ, Thijs. Psalm CXXXIX. In: Vetus Testamentum, p. 7.
227
SCHROER, Silvia; STAUBLI, Thomas. Simbolismo do Corpo na Bblia, p. 261.
228
SCHROER, Silvia; STAUBLI, Thomas. Simbolismo do Corpo na Bblia, p. 265.
110
Eva como a feio proveniente da ossatura do homem. O SENHOR Deus fez cair num torpor o
homem, e ele dormiu. [...]. Depois, da costela que tirara do homem, o SENHOR modelou uma
mulher e a trouxe ao homem. Ento o homem exclamou: Eis, sim, o osso dos meus ossos!
(Gn 2, 21-23).
existencial. Por isso, quando a existncia do homem est ameaada, os ossos se desarticulam
(Sl 6,3; 22,15). Todavia quando a ameaa desaparecer e a tranquilidade fora restabelecida, os
No mais, no v. 15c a expresso tecido nas profundezas da terra uma metfora que se
insere na perspectiva bblica sobre a criao do homem. Segundo esse pensamento o ser
humano foi formado a partir do p da terra (Gn 2,7; 3,19; Sl 103,14; 146,4; J 34,15).
descansar depois da morte (J 1,21; Eclo 40,1; Sl 63,10; 86,13). Aqui h a analogia entre as
profundezas da me terra e o tero materno onde transcorre o ciclo inicial da vida humana.
Assim sendo, Deus aparece como o grande operrio no mistrio da maternidade. Weiser
esclarece:
Pelo que parece, o poeta usa nesta passagem a imagem da mitologia antiga,
que representava a terra como a me universal de tudo o que vive, a fim de
exprimir e ilustrar o mistrio divino que a seus olhos cerca o nascimento.
Mas no apenas os incios de sua vida estiveram presentes clara luz do
saber de Deus, e sim tambm a totalidade dos seus dias foi escrita por ele no
livro da vida (cf. Sl 56,9; 69,29; Ex 32,32s) e, em consequncia,
predestinada e predeterminada antes do seu surgimento.229
interessante observar que a expresso formado nas profundezas da terra (v. 15c)
evoca o relato do homem criado da terra (Gn 2,7). O devoto equipara o tero materno onde
229
WEISER, Artur. Os Salmos, p. 631.
111
estende at s origens: para antes do nascimento, ou seja, para antes do primeiro dia, e at na
profundidade dos rins, da ossada. Para quem reza nesse poema tambm essa misteriosa etapa
Deste modo, o SENHOR tem acesso tanto s origens do ser humano como aos lugares
mais distantes. Pelo que parece o SENHOR antecipa o futuro de cada ser humano; enumerando
seguido por sua vez pelo sufixo da primeira pessoa no singular ( ). Esse substantivo traduzido
por embrio aparece uma nica vez na Bblia Hebraica. 230 Alm disso, o referido substantivo
pode se referir substncia inacabada que os olhos no podem ver.231 Parece que o orante
afirma: SENHOR, teus olhos me viram quando eu era ainda uma substncia inacabada.
No mais, Booij assinala que esse substantivo s se encontra no Antigo Testamento, mas
que seu emprego frequente na Mishn onde ele pode indicar uma substncia amorfa. 232 Em
suma, para o orante o SENHOR o conhece tanto como macro-organismo e como micro-
preposio (), que por sua vez seguida pelo substantivo masculino singular ( ) , e por
230
Existe uma raiz verbal, composta pelas mesmas trs consoantes: (). O significado dessa raiz embrulhar,
envolver, dobrar junto (Cf. LISOWSKI, Gerhard. Konkordanz Zum Hebrischen Alten Testament, p. 327).
231
Cf. BRIGGS, A. Charles; BROWN, Francis; DRIVER, R. Samuel. Hebrew and English Lexicon of the Old
Testament, p. 166.
232
Cf. BOOIJ, Thijs. Psalm CXXXIX: Text, Syntax, Meaning. In: Vetus Testamentum, p. 7.
112
fim, seguido pelo sufixo da segunda pessoa do masculino singular (). O que significa o livro
na tradio bblica?
O livro do SENHOR mencionado em vrios textos bblicos (Ez 13,9; 18,21-24 Is 4,3;
65,6; Jr 18,7-10; Ne 13,14; Sl 87,6; 139,16), sobre os indivduos e os povos; sobre as suas
fortunas, aes e destino final. 233 Dessa forma, o SENHOR inscreve os povos no registro: Este
homem ali nasceu, tanto os prncipes, como os filhos todos tm sua morada em ti (Sl 87,6-7).
Aparentemente escrito pelo prprio SENHOR: Agora, pois, se perdoastes o seu pecado[...]. Se
no risca-me, peo-te, do livro que escreveste. SENHOR respondeu a Moiss: Riscarei do meu
Esse livro registra os fatos da existncia humana e possui um registro para a vida dos
justos cujo contedo, no entanto, no imutvel.234 Assim sendo, l-se: sejam riscados do
livro da vida, e com os justos no sejam inscritos! (Sl 69,29). Sua funo para que os fatos e
A expresso os dias que foram formados, quando ainda no existia o primeiro deles se
refere aos dias dos tecidos orgnicos da pessoa do orante. Trate-se aqui do conhecimento
antecipado que Deus tem no decurso da vida do devoto, desde seu comeo at seu fim; dias
Definitivamente o orante afirma que sua vida e/ou existncia procedem da vontade
divina. Para quem reza nesse poema o SENHOR derramou seu amor e sua misericrdia sobre o
tero de sua me, e como resultado o fruto desse seio Lhe pertence.
Enfim, a ideia que permeia o Sl 139 est redigida em dimenso mstica. Isto , entre os
muitos homens que nasceram, o orante era conhecido pelo SENHOR desde as origens. Com
efeito, quando existia apenas sua substncia amorfa, os prprios olhos de Deus o viram.
233
Cf. BOOIJ, Thijs. Psalm CXXXIX. In: Vetus Testamentum, p. 8.
234
De acordo com a doutrina babilnica, os deuses fixam o destino de cada homem no livro da vida (Cf.
ALONSO SCHKEL, Luis; CARNITI, Ceclia. Salmos II. Salmos 73-150, p. 1589).
235
Cf. STORNIOLO, Ivo. Salmos e Cnticos. A orao do povo de Deus, p. 392.
113
Imagina-se que no momento em que os seres humanos so formados no tero materno, todos
so registrados pelo SENHOR. Mas, parece que j existia o dia especial em que cada embrio
Alm do mais, v. 15b-16d no constituem apenas uma metfora, mas tambm fazem
aluso uma realidade sagrada, o mistrio da origem e do nascimento do homem. Assim, essa
realidade apresentada na sua dimenso mstica: Deus criou o homem sua imagem,
imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou (Gn 1,27).
construto plural, seguido pelo sufixo da segunda pessoa do masculino no singular (). Na
114
Bblia Hebraica, este substantivo aparece somente por duas vezes (Sl 139,2b.17b). 236 Estes
casos se referem ao orante (Sl 139, 2b) e a Deus (Sl 139,17b). O termo pensamento traduz
algo admirvel, ao considerar sua soma ela se revela numerosa e conta-os um por um, se
substantivo traduzido por cabea, princpio, soma e, aparece por seiscentos e doze vezes na
Bblia Hebraica.
masculino plural. Essa raiz verbal aparece por cento e sete vezes na Bblia Hebraica.
aluso manifesta s promessas feitas a Abrao.237 Por isso, imagina-se que a soma dos
contemplao por parte do homem. um esforo ingnuo do orante querer fazer o clculo de
interessante observar que o orante antes queria ocultar-se de Deus, mas por fim descobriu o
236
Existe ainda dois substantivos formados pelas mesmas duas consoantes: () .
Um primeiro significado do
referido substantivo grito enquanto seu segundo significado companheiro, amigo (Cf. LISOWSKI, Gerhard.
Konkordanz Zum Hebrischen Alten Testament, p. 1343-1344).
237
Cf. MANNATI, Marina. Para rezar os Salmos, p. 74.
115
valor inestimvel de ter sido criado por Deus. Por conseguinte, o SENHOR estar sempre com
ele. Isso definido literalmente pelo emprego do termo contigo. Contudo, permanece uma
questo importante: o que significa a expresso: acordei e ainda estou contigo (v. 18b)? Para
( )do Hifil do perfeito da primeira pessoa do singular. Essa raiz verbal aparece por vinte e
trs vezes na Bblia Hebraica.238 provvel que o despertar descrito no v. 18b est
Resumindo: parece que o sentido do v. 11a est claro agora. As expresses despertar (v.
18b), e disse (v. 11a) esto vinculados pela mesma situao e/ou mesma experincia
O v. 18b esclarece as declaraes dos v. 7a-10b. Ao afirmar que o SENHOR est perto
dele onde quer que v o orante no apresenta apenas uma convico, mas, descreve uma
experincia de comunho com este Deus. Dessa forma, imagina-se que quando chegar o
acusado est ainda com Deus (v. 18b). 239Quer dizer, quando pela manh ele acorda aps ter
refletido sobre o sentido dos inumerveis e preciosos pensamentos divinos, como sempre se
No mais, a Tradio da Igreja l o v. 18b luz do mistrio Pascal, ou seja, Cristo desceu
manso dos mortos, e depois ressuscitou para novamente estar direita do Pai. 240
238
Existe um substantivo formado pelas mesmas trs letras ( )que significa vero (Cf. LISOWSKI, Gerhard.
Konkordanz Zum Hebrischen Alten Testament, p. 1258).
239
Cf. LELIVRE, Andr; MAILLOT, Alphonse. Les Psaumes. Psaumes 76 150, p. 415.
240
Cf. TERRIEN, Samuel. The Psalms, p. 881; AGOSTINHO. Comentrio aos Salmos. Salmos 101-150, p. 886.
116
A terceira estrofe do Sl 139 apresenta a temtica do homem criado e tecido por Deus.
Do organismo humano so mencionados: os rins (v. 13a), a alma (v. 14c) e a ossatura
(v. 15a). Basicamente o organismo humano tem partes exteriores, patentes e partes interiores
latentes e inacessveis. Deus descrito como aquele que tece os rgos e conhece a
O destino humano citado no curso dos dias (v. 16b) fixado e conhecido antes o
comeo da vida pelo SENHOR. O destino do homem algo que vai se construindo dia a dia,
ms a ms, ano a ano. Quem reza nesse poema descreve o destino como um processo, um
abrir-se contnuo a possibilidades e um limitar-se a algumas delas. Neste sentido, quem reza
nesse poema afirma que Deus aquele que forma e determina os dias de vida do homem. Por
isso, o SENHOR de antemo conhece a totalidade dos dias do ser humano antes desse ltimo
Afinal, para o orante, a autntica atitude diante desse prodgio a serena entrega e
confiana em Deus. O SENHOR tudo conhece, conhece no somente o exterior, mas tambm o
mais intimo de cada pessoa. Tudo est claro e transparente aos olhos de Deus, inclusive os
dias da vida do homem, do primeiro ao ltimo. Assim, imagine-se que tudo faz parte de um
Este captulo tem como objetivo apresentar tanto os motivos que levam o orante a rezar
desta maneira quanto o rosto de Deus que revelado. A finalidade a compreenso da quarta
O v. 19a uma prtase, ou seja, uma orao que contm uma partcula condicional. 241
posteriormente.
ideias. O orante confessa seu dio contra os mpios e pede a Deus a morte desses ltimos.
Essa falta de transio explica-se pelo fato de que a ideia de julgamento se encontra
enraizada na tradio cultual (cf. Sl 104,35). Mas essa mudana de rumo de pensamento no
deixa de ter nexo com as reflexes que o salmista fez anteriormente 242.
Se num primeiro momento, o orante est consciente de que Deus est presente e age em
tudo, num segundo momento ele no tolera a existncia do mpio e dos homens de sangue (v.
241
Cf. LAMBDIN, O. Thomas. Gramtica do Hebraico Bblico, p. 328-329.
242
WEISER, Artur. Os Salmos, p. 632
118
19b-20b). Por isso, essa realidade enigmtica e paradoxal poder somente ser resolvida com a
O Sl 139 termina em forma de prece uma, vez que o orante ciente de sua inocncia,
pede novamente a Deus para investigar, examin-lo e, para conduzi-lo pelo caminho da
incluso243 pelo pedido da divina conduo do orante (cf. v. 23a-24b). Desse modo, quem
reza aqui, declaradamente confessa seu dio contra os mpios e sua unio com Deus. Em
de estilo que marca a parte final de ambos. Passa-se da descrio de uma relao ntima e
Deus e, se rebelam contra Ele. 245 Por isso, compete a Deus de implicar-se agora nessa
Todavia, parece que o prprio orante intui os limites e a vulnerabilidade de sua posio,
considerando o pedido que faz no fecho do poema (v. 24a-24b). Os referidos versculos
retomam, em forma de pedido, o tema da primeira unidade literria (v. 1b-6b). Desse modo, o
245
Cf. WOLFF, W. Hans. Bblia Antigo Testamento, p. 101-102. Tambm, Deus concebido como salvador e
juiz (Cf. WESTERMANN, Claus. Teologia do Antigo Testamento, p. 26). Alm disso, nos Salmos com
frequncia refere-se ideia do julgamento de Deus (Cf. WEISER, Artur. Os Salmos, p. 29).
120
devoto pede que o SENHOR o investigue, conhea, examine, veja e conduza pelo caminho da
Nos v. 1b-6b, o orante afirma que Deus o conhecia de forma maravilhosa e superior.
Contudo, nos v. 23a-24b quem reza aqui pede que essa investigao seja intensificada, a fim
de que o caminho da eternidade lhe seja assegurado. Os caminhos (v. 3b) descritos na
primeira unidade literria se tornam agora caminhos da eternidade (v. 24b). Imagina-se que a
investigao feita pelo SENHOR tem um efeito salutar, ou seja, transformar e mudar os
(cf. Sl 148), o orante no tem nenhuma realizao prpria de que pudesse vangloriar-se ou
justificar-se diante de Deus. Por isso, a verdadeira deciso repousa unicamente nas mos do
Os v. 19a-24b pode ser elucidado pela anlise da forma literria. Para este fim, utiliza-se
compem o corpo da estrofe e mostram a fidelidade do orante a Deus. Por fim, os v. 23a-24b
246
A nfase dessa palavra est no aspecto interior da permanente comunho com Deus, isto , na mais intima e
ininterrupta comunho com o Senhor para sempre.
247
O Deus Criador tem nas mos o mundo, o ser humano, a histria e os acontecimentos scio-histricos (Cf.
WESTERMANN, Claus. Teologia do Antigo Testamento, p.87).
248
Trata-se do grito instintivo da angstia do ser humano perante a realidade irracional e ininteligvel do
sofrimento, do mal (Cf. MCKENZIE, L. John. Os Grandes Temas do Antigo Testamento, p. 237-253).
249
Cf. HOLMAN, Jan. The Structure of Psalm CXXXIX. In Vetus Testamentum, p. 300.
121
formam a concluso onde o orante expressa seu desejo e pedido da divina conduo. Com o
pedido confiante para que Deus o investigue e o examine, o fiel deseja ser conduzido pelo
SENHOR pelos caminhos da eternidade. Desse modo, a vida de quem reza nesse poema
repousa unicamente nas mos de Deus. Essa estrutura apresentada em trs momentos
primeiro momento, trata-se do pedido da aniquilao dos mpios pelo orante (v. 19a-20b).
Num segundo momento, quem reza aqui proclama sua fidelidade a Deus (v. 21a-22b). Por
fim, os v. 23a-24b retomam o tema da primeira estrofe em forma de pedido. O fiel pede que
Nos v. 19a-24b, Deus apresentado como sujeito das principais aes. Os v. 19a-19b
Os v. 23a-24b constituem a terceira seo onde se observa o tom de entrega serena nas
mos de Deus. Parece que o orante no se afastou do caminho da Aliana assinalado por Deus
e quer continuar sendo conduzido pelo SENHOR.250 Imagina-se que o fiel diante do governo
divino dos acontecimentos e das realidades, sente-se abrigado e sustentado pelo SENHOR.
Alm disso, nos v. 23a-24b, o orante parece fazer uma pausa a fim de confessar a oniscincia
finalizar as ideias mestras do poema. O SENHOR que tudo conhece e d a existncia a tudo, o
250
O infinitivo conduzir parece reforar a ideia do SENHOR como pastor do individuo e/ou do povo.
123
(
) formada pela conjuno () , seguida pela raiz verbal ( )na segunda pessoa
afirmao.251 O orante pede a Deus a morte dos maus. Alm disso, a raiz verbal matar aparece
somente trs vezes na Bblia Hebraica: Sl 139,19; J 13,15; 24,14, mas, o termo frequente
para o infinitivo matar ().252 Nestes textos paralelos, o orante pede que Deus mate o
mpio (Sl 139, 19), J pede que Deus o mate (J 13,15); de noite o assassino se levanta para
atitude e o comportamento tico-moral dos mpios e dos homens sanguinrios. Por isso,
aparece por duzentas e sessenta e trs vezes na Bblia Hebraica. Essas personagens so
determinado grupo de pessoas, pois muitos outros textos bblicos os descrevem. Dessa forma,
um olhar particular ser dirigido posteriormente sobre a pessoa dos mpios e/ou inimigos de
masculino plural. Essa raiz verbal traduzida por afastar-se, apartar-se aparece por trezentas
vezes na Bblia Hebraica.253 Diante do olhar conhecedor de Deus, o orante quer apartar-se
251
Cf. JOON, Paul. Grammaire de lHbreu Bblique, p. 505.
252
Cf. JOON, Paul. Grammaire de lHbreu Bblique, p. 93.
253
Existe um adjetivo composto pelas mesmas trs letras (). Ele traduzido por pervertido (Cf. LISOWSKI,
Gerhard. Konkordanz Zum Hebrischen Alten Testament, p. 995).
124
dos mpios e dos homens sanguinrios que se rebelam contra o SENHOR e tentam destruir a
pessoa no masculino no plural, seguida pelo sufixo da segunda pessoa no masculino (). Essa
raiz verbal traduzida por falar, proferir, confessar e, aparece por cinco mil e duzentas e
substantivo feminino singular () . Esse substantivo parece por dezenove vezes na Bblia
masculino singular nulidade, nada (). Esse substantivo aparece por cinquenta e uma vezes
na Bblia Hebraica. O contexto imediato do Sl 139 onde descrito a atitude violenta dos maus
no perfeito do Qal na terceira pessoa no masculino plural. Esse substantivo aparece por
seguido pelo sufixo da segunda pessoa do masculino singular (). Esse substantivo aparece
Na maioria dos textos paralelos o referido substantivo traduzido por cidade. Dessa
forma, o SENHOR destri as cidades da Assria (Mq 5,13), Israel no ataca a cidade de Moab
Depois de tudo que foi dito em relao ao comportamento e postura desses homens
pem em perigo as suas existncias. Por isso, frequente o emprego de metfora para
homens sanguinrios, como aqueles que falam em falso, procurando intriga e que movidos
pela perversidade tomam as cidades de Deus. Esses homens no so pessoas inocentes, mas,
Ao apresentar esses inimigos hostis como homens sanguinrios o orante do Sl 139 est
revelando a condio animal, brutal, feroz destes ltimos. Revela-se seu instinto agressivo e
destruidor, sua perversidade e crueldade, seu insacivel desejo de violncia. Portanto, essa
postura ameaa e perturba a ordem do desgnio divino: a fraternidade e a paz entre os homens.
Homens sanguinrios so aqueles que esto dispostos cometer todo tipo de violncia e
injustia a fim de satisfazer seus interesses (cf. Sl 26,9; 55,24). O orante reala a oposio
entre os mpios e/ou homens sanguinrios e ele prprio, avaliando a postura e a capacidade
perversidade consiste em fazer guerra e oprimir os mais necessitados (Sl 37,14). Alm disso,
nas tradies bblicas, quem tem um comportamento negativo, no sentido de fazer oposio
a Deus e de desfavorecer a comunidade. 254 Neste sentido, ele aquele que, por meio de suas
palavras e/ou de suas aes, se torna culpado e responsvel, ameaando e prejudicando a vida
de inocentes. O mpio trama contra o justo, [...] a fim de fazer cair o oprimido e o pobre, ou
254
Cf. GRENZER, Matthias. Salmo 1, p. 13.
126
seja, para degolar os homens retos (Sl 37,12.14). Desse modo, o comportamento em relao
ao prximo, sobretudo os pobres influencia a relao com Deus (cf. Sl 107,41; 113,7-9;
146,7-9c). O paralelismo criado entre o mpio e os homens sanguinrios (v. 19a-19b) refora
os empobrecidos como pecado255, avaliando essa postura como um atentado contra o prprio
como pessoas que tanto falam em falso de Deus em seu propsito quanto tomam as cidades de
dos mpios em casos concretos por meio de expresses de intensidade crescente. Primeiro eles
depois falam de Deus em seu propsito (v. 20a). Pois, aqui que se encontra a raiz de todos
os pecados256 e do seu poder de tentao: quando o homem comea a zombar de Deus e/ou a
falar com ironia de Deus (Is 28,14-22). E finalmente, carregam as cidades de Deus ao nada
(v. 20b).
arrogncia de seu atrevimento ainda procuram colocar-se acima Dele257. Isto , tomam as
cidades de Deus. Dessa forma, eles aparecem como pessoas arrogantes que agem no ardor de
255
Trata-se de realidade negativa que se manifesta pela infidelidade Lei e rejeio a Deus (Cf. PARRA
SNCHEZ, Thomas. Palavras Bblicas, p. 86).
256
O assassnio do irmo pe em xeque a intimidade com Deus e a harmonia social (Cf. WESTERMANN,
Claus. Teologia do Antigo Testamento, p. 101-107).
257
O Declogo (cf. Ex 20,1-5; Dt 5,6-10) reivindica a exclusiva soberania por parte de Deus (Cf. ZENGER,
Erich. O Deus da Bblia, p. 98-103).
127
A crtica do Sl 139 sociedade, contudo, vai mais longe ainda. Alm de apontar os
deixa claro que esses ltimos atuam contra Deus. Isto , os tentadores 258 humanos opem-se a
justia social. Com orgulho e arrogncia, eles se levantam contra Deus ambicionando
cometer o mal (Pr 12,2; Sl 22,12; 139,20a) e usando de astcia (Sl 26,4; 139,20b; Pr 30,8).259
diante do SENHOR.261 Imagina-se que o orante chamado a viver sempre na intimidade com
seu SENHOR e Criador. Mas, parece que o perigo de apostasia262, e de infidelidade permanece
e impera ao redor dele. Por isso, necessita-se de uma ruptura radical e total com o crime e a
perversidade, que no se pode ser realizada sem o socorro263 e o auxilio de Deus (v. 19a).
Assim, o SENHOR est disposto a conceder esse socorro, porque os mpios e homens
258
Cf. PARRA SNCHEZ, Toms. Palavras Bblicas, p. 105.
259
Cf. BOOIJ, Thijs. Psalm CXXXIX. In: Vetus Testamentum, p. 13.
260
Esse um tema bem conhecido no Antigo Testamento: Gn 11,4; Is 14,13-14; Sl 2,2; 83,6 (Cf. MURPHY. E.
Roland. J e Salmos, p. 53-56).
261
O Antigo Testamento supe com razo ser o homem idneo a fazer normalmente a vontade de Deus
(WESTERMANN, Claus. Teologia do Antigo Testamento, p. 27).
262
O fundamento da f na religio do Antigo Israel a adorao exclusiva do SENHOR (Cf. FOHRER, Georg.
Estruturas Teolgicas Fundamentais do Antigo Testamento, p. 92).
263
Deus repele os soberbos, os mpios e os que eu fazem o mal, a fim de que os fieis do SENHOR sejam mantidos
na justia (cf. Sl 36,11-13).
128
Alm disso, segundo Mannati v. 19a-19b fazem aluso eleio de Israel, hspede nas
cidades de Cana, terra das promessas (cf. Ex 23,23-30; Js 24,13); as quais cidades so dadas
inimigos de Deus. Com efeito, a vida humana est acima de todos os valores, visto que o
homem imagem de Deus (Gn 1,26-27). Por isso, colocada sob a tutela divina do sexto
mandamento (cf. Ex 20,13), ao passo que a economia e a poltica devem sujeitar-se a aos
Portanto, ao agirem com perversidade e violncia esses ltimos colocam a vida do homem em
O orante confessa sinceramente seu dio contra os mpios e pede que Deus os mate.
Neste sentido, a morte assalta os perversos na forma mais terrvel, como o rei do terror.265
Quem reza nesse poema no somente deseja a aniquilao (cf. Sl 5,7; 62,8; 75,24; 92,8) dos
companhia do SENHOR.
264
Cf. MANNATI, Marina. Para rezar os Salmos, p. 76.
265
Cf. MCKENZIE, L. John. Os Grandes Temas do Antigo Testamento, p. 237-238.
129
Esses versculos pintam a relao de reciprocidade criada pela Aliana 266 entre Deus e o
orante. O Sl 139,21a-21b oferece um esboo da linguagem tpica de aliana. Parece que quem
reza nesse poema ameaado por um grupo de malfeitores que so inimigos de Deus. Neste
sentido, os v. 21a-21b so uma declarao de aliana (cf. Ex 20; 34), semelhante que o texto
de xodo apresenta: Mas, se escutares fielmente a sua voz e fizeres o que te disser, ento
serei o inimigo dos teus inimigos e, adversrio dos teus adversrios (Ex 23,22).267 Pois, a
ruptura com a impiedade nos v. 19a-19b reafirmada com fora e veemncia nos v. 22a-22b,
ativo no plural do construto, seguido pelo sufixo da segunda pessoa no masculino singular
(). Essa raiz verbal aparece por cento e quarenta e seis vezes na Bblia Hebraica.
preposio (), seguida por sua vez pela raiz verbal ( )no particpio ativo no construto
masculino no plural + sufixo da segunda pessoa no masculino singular ( ). Essa raiz verbal
traduzida por levantar-se, ficar de p, rebelar-se; opor-se e, aparece por seiscentas e vinte e
Nos casos em que o referido verbo significa rebelar-se e/ou opor-se, se descreve a
atitude de hostilidade do homem. Dessa forma, algum se levanta e fere mortalmente seu
inimigo (Dt 19,11; 22,26), os senhores de Gaba levantaram-se contra o levita (Jz 20,5), um
266
Cf. FOHRER, Georg. Estruturas Teolgicas Fundamentais do Antigo Testamento, p. 150-153.
267
Cf. MANNATI, Marina. Para rezar os Salmos, p. 76.
130
exercito levanta-se, mas o justo no teme (Sl 27,3.12), o SENHOR levanta-se contra os maus
(Sl 94,16).
mpios. Neste sentido, esses homens so adversrios e opositores de Deus. Eles manifestam
hostilidade, persistem no caminho da maldade, odeiam a Deus e seus desgnios. Por isso, o
orante pede a aniquilao desses ltimos com os quais ele no quer ter comunho.
imperfeito na primeira pessoa do singular. Essa raiz verbal aparece por sete vezes na Bblia
Dessa forma, J fala com averso de sua alma (J 10,1), durante quarenta anos o
SENHOR tem averso de Israel (Sl 95,10), o justo fica com averso dos traidores (Sl 119,158),
pela raiz verbal tornar-se um inimigo ( )no particpio ativo, no masculino plural. Essa raiz
verbal aparece por duzentas e oitenta e trs vezes na Bblia Hebraica. Assim, nos v. 22a-22b o
orante confessa formalmente seu afastamento dos opositores e/ou rebeldes a Deus.
Essencialmente, o que ele odeia nos mpios e nos homens sanguinrios sua hostilidade
contra o SENHOR.
Resumindo: outras duas imagens ainda marcam a descrio dos homens sanguinrios e
mpios. A temtica de dio (v. 21a) parece reforar a ideia de que o comportamento tico-
moral de tais pessoas inclui uma ofensa contra o prprio Deus. Em vez de amar a Deus como
O termo opositores (v. 21b) por sua vez, serve para descrever os inimigos dos projetos
de Deus. Traz memria o oposto a Deus, inclusive sua criao e ordenamento csmico. Nas
Sagradas Escrituras, isso lembra a metfora de Satans (cf. J 1,6-12), o Acusador (cf. Sl
109,6).
inimigos e, por isso, devem ser odiados. Este um argumento tradicional frequentemente
usado nos lamentos (cf. Sl 105,2-5; 140,1-5).268 Assim sendo, quem reza aqui clama contra
eles seu desejo de vingana. Mas, esse desejo de vingana formulado como um pedido a
Parece que, a inteno principal do fiel no vingar-se, mas sim pedir a Deus para ser o
juiz. Ou seja, o orante oferece essa prece no pensando, ele mesmo, em fazer vingana, mas,
sim pede que o SENHOR a faa. Essa situao tpica dos Salmos imprecatrios 269 que contm
pedidos que enfatizam o fato que os inimigos causadores de aflio para o orante so
consumiam o justo e/ou o fiel, enquanto os maus desprezavam a Lei de Deus. Dessa forma, o
zelo pela casa de Deus devora o justo, e os insultos dos que insultam o SENHOR recaem sobre
ele (Sl 69,10), o fiel fica enfurecido frente aos mpios que abandonam a Lei (Sl 119,53), o
zelo pela casa de Deus consome o fiel, pois os mpios esquecem a Palavra de Deus (Sl
119,139). Assim, os inimigos de Deus, so os que demonstram pela sua vida e pelo seu
queles que Deus abomina o orante tambm deve abominar. Pois, ao fiel repugna a presena
268
Cf. WESTERMMANN, Claus. Teologia do Antigo Testamento, p. 114-149.
269
Cf. WOLFF, H. Walter. Bblia Antigo Testamento. Introduo aos escritos e aos mtodos de estudo, p. 101.
132
dos rebeldes e dos opositores de Deus. Esses inimigos do SENHOR se tornam seus inimigos
pessoais. Por conseguinte, a consequncia imediata, o que Deus detesta, o fiel deve detestar,
isto , os maus e/ou perversos (cf. Sl 5,6; Jr 12,8; Am 5,21; 6,8), os amantes de violncia (cf.
Sl 11,5).
assassinos e andar na companhia deles seria uma grande cumplicidade contra os desgnios de
Deus. interessante lembrar que o Saltrio comea com uma bem-aventurana: feliz o homem
que no vai ao conselho dos mpios, no para no caminho dos pecadores, nem se assenta na
transmitem um conhecimento para uma sbia270 vida social, religiosa e moral. Quem reza aqui
descreve os maus como pessoas opressoras, que derramam sangue inocente e na sua cobia
Um ponto de partida evidente que o Sl 139 celebra uma ordem de vida criada por
Deus, a qual gravemente abalada por crises da vida pblica e privada, e s recupervel em
outro nvel, com a atuao do SENHOR. Com efeito, a sociedade onde vive o orante
ameaada pela violncia dos mpios e homens sanguinrios. Visto que os opressores descritos
nesse poema violam de maneira to flagrante as leis de Deus, seu comportamento e atitude
Assim como Deus poder ordenar a entrada na existncia de uma coisa que no existia?
Isto , se Deus viu que tudo que criou bom, Ele no criou o mal. Pelo contrrio, muitas
coisas segundo o poema do Sl 139 no merecem este predicado, so enigmticas, trgicas at.
Mas, parece que Deus tendo julgado antecipadamente, recusou ao homem o direito de julgar
270
O sbio aquele que cumpre a observncia da Lei como meio para alcanar a felicidade em Deus (Cf. ELLIS,
F. Peter. Os Homens e a Mensagem do Antigo Testamento, p. 498).
133
aleatoriamente. Nesse sentido, segundo o Sl 139, ao homem como criatura limitada no cabe a
superviso sobre o mundo e, por isso, deve apenas confiar em Deus e recorrer sua
providncia e benevolncia.
Por fim, interessante ressaltar que v. 22b faz meno de uma profunda relao de
reciprocidade entre quem reza nesse poema e Deus. Neste sentido, v. 22b acrescenta: para
mim tornaram-se inimigos. Esses ltimos no so apenas inimigos do SENHOR, mas tambm
inimigos do fiel. O fato do orante considerar os inimigos de Deus seus prprios inimigos (cf.
Gn 12,3) deve ser compreendido no contexto da Aliana271. preciso salientar que, nas
tradies bblicas um fato notrio que Deus ao tratar com o ser humano serviu-se de
alianas.272 Por isso, o orante assume as dores de Deus: para mim tornaram-se inimigos! (v.
22b). No mais, segundo Mannati os v. 21a-22b revelam que o Sl 139 era recitado na
271
Cf. CERESKO, R. Anthony. Introduo ao Antigo Testamento numa Perspectiva Libertadora, p. 94-95.
272
Cf. ELLIS, F. Peter. Os Homens e a Mensagem do Antigo Testamento, p. 28-37.
273
MANNATI, Marina. Para rezar os Salmos, p. 76.
134
orante a Deus para que o conduza pelo caminho da eternidade. retomado o tema inicial,
desta vez em forma de petio, onde quem reza submete-se ao escrutnio de Deus justo juiz
A expresso investiga-me (
) formada pela raiz verbal investigar ( )no
imperativo masculino singular, do Qal, seguida por sua vez, pelo sufixo da primeira pessoa do
singular ().
A expresso e conhece ( ) formada pela conjuno (), seguida pela raiz verbal
conhecer ( )no imperativo masculino singular, do Qal. Essas duas razes verbais servem
para a incluso do poema (vs. 1b.23a-23b). No tocante ao significado das referidas razes
conhecido por Deus confessa de antemo, que tanto sua vida quanto as profundezas de seu ser
so manifestas aos olhos do SENHOR. Deus o conhece inteiramente por dentro, por fora;
conhece suas aes e desejos mais ntimos, pensamentos e palavras. O SENHOR o conhece
como micro e macro-organismo. Imagina-se que Deus estaria no mais profundo do ser
274
. Cf. JOON, Paul. Grammaire de lHbreu Bblique, p. 107-109.
275
Veja as pginas 34-38
135
corao ( )no construto, seguido pelo sufixo da primeira pessoa do singular ( ). Esse
37,15; Is 1,5; 57,15), mas ganha de um modo simblico, conotaes, sobretudo no sentido
corao , acima de tudo, o lugar da razo e do entendimento, dos planos secretos, da reflexo
Ainda, segundo Dt 29,3: o SENHOR d um corao para compreender, olhos para ver e
ouvidos para ouvir. Dessa forma, Salomo pede a Deus um corao atento: d, a teu servo um
corao cheio de julgamento para governar teu povo e para discernir entre o bem e o mal,
pois quem poderia governar teu povo, que to numeroso? (1Rs 3,9). Sua orao foi
mas irreflexo, insensatez ou simples estultcia (Os 7,11) 277. Tambm, o corao pode se
referir conscincia j que, o orante do Sl 51,12 pede que Deus crie nele um corao puro,
ou seja, uma conscincia limpa. Alm disso, o corao a sede de sentimentos, pensamentos,
reflexes, ideias (cf. Sl 9,2; 14,1; 49,4; 84,6).278 H dentro do corao todo tipo de agitao:
tristeza, alegria, confiana, agresso, amargura, aflio, orgulho, dio, inveja (cf. Jz 19.6.9;
Sl 13,3.6; 16,9; 55,22; 73,21; 101,5; 104,15; 105,25; 112,7; Pr 15,13.15; 23,17).279
276
SCHROER, Silvia.; STAUBLI, Thomas. Simbolismo do Corpo na Bblia, p. 62.
277
SCHROER, Silvia.; STAUBLI, Thomas. Simbolismo do Corpo na Bblia, p. 63.
278
Cf. BOOIJ, Thijs. Psalm CXXXIX. In: Vetus Testamentum, p. 13.
279
Cf. BOOIJ, Thijs. Psalm CXXXIX. In: Vetus Testamentum, p. 14.
136
do corpo humano. Dessa forma, Deus diz a Samuel: no te impressione a sua aparncia nem
sua elevada estatura, [...] os homens veem apenas com os olhos, mas o SENHOR olha o
corao (1Sm 16,7). Assim sendo, o corao est em oposio aparncia externa. nele
que se do as decises vitais, embora estas sejam ocultas aos homens. Todavia, perante Deus,
no pode ser escondido aquilo, que est velado para o olhar humano (cf. Pr 15,11; 24,12; Sl
44,22; Jr 17.9). No mais, de acordo com Wolff, as atividades essenciais do corao humano
Portanto, como foi comentado nas pginas 135-136 desse captulo, o corao representa
Observa-se que, alguns desses sentimentos so descritos na subunidade anterior (vs. 19a-22b).
Depois de ter expressado livremente sua indignao e dio contra os mpios, o orante pede
examinar, provar ( )no imperativo no masculino singular, do Qal, seguida pelo sufixo da
primeira pessoa do singular (). Essa raiz verbal aparece por vinte e oito vezes na Bblia
Hebraica sendo nove vezes no Saltrio. 281 Ao olhar para essas presenas do verbo examinar
e/ou provar, interessante fazer as seguintes perguntas: Quem est sendo examinado e/ou
provado? O que est sendo examinado e/ou provado? Quais so as provveis consequncias
280
WOLFF, W. Hans. Antropologia do Antigo Testamento, p. 66.
Existem ainda dois substantivos formados pelas mesmas trs consoantes: (). Os significados desses
281
substantivos so respectivamente torre de observao e pedra de granito (Cf. LISOWSKI, Gerhard. Konkordanz
Zum Hebrischen Alten Testament, p. 207-208).
137
Na maioria dos textos paralelos nos Salmos, o SENHOR, que examina e/ou prova
algum, ou ento, examina e/ou prova algo em relao ao homem, a fim de que a verdade, a
justia e o direito sejam estabelecidos. Dessa forma, o SENHOR prova os coraes e os rins (Sl
7,10), as pupilas do SENHOR examinam os filhos de Ado (Sl 11,4), o SENHOR examina o justo
e o mpio (Sl 11,5), o SENHOR examina o corao do justo e prova esse ltimo sem encontrar
nele infmia (Sl 17,6), o SENHOR examina o justo e o prova (Sl 26,2), Deus prova os filhos de
Israel (Sl 66,10), Deus prova Israel junto s guas de Merib (Sl 81,8), os pais provam o
Neste sentido, a religio do Antigo Israel ensina que o comportamento tico-moral do homem
deve adequar-se vontade de Deus. Assim, o prprio Deus visto como quem sabe examinar
e/ou provar melhor as profundezas do ser humano. Essa concepo pressupe a soberania de
masculino plural no construto, seguido pelo sufixo da primeira pessoa no singular ( ). Esse
substantivo aparece somente por duas vezes na Bblia Hebraica: Sl 94,19; 139,23. Desse
Refere-se aqui noo de ansiedade (cf. Sl 94,19), de terror (cf. J 4,13), de indignao (cf.
J 20,2). O contexto imediato de Sl 139 parece indicar que o referido substantivo as angstias
282
FOHRER, Georg. Estruturas Teolgicas Fundamentais do Antigo Testamento, p. 222.
138
De tudo que foi dito, imagina-se que quem reza aqui est manifestamente perturbado e
embaraado por uma incmoda situao. Assim, ele pede que o SENHOR o examine e o
conhea (v. 1b.23a-23b). O fiel est ciente que deve confiar unicamente em Deus, por isso,
ele pede que o SENHOR conhea, tanto seu corao quanto suas preocupaes.
Enfim, uma observao particular deve ser feita com relao aos ttulos divinos nos v.
() , v. 23a (). Por isso, convm analisar e descobrir a imagem do rosto de Deus
A palavra
indica Deus283 (cf. Sl 7,18; 9,3; 18,14; 47,3; 97,9; 107,11), sendo que o
hebreu imagina, com isso, a superioridade do SENHOR, senhor de todas as foras naturais e
Deus.
(cf. 93,1; 96,6; 99,1), a santidade (cf. Sl 99, 3.5.9); que tambm o tornam terrvel (cf. 99,3;
145,6) e temvel (cf. Sl 99,1; 145,19). Assim sendo, o SENHOR do universo reina sobre todos
os povos (Sl 47,9; 96,3.10; 98,2), vem para julg-los (Sl 67,5; 82,8; 96,13; 98,9), vem para
destru-los (Sl 139, 19a; 145,20) e por fim, vem restabelecer a situao dos justos libertando-
Tambm as palavras e
descrevem tanto o Deus Criador (cf. Gn 1,1) como a
ao da Palavra Divina (cf. Gn 1,3). Esse ttulo divino aparece por duas vezes no poema do Sl
139 (v. 17a; 23a) e provavelmente se refere a esses atributos divinos. Trata-se da imagem e
283
Esse ttulo divino aparece por cinquenta e sete vezes na Bblia Hebraica, sendo vinte e duas vezes no Saltrio
(Cf. BROWN, R.; BRIGGS, C. A.; DRIVER, S. R. Hebrew and English Lexicon of the Old Testament, p. 43).
284
MOULOUBOU, Louis. Os Salmos e os outros Escritos, p. 75.
139
das prerrogativas do Deus, criador do homem e do universo. Parece que o orante do Sl 139 ao
evocar Deus sob esse ttulo professa sua f no poder, na proteo, na justia e na providncia
1.7.2.285
A expresso v (
) formada pela conjuno (), seguida pela raiz verbal ver ()
no imperativo masculino singular do Qal. Essa raiz verbal aparece por mil trezentas e quinze
pelo substantivo masculino singular caminho ( ) no construto, seguido por sua vez pelo
sendo sessenta e cinco presenas no Saltrio. Essencialmente, os verbos andar (Sl 139,3a) e
caminhar (Sl 139b.24a-24b) se referem ao mesmo campo semntico. Dessa forma, pesquisar
De acordo Parra Snchez o conceito caminho utilizado como metfora do xodo (cf.
Dt 1,30-33; 8,2-10), da vontade e leis divinas, e tambm como substituto da vida e conduta
O substantivo aparece por quatro vezes na Bblia Hebraica: 1Cr 4,9; Is 14,3; 48,5;
285
Cf. p. 32-34.
286
Ver o comentrio em 1.2.5 nas pginas 25-26.
287
PARRA SNCHEZ, T. Palavras Bblicas, p. 25.
140
contrapartida, nos textos paralelos de Is 14,3 e 1Cr 4,9, o referido substantivo se traduz por
sofrimento, dor. O contexto imediato do Sl 139 parece indicar que o substantivo nesse
presente na sociedade onde vive o orante. Quer dizer, essa sociedade onde vive o fiel, est
repleta de idolatras e infiis. Por isso, ele apela para o conhecimento que o SENHOR para
orientar seu corao, para lhe conceder o auxlio e/ou socorro necessrios na sua fidelidade a
A expresso e conduze-me ( ) formada pela conjuno (), seguida pela raiz verbal
conduzir ( )no imperativo masculino singular do Qal, seguida por sua vez pelo sufixo da
De tudo o que foi dito, interessante ressaltar que o verbo conduzir (v. 10a.24b) leva a
contemplar a imagem e a figura de Deus como bom pastor. Aqui o SENHOR aparece como o
guia que conduz o devoto no caminho da eternidade. Assim sendo, o infinitivo conduzir
lembra tanto a experincia e o caminho do xodo290 (Ex 13,17; 15,13) quanto o retorno do
exlio291 babilnico e/ou novo xodo (Is 51,18; 57,18), situaes nas quais o Deus de Israel
288
O vcio da idolatria frequentemente mencionado no Antigo Testamento (Cf. MCKENZIE, L. John. Os
Grandes Temas do Antigo Testamento, p. 59-60).
289
Em relao ao significado do referido raiz verbal veja o comentrio em 2.7 nas pginas 22-23.
290
A tradio hebraica narrou e cantou como o SENHOR salvou e estabeleceu seu povo contra toda esperana
humana, livrando-o da escravido no Egito (Cf. MCKENZIE, L. John. Os Grandes Temas do Antigo
Testamento, p. 132-133).
291
Trata-se da manifestao da glria de Deus (Cf. SCHWANTES, Milton. Sofrimento e Esperana no Exlio, p.
92-95).
292
O SENHOR o nico Deus soberano. Ele manifestou sua superioridade e seu poder na criao e no domnio da
histria (Cf. KLEIN, W. Ralph. Israel no Exlio. Uma interpretao teolgica, p. 117-124).
141
Assim, o Sl 139 encerra-se por uma prece de confiana que exprime a serena entrega do
orante nas mos do SENHOR, bom pastor,293 que protege e conduz seus eleitos. Portanto, da
mesma forma que o povo de Israel foi conduzido para fora da terra da escravido e da morte
no Egito (Ex 3-15,21) quem reza no poema do Sl 139 deseja prolongar sua vida no caminho
da felicidade, da eternidade.294
tanto sua situao como a de sua sociedade nas mos de Deus. Desse modo, Sl 139. 19a-24b
apresenta trs situaes que se encontram articuladas pelo mesmo tema: a confiana mediante
A primeira situao descrita nos v. 19a-20b mostra que diante do olhar conhecedor de
Deus, o orante quer apartar-se categoricamente do mpio e dos homens sanguinrios que se
formalmente seu dio contra os inimigos de Deus. O fiel declara odiar nos mpios sua
293
Cf. FOHRER, Georg. Estruturas Teolgicas Fundamentais do Antigo Testamento, p. 154-155.
294
Cf. TERRIEN, Samuel. The Psalms, p. 880.
295
Cf. GOLDINGAY, John, Psalms, p. 636.
142
A terceira situao descrita nos vs. 23a-24b culmina com uma splica humilde,
caminhos dos homens. O orante pede a esse Deus para conduzi-lo pelo caminho da
eternidade.
declara seu repdio idolatria e, insiste na sua proximidade e/ou comunho com Deus. Sabe,
pois, que ele somente viver caso o SENHOR o conduza (v. 24b), matando seus inimigos (v.
19a). Quem reza nesse poema, ciente de no ter seguido o caminho da idolatria, suplica a
296
Cf. TERRIEN, Samuel. The Psalms, p. 880.
297
Os Salmos de confiana individuais transmitem a Teologia da resistncia diante dos problemas sociais (Cf.
SILVA, Valmor Os Salmos como literatura. In: Revista de Interpretao Bblica Latino-Americana. Salmos, p.
20.).
298
Presena imediata e comunho constituem uma das caractersticas essenciais do Deus de Israel (Cf.
FOHRER, Georg. Estruturas Teolgicas Fundamentais do Antigo Testamento, p. 155-157).
Concluso
Os objetivos deste estudo foram apresentar a imagem e/ou o rosto de Deus revelado no
Sl 139 e investigar como o homem conhecido por esse Deus pode conciliar sua experincia de
f com a injustia e violncia instaurada pelos mpios e homens sanguinrios.
Em relao ao primeiro objetivo, com esta investigao, pde-se perceber que o rosto de
Deus revelado no Sl 139 foi apresentado em quatro dimenses.
A segunda dimenso refere-se onipresena divina. Quem reza nesse poema esboa
uma srie de reaes diante dessa presena: trs tentativas de fuga de Deus. O orante planeja
hipoteticamente fugir para longe do esprito e da face e/ou presena de Deus. Contudo, essas
tentativas de fuga foram frustradas uma vez que o SENHOR, com a mo direita, o conduz e
agarra (v. 10a-10b). Afinal, a constatao decepcionante: intil querer fugir de Deus.
Com efeito, o SENHOR tudo conhece e tudo envolve.
Por fim, a quarta dimenso refere-se oniscincia libertadora. Desta vez, o poema deixa
de lado o clima sereno, tornando-se violento. O orante solicita a justia divina, pedindo a
morte dos mpios e homens sanguinrios que se rebelam contra Deus.
J em relao o segundo objetivo, que buscou investigar como o homem conhecido por
Deus pode conciliar sua experincia de f com a injustia e violncia instaurada pelos mpios
e homens sanguinrios, identificou-se o tema da confiana e serena entrega nas mos de
Deus, o bom pastor que conduz seus eleitos pelos caminhos da eternidade. Quem reza aqui
formula seu pedido da divina conduo expressando sua f e confiana, uma vez que toda
deciso repousa unicamente nas mos de Deus.
Nesta investigao percebe-se que parece ficar claro que uma das dificuldades de se
lidar com a existncia dos maus est no mistrio da oniscincia, da onipresencia e da
onipotncia de Deus. Essa existncia dos mpios no cabe na lgica e na compreenso
humanas visto que a humanidade foi desejada e criada pelo Deus bondoso e, de acordo com
Gn 1,1-2,4, o mundo como um todo corresponde ao desgnio do Criador. Desse modo, as
grandes dificuldades e tenses tanto no interior do homem como na sociedade tornam-se
problemticas compreenso e vivncia da f.
A tradio bblica ensina: Deus criou o mundo (cf. Gn 1,3-30) e ainda o prprio
SENHOR aprova sua obra: Deus viu tudo o que tinha feito; e era muito bom [...] (Gn 1,31).
Todavia, o orante do Sl 139 afirma que a vida no transcorre calma e harmoniosamente, mas
est cheia de absurdos, confuses e tolices. Ele descreve o que se esconde por detrs dos
mpios, representantes da sociedade inqua e da comunidade falsamente devota. Dessa forma,
esse poema no essencialmente um hino oniscincia, onipresena e onipotncia de Deus,
mas, sobretudo uma invocao a Deus que caminha com os pobres e injustiados, os que
clamam, pousando constantemente sobre eles o olhar e estendendo para eles sua mo
145
Nesse sentido, nesse poema o fiel israelita busca resolver o problema da existncia dos
mpios causadores de sofrimento.300 Para o orante seria muito mais fcil se Deus matasse os
mpios, basta Deus acabar com semelhantes indivduos (Sl 139,19a; cf. Sl 104,35). Esses
odeiam a Deus, o fiel do Sl 139 odeia-os. Eles so inimigos do SENHOR, o orante considera-os
inimigos seus pessoais. Talvez sejam demasiadamente fortes semelhantes imprecaes 301, mas
quem reza aqui est professando seu amor a Deus, seu zelo pelo SENHOR, sua intimidade e
unio com Ele; do que Lhe deve, do que Dele recebeu e recebe continuamente.
Algo interessante a ressalvar que o Sl 139 parece abrir novos caminhos. Convm
contempl-lo para tirar algumas afirmaes para o desenvolvimento da Teologia do Antigo
Testamento.
299
Cf. SHILLING, Othmar. Os Salmos, Louvor de Israel a Deus. In: SCHREINER, Josef. Palavra e Mensagem,
p. 361.
300
Cf.WEISER, Artur. Os Salmos, p. 102-107.
301
Cf. WOLFF, W. Hans. Bblia e Antigo Testamento, p. 101-102.
302
Cf. LELIVRE, Andr.; MAILLOT, Alphonse. Les Psaumes. Psaumes 76 150.
146
parte do Antigo Testamento, uma vez que a tradio bblica desconhece a presena de Deus
no Sheol.303
Tambm, a catequese do Sl 139 importante do ponto de vista doutrinria, uma vez que
esse clima de amizade com o SENHOR descreve uma relao bilateral entre Deus e o homem.
Ainda, essa catequese apresenta alguns traos significativos da tradio religiosa de Israel: a
imagem do SENHOR, o Deus Soberano, o Libertador e Pastor.
Um outro resultado que chamou muito ateno foi a aparente falta de unidade do poema
do Sl 139.
Outra soluo oposta consiste em considerar o final como parte fundamental do poema,
como seu centro de gravidade. Neste sentido, a unidade de todo o poema est declarada por
uma incluso que repete trs palavras e com elas o tema. Dessa forma, o Sl 139 ecoa uma
splica constituda pelas mesmas palavras do comeo do poema. No incio eram constataes:
SENHOR, me investigaste e conheceste. No final, so peties: Investiga-me Deus e conhece
meu corao; examina-me e conhece minhas preocupaes! V, se h em mim algum
caminho de idolatria e conduze-me pelo caminho da eternidade!
Essa terceira hiptese que considera o final como ponto de partida, aparece como o
referencial que polariza toda a reflexo. Assim, essa ltima soluo tem o mrito de respeitar
os dados do texto, de aceitar a tradio e de aduzir paralelos convincentes e interessantes.
303
A temtica de manso dos mortos e/ou Sheol traz o incansvel perseguidor de todo ser humano manifestando-
se no mal, na doena, na opresso, na violncia e na injustia: l falta a presena efetiva de Deus (Cf. MURPHY.
E. Roland. J e os Salmos. Encontro e confronto com Deus, p. 47).
304
Cf. GOLDINGAY, John. Psalms: Psalms 90-150, p.626; BORTOLINI, Jos. Conhecer e rezar os Salmos, p.
573.
305
Cf. HOLMAN, Jan. The Structure of Psalm CXXXIX. In: Vetus Testamentum, p. 299.
306
Cf. ALONSO SCHKEL, Lus.; CARNITI, Carla. Salmos II (Salmos 73-150), p. 1580.
147
A orao ideal dever ser somente a expresso tranquila, calma e suave dos dramas
humanos? No dever deixar tambm lugar a expresso trgica, gritada, berrada mesmo, se
necessrio, desses dramas? O prprio Jesus, ser que Ele sempre usou apenas palavras
polidas, medidas, neutras para falar dos homens do Sindrio? E os Apstolos, falando sobre o
doloroso drama da sexta feira Santa, respeitaram a doura da linguagem? Pois, finalmente
revelar-se incapaz de uma leitura profunda dos textos.
Mesmo brutal e simples, a linguagem antiga pode ganhar uma interpretao mais sutil
dos leitores esclarecidos pela experincia de Israel e da Igreja. A linguagem dos Salmos
contm exatamente esse amplo apelo dirigido a todos os que sofrem; o simbolismo
universal309.
Nos Salmos quem reza expressa alegria e confiana, como tambm derrama em termos
de lamento, de medo, de angstia, de dio e mesmo de raiva e vontade de se vingar, a vida
que traz esses sentimentos e emoes. 310 Desse modo, o Sl 139 no os nega, nem o rechaa.
Ao contrrio, apresenta o homem atormentado pelo mal e pela violncia a Deus na sua
realidade nua e crua para que Ele o salve e lhe proporcione uma vida nova. Os Salmos so
trilhas que levam at o cume, onde se encontra Deus. 311
307
Devido ao carter imprecatrio os v. 19a-22b so omitidos na Liturgia das Horas (Cf. SALTRIO
LITRGICO. Salmos e Cnticos da Liturgia das Horas, p. 7).
308
Cf. RAGUER, Hilari. Para compreender os Salmos, p. 72.
309
MURPHY. E. Roland. J e os Salmos. Encontro e confronto com Deus, p. 46.
310
Cf. BARROS, Marcelo. Amor que une vida e orao. Os Salmos bblicos e a Liturgia. In: REVISTA DE
INTERPRETAO BBLICA LATINO-AMRICANA. Salmos, p. 161.
311
Cf. MARTINI, C. Maria. Prier avec les Psaumes, p.89.
148
Visto que Deus a luz que vence as trevas (Gn 1,3-5; Ex 10,23; Sl 4,7; 27,1; 104,2;
139,12a-12c), o Sl 139 ensina que o fiel permanentemente envolvido pela presena divina e
que esse ltimo pertence inteiramente ao SENHOR. Por isso, no h medo da presena de Deus,
no h medo de sua amizade. Grosso modo, esse poema uma orao prpria para o cair de
tarde e para os momentos de angstia, pela paz, confiana e serenidade que dele brotam na
alma daquele que o reza ao aproximar-se as noites de crises existenciais e de f. Quer dizer, o
Sl 139 aparece como o crisol onde nasce a confiana do homem no amor divino.
Enfim, no meio das angstias e dramas, Deus est ao lado do homem e no o abandona
uma vez que a Sagrada Escritura, a Liturgia, os Sacramentos so os lugares privilegiados onde
o ser humano recebe a fora para renovar e manter viva a esperana.
Moiss312 viu a sara arder sem ser consumida pelo fogo (Ex 3,2). Isso aparentemente
o smbolo da Igreja e da humanidade atormentada pelas provaes e perseguies dos mpios
e homens sanguinrios conforme a palavra do Apostolo Paulo: somos atribulados por todos
os lados, mas no esmagados; postos em extrema dificuldade, mas no vencidos pelos
impasses; perseguidos, mas no abandonados; prostrados por terra, mas no aniquilados.
Incessantemente e por toda parte trazemos em nosso corpo a agonia de Jesus, a fim de que a
vida de Jesus seja tambm manifestada em nosso corpo (2Cor 4, 8-10). Assim, todas as
labaredas do mal investiro contra os fieis sem poder queim-lo.
312
Cf. MARTINI, C. Maria. Vie de Mose, p. 26-29.
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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO
PUC-SP
MESTRADO EM TEOLOGIA
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2013