Antropofagia Icamiaba - Tais Ribeiro Lobo
Antropofagia Icamiaba - Tais Ribeiro Lobo
Antropofagia Icamiaba - Tais Ribeiro Lobo
ANTROPOFAGIA ICAMIABA
Contra-sexualidade e contra-cinema: a auto-pornografia como ferramenta de subverso
poltica.
ANTROPOFAGIA ICAMIABA
Contra-sexualidade e contra-cinema: a auto-pornografia como ferramenta de subverso
poltica.
ABSTRACT
This paper intended to reflect on the process of creating a self-pornography through the
appropriation and subversion of social and digital technologies by women and feminists,
realizing that such action resonates a new politic and esthetic forms of experiencing
affections, sexuality, pornography, eroticism and filmmaking. For this, we analyzed the
processes of creating movies Onira Vira Rio, Polifonia, O Sexorcismo de Aily Habibi and
Speaker, that comprises the filmic project Antropofagia Icamiaba , of which I am member.
We start the idea that hegemonic discourses and practices around pornography and eroticism
are gender and sexuality technologies that integrate a politic and economic system centered
in regulating bodies molecularly. By these factors, this research will seek to understand how
a critical self-representation constitutes an important tool for deconstructing hegemonic
cosmologies and epistemologies .
INTRODUO ..................................................................................................................... 8
ANEXOS............................................................................................................................. 104
Anexo 1: Manifesto Antropofagia Icamiaba
Anexo 2: Intuies (corpreas) acerca de umaauto-pornografia
Anexo 3: Entrevista feita por Adriana Azevedo a Tas Lobo em dezembro de 2012
Anexo 4: DVD com os filmes do projeto Antropofagia Icamiaba
8
INTRODUO
2 Sobre essa discusso, discorre tambm Edward W. Said em seu conhecido livro denominado Orientalismo: o
Oriente como inveno do Ocidente. Ocidente neste trabalho, refere-se a um sistema de pensamento que
subjuga e/ou invisibiliza tudo aquilo que no se insere em seus meandros conceituais, no entanto, necessita
dessas oposies para se afirmar. Nesse sentido, muito se assemelha noo de Monique Wittig sobre
heterossexualidade como regime poltico, pois no necessrio ser do Ocidente Europa, EUA para ser
ocidental.
9
Pois bem, isso o que as lsbicas falam um pouco por todas as partes deste
pas, talvez no com teorias, mas certamente atravs de suas prticas
sociais, cujas repercusses na cultura heterossexual ainda no podem ser
adivinhadas. Um antroplogo diria que esperemos mais cinqenta anos.
Sim, para universalizar os funcionamentos de uma sociedade e extrair dela
suas invariantes. Enquanto isso, os conceitos heteros se desgastam. O que
a mulher? () Fracamente um problema que as lsbicas no tm, por
simples mudana de perspectiva, e seria imprprio dizer que as lsbicas
vivem, se associam e fazem amor com mulheres, porque a mulher no
tem sentido seno nos sistemas econmicos e de pensamento
heterossexuais. As lsbicas no so mulheres (WITTIG, 1992, pp. 56-57). 3
consumir sonhos, ar, identidade, relao e alma, conceitos e processos que no existem
seno nas sociedades ocidentais e/ou ocidentalizadas. Desse modo, aqueles que no se
subjetivarem enquanto corpos farmacopornogrficos tampouco existiro para esse novo
capitalismo, e se no existem no importa o quo vivo ou morto estejam. assim que
Preciado explica, por exemplo, a relao desse regime com a questo do HIV na frica:
Wittig, Preciado, Foucault, Lauretis e Butler, cada qual em seus termos, esto dizendo
que na civilizao ocidental um fato concreto se configura: uma doutrinao dos corpos em
termos econmicos, sociais, sexuais e de gnero ante um regime de cdigos relativos a
uma cultura hegemnica, dotada de um sistema unvoco de pensamento, saberes e poderes
que iro significar a existncia dos corpos ali circunscritos. Isso se d conforme a capacidade
ou no de esses corpos serem assujeitados a tais cdigos, de forma que os corpos
dissidentes e perifricos, com relao a esse regime heterocentrado, tornam-se entes
invisveis; e a invisibilidade nesta cultura no detm carter algum de existncia. nesse
sentido, portanto, que se constri este trabalho: trata-se de uma tentativa de produzir teoria a
partir da existncia manifesta de corpos e prticas poltico-artsticas no doutrinados,
digamos, e que se esboam desde a periferia e a dissidncia.
Para sistematizar o percurso que nos levar ao corpus emprico deste projeto no
caso, os processos de criao, finalizao, exibio e o contedo em si dos vdeos Polifonia,
El Sexorcismo de Aily Habibi, Speaker e Onira Vira Rio, do projeto Antropofagia Icamiaba
iremos, primeiramente, adentrar na genealogia de certos conceitos e prticas que se
relacionam com os campos referentes ao aparato cinematogrfico e pornografia.
Passaremos, pois, pelos debates em torno dos Porn Studies13, e por um panorama crtico das
re-apropriaes conceituais e tecnolgicas realizadas por mulheres, feministas e minorias
sexuais.
O segundo captulo opera como uma importante transio esttica para o terceiro,
uma vez que ser ligeiramente traspassado por experincias pessoais articuladas a conceitos
e a prticas poltico-artsticas que vm sendo escritas na contemporaneidade. Ser o
momento em que se evidenciar a perspectiva sob qual este texto trabalha e se posiciona,
sobretudo no que concerne a pornografia, o erotismo, a ps-pornografia, as ferramentas
audiovisuais e a lgica dos afetos e das subjetividades, sendo que essa perspectiva a mesma
que ressoa nos vdeos que compem nosso corpus emprico.
O terceiro captulo, num intento de se produzir uma escrita feminista, vir em
primeira pessoa do singular, compondo-se por notas auto-reflexivas de tom ensastico, as
quais articularo as experincias e os processos vivenciados durante a produo dos vdeos
do projeto Antropofagia Icamiaba, discusso/produo de conceitos que se relacionam
tanto com este texto e suas respectivas referncias, quanto com o prprio projeto
videogrfico. Desse modo, pretende-se no apenas refletir sobre o processo de criao em si,
mas sobretudo encontrar sua sincronia esttico-poltico na produo terica, de modo que
tais processos se tornem auto-representveis tambm na produo textual acadmica.
1.1 Apresentao
passando por suas polticas sanitaristas e chegando s tecnologias das imagens fixas ou em
movimento, no caso, a fotografia e o cinema. Esses trs componentes conformam a principal
alquimia de uma biopoltica da representao pornogrfica (PRECIADO, Beatriz. 2008, p.
42).
Preciado se utiliza do livro The Secret Museum, no qual o historiador Walter
Kendrick traa o aparecimento da noo moderna de pornografia sedimentada ao longo
dos sculos XVIII e XIX ao recorrer s escavaes arqueolgicas realizadas nos territrios
de Pompeya, antiga cidade romana soterrada por uma erupo vulcnica no ano 79 d.C.
Encontraram-se nessas runas representaes de uma sexualidade outra que no a da Europa
moderna, e nesse sentido que a autora fala da emerso de uma retrica musestica, muito
presente nos discursos concernentes territorializao da sexualidade no contexto da urbe.
Escolheram-se imagens, esculturas e objetos paradigmticos desse antigo regime de prazer,
e fundou-se uma coleo estatal secreta, conhecida, tambm, como Museu Secreto, cujo
acesso era permitido para homens aristocrticos e restrito para mulheres, crianas e para a
classe popular. Dessas representaes resguardadas e de suas consecutivas retricas
musesticas deriva-se a atual noo do termo pornografia, como explicitado em um dos
itens do artigo de Preciado, com o emblemtico ttulo O museu inventou o porn:
Outro mito fundador do termo pornografia, a sua relao com as polticas sanitrias
das cidades modernas, estreitando ainda mais os seus laos com o controle e a vigilncia da
circulao de mulheres no espao pblico, categorizando-as em instituies dialticas
relativas mulher privada, no caso, a mulher de famlia, e mulher pblica, ou seja,
as prostitutas (PRECIADO, Beatriz. 2008, p. 44). Michel Foucault (1980) denomina esse
dispositivo de controle como sendo uma das tecnologias de poder mais empregadas no
sculo XIX, e Preciado (2008, p. 44) realoca a pornografia como um dos braos tentaculares
do biopoder, e para tanto, remonta-se a dicionrios datados daquele mesmo perodo e cujo
significado descreve a pornografia como um conjunto de prticas relacionadas prostituio
e vida das prostitutas na cidade como questo de higiene pblica. nesse sentido que a
pornografia, enquanto conceito de construo histrica, est embutida no apenas na
retrica musestica, relativa histria da arte e da constituio da arquitetura no Ocidente,
como tambm em uma retrica higienista, que, segundo Preciado (Ibidem), seria o brao
pblico de um amplo dispositivo biopoltico de controle e privatizao da sexualidade das
mulheres na cidade moderna. 17
Sob esse vis cabe, aqui, uma reflexo etimolgica sobre os termos com os quais
estamos trabalhando, uma vez que, como dito logo no incio deste captulo, apropriaes
etimolgicas legitimariam certas prticas de silenciamento. Nos contextos descritos acima,
relativos ao Museu Secreto e aos processos de higienizao das metrpoles europias,
emerge em outros dicionrios da poca a noo moderna de pornografia, desta vez
designada pelo historiador de arte C.U. Mller, que reclama a origem etimolgica grega da
palavra, a saber: porno prostituta, graphos escrita/representao (apud PRECIADO,
2008, p. 43). Isto , escritos de prostitutas.
Porm, se analisarmos o conceito mais atentamente e sob a perspectiva
heterocentrada, a qual rege o emprego social do termo atualmente, a preposio de tende a
conotar o sentido da preposio sobre, conformando o entendimento etimolgico da
palavra como escritos sobre prostitutas, compreenso esta que subjuga a prostituio a um
objeto de anlise distanciado do sujeito que o enuncia. Ou seja, algum um homem, claro
escreve ou enuncia sobre as prticas das prostitutas. Em outras palavras, o significante
social da partcula de subentendido como sendo a partcula sobre, e o uso desta ltima est
17 Apesar de no se ater tanto aos aspectos do espao pblico e de ser um tanto quanto essencialista, no sentido
de levar ao extremo a idia de diferena sexual biolgica, Wilhelm Reich, em seu livro A Funo do Orgasmo:
Problemas Econmico-Sexuais da Energia Biolgica, tambm fala da mercantilizao da sexualidade das
mulheres como sendo uma das formas de controle econmico sobre o corpo e o sexo, e de como isso se
relaciona com suas teorias sobre as couraas, que seriam estruturas culturais que moldam e oprimem nossos
corpos, afetos e sexualidade, docilizando-nos e preechendo-nos de potncias tristes e facilmente controlveis
o que, de certa forma, se assemelha intuitivamente aos dispositivos biopolticos descritos por Michel Foucault.
Ainda com relao discusso sobre prostituio, e pensando-a, neste caso, a partir do feminismo, ver os livros
Devenir Perra, de Itziar Ziga, Manifiesto Puta, de Beatriz Espejo, o filme Baise Moi, de Virginie Despentes e
Coralie Trinh Thi, e, ainda, investigar nomes e prticas ativistas como os da argentina Sonia Snchez, e os das
organizaes brasileiras Davida e Daspu. Aqui, a questo que me parece importante no a dicotomizao das
posies das autoras no caso, se a prostituio boa ou ruim seno o fato de essa discusso estar sendo
travada, majoritariamente, por prostitutas e ex-prostitutas.
20
18 Em seu livro Testoyonqui, Beatriz Preciado desenha um sistema de enunciao conforme a subjetivao
farmacopornogrfica e os sistemas sexo/gnero, e que ilustra bastante o esquema de controle da fala no espao
pblico. Ela dispe dois cilindros, lado a lado, cada um com um orifcio inicial e um final, que delimitam sua
extenso. Um orifcio boca, o outro o nus este desprovido de gnero, mas potente sexualmente, e por isso
controlado. Um cilindro refere-se ao corpo da mulher, o outro, ao corpo do homem. A boca do homem aberta,
pblica, deve enunciar, detm o poder da fala, j o seu nus se fecha, priva-se do uso pblico; com a mulher
d-se o contrrio: a boca se fecha, a palavra privada, no se enuncia no mbito pblico; o nus, por sua vez,
pblico, deve estar aberto ao uso.
21
que parecem referir-se ao tecno-olho, tais como gaze, ou em portugus, prazer visual
(MULVEY, Laura. In XAVIER, Ismail. 1983), nomenclatura que mantm ntima relao com
o que Linda Williams (1989) chamar de bodily image19.
Teresa de Lauretis (2000) diz que, simultnea e independentemente a/de Foucault
afirmar que uma das funes das tecnologias da sexualidade associar ao corpo feminino a
conotao de corpo sexual, as tericas feministas da teoria cinematogrfica j o faziam, a
partir da teoria do prazer visual ou gaze:
29 Chamadas, ento, de escravas brancas. Vide o filme Traffic In Souls (ABREU, Nuno Cesar. 1996, p. 44).
25
privado e restrito a um seleto pblico masculino, surgem os stag movies30, dirty movies, blue
movies e/ou smokers: filmes de curta-metragem, mudos e em preto e branco 31, nos quais
apareciam corpos nus em contato fsico direto, como por exemplo, atividades genitais,
penetrao vaginal, cunilnga e felao, ou seja, tudo aquilo que, conforme uma
territorializao precisa do corpo na modernidade dominante, ser qualificado como
atividade sexual (PRECIADO, Beatriz. 2008, p. 45). O voyeurismo espectatorial e a teoria
do prazer visual de Laura Mulvey so to evidentes nos stag movies que, no muito raro,
suas seqncias comeam com o emprego de tcnicas de fuso que nos remetem ao uso de
lunetas, binculos ou buracos de fechadura (ABREU, Nuno Cesar. 1996, p. 45), sendo estes
importantes recursos de mobilizao dos olhares intra-diegticos, bem como de sua
respectiva identificao com os olhares de um pblico vido por satisfazer seus desejos
oculares.
Em se tratando, portanto, de um dispositivo de subjetivao heterocentrada, vale
salientar o fato de os stag movies serem filmes feitos por e para homens heterossexuais, e
nos quais a heterossexualidade, apropriando-me de uma expresso pronunciada pela amiga
Fernanda Nogueira num dilogo sobre filmes pornogrficos, soa e desliza naturalmente,
como o movimento das ondas no mar. nesse sentido, tambm, que aspectos como o
voyeurismo e a identificao espectatoriais por dependerem de homens para existirem nos
processos de produo e recepo relacionam-se diretamente com o distanciamento das
mulheres, crianas e classes populares dessas tcnicas masturbatrias, o que no difere
muito dos mbitos supracitados referentes ao Museu Secreto e livre circulao no espao
pblico: essas trs instncias fazem parte de um abarcado de tecnologias sociais responsveis
pela constituio das cidades modernas como um espao masculino e, podemos dizer
tambm, branco (PRECIADO, Beatriz. 2008).
Outro fator para darmos devida ateno em relao ao cinema desse contexto espacial
e temporal, que sua formao e sua legitimao esto intimamente conectadas aos saberes-
poderes cientficos, mdicos e pedaggicos, tpicos de uma tecnologia social moderna que
vinha se conformando enquanto produtora de subjetividades pr-farmacopornogrficas, e que
culminaria no processo em que estamos hoje. Em outras palavras, a relao intrnseca do
aparato cinematogrfico com essas tecnologias sociais, como nos rememora Beatriz
Preciado:
30 Do ingls, filmes para solteiros.
31 Na poca, o cinema em cor e sonoro ainda no existia.
26
32 Hard core seria um subgnero da pornografia mainstream, isto , relativo indstria porn cinematogrfica
estadunidense legitimada no apenas atravs do advento, nos anos 80, da fita VHS e junto a ela a
possibilidade de um consumo pornogrfico caseiro/privado mas tambm atravs de seus antecessores do
cinema porn, cujo marco inicial se consolida com a feitura de Garganta Profunda, grande sucesso comercial e
de pblico, que teve tambm uma longa jornada nos tribunais norte-americanos. Seu contexto de irrupo, no
por nada, o da pseudo liberao sexual dos anos 1970, abarcada, anteriormente, pelo surgimento das casas de
swing, da revista e da manso Playboy, dos movimentos hippies, da plula anti-concepcional, e da revoluo
dos costumes da juventude. Esses movimentos de emancipao ainda hoje so altamente questionados por uma
crtica feminista mais radical e atenta, sobretudo por se tratarem de movimentos levados a cabo por sujeitos
hegemnicos e de classes privilegiadas da sociedade, ou seja, homens e mulheres de classe mdia, brancos,
estadunidenses e heterossexuais. Para se ter uma anlise historiogrfica interessante e agradvel desse perodo
ler os livros A Mulher do Prximo, de Gay Talese, e Pornotopa, de Beatriz Preciado.
33 Do ingls, gneros do corpo.
27
que este no pode controlar (apud PRECIADO, 2008, p. 45). Em outros termos, essa
imagem produziria um modelo pedaggico de prticas sexual, orgsmica e ejaculatria. Mas
as bodily images no so apenas as imagens pornogrficas; tambm so as imagens de
horror, as melodramticas e tantas quantas imagens componham conforme uma lgica que
apela ao pathos, e que est altamente conectada a uma crescente visualidade desencadeada
pelo cinema enquanto inveno moderna. Williams ir denominar esse fenmeno como
frenesi do visvel, que tambm pode ser entendido como evidncia do visvel.
Em seu artigo BlowJob, a pesquisadora Mariana Baltar (2011) vai explicitar,
primeiramente, esse abarcado de investigaes em torno da pornografia enquanto gnero e
suas relaes com outros gneros cinematogrficos. Remontando-se produo de Williams
e de outros autores, como Bill Nichols (1991) e Lynn Hunt (1999), Baltar nos rememora
que a institucionalizao do gnero pornogrfico s pode ser assim compreendido quando
levamos em conta os processos que envolvem a regulao jurdica da pornografia, que,
interpelada pela noo de obscenidade, definir as pessoas e os espaos aptos para abarcar e
consumir tal produo. Nesse sentido, tambm amplia a discusso utilizando os termos de
Nichols, o qual vai dizer que tanto o gnero pornogrfico quanto o etnogrfico possuem
ontologicamente o estatuto de evidncia do visvel, ou seja, daquilo que revela a verdade de
um determinado sujeito34. Essa problemtica tambm j fora levantada pelas tericas
feministas citadas anteriormente, e ser analisada por Baltar sob um outro vis, ao qual
devemos ater-nos: para autora, a evidncia do visvel se configura como um dos principais
projetos da modernidade, que dar o estatuto de real quilo que pode ser visto, quilo que se
circunscreve no espectro da visibilidade, o que torna a questo ainda mais ampla e
pantanosa, sobretudo na contemporaneidade, onde, segundo Baltar, ser visvel existir
(2011, p. 479).
Esta , de fato, uma questo de extrema gravidade e que nos remete, mais uma vez, ao
que se invisibiliza e se silencia a partir do que chamaremos de retrica do visvel, a qual
est relacionada ao cientificismo, ao empirismo e, conseqentemente, heterossexualidade
enquanto regime poltico. E se faz urgente para este trabalho pensar no advento do aparato
34 A anlise de Nichols, no entanto, parece-nos problemtica ao atrelar-se mais na dualidade fico/documental
referente ao fazer cinematogrfico, e menos no questionamento da realidade enquanto fico construda atravs
de diversas tecnologias e performatividades, invocando em seu discurso terico a mesma lgica de verdade
presentes nos gneros cinematogrficos pelo autor criticados. importante deixar claro, ento, que a verdade
do sujeito, neste trabalho monogrfico, refere-se mais verdade de uma identidade construda social e
culturalmente, isto , trata-se da verdade de uma cultura e de uma sociedade, que, por sua vez, s podem existir
atravs de sujeitos hegemnicos.
28
35 O termo multido de minorias tem como referente terico o artigo de Beatriz Preciado denominado
Multides Queer, no qual a autora traa um itinerrio da resistncia micropoltica exercida por corpos no-
normativos e que, juntos, compem uma multido poltica. (PRECIADO, Beatriz. Multides Queer: notas para
uma poltica dos anormais. Disponvel em <http://funkcarioqueer.wordpress.com/2013/02/15/b-preciado-
multitudes-queer/> .Acesso em outubro de 2013.)
36 Como, por exemplo, a estratgia de suicdio coletivo que seria levada a cabo pelos ndios Guaranis Kaiows
no incio do ano de 2013, em funo da penosa luta pela terra; esse ato, se considerado dentro de um regime
onde s existe o que visvel, pareceria intil; mas interessante notar que o suicdio, nesse contexto,
ritualizado, em dilogo total com foras invisveis, atravs das quais a palavra sufocada, o silenciamento, isto ,
o suicdio, se fertilizaria com o passar dos tempos, e, quando mais fortificada, voltaria para vingar o silncio e a
opresso de outrora. (BORGES, Fabiane e SANTOS, Verenilde. Guaranis: do jejuvy palavra recuperada.
Disponvel em <https://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=2473>. Acesso em outubro de 2013.)
29
O coletivo lsbico S/M Samois (1979), do qual fazia parte a ativista e terica
feminista de polticas de sexo e gnero, Gayle Rubin 48, tambm lanou, em seus manifestos,
uma srie de questes em torno do S/M enquanto locus de uma prtica feminista e de um
erotismo legtimo:
55 Imitao plstica de um falo. Porm, se alguns chamariam o dildo de pnis de plstico, Preciado inverter
a lgica e chamar o pnis de um dildo de carne, uma vez que o pnis, assim como o dildo, uma fico,
uma prtese. A nica diferena que o dildo uma fico da indstria do plstico, e o pnis uma fico social
construda principalmente pelas indstrias pornogrfica e mdico-farmacuticas.
56 Estas noo e tica se vinculam idia de hackeamento de softwares e sistemas operacionais de cdigo
fechado, isto , tutelados por grandes corporaes capitalistas da rea da computao.
37
Blade Runner. Vale salientar que a noo moderna e ocidental de humano, no muito raro,
relaciona-se genealogicamente com uma lgica especista57, evolucionista, cientificista e que
naturaliza a dominao sobre os corpos que esto margem da normalidade e da
humanidade. esse estatuto de humano que diz quem mais ou menos humano e que por
isso legitima uma srie de prticas opressivas, como a expanso colonialista, a chacina de
moradores de rua, a dominao dos animais a partir de uma lgica global de consumo de
carne, assim como a patologizao das prticas sexuais dissidentes. Diferentemente dos
humanos, um corpo ps-humano um corpo cujo territrio pode ser constantemente
modificado ou hackeado, ou mesmo um corpo que ainda est para ser construdo.
Em seu texto, Uma Nova Suavidade?, Suely Rolnik (2005, p. 342) questiona se o
amor anda impossvel, uma vez que est impregnado de subjetivaes heteronormais, as
quais se sustentam por uma srie de mitos ocidentais vinculados a valores e sentimentos
tpicos da histria da humanidade, como o caso da mitologia grega, da qual Rolnik toma
emprestado o mito de Penlope e Ulisses 58. No texto, a autora faz meno a duas possveis
formas de subjetivao, a saber: se por um lado a subjetivao Penlope aquela que est
destinada a existir apenas para a espera de um homem, sem conseguir tecer outro fio que no
o da espera, por outro, a subjetividade Ulisses aquela que artificiosa o suficiente para
destruir cidades, para explorar os mares, para se desterritorializar a qualquer custo e em
todos os instantes, encontrando diversos seres sem conseguir estabelecer qualquer tipo de
relao e afeto com eles a esse estado de liberdade desafetada ela chama de mquina
celibatria.
Nesse sentido, Rolnik sugere que sejamos menos humanos; talvez assim possamos
pensar em outra mitologia para o amor. Para ilustrar sua sugesto, a autora lana mo do
filme de Ridley Scott, Blade Runner, contando-nos a histria dos replicantes ou ciborgues,
clones de gente, programados para colonizar o espao, porm desprovidos de qualquer
57 Referente idia de que a espcie humana mais evoluda que as outras espcies; logo, os humanos teriam
legitimidade para dominar as outras espcies na mesma proporo em que estas ltimas so inferiores o
suficiente para servirem s economias e sociedades humanas.
58 Personagens do poema pico de Homero, A Odissia. O pico conta-nos sobre o trmino da famosa guerra
de Tria pela perspectiva de Ulisses, rei de taca, Grcia, que deixa a sua terra, famlia e Penlope, sua esposa,
para batalhar contra os troianos. Ao regressar da guerra, Ulisses passa por diversos infortnios, demorando anos
em sua odissia de volta para casa. Penlope, temendo ter que se casar com um novo rei que desbancaria
Ulisses, se arma na estratgia de que apenas se casaria com outro homem quando terminasse de tecer um
sudrio para Laerte. Durante a noite, porm, Penlope desfazia o que havia tecido durante o dia, adiando o novo
casamento, na expectativa de que Ulisses regressasse. Este consegue regressar para casa apenas vinte anos
depois. Sua histria de volta para taca, narra sobre como o assim denominado heri, destri cidades,
assassina seres mitolgicos, dentre outras aes tpicas de qualquer genocida etnocntrico.
38
sentimento humano, ou seja, uma mquina celibatria perfeita (2005, p. 347). Entretanto,
por algum erro sistmico, quando esto para expirar, os ciborgues se rebelam contra a morte,
lutando pela vida. Essa luta apenas cessaria se sua causa pudesse contagiar os humanos e
um deles se contamina, por fim. Contaminado pela rebelio ciborgue, esse homem quase-
no-humano se encontra com uma andride contaminada pelo humanismo quase-no-
ciborgue, ambos se apaixonam, partem juntos e o filme termina (Ibidem, p. 348). Esse
encontro, para Rolnik, poderia ser o incio de um novo mito, no qual uma nova suavidade,
uma nova noo de amor e afeto poderiam ser construdas. Isso ocorreria apenas quando
houvesse esse amor no to demasiadamente humano mas no to demasiadamente
desumano. Um equilbrio de foras a partir de uma dessubjetivao, conjunta e de mo
dupla, dos tecnovivos conectados e de seus respectivos objetos em conexo.
Esse desencadeamento textual rubricado acima, aposta na contra-sexualidade como
uma forma de se chegar nova suavidade, relao que criaria um novo mito e um novo
corpo, que o que nos interessa neste trabalho. uma forma de se pensar no hackeamento
da pornografia como uma prtica contra-sexual que inaugurar uma nova forma de afeto,
que, por sua vez, vai gerar uma nova qualidade de imagem pornogrfica, a qual estar
impregnada de erotismo, como veremos melhor abaixo.
Partindo desse vis exposto acima, poderamos afirmar que o desejo deveria guiar as
experimentaes erticas desse corpo, claro. O que pode constituir uma armadilha, pois o
desejo tambm se relaciona com a produo de subjetividades normativas. Em outras
Tal atravessamento, ir mobilizar tudo o que esteve presente durante essa relao de atravessamento. Vale
ressaltar que o devir sempre-minoritrio, ou seja, se relaciona justamente com aquelas foras contra-
hegemnicas presentes no mundo material e simblico. Nesse sentido, os autores falam de um devir-vegetal,
devir-criana e de um devir-mulher, por exemplo. (DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Flix. 1996)
60 Suely Rolnik, chamar essa instncia corporal de corpo vibrtil.
40
Sendo assim, tampouco vamos nos ater discusso dicotmica sobre o ertico
versus o pornogrfico, vamos sim enfatizar a urgente necessidade de levar o erotismo
pornografia para assim desestabilizar esta ltima, criando novas suavidades, novos afetos,
41
A partir dos anos 90 da dcada passada, uma nova forma de produo artstica
emerge no contexto das minorias sexuais e do feminismo, e suas formas manifestas so,
sobretudo, o vdeo e a performance. Annie Sprinkle, reivindicando o termo lanado pelo
fotgrafo holands Wink van Kempen, quem conforma a ps-pornografia 61.
Sprinkle comea sua vida profissional vendendo balas em salas de cinema no mesmo
ano em que fora lanado o clssico do porn, Garganta Profunda. Em seguida, consegue um
emprego de massagista o que, nos anos 70 da mesma dcada, conotava mais uma
massagem ertica, alm de ser um portal seguro para o exerccio da prostituio , e no
muito mais tarde conhece a Gerard Damiano atravs de quem inicia sua carreira no mercado
de filmes pornogrficos. Sprinkle atuou em mais de mil filmes porns e sempre encarou sua
profisso como um espao de gozo e prazer remunerados, talvez mais bem pagos que a
grande maioria de outros empregos disponveis no mercado naquele perodo (EGAA,
Luca. 2009).
Nos anos 1980 Sprinkle decide gravar seu prprio filme porn, chamado Inside Annie
Sprinkle, onde nem as aes cnicas, nem os orgasmos seriam controlados; as pessoas fariam
o que bem entendessem. A prpria Sprinkle atuava no filme quebrando protocolos da
linguagem cinematogrfica: cortava a quarta parede do cinema ao olhar para a cmera
enquanto se masturbava, e ao faz-lo, representava a si mesma como a atriz de filmes porns
que era. Sprinkle decide por essa metodologia subversiva pois criticava, desde j, a
representao das mulheres e o descaso ante ao orgasmo feminino na pornografia, o qual,
quando representado, no poderia ocupar muito tempo nas telas (Ibidem. 2009).
Dentro de uma lgica metalingstica e auto-ficcional, como formas de criao de
novas linguagens e estticas, Sprinkle decide realizar uma srie de performances
pornogrficas, pblicas e diretas, que se apropriassem de cdigos referentes aos filmes
porns, questionando justamente seu estatuto pedaggico no sentido de consolidar e
legitimar prticas sexuais e de gnero hegemnicos. Desse modo, Sprinkle nomeia o
conjunto dessas performances como Post-Porn Mordenist, dentre as quais o espectador
presenciava a transformao de Ellen nome anterior sua carreira pornogrfica em Annie
Sprinkle, que, por exemplo, convidava o pblico para ver o seu colo uterino aberto por um
61 Nos anos 80, Kenpem j havia se referido ao termo relacionando-o a uma serie de fotos suas com imagens
de genitlias que exprimiam no um carter masturbatrio, mas sim imagens pardicas e de crtica poltica.
43
espculo ginecolgico, fazendo uma apologia pardica aos planos escopoflicos que visam a
penetrao vaginal, tpicos da pornografia mainstream.
Annie Sprinkle, que desde sempre se declarou feminista, passa ento a elaborar uma
nova linguagem, a ps-pornografia, que se trata de no condenar a pornografia como um
meio de dominao patriarcal sobre as mulheres, mas sim um meio de se reapropriar da
ferramenta e do dispositivo pornogrfico, fazendo dele um uso poltico que ir desnaturalizar
seus processos de subjetivao sexual e de gnero, desestabilizando, por conseguinte, suas
estruturas cannicas. Em outras palavras, trata-se de uma estratgia poltica que se utiliza de
cdigos pornogrficos.
A despeito do que escreve Linda Williams sobre Annie Sprinkle, discorre a
transfeminista Luca Egaa:
Granados com seu projeto La Fulminante, Le Petit Justine, Xno Graffite e Aily Habibi, do
coletivo chileno CUDS (Coordinadora Universitria por la Disidncia Sexual), dos
argentinos Cuerpo Puerco e Acento Frentico, da espanhola radicada em Buenos Aires, Ana
Utrero e dos artivistas63 brasileiros Pedro Costa e Paulo Belzebitch, que levam, j h
alguns anos, o projeto musical e performtico, Solange, T Aberta.
Cada qual, sua maneira e singularidade, se utiliza de mltiplas linguagens e prticas
como o vdeo, a fotografia, a performance, o teatro, a ao direta, o ativismo, a interveno
urbana, a msica, a teoria, a pintura, o graffiti, as orgias, as prticas afetivas, etc. a fim de
intervir na poltica do olhar, desestabilizando sua caracterstica de prtese ocular subjetivada
biopoliticamente; e o fazem utilizando os prprios corpo e sexualidade. Para Nadia
Granados, por exemplo, La Fulminante foi uma personagem que ela criou com o intuito de
chamar a ateno massiva para questes de ordem macro e micropolticas 64:
O grupo Le Petit Justine, por sua vez, fala sobre a necessidade de ser um terrorista
sexual, com o objetivo de desestabilizar e perturbar a normalidade que reina sobre a maioria
das pessoas docilizadas (In Porno Porsi, Doc.uerpo). Para Ana Utrero, a pornografia e o amor
fundam o mundo. Segundo a artista, estamos vivos para passar bem, para desfrutar, para
sermos alegres e qualquer pessoa, sistema poltico, de crena ou de pensamento que se
interponham a essa sensao de bem-estar e alegria, so sistemas repressivos, pois castram o
que h de mais profundo em ns, que o prazer despertado pelo amor e pela amizade (In
63 Neologismo utilizado para fazer referncia arte poltica e ativista, aglutinando a palavra arte com a
palavra ativismo.
64 Os vdeos de Nadia Granados contestam desde a presena do capital norte-americano nas economias e
polticas colombianas legitimadas por lideranas polticas locais e pelas subjetividades normativas, e que
sustentam uma srie de genocdios e chacinas executadas pelo prprio Estado sobre comunidade negras,
campesinas, indgenas, lderes de movimentos polticos da esquerda, anarquistas, dentre outros at a
maternidade obrigatria, que tambm se d em virtude do modo de subjetivao feminino, assim como pelas
polticas relativas sade da mulher, como, por exemplo, a proibio/criminalizao do aborto.
65 A entrevista se encontra no filme documentrio em questo, que ainda est em processo de finalizao e,
portanto, sem suas devidas referncias filmogrficas.
45
Porno Porsi, Doc.uerpo). Para Pedro Costa e Paulo Belzebitch, Solnge 66 est aqui para
incomodar a uns e alegrar a outros: ou voc vai ficar totalmente contrariado, ou voc vai
amar e gozar junto! Mas meio termo no tem!(In Cuceta, A Cultura Queer de Solnge T
Aberta)67.
So essas algumas vises de grupos e pessoas que, a partir das micropolticas, vm se
movimentando no mbito das perturbaes que ferem e interferem as macropolticas sul-
americanas; e vale ressaltar que tal movimento, no nosso contexto geogrfico e poltico, no
necessariamente se refere ps-pornografia 68.
Talvez o que haja de mais potente na ps-pornografia seja sua instncia de prtica
poltica, como, por exemplo, a formao de uma rede micropoltica entre as minorias que
tentam dar corpo poltico sua invisibilizao. Trata-se de uma potncia que se eleva
bastante quando se expande para alm das minorias sexuais.
Um caso extremamente exemplar desse aspecto supracitado foi a oficina de ps-
pornografia realizada pelo coletivo Post-Op para descapacitados fsicos e mentais, no mbito
do projeto Yes We Fuck69. O projeto se trata de um filme documentrio que discute e reverte o
quadro da invisibilizao da sexualidade de corpos tidos como monstruosos, defeituosos,
feios: os corpos com descapacidades fsicas e mentais. A oficina do Post-Op se realizou de
forma terica e prtica, partindo da discusso em torno do termo ps-pornografia,
comentando sua respectiva relao com o empoderamento de corpos invisibilizados pela
66 Tanto Costa quanto Belzebitch se referem ao projeto Solnge como uma entidade conceitual.
67 Documentrio curta-metragem difundido amplamente na internet. Disponvel em
<http://www.youtube.com/watch?v=WTDgw0Ms5Cs>. Acesso em dezembro de 2013.
68 importante ter em mente que grande parte desses coletivos e artistas no se identificam como
artistas/ativistas ps-pornogrficos. Alis, suas prticas existiam muito antes de conhecerem esse
conceito/prtica que, paralelamente, se consumava nos EUA e na Europa. O que se d que a circulao de
suas aes e trabalhos ocorre, muitas vezes, atravs de festivais e mostras articulados com o conceito e a prtica
ps-pornogrficos. Portanto, parece-nos apropriado que cada qual, artista ou coletivo, trace a prpria auto-
denominao referente aos seus trabalhos e prticas artsticas/polticas, e que aqueles detentores da produo
jornalstica, terica e curatorial articulem seus textos a partir do dilogo com essa auto-denominao
supracitada.
69 Disponvel em <https://www.facebook.com/pages/Yes-we-fuck/219982821476676>. Acesso em junho de
2013.
46
compartilhamento para quem quiser baixar e difundir os filmes ali presentes, seguindo os
cdigos da tica hacker/pirata. Outra forma de difuso desse material audiovisual, e talvez a
principal delas, a web.
H uma certa confuso em alguns campos do estudo quando comentamos sobre ps-
pornografia, pornografia feminista e tantos quantos movimentos que utilizam a sexualidade
como substrato micropoltico de expresso. Essa confuso muitas vezes se d em virtude da
errnea associao dos vdeos ps-porns a uma srie de vdeos produzidos de forma
amadora e veculados na internet, como, por exemplo, os que Susanna Paasonen (2010)
vai chamar de netporno, isto , os porns amateurs, os altporns77 e outros subgneros da
pornografia mainstream. Estes sim so subgneros pornogrficos, pois aparentam ser no
mais que uma simples mudana de mscaras: se a pornografia mainstream d conta dos
corpos perfeitos e esculturais, alm de empregar uma iluminao direta e dura tpica das
telenovelas, dando um ar artificial imagem que se representa, os porns amateurs e os
altporns, por outro lado, tentaro dar um estatuto de maior realidade s suas imagens,
trazendo consigo uma esttica portada de iluminaes mais sutis, com luzes difusas e corpos
como os chamados indies, mulheres tatuadas como o famoso caso das suicide girls78
enfim.
Tudo isso parece-nos um tanto problemtico. Primeiramente porque, assim como a
pornografia mainstream, tampouco os netporn's questionam o estatuto de representao que
a nossa prpria realidade carrega em si; depois, porque, por trs desse suposto amadorismo,
existe toda uma rede mercadolgica e capitalizada. No esqueamos que, antes de que seus
produtores se empoderassem suficientemente para se tornarem profissionais, a pornografia
mainstream tratou-se, em primeira instncia, de um empreendedorismo amador. Sem contar
que as redes dos vdeos amateurs seguem a mesma linha do mercado pornogrfico: existem
produtores e consumidores, tais quais. Para alm disso, os amateurs servem como produto de
77 A primeira expresso, porn amateur, deriva do francs, significando porn amador. A segunda, altporn,
deriva do ingls e significa pornografia alternativa.
78 Ver mais em <https://suicidegirls.com>. Acesso em dezembro de 2013.
49
consulta para a pornografia mainstream, a qual, vendo que aquela lgica verit funciona e
excita, passa a fazer filmes profissionais com tonalidades amateurs. A diferena concreta
entre as duas que os atores profissionais da pornografia mainstream ganham para faz-la, e
os atores dos amateurs e dos altporn o fazem porque gostam (PAASONEN, Susanna. 2010,
p. 303)79.
Tambm h uma certa confuso referente ao termo ps-pornografia, relativa,
sobretudo, s apropriaes superficiais e modistas pelas quais o conceito vem passando. Se
pensarmos na produo conceitual de nossos tempos, veremos que, no por coincidncia, a
ps-pornografia se situa em meio a muitos outros conceitos antecedidos pelo uso do ps:
ps-moderno, ps-fordismo, ps-colonial, ps-identitrio...
Tratam-se de correntes filosficas que, parece-nos, tendem a abrandar
questionamentos que em muitos contextos polticos ainda no deixaram de ter o estatuto de
questo. Como, por exemplo, falar em ps-colonialismo se as relaes mercadolgicas, de
consumo, lingsticas e conceituais ainda imperam nas ex-colnias? Como falar em ps-
identitrio em uma pas como o Brasil, que necessita estrategicamente da identidade para
fortalecer e legitimar juridicamente lutas como a luta pela terra, enfrentada por comunidades
negras, quilombolas e indgenas e ainda que a noo de identidade no se empregue nas
suas epistemologias originrias? Como falar em ps-fordismo em lugares que ainda se
sustentam economicamente atravs da mo-de-obra semi-escrava, como a China? Como
falar em ps-feminismo em lugares onde as mulheres no tm sequer direitos sexuais e
reprodutivos mnimos, como o aborto? Como falar em ps-pornografia em locais onde
existem estruturadas mfias de trfico de mulheres e que isso se sustenta por uma semiose
pornogrfica construda ao longo das investidas colonialistas, que enxergavam as mulheres
latino-americanas como objetos sexuais exticos?
Por mais que se almeje a experimentao de um corpo em devir, sem gnero e
identidade, uma coisa um fato incomensurvel: vivemos em um mundo de representaes
que se movimenta poltica e esteticamente a partir das representaes. Em outras palavras,
queremos dizer que, apesar do nosso desejo pela fluidez, ao sairmos nas ruas seremos, sim,
79 Alis, vale ressaltar que os termos amadorismo e profissionalismo, como nos rememora Paasonen (2010, pp.
302-303), so termos de origem aristocrtica derivados do mesmo sculo XIX que consolidou todo o projeto de
modernidade que criticamos nesta investigao. Aproveitando-se da territorializao concernente s prticas
profissionais, que carregavam o estatuto de pblicas, o amadorismo surge com a inveno do lazer a fim de
diferenciar a esfera privada da pblica, e de atender produtos para os mercados emergentes desse novo setor. A
partir de ento, o termo foi tomado emprestado da velha noo aristocrtica, amare, pela nova classe-mdia at
tornar-se compatvel noo de hobbie.
50
identificadas como mulher, homem, gay, negro, puta ou lsbica, uma vez que nossos corpos
carregam consigo um sem-nmero de significantes sociais. Do mesmo modo, sempre
estaremos sujeitas a subjetivarmo-nos conforme regem as leis das identidades supracitadas,
podendo trazer em nossa bagagem corporal e identitria as relaes de poder e de privilgio
que essas categorias carregam.
Portanto, tem que se falar, sim, sobre os conceitos filosficos supracitados; tem que
se investir, sim, nessa movimentao conceitual. Mas acreditamos que isso deva ser feito de
forma cautelosa, reflexiva e crtica, para que todos os problemas levantados acima no
sejam, mais uma vez, silenciados por novos discursos filosficos e vistos como j superados,
como de costume na historiografia dos conceitos, que muito se assemelha histria dos
vencedores que, alm de conceitos, tambm so contadas por imagens, vdeos e filmes 80.
80 Nxu Zn, auto-denominada mulher e indgena, escreveu, a partir da reinvindicao dessas identidades, o
texto Contra la Teora Queer, que dialoga bastante com muitas inquietaes relacionadas s minhas prprias
prticas audiovisuais e de vida, e, dialoga igualmente, com as teorias ps-estruturalistas, nas quais a ps-
pornografia e a teoria queer se inserem. Zn defende que a teoria queer parece ser menos uma ferramenta
revolucionria que reformista, aproximando-se mais de um modo de vida neoliberal diferenciado, em que o
poltico to pessoal, que deixa de ser coletivo; em que a suposta contra-sexualidade e a reinveno da
pornografia so to coitocntricas e falocntricas quanto a prpria pornografia normativa. Para a autora,
tudo isso parece mais uma faceta de um modo de vida voltado para o individualismo e para o consumismo,
apontando para uma homogeinizao das diferenas e uma globalizao ideolgica e mercantil, tpicas de um
sistema neoliberal o mesmo que extermina fsica e simbolicamente um sem nmero de comunidades
indgenas na Amrica Latina. Disponvel em <http://www.ciudaddemujeres.com/articulos/Contra-la-teoria-
Queer>. Acesso em julho de 2013.
51
3.1 Apresentao
3.2 Atravessamentos
essas mesmas aes produzem. No bastassem as imagens produzidas pelos telejornais das
grandes emissoras, as imagens produzidas pelos block busters de ao e violncia, as
imagens produzidas por filmes como Tropa de Elite que, o direi em meu vocabulrio
menos informal: ainda que no fosse intencional, convenhamos, bateu palma pro maluco
danar ou as imagens derivadas dessa mesma linguagem cinematogrfica,
historiograficamente fundada num filme que legitima a escravido negra, o apartheid social
e a Ku Klux Klan no caso, o filme de D.W. Griffith, O Nascimento de Uma Nao; no
bastassem todas essas imagens anti-pornoerticas difundidas e veiculadas pelos meios
audiovisuais e por parte de uma certa cinematografia, dei-me cara-a-cara com imagens que
as foras militares do Estado produzem, ao vivo, em um desenvolvido sistema no apenas
audiovisual, mas que se amplia sinestesia, onde o som de bombas se funde fumaa, que
se funde s luzes da cidade e a nosso aparelho respiratrio, sufocando-nos e criando,
tambm, novos imaginrios medo, parania... enfim, processos de desempoderamento.
Sinais de fumaa, imagens fortes, de guerra e pnico sendo geradas em ato performtico,
pela prpria guerra seria esse o Tropa de Elite em cinema 4D, talvez? Depois de processar
em sonhos e em pensamentos as imagens, os sons e os cheiros que vivenciei, o que eu j
(achava que) sabia tomou corpo: o Estado produz esse abarcado audiovisual-sensorial e tem
como ferramentas para ger-lo no apenas a polcia e a mdia, mas tambm o cinema e as
subjetividades que o consumem e produzem. O Estado essa subjetividade encarnada e
essas subjetividades, por sua vez, so o Estado encarnado.
Assim como as descries mdicas e as teorias cientficas, as imagens em movimento
exercem talvez mais intensamente o que Pierre Bourdieu (2001) chama de programas de
percepo, os quais iro cuidar da ritualizao das nomeaes para que estas se
institucionalizem e gerem, ento, um sistema rgido, legtimo e hegemnico de smbolos e de
cognio simblica. Isso nos levaria, por exemplo, a pensar que tais imagens no apenas
descrevem uma realidade social, como tambm prescrevem sua construo, e em virtude de
a enunciao dessas imagens se efetivar atravs de instituies edificadas, ganham, por sua
vez, o reconhecimento pblico que as legitimam. Bourdieu, fala, inclusive do tom proftico
dos enunciados e das representaes performativas, e podemos, a partir dessa lgica,
denominar essas imagens como imagens-profecias.
Cruzando a lgica e Bourdieu com a teoria de Monique Wittig (1992) 81 parece-me,
ento, que tais imagens prescritivas so sem sombras dvida um dos sustentculos estticos
que legitimam a heterossexualidade enquanto regime poltico cuja estrutura j , em si,
microfascista, e que a enunciao dessas imagens deriva do mesmo lugar de onde se enuncia
a pornografia mainstream, ou seja, de uma modernidade que descreve, categoriza, prescreve
e constri retoricamente a visibilidade e a invisibilidade. Em outras palavras, essas imagens
construdas para serem vistas e sentidas criam com as subjetividades hegemnicas um
agenciamento homeosttico de retroalimentao: quanto mais as subjetividades forem
hegemnicas, maior ser produo de imagens de horror, de pornografia mainstream e,
conseqentemente, maior ser o uso no-reflexivo dos prazeres, das palavras e dos
enunciados de forma geral; por outro lado, quanto mais se proliferarem tais imagens, mais
subjetividades hegemnicas sero produzidas, e assim por diante.
Creio que o projeto que apenas a partir de agora entrar em discusso neste trabalho
escrito, s pode ser visto sob essa tica atenta: de que extremamente urgente pensar nas
imagens que estamos produzindo, pois j vimos que elas no apenas interferem na realidade,
prescrevendo-a, como so a prpria realidade, e que essa realidade nada mais que um
emaranhado de cdigos e sistemas de representao semitica e molecular. Elas revelam as
cosmologias e epistemologias de quem as produz. E essa epistemologia se pauta em um
processo/projeto a que denominamosmodernidade, projeto que se desenvolveu ao longo
dos sculos XIX e XX na Europa, sobretudo, e que vem sendo importado e empregado na
Amrica do Sul h dcadas.
Posto isso, a partir de agora escreverei na primeira pessoa do singular, pois tudo o que
atravessa este captulo se trata de um afeto singular. certo que essa qualidade de afeto
tambm diz respeito a muitas pessoas com as quais compartilho de afinidades poltico-
afetivas; portanto, justamente por isso que me cabe aqui tentar elevar essa experincia
singular e pessoal, isto micropoltica, a um nvel macro, coletivo, multitudinrio, para no
perder a conexo com a mxima feminista de que o pessoal poltico.
Nesse sentido, h algum tempo atrs, aps e durante muitas desconstrues
micropolticas em torno dos meus afetos e da minha sexualidade, resolvo imergir em uma
busca esttico-poltica que acessasse e, ao mesmo tempo rubricasse, outros desejos e
prazeres, fundados numa busca singular corporal: como que, a partir de meu corpo eu
poderia acessar um imaginrio que ainda no existe porque ainda no o criei? Em outros
termos, como eu poderia criar uma nova sexualidade para mim, acessando um erotismo que
54
82 Relembrando aqui o primeiro captulo desta monografia no qual retomo e desenvolvo o significado
etimolgico de pornografia e prostituta: uma grafia no de ou sobre prostitutas, mas por prostitutas, aquelas que
se colocam vista, que percorrem e ocupam a cidade, o espao pblico.
55
(LOBO, 2011).84
nesse sentido que, a partir de uma via molecular, esse processo muito se assemelha
s mdias populares e independentes que buscam registrar as manifestaes desde dentro do
corpo-coletivo manifestao; uma mdia que busca dar visibilidade ao que as retricas dos
discursos mainstream escondem. Assim como o corpo-coletivo das manifestaes contam
uma outra histria que a narrativa hegemnica mdia e telejornais no conta, o corpo de
quem se envolveu neste projeto decidiu contar, desde as entranhas, uma outra histria sobre
si, sobre o que move os seus afetos micropolticos, uma histria que as narrativas
hegemnicas do corpo e sua sexualidade pornografia mainstream, registro cientfico e
mdico, etc. tampouco contam, porque uma histria singular. Trata-se do empoderamento
do corpo, do erotismo, dos dispositivos de comunicao/audiovisuais e da histria desse
corpo poltico. Existe a, um elemento sobre o qual poderia discorrer, pois muito me
interessa, mas que no cabe prolongar, ao menos neste trabalho, que o acesso barato, fcil e
direto aos meios de registro cmeras e de difuso internet. Existe outra questo que,
neste momento, me parece importantssima, que consiste em no dissociar esse movimento
micropoltico das manifestaes que irromperam no pas. Parece-me que se ater ao macro,
apenas, trocar seis por meia dzia ainda mais em um pas com histrico militar e fascista,
com polticas sul-americanas altamente imperialistas, machistas e sexistas. O que irrompe,
creio, s urge efeito se o for radicalmente, e assim, a partir dessa irrupo, pode-se imergir,
mergulhar, ir raiz da questo, ao micro, ao biopoltico, ao bioenergtico, ao molecular e
esse movimento deveria ser simultneo, conectado, retroalimentado. Um corpo s se
fortalece em conjunto se suas molculas tambm se fortalecerem desde o invisvel; caso
contrrio o corpo pura carcaa, superficialidade.
Enfim, resolvi chamar o projeto a que me refiro acima de Antropofagia Icamiaba.
84 O fragmente do texto retoma notas de campo tomadas durante o processo de criao do projeto Antropofagia
Icamiaba.
57
85 Encontro onde os vdeos deste projeto foram exibidos pela primeira vez.
86 O texto de Sabrina foi retirado de trocas de e-mails feitas durante a construo coletiva e virtual do encontro
supracitado.
59
87 Suely Rolnik, nesse texto, parece tecer uma crtica s identidades sobre todo e qualquer modo de espao
identitrio, crtica que difere de muitas de minhas opinies, sobretudo com relao ao uso estratgico das
identidades que o feminismo e outras lutas sociais nos trazem, ou seja, a reivindicao da identidade como
forma de resistncia e ocupao de espao poltico porm, a luta interior, no campo de batalha corpo pela
libertao de qualquer forma de condicionamento; mas muitas vezes isso s se far possvel, inclusive, atravs
da reivindicao da identidade. Reivindicar a identidade como forma de luta poltica, no subjetivar-se ou
mesmo o incio de alguma subjetivao, estratgia poltica de resistncia e sobrevivncia.
88 A institucionalizao a que me refiro aqui, diz respeito noo de instituio de Pierre Bourdieu (2001). Ela
se estabelece atravs ritos sociais executados por sujeitos que autorizam ou nomeiam uma determinada
situao, e por sujeitos que reconhecem dita nomeao, a qual s pode ser enunciada por ilustrados,
magistrados e ministrios como, por exemplo, padres, juzes, professores e generais , assim como s seria
legitima quando reconhecida por micro-magistrados, micro-ministrios, micro-ilustrados aqueles que, ainda
que no possuam o ttulo, carregam um juiz ou uma polcia dentro si.
60
pelas tecnologias a que nos referimos ao longo deste trabalho. Essa prtica de fragmentao
poderia ser, ento, facilitada pela prpria antropofagia: movimento da individualidade que
busca um agenciamento com elementos externos a si, a partir do qual conseguiria vazar os
seus prprios contornos, desfragmentando-se e podendo executar, ento, a prpria re-
montagem, singularizando-se, por fim. A devorao antropofgica se traduziria, ento, pela
noo de agenciamento e singularizao.
A meu ver, o processo antropofgico no apenas se relaciona ao Corpo Sem rgos,
como tambm ocorre quando estamos devindo algo. Devir, poderia ser explicado por uma
simples frmula matemtica: quando x atravessa y, e quando y atravessado por x; dessa
equao resulta uma mutao conjunta; no que x se torne y, e y se torne x, outra coisa: x
se torna x', e y se torna y' (ZOURABICHVILI, Franois. 2004). Ou seja, trata-se de uma
metamorfose relacional e altamente arriscada, pois os atravessamentos superam a
estabilidade pr-estabelecida, superam os contornos que nos constituem enquanto indivduos
subjetivados. Nesse sentido, o xamanismo amerndio, descrito por Eduardo Viveiros de
Castro (2008, p. 33), parece assemelhar-se s experincias de devir, ao Corpo Sem rgo, e,
evidentemente, antropofagia: trata-se de uma metamorfose corporal, vinculada a uma
transformao somtica, ou seja, 'vestir' o hbito da ona e poder comportar-se como
uma ona por exemplo, caminhar sem fazer barulho, subir nas rvores, comer carne
humana. A possibilidade de trocar de corpo especfico est sempre presente no mundo
amerndio. sempre um perigo. Evidentemente que sim, e dessa antropofagia perigosa
para as subjetividades e sistemas hegemnicos a que me refiro e me aproprio neste
trabalho.
Essas referncias conceituais pautadas no xamanismo amerndio emergem aqui, pois,
alm de a prpria antropofagia estar conectada a prticas amerndias, existe na ontologia
deste trabalho um momento em que o termo antropofagia se relaciona com o mito das
Icamiabas89, configurando-se na expresso Antropofagia Icamiaba. As Icamiabas, por sua
vez, foram ndias guerreiras e arqueiras que viviam em uma comunidade matriarcal na regio
do rio Tapajs, em Alter do Cho, no Par e que para melhor manusear o arco e a flecha,
extirpavam um dos seios. Elas mantinham uma espcie de contrato afetivo com os Guaracis,
tribo de homens vizinha, e se encontravam esporadicamente com eles para manter relaes
sexuais, a fim de dar continuidade a ambas as tribos: as meninas que nascessem ficariam
89 Mito, pois pouco se investigou sobre essa histria, podendo, portanto, no ser apenas um mito.
61
com as Icamiabas, os meninos, por sua vez, eram devolvidos aos Guaracis. No fim do
encontro, as Icamiabas mergulhavam no rio Tapajs e recolhiam um barro esverdeado com o
qual modelavam amuletos da sorte zoomrficos, os muiraquits; o mais conhecido deles, e
smbolo de Alter do Cho at hoje, o sapo 90.
Digamos que a re-apropriao que fiz da lenda, ao integr-la ao nome do projeto
flmico, se deu com o desejo de pensar em uma antropofagia compartilhada91, cujo
compartilhamento se estabeleceria entre aquelas pessoas dispostas a participarem do
processo. Seria, tambm, uma antropofagia oriunda de agenciamentos que partissem de uma
cosmologia Icamiaba. Ao contrrio da simplria noo eurocntrica em torno da
antropofagia, que enxerga esta ltima enquanto prtica literal de refeio cerimonial de carne
humana, uma cosmologia Icamiaba estaria vinculada a uma antropofagia que, tal qual seu
agenciamento, vazasse os nossos contornos a partir de uma profunda alteridade.
Essa antropofagia icamiaba e compartilhada por relacional, comporia o modus
operandi do fazer cinematogrfico, revelando-se numa tica do fazer pela qual se daria o
processo da constituio flmica do projeto e de sua conseqente desconstruo dos nossos
territrios corporais, de onde no podemos excluir a sexualidade.
Alm disso, o prprio uso dos termos antropofagia e icamiaba se trata de uma re-
apropriao baseada numa tentativa de re-criar esses mitos sob uma outra tica, uma vez
que os imaginrios e as narrativas que os cunharam derivam de uma literatura informativa do
sculo XVI, escritos e relatados, lato sensu, por e para homens europeus, com tons no
apenas de insulto, mas tambm de exotismo. Utilizo-me, ento, de uma velha estratgia das
minorias sexuais e raciais: a apropriao do insulto como mecanismo de empoderamento
poltico (BUTLER, Judith. 1993). Se nos Estados Unidos as minorias sexuais se apropriaram
do termo queer92 para empoderar suas questes polticas, e se aqui fazemos o mesmo com os
termos sapato, bixa e vadia, se negras e negros se apropriaram de termos racistas para
debater questes raciais, e se muitos umbandistas e candomblecistas se apropriam do termo
macumbeiro para empoderarem suas prticas religiosas, decidi apropriar-me das noes de
90 No livro Macunama, de Mario de Andrade, narrado o encontro de Macunama com uma Icamiaba que lhe
d de presente um muiraquit grande parte da trama impulsionada quando Macunama tem seu muiraquit
roubado e desejo recuper-lo. No sculo XV, conta-se que o conquistador Francisco Orellana, em expedio
pelo rio Amazonas buscando por metais preciosos, relatou ao rei Carlos V a vitria de uma tribo de mulheres
guerreiras, as Icamiabas, sobre os invasores espanhis. De modo que as Icamiabas ficaram associadas, na
Europa, s Amazonas guerreiras gregas que montavam cavalos. O nome do rio Amazonas, deriva desse fato.
Disponvel em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Icamiabas>. Acesso em dezembro de 2013.
91 Expresso baseada na noo de Jean Rouch de antropologia compartilhada.
92 Do ingls, raro, estranho.
62
Partindo dessa tese de Dussel, Eraso defender a idia de que a centralidade da Europa,
alm de econmica, constituiu-se cultural, sexual e epistemologicamente. De maneira que ao
tomar-se como referncia de civilidade, a Europa encontrar nos habitantes da frica e da
Amerndia a sua oposio ontolgica perfeita: o selvagem, o libidinoso, a lascvia, a
sexualidade exacerbada versus o civilizado.
Vale salientar que esse mesmo esteretipo da selvajaria, no por acaso, encontrado no
interior da prpria Europa durante os mesmos sculos referentes colonizao das Amricas;
nesta ocasio, tal retrica esteve associada no apenas aos africanos e amerndios, mas s
mulheres de forma geral. O efeito poltico disso foi uma crescente desvalorizao do trabalho
feminino em qualquer mbito, atravs de severas legislaes que privavam as mulheres de
direitos mnimos de existir, infantilizando-as, tornando-as propriedade de seus pais ou de
seus maridos (FEDERICI, Silvia. 2010)95. A caa s bruxas se instalou fortemente nesse
contexto, e grande parte das mulheres queimadas na fogueira no foram apenas mulheres
que, sim, detinham conhecimento de ervas medicinais e da feitiaria, mas quaisquer
mulheres que no se submetessem passiva e docilmente privao de seus direitos. O fator
simblico de grande contribuio a essas polticas femicidas96 foram um sem nmero de
representaes proto-pornogrficas, artsticas e literrias, em torno das mulheres europias e
dos habitantes dos trpicos. Como observa Eraso, tratou-se, portanto, de um perodo de
intensa produo de proto-subjetividades.
Nesse sentido, as lminas e relatos sobre o Novo Mundo descreviam e representavam
algumas situaes repetidamente: canibalismo, rituais de feitiaria, ndias nuas com olhares
lascivos e selvagens, ndios sodomitas ou eunucos, europeus com armaduras de ferro... Ora,
conforme observa excelentemente Eraso, tais imagens e imaginrios serviam muito bem
expanso colonial, uma vez que enunciavam a falta de um macho alfa que pudesse suprir a
sodomia e a dbil virilidade dos ndios, por um lado, e o excesso de lascvia das ndias, por
94 Traduzido por mim, do original em espanhol.
95 Para ilustrar a semelhana dessa poltica com a escravatura, basta dizer que os mesmos instrumentos
utilizadas no controle corporal de escravos africanos e indgenas, eram tambm utilizadas no controle de
mulheres europias.
96 Do termo femicidio, genocdio de mulheres.
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outro. Essas lminas, que representaram um dos braos potico do exerccio conquistador,
foram difundidas na Europa com o intuito de atrair novos homens conquistadores para uma
aventura, como diria Eraso, porno-tropical (2011, p.05). Portanto, notria que a
dominao metropolitana desse contexto se dava no apenas territorial e economicamente,
mas tambm sexual e corporalmente, j que, conforme a retrica da virilidade, para se
dominar um territrio h que insemin-lo, primeiramente.
Por outro lado, mais do que um mero domnio sobre o corpo, os relatos dos
conquistadores continham quase sempre uma narrativa com relaes concomitantes de
atrao e repulso: a primeira com relao ao corpo nu das mulheres indgenas, a segunda
com relao cultura dessas indgenas. No se tratava, ento, apenas de uma inseminao
atravs da dominao do corpo, mas tambm atravs da subjugao da cultura que esse
corpo dissemina ou seja, da feitiaria, da antropofagia e demais costumes e tradies. Para
Eraso (Ibidem, p. 07), estamos diante de uma subjetividade hegemnica da
modernidade/colonialidade, pautada na sexualizao do corpo feminino, na sodomizao e
na neutralizao do corpo masculino indgena, no estupro, na escravizao e no genocdio.
Tal conjunto pareceu conformar perfeitamente as bases da masculinidade moderna:
guerreira, crist, viril e com a necessidade de demonstrar constantemente sua potncia
sexual.
Essa proto-subjetividade, como vimos, escreve suas crnicas atravs de uma
representao absolutamente fetichizada dos corpos indgenas: imprimem ali suas cores, sua
textura, seus ornamentos sexuais, sua lascvia, seus rituais erticos, suas comidas e crenas,
traando um mapa do corpo amerndio e de sua cultura. Porm, segue Eraso (Ibidem, p. 07),
nem os olhos que olham e as mos que escrevem se evidenciam no texto, tpico trao do
conhecimento etreo da modernidade que no evidencia o lugar desde onde se fala ou
escreve isto , o gnero, a cor, a etnia, etc. prtica que segue seu rumo nas representaes
mdicas dos corpos anormais, na representao etnogrfica dos corpos exticos e na
representao pornogrfica dos corpos sexuados. A subjetividade farmacopornogrfica
tem, pois, seu assentamento histrico-epistemolgico na colonizao da frica e da Amrica,
na conseguinte subjugao das cosmologias desses territrios e, por fim, na manipulao das
narrativas e representaes dos corpos ali presentes.
Por no pensar nesse processo de dominao e de subjetivao de forma isolada que
me atrevo a associar as cosmologias amerndias e xamnicas queles movimentos de
65
resistncia que, como afirma Eraso (Ibidem, p. 07), escrevem suas micro-histrias locais
incorporadas a partir do prprio corpo, saindo da suposta imparcialidade que se imps
desde a episteme moderna ocidental. So movimentos de resistncia que trazem em suas
narrativas sua prpria cosmologia, e, com isso, constroem outros territrios esttico-
polticos, sejam eles referentes s cosmologias amerndias, sejam eles referentes ao
feminismo e s minorias sexuais. O que esses territrios carregam de comum que, h
sculos, vm sendo perseguidos e silenciadas pelos discursos hegemnicos. Se no o fosse
no existiriam escritoras como Silvia Plath, Ana Cristina Csar, Virginia Woolf, Alessandra
Pizark ou a cantora Violeta Parra, dentre outras tantas mulheres que, como os Guaranis-
Kaiows, tambm entenderam o suicdio como o sufocamento da palavra, que , no caso, o
sufocamento de sua cosmologia97.
O genocdio indgena e o femicdio fazem parte de uma dominao no apenas
territorial e sexual, mas tambm esttica: no necessrio morrer efetivamente para morrer
poeticamente. Essa relao cosmolgica com respeito s enunciaes de mulheres se
evidencia, por exemplo, em poemas e textos de mulheres escritoras, como o da poeta
argentina Alessandra Pizarkj, quando esta, por exemplo, diz: Simplesmente no sou deste
mundo, habito com frenesi a Lua, no tenho medo de morrer, tenho medo desta terra alheia,
agressiva. No posso pensar em coisas concretas, no me interessam, no sei falar como
todos, minhas palavras so estranhas e vm de longe () vou e no saberei voltar. 98
Para no encerrar este debate com pesar, mais uma vez evoco o recurso que nos aponta
Audre Lorde (2013): a possibilidade de operar atravs dos usos do ertico como uma forma
de resistncia criativa e esttica, e de confrontamento com as hegemonias da linguagem que
tentam sempre silenciar o que foge aos seus limites bipolares. Evoco tambm a necessidade
de revermos as nossas epistemologias e de como estas mobilizam as ferramentas tcnicas
que dispomos. Criar e acessar uma nova episteme, antes de operar tecnicamente: isso de
extrema importncia para o Antropofagia Icamiaba enquanto projeto conceitual e prtico. Por
isso eu diria que o feminismo s ser feminista se for minimamente surrealista. Ou, como
diria um xam: Sejamos objetivos? - No! Sejamos subjetivos ou no vamos entender
nada! (CASTRO, Eduardo Viveiros de. 2008, p. 42). Nesse sentido, enquanto o feminismo
utilizar exclusivamente a linguagem hegemnica para se comunicar, parece-me ento que h
um problema genealgico no movimento. evidente que devemos fazer-nos inteligvel, mas
97 Sobre os Guaranis-Kaiows, ver a nota 36.
98 Traduzido por mim do poema completo em espanhol, En extraas cosas moro.
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creio que isso deve partir mais de uma necessidade estratgica de comunicar do que se tornar
uma regra de comunicao.
Ao relacionar feminismo e surrealismo, penso na necessria subtrao dos traos da
linguagem racional que podem operar e oprimir os processos criativos feministas. Por isso,
primeiramente vale a pena pensar a relao do surrealismo com algumas noes de magia.
Se magia analisada pelo vis das cincias sociais se trata de criar ritos sociais de
institucionalizao por onde a linguagem poder fazer-se presente e edificada (BOURDIEU,
Pierre. 2001), a magia visual, pelo registro do mago Austin Osman Spare (In FRIES, Jam.
2003), se baseia justamente na subtrao da linguagem racional institucionalizada. Para este
registro, mais fcil acessar um imaginrio que se deseja construir para si atravs de uma
outra linguagem que no crie empecilhos institucionalizados inconscientemente para
atravancar qualquer movimento corporal; trata-se de uma uma linguagem sgnica e sigilosa,
desenhada exclusivamente para entendimento daquela singularidade que a rubrica,
impregnando-a de intencionalidade.
O prprio surrealismo no se trata apenas de uma operao artstica que acesse
imagens onricas; trata-se, sobretudo, de uma desautomatizao da racionalidade enquanto
instituio. Se para os surrealistas em sua maioria, homens e brancos o surrealismo
serviu como um movimento de oposio racionalidade que parece se embasar, mais uma
vez, no binarismo tpico do pensamento ocidental para as cosmologias feministas que
defendo aqui, o surrealismo serviria mais como uma ferramenta de criao de novas imagens
e afetos atravs dos quais poder-se-ia comunicar o que a racionalidade no comunica,
enunciando intuitivamente o que de mais profundo reside em nossos corpos, isto , o nosso
erotismo.
Pensando nesse aspecto da racionalidade moderna pelo vis da histria do aparato
cinematogrfico, podemos afirmar que o cinema, tal qual escrita audiovisual, imagtica e
simblica, o que porque um formato de representao realista se legitimou para poder
acompanhar e sedimentar as polticas tpicas da modernidade, baseadas num regime de
verdade e visibilidade, condio esta que enalteceu a existncia das coisas. Porm, se
voltarmos atrs, quando as imagens em movimento ainda se constituam dentro da
problemtica nomenclatura de pr-cinema, poderemos supor que haveria muitos caminhos
possveis a se tomar para o cinema. Basta pensar na caracterstica que este assumia
naquele momento, sobretudo no que tange projeo/exibio das imagens: elas assumiam
67
99 O filme foi realizado no mbito do projeto Vdeo nas Aldeias, que possui inmeros outros vdeos realizados
por indgenas que constroem suas enunciaes a partir de suas epistemologias. Disponvel em
<http://www.videonasaldeias.org.br/2009/>. Acesso em novembro de 2013.
100 A performance em questo chama-se Akelarre, e o coletivo se empenha em experimentar um devir-bruxa,
que poderia ser ativado atravs do uso da tecnologia. Disponvel em <http://akelarreyaku.tumblr.com/>. Acesso
em novembro de 2013.
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fato que o exerccio de criar, no caso deste projeto, exigiu um exerccio de profunda
auto-reflexo, no sentido de que em primeira instncia h que se descriar as fices
hegemnicas recorrentes em nosso corpo. Essas fices, desprovidas de erotismo e
impregnadas de biopolticas, so histrias, digamos, colonizadas. Nesse sentido, existe uma
necessidade primordial de descolonizar o corpo e seus afetos processo que nos remete
desterritorializao da subjetividade, melhor explicitada no incio deste captulo como
tambm h a demanda de descolonizar o dispositivo, no caso, a cmera, para que exista de
fato um agenciamento ertico durante o processo de criao.
H muito debate em torno do processo de descolonizao dos saberes, conhecimentos,
processos e corpos, discusso esta que chega a diversas instncias das prticas polticas.
Se, por um lado, o Ocidente cria seus rituais para institucionalizar a colonizao de
todas as prticas macro e micropolticas atravs da performatividade (BOURDIEU, Pierre.
2001), por outro, muitas das singularidades perifricas h muito ritualizam suas prticas de
resistncia, que so, inclusive, anteriores s instituies ocidentais/heteronormativas. No
so poucos os coletivos de arte poltica latino-americana, por exemplo, que se apropriam de
certas prticas performticas e de traos da ritualstica xamnica para pensar em
metodologias compartilhadas de descolonizao do corpo atravs da arte, como o caso do
coletivo mexicano-estadunidense Pocha Nostra103 , ou do coletivo Teatro de Operaes104, do
Rio de Janeiro.
De certo modo, o trabalho afetivo e videogrfico do Antropofagia Icamiaba apesar de
no ter desenvolvido uma metodologia pedaggica, j que esta se estabeleceu na
singularidade de cada relao pde, tambm, operar sobre a descolonizao das tecnologias
audiovisuais, de gnero e da sexualidade. Um dos filmes que compem o projeto em questo
chama-se O Sexorcismo de Aily Habibi. Aily o heternimo de Karen, amiga colombiana
que vive em Buenos Aires e a primeira a animar-se em gravar sua auto-fico pornogrfica.
Naquela cidade, Karen e eu nos conhecemos pela afinidade com a pesquisa em torno da
pornografia e percebemos que nossas formas de vida se vinculavam com muita fora poltica
e afetiva. Karen foi minha casa, gravei-a enquanto preparava sua mise-en-scne, logo lhe
passei a cmera e deixei o recinto. Uma ou duas horas se passaram, duas fitas mini-DV's
foram gravadas, Karen me as entregou e pediu que eu editasse o material apenas assisti ao
que fora gravado ao capturar as fitas, de volta ao Brasil, momento em que comecei o
processo de edio do projeto.
Vale salientar aqui que o vdeo fora gravado por uma amiga que tinha prticas no circo,
no teatro, na performance e larga trajetria no ativismo poltico, sem, no entanto, dispor de
conhecimentos supostamente legtimos a nvel tcnico-lingstico com relao aos
dispositivos e linguagens cinematogrficos, no caso, a cmera e a prpria decupagem; o que,
sem dvidas, se constituiu na grande riqueza deste trabalho, e muito contribuiu para que o
vdeo tivesse o efeito esttico-poltico que teve.
No filme, Karen constri seu relato atravs do exorcismo sexual dos ancestrais que
diminuam suas potncia alegres: os padres e as freiras do colgio que estudou durante todo
o ensino fundamental e a respectiva ordem religiosa a que esses sacerdotes se dedicavam, no
caso a de San Claret. Assim como os Kaets devoraram o Bispo Sardinha, Karen devora San
Claret, sexorcisando todas as freiras e padres que oprimiram seu lesbianismo, seu trabalho
sexual por opo econmico-poltica, sua forma de se alimentar atravs do recicle 105, e o faz
atravs de um ritual sadomasoquista de destituio da instituio igreja em seu corpo,
ritual no qual uma menina claretiana, que conhece e entoa todos os hinos claretianos, se
transforma em Aily: dominatrix e bissexual, que opta por vender trabalhos sexuais pela
webcam, exibir seu corpo nu nas ruas, ativando-o atravs da performance em torno da
contestao das tecnologias de gnero e de sexualidade. Karen toma o vinho um copo de
leite e come a carne a cabea de uma barbie que tira de sua vulva juntamente a uma nota
de dois pesos argentinos e com essa eucaristia pode, finalmente, alcanar sua excomunho
que , no caso, o seu orgasmo.
Karen, alm de denunciar a maternidade obrigatria, e sua condio de mulher,
migrante ilegal e pobre, escolheu gritar para a igreja catlica tudo o que esta lhe silenciou
durante a sua adolescncia, e o fez expondo o rosto, citando o nome de cada sacerdote e
denunciando atos de violncia sexual que presenciou em sua escola, executada por padres e
consentida por freiras. Criou imagens de alto grau de insurgncia esttico-poltica, imagens
explcitas que se apropriam diretamente dos contedos da pornografia mainstream, mas que
so contrariadas por sua conjurao e fala poltica, assim como pela re-significao
subversiva que faz das instituies sexuais e eclesisticas 106.
105 Reciclar o que feiras e mercados de cereais descartam no fim do dia.
106 Por ambos motivos, o vdeo teve uma trajetria peculiar na internet: foi removido de todos os servidores
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certo que o texto de Luna muito se relaciona com o projeto Antropofagia Icamiaba
como um todo, sendo, talvez, o resumo potico deste trabalho videogrfico, o que decorre
em virtude de as minhas investigaes e as de Luna se misturarem em muitos trabalhos feitos
em parcerias, j que mantemos fortes afinidades afetivas e polticas.
Um dos trabalhos que Luna realiza se relaciona com o teatro de sombras, e sua escolha
por uma tela escura o espao imagtico totalmente em off deriva-se muito de sua
mais conhecidos de hospedagem de vdeo, como o vimeo, o dailymotion e o youtube, sendo aceito, unicamente,
no site de vdeos pornogrficos xvideo, onde, apesar de ter registrado um alto nmero de visitantes (cyber-
espectadores), ficou muito mal avaliado em termos de contedo pornogrfico.
73
pela qual estava passando e ver de que forma que isso poderia ecoar naquela instncia.
Cheguei alguns dias antes de Lusa, j havia realizado alguns experimentos com a
cmera, relacionando-a com a ao que faria, etc. Sa para gravar imagens de rvores, terra,
folhas e na volta encontrei com Lusa. Apresentei-me, nos abraamos, ela apenas sorriu, em
silncio. Logo depois perguntei: qual mesmo o seu nome?. Ela acenou para mim como
quem diz espere, buscou um gravador de som digital conectado a um mini-amplificador
chamado speaker, procurou um arquivo de som e apertou o play. Atravs da aparelhagem,
Lusa me disse o seu nome, o nome do seu trabalho, no ocasio, Ventrloquo ou talvez tudo
j tenha sido dito, e de que forma esse trabalho se efetivaria naquela residncia:
Mais tarde, estvamos sentadas em volta de uma mesa redonda, onde se tinha como
hbito a apresentao de cada residente e do seu respectivo trabalho. Abriu-se o crculo e
falei sobre o Antropofagia Icamiaba, de que seria interessante pensar com quem estivesse ali
nessas questes referentes a uma outra sexualidade, que se construiria a partir de outra
linguagem, e desde ento me pareceu que eu e Lusa j compartilhvamos questes
epistemolgicas em torno das instituies que talham nossos corpos e falas.
No dia seguinte Lusa me acena, chamando-me para ouvir seu gravador. As caixas de
som me diziam no que ela pensara para a sua auto-pornografia. Em primeira instncia
pensara em gravar um trecho de um livro que considerava como sendo um dos mais erticos
que j lera. Tratava-se de uma cena em que uma mulher, casada com um homem
absolutamente troglodita, caminha com seu primo beira-mar, personagem este altamente
feminino; chega um momento em que ambos encontram na areia uma cabea de cavalo com
enguias que saiam pelos seus olhos, narinas e ouvidos, e ambos se assustam; voltam para
casa; em casa se aproximam lentamente um do outro e comeam uma transa singular que
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nunca haviam experimentado antes. Esse fragmento de som e texto, lido e gravado por Lusa,
seria fusionado imagem da cabea de um cavalo que vimos em uma das trilhas que
fizemos juntas. A cabea do cavalo entraria e sairia de quadro, fosse atravs de seu prprio
movimento, fosse atravs de fades para a tela negra.
O outro vdeo que Lusa sugeriu foi um cujo som seria gravado durante uma de suas
masturbaes. Esse som se mesclaria a planos-detalhes de orifcios de seu rosto, boca,
narina, etc., sendo penetrados por seus dedos e acariciados pelo seu gravador, sobretudo o
orifcio do ouvido. Gravamos as imagens do cavalo e os planos-detalhes do rosto de Lusa.
Afinal, no tivemos tempo de ela me passar os arquivos dos sons que gravara para sues
vdeos. Mas, anteriormente, havia registrado com minha cmera o momento em que o
gravador digital de Lusa, o speaker, me relatava sobre os vdeos que ela pretendia fazer. Foi
o material com o qual pude, sob consentimento de Lusa, editar o filme Speaker.
O que me pareceu mais fantstico da singular experincia com Lusa foi exatamente a
configurao afetiva que teve nosso encontro, nosso processo de criao e, respectivo,
agenciamento artstico-afetivo. Tal configurao s pde efetivar-se pelo cruzamento do
trabalho artstico que Lusa efetivava trabalho que s pde se efetivar em virtude de sua
experincia singular como portadora de deficincia auditiva ao trabalho que eu efetivava
em torno das desconstrues em torno da sexualidade hegemnica. A noo de prtese para
Lusa sobressaltou em Speaker, alm de haver perpassado completamente o nosso
agenciamento, uma vez que nos comunicamos exclusivamente a partir das prteses s quais
estvamos conectadas: ela ao aparelho de ampliao de audio e ao gravador digital, e eu
cmera.
nesse sentido que a noo de ps-humano e do mito ciborgue se evidenciam
profundamente nesse filme, pois me parece que foi atravs das prteses que um novo afeto e
uma outra sexualidade foram acessados. No toa que muito me lembrei da experincia que
tive com Lusa, ao ver a oficina de ps-pornografia para portadores de descapacidades fsicas
e mentais, do coletivo espanhol Post-Op. Nessa oficina, da qual tratei melhor no captulo
anterior, uma das metodologias empregadas foi a sexualizao das prteses, muletas e
cadeiras de rodas, pensando-se de que forma isso poderia construir um erotismo conjunto
que empoderasse o corpo das pessoas que ali estavam. Do mesmo modo, em Speaker, Lusa
penetra o seu ouvido, penetrando, ento, a sua prpria deficincia auditiva; e se comunica
atravs de uma prtese, ouve atravs de uma prtese e se acaricia com uma prtese. E foi
76
assim que estabelecemos uma relao de afeto: com sua prtese dialgica o gravador
digital/enunciador se comunicando com a minha a cmera/receptor/ouvinte.
Por isso me pareceu evidente um fato que j mencionei algumas vezes ao longo deste
trabalho: de a cmera ser parte efetiva do corpo, assim como o aparelho de audio e o
emissor de som de Lusa, tratando-se de um tecnovivo conectado a outro tecnovivo, na qual
a cmera to sujeito quanto o gravador, que to sujeito quanto eu e Lusa, de modo que
no objetificamos nada, nem relao alguma. Ao contrrio, subjetivamos todos os entes
inorgnicos, uma vez que estes assumiram a nossa pulsao e deixaram de ser um meio ou
um intermedirio da comunicao, para ser, digamos, um inteiro, uma extenso de nossos
corpos e, por isso, nossos prprios corpos, j que se trata de uma fuso ainda que
momentnea108. Creio que se trata de uma experincia de devir-ciborgue, da qual emerge uma
cmera menos tica e mais ttil, menos logos e mais pathos ou um logos impregnado de
pathos.
Essa perspectiva de um agenciamento afetivo e subversivo com relao ao que se grava
e aos dispositivos atravs dos quais gravamos, parece se relacionar no apenas com as teorias
de Donna Haraway em torno do conceito ciborgue, mas tambm com o que a antroploga
Elisa Lipkau (2009, p. 235) fala em seu artigo La Mirada Ertica109: sobre uma outra forma
de se pensar na antropologia visual, de modo a desenvolver um olhar ertico que implique,
em certa medida, numa corporeizao da experincia cinematogrfica 110. Lipkau relembra a
produo terica da antroploga Trinh Minh-ha (1989) quando esta discorre sobre a
necessidade de se trabalhar com uma cmera fundada num pensamento proveniente de outras
partes do corpo, isto , num logos que possa se configurar a partir do estmago, a partir do
ventre ou a partir da pele; em outras palavras, num logos que no se oponha ao pathos. O
movimento que ambas as tericas enfatizam trata-se de uma desterritorializao estratgica
de um pensamento hegemnico que se caracteriza por ser ocularcntrico, isto ,
condicionado a centralizar-se na regio da cabea e dos olhos, com o intuito de observar e
descrever o que se observa racional e distanciadamente. A hiptese de Lipkau e de Minh-ha,
me soa, tambm, como uma busca por outras epistemes e cosmologias baseadas, claro,
num modus e num locus distintos do pensar. Esse novo pensar, por conseguinte, implicar
108 Aqui a noo de subjetivar se distancia da noo foucaultiana do termo, apontada no primeiro captulo da
monografia, e aproxima-se da epistemologia amerndia, descrita por Viveiros de Castro no incio deste captulo.
109 Da traduo do espanhol, o olhar ertico.
110 Traduzido por mim, do original em espanhol.
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Figura 1: frame do filme Polifonia Figura 2: frame do filme O Sexorcismo de Aily Habibi
Figura 3: frame do filme Speaker Figura 4: frame do filme Onira Vira Rio
Vale salientar que magia deriva da palavra grega mageia que, se para a sociologia se
relaciona com a arte de produzir efeitos maravilhosos pelo emprego de meios
sobrenaturais (NOVAES, Sylvia Caiuby. 2008, p. 455), pelo registro do mago P. V. Piobb
(1986), relaciona-se com o radical mag, remetendo-nos ao ato de amassar pes, conotando,
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Pensar em estruturar um ritual de forma auto-gerida e DIY 115, isto , com elementos
que ns mesmas iremos dispor, criar, manipular, intervir e subverter artisticamente se
relaciona diretamente com o que o cineasta chileno Alejandro Jodorowsky (2004) chama de
ao psicomgica. Minha ao psicomgica, portanto, tratou-se de ligar uma cmera, deix-
la sob um trip, re-projetar a imagem capturada em um pano branco para que nele se
imprimissem mltiplas dimenses de planos enquadrados, superfcie sobre a qual eu poderia
intervir, e, por ltimo, masturbar-me invocando meu erotismo e desviando-me mentalmente
de qualquer imagem pornogrfica advinda de meu imaginrio farmacopornogrfico.
Mais elementos se fundiram ao ritual, ao provocada por outros agenciamentos pelos
quais eu passava, smbolos de um processo no apenas esttico, no apenas poltico, mas
tambm espiritual. Naquele contexto eu me iniciava no Candombl e na Umbanda, iniciando
uma relao com minhas entidades116 e com meu Orix. Estes compunham uma
ancestralidade qual eu poderia recorrer mentalmente para ativar minha dessubjetivao,
porm houve a necessidade corporificar essa ancestralidade, pontuando-a materialmente em
meu corpo.
Observando o trabalho de outras companheiras residentes pude, ento, amarrar o ritual.
Em primeira instncia vi o trabalho da artista Luzia Mendona, que extraa tinta de variados
tons de terra, sendo que os mais avermelhados remetiam-me diretamente Oy Onira, meu
Orix. No dia em que foi embora, Luzia separou uma terra avermelhada que havia recolhido
e me ensinou a preparar a tintura. Aps prepar-la, posicionei os elementos em quadro, pintei
meu corpo de vermelho e pude comear o processo masturbatrio, que durou algo mais de
duas horas debaixo da chuva, em um frio absoluto.
Quando ultrapassei o nvel de uma conscincia condicionada, o que foi proporcionado
pela masturbao em si e pelo frio, pude, por fim, entrar em sinestese com os elementos que
me circundavam. O som do rio que passava atrs de mim se intensificou, a percepo tica
do mato que me circundava foi incrementada, as cores ficaram mais fortes e vvidas, a
sensibilidade da minha pele se elevou a um nvel tal que pude sentir cada gota de chuva que
pingava sobre o meu corpo. Aps duas horas, um orgasmo mgico e ritualizado.
Porm, pretendia fazer um efeito que no ficou visvel o suficiente para encerrar a
inteno imagtica do ritual: a dissoluo da tintura de terra em meu corpo atravs dos
pingos da chuva, imagem que conotaria o retorno da tinta de terra para o solo, aps ser
absorvida por meu corpo. Sob outro registro, seria um efeito para evidenciar aquela des-
corporificao que se dava atravs de uma espcie de devir-vegetal. Para tanto, foi necessria
a chegada de outra artista residente a fim de que as coisas se finalizassem.
Mariana Katona estava desenvolvendo um trabalho de pintura de cachoeiras atravs de
uma tcnica muito singular: em frente sua cmera, ela posicionava um pequeno vidro
translcido, enquadrava a cachoeira e desenhava a paisagem que via por cima do vidro,
exercendo um efeito de sobreposio da pintura sob a paisagem em movimento, dando a
impresso de fix-la. Entretanto, ao finalizar a pintura, Mariana pingava um solvente sobre a
tinta impressa no vidro e esta dissolvia, saindo pela borda inferior do quadro, revelando a
cachoeira em movimento ao fundo.
Tal tcnica me pareceu perfeita para sinalizar o efeito de dissoluo do corpo que
gostaria. Propus Mariana essa colaborao, a qual prontamente aceitou. Posicionei-me mais
uma vez conforme o vdeo que gravara anteriormente, enquanto Mariana pintava atravs do
vidro o meu corpo de vermelho. Afinal, pingou o solvente e o que era vermelho saa de
quadro, dando a impresso de que estava retornando para a terra. Portanto, o ritual estava
finalizado pelo menos naquela instncia.
Num dilogo posterior sobre o processo do filme Onira Vira Rio, um amigo me falou
que essa experincia o remetia ao termo sexualidade solar, o que me incitou a elaborar
uma primeira resenha auto-reflexiva sobre o que havia vivenciado e de como isso se
relaciona mais amplamente com o projeto Antropofagia Icamiaba:
quantos trabalhos feitos por mulheres e minorias sexuais que, por no encontrarem seus nomes, ficam
paralisados, esquecidos e abandonados muitas vezes pelas prprias pessoas que o realizam. Como comenta
Beatriz Preciado no artigo Museu, Lixo Urbano e Pornografia, muitas artistas, como a prpria Annie Sprinkle,
encontraram na ps-pornografia formas de tornarem visveis e pblicas suas produes, e isso mais do que
tornar visvel, antes de tudo uma ocupao estratgica de espaos institucionalizados e estratificados e que,
ao serem ocupados, podem passar por mltiplos processos de subverso e oxigenao.
85
afro-brasileira, mas que tambm sua histria individual. E para contar essa histria,
Zzimo dirige e atua ao mesmo tempo, colocando seu corpo em jogo, evidenciando as
contradies desse corpo nu com o mesmo corpo vestido e de como isso se refere s
instituies, que so, tambm, formas de escravizao. Zzimo torna pblicas sua existncia
e sua vivncia afro-descendentes, e ao faz-lo, sua questo singular se torna coletiva. Com
essa enunciao ele consegue abolir a escravido e a solido que os silenciamentos polticos
constumam propagar. A histria de Zzimo , sim, singular, mas a sua singularidade uma
singularidade coletiva.
Judith Butler (1993, p. 12) em seu artigo Criticamente Subversiva, ao referir-se aos
ativistas gays na luta contra a patologizao e marginalizao dos portadores do HIV, fala
sobre a necessidade vital de a contaminao viral se tornar uma luta coletiva, poltica e
articulada, sem a qual cada indivduo se despotencializaria em seus embates solitrios contra
o vrus e em sua relao particular com a sociedade. Bultler diz que enquanto a dor se
mantiver em silncio, a exasperao gerada pela perda pode duplicar-se caso no seja
reconhecida publicamente122. A perda a que Butler se refere a perda de amigos, parentes e
companheiros mortos pelo descontrole do vrus no corpo. O corpo em que se instaura o vrus
torna-se um corpo poltico, e a doena no um problema pessoal, um problema poltico, e
que provavelmente encontrar narrativas coletivas bem similares s individuais.
Quando Narcisa, Zzimo e os ativistas da luta do HIV trazem suas questes singulares
e privadas ao mbito pblico, esto realizando assim como as pessoas que realizaram os
vdeos do projeto Antropofagia Icamiaba no apenas um ato poltico, mas tambm um ato
esttico e, sobretudo, mgico. Esttico pois com suas polticas atravessadas por devires-
minoritrios j criam e desenham uma outra realidade, ao mesmo tempo em que perturbam
os cnones esttico-polticos da realidade hegemnica. Mgico porque existe magia social
na ao de tornar pblico o privado, pois isso se constitui em um ato de inteno
performativa que tambm pode ser chamada como inteno mgica (BOURDIEU, Pierre.
2001). Essa magia de que fala Bourdieu, refere-se ao poder de instituio ou destituio que
os enunciados e os enunciadores detm sobre a materialidade. Ou seja, nas cincias sociais,
magia se relaciona com emitir publicamente um enunciado inteligvel 123.
Com efeito, podemos realmente pensar em algumas criaes videogrficas como uma
forma contagiante de empoderamento do ertico que garante uma ruptura com as instituies
hegemnicas, pois ao tornar pblicas certas questes singulares, torna-as coletivas e
reverbera em outros corpos poltica e afetivamente. Foi o que aconteceu de forma muito
intensa quando exibi, pela primeira vez, os filmes do Antropofagia Icamiaba no encontro
feminista Encontrada: corpo, feminismo e tecnologias: livres!. As aproximaes afetivas que
ocorreram naquele contexto se configuraram sobretudo pela forma como o trabalho
videogrfico se articulava politicamente e de como isso tocava as entranhas de algumas
pessoas ali presentes. Tive momentos muito bonitos de compartilhamentos consentidos sobre
assuntos extremamente ntimos, os quais foram despertados pelas questes levantadas nos
filmes, e certo que essas reverberaes levantaram muitos questionamentos em torno da
sexualidade das pessoas ali presentes.
Nesse sentido, parece-me que as intenes presentes nos processos de gravao, edio
e exibio dos filmes do projeto, alm de polticas e estticas so tambm mgicas. Alis, e
j que estamos falando de criao de novas imagens, vale enfatizar que a palavra imagem,
por conter o radical mag, deriva etimologicamente da palavra magia (PIOBB, P. V. 1986); e
se magia, como vimos anteriormente, deriva da noo de macerao de algo para conseguir
efeitos concretos, certo ento que, no nosso caso, a cmera-prtese se trata de uma
ferramenta de macerao, assim como software de edio; e os elementos alqumicos
utilizados para serem macerados e transformados so aqueles escolhidos por cada
singularidade que decidiu fazer sua auto-pornografia: no caso de Aily, esses elementos so os
hinos de San Claret, os pregadores de roupa, o chicote, o dildo, a cabea de barbie, a nota de
dois pesos argentinos; no caso de Luiza, o gravador speaker, o cavalo, o trecho do livro que
elegera; no meu caso, a tinta de terra vermelha, a masturbao, a projeo dentro de quadro,
o frio; no caso de Luna, a escurido, as paisagens sonoras, o poema que escreveu. Se o
chocalho do xam um acelerador de partculas (CASTRO, Eduardo Viveiros de. 2008, p
14), a cmera-prtese e o software de edio so nosso chocalho, e nosso acelerador de
partculas.
Pensando, alis, no fato de que o xamanismo muito se relaciona com processos de
cura, vale pensar nessa relao no caso do Antropofagia Icamiaba. No que durante o
processo de trabalho estivemos curando algum de algo. Mas certamente estivemos
exorcisando certas mazelas (tecno)sociais que silenciam nossos erotismos singulares, e se
90
esse erotismo nos potencializa, ele nos d tambm mais vitalidade. E como se trata de um
ritual coletivo e compartilhado de acesso ao erotismo atravs de uma dessubjetivao
poderamos pens-lo como uma metodologia propcia para a esquizoanlise mas neste
assunto tampouco adentrarei neste trabalho monogrfico. Em outras palavras, o uso
estratgico das tecnologias como forma de resistncia e exerccio experimental das
singularidades, consiste em transformar os sistemas binrios em alquimias, e em subverter o
cinema em magia visual.
Relacionando, ento, magia visual com contra-cinema podemos, por fim, pensar que
este aquele tipo de produo filmogrfica que reinvindica o ertico como forma de vida e
no enquanto conceito sexualizvel e isso inclui a intensidade de afeto, cuidado, carinho e
solidariedade estabelecidos entre as pessoas, ferramentas e dispositivos que operam em uma
determinada gravao, aspectos que iro compor a alquimia das imagens produzidas por esse
agenciamento performtico.
Finalmente, gostaria de retomar uma questo ao redor da idia de tornar pblico o
privado, pensando em como isso faz parte de um processo de conjurao e de criao ertica,
e em como isso se relaciona noo de pornografia quando esta denota a compreenso de
mulheres pblicas escrevendo sua prprias representaes. Esse limite entre o inteligvel e
o ininteligvel, isto , entre o pblico e o privado, como j falei, uma estratgia poltica
carssima s lutas sociais. A questo central, me parece, equilibrar essas duas foras para
que uma no sufoque a outra. necessrio, ento, estabelecer um movimento de trnsito
entre o que se constitui enquanto um locus institucionalizado e o que um espao indefinido.
Teresa de Lauretis (2000, pp. 63-64) utiliza de forma bem interessante as expresses da
teoria cinematogrfica para estabelecer esse movimento to necessrio, por exemplo, aos
sujeitos do feminismo. Referindo-se ao termo fora-de-campo que diz respeito ao espao off
ou espao fora-da-tela, isto , quilo que est alm das margens do enquadramento, sem
poder ser visto, mas podendo ser deduzido Lauretis vai dizer que se para o cinema
clssico-narrativo o que est fora-de-campo est, na verdade suprimido, para o cinema
experimental esse espao off torna-se visvel, co-existindo simultnea e paralelamente ao
enquadramento, atravs de mecanismos da linguagem cinematogrfica que enfatizam sua
presena-ausncia, evidenciando que tanto a cmera e quem a opera, quanto os espectadores
so sujeito desse espao fora-da-tela. Do mesmo modo, Lauretis faz meno a um
movimento dentro e fora-do-gnero inerente aos sujeitos do feminismo, caracterizado
91
como uma forma estratgica de transitar entre os espaos discursivos das posies que nos
oferecem os discursos hegemnicos e o espao off que abarca as contra-prticas e
micropolticas feministas, espao de re-inveno das relaes, dos corpos e dos afetos, que,
apesar de invisibilizados pelos enquadramentos das representaes hegemnicas, coexistem
simultaneamente e em contradio a estes ltimos.
Relacionando, ento, o debate de Lauretis com a discusso abordada no primeiro
captulo sobre pornografia enquanto um conjunto de prticas relacionadas prostituio e
vida das prostitutas na cidade como questo de higiene pblica (PRECIADO, Beatriz. 2008,
p. 44)124, podemos pensar no que vem ocorrendo hoje na cidade do Rio de Janeiro: a cidade
maravilhosa que se prepara para receber a Copa do Mundo e os jogos olmpicos, produzindo
obras carssimas, especulaes imobilirias, despejando de suas casas e espaos
comunidades inteiras, em geral negras, nordestinas, indgenas e pobres; produzindo a
demonizao e a desumanizao perversa em torno dos moradores de rua e de usurios de
crack; e produzindo uma estratgica territorializao turstica da prostituio e dos espaos
gayfriendly.
Questiono-me se essa gentrificao125, que ocorre ciclicamente nas cidades latino-
americanas como tentativa de imitao de uma esttica assptica Ocidental, no evidenciaria
um novo emprego dos termos pornografia e obscenidade cujo significado se relaciona com
os limites entre o dentro e o fora-da-tela, dos espaos off, esses espaos de tensionamento
cinematogrfico e/ou poltico. Da Revolta da Vacina 126, passando pela ditadura militar e
chegando aos dias de hoje, vemos quais so os corpos realmente obscenos, os que no se
inserem na lgica assptica de cidade e de imagem. O que representvel apenas enquanto
sujeira, monstruosidade.
Essa relao prtica e epistemolgica, como vimos, no se encerra na territorializao
arquitetnica da cidade, mas tambm emerge nas suas reprodues audiovisuais e
imagticas. Para tanto, poderamos utilizar como exemplo um projeto da prefeitura do Rio de
Janeiro, o Banco Imobilirio, jogo de tabuleiro que seria distribudo nas redes municipais
de ensino fundamental, fomentando simbolicamente a valorizao imobiliria de espaos
tursticos do Rio por presso social, o projeto de distribuio do jogo nas escolas foi
vetado. Mas poderamos pensar no que se produz cinematograficamente em nosso contexto,
que ainda pulveriza a exigncia de corpos e histrias normativos, bem como de uma imagem
limpa, high definition. Poderamos, igualmente, traar uma relao anloga desses aspectos
supracitadas com a pornografia mainstream e seus corpos perfeitos e brancos, e inclusive
com a exigncia do branqueamento da pbis e do nus como requerimento bsico para atuar
em filmes porns. E dessa exposio, penso que o que a indstria pornogrfica seus
produtores e consumidores e a gentrificao das cidades tm em comum que ambas
temem as monstruosidades obscenas, suas sujeiras genunas, temem o real enegrecimento
das cidades, prticas e discursos, pois esses elementos representam uma concreta ameaa
limpeza e aos territrios estratificados.
Portanto, talvez o que haja de mais obsceno e pornogrfico hoje sejam os desejos em
processo de desterritorializao, isto , os devires, epistemes e cosmologias relativos s
singularidades e coletividades comprometidas seriamente em criar suas linhas de fuga em
relao prpria sexualidade, assim como s polticas e epistemes hegemnicas. E so
obscenos, pois no contribuem aos projetos asspticos das epistemes ocidentais. So
cosmologias que incomodaram, incomodam e sempre incomodaro, seja pela abstrao ultra-
sensvel e singular de suas imagens e histrias, seja pelo confrontamento direto com os
territrios polticos cerceados por grades fsicas e conceituais.
93
CONSIDERAES FINAIS
Como j colocado anteriormente, este trabalho compe, dentro do campo terico, uma
das partes de um processo artstico que se integra em muitas outras fases: ele um dos
braos de um fazer contra-cinematogrfico corporificado oriundo dos afetos de mltiplas
contra-sexualidades que deram mos a esta escrita; ele tambm no se encerra aqui se
transfigura em outras questes e re-invenes. Cabe, entretanto, uma auto-crtica a esse
processo, uma anlise que possa encaminh-lo a suas repercusses.
Retomando Elisa Lipkau (2009) e Trinh T. Minh-Ha, que tanto questionam os fazeres
cinematogrficos da etnografia dominante, parece-me que os conceitos e as prticas
referentes corporeizao do conhecimento, auto-pornografia e auto-etnografia so
indissociveis. A investigao auto-reflexiva de nossa sexualidade atravs de ferramentas
audiovisuais, isto , nossa auto-pornografia, nos apontam as subverses possveis a serem
desencadeadas nos territrios hegemonizados de nossos corpos, que se expandem aos
territrios scio-culturais nos quais, inerentemente, estamos inseridas. Ser sujeito e objeto de
si, no apenas uma prtica performtica e feminista, mas tambm uma prtica anti-racista
e, retomando Audre Lorde (2013) mais uma vez, a partir disso que se pode desmantelar,
de fato, a Casa Grande, que so nossas zonas de privilgio introjetadas e externalizadas em
verdadeiros apartheids da comunicao e da linguagem.
Nesse sentido, ao repensar todo o processo dos vdeos que conformaram nosso corpus
emprico, e ao reler este trabalho, formatando suas referncias bibliogrficas e filmogrficas,
muitas reflexes auto-crticas emergiram, justamente da ordem de uma Casa-Grande cuja
imploso se v muito lenta e custosa. Se estamos falando de hackear as tecnologias de
gnero, sexualidade e audiovisuais, no podemos nos esquecer justo das ferramentas com
que operamos. Nesse sentido, vale salientar, primeiramente, que os vdeos deste projeto
foram editados em softwares proprietrios isto , programados por empresas privadas,
como a Apple Inc., e cujo cdigo de programao tambm privado e que uma imerso
total em softwares livres para operar os processos de edio de imagem e som estaria muito
mais conectada noo de hackeamento de tecnologias que defendemos ao longo deste
texto, uma vez que os cdigos dessas ferramentas livres so abertos, podendo dialogar
diretamente com quem as opera; em outras palavras, podendo ser literalmente hackeados,
afinal, com cdigos abertos, podemos reconfigurar as tecnologias digitais ontologicamente.
94
De fato, quando alguns coletivos feministas que trabalham com a apropriao tecnolgica se
referem frase de Audre Lorde, as ferramentas do senhor no desmantelam a Casa-
Grande, referem-se, sobretudo, necessidade de operarmos com ferramentas livres, saindo
das margens de rastreio e dependncia que as tecnologias e ferramentas hegemnicas
demandam. Restaria-nos, ento, desmantelar no apenas a Casa-Grande de nossos corpos e
sexualidades, como tambm a ontologia das ferramentas digitais com que operamos a nossa
auto-pornografia.
Outro territrio que se faz visvel no nosso corpus terico e que, por conseguinte,
hegemoniza nossas ferramentas conceituas a presena quase inexpressiva de autoras
feministas latino-americanas, e este me parece um dos pontos mais crticos deste trabalho,
pois se estamos falando de desmantelar a Casa-Grande atravs de uma Antropofagia
Icamiaba, mas que, para tanto, nos utilizamos de ferramentas conceituais que se constroem
alheias s nossas realidades locais e singulares, algum aspecto colonizante ainda reside em
nossas investigaes tericas. evidente que essas ferramentas quando localizadas em seus
respectivos centros de produo no so hegemnicas, e evidente que podem, tambm, ser
subvertidas e re-apropriadas como o fizemos at ento; mas isso no anula a existncia de
inmeras tericas latino-americanas, negras e/ou indgenas, que, certamente, esto pensando
nessas questes atravs de suas respectivas epistemes. Ao longo do processo de escritura
deste trabalho, sempre pensando na questo da auto-fico singular e do hackeamento de
fices e tecnologias institudas, estive em contato com alguns coletivos/grupos quilombolas
e conectados ao movimento negro que pensam em formas de racializar a questo das
tecnologias livres, uma vez que tal apropriao, ainda hoje, se d em maior escala por
homens brancos, seja na Europa, seja no Brasil. E se pensarmos que a produo terica que
referencia as pesquisas em torno das tecnologias e dos processos referentes ao gnero e
sexualidade ainda se encontram, neste trabalho, no eixo EUA/Europa, significa que a Casa-
Grande continua bem estruturada; o que nos aponta reflexes necessrias para os
encaminhamentos e desdobramentos deste trabalho, sobretudo no que tange s nossas
ferramentas conceituais.
A auto-fico, pois, pode ter essa potncia de ativar a desconstruo de nossas Casas-
Grandes de forma processual e auto-reflexiva, e de nos apontar ainda mais ferramentas para
acessarmos nosso erotismo, fonte de re-criao incessante e, por isso, grande tecnologia de
subverso de territrios heterossexistas e racistas. Nesse sentido, o que realmente mais me
95
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101
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Acesso em junho de 2013.
Filmografia
BULBUL, Zzimo. Alma no olho. Brasil, 1974. 11 min. Sonoro, P&B, 35 mm.
DAMIANO, Gerard. Garganta profunda. Produo de Louis Peraino. EUA, 1972. 61 min.
Mono, Cor, 35 mm.
_________. Ritual in transfigured time. EUA, 1946. 15 min. Mudo, P&B, 16 mm.
DEREN, Maya; HAMMID, Alexander. Meshes of the afternoon. Musica de Teiji Ito. EUA,
1943. 14 min. Mono/mudo, P&B, 16 mm.
MANOEL, Cludio. Cuceta: a cultura queer de Solange, T Aberta. Brasil, 2011. 13 min.
Sonoro, Cor, Digital.
PADILHA, Jos. Tropa de elite. Produo de Jos Padilha e Marcos Prado. Brasil, 2007.
115 min. Dolby Digital, Cor, 35 mm.
ROSLER, Martha. Semiotics of the kitchen. EUA, 1975. 6 min. Mudo, P&B.
SIQUEIRA, Rodrigo. Terra deu, terra come. Produo de Rodrigo Siqueira, Tayla
Tzirulnik. Brasil, 2010. 88min. Sonoro, Cor, HDCAM.
WARHOL, Andy. Blow job. EUA, 1963. 35 min. Mudo, P&B, 16 mm.
ANEXOS
revelados, desautomatizados e, assim, rescritos. Em outras palavras, esta uma das formas
de (re)apropriar-se de tecnologias e cdigos que nos compem poltica e culturalmente:
tecnologias audiovisuais, de gnero e de sexualidade. Por fim, a idia des-criar,
desconstruir, observar os escombros e reciclar/absorver o que nos serve. re-criar-se.
105
Esse questionamento para no localizar definitivamente este projeto: hoje ele est
circunscrito em um lugar que talvez no o diga mais respeito, amanh. Os conceitos que o
atravessam no so definitivos e, quando forem, no diro mais respeito s suas imagens:
elas transbordaro. Um fluido corrente talvez o enuncie mais do que qualquer conceito.
Fluidos aquosos, gelatinosos, transparentes, rubros, fulminantes: disformes. O nada, o limbo
do pacfico, cujo difcil acesso s pode ser possvel atravs da experimentao.
Carol J. Adams, no prefcio de seu livro A Poltica Sexual da Carne, admite que a
dominao funciona melhor numa cultura de desconexes e fragmentao e que o
feminismo reconhece conexes. Neste mundo existe um campo muito bem delimitado por
binarismos e linguagens desempoderantes. As conexes, quando no-lineares e em rede,
podem superar os binarismos e nos levar a um campo to vasto quanto esse limbo, onde, sem
nada mais para ver, somos impulsionadxs a criar nossas prprias imagens, a ativar nossa
criatividade, a encontrar quelxs que, pelo mesmo impulso, chegaram ao limbo tambm.
Esse o limbo da linguagem (na qual a sexualidade tambm se insere) desconstruda, a ilha
daquele nufrago que, sem estar sob efeito de foras ditas naturais, passa a fazer parte do
amlgama ilha.
Icamiabas (do tupi i + kama + aba, significando "peito rachado") so ndias arqueiras
que, para melhor manuseio do arco-e-flecha, cortavam um dos seios. Uma lenda da regio de
Santarm, Par, Brasil, que dizia existir ali uma comunidade dessas ndias guerreiras que,
sob uma perspectiva do colonizador, foram associadas s Amazonas ocidentais. Entendo as
Icamiabas no como um microcosmo utpico, mas como uma rede de afinidades as
nufragas guerreiras que escutaram umas s outras e armaram uma singular estratgia blica.
Entendo o feminismo como instrumento estratgico, como um dispositivo de devorao,
desconstruo e hackeamento das estruturas e cdigos que nos compem e que no
escolhemos. Instrumento essencial de conduo ao limbo, de conduo a uma outra forma de
relao. Entendo a cmera (fotogrfica e de vdeo) como uma extenso de nosso corpo
ciborgue, que pode assumir, ento, sua pulsao. Entendo a sexualidade como principal alvo
de infiltrao do cdigo, o manifesto estrutural de um mundo que tende a normalizar-nos, a
docilizar-nos, a binarizar-nos, e que, por isso, tende a sexualizar os hormnios e os rgos, e
a assexualizar a poltica.
Este trabalho foi desenvolvido por aquelxs que escutaram umas s outrxs e que
escutaram a urgncia de hackear a prpria sexualidade que ainda uma sexualidade e de
107
exp-la a um ponto de mutao, sem temores, muito pelo contrrio, num caminho sem volta
e que, oxal, nos conduza ao limbo do pacfico.
108
ANEXO 3: Entrevista feita por Adriana Azevedo a Tas Lobo em dezembro de 2012
Voc pode falar um pouco de como surgiu a ideia do vdeo-performance e como foi esta
experincia?
Essa vdeo-peformance fez parte de uma proposta que lancei para amigxs, que era a
de fazerem elxs a sua prpria pornografia, dentro da lgica do porno DIY (faa-voc-
mesmx), mas, tambm, dentro de uma lgica que consideraria todas as nossas referncias,
ferramentas e tecnologias culturais, e, sobretudo, seus atravessamentos com relao aos
nossos prazeres e desejos.
Apresentei essa proposta, sob o titulo de Antropofagia Icamiaba, para xs auto-
residentes de vero na Nuvem HackLab Rural, que rapidamente se animaram em participar.
Eu mesma havia pensado em fazer meu porno DIY naquela ocasio, que seria uma forma de
(tecno)magia sexual de desconstruo e exorcismo (ou, como dizemos, sexorcismo) dos bio,
sexo e pornopoderes intrnsecos a nossos corpos, pensando na masturbao e no orgasmo
como catalisadores desse processo.
Por outro lado, eu recm chegava ao Brasil, depois de passar pelo deserto e aps dois
anos vivendo em um pas temperado, e os aspectos climticos da serra de Maromba
(provncia fronteiria entre Minas Gerais e Rio de Janeiro) influenciavam diretamente nos
meus sonhos, na forma de me movimentar, de pensar, de escrever, de criar... Ento eu estava
voltando, e nesse sentido eu voltava tambm comprometida com trabalho que j havia
comeado na Umbanda Omoloko (nome dado a Umbanda que trabalha juntamente ao
Candombl). Ento, eu via uma residente extraindo pigmentos de terras avermelhadas, que
parecia urucum, e isso me remetia cabocla Jurema (entidade da Umbanda) a s cores do
meu orix, que se chama Onira.
E chovia muito, era tudo muito mido, passava um rio por esse lugar... Tive vontade
de me pintar com aquela terra, ento deixei a cmera num trip, e me masturbei por umas
duas horas, tentando no me utilizar de nenhuma imagem pornogrfica da minha memria,
exerccio muito difcil de desapego desse dispositivo de prazeres e desejos, dessa mquina de
produo orgsmica, ou como diria a Beatriz Preciado, potentia gaudendi, desses fantasmas
ou elementos (per)formativos de uma sexualidade da qual j no compartilhava mais, e foi
exatamente tudo sobre isso: uma forma de exorcizar esse imaginrio que toma corpo atravs
109
Onira o nome da minha orix guia. uma ians com qualidades de oxum, ou seja,
uma guerreira ponta de lana com aspectos de encantamento e fluidez, como o caso de
oxum, cujo domnio natural so as guas dos rios.
A lenda fantstica e sempre gosto de cont-la, at porque se relaciona direatmente
com o vdeo. Onira era uma princesa guerreira, feroz e sanguinria que, certo dia, decide
matar todos em uma tribo vizinha e o faz. Oxal orix criador de todos os outros vendo o
descontrole da situao a convida para prestar contas em seu palcio. Ela chega com a
roupa banhada em sangue. Ele a pergunta porque fez aquilo. Ela diz que gostava muito de
110
matar, apesar de saber que era errado. Ele ento sopra seu efun (p branco usado em rituais
de iniciao do candombl e que leva a paz e a tranqilidade aos seus filhos) sob Onira, cujo
vestido deixa de ser vermelho para ser salmo, e manda a princesa ir viver nas guas de
oxum, para esfriar um pouco aquele temperamento to incendirio. Chegando no reino de
Oxum, esta, que dominava a feitiaria, a magia e as sutilezas todas, comba o tempo inteiro do
temperamento de onira. Porm tornam-se ambas muito amigas e companheiras. A parte que a
lenda no conta que, para mim, elas tiveram uma relao lsbica super forte, de amor e
companheirismo. Certo dia, Onira observava encantada Oxum lavando-se nas guas do rio,
estava em uma pedra no meio do rio e adormece. As guas do rio sobem, e Onira,
adormecida, se afoga. Oxum corre desesperada para ampar-la, quando chega faz um feitio
para Onira voltar vida mas, a princpio, nada acontece. Subitamente o rio vira lava, e dele
sai uma borboleta. Oxum a segue floresta adentro, quando repentinamente a borboleta se
transforma em Onira que a diz para que no chorassa mais, pois, alm de ressuscit-la
concedeu-lhe o dom da magia e da mutao constantes: quando estivesse feliz seria
borboleta, quando estivesse raivosa seria um rio de lava. Onira ensina Oxum a guerrear,
ento, e Oxum ensina os dons da magia para Onira. Onira vira Rio refere-se a esse fragmento
da lenda, quando o Onira (a lava alaranjada) transforma-se em rio, associando a seu
temperamento incendirio o aspecto mais fluido e sereno do temperamento de Oxum.
Da, enfim, o vdeo remete-se um pouco a essa passagem mitolgica, mas sobretudo
de como esse mito me atravessava espiritual, corporal e geograficamente naquele momento.
Antropofagia-icamiaba um coletivo? Voc faz parte deste grupo, voc fez parte da
criao, pode falar um pouco disso?
prprios vdeos, construram suas narrativas singulares e o que fiz foi apenas editar os vdeos
e subi-los web. Fiz a minha narrativa tambm, a da onira, enfim, um dos corpos do
projeto.
E a plataforma existe, est a, muitas outras amigas e afins j se aproximaram
querendo construir suas narrativas, tambm, ou se aproximaram para compartilhar mais
intimamente suas experincias com as descontrues de suas sexualidade, e disso que se
trata o projeto que, por sua vez, de quem o mobiliza poltica, esttica e afetivamente. Eu
apenas produzi a fasca. Agora, me pareceu importante produzir teoricamente sobre essa
experincia, pensando-a como uma nova tecnologia dos afetos, das micropolticas, da
esttica. Em outras palavras, pensar de que forma esse trabalho videogrfico e afetivo
contribui para desconstruir aspectos incmodos e normativos de nossa sexualidade, de que
forma ele constribui para gerar acesso a desejos contra-hegemnicos, a outras formas de se
afetar e a fazer emergir o ertico que reside em ns (como diria audre lorde) e que
costumeiramente vem sendo oprimido h sculos, enfim, de que forma pensar as ferramentas
afetivas e audiovisuais como ferramentas de descolonizao de nossos corpos ou de que
forma poderamos hackear essas tecnologias de gnero e de sexualidade nesse caso, o
vdeo, o desejo, o prazer, enfim, as formas com que nos afetamos.
De que forma voc acha que a questo da antropofagia atravessa o seu trabalho ou no
(inclusive no vdeo onira..) ? Voc acredita que a questo da antropofagia, lida
contemporaneamente, interessante para as prticas artstico-polticas ps-
pornogrficas?
o caso do Onira Vira Rio). Acho que os trabalhos videogrficos do projeto se estruturaram,
cada qual a seu modo, a partir da antropofagia que, por isso, em si uma epistemologia.
Mas talvez a antropofagia no seja to importante para a ps-pornografia quanto a ps-
pornografia para a antropofagia no sentido artstico-poltico dessas prticas. Em outras
palavras, me parece que a ps-pornografia uma das ferramentas a serem
devoradas/incorporadas por uma episteme artstico-poltica antropofgica.
Alis, o que voc acha deste termo, ps-pornografia? Acha que ele tambm se aplica s
prticas pornogrfico-artsticas que combatem a heteronorma (dentre outras normas) na
Amrica Latina? Voc costuma usar este termo?
No costumo usar muito o termo, pois me parece que ele realmente no d conta dos
processos polticos, estticos e sexo-afetivos pelos quais passamos na Amrica Latina.
Quando o utilizo, para pens-lo como uma ancestralidade presentificada, e que, por isso,
no est territorializada; ou como uma ferramenta, mesmo (ou uma das ferramentas...). E
como tal, ela pode ser utilizada/empregada de forma distinta tudo depende de quem estar
utilizando-a, para qu estar utilizando-a. E acho que quando utilizada deve ser com muito
cuidado, ateno e auto-crtica, porque, enfim, as ferramentas em mos erradas podem
esvaziar qualquer prtica, e no creio que se possa criar nada superficialmente. No mais,
tenho tido muita impacincia com tudo o que temporaliza os conceitos, como por exemplo,
os conceitos que trazem o ps ou o pr, enfim, ps-identitrio, ps-pornografia, ps-
colonialismo... Acho que os conceitos edificam suas prticas e temporalizar as prticas
complicado, porque tudo o que ps carrega intrinsecamente em sua significao um certo
ar de vanguarda e de superao de algo, e acho que isso pode cair (como j caiu) em um
modismo conceitual muito esvaziado, como comentei acima, mas sobretudo,
descontextualizado e descomprometido scio-politicamente. Enfim, uma questo temporal,
mesmo, me parece complicado linearizar os tempos, mas no me surpreende para nada que
queiram faz-lo. E isso, veja bem, no um crtica ao trabalho de Annie Sprinkle, nem do
coletivo Post-Op, por exemplo. Muito pelo contrrio. Mas sim uma crtica uma tendncia
(crtico-conceitual), tambm latino-americana, de despolitizar esses trabalhos, de v-los mais
como uma vanguarda espanhola e estadunidense fetichizada, sem que os contextos de seus
respectivos feminismos, ativismos e afetos, enfim, sem que seus contextos macro e
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