Observações Sobre Alegria e Tristeza Na Ética de Spinoza
Observações Sobre Alegria e Tristeza Na Ética de Spinoza
Observações Sobre Alegria e Tristeza Na Ética de Spinoza
Introduo
[...] tudo o que pode ser percebido por um intelecto infinito como
constituindo a essncia de uma substncia pertence a uma nica substncia
apenas e, consequentemente, a substncia pensante e a substncia extensa
so uma s e mesma substncia, compreendida ora sob um atributo, ora
sob o outro. Assim, tambm um modo da extenso e a ideia desse modo
so uma s e mesma coisa, que se exprime, entretanto, de duas maneiras.
Como a razo no exige nada que seja contra a natureza, ela exige
que cada qual ame a si prprio; que busque o que lhe seja til, mas
efetivamente til; que deseje tudo aquilo que, efetivamente, conduza
o homem a uma maior perfeio; e, mais geralmente, que cada qual se
esforce por conservar, tanto quanto est em si, o seu ser.
Spinoza pergunta: o que pode o corpo?. Com isso, ele coloca em ques-
to os fundamentos da metafsica moderna. Segundo a concepo cartesiana,
o corpo jamais seria capaz de realizar os engenhos da mente seno conduzido
pela mesma. No entanto, Spinoza demonstra por diversos exemplos da experi-
ncia comum, como o assim chamado corpo capaz de muitas proezas sem
participao alguma da chamada mente, esta que considerada, segundo a
metafsica moderna, a essncia do homem. Logo, se o homem pode prescindir
da mente em algum momento, a mente por si s no poderia ser essencial
ao homem, conforme a prpria definio spinozista de essncia: aquilo sem
o qual a coisa no pode existir nem ser concebida e vice-versa (def. 2, E II).
Por outro lado, a memria tambm no interferiria numa deciso ao atenuar
um afeto contrrio ao que registrado, tampouco seria responsvel por regis-
trar um apetite fraco por um livre julgamento de sua relevncia, pois tudo o
que nos mais necessrio, seria ipso factu afetivamente mais forte. De acordo
com a doutrina do livre-arbtrio, faramos mais livremente as coisas pelas quais
temos menos apetite, pelas quais menos nos empenhamos, e faramos menos
livremente aquelas coisas pelas quais somos tomados pelos apetites mais ve-
ementes (demonstrao, E III 2). Para Spinoza, no entanto, no h diferena
substancial entre apetite e deciso, uma vez que a ao do corpo concomitan-
te ideia da mente. o que evidencia a demonstrao da E III 2:
Alm disso, veremos mais adiante que a alegria no boa s por si mesma.
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que a dor est referida ao homem quando uma de suas partes mais afetada
do que as restantes; j a melancolia, quando todas as suas partes so igual-
mente afetadas. E pela demonstrao da E III 57, Spinoza me permite reiterar
o que foi dito at agora sobre tristeza e alegria:
a mente age ao conceber ideias adequadas, porque o corpo afetado por uma
potncia externa que, na medida em que compreendida, aumenta ou estimula
sua potncia de agir. Assim, j poderia considerar razoavelmente demonstrada
a significao dos afetos de alegria e tristeza no que se referem especialmente
ao atributo da extenso, como anunciei na introduo. Mas ainda restam al-
gumas observaes.
No entanto, outro caminho, para mim, mais interessante para a questo
acima, o da dinmica entre os afetos de alegria e tristeza sugerida pelo enun-
ciado da E IV 41: A alegria no diretamente m, mas boa; a tristeza, em troca,
diretamente m. Ento, logo podemos deduzir que a alegria pode ser indireta-
mente m e a tristeza, indiretamente boa. Esse o sentido apontado pelas prxi-
mas proposies. O enunciado da E IV 42 diz: O contentamento nunca exces-
sivo, mas sempre bom, enquanto, inversamente, a melancolia sempre m. O
contentamento, enquanto est referido ao corpo, sempre bom porque todas
as partes do corpo so igualmente afetadas (demonstrao, E IV 42). Assim, a
potncia de agir do corpo aumentada ou estimulada de tal maneira que todas as
suas partes adquirem, entre si, a mesma proporo entre movimento e repouso
(idem). Ao contrrio, a melancolia, enquanto referida ao corpo, consiste em que
a potncia de agir do corpo inteiramente diminuda ou refreada (idem). Logo
a seguir, Spinoza introduz a j suspeitada exceo regra.
O enunciado da E IV 43 diz: A excitao pode ser excessiva e ser m;
em troca, a dor medida que a excitao, ou seja, a alegria, for m pode
ser boa. A excitao, enquanto referida ao corpo, pode ser m porque uma
parte ou algumas de suas partes mais afetada do que as outras, de modo que
o excesso de potncia desse afeto pode se sobrepujar s outras aes do corpo,
alm de concentrar esse afeto em apenas uma parte ou algumas partes do cor-
po, impedindo, assim, que este seja capaz de se afetar de diversas outras ma-
neiras. O excesso de potncia fixada numa s parte do corpo no compensaria
a impotncia das outras partes, mas, pior que isso, s reforaria a carncia de
potncia dessas outras partes. Alm disso, de acordo com a demonstrao da E
IV 18, o desejo que surge da alegria aumentado ou estimulado pelo prprio
afeto de alegria, enquanto o contrrio ocorre com o desejo que surge da triste-
za, que diminudo ou refreado pelo prprio afeto de tristeza. Disso se segue
que a excitao, porque s afeta uma ou algumas partes do corpo, anularia as
partes no afetadas, e s atravs do refreamento da excitao mediante outros
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afetos (mais fortes, logicamente) que o corpo poderia se afetar de outra ma-
neira e restabelecer a potncia das partes que foram prejudicadas. Se o desejo
que surge da alegria for excessivo, como no caso da excitao excessiva, as
partes do corpo no afetadas ficaro completamente merc da potncia da
causa exterior. Ento, como pude demonstrar, o prejuzo provocado pela exci-
tao pode ser revertido por outro afeto, a saber, a dor, considerada por Spino-
za como diretamente m:
Cada vez mais Spinoza torna evidente a sua teoria da capacidade huma-
na para mltiplos e diversos modos de se afetar, como podemos perceber, por
exemplo, pelo enunciado da E IV 60: O desejo que surge de uma alegria ou de
uma tristeza que est relacionada a uma s parte do corpo, ou a vrias, mas no
a todas, no leva em considerao a utilidade do homem como um todo. Pois
isso infringiria os prprios ditames da razo que conduzem o homem a buscar
o que lhe til. Quando o corpo afetado de forma parcial, a mente no fica
ociosa (o que seria como que sua inexistncia ou privao da perfeio, pois,
como diz a def. 3 dos afetos da E III, a privao nada ), mas enquanto isso pa-
dece justamente por se ocupar com o que contrrio a sua potncia: se ocupa
em funo ou em detrimento das causas exteriores e no com a produo das
ideias provocadas por elas. Assim, segundo o esclio da E IV 44,
Consideraes finais
Em sua teoria dos afetos, Spinoza se refere ora ao corpo, ora mente
como atributos de uma mesma substncia, e isso no passaria de um mtodo
de abstrao muito prprio de sua meticulosa ordem geomtrica. O con-
tentamento, compreendido como um afeto de alegria pelo qual o corpo tem
todas as suas partes igualmente afetadas, condio para que a mente possa da
mesma forma se afetar de diversas maneiras e, assim, aumentar sua potncia
de pensar. Em outras palavras, o contentamento uma alegria fundamental
para a autoafirmao do homem, isto , para a afirmao do seu conatus. Uma
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perspectiva enorme avana sobre esses afetos concebidos por Spinoza sob o
atributo da extenso, j que todas as experincias potentes do pensamento nas-
cem da sade humana, ou melhor, da sade de um corpo capaz de se afetar de
diversas maneiras.
REFERNCIA