Conceição - Culto de Babá Egum (Livro) PDF
Conceição - Culto de Babá Egum (Livro) PDF
Conceição - Culto de Babá Egum (Livro) PDF
PUC-SP
SÃO PAULO
2011
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
São Paulo
2011
Banca Examinadora
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No orun, ao meu pai José Conceição,
representante dos meus ancestrais.
No aiyê, a minha sobrinha-neta
Monica Conceição Hazouri,
símbolo de continuidade,
com carinho.
AGRADECIMENTOS
Qualquer pessoa sensata tem consciência de que um trabalho como este só é possível
com o apoio de múltiplas pessoas com saberes igualmente múltiplos, que contribuíram
sobremaneira para a realização dessa empreitada, por isso agradeço:
À professora Eufrazia Cristina Menezes dos Santos, pela amizade, troca e confiança
em minha capacidade, sobretudo durante os primeiros passos e tantos outros nas Ciências
Sociais, sem o que não teria motivo para redigir a tese e os demais agradecimentos. Obrigada
pela sua existência!
Às mulheres e homens do terreiro de Lésen-Egun Ilê Babá Agboula, aos Ojés de todos
os terreiros visitados e às integrantes da Irmandade da Boa Morte, que participaram como co-
autores deste estudo, sem os quais não haveria conseguido concretizar essa tese. Serei sempre
grata!
À professora Teresinha Bernardo, com quem convivo há mais de oito anos; suas
críticas, leituras atentas e observações foram fundamentais para o amadurecimento e
reformulação do trabalho.
Ao professor Miguel Vale de Almeida, do ISCTE-IUL de Lisboa, Portugal, que, com
sua perspicácia, ajudou-me a delimitar a Irmandade da Boa Morte como parte constitutiva
dessa pesquisa, focando suas orientações nos múltiplos aspectos das masculinidades e
feminilidades. Além da leitura crítica e sugestões nos primeiros escritos desta tese.
Aos funcionários do ISCTE, do Museu Histórico Ultramarino e Biblioteca Nacional de
Lisboa, pelo apoio e prontidão às minhas solicitações.
Aos professores Acácio Sidinei Almeida dos Santos e Maria Clara Saraiva, pelas
críticas, sugestões e comentários que fizeram a esta investigação por ocasião do exame de
qualificação.
Aos membros do grupo de pesquisa Relações Raciais, Memória, Identidade e
Imaginário, na pessoa de Camila Camargo, Márcia Micussi e Frei Leandro, nos quais
encontrei apoio nos momentos conturbados.
Aos amigos de longe, Liliana Ferreira, da Suíça, Maria Fazendeiro, Joacine Katar,
Nelo e Margarida Paredes, de Portugal, que amenizaram a saudade de casa, quando da minha
estada em Lisboa, especialmente à Elizabeth Bittencourt, por ter-me recebido em Portugal.
À amizade de perto de Marcos Mesquita, Rackhel Barbosa, Carmélia Miranda,
Jaqueline Lima, Zeca Chaves, Maria Joaquina da Rocha e sua família, que me deram carinho
e apoiaram na reta final deste trabalho; sem palavras!
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, pela concessão
da bolsa de estudos durante os quatro anos de investigação na PUC-SP.
À Coordenação e Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pela concessão da
bolsa durante os meses de Estágio Sanduíche, em Portugal.
À minha família biológica e extensa na pessoa de minha mãe Maria Edith dos Santos e
do Babalaxê Sérgio Barbosa, responsáveis pelos meus nascimentos; sem as suas orientações,
carinho e amor, tudo seria mais difícil.
RESUMO
This work is about death rituals and deals primarily with the questions of masculinities,
femininities and performance in both Irmandade da Boa Morte (Sisterhood of the Good
Death) and Sociedade Egungun (The Cult to the Ancestors). This is done taking into
account two different aspects: one is how death is dealt with in the ancestor worship
rituals and the other refers to the female invisibility and interdict on those rituals.
The analysis stresses the elements that are associated with those three categories as well
as the strategies used both to justify the keeping out of males and to destroy male
domination. It endeavors to understand the symbolism that goes through the
representation system of masculinity and femininity that takes place on the ritual sphere,
mainly the sexual division and hierarchy on the Culto de Babá Egun. Asserting the
opposite, the Irmandade da Boa Morte boasts female exclusivity. It must be said that
both groups maintain concepts that diverge to those held on the West, since the Nago
world vision holds that human life is lived in two plans, aiyê and orun. The former is the
concrete, physical realm while the latter is the supernatural, abstract, endless world
occupied by supernatural beings. Hence, this study maintains that both men and women
perform masculine and feminine roles in order to ensure the practices of funeral rites
along with keeping the power existing in the rituals. Both women and men use, albeit
with different meanings, the Yoruba creation myth system to legitimize their discourses.
On one hand, men justify their exclusion of females from the spaces where the mortuary
rites are performed. On the other hand women use the same myths to explain how men
changed from the subjugated position to become dominant and furthermore, subvert
dominant masculinity when worshiping the ancestors spirits. The studied groups not
only maintain Yoruba funeral rites but in addition carry out the leading roles . The
empirical data jointly with the theory allows us to understand the contradictions present
on the narratives of both men and women, facing the many forms of producing
masculinity and femininity and opposing male supremacy. Studying the data resulted in
understanding the duality within the system of believes of Irmandade da Boa Morte and
Culto de Babá Egun practitioners go beyond their formal procedure and are present in
their everyday lives together with the importance of all involved un the rituals.
.
LISTA DE FIGURAS
INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 11
Rituais religiosos ................................................................................................................... 26
Universo de pesquisa ............................................................................................................ 30
INTRODUÇÃO
A morte é algo inerente a todas as culturas, porém, ainda hoje é assunto tabu, visto que
na maioria das vezes o assunto só é discutido quando de fato ela ocorre. Embora seja um
evento que se encontra em todas as sociedades, a forma como cada uma delas o concebe é
diversa, quer na maneira de lidar com o cadáver, quer na forma de entender aspectos que
envolvam a legitimação social do morrer. Há casos em que os rituais 1 que envolvem a vida
pós-morte são realizados apenas pelos homens; em outros, homens e mulheres envolvem-se
tanto nos cuidados para com o cadáver quanto nos rituais que possibilitam a presença dos
espíritos ancestrais no meio de seus descendentes. Este estudo busca ampliar a compreensão
do tema, no que toca às questões da morte, não apenas pelo viés ritualístico religioso, mas
pelas dimensões: performática, secreta, do poder e, principalmente, pelas masculinidades e
feminilidades. Porquanto é bom salientar, desde já, que o sentido dado às categorias
masculinidades, feminilidades e performance nesse trabalho é para se referir à forma como
cada grupo se coloca diante dos rituais celebrados.
Levando em conta que os rituais mortuários, especialmente aqueles que invocam e
fazem surgir os ancestrais novamente na terra, sobretudo no complexo nagô, no qual a
execução de tais atos é exclusividade masculina, uma questão se coloca: de que maneira a
1
Utilizarei neste trabalho o termo rituais; porém é preciso fazer uma diferenciação entre rito e ritual, visto que
normalmente os dois termos são usados indistintamente, porquanto não existe um consenso. Para Aldo
Natale Terrin, quando se usa o termo “rito” faz-se referência a uma ação realizada em determinado tempo e
espaço. Assim, se diz que o rito do Bar Mitzwah é o rito que faz com que o menino se torne homem, no
judaísmo, assim como no cristianismo o rito do batismo faz da criança um indivíduo cristão. Trata-se, pois,
de ações rituais realizadas no seio de uma religião ou de uma cultura e reconhecidas como tais. Trata-se de
ações que são diferentes das ações da vida ordinária e se distinguem do comportamento comum. Quando, ao
invés, falo de “ritual”, faço referência a uma ideia geral da qual o rito é uma instância específica. Assim, não
existe o ritual, que é uma abstração. Fala-se, porém, de ritual, na Igreja Católica, mas com outro significado,
isto é, como texto exemplar para a execução dos ritos e das liturgias. Por isso, o ritual seria somente uma
ideia que os estudiosos formulam como conceito de rito. Ele, em outras palavras, seria “o que é definido de
modo formal e mediante caracterizações, enquanto o rito é aquilo que se realiza e se vive em determinada
religião ou cultura” (TERRIN, 2004, p. 20); contudo, neste trabalho, usarei o termo ritual para definir as
ações que não são praticadas cotidianamente.
12
Boa Morte, sendo uma organização feminina, acessa lugares que são ditos como masculinos,
visto que elas também realizam rituais que homenageiam os ancestrais? Este fato se contrapõe
à extrema invisibilidade e estigmatização da figura feminina dentro do culto e dos rituais
mortuários; apesar disso, a mulher, em todo processo de criação e em determinadas
cosmogonias africanas, mostra-se importantíssima no universo como um todo. Eis aqui as
razões antropológicas deste estudo.
Foi objetivo deste trabalho compreender as relações entre rituais mortuários,
performance, masculinidades, feminilidades e segredo; assim, lancei mão de autores como
Juana Elbien e Braga sobre o universo do Terreiro de Lesén-Egun de Babá Agboula, a fim de
compreender o complexo mortuário nagô; Schechner, Turner, Huizinga e Geertz para
entender a questão da performance; já Connell, Almeida, Klien, Saffioti, Scott e outros, para
entender as dimensões da masculinidade, feminilidade; por fim, utilizei as concepções de
Gramsci e Foucault para compreender a hegemonia e o poder.
Desde já é bom diferenciar o ritual do axêxê do culto a Egun, praticado mais
intensamente na Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Recife. O Axêxê tem por
finalidade encaminhar o espírito da pessoa que morreu para o lugar apropriado, isto é, para o
orun; é um ritual de passagem, limpeza, purificação e organização, já que a morte é por
excelência elemento de desordem. Esses rituais podem ser realizados por mulheres ou homens
com saberes adequados à função; neste caso, não há aparição de espíritos materializados. Faz-
se, através do jogo de búzios, a consulta do espírito do morto para saber seus últimos desejos.
Já o culto aos Eguns constitui a invocação de ancestrais ou Babá; normalmente estes espíritos
foram personalidades ilustres de linhagem familiar 2 consanguínea ou através de laços
religiosos iniciáticos e que pertencem ao mesmo axé. Os ancestrais materializam-se em
grandes figuras (descritas no capítulo 1), têm a função de trazer aos descendentes a
orientação, possibilitar a prosperidade, advertir sobre más condutas e dar-lhe força para
vencer as adversidades cotidianas; os rituais realizados em honra aos Babás Eguns funcionam
como elemento aglutinador ou restaurador de forças, na medida em que interferem na vida
individual e coletiva de cada grupo.
Em contrapartida, nem todas as pessoas podem lidar com esses espíritos; em princípio,
apenas os homens são designados para esta função, já que existem diferentes visões e
2
Família, quando utilizado no sentido lato do termo, diz respeito aos laços estabelecidos por pessoas através
da consanguinidade, mas ao referir-se à família de santo diz acerca das pessoas integradas por meio de ritos
iniciáticos, pertencentes ao mesmo pai ou mãe de santo e do mesmo axé. Para maiores detalhes sobre o
assunto, ver a obra A família de santo nos candomblés jejes-nagos, de Vivaldo da Costa Lima (2003); sobre
família, ver As estruturas elementares de parentesco, de Lévi-Strauss (2003).
13
3
Sobre os pares de oposições, ver a obra Pensamento selvagem, de Lévi-Strauss (1989).
16
Bourdieu (2010), ao lançar tal pensamento, leva a refletir que a dominação masculina
é, antes de tudo, fruto de um processo histórico antigo. Muitas vezes essa dominação está no
inconsciente das pessoas em jogo que, querendo defender uma postura de igualdade entre os
sexos, assumem uma posição contraditória; isso se verifica na prática e nas ações antes
criticadas. Nesta perspectiva, o gênero pode e deve ser entendido como uma construção
histórica das relações de poder entre homens e mulheres, sem antes refutar as definições de
masculinidade e feminilidade, colocando-as numa base dicotômica. Desta maneira, o conceito
de gênero passa a variar conforme o tempo e a cultura 4, assumindo um caráter dialético sobre
as relações sociais, nas quais se consideram aspectos individuais e coletivos nos locais onde
atuam. Embora a masculinidade e a feminilidade possuam bases comuns, o mais correto seria
falar masculinidades e feminilidades, uma vez que essas categorias podem apresentar
variações de acordo com o relevo social, assumindo traços identitários de um determinado
grupo. Independentemente do grau de variação, as masculinidades e feminilidades apresentam
elementos de convergência e especificidade quando analisadas dentro de uma base comum.
Para Michel Vovelle (1987)5, os aspectos das conjunturas sociais são responsáveis
pelas variações da sensibilidade coletiva, cuja orientação está no fato histórico, que se tornam
diversas quando se levam em conta os meios, lugares e o modo de cada grupo lidar com o
evento da morte. Desta forma, há uma diversidade de práticas sociais no tratamento desta. O
autor ainda acrescenta que é fundamental atribuir o devido valor ao contexto sócio-histórico
no qual ocorreu o evento.
A experiência dessas categorias pode apresentar, por exemplo, significados diferentes
para coisas aparentementes iguais. É do universo religioso e do cotidiano de seus participantes
que se ocupa este estudo.
Alguns textos teóricos de Hertz (1960), Mauss (2003), Leite (2008), Morin (1970),
Philippe Ariés (1989), Jack Good (1996) e Thomas (1983), lançam um olhar mais fixo acerca
da morte e dos rituais mortuários; abordam, sobretudo, aspectos coletivos e simbólicos que
4
Neste trabalho, tomarei emprestadas as concepções de cultura defendidas por Clifford Geertz (1989, p. 103),
nas quais a cultura é entendida como um padrão de significados transmitidos historicamente, incorporados
em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os
homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida. A
cultura como teia de significados deve ser entendida como uma ciência interpretativa, à procura do
significado.
5
Grande historiador francês e precursor dos estudos da História das mentalidades, na obra Ideologias das
mentalidades desenvolveu um vasto estudo sobre as influências do meio na determinação e maneira como
cada grupo ou indivíduo trata os fatos mortuários.
17
(1989), os ritos buscam oferecer uma explicação não necessariamente verbal ao sofrimento, a
fim de torná-lo suportável; desta forma, os enlutados com os demais participantes do grupo
tornam-se mais coesos e resistentes ao impacto advindo da morte.
Os rituais mortuários praticados pelos grupos supracitados são ricos em simbolismo.
Os rituais são compostos por vestimentas, lavar o corpo, cânticos entoados, a destruição dos
pertences do falecido e, em alguns casos, os rituais são realizados com o corpo presente. Tudo
isso evidencia, essencialmente, a necessidade de reorganização do grupo social, já que a
morte é por excelência um fator desagregador; portanto os rituais feitos servem, não apenas
como rituais de passagem, mas, sobretudo, como forma de trazer a normalidade ao grupo
social. A esse respeito, o autor afirma que
O símbolo mortuário pode, ao mesmo tempo, ser individual e, enquanto signo, ser
representação coletiva, mas as estruturas internas colaboram na definição desse campo
simbólico.
Foucault (1988), na sua obra intitulada A História da sexualidade: a vontade de saber,
explicita o caráter dialético das estruturas; mas podemos ligar essa base estrutural às atitudes
das pessoas diante da morte. A atribuição ao valor da vida constituiu para Foucault a grande
ruptura realizada no Ocidente. Isso favoreceu os discursos que relacionavam as ciências
humanas e o controle social dos corpos, enfatizando, sobremaneira, o social; enquanto valor, a
que chamou de biopoder, associa-se às categorias como nascimento, sexualidade e
reprodução. O que significa dizer que todas as atitudes possuem seu peso, inclusive as que
tocam à morte. E para que haja controle é preciso se estabelecer relação de poder. No
universo dos rituais mortuários, buscamos compreender a relação dos homens com as
6
Tradução livre de: “El símbolo no es el signo vinculado a la cosa por una convencíon arbitraria pues supone
un vínculo verdadero entre el objeto y significada por este objeto. Según J. Piaget: „Un símbolodebe
definirse como u lazo de similitud entre el significante y el significado, mientra que el signo es arbitrario‟ y
reposa necesariamente sobre una convencíon, El signo requiere por lo tanto de la vida social para
constituirse, mientras que el símbolo puede ser elaborado por el individuo solo (como en los juegos de
niños). Es obvio por otra parte que los símbolos pueden socializarse, y un símbolo colective es en general
mitad signo, mitad símbolo. Por el contrario, un puro signo es siempre colectivo”.
19
mulheres como adeptos, uma vez que no culto de Babá Egun as mulheres são excluídas de
parte dos rituais que envolvem a invocação dos ancestrais. Em contrapartida, a Boa Morte
também exclui os homens das cerimônias que realiza. Assim imerge-se nesses espaços na
tentativa de entender qual a relação de poder que se estabelece entre essas pessoas ou em que
medida homens e mulheres contribuem para a manutenção de determinados privilégios, já que
a maior parte da literatura e a oralidade legitimam a supremacia masculina nas questões
relacionadas à morte. Pelo menos dentro das concepções e mentalidade nagô, visto que em
outras sociedades isso pode apresentar-se de forma diversa, por exemplo, na mentalidade
mina, na qual as mulheres são detentoras desses rituais.
Foucault (1979), no livro Microfísica do poder, vai mostrar que existem vários tipos
de poder; mesmo em uma situação de dominação, o dominado também o tem. São poderes
que o autor denomina de micropoderes, mas igualmente servem para dar sustentação a um
sistema; o fato de serem considerados micros não quer dizer que eles sejam menos
importantes.
Na investigação etnológica, Juana Elbien dos Santos (1984), no livro Os Nàgò e a
Morte: Pàde, Àsèsè e o Culto Égun na Bahia, desenvolveu sua análise em torno da morte,
privilegiando desde os mecanismos estruturais, interpretações, elaboração do sistema ritual. A
autora trata de maneira pormenorizada cada elemento ritual africano e as adaptações sofridas
no processo diaspórico. A pesquisa envolve os cultos mortuários praticados no Ilê Agboula,
em Ponta de Areia, Itaparica.
Outro estudo desenvolvido no Ilê Agboula foi do antropólogo Júlio Braga (1992).
Nele, o autor trabalha e analisa as significações do culto de Babá Egun com o intuito de
compreender o papel do culto aos ancestrais na construção das bases da vida cotidiana. Esse
trabalho apresenta uma série de vivências que permitem acessar algumas estruturas sociais
daquela comunidade. O autor ainda evoca as influências do culto na conformação do que é ser
negro. Contudo, não questiona a divisão sexual das tarefas. Foi analisando os documentos e
observando nos rituais a suposta supremacia masculina, que percebi que havia uma brecha
sobre o papel fulcral das mulheres; por outro lado, a Irmandade da Boa Morte realiza rituais
em homenagens aos ancestrais. A percepção dessa brecha possibilitou à pesquisadora chegar à
problematização central dessa investigação: Da perspectiva das subjetividades da
masculinidade e da feminilidade como processos contraditórios, na medida em que delas
surgem outras realidades igualmente contraditórias – a mulher/rituais mortuários –, de que
maneira as mulheres subvertem a ordem dos rituais mortuários para acessarem um espaço dito
como masculino? E de que forma os homens conseguem manter seu status de poder? A
20
7
Para maiores detalhes, ver os trabalhos A presença do candomblé na Irmandade da Boa Morte: uma
investigação etnográfica sobre ritos mortuários e religiosidade afro baiana (2001) e o livro A Boa Morte em
Cachoeira: contribuição para estudo etnográfico (1988).
21
Festa da Boa Morte e Glória: ritual, música e performance (2009), mostra a Irmandade a
partir da perspectiva musical. Embora tenha abordado as questões religiosas e históricas, o
eixo central de seu trabalho é a música, quer no ritual religioso quer na performance.
O estudo de grupos afro-brasileiros requer uma investigação não apenas das questões
históricas, mas um estudo acerca do corpo, pois foi no corpo que os escravizados criaram
condições para a sobrevivência de suas culturas, foi nele e sobre ele que os negros e negras
inscreveram, guardaram e performaram o que hoje chamamos de culturas afro-brasileiras. É
de David Le Breton 8 (2006, p. 39) a afirmação de que “O corpo é o primeiro e o mais natural
instrumento do homem, ele é modelado conforme os hábitus culturais”, produzindo eficácias
simbólicas e materiais. A afirmação de Le Breton é reveladora, no sentido de mostrar que o
corpo serve como instrumento de dominação ou de resistência, quando instrumentalizado para
tal. No nosso caso, o corpo no espaço ritual e também fora dele revela-se como peça
estratégica na configuração dos papéis desempenhados. Homens e mulheres usam a
performance corporal para assegurar o poder e neste sentido essa prática não difere dos atos
mágicos, religiosos ou simbólicos. Le Breton (2006, p. 28-29), em suas análises, aponta:
8
Antropólogo francês, especialista na área de estudos sobre o corpo, sobretudo na obra A sociologia do corpo
(2006), aponta várias formas de uso do corpo.
22
feminilidades, no que tocam à morte, não foram objeto de investigação, até o momento. Em
alguns trabalhos, a dimensão mortuária é tratada pelo viés da complexidade dos rituais
africanos, pela relevância histórica e pela identidade; reconheço a importância dos estudos
realizados por estes pesquisadores, porém o recorte de gênero não constituiu elemento central,
como também não há em nenhuma discussão a junção da Boa Morte e de Babá Egun9. Neste
trabalho, as categorias de masculinidades e feminilidades são entendidas como móveis,
podendo ser encontradas no grupo de mulheres ou de homens, haja vista que estas são
construídas socialmente. Quanto ao segredo, este constitui a base dos grupos pesquisados;
além disso, ele revela-se como uma forma de poder, visto que os bens simbólicos, quando
encontrados nas mãos de poucos, revestem-se desse caráter.
Corriqueiramente o termo feminino e feminilidade são usados como sinônimos, tal
como Freud (1980) o fez em 1932, na sua obra Feminilidade. Para ele, a feminilidade
indicaria uma certa bissexualidade, isto é, o indivíduo apresenta porções do masculino e do
feminino, portanto a pessoa é, ao mesmo tempo, masculino e feminino; para ele, a mulher
detém mais características femininas e o homem mais características masculinas, por isso
foram considerados por muitas feministas como reducionistas e misóginos, tal como Saffioti
(1995). Acredito que, fazendo as devidas ponderações, se possa tomar de empréstimo parte da
definição da feminilidade freudiana, acrescentando a ela a categoria masculinidade; uma vez
que o autor coloca a feminilidade em um campo movediço, assim também é feito aqui em
relação à masculinidade, já que ambas estão fora do alcance da anatomia. Deste modo, as
categorias empregadas ao longo deste trabalho não estão vinculadas estritamente à mulher ou
ao homem, elas se constituem de flutuações e revezes dentro de um contexto sociocultural e
político onde se leva em conta a autodescrição. Ainda neste sentido, a bissexualidade da
masculinidade ou feminilidade é vista como parte inerente a toda pessoa e não se relaciona à
opção sexual dos indivíduos, tanto na Irmandade da Boa Morte quanto no Culto de Babá
Egun.
Connell (1987), ao estudar as relações de gênero, focadas em grupos de meninos,
rapazes, descobriu não apenas tipos diversos de masculinidades, tais como subordinadas,
cúmplices, marginalizadas e hegemônicas, todas elas pertencentes à ordem interna de gênero
que, ao se inter-relacionarem com as estruturas como classe e raça, criam relações mais
amplas entre elas. Neste sentido, a categoria gênero é genérica e, como tal, não contempla
9
Em relação aos estudos sobre o culto de Babá Egun, o desvio da regra seria a dissertação de Santos (1996)
que, embora tenha abordado a morte nas irmandades negras, dedica um capítulo especialmente à Boa Morte e
outro ao Culto de Babá, em Diadema, São Paulo, todavia o autor não trabalha na perspectiva do ritual como
performance ou do gênero (masculinidades/feminilidades).
23
casos específicos. Em certa medida, grande parte dos estudos produzidos nas décadas de
1960, 1970 e 1980 acreditava resolver essas lacunas definindo conceitual e historicamente tal
construto; ao contrário, a grande maioria incorria no erro de apresentar uma análise, quase
sempre, imprecisa. Nesse ínterim, em 1960, Stoller (1982), cunhou a expressão identidade de
gênero. Tal expressão ainda hoje é utilizada para significar a construção social dos seres
humanos, não apenas a partir da diferença anatômica dos sexos, mas pela identidade. A
definição considera principalmente as características com as quais os indivíduos se
identificam e adquirem ao longo da vida; a própria palavra identidade já evoca questões como
classe, raça/etnia.
Sublinho aqui algumas considerações sobre o construto gênero que, embora criticado,
é usado de forma exemplar para se pensar as relações entre os seres humanos. Desde já,
explicito que, embora masculinidades e feminilidades sejam inerentes ao gênero, entendo que
elas são vivenciadas de forma diferente; não existe um grupo de indivíduos igual ao outro, de
igual modo essas categorias também o são, por isso a ênfase dada nesse viés.
Laurentis (1994) afirma que o gênero pode ser visto como símbolo cultural,
representando instituições, organizações, cujas identidades múltiplas, contraditórias e
subjetivas são evocadas; para ela, o gênero deve figurar como mecanismo regulador de
relações não apenas homem/mulher, mas igualmente as relações homem/homem e
mulher/mulher; deve, pois, representar a multiplicidade do ser humano. Saffioti (1995)
defende a concepção de sujeito múltiplo; na sua concepção, a multiplicidade vai ao encontro
da contraditoriedade potencializada do ser humano, contemplando as divisões e atribuições
assimétricas entre os sexos. Nesta mesma linha, seguem Miguel V. Almeida (2000)10 e Joan
Scott (1990)11 que, além de revisarem a teoria feminista, agregam ao conceito uma visão mais
precisa acerca da dicotomia, simbolicamente construída através das diferenças sexuais
humanas. Connell (1995) vai além do fato de defender algumas propostas do feminismo;
adiciona ao conceito de gênero a noção de estrutura de relações de gênero, através da qual é
possível reconhecer a complexidade das sociedades, ao tempo em que garante maior
apreensão da dinâmica histórica de gênero. Isso significa dizer que o gênero é muito mais que
interações sociais, face a face entre homens e mulheres; ele engloba o “Estado”, a família e a
sexualidade (CONNELL, 1995).
10
O autor, no livro Senhores de si: uma interpretação antropológica da masculinidade (ALMEIDA, 2000),
traz uma reflexão sobre o conceito de gênero, focando especialmente a masculinidade de um povoado de
Portugal, ao tempo em que aponta para a vivência diferenciada da categoria.
11
A historiadora norte-americana e autora do artigo Gênero: uma categoria útil faz uma reflexão da categoria
gênero, porém aponta caminhos para o seu uso adequado.
24
inquietações de grupos, como dos gays, lésbicas, negros, negras, pobres, inter-raciais etc. Para
Scott (1990), o termo gênero enfatiza todo um sistema de relações que pode incluir o sexo,
mas não é diretamente determinado pelo sexo, nem determina diretamente a sexualidade. A
polissemia do conceito revela, ainda, uma construção binária e hierárquica da diferença sexual
humana; ademais, o construto pode servir para fomentar, fortalecer e legitimar o direito
político conferido aos homens pelo fato de serem homens.
Deste ponto, pode-se presumir que o patriarcado traz implícita a incitação de
confronto político entre grupos diferentes ou talvez biologicamente iguais, não apenas com
agressões de homens dirigidas às mulheres, aos homossexuais, às lésbicas; grosso modo,
seria, por assim dizer, a dominação do gênero pelo gênero. A partir disto não se pode pensar a
dominação-exploração originária do binarismo, já que o sexo é biologicamente igual, mas
socialmente diferente.
Na tentativa de resolver esse problema conceitual, outros estudiosos optam por utilizar
o conceito de patriarcado como forma de denunciar a dominação masculina sobre as
mulheres, mas esta também é uma categoria histórica e não ontológica; logo, é datada,
servindo apenas para se pensar a opressão em um dado período histórico, período em que se
acredita ter havido uma supremacia masculina; fala-se aqui de alguns milênios de anos atrás,
enquanto a sociedade humana tem mais ou menos 230 mil anos (JOHNSON apud LERNER,
1986). Tais autores postulam que o uso desse conceito incorre na naturalização da relação de
dominação-exploração da mulher sem que haja a nomeação dos dominadores, pois até mesmo
os estudos feministas denunciam a dominação masculina; entretanto seus opressores ficam
subentendidos. Por outro lado, há uma corrente de estudos feministas que defendem o
patriarcalismo, pois atestam que a história registra sociedades igualitárias do ângulo de
gênero, portanto a discriminação feminina funda-se nas próprias relações sociais. (KURZ
apud SAFFIOTI, 2004). Porém, ao revisar a história da dominação masculina sobre a mulher,
Saffioti (2004, p. 33) revela que
Não foi gratuita a alta consideração devotada às mulheres por parte dos
homens, quando ainda não conhecia a participação masculina no ato da
fecundação. Capazes de engendrar uma nova vida, de produzir todos os
nutrientes necessários ao desenvolvimento dos fetos e, ainda, de fabricar
internamente leite para alimentar os bebês, eram consideradas seres
poderosos, mágicos quase divinos. Caíram do pedestal, quando se tomou
conhecimento da imprescindível, mesmo que efêmera colaboração
masculina no engendramento de uma nova vida, mas persistiu a inveja de dar
à luz novas criaturas.
26
Saffioti, no trecho acima, faz uma denúncia ao revelar que os homens tinham uma
maior consideração às mulheres, por acreditar que não havia a participação masculina no ato
conceptivo; no entanto, essa situação ganha novos contornos quando estes descobrem sua
participação na fecundação. Não apenas os homens as colocam em um lugar de
subalternidade como chamam para si a maior importância no engendramento de uma nova
vida; contudo, a autora aponta que ainda assim os homens teriam inveja da mulher pelo fato
dela dar à luz.
Rituais religiosos
Por inserir-se no campo da antropologia da religião, é bom desde logo dizer qual a
definição de religião que norteia este trabalho. O norte-americano e antropólogo Geertz
(1989, p. 104-105) afirma que a religião é um
Uma condição, uma posição ou um lugar social não são coisas materiais que
são possuídas e, em seguida, exibidas; são um modelo de conduta
apropriada, coerente, adequada e bem articulada, representado com
facilidade ou falta de jeito, com consciência ou não, com malícia ou boa-fé,
nem por isso deixa de ser algo que deve ser encenado e retratado e que
precise ser realizado (GOFFMAN, 2007, p. 74).
Nenhum grupo social, nenhuma instituição, por mais estáveis e sólidas que
possam parecer, tem sua perenidade assegurada. Sua memória, contudo,
pode sobreviver a seu desaparecimento, assumindo em geral a forma de um
mito que, por não poder ser ancorada na realidade política do momento,
alimenta-se de referências culturais, literárias ou religiosas.
para que possa manter seus costumes ao longo dos quase três séculos. Contudo, em Itaparica,
os adeptos do Culto de Babá Egun reivindicam a pureza da tradição quando dizem que fazem
com que o culto se mantenha da mesma forma que trouxeram da África. Com efeito, para
Douglas (1991), a reivindicação da pureza é uma busca sem fim, já que ela não existe.
O universo da pesquisa
É sabido que os estudos etnográficos sobre a morte no Brasil abordam vários aspectos
de sua realidade, porém, salvo engano, nenhum enfatiza as construções de gênero que
perpassam os sistemas de significação simbólica e as dinâmicas sociais. Assim, este estudo se
insere neste universo para refletir sobre os atores sociais que se envolvem nesses eventos, na
medida em que busca focar as atitudes diante da morte em contextos díspares. Toma-se como
campo etnográfico a Irmandade da Boa Morte e o Culto de Babá Egun.
A Irmandade da Boa Morte teve sua fundação no antigo bairro residencial da
Barroquinha, em data incerta, porém são encontrados alguns documentos que mostram sua
atuação desde meados do século XVIII. Na época, a região abrigava várias etnias africanas,
dentre as quais pessoas de altíssimo conhecimento religioso; em Salvador, recebia o amparo
da Irmandade de Nosso Senhor Bom Jesus dos Martírios, já que naquela época não possuía
estatuto ou compromisso, por isso qualquer negociação com as autoridades governamentais e
eclesiásticas eram feitas pelos “Irmãos dos Martírios”. Com a expansão urbana e por razões
citadas (capítulo 2), ela, ou parte dela, é transferida para Cachoeira, no Recôncavo Baiano,
que por sua vez possuía diversos povos africanos.
O Culto de Babá Egun, segundo relato dos adeptos, sempre ocupou as terras de
Itaparica, tendo se expandido para outras localidades da mesma ilha, mas todos mantêm a
mesma estrutura ritual. Com o passar dos anos, o culto é levado pelos sacerdotes para outras
cidades e estados, como Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e Recife; contudo, a nossa
investigação se desenvolve na terreiro de Babá Agboula, casa-matriz das demais casas
existentes. Tanto as primeiras integrantes da Boa Morte e do culto de Babá Egun estiveram
juntos em Salvador, mais precisamente na Barroquinha, visto que o núcleo religioso dos
grupos mencionados era composto respectivamente pela Priora Iyá Nossô Maria Júlia
Figueiredo, da Irmandade, que ocupava simultaneamente o cargo de Iyalodê e Eleru nas
organizações secretas Ogboni e Gèlèdé, e pelo Oluwô Bamboxê Êssa, um dos líderes do
31
Aramefá e do culto de Babá Egun, que na época ocupava o cargo de mesário da Irmandade de
Nosso Senhor Bom Jesus dos Martírios. É provável que a expansão urbana tenha levado as
mulheres a se deslocaram para Cachoeira e os homens para a Ilha de Itaparica. É importante
ressaltar que os dois grupos se originaram no período escravista, portanto são cultos que
andaram conforme se expandia a população escravizada.
A escolha da dimensão do gênero, com foco sobretudo nas masculinidades e
feminilidades foi importante no desenvolvimento do campo. Na Boa Morte, apesar de ter
conhecido a Irmandade desde criança, ter estado na cidade diversas vezes e até convivido na
casa de algumas integrantes mais intensamente durante o mestrado, as visitas no período de
2007 a 2010 foram também bastante profícuas, no sentido de ampliar a compreensão de
aspectos relacionados à concepção de morte e a relação com os homens.
Mesmo já tendo ouvido falar por pessoas ligadas ao condomblé, a minha inserção no
Culto de Babá Egun se deu por intermédio de um Ogã do terreiro Viva Deus, de Cachoeira,
que há muito tempo frequentou e colaborou com as festas no terreiro de Babá Agboula. A
primeira visita foi feita em setembro de 2006, fora do período de festa, momento em que fui
apresentada a Iyakekerê, isto é, à líder feminina; ela, por sua vez, se encarregou de me
apresentar aos demais membros, alertando-os que em outra oportunidade iria voltar para
assistir a festa e fazer algumas entrevistas. Inicialmente, fui recebida com um misto de
acolhimento, desconfiança e estranhamento, mas aos poucos fui sendo inserida nas conversas
e participando de algumas atividades realizadas pelas mulheres. A partir de então comecei a
frequentar as festas que são realizadas quatro vezes por ano, além das visitas com
permanência no local de quinze a vinte dias. O contato com as pessoas me permitiu vivenciar
o cotidiano dos grupos e também a relação deles com o público em geral. Mesmo gozando de
alguns privilégios por ficar hospedada em casa de pessoas ligadas ao grupo, houve um
estranhamento natural em relação à minha atuação como antropóloga, sobretudo no que toca
aos rituais mais privados e até mesmo nos públicos. Por outro lado, esse contato com as
pessoas, com o povoado, as quitandas fez com que eu percebesse que a estrutura ritual
começa no privado (jogo de búzios, preparação da comida, preparação das roupas e espaços,
sacrifícios, banhos de purificação...) e depois torna-se pública, visto que à festa aberta
antecede uma série de rituais internos. A parte pública se faz em forma de Ajeun, no xirê,
oferendas, despachos, na divisão dos espaços em masculino ou feminino ou lugar reservado
para as integrantes ou pessoas em geral; tudo isso realizado com o rigor necessário para que
os rituais tivessem eficácia.
32
A questão do acesso aos espaços pelos integrantes constituiu desde o início um dos
pontos a ser estudado, a partir do viés mortuário e sob a ótica do poder, já que a restrição a
algumas informações ou conhecimentos colocam os indivíduos em situações diferentes. Por
estar intimamente relacionado à natureza religiosa, o segredo é elemento regulador e
fundamentador, isto é, permite ao indivíduo acessar os fundamentos da religião; tal fato é
conseguido por fases iniciáticas ou graduais, na medida em que os segredos revestem os
indivíduos de poder, ainda que ocupem a base da hierarquia. Estes fatos configuram a esfera
religiosa do estudo.
Para melhor compreender esses traços, centrei o foco, no primeiro momento, na
observação dos espaços rituais, do cotidiano das mulheres e homens dos referidos grupos,
bem como procurei observar de que maneira eram vivenciadas e engendradas as
masculinidades e feminilidades dentro e fora dos cultos. Essas observações levaram-me a
acrescentar o caráter performático na análise, pois percebi que essas eram vivenciadas de
forma diversa e possuíam uma forte representação. A cada cântico, cada dança, cada gesto,
cada vestimenta, a reação do público fazia emergir novos homens e novas mulheres, ora
revestidos de poder e autoridade, outras vezes revestidos de estratégias para manutenção de
posição. A opção pela análise do caráter performático das masculinidades e das
feminilidades dos rituais mortuários 12, aliada ao segredo, justificam o recorte empírico e
antropológico deste estudo.
A pesquisa de campo foi realizada em Cachoeira e em vários terreiros de Babá Egun,
em Salvador, Lauro de Freitas e Itaparica. Também observei o ritual de axêxê de um
Babalaxé, festas de candomblé em que os ancestrais são homenageados. A observação e
participação nesses últimos rituais foram fulcrais na definição do recorte e na escolha do
terreiro, visto que, a partir delas, pude fazer algumas diferenciações entre os rituais, isso
possibilitou melhor inserção no tema, já que os rituais, embora façam homenagens aos
antepassados, são coisas diferentes. A escolha do terreiro de Lesen-Egun Ilê Agboula,
localizado em Ponta de Areia, se deu por ele ser o primeiro terreiro no Brasil a invocar Babá
Egun. Hoje, encontra-se sem um dirigente oficial, já que o Alabá Domingos dos Santos
faleceu há 5 anos e ainda não foi definido o novo sacerdote. Apesar da pesquisa ser
desenvolvida na casa-matriz, não me furtei em visitar outros terreiros de Babá na Bahia,
sobretudo as casas que descendem do Agboula. Na oportunidade, entrevistei vários
12
A realização do doutorado sanduiche em Portugal, com a orientação do professor Miguel Vale de Almeida,
contribuiu sobremaneira para o amadurecimento, compreensão e delimitação da masculinidade e
feminilidade como elemento central deste trabalho.
33
dirigentes, entre os quais Ojé Laelcio, da casa Babá Obá Nilé, no Rio de Janeiro. Na Bahia,
visitei o terreiro Ilê Oiá Tuntum, antigo Barro Branco, cujo dirigente é Eduardo dos Santos,
o Ilê Omo Ilê Odeã, do dirigente Arisosvaldo, conhecido como Petu; o terreiro Ilê Alatê
Orun, dirigido por Barué, localizado hoje em Lauro de Freitas; O Ilê Lekiobé, dirigido por
Budijó, situado em Amoreiras. Em relação ao terreiro Axipá, do famoso Alapini Mestre
Didi, não obtive êxito; todas as tentativas esbarraram na burocracia; mantive apenas
conversas informais com os filhos.
Adotei o procedimento de primeiro agendar dia e hora para realizar as entrevistas;
entretanto, os Ojés mais velhos nunca estavam na hora combinada. Percebi que se tratava de
uma tática para que não fossem realizadas as entrevistas; então, sempre chegava pelo menos
meia hora antes da hora combinada, o que resultou numa estratégia eficaz. Já em relação às
mulheres, não tive grandes dificuldades, uma vez que a Iyakekerê fazia a intermediação. Em
alguns momentos, tanto na Boa Morte quanto no Babá Egun, não tive autorização para filmar,
fotografar ou gravar. Foram realizadas cerca de 28 entrevistas; destas, dezesseis com homens
e as demais com mulheres. Durante as entrevistas gravadas, alguns entrevistados, ao falar
sobre os rituais mais internos, solicitavam que desligasse o aparelho. Assim todas as vezes
que isso ocorria tentava memorizar o máximo das informações e ao término da entrevista,
reservadamente, anotava as partes não gravadas com algumas indicações, visto que eram fatos
reveladores que corroboravam para melhor compreensão dos rituais e o cotidiano de seus
adeptos. Soma-se a estes episódios o fato de um dos entrevistados solicitar que não fosse
gravada ou anotada a sua entrevista, o que foi atendido prontamente.
Já a escolha da cidade de Cachoeira deu-se por sediar a Irmandade da Boa Morte. Na
oportunidade, entrevistei quinze integrantes, mais dois homens que atuavam na Irmandade e
cinco mulheres da cidade de Cachoeira. Todavia, centrei a atenção na observação das
atividades das integrantes dentro e fora do ciclo da festa; isso me permitiu a percepção acerca
das relações que as mesmas mantêm com os homens e como as masculinidades e
feminilidades são transmitidas às gerações mais novas.
Utilizei os recursos de fotografia, filmagem e caderno de campo para registrar a parte
visual dos rituais que me foram permitidos. A utilização desses recursos permitiu que eu
apreendesse os momentos de preparação das festas públicas, gestos, palavras não ditas, o
cotidiano da população do Agboula, sobretudo nos momentos de brincadeiras em que as
crianças e adolescentes reproduziam, consciente e inconscientemente, gestos, atitudes e
comportamentos dos mais velhos, mostrando-me que as masculinidades e feminilidades são
construídas especialmente na referência com o outro. Os trabalhos de Thomas (1982, 1983),
34
Hertz (1960), Ziegler (1977), Leite (2008), Nascimento e Isidoro (1988), Santos (1984), Júlio
Braga (1992) nos ajudam na análise dos fatos observados e apreendidos pelos instrumentos
tecnológicos, na Irmandade da Boa Morte e no terreiro de Babá Agboula. Após contestar os
paradigmas aparentemente contraditórios dos grupos investigados, é interessante verificar de
que maneira essas contradições de masculinidades e feminilidades são produzidas e quais são
as performances utilizadas tanto por homens quanto por mulheres para subverterem a ordem
dominante.
Esta tese, com o intuito de atingir os objetivos propostos, está dividida em quatro
capítulos. No primeiro, intitulado União necessária: morte e vida, são abordadas as
concepções mortuárias por meio da produção de valores e significados das sociedades
africanas e ocidentais, destacando preferencialmente as assimetrias entre os dois pensamentos;
assim como a importância dos rituais mortuários para os adeptos da Irmandade da Boa Morte
e o Culto de Babá Egun, no que tange à imortalidade do ser humano. Analiso a relevância do
tema, tendo em vista os diferentes papéis desempenhados por homens e mulheres dentro dos
referidos rituais. Na oportunidade, apresento os grupos investigados, com suas convergências
e divergências.
Em seguida, no capítulo dois, nomeado como A construção das feminilidades e
masculinidades na Irmandade da Boa Morte, proponho-me a fazer a apresentação das
maneiras como as masculinidades e as feminilidades são construídas ou engendradas nas
crianças e “irmãs de bolsa” pela Irmandade da Boa Morte. Esta parte ainda analisa as formas
como as mulheres da Irmandade conseguem penetrar nos rituais mortuários, sendo estes,
supostamente, masculinos. Com o propósito de entender o jogo performático ou as estratégias
usadas pelas integrantes, parto da análise do gênero como categoria tradicional e genérica
para o entendimento desta como uma construção social. Saliento as contradições entre o
discurso e a prática, posto que os homens são negados pelas práticas discursivas, porém estão
presentes na estrutura do grupo; mostro assim que os espaços não são tão estanques quanto
parecem ser.
O terceiro capítulo, cujo título é Construção de masculinidades e feminilidades no
Culto de Babá Egun, por sua vez, concentra-se na discussão do sagrado como determinante de
normas e comportamentos, sobretudo naquilo que se refere aos dilemas vivenciados pelas
mulheres em relação à interdição sofrida nos espaços rituais. Questiona-se a postura
masculina e as performances utilizadas para fazer valer a masculinidade hegemônica, à
medida que mostro de que maneira são transmitidas as noções da feminilidade considerada
pela visão masculina como subalterna e o processo de aceitação da ordem vigente pela mulher
35
legitimado por quase todas as sociedades. Assim, masculinidade e feminilidade são entendidas
como categorias móveis, assimétricas e desiguais. Antes, porém, de adentrar à análise das fases
constitutivas do advento da morte e os rituais que conduzem o indivíduo a uma existência plena,
direi algumas palavras sobre os dois grupos que servem de terreno para este estudo.
A partir do século XIV, a Europa sofre com as grandes calamidades e mazelas que
assolavam quase todo o mundo. Com isso, houve uma crescente expansão da solidariedade
entre as pessoas, não apenas em torno dos vivos, mas também dos mortos, através das atitudes
que facilitariam a vida pós-morte. Nesse contexto, a Igreja Católica, especialmente, apregoava
um conjunto de atitudes e rituais, no sentido de atenuar os sofrimentos. Deste modo,
confissões, penitências e grandes jazigos eram edificados, além de compra de terreno no céu;
tudo para tornar o descanso pós-morte menos árduo. Por meio de homilias, documentos e
comportamentos suspeitos, a Igreja perpetuava o horror à morte, ao passo que engendrava nos
fiéis o medo de Deus e a repulsa do inferno, ou do limbo até o julgamento final.
As pinturas no mundo ocidental retratam os doentes nos momentos derradeiros, a
iconografia do inferno, a figura de Lúcifer e o próprio Satanás. Aliam-se a esses fatos a caça
às bruxas e aos judeus, a guerra dos cem anos, que contribuíram decisivamente para a
disseminação do medo e aversão à morte no homem ocidental, levando-o a se tornar refém
dos dogmas do catolicismo e, mais tarde, do protestantismo que, embora divergente, utilizava
o horror imaginário para conseguir a adesão dos fiéis.
Em contrapartida, a Igreja oferecia-lhes a conquista do reino dos céus, isto é, a
salvação da alma. Esse medo apregoado pela Igreja adiciona-se a um medo simbólico, que
engendra na cosmovisão ocidental a ideia de insegurança, visto que, entre os vivos, a morte
possui algo de ilegítimo, vive à margem, portanto é inoportuna. Consequentemente, o homem
é transformado em um indivíduo medroso. Porém, esse pânico não atingiu toda a humanidade,
uma vez que alguns povos orientam suas vidas através de outros referenciais.
O medo faz parte da constituição de todo ser humano; até mesmo quando se quer
negá-lo, ainda assim ele está presente de alguma forma. Não obstante as inúmeras angústias, o
medo da morte é aquele que mais aflige, porquanto todos os seres humanos estão a ele
submetidos (DELUMEAU, 2009). Esse medo se diferencia dos demais, pois, em alguns
38
casos, pode-se encontrar uma forma para evitá-lo, a exemplo do desemprego, das epidemias,
das grandes tragédias mundiais, das doenças e de tantos outros medos. Mas, infelizmente, o
medo da morte é desconhecido, portanto não existe qualquer meio para contê-lo. Por isso, é
mais fácil negar a morte e torná-la distante das conversas e discussões cotidianas. Essas
atitudes fazem com que o homem não reflita sobre o tema e o faz pensar que é um imortal,
como mostra a afirmação sobre tal tema:
Por outro lado, como já referido anteriormente, a maioria das sociedades tem uma
visão diferenciada da morte; no Brasil, encontramos especialmente as pessoas ligadas ao
candomblé, aqui representados pela Irmandade da Boa Morte e o culto de Babá Egun, os
quais constituem objetos de nosso estudo.
A Boa Morte é uma Irmandade feminina, cujo interdito de participação recai sobre os
homens. Sua sede atualmente encontra-se na cidade de Cachoeira, de onde presta homenagem
às integrantes falecidas, utilizando-se do catolicismo e do candomblé.
Quanto ao Culto de Babá Egun, acredita-se que foi na Ilha de Itaparica, em meados do
século XVIII, que o Culto à Babá Egun começou a se desenvolver e até hoje envolve quase
todos os moradores da localidade de Ponta de Areia, bem como as pessoas que praticam as
religiões de matriz13 africana. Esse culto é organizado e realizado por algumas comunidades,
dentre outras localidades, na Ilha de Itaparica, sobretudo no terreiro de Lesen-Egun Babá
Agboula, casa fundadora dessa expressão religiosa.
Esse culto tem como dirigentes os homens, titulados como Ojés, responsáveis pela
condução dos cultos trazidos na memória dos africanos e, no Brasil, ressignificados por
seus descendentes que foram obrigados a aqui desembarcar. No culto de Babá Egun, a
interdição recai sobre as mulheres, cuja participação é bastante limitada, devendo,
inicialmente, cuidar somente das tarefas relativas aos orixás. Além da supremacia
masculina, o culto se sustenta por tratar das divindades ancestrais mortuárias.
13
Quando utilizamos nesta tese o construto matriz africana, o fazemos pensando em termos de continente;
todavia reconhecemos as diferentes bases religiosas que originaram as também diversas manifestações
religiosas africanas no Brasil.
39
Falar de morte é falar daquilo que normalmente não se fala, já que este é um tema
que traz sofrimento em quase todas as sociedades, que, em sua maioria, utilizam como mote
orientador a visão de mundo ocidental. Contudo, há dois grupos que vêm ao longo de alguns
séculos perpetuando valores africanos ressignificados na sociedade brasileira, tendo suas
raízes plantadas inicialmente na Bahia. Sua visão tanatológica é revelada por um misto de
vida que se confunde com a morte, distanciando-se, em certa medida, da visão mais ampla
das sociedades em que estão inseridas. Por vezes, a morte é tão necessária quanto a vida.
Conservam, desta forma, uma cosmogonia que se aproxima da cosmovisão africana.
Falamos em certa medida, por entender que essa visão está impregnada de múltiplos e
diferentes elementos culturais 14, cuja base é igualmente constituída. Desta forma, torna-se
necessário mergulhar um pouco na cosmovisão africana para iluminar as discussões afro-
brasileiras posteriores.
A maioria das culturas acredita na existência de um mundo paralelo ao mundo dos
vivos, para onde o indivíduo vai após a morte; consideram, portanto, que haja um lado físico e
outro espiritual. Contudo, em outras culturas, além desses dois mundos, acrescentam que o
homem é composto por outros elementos, como é o caso de algumas comunidades angolanas
que creem que a composição do homem seja feita pelo corpo, alma e sombra 15, ou entre os
Olo Ngaju do Sudeste do Bornéu, cuja composição é feita por duas principais partes: medula
da alma, parte essencial para a individualização da pessoa, e alma corpórea, que se constitui
das almas dos ossos, cabelos, unhas, etc. 16
Não obstante algumas particularidades, a maioria das sociedades negro-africanas
acredita na morte como uma mudança de estágio ou uma passagem para outro plano. Thomas
(1983) divide esses estágios em morte física e morte biológica; a primeira se refere à
existência visível, a qual alia-se a elementos individuais e coletivos, signos e significação;
14
Neste trabalho tomaremos emprestadas as concepções de cultura defendidas por Clifford Geertz por entender
a cultura como uma teia de signos e significados tecida pelo homem, formada; nela o conjunto de símbolos e
significados interage com o sistema simbólico de cada indivíduo. Para Geertz, a interação não deve ser vista
como um padrão concreto de comportamento (costumes, usos e tradições), e sim como um conjunto de
mecanismos de um processo, tais como planos, receitas, regras e instruções, no qual o homem é agente
produtor cultural.
15
Ver Milheiros (1960).
16
Mais detalhes, ver Hertz (1960).
40
Assim, todo sistema cultural que repousa sobre o capital humano não tem
outra saída, para preservar os homens, do que socializá-los, assumindo a
morte no plano do grupo para negá-la melhor no nível do rito. Ao
contrário, a sociedade ocidental de hoje, que se preocupa, sobretudo, com
acumulação de bens, acelera o processo de individualização e deixa os
homens entregues às suas fantasias mortuárias e mortifóbicas. Por isso
mesmo enfrenta mais dolorosamente a morte do próximo e a sua própria:
por não poder escapar dela, a rechaça; e por não poder evitá-la, se converte
em seu instrumento. Por um curios e, sem dúvida, muito compreensível
paradoxo, uma sociedade assim não pode senão depreciar a vida (a
despeito de que proclame o contrário) e provocar por vez a sua própria
morte. (THOMAS, 1983, p. 50)17.
É a própria dicotomia entre a morte física e biológica, entre indivíduo e espécie que
traduz a própria existência humana e os rituais colaboram para que os indivíduos possam lidar
melhor com tamanha complexidade.
Para os nagôs, a existência transcorre em dois planos: o aiyê, o mundo, isto é, o
universo físico concreto e a vida de todos os seres que o habitam; e o orun, o além, espaço
sobrenatural e abstrato, imenso e infinito, onde habitam seres ou entidades sobrenaturais. É,
por assim dizer, uma dupla existência, não pensada apenas em termos de humanidade, mas
sim de tudo que existe no aiyê; de forma que cada árvore, cada animal, cada pedra, cidade etc.
possui um duplo espiritual no orun (SANTOS, 1984).
Para Leite (2008, p. 29), a representação do homem dentro do complexo nagô se faz
da seguinte forma:
17
Tradução livre de: “Así, todo sistema cultural que reposa sobre oel capital humano no tiene otra salida, para
preservar a los hombres, socializarlos, asumiendo la muerte en el plano del grupo para negarla mejor a
nivel del rito. Por el contrario, a sociedad occidental de hoy que se preocupa por sobre todo de la
acumulación de bienes, acelera el proceso de individualización, y abandona al hombre a sus fantasías
mortíferas y mortífobas. Por eso mismo enfrentamás dolorosamente la muerte, la del prójimo y la propria: al
no poder escapar de ella, la rechaza; y no poder evitarla, se convierte en su instrumento. Por una curiosa y
sin embargo muy comprensible paradoja, una sociedad así no puedesino despreciar ala vez su propia
muerte.” (THOMAS, 1983, p. 50).
41
Bomènon, ser espiritual, foi confiada por Mawu (Deus) a tarefa de enviar
homens à terra. Estes últimos, enquanto esperam, preexistem em um lugar
pré-natal invisível, o Bomè. Periodicamente Bomènon “colocava o homem,
em um tamanho pequeno, no ventre de uma mulher”, que se tornará a mãe;
Ele nascerá ali e depois viverá o tempo necessário “para amadurecer”.
Quando Mawu considerar oportuno, um mensageiro virá procurá-lo para que
retorne ao Bomè inicial. Então ele se purificará, revestirá a sua mais bela
vestimenta, dirá adeus aos seus, e, com o sorriso nos lábios, deixará sua
aldeia “encarregado de levar recados para aqueles que ele encontrar” 18
(grifo do autor)
18
Tradução livre de: “Bomènon, être spirituel, s'est vu confier par Mawu (Dieu) la tâche d'envoyer lês hommes
sur la terre. Ces derniers, en attendant, préexistent dans un lieu prénatal invisible, le Bomè. Périodiquement,
Bomènon „dépose l'homme en réduction dans le ventre d'une femme‟ qui en deviendra la mère; il naîtra ici-
bas puis vivra le temps nécessaire „pour qu'il mûrisse‟. Quand Mawu le jugera opportun, un messager
viendra le chercher pour qu'il retouner dans le Bomè initial. Alors, il se purifiera, revêtira son plus beau
pagne, dira adieu aux siens et, le sourire aux lèvres, quittera son village „chargé de commissions‟ pour ceux
qu'il va rejoindre.” (THOMAS, 1982, p. 22).
42
Para mim, a morte para quem vai é uma alegria. Para mim, eu acho que é
uma alegria, ela tinha mesmo que existir porque ela faz parte do ser
humano, morre para renovar. Tudo é de acordo com aquele lá de cima,
quem determina tudo é Olorum, quem determina tudo aqui embaixo é
Oxalá, porque quem decide tudo aqui embaixo é Oxalá, quem decide lá em
cima é Olorun; aí depois eles conversam com Xangô que é o dono da
terra. É Oxalá quem manda em tudo. (Gomes, Ojé. Depoimento colhido
em janeiro de 2008).
Note que o entrevistado afirma que a morte é uma alegria para quem vai; faz
referência a dois planos e também acredita, como os Mina, que é preciso morrer para renovar.
Há, portanto, analogia, apresentando a morte como sendo algo bom e necessário.
Como vimos, a cosmovisão negro-africana é fortemente marcada pela subjetividade;
neste sistema, a palavra exprime para além da sua própria significação: ela revela,
escondendo; esconde, revelando. É, por conseguinte, por meio das narrativas míticas e/ou das
palavras que o homem africano procura explicar o sistema de reprodução cultural, isto é, as
regras, os hábitus e o imaginário, ao passo que garante a manutenção dos seus padrões
culturais do grupo. Em um contexto, a palavra ultrapassa seu conteúdo semântico racional
para ser instrumento condutor de àse, isto é, um elemento de poder de realização (SANTOS,
1984, p. 46). Desta forma, os mitos constituem-se em importantes aliados na configuração de
suas mentalidades.
Na ideologia mortuária africana, o poder está na gerontocracia e resulta em círculo
de negociação não relacionado à concorrência, mas sim à igualdade, já que os
antepassados representam a continuidade de sua linhagem; são guardiões de suas culturas,
porque os segredos lhes pertencem, posto que já cumpriram todas as etapas e assim podem
se tornar protetores de seu grupo, ao contrário da morte de um jovem que não fechou o
ciclo de sua existência terrena. Logo, essa morte não reforça a ideologia da competição,
ao contrário, só pode reforçar a hierarquia da idade, encontrada na representação da boa
morte e na pompa do enterro do velho (THOMAS, 1982, p. 12). Neste sistema, a oralidade
e a memória são elementos importantes na transmissão e conservação de bens culturais ,
por isso o acesso ao conhecimento se reveste de mistério e segredo, daí advém a
importância da gerontocracia, em que suas leis baseiam-se no conhecimento dos
ancestrais, com os quais se mantém uma relação especial, tal como mostra uma
reportagem da Folha de São Paulo 19.
19
Reportagem editada pela Folha de São Paulo, no caderno The New York Times, de 13 de setembro de 2010.
A matéria se intitula: Mortos se juntam aos vivos em celebração. O conteúdo da matéria descreve um ritual
43
realizado em Ambohimirary, Madagascar, em que a população dança com os restos mortais de parentes
exumados para garantir a tradição malgaxe de honrar os antepassados mortos.
44
própria respiração, some com a morte simbólica do corpo material forjado por Oxalá,
sendo reincorporado à massa coletiva que contém o princípio genérico e inesgotável da
vida, que novamente volta para a massa cósmica. Todos os segredos de vida estão
contidos nas águas (MORIN, 1970); morte e vida são elementos complementares. Acerca
deste tema, Leite (2008, p. 39) nos traz uma reflexão:
Mais adiante, o autor nos revela o destino do corpo físico após a morte, no qual o emi
é imprescindível na configuração do homem.
Nós não temos condições de indicar com a segurança o que ocorre com
esse princípio vital após a morte do corpo mas, segundo parece. Pode
tornar-se então elemento constitutivo de um novo nome ou reintegrar-se à
massa originária. Tal concepção é válida sobretudo para os Ioruba,
segundo os quais Emi deixa a sepultura nove dias após o enterro “para
tornar-se sombra de um recém-nascido” (VERGER, 1973 apud LEITE,
2008, p. 63, grifo do autor).
Embora a citação acabe por enunciar o destino do emi, ela também remete a uma
noção transmitida por Verger – a reencarnação do emi em uma outra pessoa –, o que
descaracteriza a ideia de massa cósmica, cujo princípio é o da circularidade. Essa ideia de
reencarnação parece corroborar com a cosmogonia do espiritismo; sobretudo, essa concepção
é contrária à visão africana, pois dos elementos (Emi, Ara, Ojiji e Ipori), apenas esse último
retorna ao aiyê quantas vezes forem necessárias.
Entretanto é bom ressalvar que o Ipori não retorna completamente, já que dentro dele
possui um elemento que representa a identidade pessoal e o destino do homem, este sim
desaparece com a morte, uma vez o destino é intransferível; cada um possui o seu e nunca é
transferido a outra pessoa. O orixá retorna ao orixá geral, isto é, ao orixá dono da cabeça,
parte infinita. Por fim, o egun, que é a memória do vivo, agora é o elemento que representa a
pessoa que viveu no aiyê e deve ir para o orun e de lá pode retornar sempre que invocado,
caso os procedimentos sejam feitos de acordo com os requisitos necessários.
As partes acima mencionadas são integradas a partir do momento em que o indivíduo
realiza a sua feitura de santo; porém, com a morte, esses atos são novamente refeitos no
sentido de liberar essas unidades espirituais, restaurando o equilíbrio quebrado com o advento
46
20
Para uma análise mais aprofundada sobre vários aspectos da Irmandade da Boa Morte, ver, dentre outros,
Nascimento (1988) e Conceição (2004).
21
Este tema foi amplamente discutido por Consorte (2000) em um texto intitulado Sincretismo e africanidade
em terreiros jeje nagô de Salvador. Aqui não irei me deter no tema, pois a reflexão maior são os elementos
convergentes e divergentes em torno da Boa Morte e Babá Egun.
47
Quanto à entrada na Boa Morte, esta se dá por meio de um convite feito por uma das
irmãs e julgado pelo conselho. Quando aprovado, a pretendente passa a ser denominada irmã de
bolsa. Como no candomblé, dentre outras coisas, a irmã de bolsa passa por ritos de iniciação, os
quais não nos foram revelados. Usa a roupa branca e não participa de algumas reuniões
reservadas às irmãs mais antigas. Nas procissões, coloca-se sempre nos últimos lugares, não usa
roupa de gala, o que facilita identificá-la, uma vez que, no ápice da festa, a noviça conserva as
roupas brancas, usa joias de menor expressão. Nota-se, por meio de entrevistas, que a entrada de
novas integrantes requer uma preparação que nem sempre é revelada a quem se deseja convidar;
elas são observadas na sua vida cotidiana e depois lhe é dirigido o convite. Tendo consciência
de que a organização precisa ser renovada, admitem novas integrantes (vide figuras 1, 2 e 3).
Hoje, a organização da festa ocorre em função da demanda dos turistas.
Acho que deveria ter uma festa lá perto do cais para os turistas, porque o
turista vem depois da procissão não tem mais nada para ver; aí, tendo a
festa por lá, continua se distraindo até ir embora. Eu estou de acordo que
faça a festa deles de noite, mas que não venha atrapalhar o setor das missas
e da procissão; Cachoeira é grande, tem espaço para todo mundo. Também
49
sou de acordo que entrem outras mulheres porque entrei em 74 e não entrou
mais ninguém, já morreram mais de 30 e se entrou 10 foi muito. Não está
renovando; todo ano botava irmã de bolsa assim para ajudar, para ficar
vendo o procedimento dela, daí olhava se podia fazer parte da irmandade; a
pessoa ia aprendendo as coisas para ser irmã. As que estão, estão ficando
velhas, não está aguentando nem fazer a festa, carregar o andor...
(Depoimento recolhido com uma integrante em 2003).
22
Para obter maiores detalhes sobre as indumentárias usadas pelas integrantes e sua relação direta com os
orixás, a morte e a vida, ver Conceição (2004).
50
matriz africana. Esta ceia se inicia pelos cantos entoados e com as pipocas que são lançadas
em todos os presentes (vide figuras 4 e 5).
23
Do ponto de vista oficial, a Boa Morte é uma devoção, uma vez que não possui estatuto ou compromisso que
a ligue à Igreja Católica.
52
E.R. Mce.
A data acima não deixa dúvida em relação à presença da Boa Morte em Salvador no
ano de 1880; porém, alguns documentos mostram a presença da Irmandade da Boa Morte em
Cachoeira em 1820, o que nos leva a acreditar que a organização foi ampliada ou parte dela se
mudou para Cachoeira. Portanto, a hipótese de que toda a Irmandade tenha se transferido para
24
Arquivo Público de Salvador, Doc. 5249, Seções colonial, ano 1847 a 1889. Como as mulheres não podiam
se dirigir às autoridades, toda intermediação era feita através dos homens da Irmandade de Nosso Senhor
Bom Jesus dos Martírios.
53
Tem-se notícia de que esses preparativos se iniciam em maio, quando Nossa Senhora
sai da casa da integrante escolhida como Procuradora anual da festa para a pequena capela
que está no centro de Cachoeira. A depender da distância, o percurso é feito por carro, mas é
semelhante a uma procissão. Este é um momento de encontro de todas as integrantes; porém,
a população de Cachoeira mantém-se alheia a este evento.
Como já nos referimos, o primeiro dia da festa é marcado por uma procissão, na qual a
figura de Maria está deitada, simbolizando uma pessoa morta. A imagem percorre as
principais ruas de Cachoeira e retorna para a Capela da própria Irmandade onde é celebrada
uma missa em memória das integrantes falecidas. Ao final da celebração, as irmãs se dirigem
para a parte superior do casario onde é servida a “ceia branca”, visto que este dia é
consagrado ao orixá Oxalá. Por isso, os alimentos não possuem azeite de dendê, tampouco
carne vermelha. A ceia é composta basicamente de pão, vinho tinto e peixe. De igual modo,
as indumentárias das integrantes são compostas por peças brancas, aludindo o respeito por
Oxalá, o maior de todos os orixás do ebora funfun. As pipocas, doburu ou ainda buruburu são
lançadas sobre as pessoas presentes e em todos os ambientes circunscritos à ceia (vide figuras
6 e 7). Sabe-se que as pipocas, no candomblé, são utilizadas nas limpezas e tem uma relação
direta com o orixá Omolu ou Obaluaiyê, divindade relacionada à peste e às doenças; liga-se
diretamente à morte, por ser este orixá um dos responsáveis por varrer a doença do mundo,
mas também é ele que conduz o indivíduo ao orun.
55
No segundo dia, primeiro sai a procissão pelas ruas da cidade e depois é celebrada
mais uma missa. Logo em seguida, o local é fechado, somente permitido o acesso das
integrantes, pois a vigília acontece a portas fechadas. Esse dia é marcado por muitos
comentários, já que na cidade se afirma que nesse dia as integrantes realizam ritos secretos,
como sacrifícios de animais e outros rituais próprios do candomblé; porém, nada se pode
afirmar além das cerimônias que são públicas. Vale salientar que as integrantes, nesse dia,
usam saia plissada preta, camizú branco e um véu denominado bioco, que lembra as mulheres
árabes, além de um pano-da-costa vermelho e preto, cujo lado vermelho prevalece.
No terceiro e último dia da festa é comemorado o dia da assunção de Maria; dia
festivo, pois é celebrado com uma missa muito concorrida, procissão, samba e feijoada
servida a todo o público. Durante o dia inteiro, muitos turistas, estudantes e imprensa se
aglomeram nas ruas estreitas de Cachoeira.
Após a missa, as integrantes caem na dança ao som de pontos de candomblé e música
do cancioneiro popular; a partir de então, as integrantes e suas famílias entram em outra
dimensão, já que essa música marca a entrada da rotina. Geertz salienta que o indivíduo
caminha entre aquilo vivido cotidianamente e o fazer religioso; contudo, é possível que essas
duas dimensões se entrecruzem.
O autor nos faz refletir sobre as modificações sofridas pelos indivíduos após um
processo ritual que tanto serve para instaurar tempos diferentes quanto para possibilitar
formas antagônicas de conceber o mundo; graças aos rituais, as integrantes se fizeram
penetrar na dinâmica divinizada, e é por meio da dança, das músicas, que elas voltam à
suposta rotina, modificadas pelo impacto do encontro de dimensões profanas e sagradas.
momentos que poderiam ser considerados como performáticos, pois no primeiro dia da festa a
imagem da Virgem Maria aparece morta. É em torno da imagem que as mulheres, o corpo
sacerdotal e o público que dirigem seus olhares, missão, procissão, defumadores, fotografias,
filmagens, jornalistas se atropelam para observar do melhor ângulo. Maria é conduzida pelas
principais ruas da cidade, inicialmente pelas integrantes trajadas totalmente de roupas brancas
e posteriormente por homens de sua confiança. O corpo da imagem é coberto por vestes
brancas confeccionadas com tecido de boa qualidade; sua pele é muito branca, cabelos
encaracolados e sob a cabeça uma almofada feita de cetim da mesma cor. A charola é
enfeitada por flores brancas, ladeada por velas. Ao retornar à capela, a imagem é recebida
pelos expectadores com muitos aplausos, o que se segue a uma missa realizada em
homenagem às integrantes falecidas; geralmente a homilia aborda tema relacionado à morte, à
ressurreição e ao perdão, porém as integrantes parecem não atentar para a mensagem do
sacerdote; além disso, podem-se observar as integrantes se prostando diante da imagem como
se a mesma fosse uma pessoa da sua convivência.
Após a missa é servida a ceia branca e novamente observamos que o ritual se
desenrola com um certo planejamento. Nele, as integrantes, ao entrarem no ambiente,
lançam pipocas sobre todos os presentes e em todas as partes da casa. A mesa serve de
cenário para os alimentos usados na parte do ritual. Jornalistas, estudantes, fotógrafos
correm para registrar aquele momento; nota-se que irmãs posam para a foto com sorriso e
dão entrevistas, vê-se que realmente elas se comportam como celebridade. No dia seguinte,
muitas delas procuram o jornal para ver suas fotos e o que elas falaram na entrevista; pouco
se referem à festa em si.
No segundo dia, Maria sai às principais ruas. Agora, as integrantes vestem-se com saia
preta e blusa branca, na cabeça um véu, denominado bioco. Quanto a Maria, ela encontra-se
vestida nas cores branca com detalhes lilás e coroa na rica cabeleira. Nesse dia, após o
percurso, as integrantes voltam para a Capela d‟Ajuda, onde a imagem permanece até o dia
seguinte. Os rituais deste dia são fechados, tendo acesso as irmãs com mais tempo de
Irmandade. Ao contrário do primeiro dia, os olhos da imagem da Virgem Maria estão
fechados, porém ostenta uma rica coroa cravejada por pedras.
O terceiro e último é o grande dia, pois é comemorada a assunção de Maria. As
roupas usadas pelas integrantes são nas cores vermelha, branca e preta; as joias são
douradas e prata, além dos fios de conta dos orixás que elas misturam; as flores levadas
pelas irmãs dão um brilho especial. Quanto à imagem de Maria, esta se mostra de pé, o
branco imaculado dá lugar à cor lilás, com uma rica capa, além da coroa com muitas
58
pedras que lembram brilhantes. Os cabelos escuros contrastam com a pele branca da
imagem. Nota-se grande reverência das irmãs pela imagem em si. No conjunto, Maria
representa o povo branco que é cultado pelas mulheres negras. A procissão, saindo da
igreja-matriz, percorre as principais ruas de Cachoeira (vide figuras 8, 9 e 10). Neste dia,
o trajeto é acompanhado por filarmônica, muitos turistas nacionais e estrangeiros, alunos
de universidades retornam para a capela da Irmandade, onde tem início a segunda parte da
festa. Essa parte é marcada pela dança. As irmãs elevam várias vezes a imagem de Nossa
Senhora, como se ela estivesse dançando, e as próprias integrantes dançam pontos de
candomblé e também do cancioneiro popular. Há queima de fogos e também é servida
uma grande feijoada para todos os presentes.
Antes, porém, de adentrar nos dados históricos acerca do grupo, torna-se imperativa a
definição do egun, dentro do complexo nagô. Segundo o complexo nagô, tanto a vida quanto
a morte fazem parte de um mesmo plano, porém em níveis diferentes; isto é, a vida
propriamente dita representa o aiyê, e a morte, o orun, sendo diferenciados os orixás dos
eguns. Ambos são manifestações da vida humana.
61
Aqui fica claro que eguns e orixás pertencem a universos diferenciados. De igual modo,
as suas funções são também distintas. Esta definição parece suficiente para resolver a questão
desde muito antes colocada, a saber: os orixás seriam ancestrais divinizados, chefes de
linhagens ou clãs, que fizeram grandes atos e por isso ultrapassaram os limites de seus
familiares, dinastia e passaram a ser cultuados pelos seus parentes consanguíneos, extensos e
também por outros povos de outras localidades. Ora, se os orixás, entidades divinas, estão
ligados à origem da criação e sua força advém do próprio criador Olorun, logo, estes últimos
são deuses. Enquanto os eguns, entidades originárias do humano, cujo surgimento se fez através
de uma mulher 25, só por meios de rituais tornam-se divinizados. Parece claro que este egun no
orun é o duplo do humano no aiyê; diferentemente do orixá, que somente possui um
correspondente na dimensão do aiyê, enquanto genitor do filho, que o recebe como pai. Este
filho é um pedaço ou individualização do próprio orixá. Assim como nossos pais são nossos
criadores e ancestrais materializados no aiyê, os orixás são nossos criadores simbólicos e
espirituais, nossos ancestrais divinos (SANTOS, 1984, p. 103). A própria palavra egun ou
Egungun significa, em iyorubá, esqueleto, como define Bascon (1969); mas, para Ziegler (1977,
p. 41), seria uma corruptela do nome da família de Ameiyegun – Rei de Ifé – que lutou e baniu
a morte de sua cidade. Este esclarecimento corrobora com a ideia da ligação familiar, porque o
egun é cultuado por seus familiares enquanto o orixá transcende esta dimensão local e restrita.
Outra diferença a ser ressaltada entre orixá e egun está no nível de culto. O culto a um
orixá patriarca simbólico e divino extrapola os limites familiares, a linhagem, e é cultuado de
forma universal, enquanto o egun patriarca e genitor humano tem seu culto restrito a um
grupo familiar ou a uma linhagem, tal como mostra o fragmento de uma entrevista realizada
no Terreiro Agboula:
As palavras acima fortalecem a crença de que o egun está relacionado a uma estrutura
limitada, podendo atravessar fronteiras territoriais, mas ligado à estrutura familiar ou
linhagem social limitada; já o orixá se faz presente no humano através da interiorização de sua
natureza e pertença em nível de cosmo.
Santos (1984) chama a atenção para a separação territorial que deve ser mantida,
mesmo o egun de uma Iyalorixá ou Babalorixá deve ser cultuado em lugar distante do
terreiro do orixá. Esse lugar é conhecido como Ilé-ibó-akú ou simplemente Ibó. Desde já,
faz-se uma diferenciação entre Ilé-igbalé ou casa de culto de egun ou lesen-egun. Nestes
espaços são cultuados os eguns de todos os iniciados no culto de Babá, enquanto o ibó
limita-se ao culto dos eguns pertencentes ao terreiro. De diferentes modos, são
dispensados os cuidados aos assentamentos e os rituais mortuários realizados nos dois
cultos são liturgias, fundamentos e sacerdócios bem distintos e assim exigem
conhecimentos específicos para lidar com esses ancestrais. Voltaremos ao tema dos rituais
mortuários ao falar das fases do axexê.
Tal qual os orixás, os eguns também estão classificados em dois polos: os da direita
sãos os ancestrais masculinos, os Babá Egun; já os da esquerda são os ancestrais femininos, as
Iyá-ágbá ou Iyá-Mi, a representação coletiva do poder feminino. A união dos ancestrais da
direita dá origem à Sociedade Egungun e a da esquerda forma a Sociedade Gèlèdé. Há ainda
uma terceira sociedade chamada Egbé E‟lééko, associada ao simbolismo coletivo do poder
ancestral feminino. Hertz (1990), ao discutir os conceitos de direita e esquerda, associa o lado
direito do cérebro ao masculino e o lado esquerdo ao feminino.
A associação à esquerda, como sendo pertencente ao mundo das mulheres, não está
restrita ao fato biológico, mas sim amparada pelo tecido social. As Iyá-Mi (minha mãe) ou
Iyá-Mi Òsòròngà são representações da totalidade (a massa, o grande ventre ou a cabaça),
mas acima de tudo essa é uma representação coletiva do poder feminino, jamais manifestado
individualmente; em contraposição ao poder masculino, que tanto pode ser representado
individualmente (opá, paus, varas, ramos) ou coletivamente (Ópá-kòko).
No Brasil, mais especificamente em Itaparica, os fatos corroboram com a narrativa
mítica, em contraposição ao que ocorre no Tambor do Choro, no Maranhão, no qual a
figura central é o egun feminino, da mãe falecida do Babalorixá. Este fato é uma brecha e
aponta para uma reelaboração desse traço cultural aqui reelaborado. Em África, em
especial em Ifé, todo morto, todo antepassado torna -se egun, porém sua participação em
cerimônias públicas ou em rituais de axexê não está relacionada ao corte de gênero
(ZIEGLER, 1977). A explicação aponta indícios de que os legados étnicos dos primeiros
63
A aparição dos eguns é muito reveladora, mas ela também carrega muitos tabus, pois
eles são temidos por todos, principalmente pelas crianças, no que tange à sua materialização.
26
Os termos “baixar, cair ou descer” no orixá ou santo podem ser explicados pelo fato dessas divindades se
encontrarem no orun.
64
Geralmente, o egun apresenta-se em uma forma humana coberta totalmente por tiras coloridas
de pano que saem da parte superior da cabeça. Esse conjunto de tiras forma Opá, como é
chamada a roupa de egun, de maneira que não permite identificar uma suposta pessoa ou algo
que possa preencher o interior da roupa.
As dimensões espaciais da festa são compostas por objetos rituais, decoração, dança,
iluminação, as cores, o público e os próprios adeptos concorrem para redefinição e
conformação da esfera física em espaço ritual para o que se pretende apresentar ao longo da
cerimônia. É nessa dinâmica que as coisas ditas como profanas ganham status sagrados,
compondo assim o simbolismo da festa. É o espaço ritual que funda um outro mundo, que faz
o indivíduo emergir e experimentar o contato com outras dimensões diferentes das do
cotidiano.
As divisões aqui apresentadas referem-se basicamente ao espaço ritual do terreiro de
Babá Egun Agboula, na ilha de Itaparica; o espaço reservado às festas públicas e alguns
atendimentos a pessoas que vão em busca de tratamento do espírito. Em dias de festa, logo
que o público entra, a porta principal é fechada e somente é aberta no intervalo e no final da
cerimônia, quando o sol vem raiando. Os eguns entram e saem do salão através de uma porta
secundária que faz a mediação entre o dois mundos. Um pouco afastado fica o Ilê awo (casa
do segredo) ou Igbo igbalé (bosque da floresta), local onde são invocados os eguns. Este
espaço é formado por uma antessala e somente os Ojés e Lèsànyin ou Ojê agbá podem entrar.
Já o balé é o local onde estão guardados idiegungun, os assentamentos, isto é, os
elementos litúrgicos que possibilitam a individualização e identificação do egun ali cultuado.
O balé é limitado pelo ojubô-babá – buraco feito diretamente na terra e rodeado por vários
ixãs de pé. É também por este buraco que são oferecidos as comidas votivas e o sacrifício de
animais para o egun. O termo sacrifício é tomado aqui pelas mesmas definições feitas por
Mauss e Hubert (1969, p. 147), quando afirma que a consagração sacrificial se irradia para
além da coisa consagrada; alcança, dentre outras, a pessoa moral que faz os gestos na
cerimônia, o sacrifício entendido como um dom.
65
A metáfora usada pelo autor vai ao encontro do que encontramos nas representações
religiosas. Há um ar de mistérios em quase todas as religiões, visto que estas ligam-se ao
universo sagrado pela crença dos seus fiéis. Os signos ganham todo o sentido quando são
legitimados pelas crenças individuais e coletivas.
27
O sociólogo austríaco J. Huizinga, na obra intitulada Homo ludens: o jogo como elemento da cultura, analisa
o processo, sob várias perspectivas, da palavra jogo, bem como os contextos nos quais ele se insere e se
desenvolve.
66
instrumentos litúrgicos. Quanto ao status de poder, esses eguns não receberam os rituais
necessários, por isso estão em processo de socialização e crescimento nesta hierarquia, fatos
que justificam suas traquinagens e comportamentos imprevisíveis, causando terror às pessoas,
visto que eles investem contra as mesmas. Um integrante mostra o que é necessário para se
tornar um egun.
Sabe o que é egun doutrinado? É o egun já preparado. Esse Egun que vêm
assombrando as pessoas são Egun que são aparaká, que ainda não têm luz
suficiente, não tem roupa; alguém ainda não se interessou, porque o
aparaka, às vezes, ele entra no barracão; o pessoal deixa ele lá sentado;
alguém pede uma coisa, ele alcança; aí a pessoa volta, dá roupa a ele; aí ele
já vai ficar com outro status, já vai começar a fazer caridade, viu? para se
tornar um Egun, quando a pessoa morre, a depender do que ele fez em vida.
Nós fazemos os preparos; aí, quando acaba de fazer a obrigação três anos,
no máximo três anos, aí ele já vem como aparaká; aí ele fica ali até fazer
sete anos; ele toma a roupa; aí já vem Egun formado; aí passa a ser
cultuado pela comunidade. (Clésio, Ojé do Agboulá. Entrevista concedida
em janeiro de 2009).
Além dos eguns divinizados, dos apaaraká, existem as manduas. É uma outra
qualidade de egun, porém feminino; estas possuem uma semelhança parecida com a dos
apaaraká; sua roupa é composta por uma túnica que cobre-lhe da cabeça aos pés; também não
possuem voz ou qualquer instrumento litúrgico e jamais entram no lesen; de igual modo,
jamais chegarão ao status de Babá Egun, visto que os ancestrais femininos não são cultuados
individualmente, mas de forma coletiva (Iyá-Mi) em uma sociedade denominada Gèlèdé.
Algumas integrantes do Babá Egun afirmam que, apesar de não serem eguns divinizados, já
alcançaram êxito quando pediram sua proteção, especialmente quando são manduas de suas
ascendentes, como bisavó ou avó; mas esse tipo de comportamento é reprovado pela maioria
dos moradores e principalmente pelos Ojés28. Voltaremos a esse tema no capítulo 3.
Para se tornar um egun divinizado é necessário aguardar um período de sete anos,
receber a roupa com todas as partes acima citadas, receber sacrifício de animais de quatro
patas e também de penas; por fim, ter a fala aberta, isto é, ter a capacidade de se comunicar
com os adeptos. Além das exigências supracitadas, o egun passa por uma série de rituais
secretos.29 Desta forma, o egun passará a ser cultuado, prestando amparo à comunidade,
28
Sobre as manduas, ainda que a proibição dos Ojés em cultuá-las esteja em consonância com a estrutura
religiosa, legitimada pelo social, não podemos refutar a ideia de que elas, do ponto de vista ocidental, são
discriminadas, alijadas de todo espaço tido como masculino. Também observamos que, mesmo contrariando
às ordens dos superiores, as mulheres subvertem e, de alguma forma, solicitam auxílio desses seres, que um
dia viveram na terra. Essas mulheres nutrem pelas manduas um sentimento filial.
29
Acerca desses rituais secretos ou descrição deles, salientamos que não tivemos acesso nem ao menos nas
entrevistas.
67
auxiliando os moradores nas decisões, fazendo curas, enfim, trazendo benefício espiritual e
material ao povo do aiyê. Vale salientar que um adepto do culto de Babá, ao morrer, por
exemplo, se seu ori pertencer ao orixá Xangô, ao se tornar um egun, as suas vestimentas terão
as mesmas cores; algumas cantigas falarão em sua homenagem, usará ferramenta ritual,
enfim, as mesmas características de Xangô. Mas além das cantigas de Xangô, cada egun
possui cantigas próprias que o identificam; às vezes, o próprio egun cantará e as pessoas
presentes responderão, especialmente as mulheres que possuem posto ou oiê na casa.
No que tange à vestuária do Egun, segundo as concepções dos seus adeptos, sob a
roupa está somente a energia do ancestral; esta afirmação conduz para todo o desenrolar da
aparição do Babá no meio do seu povo. Na Nigéria, a roupa ritual usada por Egun é conhecida
como eku, porém na Bahia é também referida como opá, termo usado corriqueiramente no
Brasil. Esta roupa é carregada de simbolismo sacro e apresenta significados diversos, já que
nenhum ser humano pode tocá-la sob risco de morte; mas, por outro lado, no momento em
que o Babá a balança em direção ao público ou a uma pessoa, ela possui todo axé que,
simbolicamente, amenizará problemas, propiciará prosperidade e cura.
Entretanto, no momento da aparição de Babá, os Ojés usam o ixã para que a roupa não
toque em pessoa alguma; desta maneira, ele controla a morte ali representada pelo egun. Caso
a roupa ou mesmo uma das tiras toque uma pessoa, é necessário que se façam vários rituais a
fim de purificá-la e assim afastar doenças, atrasos materiais na vida e, sobretudo, evitar a
morte. Até mesmo o mais qualificado dos Ojés (atokun) deve desempenhar suas funções com
o auxílio do ixã para evitar o contato com a roupa. Quanto ao eku, opá ou à vestimenta de
egun, esta se divide em três partes principais:
a) a abalá – uma armação quadrada ou redonda, que cobre totalmente a extremidade
superior do Babá; é desta parte que saem as várias tiras de pano coloridas, formando
uma espécie de franjas ao redor daquilo que se assemelha a uma cabeça;
b) o kafô – túnica de cumprimento e mangas longas, cujas mãos são cobertas por uma
espécie de luva e os pés por uma espécie de sapato;
c) o banté – tira decorada, feita de um tecido especial, presa ao kafô; esta tira individualiza
e permite a identificação do Babá. Com as mãos, sacode a tira em direção à pessoa ou
68
grupo que ele quer abençoar; com gestos, simula que pega algo, e assim transmite seu
axé, já que o banté foi preparado e impregnado de elementos portadores de axé; é
através desse gesto que o Babá emana para todos o seu benefício, capaz de curar
enfermidades e aliviar sofrimento de familiares. Em contraste ao toque da roupa, esse
gesto do egun é muito benéfico e todos vibram com essa atitude (vide figuras 11 e 12)
30
Utilizamos o termo performance a partir da definição de Schechner (1985) que compreende tal termo como
sendo qualquer atividade realizada por um indivíduo ou grupo, na presença de outros indivíduos ou grupo.
No caso da dança ritual de Babá trabalhamos no campo do simbólico, já que não se acredita que dentro da
roupa tenha uma pessoa, mas o vento que deu ao ancestral a forma humana.
70
31
Tradução livre de: “El pensamiento primitivo atribuye um sexo a todos los seres del universo, incluso a los
objetos inanimados. Todos ellos se reparten en dos grandes clases según se les considere machos o hembras.
Entre los Maori, la expresión tama tane, „lado macho‟, designa las cosas más diversas: la virilidad del
hombre, la descendencia por línea paterna, la fuerza que crea, la magia ofensiva, etc., mientras que la
expresión opuesta, tama wabine, „lado hembra‟, vale para todos los contrarios. [...] esta distinción, de
alcance cósmico, encubre de hecho la antítesis religiosa primordial. En efecto, en términos generales, el
hombre es sagrado y la mujer profana. Excluida de las ceremonias del culto, la mujer no es admitida más
que para una función acorde con ella: cuando hay que levantar un tabú, es decir, llevar adelante en las
condiciones exigidas una verdadera profanación.” (HERTZ, 1990, p. 114).
71
Antes de desenrolarem os rituais para egun, as mulheres cantam e formam uma grande
roda (xirê), para homenagear os orixás; elas cantam, batem na palma da mão e cuidam da
confecção da roupa usada pelos Babás. É da mulher a responsabilidade de zelar pelo culto
fora da parte do segredo. Já os homens têm a obrigação de cuidar do espaço sagrado nos
momentos em que egun vem ao encontro de seus descendentes. Com o ixã, os sacerdotes
separam simbólica e ritualmente o mundo dos vivos e o mundo dos mortos; isto é, vida e
morte. É através do ixã que os Ojés conseguem manter a distância entre o egun e o público; o
egun jamais desrespeita um ixã, o que justifica muitas vezes que o Ojé coloque o ixã no chão,
impedindo que o ancestral, algumas vezes chateado, toque nas pessoas. Em caso de fúria, o
Ojé é obrigado a colocar o ixã no peito do egun a fim de controlá-lo, posto que esta vara é o
instrumento que o faz vir ao aiyê e é também o que o controla; por isso é um objeto ritual de
suma importância. No caso do amuixã ter dificuldade de controlá-lo em caso de fúria, é
solicitado a presença do Atokun – sacerdote responsável por zelá-lo e invocá-lo; assim, a
intervenção é mais ríspida e eficaz, já que o egun nutre grande respeito por ele.
Vale lembrar que o culto de Babá Egun segue uma organização hierárquica funcional,
isto é, os títulos recebidos pelos adeptos são outorgados e funcionam ao mesmo tempo como
nomes-títulos; ou seja, correspondem também aos papéis desempenhados por eles (BRAGA,
2006, p. 26). Nesse espaço, cabem às mulheres pequenos papéis que não possuem quase ou
nenhuma relevância social, pelo menos para a sociedade mais ampla.
que, no tempo certo, emitiu a voz, porém esta era tão rouca, estranha, cavernosa que causava
um certo pavor nas pessoas.
Novamente ela voltou-se para o Babalaô que lhe explicou que aquele filho era um
Egungun; teria sido ele o antepassado fundador da família, da cidade ou de uma região.
Oiá entendeu a explicação e criou o filho com muito carinho.
Hoje, quando egun vem dançar entre seus descendentes, é admirado por todos. Mas
egun não se curva diante de mulher alguma, exceto de Oiá; somente ela é digna de sua
reverência 32.
Este mito remonta à origem do surgimento de egun, isto é, localiza dentro da mitologia
a origem biológica do egun, mas seria de igual importância localizar a própria morte. Ziegler
(1977, p. 40) relata, através de um mito, que a origem do egun estaria em Ifé, que foi invadida
inúmeras vezes pela morte e sua comitiva, e o restante, não sabendo o que fazer, pediu ajuda
para os orixás que nada podiam contra a morte. Então, um morador destemido, chamado
Ameiyegun, organizou uma emboscada e, com a ajuda de Oni, então Rei de Ifé, expulsou a
morte e sua comitiva. Ao fugirem, deixaram cair os cajados que logo pararam nas mãos de
Ameiyegun e do povo de Ifé.
Mais tarde, após a morte de Ameiyegun, um Babalaô confirmou aos filhos que seu pai
pertencia ao mundo dos eguns e deveria ser adorado, venerado, e isso foi passado a todos os
homens da família que passaram a venerá-lo na figura do egun. Desta forma, a palavra egun
seria uma corruptela da palavra Ameiyegun.
Os dois mitos mencionados dão conta da origem do surgimento de egun enquanto
entidade social, com origem materna na figura de Iyansã, o que justifica o respeito a ela
reservado e também a etimologia da palavra, cujo radical é originário de Ameiyegun;
portanto, ambas as explicações estão no plano mitológico, mas nem por isso são menos
válidas quanto à própria aparição de egun no aiyê.
O culto chegou ao Brasil pelas mãos e na memória dos escravizados iyorubanos, cujo
tronco étnico vem de variadas regiões da Nigéria, a saber: os povos de Ketu, Oyó, Ijexá, Ifan
32
Este mito foi recolhido do Babalaô Luiz Sérgio Barbosa, em janeiro de 2008.
73
e Ifé. Diferentemente das casas de orixás, quase que inumeráveis em todo o Brasil, o culto de
Babá Egun apresenta um parco número, destacando-se, sobretudo, as principais delas que
figuram em livros e na memória das pessoas de Itaparica.
Cumpre-nos situar historicamente o surgimento das primeiras e principais casas que
cultuam Babá no Brasil, porém é necessário fazer uma diferenciação entre a Sociedade Egungun e
o culto ancestral que se pratica nos candomblés de lesén-orixá e na umbanda. Em primeiro lugar,
todo terreiro de culto ao orixá deve ter um lugar onde os antepassados são cultuados. Esse espaço
é denominado Ibó. Geralmente, essa casa fica nos fundos dos terreiros, bem distante do lugar
onde se cultuam os orixás. Outra diferença marcante é que nos candomblés de lesen-orixá e na
umbanda não aparecem os eguns; nisso pode residir uma divergência entre os rituais invocados
nas casas exclusivas aos eguns e aquelas que cultuam orixás.
Segundo os adeptos de lesen-egun, existem muitas responsabilidades para quem cuida
dos eguns, fato que talvez justifique o parco número de casas que se dedicam apenas a egun.
Segundo relato de Nina Rodrigues (2005), na obra O animismo fetichista dos negros baianos,
esse culto ancestral teve início no Brasil, por volta de 1796, e teria sido fundado por um
africano. Rodrigues não menciona nem o nome do fundador nem o local das primeiras
aparições públicas de egun, por isso essa data pode ser apenas uma referência fictícia, uma
vez que os documentos33 encontrados relatam apenas algumas invasões nas casas de culto em
Vera Cruz, Itaparica, o que talvez tenha acontecido apenas no início do século XIX.
Diferentemente dos escritos sobre o início do culto no Brasil, um entrevistado afirma que
antes do culto de Babá chegar à Bahia, ele teria sido iniciado em Pernambuco e só depois
chegaria pelo Litoral à Encarnação34, Itaparica, na Bahia.
Outros depoimentos de adeptos antigos apontam que o terreiro mais antigo é o de Vera
Cruz, fundado em 1820, por um africano, conhecido como Tio Serafim, cujo egun de seu pai
biológico é invocado pelos moradores do Bela Vista. Trata-se do famoso Egun Okulelê. Em
Mocambo, também na Ilha de Itaparica, fundou-se em 1830 um outro terreiro, idealizado e
edificado por Marco-o-Velho. Ojé, ainda hoje, é reverenciado por moradores das localidades
do Bela Vista, Barro Branco e adjacências, bem como fora dos domínios da Bahia. Foi nesta
casa que se invocou pela primeira vez o famoso egun de Babá Olukotun, considerado pelos
33
Arquivo Histórico Ultramarino. Catálogo Castro e Almeida, na secção Brasil Geral, Dos. 143, rolo 101 e
Doc. 7807 cod. 005.
34
É bom esclarecer que não encontrei qualquer registro que corrobore com essa informação, dada pelo Ojé
mais antigo do culto de Babá Egun. Os relatos na memória são tão válidos quanto os documentos
encontrados nos arquivos.
74
adeptos dos terreiros como Olari-Egun, isto é, o ancestral primordial do candomblé de lesen-
egun, da nação nagô.
Mas o culto continua em franca expansão no século XIX, quando, em Encarnação, na
Ilha de Itaparica, por volta de 1840, foi iniciado pela primeira vez o culto ao Babá Agboula. A
sua fundação se deu por um dos filhos do famoso Tio Serafim, o conhecido Ojé João-Dois-
Metros. O egun de Babá Agboula é um dos patriarcas desse povo nagô e é sobre este terreiro
que recai o nosso interesse, por ser considerado até hoje como a matriz de todas as ca sas de
culto de Babá Egun do Brasil. Já em aproximadamente 1850, o filho do venerado Marco-o-
Velho, o conhecido Tio Marco, funda o terreiro do Tuntum, também situado na Ilha de
Itaparica, cujas atividades são garantidas através dos seus descendentes. Além dos terreiros de
Itaparica, Babá também possui casas em Salvador, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo.
Salienta-se que todas as casas descendem de alguma casa de Itaparica, ou seja, o axé da casa
foi plantado por algum Ojé baiano.
Esse pequeno relato mostra o percurso histórico das primeiras casas de lesen-egun.
Podemos nos perguntar qual o motivo do número de casas ser tão pequeno? Essa pergunta
talvez encontre resposta no pavor e horror que as pessoas têm da morte. O povo de
candomblé, em sua maioria, possui a concepção da morte como algo infinito, mas isso não
significa que essas pessoas a encarem com naturalidade; portanto, é uma visão que sofre as
influências ocidentais, na qual a morte é assunto tabu. Esta ideia foi difundida principalmente
pelo cristianismo, como afirmado anteriormente.
Enquanto a Irmandade da Boa Morte tem por base o culto aos orixás, que no panteão
estão associados à morte e se manifestam na terra por meio da incorporação em seus adeptos,
o culto dedicado a egun não possui sua base ancorada nos orixás e sim no mundo dos espíritos
ancestrais denominados eguns. Para os adeptos do culto Babá no Agboula, o orixá é uma
energia viva e incorpora na pessoa viva, enquanto definem o egun como um vento, um
espírito; logo não incorpora em pessoa alguma, porém se personifica para trazer benefícios à
75
comunidade35. Essa visão é divergente do espiritismo, para o qual, segundo seus praticantes, o
espírito de um antepassado incorpora na pessoa viva para transmitir mensagens, administrar
remédios e, em alguns casos, fazer intervenções cirúrgicas. Embora os propósitos dos
ancestrais sejam os mesmos, a forma de manifestação é completamente diversa.
Tanto os orixás quanto os eguns são, contudo, espíritos ancestrais, que vêm à terra
através dos rituais apropriados. Portanto, tende-se a pensar que Boa Morte e Babá Egun são,
por assim dizer, espaços de aproximação mas também de afastamento, à medida que a morte
os aproxima e as entidades – isto é, os orixás – os excluem.
De igual modo, o culto de Babá Egun e a Boa Morte possuem o segredo em suas
bases, por isso são consideradas sociedades secretas 36. Entretanto, as formas de se portarem
nestes espaços são diversas já que existem diferentes formas de feminilidade e masculinida de;
estas podem ser vivenciadas tanto pelas mulheres quanto pelos homens, à medida que elas
auxiliam à manutenção do poder. Essas representações presentes na visão de mundo de
homens e mulheres que praticam o culto dos ancestrais, em Itaparica e Cachoeira, podem
resultar em estratégias utilizadas por seus componentes para a manutenção do status de poder
perante os grupos, especialmente para os homens que subjugam as mulheres.
O candomblé sempre foi grande espaço de preservação de heranças que vieram para o
Brasil, quer na memória quer no corpo daquelas e daqueles que foram forçados a deixar suas
terras. Esses espaços servem como núcleo de sociabilidade e solidariedade entre seus adeptos.
Contudo, ao longo dos anos, muitas mudanças se tornaram imperativas; dentre outras razões,
o crescimento do número de casas dedicadas aos orixás. Em relação ao culto dedicado aos
eguns, este se restringe a algumas localidades do Brasil, por ser um culto que demanda na
preparação ritual um rigor incomensurável tanto do oficiante quanto dos frequentadores, uma
vez que estão envolvidos diretamente com os ritos mortuários. Outra razão pode advir da
pouca visibilidade dada ao papel da figura feminina, que tem espaço e funções limitados.
Talvez esses fatores expliquem o parco número de casas dedicadas ao culto ancestral.
Bela Vista, povoado no qual está situado o culto de Babá Egun, possui uma população
composta basicamente pela família De Paula, correspondendo no seu total de 90% de toda
população. Esse número seria o responsável pela preservação das homenagens prestadas aos
antepassados. Do ponto de vista étnico, a população do Bela Vista é, por assim dizer,
35
Thomas (1983, p. 521) fala do mito do grupo malgaches em que o tromba, nascido no país de Sakalava, é
um culto de possessão em que há a personificação de reis ou antepassados ilustres com os mesmos propósitos
que os Babás de Itaparica.
36
Neste trabalho, o termo sociedade secreta será utilizado no sentido de indicar a existência da não circulação
de determinados conhecimentos que estão nas mãos de poucas pessoas, que envolvem tanto aspectos mágicos
quanto aspectos sagrados. Sobre o tema, ver Leite (2008), Sarró (2009) e Santos (1996).
76
homogênea naquilo que se refere aos padrões mortuários, bem como aos aspectos religiosos.
No que tange às concepções sobre a morte, a população, em sua maioria, acredita que a
pessoa não morre, mas sim é transferida para uma outra comunidade, o que para a população
é considerada como orun, dimensão na qual estão todos os espíritos que receberam todos os
rituais para inserção na comunidade ancestral, orun, e que de alguma forma ajudam as pessoas
que ficaram no Aiyê, isto é, na terra.
Como já referido nos estudos antropológicos de Hertz (1960), Thomas (1982, 1983),
Morin (1970) e Mauss (2003), a morte é abordada em diferentes sociedades como a
constituição coletiva, como sistema de orientação; isto é, no momento em que o indivíduo
simbolicamente morre, há uma instabilidade no grupo. Em razão disso, devem-se processar
todos os rituais pós-morte, a fim de reorganizar a comunidade. Este sistema mortuário
estudado por estes autores vê as concepções de morte articuladas com valores e vivências
culturais; portanto, o fenômeno pode ser justificado no meio social, de modo a definir os
rituais que serão realizados a partir da crença de cada grupo, utilizando o padrão cultural do
grupo para atribuir uma ordem natural à causa mortuária.
Neste sentido, as concepções de morte relativas ao homem são entendidas tanto pelos
adeptos da Sociedade Egungun quanto pelas irmãs da Boa Morte; diferem daquelas
investigadas por Mauss, visto que naquelas culturas existe um forte apelo para punições. A
ideia de finitude, o conceito de céu e de inferno, além de um julgamento pós-morte, fez com
que Mauss (2003) refletisse sobre os efeitos físicos da morte, especialmente no momento em
que o indivíduo julga-se enfeitiçado ou castigado por Deus. Neste estudo, Mauss abordou a
natureza coletiva dos códigos e sua influência sobre o indivíduo, no qual examina diferentes
tipos de mortes narradas por viajantes em sociedades não ocidentais. Para os grupos locais,
estas mortes ocorriam simplesmente porque os indivíduos acreditavam estar enfeitiçados; tal
crença é legitimada pela coletividade.
Em contrapartida, no Bela Vista e na Boa Morte, a maioria das pessoas acredita que a
morte se compõe de duas porções: a física e a sobrenatural. A primeira está associada a
estágios distintos, enquanto a segunda representa uma passagem, uma vez que tudo acontece
dentro do mesmo círculo, sem ruptura. Deste modo, a pessoa é vista na sua totalidade, embora
essa totalidade seja algo desejado, diz Carvalho (2001). A morte, para aquelas pessoas, é
concebida e entendida como uma totalidade em algumas regiões africanas, como na Nigéria.
É vista como um valor civilizatório, como outros elementos culturais, tal como a oralidade,
memória, corporeidade, circularidade e musicalidade. Essa ideia mostra-se em consonância
com o pensamento de Mauss (2003, p. 364), como ele assinala no fragmento a seguir:
77
vitimatizada, como mostra a entrevista feita com a Nadir, membro do terreiro de Babá
Agboulá. Uma vez inquirida sobre sua participação em todas as fases do ritual, ela diz:
Não, eu acho que não, porque desde quando eu conheci a seita, quer
dizer, o ritmo que eu estou é como antigamente. Eu acho errado uma
mulher participar sobre um lado que ela não pode entrar. (Depoimento
colhido em janeiro de 2008).
A voz da entrevistada reflete uma visão de acomodação. Para ela, uma ordem dada
deve ser cumprida sem qualquer questionamento, pois, em nome dos costumes tradicionais, a
estrutura deve ser mantida. É certo que, no momento da entrevista, o marido parecia
monitorar as respostas dadas por ela. A mesma demonstrava não estar confortável com a
presença do marido e isso ficou claro quando ele teve que se retirar atendendo a um convite
de um amigo.
A situação acima referida marca a posição daquele homem no trato com sua esposa,
seu corpo. A maneira como olhava para a entrevistada parecia dizer-lhe: “veja bem quais
respostas você dará!”, numa clara demonstração de que tinha o controle da esposa, inclusive
das suas respostas. Afinal, para a lógica do mundo, é o homem que detém o controle da frágil
mulher. Tudo isso dito através do corpo, corpo este que exprime o primeiro e o mais natural
instrumento do homem (LE BRETON, 2006); ele é modelado segundo os hábitos culturais e
usado muitas vezes para impor ao outro a condição de uma suposta superioridade.
Ao olhar para as narrativas e prática das mulheres em Babá Egun e na Irmandade da
Boa Morte ficou uma inquietação: as mulheres são essenciais aos cultos e não alijadas de
alguns processos. É sobre essa inquietação que nos ocuparemos no próximo capítulo.
79
A tradição não é totalmente estática, porque tem de ser reinventada por cada
nova geração à medida que se assume a mudança como a herança cultural
daquelas que precedem. A tradição não resiste tanto à mudança como
pertence a um contexto em que existem poucas referências temporais e
espaciais separadas, em termos das quais a mudança possa ter qualquer
forma significativa. (GIDDENS, 2005, p. 26).
37
Corriqueiramente usa-se feminino ou feminilidade como termos sinônimos, tal como Freud (1980) o fez na
sua obra feminilidade. Esta última indicaria certa bissexualidade, isto é, o indivíduo apresenta porções do
masculino e do feminino; neste particular, a pessoa pode ser considerada homem e mulher ou simplesmente
mais um do que outro e neste sentido a definição da feminilidade e masculinidade está fora do alcance da
anatomia. Por isso a feminilidade empregada ao longo deste trabalho não está vinculada à mulher assim
como a masculinidade não está estritamente associada ao homem; elas se constituem de flutuações e revezes
dentro de um contexto sociocultural e político onde se leva em conta a autodescrição.
38
O conceito de hegemonia está baseado, nos estudos de Gramsci sobre as relações de classe, como resultado
da dinâmica cultural, na qual um determinado grupo exige e sustenta uma posição de liderança na vida social.
80
com as estruturas como classe e raça, criam relações mais amplas entre elas. Neste sentido, a
categoria gênero é geral e como tal não contempla casos específicos.
Mas já na década de 1960, Robert Stoller (1982) cunhou a expressão identidade de
gênero, por entender que o conceito por si só não dava conta de pensar o humano. Tal
expressão é utilizada para significar a construção social dos seres humanos não apenas a partir
da diferença anatômica dos sexos. Ao fazer uso da categoria, o autor leva em conta as
características com as quais os indivíduos se identificam e adquirem ao longo da vida.
Os estudos feministas, em sua maioria, convencionaram que, ao se referir ao conceito de
gênero, estaria definindo um estudo sobre a mulher ou mulheres. Além disso, subjetivamente,
traria explicitações sobre a relação desigual entre mulher e homem. Esta lógica não evidencia as
relações entre pessoas do mesmo sexo, as especificidades étnicas e econômicas; por vezes,
ratifica o constrangimento destas que não veem suas relações contempladas nos estudos de
gênero; logo, esta é uma concepção aberta que deixa de fora questões relevantes em uma dada
conjuntura, resultando assim, como única categoria analítica, que muitas vezes escamoteia ou
reforça estereótipos difundidos ao longo da história da humanidade.
Isso significa que a categoria gênero em si não revela diferenças, tais como etnia/classe
social, já que a produção de cada criança, filho ou filha os leva à inserção em uma classe e essa
produção não se deve apenas aos efeitos da família, escola como meio mais ou menos “cultivado”
(BERTAUX, 1979, p. 75), especialmente pela forma como cada criança é produzida.
Connell (1995) em seus estudos já apresenta certa preocupação quando nomeia o que
se chama de homem ou mulher, por isso adota o conceito de estrutura de relações de gênero,
a qual permite reconhecer a complexidade das sociedades, e garante maior apreensão da
dinâmica histórica de gênero. Connell é assertivo, visto que a própria expressão estrutura já
evoca uma série de ponderações e em se tratando da definição de seres humanos esta séri e é
ampliada. Sobre o tema, ele acrescenta:
No campo de gênero, este conceito nos permite uma concepção mais dinâmica em torno das masculinidades
e feminilidades não hegemônicas que existem, talvez de forma implícitas, mas estão presentes nos corpos,
gestos e atitudes.
81
As mulheres não podem participar de todo o ritual porque elas têm uma
sociedade só delas; Iyansã é a rainha do culto e é mãe dos Egun, por isso
tem o privilégio de controlar Egun e entrar no espaço reservado ao homem.
82
Nota-se que o entrevistado faz uso do capital mítico para legitimar o seu discurso, ao
passo em que fundamenta a participação de um orixá feminino por meio do processo
reprodutivo. Assim, é preciso atentar para as palavras do depoente, pois sua narrativa
reverbera a naturalização de práticas utilizadas pelo discurso, no que toca as relações de
gênero. Assim, a fala do depoente, aliada à mitologia, tem como objetivo atingir o propósito e
significado reais no que toca à interdição feminina. Paul Zumthor (2000), em seu estudo da
poesia da voz, aborda dentre outras questões a literatura oral, que substitui a noção de (voz)
vocalidade à de (oral) oralidade, por entender que a primeira salienta as dimensões corpóreas
e poéticas dos gestos e ritos da performance. Para eles, a vocalidade não se restringe à
recitação de palavras, mas a palavra envolve, sobretudo, o encadeamento dos movimentos
corpóreos.
Para Schechner 40 (2003), a performance constitui o ato de mostrar-se fazendo e este
fazer se pratica pelo apontar, sublinhar e demonstrar a ação. Explicar as ações demonstradas é
um ato performativo.
Partindo desta perspectiva, até que ponto o mito pode servir de embasamento para os
discursos sociais? Ou de que forma o mito contribui para legitimar as práticas de dominação
ou manutenção de status? Assim, recorre-se à história e à sociologia a fim de encontrar pistas
que possam elucidar tal questão. A partir dessa discussão, é possível que a supremacia
masculina em detrimento à feminina encontre justificativa no fato da reprodução feminina, já
que a mulher possui algo que o homem jamais terá – o dom da reprodução. A suposta
inferioridade feminina, no processo reprodutivo, atribuída pelos homens, seria uma inveja
recalcada e esta é tão vigorosa que homens sexualmente impotentes pagam um preço mais
alto a prostitutas grávidas, somente para conversar com elas e alisar-lhes a barriga
(SAFFIOTI, 2004, p. 33). Contudo, esse é um tema quase inabordável em livros e, ainda hoje
continua alijado das literaturas.
Neste sentido, acredita-se que duas causas possam explicar essa constatação. A
primeira relaciona-se ao fato dos escritos literários serem maciçamente feitos por homens,
sendo que os mesmos não possuem interesse em expor suas fragilidades, reforçando a ideia de
39
Todas as entrevistas utilizadas neste capítulo foram realizadas na Ilha de Itaparica, em janeiro de 2009, após
visitas exploratórias em anos anteriores.
40
Schechner foi diretor de teatro; a partir do diálogo estabelecido com Victor Turner, desenvolveu uma
investigação antropológica acerca da performance teatral e a relação com o ritual. Para ele, os termos teatro e
rito correspondem a uma mesma natureza, ambos são performances.
83
que a fraqueza pertence ao mundo feminino e não ao homem. A segunda causa diz respeito
aos estudos feministas, que mesmo tendo sido feitos para denunciar a opressão feminina,
enfatizam, pouco ou quase nunca, a identidade dos seus opressores-exploradores, revelando,
em certa medida, uma rivalidade e generalidade sem apontar caminhos para que sejam
solucionados tais problemas. Essas atitudes, ainda hoje, declaram, por assim dizer, que as
análises feministas escamoteiam dados importantes para o enfrentamento e empoderamento e
desse modo dificultam a compreensão e a mudança de mentalidade de seus agentes. Pois
quando tratado como algo geral, não se ataca a raiz do problema.
Pateman (1993, p. 39) resume muito bem as consequências causadas pelo uso
inadequado e ao que se refere o patriarcado:
Mesmo com o alerta de estudiosos como Pateman, Saffioti, Lerner dentre outras, a
categoria do patriarcado vem sendo ratificada por muitos estudiosos. Entretanto, tanto as
mulheres da Irmandade da Boa Morte quanto os homens de Babá Egun se valem de recursos
estratégicos para manter seu status de poder.
Mais uma vez, o autor é extremamente cuidadoso em suas definições e coloca tais
categorias numa via que dialoga com um modelo da masculinidade hegemônica, valorizando
a feminilidade enfatizada, de sorte que para ele masculinidade e feminilidade existem de
maneira complementar. No geral, as categorias masculino e feminino são apresentadas como
classificatórias e são usadas na divisão sexual do trabalho, divisão do trabalho sexual,
salientando a dicotomia sexual perpassada na visão de mundo (ALMEIDA, 2000, p. 19).
Assim também o é nos grupos por nós estudados.
Foi no âmbito dos estudos da transexualidade que Stoller (1982), em 1953 descreve a
importância do social na experiência do sentir-se homem ou mulher. Stoller aponta a
constatação de que o investimento do desejo sexual das crianças é construído após e sobre
uma base identitária de gênero já existentes, fundamentando a ideia de que a masculinidade é
adquirida, o que a isso acrescento a construção da feminilidade. A partir dos estudos de
Stoller, o que até então era visto como uma desordem – já que uma pessoa possuía o sexo
anatômico considerado normal, entretanto sentia-se parte do grupo do sexo oposto – fugia às
concepções dos dogmas versados nas ciências.
Ao contrário, dos primeiros estudos de gênero que essencializou o problema do
feminino e do masculino, cujos trabalhos foram realizados respectivamente, em sua maioria,
por mulheres e homens, com foco, sobretudo, na dominação masculina e no
homossexualismo, aqui as masculinidades e as feminilidades são abordadas como algo
relacional entre os sexos socialmente opostos; isto é, características não hegemônicas que
condicionam as relações entre pessoas e/ou grupos, opõem-se, sobretudo, a biologização do
sexo e a não heteronormatividade. Tanto uma como outra pode ser exercida quer seja por
homens quer seja por mulheres.
Nesta mesma linha, uma gama de estudos contemporâneos, denominados como
“Teoria do Esquema de Gênero” e “Teoria do Auto-Esquema”, cujos representantes são,
respectivamente, S. L. Ben e H. Markus, vem consolidando a masculinidade e a feminilidade
85
Eu via minha avó fazendo aquelas comidas para levar para a irmandade,
porque naquele tempo elas faziam todos os tipos de comida, aí as irmãs
ficavam lá todas reunidas, brincando, amanhecendo o dia, sambando de dia
à noite, era aquela festa, aquela união, ouviu? No tempo da minha avó cada
qual fazia seu balaio, quantas irmãs eram? Eram muitos balaios, muita
comida, feijoada constante, durante todos os dias, tinha caruru, vatapá, era
cozido, frigideira do dia da mesa branca, era peixe, mugunzá, era tudo
quantidade grande. Desde que sou nascida, que neste mundo eu cheguei já
encontrei essas coisas da irmandade, foi minha avó que contava as coisas
da Boa Morte. Desde pequena que eu sempre acompanhava minha avó né?
E coisa e tal, mas eu queria ir. Eu queria ir participar assim, ir para festa,
brincar, rolar, passar o dia lá com minha avó, com meu pessoal enquanto
tivesse lá no período de festa e tudo lá comendo, bebendo, dormindo lá.
Para mim era uma festa, porque a gente tava criança, tudo bom né? Eu já
vinha acompanhando desde criança. Minha avó era muito espertinha aí fui
pegando o jeito e hoje eu faço tudo que vi minha avó fazer.
Vê-se nesta narrativa da integrante que a experiência vivida ao lado da avó foi fulcral
na adesão à Irmandade; além disso, a integrante mostra a importância de repetir aquilo que
viu sua avó fazer. Os conhecimentos usados por esta mulher hoje, em grande medida, se
relacionam a fatos do passado. Ela evoca a memória para atualizar o presente, evoca um
modelo vivido por sua avó; tanto é verdade que Dalva é também conhecida e elogiada pela
frigideira de bacalhau que todos os anos ela prepara para a ceia branca. Quando o elogio é
dirigido a ela, a mesma faz questão de ressaltar que aprendeu com sua avó. A festa para ela
era uma brincadeira de criança e foi através das brincadeiras que ela incorporou experiências
para suas vivências atuais. A brincadeira enquanto atividade de engajamento possui diversas
facetas. Servem com fator de interação social; internalização de conceitos, regras,
88
aprendizagens de hábitos culturais; por outro lado, na mesma medida, elas podem reforçar
estigmas e estereótipos seculares, tais como as dicotomias de gênero.
A mesma pergunta feita para outra integrante revela de maneira diferenciada a adesão
à Irmandade.
No tocante à forma de adesão à Irmandade, essa integrante trouxe um dado novo, visto
que todas afirmam que a entrada na Irmandade se faz por meio de outra integrante ou pela
indicação de algum membro da família biológica; no entanto, ela mostra que houve um
interesse individual sem a interferência de outro membro da família, interesse que surgiu a
partir da construção da imagem corporal do outro (performance), observada nas festas
realizadas pelas integrantes. A aprendizagem e o desejo surgiram a partir do olhar o outro;
este mirar modelou o comportamento da estudante. Por outro lado, a narrativa mostra dados
importantes sobre o estágio de Irmã de bolsa, como cuidar do tocheiro, cuidar da bolsa, pois
na narrativa anterior a transmissão de muitos conhecimentos foi passada por mulheres da
família, enquanto nessa a difusão se dá através de outras integrantes. Isto revela que a
feminilidade pode ser construída a partir da inserção no meio social. A integrante Daddy, por
exemplo, ao falar de sua infância descreve com riqueza de detalhes a influência materna não
apenas na Irmandade, mas também em outras festas religiosas de Cachoeira:
A minha mãe fez parte da Boa Morte e outros parentes meus também. Eu
sempre que tinha festa aqui sempre vinha. Minha mãe vinha e me trazia e
eu sempre tinha uma simpatia pela Boa Morte e tinha muita fé e tenho até
hoje em Nossa Senhora. Ela vinha tanto para as festas daqui da área
urbana como as festas da roça de candomblé, tinha muito, isso há muito
tempo atrás. Aí eu sempre dizia quando eu tiver idade e tiver aposentada
eu venho fazer parte da Boa Morte tanto que minha mãe me ensinou umas
coisas, muitas coisas eu sei que ela me abria sempre os olhos e me
89
ensinando o que era certo e o que era errado, aí muita coisa que faço, que
eu sigo na minha vida vem daquilo que minha mãe me ensinou. (Daddy,
integrante da Boa Morte)
41
No livro Memória em branco e negro: olhares sobre a cidade de São Paulo, a autora analisa a cidade de São
Paulo a partir da memória de mulheres negras e descendentes de italianas, habitantes do Bexiga, região
central.
90
masculinas, as quais podem ser vistas pelo observador que passa a classificá-las como fortes,
justificando a ausência do homem da Irmandade.
No seio do grupo, a ideia de poder é afirmada e reafirmada: é um grupo dirigido
apenas por mulheres, ou aqui somos homens e mulheres; buscam, ainda que de forma velada,
afirmar-se enquanto representantes de um gênero normatizado pela sociedade como frágil,
porém que venceu as adversidades conseguindo passar a ideia de respeito e admiração. Neste
sentido, entendemos que os papéis desempenhados pelos seus agentes vêm na direção de
mostrar que não há diálogo entre homens e mulheres, já que os discursos são marcados pela
negação do outro, ao passo que seus corpos e algumas ações traduzem o contrário; seria, por
assim dizer, uma criação e recriação de espaços singulares e neste sentido o sistema simbólico
se torna capaz de estabelecer disposições duradouras para a manutenção de determinados
privilégios. Para Dawsey (2008),
Minha bisavó que participava da Boa Morte, a minha avó pertencia ao lado
dos africanos, dos nagô, ela era pretinha. Já minha mãe trabalhava lavando
roupa de ganho, cozinhava pra aniversário desses homens aqui de
Cachoeira, ela cozinhava, engomava, fazia tudo que precisasse. Ela era
mulher-homem, se precisasse matar um porco ela matava, destrinchava, se
precisasse pegar na enxada ela pegava, fazia o que precisasse na roça; ela
92
não tinha distância de nada, tudo pra ela era possível. (Estelita, 107 anos,
integrante da Boa Morte).
A minha mãe era católica, mas comecei a ir para irmandade por causa de
um sonho que me avisava que tinha que participar, foi assim: eu quando ia
fazer parte, dizem que a gente não deve contar, mas quando eu ia fazer
parte da Boa Morte, da irmandade, à noite me apareceu aquela luzinha,
tão linda, tão azul, na beira da minha cama, desceu, subiu, rodou, depois
saiu pela cumeeira da casa. Naquele tempo eu não frequentava a Boa
Morte só assistia a passagem, só assistia a passagem daquelas negas todas
vestidas e tudo, achava bonito. Agora depois que eu comecei movimentar
na Casa Estrela e tudo, ela então dizia: como é, fulana, você vai ser irmã
da Boa Morte? Então eu disse: já estou aqui (riso). É justamente quando
ela conversava e eu agachada junto dela e ela sentada e a gente
conversando, aprendendo aquelas coisas todas, de forma que quando
entrei na Boa Morte e ela dizia: Estelita, você vai fazer isso, isso, isso e
isso heim? E eu dizia: eu já fiz e foi assim que comecei na irmandade.
(Estelita, integrante da Boa Morte).
Nas páginas que seguem tentaremos mostrar como a masculinidade está presente não
apenas nas atividades desenvolvidas supostamente pela Boa Morte, e como essas
masculinidades penetram consciente ou inconscientemente nas duas integrantes e como
elas engendram lenta e sutilmente outras mulheres, sobretudo, nas meninas que convivem
em seus espaços.
94
É através do corpo que o homem põe em prática suas ações, para se firmar enquanto
agente de transformação ou como manutenção de uma tradição. Neste sentido, os atos
performativos, os atos culturais elaborados e restaurados dentro de grupos afro-brasileiros
recriam referências para a construção de identidades múltiplas que delineiam em linguagem
expressiva distinta capaz de revelar a vitalidade de cada participante no jogo ritual; cada
95
[...] o mecanismo de poder apoia-se mais nos corpos e seus atos do que na
terra e seus produtos. É um mecanismo que permite extrair dos corpos tempo
e trabalho mais do que bens e riquezas. É um tipo de poder que exerce
continuamente através da vigilância e não descontinuamente por meio de
sistema de taxas e obrigações distribuídas no tempo; que supõe mais um
sistema minucioso de coerções materiais do que a existência física de um
soberano. Finalmente, ele se apoia no princípio. Que representa uma nova
economia de poder, segundo o qual se deve propiciar simultaneamente o
crescimento das forças dominadas e o aumento da força e da eficácia de
quem as domina (FOUCAULT, 1979, p. 188).
[...] é uma realidade mutante de uma sociedade para outra: as imagens que o
definem e dão sentido a sua extensa invisível, os sistemas de conhecimento
que procuram elucidar-lhe a natureza, os ritos e símbolos que o colocam
socialmente em cena, as proezas que poderia realizar, as resistências que
oferecem ao mundo, são incrivelmente variados, contraditórios até mesmo
para nossa lógica aristotélica do terceiro excluído, segundo a qual se a coisa
é comprovada, seu contrário é impossível (LE BRETON, 2006, p. 28-29).
42
Técnica aqui é empregada no sentido de um ato tradicional e eficaz tal como usou Mauss (2003) no artigo
técnicas do corpo, já que para ele só existe transmissão de técnica quando há tradição e isso faz a
diferenciação entre o homem e o animal. A técnica é efetuada pelo ator com um determinado objetivo.
96
O autor acima corrobora com a ideia de que o corpo esconde e revela segredos que
configura uma realidade que pode não se apresentar claramente, como é o caso do poder
das mulheres que por vezes aparece na invisibilidade, mas constitui -se vital na
manutenção das estruturas sociais. Esta estratégia representa um tipo de poder simbólico
que efetivamente provoca mudanças não apenas na ordem material e corporal, mudanças
que transcendem a instituição e passam a formar mentalidades exteriores. Para Bourdieu
(2004), o corpo também pode ser um campo de relações simbólicas de poder, lugar de
diferenças sexuais.
A Irmandade da Boa Morte possui uma área formada por três casas, uma capela
contígua ao casario e uma igreja, dedicada a Nossa Senhora da Ajuda. Na parte térrea fica o
pequeno museu da Boa Morte, ao lado da capela onde são realizadas as celebrações anuais.
Na Irmandade, como nos terreiros de candomblé, alguns espaços são reservados a
determinadas pessoas, seguindo uma hierarquia espacial. A última casa é um espaço
reservado para a cozinha e um conjunto de quartos, nos quais as integrantes ficam durante o
período festivo. O local reservado a refeições possui uma grande mesa e cada uma das
integrantes ocupa cada assento seguindo uma determinada hierarquia. Assim, a cabeceira é
reservada à Juíza Perpétua – aquela que tem a função de guardar o segredo da instituição,
além de ser a mulher com mais tempo de Irmandade; essa pessoa é ladeada por outras duas
integrantes, com idades de instituição sucessivas à da Juíza Perpétua; juntas, as três compõem
um Conselho Administrativo, responsável simbolicamente por qualquer decisão na
Irmandade. Ao longo dos anos observei que as demais integrantes ocupavam os demais
espaços sem seguir qualquer regra.
É bom salientar que o lugar reservado à Juíza Perpétua não é ocupado pelas demais
integrantes ou quaisquer pessoas em hipótese alguma; por ser um espaço, de certa forma
aberto, vimos algumas vezes, pessoas sentarem neste lugar e, discreta e imediatamente, outras
integrantes oferecerem outro assento. Entretanto, após anos, em uma determinada festa,
observei que ao chegar um senhor, nunca visto por nós na Irmandade, fez com que a Juíza
Perpétua imediatamente cedesse o lugar, ao tempo em que outras integrantes cuidavam por
servir-lhe alguma bebida e alimentos. Todas eram unânimes na dedicação e respeito,
beijando-lhe a mão ou tomando-lhe a benção, comportamento observado no conjunto de
regras dos candomblés.
Aquela atitude causou certa inquietação e ficamos ávidas por saber quem era o
homem que tivera a honra de ocupar o lugar da Juíza, e mais, quem era aquele homem que
97
estava simbolicamente, mesmo por alguns momentos, a guardar todo segr edo da
Irmandade. Pois bem, tratava-se de um Ogã do candomblé que possuía o cargo de
Axogun, responsável por sacrificar os animais no espaço de candomblé. Acrescentaram
mais: ele era a pessoa que sempre auxiliava as irmãs quando alguma delas falec ia. Logo,
imaginamos que alguma parte do ritual fosse realizada por um homem, uma vez que os
integrantes do culto de Babá Egun afirmam que algumas partes do axexê são feitas única e
exclusivamente pelos homens. Não fosse a Irmandade um espaço religioso com forte
marcação na divisão social de gênero, esse comportamento poderia ser naturalizado. Mas,
na sociedade, como o corpo é o que define o masculino/feminino, este ato mexe com
normas já estabelecidas. Na Boa Morte tudo deve ser feminino, como se os
compartimentos não pudessem ser acessados pelo homem.
Na recepção da Irmandade, conhecida como a sociedade feminina e secreta,
encontra-se um rapaz; isso chama a atenção e é registrado pela mídia como fato
extraordinário. Quando questionadas, elas justificam que “o rapaz é como se para elas ele
fosse um filho, que as auxilia nas dificuldades”. Afirmam ser ele de confiança e que não
sai falando o que vê. Além desses argumentos e para que não tivesse mais qualquer
insistência da nossa parte, uma delas disse: “ele está aqui porque foi escolhido por Nossa
Senhora”. O recepcionista é responsável pela negociação com turistas, jornalista s,
pesquisadores que desejam realizar um contato maior com uma das integrantes; é ele que,
de alguma forma, elege quem dará entrevista, já que cotidianamente as mulheres ficam em
suas casas. Isso mostra que ainda hoje, assim como nos tempos da Barroquinha , existe a
figura masculina que lida diretamente com o externo, com as autoridades. Assim como no
culto de Babá, a Boa Morte utiliza a estrutura religiosa para negar ou afirmar a
participação dos homens. A presença masculina na recepção da Irmandade reproduz um
comportamento da sociedade mais ampla, na qual a relação de poder feminino geralmente
é privada enquanto o masculino é público.
Ainda nesta linha de observação, acompanhamos a procissão que segue pelas ruas
tradicionais de Cachoeira e no primeiro momento as irmãs mais novas carregam o andor com
o esquife de Nossa Senhora, mas durante a maior parte do percurso este é carregado pelos
homens, bem como nas Procissões do Enterro e da Glória. Eles trabalham como motoristas ou
em atividades de ordem mais interna. (vide figura 13).
98
Esses comportamentos divergem da veemência com que elas falam das exigências
para admissão das integrantes e da não participação dos homens em qualquer ato realizado
por elas. Seja na orquestra que anima a parte considerada profana da festa 43, seja na
organização de modo geral, nota-se a presença masculina, convivendo com as mulheres sem
causar qualquer estranhamento. Assim, num espaço considerado especificamente feminino,
encontram-se homens exercendo as atividades que, aos olhos da sociedade, deveriam ser
exercidas pelas mulheres. Na prática do quotidiano, as coisas não são tão rígidas:
masculinidade e feminilidade são vividas enquanto conjuntos de qualidades que podem
verificar-se no campo sexual oposto (ALMEIDA, 2000, p. 60).
43
A parte considerada profana diz respeito às diversões realizadas pelas irmãs durante o ciclo festivo; neste
período, as integrantes promovem samba-de-roda, apresentação de grupos culturais da cidade e o grande
momento esperado pelas integrantes e o público é a valsa. As irmãs formam duplas entre elas e valsam ao
som da filarmônica Lira Cachoeirana e tocadores de grupos de samba; elas entoam cânticos católicos e,
principalmente, pontos de candombé; portanto, as irmãs mais uma vez rendem homenagem aos orixás. É
através da música e da dança que se encerra oficialmente o ciclo da festa, instaurando, assim, um novo tempo
– o cotidiano.
99
A partir do exposto acima se entende que tanto mulheres quanto homens precisam-se
mutuamente na realização das atividades; são, por assim dizer, partes complementares de uma
totalidade simbólica; na prática, a divisão social de papéis existe e se constitui enquanto algo
dinâmico e mutável na medida em que os indivíduos necessitam atender a determinados
objetivos ou estratégias; ademais, a participação dos homens não interfere no prestígio que
goza a Irmandade.
Na Boa Morte, além dos comportamentos tidos como femininos, é preciso ensinar que
as mulheres podem exercer plenamente qualquer atividade sem que haja necessidade dos
homens. No cotidiano, todos os comportamentos descritos em relação às meninas estão
presentes na mentalidade das irmãs, assim vão legando, às mais novas, novos jeitos de ser
mulher. Mesmo quando a afirmação da feminilidade se constituía uma conduta que
contradizia a ordem vigente.
Mary Douglas44 (1991) leva em conta os conceitos de pureza e perigo como algo
estruturante. A autora penetra a vida de vários povos com diferentes culturas, com o intuito de
mostrar que estes dois conceitos fazem parte de uma totalidade, interagindo de forma
harmônica; assim são vistos de forma análoga, expressando um caráter geral da ordem social.
Douglas analisou as antinomias pureza/perigo, ordem/desordem, limpeza/sujeira e
contágio/purificação; assim também o universo da Irmandade encontra-se repleto de aparentes
antinomias que, ao serem verificadas, caminham no sentido de maior convergência.
Já foi mencionada, anteriormente, que a morte física constitui uma desorganização
tanto na estrutura simbólica quanto na estrutura social e que os rituais realizados após a
morte física têm a função de reordenar positivamente a vida cotidiana. Há aqui um quê de
impureza que é preciso afastar visto que ela é uma ofensa contra a ordem estabelecida.
Eliminando-a, não fazemos um gesto negativo; ao contrário, esforçamo-nos para organizar o
nosso meio (DOUGLAS, 1991). Mas, ao realizar os rituais contra a impureza causada pela
morte, o indivíduo coloca-se em perigo e ao mesmo tempo é investido de poder após a
execução. Este é um tipo de poder que não se faz implicitamente; ele é um micropoder,
como afirma Foucault (1979). Um poder encontrado em diversas esferas sociais nagô, e que,
por vezes, subverte alguns aspectos do antropocentrismo, colocando em relevo as brechas
sociais; as interdições femininas, quando analisadas a partir dessa ótica, podem mostrar-se
revestidas de poder. Visto que vencido o perigo da travessia da fronteira, o feminino
mostra-se como uma fonte de poder.
A integrante da Boa Morte, no trato com a morte, lida não diretamente com a figura do
egun, mas sim com os orixás que estão relacionados a ela, tal como Iyansã, Ogum, Obaluiayê,
Oxum e Nanã. As homenagens realizadas implicitamente pelas integrantes são realizadas por
esses orixás, seja por meio das comidas votivas destinadas a cada um deles, seja pelos ritos
internos celebrados pelas integrantes. Quanto aos rituais realizados internamente, não tivemos
qualquer acesso; até mesmo nas entrevistas, não se menciona nada acerca do dia dedicado à
vigília. Seria a vigília uma espécie de axêxê, cujo objetivo é encaminhar o espírito do morto
para o lugar apropriado? O fato de a vigília ser realizada a portas fechadas, cria-se expectativa
em torno desse ritual. Comenta-se que é neste dia que as mulheres fazem os rituais ligados à
morte dentro dos preceitos africanos; no entanto, nada podemos afirmar, já que esta constitui
assunto tabu para os membros da Irmandade e continua alijado das etnografias sobre a
44
Arqueóloga e antropóloga inglesa, na obra Pureza e perigo aborda várias culturas na perspectiva da pureza,
delineando interditos femininos por meio da divisão sexual dos espaços.
105
Irmandade. Portanto o que faremos neste subitem são deduções a partir de um conhecimento
ínfimo acerca dessas homenagens que a Boa Morte realiza.
Ao desempenhar tais homenagens, as mulheres entram simbolicamente no
universo de interdição, visto que o trato com a morte é exclusividade masculina ; mas de
algum modo as mulheres ultrapassam essa fronteira e se revestem de poder. Entretanto é
preciso salientar que alguns requisitos se fazem necessários, já que se travestir de homem
para realizar as funções que a eles são exclusivas requer o afastamento daquilo que separa
o masculino do feminino.
Durkheim, ao tratar da religião e do sagrado, nos diz que não há separação entre as
esferas sagradas e a vida cotidiana e que as regras de separação caracterizam o profano e o
sagrado, categorias diametralmente opostas. O autor usa argumentos para falar sobre a
coletividade e, neste sentido, as exigências feitas pela Boa Morte na admissão de novas
integrantes permitem-nos fazer algumas interpretações. Os critérios: Ser devota de Maria;
pertencer ao candomblé; ter idade acima de 50 anos. As três exigências acima descritas
chamam-nos atenção, especialmente a relacionada à idade, pois no início da fundação da Boa
Morte, supostamente, no início do século XVIII, as mulheres com 45 anos já não possuíam
menstruação e o fato de não ter menstruação talvez possibilitasse realizar algumas atividades
a que estavam excluídas, uma vez que o sangue significa impureza, perigo. É certo que nas
sociedades de base africana, sobretudo a nagô, como é o caso da Boa Morte e Babá Egun, o
princípio norteador é a idade, isto é, a estrutura se apoia nos conhecimentos dos mais velhos.
Ainda não sabemos se é o caso de aludir à noção de perigo baseada na simetria do sexual,
visto que cada sexo constitui um perigo para o sexo oposto. Este perigo da poluição se
concretiza através dos fluidos sexuais, geralmente é o sexo feminino que contamina o
masculino (DOUGLAS, 1991, p. 16). Esta crença na contaminação aponta para:
Ao contrário das sociedades Ijexá e jeje ou daomeanos que não possuem aparição dos
eguns, há, entretanto, ritos funerários denominados axêxê, a fim de afastar o espírito do morto
para longe dos vivos, além de não possuírem uma sociedade de invocação dos mortos –
Sociedade Egungun (BASTIDE, 1978); nas sociedades iyorubanas ou nagô, os antepassados
não estão afastados dos vivos, por vezes fazem parte da sua vida, já que a existência se
106
compõe de dois planos: aiyê e orun. Vê-se que a ideia de sagrado e impureza não são
necessariamente categorias opostas, como assim bem diz Douglas (1991). A morte para
determinada sociedade representa algo nefasto, aterrorizante; para outros, constitui elemento
aglutinador de uma totalidade; as coisas podem passar de impuro para puro a partir de dado
contexto, bem como a partir dos rituais a que são submetidos; os rituais dão certa unidade à
experiência mortuária.
Para Durkheim (1989), os rituais são símbolos de processos sociais e são válidos para
todos os tipos de crenças relativos ao contágio e, sendo estes fruto de processos sociais,
podem representar a influência para impor certo tipo de dominação. O rito faz, assim, apelo a
formas, ao mesmo tempo, articuladas e inarticuladas (DOUGLAS, 1991); portanto, se
olharmos através das regras estabelecidas, nós poderemos compreendê-las como
transgressões, já que as mulheres estão à margem da ordem vigente; por outro lado, as
integrantes da Boa Morte estão fora dessa ordem. Se levarmos em conta esse caráter ritual,
tudo entra em conformidade.
A Boa Morte, reconhecida como uma sociedade feminina, recorre à performance ritual
para sustentar por quase três séculos um poder baseado na forma feminina; neste sentido, a
feminilidade é vista como estratégia que auxiliou para a manutenção do grupo, mesmo que em
alguns momentos ela possa ser entendida como subversiva. Como sinaliza o fragmento de
entrevista abaixo:
categorias. A bissexualidade aqui não se relaciona ao ser sexuado, mas, parafraseando Klein
(1997), se conecta com a interioridade que propicia nas mulheres características psíquicas
masculinas, as quais ela aprecia, como cortar de machado, pegar peso. Thomas (1982) fala
dos privilégios que gozam as mulheres mais velhas, a velhinha de cabeça branca pode tudo
quando seu corpo diminui a água, refere-se o provérbio mandenka. Outras referências aos
poderes da mulher mais velha fortalecem a transgressão feminina. O poder pertence à mulher,
O trecho acima ratifica a nossa ideia do poder que detém a mulher mais velha, além
de embasar a tese de que é possível que as mulheres da Boa Morte possam realizar alguns
rituais relacionados à morte já que elas não possuem menstruação.
O ciclo de festa da Boa Morte é permeado por rituais que, de forma emaranhada,
homenageiam orixás masculinos e femininos relacionados à morte; todavia, vamos privilegiar
aqui aqueles que se envolvem diretamente aos processos da fecundação porque a Boa Morte
está associada aos orixás relacionados à vida. Não estamos falando apenas da fecundação de
seres humanos, mas de tudo o que existe, tanto no aiyê quanto no orun. Centraremos nossa
atenção, sobretudo, na função dos orixás que desempenham uma importância no
entendimento das funções mortuárias desenvolvidas pela Irmandade. De saída é bom salientar
que muitas de nossas interpretações encontram sustentação mais no campo teórico que na voz
de suas integrantes, visto que quase nada se sabe dos fundamentos religiosos de matriz
africana que perpassam o universo dessas mulheres. Por outro lado, é um universo rico em
simbolismos que muitas vezes pode induzir o antropólogo a incorrer em erros primários.
45
Tradução nossa de: [...] qui exprime la puissance particulière de celle qui, avec l`âge, devient en quelque
sorte une «femme-homme». Elle conserve, par-delà la ménopause, le privilège des expèriences féminines
(excision, enfantement) et participe auprés des hommes à la vie politique du village et même à l'initiation des
garçons. On l craint doublement et on dit d'elle: “La vieille femme gâte le village”. Le fait est assez “epandu
dans toutes les ethnies africaines” (THOMAS, 1982, p. 66-67).
108
Os òrìsà constituem o grupo dos òrìsà funfun, do branco, à frente dos quais se
encontra Obàtálà. Segundo nos relata o mito da criação, essa entidade simboliza
coletivamente todos os demais; ele detém o poder genitor masculino e todas as suas
representações incluem o branco. São os portadores e transmissores do “sangue branco”. As
oferendas feitas a esses orixás devem observar rigorosas prescrições:
109
muitos como a esposa de Oxalá, é a divindade mais velha do panteão feminino. Em alguns
casos, simboliza Obatalá, por isso é associada ao duplo: macho e fêmea. Nanã carrega na
própria origem do nome a função materna no lado esquerdo, cuja tradução do termo Na, na
raiz ocidental, significa mãe. Pelo fato de estar associada à lama é também lembrada como
fertilizadora, protetora dos grãos e da agricultura.
Nanã é tida como a mãe dos mortos e dos ancestrais; sua representação se faz através
das hastes de àtòri ou pelas nervuras de palmas que constituem um dos elementos da sua
ferramenta ritual – o Ibiri – e também o símbolo do xaxará de Obàlúaiyé, bem como dos
búzios que enfeitam todos os aparatos rituais de Oxumarê; estas últimas divindades são
orixás-filhos. Os búzios relacionados a três divindades resumem e sintetizam a interação dos
dois poderes genitores. Quando desprovidos de seus moluscos, os búzios expressam a
excelência simbólica dos duplos espirituais e dos ancestrais (SANTOS, 1984). Além das
representações acima mencionadas, os búzios estão associados à riqueza, à abundância e ao
segredo. À Nanã é atribuída a responsabilidade de receber em seu seio, isto é, na lama, os
mortos; essa atitude permite o renascimento.
As cores rituais de Nanã são o azul-escuro e branco ou lilás e branco. Esta divindade
liga-se diretamente à sociedade Íyá-àgbà, ancestrais femininos, do Egbé Eléye, isto é, a
sociedade das “possuidoras de pássaro”. Nesta complexa sociedade, Nanã é um membro de
extremo poder, ao passo que serve como representação coletiva de todos os ancestrais
femininos (cf. capítulo 1). Nanã também é simbolizada como Oduá – orixá que serve como
representação coletiva de todos os eguns femininos, já que as mulheres não possuem culto
individualizado. Voltaremos a ela para indicar sua importância nos rituais mortuários.
Na Boa Morte, Nanã também é lembrada nos rituais internos, e algumas comidas
votivas são servidas em sua homenagem. Por estar relacionada aos dois universos, Nanã
também está presente nos cultos que se fazem aos mortos, como já mencionado; ela é a
divindade responsável por receber os mortos em seu seio e lhes permite o renascimento,
através da sua relação com a água, a lama e a umidade. Sua homenagem é feita através da cor
preta, que representa o segredo, e do arroz-doce, mingau que é servido durante a festa.
Outro orixá que está localizado do lado esquerdo é Oxum que, segundo o mito, é filha
do poderoso pássaro Átiòro, fundadora e cabeça da sociedade das Iyá-àgbás, denominada Iyá-
lóde-ìlú, Egbé Eléyé ou ainda Iyá-mi, que traduzido ao pé da letra significa mães anciãs.
Importante divindade, originária das terras de Iejexá, tendo seus principais templos nas
cidades de Òsogbo e o Atáója (SANTOS, 1984); Oxum é também reverenciada por possuir
uma ligação estreita com a água e a terra, elementos portadores de axé do genitor feminino;
111
por isso, em África, comumente é relacionada ao rio que leva o mesmo nome, enquanto no
Brasil lhe é dedicado todos os rios e cachoeiras. Como já mencionado, Oxum é a genitora,
responsável pela fecundação e pela proteção da criança até que a mesma tenha conhecimento
armazenado e adquira a fala, assim como a inteligência; por esses cuidados, ela é conhecida
como a primeira das Iyá-mi, responsável por todas as crianças e, pelas qualidades de genitora,
detém o título de mãe ancestral suprema, da qual Nanã também faz parte. Outra característica
que não poderia deixar de ser mencionada é a sua ligação com o corrimento menstrual, o
sangue vermelho, portador do axé responsável pela concepção de novos seres; dos fatores
acima citados, Oxum é saudada pela Yé Yé que na língua fulani significa mãe.
Oxum pode ser representada de várias formas, uma delas pode ser um peixe mítico,
cujas escamas do corpo representam todos os peixes, razão pela qual é considerada protetora
dos peixes, que simbolicamente são seus filhos; isso explicaria também as devoções recebidas
pelos pescadores. A simbologia de Oxum como peixe é feita na região de Atàójá, local de um
dos grandes festivais e ao qual seu povo nutre grande reverência. Pode-se fazer representar
através dos pássaros, assim como todas as demais Iyabá; de igual modo, as penas simbolizam
a fecundação e procriação. Outra representação que pode aludir a Oxum é o ovo, símbolo por
excelência da procriação; também serve para preparar a sua iguaria predileta: o omolukun. O
mel extraído das flores ou o axé ou ainda o sangue das flores também a representa. Faz-se
uma ressalva: as flores levadas pelas integrantes da Boa Morte, no dia da procissão da glória,
é uma alusão a esta representação, fato confirmado informalmente por mais de um membro.
Dos metais amarelos (o ouro e especialmente o bronze) são fabricados o abebé (legue ritual da
divindade) e os ides utilizados como adornos. Na simbolização de Oxum, o sangue vermelho
representa o axé humano e o amarelo se faz pelo azeite de palma ou dendê.
Iyemanjá é a grande divindade das águas, adorada pelos pescadores. Está associada às
águas. O povo brasileiro tem uma verdadeira adoração pela divindade. É muito comum
encontrar homenagens a ela nas praias, diferente de em África onde é associada ao rio Ogum.
Liga-se às divindades genitoras, assim como Oduá e Nanã, representando assim a fase da
interioridade. É por excelência a mais eminente mãe, como expressa o próprio nome Iyemanjá
que quer dizer, mãe dos peixes.
A representação desta divindade está associada às cores azul-celeste ou verde-água.
Seus adornos e seu abèbê – legue ritual – são feitos do metal prateado, assim como dos orixás
funfun; suas sacerdotisas usam a conta ritual branco incolor, cores transparentes como os
cristais. É considerada esposa de Oxaguiã, com quem teve o filho Xangô. O fogo, simbólico
ritual de Xangô, surge como a interação do ar com a água. Assim, o vermelho do fogo
112
simboliza não apenas o poder da realização, corrimento menstrual do genitor do qual foi
concebido os ebora-filhos, como Xangô, mas o sangue neste contexto representa o axé da
realização, que circula e que permite a vida individualizada.
Iyansã ou Oya, rainha dos raios e dos relâmpagos, importante divindade situada do
lado esquerdo, é a única ebora-filha do lado esquerdo entre os orixás femininos. Esta
divindade contém simultaneamente vários elementos e materiais primordiais. Como ebora -
filha é considerada filha de Oxum, representada pelo elemento água; possui representação dos
reinos vegetal, animal e aos eguns. Os chifres de touro e o èrùkèrè que compõe uma de suas
ferramentas. Encontra-se presente no ar, no vento, tempestades e relâmpagos, que em
movimento dá origem ao fogo; por fim, pode ser associada aos ancestrais masculinos, sobre
os quais possui o poder de dominá-lo e dirigi-lo.
Os emblemas, vestimentas e fio de conta de suas sacerdotisas são de cor vermelho-
sangue, representação da circulação do axé de realização, que move e faz individualizar. Seus
adornos são feitos de cobre. Iyansã é considerada esposa e ao mesmo tempo o aspecto
feminino de Xangô, por isso, possui as representações nas cores vermelhas aludindo à sua
ligação com os dois planos da existência – orun e aiyê. Como ferramenta, Oya utiliza uma
pequena espada de metal cobre e èrùkèrè, uma espécie de vassoura feita com o pelo do rabo
do cavalo, usado para espantar os eguns e tirar as impurezas do mundo.
Obàlúaiyé é divindade considerada filha da genitora Nanã, por isso faz parte dos
ebora-filhos da esquerda. Ele se relaciona com a terra, troncos e ramos das árvores, os quais
conduzem o axé preto, vermelho e branco, cores que o representam. Entretanto é bom
salientar que as cores que o representam são puras e não matizadas; assim o filho de
Obàlúaiyé usa fio de conta formado por contas vermelhas, brancas e pretas. Embora possua
essas três cores como representação, a cor que melhor lhe representa é a preta, simbolizada
pelo elemento originário terra que por sua vez carrega o axé preto. O preto alude ao segredo
mais íntimo do ventre fecundado e aos espíritos da terra; o preto também está representado no
fio de conta feito com o casco do coco da palmeira preta; esse colar é denominado ígi-òpè e o
colar que melhor o representa. Além das cores mencionadas, Obàlúaiyé é a única divindade a
possuir o corpo coberto por ráfia e um xaxará formado por um feixe de nervuras de palmeiras;
esse feixe alude ao seu caráter coletivo dos espíritos ancestrais.
Como Nanã, Obàlúaiyé também tem seus símbolos adornados com búzios ou
carris, símbolo de abundância, riqueza e segredo; esse aspecto é também encontrado nos
adornos de Oxumarê, de quem é irmão. Os búzios também indicam a condição de
Obàlúaiyé de filho-ancestral. Quando manifestado em suas sacerdotisas, o corpo deste
113
deve ser recoberto pela vestimenta feita da palha da costa, de ráfia africana, conhecida
como Íko. A vestimenta é composta de uma saieta de ráfia, um filá, espécie de capacete
trançado em forma de cone, formando as palhas superiores um tufo, semelhante a uma
vassoura; todo o resto da palha é deixado livremente e forma uma espécie de cortina
grossa que não permite a identificação da sacerdotisa.
Santos (1984, p. 98) esclarece:
2.3.2 Exú
A figura de Exu nos remete para o início da criação, por estar relacionado a todas as
partes. A importância dessa divindade é tanta que nada pode ser ao menos pensado sem a
considerar. A cerca da sua relevância, uma releitura de um mito, narrando a criação do
mundo, revela o que segue.
Em um tempo imemorável, nada existia além do orun. Olorun, o grande criador, vivia
alegre e satisfeito com todos os orixás funfun, mas havia certa ociosidade. Então, Ele resolveu
criar o mundo, que seria habitado por seres mortais, mas semelhantes em tudo a Ele próprio, e
para realizar tal propósito iria precisar da ajuda de todos os seus filhos. Assim designou a
Obatalá, o seu primogênito, a tarefa de criar o mundo dos mortais, o qual chamaria de aiyê.
Nessa missão todos os orixás teriam função, mas todos ajudariam a partir das ordens de
Obatalá. Dito isto, Olorun passou às mãos do primogênito o apo-iwa, o saco da existência e
recomendou que seu plano não podia sofrer qualquer modificação, sob pena de não atingir os
115
seus objetivos. Além disso, Olorun pediu que o futuro criador, durante a missão, se abstivesse
de qualquer bebida fermentada.
Antes de partir, Obatalá consultou Orunmilá, o grande babalaô, pai que conhece o
segredo de todas as coisas, este determinou que a partida não poderia acontecer sem antes
haver realizado um sacrifício de cinco galinhas d‟angola, cinco pombos, um camaleão e
uma corrente com dois mil elos, que deveriam ser oferecidos a Exu-Elegbará; além de
duzentos caracóis igbin que necessitariam ser sacrificados aos pés de Olorun . Somente
desta forma Obatalá teria êxito em toda a missão. Porém Obatalá, indignado e julgando-se
superior, recusou-se a fazer tal procedimento, pois no seu entender ele era o mais
poderoso de todos os orixás, o senhor da vida e da morte, a quem Olorun confiara a
criação da terra e dos seres que nela habitariam. Portanto não deveria fazer o que Ifá
determinara, já que se assim procedesse estaria outorgando a Exu os direitos que a ele
foram concedidos. “Ifá não se deixa enganar e nem se corrompe, o sacrifício foi
determinado, cabe a ti cumprir ou não”, acrescentou Orunmilá!
Sem proceder ao que determinara Ifá, Obatalá reuniu, dentre outras divindades,
Oluorogbo, Olufan, Eteko, Oguiyan, Oluofin e a própria Oduduá. O local onde deveria a terra
ser criada ficava bem distante do orun e nunca havia sido explorado pelos orixás funfun,
embora o caminho fosse conhecido por alguns eboras, como Exu, Ogun, Oko, Oxossi e Ifá.
Não obstante o empenho, o sol forte e o cansaço começaram a abater os orixás que foram
desistindo ao longo da caminhada; além disso, a água que cada orixá levava tornara-se
insuficiente para o percurso; apesar de tudo, Obatalá continuou. Mas o sol o castigava, a sede,
a areia quente, o que aumentava a produção de suor, fazendo com que a sua roupa branca
colasse ao seu corpo e consequentemente dificultasse o seu andar. Chegou um momento em
que Obatalá estava muito cansado e suplicava por uma sombra para repousar um pouco antes
de seguir viagem.
Exu estava lá, com seu gorro em forma de cone, nas cores vermelha e preta, saiote
curto com tecido leve também vermelho e preto e no peito um pano feito com uma ponta
amarrada na cintura e a outra no ombro direito, na cintura enfeitada com búzios e cabacinhas,
contendo diversos pós mágicos; na mão esquerda apoiava seu cajado de madeira, denominado
ogó – instrumento que lhe dava o poder de bilocação ou de transportar-se em fração de
segundos para os locais onde desejasse visitar, por mais remoto que fosse. Exu, que a tudo
observava e seguia o percurso de longe, disse que estava na hora de agir. Foi então que,
usando um dos pós mágicos contidos nas suas cabacinhas amarradas à cintura, girou sobre a
própria cabeça de forma a envolver-se em um redemoinho que o transportou à frente de
116
Obatalá; utilizando-se mais uma vez de outra cabacinha contendo outro pó mágico fez surgir
uma palmeira que rapidamente atingiu uma altura com palmas bem frondosas e que de longe
foi vista pelo suposto grande criador. Tal visão levou Obatalá a querer alcançá-la, pois o seu
corpo já não aguentava mais. Ao alcançar a palmeira, o grande orixá deduziu que, pelo
tamanho da árvore, esta, com certeza, teria água que pudesse matar sua sede, e assim golpeou
com seu cajado na árvore e numa cabaça recolheu a seiva que dela brotou, e bebeu tanto
líquido até que ficou saciado; devido ao cansaço e ao grande teor alcoólico contido na seiva
da palmeira, o orixá ficou completamente embriagado, o que o fez cair num sono profundo.
Os poucos orixás que ainda o acompanhavam, vendo seu líder embriagado e tentando acordá-
lo sem êxito, resolveram voltar ao orun para dar ciência a Olorun do fato ocorrido. Ao lado de
Obatalá ficou o saco da existência.
Exu, após verificar que todos haviam partido e que Obatalá dormia profundamente,
pegou sorrateiramente o saco, cumprindo assim parte de seu plano, pois a ele Olorun
havia dado a função de castigar a quem desobedecesse às ordens de Ifá. Nesse meio
tempo, Odudua chega ao palácio de Olorun e chora ao relatar que seu irmão havia se
perdido no aiyê e, sem ter quem os guiasse, foram obrigados a voltar. Mas Olorun já sabia
que tudo havia sido tramado por ela e Exu; porém tudo estava dentro dos planos d‟Ele, já
que aparentemente tudo que se opõe, na verdade, se complementa, se completa e se
integra para que o plano se manifeste!
Olorun disse a Exu: eu lhe outorguei o título de Elegbara, que significa aquele que tem
o poder ilimitado, portanto você está fazendo aquilo que está nas suas funções. Foi aí que Exu
passou a narrar a negligência de Obatalá em relação ao preceito designado por Ifá, o que
comprometeu seu axé; ainda frisou que nem um banho de ervas ele havia tomado, porém
ressalvou: ele se mostrou valioso e valente, de forma que achei que conseguisse seu
empreendimento. Entretanto Olorun ouvia atentamente a fala de Exu e se divertia, pois tinha
grande admiração por aquele orixá que conservava o espírito moleque, zombeteiro, astuto e
com uma inteligência não encontrada em nenhum outro orixá, além de possuir a missão de
agente mágico universal, o grande transformador, responsável pelos diferentes aspectos e
formas assumidas pela matéria. Foi-lhe dado o poder de multiplicar-se em miríades de Exus,
individualizando-se, mas parte integrante do Exu principal, Agba-Exu46. E, por este motivo,
concedeu-lhe também o título de Ijelu, associando-o a Okotó – caramujo cônico formado por
espirais que se desenrolam infinitamente. Contudo, Olorun ainda reservou a Exu o poder de se
46
Este Exu dentro da simbologia nagô é considerado o Exu mais velho ou Exu ancestral.
117
desdobrar em 1.201 unidades, podendo ser acrescido a este número mais uma unidade,
elevando ao infinito a capacidade de desdobramento, podendo ainda o mistério ser associado
ao número 1 47.
Assim, após ouvir com muita atenção a narrativa de Exu, Olorun disse que iria
confiar à sua filha predileta, Oduduá, a missão que Obatalá não foi capaz de cumprir e
advertiu-a sobre os procedimentos que esta deveria fazer a fim de obter a plenitude de seu
objetivo. Muito compenetrada, Oduduá ouvia todas as determinações de seu Pai. Oduduá
convocou todos os orixás e falou-lhes da importância de cada um para o bom êxito da
missão. Solicitou a ajuda de Exu e o convidou para juntos fazerem aquilo que lhe fora
confiado, pois reconhecia que sem Ele nada poderia ser feito. Durante a consulta, Orunmilá
viu que a vitória de Oduduá era certa, mas ela iria percorrer os mesmos caminhos de Iku (a
morte). O mundo que ela iria criar era feito de matéria perecível e com seres semelhantes ao
grande Pai, mas com essência igualmente perecível às demais coisas do mundo. Iku é
responsável por devolver a terra à terra após retirar dela o espírito, que pertence a
Olodumarê, cujo rosto não pode ser fitado por ninguém e cuja origem está n‟Ele mesmo.
Além disso, recomendou-lhe o uso de vestes totalmente pretas, cor do Odu que daria o
caminho; estas vestes são usadas pelos homens, mas ela teria a permissão para usá -las.
Oduduá reinará sobre a terra sob a regência do Odu Oyeku Meji, que representa a saturação
da matéria em sua densidade absoluta, que o induz à busca do retorno à espiritualidade,
mudança inexorável que só pode ser obtida pela morte. No primeiro momento, Oduduá
ficou assustada, pois na sua condição de rainha teria que se curva r diante de Iku, pai da
tristeza e do pranto. Orunmilá ainda advertiu que Iku é o orixá mais fiel dentre todos os
orixás, aquele que jamais deixa de cumprir integralmente sua missão, seja o que for. Ele
atingirá pobres e ricos, mulher e homem, todas as raças; de qualquer religião ou credo. É o
único orixá que tomará a cabeça de todos os humanos sem saber religião ou se mesmo tem.
Assim aceitou Oduduá toda mensagem enviada por Ifá através de Orunmilá. Cumpriu as
mesmas determinações que o Grande Babalaô havia feito a Obatalá em relação à figura de
Exu, porém ao cumprir a segunda parte em relação a Olorun, este a repreendeu pois ainda
não havia partido; ela então lhe explicou que cumpria as determinações de Ifá, por isso
oferecia-lhe 200 caracóis igbin sacrificados aos seus pés. Olorun entendeu a explicação e
aceitou comovidamente o presente, ao passo que lhe devolveu um dos caracóis e ao levantar
47
Juana Elbein dos Santos (1984, p. 130 et seq) traz uma rica descrição sobre a simbologia do número 1 e sua
associação à figura de Exu.
118
de sua almofada apéré-odu para guardar o presente percebeu que havia se esquecido de
colocar no saco da existência uma cabaça contendo a terra, o que o fez rapidamente.
Oduduá já havia cumprido toda determinação de Ifá, por isso poderia partir para a
grande missão, convocando todos os orixás: determinou que Ogun, Senhor da guerra e do
caminho, deveria ir à frente, indicando o caminho, acompanhado por Ossaiyen, Senhor das
sementes e dos mistérios das folhas, e Aguê, seu fiel escudeiro, Oxossi, senhor da caça, e
Oxum, senhora das águas. Já havia convocado Exu e também os Funfun. Exu caminhava um
pouco afastado da caravana e Orunmilá o acompanhou para perguntar o que ele estava
achando da viagem. Foi aí que o grande sábio revelou que durante a consulta de Oduduá ele
não havia falado tudo que tinha sido revelado por Ifá. Oduduá criaria seres compostos de duas
partes, uma material e outra espiritual, mas com o tempo a matéria deveria se desintegrar do
corpo para retornar ao orun; esse ato é denominado cortar a cabeça, isto é, a ligação do aiyê
com orun, o desligamento da matéria do espírito. Portanto, o ser humano se comporia de
quatro partes, incluindo a forma espiritual, partícula desprendida do grande Olodumarê, Pai de
todos; esta parte é conhecida como Ipori, parte divina e imortal de todos os humanos. As
outras partes: emi, ará, ojiji seriam submetidos à ação de Iku. Todavia Ipori, uma vez liberado
do corpo material, deveria regressar ao aiyê tantas vezes quanto fossem necessárias. Exu
ouvia com atenção ao tempo em que sorria, diante do que Orunmilá chamou sua atenção para
a sua função no processo de criação, dizendo: “todos os orixás, a partir do momento em que
tomarem a forma material e deixarem de ser cultuados, morrerão, mas você será o último a ser
submetido a Iku, porque quando isso ocorrer todo o universo se desintegrará, as formas
materiais deixarão de existir e o vazio absoluto tomará conta de tudo. Você é a energia que
reúne os átomos, possibilitando a diferenciação da matéria, assim todas as coisas conterão
uma parte de você e, portanto, você deverá multiplicar-se infinitamente sem perder a
qualidade e o poder de sua essência primordial, por isso seu nome, Exu, significa Esfera.”
Exu ficou pensativo e envaidecido com o que ouvira. Após essa revelação, Orunmilá pediu
que Exu acompanhasse a caravana, pois Oduduá contava com a sua ajuda. Assim, Oduduá,
Senhora da vida e da morte, criou o mundo para habitação dos seres. 48
O mito mostra com muita grandeza a importância de Exu não apenas na criação do
aiyê, onde habitam os seres humanos e o duplo de tudo que existe no orun. Deste modo,
no próximo capítulo voltaremos a mencionar a sua participação no processo de definição
48
Este mito foi recontado a partir das versões narradas por Juana Elbein dos Santos (1984) e Awofa Ogbebara
(Adilson de Oxalá) (2010).
119
2.3.3 Boa Morte: ritual, segredo e poder através dos orixás da esquerda
Foucault (1988)49 traz uma reflexão acerca do poder, na qual diz que a grande ruptura
ocorrida nas sociedades ocidentais foi de natureza valorativa, ou seja, atribuição de valor à
vida. Tal ocorrência possibilitou que os discursos da ciência da vida e o discurso do biopoder
fossem associados. Esses diálogos expressavam suas formas de controle social sobre os
corpos e davam ênfase social a temas relacionados ao nascimento, à sexualidade e à
reprodução, e para aplicação são usados mecanismos de poder que
[...] apoia-se mais nos corpos e seus atos do que na terra e seus produtos. É
um mecanismo que permite extrair dos corpos tempo e trabalho mais do que
bens e riquezas. É um tipo de poder que se exerce continuamente através da
vigilância e não descontinuamente por meio de sistemas de taxas e
obrigações distribuídas no tempo; que supõe mais um sistema minucioso de
coerções materiais do que a existência física de um soberano. Finalmente,
ele se apoia no princípio, que representa uma nova economia do poder,
segundo o qual se deve propiciar simultaneamente o crescimento das forças
dominadas e o aumento de força e da eficácia de quem as domina.
(FOUCAULT, 1979, p. 187-188, grifo do autor).
49
Ver a obra intitulada Microfísica do poder (1979) e História da sexualidade: a vontade de saber (1985).
120
Partindo desta premissa e aludindo para as cores das indumentárias usadas pelas
integrantes da Boa Morte, vimos que o conjunto de cores-símbolos representa não apenas os
orixás dos írunmalé da esquerda, tais como Nanã, Iyansã, Obaluaiyê, Ogum, Oxumarê,
Xangô, Iemanjá, Oxossi, Osaiyen e Exu, que simultaneamente tanto pertencem à direita e à
esquerda. Privilegiamos aqui a descrição de alguns desses por estarem diretamente associados
às cores-padrão que originam as demais.
Supostamente, o nascimento da Boa Morte se dá ainda no período escravista e como a
religião dos escravizados era totalmente vista como inferior, as pessoas não podiam cultuar
seus deuses de forma explícita, clara. Assim era preciso criar estratégias para que sua
memória religiosa não se perdesse. É a partir deste contexto que podemos inferir
interpretações acerca da relação da Irmandade com os rituais mortuários. Sendo a Boa Morte
um espaço predominantemente feminino, fica sempre a dúvida de que elas não podem realizar
tais rituais. Todavia, os rituais permitem adentrar em espaços proibidos; assim, os rituais
realizados pela Boa Morte são simbolizados, mas igualmente são tão eficazes quanto os
realizados pelos homens em Itaparica. Como axêxê é um ritual mortuário que não requer a
presença de Babá, é possível que a Boa Morte realize uma espécie de axêxê, invocando as
divindades da morte relacionadas.
A festa começa não apenas no dia 13 de agosto; ela começa antes, como afirma
uma integrante:
A gente começa a se organizar antes, cada uma em sua casa, mas antes
começa em abril a tirar a esmola para se fazer a festa que era pra agosto ter
o dinheiro. Aí agosto é um mês de Nossa Senhora, quem tem marido se
afasta dele, a gente vive só para a festa. A gente fica todas reunidas lá no
casarão da irmandade, durante a festa: dormimos, comemos lá. Depois, dia
13 começa a festa, o primeiro dia a celebração das irmãs falecidas, a festa é
da Boa Morte né? Segundo dia, a Boa Morte é a procissão que é o enterro,
terceiro, é o dia da Glória, agora no seu derradeiro dia da festa, as irmãs
recebem a posse da nova comissão da festa do próximo ano. (Estelita, 110
anos, Juíza Perpétua).
As etapas descritas pela integrante podem ser associadas às fases dos rituais realizados
no axexê. Quando ela diz que cada uma se prepara em casa, é possível que sejam realizados
alguns rituais não pertencentes ao universo católico. Além de que, no sábado dedicado à
procissão do enterro, também é realizada a vigília. Como não é permitido o acesso, é possível
que também sejam realizados rituais ligados ao universo de candomblé, mais precisamente
ligados à morte. No terceiro dia, há uma explosão de alegria, cores, comidas.
121
O universo dos rituais dedicado aos ancestrais é formado por variadas formas de
comportamentos. Estes comportamentos procuram distanciar-se das experiências cotidianas,
ao passo que fazem emergir um novo tempo, tempo este marcado pelas afirmações sagradas
contadas por meio de fatos cotidianos e mitológicos. Entretanto, ainda que o homem coloque-
se à parte das experiências corriqueiras, acaba por se deixar influenciar pelas determinações
de um tempo diferenciado. Neste capítulo, veremos como as coisas sagradas acabam por
determinar normas e comportamentos, sobretudo naquilo que se refere à circulação e atuação
de homens e mulheres. Para alcançar tal propósito colocaremos em relevo a voz de mulheres
que veem na postura masculina uma forma de reificação da ordem estabelecida. Mas é bom
dizer que, em meio a vozes femininas de aceitação, ouve-se eco de mulheres que reivindicam
mudança; ainda que para isso tenham que tocar em pontos conflituosos, como o da tradição.
Os homens e mulheres que emprestarão suas experiências neste capítulo são do terreiro de
Egun Lesen-Agboula.
A atuação dos homens nos rituais mortuários do Agboula é muito importante por
serem eles os principais oficiantes do culto; sua postura corporal parece dizer mais que
palavras proferidas, já que dentro do ritual e também fora dele uma piscadela d‟olhos pode
significar coisas completamente diferentes das usuais, podendo impor uma hierarquia para
além das circunstâncias. É a força da ritualidade mortuária que traz à terra os ancestrais, que
por sua vez proporcionam aos viventes vitalidade, poder de realização e harmonia entre os
membros da comunidade. Os comportamentos dos moradores do Bela Vista traduzem
124
50
O depoente refere-se ao terreiro de Babá Agboula que está à sua frente.
126
mulheres depenam os bichos, cuidam do barração, cantam e dançam, mas logo reafirma que
elas não interferem no culto, é como se todo o trabalho feito pelas mulheres não tivesse
importância alguma.
As funções das mulheres não são valorizadas; ao contrário, em todas as entrevistas
realizadas com os homens, nenhum deles lembrou espontaneamente da participação
feminina. O discurso valoriza o masculino, lembra-se que tudo deve estar consoante à
tradição, por isso aceita que Iyansã seja Rainha; no entanto, em outro trecho da entrevista
diz que seria melhor que fosse um orixá homem. Já no discurso seguinte, o depoimento
revela a importância de duas mulheres dentro do culto de Babá. A primeira delas é a de sua
mãe – Iyakekerê do terreiro Agboula; a segunda é a presença da ilustre Mãe Senhora,
frequentadora, com o cargo de Iya-Ebé do Agboula. Não obstante a sua importância, deixa
transparecer que sua mãe na vida cotidiana era uma mulher como outra qualquer. Evoca a
figura masculina de seu pai como provedor da família e é consequentemente notável quanto
a duas mulheres citadas por ele. É bom salientar que a narrativa surgiu após inquirirmos
sobre pessoas que foram importantes na sua vida. Mas ao contrário, o que prevale é a
mudança que a Mãe Senhora implementa no Agboula, pois para atender a um requisito
pessoal a Iya-Ebé, pede autorização ao Babá para mudar algo que ninguém havia ousado
sugerir. São estratégias usadas pelas mulheres que conferem mudanças profundas e que os
homens passam a segui-las sem que haja contestação, pois aquilo que é uma determinação
divina é pouco ou quase nunca questionado.
Talvez a narrativa do depoente mostre uma visão androcêntrica, em que o homem é
sempre aquele que trabalha para nutrir a família. Em contrapartida, ao investigar a vida de
mulheres negras, com especial atenção para as da Irmandade da Boa Morte, percebemos
que a maioria delas era, e ainda é, chefe de família, provedora do lar. Várias são as causas
que explicam tal fenômeno, dentre as quais a facilidade de acesso das mulheres ao mundo
do trabalho desde o pós-abolição, quer doméstico quer no comércio ambulante, herança
das primeiras negras africanas que aportaram no Brasil, além do que o conjunto de dados
históricos atestam a notoriedade feminina desde os primórdios da Barroquinha
(SILVEIRA, 2006).
Durante uma entrevista, outro depoente deixa transparecer a razão pela qual o culto de
Babá tem por Rainha Iyansã, já que todos afirmam que é um culto masculino.
E – Por que Iyansã é Rainha do culto? M – Eles dizem que ela é mãe de
Egun porque justamente ele só respeita a ela. E ela é rainha do culto, quer
dizer então ela mexe com ele também, é a mesma coisa você dizer, por que
127
ela teve esse poder? Foi por causa de Xangô, porque Xangô foi quem
determinou ela para vim para cá, porque Xangô tem ela para mandar. Mas
as histórias africanas também dizem que Xangô tem medo da morte; Xangô
não tem medo da morte. E – Explica um pouquinho essa história. M –
Mentira, é mentira, Xangô não tem medo da morte, Xangô é o Rei, Xangô
não gosta de lidar com a morte, porque ele é vivo, ele é vivo, ele não é
morto, Xangô é vivo. Então, quando ele é dono de uma cabeça e ele está
vendo que o cara vai partir, quando o cara de Xangô vai morrer enquanto
ele estiver ali por perto o cara não morre; o indivíduo fica, morre e vive,
morre e vive, morre e vive, quando Xangô ver que o filho não vai ter jeito
ele vai embora aí o filho morre, ele não tem medo. Outra história é a de que
o povo de Xangô não vai no cemitério. Ah! Eu não vou no cemitério porque
sou de Xangô. Mentira! Xangô ele manda, mas não vai, é por isso que tem
Iyansã de Balé, é por isso que tem Iyansã de Balé para manobrar junto com
Nanã ir resolver esses problemas, porque Xangô não se mistura, não se
mistura com quem já morreu. (Marciano, Ojé. Em depoimento).
Tem uma lenda na parte de lesen-orixá que diz que Iyansã foi a primeira
mulher que trouxe Egun ao mundo, ela é o elo para ele vir à terra. Quando
Iyansã queria ser coroada Rainha, ela então ela desafiou Xangô, então
Xangô veio até ela, aí quando ele chegou perto ela colocou em volta dele um
monte de Egun, Xangô ficou com medo e correu, então desde esse dia que
Iyansã se tornou a Rainha dos espíritos dos mortos. Hoje em dia nas partes
128
fúnebres e de Egun Xangô não entra, ele corre e Iyansã é a única que
controla os Egun. (Carmélia, Laleji do Terreiro de Babá Agboula)
Em outro depoimento, outra integrante mostra a razão pela qual as mulheres são
importantes.
Essa integrante esforça-se para manter o discurso dominante, porém de forma indireta
apoia a participação feminina. Como na África, aqui no Brasil, as culturas tradicionais não
passam incólume diante dos apelos modernos e da conquista de direitos, por isso, há uma
preocupação da depoente em manter a uniformidade das narrativas do grupo, visto que todos
querem passar a ideia de que o culto é feito pelo e para o masculino, mas paulatinamente
cedem às qualidades femininas dos feitos masculinos. Prestemos atenção a mais uma resposta
de uma integrante quando inquirida sobre a participação feminina:
Como se vê, a narrativa de Narcisa, bem como a de Marta, é marcada por uma
preocupação inicial em preservar o discurso corrente da masculinidade, assim perpetuando
uma tradição. Em contrapartida, ao mencionar a participação de Iyansã, ela confirma a
presença da divindade nas homenagens, além disso, acrescenta que elas (mulheres) participam
129
de grande parte dos rituais, ainda que isso contrarie a ordem estabelecida. Todavia, no final do
depoimento ao perceber que suas palavras haviam contrariado o discurso hegemônico, ela põe
tal explicação no plano espiritual, na qual afirma que a participação de Iyansã no culto é algo
pertencente ao segredo; a linguagem passa de uma dimensão física para a espiritual: assim se
compõe a cosmogonia do culto de Babá. Thomas (1983, p. 515) fala a respeito:
51
Tradução livre de: “Así, la simbólica africana es un lenguaje. Pero no importa qué lenguaje: ella quiere ser
la expresíon de un drama, el de la vida, el de la lucha en cual se enfrentan la Vida y la Muerte. En suma,
cada símbolo implica: una alusión al saber, procedimientos mnemotéccos, unidades de almacenamiento que
encierran un máximo de informaciones; una referencia al valor o más bien a los valores fundamentales de la
colectividad, los que aseguran supervivencia y su reproducción; una finalidad dentro del rito, que hace
coherente (a la vez en el plano formal y en el de la vivencia) a los momentos-claves, asegurando así su
unidade, su totalidad viviente, por lo tanto su éxito; una estructura de acción en el seno de la cual cada
„actor‟ (vivo o antepasado, sacerdote o fiel, sacrificador o sacrificado, iniciador o postulante) entra en juego
de una manera litúrgicamente codificada.”
130
contradições discursivas verificadas nas ações e representações rituais sagradas e secretas como
na vida cotidiana. Nesta vasta escala de relações cotidianas há performance artística, ritual,
esportiva e de entretenimento, há estratégia executada consciente e/ou inconscientemente, o que
para Schechner (2010) configura uma performance e não um teatro, já que todo teatro pode ser
considerado uma performance mas nem toda performance pode ser considerada teatro. Neste
mundo de subjetividades, o acesso a determinados espaços por um número reduzido de homens,
e totalmente interditado às mulheres, representa um tipo de força, poder, e quem dele logra
possuir autoridade, do acesso ao saber do segredo, podendo assim interceder junto aos
ancestrais ou forças divinizadas pelo bem-estar de seu grupo ou daquele que busca alento, assim
como fica incumbido de preservá-lo.
O mundo masculino é um mundo de verdades aparentes onde nem sempre a palavra
representa a ação; como já demonstrado, as mulheres estão na ação do dia a dia, estão nos
rituais, mas constantemente são relegadas ao mais profundo do esquecimento e fazem de tal
forma que as próprias duvidam da sua importância.
mais velhas, já que ele as auxilia nas tarefas domésticas, como lavar louça e roupa, varrer casa
e organizar os ambientes, além das tarefas como comprar alimentos, ir ao banco. Muitas
vezes, se junta a outros adolescentes para praticar algumas brincadeiras, incluindo o
ensinamento de danças rituais dedicadas aos Eguns ou aos orixás.
O jovem nunca se mostrou na companhia dos homens mais velhos, exceto nos espaços
rituais, uma vez que no terreiro-matriz o mesmo possui o cargo de Alabê, já que é um exímio
tocador de atabaque, além de dedicar-se a outras atividades relativas ao culto. Na sua função,
Juliano goza de certos privilégios, tais como reverência dos mais jovens; é solicitado por Babá
para tocar exclusivamente para ele; no rega-bofe é um dos primeiros a ser servido. Todavia,
na sua vida cotidiana as pessoas o olham com uma certa desconfiança, um misto de
inquietação e tranquilidade, uma vez que Juliano passa o dia executando atividades que
julgam não serem condizentes com as desenvolvidas pelos homens da comunidade. Por outro
lado, não desperta ciúmes quando este se encontra na roda de mulheres; deste modo, para a
maioria dos moradores, o jovem não atende a todos os critérios da masculinidade hegemônica.
A maioria dos rapazes da idade de Juliano possuem namorada, ou muitas vezes
encontra-se casado, com filho, ou tem filhos fora de uma relação marital; o jovem rapaz está
fora desses padrões; representa, portanto, na visão hegemônica, a contradição daquilo que é
considerado a masculinidade. O rapaz, a todo momento, é abordado pelos mais velhos com as
seguintes perguntas: “quando você vai arrumar uma namorada? Você já está na hora de
casar!” Outras vezes, homens e mulheres mais velhos usam expressões designadas apenas
para mulheres: “demorando assim de casar você vai ficar pra titia”. Algumas pessoas vão
mais longe e ainda questionam o rapaz da seguinte forma: é titio ou titia?
É interessante notar que Juliano não dá qualquer resposta, ademais mostra-se
sorridente ante aos questionamentos. Além disso, o jovem não apresenta qualquer jeito
“afeminado”, o que não leva as pessoas a classificá-lo como gay, como acontece com outro
jovem do local; logo, o caso permanece sem uma classificação, mas percebe-se que as pessoas
mantêm uma certa desconfiança não verbalizada.
O caso Juliano é bom para pensar as maneiras como as masculinidades e feminilidades
são construídas, à medida que se revela paradoxal, já que de um lado tem-se um rapaz que faz
atividades consideradas femininas, por outro desperta olhares desconfiados acerca da sua
sexualidade. Ao mesmo tempo, Juliano goza do respeito de todos pela atividade que exerce no
culto de Babá, cujos homens são seus principais oficiantes. Essa aparente contradição mostra
que a construção das categorias masculino e feminino se faz por meio de um conjunto de
fatores e situações e que o meio social é fulcral nessa construção. Aqui o caso contrapõe-se à
132
ideia difundida nos estudos feministas dos anos de 1960 e 1970, nos quais a mulher aparece
como a única a sofrer a dominação masculina; ainda que velada, Juliano sofre homofobia ou
uma dominação masculina 52, uma vez que o comportamento dos homens mais velhos é
permeado de uma relação de poder que, como tal, envolve a autoridade, o controle e a
coerção: as hierarquias do Estado e negócio, violência inter-pessoal e institucional, regulação
sexual e vigilância, autoridade doméstica e sua contestação. No dizer de Connell (1995), a
opressão da masculinidade hegemônica, em que se busca uma resposta aceita pela maioria dos
homens, ao mesmo tempo defende posições de um patriarcado, garantindo a posição
dominante dos homens e a subordinação da mulher. Assim os mais velhos, principalmente os
homens, revelam uma certa discriminação em relação ao jovem, já que para estes a opção
sexual do adolescente permanece ainda sob supeita. Welzer-Lang (2001) afirma que o
paradigma naturalista da dominação masculina divide o mundo em dois grupos hierárquicos:
homens e mulheres, dando privilégios aos primeiros às custas das segundas; no caso dos gays,
os heterossexuais procuram recusá-los, através de ameaças, sustentando-se através de padrões
de virilidade considerados normais; portanto, caracteriza-se uma atitude homofóbica já que,
para eles, o comportamento não se adequa a este modelo. Tanto Juliano quanto os Ojés são
frutos do mesmo processo patriarcal, contudo, Juliano, dentro de uma visão hegemônica do
masculino, talvez carecesse de masculinidade.
Talvez o comportamento de Juliano se encaixe na descrição dos estudos psicanalíticos,
os quais julgam os indivíduos a partir da divisão social do trabalho, encaixando-os na
contradição da personalidade humana, dentro dessa perspectiva, e a grosso modo seria uma
anomalia de comportameto. Vê-se que a influência do meio social pode ser um dos
determinantes, isto é, o fato de Juliano ser criado com a avó, sem a presença masculina dentro
de casa, pode ter contribuído para melhor aceitação e naturalização da realização das
atividades tidas como femininas. Essa premissa pode encontrar justificativa nas posições de
Bourdieu (2010, p. 17):
A divisão entre os sexos parece estar “na ordem das coisas” como se diz
por vezes para falar do que é normal, natural a ponto de ser inevitável: ela
está presente, ao mesmo, em estado objetivado nas coisas (na casa, por
exemplo, cujas partes são todas sexuadas), em todo mundo social e, em
estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes, funcionando
como sistemas de esquemas de percepções, de pensamento e de ação.
(grifo do autor).
52
Segundo Welzer-Lang (2001, p. 465), a homofobia é caracterizada pela discriminação contra as pessoas que
mostram, ou a quem se atribuem, algumas qualidades (ou defeitos) atribuídos ao outro gênero.
133
(ALMEIDA, 2004, p. 54), ainda que a maioria dos estudos associem a masculinidade à
ausência de feminilidade ou a-feminino.
Na ritualidade do culto de Babá Egun, cada adepto desempenha uma função, cada um
executa sua performance de acordo com os padrões do grupo, mas cada indivíduo o faz de acordo
com sua singularidade. Juliano, na cotidianidade, faz suas tarefas domésticas, sendo entendidas
por muitos moradores como uma performance feminina; já as danças que o mesmo executa
ensinam às crianças o contato com o conhecimento corporal, com a leveza, a aproximação com a
energia sobrenatural; as roupas masculinas e/ou femininas nada têm a ver com a opção sexual,
mas os gestos podem ser melhor compreendidos e apreendidos, como as saias usadas para o
aprendizado das danças dos orixás femininos. Entretanto, na construção da performance corporal,
nem tudo é tão duro, assim como na cotidianidade nem tudo é irrefutável.
É no corpo que Juliano projeta a sua vida cotidiana, a performance praticada no dia a
dia vai ao encontro das reflexões propostas por Mauss no célebre ensaio sobre as técnicas do
corpo, em que o corpo é apreendido dentro de domínios físicos, psicossociais e sociais. As
projeções corporais dadas por Juliano ao seu estar no mundo parecem incomodar mais aos
outros do que a si mesmo, posto que ele o faz com naturalidade. É preciso salientar que a
prática social se faz pelo e para os corpos que são consumidos pelas estruturas sociais; o
corpo de Juliano não é apenas uma identidade física, ele é um sistema de ação, um modo de
práxis mergulhadas nas interações cotidianas, essenciais para as narrativas da autoidentidade.
(GIDDENS apud ALMEIDA, 2004).
exemplo, são obrigadas a se sentarem de pernas fechadas, não usarem roupas curtas ou
decotadas, a fim de não despertarem desejo sexual masculino, falar baixo, dentre outros
comportamentos. Todavia, nas tarefas domésticas, os comportamentos das mais velhas são
ensinados às meninas desde cedo, ao passo que são reproduzidos em suas brincadeiras. Nesse
aprender, as pequenas mulheres ensinam às suas bonecas atividades como: preparar
alimentos, lavar roupas, cuidar da casa; instruem-lhes também a falar baixo, sentar
adequadamente. Igualmente ocorre com as tarefas desempenhadas pelas mais velhas dentro
do culto de Babá Egun, como depenar bichos, limpar o barracão e cuidar dos orixás que
chegam para as cerimônias. Segundo Foucault (1988), em toda e qualquer sociedade, o corpo
do indivíduo está preso a diversos tipos de poderes muito delimitados; a ele impõem
proibições ou obrigações que acabam por controlá-lo, coercitá-lo; tal movimento ficou
conhecido como indisciplina, justificando o controle sobre o indivíduo; requer a aplicação de
tais técnicas, mas o conjunto de todas as técnicas empregadas no controle dos corpos foi
denominado por Foucault como método da disciplina. Esse movimento pode ser percebido
nas recomendações e processo de controle das meninas em relação ao uso social de seus
corpos. A vigilância das mais velhas quase sempre dá origem a corpos disciplinados dentro de
uma normatização dominante. Mas podemos ampliar isso para os séculos de colonização pelo
paradigma do homem branco, classe média e cristão, que impôs ao homem negro sua cultura e
o colocou no lugar da não existência, relegando ao seu corpo as piores atrocidades; assim
como os grupos aqui pesquisados descendem desse processo de colonização e/ou
escravização, encontramos neles comportamentos que se aproximam dessas mentalidades a
eles transmitidas.
As meninas, em suas brincadeiras, também recorrem às posturas tidas como
masculinas ao proibirem suas bonecas ou companheiras de entrar em espaços sagrados; elas
assumem o comando do culto, fazem as compras dos alimentos e se portam em rodas de
conversas como se fossem apenas homens.
O comportamento das meninas do Agboula é uma prática corrente nos candomblés
baianos, nos quais seres inanimados tornam-se fetiches por meio de rituais, conforme notamos
em uma narrativa de Landes (1967, p. 76) sobre os candomblés, na década de 1930, na Bahia;
segundo a autora, uma mulher apresenta-lhe uma boneca que se tornará dona das águas,
acrescenta a mulher. A autora mostra-se espantada pois sua depoente diz que a boneca será
batizada por um padre, o que revela a presença do catolicismo ou a dupla pertença já na
década de 1930, quando as religiões de matriz africanas eram ostensivamente perseguidas. Já
a pesquisa de Bernardo (2003) apresenta a relação de amizade entre Olga do Alaketu e Dom
136
Timóteo, abade da igreja católica que, além de participar das festas do terreiro, também
batizava as bonecas dos erês. Mais uma vez fica evidente que a brincadeira infantil serve para
a reprodução de práticas cotidianas, engendrando paulatinamente nas crianças comportamento
da sociedade. As crianças utilizam esses espaços para conhecerem e fazerem parte do
universo dos adultos, que no futuro se tornará uma realidade em suas vivências. Tais
comportamentos permitem às crianças penetrarem na esfera do poder simbólico subjacente ao
social, ao tempo em que introjectam novos olhares nas futuras adeptas do culto de Babá.
Barrie Thorne (1997), ao investigar o comportamento de gênero de meninas e meninos
no ambiente escolar atribui vários significados ao verbo “to play”, identificando aspectos
lúdicos e também conflituosos em relação às questões de gênero. O brincar pode revelar
muito mais do que o simples fingir-se adulto ou criança, homem ou mulher; ele pode mostrar
a construção de masculinidades e feminilidades sem os sexismos transmitidos pelos adultos
ou a hegemonia masculina em contraposição à inferiorização da mulher. O sexismo nas
crianças vai sendo engendrado à medida que elas crescem e vão vivenciando-o na interação
com os adultos, ambientes, literaturas, mídias, enfim, na sociedade como um todo.
Entretanto, observamos também que algumas meninas querem fazer algumas
atividades ou brincadeiras tidas como masculinas; logo são repreendidas ou cobradas com
suavidade por qualquer membro da pequena comunidade, quer homem, quer mulher, uma vez
que as crianças do pequeno povoado, como nas sociedades africanas são responsabilidade de
todos os mais velhos e mais velhas. Assim, vão aos poucos formando as mentalidades daquilo
que se refere ao caráter de gênero, pois a masculinidade ou a feminilidade também é
construída a partir da idade e da responsabilidade de cada um dentro e fora do culto. Le
Breton (2006, p. 9) sinaliza sobre essa questão:
O fragmento acima declara que o corpo social vai paulatinamente sendo construído
com as informações recebidas do meio exterior e algumas imposições culturais acabam por
constituir um indivíduo com as características do seu grupo. Assim, as brincadeiras infantis
têm, dentre outras, a função de perpetuar características que definirão, consciente ou
inconscientemente, a pessoa, bem como os sujeitos adultos que legaram aos pequenos e
137
pequenas aprendizes não apenas o repertório da vida cotidiana como também o repertório
religioso. Dito de outro modo, os estereótipos dos papéis sexuais, os comportamentos
preestabelecidos, os preconceitos de diversas ordens são construções culturais advindas das
relações com os adultos que acabam por macular a vida da criança.
Quanto às meninas, muitas mães verbalizam, diante das pequenas figuras humanas,
frases do tipo: “Menina, não faça assim, seu comportamento parece comportamento de
homem”. E ainda reforçam a frase: “Se você crescer assim, fazendo essas coisas, não irá
casar, pois o homem gosta de meninas delicadas”. Essas frases são repetidas várias vezes
ao longo do dia, de modo que algumas meninas se permitem corrigir uma s as outras
usando as mesmas estratégias empregadas por suas parentes mais velhas. Sobre isso ,
Almeida (2000, p. 66) diz:
Esta citação, ligada às nossas reflexões, mostra que os homens do culto de Babá Egun
acabam por reproduzir, ainda que inconscientemente, a estrutura de gênero da sociedade mais
ampla, reeditando, assim, cenas que de alguma forma vão legitimar o poder de cada um deles
dentro do grupo.
139
passam; é uma das formas de saber quem sai e quem entra na comunidade. Acerca do tema,
Bourdieu (2002, p. 44) esclarece:
Esse local de encontro é muito conhecido até mesmo nos povoados vizinhos e muitos
homens se referem a ele como sendo o local da mulher. Há homens, entretanto, que proíbem
suas esposas de frequentarem e lá permanecerem, pois alegam que ali é um espaço para jogar
conversa fora e como tal permite que elas tratem da vida de outras pessoas, provocando
muitas fofocas; alegam ainda que o local serve de suporte para que suas esposas recebam
conselhos e assim se voltem contra eles. Seria, por assim dizer, um lugar de conspiração.
Sobre a fofoca, um estudo na área de psicologia faz uma referência:
O construto afirmado por Michels mostra que nem sempre o que é considerado fofoca
o é. Muitas vezes, essas mulheres estão tratando de assuntos que de outro modo não seria
possível. Além disso, ele torna claro que as fofocas não são exclusividade das mulheres,
portanto, feminino e fofoca não são simétricos; ela pode ser verificada no campo sexualmente
142
oposto, uma vez que as justificativas dadas pelos homens podem se encaixar perfeitamente
nos espaços por eles frequentados.
Dentro da pequena comunidade também encontramos outro ponto considerado
feminino: o espaço dos preparos dos alimentos votivos dos orixás e dos Babás. Nesse local
não percebemos algazarras ou muito falatório, as pessoas portam-se como se estivessem
diante de uma divindade. A bem dizer, a preparação dos alimentos votivos exige muito rigor e
reverência, já que é parte integrante do ritual; por isso, não se ouvem risadas, conversas sobre
sexo. Tudo gira em torno do sagrado, o que justifica a mudança de postura das pessoas
envolvidas. Geralmente, durante a preparação dos referidos alimentos, observa-se a presença
maciça das mulheres. Em contrapartida, é notada, ainda que pequena, a presença masculina,
posto que determinados alimentos e animais exigem que seus cuidados e preparos sejam feitos
por homens; mesmo assim, todos indistintamente referem-se a essa atividade e espaço como
exclusivos das mulheres; portanto, do ponto de vista hierárquico, a preparação dos alimentos
diz respeito e está ligada à esfera feminina.
Normalmente as crianças são poucas ou nunca circulam, exceto as de colo que são
levadas por suas mães e permanecem no chão enquanto elas realizam a limpeza dos animais
que foram sacrificados para cada orixá ou Babá, preparação de pratos votivos e organização
do espaço para o público ou para as divindades. Essa tarefa não é realizada por qualquer
mulher, pois para cada animal existe uma maneira específica de se cuidar. Cada animal tem as
partes a serem oferecidas, portanto, é uma tarefa que exige um acúmulo de conhecimento, já
que um corte feito em um determinado lugar pode indicar que o animal é oferecido a um outro
orixá e/ou antepassado ou que este se destina a outro fim. Dentro da cosmovisão das religiões
de matriz africana, a cozinha ocupa um lugar de muita importância e segredo, pois nem todos
os adeptos têm acesso a ela; é ali que os alimentos votivos são preparados dentro de algumas
especificidades; é também o espaço de aprendizagem dos abiãs e Iyawôs; é, por assim dizer, o
coração de todo candomblé, uma vez que não existe festa sem a prescrição de um ebo, sem a
realização de uma oferenda; é nesta área considerada menor, do conhecimento banal, que as
práticas se realizam; é lá que se encontra escondido o conhecimento profundo, que só um
pequeno grupo detém e que se transmite por meio de um lento procedimento iniciático
(BALANDIER, 1997, p. 94).
Existem outros momentos de interação entre as mulheres, quer na preparação dos
alimentos ou na organização dos espaços, os quais servirão para realizar os rituais, tanto para
os orixás que se manifestarão quanto para os Babás que são os protagonistas da festa, e
também na feitura das refeições coletivas ou ajeun servidos à comunidade. Paulatinamente,
143
entre 10 e 12 anos, as meninas vão sendo inseridas nos espaços e nas tarefas desenvolvidas
por suas avós, mães e tias. Inicialmente, participam como observadoras ou auxiliando as mais
velhas em pequenas atividades, como, por exemplo, carregar pequenos objetos, alimentos
votivos, panos e em outras necessidades. À medida que as mais velhas são auxiliadas pelas
mais novas, as mais experientes vão explicando às futuras adeptas a finalidade e como deve
ser utilizado cada objeto. Algumas adolescentes sinalizam-se muito interessadas, fazendo
perguntas acerca de cada objeto, porém nem todas as explicações são dadas. A justificativa
para a negação diz respeito à pouca idade das indagadoras. As mulheres mais experientes
alertam-lhes que no momento oportuno elas saberão e entenderão. É uma forma de controle,
de impor uma supremacia em relação às aprendizes, mas também pode ser uma forma de
proteger a tradição que vem sendo mantida há muitos anos. Balandier (1997, p. 95), sobre o
segredo e tradição, acrescenta:
Para além da pouca idade das meninas, as justificativas dadas pelas mais velhas e
experientes remetem a um campo que ultrapassa a uma simples proibição, como assim ocorre
alhures ao culto, posto que o segredo é sinônimo de poder, é uma forma de limitar o acesso ao
mundo das informações; é ele também o elemento estruturante e basilar dos grupos aqui
investigados, de modo a permitir a manutenção de privilégios. Assim como as crianças
aprendem e apreendem através das relações com os adultos, as mulheres reproduzem os
comportamentos baseando-se na égide masculina; portanto a construção da feminilidade é
feita também conforme a ótica que, por vezes, está impregnada de noções e estereótipos
masculinos, pois muitas explicações estão nelas fundamentadas. De certo modo, acredita-se
que o fato de muitas mulheres não questionarem as atitudes dos homens diz respeito à visão
que foi e vem sendo traçada ao longo de anos. Os espaços de feminilidade dentro da
comunidade do Bela Vista ou simplesmente Agboulá, bem como na sociedade em geral,
144
naturalizam a dominação masculina e muitas vezes homens e mulheres sofrem revezes dessa
dominação. Cada grupo tem um lugar que corresponde ao seu sexo e assim seus adeptos
seguem engendrando nas crianças essas mentalidades. Assim declara uma depoente:
Na citação, notamos que a depoente não considera que participa do culto de Babá, pois o
canto, a dança para ela não constituem uma participação efetiva. Embora saibamos que exista
um trabalho anterior para as mulheres, mesmo assim ela não leva em consideração. Outro
aspecto a ser salientado é a importância dada pela depoente ao falar da divisão feita entre o culto
de Babá e os orixás, posto que fala dos orixás como sendo superiores aos Babás e, sendo a
mulher sua zeladora por excelência, assim também pode ser considerada. Porém, as palavras da
depoente deixam escapar uma certa acomodação ao revelar que acha certo sua participação
daquela forma, pois assim foi educada pelos pais. Mas, ao contrário das afirmações da adepta,
os espaços não são tão estanques como parecem ser, visto que na cozinha, durante as
entrevistas, notou-se a presença de alguns homens no preparo de algumas comidas votivas. As
fronteiras não estão delimitadas a ponto de não permitirem algumas frestas.
Na comunidade do Bela Vista, raramente uma mulher caminha sozinha ou desenvolve
qualquer atividade sem que seja pelo menos em dupla; igualmente ocorre quando elas são
vistas fora da comunidade. Essa situação nos faz retomar os estudos de Almeida (2000), que
dizem que essa mentalidade faz parte do legado de séculos anteriores, nos quais a casa era
vista como espaço de excelência feminina, enquanto a rua era e ainda o é primazia masculina.
Mas essa constatação não se aplica para as mulheres que, tanto em África quanto no Brasil,
145
A natureza do trabalho das mulheres, assim como os espaços que são definidos pelo
sexo, tem a ver com as mentalidades que são empregadas no culto de Babá; vê-se que
algumas normas externas adentram os espaços rituais, impõem-se e acabam por definir a
segmentação espacial, porém o trabalho de casa é tão importante como qualquer outra
atividade exterior. Bourdieu nos fala que há uma desvalorização do trabalho doméstico a
ponto de deixá-lo às escuras; assim também ocorre com as atividades desempenhadas pelas
mulheres dentro do culto de Babá, tamanha é a invisibilidade que as próprias mulheres
introjetam em suas atividades, com pouca ou nenhuma relevância. Ambrosia ressalta a
importância do seu trabalho apenas no tocante ao trato com os orixás, não reconhecendo as
atividades fulcrais desenvolvidas e que propiciam a vinda dos ancestrais à terra. Portanto o
espaço reservado às mulheres é visto pelos homens como um lugar menor em que as mesmas
buscam diversão, fofocagem, é assim entendido como o lugar de se jogar conversa fora. Jogar
conversa fora significa para as mulheres partilhar os momentos alegres e tristes, resolver os
problemas comuns a todos, significa um lugar de aproximação e coesão social.
busca de solução para um dado problema. Vejamos a história a seguir, narrada por um
membro do culto.
A gente tem aí uma história do nosso tio, tio de meu pai, o nome dele é
Marco, que hoje em dia é Egun aí, que é Babá Oluwo. Dizia, antigamente,
que meu pai conta que quando eles eram garotos, o finado Marco pedia a
eles para irem na venda comprar. Aí falava para eles: vão na venda
comprar, e dava uma folha de akokô; aí dava a folha a eles e dizia: levem
assim e vão comprar. Aí eles diziam: mas titio, como é que a gente vai
comprar com uma folha? E o tio Marco dizia: leve a folha do jeito que eu
estou lhe dando, quando chegar na venda você vai ver. Você vai abrir a
folha e vai dar para quem lhe atender. Aí eles iam comprar com a folha do
jeito que ele deu e quando chegava lá eles pediam tudo, quando eles davam
a folha, ela tinha virado dinheiro. Era o finado Marco que era tio de meu
pai, irmão do meu avô que fazia esse tipo de coisa.
Acredito sim. Eu passei a acreditar mais na seita, depois que meu irmão teve
um problema de saúde, ficou 21 dias em coma; ele está até trabalhando aí.
Ele ficou vinte e um dias em coma no Hospital Couto Maia dando crise, aí
já não tinha mais jeito, solução; o médico já tinha falado para mim e para o
meu outro irmão que também era acompanhante que ele não passava
daquela noite. Era próximo de Natal. Que os órgãos dele já não estavam
funcionando e só o coração funcionava com ajuda de aparelhos, mas as
pancadas estavam bem lentas. Aí a gente ficou 21 dias sem dormir, só
tomando guaraná em pó e suco. Uma noite eu adormeci e meu irmão
também adormeceu. Quando a gente adormeceu a gente viu aqueles reflexos
daqueles espelhos no quarto. De repente o quarto ficou todo escuro e a
gente só vendo os reflexos. Aí a gente ficou olhando um para o outro e aí ele
disse: você está vendo, Carmélia? Eu disse: tou. A gente vendo aqueles
reflexos dos espelhos parecendo vagalume no quarto aí depois meu irmão
que estava em coma acordou quando aquele deu um clarão bem forte
encima dele; a escuridão passou quando a energia voltou de novo.
Os fatos narrados pela entrevistada mostram claramente que sua vida é marcada por
histórias contadas pelos mais velhos e ela própria acredita ter vivido algo explicado pelas
forças transcendentais dos seus antepassados. Ressalta-se ainda que a entrevistada é uma
pessoa de seus vinte e poucos anos, mas todos no Agboula reconhecem o desvelo que a
mesma possui em relação aos Babás e os orixás. Vê-se, pela sua narração, que sua vida está
repleta de vivências religiosas e que o fato da sua pouca idade não é justificativa para que ela
duvide de seus ancestrais que vieram socorrer seu irmão na hora em que necessitava; além
disso, Carmélia frisa a importância dos antepassados quando diz que o médico e as
enfermeiras atribuíram ao sobrenatural a recuperação do irmão que se encontrava em coma. E
por achar que a pesquisadora em questão iria duvidar de suas palavras adianta-se na
conclusão: “Tanto é que tem duas enfermeiras e uma nutricionista que se tratam aqui com
minha mãe [...] A partir do momento que elas viram, elas presenciaram, passaram a se tratar
com eles”. Essa história representa um dos elementos que movem os adeptos do culto de
Babá. A crença na melhora de vida, a cura de uma doença ou simplesmente o contato com o
espírito de um ente querido faz com que o culto viva por centenas de anos, ao passo que seus
adeptos dão o seu melhor nas festas organizadas pela comunidade (vide figura 17, um
conjunto de fotos da festa de Iyemanjá).
tempo original, cujo movimento é a circularidade, já que não participa do tempo profano
(ELIADE, 1996). É nesse tempo que os homens performatizam os feitos dos deuses; é na
circularidade que o homem experimenta um pouco da santidade dos deuses ao imitá-los; essa
vontade de realizar seus grandes feitos faz com que os homens acabem por reproduzir em sua
vida cotidiana grande parte das atitudes dos deuses. Em se tratanto do culto em questão
podemos dizer que muitas atitudes encontram e se embasam nas atitudes das divindades,
narradas miticamente pelos mais antigos praticantes.
No Agboula, com 8 anos ou mais, as crianças e, principalmente, os meninos são
encorajados, tanto pelos velhos Ojés quanto pela comunidade local, a começarem a participar
do culto. No dia da festa, cada menino, imitando o gesto dos grandes sacerdotes, preparam
suas roupas, cortam os cabelos, lixam pequenos galhos de árvores, alusivos a um ixã e se
põem a esperar o início da festa 53. Essa vara é a representação máxima do poder masculino,
pois só aos homens é permitido o seu uso. A todo instante os garotos são inquiridos por
pessoas em relação à sua participação na festa e eles, fazendo um esforço, impostam a voz e
respondem que vão e que já prepararam seu ixã.
No universo do culto de Babá Egun, o cuidado com o corpo também é um dos
aspectos empregados na construção da masculinidade, pois a partir das 16 horas é possível
notar que as crianças e adolescentes tomam banho, penteam os cabelos e colocam roupas que
normalmente não são usadas no seu dia a dia. Tal como os adultos, a partir da roupa e do
banho, essas pessoas, especialmente os adolescentes, incorporam toda performance praticada
pelos adultos, a saber: a maneira de andar, falar, a postura corporal; tudo isso feito para que as
pessoas tenham a impressão de ter à sua frente um adulto, como é o caso de Marcelo, filho de
uma moradora do Bela Vista, que aos 12 anos é aprendiz de amuixã e desenvolve toda
performance para corresponder às expectativas masculinas, esperando com isso ser
considerado um homem, com potencialidade para assumir novos cargos; as roupas para esses
adolescentes funcionam como uma troca de identidade, pois traduzem o gosto pela beleza,
como nas tradicionais comunidades africanas, cujos moradores enfeitam-se para aqueles que
desfrutam cotidianamente de suas companhias.
Para Mauss (2003), os homens usam o corpo de diferentes formas técnicas e isso é
transmitido de sociedade para sociedade como forma de evidenciar processos educativos:
as expressões, gestos, movimentos. Os adereços, as mutilações, as disciplinas impostas
aos corpos humanos falam de um aprendizado que envolve a natureza do social e da
53
Vara ritual utilizada pelos Ojés no controle dos Eguns.
152
importância da transmissão oral e informal das técnicas corporais que origina o “habitus”,
como conceitua Mauss (2003), ao referir-se às atividades adquiridas através do corpo.
(vide figura 18, conjunto de fotos dos adultos ensinando as crianças).
153
Figura 18 – No Bela Vista, crianças brincam e aprendem com os adultos os preceitos dos rituais
Fonte: Arquivo Joanice Conceição
O aprendizado do religioso também se faz pelo corpo e se estende para além dele,
ganha o sentido de pertencimento que é adquirido por meio de um comportamento repetido e
restaurado (SCHECHNER, 1985) a cada ritual realizado; a repetição simbólica de cada gesto
conduzirá à transformação não apenas dos indivíduos como também dos envolvidos em tal
ritual. A respeito dessa situação, Almeida (2000, p. 59) aborda:
arrogância, o que mais tarde seria a tradução de masculinidade que se produz ante as
imposições dirigidas às mulheres. Ainda nesse terreno, a masculinidade, em alguns espaços,
também denota à interdição ou à permissão das mulheres. Estamos nos referindo às
performances de masculinidades realizadas com o intuito de conseguir algo, como é o caso da
Irmandade da Boa Morte, que se afirma enquanto espaço de feminilidade; mas ao negar a
participação masculina chama para si toda e qualquer responsabilidade. Assim, neste caso, as
mulheres fazem uso de um tipo de masculinidade que as liberta da própria dominação
masculina que permeava as irmandades mistas; em contrapartida, a feminilidade é elemento
de interdito para elas no culto de Babá.
No Bela Vista, a quitanda de Júlio César representa um espaço de homossociabilidade
dos senhores. Geralmente, no período da manhã, a quitanda é pouco frequentada; quando
aparecem clientes, em sua maioria, são mulheres que vão comprar pequenas mercadorias para
o consumo imediato, como sal, açúcar, óleo etc. Já no final da tarde, quando as pessoas
voltam do trabalho ou vão simplesmente trocar conversas, há a presença de muitos homens;
muitos deles apresentam-se sem camisa, usam bermudas e chinelos, e assim se põem a
conversar e beber. Dentro da quitanda também se observam pequenas divisões; tem o grupo
dos que estão entre os 25 a 40 anos e outro dos que estão acima dessa idade. Geralmente, os
mais velhos ocupam o lugar mais próximo ao balcão e a conversa gira em torno de mulheres,
sobre os rituais que já fizeram ou vão fazer, suas posses e conquistas materiais. Os mais novos
ficam na parte da frente da quitanda, falam alto, mexem com as mulheres que passam e,
geralmente, suas conversas também são acerca das mulheres, dos rituais e das peripécias
feitas, mas sempre envolvem assunto da sedução das mulheres, porque a construção da
masculinidade é algo que pode ser feito e vivido de maneira diferente; os homens assim
agindo reforçam ainda mais os estereótipos, posto que entre eles a masculinidade se assenta
fortemente, sobretudo, nos aspectos da sexualidade, que se traduzem em ritos performativos
daquilo que se pode considerar uma exposição da virilidade do macho.
Reconduzindo nosso olhar para o Bela Vista, em certa altura do ciclo da festa, os Ojés
começam a se reunir embaixo de uma árvore, agora em frente à casa de seu Clésio. Este
espaço é marcado por muita descontração e alegria. As mulheres nunca estão entre eles; ali, os
homens bebem, discutem as tarefas que terão que realizar nos rituais, falam das curas, dos
feitos dos antigos praticantes do culto e, especialmente, o tema da sedução acaba por fechar o
círculo de diálogo. Os mais velhos relembram suas travessuras da adolescência, apontando
suas conquistas femininas. Cada um deles tem a intenção de mostrar-se superior ao outro.
Geralmente, os mais novos ouvem atentamente a conversa, sem fazer interferências nos
155
diálogos dos adultos: esse comportamento é uma tradição das sociedades iyorubanas e que,
em parte, foi tranferida para o Brasil por meio da memória dos povos escravizados. Como na
sociedade africana de Oyó, no Bela Vista, as palavras dos mais velhos são ensinamentos, seja
qual for o assunto.
No que toca à questão do desemprego, de modo geral, no Bela Vista, os adolescentes e
jovens engrossam a fila daqueles que procuram algo para ganhar algum dinheiro. Dentro de
uma visão androcêntrica, o trabalho é fulcral para a definição da identidade social, como
também para a masculinidade. Olhando por esta perspectiva, o homem é por excelência o
provedor da família, mesmo que isso não corresponda à verdade para as mulheres negras
africanas e afro-brasileiras que, em grande medida, são responsáveis pela provisão da casa
com seus trabalhos, inicialmente no mercado ou nas ruas como quituteiras, lavadeiras,
carregadoras de água e outras atividades que as levam para fora do interior da casa; já o
homem procura manter uma falsa ideia de que é o provedor da casa, por isso o fato de ficarem
nas quitandas, nas praças justifique o sair de casa e com isso povoe o imaginário da virilidade
de prover alimentos com o suor de seu rosto; porém as oposições preguiça/trabalho,
riqueza/pobreza também definem masculinidade (ALMEIDA, 2000). Todavia, esses traços
constroem a masculinidade de maneira pejorativa, uma vez que o homem que tem família e
não consegue sustentá-la é visto com certo desdém pelos demais moradores. Nesses casos, as
mulheres são responsáveis pela manutenção da casa e, aos olhos dos homens, são elas quem
dão as ordens; logo, a figura masculina é relegada a segundo plano. Para estes homens, os
papéis estão invertidos, posto que a masculinidade é transformada a partir do relevo social e
das circunstâncias, uma vez que o seu capital simbólico assenta-se de forma paradoxal, pois o
sustento da casa é uma tarefa masculina. Dentro da visão hegemônica, o homem tem a
obrigação moral de trabalhar, sustentar a família e sacrificar o corpo, mostrando para os
demais os princípios básicos daquilo que o faz homem.
Mas a historiografia brasileira atesta que, no caso das mulheres negras, isso não
corresponde à verdade, pois desde o período escravista as mulheres sempre assumiram o
comando do lar, mesmo quando estas possuíam maridos 54. Essa situação não é diferente nos
grupos pesquisados; geralmente a mulher é a mantenedora do lar, como ocorre com a maioria
das integrantes da Irmandade da Boa Morte.
Essas situações apontam que a construção da masculinidade e da feminilidade no
Agboula pode ser feita, principalmente, pela sua capacidade de sustentar a família, como
54
Mais detalhes sobre as mulheres negras, ver, entre outros, Bernardo (1998), Reis (2003) e Ramos (1947).
156
mostra seu Lourival, que, embora viva com duas mulheres, sustenta as duas, e isso para os
demais homens é uma honra. Ele cumpre seu papel de macho. Geralmente, os homens que
não possuem emprego acabam de uma forma ou de outra assumindo as atividades domésticas
enquanto as esposas saem para ganhar o sustento de toda a família, mas muitos deles
condenam essa postura, já que exercer tarefas tidas femininas põe em xeque a sua virilidade.
Essas mulheres, por sua vez, admitem que em alguns momentos é necessário usar as armas
masculinas, ou seja, estratégias de masculinidade, para serem aceitas e manter seu poder.
Porém, quando conveniente, o homem também o faz com as mesmas intenções femininas.
Ao lançar o olhar para as vivências no terreiro de Babá Egun, percebem-se pistas, pois
algumas situações nos fazem refletir sobre o discurso que é processado e as práticas
vivenciadas, visto que para os homens os espaços são bem definidos. Contudo, isso não é tão
simétrico como parece, já que, nas sociedades ocidentais, o choro é uma forma de fraqueza
admitida apenas às mulheres. Dentro de uma visão ampla, os homens são fortes e não revelam
tal fragilidade; porém, essa atitude tida como feminina pode ser observada nos homens sem
colocar em risco sua condição sexual; como já referido, a masculinidade ou a feminilidade
não estão limitadas, respectivamente, à esfera do macho ou da fêmea.
Durante uma das entrevistas que realizamos no Bela Vista, um sacerdote, ao
depor sobre as relações familiares, envolvendo o falecimento de seu pai biológico,
emocionou-se e deixou que as lágrimas rolassem sobre seu rosto; entretanto, houve um
breve silêncio e logo ele nos pediu desculpas. Nota -se que o homem, ao chorar,
imediatamente pede desculpas, pois, no universo das masculinidades hegemônicas, o
homem não chora. Ao refletir sobre a construção das masculinidades também é uma
forma de pensarmos as feminilidades, visto que a estrutura das relações de gênero é
presa a outras relações. Para Connell (1987) e Scott (1990), a masculinidade só existe
em contraste com a feminilidade, isto é, a experiência de um sexo se relaciona à do
outro. Portanto, os sentimentos do ser humano não devem ser relacionados apenas ao
sexo, socialmente construído, antes devem revelar quando os seus protagonistas
permitem que seus sentimentos aflorem, uma vez que eles são moldados a partir dos
contextos socioculturais. O choro do sacerdote revela algo para além das lágrimas; deixa
aparecer a pessoa na sua essência; por alguns instantes, ele se esqueceu das amarras
sociais e deixou que verdadeiramente seus sentimentos fossem mais fortes que as
imposições sociais, já que as lágrimas não possuem simetria com o sexo socialmente
construído, de modo que podemos encontrar traços de masculinidade e feminilidade,
enquanto manifestações de gênero em campos opostos.
157
Como afirmou Turner (1974), os rituais não apenas têm a função de inserir o indivíduo
na comunidade dos vivos, assim como os rituais fúnebres também têm a responsabilidade de
fazer a reconciliação entre os visíveis e os invisíveis; a exemplo do que ocorre no axexê, o
culto de Babá Egun e a Irmandade da Boa Morte empreendem esforços para cumprir com os
rituais mortuários que foram legados pelos seus ascendentes. Assim, auxiliados pelos mitos,
cada um desses grupos desempenha seus papéis ante a sociedade, a fim de mostrar o seu
poder. Desse modo, a divisão das tarefas corresponde hierarquicamente a uma função, que,
muitas vezes, realça a vida cotidiana daquelas pessoas; é, por assim dizer, uma forma de
158
evidenciar o papel de cada personagem dentro e fora do espaço ritual. O movimento dos
rituais surge das margens das margens, isto é, irrompe das relações cotidianas e dos fatos
extraordinários que, inicialmente, provoca um certo estranhamento mas depois vai se
ajustando, passando a conviver de forma relativamente harmônica; mas para tantos requer
algumas especificidades, dentre as quais o acesso ao conhecimento pouco circulável:
Desta maneira, esses comportamentos colaboram para fortalecer cada vez mais os
grupos que se definem, respectivamente, como masculino e feminino. O que para o exterior
ao grupo pode ser considerado interdição pode fazer parte de um conhecimento restrito a um
pequeno grupo, o que justifica a aceitação das regras pela maioria.
É certo que as mulheres são mais incisivas na definição da sua posição de não permitir
a entrada dos homens na Irmandade. Enquanto os homens do culto de Babá são mais
astuciosos e até afirmam que a não participação das mulheres em todos os espaços e rituais se
justifica pelo fato de elas terem uma sociedade que é controlada por elas, tal sociedade é
denominada de Sociedade Geledé55, porém jamais tocam na questão da divergência ou na
dominação masculina, talvez porque nem mesmo eles saibam o porquê ou simplesmente
naturalizaram a questão a ponto de não se perceberem essa desigualdade. Contudo, as
integrantes da Irmandade deixam claro que a criação da Irmandade esteve ligada aos
desmandos masculinos, pois todas as tarefas delegadas a elas nas irmandades mistas não
possuíam qualquer visibilidade social, assim, eis uma das razões para a criação de um espaço
no qual podiam ter voz.
De um ponto de vista mais antropológico, Silveira (2006) mostra que ainda na
Barroquinha, tanto pessoas ligadas à alta cúpula da Boa Morte quanto da Sociedade Egugun
compunham o conselho decisório do candomblé da Barroquinha; eram eles, respectivamente,
Maria Júlia Figueredo, a famosa Erelu da sociedade Geledé, e Bomboxé, pertencente à
Irmandade dos Martírios e grande Alabá do culto de Babá Egun. Esse fato revela que os dois
55
No quarto capítulo faremos uma descrição mais aprofundada sobre esta sociedade feminina que tem sua
base ancorada na África, mas supostamente um pequeno número de candomblés brasileiros faz o culto
legado por ela.
159
grupos amparavam-se mutuamente e, se havia qualquer rivalidade, era diluída pelo interesse
maior – a preservação dos rituais mortuários.
No Agboulá, como já afirmamos, as tarefas e os espaços circuláveis pelas mulheres
são definidos e controlados pelos homens e não há qualquer contestação por parte das mais
velhas, exceto por uma pequena parcela das integrantes mais novas; todavia, essa
reivindicação não possui qualquer repercussão, já que suas mães, avós e tias ressaltam que
tudo deve permanecer como está, justificando que isso é uma determinação divina e que,
portanto, não deve ser modificada. Talvez as mais novas que contestam hoje a posição dos
homens dentro do grupo, quando acessarem os conhecimentos secretos que as mais velhas
têm, encontrem a resposta que por muito tempo ficou sem resposta.
Os rituais mortuários estão diretamente relacionados à transformação, não apenas de
ordem material, mas, sobretudo, de ordem ontológica e social; esses rituais contribuem,
sobretudo, para fortalecer e complementar as relações sociais; e como a mentalidade africana
é concebida dentro de uma racionalidade, os rituais relacionados ao nascimento existem no
espelho dos rituais mortuários; dito de outra forma, a morte existe na relação com a vida
(BALANDIER, 1997). Embora haja quem refute que os ritos mortuários praticados no Brasil
conservem poucos elementos simbólicos dos que aqui foram aportados, e nisso tendemos a
concordar, é preciso ressalvar que houve rupturas, ressignificações e adaptações, aspectos
necessários à sustentação dos traços mais característicos de sua cultura, porque os
escravizados estavam longe de suas bases, fora de seu espaço, havendo a necessidade de
mudança; parafraseando Bernardo (2003), sem ruptura não há continuidade. Mas, ao se
verificar mais cuidadosamente as relações estruturantes que reverberam dentro do culto de
Babá, percebe-se que, embora não seja verbalizado, o passado fornece base para o presente,
pois algumas vezes o indivíduo busca no passado eventos que lampejam as ações atuais.
Acerca disso, Giddens (2005, p. 35) salienta:
O que lhes confere um caráter social ainda mais marcado; pois eles
dependem evidentemente da presença ou ausência de certo número de
instituições e de crenças precisas desaparecidas do leque das nossas: a
magia, as interdições ou tabus etc.
Para entender de que maneira se processa a ligação entre a Irmandade da Boa Morte e o
culto de Babá Egun, é necessário voltar o olhar para o passado e viajar na memória para observar
melhor os fatos que iluminam o antigo bairro da Barroquinha, na segunda metade do século XVII,
verificando as relações subjacentes que ratificam os fatos e as ligações como as que propomos
desde o início deste trabalho – Boa Morte e Babá Egun. Foi revisitando os escritos que abordam
sobre o surgimento deste bairro da Barroquinha que encontramos fatos que esclarecem ou
reforçam dúvida sobre o complexo núcleo que se estabeleceu no mais tradicional reduto de
personagens ilustres do candomblé baiano. Tais fatos são fundamentais para a compreensão dos
rituais ainda presentes tanto em Cachoeira quanto em Itaparica. É sobre esses aspectos que nos
ocuparemos neste capítulo, e para que alcancemos o propósito do entendimento não apenas dos
aspectos que os ligam, mas especialmente do porquê de os dois grupos agirem como se não
possuíssem nenhum elo, lançaremos mão da história, aliada aos fatos antropológicos disponíveis,
juntamente com as narrativas das personagens desta investigação.
É notório que nos tempos áureos da Barroquinha, grandes alianças foram formadas,
para que pudéssemos ter hoje os grandes candomblés e as famosas casas de culto aos
ancestrais, sobretudo da Ilha de Itaparica. Atribuem à fundação do referido candomblé as
mulheres da então devoção da Boa Morte e os homens da Irmandade Nosso Senhor Bom
Jesus dos Martírios, sendo seus representantes, respectivamente, a Erelú (Maria Júlia
Figueiredo), a Iyá Nassô, sucessora da Iyá Akalá na Casa Branca, e o Oluwô Bamboxê,
mesário da referida Irmandade que também pertencia a uma sociedade de culto aos ancestrais.
Convém dizer algumas palavras acerca da identidade deste último: Bamboxê chegou à Bahia
como escravo de Marcelina Obatossi que deixou a África em companhia de Maria Júlia Iyá
Nassô; batizado no Brasil, recebeu o nome branco de Rodolpho Martins de Andrade, mas
164
logo seria alforriado por sua proprietária. É ainda considerado nas narrativas orais como um
príncipe de Oyó e, segundo informação de Silveira (2006), poderia pertencer a uma linhagem
real. No Brasil, devido ao grande conhecimento litúrgico e por ser iniciado no culto de Ogodô
– um dos orixás da Corte de Oyó e também um dos principais orixás da Casa Branca, cujo
assentamento encontra-se na coroa de Xangô, que pode ser vista no referido candomblé –,
Bamboxê detinha o título de Oluwô, que na África era o chefe supremo de todos os babalaôs,
fazendo jus à definição da própria etimologia da palavra: “Senhor dos segredos”. Ademais, na
África, era um dos homens da sociedade Ogboni, com funções políticas bem destacadas.
Importa saber que Bamboxê é singular, pois, ainda hoje é lembrado nas cantigas do padê de
Exu nas principais casas de nação ketu; referindo-se a Bamboxê, que recebeu o título de Êssa
Obitikô, um dos primeiros títulos recebidos por homens, como membro do Palácio de Oyó, na
África. Ainda hoje pode ser lida na lápide encontrada na Igreja da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário dos Homens Pretos das Portas do Carmo a seguinte inscrição: “Jazigo
perpétuo – Rodolpho Bambocher – Felisberto Sowzer e família – 1926” (SILVEIRA, 2006, p.
404); portanto é indiscutível a importância e participação dessa figura proeminente na
organização e fundação do Terreiro da Barroquinha.
Outros personagens igualmente extraordinários são lembrados como sendo fundadores
do candomblé da Barroquinha, como Babá Assiká ou Babá Axipá, oriundo da África, um dos
ancestrais fundadores dos primeiros terreiros da Bahia e um dos dirigentes da Irmandade dos
Martírios, e Babá Adetá Okanledê. Em relação ao Babá Adetá, Silveira (2006) afirma que sua
atuação deve ter sido posterior à fundação, já na década de 1850; todavia, isso não significa
que a sua participação seja menor, pois atuou no núcleo habitacional, como no processo de
organização do candomblé Barroquinha enquanto estrutura político-religiosa, uma vez que o
bairro da Barroquinha não se resumia apenas à Igreja de Nossa Senhora da Piedade, como um
candomblé conhecido publicamente, mas sim um complexo com relações secretas. Agora ,
qual seria a ligação de Bamboxê com a Boa Morte e o Culto de Babá Egun?
A Barroquinha não apenas abrigava uma casa de culto aos orixás, mas funcionava
como uma organização que resguardava diferentes cultos, como Ebé, ou sociedades
secretas, como Egungun, Ogboni e Gèlèdé, nas quais os membros transitavam muitas vezes,
por mais de uma delas ao mesmo tempo. Elas funcionavam paralelamente ao candomblé,
sustentando assim as estruturas internas. Das três associações, a única que ainda hoje existe
efetivamente é a do Egungun; tanto a Ogboni quanto a Gèlèdé desapareceram quase que
completamente, deixando apenas alguns traços, como as cantigas, máscaras e símbolos
rituais, muitos deles tendo sido recuperados nos porões da polícia baiana, atestando assim
165
que a religião sofrera pesadas repressões. Todavia, a nossa investigação nos leva a acreditar
ainda que a Boa Morte, apesar de não realizar o grande festival público em homenagem às
Iyá-Mi, mães da fertilidade, há alguns elementos que coincidem com as descrições rituais
feitas por Margaret e John Drewal (1990) e Silveira (2006). É possível que seja feito apenas
oferendas e ritos internos em homenagem às Iyá-Mi, uma vez que o culto às Gèlèdé, já em
terras africanas, foi injustamente classificado como “culto às bruxas, forças destruidoras” e
outros adjetivos depreciativos.
A sociedade Ogbani na África era conhecida como uma das cortes de justiça do
país, julgando crimes, agressões com sangue; atendia aos apelos de instâncias inferiores,
porém atuava intermediando conflitos de diversas cidades; uma vez que sua sede estava
localizada na capital do Império de Oyó, suas decisões tinham força de lei, o que
demonstrava que seus membros agiam em conjunto para resolver os problemas sociais e
políticos, representando em muitos casos a força do próprio Obá. No que tange à
organização, a sociedade Ogboni funcionava:
traslado de Nossa Senhora da casa da provedora da festa para a capela da Irmandade; fato este
não divulgado nem notificado pela imprensa.
Apesar do festival da Gèlèdé manter seu caráter sagrado na cidade de Ketu, foi em
Uidá que ele ganhou feições espetaculares e profanas, com o propósito apenas de
entretenimento. Não obstante a espetacularização desse festival, ele atravessou as fronteiras
transatlânticas para elevar a memória das divindades femininas do panteão Iyorubá, as Iyá-Mi
– grandes mães, ancestrais de todo o povo, guardiãs da terra, das águas e dos saberes
esotéricos (SILVEIRA, 2006, p. 433). Segundo este autor, a palavra Gèlèdé, quando analisada
separadamente, significa: Gè quer dizer aplacar ou afagar, já èlè refere-se às partes íntimas da
mulher, simbolizando seus segredos e poderes de dar a vida, e dé é o mesmo que realizar algo
com cuidado ou gentileza. Deste modo, ressaltar a importância dos seres femininos, em
especial da mulher, como a representação da continuidade da vida. Dentro do religioso, a
Gèlèdé dedica-se quase que exclusivamente aos orixás responsáveis pela fecundidade,
sobretudo Odudua, representação coletiva dos ancestrais femininos. Outro fato que pode ser
corroborado é a relação dessa sociedade com os orixás, que são cultuados ou homenageados
na Boa Morte, tais como Nanã, Oxum, Obaluaiyê, Oxalá, dentre outros.
Como as demais sociedades secretas, a Gèlèdé é uma associação composta por
homens e mulheres, porém ao seu núcleo mais consistente e aos ritos mais secretos só as
mulheres têm acesso; entretanto, na parte visível do festival, são os homens que mais
aparecem com proeminência, cabendo a especificidade de apenas eles portarem as máscaras
que tanto podem representar personagens masculinos ou femininos. Além disso, cabe aos
homens a consulta a Ifá antes dos festivais, o esculpimento das máscaras e outros símbolos, a
percussão, a composição das cantigas e a declamação das histórias ou itan ali representados,
quando sempre narram os grandes feitos dos personagens mais ilustres do culto; podem
possuir os cargos de Babalaxê, chefes das máscaras, ou Alabê, chefes dos tambores; porém a
autoridade máxima é feminina, denominada Iyalaxê.
Em contrapartida, as mulheres, além de se ocuparem das iniciações individuais e
secretas, são responsáveis pela coleta de fundos, preparação e organização dos alimentos;
como acontece no culto aos ancestrais, ao feminino cabe também responder em coro as
cantigas que são entoadas pelos homens. Segundo Margaret e John Drewal (1990), o festival
pode dividir-se em dois momentos: diurno, associado à carnavalização, sátira e grande
espetacularização, com ricos figurinos, coreografias, máscaras, atraindo um número grande de
expectadores. Já a parte noturna é considerada mais solene, com a realização de ritos mais
internos. É uma produção muito rica, tanto do ponto de vista visual, teatral, quanto em
168
56
Grandes interpretações existem acerca dessa máscara, a mais corrente é que ela também pode simbolizar a
união e equilíbrio entre o poder feminino e masculino. Em conversa informal com o Babalaô Sérgio Barbosa
do Terreiro Ẹran Opê Oluwô, vulgarmente conhecido como Viva Deus, a disposição dos joelhos e cotovelos
mostram que a idade avançada de uma sacerdotisa pode inseri-la em ritos aos quais uma mulher com pouca
idade não teria acesso, portanto a identidade dos indivíduos não está cristalizada. Dessa forma, a estrutura da
máscara pode nos informar acerca do mistério que permeia o universo do homem e da mulher, mas que
subjaz àharmonia entre os sexos, biologicamente falando.
169
sociedades secretas tinham a função de prezar pela coesão social, contudo tanto Babá Egun
quanto Gèlèdé eram ou ainda são depositárias da moralidade pública e ordem social, cujo
objetivo era neutralizar as oposições que a vida em sociedade inevitavelmente instaura,
acalmando os ânimos de toda população, ao tempo em que promovia uma convivência
pacífica (SILVEIRA, 2006). Apesar de estarem assentados em uma base comum, Gélèdé se
preocupa com a neutralização das oposições existentes na vida em sociedade, já Babá está
relacionado à harmonia entre as forças sobrenaturais e a vida cotidiana. Tendo essas funções
sociais de harmonizar e promover a coesão social, as sociedades secretas, sobretudo, Gèlèdé e
Egungun passaram a ser enxergadas pelas religiões dominantes, como o cristianismo e o
islamismo, como subversivas, diabólicas e destruidoras, deturpando o verdadeiro objetivo,
restringindo-se a cultos maléficos, culto às bruxas, cultos antissociais. É desta forma que a
maioria das pessoas refere-se a esses dois cultos no Brasil. Sobre os Ogbonis em terras
brasileiras, apesar de não ter nenhuma documentação que ateste a sua presença, Lody, em
1985, no catálogo das coleções afro-brasileiras do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia,
registra alguns edans e os identifica como pertencentes à sociedade Ogboni (SILVEIRA,
2006). Contudo, não se pode afirmar que essa sociedade tenha tido uma filial na Bahia ou se
os objetos apreendidos pela polícia no início do século XX era um relicário de alguns de seus
membros que chegaram aqui como escravizados. Porém, Deoscóredes M. dos Santos (1988),
conhecido como Mestre Didi, traz alguns indícios dos Ogbonis em Salvador, no reduto da
Barroquinha, identificando Aramefá – que na verdade era Ìwarèfà –, conselho de seis
ministros que formavam a direção da Ogboni, sendo outros lembrados pela oralidade dos
primeiros candomblés da Bahia, como os Êssa Oburô, Kayodê, Assiká, Ajadi, Adirô e
Akessan, os mesmos tendo aproximação espiritual com os dirigentes dos terreiros de Egun
amplamente localizados na Ilha de Itaparica.
Quanto à Boa Morte há uma profusão de equívocos em relação à sua fundação, visto que
ela está ligada à Irmandade Bom Jesus dos Martírios, como uma extensão, já que ela nunca se
constituiu, na cidade de Salvador, como Irmandade e sim como devoção, tendo ido parte do
grupo de Salvador para Cachoeira. Segundo Luiz Cláudio Nascimento e Isidoro (1988), a Boa
Morte, em Cachoeira, se reestruturou a partir da Casa Estrela, aparecendo como personagens
principais um grupo de ganhadeiras libertas, conhecidas por “negras do Partido Alto”, liderado
por Maria Niceta, tendo como sucessoras D. Santinha e Tutuzinha. Segundo Gaiaku Luiza,
essas últimas eram filhas de Júlia, que pode ser a Maria Júlia Figueiredo, a Erelu. Embora do
ponto de vista oficial não pudesse ser considerada Irmandade, a Boa Morte reestrutura-se
seguindo os mesmos critérios, e sua atuação, segundo Nascimento e Isidoro (1988) era uma
170
forma de acobertar o candomblé Jeje-mahim Zoogodô Bogun Malê Seja Hundê; o referido
candomblé teria sido concretizado no ano de 1860. Para Silveira (2006, p. 448),
[...] a devoção nos seus primórdios era a fachada para mascarar o culto dos
orixás ligados à fertilidade, à terra e às águas, jamais possuindo
compromisso nem se vinculou a nenhuma igreja, tendo sido, desde sua
origem, uma entidade exclusivamente feminina, não tendo portanto nem
perfil de uma irmandade católica leiga, nem o da Sociedade Gèlèdé.
57
A pedido da entrevistada, que não quis se identificar, o depoimento não pôde ser gravado.
171
restando apenas os rituais secretos, pois assim não despertaria a atenção das autoridades
policiais que se encarregavam de reprimi-la. Talvez a lápide encontrada no Cemitério Nagô,
em Cachoeira, com o nome de Maria Júlia Figueiredo em conexão com o depoimento de
Gaiaku Luiza, a que se refere Dona Santinha e Tutuzinha como filhas de Júlia, sejam indícios
de que ao menos uma das sacerdotisas da Gèlèdé de Salvador tenha residido em Cachoeira.
Silveira (2006) comenta que Mãe Menininha em depoimento a Waldeloir Rego, afirma que
Maria Júlia Figueiredo, Sacerdotisa do terreiro Ile Ase Iya Naso, era uma das personagens
ilustres, que além de ostentar o título de Iyalodê, assumia o nome de Erelu na Sociedade
Gèlèdé, mas nada afirma sobre a sua habitação em Cachoeira. Esta personagem aparece como
uma das últimas provedoras da Boa Morte na Barroquinha. Pelos fatos expostos, não
refutamos a ideia de que a Boa Morte ainda hoje presta homenagem às grandes mães Iyá-Mi.
não havia terminado, a filha de Olorun enviou cinco galinhas de cinco dedos em cada pata,
aquelas que foram oferecidas a Exu e ele as devolveu, para ajudar, lançando terra para direita
e para esquerda, para norte e para sul, do leste para o oeste, em todas as direções até que as
vistas não alcançassem coisa alguma.
O mito revela a utilização de todos os elementos utilizados por Odudua no sacrifício
ordenado por Ifá e a ligação com o processo de criação. Vejamos o que ainda nos mostraria
este mito.
Após a conclusão desta parte, Odudua precisava verificar se a terra estava firme,
por isso enviou um camaleão que, com muita delicadeza, foi, aos poucos, colocando uma
pata por vez, depois parte do corpo até apoiar-se completamente, passeando por toda a
extensão. Em seguida, foi a vez de Odudua pisar na terra deixando sua marca. Esse
movimento ficou conhecido como ẹsè ntaiyé Odùduwá (SANTOS, 1984, p. 62); logo em
seguida todos os orixás repetiram o mesmo ato. Odudua, para se certificar que sua tarefa
estava realmente pronta, consultava Ifá todos os dias, a qual respondia que estava tudo de
acordo com a vontade de Olorun. Em meio a tudo isso, Obatalá acordou e, vendo-se
sozinho, ficou desolado e foi ter com Olorun para lamentar sobre o que havia acontecido e
lamentava não ter cumprido a missão a ele confiada. Olorun o tranquilizou e lhe entregou
o poder de criar todos os seres, árvores, plantas, espécies de animais, pássaros, peixes, isto
é, tudo que habitaria a terra. Após ouvir atentamente a nova missão, Obatalá se preparou
para retornar ao aiyê juntamente com Olúfón, Eteko, Olúorogbo, Olúwofin, Ògiyán e
todos os demais orixás funfun.
E assim Odudua, com a ajuda de todos os orixás, cumpriu a tarefa que Olorun lhe
havia confiado. Mas a narrativa ainda reserva algumas surpresas.
Odudua, em uma de suas consultas diárias a Ifá soube que Obatalá estava por
chegar à terra com sua comitiva para executar uma missão designada por Olorun, ao passo
que Ifá lhe alertou que a terra só se firmaria plenamente e que a existência só se
desenvolveria se Ela recebesse Obatalá e sua comitiva com grande honra, reverência e
respeito dispensado a um pai. Assim, Odudua cumpriu mais uma vez a determinação de
Ifá e o recebeu com toda honraria.
Contudo, a Filha de Olorun acreditava que era soberana da terra, mas no
momento que Obatalá resolveu instalar-se definitivamente na terra com sua comitiva
começaram as divergências pelo comando do aiyê. Vendo que as duas divindades não
chegavam a um acordo, Orunmilá resolveu interceder; ele revelou a importância de cada
um, ao tempo que salientava que Odudua havia criado a terra e ele, enquanto irmão mais
173
velho, havia sido designado para consolidá -la com a criação de tudo que existe sobre a
terra. Foi assim que Odudua sentou-se com sua comitiva do lado esquerdo, tal qual
Obatalá do lado direito, enquanto Orunmilá ficou ao centro para selar o acordo de
harmonia. É por isso que ainda hoje realiza -se o ritual de ọdọdún sise para comemorar a
harmonia entre o poder masculino e o feminino, entre o aiyê e o orun, fato que permitiu
a existência dos dois planos.
A existência está relacionada aos orixás funfun e o òpásoró é o símbolo que revela a
relação entre orixalá e os ancestrais. Assim, as vestes brancas não só representam o
nascimento, a criação dos seres naturais, mas a relação com os ancestrais masculinos
representa a existência genérica no aiyê e no orun e, mais ainda, é o poder genitor. Ampliando
a significação, ele também é um dos elementos encontrados na formação de tudo o que existe;
ademais é a transformação, a passagem de um nível de existência para outro. O branco está
presente no processo da criação de tudo que existe. Ele representa a iniciação, o nascimento, a
morte e o renascimento.
Já refletimos sobre a relação dos eboras que constituem o ìrunmalé de esquerda,
que reúne todos os representantes do poder feminino, e os eboras-filhos, resultantes da
interrelação dos orixás, cuja representação está encabeçada por Odudua, metade inferior
do Igbá-odù, o aiyê, a terra. Embora esteja situada do lado esquerdo, Odudua pertence aos
funfun, representada pela água que é um dos elementos veiculador es do axé genitor
feminino. Dentro desta concepção, a chuva que fecunda a terra possui o branco que
simboliza o poder dos genitores funfun. O branco tanto representa o poder genitor
masculino quanto o feminino. Dentro desta perspectiva , a cabaça é a representação do
ventre que fecunda a existência e ao mesmo tempo é a união dos dois elementos genitores,
isto é, Odudua, criadora do aiyê, e Obatalá, criador de tudo que existe no aiyê com seus
duplos. Sobre esse aspecto, a autora observa: “As duas metades do igbá-odú devem
manter-se unidas, orun e aiyê, Oduá e Obatalá, o feminino e o masculino complementam-
se para conter os elementos-signos que permitem a procriação e a continuidade da
existência” (SANTOS, 1984, p. 64).
Ainda dentro do complexo mundo dos orixás, Nanã é identificada como Odudua ou
Iyá-agbá, ancestrais femininos, sendo uma das cabeças da sociedade das possuidoras de
pássaro ou sociedade Gèlèdé; entretanto Oxun aparece no processo de criação com a função
de cuidar das crianças desde o ventre materno, por isso é associada ao corrimento menstrual
e é identificada como a cabeça da sociedade Gèlèdé. Agora, vamos nos transportar para a
Boa Morte. Durante o ciclo da festa é possível encontrar algumas referências a Oxum,
174
através das flores e dos colares na cor dourada que as integrantes da Boa Morte usam no
último dia da festa pública, bem como a cor vermelha parece estar relacionada aos orixás
Iyansã e Exu. Essa associação pode igualmente ser aludida às cores de Obaluaiyê, que se
apresentam nas vestimentas usadas pelas integrantes da Boa Morte (vide figura 20),
sobretudo no terceiro dia da festa pública. Segundo Santos (1984), o vermelho, o branco e o
preto constituem a matéria de origem, sendo o preto correspondente ao axé veiculado pela
terra e esta como tal resulta de um processo interior, associado ao segredo que está no
ventre fecundado, bem como os demais eboras-filhos. É Obaluaiyê que esconde por trás da
palha da costa de suas vestes o segredo da morte e do renascimento, da gênese, é ele o
orixá-patrono da Boa Morte; portanto esta Irmandade está diretamente envolvida com os
orixás relacionados à fecundidade, à criação, à morte que é um aspecto da vida, pois só
existe vida porque há morte e só há morte porque há vida.
Dentro do complexo nagô, há uma simbologia em relação ao número três que constitui
uma unidade dinâmica. Além do vermelho, o branco e o preto serem as cores portadoras dos
axés utilizados para forjar a existência, três também é o número de vezes necessárias para que
o orixá ou ancestral apareça. A associação ao número três faz parte da Sociedade Ogboni, cuja
175
simbologia está presente no próprio edan (vide figura 21) formado pelas figuras masculina e
feminina; essas duas figuras associam-se ao segredo, que é o terceiro elemento procriado da
união desses dois elementos-signos (MORTON-WILLIAMS, 1960 apud SANTOS, 1984).
Não poderíamos deixar de assinalar essa relação entre as três sociedades secretas, podendo ser
mais facilmente identificada na Irmandade da Boa Morte e suas cores-símbolos das vestes e
dos objetos que a identificam.
1 2 3
Assim como os orixás, os eguns estão divididos em dois blocos: os da direita referem-
se ao egun masculino, denominados como Babá Egun e os da esquerda, são eguns femininos,
representados pelas Iyá-Mi ou Iyá-ágbá. As sociedades onde se agregam seus cultuadores
denominam-se respectivamente como Egungun e Gèlèdé, das quais já nos referimos acima,
mas teria ainda uma terceira sociedade nomeada como Egbé Eleekó, contudo, aqui vamos nos
deter apenas nas duas primeiras. A relação de Egun e as Iyá-Mi está revelada no mito em que
Odudua recebe de Olorun uma cabaça com um pássaro e o título de “mãe da eternidade”, mas
por não atentar para as recomendações de prudência no uso dos poderes, Odudua perde para
Obarixá o poder de manejar os Eguns, explicitando a relação entre Iyá-Mi e Egun, através do
pássaro58. É bom salientar que a representação dos ancestrais é feita respectivamente pelo
Onilé e imole – montinho de terra que, ao ser batido três vezes, permite que os ancestrais se
manifestem; além disso, toda ação ritual no terreiro está indissoluvelmente ligada à terra,
58
Reginaldo Prandi, na obra Mitologia dos Orixás (2001), traz uma releitura rica em detalhes do mito que narra
a perda do poder feminino para as mãos dos homens.
176
desde Olorun, passando para os orixás até os ancestrais (SANTOS, 1984), o que significa que
mesmo Babá associa-se ao elemento da vida; sua existência está simbolizada através de um
monte de terra, logo a outra metade ou a metade feminina da sua existência está igualmente
presente nesses rituais. A presença da mulher pode até ser execrada fisicamente, mas sua
simbolização não, e nesse sentido, tendo os rituais a capacidade de reverter qualquer situação,
reparar qualquer desigualdade, a mulher torna-se tão necessária quanto o homem; eis aqui a
outra metade da cabaça da existência que por sua vez está sob a proteção feminina.
Porém associado à cabaça que encontramos nos adornos de Exu, Nanã e Obaluaiyê, a
Sociedade Gèlèdé pode representar a outra metade da cabaça que, junto com a Sociedade
Egungun, forma a cabaça da existência; portanto a Irmandade da Boa Morte é a que
representa hoje essa contraparte da existência, pois se tudo que há no orun e no aiyê tem seu
duplo, mesmo que não haja uma relação pública desses dois grupos e ainda que
explicitamente sejam excludentes, percebe-se que há um diálogo simbólico entre eles.
Contudo, a metade feminina da cabaça, embora necessária à existência plena, é, por vezes,
considerada perigosa, impura, geradora de desordem. Mesmo em algumas culturas africanas,
como os Neyau, da Costa do Marfim, a mitologia traz a cabeça como a mãe devoradora.
Entretanto, em geral, a cabaça simboliza,
59
Tradução livre de: “Précisons toutefois que La calebasse symbolise La féminité à plusieurs titres: elle est
l‟attribut féminin par excellence comme ustensile pour puiser l‟eau, conserver ET préparer lês aliments; elle
suggère également Le sexe de La famme (“calebasse cassée” designe, dans Le langage populaire, La
défloration); elle est symbole d‟abondance, de fécondité, de régénération et représente l‟image du monde.
Ainsi participe-t-elle du culturel (La cuisine), du cosmique (l‟univers), du metaphysique (mystère de la
gèrèration)”.
177
todo o grupo faz com que a mulher seja vista por esses últimos e consequentemente como o
único aspecto – o negativo; foi utilizando-se desse jogo que o homem subtraiu o poder
feminino e o transformou em uma arma poderosa para interditar a mulher dos processos
iniciáticos masculinos; deste modo, os homens negam o nascimento biológico originário da
mulher para considerar apenas o nascimento social. Assim utilizam a ordem natural, ou
melhor, desprezam a natureza para valorizar apenas o social; contudo, os homens continuam a
depender do feminino para ascender socialmente, por isso toda a tentativa de exclusão
feminina esbarra em uma fronteira frágil que os elementos-símbolos, como Onilé (Oduda) e
imole (Obatalá), encarregam-se de derrubá-la, mostrando a importância dos dois para a
procriação do terceiro elemento.
C – Não, eu não vejo não. Egun tem masculino e feminino também, Egun de
tiras são os homens, tem os aparaká e tem as manduas que é o Egun das
mulheres; tem aí a finada Ziza a mãe de Teresa, que é uma mandua, a que foi
a Iyakekerê da casa, hoje em dia ela sai aí, mas falar ela não fala, só dança,
mas não fala. E – E por que elas não podem falar? C – Isso aí eu nem posso
lhe dá uma resposta (risos) porque geralmente eu nem sei, eu nunca me toquei
em perguntar. E – E você gostaria que elas falassem? C – Eu gostaria sim,
para ver se é igual aos Egun ou se é diferente. Isso não incomoda não, porque
eu não acho que tenha discriminação não, porque geralmente se tivesse
discriminação elas não sairiam. (Carmélia, integrante do terreiro Agboula).
178
C – Não falam, porque os Egun aparaká só falam depois que tomam roupa,
tomam carneiro daí passam a falar. Tem de ter um preparo antes porque o
espírito quando acaba o axêxê, e faz todas as coisas, com determinados
anos faz o aku, geralmente depois do aku o Egun já está pronto, o Egun já
está pronto para iniciar a ser um Egun de luz, receber o carneiro, sua roupa
e vim para o barracão. Mas o espírito de mulher não pode falar, mesmo que
faça os rituais, porque isso só quem sabe explicar são os homens. (Carmélia,
integrante do terreiro Agboula).
nefasto, dando-lhe coerência. Diante da afirmação, o que teria a mulher para ser alijada dos
rituais que homenageiam a vida?
O tratamento discriminatório dado aos espíritos femininos talvez seja percebido pelo
olhar externo e adeptos que pouco ou quase nada sabem das estruturas secretas dos rituais que
homenageiam os ancestrais masculinos. Através das entrevistas realizadas com as mulheres
mais antigas do culto de Babá, percebemos que o comportamento masculino quase nunca ou
jamais foi questionado; tudo parece harmonioso. O conflito surge com as mais novas;
percebe-se que quanto mais velhas e envolvidas nos rituais secretos mais aceitam as
condições e regras do grupo. Parece que esse comportamento das mais velhas está ligado à
falta da menstruação que as torna mais próximas do sagrado e do masculino. Portanto, a
menstruação seria um interdito às hierarquias rituais e a velhice o facilitador ou a quebra das
barreiras para que haja qualquer mudança na estrutura ritual; deste modo, é possível que, com
a idade avançada, as mulheres possam realizar alguns rituais relacionados à morte.
Já na Irmandade da Boa Morte, a discriminação em relação ao homem é pouco
questionada; ademais, percebemos que ocorre, de igual modo, entre as pessoas mais
novas, posto que na festa pública a presença masculina é notada em várias ações; porém
ela é negada nos discursos das integrantes. À medida que negam a participação do
homem, as mulheres recusam a modernidade para a manutenção da tradição. Mais uma
vez, os dois grupos mantêm a coerência nos discursos; tanto na Boa Morte quanto em
Babá a estrutura é feita por mulheres e homens, ainda que colocados à margem das
narrativas feitas para o público externo.
O olhar antropológico acerca da discriminação sofrida por mulheres e homens nos
grupos supracitados fornece algumas pistas; a primeira delas vem do fato do homem
considerar a mulher impura para determinados atos, não apenas nos rituais sagrados;
sobretudo, a mulher torna-se impura no período menstrual. Em determinadas culturas, como
entre os Maioris, a menstruação é uma espécie de assassinato, pois a menstruação
biologicamente significa a impossibilidade da vida, pois, na medida em que ela surge, uma
vida deixa de existir; portanto a mulher representa uma constante ameaça. A partir dessa
perspectiva podemos aludir a uma das razões pelas quais as mulheres são marginalizadas nos
rituais mortuários, realizados por Babá Egun. É também ela que ilumina a nossa compreensão
em torno dos rituais realizados pela Boa Morte, uma vez que o corrimento menstrual não
representa apenas o perigo do assassinato; a ausência dela representa a vida. O corrimento
menstrual é ao mesmo tempo uma força de convergência e de exclusão; eis aí uma das razões
pelas quais as mulheres podem realizar os rituais que comemoram a vida. A impureza
180
feminina é algo que a marginaliza, tornando-a fronteiriça. É antes um tipo de impureza que
lhe reveste de poder. O sistema articula todos os indivíduos no sentido de todos ocuparem
seus papéis; ainda que marginalizados, todos têm o seu lugar na estrutura social, põem ordem
em um sistema que se mostra explicitamente desordenado. Deste modo, parece
A impureza ocupa uma posição central nas relações entre as forças espirituais e as
estruturas sociais. De um lado operam os agentes sociais; e do outro os agentes sociais com
forças sobrenaturais, como é o caso da mulher que possui uma força que lhe é inerente dada
pela natureza, seria por assim dizer, uma força sobrenatural, mas que traz implicações sociais
para a realidade social.
A segunda justificativa para a discriminação feminina pode possuir suas bases
ancoradas no fato da mulher ser associada à massa criadora que é a terra. Essa explicação se
junta ao forte elemento relacionado ao princípio dinâmico da existência de tudo que há no
orun e no iyê, simbolicamente representado por Exu, primogênito do universo. Exu é a
coerência e a contradição; à medida que se multiplica, ele se individualiza, uma vez que cada
ser possui o seu Exu individual. Assim como a mulher, Exu é ambivalente, está associado à
natureza pela própria condição de geradora de vida, aquele que carrega a cabaça que contém o
princípio da propagação e mistério indecifrável da gestação. Exu é responsável pela criação
da harmonia entre o poder feminino e o masculino, graças ao fato de ter nascido do ventre e
do axé de Oxun Olari Iyá-Mi Ajé que é o poder máximo feminino e do axé dos dezesseis
Irunmalé Àgba Odú, que é o poder máximo masculino. Contudo, Exu pode ser reconhecido
como o Senhor dos caminhos, que como tal pode abri-los ou fechá-los a depender das
circunstâncias e da gravidade de cada fato; ele se associa ao òna burúku (caminhos malignos)
e ao òna rere (caminhos das boas coisas). Nos dois planos, embora necessário, é portador de
uma parte vista como maléfica; por isso Exu, como a mulher, é venerado, mas mantido na
fronteira. Neste sentido, sendo a mulher portadora de dupla força, oferece, segundo a visão
masculina, o perigo ao homem, mas também pode associar-se ao movimento, à dinâmica e à
instabilidade, por isso a mulher pode não ser considerada uma aliada do homem, já que está
inserida em um mundo de ambivalência e oposições. É também pela ótica dos homens que a
mulher pode ligar-se à fronteira entre a natureza e a cultura.
181
No que tange à Irmandade da Boa Morte, podemos dizer que, além dela seguir os
princípios das sociedades secretas das Gèlèdés, elas acreditam que os homens podem atuar
apenas nos cargos administrativos, sendo que as noviças, crianças e homens são excluídos
do ritual secreto denominado por ela como a vigília ; é na vigília que efetivamente as
mulheres se afastam dos homens. Além disso, os ritos mortuários realizados pelas
mulheres da Boa Morte privilegiam os ancestrais femininos e os orixás relacionados à
criação, que, como Exu, são a progênie de todos os orixás-filhos tanto do aiyê quanto do
orun. Dentro da sociedade regida pelas mulheres, Exu é o próprio pássaro Eléye que
acompanha e realiza todos os desejos das Iyá-Mi. Dentro da simbologia das cores, Ele
representa o vermelho que é um processo da interação entre cores; como já nos referimos,
o vermelho é simultaneamente transportador de axé e princípio dinâmico da existência
individualizada; Exu, como o sangue vermelho, representa a capacidade da gestação e está
contido nas penas de ekódidê.
Sobre a pena usada pelos Iyawô na iniciação, o mito conta que Oxalá possuía três
esposas. Uma delas, a principal, era filha de Oxum, que se encarregava de cuidar das
ferramentas e as vestes brancas de orixá. Entretanto as outras duas esposas tinham muitos
ciúmes dela e queriam prejudicá-la de alguma maneira. Certa vez haveria uma festa no
palácio e a zelosa esposa lavou as ferramentas de Oxalá e as colocou no sol para que ficassem
ainda mais reluzentes; porém as duas esposas que não suportavam a filha de Oxum pegaram
182
as ferramentas e lançaram ao mar. Tal foi o desespero quando a principal sentiu falta e assim
ficou desolada por não ter uma explicação para dar ao marido. Mas uma de suas criadas, fiel à
filha de Oxum, ao limpar os peixes para festa encontrou neles as ferramentas de Oxalá e a s
entregou para a primeira esposa.
Contudo as duas esposas ainda não se deram por vencidas. Vejamos o que o mito
ainda nos reserva.
No dia da festa, a primeira esposa sentou-se à direita de Oxalá, enquanto as duas
do lado esquerdo, o que as tornava mais raivosas. As duas aproveitaram que a principal
saíra para buscar a coroa do grande orixá e colocaram sob sua cadeira um preparado
mágico. Ao voltar, a principal esposa sentou e sentiu algo pegajoso, estranho e
imediatamente correu aos seus aposentos, percebendo que estava menstruada, e
novamente se desesperou pois, segundo as normas, ela havia quebrado um t abu, uma vez
que Oxalá é avesso a sangue vermelho e à menstruação. Oxalá sentiu falta da esposa e foi
procurá-la; ao encontrá-la toda suja do suposto sangue, ficou muito nervoso e a expulsou.
A filha de Oxum correu para o colo da mãe que a recebeu com muito carinho, colocando-a
na bacia para banhá-la com ervas. Quando Oxum tirou a filha do banho percebeu que o
vermelho originava-se das penas de papagaio da costa, pena rara que também é conhecida
com ecodidé. O fundo da bacia ficou repleto delas. A partir do episódio, a filha de Oxum
começou a usar as penas como adorno em festas públicas, fato que a deixou com fama de
riqueza, pois as penas eram muito caras e raras. Oxalá ficou sabendo e quis averiguar o
fato; foi à casa de Oxum e encontrou sua esposa coberta com as preciosas plumas. O
grande Orixá, diante de tamanha beleza, a perdoou, a levou para o palácio e novamente
ela passou a ocupar o primeiro lugar entre as esposas.
Como prova de lealdade, Oxalá passou a ornar a própria testa com a pena de ecodidé e
determinou que todo Iyawô também enfeitasse a cabeça raspada com a mesma pena, pois
assim fica mais facilmente reconhecida pelos orixás quando estes tomam seu corpo em
possessão60.
Cada vez mais fica evidente a relação de complementaridade simbólica entre os dois
grupos. Se por um lado as mulheres da Boa Morte lidam com a vida e os orixás a ela
relacionados, por outro lado, os homens de Babá Egun lidam com a morte e os espíritos
ancestrais a eles associados. O próprio Exu se encarrega de realizar a ligação entre os dois
grupos. Se dentro da cosmogonia nagô o ser humano vive plenamente, não existindo a morte,
60
Este mito foi recontado a partir da obra Mitologia dos Orixás, de Reginaldo Prandi (2001, p. 329).
183
uma vez que os rituais mortuários permitem que o homem viva para toda eternidade
socialmente, então o que há entre a Boa Morte e Babá Egun é o distanciamento necessário
para a sobrevivência dos dois, harmonizando as forças do masculino e do feminino que
explicitamente são excludentes, mas simbolicamente estão unidas.
Quem tira Ela (Nossa Senhora) são as irmãs, são as quatros irmãs de festa
são quem tira, quem tira e quem bota; agora devido à idade mais cansativa,
não aguentam mais, não tem mais membro, força, para suspender, carregar
Nossa Senhora como antigamente, durante todo o percurso; é por isso que
nós abrimos mãos para as pessoas que também vêm, os visitantes vêm e todo
mundo que vem quer pegar em Nossa Senhora, todo mundo quer sentir
Nossa Senhora como nós sentimos no dia a dia. Quer dizer que nossas irmãs
carregam aquele símbolo até a porta e depois aquelas que estão ali ao redor
que ainda aguentam carregar Nossa Senhora carregam, depois nós ficamos
contritas por não poder mais carregar por não poder mais fazer força,
problema de coluna e outras coisas mais. É por isso que nós abrimos mão
para outras pessoas carregarem Nossa Senhora, porque se dependesse de
nós saíamos à rua toda, carregávamos pela vida toda, não passávamos para
ninguém. (Floricélia, integrante da Boa Morte).
184
O depoimento da integrante deixa entrever que o homem é mais forte que a mulher;
apesar de ter ressaltado que uma mulher nova possa fazer tudo que um homem faz, ela recorre
inconscientemente ao discurso hegemônico da masculinidade, cuja ideia de fortaleza pertence
ao homem em oposição à fragilidade feminina. Outra justificativa notada na fala da integrante
é o fato de que no momento que os homens estão conduzindo Nossa Senhora elas estão
invocando forças sobrenaturais para reverter a situação, isto é, o fato dos homens estarem
ocupando o lugar que seria inerente às mulheres. Porém, a brecha da presença masculina na
procissão não é sinônimo de igualdade na concepção de gênero; por vezes os homens ocupam
um lugar de qualquer outro indivíduo, independentemente da genitália que ele tenha. Diante
dos fatos, recorremos a uma das funções dos rituais para entender a fala da integrante.
Sabemos que os gestos, muitas vezes, vêm acompanhados por palavras sagradas e possuem a
capacidade de reverter qualquer situação; esse fato fica mais evidente quando olhamos para o
depoimento de Floricélia que afirma: “enquanto os homens carregam a imagem nós ficamos
contritas”, o que pode ser entendido como a elevação do pensamento na produção de
fórmulas mágicas capazes de anular a força masculina que está carregando a imagem. Há
neste sentido uma inversão de papéis, no momento em que os homens carregam o andor; para
elas é como se estes fossem mulheres ou, pelo menos, pessoas que pudessem ser submetidas
àquela condição. Mais uma vez é a performance ritual que permite tal inversão. O drama
social vivido pelas mulheres parece deslocar o olhar para os elementos estruturantes que se
mostram arredios ou estranhos à familiaridade feminina; é o olhar que vem das margens que
fornecem alimento às estruturas centrais.
Já em Babá Egun, cuja localização é rural, percebemos que existe certa coerência
entre o discurso e a prática. Aqui as mudanças são quase imperceptíveis, principalmente
no que toca às relações entre homens e mulheres (vide figura 22). Isso não significa que a
186
tradição não sofra os revezes das mudanças que ocorrem na sociedade, na qual o culto está
inserido. Mudanças que podem ser referidas quanto à exposição midiática do culto.
Contudo, falamos de uma tradição entendida como um conjunto de práticas e significados
geridos e ressignificados por indivíduos e/ou grupos que a pratica m, o que significa que
ela não é estanque nem impermeável às dinâmicas culturais da própria realidade social
vivida por seus guardiões. Apesar de manter o núcleo duro da tradição, um pequeno
número de adeptos questiona a postura dos homens em relação ao tratamento dispensado
às mulheres; porém essas reclamações aparentemente não surtem nenhum efeito, uma vez
que a masculinidade hegemônica impregna toda estrutura ritual, ditando tudo a ser
realizado na comunidade, tanto nos aspectos rituais quanto nas decisões fora dela. São os
rituais responsáveis por separar o cotidiano da cerimônia, contudo, muitos elementos
rituais são utilizados no dia a dia, para determinar o que não pode ser modificado ;
portanto, seus adeptos usam o sobrenatural para justificar regras e comportamentos da
realidade social, como se pode ver na narrativa da integrante do terreiro Babá Agbo ula,
acerca do trato feminino no referido culto:
Tem vários tipos de Egun, tem Egun Apaaraká, tem mandua, esse é de
mulher, tem a mãe de Teresa que sai, tem uma tia minha, chama tia Júlia e
têm outras aí. E – E como é o Egun feminino? R – Ele sai, dança, mas não
fala; elas não falam, não dão consulta, só dançam. Era bom que os Eguns
de mulher pudessem falar, tivessem voz, porque assim como os homens
falam poderia ser a mesma coisa, ter voz. Eu fico um pouco triste porque eu
queria que elas falassem, porque mesmo essa mãe de Teresa aí, eu queria
que ela falasse, porque era uma pessoa extraordinária, uma pessoa bacana!
Quando elas querem mandar recado elas passam para outros Eguns que
falam, para transmitir alguma coisa. Eu acho que as manduas deveriam ter
o mesmo direito de Egun do homem, para mim deveria ser assim. Se fosse
mulher eu ia ficar mais a vontade para falar as coisas, eu gostaria sim!
(Raquel, adepta do Terreiro Agboula).
Para além das desigualdades de sexos apontadas pela entrevistada, ela mostra o desejo
de poder falar com o espírito feminino, fica evidente a concepção de morte nas entrelinhas da
narrativa, pois fala do espírito da mãe de Teresa como se a mesma ainda estivesse no aiyê.
Assim como na sociedade mais ampla, os espíritos femininos ou as manduas precisam dos
espíritos masculinos para transmitir suas mensagens ao grupo e/ou a algum membro da
família carnal. O comportamento dos adeptos, homens ou mulheres, é controlado pela
masculinidade hegemônica, porém, no que se refere à questão do poder e do controle, este é
diferentemente acessível aos que se encontram em posição privilegiada; utilizam-se da
estrutural ritual para perpetuar desigualdades femininas. Contudo, este aspecto do culto
187
Para chegar a ser um Ojá o correto seria esse, fazer primeiro a parte de
Lesén-Orixá, assentar o santo, dá bori para fortalecer a cabeça para depois
entrar. Primeiro Babá nomeia a pessoa, depois faz Amúixã que é a primeira
obrigação, aí a pessoa fica esperando um determinado tempo, dois anos,
três anos para poder fazer Ojé, você está entendendo? Depois quando faz
aquele tempo de três anos faz Ojé, dois anos, três anos conforme for
entendeu? Mas o correto mesmo são três anos, aí tem gente que faz, tem por
aí, algumas casas que faz o cara, faz Ojé até com seis meses, até com seis
meses o cara faz, mas o certo são três anos, mas hoje o cara não quer
esperar. Aqui mudou umas coisinhas, mas a gente tá consertando. (Clésio,
Ojé do Terreiro Agboula).
necessário para realizar suas performances diante do sexo oposto. Desde crianças eles
realizam uma espécie de ensaio (SCHECHNER, 1985), quando das vivências rituais em
suas brincadeiras; já na fase adulta, os indivíduos realizam a performance ou a realização
do ato em si, enquanto parte integrante do ritual. Essas atitudes levam seus adeptos a
utilizarem performances estratégicas, a fim de manter o status. O comportamento, que
muitas vezes foi apreendido nas brincadeiras, deve ser repetido quando necessário; de
igual modo, joga-se com esses aprendizados para dominar ou passar a ideia de dominado,
com o intuito de atingir um propósito maior, para ordenar aquilo que se julga
desordenado, para ajustar o natural ao sobrenatural. Portanto, os movimentos de mudanças
entre os grupos desvendam complementaridade entre os espaços do masculino e feminino.
Sobre os espaços aparentemente antagônicos, o autor esclarece:
A citação revela-se como uma espécie de metáfora para dar sentido às oposições
existentes entre os dois universos, que por vezes são excludentes e ao mesmo tempo
complementares. O masculino vive para o feminino e este para o masculino, por mais que o
homem subjugue a mulher, ela será sempre uma desordem necessária, sem a qual a vida não
se completa, mesmo que esta união seja considerada precária e problemática.
Em quase todas as comunidades, os rituais exaltam a masculinidade hegemônica e as
atividades a ela relacionadas; por outro lado, as atividades rituais reforçam a ambiguidade na
concepção masculina da natureza da mulher, contrapondo-se ao papel social que ela
desempenha no seio da sociedade, ou seja, a mulher garante a fecundação de novos seres,
porém isso não impede que ela seja classificada como inferior e dependente; por conseguinte,
a concepção masculina frequentemente omite o caráter dinâmico e complementar inerente à
mulher. Fatos análogos podem ser encontrados nos grupos tradicionais que ora estudamos;
todavia faz-se uma ressalva acerca da Boa Morte que, apesar de sofrer os desmandos de uma
sociedade hegemonicamente masculina, coloca-se no mundo de forma diferenciada, dada a
especificidade de figurar como o único grupo feminino que discursivamente refuta o homem.
189
A análise de diferentes situações revelou que, mesmo negando, homens e mulheres são partes
integrantes de ambos os grupos. Para Balandier (1976), a lógica da existência é a do dualismo
complementar e da dinâmica das oposições. A relação de controle entre homem e mulher vai
além das estruturas rituais, antes é uma forma de expressar as oposições da vida em
sociedade, revela a condição de cada sexo na rede social. Sobre esse aspecto, Bourdieu (2010,
p. 122-123) adverte:
As respostas para as inquietações em torno dos grupos estão nos corpos de mulheres e
homens que se esforçam para manter viva a tradição, sem perder de vista o respeito a si
mesmo. Ao longo de nossa permanência junto aos grupos, percebemos que cada ritual tem a
função de fazer perdurar os saberes tradicionais; todavia os grupos estão atentos às dinâmicas
culturais que os envolvem.
Inicialmente, a partir dos dados recolhidos na pesquisa exploratória e na análise
destes, trabalhávamos com a seguinte hipótese: homens e mulheres utilizam performances
de masculinidades e feminilidades para assegurarem as práticas dos rituais mortuários, bem
como garantirem a manutenção do status de poder dentro dos grupos, ou seja, ao invés de
questionarem a exclusão feminina nos rituais, usam o corpo para subverterem a ordem
vigente. Pois bem, penso que esta hipótese resolve parte de um fenômeno muito mais
complexo do que foi previsto, posto que envolve não apenas aspectos físicos mas de ordem
sobrenatural; não apenas indivíduos que estão no centro das ações, mas pessoas que estão à
margem; deste modo, os rituais mortuários lidam, sobretudo, com o universo rico em
simbolismo, tantas vezes contraditório quando olhado pelo ângulo dominante. O jogo
produzido nos grupos pesquisados revela um efeito maior do que é mostrado na sua
representação; é produzido simultaneamente na ação e na emoção entre/pelos participantes.
Para Huizinga (2008, p. 18), o ritual está longe de ser simplesmente uma ação imitativa,
leva a uma verdadeira participação no próprio ato sagrado. Consoante ao exposto, a
masculinidade hegemônica em contexto de cultura oral mostra-se mais resisitente à
mudança, principalmente quando se tem por base a relação entre mulher e homem, como no
caso do culto de Babá Egun em oposição ao contexto da Irmandade da Boa Morte que se
permite jogar com ela. Embora ambos tenham a oralidade como base, o primeiro estabelece
190
uma estratégia mais eficaz no sentido de tornar visível e justificável a postura masculina em
relação à exclusão da mulher dos processos rituais, deixando evidente que apenas eles são
capazes de dar continuidade a uma tradição secular. O segundo grupo também usa a
estratégia para assegurar a manutenção da instituição, por isso parecem aceitar as
imposições masculinas, mas por meio dos símbolos rituais, e a sua condição, enquanto
propulsora de vida, subverte a ordem vigente, promovendo transformações paradigmáticas,
no que toca aos rituais mortuários. Deste modo pode-se afirmar que os aparentes conflitos
entre homens e mulheres compactuam, fundem-se e se homogenizam, sem perder suas
especificidades, para ligar a natureza à cultura, o aiyê ao orun, enfim, o masculino ao
feminino como essenciais em qualquer segmento da vida.
191
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dentro das concepções mortuárias dos adeptos da Boa Morte e do culto de Babá Egun
a imortalidade constitui ponto norteador da existência terrena, contudo, a realização dos
rituais mortuários, em princípio, seria exclusividade masculina, já que grande parte das
narrativas mitológicas afro-brasileiras atribuem ao homem lugar privilegiado em oposição à
subalternidade da mulher, quando observada sob a ótica masculina, pois existem mulheres-
deusas que não são subalternas ao poder do homem. A mitologia africana fornece elementos
que justificam a subversão feminina contra a ordem dominante. Vista pelo homem, a mulher é
um ser ambíguo; dada a sua capacidade de fecundação e de poluição, ela representa a
desordem, mas é ao mesmo tempo elemento da ordem.
Segundo o princípio nagô, a função de trazer os Eguns à terra é exclusividade
masculina, por isso nem todas as pessoas podem lidar com esses espíritos. Mas esse princípio,
durante a realização da tese, tornou-se divergente, quando examinado à luz dos dados
empíricos recolhidos tanto na Boa Morte quanto no Babá Egun; os dados demonstraram que
os rituais contam com a colaboração de homem e mulher, cada um tem seu lugar na estrutura
ritual. No Bela Vista, Ponta de Areia, inicialmente, a mulher se ocupa apenas do cuidado dos
orixás, mas as entrevistas revelaram que outras funções lhe são atribuídas, como o preparo das
comidas votivas dos Eguns, a preparação do espaço ritual; ademais é atribuição feminina
levantar as oferendas entregues aos Babás. Deste modo a prática vai além dos discursos. No
processo de interação entre o masculino e o feminino, podemos afirmar que as forças
sobrenaturais e as ações físicas desempenham fulcral participação, visto que a comunicação
ou a sociabilidade entre dimensões aparentemente antagônicas elaboram a ação ritual
mortuária com signos e significados múltiplos.
No que toca às questões das masculinidades e das feminilidades produzidas pelos
adeptos dos referidos grupos, revelam-se duas faces: a primeira delas está associada ao
cumprimento da determinação de forças sobrenaturais, as quais justificam a exclusão da
mulher dos processos rituais que homenageiam os ancestrais; já a segunda liga-se ao fato de
que a tradição não pode ser modificada conscientemente, portanto os seus adeptos não estão
autorizados a imprimir ou retirar elementos dos cultos. No caso do culto de Babá Egun, as
mulheres não acessam alguns espaços rituais, mas por outro lado, são fulcrais na realização
das homenagens; alguns entrevistados afirmaram que sem a participação feminina não havia
192
como realizar o culto. As funções desempenhadas por cada mulher, por cada homem têm
importância material e simbólica, sendo estas reveladas através da concepção dualista do
masculino e do feminino, aparecendo especialmente como forças complementares,
constituindo a própria natureza do ser humano e do caráter opositor das coisas. Porém, para
Balandier (1976), o “mundo”, a sociedade e a cultura que servem de base para a existência
não podem resultar senão das múltiplas relações entre elementos marcados pelos signos da
masculinidade e da feminilidade.
Quanto à Boa Morte notamos que há um movimento de mudança quando novas
integrantes são incorporadas ao grupo. Todavia, no que tange às estruturas rituais, as
transformações são efetivadas para atender as necessidades de pessoas que não estão na hierarquia
da Irmandade, mas que usam das prerrogativas do conhecimento do mundo letrado para impor
mudanças; portanto, as transformações ocorridas na Boa Morte chegam de fora para dentro.
Durham (2004) chama a atenção para o fato de a maioria das culturas tidas como populares
estarem ancoradas na oralidade e não na comunicação escrita, onde padrões de comportamento e
representações simbólicas são desenvolvidos por determinada pessoa ou grupo que parece definir
o modo pelo qual cada integrante vive e deve ocupar espaço denominado. Para Santos (1984), a
introdução de comunicação escrita cria problemas que ferem e debilitam os próprios fundamentos
das relações dinâmicas do sistema. Dentre as modificações, não se veem mais as integrantes
envolvidas nos preparativos dos alimentos; o percurso das procissões é modificado em nome do
cuidado com as irmãs. O salão no qual ocorria a valsa e o samba é agora um ateliê e nos dias de
festa abriga uma feira de artesanato e comidas típicas (vide figura 23). Vale salientar que tanto o
artesanato quanto a comida nada têm a ver com a Irmandade, bem como a arrecadação de
proventos oriundos da venda desses produtos.
193
lidar com forças mortuárias são dadas pelo viés da natureza, uma vez que ela (a mulher) é
produtora de nova vida e nela reside também a possibilidade da continuidade da existência.
Porém a oposição aparece quando colocamos em relevo uma característica inerente ao
feminino, o corrimento menstrual; por ele, a mulher pode ser considerada fonte de perigo, já
que a menstruação possui simbolicamente dupla face: uma que é fonte de fecundidade e outra
que é fonte de morte; o sangramento menstrual descarta a possibilidade da concepção de uma
vida. Desta forma, os rituais têm a função de reverter essa ambiguidade, de apagar esse
aspecto inerente à mulher; é isso que nos fez acreditar na subversão feminina que impregna a
visão de mundo das mulheres da Boa Morte.
Quanto à postura dos homens do culto de Babá Egun, estes tranformam a fecundidade
inerente à natureza feminina em símbolo de ameaça não apenas para os rituais como para toda
a coletividade; desta forma, os homens fazem de uma característica biológica um instrumento
de dominação masculina aliando a ela a violência subjetiva, como foma de controle e
exclusão do ciclo social. Através dos rituais, os homens expressam a repartição e a
hierarquização das atividades, as quais estendem-se para outras esferas da vida em sociedade.
Mas a aliança do masculino com o feminino, em diversas instâncias da vida, faz desaparecer
as oposições, que por sua vez são transformadas em elementos de complementariedade. Para
Balandier (1976), é nisso que constitui a origem do sistema social, as diferenças; mesmo
permanecendo como portadoras de tensões, são constitutivas de relações.
A premissa da utilização da performance de masculinidades e feminilidades como
forma de assegurar as práticas dos ritos mortuários, assim como a garantia de manutenção do
status de poder, foram reveladas ao longo de todo o texto, principalmente quando apontamos
de que maneira esses comportamentos eram engendrados, sobretudo nas crianças, dentro e
fora dos rituais; a repetição dos rituais proporcionava a restauração de um comportamento
duradouro. Assim podemos afirmar que mulheres e homens usam estratégias corporais da
masculinidade hegemônica e da feminilidade dita subalterna para vencer as contradições
rituais; ainda assim, a cultura produzida na Irmandade da Boa Morte e no terreiro de Babá
Agboula, principalmente nos seus aspectos materiais, é colocada sob o signo da hegemonia
masculina.
As mudanças observadas ao longo dos anos também estão relacionadas a dois fatos. O
primeiro está associado à diferença sexual (biológica), que é transformada pelos homens em
uma forma de dominação e de exclusão das mulheres dos rituais mortuários, o que revela uma
contradição entre a prática e o discurso, visto que tanto o homem quanto a mulher são partes
constitutivas de todo o processo ritual, mostrando que a dubiedade é uma resposta à
195
ambivalência das relações e das estruturas onde se realizam todos os rituais. Outro fato
relaciona-se às mudanças ocorridas na estrutura ritual; para além da subjetividade, elas estão
ancoradas em saberes materiais e imateriais que criam uma dinâmica e certa tensão entre o
moderno e o tradicional, entre os adeptos e a população. Essas transformações carregam certa
reflexividade que ora aponta para o avanço ora mostra-se retrocedente. Para Giddens (2005), a
reflexividade é uma característica que define toda ação humana, inclusive o controle
consistente que não se distancia do comportamento e dos contextos sociais.
Assim, a tese Duas metades, uma existência: produção de masculinidades e
feminilidades na Irmandade da Boa Morte e no Culto de Babá Egun foi um exercício a
respeito das práticas mortuárias e os diferentes papéis desempenhados por homem ou mulher,
ao tempo em que se revelaram performances para manutenção de poder ou subversão da
ordem vigente. Assim vimos que os dois grupos investigados lutam de todas as formas para
cumprir os requisitos sagrados dos rituais mortuários que permitem aos homens e mulheres
ascenderem ao estatuto de ancestrais. Nesses rituais, os corpos performatizam para fazer unir
esferas aparentemente antagônicas como o masculino e o feminino, o aiyê e o orun.
196
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Arquivos pesquisados
GLOSSÁRIO
Abiã – adepto do candomblé que ainda não passou pelo processo iniciático e feitura no orixá.
Agbá – o mais respeitado, o mais velho.
Agboulá – nome do Egun protetor do terreiro do Bela Vista que leva o mesmo nome.
Aguê – espírito da floresta, também conhecido por Aroni, fiel companheiro de Ossaiye, fuma
cachimbo de casco de caracol; por possuir uma única perna é associado à figura do saci-
pererê.
Aiyê – lugar onde habitam os vivos.
Alá – grande pano branco usado por Oxalá para controlar os dois planos da existência.
Alabá – nome dado ao sacerdote-chefe de um terreiro de Babá Egun.
Alabê – nome usado para designar o tocador de atabaque; normalmente essa denominação é
usada para os iniciados que compõem a orquestra ritual.
Alapini – o mais alto título concedido ao adepto do Culto de Egun; nome dado ao sumo
sacerdote do culto aos ancestrais, Egun.
Amuixã – primeiro estágio de iniciação no Culto de Babá Egun.
Apo-iwa – saco da existência, bolsa que continha simbolicamente todas as coisas usadas na
construção do mundo material, isto é, o aiyê.
Apéré-odu – Almofada sagrada utilizada por Olorun para sentar-se e na qual contém os
mistérios da criação, além de servir de depósito para os presentes que constantemente
recebem de seus filhos em retribuição às boas ações, e de conter os destinos do mundo.
Ara – corpo.
Atabaque – instrumento de percussão usado no candomblé.
Axé – em iyorubá, significa força, energia.
Axexê – cerimônia mortuária entre os iyorubás, praticado no candomblé.
Axó – roupa ritual dos Eguns.
Axogum – Ogã, encarregado do sacrifício ritual.
Babá – pai, neste trabalho, refere-se ao ancestral.
Babá Egun – nome ritual de um Egun, cultuado nas casas que se dedicam apenas aos
espíritos ancestrais.
Babá Agboula – nome utilizado para designar o Egun protetor do terreiro do Bela Vista.
205
Babá Nilá – nome utilizado para designar o Egun protetor do terreiro Babá Nilá, Baixada
Fluminense, Rio de Janeiro.
Babá Olokotum – nome de um Egun-Agbá.
Barracão – espaço onde se realizam as cerimônias públicas dos cultos de matriz afro-
brasileira.
Barro Branco – local em Itaparica, onde fica o famoso terreiro de Egun Ilê Oiá.
Barro Vermelho – antiga localização do terreiro de Babá Agboulá.
Bela Vista – localização de um dos terreiros de Egun, em Itaparica, Bahia.
Bori – oferenda dada à cabeça.
Cajazeira – na biologia, significa Spondias lutea; no candomblé é uma árvore ritual dedicada
a Ogum.
Candombé – nome que designa, na Bahia, a comunidade religiosa de matriz africana.
Casamento endogâmico – casamento realizado com pessoas do mesmo grupo.
Ceia branca – refeição cujos alimentos são preparados sem azeite de dendê.
Circularidade – princípio africano, no qual encontram-se todas as fases da vida; no
candomblé é representado pelo orixá Oxumarê.
Comida-seca – alimentos votivos que não contêm sangue ou ejê.
Congada – grupo de dança formado na época da escravidão, geralmente para render
homenagens a São Benedito e Santa Efigênia.
Corta Braço – antigo terreiro de Egun, localizado no bairro da Liberdade, em Salvador.
Dádiva – aquilo que se dá; elementos concretos ou simbólicos utilizados nas trocas.
Doburu ou buruburu – pipoca oferecida à Obaluaiyê.
Ebó – oferenda.
Ebora – divindades ancestrais; orixás.
Eduardo Daniel de Paula – grande Ojé, fundador do culto do terreiro de Babá Agboula em
Ponta de Areia, Itaparica.
Èfè – máscara de madeira que possui um pássaro na cabeça com um longo bico, utilizada no
festival da Gèlèdé; representa o poder mágico da grande mãe Ìyánla.
Egun – espírito de ancestral.
Egungun – nome utilizado para designar a reunião de Egun.
Eku – nome dado à roupa usada pelo Egun, também conhecida como opó.
Eleru – alguém que tem bagagem a ser carregada; título para designar a sacerdotisa das
Gèlèdé.
206
Ixã – instrumento ritual usado pelos Ojés e amuixã no Culto de Egun; vara de madeira que
mantém a distância entre os vivos e os ancestrais.
Iyaebê – título feminino usado por grandes Iyalorixás no terreiro de Egun.
Iyakekerê – designação dada a mulheres responsáveis pela liderança dos orixás no terreiro de
Babá Egun.
Ìyálóde – mãe encarregada das questões externas, o maior título da chefia feminina,
integrante da sociedade Gèlèdé.
Iyansã – orixá patrono dos ventos, relâmpagos e do rio Níger.
Iyá Won – grande mãe.
Iyorubá – nome moderno da nação nagô; no Brasil, passou a designar o idioma falado pelos
nagôs.
Jejê – nome que denomina o povo fon do Benim; no Brasil, denomina uma nação de
candomblé.
João-Dois-Metros – Ojé responsável pela fundação do terreiro de Egun em Encarnação,
Itaparica; suposto iniciador do Ojé Eduardo Daniel de Paula, do terreiro do Bela Vista.
Kori Koiê – título honorífico do terreiro de Babá Egun.
Lesén – parte interna do terreiro de Egun, cujo acesso é permitido apenas aos homens.
Lesén-Egun – local dedicado apenas ao culto de Egun.
Lesén-orixá – espaço dedicado apenas ao culto de orixá.
Mãe-de-santo – nome usado para designar a sacerdotisa na religião dos orixás.
Matança – denominação dada à realização do sacrifício de animais vivos.
Moçambique – grupo de dança formado por homens e mulheres, caracterizado por ter um
chocalho no pé.
Mocambo – localidade na Ilha de Itaparica, onde existiu o Culto de Babá Egun.
Nagô – povo do antigo império africano; outras vezes, também, denomina um idioma local.
Nanã – divindade mãe de Obaluaiê, Oxumarê e Exú; uma das divindades mais antigas no
panteão dos orixás.
Obaluaiê – nome de orixá patrono das doenças epidêmicas.
Obatalá – filho primogênito de Olorun, responsável inicialmente pela criação do mundo
material.
Odu – orixá feminino.
Odu – posição em que caem os búzios ou opelé Ifá quando consultados; caminho; destino.
Oferenda – realização de preceitos e cerimônias litúrgicas nas religiões de matriz africana.
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Ogó – Instrumento utilizado por Exu que tem o poder de bilocação que o transporta em fração
de segundos para os locais onde ele deseja visitar, por mais remoto que seja.
Ogodô – um dos orixás guerreiros da casa real de Oyó; ainda hoje está assentado na coroa de
Xangô da Casa Branca.
Ogum – Deus do ferro; guerreiro; filho de Oxalá com Iemanjá; aquele que abre os caminhos.
Oiá – o mesmo que o orixá Iyansã.
Oiê – posto.
Ojá – ornamento feito com tira de pano.
Ojé – sacerdote do culto de Babá Egun.
Okotó – caramujo cônico formado por espirais que se desenrolam infinitamente.
Olari-Egun – o cabeça dos Eguns; o mais antigo dos ancestrais; nome atribuído ao famoso
Egun Agbá Babá Olukotun.
Olodumarê – o preexistente iyorubá, é também conhecido pelo nome de Olorun.
Olukotun – nome de Egun Agbá.
Omo – filho; criança.
Opaxorô – cajado sagrado usado por Oxalá; emblema de Oxalá.
Oxalá – Deus africano considerado pai dos demais orixás.
Ori – cabeça.
Orixás – entidades que controlam as forças da natureza.
Orô – preceito; costume; tradição.
Orun – comunidade ancestral para onde vai aquele que materialmente desapareceu do
convívio social.
Orunmilá – Senhor da Sabedoria, detentor do saber transcendental, o primeiro companheiro e
chefe conselheiro de Odùduà.
Oxum – um dos orixás das águas.
Oxumarê – nome do orixá relacionado ao arco-íris.
Oyeku Meji – Odu que representa a saturação da matéria em sua densidade absoluta; induz a
busca do retorno à espiritualidade, mudança inexorável que só pode ser obtida pela morte.
Pai-de-santo – sacerdote líder; corresponde ao mesmo que babalorixá.
Pano-da-costa – peça ritual usada pelos adeptos de candomblé.
Povo-de-santo – reunião de adeptos do candomblé ou umbanda.
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Richelieu – bordado vazado, cuja origem é francesa; adorno muito usado pelo Sr. Cardeal de
Richelieu que fazia parte da corte do rei Luis XIII, na França; tecido muito utilizado nas
roupas de candomblé.
Rito – tudo aquilo que se realiza e se vive em uma determinada religião ou cultura.
Rituais – realizações concretas de maneira formal de determinados atos; normalmente estão
fora da vida cotidiana.
Rituais mortuários – conjunto de ações realizadas por ocasião da morte.
Sacrifício – momento ritual em que se entrega a vida de um ser vivo a um Deus.
Sincretismo – fusão de elementos culturais e religiosos diferentes sem um só elemento,
porém conserva algumas características originais.
Tio – expressão de respeito aos mais velhos iniciados.
Terreiro – espaço no qual as comunidades religiosas de matriz africana realizam suas
atividades.
Tuntum – local, em Itaparica, onde está situado o terreiro de Egun do mesmo nome.