Dissertação Elidiane de Brito - 2017
Dissertação Elidiane de Brito - 2017
Dissertação Elidiane de Brito - 2017
Paranaíba - MS
2017
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MATO GROSSO DO SUL
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM EDUCAÇÃO
UNIDADE UNIVERSITÁRIA DE PARANAÍBA
Paranaíba - MS
2017
P155e
Pagliuca, Elidiane de Brito
Educação e histórias sobre as concepções de infância de velhos(as) chiquitanos(as):
modos de aprender, de ser e de viver/ Elidiane de Brito Pagliuca. - - Paranaíba, MS: UEMS,
2017.
198f.; 30 cm.
CDD – 370.0181
Ao meu esposo, David Marcelo e aos meus filhos David Luiz e Mariany pelo apoio, carinho e
compreensão durante o tempo dedicado à elaboração e ao desenvolvimento desta pesquisa.
Aos meus pais, Luiz Antônio e Ana Maria, e às irmãs Eliane, Eliaria e Eliza, meus exemplos
de luta, amor e fé na caminhada da vida.
À Profa. Dra. Léia Teixeira Lacerda, por me apresentar o mundo indígena de forma
comprometida com a diversidade étnico-cultural, pelo “olho no olho” nos momentos de
orientações, pelas sugestões sempre certeiras, pela firmeza com que segurou minha mão
durante este percurso formativo. Pelo “leite” teórico-metodológico com que me alimentou
no decorrer desta pesquisa para que hoje eu pudesse ter maturidade acadêmica para concluir
esta missão investigativa.
Ao Prof. Dr. Ademilson Batista Paes, por suas contribuições e apontamentos realizados
durante meu trajeto formativo e por sua prontidão em colaborar e participar da banca de
defesa deste trabalho, tornando esses momentos espaços de diálogos e reflexões.
À Profa. Dra. Beleni Saléte Grando, pela sua dedicação às causas indígenas de Mato Grosso,
em especial ao povo chiquitano, cujas contribuições me despertaram novas interpretações
quanto aos meus primeiros “achados”. Suas colaborações também foram fundamentais para o
aprimoramento desta pesquisa.
Aos velhos(as) chiquitanos(as) do grupo de curussé “Asa Branca” de Porto Esperidião, por
abraçarem esta proposta como uma possibilidade de ensino e aprendizagem dos saberes
chiquitanos às novas gerações. Registro aqui minha gratidão e consideração por esse
seguimento local que sempre me recebeu com carinho e alegria nos momentos em que
dialogamos.
Ao Centro de Educação Infantil Wictor Hugo Cerqueira Ribeiro da Silva, instituição que me
abriu as portas para apresentar a peculiaridade da infância chiquitana no contexto urbano de
Porto Esperidião-MT.
Às professoras participantes, que acreditaram nesta proposta e compartilharam conosco suas
experiências, anseios e sucessos em suas práticas pedagógicas. A vocês, profissionais
comprometidas com a educação da infância, meu eterno agradecimento.
Aos colegas do mestrado e aos professores, que contribuíram com seus diálogos e discussões
sempre muito pertinentes ao desenvolvimento deste objeto investigativo, meus
agradecimentos sinceros.
Figura 1: Velho chiquitano tocando o curussé para as crianças no Centro de
Educação Infantil Wictor Hugo Cerqueira Ribeiro da Silva - Porto Esperidião,
MT
With the development of this research, the intention was to analyze the conception of
childhood of the Chiquitano people from the narratives of 06 old Chiquitanos (as), members
of the "Asa Branca" curussé group, social actors who live their cultural codes in the urban
context of Porto Esperidião-MT. The Chiquitano ethnic group inhabits Bolivia and Brazil and,
on the Brazilian side, holds the permanent possession of the indigenous land Portal do
Encantado, located in the municipalities of Pontes e Lacerda, Vila Bela da Santíssima
Trindade and Porto Esperidião, all in Mato Grosso (Brazil/Bolivia borderline). The data
collection was carried out through semi-structured interviews with the old people to collect
the narratives in a spontaneous and flexible way with the interviewees and according to a
script prepared for this process, carried out at the Center for Early Childhood Education
Wictor Hugo Cerqueira Ribeiro da Silva, who serves indigenous and non-indigenous children
since 1992. Subsequently, the information collected was transcribed and analyzed based on
the contribution of scholars in the field of Education, History and Anthropology of
Childhood. From this methodological path, a teaching project called "The Chiquitano people
and their culture in the school" was elaborated and developed with 5 groups composed by
children of the five-year-old age group, totalizing 81 participants. The analyzed data revealed
that the childhood in the vision of the old ones is a phase of construction of the chiquitano
being, as well as its ways of being, learning and living are based on attitudes like seeing,
hearing and imitating the most to establish the preservation and appreciation of its indigenous
roots in the community. We also observed that play presents itself as a form of cultural
transmission in the constant interaction between the old and children and, in this dynamic, the
curussé manifests itself as much more than a joke, but as a cultural production originating in
the culture of Chiquitania, a ritualistic act. Thus, this cultural practice reveals itself as a "link"
that unites the new generations to the traditional ethnic group knowledge. In addition, based
on the developed teaching project, we found that intercultural education is one of the possible
ways to value the indigenous differences existing in the urban context of Porto Esperidião, a
space of rich cultural exchanges between indigenous and non-indigenous subjects. In this
way, the school presents itself as a frontier space between cultural differences mediating the
existing diversities, be they cultural, social or linguistic. Finally, the activities developed
allowed the transposition of the chiquitano cultural knowledge to the educational context,
previously invisible in the pedagogical practices, and the chiquitano identities gradually
appeared in moments in which the children identified themselves with the ways of being and
to live of this people. The intercultural school as promoter of broad collective dialogism has
the purpose of recognizing the social protagonism of the chiquitano child, a social actor who
needs to be seen with otherness, recognizing her traditions and cultural knowledges. It is
hoped that this intercultural proposal in favor of the Chiquitano children of Porto Esperidião
will continue in the school, as well as in the other educational public institutions of the Mato
Grosso state.
Keywords: Narratives. Chiquitan Childhood. Indigenous education. Borderline. Curussé.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 7: Velho AMP ensinando criança a atirar com o arco e a flecha ....................123
Figura 12: Criança realizando a atividade sobre o povo chiquitano ......................... 135
Figura 16: Criança socando a carne seca para o preparo da paçoca e outra com o
brinquedo bodoque.......................................................................................................145
HISTÓRICO DA PESQUISA...............................................................................................16
O percurso: de docente da infância à pesquisadora da diversidade humana............................17
A questão norteadora................................................................................................................22
Os sujeitos participantes...........................................................................................................22
Autobiografia – método qualitativo..........................................................................................24
As entrevistas............................................................................................................................25
Estado da questão sobre a temática da pesquisa.......................................................................26
INTRODUÇÃO........................................................................................................................30
Produções acadêmicas sobre a infância indígena no Brasil....................................................39
1 A POLÍTICA DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA E SUAS BASES LEGAIS
DIANTE DO DESAFIO DO MOVIMENTO PELA IMPLANTAÇÃO DESSA
MODALIDADE DE ENSINO EM MATO GROSSO..........................................................56
1.1 A legislação indígena e suas políticas públicas educacionais............................................56
1.2 O movimento indígena pela educação escolar em Mato Grosso........................................62
1.3 A escola da infância chiquitana: Centro de Educação Infantil Wictor Hugo.....................69
1.4 Filosofia e objetivos da instituição escolar pesquisada......................................................71
1.5 Estrutura física da instituição.......................................................................................... ..73
1.6 Quadro docente e formação................................................................................................73
1.7 Organização administrativa................................................................................................74
1.8 Apresentação da proposta didático-pedagógico da instituição escolar...............................75
2 O CHIQUITANO NA FRONTEIRA BRASIL-BOLÍVIA: DA INVISIBILIDADE AO
RECONHECIMENTO ÉTNICO...........................................................................................78
2.1 Missão de chiquitos: o berço dos chiquitanos...................................................................78
2.2 A chegada ao território tradicional mato-grossense..........................................................86
2.3 O quadro situacional dos chiquitanos em Mato Grosso.....................................................89
2.4 A língua............................................................................................................................. 91
2.5 A educação chiquitana........................................................................................................92
2.6 Território tradicional...........................................................................................................94
2.7 Os rituais.............................................................................................................................96
2.8 A criança indígena chiquitana.............................................................................................99
3 AS MEMÓRIAS DOS(AS) VELHOS(AS) CHIQUITANOS(AS) COMO FONTE DE
CONHECIMENTO PARA AS NOVAS GERAÇÕES......................................................101
3.1 O(a) velho(a) chiquitano(a).............................................................................................104
3.2 Uma proposta de rememoração das concepções de infância vividas pelos
chiquitanos..............................................................................................................................107
3.3 A Educação intercultural: possibilidade de circularidade dos diferentes saberes
culturais...................................................................................................................................112
4 JOGOS, BRINQUEDOS E BRINCADEIRAS VIVENCIADOS PELOS(AS)
VELHOS(AS) CHIQUITANOS(AS) EM SUAS INFÂNCIAS ........................................117
4.1 Análise e apresentação das fontes orais produzidas junto aos(as) velhos(as)............117
4.2 Apresentação das oficinas: uma proposta formativa para a educação
intercultural..............................................................................................................................138
4.3 Desenvolvimento do projeto de ensino “O povo chiquitano e sua cultura na
escola”......................................................................................................................................142
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................149
REFERÊNCIAS.....................................................................................................................155
APÊNDICES..........................................................................................................................164
ANEXOS.................................................................................................................................176
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HISTÓRICO DA PESQUISA
Inicio com as palavras de Camões esta seção, cujo poema nos faz lembrar, de uma forma
poética e ao mesmo tempo realista, o quanto somos sujeitos históricos na constante (re) construção
de nossa identidade individual/coletiva e conhecimentos, haja vista que jamais seremos plenos de
virtudes, valores e crenças. Dessa maneira, nossa identidade é dinâmica e sempre haverá algo a ser
acrescido ao nosso modo de ser e de viver neste mundo. Todos os dias nos despimos de nós mesmos
para nossa (re) constituição identitária em diferentes aspectos: familiar, profissional, devocional e na
relação Eu-Outro. Conforme Passos (2010, p. 27):
A identidade, com a qual nos fazemos e que também nos faz, entre muitas coisas, é
o grande elo de cada um de nós, como seres vivos, com as gerações que nos
precederam e que virão após nós: este elo chama-se cultura. Revestidos da carne e
ao mesmo tempo despidos dela, pois a transcendemos, somos capazes de cultivar
uma identidade cambiante, que tecemos no confronto com estímulos do mundo e
dos outros.
Questões como essas nos diferenciam de outros seres vivos e nos mostram que temos uma
história a ser tecida conforme nossos padrões culturais, não nos limitando a um mero estado
biológico uma vez que possuímos uma vida imersa em um rio de símbolos, signos e sentidos.
Quando olhamos o outro com certo estranhamento, despido de estereótipos e preconceitos, porém
reconhecendo-o e o valorizando em sua diferença, seja ela de ordem cultural, religiosa, étnica ou
sexual, descentramos o foco do nosso ego e saímos de uma zona de conforto e, a partir disso, é
possível estabelecer trocas culturais com outros indivíduos. Nesse sentido, o contato e o
reconhecimento do outro podem ser uma ótima possibilidade de referenciar a vida do semelhante
como produção de conhecimento, já que ele me compõe e eu o componho por meio do intercâmbio
cultural.
Fundamentada nessa postura de respeito e reconhecimento da diversidade foi que iniciei
minha trajetória profissional como educadora infantil no Centro de Educação Infantil Wictor Hugo
Cerqueira Ribeiro da Silva no ano de 2005, experiência que foi meu primeiro contato com as
crianças indígenas chiquitanas residentes na zona urbana de Porto Esperidião, cidade do estado de
Mato Grosso. Durante os anos em que trabalhei nesta instituição, percebi a necessidade da
elaboração de um projeto que pudesse atender suas necessidades culturais e fortalecer a cultura
indígena no espaço urbano.
Uma vez que nossas atividades pedagógicas na época estavam mais centradas em temas
referentes a datas comemorativas e a atividades de educação ambiental, higiene pessoal e
alimentação, era perceptível a invisibilidade dos saberes das crianças pertencentes a essa etnia em
sala de aula, além do fato de que minha pouca experiência na área da educação me limitava a propor
novas alternativas que contemplassem a diversidade étnico-cultural presente neste espaço escolar,
talvez por medo de ousar em promover um projeto tão audacioso na modalidade da Educação
Infantil ou até mesmo por desconhecer o papel da escola como “[...] um espaço de fortalecimento de
identidades coletivas, de fortalecimento de lutas, de apropriação da história vivida individual e
coletivamente” (GRANDO; ALBUQUERQUE, 2012, p. 08).
Eu percebia que o período de adaptação no início do ano letivo era um processo muito
doloroso para as crianças, tendo em vista que a escola não é um espaço familiar para elas e, nessa
fase, também não é nada agradável ir à unidade escolar. Ilustrando essa afirmação, houve um caso
de uma criança que ficou 6 (seis) meses sentada próxima ao portão de entrada à espera da mãe e seu
único objeto de apego era a mochila que lembrava sua progenitora, já que ela era quem arrumava
seus pertences na mochila e a ajeitava em suas costas.
Agora, depois de amplas leituras, começo a interpretar cada ação/reação dos meus alunos
indígenas como uma forma de se defenderem de uma educação padronizada e homogeneizadora.
Hoje também compreendo a criança chiquitana pensando que a partir de sua particularidade infantil
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ela tem uma dinâmica própria tanto para interagir e se socializar quanto para a elaboração de seus
modos próprios de aprender, muitas vezes silenciados pela escola dos não indígenas.
No ano de 2010, concluí a graduação em Pedagogia com habilitação em Educação Infantil
e, no decorrer desse curso, trilhei caminhos teórico-metodológicos que apontavam para a
compreensão da criança em seus diferentes aspectos, sejam eles físicos, afetivos, cognitivos,
culturais ou sociais. Ficava também cada vez mais evidente a importância da valorização do saber
do aluno na estrutura curricular proposta, pois cabe ao professor elaborar planos de ensino que se
orientem a partir dos conhecimentos prévios de seus alunos, sendo imprescindível entendê-los
dentro de sua própria dinâmica social. Todavia, esse processo requer compromisso, amadurecimento
teórico-metodológico e dedicação dos docentes nas práticas diárias.
Já no ano de 2011, ingressei no Serviço Público do estado de Mato Grosso por meio de um
concurso, tendo sido lotada na Escola Estadual “13 de maio” em uma turma da 1ª fase do II Ciclo
(4º ano), na qual dei prosseguimento do trabalho com os alunos chiquitanos, uma vez que, embora
alguns não se identificassem como tal, seu fenótipo indígena era bem evidente, assim como seus
modos de agir no dia a dia escolar.
Entretanto, a grande oportunidade de conviver com as professoras indígenas dessa etnia
veio no ano de 2014, quando fui convidada pela direção da Escola Estadual “13 de maio” a assumir
a orientação do Programa Nacional de Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), já que a responsável
anterior havia pedido dispensa em razão de outros compromissos profissionais. O PNAIC/2014
estava centrado no letramento e na alfabetização matemática e contemplava em seu projeto escolas
urbanas, do campo e indígenas, sendo que eu atendia 03 (três) professoras indígenas de diferentes
aldeias: Acorizal, Fazendinha e Vila Nova do Barbeicho.
Os encontros formativos eram mensais e realizados no laboratório de informática da escola
em que eu trabalhava, e as educadoras participavam ativamente das discussões e das reflexões
referentes aos métodos e aos recursos didáticos apropriados ao trabalho com o letramento e a
alfabetização matemática. Em certa ocasião, uma delas me presenteou com um material didático do
povo chiquitano fruto do Projeto “Hayô”, curso de nível médio oferecido aos professores indígenas
e que tinha como finalidade preparar profissionais indígenas para atuarem nas escolas direcionadas a
esse público, valorizando os códigos culturais próprios de cada etnia, como sua língua, seus valores
e suas crenças.
Foi inevitável então não me enamorar pela cultura chiquitana, pela forma como eles vivem,
pela sua cosmologia e pela incansável perseverança grupal em favor de suas lutas políticas e
territoriais no Estado de Mato Grosso. A relação pessoal/profissional com as professoras indígenas
me fez refletir assim sobre as práticas pedagógicas oferecidas às crianças chiquitanas citadinas.
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recebida por um funcionário que me explicou todos os trâmites necessários para essa autorização e
também sobre os documentos necessários a serem enviados para a FUNAI, em Brasília. Ele também
me alertou que as tramitações do processo de autorização para ingresso em terras indígenas duram
de 4 a 6 meses.
Já no dia 21 de janeiro de 2016, fui à aldeia com a assessora pedagógica de Porto
Esperidião Marinely Correa Cebalho para conversarmos com as lideranças com o objetivo de
solicitar uma reunião com os moradores da comunidade e posteriormente elaborar a ata de anuência,
na qual constaria a permissão para a realização da pesquisa na aldeia. Nessa época do ano, as chuvas
caem sem tréguas na fronteira Brasil-Bolívia, próxima ao nosso destino, e encontramos uma ponte
caída que encerrou nossa viagem.
Diante desses obstáculos, no dia seguinte, estabeleci novo contato com a minha
orientadora, dialogamos e sugeri a ela que o estudo fosse aplicado no espaço urbano em razão do
pouco tempo. Ela concordou e me enviou alguns questionamentos que me visitavam a todo tempo,
inclusive nas madrugadas.
No decorrer do curso, as disciplinas cursadas no Programa foram fundamentais para a
elaboração desta dissertação, pois me forneceram com bases teóricas para lapidar criteriosamente
meu objeto de pesquisa. Confesso que minha formação sobre o ensino da infância, nos momentos de
devaneios e durante a elaboração do percurso teórico-metodológico deste trabalho, apontaram-me
pistas para a construção de minha proposta investigativa.
Meu interesse pela participação dos idosos chiquitanos surgiu a partir de uma breve visita
na época do carnaval a um grupo de curussé em Porto Esperidião, a partir da qual avistei de longe
uma cena que me chamou atenção: um idoso com os olhos fixados nos passos de um menino
(parecia-me ser seu neto) enquanto ele reproduzia os passos dançantes dos adultos na roda do
curussé. Logo, aquele senhor se aproximou do menino e sussurrou algo em seu ouvido, fazendo com
que o garoto se aquietasse e observasse atentamente o senhor idoso lhe ensinar a dançar o curussé
chiquitano.
sociedade capitalista, pois não produzem riquezas para o mercado consumista. A partir dessas
percepções, surgiram novas possibilidades de pesquisa que aos poucos se descortinaram diante dos
meus olhos, como a idealização de um projeto de ensino para as crianças de Porto Esperidião com o
objetivo de promover junto a elas a construção de conhecimentos históricos e culturais do povo
chiquitano, visando ainda favorecer a adoção de posturas vivenciadas nas relações interpessoais com
ênfase no respeito mútuo e na aceitação de si (indígena e não indígena) e do outro a partir dos
saberes tradicionais dos idosos dessa etnia que buscassem contribuir para a afirmação de uma
identidade pessoal para as relações sociais no âmbito familiar e escolar.
A questão norteadora
Os sujeitos participantes
Os sujeitos que participaram desta pesquisa totalizaram 10 indivíduos, todos moradores da
zona urbana de Porto Esperidião (MT). Trabalhamos com duas categorias: os(as) velhos(as)
chiquitanos(as) e as professoras das turmas lotadas no Centro de Educação Infantil Wictor Hugo
Cerqueira Ribeiro da Silva que atendem crianças de 05 anos. Em relação aos(às) velhos(as)
indígenas que por algum motivo já não mais residem na Terra Indígena Portal do Encantado, porém
que ainda vivenciam suas práticas culturais no contexto urbano, como a prática do curussé, a
narração de suas histórias tradicionais que podem ser concebidas como estratégias de fortalecimento
de suas raízes indígenas. Foram convidados para este estudo 06 (seis) velhos(as) indígenas (três do
sexo feminino e três do sexo masculino) de origem chiquitano que residem na zona urbana de Porto
Esperidião, nas faixas etárias entre 63 e 80 anos, sujeitos que vivenciam experiências e práticas da
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cultura local. Além disso, todos são integrantes do grupo de curussé Asa Branca, o mais antigo da
localidade. Nele, os homens confeccionam e tocam os instrumentos do curussé enquanto as
mulheres dançam e preparam os quitutes para o dia da festa.
As visitas foram realizadas nas residências dos(as) velhos(as) participantes com a
finalidade de explicar como a pesquisa seria desenvolvida, os procedimentos éticos e a importância
de suas participações para o fortalecimento das raízes culturais do grupo chiquitano em Porto
Esperidião. O convite para a participação foi feito considerando a plena liberdade em aderir ou não à
pesquisa, sendo que alguns contatos foram estabelecidos antes da realização das entrevistas para
esclarecer eventuais dúvidas e estabelecer laços de confiança entre os entrevistados e a
pesquisadora.
No mês de fevereiro de 2016, firmei contato com a coordenação do Centro de Educação
Infantil Wictor Hugo Cerqueira Ribeiro da Silva para dialogar sobre a possibilidade de realização de
um projeto de ensino na instituição escolar, ocasião em que fui muito bem recebida pela equipe.
Inicialmente, eu pretendia realizar uma ação com uma abrangência maior, ou seja, em toda a escola,
porém eu almejava acompanhar pessoalmente todas as etapas do projeto e, por isso, considerei mais
coerente desenvolver o trabalho pedagógico somente nas salas que contemplavam a última fase da
Educação Infantil (05 anos).
As professoras lotadas nessas salas de aula também participaram da elaboração e do
desenvolvimento do projeto de ensino intitulado “O povo chiquitano e sua cultura na escola”, que
teve como objetivo promover junto à criança a construção de conhecimentos históricos e culturais
do povo chiquitano, com vistas ainda a favorecer a adoção de posturas vivenciadas nas relações
interpessoais com ênfase no respeito mútuo e na aceitação de si (indígena e não indígena) e do
outro. A partir dos saberes tradicionais chiquitanos, buscamos também contribuir para a afirmação
da identidade pessoal em relações sociais no âmbito familiar e escolar.
Assim, considerando que a matéria-prima desse projeto de ensino foram as entrevistas
produzidas junto aos(as) velhos(as) chiquitanos(as) em suas narrativas sobre jogos, brinquedos e
brincadeiras, culinária e o curussé, inicialmente, realizamos com as professoras das respectivas
turmas e com a coordenação pedagógica uma reunião em que expliquei os objetivos da pesquisa e
sua contribuição para a educação quanto à abordagem de saberes culturais, sendo que todas
prontamente aderiram à proposta. Durante essa exposição, todas se revelaram dispostas e
entusiasmadas para embarcarem nessa viagem rumo à valorização da diversidade humana.
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A coleta de dados deu-se por meio do método autobiográfico, com vistas a produzir história
de suas infâncias e registrar as atividades lúdicas que foram vivenciadas por esses(as) velhos(as)
indígenas. Foram utilizadas para isso entrevistas semiestruturadas, a partir das quais colhemos as
narrativas do entrevistado de maneira espontânea e flexível, com um roteiro de conversa preparado
para esse processo. Posteriormente, os dados foram transcritos e analisados a partir de contribuições
de estudiosos do campo da Educação, da História e da Antropologia da infância.
Esta pesquisa não pretende quantificar resultados, mas produzir sentidos e significados
próprios às vivências da infância no contexto chiquitano e a seus processos interativos ao dialogar e
interpretar o outro no cotidiano, o que nos fornece dados para compreendermos o modo de aprender,
de ser e de viver desse povo.
Conforme Minayo (2001, p. 21), “[...] a pesquisa qualitativa trabalha com o universo de
significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes”, o que nos revela que a realidade não
pode ser quantificada. Nesse sentido, a infância deve ser compreendida no interior de sua própria
dinâmica social e, por isso, essa categoria social foi abordada a partir de produções bibliográficas
referentes à temática, de documentos escritos e das histórias de infância dos idosos, que revelaram
quais os jogos, brinquedos e brincadeiras vivenciados no cotidiano desse povo indígena. Por meio
do método autobiográfico, pois, procuramos compreender as diferentes subjetividades inseridas em
um mesmo grupo étnico, o chiquitano, bem como produzir narrativas e o registro de atividades
lúdicas vivenciadas pelos(as) velhos(as) na fase de suas infâncias.
Dessa perspectiva, aos poucos a linguagem dos(as) velhos(as) e seus conhecimentos foram
transpostos para dentro da escola, e as crianças em cada atividade se deliciavam ao descortinar um
mundo antes restrito à memória dos mais velhos. Nesse processo, a memória dos(as) velhos(as) foi
nossa base para tecermos diferentes aprendizagens no contexto escolar, misturada à ousadia e à
criatividade das docentes envolvidas nesta empreitada.
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As entrevistas
As entrevistas foram realizadas nas próprias residências dos participantes e tiveram caráter
individual, tendo sido agendadas pela pesquisadora com antecedência e sem serem condicionadas a
um mero roteiro, considerando também gestos, entonações e hesitações dos entrevistados. Durante a
escuta sensível, não houve desconforto e constrangimento por parte dos sujeitos ao relembrarem
situações que marcaram negativamente suas vidas.
Entretanto, previamente, essas questões já haviam sido amplamente esclarecidas pela
pesquisadora a eles: a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos, benefícios previstos, potenciais
riscos e um possível incômodo dela resultante, respeitando-se as cosmovisões de mundo e as
identidades étnicas.
Chizzotti (2006, p. 101) assim define o uso a história de vida nas pesquisas acadêmicas:
O trabalho com história de vida é, pois, importante pela sua dimensão humana, já que,
nesse processo, existem ricas interações entre pesquisador e pesquisado: essa abordagem não é
simplesmente fazer um roteiro da vida do “outro”, mas produzir fontes orais, ou seja, conhecimentos
históricos e culturais para o campo científico. Alberti (2011, p. 156) declara que esse tipo de história
“[...] é uma metodologia interdisciplinar por excelência, pois ela se beneficia de ferramentas teóricas
das diferentes disciplinas para ampliar o conhecimento sobre a trajetória e vida cotidiana de
determinados sujeitos”.
Gussi (2008), por seu turno, trata três aspectos da abordagem biográfica: o primeiro, em
que ela fornece informações do contexto social no qual o biografado está inserido ao evocar suas
memórias; no segundo, revela subjetividades distintas que compõem a identidade humana e, no
terceiro, desvela a dimensão intersubjetiva entre o biografado e o pesquisador.
Esse trabalho é pertinente, pois se direciona pelo estudo e análise das histórias de vida
temática (fase da infância) dos(as) velhos(as) chiquitanos(as), uma vez que as analisamos vinculadas
aos seus saberes tradicionais referentes a jogos, brinquedos e brincadeiras vivenciados no passado.
Além disso, realizamos o registro das memórias por meio da técnica de entrevistas semiestruturadas,
que foram gravadas em formato de áudio, evidenciando as histórias e os sentimentos vivenciados
pelos(as) velhos(as). Na sequência, as narrativas foram transcritas e analisadas por meio das
contribuições de diversos teóricos. De acordo com Neto (1994, p. 54), por exemplo, “[...] a
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entrevista é o procedimento mais usual no trabalho de campo, ela proporciona obter informações
contidas nos atores sociais, que, muitas vezes, ficam submersas na memória dos sujeitos à espera de
um momento para virem à tona, necessitam ser estimuladas”.
A partir das entrevistas feitas com os(as) velhos(as) chiquitanos(as), coletamos informações
sobre jogos, brinquedos e brincadeiras que eles experienciaram no passado, além de sua culinária e
dados sobre o curussé, já que todos eles são integrantes do grupo “Asa Branca”. Recorremos ainda
aos registros da antropóloga Renata Bortoletto (2007) sobre as narrativas do povo chiquitano,
histórias contadas por idosos moradores da Terra Indígena Portal do Encantado. Isso tudo
considerando que sem as histórias de infâncias dos idosos seria impossível realizar o projeto de
ensino, pois este se orientou exatamente por tais narrativas.
No intuito de obter um bom resultado do projeto de ensino, foram realizadas também
oficinas de formação com a comunidade escolar do Centro de Educação Infantil Wictor Hugo
Cerqueira Ribeiro da Silva para abrir um espaço dialógico sobre a gênese cultural desse povo, bem
como as diferentes infâncias indígenas no Brasil, a necessidade da adoção de práticas interculturais
e outras questões referentes a essa temática. O processo formativo dessas oficinas e seus resultados
serão apresentados no capítulo 4 desta Dissertação.
As oficinas formativas nos possibilitaram dar visibilidade ao povo chiquitano e fomentar
uma ampla discussão sobre a presença de crianças indígenas na instituição escolar em estudo, como
também debater a inserção no currículo escolar da educação intercultural com ênfase nos saberes
tradicionais chiquitanos. Contudo, era incoerente realizar um projeto de ensino intercultural sem
antes oferecer fundamentos teóricos para a compreensão dos processos históricos e culturais dos
chiquitanos. Por isso, toda a comunidade escolar foi convidada a participar dos encontros semanais,
que totalizaram 04 momentos, nos quais os profissionais da escola interagiram e se socializam com
conhecimentos sobre a etnia chiquitano e outras questões pertinentes aos estudos que evidenciam o
protagonismo indígena.
Para realizar esse processo, fizemos o levantamento das produções acadêmicas em dois
bancos de dados: o do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) e de
Teses e Dissertações da CAPES. Para as buscas, utilizamos os descritores: Educação de crianças
indígenas, Formação de Professores Indígenas e Infância Indígena no período de 2000 a 2015.
Observamos poucas produções sobre a infância indígena e sobre a educação de crianças indígenas
em ambos os bancos; no entanto, a respeito de formação de professores indígenas, muitas produções
foram identificadas.
Nos inspiramos em 06 (seis) trabalhos para a produção deste estudo, por apresentarem
semelhanças teórico-metodológicas com esta pesquisa, porém com outros recortes teóricos. A
primeira produção é de mestrado e intitulada “Criança indígena na escola urbana: um desafio
intercultural”, pela Universidade Federal do Amazonas. Nela, Freire (2006, p. 09) descreve que o
trabalho tem o intuito de “[...] verificar como a escola pública de Manaus trata seus alunos indígenas
e como esses alunos percebem a imagem do índio difundida nas práticas docentes, discentes e das
demais pessoas que compõem o espaço educacional”.
A autora discute ainda a educação das crianças indígenas citadinas de Manaus e as relações
estabelecidas dentro da escola dos “brancos”, que não foi projetada para atender a diversidade
cultural indígena. Para que as crianças indígenas tenham acesso a uma educação qualitativa, a
pesquisadora propõe a adoção da educação intercultural para superar o conflito entre as diferenças
culturais existentes no espaço escolar.
A segunda pesquisa e da Universidade Metodista de Piracicaba, denominada “Brincadeiras
e relações interculturais na escola indígena: um estudo de caso da etnia Sateré-Mawé”, de Barros
(2012, p. 09), que teve como objetivo “[...] analisar as relações interculturais que se estabelecem na
educação escolar indígena, tendo como foco o brincar das crianças indígenas, na escola e nos
contextos sociais específicos”. A autora discorre sobre a produção do brinquedo, da brincadeira e do
jogo no interior da cultura indígena e suas contribuições pedagógicas, sociais e culturais no processo
de ensino-aprendizagem infantil.
No terceiro trabalho, da Universidade Federal de Minas Gerais, com o título “Imagens da
infância: brincadeiras, brinquedo e cultura”, Carvalho (2007, p. 07) descreve e analisa “o repertório
de brinquedos e brincadeiras vivenciadas por crianças indígenas Pataxós (MG) e crianças moradoras
28
do bairro Taquaril em Belo Horizonte” e busca compreender “como crianças de diferentes contextos
socioculturais experienciam a prática da brincadeira, suas dinâmicas e significados”.
O autor salienta a importância do papel dos adultos no processo de apreensão do mundo
pelas crianças, pois suas ações são reproduzidas e ressignificadas por elas, ou seja, eles são
referências na produção de sentidos de suas práticas culturais. O autor prossegue afirmando que é
importante compreender a relação entre brinquedo, brincadeira e cultura, pois não se tratam
simplesmente de um repertório de práticas lúdicas, mas são formas de ser, de viver e de aprender da
infância, elementos que constituem a identidade infantil e cultural.
Na quarta produção acadêmica, da Universidade Federal do Amazonas, intitulada
“Identidade docente e formação de professores Macuxi: do imaginário negativo à afirmação
identitária na contemporaneidade”, Santos (2015, p. 08) busca:
[...] Entender como esses sujeitos relacionam a sua identidade étnica com sua
identidade profissional, [e] concomitante, saber quais são suas compreensões sobre
interculturalidade, como percebem as relações entre conhecimento tradicional e
conhecimento científico, e como aplicam em sua prática docente na busca de
conhecer as suas realidades, priorizar suas demandas e perspectivas enquanto
educador.
[...] Objetivo investigar por meio das histórias de vida de índios idosos da etnia
Guarani-Kaiwá residentes na aldeia Jaguapiru em Dourados no Estado do Mato
Grosso do Sul as percepções sobre as influências decorrentes das mudanças sócio-
culturais vivenciadas pelos mesmos na construção de sua identidade cultural,
individual e coletiva no processo de envelhecimento.
29
Ao narrar sua história de vida, o idoso indígena relata a história de uma época e de seu grupo
étnico, tendo como ponto de partida o passado vivido e atribuindo um novo sentido ao seu presente
e, consequentemente, à sua identidade. Esse processo de rememoração foi analisado com base nas
vivências individuais e sociais do sujeito, como também aos contextos históricos e culturais em que
o sujeito vivenciou.
30
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa foi desenvolvida no Centro de Educação Infantil Wictor Hugo Cerqueira
Ribeiro da Silva, localizado no município de Porto Esperidião, no estado de Mato Grosso (fronteira
Brasil/Bolívia), que atende aproximadamente 310 crianças de faixa etária entre 02 (dois) e 06 (seis)
anos, em período parcial e integral. A cidade frequentemente recebe nativos do povo chiquitano que
se deslocam das aldeias para a região urbana em busca de trabalho e de melhores condições de vida.
Este estudo visa descrever as histórias de infância vividas por 06 (seis) velhos(as) de
origem chiquitana, que atualmente residem na sede de Porto Esperidião. Suas vivências infantis e
experiências com jogos, brinquedos e brincadeiras nos permitiram estabelecer um diálogo sobre a
concepção de infância que circulava no passado e que se registra no presente dessa etnia.
O presente trabalho fundamenta-se em contribuições de teóricos do campo da Educação, da
Antropologia da Infância e da História, que nos permitem compreender as histórias de vida dos
idosos chiquitanos e como estes teciam seu cotidiano nos diferentes espaços sociais em suas fases de
infância. Porém, para isso, é preciso aguçar nossos olhos e ouvidos para compreendê-los em seu
contexto sociocultural, pois é necessário considerar os códigos culturais e as tradições dos
chiquitanos1, os quais trataremos nesta proposta investigativa.
Nesse sentido, o Programa dos povos indígenas no Brasil2 considera que a Bolívia é a
região mais populosa habitada pelos chiquitanos: eles se concentram no Departamento de Santa
Cruz, nas províncias Nuflo de Chaves, Velasco, Chiquitos e Sandoval. Por outro lado, no Brasil, eles
estão presentes em “[...] Corumbá, no estado de Mato Grosso do Sul [localidade em que] eles são
identificados pelo etnônimo Kamba Chiquitano” (JOSÉ DA SILVA, 2009, p. 01). Nesses espaços,
vivem em condições de vida precária, sendo discriminados e socialmente excluídos pela população
não indígena. Já em Mato Grosso (divisa Brasil/Bolívia), estão distribuídos em pequenas aldeias
pela zona fronteiriça, sendo que alguns migram para os municípios vizinhos na tentativa de
melhorar suas condições de vida.
1
Existem divergências quanto à escrita dos termos tribais entre os antropólogos, etnólogos e indigenistas. De acordo
com o Manual de redação oficial da Fundação Nacional do Índio (2016, p. 19), por exemplo, “na gramática normativa
da língua portuguesa, os gentílicos devem flexionar-se de acordo com as regras que se aplicam aos demais adjetivos e
substantivos. [...] As designações das etnias indígenas, africanas ou de outras origens, de forma geral, devem ser
flexionadas no plural, além de serem grafadas com iniciais minúsculas”. Sendo assim, utilizaremos nesta Dissertação a
escrita do etnônimo chiquitano com letra minúscula e sempre flexionado quanto ao gênero e número.
2
Entidade criada no intuito de reunir verbetes com informações e análises de todos os povos indígenas que habitam o
território nacional. Disponível em: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/chiquitano/415. Acesso em: 04 abr 2016.
31
A língua chiquitana ou vesüro é, pois, falada por uma parcela muito pequena no interior das
aldeias, o que foi resultado do processo histórico das expedições jesuítas a partir do século XVI,
quando vários indígenas falantes conviveram dentro de um mesmo espaço pluriétnico. Conforme
Santana (2009, p. 30), pouco se sabe sobre a origem da língua chiquitana, uma vez que raras
pesquisas foram realizadas sobre o tema e, dentre elas, as bibliografias produzidas referem-se ao
chiquitano como língua oficial nas reduções missionárias na Bolívia no século XVI. A autora
prossegue afirmando que, “[...] apesar dos avanços nos estudos históricos e comparativos dessa
língua apontar para uma possível inclusão no Macro Jê, ainda é considerada uma língua isolada”.
Vemos nessa língua materna uma variação linguística quanto ao gênero, uma vez que homens e
mulheres a utilizam de maneira diferente: “[...] existem nos substantivos formas próprias do falar
masculino e do falar feminino que somente podem ser utilizadas pelo homem e pela mulher”
(SANTANA, 2009, p. 32).
Quanto à ocupação de territórios, no espaço urbano de Porto Esperidião, a presença dos
chiquitanos é numerosa: eles estão distribuídos nos diferentes bairros e muitos preferem ser
identificados como “bugres” dada a discriminação e o preconceito. De acordo com Pacini (2012, p.
15), “o município de Porto Esperidião é composto em sua maioria de Chiquitano”, apesar de, dentre
eles, alguns se identificarem como bugres e outros como chiquitanos. Todavia, é perceptível o
marcador étnico na sociedade portense por meio dos traços indígenas que se revelam desde o
fenótipo até o jeito de ser, de viver e de reproduzir seus saberes históricos e culturais. O autor chama
atenção ainda para o evento que desencadeou essa migração para a zona urbana:
Observa-se como esse acontecimento histórico que agrega aspectos sociais e econômicos
interferiu na organização social e étnica do povo chiquitano. Podemos então perceber a intrínseca
relação entre estrutura macrossocial e microssocial claramente manifesta: da forma, por exemplo,
como a indústria agropastoril chegou à fronteira mato-grossense e impulsionou a saída dos
indígenas de seus territórios tradicionais, colocando-os em uma posição de subordinação. Dessa
maneira, muitos migraram para as cidades vizinhas na esperança de conquistar um bom futuro, e
34
outros, no espaço urbano, negam suas origens como uma forma de serem aceitos pela sociedade não
indígena, haja vista que, para eles, é melhor ser bugre, o que já está diluído no imaginário social, do
que ser índio e ser considerado como exótico, visto que, segundo as narrativas locais, o índio
destina-se a povoar as matas. Conforme Pacini (2012, p. 26-27):
Podemos observar assim que a identidade dos chiquitanos opera a partir de um movimento
dinâmico, por meio dos conflitos, preconceitos e discriminações sofridas nas relações sociais. Além
disso, ela é ressignificada e caminha para a constituição do “nós” coletivo. Sobre o assunto, Novaes
(1993, p. 25-26) refere-se à identidade como “algo que não é dado, que se possa verificar, mas uma
condição forjada a partir de determinados elementos históricos e culturais [...]”. Nesse processo, os
chiquitanos vão construindo uma imagem de si (coletivo chiquitano) e do outro, imagens essas (re)
organizadas o tempo todo conforme suas trocas culturais.
Porém, com o intuito de marcar seu pertencimento ao grupo, eles buscam no curussé uma
forma de revitalizar sua identidade étnica. Trata-se de uma manifestação cultural que se apresenta
como um elemento cultural que contribui para a preservação de suas raízes étnicas. Atualmente, os
grupos do curussé existentes no espaço urbano dessa cidade são: o Asa Branca, o Nativos e o
Floresta, que se reúnem em seus barracões para festejar e fortalecer a cultura indígena na cidade.
Bortoletto (2007, p. 109) afirma que “[...] a associação cultural Asa Branca pretende ser um espaço
para a preservação da cultura chiquitano. Constitui-se em uma tentativa, ao nosso ver, de manter
uma identidade étnica que os diferencie dos não indígenas na cidade [...]”. Diante do contato
interétnico presente nas interações na cidade de Porto Esperidião, os indígenas veem a necessidade
de marcar seu espaço étnico por seus códigos e manifestações culturais, como é o caso do curussé.
Ademais, de acordo com Duarte (2014, p. 42), os desafios diários desse povo são vividos
diante dos conflitos com os fazendeiros e com o poder público5, que “[...] negam sua indianidade e
nacionalidade” afirmando que eles são meros bolivianos que avançaram as fronteiras territoriais
impostas pela coroa portuguesa e espanhola e se instalaram ilegalmente na divisa brasileira, ou seja,
5
No auge das lutas no ano de 2010 que definiram a demarcação territorial chiquitano, havia uma considerável bancada
parlamentar em Mato Grosso que estava ligada aos negócios agropastoris e que influenciou as decisões emanadas do
Poder Público.
35
uma negação do reconhecimento jurídico, territorial e étnico dos chiquitanos, o que demonstra que
ainda há uma nítida resistência da sociedade não indígena em aceitar a etnicidade desse povo.
Importante também esclarecer que a chiquitania é uma zona contínua que não se restringe a
fronteiras geográficas: para os chiquitanos, tanto faz estar do lado brasileiro ou boliviano, já que
estabelece relações parentais, culturais e religiosas em ambos os lados das fronteiras.
Diante dessa problemática local, é importante abordar a infância chiquitana considerada
urbanizada no município de Porto Esperidião (Mato Grosso) por fazer parte de um povo que está em
processo de (re) afirmação identitária, pois, durante um longo período, foi-lhe negado o direito de
ser reconhecido como indígena, considerando-se os frequentes conflitos estabelecidos com os
proprietários das grandes fazendas, que encurralavam as comunidades, bem como a demora nas
decisões jurídicas expedidas pelo poder público. Se a comunidade enfrenta a invisibilidade social
frente à sociedade dos não indígenas e ao Poder Público, em maior grau isso acontece com suas
crianças, sujeitos em processo de formação.
Diante do exposto, propomos, nesta pesquisa, uma escuta sensível aos velhos(as)
chiquitanos(as) integrantes do grupo de curussé “Asa Branca” e moradores de Porto Esperidião-MT
no intuito de compreender a concepção de infância existente entre eles. E, diante da situação
apresentada, consideramos pertinente para o campo científico apresentar sentidos e significados da
realidade desse povo. Destarte, com o objetivo de entender essa dinâmica na esfera sociocultural do
povo chiquitano, elencamos como questões norteadoras para a investigação: quais os jogos,
brinquedos e brincadeiras que orientaram seu brincar no passado? De que forma o encontro de
saberes culturais entre duas gerações pode contribuir para a educação intercultural? A escola dos
não indígenas foi reivindicada pelos munícipes ou oferecida pelas autoridades como cumprimento
de políticas em prol da criança?
Esta pesquisa partiu da hipótese de que as crianças chiquitanas de Porto Esperidião
precisavam aprender seus códigos culturais dentro e fora do espaço escolar e, para isso, a formação
continuada dos professores poderia ser uma proposta de apropriação dos saberes históricos e
culturais dos chiquitanso. Outra possibilidade é a abertura da escola em relação a essa comunidade,
o que poderia contribuir com seus conhecimentos tradicionais para o processo de ensino-
aprendizagem. Essa hipótese foi confirmada à medida que os dados foram analisados, a temática foi
aprofundada e foram esclarecidos os conceitos a ela relacionados.
Tassinari (2007, p. 02), por exemplo, afirma que “[...] a mirada da Antropologia para as
crianças indígenas no Brasil é muito recente e podemos dizer que, embora as crianças sejam aquelas
que mais pacientemente nos acolhem nas aldeias, temos nos dedicado muito pouco à interlocução
com elas”. O reconhecimento do protagonismo infantil nas pesquisas passa a conceber a infância
como uma categoria demarcada pela organização social das comunidades indígenas: ela não pode
36
ser considerada genérica nas diferentes etnias, cada povo deve ser estudado de acordo com seus
códigos culturais, considerando-se suas práticas e manifestações.
Esses estudos nos dão subsídios para compreender que as crianças podem expressar muito
de seu povo, muitas vezes elementos pouco visíveis, já que agem de forma descompromissada com
padrões morais. Além disso, no cotidiano indígena, percebemos que os conhecimentos dos pequenos
são manifestos pelas brincadeiras, pela oralidade, por suas criações individuais/coletivas e
principalmente por suas experiências humanas.
No espaço urbano de Porto Esperidião o cotidiano das crianças chiquitanas é compartilhado
com os não indígenas por diferentes períodos e espaços do dia, que se resumem a ir à escola,
participar de projetos sociais oferecidos pela Secretaria de Assistência Social, cuidar dos afazeres
domésticos (quando necessário), brincar e jogar futebol em frente à igrejinha e, finalmente, o tão
esperado banho no rio Jauru nos fins de tarde.
É notável a imagem do rio Jauru nas vivências e nas crenças da população. Prova disso é o
mito popular que afirma “que quem come costela de pacu do rio Jauru nunca mais vai embora da
cidade, pode até ir, mas um dia volta”. Conta a lenda também que os nativos da cidade não morrem
afogados no rio, somente pessoas que vêm de fora: “bugre nada como praga”, segundo os relatos
dos mais antigos. Podemos ainda perceber como está presente a figura da criança no imaginário
social: ela representa a continuidade dos saberes tradicionais e da geração. Igualmente, a imagem da
criança indígena já está de alguma forma introjetada na sociedade não indígena, todos sabem que
elas estão espalhadas pela cidade e são reconhecidas pelo etnônimo “bugre”, o que revela um
preconceito silenciado que nega a identidade étnica dos chiquitanos segundo Pacini (2012).
Essa visão pode se dever ao fato de que, conforme Cohn (2002, p. 231), os primeiros
estudos antropológicos sobre a criança indígena a viam como “reprodutoras do mundo adulto, os
antropólogos não perceberiam que os pequenos são atores sociais ativos e produtores de cultura”. A
autora continua afirmando:
É importante notar que a Antropologia tem-se voltado cada vez mais ao tema da
infância, de modo que possibilita tratar a criança como objeto de análise, com base
na construção de um universo que lhe é próprio e que é qualitativa, e não
qualitativamente, diferenciado do mundo adulto. Isso significa que o universo
infantil não é mais visto como experiência parcial do mundo social, no sentido de
37
conter conhecimentos menos completos; ele é visto como capaz de construir uma
apreensão que é diferenciada e relevante (COHN, 2002, p. 233).
Sendo assim, a criança chiquitana pode ser considerada uma parte constitutiva do universo
social indígena, não isolada, mas uma categoria social que integra e complementa a dinâmica
grupal. Diante do exposto, lançar um olhar científico sobre elas como atores sociais dentro da
dinâmica indígena nos permite dar-lhe visibilidade social, assim como também romper com
narrativas equivocadas como as que apregoam que as crianças são meramente reprodutoras do que
veem e ouvem ao seu redor. Também as crianças chiquitanas, mesmo estando em outro território
(urbano) que não lhe é próprio, apresentam significados culturais difundidos pelos seus ancestrais e
possuem uma identidade a ser valorizada e revitalizada no dia-a-dia escolar.
Nós, brasileiros, somos um povo pluriétnico e nos diferenciamos das demais nações pela
nossa originalidade de misturas raciais e culturais, por isso abordar temáticas da área da diversidade
humana é pertinente em tempos em que ainda encontramos, nos diversos espaços sociais,
preconceitos relacionados às raças e às diferentes culturas que compõem o mosaico cultural
nacional. Nesse movimento de relativismo cultural, a escola intercultural torna-se uma aliada
indispensável para o reconhecimento étnico e para o fortalecimento dos traços culturais indígenas.
Sobre isso, Bergamasch e Silva (2007, p. 147) explicam que “[...] os processos vivenciados em cada
escola representam pequenas grandes mudanças construídas cotidianamente. É preciso estar atento e
sensível para enxergá-las e interpretá-las com toda sua força e significação”.
Toda escola apresenta diretrizes curriculares próprias que orientam suas práticas. Nesse
sentido, este trabalho busca compreender os processos educativos direcionados à infância chiquitana
em Porto Esperidião, especificamente os do Centro de Educação Infantil Wictor Hugo Cerqueira
Ribeiro da Silva, na procura por estabelecer um diálogo entre o passado dos(as) velhos(as)
chiquitanos(as) e as práticas educativas vivenciadas pelos professores e alunos nesse contexto
social.
De acordo com o Projeto Político Pedagógico da instituição, atualmente, ela ainda não
oferece um ensino diferenciado às crianças indígenas; no entanto, a iniciativa de atendimento à
criança indígena representou o início do ensino institucionalizado, que foi se desenvolvendo
qualitativamente por meio de políticas educacionais. Na atualidade, a instituição escolar revela-se
como um espaço privilegiado de intercâmbio cultural entre os sujeitos envolvidos, já que é a única
escola que oferece a Educação Infantil no espaço urbano. Nela, estão matriculadas crianças
indígenas, negras, brancas e de distintas classes sociais, solo fértil para a educação intercultural
produzir seus frutos de respeito mútuo e reconhecimento do outro.
É importante também compreender a identidade dos chiquitanos sendo observada pelas
lentes de um historiador, pois ele escava, desdobra-se por meio de pistas para compor seu mosaico
38
histórico, um ofício que “[...] é comparável ao [do] médico, que utiliza quadros nosográficos para
analisar o mal específico de cada doente. E como o do médico, o conhecimento histórico é indireto,
indiciário e conjetural” (GINZBURG, 1989, p. 157). São pertinentes as contribuições do autor para
este objeto de estudo visto que é necessário compreender o sentido dos discursos dos atores sociais
no passado, na atualidade e também as circunstâncias em que ocorreram, uma vez que é incoerente
analisar as fontes escritas sem considerar o homem e sua história.
Os saberes históricos podem ainda ser bons recursos de aprendizado para as crianças, seja
pela educação informal/formal, artefatos, alimentos, vestuários e habitações, seja pelos objetos
produzidos com fins utilitários no cotidiano do grupo. Por meio desses dispositivos, a criança
internaliza sua cultura vigente e constrói sua identidade conforme orientações históricas e culturais.
Nessa seara, esse trabalho revela-se um processo analítico e cauteloso, pois analisa a história do
tempo presente, não visando apenas pesquisar indivíduos mortos ou de museus, mas parte de dados
históricos do passado para o presente na contínua tecelagem da história do indivíduo. Em outras
palavras, “[...] a memória de um pode ser a memória de muitos, possibilitando a evidência dos fatos
coletivos” (THOMPSON, 1992, p. 17).
A relevância científica desta pesquisa se pauta pelo direcionamento da compreensão de
como jogos, brinquedos e brincadeiras estabelecem relações com os jeitos de ser, de aprender e de
viver das crianças chiquitanas, revelando de que forma essas atividades lúdicas rememoradas
pelos(as) velhos(as) contribuem para a valorização dos significados históricos, de suas inter-relações
e dos processos de aprendizagem. E, já que a escola representa na cosmovisão indígena um
marcador étnico, imbuído de características do povo que a compõe, Cardoso e Vainfas (2012, p.
166) afirmam que “as identidades são, hoje, entendidas como construções fluídas, múltiplas e
cambiáveis, que se constroem por meio de complexos processos de apropriações e ressignificações
culturais nas experiências entre grupos e indivíduos que interagem”.
A importância social da pesquisa, por seu turno, constitui-se ao buscar evidenciar reflexões
sobre a interculturalidade, tendo em vista que a aceitação do outro é essencial para vivermos em um
país multicultural e isso nos exige uma abertura ao “diferente” e um reconhecimento das relações
existentes entre as culturas, classes sociais, sexo, línguas, etnias e religiões. Pensar a escola a partir
do diálogo entre as culturas nesse contexto é essencial, pois nos desdobramos ao relativismo cultural
com a finalidade de convivermos com o outro como possibilidade de novos conhecimentos.
Buscou-se apresentar a organização social do povo chiquitano no estado de Mato Grosso;
demonstrar como as memórias dos(as) velhos(as) podem ser consideradas fonte de conhecimentos
para a constituição da identidade cultural das crianças chiquitanas no tempo presente, contemplando
o papel dos saberes ancestrais nesse processo; descrever a caracterização do Centro de Educação
Infantil Wictor Hugo Cerqueira Ribeiro da Silva, considerando sua organização didático-
39
pedagógica; problematizar no âmbito escolar como a infância chiquitana tem sido concebida pelos
professores; coletar memórias dos jogos, brinquedos e brincadeiras vivenciados pelos(as) velhos(as)
no passado e desenvolver um projeto de ensino em conjunto com os professores de modo a
contribuir com a valorização dos saberes históricos e culturais da cultura chiquitana a partir das
fontes orais produzidas pelos(as) velhos(as).
maiores nas diferentes tarefas, inclusive jogos. Nesse período histórico, elas eram consideradas
adultos em miniatura, sem nenhuma representação social na mentalidade da época.
Evidenciamos pelas contribuições do autor que a mentalidade social é viva e dinâmica, haja
vista que a maneira de conceber a figura social da criança metamorfoseou-se ao longo dos séculos e,
assim, ela vem conquistando espaços nas diferentes sociedades como ator social, que age e interage
na organização da estrutura social e vivencia seu mundo infantil construindo suas próprias ideias
conforme seus valores, regras e crenças. No século XXI, já notamos que a sociedade reconhece a
particularidade dessa fase no que tange a muitos aprendizados construídos nas interações com
diferentes sujeitos e instituições (família, escola, igreja), embora muitos desafios ainda precisem ser
superados com a finalidade de protegê-la, tais como: exploração do trabalho infantil, abortos,
pedofilia e maus tratos.
No que diz respeito à criança indígena, no Brasil, ela ganhou maior visibilidade social a
partir da década de 1990, por meio de pesquisas antropológicas que visam compreender seu
universo conforme seus códigos culturais. De acordo com Lopes da Silva (2002) em seus estudos
com as crianças xamãs, esses pequenos criam e recriam seu mundo particular com base nas relações
entre corpo, sentidos, pensamento e sociedade. Sendo assim, “[...] podemos compreender então que
a identidade e a subjetividade infantil constroem-se por meio de processos que se realizam em seus
corpos e que sintetizam significações sociais, cosmológicas, psicológicas, emocionais e cognitivas”
(LOPES DA SILVA, 2002, p. 41).
A partir das palavras da autora, podemos depreender que o corpo da criança é um
instrumento de ação e interação com o meio social e com outros atores também. Por meio dele, ela
estabelece processos de apreensão do seu contexto por meio de recriações particulares. Dessa
maneira, o corpo, durante o ato de brincar (atividade própria da infância), torna-se um meio para
explorar e abstrair diferentes aprendizados durante esse período da vida humana.
Por isso, não podemos entender a infância distanciada de seus códigos e das ações culturais
que a cercam. Inclusive o brincar deve ser visto como uma manifestação cultural da criança, por
meio do qual ela reproduz a cosmologia de seu grupo. Conforme Grando e Albuquerque (2012, p.
07) argumentam, a criança indígena apresenta “[...] uma maneira de ser que possibilita experimentar
41
o novo como algo conhecido, e o conhecido como algo novo, dando vazão a possibilidades de
leitura, de comunicação e de representação do vivido e mediando as formas do mundo criadas pelos
adultos”.
Assim, a especificidade da infância indígena nos estudos antropológicos nos apresenta uma
lógica própria: ela tem centralidade nas diferentes cosmologias e desempenha tarefas e papéis
específicos de acordo com as diversas comunidades ameríndias. Lecznieski (2012, p. 25), por
exemplo, identificou em seus estudos junto às crianças Kadiwéu que elas são os atores centrais na
mitologia, nos rituais e também na vida social de seu grupo; elas mediam diferentes espaços,
contextos e outros mundos, são protagonistas das histórias ancestrais e ainda apresentam habilidades
imprescindíveis para sua sobrevivência no mundo, como a curiosidade e a esperteza. Essas mesmas
aptidões, segundo a autora, são estimuladas e admiradas pelos adultos como essenciais para a
interação da criança Kadiwéu com outros mundos. Em outras palavras, essa criança torna-se “[...]
um potencial mediador que conecta diferentes mundos, estabelecendo relações entre vivos e mortos,
humanos e animais [...]” (LECZNIESKI, 2012, p. 38).
Por outro lado, Codonho (2012), ao estudar a infância Galibi-Marworno – grupo oriundo
do norte do Amapá, afirmou que as crianças dessa etnia estabelecem processos de aprendizagens
entre elas próprias, ou seja, “[...] os conhecimentos são transmitidos de forma horizontal”
(CODONHO, 2012, p. 53). Nesse caso, o ato de ensinar e aprender se processa entre os pares
(crianças), seja por suas ações no cotidiano, como nas brincadeiras, bem como no caso de um
funeral: enquanto a família do falecido chora, as crianças realizam um rico repertório de atividades
lúdicas com a finalidade de alegrar os presentes e fortalecer suas raízes culturais, já que suas
brincadeiras apresentam a cosmologia Galibi-Marworno. Codonho (2012, p. 68) destaca, pois, a
centralidade do “[...] protagonismo infantil e a importância das crianças na transmissão de práticas
culturais”.
Corroborando essas afirmações, Tassinari (2007) salienta que as crianças indígenas são
mediadores de seres cosmológicos e de diversos grupos sociais, possuidoras de autonomia para agir
e decidir nos diferentes espaços da comunidade indígena. A autora postula ainda três ressalvas para
a compreensão criteriosa da criança indígena em sua especificidade:
Desse modo, devemos reconhecer que a criança indígena age e interage com os outros
atores sociais e com seu meio. Ela não é passiva, mas um ser potencialmente em atividade social,
42
que “[...] ocupa espaços de sujeitos plenos e produtores de sociabilidade” (TASSINARI, 2007, p.
11). Por circular em diferentes espaços comunitários, esse indivíduo vê, ouve e aprende tudo o que
acontece na comunidade, sendo seu nível de absorção de novos conhecimentos bem elevado e, por
isso, a cada conhecimento aprendido, ele se reinventa conforme seus códigos culturais.
Nunes (2002), por sua vez, assevera que, na tentativa de compreensão da infância indígena,
deve-se se desfazer de discursos prontos e estereótipos, já que determinadas ações adultas são
orientadas por significações e sentidos que regem seu universo étnico-cultural. Cabe-nos então
interpretá-la conforme seus ritos, tradições, crenças e valores, haja vista que, em cada sociedade, a
criança apresenta distintas formas e estratégias de mediação e de socialização. Além disso, cabe a
ela dar continuidade aos saberes tradicionais de seu povo, pois é considerada por muitos a fiel “[...]
depositária de toda uma expectativa de continuidade, envolvendo todas as instâncias da vida social”
(NUNES, 2002, p. 257).
Nas comunidades indígenas, elas possuem autonomia para ir e vir e liberdade para circular
nos diferentes ambientes da comunidade. Por isso ela vê, ouve e participa de tudo: é um ator social
capaz de reproduzir diversas informações dos acontecimentos diários, de realizar atividades
domésticas, lúdicas e de cultivo no cotidiano. No campo teórico da criança indígena, Tassinari
(2007, p. 22) identificou cinco aspectos recorrentes nas concepções sobre essa categoria social:
culturais; do contrário, corre-se o risco de se generalizar a criança indígena e isso seria um grande
equívoco científico.
Ao investigar a infância indígena chiquitana, precisamos ainda conhecer os processos
históricos e culturais que originaram essa etnia, como uma tentativa de entendermos suas ações e
concepções com base em suas raízes culturais. O povo chiquitano foi constituído a partir do
aldeamento de mais de 40 etnias diferentes iniciado no final do século XVII no oriente boliviano,
movimento liderado pelas missões religiosas jesuítas. A etnogênese cultural desse povo se
configurou, pois, a partir da expressão da “[...] unidade étnico-cultural que passou para a história a
partir da Missão de Chiquitos, um modo de ser distinto e uma história de Chiquitanos que
convenceram umas quarenta etnias a se juntarem nos dez pueblos misionales” (PACINI, 2012, p.
395).
Para eles, a noção de pessoa está vinculada aos padrões religiosos difundidos pelos jesuítas
no final do século XVII, e percebemos ainda os valores e crenças do catolicismo fortemente
imbricados nas práticas desse grupo.
De acordo com as narrativas Chiquitano logo que uma criança nasce é classificada
de “criatura” sem nome e sem dono, condição, portanto, de não humanidade –
tsauka (filho dos montes, bárbaro, não batizado, sem dono). E, após o rito batismal,
este ser é transformado e recebe um nome, torna-se gente, adquire a condição de
tsaika (filho de Deus) e dessa maneira define-se a quem pertencerá a “criatura”,
quem será o seu dono. Um ancião Urupe argumentou que, antes do batismo, a
criança é chamada de “indinho” e, após o batismo, recebe um nome. E completou:
“Se não existisse compadre, não haveria respeito, não haveria batismo, e as
pessoas seriam como criaturas, como bichos” (SILVA, 2015, p. 79-80, grifos do
autor).
A humanização da pessoa chiquitana então só é possível por meio do ato batismal. Depois
desse ritual, o pequeno é inserido no grupo que lhe fornecerá elementos históricos e culturais para
constituir sua identidade individual e coletiva. Percebemos essas e outras influências da Igreja
Católica presentes na formação da identidade chiquitana, herança deixada pelos jesuítas no oriente
boliviano, em muitas práticas e comportamentos católicos: alguns que foram ressignificados
conforme a cosmologia indígena e outros preservados, ou seja, tendo conservada “[...] a sua essência
no estabelecimento de uma estreita unidade significativa entre as tradições religiosas cristãs e
indígenas” (MOREIRA DA COSTA, 2006, p. 11).
velhas reconhecidas pela sabedoria que a vida lhes proporcionou, assumem papéis
relevantes no processo ritual mais expressivo deste grupo, o Curussé. São as
crianças menores que assumem a responsabilidade, com orientação das pessoas
mais velhas, de produção da chicha, a bebida servida a todos, independente da
idade, durante o ritual (GRANDO, 2014, p. 102-103).
Dessa forma, somos convidados a viver os nossos padrões culturais como apenas
mais um dentre os muitos possíveis, abrindo-nos para a aventura do encontro com a
alteridade. É sob esta perspectiva que a educação intercultural se preocupa com as
relações entre seres humanos culturalmente diferentes uns dos outros. Não apenas
na busca de apreender o caráter de várias culturas, mas sobretudo na busca de
compreender os sentidos que suas ações assumem no contexto de seus respectivos
padrões culturais e na disponibilidade de se deixar interpelar pelos sentidos de tais
ações e pelos significados constituídos por tais contextos (FLEURI, 2003, p. 31).
Situações de aprendizagens como essas nos colocam em confronto com nossas verdades
prontas e acabadas, são atitudes de descentralização do “eu” e o reconhecimento do outro, do
diferente. O desvelar de outros sujeitos culturais rompe com estereótipos historicamente
disseminados no imaginário social de que existem culturas e povos superiores. Nesse sentido, a
perspectiva da interculturalidade crítica proposta por Candau (2012, p. 244) ratifica seu papel social
frente à nova demanda dos grupos invisibilizados:
Nesse panorama, a escola, como agente de transformação social, deve estimular as práticas
interculturais, já que essas ações permitem que “[...] os sujeitos eduquem-se na relação eu-outro, de
forma individual, bem como coletiva, entre contextos culturais semelhantes e entre contextos
culturais diversos” (FREIRE, 2006, p. 103). No caso das crianças chiquitanas no espaço escolar de
Porto Esperidião, propomos a educação intercultural fundamentada no lúdico como forma de
dialogar com as diferentes identidades culturais existentes naquela instituição.
124) ressalta que “[...] não existe brinquedo sem regras. A situação imaginária de qualquer forma de
brinquedo já contém regras de comportamento, embora possa não ser um jogo com regras formais
estabelecidas a priori”. A criança por meio do brincar incorpora diferentes papéis sociais que são
reproduzidos nesse ato, seja por gestos, expressões ou ainda regras de comportamento.
Huizinga (2014), ao realizar estudos sobre o jogo, concebe-o como um meio de transmissão
cultural, pois nele o sujeito experimenta e vivencia diferentes situações conforme seus padrões
culturais, o que permite a constante (re) criação de regras e ideias e lhe faculta uma transformação
do mundo. O autor considera o jogo como:
Pelas contribuições de Huizinga, podemos compreender que o jogo pode ser considerado
um mecanismo de construção de diversos conhecimentos, inclusive da cultura humana. Ao
propormos as atividades lúdicas às crianças baseadas nas memórias dos idosos chiquitanos,
estaremos assim contribuindo para a construção de saberes e para novas formas culturais de ser e de
estar no mundo, sem desconsiderar o caráter lúdico, prazeroso e criativo do brincar. Isso porque a
cultura lúdica da criança apresenta autonomia quanto ao uso e ao manuseio de diferentes imagens,
símbolos e representações que lhe permitem ressignificar suas vivências, o que significa afirmar que
a “[...] cultura lúdica não está fechada em torno de si mesma, ela integra elementos externos que
influenciam a brincadeira: atitudes e capacidades, cultura e meio social” (BROUGÈRE, 2010, p.
54).
Sabemos que as práticas lúdicas no contexto da Educação Infantil são fundamentais para a
construção de conhecimentos, posto que inserem a criança no mundo social com a finalidade de
torná-la autônoma, crítica e reflexiva em relação à realidade que a circunda. Por meio dessa
metodologia de ensino, ela aprende de forma prazerosa e criativa, uma vez que a ludicidade é uma
linguagem que se incorpora desde os primeiros processos de socialização. Ao manipular diferentes
realidades culturais e históricas, as crianças ao brincar aprendem sobre a história da humanidade, de
seu grupo, como também tecem a sua própria história.
Nesse processo, a interação com outros sujeitos sociais que já possuem o domínio da
cultura é de extrema importância para o ensino e a aprendizagem. Ao dialogar com os saberes
dos(as) velhos(as) chiquitanos(as), por exemplo, as crianças indígenas e não indígenas de Porto
Esperidião constroem conhecimentos científicos com base nos saberes tradicionais desse povo.
50
Ao evocar suas memórias, os(as) velhos(as) atribuem novos sentidos às suas experiências
passadas e suas lembranças são acionadas a partir de marcos históricos, ou seja, momentos que
foram significativos em suas vidas e relevantes o bastante para serem guardados. Ao lembrar as
atividades lúdicas vivenciadas em suas infâncias, eles nos permitem estabelecermos diálogos com as
possíveis concepções de infância difundidas entre o povo chiquitano. E, para realizar esse
procedimento, nos desdobramos à escuta sensível das histórias de infâncias dos(as) velhos(as)
chiquitanos(as).
Entretanto, Silva (2014) utilizou a História Oral para identificar nos relatos dos etnólogos
em suas publicações as narrativas de brincadeiras e brinquedos infantis do povo Kaingáng na Terra
Indígena Xapecó (SC). O trabalho se orientou pelos registros dos jogos, brinquedos e brincadeiras
praticados por esse povo a partir da década de 1940.
A História Oral surgiu como uma contestação à tradição historiográfica fundamentada nos
documentos oficiais, pois as vozes das minorias silenciadas eram ignoradas. Ela valoriza o cotidiano
dos sujeitos sociais e restringe seus “[...] testemunhos como ponto central de análises” (MEIHY,
51
1998, p. 19). Com ela, não se busca estabelecer “verdades prontas e acabadas” a partir dos
depoimentos dos entrevistados, mas evidenciar versões de experiências individuais tendo como
finalidade registrar e analisar as fontes orais produzidas.
As histórias de infâncias dos(as) velhos(as) chiquitanos(as) se constituem por
subjetividades que compõem a rede cultural desse povo. Trata-se de sujeitos que viveram em outras
épocas, outros quadros sociais e outras histórias. Por isso, suas vivências com os jogos, brinquedos e
brincadeiras manifestam elementos culturais e históricos para a compreensão social desse grupo
conforme seus modos de ser, de aprender e de viver. Nesse sentido, falas ou trechos repetidos nos
depoimentos dos entrevistados devem ser analisados com atenção, já que podem fornecer dados
indispensáveis para a compreensão da conjuntura social do sujeito depoente. Sendo assim, “[...]
como em toda narrativa de cunho autobiográfico, o principal trabalho de uma entrevista de história
de vida é a construção de uma identidade para si e para os outros” (ALBERTI, 2004, p. 94).
Ao manipular essas fontes orais, o pesquisador deve considerá-las como o fio condutor de
seu fazer historiográfico: elas não devem ser vinculadas ao objeto de forma secundária, mas
compreendidas como riquezas quando concebidas como um meio para estabelecer relações com
seus atores depoentes, suas identidades e a história de seu grupo social. Lozano (2006, p. 23), ao
descrever as características do estilo do analista completo, define-o assim:
Esses historiadores orais consideram a fonte oral em si mesma e não só como mero
apoio factual ou de ilustração qualitativa. Na prática, eles colhem, ordenam,
sistematizam e criticam o processo de produção da fonte. Analisam, interpretam e
situam historicamente os depoimentos e as evidências orais. Não se limitam a um
único método e a técnica, mas as complementam e as tornam mais complexas.
Para trabalhar com as fontes orais produzidas pelos(as) velhos(as) chiquitanos(as), depois
de estas terem sido coletadas e transcritas, procedemos à categorização delas e as análises à luz da
contribuição dos teóricos da Educação, da Antropologia da infância e da História com a finalidade
de compreendermos a educação e as histórias sobre as concepções de infância entre eles, como
também seus modos de aprender, de ser e de viver.
Essa abordagem nos permitiu conhecer suas histórias de vidas, suas experiências vividas e
as mediações entre sujeito e grupo social. No decorrer dessa etapa, foi possível “[...] a um só tempo:
informar sobre contextos sociais, evocar subjetividades distintas e revelar a dimensão intersubjetiva
entre os sujeitos e o pesquisador” (GUSSI, 2008, p. 07).
O fazer biográfico, por outro lado, considera aspectos da vida humana que seriam
impossíveis de se interpretar com base em fontes escritas: trajetórias narradas, indagações, gestos e
silêncios revelam diferentes identidades que geram e são gestadas pelos seus contextos sociais. A
memória age então como elemento primordial nesse processo tendo em vista que, quando acionada,
52
fornece aos narradores lembranças tanto de esfera individual quanto coletiva em diferentes
temporalidades, espacialidades e referente a atores sociais que ilustram suas narrativas de vidas.
Dessa maneira, é por meio desse processo de rememoração que as diferentes subjetividades
dos(as) velhos(as) chiquitanos(as), vão sendo desenhadas na estrutura cultural/social desse povo:
suas interações com o outro, seus elementos culturais e seus contextos emergiram em seus relatos
como uma ação para dar novos sentidos às histórias de vida no passado com base no presente.
contexto urbano de Porto Esperidião. Nessa etapa, realizamos diálogos teóricos com Secchi (2009,
2012); Calonga (2015); Lourenço (2008); Grupioni (2000); Luciano (2006, 2007); Ferreira (2001);
D’Angelis (2001); Branco e Zattoni (2015); Queiroz (2013); Rocha;Almeida; Silva (2007); Fleuri
(2003); Grupioni (2000); Lück (2009) e Pacini (2012).
No segundo capítulo, apresentamos a organização social do povo chiquitano no estado de
Mato Grosso, sua etnogêse cultural, seu contexto social, como também seus códigos culturais que o
diferenciam de outros povos indígenas. Esse capítulo está fundamentado nos estudos realizados por
Bortoletto (2007); Pacini (2012); Queiroz (2013); Duarte (2014); Silva (2015); José da Silva (2009);
Calonga (2015); Anzair (2008); Grando (2014); Moreira da Costa (2006); Puhl (2008,2011);
Santana e Dunck-Cintra (2009); Souza (1986); Novaes (1993); Laraia (2001); Luvizotto (2009);
Tomichá (2002); Siqueira (2009); Gusmão (1999); Tassinari (2011); Souza (1986); Lopes da Silva
(1995); e Vilhena (2005).
análise dos dados obtidos nos embasamos nos estudos de Grupioni (2000); Silva (2015); Carvalho
(2007); Freire (2006); Barros (2012); Cohn (2000); Moore (1997); Vygotsky (1998); Huizinga
(2014); Brougère (2010); Kishimoto (2011); Nunes (2002); Grando e Albuquerque (2012); Grando
(2014); Bergamasch (2010); Bergamasch e Silva (2007); Bergamasch e Menezes (2016); Pacini
(2012); Queiroz (2013); Bortoletto (2007); (2015); Puhl (2011); Novaes (1993); Laraia (2001);
Leontiev (2004); Geertz (2008); Neves (2009); Delgado (2003); Lago (2007); Alberti (2004); Bosi
(1994); Freinet (1979); Fleuri (2003); Orlandi (2001); Candau (2012) e Nóvoa (1995).
Esses diálogos teóricos nos permitiram realizar o cotejo entre as narrativas dos sujeitos
participantes e os contextos socioculturais em que estavam inseridas com a finalidade de analisar e
compreender as concepções de infância que prevalecem entre os(as) velhos(as) chiquitanos(as),
como também suas manifestações culturais infantis, entendidas na cosmovisão chiquitana como
atividades de transferência de saberes tradicionais e de códigos culturais às novas gerações.
56
6
Essas informações foram concedidas por Aline Coelho funcionária da SEDUC-MT via e-mail no dia 24 de agosto de
2016.
57
oferecida aos indígenas por longos dois séculos por meio do método pedagógico dos Jesuítas Ratio
Studiorum.
Os objetivos educativos jesuítas estavam fundamentados tanto na religiosidade, que visava
catequizar os indígenas, quanto pelo projeto civilizador da coroa portuguesa: adestrar os nativos
para produzir excedentes para a metrópole. Eles aprendiam a ler, a escrever, a contar e a trabalhar
nas atividades diárias conduzidas pela Companhia de Jesus e a imposição da cultura europeia
contribuía para o “apagamento” de suas raízes indígenas e dos modos de vida peculiares ao
ameríndio.
De acordo com Pacini (2012), em 1757, D. José I, rei de Portugal, por meio de seu
representante em terras brasileiras Marquês de Pombal, criou o Diretório dos Índios, documento que
regimentava os novos modos de vida dos indígenas e expulsava os jesuítas das colônias portuguesas.
Novas medidas foram estabelecidas a partir dessa lei, que em seu artigo 7, por exemplo,
determinava a proibição do uso do termo “negro”, o incentivo ao casamento entre colonos e
indígenas, a oficialização da língua portuguesa e a criação de escolas nas aldeias. Além disso, regia
também:
Vemos que já havia uma preocupação com a educação da população indígena, tanto com
sua formação cristã quanto com o desenvolvimento de habilidades do homem capitalista,
aprendizagens úteis para sua sobrevivência no Brasil Colonial, que se mantinha por recursos
naturais extraídos. A grande ênfase do império foi a criação das escolas de primeiras letras em
lugares em que não havia missionários para realizar tal tarefa regida pela Lei de 15 de outubro de
1827, conforme nos aponta Ferreira (2001).
No século seguinte, em 1910, foi criado pelo Decreto nº 8.072 o Serviço de Proteção aos
Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), que tinha como objetivo prestar
assistência a todas as comunidades indígenas no Brasil. Esse órgão tinha como característica
marcante seu caráter laico ao lidar com as populações indígenas. Mais tarde, em 1918 ,essa agência
indigenista passou a se chamar Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e estabelecia o controle e o
“adestramento” indígena a partir do poder tutelar, pois considerava esses povos incapazes de se
58
manterem de forma autônoma no mundo social. Por isso, criava ainda leis para equiparar as perdas
sofridas pelos indígenas.
Havia mais preocupação por parte do Estado com as questões econômicas do que com o
reconhecimento das comunidades indígenas como representantes de outras formas de organização
social no Brasil. Prova disso foi o movimento realizado em 1945 pelo então presidente Getúlio
Vargas denominado “Marcha para o oeste”, que tinha a finalidade de ocupar as terras consideradas
“vazias” e produzir matéria-prima para alavancar a economia brasileira. Nesse contexto, muitos
territórios tradicionais indígenas foram usurpados por imigrantes de outras regiões brasileiras.
O SPI foi extinto em 1967 e substituído pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), criada
pela Lei nº 5.371, de 5 de dezembro do mesmo ano. Esse novo órgão indigenista brasileiro tinha
como intuito proteger e promover os direitos dos indígenas em territórios brasileiros, assim como
identificar, delimitar, demarcar e regularizar terras indígenas. Conforme dados informativos do site
da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o trabalho desse órgão está orientado:
A igreja novamente volta ao cenário indígena, agora para realizar trabalhos voltados mais à
perspectiva humanística do que religiosa, talvez como uma forma de compensar os “saqueamentos”
que provocou à cultura indígena junto aos portugueses na durante o período Colonial. Outro
acontecimento em favor das comunidades indígenas foi a promulgação da Lei nº 6.001, de 19 de
dezembro de 1973, que definiu o Estatuto do Índio. Este regulamenta o dever do Estado Brasileiro
frente aos povos indígenas, reconhecendo-os como sujeitos fragilizados socialmente e
historicamente quanto à garantia de seus direitos territoriais e cidadãos, atribuindo por isso à FUNAI
sua tutela estatal.
Diante dessas e outras medidas que contribuíram para a valorização da cultura indígena no
cenário brasileiro, os movimentos indígenas foram se fortalecendo e ganhando visibilidade na
sociedade, fomentando a criação de muitas organizações para a defesa de seus direitos.
Essas conquistas antecederam a promulgação da Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988, por meio da qual os povos indígenas conquistaram direitos antes ignorados, tais
como: o direito às suas formas próprias de organização social, o direito originário aos seus
territórios tradicionais e a retirada da tutela do Estado sobre os indígenas, cabendo ao Estado buscar
meios para assegurar o reconhecimento desses povos perante a sociedade não indígena.
“incorporar os índios à civilização”, já que eles possuem uma particularidade identitária regida por
seus ritos, tradições, costumes e códigos culturais.
O Decreto nº 26, de 04 de fevereiro de 1991, por sua vez, transfere a responsabilidade de
oferta da Educação indígena para o Ministério da Educação e Cultura (MEC), antes exclusiva da
FUNAI. Essa medida provoca a descentralização dessa atribuição para Estados, municípios e outros
órgãos.
De acordo com esse autor, a Leis de Diretrizes e Bases (LDB) contribuiu para a conquista
da educação escolar diferenciada, comunitária e intercultural dos povos indígenas. Sua
especificidade no ato de educar contempla contextos culturais, língua materna e bilinguismo, e suas
ações educativas vêm alinhadas aos códigos culturais, à história e à tradição indígena. Esse processo
comporta desde a formação específica dos professores para atuar nas escolas indígenas quanto a
elaboração e a divulgação de materiais didáticos específicos e diferenciados a partir das vivências
61
culturais de determinada etnia. Decorrente dele, foi publicado em 1998 o Referencial Curricular
Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI), documento elaborado pelo MEC para auxiliar o
trabalho educativo junto às comunidades indígenas.
A Lei nº. 10.172 de 09 de janeiro de 2001, por seu turno, aprova o Plano Nacional de
Educação, que contempla em um capítulo a educação escolar indígena com metas, estratégias e
objetivos a curto e a longo prazos. Grupioni (2000, p. 275) nos informa que por meio do Plano
Nacional de Educação “[...] se estabelece a universalização da oferta de programas educacionais aos
povos indígenas para todas as séries do ensino fundamental, assegurando autonomia para essas
escolas, tanto no que se refere ao projeto pedagógico quanto ao uso dos recursos financeiros”.
O final da vigência do PNE foi no ano de 2011. Por esse motivo a Lei nº. 13.005, de 25 de
junho de 2014, promulgou um novo Plano Nacional de Educação, que contempla entre outras
modalidades a Educação Escolar Indígena. A estratégia 10 da meta 1 desse documento, por
exemplo, determina:
Essa medida teve a finalidade de dar visibilidade social aos indígenas no âmbito da
sociedade civil, e o agente participante principal dessa missão é a escola, considerada espaço de
produção de poder e saber. Buscou também dar voz aos povos indígenas, que outrora eram
considerados inferiores, “incapazes” de se manterem no mundo social, sendo por isso, no passado,
protegidos, vigiados e preparados para o trabalho voltado para o excedente.
Frente ao exposto, vemos que o desafio está posto: incluir nas práticas pedagógicas a
valorização das diferentes culturas existentes no Brasil. Cada cor, cada canto, cada credo deve ser
visto, ouvido e valorizado pelos demais cidadãos brasileiros, a fim de evidenciar a cultura dos povos
indígenas, bem como dos afro-brasileiros.
Secchi (2009) afirma que o movimento indígena no estado de Mato Grosso conquistou ao
longo do tempo uma relevante importância na sociedade civil, dadas suas lutas políticas e o
reconhecimento do direito à diferença e à alteridade. Assim, essas ações foram se fortalecendo e
ganhando visibilidade social nos diferentes setores mato-grossenses.
Para melhor entendermos a história do contato entre índios e não índios, em Mato
Grosso, será importante compreendermos a dinâmica das frentes de expansão da
sociedade brasileira que, em momentos diferentes, atingiram os territórios tribais e
passaram a ocupar áreas onde se localizavam os grupos indígenas (FERREIRA,
2001, p. 142).
Nessa definição, torna-se claro que o mais significativo para as frentes expansionistas era
produzir lucros para a Coroa Portuguesa, e por isso muitos de seus integrantes atravessavam
territórios indígenas em busca de ouro ou para a captura de nativos para gerar força de trabalho.
63
Conforme Ferreira (2001), muitos desbravadores adentraram em diferentes territórios indígenas para
executar sua missão capitalista e, nesse ínterim, muitas dúvidas surgiram, especialmente pensando
sobre os modos de se chegar a territórios isolados, como no caso de Mato Grosso. Houve diferentes
explicações bíblicas, históricas e científicas que permearam o imaginário social da época, sendo que
“[...] a efetiva colonização pelos portugueses e paulistas do território, hoje compreendido pelo
Estado de Mato Grosso, iniciou-se somente 219 anos após o Descobrimento do Brasil”
(FERREIRA, 2001, p. 143).
De acordo com esse estudioso, uma das primeiras iniciativas educacionais em Mato Grosso
junto aos indígenas foi iniciada pelos padres salesianos no final da década de 1890 com a etnia
Bororo. Depois, surgiram outras estratégias e formas de ensino, de modo que as atuações educativas
das agências foram sendo introduzidas de acordo com suas características institucionais.
Nesse período, poucas eram as participações dos indígenas nas esferas de decisão do
sistema educacional ofertado; o currículo, o calendário, as estruturas físicas e os professores eram
selecionados conforme a mentalidade dos não indígenas.
De acordo com as Orientações Curriculares das Diversidades Educacionais do Estado de
Mato Grosso (MATO GROSSO, 2012, p. 244-245), até o ano de 1980, quatro características eram
marcantes nas escolas indígenas nesse Estado: “diversas formas e estratégias de escolarização,
ofertadas por diferentes agências externas”, a ”desarticulação interinstitucional”, as “frequentes
interrupções das atividades escolares, quer pela ausência de professores nas aldeias, quer pela
concorrência da escola com outras atividades com maior significado cultural para as comunidade” e
finalmente a “imposição externa de currículos e das metodologias de ensino”.
De acordo com essas características, a educação oferecida aos indígenas não levava em
consideração suas necessidades culturais, e seus saberes tradicionais eram invisibilizados por uma
política que visava legitimar nos diferentes espaços étnicos seus próprios interesses e demarcar seu
espaço social de atuação, seja de ordem religiosa, financeira, linguística, ou outras. Tudo isso nos
faz entender que a educação escolar indígena era gestada por vários modelos educacionais e
diferentes agências administrattivas, calendários e currículos desvinculados de suas realidades
socioculturais.
64
Luciano (2006, p. 72), sobre o tema, esclarece que, “[...] a partir dos anos 1970, surgiram
várias outras organizações não governamentais (ONGs) de apoio aos índios, quebrando o monopólio
do Estado e das velhas missões religiosas e questionando suas doutrinas civilizatórias”. As missões
evangélicas também demarcaram territórios por meio do Summer Institute of Linguistics – SIL – e
seus trabalhos eram mais voltados aos estudos linguísticos e a traduções de textos bíblicos. Assim
sendo, a Educação Escolar Indígena de Mato Grosso estava muito distante dos moldes educativos
em que as práticas pedagógicas estão fundamentadas na atualidade.
Além disso, contribuindo para essa discussão, Queiroz (2013) disserta sobre a fase de
redemocratização do Brasil, que contribuiu para o surgimento e para a mobilização de vários
movimentos sociais indígenas, organizações não-governamentais e diferentes grupos de trabalhos
que lutavam por uma educação escolar indígena qualitativa e que respeitasse as diversidades étnico-
culturais. Em Mato Grosso, esses movimentos atuavam principalmente em prol de uma emenda
constitucional que contemplasse novos direitos às comunidades indígenas. Encontros, conferências e
assembléias foram realizados na busca por soluções quanto as problemáticas comuns, tais como:
direitos civis, territórios tradicionais, escolas específicas e diferenciadas e o fortalecimento de novas
redes de relações entre as diferentes etnias do Estado de Mato Grosso.
Nesse novo cenário social de unidade étnica em favor da garantia de direitos, esses eventos
foram aos poucos fortalecendo o movimento indígena em Mato Grosso. Nessa perspectiva, Queiroz
(2013) ressalta que, no sentido de aprofundar essas e outras questões, em abril de 1974 aconteceu a
Assembleia de Líderes Indígenas no município de Diamantino, nesse mesmo Estado. O encontro
promoveu trocas culturais entre as etnias e a união do segmento indígena mato-grossense no âmbito
de suas lutas políticas e representou “[...] um marco na história dos povos indígenas do Estado e do
Brasil” (QUEIROZ, 2013, p. 41). Após as conquistas obtidas pós-Constituição de 1988, as
diferentes populações conquistaram protagonismo nos movimentos sociais, uma mudança
significativa que contribuiu para a projeção de uma educação condizente com os interesses
indígenas.
Posteriormente, criou-se em MT a Coordenadoria de Assuntos indígenas, órgão que visava
promover a “articulação política e administrativa” entre os indígenas, o Estado, a FUNAI e a União.
65
Aliado a isso, Secchi (2009) afirma que em junho de 2005 foi iniciado o projeto Haiyô, que
teve como intuito formar professores indígenas em magistério intercultural para atuarem na rede
pública de ensino de Mato Grosso. Essa iniciativa contemplou 300 docentes de 33 etnias diferentes,
inclusive o povo chiquitano. Durante seu funcionamento, produziu bons frutos para a educação
66
escolar indígena, com a elaboração de materiais didáticos específicos, sustentados pelos princípios
de fortalecimento dos diferentes povos indígenas em Mato Grosso pela valorização de suas línguas
maternas, mitos, histórias, conhecimentos de saúde e ambiente e seus códigos culturais.
Finalmente, os chiquitanos foram incluídos nesse projeto, uma vez que dos cursos
anteriores eles não participaram. “[...] No Projeto Haiyô eles tiveram participação, pois já contavam
com escolas nas aldeias, sendo atendidos somente com o professor da Aldeia Acorizal, José de
Arruda, no polo de Juína” (QUEIROZ, 2013, p. 52).
Esses projetos de formação de professores indígenas em nível de magistério representaram
“as portas de entrada” para a implantação de licenciaturas projetadas a partir das demandas
socioculturais das comunidades indígenas em Mato Grosso. A formação indígena acadêmica,
denominada 3º grau indígena, iniciou seus trabalhos no ano de 2001 e começou seu oferecimento
pela UNEMAT, pioneira na formação específica e diferenciada para professores indígenas na
América Latina.
A distribuição das vagas foi fruto da demanda de quarenta e dois povos indígenas
do Estado de Mato Grosso, de acordo com as necessidades vivenciadas, abrangendo
cursos nas áreas de Ciências da Saúde, Ciências Agrárias, Ciências Tecnológicas e
Ciências Humanas e Sociais. Atentando para o entendimento que na ocasião do
ingresso, ocorra a entrada de no mínimo dois e no máximo três estudantes por
curso/turma, possibilitando com isso o acompanhamento diferenciado, a adaptação
67
7
Conhecida como escola ciclada, é definida como forma de organização pedagógica e administrativa que possibilita
acesso e permanência de todos os estudantes em uma escola democrática de qualidade e construtiva da cidadania
(MATO GROSSO, 2001, p. 20).
68
Ciências da Natureza,
Matemática e suas
Segurança Alimentar, Trabalho e
tecnologias
Auto-Sustentação
Ciências da Natureza
e Matemática
Educação para Saúde
O Centro de Educação Infantil Wictor Hugo Cerqueira Ribeiro da Silva atende crianças há
25 anos na cidade de Porto Esperidião. O surgimento dessa instituição foi marcado por uma
preocupação com a saúde e com a alimentação das crianças menores. Inicialmente, essa escola da
infância era denominada Creche Municipal Pingo de Gente; porém no ano de 2002 ela se desdobra
em duas instituições: Creche Municipal Pingo de Gente (para atender crianças de 2 e 3 anos) e
Centro de Educação Infantil Wictor Hugo Cerqueira Ribeiro da Silva (para alunos de 4 e 5 anos).
As primeiras iniciativas de atendimento às crianças indígenas e não indígenas em Porto
Esperidião se deram no final da década de 1980. Segundo relatos de antigos moradores da cidade,
localizado na rua São Francisco funcionava um antigo salão paroquial, um espaço comunitário que
prestava serviços sociais às crianças. Estas se aglomeravam todos os dias para realizar algumas
atividades recreativas e se alimentar de sopas preparadas para “matar a fome da molecada”.
Essas ações de assistência contribuíram significativamente para a criação da Creche
Municipal Pingo de Gente no dia 09 de março de 1992 conforme a Lei 076/92. Vale destacar que a
preocupação da época era meramente assistencialista, de alimentação e cuidado. Sendo assim, a
instituição foi criada com a finalidade de atender os menores carentes do município.
Essa preocupação das autoridades competentes era devida à crise econômica que o Brasil
atravessava nessa época e que certamente repercutiu nos modos de viver das populações mais
carentes naquele momento, como também em sua qualidade de vida e economia familiar. Nesse
cenário, a criação da Creche Municipal “Pingo de Gente” surge como uma alternativa para ajudar no
cuidado e na alimentação dos pequenos.
Embora o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a Lei 8.069/1990, já assegurasse o
princípio de proteção integral à criança fundamentada em “[...] três princípios básicos: da cidadania,
do bem comum e o da condição peculiar de desenvolvimento, dado que é no princípio da cidadania
que se encontra o direito” (ROCHA; ALMEIDA, SILVA, 2007, p. 80), as crianças de Porto
Esperidião foram conquistando aos poucos sua visibilidade social, principalmente respaldadas pelos
dispositivos legais que lhes asseguravam o direito à cidadania. Todavia, foi apenas com a
promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), sancionada em 20 de
dezembro de 1996, que se reconheceu e se regularizou a Educação Infantil como primeira etapa da
educação básica.
A implantação de novas políticas públicas educacionais foi decorrente então da
implantação da LDB, que priorizava em seu artigo 29 “[...] o desenvolvimento integral da criança
até seis anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, completando a ação
da família e da comunidade” (BRASIL, 1996). Esse dispositivo legal influenciou as ações da Creche
70
Municipal “Pingo de Gente”, que passou de assistencial a instituição escolar, realizando atividades
pedagógicas para promover o desenvolvimento integral das crianças em seus diferentes aspectos.
Segundo relatos de professores antigos que lecionavam na creche nessa época, grande parte dos
alunos concluíam seus estudos já alfabetizados no final da década de 1990.
Já no ano de 1998, com a publicação do Referencial Curricular Nacional para a Educação
Infantil (BRASIL, 1998), novas concepções surgiram em relação ao modo de se conceber a criança
e ao redirecionamento pedagógico e curricular da referida instituição.
Assim, a instituição escolar preza pelo respeito às particularidades infantis e colabora para
que suas crianças no futuro sejam conscientes das diferentes formas de ser e de estar no mundo,
considerando que o convívio social e o brincar com intencionalidade pedagógica possibilitam trocas
culturais e o desenvolvimento de diferentes competências.
Tendo como objetivo geral proporcionar o desenvolvimento integral da criança nos seus
aspectos físico, cognitivo, afetivo e social e tendo em vista os conhecimentos já existentes, a
instituição escolar garante a formação da autonomia em um ambiente lúdico, dinâmico e instigador,
respeitando a individualidade e a subjetividade de todos que estão envolvidos no processo educativo
e complementando a ação da família e da comunidade.
Um de seus objetivos específicos proposto segundo o Projeto Político Pedagógico
contempla saberes culturais compreendidos nas diferentes culturas existentes:
Estabelecer e fortalecer cada vez mais as relações sociais, aprendendo aos poucos a
articular seus interesses e pontos de vista com os demais, respeitando a diversidade
e atitudes de ajuda e colaboração; Brincar, expressando emoções, sentimentos,
pensamentos, desejos e necessidades; Conhecer algumas manifestações culturais,
demonstrando atitudes de interesse, respeito e participação frente a elas e valorizar
a diversidade cultural e social; Favorecer a construção da auto-imagem positiva da
criança, facilitando o desenvolvimento da identidade e autonomia; Propiciar ações
que integrem a expressão corporal e cultural, através de apresentações culturais
para a comunidade, bem como de momentos comemorativos com a participação da
criança e a família; Desenvolver conceitos básicos sobre a linguagem e escrita,
através de relatos de experiência, projetos pedagógicos, músicas, parlendas, etc.;
Inserir o lúdico nos conteúdos programáticos, através de brinquedos e brincadeiras
diversas; Respeitar e valorizar as culturas existentes no arranjo escolar (CENTRO
DE EDUCAÇÃO INFANTIL WICTOR HUGO SERQUEIRA RIBEIRO DA
SILVA, 2015, p. 11).
0
ADI (Ensino Pedagogos (as) Professor Professor (a)
Médio) Graduados (as) (Magistério) Especialista
Fonte: elaborado pela autora com base no Projeto Político Pedagógico da escola.
8
Espaço no qual as crianças se reúnem para realizar a escovação bucal após as refeições.
74
Seria importante que as crianças menores também fossem ensinadas por professores
capacitados para auxiliar no processo de desenvolvimento infantil. Nessa questão, acreditamos que
ainda temos muito o que avançar no reconhecimento de que até mesmo os bebês necessitam de um
profissional capacitado que estimule e compreenda como se dão suas fases de crescimento e
desenvolvimento.
Essas e outras questões identitárias da escola como agente social podem problematizar o
cotidiano escolar como uma forma de romperem com o preconceito silenciado e presente nas
vivências das crianças chiquitanas. Nesse processo, a escola é viva e deve atuar conforme as
problemáticas sociais dos sujeitos que a integram e, nesse universo, o professor deve estimular a
“[...] compreensão dos processos e contextos educativos que permitem a articulação entre diferentes
contextos culturais” (FLEURI, 2003, p. 32).
As crianças indígenas quando inseridas em contexto de problematizações9 são capazes de
compreender a própria história de ser brasileira, saber que são pertencentes à um grupo étnico que
tem uma história e cultura diferenciada de outros grupos. Não Abordamos nessa pesquisa a
educação escolar indígena, nem tampouco a educação não indígena, mas uma outra possibilidade de
ensino além dessas duas “educações”, a educação intercultural.
Dessa perspectiva, o educar com ênfase na interculturalidade, nos remete à pensar a
educação além de um só padrão pedagógico, mas um fazer educativo em que os principais
protagonistas são os próprios aprendizes com seus saberes diferenciados. A proposta apresentada
neste trabalho oportuniza as crianças aprenderem com os(as) velhos(as) chiquitanos(as), as relações
não só entre as gerações, mas entre as diferentes culturas que produzem diferentes saberes com
vistas a compreender o outro como essencial no processo educativo.
A criança chiquitana faz parte de um cenário histórico e cultural específico, por isso é
imprescindível compreender o papel da educação como seu direito, diante do contexto em que elas
vivem e pelo reconhecimento de suas vivências na fronteira dos direitos de ser brasileira e de ser
atendida pelas legislações e pelo Estado.
9
Ao estudar a história e a cultura do povo chiquitano, estuda-se a história do município de Porto Esperidião-MT, pois ao
estudar como se faz a bola de mangava estuda-se quem morava ali, o que fazia e como viviam em outras épocas.
Compreender que os estrangeiros chegaram e construíram porque já haviam chiquitanos ali que viviam e produziam
suas roças. Eles dominavam o pantanal, já conheciam profundamente seus territórios tradicionais, trabalhavam e
produziam, pois já dominavam as técnicas de cultivo como um de seus saberes ancestrais.
78
Este capítulo objetiva apresentar como o povo indígena chiquitano se organiza no estado de
Mato Grosso e o percurso histórico vivido até a conquista da terra indígena Portal do Encantado,
que representa sua vitória do ponto de vista territorial sobre os latifundiários. Segundo o censo
demográfico do IBGE (2010), Mato Grosso totaliza uma população indígena de 51.696 nativos
espalhados em diferentes espaços sociais do estado. Desse total, 9.171 vivem em espaços urbanos
das cidades mato-grossenses.
A história dessa etnia é bem semelhante à dos demais grupos indígenas que povoam as
vastas regiões brasileiras: uns foram protegidos, outros vigiados, catequizados e adestrados para o
trabalho voltado para a produção de excedente. Muitos deles também resistiram ao projeto
integracionista que objetivava tornar o índio útil à nação, uma vez que aqueles que contrariassem
tais ideais seriam eliminados (quando resistiam eram mortos) para evitar “atrasos” no
desenvolvimento econômico do Brasil.
10
Aquele que tem a posse sobre o território possui o direito sobre ele.
11
O projeto civilizador obrigava indiretamente os indígenas a negar suas culturas mediante a imposição de uma nova
ordem social com a absorção de novas regras morais, religiosas e civis.
80
foi a base para alguns aspectos do Estado moderno que ficam claros como
estratégia de evangelização (que pode ser identificada como colonização) por parte
dos jesuítas nos tempos da formação da Chiquitania: uma língua, um território e
uma religião (PACINI, 2012, p. 14).
A Chiquitania estende-se do Brasil (Vale do Rio Guaporé) até as terras baixas da Bolívia e
muitos de seus habitantes foram arrebanhados pelos jesuítas de seus territórios para povoar as
81
reduções missionárias e serem civilizados. Uns resistiam, outros escapavam e os demais eram
capturados muitas vezes com o uso de laços, como consta em alguns relatos de antigos moradores
de Porto Esperidião. Segundo Puhl (2008, p. 165), pela concepção dos jesuítas, “[...] aquela gente
deveria abandonar sua vida selvagem para ‘ser domesticada’ e transformada em ‘autênticos homens’
e ‘bons cristãos’”. Os chiquitanos eram autênticos guerreiros, habituados às batalhas tribais, e
utilizavam como estratégia diferencial nas guerras suas flechas envenenadas, além de serem muito
temidos pelos demais povos.
La vida cotidiana de los chiquitos en el momento del contacto con los jesuitas se
caracterizaba también por las constantes guerras com las diversas naciones
vencinas. Durante los muchos años de conflictos bélicos, los chiquitanos habían
alcanzado uma cierta supremacia sobre lãs demás etnias, debido tanto a la valentia
y coraje que demonstraban en sus campañas militares como al empleo de un arma
muy particular: las flechas envenenadas12 (TOMICHÁ, 2002, p. 308).
De certa forma, eles conseguiram alcançar certo respeito frente às demais etnias e aos
jesuítas, por sua coragem e valentia nos conflitos ou pelas suas flechas envenenadas, usadas
constantemente contra invasores que os ameaçavam. A arquitetura de suas moradias era bem
diferente das outras, como explica Bortoletto (2007, p. 44): “[...] as habitações são caracterizadas
como tendo pequenas portas que serviam de aberturas, daí alguns autores conferiram a esse fato a
origem do nome Chiquitano, os pequenos em espanhol”.
Puhl (2011, 2011, p. 31), por sua vez, identificou que o sistema reducional da época “[...]
quis impor sobre os Chiquitanos a identidade camponesa, mas eles resistiram e retornaram as suas
raízes indígenas”. Prova disso é que a rotina diária nas missões se resumia a aulas para ensinar as
primeiras letras, à educação moral, religiosa e o trabalho na agricultura, sendo que os alimentos
produzidos eram destinados ao consumo próprio e à venda, e essas negociações eram realizadas
sempre pelos padres jesuítas.
A direção das missões, em geral, era confiada a dois jesuítas encarregados das
atividades espirituais e materiais, respectivamente. Contavam com um Cabildo
Indígena para auxiliá-los e este exercia um controle rígido sobre a comunidade. O
sistema produtivo se baseava na chácara de uso familiar e nas terras de uso coletivo,
destinadas ao sustento e interesse da missão. Desse modo, possibilitava a
manutenção das viúvas, dos enfermos, dos trabalhos comunitários, além de gerar
excedente. Os índios deviam cumprir com obrigações religiosas e produtivas para a
12
A vida cotidiana dos chiquitos no momento do contato com os jesuítas se caracterizava também pelas constantes
guerras com várias nações vizinhas. Durante muitos anos de conflitos bélicos, os chiquitanos haviam alcançado certa
supremacia sobre as demais etnias, devido tanto à sua valentia e coragem que demonstravam em suas campanhas
militares quanto o uso de uma arma muito particular: as flechas envenenadas.
82
Compreende-se, pois, que esse espaço era concebido por uns como lugar de proteção,
enquanto outros o reconheciam como um espaço de “apagamento cultural”, em que suas raízes
indígenas eram invisibilizadas e substituídas por outra identidade: a do homem europeu. Naquele
ambiente, os indígenas também estabeleciam negociações com os padres jesuítas, informação
ratificada pela presença dos cabildos, que foram uma alternativa política criada para manter a ordem
social tanto nas relações administrativas quanto nas sociais, já que os conflitos nas reduções eram
frequentes pelas diferenças culturais existentes, sistema que se constituía em “[...] uma instituição
social de origem missional espanhola, mas assumida pelos Chiquitanos” (PACINI, 2012, p. 135).
Além das intermediadas pelos cabildos, existiam outras formas de negociações
estabelecidas nas reduções:
Outro aspecto negociado entre missionários e indígenas foi quanto ao uso da chicha em
festividades, que é uma bebida fermentada, alcoólica e tradicional da cultura chiquitana permitida
entre os gentios. Vê-se então que eles, “[...] nas negociações que estabeleciam com os missionários,
barganhavam e preservavam inúmeros elementos de sua vida tradicional” (PUHL, 2008, p. 175).
Quando ocorria alguma infração por parte da população ameríndia, as próprias lideranças
indígenas instituídas pelos cabildos realizavam as punições e tomavam as decisões contra quem
ousasse perturbar a ordem social do complexo missionário: “[...] os elementos que eram combatidos
no projeto Jesuítico eram o combate à antropofagia, à nudez, variação linguística e os conflitos
interétnicos” (DUARTE, 2014, p. 52).
José da Silva (2009, p. 177) acrescenta que havia a “[...] imposição de uma única língua, o
Chiquitano como língua geral, também chamada, hoje em dia, de Chiquito pelos lingüistas e de
Besüro ou Besoro pelos próprios indígenas”. Sendo assim, no decorrer do tempo, confinados na
missão, os indígenas não eram mais falantes de suas línguas originárias, adequando-se ao idioma
oficial imposto nas missões, elemento da cultura espanhola.
A Missão dos Chiquitos contribuiu de certa forma para a proteção dos indígenas frente ao
mercado escravagista, mas por outro lado o que ocorreu foi uma tentativa de promover um etnocídio
com proporções maiores ou menores quanto aos saberes ancestrais daquelas etnias aldeadas nos
espaços pluriétnicos segundo uma “política da destribalização”, conforme esclarece Duarte (2014).
Percebemos o quanto a cultura indígena fora então desrespeitada pelos não indígenas naquele
contexto reducional quanto aos seus saberes históricos e culturais.
Também havia um projeto político direcionado às crianças nesse período. Elas não eram
ignoradas no contexto missional, mas concebidas como homens em evolução que no futuro
poderiam contribuir para o desenvolvimento da nação. Sobre isso, Grando (2004, p. 77) ressalta:
As crianças eram ensinadas desde muito pequenas nos moldes religiosos que refletiam a
cultura cristã europeia: as meninas deveriam ser mulheres delicadas e aprenderiam a bordar, a
costurar e a cuidar da casa, pois assim seriam possuidoras de todas as virtudes de uma boa mãe e
esposa. Os meninos, por outro lado, aprendiam as técnicas do trabalho no campo para ser o provedor
84
da família. Conforme Duarte (2014, p. 53), “[...] além de priorizar a fé e a moral ocidental na
conversão das crianças, [essa forma de administração] consistiu em um rígido sistema disciplinar,
premiações por desempenho, negação da sua origem, bem como a preparação para o trabalho como
mão de obra”.
Em 1767 os jesuítas foram expulsos da República da Bolívia, que estava sob o domínio da
coroa espanhola e, após sua saída, as missões passaram a ser administradas pelo governo colonial,
“[...] o que significou na prática uma ruptura com os padrões sociais, econômicos e organizacionais
anteriormente estabelecidos” (DUARTE, 2014, p. 50).
Após o período jesuítico, houve muitos conflitos no interior das missões: as discórdias
eram constantes e muitas vezes resultavam em homicídios. Além disso, o alto índice de moléstias
também contribuiu para a fuga dos indígenas rumo a um novo futuro. De acordo com Puhl (2011),
alguns deles retornavam para sua parentela e, ainda residentes em seus antigos territórios
tradicionais, cruzavam a fronteira, os limites geográficos firmados entre Espanha e Portugal. Até
hoje, considera-se que “[...] as comunidades Chiquitanas formam verdadeiras redes de grupos
sociais que se comunicam intensamente em seus nós e ultrapassam as fronteiras criadas pelas
sociedades nacionais, mas também pelas fazendas” (PACINI, 2012, p. 21).
Em 1850, o baixo índice populacional das missões decorrente de diversos fatores, como os
mencionados, concorreu para o encerramento definitivo dos trabalhos missionários na Bolívia.
Assim, “[...] muitos indígenas passaram a trabalhar em troca de comida e aguardente”
(BORTOLETTO, 2007, p. 84) e sob condições de vida precárias. Pela vertente histórica, é possível
afirmar que a bebida alcoólica foi introjetada na cultura chiquitana como forma de poder e
dominação exercida pelo regime denominado “encomiendas”, que era legalizado na colônia
espanhola e pelo qual os indígenas eram explorados e sofriam maus-tratos exercidos pelo seu
“encarregado”, agente que fiscalizava o trabalho indígena. Entretanto, percebe-se ainda nos dias
atuais o predomínio do alcoolismo entre os chiquitanos: a pinga ou “corotinho13” é um item
indispensável na compra do mês de algumas famílias.
O álcool então, na cultura chiquitana, pode ser considerado um dos rastros decorrentes do
contato interétnico, o que nos:
13
Aguardente comercializada em pequenos barris de plástico, bebida muito apreciada entre a maioria dos chiquitanos.
85
Os chiquitanos também fazem uso da chicha, uma bebida fermentada com teor alcoólico
muito consumida entre eles nos festejos carnavalescos. Ela produz alegria e euforia para participar
das danças e das brincadeiras que abrem a festa ritualística e é originária do império Inca (século
XIII), produzida e ingerida pelos grupos nativos da América Latina e Cordilheira dos Andes.
A alegria estabelece troca e aliança entre seres humanos e não humanos, que se
afetam e compartilham substâncias. Alegrar é dançar, beber chicha, rir e brincar
com os afins. A ação ritual inverte e altera as posições ocupadas pelos humanos;
dessa maneira, confunde os diferentes seres e, ainda, produz força xamânica
criativa, que espanta o medo da morte, das doenças e dos seres transformados
(SILVA, 2015, p. 19).
14
A Guerra do Chaco é considerada o maior e mais sangrento conflito armado da América Latina no século XX, sendo a
primeira guerra latino-americana a utilizar aviões e bateria aérea, e a Bolívia o primeiro país a utilizar esse poder contra
outra nação latino-americana. O Paraguai, então um dos países mais pobres do mundo, não contava com artilharia,
tampouco força aérea, mesmo assim venceu a guerra. A assinatura do tratado que pôs fim ao conflito, ainda em 1938,
deu ao Paraguai uma área 120 mil km² no norte do país. Disponível em:
https://suldamerica.wordpress.com/2010/04/05/a-guerra-do-chaco-entre-bolivia-e-paraguai-1932-1935/. Acesso em: 23
jun 2016.
86
O que fica evidente nos estudos de Puhl (2011), Pacini (2012) e José da Silva (2009) sobre
os chiquitanos é que eles foram recrutados de diversos territórios tradicionais pelos jesuítas e foram
de certa forma um empecilho para as conquistas coloniais, haja vista que, como eles, muitas etnias
defendiam seus espaços sagrados travando guerras sangrentas com seus adversários que
covardemente faziam uso da pólvora, o que resultava na maioria das vezes na posse territorial a
favor das dominações bélicas. Após a saída dos religiosos, muitos fatores “[...] envolveram o
processo histórico de migração e marcaram a presença dos Camba-Chiquitano (autodenominação do
87
grupo) na fronteira Brasil-Bolívia” (JOSÉ DA SILVA, 2009, p. 07), finalizando os trabalhos nas
missões, já que o cotidiano missionário não era favorável aos grupos indígenas pelas condições
sanitárias e de maus-tratos disseminados pelos governantes espanhóis.
Uma parte dos indígenas, sobretudo os que estavam há pouco tempo nas missões, se
retirou para as matas e tentou retomar seu antigo modo de vida; outros
permaneceram e trataram de manter a ordem e os costumes que haviam adotado nas
reduções. Os conflitos entre os novos sacerdotes e os funcionários, sua
incapacidade de administrar as reduções, a intensiva exploração dos indígenas por
autoridades religiosas e leigas, o recrutamento dos habitantes das missões pelos
criadores de gado como mão-de-obra nas estâncias e a resistência daqueles contra a
nova ordem resultou na paulatina decadência do sistema reducional que finalmente
foi abolido, na década de 1850 (JOSÉ DA SILVA, 2009, p. 134).
Sobre o território mato-grossense, conforme Ferreira (2001), em 1823 Mato Grosso deixa
de ser capitania e passa a ser denominada Província, cujos presidentes deveriam ser nomeados pelo
Imperador Dom Pedro I. Em relação à administração da época, o Diretório Geral dos Índios, criado
em 1757, era um órgão encarregado de gerir a política indigenista no Brasil, combatendo o trabalho
escravo indígena e o preconceito racial.
Segundo documentos históricos desse órgão em Cuiabá, observamos que ele subsidiava os
serviços de catequese realizados pelos padres, que solicitavam desde cera para a igreja até papéis e
outros materiais para as aulas ministradas aos pequenos índios. O ferro e o aço para o conserto das
ferramentas dos índios também eram uma solicitação bem frequente de acordo com os documentos
pesquisados.
Conforme um desses escritos, 15 no dia 13 de março de 1872, o então secretário do governo
da Província de Mato Grosso, José Dinis Villas Boas, enviou um ofício ao Diretor Geral dos Índios
Antonio Luis Brandão noticiando a presença dos chiquitanos na região do Rio Guaporé:
Além das mencionadas nações existentes em Casalvasco uns 60 índios restam das
antigas emigrações das povoações da Provincia Boliviana de Chiquitos – Cultivão a
terra, fião e tecem algodão, ajustão-se para diversos serviços e alguns estão
empregados como vaqueiros na fazenda Nacional, ali existente. As informações que
acabo de transcrever posso que a muitos despeitos vagos e incompletos, parecem-
me com tudo servir para dar huma ideia geral dos indígenas que povoão a
provincial (DIRETORIA GERAL DOS ÍNDIOS, 1872, p. 90).
15
O arquivo Diretoria Geral dos Índios (1860-1873) foi consultado no Arquivo Público de Cuiabá-MT no dia 28 de
janeiro de 2016 às 14h45.
88
os fazendeiros da região. Eles foram obrigados a se adaptarem à nova realidade imposta pela frente
capitalista e, para terem êxito, foi necessária a reorganização de seus modos tradicionais de vida.
Ainda de acordo com a história de fundação de Mato Grosso, em 1650, foram descobertas
pelas bandeiras paulistas novas zonas auríferas na região do Rio Guaporé e, por isso, muitos
indígenas foram escravos nas minas. O ofício principal dos bandeirantes era “[...] aprisionar índios
não somente para utilizá-los nos seus trabalhos, mas, principalmente, para vendê-los como mão de
obra para as capitanias” (SIQUEIRA, 2009, p. 04). Nesse momento histórico, a cidade de Mato
Grosso (atual Vila Bela da Santíssima Trindade) atraiu muitos bandeirantes na ambição de
acumularem riquezas, sendo que a exploração do ouro nessa região fronteiriça se estendeu até o
final do século XIX; a partir daí, a extração da borracha atingiu seu auge.
Além de movimentar a economia extrativista com sua força de trabalho nos seringais da
fronteira Brasil-Bolívia, conforme os estudos de Meireles (1989), os chiquitanos eram utilizados
como marcadores territoriais, o que impedia as possíveis invasões. Por isso, muitos deles se fixaram
junto aos Destacamentos do Exército Brasileiro nas fronteiras Brasil-Bolívia enquanto outras
comunidades já estavam instaladas ao longo da fronteira brasileira. Duarte (2014) documentou
também a presença dos chiquitanos no Exército Brasileiro no 2º BEFRON (2º Batalhão de
Fronteira) na década de 1950. Isso porque situações diversas contribuíram para que os indígenas
fossem “[...] incorporados ao corpo militar ou nas relações de trabalho estabelecidas na construção
dos destacamentos de fronteira” (DUARTE, 2014, p. 103).
Também o Projeto Getulista intitulado a “Marcha para o Oeste” iniciado em 1938 exerceu
um impacto sobre esses indígenas em Mato Grosso. A ação objetivava estimular o progresso e a
ocupação de regiões consideradas com baixo índice populacional e “vazias”. De acordo com
Calonga (2015, p. 127), “[...] o projeto governamental incluía a construção de escolas, hospitais,
estradas, ferrovias e aeroportos no interior do Brasil, com o objetivo de integrar e consolidar a
nação, de acordo com as diretrizes ideológicas do Estado Novo (1937-1945)”.
Diante da finalidade de tal empreitada, entendemos que um dos resultados da Marcha para
o Oeste proposta pelo governo Getúlio Vargas iniciada a partir de 1938 foi o grande número de
indígenas chiquitanos evadidos para as cidades de Cáceres, Pontes e Lacerda, Vila Bela da
Santíssima Trindade e Porto Esperidião para viver nos centros urbanos. Conforme Pacini (2012),
89
muitos ainda permanecem até hoje encurralados nos extremos das grandes fazendas, prestando
serviços como peões ou retireiros nas propriedades, já que eles apresentam muita habilidade no
manejo pecuário.
Evidencia-se o quanto os processos políticos, sociais e culturais interferiram nos modos de
vida dos chiquitanos, desde a sua formação religiosa até as práticas culturais que foram sendo aos
poucos ressignificadas devido ao intercâmbio cultural estabelecido entre os diferentes povos em seu
percurso histórico. A origem desse povo é marcada por lutas, pobreza, exploração trabalhista e
perseverança, e prova disso são as lutas travadas na atualidade com os latifundiários por conta de
suas terras que foram usurpadas ilegalmente pelo projeto colonizador das Américas. Bortoletto
(2007, p. 87) acrescenta que “[...] a década de 1970 parece ter sido marcada pela apropriação das
terras indígenas para dar espaço à implantação de fazendas e projetos de desenvolvimento”, no caso
a Marcha para o Oeste.
identidade chiquitana é dinâmica, pois é (re) elaborada na relação com o outro a partir das relações
sociais estabelecidas. Conforme os aspectos históricos dessa etnia, notamos o quanto o “outro”
exerce um papel importante na constituição de sua identidade étnica.
A identidade não é algo dado, que se possa verificar, mas uma condição forjada a
partir de determinados elementos históricos e culturais, sua eficácia enquanto fator
que instrumentaliza a ação é momentânea e será tanto maior quanto mais estiver
associada a uma dimensão emocional da vida social (NOVAES, 1993, p. 25).
Pela perspectiva de Novaes (1993), podemos avaliar como a identidade dos chiquitanos foi
sendo ressignificada ao longo dos séculos conforme o contato interétnico, tendo em vista, por
exemplo, a influência do catolicismo em sua cultura (herança jesuíta). Para ilustrar tal afirmação,
podemos mencionar o curussé, que é uma manifestação cultural e parece ser constituída também por
influências das colônias espanholas, pois os personagens do rei, da rainha, do príncipe e da princesa
são destaques centrais na dança. Há também bandeiras durante o ato ritualístico com cores que
carregam simbologias distintas (PACINI, 2012, p. 328). As cores dessas bandeiras têm simbologias
chiquitanas distintas, como: a vermelha, que representa os Mártires e Pentecostes; a verde, o tempo
comum em que os Mártires e Pentecostes se encontram; a amarela, as Grandes Festas; o branco, o
Dia de Santos; a roxa, a Quaresma (a partir da terça-feira de carnaval) e finalmente a bandeira preta,
que significa a quarta-feira de cinzas.
Conforme esses sentidos e simbologias produzidos em território chiquitano, constamos que
a identidade desse povo vai sendo reelaborada no intercâmbio com outros povos, mas sempre
preservando suas raízes indígenas. As rezas, as romarias e o trabalho são práticas deixadas pelo
governo colonial e reelaborados conforme a cosmovisão chiquitana, pois estes são considerados
rituais que ligam o homem aos seres sobrenaturais e ao cosmos. De acordo com os estudos de
Queiroz (2013, p. 26), “[...] o trabalho na terra com a roça, a pesca, a coleta de frutos, nem sempre
são suficientes para a sobrevivência das famílias, especialmente quando seus territórios são
apropriados por fazendeiros, sitiantes e pelas novas organizações urbanas”. Na tentativa de driblar a
fome e a miséria, os chiquitanos desenvolvem suas atividades econômicas no interior da terra
indígena com a produção de artesanato, com o cultivo de pequenas plantações de grãos, frutas e
verduras e com a criação de animais de pequeno porte, produções que subsidiam o sustento de suas
famílias. É bem comum seu trabalho também com a pecuária nas grandes fazendas vizinhas.
91
2.4 A língua
Diante dessa afirmação, podemos entender que a situação linguística desse povo é
complexa porque, à medida que a língua apresenta uma baixa vitalidade no interior da comunidade,
vai ocorrendo sua paulatina extinção. Por isso, a implantação de políticas linguísticas de
revitalização da língua chiquitana é urgente, uma vez que os mais jovens não a utilizam mais nas
relações cotidianas. Alguns fatores contribuíram decisivamente para esse processo de apagamento
no território brasileiro:
A chegada da escola comunitária e diferenciada significou uma vitória desse povo que
lutou para conquistar um espaço de aprendizagem que lhe assegurasse sua identidade étnica,
seus direitos constitucionais e humanitários.
A relação da etnicidade deve estar em contínua sintonia com as ações educativas da escola
indígena ao considerarmos que cada grupo étnico determina suas próprias formas de organização
social e apresenta uma identidade diferenciada em relação aos demais grupos.
17
A Escola General Osório foi criada pelo Decreto 090/1974 inicialmente para atender os filhos dos militares e
fazendeiros da região. Era administrada pela Prefeitura Municipal de Porto Esperidião/MT.
94
A identidade e a territorialidade chiquitana estão muito ligadas tanto aos aspectos culturais
quanto aos acontecimentos históricos que marcaram suas conquistas. Para garantir legalmente seu
território tradicional, os chiquitanos tiveram que provar sua existência em terras brasileiras e sua
origem étnica, pois a mãe terra é a grande provedora de seus alimentos e dela é extraído o barro para
a produção e a venda de cerâmicas para sua subsistência.
Ainda conforme Moreira da Costa (2006), no ano de 1998, a FUNAI, em função dos
estudos de impacto ambiental do gasoduto Bolívia/Mato Grosso, compôs uma equipe técnica
indigenista coordenada pela antropóloga Joana Aparecida Fernandes para a identificação das
comunidades indígenas chiquitanas na fronteira brasileira.
Entretanto, Moreira da Costa (2004) já afirmara que na época em que ocorreram os estudos
ambientais os nativos não se identificavam pelo etnônimo chiquitano: eram invisíveis aos olhos do
95
Percebemos nas falas das lideranças e dos pais que a escola na aldeia é importante
para a valorização da cultura Chiquitano, para protegê-los das discriminações que
vêm sofrendo e afastá-los das influências da sociedade não indígena. Para eles, na
medida em que as crianças e os jovens passam por discriminação, passam a
desvalorizar a própria cultura, consequência dos intensos conflitos com a sociedade
não indígena, por conta da demarcação dos territórios tradicionais do Chiquitano
(QUEIROZ, 2013, p. 76).
Como visto, o protagonismo indígena se revela ao lutar e se fazer ouvir em meio a uma
sociedade que muitas vezes ignora os saberes desses povos no Brasil. A luta pela terra e por suas
raízes faz deles sociedades tradicionais que resistem aos desafios diários a que a comunidade não
indígena os expõe. A aldeia Central, por exemplo, dispõe de um posto de saúde que presta serviços
médicos e odontológicos à comunidade, mantido “[...] pela Secretaria Especial de Saúde Indígena
(SESAI) e [com os moradores] acompanhados por agentes de saúde” (SILVA, 2015, p. 58). Nessa
mesma aldeia, foi construído o Memorial Chiquitano, um grande salão onde são realizados rituais,
reuniões, missas e batizados da aldeia.
A aldeia Vila Nova Barbeicho, por sua vez, localizada nas proximidades do córrego
18
Nopetarsch, ainda luta para ser reconhecida como terra indígena. A FUNAI a reconhece como
comunidade indígena, porém a posse da terra ainda pertence à Fazenda São Pedro, que cerca a
comunidade com suas vastas pastagens.
18
Na época da seca é desse córrego que eles pegam água para suas atividades diárias e retiram o barro para a confecção
de suas cerâmicas.
96
Podemos assim depreender a intensidade das pressões políticas exercidas pelos fazendeiros
e poderes públicos sobre o povo chiquitano contra direitos aos territórios tradicionais já adquiridos
que lhes são arrancados não raras vezes como uma forma de retaliação. Felizmente, de acordo com a
matéria do site www.pib.socioambiental.com.br veiculada no dia 05 de fevereiro de 2016, o
Ministério Público Federal em Cáceres (MPF-MT) recomendou à FUNAI providências para a
constituição de Grupo Técnico multidisciplinar de demarcação do território tradicional dos
indígenas chiquitano da Aldeia Vila Nova Barbecho. A medida visa combater a vulnerabilidade19
territorial, uma vez que nessa situação esse povo sofre ameaças constantes da população
circunvizinha, que o pressiona para renunciar a suas terras junto ao Poder Público.
Conforme Pacini (2012), a busca dos chiquitanos pelo direito territorial só foi possível
depois que eles assumiram politicamente sua identidade étnica e começaram a bradar em busca do
que lhes foi negado pela sociedade não indígena por vários séculos: sua indianidade. Tanto lutaram
por seus direitos e lutaram junto às autoridades competentes que suas vozes foram ouvidas desde a
Prefeitura de Porto Esperidião até o Palácio do Planalto em Brasília. De invisíveis passaram a
visíveis e reconhecidos pelo Estado Brasileiro, de bolivianos a brasileiros (já que até sua
nacionalidade lhes era negada), de “bugres” a povo chiquitano.
2.7 Os rituais
A antropóloga Verone Cristina da Silva (2015) salienta que o povo chiquitano realiza
seus rituais com diferentes finalidades dentro da esfera cosmológica, práticas que também
fortalecem o jeito de ser e de viver desse povo. O rito é um costume, uma prática cultural
compartilhada por sujeitos que a têm incorporado em suas ações por normas coletivamente
estabelecidas.
O rito refere-se, pois, à ordem prescrita, à ordem do cosmo, à ordem das relações
entre deuses e seres humanos e dos seres humanos entre si. Reporta-se ao que rima
e ao ritmo da vida, à harmonia restauradora, à junção, às relações entre as partes e o
todo, ao fluir, ao movimento, à vida acontecendo. A busca pela ordem e o
movimento são elementos constitutivos dos rituais (VILHENA, 2005, p. 21).
Nesse aspecto, o ato batismal na cultura chiquitana, por exemplo, é um ato simbólico que
expressa as crenças do grupo a que a criança pertence. Conforme a tradição, a criança só se tornará
gente e filho (a) de Deus após passar por esse rito de iniciação. Lopes da Silva (1995, p. 320)
19
De acordo com a Procuradora da República, Ana Carolina Haliuc Bragança, atualmente os chiquitanos da Aldeia Vila
Nova Barbecho possuem apenas 25 hectares de terra, "onde se espremem com suas famílias, sofrendo pressões
fundiárias de proprietários e posseiros de terras do entorno, ameaças à vida, impedimentos e barreiras ao exercício de
seu modo de viver tradicional e de acesso a recursos naturais, inclusive água". Disponível em:
http://pib.socioambiental.org. Acesso em: 01 jul 2016.
97
ressalta que podemos pensar tal mito por duas vias reflexivas: a primeira o considera um dos “[...]
produtos da reflexão humana sobre o mundo (e, nesta medida, como algo ‘universal’) e a segunda
como criações originais, em suas especifícidades, de sociedades e culturas particulares”. O mito é a
crença em algo em que se acredita e se cultiva, pois reflete o mundo de sentidos e a história de uma
determinada cultura. Lopes da Silva (1995, p. 324) o define como “[...] um nível específico de
linguagem, uma maneira especial de pensar e de expressar categorias, conceitos, imagens, noções
articuladas em histórias cujos episódios se pode facilmente visualizar”.
Entre os chiquitanos, há ainda os rituais festivos, que têm apoio em suas tradições e pelos
quais se vê um motivo para celebrarem com alegria e festa. No Carnaval, o curussé é considerado
um ritual festivo, pois agrega elementos cristãos, porém com outras redefinições conforme a
cosmologia indígena. Essa manifestação é um marcador étnico-cultural, apresentando elementos
históricos e culturais. Essa dança é animada por homens, mulheres, crianças e músicos.
Os Chiquitanos vivem o curussé ou carnaval como uma festa religiosa porque foi
iniciativa de Jesus este tempo de festa, antes da Paixão para alegrar os seus
discípulos. Assim os jesuítas “instituíram” o Carnaval e a Quaresma como um
tempo de preparação para o mistério Pascal. O padre ou o maestro de capilla ou o
sacristão, como Jesus fez ao inaugurar a festa de carnaval, entrega as bandeiras do
ano litúrgico (PACINI, 2012, p. 523).
20
No catolicismo, a Quaresma é momento de reflexão e aperfeiçoamento espiritual, sempre rememorando o calvário de
Jesus.
21
São feitos de madeira do cedro, tamboril ou imburana e encapados com peles de animais (veado-mateiro e porco-do-
mato, conhecido como cateto).
22
Feita de taboca e furada no fogo.
98
Em relação à prática ritualística do Compadrio, por outro lado, Silva (2015) destaca que
essa é uma relação de aliança estabelecida entre os pares na comunidade e pelo qual um casal é
escolhido e convidado para batizar o filho de outra família. A relação de compadrio permeia os
vários rituais praticados na aldeia, como: ato batismal, primeira comunhão, crisma, casamento,
batismo de São João e outros. Estes se manifestam em ritos de passagem para a vida adulta,
momento em que o sujeito supera uma etapa do desenvolvimento humano e social e inicia uma nova
fase em sua vida.
Há, contudo, variação na maneira de criar a relação de compadrio. Isto pode ser
observado quando escolhem padrinhos e/ou madrinhas para o rito de consagração
da criança à Mãe de Jesus, primeira comunhão, crisma (confirmação do batismo) e
casamento; se, por um lado, essas cerimônias se identificam com os sacramentos da
igreja Católica, por outro, se afeiçoam aos ritos de passagem para a vida adulta.
Todavia, há outros modos de estabelecer a relação, e nem sempre o compadrio se
forma através desses “atos cristãos”, acontece ainda através do rito de fogueira ou
de São João Batista; de santo; de instrumentos musicais; de boneca; de respeito; e
no batismo de casa (SILVA, 2015, p. 110).
Assim, essa relação se estende pelo resto da vida: na falta dos pais biológicos, a madrinha e
o padrinho assumem a responsabilidade sobre o afilhado. São alianças estabelecidas e renovadas por
outro ritual: a mesiada.
Há um rito realizado pelos Chiquitano chamado mesiada, que ocorre logo após as
cerimônias em que se firmam as relações de compadrio, sendo atualizada e
festejada no período da Páscoa, quando os pais convidam seus compadres para
almoçar ou jantar em sua casa. [...] O sentido de mesiada é “fazer uma mesa”,
“fazer um banquete”, cujo sinônimo seria o de alimentar os compadres, que devem
se sentar à mesa e serem servidos, dessa maneira reafirmam o respeito. Quem serve
o compadre é aquele que entregou o filho para que fosse por ele batizado (SILVA,
2015, p. 130).
Normalmente, esse ritual ocorre na época da Páscoa, momento em que os compadres vão
ser servidos por um bom banquete na casa de seu afilhado. Relações como essas permitem fortalecer
a unidade no grupo, tornando todos uma grande família sustentada pelo amor fraternal.
Além disso, o padre jesuíta Aloir Pacini (2012) explica que a Quaresma é marcada por um
período em que ocorrem muitas rezas e procissões nas aldeias chiquitanas: os indígenas atravessam
as fronteiras geográficas durante dias com as procissões com a finalidade de visitarem as
comunidades na Bolívia e no Brasil. Muitas famílias elegem um santo para serem devotos, sendo
Santa Ana a predileta entre eles. O autor, durante seu doutoramento, acompanhou e registrou uma
dessas procissões a Santa Ana que partia da comunidade de mesmo nome, de San Javierito e de San
99
Ignacio (Bolívia) até a comunidade Nossa Senhora Aparecida, Comunidade Santa Luzia, Acorizal,
Fazendinha e Vila Nova Barbeicho (Brasil). A Chiquitania está interligada pelo elo da cosmologia
chiquitana e é independente de nacionalidade, sendo que os indígenas fazem desses rituais
momentos de garantir “[...] a continuidade religiosa, cultural e étnica Chiquitana” (PACINI, 2012, p.
262).
Dissertar sobre a infância chiquitana é interessante para o campo científico, pois isso
possibilita apresentar reflexões sobre a maneira com que as crianças participam e contribuem para a
organização social de seu grupo étnico. Ademais, conhecer o lugar social delas na cosmologia
chiquitana é pertinente porque tal prática nos permite compreender como elas dão novos sentidos às
suas vivências e de que maneira são tratadas no interior dessa comunidade indígena.
Em resposta a lutas políticas e ideológicas, a criança chiquitana nasce e cresce alinhada aos
códigos de seu grupo, imersa nessas problemáticas que acabam provocando ressignificações em sua
identidade. Tassinari (2011, p. 10) ressalta que as culturas infantis têm uma dinâmica própria,
muitas vezes silenciada pela sociedade; entretanto, elas “[...] são elaboradas com base na cultura
adulta, porém com um repertório próprio das crianças”.
De acordo com as narrativas Chiquitano logo que uma criança nasce é classificada
de “criatura” sem nome e sem dono, condição, portanto, de não humanidade –
tsauka (filho dos montes, bárbaro, não batizado, sem dono). E, após o rito batismal,
este ser é transformado e recebe um nome, torna-se gente, adquire a condição de
tsaika (filho de Deus) e dessa maneira define-se a quem pertencerá a “criatura”,
quem será o seu dono (SILVA, 2015, p. 79-80).
Vemos então que, ao nascer, a criança chiquitana ainda não possui natureza humana: isso
só será possível após um integrante do grupo batizá-la e estabelecer com seus pais a relação de
compadrio, que “[...] é um modo de relação Chiquitano construído por meio de diferentes ritos; [e]
produz regras de nominação, de respeito, rede de trocas” (SILVA, 2015, p. 93). Com esse ritual, a
criança é apresentada a Deus e recebe a natureza de homem e de filho de Deus. Se assim não fosse,
seria como uma criatura selvagem.
A partir dessa situação específica em relação a esses pequenos, podemos dialogar com as
contribuições de Souza (1986) quando esta relata sobre como a igreja operou no passado e ainda age
no sistema cultural das sociedades indígenas a partir de discursos, credos, mitos e ritos, modos como
100
vai construindo o imaginário social condizente com seus padrões entre o bem e o mal, o santo e o
profano. A autora ressalta que o Brasil colonial nasceu sobre três signos:
Após o nascimento do bebê, o curandeiro faz o sinal da cruz em sua testa e sopra os
seus olhinhos, a fim de acordá-lo para o mundo dos vivos e protegê-lo de doenças
que podem afetá-lo, quando visto pela primeira vez, inclusive pela mãe, pois o
olhar da parturiente é classificado de kosüursch (forte), constituído de um poder que
provoca alterações naquilo que vê (SILVA, 2015, p. 97-98).
A mãe da criança também exercerá um papel muito importante nesse momento: após ser
acordada para a vida com o sopro do curandeiro em seus olhos, a criança chiquitana receberá o olhar
vitalizante dela, que terá a função de torná-la forte o suficiente para enfrentar as tribulações diárias
da vida.
Nessa perspectiva, a infância chiquitana se orienta por diferentes simbologias difundidas
desde o século XVI pelas missões jesuítas e também pela estreita relação com a biodiversidade, que
é a grande provedora da vida. A religião exerce então forte influência na organização social desse
grupo étnico, desde a construção social da criança até o ritual do açoitamento: suas práticas e
cosmovisão estão alinhados aos “fundamentos de Deus”.
Os chiquitanos, dessa forma, aos poucos transitam do espaço do silenciamento cultural à
visibilidade indígena, marcados por seus múltiplos modos de se organizar, viver e interagir com a
sociedade não indígena. Prova disso é a sua presença maciça em quase todos os eventos promovidos
na cidade: eles marcam sua pertença à sua etnia e cordialmente apresentam sua cultura por meio de
danças, artesanato, rezas e vestimentas.
101
Conforme o autor, a catequização sempre foi vista como alternativa para compensar a
racionalidade primitiva dos povos subdesenvolvidos e práticas como o relativismo cultural eram
pouco evidenciadas naqueles contextos. Já no século XXI, notamos que o imaginário social está
mais sensível à diversidade étnico-racial e ao respeito às diferenças em relação a outros tempos.
Pela historiografia brasileira, por exemplo, podemos constatar que nem sempre a aceitação
do outro foi uma prática incorporada pelos grupos sociais dominantes na época da fundação do
Brasil Colonial, quando muitos povos foram extintos pela prática do genocídio. Laura de Mello e
Souza (1986), em seu livro O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no
Brasil colonial, descreve como predominava o imaginário social daquela época, que se orientava
pelas imagens dos índios como seres monstruosos, sem alma, animais e demônios.
A percepção dos índios como uma outra humanidade, como animais e como
demônios corresponde a estes três níveis possíveis através dos quais se expressaram
as condições europeias acerca dos homens americanos. Não seguem uma ordenação
cronológica – os índios não foram primeiramente percebidos como outra
humanidade e depois como animais – mas se alternam ao mesmo tempo. Em
102
Embora no meio social, muitas vezes, os mais velhos sejam considerados detentores de
pouca utilidade para os mais jovens e se ignore que eles tenham muito a oferecer às novas gerações,
compete a eles rememorar toda uma história, seja ela de caráter privado ou público, e seus saberes
transcendem as temporalidades e espacialidades da vida. Assim sendo, momentos que foram
importantes e significativos em suas vivências serão sempre evocados com prazer e entusiasmo.
Acerca da legislação que trata dos velhos, a Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, que
institui o Estatuto do Idoso, em seu artigo 21 inciso 2º estabelece que “[...] os idosos participarão das
comemorações de caráter cívico ou cultural, para transmissão de conhecimentos e vivências às
demais gerações, no sentido da preservação da memória e da identidade cultural”. Por esse viés
jurídico, o reconhecimento de seus saberes contribui para a preservação da memória social, que deve
se efetivada por meio das interações entre os mais velhos e as atuais gerações.
[...] A escola – como diversas outras formas de ensino – faz parte do sistema
educacional de uma sociedade (lembrando que, nenhuma sociedade, por mais níveis
de ensino que possua, educa seus filhos apenas na escola). A educação das crianças,
sua socialização na comunidade, se faz na família, pelo ensinamento dos pais, pelas
palavras e histórias dos mais velhos e por muitos outros meios que a comunidade
possua, inclusive pela escola (ou seja, também pela escola) (D’ANGELIS, 2001, p.
37).
A iniciação cultural e social das crianças ocorre primeiramente na esfera familiar por meio
da transmissão dos conhecimentos e práticas culturais de seu povo. E os anciães exercem um papel
muito importante nessa etapa, pois são depositários da memória do grupo social a que pertencem.
Infelizmente, na sociedade não indígena, esse processo de transmissão cultural não acontece dessa
forma, pois há poucas ações do poder público para garantir que os saberes dos velhos sejam
repassados às gerações posteriores como forma de preservação de diferentes culturas e identidades.
Diante do exposto, a escola, como agente de transformação, é uma das responsáveis pela
valorização dos saberes dos(as) velhos(as) no espaço escolar no que se refere à cultura de um grupo
social, sua culinária, artesanato, música, mito, entre outros. Além disso, respeitar essa presença e de
seus saberes nas práticas pedagógicas contribui também para o processo de ensino-aprendizagem, já
que conhecimentos científicos serão ampliados a partir de saberes tradicionais.
O(a) velho(a) indígena também é um sujeito social que dispõe de ricos conhecimentos
culturais sobre sua etnia, ritos, tradições e técnicas originais ao realizar determinadas atividades no
interior da aldeia, como caçar e pescar, por exemplo. Dessa maneira, ele detém os saberes ancestrais
de seu povo, sendo depositário de histórias tradicionais que orientam sua cosmovisão grupal.
Conforme Lago (2007, p. 12):
Ao narrar as histórias de seu povo a outras gerações, os mais velhos contribuem para a
valorização de saberes ancestrais e estabelecem nessa dialética entre receptor e interlocutor a
construção de novos aprendizados. Muitos ocupam ainda posições de autoridade no interior das
comunidades, como os caciques e os professores, que exercem muita influência no poder de decisão
das sociedades indígenas.
No grupo étnico chiquitano os anciãos também possuem sua representatividade no interior
das relações sociais: eles são um dos únicos falantes da língua materna na aldeia, já que os demais
falam apenas português ou espanhol. Segundo as linguistas Santana e Dunck-Cintra (2009, p. 30-
31), “[...] a língua chiquitano naquelas comunidades é considerada ‘moribunda’, pois sobrevive
105
apenas na memória de poucos anciãos”. Assim, a língua desse povo, como um marcador étnico,
ainda sobrevive porque os velhos a praticam em momentos de rezas e rituais.
Em relação a esse panorama, há um projeto de revitalização da língua chiquitano
desenvolvido em conjunto com a escola da aldeia Vila Nova Barbeicho, que valoriza e contempla os
saberes linguísticos dos anciãos dessa etnia com a finalidade de que a língua mãe venha a ser
praticada no cotidiano da aldeia.
[Eles] reconhecem como líder o Sr. Inácio Tomichá, de 85 anos. Ele é casado com
Dona Lourença e tem uma família numerosa, sendo que a maioria dos habitantes de
Acorizal são seus descendentes. Seu Inácio diz que se lembra da língua Chiquitano
e tem ajudado na escola e tentado, agora, ensiná-la aos netos e bisnetos. Outra
figura conhecedora da língua Chiquitano é Dona Rosália Lopes, uma senhora de 72
anos, sorridente e muito conversadeira. [...] Em Fazendinha, é reconhecido como
líder Sr. Lourenço Rupe, de 70 anos, que se apresenta como líder espiritual da
comunidade. É ele quem organiza as festas de santo (SANTANA; DUNCK-
CINTRA, 2009, p. 25).
Nessa perspectiva, os(as) velhos(as) têm um papel social muito importante na comunidade,
pois são preservadores de sua língua materna e, no âmbito escolar, atuam para ensiná-la aos
professores e aos alunos na intenção de resguardá-la, amenizando os riscos de sua extinção. Eles
também são aqueles que preservam as tradições religiosas no cotidiano do grupo, como pela
organização das festas aos santos, terços, romarias ou até mesmo de seus rituais indígenas. A breve
prece pela manhã e o acender das velas ao santo devoto, por exemplo, são algumas ações que os
diferenciam dos demais sujeitos indígenas. Prova disso é a afirmação de Pacini (2012, p. 548) ao
ressaltar: “impressionou-me essa religiosidade marcada na maneira de agir dos Chiquitanos,
principalmente os mais idosos”. Notamos nos hábitos religiosos dessa etnia também o legado
civilizador deixado pelos jesuítas a partir do século XVII nas Missões dos Chiquitos, porém
vivenciados conforme a cosmologia chiquitana.
A partir do contato interétnico, os códigos culturais vão sendo ressignificados no cotidiano
indígena e novos sentidos vão se articulando com as vivências. Os(as) velhos(as) nessa dinâmica
atuam como “proprietários” máximos da cultura local, pelas suas manifestações religiosas ou
políticas. Eles sempre estão à frente das organizações das festas, danças e rituais, como o curussé,
que exige a confecção de instrumentos fabricados pelo próprio grupo (maioria anciãos) de maneira
artesanal.
Aos poucos chego a mostrar que a música tem a ver com a dança porque é
harmonia e ritmo. Por isso vamos conhecer melhor o curussé como um sinal
diacrítico das manifestações chiquitanas. Os Chiquitanos vivem o curussé ou
carnaval como uma festa religiosa porque foi iniciativa de Jesus este tempo de
106
O curussé é uma manifestação que se constitui por elementos culturais dos chiquitanos e
traços religiosos deixados pelos jesuítas, como a veneração dedicada aos santos, que é vinculada à
euforia, ao ritmo e à alegria do ato. Os idosos geralmente são os tocadores que entoam os ritmos da
dança e os festeiros escolhidos para sediar a festa em sua casa. Nota-se que a presença deles nas
vivências sociais marca seu pertencimento étnico e lhes imputa o dever de assegurarem a
manutenção dos códigos culturais de seu povo.
Podemos compreender, pela sua permanência em seus territórios tradicionais e pelo cultivo
de pequenas plantações para sua subsistência nas aldeias, que os velhos exercem também a função
de demarcadores do território brasileiro, tendo em vista que uma parcela bem considerável dos mais
jovens se desloca para os centros urbanos em busca de empregos ou ingressa em cursos de
graduação em universidades públicas23 distantes de suas terras.
Conforme Meireles (1989), em seu livro Guardiães da fronteira: rio Guaporé, século
XVIII, os chiquitanos são as sentinelas das fronteiras brasileiras e da história de seu povo,
rememorando situações que foram muito significativas para o processo de demarcação e para a
posse de seu território tradicional. Eles habitam terras que eles mesmos ajudaram a consolidar,
simplesmente por sua permanência nas fronteiras e pela defesa de seu território tradicional contra
possíveis invasores que objetivavam desbravar e alargar suas fronteiras geográficas.
23
Grande parte dos jovens chiquitanos ingressam em cursos oferecidos pela Universidade Federal de Mato
Grosso (UFMT) e pela Universidade Estadual de Mato Grosso (UNEMAT – Campus Barra do Bugre), que
oferecem vagas em diferentes cursos de formação de professores indígenas, como: Pedagogia Intercultural e
cursos de Licenciaturas Interculturais Específicas em: Ciências Sociais; Ciências da Natureza e Matemática e
Línguas, Artes e Literatura.
107
3.2 Uma proposta de rememoração das concepções de infância vividas pelos chiquitanos
De acordo com Souza (2004), pesquisas que trazem a história de vida e as narrativas de
sujeitos como fontes de conhecimentos estão cada vez mais comuns no campo acadêmico.
Atualmente, possui solo fértil no campo da profissionalização docente, o que se ratifica dados os
diversos estudos que têm sido publicados e que aliam identidade profissional e a história de si como
fundamentais para a formação social, profissional e humana.
Para Abrahão (2003), por outro lado, essa metodologia enfatiza a valorização da história
de vida do outro. Porém, segundo ela, devemos estar atentos ao seu uso de forma desprovida de
cientificidade. Nesse sentido, considera-se imprescindível nesse trabalho historiográfico que as
narrativas sejam tratadas e analisadas conforme aspectos teórico-metodológicos eleitos pelo
pesquisador. Sendo assim, o estudo das história de vidas não é puramente a transcrição da narrativa
do entrevistado, mas um processo que analisa o fenômeno estudado a partir de fontes orais.
Para alcançar bons resultados no trabalho biográfico, por exemplo, é essencial estabelecer
um ambiente de confiança e respeito entre entrevistado e entrevistador já que a escuta, os olhares, os
gestos, tudo tem um sentido e produz significados na “relação intersubjetiva” (GUSSI, 2008, p. 14)
entre ambos.
Bosi (1994), por sua vez, evidencia uma problemática que dificulta a troca de saberes na
nossa sociedade: “[...] por que decaiu a arte de contar histórias? Talvez porque tenha decaído a arte
de trocar experiências. A experiência que passa de boca em boca e que o mundo da técnica
desorienta” (BOSI, 1994, p. 84). Notamos assim que a tradição oral de narrar histórias e de
rememorar épocas passadas tem sido substituída aos poucos pela cultura escrita, pelo novo estilo de
vida social subjacente à evolução tecnológica. Esses são alguns dos prejuízos que germinam no solo
de uma sociedade capitalista, em que se priorizam os lucros e se invisibiliza o ser humano como
sujeito histórico e social.
Ao observarmos a correria do dia a dia do homem moderno entre tantas funções e papéis
sociais exercidos, percebemos como a prática de ouvir está cada vez mais rara. Até mesmo na esfera
familiar vemos a relação mãe/pai/filho sendo midiatizada pela tecnologia desenfreada (TVs,
videogames, celulares, tablets, entre outros). O outro deixou de ser importante quando dispomos de
novas alternativas que nos trazem prazer e euforia. Inconscientemente, estamos substituindo
relações humanas por interações com aparelhos/máquinas e percebemos também que nesses dias
não se cultivam emoções, afetos e respeito mútuo com entes queridos, muito menos com aqueles
considerados estranhos ao nosso convívio social.
No tempo presente, no mundo marcado pela cultura virtual e pela velocidade muitas
vezes descartável das informações, tendem a desaparecer os narradores
espontâneos, aqueles que fazem das lembranças, convertidas em casos, lastros de
pertencimento e sociabilidade. Nessa dinâmica de velocidade incontida,
109
modificam seu comportamento, colocando-o sob seu controle. Tem sido dito que a
verdadeira essência da civilização consiste na construção propositada de
monumentos de forma a não esquecer fatos históricos. [...] Temos manifestações do
aspecto mais fundamental e característico que distingue a memória humana da
memória dos animais (VYGOTSKY, 1998, p. 68).
Podemos compreender assim que a memória humana é a peça propulsora das histórias de
vida e é constituída por meio das trocas culturais que se estabelecem com o meio e com o outro,
situações vivenciadas que posteriormente serão guardadas na memória como uma forma de
preservação e manutenção da cultura humana. Os signos, que também são culturalmente
estabelecidos, exercem a função de auxiliadores no processo de evocação, sendo que, quando nos
deparamos com determinados elementos, relembramos algo que já fora vivido.
Dessa forma, o trabalho com as memórias de velhos nos permite aprofundarmo-nos em
questões subjetivas do outro, pois o seu “eu” se estende ao coletivo, já que pela relação de alteridade
nos relacionamos com outros sujeitos sociais e interdependemos deles para nossa sobrevivência
como aprendizes de uma cultura que nos é apresentada quando nascemos. Esses momentos de
escuta sensível tornam-se então momentos ricos de aprendizado e valorização dos(as) velhos(as),
uma vez que eles já alcançaram muitas décadas de vidas.
No caso dos(as) velhos(as) chiquitanos(as), especialmente, trabalhamos em conformidade
com sua pertença étnica, e suas memórias nos permitem estabelecer concepções de infância que
circulam entre eles(as). Pensar as atividades lúdicas vivenciadas nos traz assim informações sobre
questões étnico-culturais difundidas no interior da etnia, além do fato de que rememorar e narrar
torna-se uma atividade prazerosa para eles, pois, ao recordarem sua história de vida, “[...]revivem
parte do seu passado e ressignificam seu presente e sua própria identidade” (LAGO, 2007, p. 12).
É importante ressaltar que as identidades desses(as) velhos(as) têm sido reconhecidas por
ações sociais desenvolvidas desde o ano 1996 pela Prefeitura Municipal de Porto Esperidião
(Secretaria da Assistência e Desenvolvimento Social), com a finalidade de proporcionar qualidade
de vida social e valorização de seus saberes. Esse trabalho começou com a participação de
poucos(as) velhos(as), mas, no decorrer dos anos, foi tomando novas formatos e maior abrangência
social em Porto Esperidião (MT).
Segundo informações da assistente social da Secretaria de Assistência e Desenvolvimento
Social, o projeto atualmente é intitulado Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculo
(SCFV) e tem registradas em seu sistema 135 pessoas em vulnerabilidade social, entre eles
velhos(as) chiquitanos(as). Esse trabalho social oferece atendimento auxiliar de profissionais
especializados, como assistente social, psicólogo e outros. Suas atividades ocorrem semanalmente
com palestras informativas, danças, brincadeiras, passeios, oficinas artesanais (crochês e pinturas
111
em tecido), jogos de dominós e cartas. Em momentos festivos, eles realizam apresentações culturais
para outros públicos, ações que representam a garantia da circularidade de diferentes saberes.
A aceitação do projeto pelos(as) velhos(as) é positiva, visto que o índice de evasão é muito
baixo: eles veem nesse espaço uma oportunidade de interagirem com seus pares, uma alternativa
para se sentirem ativos, valorizados e incluídos na sociedade circundante.
Ações como essas têm contribuído para promover a inclusão social desse grupo social no
município a partir da aprendizagem de novas técnicas artesanais com vistas a contribuir para sua
autonomia e melhorar suas condições socioeconômicas. Sobretudo, são importantes por visarem
propiciar visibilidade social ao velho, como também reconhecer suas histórias de vida como fonte
de conhecimento para as futuras gerações.
Frente ao exposto, a metodologia adotada se refere a escuta sensível dos(as) velhos(as)
indígenas que nos permite estabelecermos momentos de diálogo e reflexão sobre os saberes, em
uma relação que considera tanto os relatos dos narradores quanto suas entonações, gestos,
silenciamentos e emoções durante o ato de narrar.
Durante o relato das histórias de vida, estabelece-se uma dinâmica relacional entre velho(a)
e pesquisadora3ewq, e ambas as subjetividades nesse processo dialogam de forma reflexiva. Essa
leitura ultrapassa o ouvir e o gravar, adentra em outra dimensão e, por isso, sua análise deve ser
minuciosa em relação às diferentes reações gestuais, faciais, emotivas ou até mesmo relacionadas
aos momentos de silêncio do narrador. Esses cuidados do pesquisador serão refletidos nos processos
de análise e de interpretação de biografia, que tomam como base as fontes orais a serem estudadas
sob o viés de teóricos que tratam do tema e que fundamentam a pesquisa.
[...] Outra questão que merece ser objeto de reflexão é quanto ao retalhamento da
voz do sujeito, necessário à “operação historiográfica”. Por um lado, decompor os
depoimentos em partes, categorizá-los, separá-los é inerente ao próprio trabalho de
pesquisa: se esse procedimento não é realizado corre-se o risco de transcrevê-los
integralmente, o que pode ser até interessante, mas não atende às exigências da
pesquisa histórica, na medida em que não há análise, não há estabelecimento de
relações, não há indicações de resultados para melhor se compreender o objeto
(GALVÃO, 2006, p. 215).
112
Os rastros deixados pela mentalidade europeia têm sido superados lentamente por meio de
discussões, de debates e da implantação de políticas públicas de inclusão social que
progressivamente buscam romper com posturas etnocêntricas. Paralelamente, o movimento da
Educação para todos visa ouvir a voz da diversidade nas práticas educativas e almeja a possibilidade
da criação de um projeto de educação e sociedade pautado no sentimento de respeito mútuo e na
solidariedade entre as diferentes culturas.
Pela proposta intercultural, a educação deve estar fundamentada em princípios humanos de
igualdade, pois é por ela que ocorrem as primeiras interações com a cultura escolar. Nesse contexto,
deve-se propor às crianças a aceitação da diversidade e a constante aprendizagem de que as várias
culturas existentes são percebidas por referências culturais múltiplas e de valores distintos. O
trabalho pedagógico então requer uma postura reflexiva sobre a interculturalidade, pois a partir dele
as crianças serão conduzidas à descentralização cultural, com um trabalho diário de ruptura com
visões etnocêntricas do mundo e das relações humanas. Dessa forma:
Percebemos assim que o papel da educação é muito abrangente: seu ofício vai além do
ensino de conceitos científicos e da apreensão de habilidades acadêmicas: o contexto cultural dos
diferentes sujeitos participantes nesse processo também deve ser evidenciado nas práticas
pedagógicas e consequentemente as diferenças existentes devem ser valorizadas. Ao pensarmos a
interculturalidade no espaço da Educação Infantil, podemos compreender que é possível desde cedo
ensinar a infância a enxergar a pluralidade cultural com as lentes do relativismo. Por meio dessa
prática educativa, o professor permite que seus alunos sejam tomados por uma nova interpretação
cultural e norteados pela educação intercultural, respeitando a individualidade e as diversidades
existentes. Desse modo, nessa relação, ocorre o entrelace da cultura e da alteridade, ou seja, ver o
outro pelo princípio de igualdade humanística.
115
Hoje, como no passado, a tarefa mais importante e também mais difícil na criação
de uma criança é ajudá-la a encontrar significado na vida. Muitas experiências são
necessárias para se chegar a isso. A criança, à medida que se desenvolve, deve
aprender passo a passo a se entender melhor; com isso, torna-se mais capaz de
entender os outros, e eventualmente pode se relacionar com eles de forma
mutuamente satisfatória e significativa (BETTELHEIM, 1980, p. 11).
cultural, social e linguística, já que nossa sociedade contemporânea exige um olhar multicultural,
pois em um país como o Brasil, a existência de várias culturas em um mesmo espaço territorial é
evidente quando comparada a outros países. Por isso:
É preciso ver as crianças não como filhotes do homem, ser em maturação biológica,
que um dia se tornará adulto, pelo contrário, a criança tem singularidades que são
próprias da infância. Logo, é preciso ver [...] as crianças como cidadãs, pessoas que
produzem cultura e são nelas produzidas (KRAMER, 2003, p. 80).
O conhecimento torna-se acessível à criança por meio de suas interações com o mundo
social e cultural que a rodeia. A partir dessas vivências, ela vai desenvolvendo sua percepção de si e
do mundo social e, assim, não somente sua realidade prepondera, mas seu entrelaçamento sadio com
o outro, com o diferente. E o espaço escolar congrega crianças de distintas culturas que convivem e
reproduzem no cotidiano seus códigos de forma inconsciente e espontânea. Por isso, a escola torna-
se um lugar propício para o intercâmbio cultural, para a aceitação do outro, para o respeito mútuo e
para a solidariedade humana, ações que se manifestam nas rotinas educativas.
Cabe à escola, pois, estabelecer o diálogo entre as culturas de forma lúdica com vistas a
uma relação dialógica de aceitação do outro, assim como possibilitar a interação da criança com as
culturas diversas de forma que esse processo não ocorra de maneira descontextualiza das práticas
educativas. O educador também tem um papel muito importante nesse processo porque ele deve
compreender a interculturalidade como um exercício diário em suas práticas pedagógicas, que
devem visar o respeito ao outro em sua condição cultural e humana.
A educação para a diversidade tem se revelado uma nova forma de ver o mundo e de
compreender o semelhante, considerando-se que cada cultura tem seus códigos culturais, dinâmicos
e flexíveis. O que necessitamos para o momento é a construção de um projeto social comum em que
as diferenças existentes sejam respeitadas e integradas em favor da aceitação do outro, como
possibilidade de compreensão de outras visões de homem, mundo e sociedade.
117
4.1 Análise e apresentação das fontes orais produzidas junto aos(as) velhos(as)
A discursividade dos(as) velhos(as) pode ser considerada o coração desta pesquisa, pois o
conjunto das narrativas nos forneceu elementos para a elaboração do projeto de ensino e para as
oficinas de formação, que tiveram como temática central a identidade chiquitana que dá vida a esta
proposta investigativa.
A metodologia adotada foi fundamental para evidenciar em registro os elementos culturais
que estavam nas memórias dos(as) velhos(as), pois a pesquisa com história de vidas, permitiu-nos
118
“evidenciar vozes” do povo chiquitano no espaço urbano de Porto Esperidião (MT), que no
cotidiano muitas vezes são silenciadas em virtude da discriminação e do preconceito sofridos.
Nesse processo investigativo não se trata simplesmente de gravar e transcrever os
depoimentos: os discursos devem ser analisados na busca da produção de sentidos e significados em
sua oralidade. Nessa perspectiva, as narrativas foram categorizadas com a finalidade promover uma
melhor compreensão de suas falas, considerando-se a análise de suas identidades e de suas
diferentes manifestações culturais, tanto as brincadeiras quanto o modo de conceber e de estar no
mundo social. Para a análise dos discursos, dialogamos com teóricos do campo da Educação, da
História e da Antropologia da Infância. Alberti (2004, p. 94), por exemplo, afirma que “[...] o
principal trabalho de uma entrevista de história de vida é a construção de uma identidade para si e
para os outros”.
Nesse sentido, organizamos as falas conforme as questões norteadoras propostas nas
entrevistas que tiveram a finalidade de evidenciar as fontes orais produzidas pelos(as) velhos(as)
chiquitanos(as).
Questão norteadora 1: Conte-me como foi sua infância e como era a vida naquela época?
Bom, a minha casa era de barro, palha, barreada de pau a pique, feita de taboca e
cipó, amarrada de cipó, trançadinha de indaiá e barrote de pau... Eu morava na
fazenda São Pedro, era uma comunidade que moravam umas quatro família ou
cinco famílias, eles faziam suas reuniões, rezavam o terço, faziam a festa e
dançavam o toque do Curussé, eles dançavam três dias. Nós plantávamos
mandioca, cana, banana, arroz, milho, feijão, abóbora... E criações de animais...
Meu pai fazia a colheita, guardava no palhol e saía para trabalhar nas fazendas para
comprar roupa pra nós. E cada criança tinha sua tarefa, de tarde ia carregada com
lenha, mandioca, banana, cana pra mexer com as criações de porcos. Cedinho de
novo, todo dia até a colheita (Antonio Maconhão Poquiviqui, sexo masculino, 68
anos, Porto Esperidião, MT, 11/10/2016).
Lá onde eu morava, eu morava com a minha mãe, meu pai e minha avó. Nos
sábados e domingos o dia inteiro nós brincávamos e na semana íamos para o
serviço (Aladia Surubi Pachuri, sexo feminino, 68 anos, Porto Esperidião, MT,
14/10/2016).
não fui bem criada com minha mãe, eu fui criada com uma madrinha, e meu pai já
ficou viúvo, né? Eu estava com cinco ou sete aninhos quando minha mãe faleceu.
Eu lembro que ela faleceu e minha madrinha me levou. Só que meu pai ia trabalhar
lá e estas horas (pôr do sol) ele vinha embora pra casa dele. E nós não ficávamos lá,
nós íamos embora para casa com ele... Meu pai trabalhava na roça, para o
fazendeiro, depois que ele trabalhou um tempo para o fazendeiro, ele passou a ter a
roça dele mesmo. Depois nós fomos crescendo aí nós íamos à roça junto com ele
para ajudar, lá nós carpíamos, aí amontoávamos aqueles paus, fazíamos a “calheira”
para queimar tudo, depois de tudo queimado quando chovia daí o povo já plantava.
Nesse tempo era cavoucado com o enxadão, com enxada, né? E a gente ia atrás
dele (pai) com a bacia de milho, aí a gente fazia assim, daí depois tinha essa roça,
daí vendia ou colhia, só a escola que nós não tivemos sorte (Carmem Justiniano
Leite, sexo feminino, 68 anos, Porto Esperidião, MT, 15/10/2016).
Morávamos lá no tal do Morrinho, que fica pra lá da Ponta do Aterro... Meu pai
mexia e vivia só de roça, ele trabalhava só na roça dele. De primeiro não era como é
agora, que tem essas fazendas, a terra lá era assim solta, não tinha dono, cada um
plantava onde queria. Depois saímos de lá e mudamos para cá (Luzia Sie, sexo
feminino, 63 anos, Porto Esperidião, MT, 18/10/2016).
Nós nascemos ali no São Simão, na divisa da Bolívia, e naquele tempo tinha pouco
dinheiro, aí nós viemos pra cá e nunca mais meu pai e minha mãe voltaram na
Bolívia, nunca mais. Nós morávamos lá perto de São Simão próximo a Vila Bela, lá
tem um destacamento, mas quando eu morava lá não tinha aquele destacamento do
Exército. Eu vim pra cá em 1962, aí que armaram aquele destacamento. São Simão,
lá que eu nasci, criei e até servi o Exército Boliviano 1 ano e 3 meses. Naquela
época era muito melhor que agora porque nós tocávamos roça pequena e tínhamos
o que comer, tinha de tudo... Quando vinha um boliviano de lá vendendo roupa e
outras coisas, trazia da Bolívia e tinha um que vinha de Vila Bela também. O que
fazia mamãe? Tinha bastante arroz, fazia farinha, milho, porco, galinha, tudo se
trocava por roupas (Francisco Massai Jovio, sexo masculino, 76 anos, Porto
Esperidião, MT, 15/10/2016).
De acordo com Nunes (2002, p. 72), a infância é uma fase em que as crianças indígenas
apresentam ampla liberdade, o que lhes permite aprender a “[...] identificar os limites que regem sua
sociedade, abordando-os e vivenciando-os por todos os lados e em todos os sentidos”. Nos
depoimentos dos(as) velhos(as) participantes, constatamos que existe uma compreensão de que esse
período de suas vidas destina-se à aprendizagem do trabalho no campo como forma de constituição
identitária e também de sobrevivência.
Todos eles, como sujeitos oriundos de comunidades localizadas na fronteira Brasil-Bolívia,
apresentam a identidade do homem do campo em seus relatos, isto é, a roça torna-se uma forma de
viver e dominar o território da fronteira pantaneira e dos saberes ancestrais, pois é a terra o lugar do
corpo vivido pelos ancestrais que garantiu aos chiquitanos atuais os diferentes saberes e fazeres que
alimentam a vida coletiva, as famílias. Por isso mesmo o trabalho na roça é uma atividade que
ensina a ser chiquitano, educando no corpo da criança ou construindo sua identidade pelos labores
da roça.
Uma criança chiquitano aprende os serviços domésticos no cotidiano, desde os seis
anos de idade. Às meninas, é destinado aquecer a lenha para produzir fogo, lavar a
120
louça, fazer café e chá, preparar almoço e jantar, cuidar dos irmãos menores, limpar
o terreiro, lavar roupa e ainda preparar a chicha. Os meninos são ensinados a
apanhar água do córrego, limpar o terreiro, carregar lenha, espantar pássaros que
atacam a roça e, aos doze anos, colaborar com o pai na limpeza e plantio das
espécies cultivadas na roça, e aprender a pescar e caçar (SILVA, 2015, p. 78).
A partir das contribuições dessa autora, é possível afirmar que as crianças chiquitanas
aprendem os serviços domésticos a partir dos seis anos de idade, o que pressupõe que os menores
vivenciam seu cotidiano brincando, já que não possuem tarefas a serem cumpridas. Essas questões
nos possibilitam refletir sobre o papel social que a criança ocupa na cultura chiquitana, visto que
cabe a ela conquistar sua autonomia por meio de diferentes aprendizagens ao ver/ouvir/imitar os
mais velhos. Até mesmo o simples desempenho das atividades cotidianas permite aos pequenos
interagir com os diferentes atores sociais e incorporar os saberes tradicionais de seu povo. Conforme
Nunes (2002, p. 257), “[...] a criança é depositária de toda uma expectativa de continuidade,
envolvendo todas as instâncias da vida social”.
Além disso, a criança dialoga e reinventa seu contexto cultural a partir das relações entre o
mundo imaginado e o cotidiano. Seu imaginário se reinventa e recria o mundo social: “[...] um
mundo pensado e organizado antes de seu nascimento, mas no qual ela intervém, recriando-o e
ressignificando-o, ao imitar os outros, ao assumir papéis a ela destinados” (GRANDO;
ALBUQUERQUE, 2012, p. 07). Sendo assim, podemos considerar que a criança chiquitana age
como mediadora de diferentes gerações (adultos/jovens/velhos), pois age e interage nos diferentes
espaços e tempos da aldeia. Ela se empodera dos saberes e dos conhecimentos coletivos a partir de
suas vivências e brincadeiras e é integrada conforme a cosmologia dos chiquitanos.
Figura 6: Criança chiquitana brincando com o brinquedo pião24
24
O uso das fotografias das crianças apresentadas neste texto foi autorizado pelos pais/responsáveis por meio da
assinatura do termo de uso de imagem.
121
Nossa educação era levantar cedo e tomar benção de nossos pais, benção, mãe,
benção, pai, benção, vó e quem já tinha força pra varrer, capinar, apanhar uma
água, lavar louça, cuidar dos frangos, cuidar dos porcos. A educação era assim: sim,
senhor, sim, senhora. Se não obedecesse ela (mãe) dava umas três chicotadas no
lombo do cara, se caso não obedecesse. Mas era difícil não obedecer. E quando os
velhos saíam para as roças, muitas vezes, todo mundo ia para a roça (Antonio
Maconhão Poquiviqui, sexo masculino, 68 anos, Porto Esperidião, MT,
11/10/2016).
Era muito rígida, a educação deles era assim: qualquer coisinha, caso chegasse
gente assim para conversar com eles, criança não ficava perto deles, criança ficava
lá longe. Criança não podia entrar no assunto dos adultos, não é como agora. Ah,
agora a gente está conversando e a criança está falando também: ah, eu vi tal coisa,
ah, é isso aí mesmo, intrometendo (Aladia Surubi Pachuri, sexo feminino, 68 anos,
Porto Esperidião, MT, 14/10/2016).
A educação naquela época era séria, minha filha, você está sob o meu poder, se ia
na casa dos outros logo que chegava já tomava a benção e salvava, não podia
responder as coisas mal e tinha que brincar com os outros conhecidos da gente que
estavam lá, também não podia ficar brigando não, mas tinha educação. Não podia
brigar. E tinha que obedecer, às vezes eu que era o mais velho dizia: não é assim
que faz, vamos fazer o que os velhos mandam, e também me obedeçam porque eu
era velho da minha família, e não falava mais nada. Eu já sou meio atrevido se não
me obedece, eu moldo ele, vou na orelha dele de verdade (João Jovio Soares, sexo
masculino, 80 anos, Porto Esperidião, MT, 13/10/2016).
Ele (o pai) era assim: não deixava a gente sair, eu fui aprender dançar depois dos
meus 15 anos, quando queria ir em uma festa ele ia junto conosco, chegava 10 ou
11 horas depois que terminava a reza, ele já falava: vamos embora crianças! Aí
tinha gente que falava: deixa ficar pra dançar. Não, se eu ficar, ela fica se não…
levava tudo embora, às vezes a gente até chorava porque nós queríamos ficar, mas
não tinha como porque ele nos levava embora mesmo (Carmem Justiniano Leite,
sexo feminino, 68 anos, Porto Esperidião, MT, 15/10/2016).
Antigamente meu pai e minha mãe educavam bem nós, sentavam e conversavam
conosco para isso e para não ter aquilo. Minha mãe também nunca agiu com
brutalidade com a gente, eles nos deixavam de castigo, não batia na gente, nem na
hora do castigo. Por causa de brigas ficávamos de castigo, o outro xingava de tal
nome e aí minha mãe e meu pai já colocavam nós pra dentro para ficar de castigo.
Não batiam e nós ficávamos meia hora de castigo (Luzia Sie, sexo feminino, 63
anos, Porto Esperidião, MT, 18/10/2016).
Bergamasch e Menezes (2016, p. 753) consideram que desde pequena a criança tudo “[...]
observa, inspirando-se naquilo que a rodeia, tendo como exemplo as imagens que estão a sua
disposição, buscando assemelhar-se ao outro e, a partir daí, criar um comportamento próprio e
único, que também o distinga como uma pessoa”. As narrativas dos(as) velhos(as) participantes
demonstram que eles possuíam padrões culturais a serem seguidos e sua subjetividade tem como
base a identidade coletiva chiquitana, afirmação corroborada pelas palavras de Laraia (2001, p. 68),
122
para quem “[...] o modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes
comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim produtos de uma herança cultural,
ou seja, o resultado da operação de uma determinada cultura”.
O respeito e a obediência aos mais velhos são princípios evidentes nas falas dos
entrevistados, assim como estas revelam que a educação das crianças chiquitanas está centrada na
figura de atores sociais mais experientes. Nessa perspectiva, o Referencial Curricular para as
Escolas Indígenas (BRASIL, 1998, p. 23) salienta que “[...] a escola não deve ser vista como o único
lugar de aprendizado. Também a comunidade possui sua sabedoria para ser comunicada, transmitida
e distribuída por seus membros; são valores e mecanismos da educação tradicional dos povos
indígenas”.
Assim sendo, a educação também se consolida no seio familiar por meio do ensino de
comportamentos, valores, crenças e ritos. Segundo os relatos produzidos, a noção de pessoa está
fundamentada na “formação cristã” (PACINI, 2012, p. 54). Com relação a essa questão, observemos
o que o idoso FMJ relata:
A educação não era rígida, meu pai era bonzinho conosco, quando era a tarde do dia
de domingo ele gostava de rezar conosco, ele rezava em castelhano, nós
acompanhávamos ele que logo falava assim: meu filho, quando eu morrer pelo
menos você vai saber rezar. E aprendemos assim em castelhano, agora eu já esqueci
rezar em castelhano (Francisco Massai Jovio, sexo masculino, 76 anos, Porto
Esperidião, MT, 15/10/2016).
valorização dos saberes tradicionais e o diálogo se revela como uma possibilidade de escuta do
outro e de compreensão dos códigos culturais chiquitanos.
Figura 7: Antonio Maconhão Poquiviqui ensinando criança a atirar com o arco e a flecha
(referindo-se ao antebraço). Passava o pano e fazer uma bolinha pra nós brincarmos
e era uma só bola para 10 moleques, não brigávamos, não xingávamos e não
sabíamos o que era xingar e pedíamos licença. Brincava de pião, bodoque, bola de
mangava, pega-pega, brincadeira no rio e nós íamos pescar também (Antonio
Maconhão Poquiviqui, sexo masculino, 68 anos, Porto Esperidião, MT,
11/10/2016).
Sabe aquele pião? Brincávamos com ele, era feito do pau da goiabeira. E aquela
bolinha (silêncio na tentativa de lembrar), a biroca, a gente também brincava. Ah,
nós brincávamos de rato, a brincadeira era assim: tem o rato e o cachorro correndo
atrás do rabo, nós ficávamos assim e o cachorro corria atrás do rato e passava por
baixo de nossas pernas (muitas risadas ao narrar). Sim, com as pernas abertas, o
rato vinha por aqui e o cachorro vinha por trás, latindo, latindo, latindo e o cachorro
sempre corria atrás do rato, essa era nossa brincadeira (Francisco Massai Jovio,
sexo masculino, 76 anos, Porto Esperidião, MT, 15/10/2016).
125
brinquedo é a criação de uma nova relação entre o campo do significado e o campo da percepção
visual, ou seja, entre situações no pensamento e situações reais” (VYGOTSKY, 1998, p. 136-137).
Fica também evidente no repertório das atividades lúdicas dos(as) velhos(as) a relação
estreita entre homem/cultura/natureza, tendo em vista que eles retiram do ambiente matéria-prima
para a produção de seus brinquedos, como no caso do pião, que utiliza o pau da goiabeira, das
bonecas produzidas a partir das espigas de milho e do algodão, do bodoque feito da imburana, da
peteca feita da palha, da bola feita da seringa da mangava e até mesmo das brincadeiras no rio.
Grando (2014, p. 107) destaca essa relação como as “[...] formas como cada criança faz a sua
sociabilidade e as mediações que estabelece com as pessoas, os contextos, os objetos e os outros
seres do mundo [que] expressam a forma como cada sociedade concebe a vida coletiva em sua
cosmologia”.
Os saberes e as práticas dos chiquitanos é que dá sentido à vida coletiva, por meio do
processo de produção desses brinquedos, diante da tecnologia utilizada pelos chiquitanos as crianças
(velhos/as chiquitanos/as) aprendiam que os conhecimentos e as práticas ancestrais faziam parte da
cultura de seu povo, ou seja, da cultura local. De acordo com os(as) entrevistados(as) a vida na
fronteira era uma vida simples, na qual esse povo já utilizavam suas tecnologias para produzir seus
brinquedos, vestimentas, alimentos, moradias e outros artefatos.
O curussé, como uma manifestação cultural dos chiquitanos, também se revela como uma
prática da primeira infância e como uma forma de inserção dela na cosmologia do grupo.
Constatamos esse fato na narrativa da idosa LS:
Na época do curussé nós brincávamos de primeiro com o meu pai que tocava, aí
eles começavam a brincar de jogar água nos outros, aí sujava a cara dos outros.
Sujava de urucum, eles macetavam e faziam tinta, colocavam na garrafa, garrafinha
e quando passava eles jogavam em cima dos outros, na roupa (muitas risadas). Aí
sujava todo mundo, essa era a brincadeira, ela começava sábado de meio dia até às
6 horas e não parava (LS, sexo feminino, 63 anos, Porto Esperidião, MT,
18/10/2016).
Dessa forma, consideramos importante enfatizar que as crianças interagiam com os adultos
nos momentos do curussé como uma estratégia grupal de transferência e de conservação cultural dos
saberes tradicionais do grupo. Nessa perspectiva, Grando (2014, p. 103) afirma que “[...] durante o
Curussé, observamos que havia uma relação entre o adulto e a criança que não se evidencia no
cotidiano. Neste, a criança poderia jogar barro ou tinta sobre o adulto, numa brincadeira que coloca
todos num mesmo nível hierárquico”.
Queiroz (2013), por seu turno, define a prática do curussé como um rico momento de
transmissão cultural entre pais e filhos. A musicalidade rega essas relações parentais e a brincadeira
127
se manifesta como um ato de reciprocidade social. Silva (2015, p. 132) acrescenta que, “[...] durante
o karnavar (carnaval), uma cerimônia festiva que tem como princípio ‘fazer alegria’ e as
brincadeiras adjetivam comportamentos que se sobrepõem ao respeito, quando os termos de
identificação de parentes e compadrio são dissolvidos” e Pacini (2012) complementa o pensamento
observando que, quando são muitos os dançantes dessa prática cultural, as crianças dançam em um
círculo menor no centro da roda do curussé.
Nesse contexto a prática desse ritual se revela como uma expressão da cultura infantil
chiquitana, pois é vivenciada por meio da oralidade e da corporalidade, dos cantos e encantos dessa
manifestação cultural que é ensinada e preservada assim que a criança nasce e se envolve com a
musicalidade do curussé. Não é a repetição que dá sentido às brincadeiras chiquitanas, mas as
múltiplas formas em que elas são reinventadas conforme o mundo imaginário, social e o código da
cultura infantil.
Era tudo separadinho, mas se quisesse misturar, misturava também, não tinha
problema. Tudo unido e naquele tempo não existia bola, ninguém tinha bola, não
existia de jeito nenhum, eram só as petecas que estou falando, que aprendemos só
naquilo, não tinha mais outro (João Jovio Soares, sexo masculino, 80 anos, Porto
Esperidião, MT, 13/10/2016).
Jogos/Brinquedos/Brincadeiras
Bailinho do curussé
Balanço feito de cipó
Banho no rio
Birosca (bolinha de gude)
Bodoque
Bola de mangava
Bonecas feitas de sabugo de milho, de garrafa e de pano
Brincadeira do lobete e cachorro
Brincadeira do rato e cachorro
Carrinho de madeira
Casinha e cobra-cega
Cavalo de pau
Esconde-esconde
Jogar tinta nas pessoas (carnaval)
Pega-pega
Pescaria
Pião
Fonte: elaborado pela autora.
também identificou que elas formam grupos para brincar em atividades lúdicas comuns e que não
existe classificação do brincar/brinquedos por gênero.
A brincadeira é uma linguagem que reproduz sentidos e revela o simbolismo de cada
sociedade, e “[...] as crianças são consideradas sujeitos com autonomia e podem com liberdade
brincar com instrumentos inclusive com as que para outras pessoas da mesma sociedade e gênero
são proibidos ou somente acessados em momentos sagrados” (GRANDO, 2014, p. 108).
Há brincadeiras mais comuns a meninos e outras às meninas, porém não há a proibição
quanto ao gênero ao serem praticadas. Podemos notar ainda que essa questão é bem resolvida no
contexto chiquitano: meninos e meninas compartilham as mesmas diversões pelo simples prazer de
interagir entre seus pares, considerando que essa distinção é mais comum nas sociedades não
indígenas, como os estereótipos de gênero tais quais “a cor rosa e bonecas são para meninas, a cor
azul e carrinhos são para meninos”.
Os relatos nos revelam também que algumas brincadeiras são praticadas com base nos
papéis sociais exercidos pelos diferentes sujeitos, pelos mais experientes que são referências
culturais para os mais jovens. Outras são vivenciadas em grupos de crianças que brincam com base
na cultura e na diversão e não na identidade de gênero, oportunidades que contribuem assim para a
constituição de suas identidades.
Os adultos faziam uma gracinha ali e conversavam, só que conversas eram muito
difíceis os meninos ficarem escutando. Eles contavam histórias, eu fui, aprendi com
o meu avô que ele era um guerreiro em 1930 na Guerra do Paraguai e Bolívia, então
ele contava da juventude dele, também nos ensinava e falava dos velhos e nós
escutávamos, contava as histórias dele de quando ele começou quando ele era
jovem e ele dizia assim: não existe outra coisa boa a não ser o respeito. Era sua
lição de vida, ele falava: roubar nunca, não “panha” nada que é dos outros, não seja
ambicioneiro: se você quiser uma botina trabalhe e compre uma, se você quiser
chinelo trabalhe e compre o seu chinelo (Antonio Maconhão Poquiviqui, sexo
masculino, 68 anos, Porto Esperidião, MT, 11/10/2016).
Tinha vez que brincava, tinha vez que não. Às vezes brincava de correr assim, para
ver quem corria mais e quem não corria, pertinho assim (Aladia Surubi Pachuri,
sexo feminino, 68 anos, Porto Esperidião, MT, 14/10/2016).
Os adultos? Não. Aprendi a pular o curussé olhando os adultos, porque nós não
dançávamos, só no último dia que dançavam as crianças, só que era assim
separadas. Só as meninas assim separadas, uma rodinha. A outra segunda dos
rapazinhos não misturavam com as meninas os rapazes novos, e a terceira só
adultos, assim era a festa (Luzia Sie, sexo feminino, 63 anos, Porto Esperidião, MT,
18/10/2016).
131
Não, papai não brincava comigo e a mamãe piorou, também não brincava. Naquele
tempo a criança não sabia o que era o curussé, mas eles dançavam o curussé, mas
não era esse nome lá, era carnavalito. Porque antigamente não tinha criança no
meio não (Francisco Massai Jovio, sexo masculino, 76 anos, Porto Esperidião, MT,
15/10/2016).
A partir dessas experiências narradas pelos idosos, é possível verificar que os adultos pouco
brincavam com seus filhos, interagindo dessa forma apenas em algumas situações como, por
exemplo, o fato rememorado pelo idoso AMP em que ele relembra a habilidade de contar histórias
que seu avô possuía e pela qual narrava seus feitos na época de sua mocidade, como os
acontecimentos históricos da Guerra do Chaco, em que Bolívia e Paraguai travaram batalhas.
Nas comunidades indígenas, os velhos exercem um papel imprescindível para a
transmissão e para a preservação dos saberes ancestrais e, nesse processo, “[...] as histórias
transmitidas de geração em geração, carregadas de sentimentos, sensações e vivências permitem
recriar um tempo, possibilitando envolvimento pessoal que facilitam a internalização ou
aprendizagem do que está sendo transmitido” (LAGO, 2007, p. 26).
O curussé como prática dos adultos, pode ser compreendido como uma produção cultural
ritualizada de extrema relevância social, religiosa e profana, e para vivenciá-lo deve-se observar
quem quer participar e quando pode. Durante esse ritual festivo, a criança observa e aprende seus
passos e ritmos e, nessa interação, ao imitar “os adultos, e tudo aquilo que a rodeia, ela está se
apropriando desses comportamentos, conhecimentos e cria o seu modo de ser criança. Ela aprende
132
um jeito próprio de ser indígena de acordo com o que vivencia com seus pares” (BARROS, 2012, p.
140).
Segundo Carvalho (2007), os adultos são referências culturais para a elaboração do
universo infantil, composto de múltiplos “[...] significados, objetos, artefatos que conferem modos
de compreensão simbólica às crianças sobre o mundo. Ou seja, brinquedos, brincadeiras, músicas e
histórias que expressam o olhar infantil, olhar construído no processo histórico de diferenciação do
adulto” (CARVALHO, 2007, p. 36).
A interação entre criança, adulto e velho permite a circularidade de conhecimentos que
transcendem aspectos do campo material, aflorando-se no campo do simbolismo com novos
sentidos e significados. A história de um povo, sua tradição e suas manifestações culturais são
elementos de um processo que se orienta por “[...] uma série de aspectos simbólicos de uma
sociedade, como ritos, mitos, festas e jogos, que por sua vez, acabam, em determinado ponto,
configurando-se como uma tradição daquela cultura” (SILVA, 2014, p. 55).
Alguns adultos brincavam com as crianças e reproduziam seus saberes culturais nas
histórias “dos antigos”, nos diálogos cotidianos, nos atos ritualísticos e até mesmo no ensino das
regras sociais como não roubar e sim trabalhar para obter o seu objeto de desejo, conforme citado
pelo idoso AMP na narrativa descrita.
Diante dessa interação entre crianças/adultos/velhos ocorria a transferência de saberes
ancestrais quanto às técnicas de produção dos brinquedos, como no caso da confecção da bola de
mangava que ocorriam diversas aprendizagens quanto as técnicas de identificação da planta que é
originária da região e a extração de sua seiva. Isso é um saber que está enraizado no saber da região,
pois não foram os portugueses ou espanhóis que trouxeram a bola, os chiquitanos já dominavam
outras técnicas de produção da bola e outros brinquedos. Essa habilidade remete à saberes
ancestrais, provavelmente alguém mais experiente ensinava essas crianças reconhecer seus
territórios, explorar e coletar matéria-prima para a produção dos brinquedos.
Na escola eu nunca fui. A escola até tinha, mas tinha que pagar pra estudar lá,
naquela época pagava e meu pai não podia pagar. E tinha que comprar tudo,
material e pagar a escola, então nós não estudamos nem eu e nem meus irmãos
(Aladia Surubi Pachuri, sexo feminino, 68 anos, Porto Esperidião, MT,
14/10/2016).
Nunca estudei nem um ano, vou falar pra senhora: lá não existia escola, não existia
esses documentos que eu lembro até agora, não existia nada, eu lembro até hoje.
Ninguém tinha, nem os velhos tinham documentos, depois que foi sair isso daí, aí
que eu fui na escola, mas não tinha mais jeito porque eu já era velho, adulto e
cavalão velho, né? (João Jovio Soares, sexo masculino, 80 anos, Porto Esperidião,
MT, 13/10/2016).
Não, eu nunca fui. Até lembro que uma vez eu quase morri, aí eu falei para papai
assim: papai, eu queria ir à escola. Ele me falou: minha filha, mas como que você
vai se você não está aguentando nem andar? (Carmem Justiniano Leite, sexo
feminino, 68 anos, Porto Esperidião, MT, 15/10/2016).
Eu nunca fui porque antigamente meu pai não nos colocou na escola, então por
causa disso que eu nunca fui. Não tinha escola, era difícil e nós trabalhávamos só na
roça (Luzia Sie, sexo feminino, 63 anos, Porto Esperidião, MT, 18/10/2016).
De acordo com Santos (2015, p. 83), “[...] a educação assume importância estratégica na
luta social, pois é através dela, mesmo ainda não sendo o modelo desejado, que se promove a
emancipação política”. E, com a multiplicidade de saberes, a escola da contemporaneidade vai
ganhando novos contornos políticos e ideológicos. Segundo Grupioni (2000, p. 282), na atualidade,
estão abertos diálogos entre a escola indígena e a não indígena, nos quais “[...] a escola ganha um
significado especial, porque é hoje uma reinvindicação de muitas comunidades indígenas”.
Pelos dados coletados, constatamos que somente dois entrevistados frequentaram a escola,
os demais sabem somente assinar seus nomes, o que possivelmente deve ter sido ensinado por um
familiar. Diversos motivos os impediram de vivenciar a educação institucionalizada: muitos
relataram falta de dinheiro, distância ou ausência de escola em suas comunidades. Conforme
Bortoletto (2007, p. 180, grifos da autora), “[...] é frequente nos discursos sobre o tempo de
antigamente que as grandes queixas do passado estivessem ligadas à falta da escola ou à distância da
aldeia até elas”.
Pelo depoimento de AMP, evidencia-se ainda que na década de 1950 o civismo e a religião
estavam presentes nas práticas pedagógicas pelos atos de rezar e cantar o Hino Nacional, e
habilidades como ler, escrever e contar eram priorizadas. Como ficou claro pelo discurso desse
participante, a tradição e a história de seu povo eram pouco valorizadas em contexto escolar.
134
Atualmente, essa situação tem mudado bastante nas instituições escolares indígenas chiquitanas,
pois “[...] a escola na aldeia é importante para a valorização da cultura Chiquitano, para protegê-los
das discriminações que vêm sofrendo e afastá-los das influências da sociedade não indígena”
(QUEIROZ, 2013 p. 76).
O que nos possibilita refletir nesse processo é a versatilidade da escola, é necessário
compreendermos que a escola daquela época vivenciada pelos(as) velhos(as) chiquitanos(as) não é a
mesma da atualidade, a escola é viva. Ela é gerida por transformações históricas e sociais, atua em
variados tempos e exerce funções diferentes. A escola de outros tempos estava fundamentada nos
moldes integracionista, ou seja, preparar as crianças para serem “úteis” à nação. Nesse contexto não
se reconhecia a identidade étnica das crianças nos currículos e muito menos nas práticas
pedagógicas. A escola da atualidade pode caminhar na contramão da escola do passado e estabelecer
novas formas de aprendizagens vinculadas aos saberes tradicionais da criança.
A escola indígena se destaca pelo seu dinamismo quanto à realidade cultural de cada povo
e desponta como uma possibilidade de proteger e multiplicar os bens culturais. Bergamasch e Silva
(2007, p. 147) nos esclarecem que “[...] os processos vivenciados em cada escola representam
pequenas grandes mudanças construídas cotidianamente. É preciso estar atentos e sensíveis para
enxergá-las e interpretá-las com toda sua força e significação”.
No contexto urbano de Porto Esperidião, a escola se apresenta como um espaço de
fronteira, lugar de trocas culturais entre os atores envolvidos, sejam indígenas ou não indígenas.
Sobre o assunto, Tassinari (2001) ressalta que é no convívio intercultural que floresce a emergência
e a construção das diferenças étnicas.
A escola não pode ser concebida como único espaço de aprendizagem, mas como um
território de encontro das diferenças culturais, ou seja, de fronteiras sociais. Tassinari (2012, p. 290)
contribui com a discussão afirmando que “podemos reconhecer outras formas de definir a
‘educação’ para essas populações indígenas, além da marca da ausência que adquire quando
comparada à instrução escolar ou, com vimos, quando associada a tudo aquilo que consideramos
não escolar”. De acordo com as falas dos idosos a educação se realizava no dia a dia, na educação e
preparo do corpo (ver/ouvir/imitar), condições indispensáveis para adentrar as esferas cosmológicas
chiquitanas, considerando-se prioritariamente o modo de ser, de viver e de aprender dos chiquitanos.
135
Eu me lembro de tudo que eu falei agorinha, o que mais me coisou é que antes eu
gostava muito da minha mãe e do meu pai, aquele carinho que meu pai comigo me
suspendia, me abraçava e me beijava todo dia. Todo dia ele fazia as coisas pra mim,
o carinho do pai que fazia aquelas brincadeiras e passava essas brincadeiras dos
antigos pra nós, sabe a roça também eles ensinavam, o trabalho e a brincadeira
(Antonio Maconhão Poquiviqui, sexo masculino, 68 anos, Porto Esperidião, MT,
11/10/2016).
Esse daí num sei, como será né? (Silêncio), o tempo vai passando e a gente não
lembra mais nada, a gente pega uma coisa, um serviço. Isso já ficou de um lado
porque a gente nem lembra mais. Aí está certo, eu quando criança, até hoje eu
lembro, quando eu era novo dá saudade das muitas brincadeiras com as crianças,
com as meninas e com os guris também, todos unidos. Então a gente fica alegre,
contente com ele, tanto ele com nós também, porque tem amizade com todo mundo,
nós não bagunça, não fala do outro, essa é a alegria nossa. É a unidade entre nós
mesmo, se tem um que toca nós estamos dançando e para e tem alguma coisa pra
beber, nós bebe (João Jovio Soares, sexo masculino, 80 anos, Porto Esperidião,
MT, 13/10/2016).
Ah, são tantas lembranças que a gente nem lembra, né? (longo silêncio na tentativa
de rememorar). Não lembro para falar de alguma coisa assim, o que será? É que
antigamente os pequenos não iam na festa, não estou falando pra você que nós
mesmos só fomos dançar depois dos 15 anos? Nós ficávamos em casa, todos
festavam e nós ficávamos em casa, só os adultos dançavam. Aí depois, foi indo, foi
indo que só na terça-feira eles reuniam todas as crianças para dançar, quando saísse
o povo e fosse dançando, as criancinhas pequenininhas todas na frente, todas de
vestidinhos enfeitados de fita, só esse dia que elas dançavam (Carmem Justiniano
Leite, sexo feminino, 68 anos, Porto Esperidião, MT, 15/10/2016).
Ah, eu não me lembro... (silêncio). Que nós éramos mais apegados era com a minha
vó, minha vó também nos levava na roça, nós ficávamos na roça, cascávamos a
136
mandioca e aí ela fazia a comida lá na roça para nós. Nós cascávamos as mandiocas
e quando tinha milho verde nós ralávamos o milho para ela fazer pamonha e ela
fazia tudo na roça. Aí já levava pronto pra casa, porque era longe e andava muito
(Luzia Sie, sexo feminino, 63 anos, Porto Esperidião, MT, 18/10/2016).
[...] Os chiquitanos consideram [que] sua tradição nos dias atuais não é qualquer
coisa do seu passado comum, mas são alguns elementos escolhidos e repetidos nas
celebrações e festas, ou mesmo no cotidiano, para relembrar valores e
comportamentos adequados e socialmente aceitos (PUHL, 2011, p. 22).
Leontiev (2004, p. 285), por outro lado, descreve a aquisição cultural ao argumentar que
“[...] cada indivíduo aprende a ser um homem. O que a natureza lhe dá quando nasce não lhe basta
para viver em sociedade”. A incorporação cultural não é, pois, determinada biologicamente: existem
processos de transferências culturais imprescindíveis para sua efetivação, e prova disso é a
participação das crianças chiquitanas nos momentos do curussé no centro da roda ou simplesmente
ouvindo e observando.
De acordo com Laraia (2001, p. 62), “[...] a criança está apta ao nascer a ser socializada em
qualquer cultura existente. Esta amplitude de possibilidades, entretanto, será limitada pelo contexto
real e específico onde de fato ela crescer”. Nesse sentido, as brincadeiras e o curussé estão imersos
na cosmovisão chiquitana, seja pelas influências históricas e culturais ou até mesmo pela sua estreita
relação com a natureza, percebida em suas vivências infantis.
Outro fato narrado diz respeito ao trabalho, que se revela no contato do indígena chiquitano
com a terra mãe. Nesse contexto o labor torna-se uma estratégia de formação do ser Chiquitano e de
formação do corpo para adentrar nas esferas da cosmologia chiquitana, da estreita relação com a
terra, a natureza e o cosmo. As distâncias da roça são extensões de um espaço que era um território
maior, “sem dono” por ser indígena, cujos detentores viviam em relação dinâmica e respeitosa com
o tempo e com o espaço em permanente movimento das águas e das secas no Pantanal, que não é
brasileiro ou boliviano, mas chiquitano, ou simplesmente Pantanal. Ilustra essa afirmação o fato de
que eles não plantavam e colhiam almejando fins lucrativos, mas para a sua subsistência e para a
educação do corpo para ser uma pessoa específica – ser chiquitano.
A resistência e a luta por territórios tradicionais trouxe aos indígenas uma ressignificação
de seus saberes culturais, e a busca por suas raízes indígenas os libertou dessa identidade camponesa
imposta pelos governos liberais. Nas aldeias chiquitanas, os indígenas trabalham para sua
subsistência, mas consideram sua identidade primordial para o fortalecimento de sua autonomia
política e social.
A identidade não é algo dado, que se possa verificar, mas uma condição forjada a
partir de determinados elementos históricos e culturais, sua eficácia enquanto fator
que instrumentaliza a ação é momentânea e será tanto maior quanto mais estiver
associada a uma dimensão emocional na vida social (NOVAES, 1993, p. 25).
138
A identidade chiquitana está em constante dinamismo, pois a cada novo elemento histórico
e cultural ela é ressignificada, e os redutos missionais, com certeza, influenciaram seus modos de
vida e suas práticas culturais, mas suas vivências tradicionais eram mais fortes que as imposições
reducionais. Sobre o tema, Silva (2015, p. 29) nos afirma que os chiquitanos “[...] utilizam os
mesmos símbolos do catolicismo, porém com redefinições na perspectiva indígena”.
Finalmente, outro dado interessante nos relatos dos(as) velhos(as) é a condição de
sofrimento dos tempos passados em que viviam na zona fronteiriça Brasil-Bolívia. Nenhum
depoimento faz referência à fome ou à miséria, mas principalmente à falta da escola e de qualidade
de vida, já que a água era transportada em cabaças pelas mulheres e crianças por quilômetros até
suas casas, como demonstra o discurso da idosa ASP ao relembrar esse período de sua infância:
Muita coisa tem, mas tem uma coisa: eu panhava água longe, panhava água na
cabeça, lenha. Tudo ia no mato para pegar, tudo longe de casa. E hoje em dia tem
água dentro de casa, lenha tem vez, agora tem gás aqui, tá tudo fácil. Era muito
difícil buscar a água, era muito longe, nós andávamos para buscar a água mais ou
menos a distância daqui a rio aproximadamente 4 quilômetros (Aladia Surubi
Pachuri, sexo feminino, 68 anos, Porto Esperidião, MT, 14/10/2016).
Podemos compreender que até o acesso à água era difícil naquele tempo e espaço,
atividades cotidianas que inseriam as crianças em sua realidade sociocultural. Seus dilemas sociais
de alguma forma influenciaram as constantes migrações para as cidades brasileiras, no caso, Porto
Esperidião, Vila Bela da Santíssima Trindade, Pontes e Lacerda e Cáceres, todas no estado de Mato
Grosso.
Sobre as narrativas, Bosi (1994, p. 424) revela que “[...] ao contar histórias de nossa família
tocamos sem querer na história, nos quadros sociais do passado: moradias, roupas, costumes,
linguagem, sentimentos”. Ao rememorar e transformar essas memórias em linguagem, os(as)
velhos(as) chiquitanos(as), por sua vez, revelaram um contexto social que afirma sua pertença étnica
e sua cosmologia indígena, fragmentos de um passado que nos permitem montar o mosaico de suas
vivências infantis, compreendendo que ser criança chiquitana é vivenciar a vida cultural de modo
autônomo, com respeito aos mais velhos, reverenciando-os em sua sabedoria ancestral, pois eles são
os depositários dos saberes tradicionais de um povo.
4.2 Apresentação das oficinas: uma proposta formativa para a educação intercultural
A formação de professores tem sido um desafio na atualidade, uma vez que a formação
docente não se finaliza na graduação. Ao contrário, esse é o ponto de partida para a busca de novos
conhecimentos. O educador é parte de um coletivo institucional e são vários os saberes que devem
ser valorizados nesse panorama, e tanto suas experiências educativas quanto sua práxis pedagógica
devem ser envoltas no ofício de educar.
Assim, consideramos então de extrema importância fornecer subsídios teóricos à
comunidade escolar do Centro de Educação Infantil Wictor Hugo Cerqueira Ribeiro da Silva pelo
motivo de que todos os funcionários da instituição têm contato com as crianças indígenas e não
indígenas da zona urbana de Porto Esperidião-MT.
Anteriormente ao desenvolvimento do projeto de ensino “O povo chiquitano e sua cultura
na escola”, realizamos 4 oficinas de formação com a finalidade de dialogar com a comunidade
escolar sobre a presença desse povo na instituição escolar e a necessidade da adoção de práticas
interculturais na unidade educativa. Essa ação corroborou para a implementação da Lei nº.
11.645/08 no espaço escolar, com vistas a contribuir com a valorização e com o respeito à
diversidade indígena.
A intenção desta pesquisa não é discutir a temática formação de professores, entretanto, a
oferta das oficinas de formação aos profissionais dessa instituição foi de suma importância para o
desenvolvimento do projeto de ensino, bem como os resultados satisfatórios, tendo em vista que foi
um momento de devolvermos, as professoras, os conhecimentos produzidos ao longo da reflexão no
Programa de Mestrado em Educação da UEMS.
Os encontros foram divididos em quatro oficinas de formação, conforme descrição
apresentada no Quadro 3:
Durante as oficinas de formação, constatei que essa proposta formativa trouxe uma
variedade de novas informações sobre o povo chiquitano aos participantes, uma vez que muitas
professoras faziam questão de expor suas dúvidas ou contribuir com novos conhecimentos nas
141
A educação com ênfase no diálogo entre as culturas é uma alternativa que tem a finalidade
de atender as necessidades culturais dos sujeitos e privilegiar um ambiente de solidariedade, respeito
mútuo e aceitação às diferenças culturais. Nessa perspectiva, Freire (1996, p. 50) salienta que “[...]
quanto mais me dou à experiência de lidar sem medo, sem preconceito, com as diferenças, tanto
melhor me conheço e me construo o meu perfil”. Nesse sentido, a emergência de práticas docentes
que respeitem a diversidade humana nos faz pensar em um novo projeto de escola para todos,
inclusive para aqueles que vivenciaram os primeiros moldes educativos dos jesuítas no Brasil, a
saber, os indígenas.
Infantil, esse trabalho está fundamentado em seis pilares curriculares, quais sejam: movimento,
música, artes visuais, linguagem oral e artística, matemática e natureza e sociedade.
Cèlestin Freinet foi o idealizador do trabalho com projetos na educação. Para ele, o ensino
deveria estar alinhado às necessidades e às vivências culturais das crianças. Esse processo resultaria
“[...] em racionalidade humana de vida escolar, todas as conquistas que, para além dos formalismos
ultrapassados, concorrem para a formação harmoniosa dos indivíduos na renovada estrutura social”
(FREINET, 1979, p. 27-28).
Assim, desenvolvemos o projeto de ensino “O povo chiquitano e sua cultura na escola”,
que teve a duração de dois meses e foi desenvolvido nas turmas com crianças de cinco anos da
instituição escolar, tendo participado dele quatro professoras. Os encontros de planejamento eram
semanais (às terças-feiras) e tinham duração de 1h30m, realizados na própria instituição escolar.
Eles representaram momentos em que discutíamos as atividades da semana anterior e planejávamos
novas ações para a semana seguinte. Nesse momento estabeleci amplo diálogo com as professoras
regentes e assim pude recolher seus relatos com base em suas experiências pedagógicas. É
importante ainda destacar que os saberes culturais do povo chiquitano trabalhados nessa ação foram
coletados em entrevistas gravadas junto aos(as) velhos(as) integrantes do grupo de curussé Asa
Branca.
Eu, como pesquisadora, coordenei e acompanhei pessoalmente o projeto de ensino durante
seu desenvolvimento e tive contato com as crianças somente nos momentos das oficinas de
brinquedos, em que confeccionamos alguns dos referentes à cultura chiquitana. Nesses momentos,
exerci o papel de ajudante das professoras.
Apresentei-me às professoras no dia 19 de setembro de 2016 para realizar as atividades da
pesquisa “Educação e histórias sobre as concepções de infância dos idosos chiquitanos: modos de
aprender, de ser e de viver”, iniciando minhas atividades apresentando os objetivos do estudo, os
Termos de Consentimento Livre e Esclarecido e as contribuições da proposta investigativa para o
campo da Educação.
Iniciamos as atividades com as crianças no dia 10 de outubro de 2016 (após a aprovação da
pesquisa pelo CESH/CONEP). Primeiramente, as docentes organizaram uma roda de conversas para
realizar a avaliação inicial sobre os conhecimentos prévios dos alunos em relação ao povo
chiquitano. As respostas dadas pelas crianças foram registradas pelas docentes em seus cadernos de
campo e nos surpreenderam pelas suas variações. Elegemos algumas consideradas mais relevantes,
que foram: pessoas pobres, menino que usa roupa e não tem casa, índios que moram lá no mato,
quadrilha, boliviano, bugre da terra, etc.
Notamos que esses discursos das crianças refletem equívocos veiculados no imaginário
social sobre o índio, assim como as concepções errôneas que ao indígena atribuem um estado de
144
pobreza e de subordinação. A imagem do “índio exótico” ainda está muito presente no imaginário
infantil, aquele que anda nu e que caça e pesca com arco e flecha para sobreviver.
Figura 15: Caderno de campo de uma professora– registro dos conhecimentos prévios
dos alunos sobre os chiquitanos
Figura 16: Criança socando a carne seca para o preparo da paçoca e outra com o
brinquedo bodoque
Uma das atividades mais expressivas desse trabalho pedagógico foi a visita à casa de um
velho chiquitano (participante da pesquisa), que mostrou alguns brinquedos (peteca de palha, pião
feito da goiabeira, boneca de pano, arco e flecha e o bodoque). Após essa apresentação, as crianças
brincaram e se divertiram muito. Em seguida, ocorreram as oficinas de brinquedos com a confecção
da peteca, do cavalo-de-pau e da caixa do curussé.
No módulo seguinte a culinária foi problematizada, posteriormente preparada a paçoca de
carne seca com o uso do pilão25 de madeira. As crianças socaram a carne no pilão, colocaram a
farinha de mandioca e depois degustaram a comida. Na atividade seguinte, prepararam o aluá e
degustaram, porém a aceitação de parte das crianças não foi tão boa, segundo relatos das
professoras.
Figura 17: Criança degustando o aluá (bebida chiquitana) e outra confeccionado o cavalinho
de pau
No módulo do curussé, por sua vez, os(as) velhos(as) do grupo Asa Branca foram
convidados para apresentar os instrumentos da dança para as crianças, assim como para ensinar
25
Em um tempo em que não existia a geladeira, era comum a prática de socar no pilão a carne para que ela fosse
conservada, a tecnologia utilizada no processo de produção da farinha de mandioca exigia saberes e práticas ancestrais
chiquitanas. Se não houvesse o alimento jamais existiria a cidade, inclusive os militares que chegavam na fronteira com
suas mochilas vazias e dependiam dos processos de produção dos alimentos desenvolvidos pelos chiquitanos.
147
como estes eram confeccionados e tocá-los, para que os pequenos pudessem apreciar a
musicalidade. As velhas do grupo também foram convidadas para ensinar como se dançava o
curussé: essa etapa representou um dos momentos mais interativos entre crianças e velhos(as).
A culminância do projeto se deu com sua apresentação na 3ª Festa Folclórica da instituição,
evento anual em que as crianças apresentam números artísticos relacionados ao folclore local,
regional e nacional. Nessa festividade, foi montada uma barraca intitulada “Barraca do chiquitano”,
em que se expuseram materiais produzidos pelos alunos durante o desenvolvimento do projeto de
ensino (brinquedos, fotos, livros).
Para encerrar o evento, foi realizada uma apresentação cultural da dança do curussé, em
que participavam as crianças, os velhos do Grupo Asa Branca e as velhas dançando os ritmos da
dança. Durante essa apresentação, o sorriso nos lábios dos(as) velhas não se desfazia, expressão que
revelava a alegria de contribuir e repassar seus saberes às novas gerações. As mãos dadas, os passos
ritmados, a musicalidade, tudo emocionava a todos como uma forma de revitalização de nossa
cultura local.
A proposta educativa de valorização dos saberes ancestrais chiquitanos no contexto urbano
de Porto Esperidião-MT foi implantada com a finalidade de prolematizar a temática, provocar
reflexões e novas possibilidades de ensino para o reconhecimento da diversidade dessa etnia. Sobre
isso, Candau (2012, p. 237) nos afirma que “[...] se quisermos potencializar os processos de
aprendizagem escolar na perspectiva da garantia a todos/as do direito à educação, teremos de
148
[...] O trabalho intercultural pretende contribuir para superar tanto a atitude de medo
quanto a de indiferente tolerância ante o “outro”, construindo uma disponibilidade
para a leitura positiva da pluralidade social e cultural. Trata-se, na realidade, de um
novo ponto de vista baseado no respeito à diferença, que se concretiza no
reconhecimento da paridade de direitos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir dessa epígrafe, podemos compreender que enquanto as crianças e os(as velhos(as)
interagem, conhecimentos são construídos, tendo o passado como base de seus diálogos, assim
como o vivido e o dito. Enquanto os adultos se ocupam com as tarefas do mundo capitalista, por
outro lado, crianças e os(as) velhos(as) compartilham múltiplos saberes e o velho, nesse processo,
conduz os pequenos nessa caminhada por ser o sujeito que esteve no passado e está no presente para
narrar o que viu e ouviu em outros tempos vividos.
O(a) velho(a) indígena na cultura chiquitana representa o(a) maior depositário dos saberes
ancestrais, quanto à cosmologia do grupo e suas variadas técnicas de cultivo, de produção de seus
artefatos e de sobrevivência. Eles(as) não estão as margens da sociedade portense, estão em ação e
interação com os demais atores sociais, inclusive na organização das festas tradicionais na cidade,
eles(as) preservam a cultura local, por meio de suas práticas e saberes, o que atrai novos olhares de
pessoas de outras localidades. Eles(as) são os verdadeiros protagonistas das festas tradicionais na
cidade, considerando que para esses eventos são destinadas verbas ao município e eles(as)
contribuem dessa forma com seus modos de ser Chiquitano, o que atrai muitos turistas nessas
festividades.
Na época do carnaval a presença chiquitana ganha uma maior visibilidade no espaço
urbano de Porto Esperidião-MT, um dos momentos festivos em que eles afirmam sua etnicidade por
meio de suas manifestações culturais e marcam seus espaços e territórios na sociedade não indígena.
Os gritos, a flauta, o fífano, o tambor, a caixa, o apito, em suma, o toque do curussé nos barracões
dos grupos ganham significado à medida que a musicalidade envolve os participantes que ritmam a
ciranda chiquitana.
Os chiquitanos tem uma organização histórica e social diferenciada, eles não se organizam
em grandes aldeias, mas em grupos pequenos familiares, eles necessitam de mobilidade, suas
vivências estão pautadas nos saberes do pantanal. Esse grupo étnico apresenta outra dinâmica
comparada aos outros povos, sua cosmologia está alinhada aos saberes e práticas da fronteira, do
pantanal, ou seja, existe uma sensibilização comunitária em favor da proteção quanto aos recursos
naturais para o sustento e preservação da vida coletiva desse grupo étnico.
150
Quanto ao projeto de ensino “O povo chiquitano e sua cultura na escola”, verificamos que
os níveis de interação cultural foram muito acima do esperado: crianças que não se identificavam
como pertencentes à referida etnia, ao finalizarem o projeto, assumiram sua pertença étnica ao grupo
chiquitano a partir das constantes relações de sua identidade com elementos culturais que lhes foram
apresentados no decorrer deste trabalho educativo. Pacini (2012, p. 264) nos esclarece que “[...] no
contexto, os interesses culturais, políticos, econômicos fazem com que aflorem ou não as
identidades étnicas”.
Esses aspectos nos possibilitam entender que a interação eu/outro produz novas
elaborações e novos sentidos, ou seja, “[...] ela opera a partir de sinais culturais diacríticos”
(NOVAES, 1993, p. 27). Os momentos em que as crianças interagiram com os(as) velhos(as) do
grupo de curussé “Asa Branca” foram repletos de curiosidade, risos e enriquecimento cultural.
Todas as vezes em que os(as) velhos(as) foram solicitados para realizar alguma atividade na escola,
eles(as) sempre se mostravam dispostos(as) e felizes em compartilhar seus saberes tradicionais com
as novas gerações. Quando estabeleci o primeiro contato com eles, uma interrogação sempre era
repetida: daqui a uns tempos os velhos vão morrer, quem vai ensinar sobre nosso povo e o curussé
aos mais jovens? Percebe-se que há assim uma preocupação social entre os chiquitanos no espaço
urbano quanto ao silenciamento das vozes das novas gerações em Porto Esperidião-MT.
A escola deve ser a principal articuladora dos saberes e práticas chiquitanas, pois ela é
considerada fronteira quando leva o saber de fora para dentro da sala de aula, pois ela é estrangeira
para os povos indígenas, e o contexto é o local. Ela leva o conhecimento sistematizado, o
letramento, os saberes da escola às crianças indígenas, considerando que a escola não nasce com
elas, ela é originária da sociedade ocidental.
A escola é fronteira na questão de que os saberes da sociedade brasileira são obrigatórios,
porém estes terão que dialogar com novos saberes, os saberes dos chiquitanos, ou seja, os saberes
dos povos que habitam no pantanal. A compreensão de que é o saber que mantêm a vida, o saber
dos valores, essa dinâmica torna a escola lugar de fronteira.
Não se trata de contrapor os diferentes saberes, porém reconhecê-los como necessários e
complementares no cotidiano educativo entre atores de diferentes culturas. Essa concepção de
escola valoriza tanto os saberes formais quanto os do cotidiano do sujeito histórico. Januário (2004,
p. 69) descreve a situação a que os chiquitanos se submetem nas escolas:
Para tanto, a proposta de educação intercultural de fronteira pode se efetivar como uma
iniciativa em favor da diversidade humana nas cidades fronteiriças, o que também atende a Lei nº.
11.645/2008 e a partir da qual as narrativas dos(as) velhos(as) contribuíram com as atividades
lúdicas e de aprendizagem nas práticas pedagógicas oferecidas às crianças dessa etnia,
considerando-se os aspectos culturais, sociais, étnicos e históricos desse povo. Essa proposta busca a
partir da escola conhecer e reconhecer a história e cultura das crianças indígenas e não indígenas que
convivem nela, de modo a promover o reconhecimento de seus saberes e identidades como
possibilidade de uma educação intercultural que pressuponha a efetivação do direito de ser criança
brasileira.
Para Fernandes Silva (2008, p. 126), “a fronteira, além dessa linha que separa dois países,
que os limita geopoliticamente, da perspectiva da dinâmica das relações entre as populações locais,
é um espaço de sociabilidade diferenciada, de comércio, de situações lingüísticas compartilhadas e
etc”. Nesse sentido, ações educativas condizentes com o contexto sociocultural só serão
desenvolvidas se os professores passarem por um profundo processo de formação continuada
conforme prevê a legislação.
Além disso a preservação e a valorização dos elementos culturais chiquitanos devem ser
desenvolvidas em diferentes contextos educativos como estratégia para evidenciar o protagonismo
social desse povo diante de seus saberes tradicionais no cotidiano urbano de Porto Esperidião, já que
este se evidencia um espaço de fronteira e convívio interétnico e intercultural. A educação
chiquitana nos remete a uma educação de valorização do outro e não de consumo, pois não se
consome as pessoas para ser feliz. Formamos pessoas para serem felizes na escola e na vida, porque
é com elas que nós professores nos constituímos e podemos também ser felizes no exercício do
nosso ofício.
155
REFERÊNCIAS
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3ª. Ed. São Paulo: Contexto, 2011. p. 155-202.
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Lusófona de Ciência das Religiões – ANO VII, 2008, n. 13/14, p. 253-262.
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Tradução Dora Flaksman. 2a. ed. Rio de
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APÊNDICES
165
Data e Local:
Iniciais dos Nomes:
Data de nascimento:
Profissão:
1. Eu gostaria que o senhor me contasse como foi sua infância:
1.1 Como era a vida naquela época?
1.2 Vocês eram em quantas crianças na casa?
1.3 Como foi a educação recebida de seus pais?
_______________________________ ______________________________
Assinatura do Pesquisador Assinatura do Participante da Pesquisa
de pesquisa é a Profa. Dra. Léia Teixeira Lacerda, que pode ser encontrada pelo telefone (67) 3901-
4608. Se, porventura, você tiver alguma dúvida quanto aos procedimentos éticos envolvidos na
pesquisa, por favor, queira entrar em contato com a Coordenadora do Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu em Educação, Profa. Dra. Estela Natalina Mantovani Bertoletti, pelo telefone (67)
3503-1006.
Os órgãos responsáveis pelo acompanhamento e apreciação ética desse estudo são o Comitê
de Ética com Seres Humanos da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (CESH-UEMS) e a
Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). O CESH-UEMS tem a finalidade de defender
os interesses dos envolvidos no ensino, na pesquisa e na extensão em sua integridade e dignidade,
contribuindo para seu desenvolvimento de acordo com padrões éticos e com a observância aos atos
normativos dos conselhos competentes, além de regulamentar, analisar e fiscalizar a realização de
atividades de ensino, pesquisa e extensão no âmbito da UEMS e de outras instituições do Estado de
Mato Grosso do Sul (MS). Ele está localizado na Cidade Universitária de Dourados - Caixa Postal
351, CEP: 79804-970 - Dourados MS, Brasil, telefone 3902-2699 e e-mail cesh@uems.br. A
Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), por outro lado, tem a função de implementar as
normas e diretrizes regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos aprovadas pelo
Conselho. Tem função consultiva, deliberativa, normativa e educativa, atuando conjuntamente com
uma rede de Comitês de Ética em Pesquisa - CEP - organizados nas instituições onde as pesquisas
se realizam. A CONEP está situada à SEPN 510 Norte, Bloco A, 3º Andar Edifício Ex-INAN –
Unidade II- Ministério da Saúde, Bairro Asa Norte, CEP: 70750-521 – Brasília- DF, telefone (61)
3315 5878, e-mail conep@saude.gov.br.
1. Garantia de liberdade: É garantida aos sujeitos participantes a liberdade de se retirar a qualquer
momento da pesquisa e seus consentimentos de participação, sem qualquer prejuízo pessoal.
2. Garantia de confidencialidade: Os dados relativos à pesquisa advindos dos depoimentos
descritos serão analisados conforme a metodologia da pesquisa exploratória, sem identificação dos
sujeitos participantes.
3. Garantia do acompanhamento do desenvolvimento da pesquisa: É direito dos sujeitos
participantes e dever da equipe de pesquisadores mantê-los informados sobre o andamento da
pesquisa, mesmo que de caráter parcial ou temporário.
____________________________ ______________________________
Assinatura do Pesquisador Assinatura do Participante da Pesquisa
4. Garantia de isenção de despesas e/ou compensações: Não há despesas pessoais para os sujeitos
participantes em nenhuma etapa da pesquisa, como também não há compensações financeiras ou de
168
qualquer outra espécie relacionadas à sua participação. Caso haja alguma despesa adicional, esta
será integralmente absorvida pelo orçamento do estudo.
5. Garantia científica relativa ao trabalho com os dados obtidos: Há garantia incondicional
quanto à preservação exclusiva da finalidade científica do manuseio dos dados obtidos.
6. Garantia de entrega de 01 (uma) cópia do exemplar do trabalho: após a finalização da
pesquisa e apresentação para a Banca Examinadora, a pesquisadora entregará 01 (um) exemplar do
trabalho para o acervo da Secretaria Municipal de Educação de Porto Esperidião, MT.
7. Riscos: o risco é a possibilidade de danos à dimensão física, psíquica, moral, intelectual, social,
cultural ou espiritual do ser humano, em qualquer pesquisa e dela decorrente (item II. 22 da
Resolução CNS nº 466 de 2012). Ao utilizar o método biográfico, o qual abordará as histórias de
infância dos(as) velhas(as) chiquitanos(as), essa etapa provocará no sujeito participante o processo
de reflexão e rememoração de suas vivências do passado. Sendo assim, identificamos como riscos
durante a aplicação dos instrumentos para coleta de dados o fato de o entrevistado se sentir
constrangido e incomodado ao se lembrar de possíveis fatos ocorridos em sua infância ou até
mesmo se sentir cansado física ou psicologicamente durante seu tempo de envolvimento com a
pesquisa. Entretanto, essas situações serão amplamente esclarecidas pela pesquisadora aos(as)
velhos(as) na medida de sua compreensão sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos,
benefícios previstos, potenciais riscos e o possível incômodo dela resultante, respeitando-os em suas
singularidades.
8. Benefícios: a pesquisa poderá oportunizar ao(a) velho(a) chiquitano(a) evidenciar a sua maneira
de ser, de aprender e de viver por meio de suas histórias de infância e identidade étnico-cultural,
uma vez que os resultados poderão no futuro ampliar o diálogo entre os(as) velhos(as) indígenas, as
crianças indígenas/não indígenas e os profissionais que atuam na instituição escolar.
_______________________________ _______________________________
Assinatura do Pesquisador Assinatura do Participante da Pesquisa
Valorizar as fontes orais produzidas junto aos participantes e transpô-las para o âmbito escolar torna-
se uma proposta de reconhecimento da diversidade étnico-cultural do povo chiquitano na sociedade.
Quando o estudo for finalizado será realizada uma reunião na instituição escolar com a comunidade
escolar e com outros convidados para a divulgação dos resultados obtidos, como também com a
finalidade de garantir o retorno social aos sujeitos participantes da pesquisa.
9. Critérios de inclusão: são 06 (seis) os sujeitos participantes desta pesquisa (três do sexo
feminino e três do sexo masculino), com faixa etária superior a 63 anos, de origem indígena
169
chiquitano, integrantes do Grupo de curussé Asa Branca e moradores da zona urbana de Porto
Esperidião no Estado de Mato Grosso. Os(as) velhos(as) convidados e participantes da pesquisa
deverão assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O referido termo será
elaborado em duas vias, ficando uma retida com a pesquisadora responsável e outra com o(a)
velho(a) participante de pesquisa, conforme Resolução CNS nº 466 de 2012 itens IV. 3.f e IV.5.d.
10. Critérios de exclusão: como critério de exclusão adotou-se que não serão aceitos na pesquisa os
sujeitos (velhos/as chiquitanos/as) que não assinarem o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE) autorizando a sua participação na referida pesquisa. Enfatizamos que a
assinatura nesse documento atende a Resolução n. 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde.
Portanto, será excluído da pesquisa o sujeito que não autorizar sua participação por meio do TCLE.
Se, depois de consentir sua participação, o (a) Sr (a) desistir de continuar participando, tem o direito
e a liberdade de retirar seu consentimento em qualquer fase da pesquisa, seja antes ou depois da
coleta de dados, independente do motivo e sem prejuízo a sua pessoa. Os resultados serão analisados
e publicados, mas sua identidade será sempre mantida em sigilo.
________________________________ ________________________________
Assinatura do Pesquisador Assinatura do Participante da Pesquisa
_________________________________ __________________________________
Assinatura do Pesquisador Assinatura do Participante da Pesquisa
26
BORTOLETTO, Renata Silva. Os chiquitano de Mato Grosso. Estudo das classificações em um grupo indígena da
fronteira Brasil-Bolívia. 226 p. Tese (Doutorado). São Paulo: Departamento de Antropologia, Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Sociais (FFLCH), USP, 2007.
171
O contato com as professoras será no Centro de Educação Infantil Wictor Hugo Cerqueira Ribeiro
da Silva, local em que serão realizadas as oficinas de formação com toda a comunidade escolar,
agendadas com antecedência junto à equipe gestora. Posteriormente será elaborado e desenvolvido
um projeto de ensino que contemplará os elementos culturais chiquitanos junto às crianças do
Centro de Educação Infantil Wictor Hugo Cerqueira Ribeiro da Silva. Esse projeto terá a duração de
01 (um) bimestre e será acompanhado pela pesquisadora responsável nos momentos de
planejamento semanal junto às professoras regentes das salas que atendem as crianças de 05 (cinco)
anos.
Em qualquer etapa de desenvolvimento do protocolo, o (a) Sr (a) terá acesso à pesquisadora
e à coordenadora da pesquisa para esclarecimento de eventuais dúvidas. A orientadora do protocolo
de pesquisa é a Profa. Dra. Léia Teixeira Lacerda, que pode ser encontrada pelo telefone (67) 3901-
4608.
Se porventura você tiver alguma dúvida quanto aos procedimentos éticos envolvidos na
pesquisa, por favor, queira entrar em contato com a Coordenadora do Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu em Educação, Profa. Dra. Estela Natalina Mantovani Bertoletti pelo telefone (67)
3503-1006.
_________________________________ _______________________________
Assinatura do Pesquisador Assinatura do Participante da Pesquisa
_________________________________ ________________________________
Assinatura do Pesquisador Assinatura do Participante da Pesquisa
7. Riscos: O risco é a possibilidade de danos à dimensão física, psíquica, moral, intelectual, social,
cultural ou espiritual do ser humano, em qualquer pesquisa e dela decorrente (item II. 22 da
Resolução CNS nº 466 de 2012). Promover debates e reflexões na comunidade escolar sobre a
diversidade étnico-cultural e sobre o povo chiquitano poderá provocar desconforto entre os sujeitos
participantes por desconhecerem a temática abordada. Sendo assim, identificamos que os riscos
colocados pelo presente projeto limitam-se a debater questões que podem causar constrangimento a
alguns professores. Entretanto, essas situações serão amplamente esclarecidas pela pesquisadora aos
docentes na perspectiva de sua compreensão sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos,
benefícios previstos, potenciais riscos e o possível incômodo dela resultante, respeitando a etapa de
suas formações e atuação profissional.
173
10. Critérios de exclusão: como critério de exclusão adotou-se que não serão aceitos na pesquisa os
sujeitos (professoras) que não assinarem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
autorizando a sua participação. Enfatizamos que a assinatura atende a Resolução n. 466/2012, do
Conselho Nacional de Saúde. Portanto, será excluído da pesquisa o sujeito que não autorizar sua
participação por meio da assinatura do TCLE.
Se, depois de consentir sua participação na pesquisa, o (a) Sr (a) desistir de continuar participando,
174
tem o direito e a liberdade de retirar seu consentimento em qualquer fase da pesquisa, seja antes ou
depois da coleta de dados, independente do motivo e sem prejuízo a sua pessoa. Os resultados da
pesquisa serão analisados e publicados, mas sua identidade será sempre mantida em sigilo.
______________________________ ________________________________
Assinatura do Pesquisador Assinatura do Participante da Pesquisa
Porto Esperidião, Centro de Educação Infantil Wictor Hugo Cerqueira Ribeiro da Silva.
___________________________________________________________
Diretor
176
ANEXOS
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CONSIDERANDO que a Terra Indígena localizada nos municípios de Pontes e Lacerda, Porto Esperidião e Vila
Bela da Santíssima Trindade no Estado de Mato Grosso, ficou identificada nos termos do § 1º do art. 231 da
Constituição Federal e do inciso I do art. 17 da Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, como sendo
tradicionalmente ocupada pelo grupo indígena Chiquitano;
Resolve:
Art. 1º Declarar de posse permanente do grupo indígena Chiquitano a Terra Indígena PORTAL DO
ENCANTADO com superfície aproximada de 43.057 ha (quarenta e três mil e cinquenta e sete hectares) e
perímetro também aproximado de 121 km (cento e vinte e um quilômetros), assim delimitada: NORTE: partindo
do Ponto P-01, de coordenadas geográficas aproximadas 16°01'35,1"S e 59°31'46,00"WGr., localizado na
confluência de um córrego sem denominação com o Córrego Monte Cristo, segue pelo referido córrego, a
montante, até o Ponto P-02, de coordenadas geográficas aproximadas 16°03'22,1"S e 59°27'15,2"WGr.,
localizado em sua cabeceira; daí, segue pela Borda da Serra da Santa Bárbara até o Ponto P-03, de coordenadas
geográficas aproximadas 16°03'53,9"S e 59°23'47,9" WGr., localizado na cabeceira do Córrego Retiro. LESTE:
do ponto antes descrito, segue pela margem direita do Córrego Retiro, a jusante, até o Ponto P-04, de
coordenadas geográficas aproximadas 16°04'46,8"S e 59°23'34,3"WGr., localizado na margem do citado córrego;
daí, segue por uma linha reta até o Ponto P-05, de coordenadas geográficas aproximadas 16°05'03,4"S e
59°23'50,6"WGr., localizado na cabeceira de um córrego sem denominação, afluente do Córrego Azul; daí segue
pela margem direita do referido córrego sem denominação, a jusante, até o Ponto P-06 de coordenadas
geográficas aproximadas 16°06'59,6"S e 59°25'20,7"WGr., localizado na confluência com o Córrego Azul; daí,
segue por este, a jusante, até o Ponto P-07, de coordenadas geográficas aproximadas 16°07'40,5"S e
59°24'53,5"WGr., localizado na confluência com um córrego sem denominação; daí, segue por este, a montante,
até o Ponto P-08, de coordenadas geográficas aproximadas 16°07'42,7"S e 59°23'27,8"WGr., localizado na sua
cabeceira; daí, segue pela Borda Serra do Baú, até a o Ponto P-09, de coordenadas geográficas aproximadas
16°10'44,4"S e 59º22'02,9"WGr., localizado na Serra do Baú; daí, segue por uma linha reta até o Ponto P-10, de
coordenadas geográficas aproximadas 16°11'15,5"S e 59°21'38,8"WGr., localizado na margem direita de um
córrego sem denominação, afluente do Córrego Tarumã; daí, segue pela margem direita deste, a jusante, até o
Ponto P-11, de coordenadas geográficas aproximadas 16°12'45,4"S e 59°21'41,0"WGr., localizado na confluência
com o Córrego Tarumã; daí, segue pela margem esquerda deste, a montante, até o Ponto P-12, de coordenadas
geográficas aproximadas 16°13'17,4"S e 59°22'44,8"WGr., localizado na margem esquerda do citado córrego;
daí, segue por uma linha reta até o Ponto P-13, de coordenadas geográficas aproximadas 16°13'52,9"S e
59°22'45,00"WGr.; daí, segue por uma linha reta até o Ponto P-14, de coordenadas geográficas aproximadas
16°13'48,1"S e 59°24'45,3"WGr.; daí, segue por uma linha reta até o Ponto P-15, de coordenadas geográficas
aproximadas 16°14'35,2"S e 59°24'46,2"WGr.; daí, segue por uma linha reta até o Ponto P-16, de coordenadas
geográficas aproximadas 16°16'18,1"S e 59°25'11,6"WGr.; localizado na margem de servidão da rodovia MT-
265. SUL: do ponto antes descrito segue pela margem de servidão da rodovia MT-265, até o Ponto P-17, de
coordenadas geográficas aproximadas 16°15'45,2"S e 59°27'58,1"WGr., localizado na margem da referida
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rodovia; daí, segue por uma linha reta até o Ponto P-18, de coordenadas geográficas aproximadas 16°15'44,1"S e
59°29'16,6"WGr., localizado na confluência do Córrego São Miguel com o Córrego Fortuna; daí, segue por este, a
montante, até o Ponto P-19, de coordenadas geográficas aproximadas 16°14'39,8"S e 59°29'36,4"WGr.,
localizado na margem esquerda do Córrego São Miguel; daí, segue por uma linha reta até o Ponto P-20, de
coordenadas geográficas aproximadas 16°14'39,2"S e 59°30'19,3"Wgr.; daí, segue por uma linha reta até o Ponto
P-21, de coordenadas geográficas aproximadas 16°15'41,8"S e 59°30'15,8" WGr., localizado na margem de
servidão da rodovia MT-265; daí, segue pela faixa de servidão da referida rodovia até o Ponto P-22, de
coordenadas geográficas aproximadas 16°16'14,9"S e 59°29'37,1"Wgr.; daí, segue por uma linha reta até o Ponto
P-23, de coordenadas geográficas aproximadas 16°16'28,2"S e 59°29'38,1"WGr.; daí, segue por uma linha reta
até o Ponto P-24, de coordenadas geográficas aproximadas 16°16'27,4"S e 59°30'45,8" WGr. OESTE: do ponto
antes descrito, segue por linha reta até o Ponto P-25, de coordenadas geográficas aproximadas 16°15'25,7"S e
59°30'35,9"WGr., localizado no cruzamento do Córrego Tarumazinho com a rodovia MT-265; daí, segue pela
margem de servidão da referida rodovia até o Ponto P-26, de coordenadas geográficas aproximadas 16°14'50,3"S
e 59°31'22,7"WGr., localizado na margem da citada rodovia; daí, segue por linha reta até o Ponto P-27, de
coordenadas geográficas aproximadas 16°14'43,6"S e 59°31'18,1"WGr.; daí, segue por linha reta até o Ponto P-
28 de coordenadas geográficas aproximadas 16°14'23,3"S e 59°31'10,9"WGr., localizado na margem esquerda do
Córrego Tarumazinho; daí, segue pela margem esquerda do referido córrego, a montante, até o Ponto P-29, de
coordenadas geográficas aproximadas 16°13'13,9"S e 59°31'35,8"WGr., localizado na cabeceira do citado
córrego, junto ao pé da Serra do Aguapeí; daí, segue pelo pé da referida serra até o Ponto P-30, de coordenadas
geográficas aproximadas 16°13'08,9"S e 59°32'01,2"WG., localizado na margem de uma estrada vicinal; daí,
segue limitando com a referida estrada até o Ponto P-31, de coordenadas geográficas aproximadas 16°12'23,2"S e
59°32'01,4"WGr., localizado no cruzamento com o Córrego Água Branca; daí, segue por este, a jusante, até o
Ponto P- 32, de coordenadas geográficas aproximadas 16°12'28,2"S e 59°32'27,9"WGr., localizado na confluência
com um córrego sem denominação; daí, segue por linha reta até o Ponto P-33, de coordenadas geográficas
aproximadas 16°11'59,1"S e 59°32'46,0"Wgr., localizado na Borda da Serra Aguapeí; daí, segue pela borda da
referida serra até o Ponto P-34, de coordenadas geográficas aproximadas 16°11'35,9"S e 59°33'12,5"WGr.; daí,
segue por linha reta até o Ponto P-35, de coordenadas geográficas aproximadas 16°11'21,2"S e 59°34'00,1"WGr.,
localizado na borda da Serra de Monte Cristo; daí, segue pela borda da referida serra até o Ponto P- 36, de
coordenadas geográficas aproximadas 16°07'28,9"S e 59°35'27,5"WGr., localizado na borda da citada serra; daí,
segue por linha reta até o Ponto P-37, de coordenadas geográficas aproximadas 16°07'01,6"S e 59°34'58,1"WGr.,
localizado na confluência de um córrego sem denominação com o Rio do Meio; daí, segue por linha reta até o
Ponto P-38, de coordenadas geográficas aproximadas 16°06'33,8"S e 59°34'52,9"WGr., localizado na borda da
Serra de Monte Cristo; daí, segue acompanhando a borda da referida serra até o Ponto P-39, de coordenadas
geográficas aproximadas 16°01'48,2"S
e 59°31'56,3"WGr.; daí, segue por linha reta até o Ponto P-01, início da descrição deste perímetro. A - Base
Cartográfica utilizada é a seguinte: SC.21-Y-CIV, SC.21-Y-CV, SC.21-Y-AI, SC.21-Y-AII - DSG/IBGE - 1974 -
Escala 1:100.000. E as coordenadas geográficas são referenciadas ao Datum horizontal SAD-69.
Art. 2º Declarar que a terra indígena de que trata esta Portaria, situada na faixa de fronteira, submete-se ao
disposto § 2º do art. 20 da Constituição Federal.
Art. 3º A FUNAI promoverá a demarcação administrativa da Terra Indígena ora declarada, para posterior
homologação pelo Presidente da República, nos termos do art. 19, § 1º, da Lei nº 6.001/73 e do art. 5º do Decreto
nº 1.775/96.