A Evolução Do Processo Penal PDF
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RESUMO
O presente artigo tem por finalidade traçar uma linha histórica da evolução do processo
penal no mundo e demonstrar que o procedimento penal adotado, as garantias,
princípios, direitos assegurados aos acusados pela Constituição, e o modo pelo qual o
transgressor da norma penal será penalizado, possuem íntima ligação à forma de
governo adotada por cada Estado. Para isto, é feito um paralelo entre o modo que o
processo penal era conduzido em seus primórdios, no qual possuía a característica da
informalidade, no período absolutista, marcado pela ausência de regras limitadoras, e
pela ausência de controle interno ou externo do poder soberano além da falta de
legitimidade jurídica. Ao final se faz um panorama do processo penal hodiernamente,
surgido em resposta às arbitrariedades ocorridas durante o período absolutista, e que
estabelecem, ao referido ramo do direito, regras condizentes com um Estado
Democrático, as quais são capazes de garantir àqueles que guardam a condição de réu
em processo de natureza penal, a proteção aos seus direitos fundamentais.
1. INTRODUÇÃO.
1
Advogado Criminalista. Mestrando em Direito Público na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Pós-
Graduando em Ciências Criminais no Juspodivm. Professor de Processo Penal da Escola Superior da
Advocacia da Bahia (ESA). Graduado em Direito pela Universidade Salvador. Presidente do Conselho
Consultivo dos Jovens Advogados da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção do Estado da Bahia.
Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCcrim). Associado ao Instituto Baiano de
Direito Processual Penal (IBADPP).
2
HESSE, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional;textos selecionados e traduzidos por
Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho. São Paulo: Saraiva,
2009, p. 2.
conteúdo e a forma da Constituição irão captar as normas no processo de concretização
de um determinado modo. E, de acordo com a conjunção de ambos (forma de governo e
Constituição), o procedimento que conduzirá o acusado a uma definição sobre sua
inocência poderá assumir diversas feições3.
Torna-se inexorável abordar a evolução do processo penal para
entender sua função no Estado Democrático de Direito. Canotilho4, em determinado
momento, já alertava que “não basta defender uma teoria da constituição
constitucionalmente adequada ou salientar que os problemas da constituição dirigente
são, num Estado Constitucional, problemas de conexão da forma de Estado de Direito
com uma política democrática”.
Impõe-se, portanto, conhecer as principais formas de governo,
verificando que na mudança de um para o outro se modifica a Constituição e, em razão
disso, o modo pelo qual se está condenando um indivíduo. Afinal, como bem pontuou
Hesse, “Toda Constituição é Constituição no seu tempo; a realidade social, a que são
referidas suas normas, está submetida à mudança histórica e esta, em nenhum caso,
deixa incólume o conteúdo da Constituição” 5.
Entendida a evolução pretendida, como será proposta nas linhas
seguintes, ficará fácil perceber, em visão invertida, que se a Carta Política de um Estado
apresenta forma rígida, hierárquica e suprema a todas as normas do sistema normativo,
tendo como finalidade a concretização dos direitos fundamentais de seus cidadãos, é
porque se está diante de um sistema democrático. Portanto, nesse sistema, e com essa
Constituição, não será legitimado um curso de condenação que viole minimamente o
devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, a legalidade, a vedação as provas
ilícitas, a comunicabilidade do preso, o juiz natural, a não-culpabilidade, a duração
razoável do processo penal e as tantas garantias que se estabelecem em prol do acusado,
mesmo porque este ainda é um acusado e não um condenado, e o procedimento que
conduzirá a uma decisão acerca de sua culpabilidade (latu sensu) não pode estar eivado
de vícios e de tendências maliciosas, preconceituosas ou influenciado por discursos
meramente políticos.
Neste sentido, Pontes de Miranda asseverou que:
3
A maior profundidade do tema encontra-se na obra de: BAUMLIN, Richard. Staat, Recht und
Geschichte, Eine Studie zum Wesen des geschichtlichen Rechts, entwickelt an den Grundproblemen von
Verfassung und Verwaltung. Zürich: Basel, 1961, p. 7 e ss.
4
CANOTILHO, J.J. Gomes; MOREIRA, Vital. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3. Ed.
Coimbra: Almedina, 1997, p. 189.
5
HESSE, Konrad. Op. Cit., 2009, p. 13.
[...] o processo criminal reflete, mais do que qualquer outra parte do direito, a
civilização de um povo [...] onde o processo é inquisitorial, a civilização está
estagnada ou rola em decadência. Onde o processo é acusatório, com defesa
6
fácil, a civilização está a crescer ou a aperfeiçoar-se .
6
MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Democracia, Liberdade, Igualdade: os três caminhos. 2.
ed. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 36.
7
A relação estabelecida entre processo penal e Constituição destaca-se na obra de: COLOMER, Juan-
Luis Gómez. Constitución y Proceso Penal. Madri: Tecnos, 1996.
8
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 288-292.
9
NITTI, Francesco. Lá Démocratie. Paris: Alcan, 1933, p. 33.
10
BONAVIDES, Paulo. Op.cit, 2010, p. 288.
funcionamento da democracia direta grega, a saber: a) a base escrava, que concedia aos
cidadãos gregos a liberdade de se preocupar tão-somente dos negócios do Estado e; b) a
vontade de manter o Estado intacto e preservado dos rivais estrangeiros, coagindo os
homens gregos a se preocupar, de maneira altruística, com os negócios públicos, com a
afirmação de sua democracia (ou melhor, do povo helênico) perante as forças
inimigas11.
Além disso, a isonomia (em que todos são iguais perante a lei, sem
nenhuma diferença em decorrência da capacidade econômica ou de sua classe), a
isotimia (que vedava que nesta forma de governo houvesse qualquer privilégio em razão
de títulos ou funções hereditárias, em que todos os cidadãos tinham livre acesso à coisa
pública) e a isagoria (que concedia a todos os mesmos direito de palavra, podendo,
assim como seus semelhantes, debater em igualdades de condições, se expressando
pelos mesmos modos e em iguais quantidades que todos os outros cidadãos ali
presentes) são características marcantes desse modelo democrático12.
O principal ponto negativo que se destaca na democracia antiga é o
fato de ter ocorrido a escravidão. Para Hegel 13, que lidera a crítica moderna a respeito
desse regime, os antigos não viviam em democracia, mas, sim, em uma aristocracia
democrática. No entanto, em que pese as pertinentes críticas, é com as palavras talhadas
de Péricles, citado por Viamonte, que se verifica o espírito democrático grego. Pela
fidelidade do texto e autenticidade com que se destaca o modelo instalado nesse regime,
impões-se a transcrição verbum ad verbum:
11
ALENCAR, José de. Sistema Representativo. Rio de Janeiro, 1868, p. 36.
12
Com maior profundidade sobre o tema consulte: NITTI, Francesco.Op. cit., 1933, p. 42 e ss.
13
HEGEL, Geoge Wilhelm Friedrich. Grundlinien der Philosophie dês Rechts. 3. ed. Stuttgar:
Frommans, 1952.
14
VIAMONTE, Carlos Sanchez. Manual de Derecho Político. Buenos Aires: Editorial Bibliográfica
Argentina, 1959, p. 186
Constituição e o Processo Penal? Se forma de governo, Constituição e Processo Penal
estão constituídos de elementos que se associam e formam uma unidade, como se
comportava, na democracia antiga, a Constituição e o Processo Penal?
A Constituição, importante dizer, não é um privilégio dos tempos
modernos, ela sempre existiu15. Acontece que a forma assumida pelo texto supremo
estatal no povo antigo diferencia-se muito da realidade atual, pelo fato de, naquela
época, não existir a forma escrita da Constituição. Entretanto, mesmo na antiguidade,
percebe-se que existiam dois tipos de normas, uma destinada a organizar o poder
político, fixando os seus órgãos, estabelecendo atribuições, os freios e contrapesos, 16 e
outras, de menor hierarquia, reservadas para regular o comércio, os jogos esportivos, a
aquisição de territórios e demais práticas do dia-a-dia. Inclusive, Aristóteles17
diferenciava as normas como sendo umas de organização (espécie de normas
constitucionais) e outras de normas de regulamentação (que deveriam estar em
conformidade com a norma superior).
O procedimento que levava à condenação é marcado pelos acusadores
privados, pela paridade entre as partes, da total proibição de os juízes influenciarem as
provas – o que torna esta atividade a cargo das partes -, da vedação a denúncia anônima
(princípio ne procedat iudex ex officio) e da punição para aquele que cometesse uma
denunciação caluniosa, sem contar a necessidade de a acusação apontar quais provas
iriam utilizar, sendo os julgamentos públicos, com garantia do contraditório e da ampla
defesa18.
A informalidade é característica da Democracia Direta. E, por isso, o
curso processual que conduzirá um inocente a ser considerado culpado, nesse momento,
será marcado pela virtude dos homens, a lealdade, a confiança, a isonomia, isotimia,
isagoria . Esse momento é delimitado pela simbiose dos cidadãos com a sociedade,
como se o Estado fosse um prolongamento de sua vida pessoal, um dado imprescindível
para própria existência humana, e essa característica está enraizada, também, no
processo penal (se é que assim já se pode denominá-lo).
15
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de Constitucionalidade. 2. ed. Salvador: Jus Podivm, 2007, p.
23, Sobre o tema assim se manifestou: “Isso porque, em qualquer época e em qualquer lugar do mundo,
em havendo Estado, sempre houve e sempre haverá um complexo de normas fundamentais que dizem
respeito com a estrutura, organização e atividade”.
16
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 27. ed. atual. São Paulo:
Saraiva, 2001, p. 3.
17
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985.
18
A este propósito, veja: SENDRA, Vicente Gimeno. Fundamentos Del Derecho Procesal. Madri:
Civitas, 1981, p. 190.
3. O PROCESSO PENAL NA MONARQUIA ABSOLUTISTA.
19
Sobre esta evolução recomenda-se: BASDEVANT-GAUDEMET, Brigitte; GAUDEMET, Jean.
Introduction historique au Droit – XIIIe. – Xxe. Siècles. Paris: LGDJ, 2000.
20
Ibidem, Loc.cit.
21
Com mais profundidade sobre o tema: DALLARI, Dalmo de Abreu. A Constituição na vida dos povos:
da idade Média ao Século XXI. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 46.
22
Ibidem, Loc.cit
jogo eram feitas, executadas e julgadas por ele, não estando, inclusive, submetido a
nenhuma delas. A complexidade política dessa forma de governo só faz aumentar com o
passar dos anos, pois cada vez mais se busca uma pessoa capaz de exercer o poder
soberano, alguém que pudesse impor limite aos ilimitados23.
O Imperador e o Papa se comportam como se estivessem um mando
universal, pois “para manter sua autoridade, esse governante supremo não poderá
dividir o poder nem admitir contestações a suas determinações, como também não
poderá admitir que alguém imponha limitações ao seu poder. O seu poder deverá ser
absoluto [...]”24. A relação travada entre os dois donos do universo se dá em tom de
complementaridade, uma vez que o imperador busca uma legitimação ideológica para o
exercício desmedido de sua soberania, e o Papa necessita de um apoio militar do Estado,
como forma de se proteger dos constantes ataques daqueles que não acreditam no
cristianismo25.
As principais características do Absolutismo são: a) ausência de regra
limitadora; b) ausência de qualquer controle (interno ou externo) do poder soberano e;
c) falta de legitimidade jurídica. E se a escravidão da democracia antiga foi tão
criticada, esse período leva alguns autores a concluir que o Absolutismo é “um modelo
de poder político, sem identificação com um período histórico [...]”26, fruto dos mandos
e desmandos dos reis, dos imperadores e dos papas, que passaram a escrever a história
debaixo de muito sangue e opressão.
Infere-se, assim, que a Constituição e o Processo Penal estão
subordinados à vontade do soberano. Não havia uma organização básica para os que
viviam naquela unidade política, logo o poder do soberano era exercido de acordo com
seu juízo de discricionariedade. A Constituição não passa, por óbvio, de um ideal
imaginário visualizado na figura do rei, ou melhor, como afirmara Luís XIV, em célebre
frase, “o Estado sou eu”. A Constituição era o soberano, ele se responsabiliza por
estabelecer os limites a todos, seja no ordenamento jurídico ou no campo social.
A consequência desse panorama histórico é o surgimento do Direito
Canônico e da Santa Inquisição27. O Direito Canônico tem sua importância “por
23
Ibidem, Loc.cit
24
DALLARI, Dalmo de Abreu. Op. cit., p. 67.
25
Acerca do cristianismo apropriada à obra de: HILAIRE, Yves-Marie (Coord.). Histoire de la papauté.
Paris: Ed. Tallandier, 2003.
26
DALLARI, Dalmo de Abreu. Op. Cit., 2010, p. 67.
27
MAIER, Julio. Antologia El proceso penal contemporâneo. Perú: Palestra Editores, 2008, p. 165.
representar a certeza e a segurança de um direito escrito”28, entretanto tem como
malefício a normatização de diversos crimes contra a igreja. Nesse momento, inverte-se
a lógica que vinha sendo adotada na Grécia antiga e desaparecem quase todas as
garantias ao acusado, instalando-se um processo penal cuja bússola é o sistema
inquisitório.
Mais precisamente, é nos idos do século XII que esse sistema começa
a coordenar o processo penal29, marcado por ter proporcionado um regresso histórico
sem igual, que sucumbia o contraditório, a ampla defesa e reunia na mesma pessoa do
juiz as funções de acusar e julgar. Além do Absolutismo e da ineficácia dos órgãos
privados, aponta-se a adoção do catolicismo como religião oficial do Estado como um
dos fatores contributivos para chegada de um processo penal tão opressor30.
Na verdade, o que se vê é uma mudança completa de dogmas. Não se
pode afirmar, com absoluta certeza, se a ineficiência das partes em coletar as provas
essenciais para acusação foi a mola propulsora para desencadear um sistema tão
opressor como o que surgiu, ou se os ideais do interesse público, da verdade real, da
infalibilidade dos representantes de Deus (Bispo e o Papa) são decisivos para que, aos
poucos, os magistrados tenham autoridade para investigar, coletar provas, acusar e
julgar, tudo numa sequência impiedosa de atos31. Aliás, como sói dizer Coutinho, “ao
inquisidor cabe o mister de acusar e julgar, transformando-se o imputado em mero
objeto de verificação, razão pela qual a noção de parte não tem nenhum sentido”32.
No sistema inquisitório o processo é secreto, escrito e não possui
ampla defesa, contraditório, sendo as provas movidas pelo princípio legal de valoração,
onde o acusado responde a todo processo preso, sofrendo com a tortura e não tendo
direito à coisa julgada. Há a hierarquização das provas, sendo a confissão a principal
prova33 do sistema inquisitório, ao ponto de vedar que a testemunha provasse situações
28
Nesse sentido: DALLARI, Dalmo de Abreu. Op. Cit., 2010, p. 59, embora esse mesmo autor advirta
que o fato do direito ser escrito pode gerar manipulação dos intérpretes, senão veja: “[...] a linguagem
escrita sempre podia ser manipulada por quem escrevesse textos legais e, inevitavelmente, deixaria
margem a interferência de intérpretes”.
29
BOFF, Leonardo. Prefácio. Inquisição: um espírito que continua a existir. In: Directorium Inquisiorum
– Manual dos Inquisidores. Nicolau Eymerich. Brasília: Rosa dos Tempos, 1993.
30
MARQUES, Frederico. Op. cit., 1980, p. 82.
31
ALONSO, Pedro Aragones. Proceso y Derecho Procesal. 2. ed. Madri: Edersa, 1997, p. 42.
32
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O Papel do Novo Juiz no Processo Penal. In: Crítica à
Teoria Geral do Processo Penal. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (org.). Rio de Janeiro: Renovar,
2001, p. 23.
33
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões. Trad.Raquel Ramalhete. 34.
Ed. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 35, revela que há uma ambiguidade na confissão enquanto prova, porque
se “Por um lado, tenta-se fazê-lo entrar no cálculo geral das provas; ressalta-se que ela não passa de uma
fáticas (prevalece aqui o princípio do testis unus testis nullus). Com essa hierarquização
das provas, e diante da permissão da tortura, há uma enorme ameaça psicológica. Os
interrogatórios duravam horas, os acusados eram torturados e ameaçados, até admitir o
delito, que muitas vezes não haviam cometido. Tudo isso fruto da relação simbiótica
entre delito e pecado.
O sistema inquisitivo é ilustrado por Eymerico, no seu Manual da
Inquisição, ao dizer que “é dado o tormento ao réu para apressar a confissão dos seus
delitos”34, devendo colocar o acusado nu e “os verdugos e ajudantes deverão mostrar
inquietação, pressa e tristeza, procurando meter-lhe medo”35, sendo o caso de não
querer admitir a acusação “serão mostrados os instrumentos de outros suplícios,
dizendo-lhe o que sofrerá se não confessar a verdade”36. Feito tudo isso, caso o acusado
não confesse nada “o inquisidor deverá colocá-lo em liberdade através de uma sentença
que expresse que “depois de um atento exame da causa, não resultou prova legítima do
delito o qual havia sido imputado”37.
E, se a tortura que ocorre dentro do processo, quando não se tem ainda
a verdade real, já apresenta violação aos direitos fundamentais, a execução da sentença
de condenação38 é ainda pior. Esta ocorre em praça aberta, para que sirva de lição para
aqueles que pretendiam delinquir um dia. É a forma mais bárbara de prevenção ao
crime, tornando-se, em verdade, numa medida contraproducente, pois a resposta do
Estado ao delito não pode ser mais violenta e causar um maior choque na sociedade do
que o próprio crime39.
A Idade Média, apesar das atrocidades cometidas, não foi o momento
histórico em que não se pensou em Constituição. Quando se diz que foi a época das
trevas, tenta-se simbolizar o sistema opressivo que foi imposto. Não deve prosperar a
ideia de que não houve nenhum desenvolvimento do pensamento constitucional durante
delas; ela não é a evidetia rei; assim como a mais forte das provas, ela sozinha não pode levar à
condenação, deve ser acompanha de indívios anexos, e de presunções; pois já houve acusados que se
declaram culpados de crimes que não tinham cometido; o juiz deverá então fazer pesquisas
complementares, se só estiver de posse da confissão regular do culpado. Mas, por outro lado, a confissão
ganha qualquer outra prova.
34
EYMERICO, Nicolau. Trad. A. C. Godoy. Manual da Inquisição. Curitiba: Juruá, 2001, p. 49
35
Ibidem, Loc. cit.
36
Ibidem, Loc. cit.
37
Ibidem, Loc. cit.
38
A título de exemplo, pode-se utilizar a execução da pena ocorrida na França em 2 de março de 1757 de
Damiens destacada na obra de: FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história da violência nas prisões;
trad.Raquel Ramalhete. 34. Ed. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 9 e ss.
39
ZAFARRONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 2.
ed. São Paulo: RT, 1999.
a monarquia absolutista, muito pelo contrário. Talvez tenha sido em decorrência desse
sistema que houve, período medieval, um enorme aprofundamento da noção de
Constituição, desaguando, em seguida, na democracia moderna (ou no
constitucionalismo moderno)40.
44
DÍAZ, Elias. Estado de Derecho y Sociedad Democrática. Madrid: Editorial Cuadernos para El
Diálogo, 1973, p. 29 e ss.
45
CHEVALLIER, Jacques. L´État de Droit. 4. ed. Paris: Montchrestien: 2003, p. 13.
46
VIDAL NETO, Pedro. Estado de Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 157.
47
LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Los Derechos Fundamentales. 7. ed. Madrid: Tecnos, 2001, p. 220.
48
VERDÚ, Pablo Lucas. Teoría de la Constitución como ciência cultural. 2. ed. Madrid: Dykinson,
1998, p. 2-6.
49
Sobre esta primeira fase do capitalismo, recomenda-se a leitura de: DRUKER, Sampaio. Direito
Constitucional: comentários à Constituição de 1946. São Paulo: Max Limonad, 1960.
50
NUNES, Antonio José Avelãs. Os sistemas económicos (O capitalismo – génese e evolução). Coimbra:
Serviço de Textos dos Serviços Sociais da Universidade de Coimbra, 2005.
uma unificação do mercado mundial, internacionalização do capital e, ao invés de
existirem pequenos comerciantes, passa-se a contar com grandes potências econômicas,
que através de acordos entre si, devendo determinar o preço do mercado. Essa fase é
marcada por crises cíclicas, conhecida como fase do capitalismo monopolista51. O
Estado de Direito sente duras quedas, vez que o poder econômico volta a dominar o
poder político, a liberdade e o individualismo são tidos como direitos estanques,
havendo uma afetação no campo social.
Os grandes detentores do poder econômico, influentes no poder
político, não desejam abrir mão das suas enormes fatias do bolo. Investir no social
significa majorar os tributos, enrijecer direitos trabalhistas, proporcionar um plano
previdenciário com bases sólidas, medidas custosas para o capital monopolista52. Logo,
conter os movimentos sociais, revelados pela criminalidade, será mais vantajoso através
de mecanismos processuais mais rígidos, distantes, por óbvio, dos preceitos
democráticos.
Ressurge a necessidade de o Estado intervir na economia, através do
desenvolvimento de políticas e prestação de serviços públicos capazes de proporcionar
redistribuição de riqueza e justeza social53. Dá-se início à segunda grande fase da
democracia moderna: o Estado Social de Direito.
O movimento social firmava seus fundamentos nos princípios da
igualdade material e solidariedade, exprimindo a questão social e erigindo o problema
da miséria e da fome causado pelo capitalismo industrial monopolista. A demanda
social, no dizer de Miguel Calmon:
51
Ibidem.
52
A vontade dos grandes grupos econômicos em perpetuar o sistema da intervenção mínima estatal é bem
detalhado por: ANDERSON, Perry. Balanço do Neoliberalismo. In: Pós-neoliberalismo. Perry Anderson
(org). 6. ed. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2003.
53
GARCÍA-PELAYO, Manuel. Las Transformaciones Del Estado Contemporáneo. Madrid: Alianza,
1997.
54
DANTAS, Miguel Calmon. Constitucionalismo Dirigente e Pós-Modernidade. São Paulo: Saraiva,
2009, p. 182.
reduzir as desigualdades provocada pela revolução industrial, já que a neutralidade
estatal no início da democracia moderna custou caro para o povo. Afinal, como sói dizer
Verdú, “o quantitativo social refere-se à correção do individualismo clássico liberal para
afirmação dos chamados direitos sociais e realização de objetivos de justiça social”55.
Porém o Estado Social, com o passar dos anos, revela que é
insuficiente pensá-lo como Estado Material de Direito, pois se verifica ambiguidades
em sua construção, ideologias opostas dentre de um mesmo modelo, o que desvenda as
diversas interpretações dadas à palavra social. Não à toa que a Alemanha nazista se
dizia social (baseada na Constituição de Weiber), a Itália Fascista e o próprio Brasil
durante o governo de Getúlio Vargas também possuíam discurso distribuidor. Pertinente
a conclusão de Bonavides de “que o Estado Social se compadece com regimes políticos
antagônicos, como sejam a democracia, o fascismo e o nacional-socialismo”56. Por isso
nota-se que se os excessos cometidos pelos liberais proporcionaram uma tremenda
desigualdade social, guiça as atrocidades cometidas em alguns Estados nesses moldes
interventor.
A Alemanha de Adolf Hitler é um dessa incompatibilidade, por tentar
minorar os danos sociais em seu país através da opressão aos judeus, considerados por
ele um mal para sociedade, pois não repartiam o que ganhavam e ainda impunham duras
regras de comércio. A justificativa de cumprir os deveres da Constituição de Weiber foi
instaurado um processo penal condutor de holocaustos e um regime social totalitário57.
A desvalorização provocada nesse período fez sentir a necessidade de
proteger com unhas e dentes direitos inerentes à pessoa humana. A declaração dos
direitos humanos de 1948 é um exemplo claro disso58.
Sendo assim, ergue-se a nova fase da democracia moderna, marcada
pelo pluralismo (de ideias, culturas e etnias), pela sociedade livre, solidária e justa, pela
participação do povo, sendo um procedimento de libertação da pessoa humana do
formato opressor reconhecendo os direitos “individuais, políticos e sociais, mas
55
VERDÚ, Pablo Lucas. Op. cit., 1998, p. 137.
56
BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7. ed. 2. tir. São Paulo: Malheiros Editores,
2004.
57
SILVA, José Afonso da. Op. Cit., 2008, p. 115 e ss.
58
Esta constatação é bem nítida na obra de: BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. 6ª Edição.
São Paulo: Editora Paz e Terra, 1997. Consulte, para tanto, nesta caracterização: HÄBERLE, Peter. A
dignidade humana como fundamento da comunidade Estatal, in: Dimensões da Dignidade: Ensaios de
Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, que diz: “A
dignidade humana como “reação” aos horrores e violações perpetrados na Segunda Guerra Mundial é,
nesses textos, digna de nota, mas também importa destacar a dimensão prospectiva da dignidade,
apontando para a configuração de um futuro compatível com a dignidade da pessoa”, p. 91.
especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu
pleno exercício”59.
O próprio Estado Democrático é aquele voltado para efetivar os
direitos do homem:
Para Bobbio:
[...] direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do
mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e
protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições
61
mínimas para a solução pacífica dos conflitos .
59
BOBBIO, Norberto, Op. cit., 1997, p. 119-120.
60
DANTAS, Miguel Calmon. Op. Cit., 2009, p. 338.
61
BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. Nova Edição. Trad. Carlos Nelson Coutinho; apresentação de
Celso Lafer. 4ª Reimpressão. Rio de Janeiro: Campus, 2004, p. 21.
62
sentido que ésta adopte, deberá ser equitativa e imparcial .
62
NORES, José I. Cafferata. Proceso Penal y Derechos Humano. Bueno Aires: Editores Del Puerto,
2000, p. 23-24.
63
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução de: Mauro Gama e Cláudia
Martinelli Gama: Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
64
BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott (orgs). Modernização Reflexiva - política, tradição e
estética na ordem social moderna. São Paulo. UNESP Editora, 1997.
Os procedimentais, como pretende Habermas65, através da teoria do
discurso, compreendem que o procedimento racional é o modus operandi real de
concretização da Democracia Moderna. Os substancialistas-materiais, como é o caso de
Streck66, centralizam seu comando de efetivação nos direitos fundamentais, defendendo
que pouco importa o procedimento adotado, pois o significante mesmo é a eficácia dos
direitos fundamentais pelos meios legítimos, sem dar tanta relevância para os
procedimentos ou meios pelos quais se chegou ao resultado pretendido. Tavares,
inclusive, aponta com exatidão de que forma se pode ter um procedimento racional que
prima pela eficácia dos direitos fundamentais sem preterí-los, senão vejamos:
5. CONCLUSÃO.
65
HABERMAS, Jürgen. Zur Legitimation Durch Menschenrechte. In Das Recht der Republik. Frankfurt
am Main: Suhrkamp, 1999.
66
STRECK, Lênio Luiz. A Hermenêutica Jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
1999.
67
TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 83.
já não é mais suficiente para tutelar no seu pleno os direitos individuais que são
garantidos aos cidadãos68.
Nessa nova fase de evolução humana, não se deve larguear qualquer
conjectura de um processo penal constitucional, se não aquele que visualize na norma
fundamentadora a bússola que conduzirá todo o sistema de condenação. Devido
processo legal, contraditório, ampla defesa, vedação as provas ilícitas, juiz natural,
promotor natural, dentre as outras garantias deixam de ser meros indicadores do
caminho a ser seguido para serem parâmetros obrigatórios69.
68
Essa pretendida visão rejuvenescida já encontrava parâmetros em: DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito
Processual Penal. Reimpressão da 1. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2004.
69
Neste sentido: SUANNES, Adauto. Os Fundamentos Éticos do Devido Processo Penal. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1999.
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