A Estética Como Política
A Estética Como Política
A Estética Como Política
Rogério Mattos
do Colunas Tortas
Para Rancière, arte implica na constituição das formas de vida “comum”, passa pela
constituição da voz àqueles que só podem murmurar ou fazer barulho.
A relação entre estética e política é então, mais precisamente, a relação entre essa estética da
política e a “política da estética”, isto é, o modo pelo qual as próprias práticas e formas de
visibilidade da arte intervêm na partilha do sensível e em sua reconfiguração, pelo qual elas
recortam espaços e tempos, sujeitos e objetos, algo de comum e algo de singular. Utopia ou
não, a tarefa que o filósofo atribui à tela “sublime” do pintor abstrato, solitariamente
pendurado na parede branca, ou aquela que o curador de exposição atribui à instalação ou à
intervenção do artista relacional se inscrevem na mesma lógica: a de uma “política” da arte
que consiste em suspender as coordenadas normais da experiência sensorial. O primeiro
valoriza a solidão de uma forma sensível heterogênea, o segundo, o gesto que desenha um
espaço comum. Mas esse dois modos de colocar em relação a constituição de uma forma
material e a de um espaço simbólico talvez sejam as duas faces de uma mesma configuração
originária, que liga a particularidade da arte a um certo modo de ser da comunidade”.
Quando Rancière diz que toda questão consiste em “saber quem tem a palavra e quem tem
apenas a voz”, quem emite o barulho ou lança a voz, nos remete (já que ele se refere a
Aristóteles) às categorias muito bem elaboradas, mas por outro filósofo, Giorgio Agamben, isto
é, às relações entre zoé e bíos1. A primeira se constitui aquém do oikós, do governo da família,
do ser humano nu, do condenado, do – na expressão famosa – homo sacer. O homem pleno
de direitos, o que frequenta a Assembléia e o Teatro, passa a ser condicionado a um regime
completamente inverso ao do “cidadão pleno”, sempre ateniense, quando a própria vida, o
bíos, passa a ser objeto de controle. Não falamos aqui da “sociedade punitiva”, como
apontada por Foucault, mas na que lhe sucede, principalmente a partir da segunda metade do
século XX, no que foi chamado num texto tardio de Deleuze, de “sociedade de controle2”.
Quando o homem como animal passa a ser objeto de uma política, ao participar dela (é de
Hannah Arendt, em seu livro A condição humana3, que Agamben retira seu conceito) não mais
como “animal político”, mas como “animal laborans”, ocmo trabalhador sujeito a participar da
política, porém nesse mesmo mundo social, como “trabalhador” e não mais como “político”
(como na Antiguidade), a zoé, a vida nua, é exposta em pleno campo social, distinguindo o
que, talvez sumariamente Rancière expõe como aqueles que “não tem tempo” (apesar de
cidadãos), daqueles que podem estar, evidentemente na assembleia do povo.
O recorte histórico que traça a emergência desse paradigma, é o mesmo em Agamben, Arendt
ou no pós-escrito de Deleuze. O mundo que nasce aqui talvez possa ser chamado de
biopolítico, e leva à problemática do surgimento da voz. Nas palavras de Rancière, a palavra
política aparece com um significado bem distinto, e em consonância com as pesquisas mais
modernas que sabem distinguir não só o barulho, mas o murmúrio, das palavras: “A política
consiste em reconfigurar a partilha do sensível que define o comum de uma comunidade, em
nela induzir novos sujeitos e objetos, em tornar visível o que não era visto e fazer ouvir como
falantes os que eram percebidos como animais barulhentos”. Estes, o homo laborans, para
transformar sua palavra em voz, precisam do contrário do que Walter Benjamin chamou de
“estetização da política4”. Talvez não uma política estetizante, mas uma política da estética,
que seja ao mesmo tempo uma arte da própria estética sob o nome de uma poética da arte –
das imagens como contato, como reconfiguração do aurático e atualização do anacronismo;
como objetos que vemos, mas principalmente que nos olham, para lembrar as penetrantes
reflexões de Georges Didi-Huberman5.
Beckett e Kafka
E quem mais encarna esse conceito de vida nua, do murmúrio, mas até mesmo do barulho (o
esquizofrênico), do que a obra de Samuel Beckett? Os personagens não somente marginais,
mas loucos, vagabundos, que estão sempre em um não lugar, cuja psicologia é mutante, como
tão são suas percepções. Seria sua trilogia francesa a história de um só personagem? Eles
pertencem ao mesmo mundo social normal, ou estão em algum lugar além da lei, da norma,
do nomos? Voltam eles alguma vez à luz do dia? Como caracterizar em traços mais definitivos
Malone, Molloy e o Inominável9? Existe um nome para o ser humano, um nome para sua
morte, uma bela história que lhe conte sua existência? Samuel Beckett foi talvez quem melhor
soube expor, ao dar voz artisticamente, aos murmúrios que se ouvem após a catástrofe, à
chusma barulhenta que se segue ao mundo dominado pela barbárie.
Falo deste lugar além do nómos para lembrar de Kafka e das razões pelas quais Deleuze,
quando falou das “sociedades de controle”, diz ter este escritor pertencido ao momento de
transição entre esta sociedade e a chamada “punitiva”. Sua indecisão perante a lei no
Processo10, entre o lado de cá e o lado de lá do nómos, é correlata à sociedade do entre
guerras, do nacional-socialismo que logo após surge, e da necessidade, dita por Benjamin, de
se criar um estado de exceção permanente para se combater o estado de exceção que se
instalara. Walter Benjamin contra Carl Smith, e não como comentador de sua utopia chamada
“teologia política”, como certa crítica, com relativo sucesso, conseguiu colocar11. O estado de
exceção aludido por Benjamin é exatamente o estado revolucionário, caracterizado por
Deleuze como os momentos em que a arte coincide com a política, no que chamou de “a
gargalhada de Nietszhe12” (Castro quando toma Havana, Giap a nacionalizar o Canal de Suez).
É ultrapassar o lugar da lei, dos usos comuns, não cair na indecisão kafkiana – feitos somente
conhecidos no mundo do pós-guerra, quando esses lugares e identidades relegadas ao
mutismo ou ao burburinho (“não temos tempo, não temos condições de ter tempo”) fizeram
coincidir um ato político com a a plasticidade de uma obra de arte, realizando o ideal exposto
por Jacques Rancière, o da “partilha do sensível”, ou seja, redefinindo o comum de uma
comunidade ao “tornar visível o que não era visto e fazer ouvir falantes os que eram
percebidos como animais barulhentos”. Transformar o murmúrio em voz, o barulho em
harmonia, é abrir espaço à alegria mas não aquela soberba, mais contida, como no caso da
ironia, do sorriso irônico; mas abrir espaço para a alegria incontida, para a gargalhada, como
somente Nietzsche pode exemplificar.
Portanto, a solidão do quando frente a parede branca pode ser também a do autor que se
auto-exila, a do que se descobre morto, ou o do que se isola da sociedade através de uma
“fúria aquilina” (a vingança de Aquiles depois da morte de Pátroclo, na Ilíada). Num mundo de
massas16, num mundo do barulho onde habita o “animal laborans” - não o mundo da pólis, o
mundo de Atenas – existe um escapismo característico, um modo de fugir da multidão, como
no caso do flaneur, como visto por Benjamin através de Baudelaire.
Em Longe de Ramiro, Chico Mattoso narra o auto-exílio de seu personagem num hotel talvez
imaginário; um exílio, quem sabe, o tempo todo feito em sua própria casa, transcorrido num
tmepo indefinido, que pode ter sido de meses ou horas, mas que acaba abruptamente com a
chegada de sua mulher. Esta aparece talvez menos por estar procurando-o, desesperada, do
que por um ato de rotina, o que coloca em cheque – propositalmente – todo o longo tempo de
exílio do escritor em seu hotel supostamente imaginário. Lugar este que dá lugar à ficção pura
(a convivência no hotel – que poderia ter sido qualquer hotel ou uma mistura de hoteis
frequentados pelo escritor – e todos os personagens e hábitos excêntricos aos seus olhos) e
também se mescla com recordações de infância, com a sua mulher (que, como na aura
benjaminiana, como no sonho, lhe vê de longe enquanto o autor lhe toca com seu olhar), e
demais descrições da vida cotidiana que nos sugere uma auto-reflexão do autor (“é tudo isso
real?”, parece se perguntar) em meio a toda uma fauna ficcional (“tudo imaginação...”).
Logo, como destaca Rancière, a implicação da arte na constituição das formas de vida
comum”, passa pela constituição da voz àqueles que só podem murmurar ou fazer barulho,
como nos trabalhos de Beckett. Passa também pelo reino da utopia, pelo “outro lado da lei”,
como se Joseph K. fosse atravessar o o portal. Na verdade, interromper o mundo das horas,
das normas, das leis – o Intempestivo. Como fala Rancière, a política da arte “consiste em
suspender as coordenadas normais da experiência sensorial”. Neste “não-lugar” abre-se
espaço para a constituição da vida num lugar comum.
É para trazer esse lugar comum para a arte que principalmente dois dos autores
contemporâneos que mencionamos, Mattoso e Cuenca, procuram retrabalhar sua arte
repensando sua própria via. Se o lugar para discussões metafísicas ruiu ou se deslocou oara
paragens ainda não identificadas, está certo Michel Foucault quando fala que no mundo
contemporâneo há antes espaço para uma ética da existência do que para uma moral da alma.
Esse trabalho de si sobre si, esta estilística da existência é p que deve ser buscada, ainda que
por sobre a desconstruções ou montagens, no trabalho de uma ficção firmementeentrelaçada
com a vida, nem que seja, como Beckett, para escapar – com todo gênio –, e dar voz à vida nua
A partilha do sensível apontada por Rancière em seu texto aponta, ao final, para esse lugar
comum (não mais a assembléia ou o teatro) onde se “encontram a solidão e a passividade das
obras de arte”. Este lugar silencioso e comum pode ser o espaço dos leitores, espécie de
comunidade que é toda a comunidade literária. Lá, depois da solidão e o encontro com a
passividade da obra literária, podemos implicar a arte na constituição de formas de vida
comuns. No tão silenciosas como os museus, mas tão prolíferas quanto na tarefa de pensar a
política como forma de arte, ou se constituir uma política (ou políticas) da arte.
Rogério Mattos: Professor formado em História, mestre em Letras pela UERJ e doutorando em
Filosofia pela mesma faculdade. Mantém o site http://www.oabertinho.blogspot.com, onde
publica alguns de seus escritos.
1AGAMBEN, Giorgio. Homo scaer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG,
2002.
3ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 2000.
4BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense,
1986.
5DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010.
6AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Aushwitz: o arquivo e a testemunha (Homo sacer III). São
Paulo: Boitempo, 2008.
7Ver a edição portuguesa da editora Assírio & Alvim publicada em 2008, Bartleby, a escrita da
potência. Nela se encontra tanto o conto de Herman Melvile, Bartleby, o escrivão, quanto o
ensaio de Agamben, Bartleby, ou Da Continegência.
8Aludo aqui aos últimos escritos de Michel Foucault, como os dois últimos volumes da História
da sexualidade quanto os cursos ministrados no Collège de France desde A hermenêutica do
sujeito.
9São os três “romances do pós-guerra” de Beckett, que constam em traduções recentes para o
português brasileiro da editora Globo.
12DELEUZE, Gilles. A gargalhada de Nietzsche. In: Ilha deserta e outros textos. São Paulo:
Illuminuras, 2006.
13CUENCA, João Paulo. Descobri que estava morto. São Paulo: Tusquets, 2016.
16 Seria talvez interessante a discussão sobre a distinção massa-povo como feita por Hannah
Arendt, mas teríamos que desenvolver em outro lugar para poder dar a devida atenção à
aguda distinção realizada por Deleuze e Guattari, no Mil Platôs, sobre o tema a partir de sua
leitura do livro de Canneti.