Hume Crítico de Locke - Contrato Social
Hume Crítico de Locke - Contrato Social
Hume Crítico de Locke - Contrato Social
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justiça são tão artificiais quanto a própria sociedade humana, e têm o mesmo
propósito de garantir a paz e a segurança dos indivíduos.
Poderíamos concluir, então, que uma vez que as leis de justiça passaram a
ser observadas, quando os membros de uma sociedade estabelecem seu governo,
a obediência que conferem aos magistrados decorre de uma promessa, um
consentimento à submissão?
Esse raciocínio parece tão natural que se tornou o fundamento do sistema político
hoje em voga entre nós, sendo de certa maneira o credo de um de nossos partidos,
cujos membros se orgulham, com razão, da correção de sua filosofia e de sua liberdade
de pensamento. Todos os homens, dizem eles, nascem livres e iguais; o governo e a
superioridade só podem se estabelecer pelo consentimento; o consentimento dos homens,
quando estabelecem o governo, impõe-lhes uma nova obrigação, desconhecida do
direito natural. Os homens, portanto, só são obrigados a obedecer a seus magistrados
porque assim o prometeram; se não tivessem, expressa ou tacitamente, dado sua
palavra de manter a obediência, esta nunca se teria tornado parte de seu dever moral.
(Hume, 2009, p. 581, grifos do original)
Esse “sistema político hoje em voga” é o sistema dos Whigs cujo princípio
filosófico é o contrato social. Os trechos citados, sem qualquer menção ao autor,
podem ser identificados com passagens do “Segundo Tratado sobre o Governo”
de Locke.3 Nesse momento, a crítica de Hume a Locke recai principalmente na
noção de que a obediência civil tem como fundamento, “em todas as épocas e
situações”, uma promessa, o que pressupõe considerar “a justiça uma virtude
natural e anterior às convenções humanas” (Hume, 2009, p. 581). Afirmar que
os indivíduos em seu estado de natureza foram capazes de acordar entre si um
contrato para fundar a sociedade por meio de uma promessa significa imiscuir a
natureza humana de uma capacidade que é desenvolvida apenas por convenção
humana.4 Segundo Forbes (1975, p. 67),
a teoria do contrato que Hume atacou dependia de alguma sanção sobrenatural; para
os contratualistas, a promessa, diferentemente do governo, não era apenas mais uma
invenção a partir dos interesses da sociedade, ou seja, a sociedade humana no sentido
mais ‘vulgar’ e ‘limitado’, que é, para Hume, seu único significado.
3 Mais propriamente com passagens do capítulo VIII, Do Começo das Sociedades Políticas. Por exemplo:
“Sendo os homens, conforme acima dissemos, por natureza, todos livres, iguais e independentes, ninguém
pode ser expulso de sua propriedade e submetido ao poder político de outrem sem dar consentimento”
e “E assim todo homem, concordando com outros em formar um corpo político sob governo, assume a
obrigação para com todos os membros dessa sociedade de submeter-se à resolução da maioria conforme
a assentar [...]” (Locke, 1983, p. 71).
4 Hume admite dois tipos de virtudes, as naturais e as artificiais. As virtudes artificiais “produzem prazer e
aprovação mediante um artifício ou invenção resultante das particularidades e necessidades da humanidade”
(Hume, 2009, p. 517); essas são a justiça (no que diz respeito à propriedade), a fidelidade a promessas,
a obediência ao governo, entre outras.
90 Eveline Hauck
O homem natural de Locke é regido pela lei de natureza, que nada mais é
que o uso de sua razão, assegurada por deus, para fins de sua própria preservação
(preservação de sua propriedade que abrange, além do fruto de seu trabalho,
também a sua vida) e para a preservação de toda a humanidade; e sendo livre,
igual e independente de qualquer outro homem, ele só se submete ao poder
político por um ato de sua vontade, por consentimento. Esse consentimento
transfere o poder de cada indivíduo de executar a lei de natureza para outrem,
o que garante a submissão dos membros de uma comunidade ao corpo político:
o que quer dizer que o consentimento para formação da sociedade, em Locke,
é também um consentimento de submissão, tanto nos primórdios das nações
quanto em qualquer outro momento da história, mesmo que a sociedade já esteja
constituída, pois ainda ali todos os indivíduos nascem livres.
Para Hume, a formação da sociedade política, embora passível de muitas
facticidades, pode ser também delimitada por princípios gerais que são garantidos
pela uniformidade da natureza humana. Quais aspectos da natureza humana fazem
o governo necessário, ainda que evitável? A essa pergunta, Hume responderá
de forma negativa: efetivamente, não é uma qualidade da natureza humana
que conduz os indivíduos a se estabelecerem em uma sociedade política, mas
carências, ou seja, são os traços humanos negativos que tornam o governo
vantajoso, e não uma série de características positivas. Portanto, Hume não
atribui o estabelecimento do governo à justiça ou sociabilidade naturais do
homem – ainda que conceba virtudes naturais –, pois seu alcance é restrito,
bem como é restrito o seu interesse próprio.5 Se o interesse na manutenção da
propriedade uniu os indivíduos em sociedade, um outro interesse, resultado de
uma fraqueza da natureza humana, uni-los-á em uma sociedade política: como
os seres humanos tendem a agir em favor do que é contíguo, em prejuízo do
que é remoto, será necessário um expediente que assegure a observância das
leis de justiça e equidade, as quais estão, muitas vezes, em conflito com seus
interesses mais imediatos:
É por essa razão que os homens, com tanta frequência, agem em contradição com
seu reconhecido interesse; em particular, é por essa razão que preferem qualquer
vantagem trivial, mas presente, à manutenção da ordem na sociedade, que depende
em tão grande medida da observância da justiça. As consequências de cada violação
da equidade parecem tão remotas, não sendo capazes de contrabalançar as vantagens
imediatas que se podem extrair dessa violação (Hume, 2009, p. 574).
5 Hume refuta também a ideia hobbesiana de que o interesse próprio ilimitado da natureza humana enseja
um estado de guerra permanente, e que a única possibilidade de escape dessa situação é a instituição do
governo.
HUME CRÍTICO DE LOCKE: CONTRATO SOCIAL E WHIGGISM 91
minha intenção aqui não é negar o consentimento popular como um fundamento justo de
um eventual governo; trata-se certamente do melhor e mais sagrado fundamento. Apenas
considero que ele raramente se deu de alguma forma e nunca em sua totalidade; por
isso deve-se admitir ainda um outro fundamento para o governo (Hume, 1994, p. 474).
É evidente que nenhum pacto ou acordo foi expressamente firmado para a submissão
geral; uma ideia muito além da compreensão dos selvagens. Cada exercício de autoridade
92 Eveline Hauck
do chefe deve ter sido particular e suscitado pela exigência presente do caso; a utilidade
consciente, resultante de sua interposição, fez com que seus exercícios se tornassem
cada dia mais frequentes, e sua frequência produziu gradualmente um hábito, e, se
quiser chamá-la assim, uma aquiescência voluntária, e por isso precária, no povo
(Hume, 1994, pp. 468-469).
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dividir em facções pessoais, que a mínima aparência de diferença real entre eles
é suficiente para produzi-las” (Hume, 2008, p. 43). Essas divisões podem ser
reais ou pessoais, esta é “fundada na amizade ou animosidade pessoal” e é mais
comumente encontrada em “pequenas repúblicas”, onde o poder é disputado
por famílias de nobres; e aquela “em alguma diferença real de sentimento ou
de interesse” (Hume, 2008, pp. 42-43). As divisões reais podem ser facções de
interesse, de princípio e de afeto, embora estejam frequentemente misturadas
de acordo com um ou outro tipo de governo. É mais fácil erradicar as divisões
partidárias nas monarquias absolutas, pois a autoridade do rei tende a suprimir
a liberdade dos membros do Estado, do que nas monarquias mistas, em que os
partidos que “subvertem o governo, tornam as leis impotentes e geram as mais
ferozes animosidades entre homens de uma mesma nação” (Hume, 2008, p.
42) são mais propriamente facções ou seitas.
O conflito que se estabeleceu na Inglaterra a partir das guerras civis
opunha, por um lado, o partido Whig que, “ao fundar o governo inteiramente
no consentimento do povo, supõe que exista um tipo de contrato original pelo
qual os súditos reservaram tacitamente o poder de resistir ao seu soberano,
sempre que se considerarem agredidos por essa autoridade, que confiaram a
ele voluntariamente e para certos propósitos”, e, por outro, o Tory que, “ao
remontar o governo à Deidade, tenta torná-lo tão sagrado e inviolável, que seria
um pouco menos que sacrilégio, por mais tirânico que seja, tocá-lo ou violá-lo
ainda que minimamente” (Hume, 1994, p. 466). Depois da Revolução Gloriosa,
principalmente durante o longo ministério de Robert Walpole, surgiu então outra
denominação partidária, Corte e Campo, para designar, respectivamente, os
apoiadores e opositores ao ministro. No entanto, nosso autor, nos ensaios que
analisaremos sobre o contrato original e sobre a obediência passiva, endereça
sua crítica ainda aos Whigs e aos Tories, justamente para se opor à ideia de que
“a diferença real entre Whig e Tory se perdeu na revolução” (Hume, 1994, p.
71, grifo original).
Ainda que Tories e Whigs possam ser caracterizados como facções de
“afeto”, quando defendem diferentes famílias na sucessão do trono,6 sua disputa
é mais caracterizada por princípios, cujas noções especulativas orientam a prática
política de cada um dos partidos. Por essa razão, Hume se dedicará a analisar
esses princípios “especulativos ou filosóficos” e suas “disputas históricas”,
6 “Um Tory, portanto, desde a revolução, pode ser definido, em poucas palavras, como amante da monarquia,
embora sem abandonar a liberdade, e partidário da família Stuart. Da mesma forma, um Whig pode ser
definido como amante da liberdade sem, contudo, renunciar à monarquia, e um partidário do ‘estabelecimento’
(Settlement) da linhagem Protestante” (Hume, 1994, p. 71, grifos do original).
94 Eveline Hauck
Hume retoma a argumentação dos Tories sobre a autoridade divina dos reis
para refutá-la: uma vez que se admite, como queriam os membros desse partido,
que a providência divina esteja na origem de “todos os eventos do universo”,
não se deve inferir que ela tenha dado origem a um “vice-gerente” na terra,
pois “o melhor e mais legítimo príncipe” não teria, de acordo com essa ideia,
mais razão “para alegar uma sacralidade ou autoridade inviolável peculiar do
que um magistrado inferior, ou até mesmo um usurpador, ou até mesmo um
ladrão ou um pirata” (Hume, 1994, p. 467). De outro modo, “as mesmas causas
que deram origem ao poder soberano em cada estado estabeleceram também
cada jurisdição e cada pequena autoridade. Um condestável, por conseguinte,
age por indicação divina e possui um direito irrevogável tanto quanto um rei”
(Hume, 1994, p. 467). Assim, se toda e qualquer autoridade tem origem divina,
o princípio defendido pelos Tories não pode fundamentar exclusivamente a
soberania dos reis.
Na análise dos princípios especulativos dos Whigs, Hume se concentrará
na refutação da noção de contrato original. Ele argumenta, primeiramente, que,
embora possamos conceber que na origem de algumas nações os membros de
uma sociedade tenham fundado o governo sob a égide de um contrato, ele não
é, de forma alguma, a fonte da soberania. Na verdade, os governos da atualidade
não têm qualquer referência com esse consentimento original. A concepção de
que os indivíduos, ainda hoje, “nascem iguais e não devem lealdade a qualquer
príncipe ou governo, ao menos que comprometidos pela obrigação e sanção
de uma promessa” (Hume, 1994, p. 469), é comum à teoria Whig, porém,
em sua avaliação no ensaio “Do contrato original”, Hume parece atribuí-la
principalmente a Locke, conforme a doutrina apresentada no “Segundo Tratado
do Governo”.7 Este estabelece que os indivíduos, mesmo tendo nascido em uma
7 Como dissemos, Hume endereça sua crítica aos teóricos Whigs de maneira geral, mas em muitos momentos
parece se referir ao “Segundo Tratado do Governo”. No ensaio “Do Contrato Original”, Hume indica
HUME CRÍTICO DE LOCKE: CONTRATO SOCIAL E WHIGGISM 95
Mas se esses pensadores olhassem para o mundo, não encontrariam nada que, no
mínimo, corresponda a suas ideias ou possa justificar um sistema tão refinado e
filosófico. Ao contrário, descobrimos em todo lugar príncipes que reivindicam seus
súditos como sua propriedade e declaram seu direito independente de soberania por
conquista e sucessão (Hume, 1994, pp. 469-470).
Harry IV e Harry VII da Inglaterra realmente não tiveram outro título ao trono que
a eleição parlamentar, ainda assim eles nunca reconheceriam isso, para que não
enfraquecessem sua autoridade. É estranho, se considerarmos a única fundamentação
da autoridade o consentimento e a promessa! (Hume, 1994, p. 473).
explicitamente e cita trechos do “Tratado” de Locke. Conferir Hume (1994, pp. 486-487).
8 Também aqui Hume está pensando no direito de resistência tal como defendido por Locke. Outros teóricos
Whigs, como Tyrrel, por exemplo, pensaram a resistência em termos diferentes dos de Locke. Sobre isso,
vide Rudolph (2002).
96 Eveline Hauck
Do que ficou dito é evidente que a monarquia absoluta, que alguns consideram o único
governo do mundo, é, de fato, incompatível com a sociedade civil, não podendo por
isso ser uma forma qualquer de governo civil, porque o objetivo da sociedade civil
consiste em evitar e remediar os inconvenientes do estado de natureza que resultam
necessariamente de poder cada homem ser juiz em seu próprio caso, estabelecendo-se
uma autoridade conhecida para a qual todos os membros dessa sociedade podem apelar
por qualquer dano que lhe causam ou controvérsia que possa surgir, e à qual todos os
membros dessa sociedade terão de obedecer. Onde quer que existam pessoas que não
tenham semelhante autoridade a que recorrerem para decisão de qualquer diferença
entre elas, estarão tais pessoas no estado de natureza; e assim se encontra qualquer
príncipe absoluto em relação aos que estão sob seu domínio (Locke, 1983, p. 68).
o que antes só se dizia em louvor das repúblicas: são um governo de leis, não de homens.
Elas se mostraram passíveis de um grau surpreendente de ordem, método e constância.
Ali, a propriedade está assegurada, a indústria é encorajada, as artes florescem e o
príncipe vive seguro entre seus súditos, como um pai entre filhos (Hume, 2008, p. 67).
9 Podemos citar, a título de curiosidade, as obras de TYRREL, J. (1704). “The General History of England,
Both Ecclesiastical and Civil; From the Earliest Accounts of Time, To the Reign of His Present Majesty, King
William III”. 3vols (London); CLARENDON, Earl of. (1702-1704). “The History of Rebellion and Civil Wars in
England” (Oxford); e RAPIN, P. (1724-1727). “The History of England” (London).
10 Sobre a interpretação histórica Whig, Locke parece ter um papel controverso e minoritário. Sabemos que
essa argumentação envolveu principalmente William Petyt e James Tyrrel, embora Hume não faça qualquer
menção a esses autores.
98 Eveline Hauck
em sua total extensão, autorizado por juristas, recomendado por teólogos, reconhecido
por políticos, assentido, mais que isso, passionalmente querido, pelo povo em geral, e
tudo isso durante um período de, pelo menos, cento e sessenta anos, e até recentemente,
sem o menor murmúrio ou controvérsia (Hume, 1994, p. 499).
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Referências
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______. “História da Inglaterra: da Invasão de Júlio César à Revolução de 1688”.
Seleção, tradução e apresentação de Pedro Paulo Pimenta. São Paulo: Ed. UNESP, 2015.
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RUDOLPH, J. “A Revolution by Degrees, James Tyrrell and Whig Political Thought
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