ORTEGA, Francisco - Da Ascese A Bioascese
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Francisco Ortega
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Da ascese à bio-ascese
ou do corpo submetido à submissão ao corpo*
Francisco Ortega
O imperativo ascético
o seu livro The Ascetic Imperative in Culture and Criticism (HARPHAM, 1987),
* Várias idéias que apresento neste texto surgiram a partir das discussões e conversas com meus colegas
Jurandir Freire Costa
biossociabilidade e Benilton
e bio-ascese , noBezerra
InstitutoJr.,
de eMedicina
com os participantes do Seminário
Social da Universidade sobre biopolitica,
do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ).
1
Segundo Winbush, "nenhum texto, nenhuma figura histórica ou grupo da Antiguidade e nenhum tipo
particular de prática poderia adequadamente definir ou tipificar o ascetismo. A ação recíproca da prática e
do motivo e o número aparentemente infinito de combinações e graus de tensão na dinâmica entre prática
e motivo nos diferentes contextos apresentaram-se ser muito mais complexos para nos permitir concordar
universal, já que todas as culturas teriam a disposição esse mecanismo privilegiado de
formação cultural,2 a relação com uma cultura determinada pode ter diferentes formas.
O asceta pode desafiar a cultura, integra-se nela, transcendê-la, viver em tensão com ela,
ou transformá-la (ver MITCHELL, 96.10.7). Daí que possamos analisar o ascetismo
como fenômeno geral existente em todas as culturas (o que Harpham chama de
"imperativo ascético") e que, no entanto, só é compreensível nas formas, motivos,
contextos e comportamentos específicos nos quais a conduta as cética aparece. Foucault
se aproxima dessa noção quando define as "práticas de si" como os "esquemas que o
indivíduo encontra na sua cultura e que lhe são propostos, sugeridos e impostos pela sua
cultura, sua sociedade e [p.140] seu grupo social" (FOUCAULT, 1994c, p. 719). 3 "A
ênfase é dada, então, às formas das relações consigo, aos procedimentos e às técnicas
pelas quais são elaboradas, aos exercícios pelos quais o próprio sujeito se dá como
objeto por conhecer e às práticas que permitam transformar seu próprio modo de ser"
(FOUCAULT, 1984, p. 37). Uma genealogia da ascese, isto é, uma história das
diferentes manifestações do fenômeno ascético, das formas de subjetivação e das
práticas de si que a garantem, é o fio condutor escolhido por Foucault para a elaboração
de sua história da subjetividade. Tal método me parece adequado para o objetivo deste
texto, que consiste em contrapor as práticas ascéticas da Antiguidade, enquanto práticas
de liberdade, às práticas de bio-ascese contemporâneas, como práticas de assujeitamento
e disciplinamento. Em ambas, encontramos amiúde as mesmas práticas que, no entanto,
visam objetivos contrapostos e promovem processos de subjetivação divergentes. A
partir dessas considerações preliminares, podem-se estabelecer quatro tópicos gerais
presentes em toda conduta ascética.
com a generalização do fenômeno a partir de um foco ou área de pesquisa". ( apud KELSEY, 1992, p.
133).
2
Ver Valantasis (1995, p. 794-795). A universalidade do ascetismo não corresponde a uma experiência
religiosa
corpo, ougeral, neme aafastamento
a recusa uma série de
dacrenças ascéticas
sociedade universais,
que estaria tais na
implicada como a valoração
atividade do espírito sobre o
ascética.
3
Para Foucault, toda conduta moral, a maneira como o indivíduo se constitui como sujeito moral de suas
ações, concerne quatro aspectos principais: substância ética, modo de sujeição, ascese e teleologia. Ver
Foucault (1984, p. 35-36; 1994c, p. 383). O elemento ascético está presente em toda conduta moral, é um
fenômeno geral existente em toda relação ética, o qual, no entanto, é unicamente compreensível no
contexto particular no qual se apresenta.
alcançada.4 A subjetividade desejada representa para o asceta a verdadeira. [p.141]
identidade para o qual se orienta o trabalho ascético. Desde a perspectiva do observador,
o sujeito ascético aparece como figurado e construído, provocando reações positivas ou
negativas, segundo o grau de afinidade do observador com a prática ascética respectiva.
A forma de subjetividade almejada (e que Foucault chama de teleologia) varia segundo
a contextualização histórica das práticas ascéticas, podendo encontrar as mesmas
práticas vinculadas a diferentes fins, diferentes processos de subjetivação, seja a
constituição de si como sujeito moral da Antiguidade greco-latina, a auto-renúncia e a
pureza do cristianismo,5 a interioridade cristã e burguesa, ou as bio-identidades
contemporâneas, onde o corpo possui a auto-reflexividade que correspondia outrora à
alma. As formas de subjetividade visadas pela ascese podem diferir ou não das
identidades prescritas social, cultural e politicamente. Enquanto nas asceses da
Antiguidade o self almejado pelas práticas de si representava frequentemente um
desafio aos modos de existência prescritos, uma forma de resistência cultural, uma
vontade de demarcação, de singularização, de alteridade, encontramos na maioria das
práticas de bio-ascese uma vontade de uniformidade, de adaptação à norma e de
constituição de modos de existência conformistas e egoístas, visando a procura da saúde
e do corpo perfeito (ver SFEZ, 1996).
4
"O asceta não participa plenamente nem de uma subjetividade (a que deixa atrás, mas que deve ser
ainda superada) nem da outra subjetividade (a ainda não presente mas que está no horizonte), porque o
asceta se movimenta sempre entre a identidade desconstruída e a construída. detido pela primeira e ao
mesmo tempo anelando pela última. E, por conseguinte, o asceta parece estar sempre em transito, em
5processo, em movimento
Especificamente emda
no caso direção a uma nova
Antiguidade tardiasubjetividade" (VALANTASIS,
cristã, Valantasis 1995, p.distingue
(1995, p. 802-806) 801). cinco
tipos de sujeito ascético: o sujeito combativo, o modelo integrativo, o modelo educativo, o peregrino e o
sujeito da revelação.
6
Na Antiguidade, o ascetismo não era sempre subversivo, ao existir situações nas quais servia para
manter a ordem social e para auto-afirmar uma elite social cultural e política. Esse é o caso do ascetismo
imperial descrito na obra do poeta Virgílio. Ver Keith e Vaage (1999, p. 411-420).
Terceiro, a ascese é um fenômeno social e político. O ascetismo é uma prática
social. Foucault reconheceu esta dimensão sócio-política da ascese quando disse,
referindo-se ao retiro dos estóicos, que "o cuidado de si (...) aparece como uma
intensificação das relações sociais" (FOUCAULT, 1984a, p. 69; 2001, p. 144). Até as
formas de anacorese radical sempre visam o outro, uma audiência. Os ascetas
representam um papel fundamental na definição da sociedade cristã. Apesar da
apresentação de ascetas e eremitas como solitários, a maioria dependia de um suporte
comunitário e tinha uma função política fundamental como mediadores, árbitros,
patronos e intercessores numa época em que as estruturas legais e governamentais eram
insatisfatórias e inadequadas. Os ascetas ressaltavam a solidariedade do grupo tornando-
se acessíveis aos valores e necessidades da comunidade (CLARK, 1999, p. 33-37;
BROWN, 1982, p. 148-152; 1978, p. 64-67; p. 80; ROUSSEAU, 1999, p. 53-55; RAPP,
1999, p.63-66).
Por último, a ascese está ligada à vontade. Tanto nas asceses filosóficas clássicas
quanto nas cristãs existe uma forte acentuação do elemento volitivo. Ascese é ascese da
vontade, exercício da vontade (LOHSE, 1969, p. 42; W. Capelle, verbete "Asceticism
(Greek)", em HASTINGS, 1967, p. 83-86). Frente ao ascetismo órfico-platônico e
neoplatônico de caráter marcadamente místico-religioso, o ascetismo cínico-estóico
enfatiza mais os elementos éticos-volitivos, a ascese da vontade. É esse ascetismo que é
importado à tradição cristã com uma função política de afastamento e de oposição ao
gnosticismo (que incorpora a tradição do ascetismo órfico-platônico) (ver FOUCAULT,
Para os estóicos, o estulto é o indivíduo que não cuida de si, que não possui
constância da vontade. Ele é incapaz de querer de forma adequada, de querer a si
mesmo, estabelecendo-se uma desconexão entre a vontade e si mesmo. A ascese está ao
serviço da vontade de uma vontade livre, sem determinação, absoluta. Frente ao estulto
que não quer de uma forma absoluta, que tem uma vontade fraca (acrasia), limitada,
fragmentada, que não é capaz de mostrar constância na sua prática ascética, a vontade
livre tem a si mesmo como alvo visado, como objeto livre, absoluto e permanente. É
uma questão de atenção, vigilância, constância e concentração atlética. O estulto é o
disperso, o desatento, que relaxa a vigilância (FOUCAULT, 2001, p. 128-130; p. 213-
214; VOELKE, 1973). Nas modernas bio-asceses, em contrapartida, a vontade não está
a serviço da liberdade; é uma vontade ressentida, serva da ciência, da causalidade, da
necessidade, que constrange a liberdade de criação e elimina a espontaneidade.
7
Cícero na
morrem pergunta porTusculanes
infâncianasquesuas : "Qual
aqueles que é nossa
morrem hora?daDevemos
na força chorar
idade? Que maisdaporvida
tempo aqueles
deve que
ser
considerado longo (...) comparado com a eternidade?" ( apud SKRABANEK, 1995, p. 59).
8
"O objeto do cuidado era si mesmo, mas o fim do cuidado era a cidade, onde reencontramos o si mesmo
mas simplesmente como um elemento. A cidade mediava a relação de si para consigo e fazia que o si
mesmo pudesse ser tanto objeto quanto fim, mas ele somente era fim por existir essa mediação da cidade"
(FOUCAULT, 2001, p. 81; p. 168-169; ORTEGA, 1999, p. 126-131).
dirigindo a atenção para si mesmo, não se tratava de se abster do
mundo e de se constituir como um absoluto. Tratava-se antes de
medir exatamente o lugar que ocupamos no mundo e no sistema
de necessidades no qual estamos inseridos (...). É necessário
conceber a cultura de si menos como uma escolha oposta à
atividade política, cívica, econômica, familiar, e mais como uma
maneira de [p.147] manter essa atividade nos limites e nas
formas consideradas como convenientes (idem, p. 518-519).
Do que fora abordado até então, podemos ressaltar três características principais
das asceses gregas clássicas: Primeiro, a ascese corporal implica e/ou se desdobra numa
ascese da alma; segundo, a ascese é uma prática de liberdade; finalmente, a ascese tem
uma dimensão política e moral.
As mudanças que acontecem nos primeiros séculos de nossa era (nas éticas
helenísticas e romanas) não transformam o cuidado de si com suas correspondentes
práticas ascéticas - unido na Grécia clássica à vida na pólis e ao desempenho de um
papel político - em um exercício em solidão fora da comunidade. Muito pelo contrário,
o cuidado de si implica na "intensificação das relações sociais" (FOUCAULT. 1984a, p.
69).
9
Encontramos em Peter Sloterdijk uma versão atualizada dessa visão. Ver Sloterdijk (1993).
10
(MARKUS, 1998, p. 70-72; CONRAD, 1995). A ascese (a renúncia sexual) representava uma
"carreira aberta aos talentos" para mulheres e pessoas sem educação, por meio da qual podiam atingir a
reputação normalmente reservada aos varões cultos. Ver Brown (1988, p. 61).
Nessas práticas do self, o corpo possui sempre um valor simbólico, na base da
constituição de um self dono de si, que mediante as práticas de ascese corporal,
legitimava-se para se ocupar dos assuntos públicos, atingir um conhecimento de si ou se
auto-anular na procura do acesso a Deus.
Práticas bio-ascéticas
e constituição de bio-identidades
Voltemo-nos agora às formas de ascese contemporâneas (bio-ascese) e os
processos de subjetivação correspondentes, a formação de bio-identidades. De uma
maneira ampla, a noção de biossociabilidade visa descrever e analisar as novas formas
de sociabilidade surgidas da interação do capital com as biotecnologias e a medicina.11
A biossociabilidade é uma forma de sociabilidade apolítica constituída por grupos de
interesses privados, não mais reunidos segundo critérios de agrupamento tradicional
como raça, classe, estamento, orientação política, como acontecia na biopolítica [p.154]
clássica, mas segundo critérios de saúde, performances corporais, doenças específicas,
longevidade, etc. Criam-se novos critérios de mérito e reconhecimento, novos valores
com base em regras higiênicas, regimes de ocupação de tempo, criação de modelos
ideais de sujeito baseados no desempenho físico. As ações individuais passam a ser
dirigidas com o objetivo de obter melhor forma física, mais longevidade,
prolongamento da juventude, etc. Na biossociabilidade todo um vocabulário médico-
11
O antropólogo Paul Rabinow usa o termo biossociabilidade, a partir de suas análises das implicações
socioculturais e políticas da nova genética e do projeto Genoma, para designar um "novo tipo de
autoprodução", efeito da nova genética. Esta já não mais entendida como metáfora biológica, mas como
"rede
novas de circulação
identidades de termos
e práticas de identidades
individuais e lugares
e grupais, surgidasdedestas
restrição",
novas que implicaria
verdades" na "formação
(RABINOW, 1999,de
p.
143-144, Idem, p. 147).
12
A literatura sobre o tópico é imensa, ver Crawford (1980, p. 365-388); Crawford (1994, p. 1347-1365);
Conrad (1995, p. 22-23); Petersen (1997, p. 197-198); Bunton (1997, p. 230-231); Aïach (1998, p. 16);
Idem, p. 29; Faure (1998, p. 64); Druhle e Clément (1998, p. 83 -84); Morris (2000); Greco (1993, p. 357
-372).
mesma maneira como a saúde se expande para incluir tudo o que
é bom na vida (CRAWFORD, 1980, p. 381).
13
Ver Bourdieu (1979); Lupton (1994, p. 4041); Turner (1992, p. 157-169). O controle da dieta deixou
de ser um componente central no governo dos corpos nos discursos médico-higienistas do século XIX,
passando a ser critério de distinção de classe característico do hábito das classes médias no sentido de
Bourdieu. Na atualidade, no entanto, cabe se perguntar se a dietética é ainda um elemento de distinção de
classe, visto que a preocupação com taxas de colesterol e alimentos light atravessa as diferentes classes
sociais. O estigma, moral
Denise Sant’Anna "uma que se abatedoméstica
empregada sobre o gordo
gordaé precisa
comum de
a ricos
muitae ainventividade
pobres. Comoe, nos lembra
sobretudo,
paciência, para utilizar os minúsculos compartimentos destinados aos serviçais naqueles 'puxados',
habitualmente chamados de área de serviço, dentro dos modernos apartamentos brasileiros"
(SANT'ANNA, 2001, p. 21). O presidente de um grupo de defesa dos gordos nos Estados Unidos
declarou à imprensa que, em seu país, "é mais duro ser gordo do que ser negro" (FISCHLER, 1995, p.
70).
considerações que a 'procura de auto-identidade' torna-se compreensível" (BUNTON,
1997, p. 229-230).
modernidade, estruturando o modo pelo qual experts e leigos organizam seus mundos
sociais" (WILLIAMS e CALNAN apud CASTIEL, 1999, p. 57). O indivíduo se
constitui como autônomo e responsável através da interiorização do discurso do risco. O
corpo e o self são modelados pelo olhar censurante do outro que leva à introjeção da
retórica do risco. O resultado é a constituição de um indivíduo responsável que orienta
suas escolhas comportamentais e estilos de vida para a procura da saúde e do corpo
perfeito e o afastamento dos riscos. O auto-aperfeiçoamento individual tornou-se um
significante privilegiado por meio do qual os indivíduos exprimem sua autonomia e se
constituem num mundo competitivo. Através das numerosas práticas bio-ascéticas, o
indivíduo demonstra sua competência para cuidar de si e construir sua identidade. Dois
exemplos de construção de bio-identidades e de crescente medicalização nos últimos
anos são ilustrativos neste contexto: a mulher na pós-menopausa e a velhice.
O discurso médico e o discurso feminista sobre a saúde com sua ênfase no risco
e a responsabilidade pessoal estabelecem os parâmetros de avaliação moral e de
distinção entre a mulher "boa" e mulher "má". A mulher "boa" é responsável e vigilante,
não quer ser um fardo para a família e para o sistema de saúde e faz da autonomia a sua
bandeira política. Encabeçando a lista dos novos desviantes encontramos a mulher
"má", que é irresponsável e não se vigia, sendo uma carga para os demais, numa cultura
como a nossa que trata a dependência como condição vergonhosa. Para a mulher na
pós-menopausa, o preço da aceitação social implica em se submeter ao autogoverno e
autocontrole, pois "o valor de uma pessoa é cada vez mais medido por suas capacidades
que incluem a performance de determinadas tarefas físicas e mentais e mesmo a
capacidade de resistir a doenças específicas" (idem, p. 143).14 Força, rigidez, juventude,
longevidade, saúde, beleza são os novos critérios que avaliam o valor da pessoa e
condicionam suas ações.
A mulher que não se vigia nem se controla faz parte dos novos desviantes, novos
estultos, inábeis de cuidar de si. Constroem-se assim as bio-identidades dos indivíduos
responsáveis e ao mesmo tempo dos desviantes por oposição e reprovação. Aquele que
não procura uma existência livre de riscos torna-se um novo desviante, caracterizado
como um indivíduo irresponsável, inapto para cuidar de si, que fornece maus exemplos,
eleva os custos do sistema de saúde, e como conseqüência, não cumpre com seus
deveres de cidadão autônomo e responsável (PETERSEN, 1997, p. 198; CRAWFORD,
1994).
14
Ver Delanoë (1998, p. 211-251). Para algumas autoras feministas, a gestão biomédica do corpo
feminino é, no entanto, uma das condições que permitiram às mulheres ingressarem no espaço público.
Ver Koninck (1995, p. 33-42). Tudo tem ganhos e perdas. Para o argumento defendido neste capítulo,
porém, focalizo nas práticas bio-ascéticas envolvidas na formação da bio-identidade da mulher na pós-
menopausa.
A ênfase na autonomia individual está ligada à desmontagem do estado
assistência que trata os indivíduos dependentes com desconfiança, como "parasitas
sociais": "o tom ácido das atuais discussões das necessidades assistências, diretos e
redes de segurança está impregnado de insinuações de parasitismo de um lado,
enfrentado pela raiva dos humilhados do outro" (ibidem). A valorização da autonomia
devolve ao indivíduo a responsabilidade por sua saúde, reduzindo a pressão exercida
sobre o sistema público. A condição de autonomia se traduz num melhor estado de
saúde e no desenvolvimento de hábitos de vida e escolhas comportamentais saudáveis.
Como conseqüência, os idosos estão cada vez menos legitimados para recorrer aos
sistemas de saúde (DAVID, 1995, p. 58-59). Análogo a como acontecia no caso da
mulher na pós-menopausa, o idoso se constitui como um indivíduo responsável e
autônomo capaz de cuidar de si. Aparece assim a figura do idoso "bom" e do idoso
"mau", este último sem competência para cuidar de si.
15
A aversão aos obesos, a lipofobia, é um caso extremo dessa tendência estigmatizante. Os estereótipos
do "obeso maldito" o apresentam como o transgressor que viola as regras básicas do jogo social que
dizem respeito ao comer, ao prazer, ao trabalho, ao esforço e ao controle de si. Segundo Claude Fischler,
"os avatarespassando
ferocidade, do obesopela
maligno podem percorrer
perversidade. O ápice,todas
aliás,asé atingido
nuanças quando
da mitologia negativa,
o gordo não se do grotesco
limita mais àà
acumulação e à retenção de bens materiais (como nos estereótipos do gordo aproveitador do mercado
negro, traficante e açambarcador), e se atira à carne e ao sangue e outrem, tornando-se devorador,
vampiro ou carniceiro. Encontra-se sempre essa temática nos estereótipos revolucionários do capitalista
feroz, de uma voracidade que pode arrastá-lo até o canibalismo, pelo menos metaforicamente: a carne e o
sangue dos explorados" (FISCHLER, 1995, p. 76).
essa obsessão implica em assumir "que há algo errado com os portadores de
deficiências" (idem, p. 162).
16
Estes e Binney, 1991; David, 1995, p. 44-46; Druhle; Clement, 1998, p. 85; Clarke, 2000, p. 24;
Lupton, 1994, p. 38-39.
Autores como Robert Castel enfatizam a idéia da dissolução do social como um
dos efeitos do olhar biológico, próprio da viragem biopolítica nas sociedades ocidentais,
nas quais a experiência identitária é calcada na materialidade do biológico e referentes
fisicalistas substituem referentes culturais. As aparentes reivindicações (bio)políticas
dos grupos constituídos na biossociabilidade são, em muitos casos, uma armadilha, pois,
como Graham Burchell reconhece,
17
Já dizia Foucault que a resistência ao biopoder se apóia precisamente naquilo que ele investiu, isto é, na
vida mesma: "A vida como objeto político foi de certa maneira tomada ao pé da letra e voltada contra o
sistema que pretendia controlá-la" (FOUCAULT, 1976, p. 191). Portanto, a vida constitui o alvo das lutas
(bio)políticas, mesmo sob a forma de lutas pelo direito à vida, à saúde, ao corpo, à higiene, ao bem-estar e
à satisfação das necessidades. A biopolítica precisa da resistência ao dispositivo biopolítico para poder se
desenvolver.
(aparente), [p.162] juventude, proezas sexuais, o que seria se adaptar a essa ideologia da
saúde, da vitalidade, da longevidade.18
18
Madel Luz vem trabalhando nessa linha de pensar práticas de saúde como formas de solidariedade e
tentativas de enriquecimento do tecido social e relacional. Ver Luz, (2000, p, 181-200; Luz (2001.p.46-
66).
19
Para Jean-Jacques Courtine o culto ao corpo é, nos Estados Unidos, uma das principais fórmulas do
compromisso entre a ética puritana e as necessidades da sociedade de consumo. Ver Courtine (1995, p.
102). Ver Edgley e Brissett, (1990. p. 266-267) .
20
Em conferência no Brasil, em 1974, Foucault já tinha advertido sobre o novo encontro da medicina e
da economia que tornou a saúde e o corpo objetos de consumo. Ver Foucault (1994b, p. 54-56). O
capitalismo entrou na saúde e os indivíduos são construídos como consumidores de bens e serviços
biomédicos. Os artigos de saúde incorporam elementos do estilo de vida e encorajam a retórica da escolha
e a fetichização dos produtos e serviços de saúde. Ver, Featherstone (1992, p. 170-196); Clarke (2000, p.
29-30); Bunton (1997, p. 235-236). O investimento em artigos de fitness e bem-estar é uma empresa
multibilionária. A título de exemplo, os norte-americanos gastaram, em 1990, 1,8 bilhão de dólares em
máquinas de exercício, 3,5 bilhões em vitaminas, 33 bilhões em dietas e 44 bilhões em equipamentos
esportivos. Ver Leichter (1997, p. 371). Apesar de ficarmos impressionados com essas cifras não
esqueçamos que as cifras da indústria farmacêutica são muito maiores: só no Brasil 9,7 bilhões de dólares
por ano. A commodification dos artigos de saúde está em contínua expansão, nos últimos anos vem
surgindo uma sofisticada "boutique médica" feita sur mesure, que preencheu um importante nicho no
mercado e que inclui a venda de sangue, esperma, próteses, órgãos, tecido fetal, entre outros. Ver
Kimbrell (1994); Silver (1997, p. 152-162).
21 Ver Crawford (1994, p. 1362-1363). Os indivíduos que seguem uma bio-ascese (disciplina) rigorosa
durante a semana e que esperam o fim de semana para se entregar desenfreadamente aos prazeres e
desejos reprimidos durante a semana representam um bom exemplo da mencionada angústia da
ambivalência.
entre os assíduos da academias: "é preciso sofrer se distraindo" (COURTINE, 1995, p.
85). O caráter repetitivo e automático aproxima o fitness das práticas de adestramento
corporal descritas por Foucault. "Lazer é trabalho, impulsos são transformados em
repetições por minuto, e a consciência, agora tanto do corpo como da alma, é tão forte
como o coração do proprietário e tão firme como suas coxas" (GLASSNER, 1989,
p.187; MANSFIELD e McGINN. 1993, p. 52-54).
22
A ortorexia nervosa, isto é, a obsessão por comida natural, é a mais nova das doenças decorrentes da
procura da perfeição corporal. Pode parecer uma brincadeira, mas o portador da ortorexia nervosa é
descrito como "alguém que é muito preocupado com os hábitos alimentares e dedica grande parte do
tempo
para não a planejar,
se render comprar,
diante de preparar e fazercomo
uma tentação, refeições.
um bomAlém
Bigdisso,
Mac oudispõe
uma de um autocontrole
suculenta rigoroso
macarronada. Sem
falar que se sente superior a quem se esbalda nas impurezas de um espesso filé ao ponto ou de um sorvete
afogado em calda de chocolate. A pessoa acaba por adotar comportamentos nutricionais cada vez mais
restritivos, até se isolando socialmente" (revista Veja on-line, 1696, 18.04.2001).
23
O verbo inglês fit in tem o sentido de "adaptar-se", "ajustar-se", "encaixar-se", o que aponta para a
dimensão conformista implicada na atividade de fit in.
Num texto notável, Joseph Gusfield analisa a ligação entre saúde e moralidade
nos movimentos de alimentação natural norte-americanos da primeira metade do século
XIX e da atualidade. Nos movimentos do século XIX, o autodisciplinamento e
autocontrole presentes na dieta saudável constituem atos de excelência moral, formas de
recuperar a retitude moral e de garantir a ordem sócio-moral com a perda de
legitimidade da autoridade tradicional. Tanto os movimentos de 1830 como os da
atualidade denotam um extremo individualismo, a saúde e a segurança dependem
[p.165] da capacidade de controle e disciplina individual, que exige "um código de
disciplina moral considerado tão severo e firme como o ideal hedonista que o mercado
nos impõe" (GUSFIELD, 1992, p. 98). Porém, enquanto nos movimentos de 1830 o
apelo ao autocontrole era feito no contexto do debilitamento e da deslegitimização das
regras sociais e da ordem moral - o corpo físico, social e político estava fora de controle,
só recuperável pela vontade individual através das práticas de bio-ascese (estrita
24
A sexualidade, elemento fundamental da dietética dos movimentos oitocentistas, ocupa um segundo
plano nas bio-asceses contemporâneas. Nas nossas sociedades, a comida ocupa o lugar da sexualidade
como fonte potencial de ansiedade e patologia. O tabu que se colocava sobre a sexualidade desloca-se
agora para o açúcar e as gorduras. O glutão sente-se, com freqüência mais culpado que o adúltero. Sobre a
moralização da dieta alimentaria ver Mintz (1997, p. 173-184); Belasco (1997, p. 185-199); Rozin (1997,
p. 379-401); Schwartz (1986). Para Lupton (1994, p. 42), "a renúncia da comida torna-se um símbolo de
ascetismo, 'leveza' e santidade, não à procura da figura perfeita. As dimensões do controle, disciplina,
virtude e força de caráter são, no entanto, comparáveis a renúncia alimentaria como símbolo de pureza
religiosa de beleza. Como a abstinência feminina nos séculos passados, a abstinência hoje pode
representar uma afirmação de piedade secular, de pureza moral e de disciplina metafísica sobre a carne e
seus desejos". A anorexia constitui um caso especial desta relação entre dietética, moral e bio-ascetismo,
bem como do deslocamento da sexualidade como locus privilegiado de problematização moral. Na minha
interpretação, a anorexia estaria para o século XX como a histeria para o século XIX. Ambas são formas
de questionamento do discurso dominante (da sexualidade ou da dieta). Da mesma maneira que nas
histéricas oitocentistas, e contrário ao que vários autores apontam (prioritariamente teóricas feministas),
não consigo ver na anorexia expressões de uma estética da existência, de resistência ao dispositivo da
saúde. Na obsessão com a vigilância e autocontrole para não engordar e não comer demais (ou nos casos
extremos das adolescentes que tomam laxante durante o dia para aparecer magras nas "parties" noturnas)
ébio-ascetismo,
difícil encontrar uma de
práticas prática do self no esentido
assujeitamento não defoucaultiano
liberdade. Sódeposso
ascese. Trata-secom
concordar antes de exercícios
Morris de
quando diz
que a anorexia é mais uma sociopatologia do capitalismo tardio, do que uma psicopatologia, pois "as
fantasias culturais de beleza feminina podem parecer distantes do corpo castigado e emaciado da
anoréxica, mas a anoréxica simplesmente leva até o seu limite lógico o ideal de magreza que obceca as
mulheres brancas educadas nas nações tecnologicamente avançadas", e conclui: "as mulheres jovens que
sucumbem ao feitiço da anorexia nervosa, são, porém, somente as vítimas mais óbvias de nossa obsessão
A somatização da subjetividade é um processo que vem sendo analisado por
vários autores (LE BRETON, 1999; SANT'ANNA, 2001; MORRIS, 2000; LUPTON,
1994; GLASSNER, 1989). O corpo é reinventado como objeto de visão, onde corpo e
self tornam-se idênticos, o mundo interno parece ser transmutado na "carne externa" e o
sentimento de "ter" um corpo dar lugar ao de ser um "corpo" (EDGLEY e BRISSETT,
1990, p. 271). Nesse sentido, Deborah Lupton afirma que "a aparência do corpo tornou-
se central às noções de auto-identidade". O corpo veio representar a liberdade pessoal, o
melhor de nós:
Com as bio-asceses a distinção entre corpo e self tornou-se obsoleta, "por meio
do fitness os sujeitos são verdadeiramente corporificados. O físico tornou-se um signo
cardinal do self de uma maneira não mais conseguida por meio de acessórios tais como
moda e cosméticos". O corpo é central para a experiência do [p.167] eu: "levado ao seu
limite lógico, essa versão da identidade", a qual é fornecida pelas bio-asceses, "equipara
virtualmente o self com atividades de fitness" (GLASSNER, 1989, p. 184-185). As
práticas bio-ascéticas fundem corpo e mente na formação da bio-identidade somática,
produzindo um eu que é indissociável do trabalho sobre o corpo, o que torna obsoleta
antigas dicotomias, tais como corpo-alma, interioridade-exterioridade, mente-cérebro.
capacidade presente na cultura da intimidade que tornou-se obsoleta. Hoje, sou o que
aparento e estou, portanto, exposto ao olhar do outro, sem lugar para me esconder, me
refugiar, estou totalmente à mercê do outro, já que o que existe (o corpo que é também o
self) está a mostra, sou vulnerável ao olhar do outro mas ao mesmo tempo preciso de
seu olhar, de ser percebido, senão não existo.
dos antigos.
A superficialidade, a eterna desconfiança do outro (paranóia) e o melindre são os
correlatos do homem somático.26 Trata-se de um indivíduo frágil, inseguro e insensível
para o outro, onde o controle e a regulação relevam à reciprocidade e à transformação:
"O eu constrangido e frágil, mediante a obsessão psicocultural de encontrar e manter a
identidade, ergue uma defesa, para a qual as fronteiras são inseguras por definição. Por
conseguinte, se em minha insegurança, você tenta me dizer sua verdade diferente, eu
não lhe ouvirei. Em vez disso, o que ouvirei é a ameaça da incursão. Percebo sua
personalidade como o espelho deformado de meu próprio eu reprimido ou como uma
diferença que sou incapaz de integrar em minha compreensão. Dessa forma, o outro está
26
Jurandir Freire Costa tem chamado a atenção desses elementos da subjetividade somática.
irrevogavelmente ligado ao self, e visto que não é admitido num lugar de conexão - por
meio de semelhança e diferença - o outro é inevitavelmente banido a uma posição de
subordinação, contenção e controle" (CRAWFORD, 1994, p. 1.364). [p.170]
27
"Apreensão é uma ansiedade sobre o que pode acontecer; é criada num clima que enfatiza o risco
constante, e aumenta quando as experiências passadas parecem não servir de guia para o presente"
(SENNETT, 1999, p. 115). Ver Castiel (1999, p. 159).
situação é agravada pela nossa aversão à dependência que impede que [p.171] possamos
desenvolver a necessária confiança em nós,28 nos outros e na benevolência do mundo.
são vistos como expressão da acrasia, de uma vontade fraca: "O único tirano que
28
Como lembra Courtine (1995, p. 1(3), "o amor inquieto, super ocupado, sempre insatisfeito, por um
bem-estar intimamente ligado à atividade física e a uma promessa de transformação corporal" tem um
custo psicológico muito alto. A profusão atual de desordens da personalidade mútua está na base desta
desconfiança de si, de um self que perdeu a caução do outro na construção de sua identidade.
enfrenta é sua própria inércia e ausência de vontade - a crença de que você está
demasiado ocupado para se responsabilizar por seu próprio bem-estar e que a procura de
sua saúde por meio de um estilo de vida que promova o bem-estar é demasiado duro,
complicado ou inconveniente" (ARDELL apud CRAWFORD, 1980, p. 379). A
ideologia da saúde e da perfeição corporal nos faz acreditar que uma saúde pobre deriva
exclusivamente de uma falha de caráter, um defeito de personalidade, uma fraqueza
individual, uma falta de vontade. "Não devemos nos enganar pensando que a doença é
causada por um inimigo exterior. Somos responsáveis por nossa doença", nos diz um
guru do healthism (ibidem). Nessa linha de pensamento, os novos estultos, os fracos de
vontade, merecem as doenças que contraem, tendo em vista toda a problemática estar
reduzida à falta de controle, à acrasia. Eles são alvo legítimo de repulsa moral e de
ostracismo social. O sofrimento do outro não é reconhecido. Ele é fruto de sua própria
culpa, eles são donos de seus destinos:
29
Body-building, tatuagens, piercings, transplantes, próteses, clonagem, e até mesmo a última moda das
body modifications (amputações) representam avanços na conquista do último continente, o corpo, e
tentativas de personalizá-lo. Ao mesmo tempo e devido à sobrevalorização e ao enorme investimento
simbólico
mesmo deque vem sofrendo
desconforto: nas últimas
só aceitamos décadas,
o corpo o corpo atornou-se
submetido objetodedetransformação
um processo desconfiança, constante.
de receio,
Existe, portanto, "um vínculo entre as explicações biológicas do comportamento humano, a vontade dos
cientistas de modificá-lo por manipulação genética e este mundo ideal sonhado por alguns teóricos
radicais da cultura virtual" (LE BRETON, 2001, p. 23). Sobre o tema, a literatura é imensa; ver, entre
outros, Yehya (2001); Le Breton (1999); Sfez (1996); Zeitpunkte: "Der neue Mensch" (3, 2001);
Joralemon (1995); Sharp (1995, p. 335-389).