GROTOWSKI, Jerzy - O Diretor Como Espectador de Profissão
GROTOWSKI, Jerzy - O Diretor Como Espectador de Profissão
GROTOWSKI, Jerzy - O Diretor Como Espectador de Profissão
em muitos casos é um conhecimento bem precioso, pode ser trans- o espet áculo. que quer verdadeiramente, ver algo de de
mitido só em uma linguagem técnica. Não podem fazê-lo em uma extraordinário. Já quando lê o texto, ha nele uma especte de ?lme
linguagem filosófica, ideológica, social, e - ousaria dizer - nem na lin- interior sobre certas potencialidades, como o sonho de um espetaculo
guagem das relações inter-humanas. Mas em maneira técnica podem fascinante. Este sonho não é demasiadamente rico em detalhes: algu-
fazê-lo. Isso significa que vocês devem fazer esforços para tornarem- ma coisa se refere aos atores que podem eventualmente fazer certos
se dinossauros extremamente competentes no sentido do ofício. Em papéis; alguma outra coisa, ao espaço onde o espetáculo se
suma, o diretor que começa o seu trabalho é quase sempre um grande verá; alguma outra coisa, a si mesmo, ao contexto da sua VIda, a sua
amador. Se é um ator, mesmo um ator notável, é ameaçado pelo peri- necessidade de pagar as suas contas. E ao mesmo tempo pensa
go de aplicar a sua técnica específica de atuação aos outros atores. Isso espectadores que são como ele (vocês podem dizer que não deveria
não é perigoso no interior das formas teatrais clássicas, por exemplo pensar em espectadores como ele, que é uma coisa muito egoísta.
aquelas orientais, porque ali não há criação da personagem; recebe-se Sejam egoístas. Para criar, sejam egoístas: coisas I:ara os seus
a personagem como de herança. Mas no teatro ocidental como existe espectadores, para as pessoas com as quais voces tem relaçoes profun-
hoje isso é muito perigoso. das e contra os outros!... ). E ele tem também a visão de como colocar
O diretor é alguém que ensina aos outros algo que ele mesmo não armadilhas para os espectadores que não ama. A esse propósito, me
sabe fazer. Mas exatamente, se sabe: "eu não sei fazer isto, porém sou lembro de Swinarski. um grande diretor polonês, enquanto preparava
um espectador", neste caso pode vir a ser criativo. E pode tornar-se até um breve texto de Wyspiaríski. Era um período muito interessante.
mesmo um técnico, porque nisso há uma técnica precisa e complexa. Todos pensavam que nós fôssemos adversários, por causa da concor-
Só que não se pode receber essa técnica em escola alguma, a aprende- rência entre nós na Polônia e no contexto internacional, enquanto nós
mos só com o trabalho. éramos ótimos amigos. Tínhamos, várias vezes ao ano, momentos cer-
Há diretores, por exemplo, que pegam um texto escrito, uma peça tos para nos encontrar, e então fazíamos a tr?ca informações.
e constroem uma sua idéia de realização. Isso quer dizer que cons- Eu lhe dizia: "Konrad. aproximaram-se de rrum tais e tais pessoas que
troem no seu intelecto a imagem que deve ser realizada. Nesse caso, me disseram que você é um porco imundo, que é justificável;
trata-se sempre do teatro de um filólogo, em suma, de algo que no infelizmente com essas outras pessoas eles estao preparando uma açao
melhor dos casos chega a uma espécie de tratado sobre o que seja , por contra você; e eu fui convidado a participar dessa ação". E eu recebia
exemplo, Hamlet como tragédia. Aqui há um profundo mal-entendido dele presentes análogos. Nós nos encontrávamos em um apartamen-
porque, dado que há mil livros a respeito de Hamlet que dizem qual to que não era oficialmente seu, e que ele tinha alugado de pessoas
seja o verdadeiro Hamlet, não há uma só concepção que possa repre- que trabalhavam no exterior. Naquele apartamento, Isolado de todos
sentar o Hamlet objetivo. Em primeiro lugar portanto não se pode para não ser perturbado, ele trabalhava preparando os esboços para
separar Hamlet do ator que o representará. Mas como pode o diretor as suas díreções, e nós discutíamos juntos detalhes do nosso trabalho.
conhecer realmente o potencial do ator? Pode saber quais foram os Portanto, nesse breve texto de wyspíaríski, havia um momento em
êxitos daquele ator em outros espetáculos. Então esse tipo de diretor que uma moça devia fazer o sinal da cruz. Swinarski tinha feito um
impele o ator a repetir aquilo que fez nos seus êxitos precedentes. No desenho disso, mas me mostrou também diretamente o gesto: levan-
quadro de uma estrutura inventada de maneira especulativa que o di- tou-se, fez o sinal da cruz pondo porém as mãos sobre o seu sexo
retor considera como a sua concepção, este pensa ter algo para impor vez de sobre o peito e me disse: "quero fazer-lhes isso". Eu estava mt.:I-
aos outros atores e aos espectadores. Ele sabe melhor do que ninguém to maravilhado. Em quem terá pensado? Nos espectadores que nao
o que é Hamlet; não o Hamlet daquele ator ou dele mesmo, mas Hamlet amava e que talvez sejam os espectadores carolas demais (demais, não
em si. Fará transmitir essas idéias reveladoras aos espectadores, e se os um pouco. Um pouco carolas vai muito bem). . . .
espectadores compreenderem essas idéias, as aplicarão na vida, e isto Acho que foi Jan Kott que falou de Os Antepassados de Mickiewicz
mudará a sociedade... realizado no Teatro Laboratório, dizendo que eu aplicava aos especta-
dores a psicomaquia, isto é, a ação extremamente dúbia de atraí-los
Mas o diretor pode aproximar-se do texto, mesmo do texto escrito, e de atacá-los, não no sentido de tocá-los fisicamente, mas atacar;-
com a atitude de quem quer ver coisas apaixonantes, que verdadei- do com uma certa discrição os estereótipos que eles amavam. Voces
ramente quer não se entediar nem durante os ensaios, nem durante se lembram daquele fragmento de Apocalypsis cum figuris em que o
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Inocente, que é fortemente associado à figura de Cristo , tem uma cena atenção; a própria e também a dos outros espectadores que chegarão.
de amor com Maria Madalena. Há então um momento de contato No caso que acabei de descrever, tratava-se na realidade da capacidade
um modo de em uma ação que, se se recorda que o Inocente de dispersar a atenção dos espectadores. Mas mais freqüentemente o
se assemelha a Cnsto, para certas pessoas resulta verdadeiramente problema é guiar, concentrar a atenção do espectador. Isso é difícil de
escandalosa. Não é escandalosa para mim, mesmo porque eu tenho entender para muitos diretores, sobretudo para aqueles que começam
uma grande estima por Cristo. a exercer o ofício.
. Como foi realizada aquela cena? Sobre aquele jogo de amor foi Talvez para compreender esse problema seja preciso ver documen-
Imposta uma forma secundária: Maria Madalena era um arco e desse tários do mesmo espet áculo, um feito com uma câmera imóvel, o ou-
a:co o Inocente atirava flechas. Essas flechas alusivas partiam em dire- tro realizado de maneira muito mais sofisticada, com uma câmera que
çao a Staszek, que era João, e estava correndo sem sair do lugar. Corria pegue os detalhes. Uma outra possibilidade seria assistir a um espetá-
um cervo, mas ao mesmo tempo o barulho dos seus passos era culo teatral e ver depois um bom documentário sobre esse mesmo es-
o ntrno de um ato amoroso, do caminho rumo ao ápice de um ato petáculo, efetivamente complexo e detalhado. Quando vocês realizam
E no momento do ápice a flecha partia. um documentário, o primeiro problema com o qual vocês se deparam
AqUI temos vanos elementos: uma ação quase naturalista de amor é o da escolha dos detalhes. Podem apresentar a cena em plano geral
entre o Inocente e Madalena, mas dentro do quadro de uma forma de mas depois devem pegar com a câmera uma parte da cena, um ou dois
arco e flecha com um outro elemento que pode chamar a atenção dos personagens, ou mesmo um detalhe muito simples, uma mão e uma
espectadores, isto é, um cervo que corre. Mas esse cervo que corre faz parte do corpo de um ator que na ação está em relação com uma parte
o barulho (o ritmo) do ápice de um ato de amor... do corpo de um outro ator et cetera. Isso significa que o espectador do
Antes de tudo, ? que como espectador foi dispersar a atenção documentário já dispõe de um itinerário da atenção.
d?s DIsse a num mesmo: "Seria belo ver tudo isso sem Reparem: um itinerário da atenção. Olhe aqui, este plano geral,
ve-Io . E para eles, os espectadores que chegam, é ainda mais impor- este detalhe, este personagem, este fragmento do ator, este fragmento
tante, porque podem estar sujeitos a vários mal-entendidos: pensar, por de um e de um outro ator, de novo este plano geraL ..
exemplo, que se de uma coisa blasfematória em sentido comple- Se não for assim, o documentário se torna completamente confu-
tamente banal- nao daquela grande blasfêmia que poderia constituir so. Isso por várias razões, porque a tela é mais plana e menor do que a
o dela, mas de uma pequena blasfêmia mesquinha. Então disse a realidade e porque a ação das pessoas vivas é completamente diversa
mim mesmo: "É preciso que a ação flutue". Vejo aquele momento de daquela em imagens. Quando vocês fazem um documentário de um
e quando me pergunto o que fazem já vejo o arco. Não tenho espetáculo. constroem necessariamente um itinerário da atenção do
mais sequer certeza de ter visto aquilo que acontecia uma fração de se- espectador. Mas têm a mesma obrigação também quando fazem um
gundo antes. Isso se repete, começa a trabalhar-me, mas agora já vejo o espetáculo, exatamente a mesma obrigação. Exceto os casos precisos
ce:v.o que corre. Portanto, como no texto de Racine, em que há um ato como aquela cena entre Maria Madalena e o Inocente, na qual havia
er,otIco transposto na de uma caça ao cervo. Mas não! porque certamente um elemento de itinerário, mas destinado a dispersar a
ha aquele ntmo que me Joga de novo em uma alusão quase naturalista. atenção, vocês devem estar muito con scientes de para onde querem
Mas quando estou tomado por essa alusão, encontro de novo o arco ou dirigir a atenção do esp ectador durante a ação . Esse é um âmbito to-
a parada do cervo, que é uma forma muito esculpida e provoca portanto talmente análogo àquele do prestidigitador que, para esconder a ope-
repentmamente algo como um efeito estético. ração-chave, guia todo o tempo a atenção do público.
. olho :ssa cena, não posso saber no fim se houve ali algum Tomemos um exemplo muito simples. Em primeiro plano encon-
Jogo erotíco ou nao. No fundo de mim mesmo eu sei e cada um sabe tra -se uma pessoa que diz uma espécie de introdução, dá informações,
trata de uma cena de amor entre o Inocente e a Mulher. Mas mas não está ainda verdadeiramente no espetáculo. Porém, é neces-
nao certeza que aç.ão tenha tido lugar. Muda todo o tempo, flu- sário que essas informações sejam transmitidas aos espectadores. E
tua. E algo de semiconsciente que registra a cena. em segundo plano temos já a ação que começa. Então o diretor se diz:
Esse é um caso especial e bem raro, muito difícil de realizar mas "sim, é uma bela associação - o ator informador apresenta aqui, e lá
que assim. toca um dos problemas essenciais do ofício do os outros agem". Mas na verdade se engana. Quando o espectador vê
tador, ISto e, do diretor que olha: aquele de ter a capacidade de guiar a realmente a ação em segundo plano, não escuta ma is, não compreende
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mais a informação, inversamente, se está concentrado no informador, espectador pertence ao nosso ofício . Se alguém é diretor e trabalha
não vê aquilo que acontece em segundo plano. As soluções possíveis com os atores deve ter uma câmera invisível que filma sempre, dirige
neste ponto são muitas. Entre outras, esta: o que deve fixar a atenção sempre a atenção do espectador em direção a algo. Em certos casos,
do espectador é a pessoa que dá as informações. E atrás dela há uma como o prestidigitador, para desviar a atenção do espectador e em ou-
ação . Ela deve ser percebida, deve existir, mas não deve fixar a aten- tros, ao contrário, para concentrá-la.
ção. Se para atingir este objetivo vocês diminuem a luz, é um fracasso Em um outro caso, o diretor direciona a atenção do espectador
total porque todos quererão ver o que acontece na obscuridade. Então para fazê-la saltar. Em um ponto há uma ação muito precisa de dois
a ação deve ser extremamente simples e repetitiva. Sem surpresas. atores. Em um outro, em um certo momento, se acende uma luz. A
Antes que o ator que dá as informações comece, ou melhor quando já atenção salta para lá, em direção à luz.· Imediatamente ela volta para
se apresentou, porque o fato de apresentar-se chama de toda a manei- cá, mas o espaço está vazio, ou acontece uma coisa completamente
ra a atenção, os outros atores em segundo plano começam essa ação diversa, ou é a mesma ação mas trinta anos mais tarde ...
mais ou menos repetitiva, sem surpresas. Ela pode ter uma composi-
ção formal e rítmica bastante desenvolvida, mas monótona e simples. Esse é um dos modos da montagem que infelizmente é comple-
Portanto, depois da primeira frase, o informador se encontra quase tamente desconhecido no trabalho do diretor: a montagem por meio
em suspenso, como se procurasse lembrar-se da seqüência; e então os do itinerário da atenção. Mas mesmo a montagem de seqüências à
espectadores percebem que algo começa lá embaixo no fundo. Vêem maneira do cinema, como falou Eisenstein, na realidade só pode ser
aquilo e em um segundo reconhecem o que acontece. E, portanto, vista no teatro se o diretor for competente. O princípio é este. Vocês
quando o informador recomeça, a atenção dos espectadores volta para elaboraram ações precisas com os atores e, em um certo momento,
ele, e se se arreda dele é só por breves períodos, com o objetivo de ve- você s cortam um pedaço da primeira ação e a colocam em conexão
rificar se em segundo plano há sempre a mesma ação repetitiva . com o fragmento de uma outra ação. Assim obtêm uma montagem
A outra solução é a da alternância. Isso significa que quando a aten- das seqüências, com todas as leis que nela agem segundo Eisenstein.
ção deve ser levada ao informador, os atores em segundo plano devem Isso é importante sobretudo quando se quer passar da improvisa-
estar empenhados em uma ação tão sutil que sugira que eles esperam ção para o espetáculo. Logo se encontra o primeiro obstáculo: saber
em vez de fazer alguma coisa. Depois o informador pára e a ação retoma fixar a improvisação. Esse é um tema vasto demais para poder ser
em segundo plano. Em um momento subseqüente, em segundo plano, apresentado aqui. No entanto é preciso saber tomar do corpo
a ação não pára propriamente, mas é como se o movimento atingisse durante a improvisação. Quando digo corpo falo tambem da voz, da
um repouso. Nesse ponto de novo recomeça o informador. .. entonação, do canto, de todas as ações que o ator faz. Portanto tam-
Assim funciona bem. Pena que seja banal. Por que é banal? Se o bém a alma e o espírito, tudo. Mas dado que a alma é sua, se eu tra-
diretor olha durante os en saios o que fez, se é verdadeiramente um balho com vocês, para mim ela é como fumaça , não posso esculpi-la
diretor que ama ser testemunha de coisas fascinantes, ele se diz: "sim, é por dentro. Não poderei nunca saber verdadeiramente o que seja, a
claro, mas não há revelação nisto". Por que não há revelação? Porque sua alma, quanto ao seu espírito, posso apenas supor, em certos casos
não há mistério, não há segredo. O problema não é inventar algo de individuais, que exista. Assim devo concentrar-me nas coisa s que se
misterioso; porque se se inventa isso, se trata simplesmente de coisas podem fixar fisicamente, mas com grande exatidão, sem perder ne-
estupidamente bizarras; mas há aí todo um inter mundus entre ver aquilo nhuma das motivações que tem o ator. E portanto sem perder a alma
que existe e não o ver. Assim, por exemplo, em vez de justapor simples- e nem o espírito, se estão no seu lugar.
mente as seqüências, elas poderiam se justapor parcialmente. Isto quer Portanto em primeiro lugar é preciso fixar a improvisação. Mas se
dizer que o informador tem ainda a iniciativa mas já em segundo plano se trabalha com a improvisação para fazer um espetáculo, isso dura
emerge alguma coisa. A ação em segundo plano ainda está se desen- freqüentemente anos . E o material fixado pode durar vinte ou quaren-
volvendo mas o informador já recomeça a falar e assim por diante. A ta horas. E assim vocês devem pas sar pela montagem: cortar, cortar,
atenção do espectador está dividida, ele vê sem ver e escuta sem escutar. cortar. E, freqüentemente, de maneira totalmente consciente, vocês
Isso é completamente diferente da primeira e da segunda versões. fazem conexões paradoxais como na montagem cinematográfica "no-
Naturalmente não estou dizendo que esta seja a única solução, há bre". E aqui aparece de novo um problema, porque vocês não. lidam
milhares delas. Digo a vocês somente que o itinerário da atenção do com uma película que podem simplesmente cortar quando quiserem
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na moviola. Vocês são obrigados a cortar fragmentos da atuação dos Sakuntala no Teatro Laboratório em Opole. A ação representa um ca-
atores, mas de tal maneira que eles não percam as motivações, o fluxo sal de enamorados. Eles serão mostrados, quando toda a história tiver
interior daquela seqüência. chegado a sua bela solução, como pessoas já velhas. Não há mais o
Há várias subtécnicas para fazê -lo . Por exemplo, vocês têm um fascínio da juventude, não há mais aquela energia, como quando Eros
fragmento que pertence a uma seqüência de improvisação que tem os conduzia. Tudo é muito velho. É a mesma ação. o casal de enamo-
por si só um início e um fim. Mas vocês precisam só de um pequeno rados' eles se mantêm na mesma posição e dizem o mesmo fragmento
pedaço de alguma parte no meio dela. Então, recomeçando várias ve- de mas já com uma voz de velhos. Nós podemos
zes a seqüência que precede o fragmento que querem cortar fora, a muito simplesmente segundo a montagem número um. !sto e, a açao
transformam com os atores em uma preparação. do casal pára, em uma certa posição, e eles começam a açao dos.v:lhos
Concretamente: na seqü ência que não é necessária, o ator faz um mudando o corpo, a atitude, a voz, embora conservando a posiçao de
discurso cheio de sentimento a seu filho por todas as bobagens que este início. Para mim essa montagem número um nunca poderia dar certo,
cometeu. Durante essa seq üência, ele se levanta, se movimenta, bate seria banal. Suponhamos que eles estejam, ao contrário, na metade
o punho na mesa, muda as mãos de lugar e assim por diante. Então de sua ação e que uma luz apareça do outro lado . Deve haver uI?a
vocês lhe dizem para fazer as mesmas coisas quase sem se movimen- razão natural para isso, e absolutamente algo que tenha um
tar, procurando só começar dentro do corpo os pequenos impulsos em absurdo. Digamos por exemplo que alguem acende un:.a lampanna.
direção a esses movimentos. Assim, por exemplo, em vez de bater o basta isso. Há aquele fogo que tem uma força de atraçao . Olha-se a
punho na mesa, mostre a vocês somente um pequeno impulso do om- luz mesmo escutando ainda o diálogo que continua. Sim, reconhece-
bro. O ator começa esses pequenos impulsos, mas quase sem mover- se que é simplesm ente uma lamparina . Olha-se de novo para o.utro
se. Se nessa sequ ência dizia algo, o ator no início faz esses pequenos lado, mas agora há dois velhos a terminar a mesma frase que ja tínha
impulsos deixando correr o texto. Depois começa a dizer essas frases sido dita pela metade quando aparecera a luz. É como nos contos po-
na mente, sem pronunciar as palavras, na sua cabeça, e quando chega pulares. Uma menina saiu de casa e se perdeu no ,?osque: enc5mtrou
àquele fragm ento que precisa realizar, o faz porém em plena ação. Tal uma bruxa, foi levada de volta para casa . Entra e nao ha nmguem que
preparação, na verdade quase estática, eu diria caracterizada por uma a reconheça. Há outras pessoas, ela as interroga, o nome de
retenção dos impulsos, ou por impulsos contidos, não o colocará de seu pai e de sua mãe mas ninguém sabe nada deles. Entao fala de seu
modo algum em uma posição difícil para começar. Ao contrário, será irmão, de sua irmã e, àqueles nomes, alguém diz: "Ah. sim! Moravam
como uma catapulta que o lança. O paradoxo é que, uma vez acabado aqui há cinqüenta anos atrás". Vejam, é assim; no breve momento em
aquele fragmento, deverá terminar sempre com impulsos contidos, o que o espectador distraiu a sua atenção, passaram-se quarenta
resto da seqüência que não será utilizado. Porque se na primeira vez na ação. Essa é a montagem número dois. Fazer a montagem por ItI-
é parado no fim do fragmento necessário para a montagem, fará isso nerário da atenção é maestria da cena. ,
bem. Mas na segunda vez, saberá já que não existe a continuação e Os diretores não são todos instrutores de atores. Podem ser grandís-
todo o fragmento mudará de perspectiva. Se eu sei que depois de ter simos diretores, perfeitamente senhores da encenação, sem saberem,
me movimentado de uma certa maneira corro, me movimento em por exemplo, ensinar a um ator a técnica da voz - por exemplo,
relação ao fato de ter que correr depois . Mas se sei que depois não não têm interesse algum nisso. Era o caso, por exemp,lo, de
devo mais correr, a perspectiva muda e modifica também o primeiro Ele sabia agir maravilhosamente com os atores em mvel psicológico e
movimento. Mas esta é somente uma das subtécnicas úteis para sepa- do imaginário; sabia armar um complô com cada dos durante
rar um pedaço de improvisação. os ensaios. Mas nunca procurou propor um certo trpo de treinamento.
Para colocar depois esse fragmento em conexão com outro sem de exercícios, de desenvolvimento vocal; não era o seu trabalho. Mas
perder o seu elã vital é preciso uma técnica especial, que é já rara no como espectador de profissão era genial. E é desse aspecto que estou
teatro, se bem que esta seja uma montagem de nível muito elemen- falando, não das metodologias de formação de atores.
tar: a montagem de seqüências. Mas há uma outra montagem que é O diretor tem uma primeira visão do espetáculo quando le o texto,
verdadeiramente sofisticada. É aquela que passa unicamente pelo iti- dado que quer ser um espectador fascinado. Mas essa é uma
nerário da atenção. Voltemos ao exemplo que lhes dei anteriormente. questão entre ele e os seus irmãos espectadores, e os seus ImmIgos. es-
Lembro-me de ter realizado de maneira bastante semelhante o fim de pectadores (Como Swinarski que fez várias coisas para os seus amigos
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espectadores e também - por exemplo com aquele seu terrível "sin al as coisas que há, se muda. Acontece. Há uma vestimenta pessoal que
da cruz" - para os seus inimigos espectadores, e para mim, como me se .torna uma túnica de monge só porque se desloca um pouco alguma
disse) . Portanto o diretor deve tirar dessa visão ainda confusa, que coisa, Porque eu, como espectador de profissão, olho algo e acho chato
não é a concepção mas o sonho de um espetáculo. certos primeiros aquilo que acontece, não me encanta, no sentido mágico do termo. O
planos de trabalho. Deve necessariamente traduzir aquilo em termos que posso mudar? Ou tentar? Como posso impulsionar o ator? Então
precisos: quais atores? quais espaços? Deve ter um projeto. É inevitá- o projeto inicial começa a evoluir, a evoluir.. . e finalmente a coisa vai
vel. Se for muito estúpido, depois vai se ater ao seu projeto. O projeto muito com relação àquele projeto, e começa a perder-se.
é necessário para dar a partida no trabalho; mas depois chegam as ,En tao se olha. Se se tem a impressão de que já acabou, que já
coisas desconhecidas, dos atores emergem coisas ignotas, ao diretor esta em um estado em que é preciso bem rapidamente convidar a
mesmo chegam novas associações, os objetos mostram novas funções concorrência, isto é, os outros espectadores, nesse caso não é preciso
possíveis. se preocupar porque o material é móvel, como a massa do pão que
A propósito disto abro um parêntese. No teatro tradicional o es- começa a nesse ponto é preciso começar a montagem. E
paço dos atores é bem equipado, mas nunca o palco. No palco podem para montar e necessano pensar de maneira muito disciplinada. Isto é
existir máquinas, mas só porque servem para o público. Mas na maio- fazer a p.rimeira fazer a escolha dos cortes, do que depende
ria das vezes os atores trabalham em condições penosas e até mesmo se o projeto que nascera vai ser coerente, ou se vai se perder do todo.
sem os objetos que devem utilizar. Só no final, no ensaio geral, rece- E para poder aplicar então a segunda montagem, aquela do itinerário
bem os objetos: isso é completamente idiota. Se recebem os objetos da, é preciso já completamente pronto com a primeira
a partir do primeiro projeto do diretor, tudo é diverso. Tomemos um e e preCISO saber que esta dando completamente certo - mas não até
exemplo: uma mesa - agora eu penso na mesa do Doutor Fausto, de o fim. Agora é preciso fazer a coisa verdadeira. Finalmente temos o
Marlowe, que montamos quando estávamos ainda em Opole. Todos material, não estamos mais na obscuridade, agora o problema é fazer
os espectadores eram acomodados atrás de duas grandes mesas. Era a a coisa Agora o mínimo pequeno impulso que seguimos
última cena de Fausto, em que ele apresenta os acontecimentos da sua se torna Importante. Se uma pessoa tem um impulso e outra tem um
vida como os pratos de um banquete, antes de cair nas mãos daquele outro, como funciona o itinerário da atenção? Estamos frente à obri-
senhor que agora governa a terra. Portanto há a mesa. Eu olho a mesa, gação do perfeito domínio.
olho o monge encapuzado que pede a Fausto a sua confissã o. Não há
um confessionário, mas no fim eu sinto, por causa da minha educação E se não estiver ainda pronto para a chegada da concorrência?
e do meu contexto, que uma verdadeira confissão deve ser feita em Ent.ão o deve olhar de novo o material que lhe passa diante
um confessionário, se não for um pouco falha. Não temos um confes- e dizer-se: e como uma alusão a uma coisa possível que ainda não
sionário mas podemos colocar daquele modo a mesa, colocá-la na ver- chegou. É como se toda a ação fosse uma tela que é preciso retirar
tical. O monge está de um lado e Fausto fala do outro. Então a mesa se para ver a verdadeira ação . E portanto começa de novo a colocar-se
torna um confessionário, como em um outro momento se torna um nesse caminho do sonho vigilante e consciente, e com todo este ma-
navio, uma senda no bosque, ou outras coisas ainda . Não se pode in- terial ainda uma vez, inicia um projeto. Como poderia ser? Talvez .. .
ventar isso antes. Vêem-se os objetos e estes começam a se apresentar. Talvez ...
Vocês talvez se lembrem de Iben Rasmussen em As Cinzas de Brecht, em Para falar dos diversos elementos do ofício seria necessária uma
ação com as tesouras que se tornam um sinal de alarme . enorme. quantidade de tempo;
A
para acabar quero dizer-lhes agora
A mesma coisa vale para os figurinos. Se são um pouco muda- uma coisa voces podem nao acreditar nem um pouco, mas que
dos, eles se tornam completamente outra coisa. Portanto essa transfor- mesmo aSSIm e absolutamente verdadeira. Em todos os períodos do
mação dos objetos ou das funções dos objetos é um elemento muito meu trabalho no Teatro do Espetáculo, no Teatro da Participação e no
importante do trabalho. São coisas que aparecem e que modificam o Teatro das Fontes, em todo o meu trabalho, as coisas mais importantes
projeto inicial. Evidentemente porém o que altera mais o projeto inicial apareceram quando eu era apenas testemunha do nascimento de uma
é aquilo que emerge dos atores. Mas as duas coisas andam juntas. possibilidade, como uma revelação desconhecida.
O espectador de profissão olha; mas como é que ele realiza a sua in- Talvez isso seja mais fácil de explicar com um exemplo tirado
tervenção? Mas sim, há uma confissão e nenhum confessionário e, com do Teatro do Espetáculo. Trabalha-se como diretor com algum ator,
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Procura-se uma vez, duas vezes um certo fragmento : funciona,. não pode servir para você. Não tem relação alguma com o que vocês fa-
funciona ... Então dizemo-nos que é preciso recomeçar ainda, e ainda. zem. Sim , sim, é extraordinário mas está completamente fora daquilo
e ainda. O que é necessário é a paciência. É o modo q vocês fazem!". Então eu digo àquela pequena voz: "Mas fique
como o diretor olha e escuta. Muito freqüentemente o díretor ama quieta! Quero ver esta coisa até o fim".
perturbar o ator cortando-o na metade de sua ação . Antes que o ator É daí que as coisas emergem de verdade; é nisso que o nosso tra-
possa fazer algo até o fim, já é Por que. o diretor corta? Porque balho se desenvolve sempre hic et nunc, em cada momento dos ensaios.
o ator não faz aquilo que ele imagma . Mas aSSIm pode somente matar E aí está o valor. Se hoje, sexta-feira, à hora tal, o milagre dos atores
emerge, se isso emerge, então eu sou o espectador e olho, estou fasci-
as possibilidades do ator. . nado. O problema não é absolutamente se servirá para alguma coisa ou
Lembro-me do período de trabalho sobre Samuel rborowski: uma
peça que evoluiu através até ApocalYPsls cu';! não. Hoje aquilo existe e isso é importante. O que sucederá depois? Será
figuris . Foi um trabalho muito prectso e muito longo, que durou tres esquecido talvez. Será esquecido, ma s as marcas permanecerão em nós .
anos . Eu fiquei mais de cinco meses sentad? olhan?o os meus colegas Não trabalhamos assim na verdade, no sentido da arte e da vida? Isto
sem pronunciar uma palavra. Mas eles sentiam muito bem como eu os mudará, talvez, toda a perspectiva do espetáculo. mesmo se em sentido
olhava. Entendiam que os olhava porque esperava de cada um deles_o indireto. Assim aconteceu com Apocalypsis cum figuris, quando um dia,
máximo e não queria ver as coisas que já sabiam fazer. nao enquanto ainda trabalhávamos sobre SamuelZborowski, Antek começou
valia a pena dizer: não chegamos ainda. Era.melhor nao .dizer nada e a fazer algo que era completamente fora do contexto. E eu quis somen-
ficar olhando. Até o momento em que A COIsa chega. EVidentemente te, com todo o fascínio que sentia por aquilo que estava acontecendo,
então chegou. Conosco havia um jovem pesquisador do C.N .R.S. de resolver a questão: mas o que está fazendo? .. Certamente é o pope!
Paris que estava escrevendo uma tese a respeito de O Príncipe Constante, O padre ortodoxo e, além do mais, russo! Assim me chegou o Grande
de que tinha visto porém só o espetáculo e que naquele momento Inquisidor como um pope russo, enquanto não existiam ainda nem o
assistia aos ensaios do novo trabalho . Quase no mom.ento em Inocente, nem Cristo. Então Antek, estimulado por mim, colocou em
depois de cinco meses, o meu silêncio acabaria, pesqui- pé um "compl ô". e começou a manipular os seus colegas para que um
sador, um tipo muito simpático e inteligente, devia partir de novo deles fosse colocado na situação do Salvador. Então tudo mudou.
a França. Então me puxou de lado e me disse: "Desculpe-me, podena Em outros casos descobre-se que aquilo encontra lugar no espetácu-
me dizer como o senhor faz finalmente as suas direç ões?". E então lo, que o tínhamos até mesmo previsto. Mas pouco importa se encontra
eu olhei para ele e lhe respondi: "Olhando" : e.le replicou : "Mas o lugar ou não, porque aquele foi o momento de tocar o verdadeiro se-
senhor não faz nada". Então eu lhe respondi: Sim, mas espero gredo do trabalho. Apresentou-se a mais alta noção de criatividade do
o espetáculo se faça" . Ele partiu e depois de tempo retornou a nosso ofício. E isso não fica nunca sem resultado, mesmo se não é meu
Polônia para visitar-nos e assistiu a Apocalypsis cum figuns. Perguntou - proble.ma sab(? exatamente como. Assim é hic et nunc no nosso campo.
me depois: "Mas quando o senhor fez este espetáculo?". "O senhor Se o díretor nao olha como quem pode ser fascinado por uma possibili-
estava presente durante os ensaios" . E ele me "Mas"o senhor dade desconhecida, mesmo só por aquele dia, só por aquele momento,
não fez nada". "Já lhe disse, espero que o espetaculo se faça . ficará sempre no nível limitado e banal das próprias concepções.
Durante os ensaios eu espero, não corto, não explico nunca como
gostaria de ver a ação . As palavras do diretor são" magi.camente,
vras de poder. Devem empurrar. O não exphcar de. maneira
teórica ou descritiva, porque cada um de nos se ve de modo diverso de
como é visto do exterior (da mesma forma que nós não reconhecemos o Diretor Como Espectador de Profissão
a nossa voz reproduzida no gravador) . Assim necessária uma outra Tran scrição de uma intervenção feita em Volterra, em 1984, por ocasião de
capacidade de lançar observações: as observaçoes que Por um encontro organizado pelo centro de cultura ativa II Porto sobre A Arte do
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