Revista Ars Historica 13 PDF

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Editorial

A 13ª edição da Revista Ars Historica está no ar com várias novidades! A partir
deste número, nossos dossiês serão apresentados por um docente do Programa de Pós-
Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PPGHIS/UFRJ) especialista no tema.
Para estrear com chave de ouro, quem apresenta nosso dossiê “Império Português
em perspectiva: sociedade, cultura e administração (XVI-XIX)”, composto de 11 artigos,
2 notas de pesquisa e resenha é o Prof. Dr. Antônio Carlos Jucá de Sampaio, que ressalta
como o dossiê engloba os estudos mais recentes sobre a temática e as novas perspectivas
historiográficas. Sampaio é Professor Associado de História do Brasil do Instituto de
História da UFRJ, pesquisador do CNPq e autor de obras como” Na encruzilhada do
império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c.1650 - c.
1750)” e “Conquistadores e negociantes: Histórias de elites no Antigo Regime nos
trópicos”, que organiza com os Prof. Drs. João Fragoso e Carla de Almeida.
Retomamos também nossa sessão de Entrevistas, trazendo a prof. Dra. Érika Dias,
que conversa conosco sobre sua trajetória como pesquisadora e coordenadora do “Projeto
Resgate” que organiza e digitaliza conjuntos documentais do Arquivo Histórico
Ultramarino, tão precioso para pesquisadores sobre o tema do Ultramar português.
Novidades também na arte. Estreamos nossa marca d’agua, além de darmos
sequência de artes exclusivas para a Ars Historica criadas pelo designer editorial Ricardo
Durski. A capa ilustra a chita de Alcobaça, feita de algodão, levada da Índia para Portugal
já no século XV. Posteriormente, produzida nos teares da cidade de Alcobaça, é uma das
influências das chitas brasileiras. A chita revela também à dinâmica de trocas comerciais
e culturais do Império Português, que entre os séculos XVI/XVII se estendeu por todos
os continentes.
Não menos importante, a sessão Artigos Livres traz pesquisas de diversas partes
do país que mostram a abrangência da produção historiográfica nacional com o fio
condutor do século XX. Juliana Cristina da Rosa trata da luta pela terra Marãiwatsédé,
processo histórico da década de 1960 que envolve índios Xavantes e a empresa Suiá
Missú. O artigo de Douglas Satirio da Rocha também aborda disputas pela terra e
movimentos sociais, mas na região Oeste Catarinenese dos índios Kaingang, na década
de 1980 e a circulação de notícias no jornal “O Estado”. Bruna Marques Cabral apresenta
a recepção das ideias de leigos e clérigos católicos no que concerne à Doutrina Social
Cristã entre 1950-1964. Já Júlio César Augusto do Valle traz o pensamento do filósofo e
matemático Bertrand Russell e sua vasta produção científica e literária. Por fim, Oscar
de Paula Neto, a partir do periódico “Revista de Cinema” da década de 1950, mostra a
revisão do método crítico cinematográfico do cinema brasileiro.
O comitê editorial da Revista Ars Historica, Qualis B4 na Capes, agradece e
convida a todos para lerem nossa 13ª edição referente a julho e dezembro de 2016, que
pode ser baixada individualmente ou no PDF completo!

Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, | www.ars.historia.ufrj.br


Expediente

Comitê Editorial Revista Ars Histórica 2016.2

Bárbara de Almeida Guimarães – (Mestrado 2016 - 2018)


Filipe Duret Athaide (Doutorado 2016-2020)
Gabriel Pereira de Oliveira (Doutorado 2016 - 2020)
Isabella do Amaral Mendes (Mestrado 2016 - 2018)
Jean Carlos Pereira da Costa (Mestrado 2015 – 2017)
João Paulo Henrique Pinto (Doutorado 2016-2020)
Karenn dos Santos Correa (Mestrado 2016-2018)
Laís Morgado Marcoje (Mestrado 2016-2018)
Lucas de Mattos Moura Fernandes (Mestrado 2016-2018)
Maria Beatriz Gomes Bellens Porto (Doutorado 2015-2019)
Pedro Brandão de Sousa Culmant Ramos (Mestrado 2015-2017)
Thiago Groh (Doutorado 2014-2018)

Revisão: Fernanda Drummond ( fernandadrummond@gmail.com)


Capa: Ricardo Durski (ricardodb@gmail.com)

Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, | www.ars.historia.ufrj.br


Apresentação

Dossiê: Império Português em perspectiva: sociedade, cultura e administração


(XVI-XIX)
ANTONIO CARLOS JUCÁ DE SAMPAIO

Para um pesquisador da história do império português é difícil imaginar um prazer maior


do que fazer a apresentação de um dossiê de uma revista discente sobre o tema. E isso porque
a própria existência desse dossiê é a comprovação cabal de como o estudo do “Mundo
Português” se espraiou na academia, um quadro quase inimaginável há pouco mais de duas
décadas atrás, quando surgiram os primeiros trabalhos realizados no Brasil. O próprio termo
“império”, hoje absolutamente consolidado em nossa historiografia, foi por muito tempo objeto
de questionamento.
Nesse número de Ars Histórica encontramos uma produção historiográfica
extremamente diversificada, tanto em termos temáticos quanto geográficos e temporais, sinal
inequívoco da vitalidade dessa área de pesquisa.
No campo da história política, cabe destacar o artigo de Fernanda Pissurno sobre a
candidatura de D. Catarina, duquesa de Bragança, ao trono de Portugal. Temos aí uma análise
cuidadosa do contexto que levará à União Ibérica.
Uma história social de Portugal moderno aparece nos textos de Alexandre Rodrigues de
Souza e Cayo de Annis Mariano Teixeira. No primeiro, há um interessante estudo sobre a
regulamentação da prática da prostituição no reino tendo por base as ordenações (afonsinas,
manuelinas e filipinas), mas englobando também alvarás, circulares e editais régios. As
transformações ocorridas nesse longo período são analisadas com cuidado, tendo como pano
de fundo as mudanças operadas pela contrarreforma. O segundo texto trata do tema do
abandono de crianças e a legislação sobre o tema. Como no primeiro caso, temos aqui uma
história social imbricada com a história política, já que a legislação ganha novamente destaque.
Um tema em franca ascensão nos estudos sobre o império português é o da religiosidade.
Tema da maior importância, se tivermos em conta que a religião não era, como hoje, apenas


Professor Associado de História do Brasil do Instituto de História da UFRJ e pesquisador do CNPq.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. I-III | www.ars.historia.ufrj.br I
uma parte da vida social, mas um verdadeiro amálgama, a dar sentido ao todo, explicando,
ordenando e justificando o mundo em que se vivia. No dossiê, o mesmo aparece no texto de
Felipe Rangel sobre o “curandeiro” mestiço Pedro Rodrigues. Religião e escravidão se
combinam, servindo a trajetória de Pedro tanto como um exemplo da mistura entre práticas
portuguesas e africanas quanto como demonstração da preocupação da hierarquia católica com
as práticas “pagãs”. A relação entre escravidão e religião aparece também no artigo de Leonara
Delfino sobre a irmandade de Nossa Senhora do Rosário de São João Del Rei. O foco, aqui, são
as disputas internas ao grupo, sem deixar de fora, no entanto, o contexto mais amplo em que os
irmãos se veem envolvidos. Jorge Henrique Leão, por sua vez, debruça-se sobre o apostolado
laico na Índia e no Japão quinhentistas, forma encontrada pelos jesuítas para melhor evangelizar
em regiões que estavam além do domínio português.
José Pereira debruça-se sobre as cartas de Manoel da Nóbrega, analisando de que forma
sua correspondência esteve marcada tanto pela preocupação com a conversão do gentio quanto
por uma concepção especifica de mundo, moldada por sua formação jesuítica. O texto de Luiz
Pedro Filho tangencia o tema da religião ao referir-se à expulsão dos jesuítas de São Paulo e a
negociação para seu retorno. Aqui temos, por trás de um tema aparentemente religioso, uma
história política que tem por base o poder local, outro tema candente em nossa historiografia.
Júlia Aguiar busca, em seu texto, recriar as redes de relações existentes entre senhores
e escravos, demonstrando assim que a escravidão não se baseava somente na violência, mas
também na existência de acordos e alianças, elementos fundamentais para a sua manutenção ao
longo do tempo.
A expansão portuguesa ao redor do globo e suas múltiplas mestiçagens conviviam com
uma classificação racial baseada nas noções de pureza e impureza de sangue, sendo considerado
puro somente o sangue daqueles não-mestiços (o termo branco não era então utilizado) que
eram, ao mesmo tempo, cristãos-velhos. Todos os demais eram considerados contaminados. Os
ciganos foram dos primeiros a sofrerem os efeitos dessa classificação, como mostra o texto de
Natally Menini. O estudo da discriminação de que foram alvo nos ajuda a entender não somente
os próprios ciganos como a sociedade portuguesa em geral, e a maneira como lidariam
posteriormente com os múltiplos povos com que entrariam em contato. Analisando o
cerimonial de entrada do bispo Dom Frei Antônio do Nascimento no Rio de Janeiro, Lucas
Nascimento realiza uma instigante análise dos padrões de classificação social do Antigo
Regime português, mostrando como o cerimonial confirmava e projetava as hierarquias sociais
preexistentes.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. I-III | www.ars.historia.ufrj.br II
Gabriel Gaspar, ao analisar os comentários de Fernando José de Portugal ao regimento
dos governadores-gerais realiza uma interessante discussão sobre as práticas políticas
portuguesas na segunda metade do setecentos, período marcado por importantes transformações
nas formas de atuação da monarquia lusitana.
Por fim, cabe mencionar a resenha de Alex Silva sobre o livro de Grayce Souza. O
estudo dos agentes da inquisição na América portuguesa é um tema da maior importância, dada
a capilaridade que a instituição alcançou nessa sociedade. Além disso, ajuda-nos a entender
melhor temas como a classificação social e a pureza de sangue, mencionados acima.
Tantos e tão diversos trabalhos, realizados por alunos de diferentes programas de pós-
graduação, são a demonstração de que os estudos sobre o império português contam ainda com
uma longa estrada pela frente e, o que é mais importante, cada vez mais ampla.

Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. I-III | www.ars.historia.ufrj.br III
Artigo

ESCRITA PERFORMATICA, ALTERIDADE E


EXPERIENCIA EM MANUEL DA NÓBREGA
JOSÉ DELFIM DOS SANTOS PEREIRA 

Resumo: Este trabalho tem o objetivo de analisar como o padre Manuel da Nóbrega constrói o
sentido da missão jesuíta na América Portuguesa utilizando suas cartas, considerando para tal
os aspectos formais de sua escritura e a relevância de sua experiência religiosa, conhecimento
jurídico e contato com a Colônia neste processo de dar significados ao Novo Mundo. Do mesmo
modo é importante para nós explorar o fenômeno da Alteridade perceptível quando Nóbrega
escreve a respeito dos nativos que pretende converter. Nossa investigação estará limitada ao
período do Governo de Tomé de Souza, quando começou a atuação dos jesuítas nos territórios
portugueses na América (1549-1553).
Palavras-chave: Jesuítas, Manuel da Nóbrega, Escritura, America Portuguesa, Catolicismo.

Abstract: This paper has as an aim analyzing how father Manuel da Nóbrega constructs the
sense of the Jesuit mission on Portuguese America using his letters, considering the formal
aspects of his writing and the relevance of his religious experience, his juridical knowledge and
contact with the Colony in the process of finding meaning in the New World. It is also important
to us to explore the phenomenon of Alterity perceptible when Nóbrega writes about the natives
that pretend to convert to religion. Our investigation will restrict itself to the period of Tomé de
Souza Government when the Jesuit action began in Portuguese territories on America (1549-
1553).
Keywords: Jesuits; Manuel da Nóbrega; Scripture; Portuguese America; Catholicism.

A estrutura da escrita empregada por Nóbrega.


A escrita epistolar foi relevante para que os jesuítas desempenhassem seu trabalho com
êxito no além-mar uma vez que a mesma contribuía para o bem interno da Companhia ao
promover a união entre os irmãos afastados em nome da missão e ao auxiliar no seu governo.
De igual modo, também colaborava para o bem externo da Companhia, uma vez que os relatos
sobre a missão incentivavam a agregação de membros à Ordem e despertavam a atenção de

Artigo recebido em 1 de março de 2016 e aprovado para publicação em 21 de março de 2016.


Mestre pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. E-mail:
josedsp@live.com
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 4-20 | www.ars.historia.ufrj.br 4
pessoas que, ao ter ciência do que se fazia, poderiam mobilizar-se a fim de ajudar de alguma
maneira. A escrita epistolar possuía ainda sua participação no bem privado de quem escrevia,
pois, ao conhecer o trabalho de outros irmãos, o jesuíta adquiriria mais solidez em sua vocação,
bem como a praticaria com mais humildade e diligência1.
Era de se esperar, portanto, que uma prática tão essencial para os jesuítas atendesse a
um certo rigor em sua construção, sobretudo se considerarmos evocando o semiólogo Roland
Barthes que é por meio da língua que o poder se estabelece socialmente, mobilizado por sujeitos
ou instituições e impresso nos indivíduos.2 A escrita jesuítica, nesse sentido, não era uma escrita
qualquer, mas sim uma escritura concebida a partir de um arcabouço linguístico restrito, uma
linguagem própria, em cujo tesouro residiam os paradigmas, os termos, os conceitos e os
protocolos aos quais os seus membros deveriam recorrer, uma escritura particular a que o jesuíta
se submetia, a fim de conceder inteligibilidade e legitimidade ao seu relato.
Os protocolos aos quais se submetiam os inacianos eram bem rígidos, para se ter uma
ideia, Inácio de Loyola, fundador e líder da Ordem, recomendava que os jesuítas reescrevessem
as cartas antes de enviá-las quantas vezes houvesse necessidade, o que inclusive o fez ser
acusado de promover a hipocrisia entre seus companheiros da Companhia de Jesus3. Para
Loyola, contudo, tratava-se de um esforço desempenhado pelo autor do escrito em dar o seu
melhor em Cristo e satisfazer o leitor.4 Tal satisfação do leitor tem um papel extremamente
significativo, uma vez que, como pontuou Alcir Pécora, as epístolas deveriam – segundo Loyola
– ser leituras edificantes, consoladoras e espiritualmente proveitosas para os correspondentes.
Os relatos que fugissem a tal fulcro deveriam ser escritos em anexos denominados Hijuelas,
aos quais apenas teriam acesso os líderes da Companhia.5
Ao tratar dos principais elementos constituintes da estrutura formal das cartas inacianas,
Pécora destacou “o da informação, o da reunião de todos em um” e o da “experiência mística
ou devocional”.6 As cartas inacianas, nesse sentido, deveriam ter em mente o objetivo de
informar, não trazendo qualquer informação, contudo, como há pouco fora dito, mas aquela que

1
EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais, aventuras
teóricas. Belo Horizonte: UFMG, 2000, p.48-50.
2
BARTHES, Roland. Aula. Tradução e posfácio de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2007, p.12-16.
3
PÉCORA, Alcir. "Cartas à Segunda Escolástica", in: Adauto Novaes. A outra margem do ocidente. São Paulo,
Companhia das Letras, 1999, pp. 370-415, p.383
4
Ibidem, p.383.
5
Ibidem, p.381.
6
Ibidem, p.381.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 4-20 | www.ars.historia.ufrj.br 5
efetivamente contribuísse com a coesão da ordem social dentro da Companhia de Jesus, com a
manutenção da comunhão sustentada na crença dos inacianos como um único ser.
A fim de causar tal efeito, a estrutura formal das epístolas jesuíticas, além de atender
aos elementos há pouco dispostos, estava permeada por protocolos importantes para a sua
construção, que remontavam principalmente ao ano de 1135, quando se desenvolvera o estilo
de escrita que inspiraria posteriormente os inacianos, a denominada ars dictaminis, tradição
epistolar oriunda da Idade Média, a qual determinava os elementos que deveriam estar presentes
na redação de cartas. Tais itens constituíam-se em cinco partes principais7 que definiriam o
como escrever dos jesuítas, a saber: A salutatio, momento em que o religioso manifesta um
sentimento amistoso em relação ao destinatário; a benevolentiae capitatio, dedicado à busca de
certa ordenação nas palavras, a fim de causar uma boa disposição na mente do receptor em
relação às matérias apresentadas; a narratio, parte da missiva dedicada a informar as matérias
de discussão propriamente ditas; a petitio, seção que consistia na petição de algo em relação ao
narrado; a conclusio, momento em que se reforçavam as ideias expressas na missiva8.
A construção do Outro em Nóbrega
Ao escrever o jesuíta fazia algo que estava muito além da mera descrição dos
acontecimentos vivenciados, sua narrativa deveria seguir os procedimentos retórico-teológico-
políticos"9 próprios a Companhia de Jesus assegurando que a enunciação fosse pautada no
conhecimento compartilhado entre remetente e destinatário e fomentasse o bem comum da
Companhia de Jesus. Assim, Nóbrega conferia sentido ao outro a partir do campo simbólico
próprio à Companhia de Jesus que estava presente em sua escrita tal como em sua mentalidade.
Tal elemento pode ser percebido desde as primeiras cartas escritas pelo inaciano, relatando seus
contatos iniciais com os indígenas:

Desta maneira irei ensinando as orações e doutrinando-os na fé até serem hábeis para
o batismo. Todos estes que tratam conosco, dizem que querem ser como nós, senão
que não tem com que se cubram como nós, e isto som inconveniente tem. Se ouvem
tanger à missa, já acodem, e quanto nos vem fazer, tudo fazem: se sentam de joelhos,
batem nos peitos, levantam as mãos ao céu; e já um dos principais deles aprende a ler
e toma lição cada dia com grande cuidado, e em dois dias soube o A B C todo, e o
ensinamos a benzer, tomando tudo com grandes desejos. Diz que quer ser cristão e
não comer carne humana, nem ter mais de uma mulher e outras coisas; somente que
há de ir a guerra e os cativar, vendê-los e servir-se deles, porque estes desta terra

7
Ibidem, p.374-376.
8
Ibidem, p.375-376.
9
HANSEN, João Adolfo. O nu e a luz: cartas jesuíticas do Brasil: Nóbrega (1549- 1558). Revista do Instituto de
Estudos Brasileiros. São Paulo, n. 38, 1995, p.91.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 4-20 | www.ars.historia.ufrj.br 6
sempre tem guerra com outros e assim andam todos em discórdia. Comem-se uns a
outros, digo contrários.
É gente que nenhum conhecimento tem de Deus, nem ídolos, fazem tudo quanto lhe
dizem. Trabalhamos para saber a língua deles e nisto o P.ᵉ Navarro nos leva vantagem
a todos. Temos determinado viver com as Aldeias como estivermos assentados e
seguros, e aprender com eles a língua, e ir doutrinando-os pouco a pouco. Trabalhei
por tirar em sua língua as orações e algumas praticas de N. Senhor, e não posso achar
língua que me saiba dizer, porque são eles tão brutos que nem vocábulos têm.10

Acima, Nóbrega relatou ao seu superior Simão Rodrigues, suas primeiras impressões a
respeito dos indígenas, e o faz a partir de elementos próprios à mentalidade cristã europeia,
elementos que fundamentavam seu modo de ver o mundo e norteavam sua escrita, causando
uma compreensão no inaciano dos traços da cultura nativa a partir do arcabouço cultural próprio
à Cristandade europeia. Assim o Outro que o padre encontra no nativo foi identificado por
Nóbrega em paridade com o pagão de Tomás de Aquino, alheio à fé cristã, o qual deveria ser
persuadido pela pregação da palavra, em oposição ao herege, que, segundo a teoria tomista, por
sua obstinação em negar a palavra de Deus, deveria ser combatido.
A ausência de entendimento a respeito de Deus e mesmo de qualquer ídolo apenas
apontava para um estado de ignorância. Para Nóbrega, os nativos apenas não criam por não
conhecerem, tese confirmada pela boa disposição destes em relação ao catolicismo e que
legitimava a estratégia inaciana de converter o nativo a partir da difusão da doutrina católica.
Ao descrever as reações que os nativos tinham ao lidarem com elementos próprios ao
catolicismo: sua prontidão ao ouvir tanger o sino, seu interesse na aprendizagem dos ritos
devocionais relacionados à oração e submissão a Deus, seu esforço no aprendizado dos
ensinamentos dos padres, Nóbrega pretende demonstrar que se trata de algo que está muito
além de mera curiosidade. Esta inclinação para as coisas concernentes à fé católica na
interpretação do inaciano claramente evidenciava do estado de ignorância dos nativos, que os
tornava carentes daquilo que era divino, os jesuítas estavam a lidar, portanto, com o pagão de
Tomás de Aquino, o melhor cenário possível uma vez que o herege seria extremamente
obstinado para com a Fé cristã o que em muito dificultaria sua conversão.
Tal perspectiva também tinha seu sentido edificante para a missão, uma vez que se o
nativo era o pagão passível de conversão, a presença inaciana na América justificava-se como
que por um propósito divino. Além disto o progresso da missão animaria os irmãos que

10
NÓBREGA, Manuel da. “Carta da Baia, [10 de Abril de] 1549, ao P. Simão Rodrigues, Lisboa”. In: Serafim
Leite (Org.). Cartas do Brasil e mais escritos do padre Manuel da Nóbrega (Opera omnia), op. cit., pp. 17-25, p.
20-21.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 4-20 | www.ars.historia.ufrj.br 7
acompanhavam à distância os progressos dos missionários. Poderíamos mesmo afirmar que a
atribuição de sentido operada por Nóbrega em seus relatos a respeito dos indígenas está atrelada
a uma visão idealizada dos mesmos, pois, do mesmo modo que, para existir a missão, era
necessária a existência do missionário, a presença do missionário apenas teria sentido diante da
existência de quem o ouvisse. Logo, o indígena, como pagão era o sentido da aventura
ultramarina jesuítica para quem a acompanhava no Velho Mundo e para quem a vivenciava no
Novo Mundo e, por isso, Nóbrega esforça-se em assimilá-lo dessa forma. O ameríndio era o
Outro que definia a própria identidade inaciana no além-mar.
De modo que construir o indígena, construir o Outro do além-mar português era uma
importante tarefa para os inacianos. Ironicamente, o inaciano, que era o verdadeiro Outro do
mundo do nativo, precisava do nativo que era o Outro dentro do seu mundo, a fim de legitimar
a sua missão. Ao tratar dos nativos, portanto, o jesuíta tenta a todo modo inseri-los na história
da humanidade, como um pedaço distante dela, mas nunca separado ou rejeitado. Por isso
Nóbrega irá interpretar o mito indígena da inundação como uma referência ao dilúvio bíblico,
contudo deturpado pela transmissão oral:

Tem memória do dilúvio, mas falsamente, porque dizem que cobrindo-se a terra de
água, uma mulher e seu marido, subiram em um pinheiro, e depois de minguadas as
águas desceram: e destes procederam todos os homens e mulheres.11

Na perspectiva de Nóbrega, a memória dos indígenas era falha, pois as escrituras


sagradas não o seriam. O dilúvio indígena só poderia ser o dilúvio bíblico que acabou
corrompido em sua narrativa devido à transmissão oral sujeita a corruptelas, uma vez que, como
insistiam em lembrar os inacianos, os ameríndios mal tinham vocábulos. De modo semelhante,
Nóbrega encontraria nos relatos indígenas sobre o antigo mito de Zomé uma alusão a São Tomé
que, na interpretação de Nóbrega dos relatos locais, deveria ter passado pelas terras
desconhecidas da Cristandade, a fim de converter seus habitantes:

Dizem eles que Santo Tomé, a quem chamam de Zomé, passou por aqui. Isto lhes
ficou por tido de seus antepassados. E que as suas pisadas estão sinaladas junto de um
rio, as quais fui ver por mais certeza de verdade, e vi com os próprios olhos quatro
pisadas mui sinaladas com seus dedos, as quais algumas vezes cobre o rio, quando
enche. Dizem também que quando deixou estas pisadas, ia fugindo dos Índios, que o
queriam flechar, e chegando ali se lhe abrira o rio, e passara por meio dele, sem se

11
NÓBREGA, Manuel da. Informação das Terras do Brasil, Baía, [Agosto?] 1549 [Aos Padres e irmãos de
Coimbra]. In: LEITE, Serafim (Org.). Cartas do Brasil e mais escritos do padre Manuel da Nóbrega (Opera
omnia) , op. cit., pp. 57-67, p.65.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 4-20 | www.ars.historia.ufrj.br 8
molhar, à outra parte. E dali foi para a India. Assim mesmo contam quando o queriam
flechar os índios, as flechas se tornavam para eles e os matos lhe faziam caminho por
onde passasse. Outros contam isso como por escárnio. Dizem que prometeu que havia
de tornar outra vez a vê-los. Ele os veja do céu, e seja intercessor por eles a Deus, para
que venham a seu conhecimento, e recebam a santa fé, como esperamos.12

É de se supor que os nativos não tenham feito de fato uma menção a São Tomé, cuja
trajetória sequer conheciam, mas Nóbrega interpretara aquele relato a partir da tradição cristã
identificando elos entre os indígenas e o Cristianismo em um passado remoto. A associação que
faz o jesuíta não é de se admirar, ao levar em conta a aparente semelhança dos nomes, a
popularidade desfrutada por São Tomé na baixa Idade Média tal como o desconhecimento
geográfico do inaciano, a ponto de não lhe parecer impossível pensar que o apóstolo houvesse
alcançado aquelas terras a partir da Ásia.13
Os mitos são essencialmente linguagens, segundo Barthes, constituídas por dois
sistemas de significação: o primeiro, a partir da construção do próprio signo, do relato em sua
forma e seu conteúdo; o segundo, na ideologia que tal mito deseja exprimir, em seu sentido
conotado.14 O significado do mito está para além do seu relato, no contexto social que o
produziu, no bojo de sentimentos que são evocados na memória do povo a partir de sua
construção ao recitá-lo ou interpretá-lo. Porém, os inacianos, ao se depararem com as mitologias
indígenas, ignoravam os significados que tais relatos possuíam para os nativos como
estruturantes da origem de sua sociedade e lhes impunham um significado que estivesse em
consonância com as crenças da Cristandade europeia.
Assim, no que tange o Mito de Zomé, a sua relevância para os nativos estava na memória
de um personagem que fora em certo momento importante e, por isso, tornara-se memorável,
mas, para Nóbrega, Zomé apenas poderia ser uma deficitária pronúncia de Tomé, devido à
carência vocabular do indígena. Este andarilho dera aos nativos os mantimentos que lhes
serviam de alimento até aqueles dias na forma do que Nóbrega descreve como sementes de
ervas. Ele apenas poderia ser o discípulo de Jesus em busca de dar aos indígenas o alimento
terreno tal como o divino. Ao identificar a passagem de São Tomé por este pedaço
aparentemente esquecido da Orbe Terrena, via com seus próprios olhos as supostas pegadas do

12
NÓBREGA, Manuel da. Informação das Terras do Brasil, Baía, [Agosto?] 1549 [Aos Padres e irmãos de
Coimbra]. In: LEITE, Serafim (Org.). Cartas do Brasil e mais escritos do padre Manuel da Nóbrega (Opera
omnia), op. cit., pp. 57-67, p.66-67.
13
EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais, aventuras
teóricas. Belo Horizonte: UFMG, 2000, p.74-75.
14
BARTHES, Roland. Mitologias. Tradução de Rita Buongermino, Pedro de Souza, Rejane Janowitzer. Rio de
Janeiro: DIFEL, 2009, p.205-206.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 4-20 | www.ars.historia.ufrj.br 9
apóstolo junto ao rio que, segundo conta ainda o mito, o apóstolo teria atravessado sem molhar
os pés, como Cristo fizera, Nóbrega identificava assim com seus próprios olhos os sinais
deixados por Deus.
Todorov observara semelhante esforço para interpretar o “Novo” em Colombo que, por
sua vez, diante da geografia do Novo Mundo, tornou-se obcecado pela ideia de ser aquele o fim
do Oriente, seu ponto mais extremo, no qual se poderia encontrar o paraíso. Assim, para
Todorov, a crença de Colombo seria de tal modo intensa, a ponto de pouco lhe importarem de
fato os relatos dos nativos, uma vez que o desbravador já sabia o que iria encontrar e
interpretava o que os habitantes lhe diziam de modo a corroborar tal ciência.15
A observação do indígena deu-se de forma semelhante, visto que Nóbrega observa o
nativo como quem observa uma paisagem, pouco importam as nuances da cultura nativa, mas
tão somente as possibilidades de localizar no indígena aquilo que o enquadrava no mapa da
Cristandade europeia, ainda que tão afastado da mesma. Aquilo que o torna parte do todo
constituído pelo mundo cristão. O esforço inaciano foi, portanto, um esforço de aproximação,
de enquadramento do indígena em seus paradigmas. Porém, tal aproximação acabava por se
operar a partir de um distanciamento uma vez que, como pontuou François Hartog, descrever o
outro é diferenciá-lo, colocá-lo em outra classe, em outra categoria. Logo, tal como no exemplo
de Hartog, no qual existem A e B, ambas letras, mas A é diferente de B, para o jesuíta existia o
cristão e o nativo, ambos humanos, porém, não iguais, não idênticos.16
Na escrita a respeito deste Outro, isto é, a respeito do indígena, Nóbrega buscava dar-
lhe sentido, sentido que revelava a Alteridade surgida deste encontro no Novo Mundo. Mesmo
ao tentar aproximar o Outro de si, Nóbrega o afastava ao partir do pressuposto de que este não
era igual, poderia ser semelhante, mas não igual, poderia ser humano, mas não um humano
pleno; mesmo ao se converter o indígena não seria para Nóbrega um cristão pleno, mas sempre
defasado, carente de algo que talvez só a constância na vida cristã poderia preencher. Nóbrega
aproxima o nativo como homem, mas o afasta ao demonstrá-lo como débil de percepção no
concernente ao sobrenatural.

Sujeito e experiência na Missão inaciana

15
TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: A questão do outro. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São
Paulo: Martins Fontes, 2003, p.21-22.
16
HARTOG, François. El espejo de Heródoto: ensayo sobre la representación del otro. México: Fondo de Cultura
Econômica, 2003, p.207-217.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 4-20 | www.ars.historia.ufrj.br 10
Os rígidos protocolos de escrita inaciano, tal como os conceitos que norteavam a vida
dos padres, eram interiorizados por cada religioso a sua maneira em diálogo com uma série de
outros elementos que constituíram sua formação como sujeito. No caso de Nóbrega, o
missionário havia passado pela Universidade de Salamanca,17 de suma importância no contexto
da retomada do Tomismo e da teoria do direito natural. O dominicano Francisco Vitória,
segundo Skinner, provavelmente a principal figura nesse processo, ocupou a primeira cátedra
de teologia nessa instituição até sua morte em 1542,18 coroando sua formação jurídica. Nóbrega
concluiu seus estudos na Universidade de Coimbra em Direito Canônico, no ano de 154119. A
formação do inaciano estava assim intrinsecamente relacionada a aspectos referentes às
questões de Direito, quer se tratasse da Lei natural ou do Direito positivo, inclusive tentara,
com o apoio de Martin Azpilcueta Navarro, maior teólogo português do período, conseguir o
cargo de professor na mesma instituição, não auferindo, contudo, êxito em tal empresa.20
Porém, sua aptidão para com aspectos referentes ao Direito canônico não era posta em dúvida,
de modo que Juan Polanco, secretário da Companhia de Jesus, ao assinalar a entrada do
Nóbrega na Ordem, destacou sua notabilidade em tal campo no qual se graduara.21
A formação essencialmente jurídica de Nóbrega manifestou-se inúmeras vezes nas
argumentações que construiu em suas epístolas. Para citar Pécora, Nóbrega justifica a via
amorosa, à qual recorreu em seus primeiros anos de experiência na Colônia: partia do
pressuposto de que os indígenas poderiam ser convertidos por meio da aproximação desarmada
dos inacianos em relação a estes. Assim podiam ser as pregações, o ensino e outras tentativas
de interação, como o aprendizado das línguas nativas por parte dos religiosos.22 Nóbrega
defende que tal método estava em consonância com as tópicas a respeito dos títulos legítimos
de escravização discutidos por Vitória e outros pensadores católicos do período. 23 Títulos

17
LEITE, Serafim. “Introdução Geral”. In: _______ (Org.). Cartas do Brasil e mais escritos (Opera ominia), op.
cit., pp. 9-12, p. 12-13.
18
SKINNER, Quentin. O ressurgimento do Tomismo In: As fundações do pensamento político moderno. Tradução
de Renato Janine Ribeiro e Laura Teixeira Moita. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 414-449, p. 14-16.
19
A inclinação de Nóbrega pelo campo jurídico foi de um certo modo influenciada mesmo por aspectos familiares,
Nóbrega era filho do desembargador Baltasar de Nóbrega, que já havia sido juiz de fora do porto e ainda sobrinho
do chanceler do Reino. Ver: LEITE, Serafim. Introdução Geral. In: _______. (Org.). Cartas do Brasil e mais
Escritos (Opera ominia), op. cit., pp. 9-12, p.13.
20
EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais, aventuras
teórica, op. cit., p.65.
21
LEITE, Serafim. “Introdução Geral”. In: _______. (Org.). Cartas do Brasil e mais Escritos (Opera ominia), op.
cit., pp. 9-12, p. 12-13.
22
PÉCORA, Alcir. Cartas à Segunda Escolástica, In: NOVAES, Adauto. A outra margem do ocidente, op. cit.,
p.395.
23
Ibidem, 396-399.
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fundamentados na Lei Natural, oriunda do pensamento Tomista, definida como: “la causa
eficiente em la que se sustentaba la relación del hombre con El mundo que o rodeaba y
gobernaba todos los actos de la sociedad humana”.24 A lei natural era, neste sentido, o que
diferenciava os seres humanos, o que os distinguia dos animais, um ser que não tendesse a
guardá-la, dificilmente poderia ser considerado humano. Era assim a base de todas as leis, desde
as relacionadas aos hábitos cotidianos dos indivíduos como aquelas que tangem à condenação
de crimes dos mais diversos.25 Para Nóbrega, os indígenas que pretendia converter
demonstravam praticar esta lei essencial:

E em muitas coisas guardam a lei natural. Nenhuma coisa própria têm que não seja
comum, e o que um tem há de repartir com os outros, principalmente se são coisas de
comer, das quais nenhuma coisa guardam para o outro dia, nem curam de entesourar
riquezas. As suas filhas nenhuma coisa dão em casamento, antes os genros ficam
obrigados a servir a seus sogros. Qualquer cristão que entre em suas casas, dão-lhe a
comer o que têm, e uma rede lavada em que durma. São castas as mulheres a seus
maridos.26

Nóbrega sustentava sua tese nos laços de solidariedade intensos observados entre os
nativos que não possuíam nada que não fosse “comum”, assim tudo era coletivo, os nativos
viviam como um só corpo, o corporativismo tão relevante dentro do Catolicismo parecia diante
de Nóbrega nos hábitos dos pagãos do novo mundo. Reforçava ainda Nóbrega que os nativos
estavam livres da ganância, da usura, não guardavam nada para o outro dia, nem riquezas
entesouravam.
Ao observar como se comportava a sociedade indígena, destacava o comprometimento
dos genros com os sogros nos enlaces matrimoniais, demonstrando que tal instituição era
relevante para os nativos, confirmando o louvar a castidade das mulheres em relação aos seus
maridos. Mesmo no trato com os estrangeiros, os nativos não mediam esforços, dando a todos
o que comer e uma “rede lavada”. Tal organização social, baseada na solidariedade, no
corporativismo, na valorização dos laços matrimoniais e na boa recepção dos estrangeiros era
sem dúvida fundada na lei natural e, portanto, constituída por seres humanos, o que legitimava
a continuidade dos trabalhos dos jesuítas em prol da conversão destes homens.

24
PAGDEN, Anthony. La caída del hombre natural. El indio americano y los orígenes de la etnología comparativa.
Madri: Alianza Editorial, 1988, p.94.
25
Ibidem, p.94-95.
26
NÓBREGA, Manuel da. Informação das Terras do Brasil, Baía, [Agosto?] 1549 [Aos Padres e irmãos de
Coimbra] In: LEITE, Serafim (Org.). Cartas do Brasil e mais escritos do padre Manuel da Nóbrega (Opera
omnia), op. cit., pp.57-67, p.65.
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A influência jurídica no discurso de Nóbrega manifestou-se mesmo em suas críticas aos
colonos como em carta datada de 1550 ao Padre Simão Rodrigues:

Nesta terra todos os homens ou a maior parte têm a consciência sobrecarregada por
causa dos escravos que possuem contra a razão, além de que muitos que eram
resgatados aos pais, não se libertam, e permanecem escravos pelos enganos que usam
os que prometem libertá-los; e por isso poucos se encontram capazes de ser
absolvidos, não querendo abster-se do pecado, nem de os pais os venderem, embora
eu muito os repreenda nisto, dizendo que o pai não pode vender o filho salvo em
extrema necessidade, como permitem as leis imperais 27.

Acima, Nóbrega queixara-se das atitudes dos colonos, como fazia com tenaz frequência.
O inaciano acusava os portugueses de estarem de “consciência sobrecarrega” por agirem contra
a razão. Diferente dos nativos, os cristãos conheciam as Escrituras e as leis, e não agir conforme
seus pressupostos não era uma questão de ignorância, mas sim de pecado, e foi nesses termos
que Nóbrega definiu a ação dos indivíduos que escravizavam os nativos. Agiam contra a razão,
transgrediam a lei e pecavam contra Deus. A base da lei natural era a razão humana, aquilo que
diferencia o homem dos demais animais, era a partir da racionalidade que os homens
naturalmente conformavam-se às regras que lhes garantissem viver coletivamente, a partir de
então todas as demais leis tinham lugar. Ao transgredir as leis imperiais, escravizando inclusive
filhos, sem necessidade extrema, os colonos também pecavam contra a lei natural, contra a
razão.
É interessante observar como Nóbrega, ao tratar do indígena, fez uso da lei natural,
porém em relação aos colonos evocava leis mais complexas. Com efeito, o inaciano
compreendia que os indígenas tão somente guardavam a lei natural, estavam ainda in natura e,
como pagãos, precisavam se converter para – a partir de então – desenvolverem-se como
“humanidade plena”, o inaciano demonstrou tal percepção ao pedir que não se obrigasse ainda
os nativos a obedeceram às leis positivas da igreja até que estes aprendessem o suficiente com
os padres a respeito dos hábitos cristãos, como o jejum e a confissão. Assim Nóbrega, uma vez
mais, dava conta do caráter pagão dos nativos, que, para chegarem à conversão plena e saírem
da ignorância, precisariam ser tutelados pelos sacerdotes.28

27
NÓBREGA, Manuel da. Carta de Porto Seguro, 6 de Janeiro de 1550, ao P. Simão Rodrigues, Lisboa. In: LEITE,
Serafim (Org.). Cartas do Brasil e mais escritos do padre Manuel da Nóbrega (Opera omnia), op. cit., pp. 67-84
p.80-81.
28
NÓBREGA, Manuel da. Carta da Bahia, [9deAgosto] 1549, ao P. Simão Rodrigues, Lisboa. LEITE, Serafim
(Org.). Cartas do Brasil e mais escritos do padre Manuel da Nóbrega (Opera omnia). Introdução do padre Serafim
Leite. Coimbra, 1955, pp.28-43, p.29-30.
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Tal episódio demonstra como os vastos conhecimentos jurídicos de Nóbrega iam além
do Direito canônico e abrangiam as leis seculares, uma vez que, como mencionado, estas
também seriam oriundas da base de todas as leis verdadeiramente justas, a Lei Natural.
Nóbrega, como jesuíta, fazia uso dos protocolos de escrita próprios da Companhia de Jesus
visando à edificação, à informação e à comunhão dos irmãos de Ordem e, como um indivíduo
de formação jurídica religiosa, usava os seus conhecimentos a fim de atender a tais protocolos.
Denunciar a escravidão ilegítima com base nas leis dos homens e de Deus era a partir de um
recurso que Nóbrega conhecia bem: coibir um elemento que poderia atrapalhar a conversão dos
nativos e confirmar que os ameríndios poderiam sim ser convertidos, porém os abusos sofridos
atrapalhavam e, portanto, deveriam ser combatidos. O leitor seria informado sobre o ocorrido,
edificado pelos relatos dos combates travados por seus irmãos no além-mar em prol do
evangelho e se sentiria participante de tal empresa que, a fim de levar a palavra de Deus.
Logo, a experiência de Nóbrega, a sua formação e os pensadores que o influenciaram,
em um certo sentido, o orientaram em sua missão, fora a sua experiência anterior à Colônia,
como sacerdote e como exímio conhecedor do Direito canônico, que lhe permitiu trabalhar em
prol da conversão dos nativos, com base nas experiências que foi desenvolvendo em seu trato
com os mesmos. Mas o que era a experiência para Nóbrega? Quais sentidos Nóbrega
considerava ao experimentar sua vida na Colônia, a partir das experiências que trazia consigo
da Europa? E como as experiências que Nóbrega vivenciou no Novo Mundo afetaram a missão?
Segundo Marina Massimi, o conceito de experiência adquire sentidos específicos para os
jesuítas relacionados à própria filosofia cristã e aristotélica:

Parece, portanto, que os pensadores da Companhia utilizam o termo nos sentidos


aristotélicos de empeiria - a saber, experiência no sentido de habilidade e prática –,
de peira – ou seja, prova e experimento - e de aisthesis – a saber, sensação, sentimento
e intuição.
Existe também, como acenamos, a influência da visão de experiência de Agostinho,
tida como conhecimento da realidade sensorial e também como conhecimento das
realidades transcendentes.29

A experiência para o jesuíta tinha a ver com a experimentação, a aquisição de


conhecimento, a percepção sensorial e a percepção transcendental, aquela que é sensível a Deus,
ao que transcende ao humano. Esta concepção é perceptível mesmo nos exercícios espirituais
de Loyola, uma vez que este se valia da concepção aristotélica-tomista, de modo a acreditar que

29
MASSIMI, Marina. A “experiência” em cartas dos jesuítas missionários no Brasil nas primeiras décadas do
século XVI. In: Revista Antiguos Jesuitas en Iberoamérica. v.1,n.1, pp.92-111, p.96-97.
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a apreensão última de todas as coisas dava-se por meio dos canais sensoriais, por meio dos
sentidos, inclusive, no que tange ao conhecimento da vontade de Deus.30 Durante a análise das
cartas de Nóbrega, foi possível notar tais sentidos de experiência, sobretudo, no que se refere
ao conhecimento que trazia consigo o jesuíta com base em sua vivencia e na experimentação
do Novo Mundo. Deste modo, por exemplo, no episódio outrora mencionado das pegadas de
São Tomé, o inaciano faz questão de vê-las, almejou experimentar, ver com seus olhos e
apreender com seus sentidos para não ser ludibriado.31
Em sua missão, portanto, o inaciano experimentou o novo que se pôs diante de seus
olhos e o interpretou a partir das suas experiências anteriores, das suas habilidades adquiridas,
do conhecimento que possuía. Foi desse modo que Nóbrega construiu o ameríndio para si
mesmo e para os seus companheiros de Ordem, por meio das epístolas. Nóbrega tinha, nesse
sentido, a sua experiência, a partir das vivências trazidas consigo da Europa e dos protocolos
aos quais deveria se submeter como jesuíta, tanto no que tange à missão, quanto em relação à
escrita a respeito da missão. Porém, realizava também o jesuíta, a experimentação do novo
mundo que seria absorvida em consonância com os conhecimentos anteriores a sua experiência
colonial.
Com fins de demonstração, observa-se a questão da pouca constância do nativo em
permanecer na fé católica, que se pôs como obstáculo à missão e, mais do que isso, poderia
gerar dúvidas sobre a possibilidade de realizá-la. A experimentação que Nóbrega fez assim da
realidade do indígena poderia colocar a missão em um dilema. Porém, seria na sua experiência
anterior à Colônia que o jesuíta acharia explicação para este fenômeno, sem perder o fulcro do
enquadramento do indígena à categoria de pagão, a obstinação para com a catequese, e o
propósito de edificação do leitor que permeava seus escritos, como indicado no seguinte trecho
de carta escrita da capitania de São Vicente em 1553, para Simão Rodrigues:

E vale pouco ir-lhes pregar e voltar para casa, porque, ainda que deem algum crédito,
não é tanto que baste a os desarraigar dos seus velhos costumes; e creem em nós como
creem aos seus feiticeiros, e que às vezes lhes mentem e às vezes acertam em dizer a
verdade. E por isso, não sendo para viver entre eles, não se pode fazer fundamento de
muito fruto.32

30
Ibidem.
31
NÓBREGA, Manuel da. Informação das Terras do Brasil, Baía, [Agosto?] 1549 [Aos Padres e irmãos de
Coimbra]. In: LEITE, Serafim (Org.). Cartas do Brasil e mais escritos do padre Manuel da Nóbrega (Opera
omnia), op. cit., pp. 57-67, p.66-67.
32
NÓBREGA, Manuel da. Carta de São Vicente, 10 de Março de 1553, Ao P. Simão Rodrigues. In: LEITE,
Serafim (Org.). Cartas do Brasil e mais escritos do padre Manuel da Nóbrega (Opera omnia), op. cit., pp.153-
163, p. 157.
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Segundo o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, a dificuldade dos nativos em
permanecer na fé católica dava-se devido aos seus elementos culturais próprios, que, de fato,
nunca estiveram tão próximos do Cristianismo como imaginavam os padres. Os indígenas
reproduziam a sua cultura essencialmente baseada na imersão no outro, tal elemento
constituinte da identidade nativa, facilitou a aproximação dos jesuítas com os mesmos, uma vez
que os ameríndios assimilavam os clérigos dentro de seu próprio arcabouço cultural,
identificando os mesmos como homólogos aos caraíbas, xamãs, detentores de grande prestígio
local.33 Em vez de considerar que, tal como os padres faziam em relação ao Novo Mundo, os
nativos enquadravam este Outro (os padres) em sua própria visão, Nóbrega acreditava que o
problema estava associado aos maus hábitos que os indígenas por tanto tempo praticaram e que
estavam arraigados dentro dos mesmos. Por esse motivo, os ameríndios confundiam os padres
com seus xamãs.
Assim o indígena, como pagão, era ignorante em relação a Deus, de modo que os xamãs
não raro os ludibriavam – na concepção jesuítica – com falsas promessas, e tão somente uma
ação mais efetiva por parte dos padres resolveria este problema. O indígena não era obstinado
como o herege, ele tão somente era maleável demais a ponto de ser volátil, isto por sua natureza
pagã favorecer a conversão, mas também o retorno aos velhos hábitos. Por isso, para que
efetivamente se operasse a inserção dos ameríndios no seio da fé católica, os inacianos
precisariam estar constantemente com os primeiros até que estes amadurecessem na Fé. De
modo que o inaciano construiu tal perspectiva a respeito desta faca de dois gumes que era a
aparente maleabilidade do indígena ao longo de sua experiência de alteridade com os mesmos.
Dois anos antes, quando estava em Pernambuco, Nóbrega já justificava uma ação mais
ostensiva inaciana, como estratégia para converter os nativos, de acordo com a carta que
escreveu ao rei de Portugal D. João III:

Este gentio está muito aparelhado a se nele frutificar por estar já mais doméstico e ter
a terra capitão que não consentiu fazerem-lhe agravo como nas outras partes. O
converter todo este gentil é muito fácil coisa, mas o sustentá-lo em bons costumes não
pode ser senão com muitos obreiros, porque em cousa nenhuma creem, e estão papel
branco para neles escrever a vontade, se com exemplo e continua conversão os
sustentarem.34

33
CASTRO, Eduardo Viveiros de. A Inconstância da Alma Selvagem. In:_______(Org.). A Inconstância da Alma
selvagem e outros ensaios de Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, pp.183-264, p.201.
34
NÓBREGA, Manuel da. Carta de Olinda (Pernambuco), 14 de Setembro de 1551, Ao D. João III, Rei de
Portugal. In: LEITE, Serafim (Org.). Cartas do Brasil e mais escritos do padre Manuel da Nóbrega (Opera omnia),
op. cit., pp.97-103, p.100.
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Se o nativo era como papel em branco, bastava escrever, porém, esta escrita deveria ser
intensa e profunda, escrever superficialmente no indígena seria fácil, porém, rapidamente os
antigos costumes a que estavam habituados apagariam o que se houvera escrito. Após tanto
tempo de ignorância, apenas uma escritura firme surtiria um resultado permanente na alma do
gentio, já que esta era fácil de ser escrita tanto pelo jesuíta, quanto pelos xamãs ou por quaisquer
outros a serviço do demônio.
Na maioria de suas cartas Nóbrega elencou como principais empecilhos à conversão dos
nativos os maus hábitos dos colonos. Nesta carta ao rei de Portugal, porém, o jesuíta não teve
muito do que se queixar, em sua perspectiva, o capitão Duarte Coelho 35 e a sua esposa eram
virtuosos e não consentiam com a exploração dos nativos, isto facilitava a catequese, mas não
bastava. Nóbrega fazia questão de deixar claro que além da colaboração dos colonos era
necessária uma quantidade considerável de clérigos para que atuassem junto aos nativos:

Esta gentilidade não tem a qualidade dos gentios da primitiva Igreja, os quais ou
maltratavam ou matavam logo a quem lhes pregava contra os seus ídolos, ou criam
no evangelho, de maneira que se aparelhavam a morrer por Cristo; mas esta
gentilidade, como não tem ídolos por quem morram, tudo quanto lhes dizem creem;
somente, a dificuldade está em tirar-lhe todos os seus maus costumes, mudando-os
noutros bons segundo Cristo, o que pede continuidade entre eles e que vejam os bons
exemplos e que vivamos com eles e lhes criemos os filhos de pequenos em doutrina e
bons costume.36

Retornando à carta anterior, escrita de São Vicente, é possível inferir que a inconstância
do nativo possivelmente tenha causado muita frustração nos inacianos. Os nativos, ao
aceitarem, aparentemente, de bom grado a fé cristã, levavam os missionários a se convencerem
quanto ao sucesso da missão, mas, ao voltarem aos velhos hábitos, deixavam um problema a
ser resolvido, e Nóbrega o resolvia de uma maneira simples: a ausência de religiosidade era a
principal causa da inconstância. Por não terem ídolos, nem religião por quem morressem ao se
converterem não se dispunham a ser fiéis à fé católica até a morte, pois não conheciam tal
fidelidade à divindade. A relação deles com o xamanismo estava longe do padrão entendido
pelos inacianos como uma fé, com sacerdotes, templos, cerimônias, mandamentos e deuses.
Logo, sua experiência como religioso dava suporte a sua experiência cotidiana na Colônia ao

35
Ibidem. p.100.
36
NÓBREGA, Manuel da. Carta de São Vicente, 10 de Março de 1553, Ao P. Simão Rodrigues. In: LEITE, Serafim
(Org.). Cartas do Brasil e mais escritos do padre Manuel da Nóbrega (Opera omnia), op. cit., pp.153-163, p. 157.
36
CASTRO, Eduardo Viveiros de. A Inconstância da Alma Selvagem. In:_______(Org.). A Inconstância da Alma
selvagem e outros ensaios de Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, pp.183-264, p.201.
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permitir que interpretasse a atitude dos nativos como própria do pagão outrora por nós
mencionado e que pertencia a teoria tomista.

Conclusão
A construção do outro que Nóbrega encontrou no Novo Mundo deu-se a partir dos
pressupostos teológicos, jurídicos e filosóficos próprios à religiosidade cristã latina e mais
precisamente à Companhia de Jesus, sobretudo no que tange à teoria tomista. Não que o Novo
Mundo não tenha participado deste processo, ele impactou profundamente o padre fazendo
inclusive que suas leituras a respeito da realidade em que se encontrava mudassem ao longo do
tempo, mas sem nunca perder de vista as perspectivas próprias à Cristandade europeia,
reinterpretas, porém, jamais abandonadas. O indígena era para o inaciano sempre aquele que
deveria ser enquadrado a qualquer custo à Cristandade, ignorando-se as nuances de sua cultura,
que para os jesuítas sequer existia.
A visão do nativo como folha em branco era aquela que prevalecia na perspectiva do
inaciano, o nativo era sempre aquele que deveria ser objeto de uma ação, uma folha a ser escrita,
uma lacuna a ser preenchida. Nóbrega não via no indígena um sujeito pleno, mas um homem
incompleto, deficiente e que dependência da ação dos religiosos para poder encontrar a salvação
para sua miséria. A própria utilização da cultura nativa como modo de alcançar os nativos
jamais partiria de um reconhecimento devido a mesma, antes de um esforço estratégico
valando-se dos elementos próprios a cultura nativa como modo de incutir nos indígenas a fé
católica.
Assim, o que o jesuíta operava em relação ao nativo do novo mundo era o que poderia
se chamar de uma verdadeira reestruturação de sentidos. Os inacianos apropriavam-se dos
signos que permeavam a cultura nativa apenas para lhes conferir sentidos outros, sentidos
próprios à cristandade europeia, uma vez que, para o jesuíta, a cultura nativa carecia de sentido,
era caracterizada apenas por uma confusão causada pela debilidade dos habitantes do novo
mundo em sua perspectiva da realidade.
O jesuíta neste sentido via-se incumbido da missão de conceder sentido à vivência dos
nativos, de iluminar seus caminhos até a verdade, de imprimir-lhes os sentidos que lhes
permitiriam sair da ignorância de uma vida pagã e alheia à divindade até uma plena
experimentação da realidade que só poderia ser vivenciada, para os padres, a partir da fé
católica. O sacerdote colocava-se, assim, na função de um tutor, de um guardião do nativo, uma
figura paternal que deveria guiá-lo ao pleno conhecimento da Santa Fé. O nativo, nesta acepção,
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deixa de ser sujeito não apenas no sentido antropológico do termo mas até no semântico.
Constitui-se, outrossim, em um objeto da ação inaciana, jamais um interlocutor, mas um objeto
sobre o qual os jesuítas operariam sua ação, uma folha em branco sobre a qual os devotados
sacerdotes poderiam escrever a narrativa da salvação.

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Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 4-20 | www.ars.historia.ufrj.br 20
Artigo

OS JESUÍTAS E A FORMAÇÃO DO
APOSTOLADO LAICO NA ÍNDIA E NO JAPÃO
NO SÉCULO XVI
JORGE HENRIQUE CARDOSO LEÃO

Resumo: Em termos de dispersão do catolicismo nos espaços coloniais, a segunda metade do


século XVI assinala a chegada da Companhia de Jesus ao continente asiático, inaugurando
missões em áreas centrais do império asiático português, como a Índia, e em áreas periféricas,
como o Japão. Os padres logo perceberam que as diferenças linguísticas, a falta de
missionários e as disparidades culturais e religiosas seriam os principais obstáculos a serem
enfrentados, e por isso, foram introduzindo os autóctones como mediadores nesse processo de
adaptação e evangelização. Como um estudo conceitual e comparativo, o presente artigo tem
por objetivo analisar a construção histórica do apostolado laico nativo a serviço da
Companhia de Jesus na Índia e no Japão, com a finalidade de estabelecer diferenças e
semelhanças na atuação desses indivíduos ao longo das missões nesses espaços no século
XVI.

Palavras Chave: Jesuítas no Japão; Jesuítas na Índia; Catequistas Japoneses; Apostolado


Laico.

Abstract: The Catholicism spread in colonial territories in the 16th century and marked the
arrival of Society of Jesus in Asia, starting the missions in India and Japan. The Jesuits noted
that different languages, cultural and religious differences would be obstacles to overcome.
The priests introduced the natives as cultural mediators of this accommodation and
conversion process. As comparative study, this article aims to analyze the historical
construction of the lay apostolate the service of Society of Jesus in India and Japan, to
establish similarities and differences in the work of priests in Asia.

Keywords: Jesuits in Japan; Jesuits in India; Catechists Japanese; Lay Apostolate.

Talvez nada tenha sido mais dificultoso para o estabelecimento dos europeus e dos
missionários nos espaços coloniais do que as distâncias e as diferenças culturais em relação às

Artigo recebido em 3 de fevereiro de 2016 e aprovado para publicação em 21 de março de 2016.


Doutorando em História Social pelo PPGH UFF, mestre em História Social pelo PPGHS UERJ/FFP, professor
de História da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (SME-RIO) e pesquisador do Grupo de Estudos sobre
História do Japão (GEHJA CEIA/UFF) e do Núcleo de Estudos Japoneses (NEJAP UFSC). E-mail:
jorgeleao@id.uff.br.
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populações locais.1 A fluidez da territorialidade do império português criou três tipos de
espacialidades: as zonas de influência, as zonas intermediárias e as zonas de rejeição.2 As
zonas de influência em geral abrangiam as cidades, áreas de ocupação tradicional e marcadas
pela fixação das estruturas administrativas, econômicas, sociais e culturais, que tendiam a se
comportar conforme as do reino. As zonas intermediárias eram aquelas em que havia uma
fortaleza, podendo haver uma pequena comunidade de colonos e mestiços no seu entorno. As
áreas de rejeição eram marcadas pela ausência da máquina administrativa e militar
portuguesa, frequentadas apenas por um grupo reduzido de comerciantes, e que não eram
estimulados pela coroa. A presença europeia e dos missionários nessas regiões tinha que ser
constantemente negociadas com as elites locais.3 A distância atribuída aos espaços coloniais,
como definiu Pierre Chaunu, foi “o temido e quase único obstáculo”4 a fixação dos
estrangeiros nas zonas mais afastadas, como o Extremo Oriente, por exemplo. Além das
adversidades climatológicas e outros contratempos que independiam da ação humana, as
viagens ultramarinas eram longas, podendo levar meses ou até pouco mais de um ano, como
era o curso de Lisboa a Nagasaki.5 Por mais que as autoridades portuguesas procurassem
monitorar os principais itinerários marítimos, a pirataria asiática representou outro grande
empecilho à dinâmica imperial lusa nos séculos XVI e XVII.
Quando os missionários se afastavam das áreas em que os lusitanos possuíam
influência militar ou comercial, a evangelização das populações dos gentios se tornava uma
atividade de alto risco. Em Goa, a instrumentalização da coroa portuguesa e da igreja católica
fez com que os jesuítas empreendessem suas missões sem grandes complicações. Porém, nas
regiões em que os jesuítas tiveram que empreender meios de conversão mais dinâmicos, como
no sul da Índia, no Sudeste Asiático, na China e no Japão, “o equilíbrio de forças, entre as
religiões em presença (animismo, islamismo e cristianismo), levava a um estado de guerra
quase constante”.6 Nas áreas periféricas, a heterogeneidade linguística, cultural e religiosa

1
RUSSELL-WOOD, Anthony John R. Os portugueses fora do império. in BETHENCOURT, Francisco e
CHAUDHURI, Kirti (dir). História da Expansão Portuguesa: a formação do império (1415-1570). Navarra:
Círculo de Leitores, 1998. v.1. p.256.
2
FLORES, Jorge Manuel. Zonas de Influência e de Rejeição. in MARQUES, Antônio Henrique R. De Oliveira
(dir) História dos Portugueses no Extremo Oriente: em torno de Macau. Fundação Oriente, 1998. v.1 t.1.
pp.136-137.
3
Idem. p.137.
4
CHAUNU, Pierre. Conquista e Exploração dos Novos Mundos (século XVI). São Paulo: EDUSP, 1984. p.199
5
BOXER, Charles Ralph. Fidalgos no Extremo Oriente 1550-1770. Macau: Fundação Oriente e Centro de
Estudos de Macau, 1968. pp.14-19.
6
MARTINS, Maria Odete Soares. A Missionação nas Molucas no Século XVI: contributo para o estudo da ação
dos jesuítas no Oriente. Lisboa: Centro de História do Além-Mar da Universidade Nova de Lisboa, 2002. p.131.
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potencializaram os obstáculos.7 Na Idade Moderna, o déficit de recursos e o baixo número de
missionários foi uma realidade para a missionação no mundo colonial. Perante as dificuldades
e o risco de morte, muitos religiosos preferiram o conforto institucional da Companhia de
Jesus na Europa, onde a possibilidade de ascensão dentro da congregação era maior. Como
sugeriu Charlotte de Castelnau-L’Estoile, havia padres que tinham talentos específicos para a
conversão, outros para o governo e para o ensino.8 Tanto na América quanto na Ásia, a
escassez de religiosos preparados fez com que a Companhia de Jesus delineasse “uma
tendência a querer confiar às tarefas apostólicas a coadjutores temporais”,9 recrutados entre os
filhos dos portugueses nascidos na terra, ou entre os naturais. Com a formação do apostolado
laico, muitos asiáticos assumiam funções variadas no contexto missionário.
A ideia de um modelo de evangelização assessorado pelos nativos no continente
asiático começou com Francisco Xavier SJ na Índia.10 Desde o início da expansão
ultramarina, no século XV, as autoridades e os mercadores portugueses se valiam de
intérpretes para empreenderem suas atividades.11 Seja por razões materiais ou espirituais, o
uso dos intérpretes – ou línguas – se tornou uma prática comum com o avanço da
colonização. A Ásia era um mosaico de povos, mas as autoridades lusas e os missionários
tentaram impor o português como língua franca.12 No entanto, o intercâmbio linguístico
acontecia na língua da terra ou através de um tipo de língua crioula, criada a partir da mistura
do português com outros idiomas e dialetos asiáticos, chamado pelos linguistas atuais de
pidgin, ou língua de contato.13
Na Índia, os mercadores, o clero secular e os franciscanos utilizavam indianos e
mestiços como topazes,14 ou seja, intérpretes. Com a chegada dos jesuítas, os topazes foram
incorporados às missões, sobretudo em Kerala e em Tâmil Nadul. Inicialmente os religiosos
não tiveram a intenção instruir esses indivíduos. Ao contrário dos catequistas indianos

7
BETHENCOURT, Francisco. O Contato entre Povos e Civilizações. in BETHENCOURT, Francisco e
CHAUDHURI, Kirti (dir). Op. Cit. 1998. v.1. p. 94.
8
CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte de. Operários de uma Vinha Estéril: os jesuítas e a conversão dos
índios no Brasil 1580-1620. Bauru: EDUSC, 2006. p. 218.
9
Idem. p.223.
10
LÓPEZ-GAY, Jésus. Las Organizaciones del Laicos em el Apostolado de la Primitiva Misión del Jápon.
Commentarii Historici. Roma: Archivum Historicum Societatis Iesus, 1967. n.36. pp. 03-04.
11
CURTO, Diogo Ramada. Cultura imperial e projetos coloniais (séculos XV a XVIII). Campinas: Editora
Unicamp, 2009. p. 28.
12
MANSO, Maria de Deus Beites. St. Francis Xavier and the Society of Jesus in India. Revista de Cultura.
Macau: Instituto Cultural do Governo da R.A.E. de Macau, 2007. n.19. p. 16.
13
FERRO, João Pedro. Os Contatos Linguísticos e a Expansão da Língua Portuguesa. In: MARQUES, Antônio
Henrique R. De Oliveira (dir) Op. Cit. 1998. v.1 t.1. pp.382-383.
14
Intérpretes indianos a serviço dos portugueses e dos jesuítas.
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educados nos seminários jesuíticos, os topazes prestavam serviços mediante ao pagamento de
um soldo por sua habilidade com os dialetos e as línguas vernáculas. Em 1547, na cidade de
Goa, Nicolau de Lanciloti SJ pediu ao governador do Estado da Índia, D. João de Castro, que
mandasse “dinheiro aos padres para comprarem cada um seu topaz, e mais o ordenado para
seu sustento”.15 Por mais que os inacianos escolhessem com cautela seus intérpretes, em
1544, Francisco Xavier SJ demonstrou apreensivo com a falta de domínio da língua
portuguesa e da doutrina cristã pelos topazes. De Punicale, ao se dirigir a Francisco de
Mansilas SJ que estava em Tuticorim, o padre se referiu a dois indianos, Rodrigo e Antônio,
como seus topazes, que apesar disso, “eles não me entendiam e eu muito menos a eles”.16 O
problema da interação linguística e a desconfiança em relação aos topazes, pela falta de
formação religiosa, era evidente aos olhos dos jesuítas. E ainda assim, Francisco Xavier SJ
terminou seu discurso dizendo que “os pobres, mesmo sem topazes, me faziam entender de
suas necessidades. E eu, em vê-los sem topazes, os entendia. Para as principais coisas, eu não
tive a necessidade de um topaz”.17
O objetivo de formar um grupo de catequistas para atuar nas comunidades locais veio
com a necessidade de aperfeiçoar a formação educacional, linguística e religiosa dos nativos
nas instituições de ensino dos jesuítas no Oriente. Para Charles Ralph Boxer essa ideia se
tornou realidade na cidade de Goa, quando os jesuítas passaram a administrar o Seminário de
Santa Fé, antes dirigido pelos franciscanos. Essa instituição chegou a receber “jovens de todas
as raças e classes sociais, inclusive alguns abissínios e bantos da África Oriental, embora com
uma predominância natural de indianos”.18 Como no caso dos catequistas japoneses chamados
de dógicos,19 o termo canacápole20 derivou de um neologismo feito pelos jesuítas a partir do
tâmil, idioma comum à porção sul do subcontinente indiano. No século XVI, o vocábulo
kanakkapilleis, como aparece no Glossário Luso-Asiático de Sebastião Rodolfo Delgado,
pode ser definido como “catequista e procurador dos cristãos”,21 no entanto, para o século

15
Carta de Nicolau de Lanciloti de Goa, 01/02/1547. in WICKI, José. Documenta Indica (1540-1597). Roma:
Institutum Historicum Societatis Iesu, 1972. v.1. p.168.
16
Carta de Francisco Xavier de Punicale, 29/08/1544. In BAPTISTA, Francisco de Sales (ed). São Francisco
Xavier: obras completas. São Paulo: Edições Loyola, 2006. p. 181.
17
Carta de Francisco Xavier de Punicale, 29/08/1544. In: BAPTISTA, Francisco de Sales (ed). Op. Cit. 2006. p.
181.
18
BOXER, Charles Ralph. A Igreja Militante e a Expansão Ibérica 1440-1770. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007. p. 23.
19
Colaboradores e catequistas japoneses.
20
Auxiliares e catequistas indianos.
21
DELGADO, Sebastião Rodolfo. Verbete: Canacápole. in Glossário Luso-Asiático. Coimbra: Imprensa da
Universidade de Coimbra, 1919. pp. 194-195.
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XVII, ele passou a valer também para os indianos que estavam a serviço da coroa portuguesa
como escrivães, gerentes e contadores.22
Escrito por João de Lucena no início do século XVII, a História da Vida do Padre
Francisco Xavier, possui ótimas referências para entendermos os serviços dos canacápoles.
Ao relatar os feitos de Francisco Xavier SJ na Costa do Malabar, o João de Lucena afirmou:

para os remédios desta falta, ordenou os que chamam de canacápoles na língua


tâmil, que na nossa é o mesmo que procuradores do bem espiritual e temporal das
igrejas. Escolheu para este ofício em cada lugar, um ou dois homens dos melhores
entendimentos, de mais luz nas coisas da fé, e mais exemplar na vida. Deu-lhes por
escrito a doutrina, que ele fazia na língua da terá e as orações em tâmil e latim.
Ensinaram-lhes juntamente a forma do sacramento do batismo. Como isto é o seu
ofício ser como sacristão, todo cuidado de guardar e limpar as igrejas, ensinar cada
dia a doutrina, cerca de duas vezes, pela manhã aos meninos e pela tarde as meninas,
em latim e na língua natural. Batizam em caso de extrema necessidade as crianças, e
tomam as poucas que não perigam para o padre batizar.23

Baseados na descrição de João de Lucena, o carioca Antônio de Moraes Silva e o


agostinho lusitano Domingos Vieira, relacionaram os canacápoles aos procuradores dos bens
temporais e espirituais da igreja em seus dicionários, ambos publicados no século XIX.24
Através da interpretação crítica da correspondência jesuítica, podemos dizer que os
canacápoles “trabalhavam principalmente como catequistas e auxiliares do clero regular
europeu, que fornecia a maior parte dos párocos nessa época”.25 Para Jesús López-Gay a
associação dos canacápoles a função de catequista foi vista pela primeira vez, em 1544,
quando da cidade de Cochim, Francisco Xavier revelou que um grupo de irmãos indianos
havia ajudado o padre Francisco de Mansilas a pregar o evangelho em Travancor e no Cabo
do Comorim.26 O argumento levantado por Jesús López-Gay pode ser verificado no capítulo
dez, “De Como Ordenaram os Canacápoles para a Conservação da Cristandade”, presente na
História da Vida do Padre Francisco Xavier, do jesuíta João de Lucena.27 No século XVI, o
relativo sucesso do trabalho de evangelização promovido pelos jesuítas se deve à introdução
dos canacápoles nas comunidades recém-cristianizadas no litoral indiano. Perante a escassez

22
Idem. Ibidem.
23
LUCENA, João de. História da Vida do Padre Francisco Xavier e do que Fizeram na Índia os mais
Religiosos da Companhia de Jesus. Lisboa: Impressão de Pedro Crasbeeck, 1600. pp.91-92.
24
SILVA, Antônio de Morais. Verbete: Canacápole. in Dicionário da Língua Portuguesa. Lisboa: Impressão
Régia, 1831. p.327 e VIEIRA, Domingos. Verbete: Canacápole. in Grande Dicionário Português ou Tesouro da
Língua Portuguesa. Porto: Editores Ernestro Chardron e Bartolomeu de Moraes, 1873. p.73.
25
BOXER, Charles. Op. Cit. 2007. p.24.
26
LÓPEZ-GAY, Jésus. Op. Cit. 1967. n.36. p.04.
27
LUCENA, João de. Op. Cit. 1600. pp.91-94.
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de missionários, assim como no Japão, os catequistas acabavam assumindo a incumbência de
mantenedores da cristandade. Em 1549, Emanuel de Morais declarou aos seus companheiros
de Coimbra que nas aldeias de Goa, os jesuítas utilizavam alguns dos principais homens da
terra, educados na doutrina cristã, para ensinar as orações na língua vernácula para os
indianos.28 Na Costa do Malabar e na Costa da Pescaria, o padre Henrique Henriques reforçou
o trabalho dos catequistas, dizendo:

para que os cristãos fossem doutrinados, nós deveríamos buscar entre os melhores
cristãos da costa para que os ensinasse a doutrina, e para que descobrisse os males
que os cristãos faziam, nos avisando para que assim fossem admoestados e
castigados quando fosse necessário.29

Em janeiro de 1558, de Manakudi, os canacápoles voltam a fazer parte dos relatos


outros jesuítas, como Henrique Henriques SJ. Na Costa da Pescaria, a doutrina era ensinada
por homens da terra de boa capacidade. O jesuíta encorajou os missionários a aprenderem o
tâmil, pois os padres deveriam trabalhar em conjunto com os canacápoles na tradução da
doutrina cristã e na confecção de catecismos.30
A partir de 1560, como Jesús López-Gay especificou, os canacápoles adquiriram
funções mais complexas, pois além da vida espiritual, passaram a ajudar na administração dos
negócios temporais. Do Coulão, André Fernandes SJ escreveu ao geral Diego Lainez SJ,
sobre a atuação dos canacápoles. A descrição feita por André Fernandes SJ se aproxima da
outra feita por João de Lucena. Do litoral de Kerala ao Cabo do Comorim:

em cada igreja havia um canacápole que na nossa língua quer dizer escrivão, bom
cristão e bem instruído em toda a doutrina cristã, alguns deles em muitas partes da
escritura, especialmente naquelas que dão mais notícias de ser Deus criador e
conservador de todas as coisas, e o redentor do gênero humano; e alguns deles são
devotos e se exercitam em oração. Cada um destes tem o cuidado de ter sua igreja
limpa e de ensinar nela a doutrina, pela manhã às meninas e a tarde aos meninos,
comumente, porque em algumas igrejas se ensinam pela manhã e tarde. 31

André Fernandes SJ continua sua descrição dizendo que haviam canacápoles


preparados para administrar alguns sacramentos em casos extremos – como a confissão, o
batismo e a penitência – por terem sido educados nos seminários. Outra característica

28
Carta de Emanuel de Morais de Goa, 03/01/1549. in WICKI, José. Op. Cit. 1972. v.1. pp.463-464.
29
Carta de Henrique Henriques de Cochim, 12/01/1551. in WICKI, José. Op. Cit. 1972. v.2. p.155.
30
Carta de Henrique Henriques de Manakudi, 13/01/1558. in WICKI, José. Op. Cit. 1972. v.4. pp.32-37.
31
Carta de André Fernandes do Coulão, 29/12/1563. in WICKI, José. Op. Cit. 1972. v.6. p.130.
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atribuída a esses catequistas indianos seria o fato de conseguirem atrair os gentios pela
facilidade que tinham com a língua vernácula. Durante as pregações, os canacápoles:

sabiam as palavras da forma do batismo, por quando alguma necessidade ocorria,


que no demais nós temos cuidado de administrar-lhes os sacramentos: o da
penitência aos que são disso capazes, que é um bom número que foram criados aqui
neste colégio. E os demais, lhes fazemos frequentemente as práticas sobre os artigos
da fé e dos mandamentos, e no que mais achamos ser convenientes para sua
salvação, e suprimos na falta de canacápoles e nas dos que governam a terra no
temporal para que o espiritual se faça melhor.32

Em 1572, João Afonso de Polanco SJ, secretário geral que recomendou a ordenação
do catequista indiano Pedro Luís o Brâmane em dezembro de 1560,33 de Roma, escreveu ao
provincial da Índia, Antônio Quadros SJ, acerca das orientações dadas aos canacápoles:

Não deixe de procurar, como creio que fazem nos lugares em que não há operários,
de se ajudarem com os canacápoles, dando-lhes boas instruções para tudo que for
conveniente ao sacramento do batismo, como hão de batizar, ensinar a doutrina, ler
as lições pias, as festas ao povo, ajudando nos enterros e, organizando e chamando a
contrição.34

Do mesmo modo que aconteceu no Japão com os dógicos, além de irmãos catequistas,
os canacápoles foram considerados organizadores da cristandade indiana.35 Os canacápoles
precederam o modelo dos dógicos, mesmo assim, não chegaram a ser reconhecidos
institucionalmente pela Companhia de Jesus, como o visitador Alessandro Valignano SJ fez
com os japoneses.36 Com exceção de alguns indianos que chegaram a ser ordenados por
indicação dos superiores, não havia um plano de educação para esses indivíduos que fosse
além dos seminários. No Japão, Alessandro Valignano SJ permitiu que os dógicos fossem
complementar seus estudos no Colégio de Funai e no Colégio de Macau.37
Pela necessidade de evangelizar, o modelo de catequista fabricado pelos jesuítas
repercutiu em outras regiões do mundo, como aconteceu na Nova Espanha. Os catequistas
nativos foram chamados de temachtianos. Analisando o manuscrito espanhol de Martín Péres
SJ, a Relação da Província de Nossa Senhora de Sinaloa de 1601, os historiadores Luis

32
Idem. p.131.
33
Carta de João Afonso de Polanco de Roma, 31/12/1569. in WICKI, José. Op. Cit. 1972. v.4. p.857.
34
Idem. p.595.
35
LÓPEZ-GAY, Jésus. Op. Cit., 1967. n.36. p.09.
36
Idem. p.08.
37
COSTA, João Paulo de Oliveira e. Estudo Introdutório. in COSTA, João Paulo de Oliveira e PINTO, Ana
Fernandes. Cartas ânuas do Colégio de Macau 1594-1627. Lisboa: Fundação Macau, 1999. pp.22-24.
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González Rodriguez e María del Carmen Azures y Bolaños afirmaram que desde José de
Acosta SJ, que os jesuítas buscaram no nauatle uma espécie de língua franca para evangelizar
os nativos. No sentido de adaptação, assim como na Índia e no Japão, o termo temachtiano
surgiu a partir de um neologismo em nauatle.38 Os registros históricos são imprecisos com
relação ao emprego desses indivíduos, sabe-se apenas que essa categoria surgiu apenas no
final do século XVI. Um dos apontamentos mais completos sobre os temachtianos foi feito
por Fernando de Santarém SJ, em dezembro de 1600, quando conduzia a evangelização dos
acaxees,39 de Santa Cruz de Topia e de San Andrés, ambos em Sinaloa. Já se fazia algum
tempo que os padres pregavam a doutrina na língua vernácula com a ajuda de intérpretes, mas
a carência de missionários levou Fernando de Santarém SJ a introduzir alguns
temaschtianos.40 Enquanto pregava paras a comunidades de San Andrés, Fernando de
Santarém SJ contou com a ajuda de um temachtiano, que

desde cedo, deu a um índio ladino casado, chamado Juan Tomás, para que servisse
de temachtiano e solicitar de certa igreja e da população dos índios, e lhe deixaram
ali, pois na ausência dos padres, poderia ser de grande serventia.41

Diferentemente do Japão, pelo que demonstrou o padre, os temachtianos não precisavam


manter o voto de castidade. Além de Juan Tomás, outros temachtianos aparecem na relação
de Fernando de Santarém SJ. Tanto em San Juan quanto em San Antônio, nomes como os dos
de Batista e Gaspar ajudavam na pregação do evangelho e na administração das igrejas.42
Escrita no século XVII pelo jesuíta André Perez Ribas SJ, A História dos Triunfos da
Nossa Santa Fé das Missões da Província da Nova Espanha define a origem dos catequistas
que atuavam no México. Para recrutar os temachtianos, os jesuítas devam preferência aos
cristãos mais antigos das comunidades locais. O padre André Perez Ribas SJ descreveu que:

ao deparar-se com Deus, alguns moços com mais capacidade e aplicação na


doutrina, ensinavam os outros e nos serviam, se chamavam de temachtianos da
igreja; eram os primeiros adultos a se batizarem, a quem seus outros parentes

38
RODRÍGUEZ, Luis González e ANZURES Y BOLAÑOS, María del Carmen. Martín Péres y la Etnografía de
Sinaloa a Fines del Siglo XVI y Principios del Siglo XVII. in Estudios de Historia Novohispana. Ciudad de
México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1996. n.16. p.175.
39
População indígena que vivia entre Sinaloa e Durango, no México.
40
Catequistas e tradutores indígenas a serviço dos padres no México.
41
Testemunho Jurídico das Populações e das Conversões dos Índios Serranos Acaxees pelo Capitão Diogo de
Avilda e pelo Padre Fernando de Santarém. México, 03/12/1600. In: ZUBILLAGA, Felix. Monumenta
Mexicana (1570-1605). Roma: Monumenta Historica Societatis Iesu, 1981. v.7 p.272.
42
Idem. pp.283-284 e p.331.
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seguiam. Tomavam com tanta aplicação e aprendiam as orações e catecismos, que
os dias inteiros.43

Outro ofício descrito pelo missionário sobre os acaxees foram os índios topilis.44
Criado a partir de outra adaptação linguística do nauatle, os topilis foram caracterizados por
Feliz Ramos y Duarte, no seu Dicionário de Mexicanismos, como “presos que serviam de
criados”45. Pela correspondência jesuítica da época, da mesma forma que os kambos46 no
Japão, os topilis cuidavam da organização das igrejas, executavam a tarefa de despachantes e
atendiam as necessidades dos jesuítas e dos temachtianos.47
A edificação da missão japonesa não foge aos problemas comuns enfrentados pelos
jesuítas em outras regiões do planeta, o que levou a inserção dos japoneses no processo de
evangelização.48 Desde Francisco Xavier SJ que os jesuítas depositaram na construção do
apostolado laico o futuro da igreja católica no Japão.49
Em oposição à realidade europeia, em que predominava a unidade cristã, seja de
natureza católica ou protestante, o Japão era definido pela variedade de seitas derivadas do
amálgama entre o budismo e o xintoísmo.50 A facilidade com que os japoneses comoravam
com essa variedade religiosa despertou reações opostas entre os jesuítas: uma negativa e a
outra positiva. Luís Fróis SJ julgou que esse tipo de comportamento mais liberal em relação à
religião, configurava uma das principais fraquezas do caráter do povo nipônico.51 Por outro
lado, o que se vê com a formação do apostolado laico japonês, foi que os jesuítas se

43
RIBAS, Andrés Perez de. Historia de los triumphos de nuestra Santa Fee entre gentes las mas barbaras y
fieres del nuevo orbe, conseguidos por los soldados de la milicia de la Compañia de Jesus em las missiones de
la Provincia de Nueva España. Madrid: Estudios de la Compañia de Jesus, 1645. p.479.
44
Indígenas que cuidavam das igrejas e serviam os padres no México.
45
RAMOS Y DUARTE, Feliz. Verbete: Topil. Diccionario de Mejicanismos. Cuidad de México: Herrero
Hermanos Editores, 1898. p.581.
46
Auxiliares dos jesuítas que seguiam a vida religiosa.
47
Testemunho Jurídico das Populações e das Conversões dos Índios Serranos Acaxees pelo Capitão Diogo de
Avilda e pelo Padre Fernando de Santarém. México, 03/12/1600. In: ZUBILLAGA, Felix. Op. Cit. 1981. v.7.
pp.302-303.
48
MANSO, Maria de Deus Beites e SOUSA, Lúcio de. Matizes Jesuítas: o perfil do clero nativo japonês.
Perspectivas: Portuguese Journal Science and Internacional Relations. Braga: Centre of Research in Political
Science and International Relations, 2013. v.10. p.119.
49
COSTA, João Paulo de Oliveira e. The Brotherhoods (Confrarias) and Lay Support for the Early Church in
Japan. in Japanese Journal of Religious Studies. Nagoya: Nanzan Insitute for Religion and Culture, 2007. n.34.
p.71.
50
Carta de Francisco Xavier de Cochim, 29/01/1552. In: BAPTISTA, Francisco de Sales (ed) Op. Cit. 2006.
p.554.
51
FRÓIS, Luís. Tratado das Contradições e Diferenças de Costumes entre a Europa e o Japão (ed. Rui Manuel
Loureiro). 1ª Ed., 1585. Lisboa: Instituto Português do Oriente, 2001. pp.85-90.
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apropriaram dessa heterogeneidade para trazer a catolicismo mais próximo dos nipônicos.52
Como também, desenvolveram formas de analogia para se esquivar da impetuosidade dos
daimiôs hostis aos estrangeiros e dos bonzos.53
No tempo que esteve no arquipélago, Francisco Xavier SJ percebeu que os bonzos da
doutrina Zen eram predominantes nas regiões de Kyushu e Honshu.54 O budismo Zen chegou
ao Japão entre os séculos XII e XIII, assumindo a forma de duas principais seitas: a Zen-Zoto
e a Zen-Rinzai.55 No Japão, o budismo Zen assumiu um aspecto de devoção individual através
das práticas de meditação. Seus adeptos consideravam o zazen56 “uma prática do espírito e do
corpo, devido à concentração simultaneamente física e mental”.57 Os sacerdotes e aprendizes
do budismo Zen viviam em mosteiros, sob um conjunto de regras rígidas e uma forte estrutura
hierárquica, tal qual havia nas ordens religiosas da Europa.58 Entre 1549 e 1551, Francisco
Xavier SJ esteve em contato com diversos bonzos, chegando a frequentar alguns de seus
mosteiros e templos.59 Ao passo que a ideia da integração dos nativos ia se moldando no
Japão, além de Francisco Xavier SJ, outros padres também observaram o cotidiano dessas
instituições religiosas. Atribuindo novos sentidos a palavras já existentes na língua japonesa,
comuns às seitas Zen-Zoto e Zen-Rinzai, os jesuítas usaram os termos kambos, komonos60,
gihiyacuxás61 e dógicos para expressar os ofícios do apostolado laico.
Para João Paulo de Oliveira e Costa:

a maioria dos cristãos japoneses vivia em Kyushu, mas a cristianização não era um
fenômeno regional, e sim nacional. Até o final do século XVI, era possível encontrar
pessoas batizadas em praticamente todas as províncias do Japão, e muitos deles
estavam organizados em comunidades.62

52
HIGASHIBABA, Ikuo. Christianity in Early Modern Japan: Kirishitan Belief and Pratice. Boston: Brill,
2001. pp.16-18.
53
Sacerdotes xintoístas.
54
Carta de Francisco Xavier de Cochim, 29/01/1552. in BAPTISTA, Francisco de Sales (ed). Op. Cit. 2006.
P.553.
55
As seitas Zen-Soto e Zen-Rinzai foram às únicas grandes representantes do budismo Zen no Japão entre os
séculos XVI e XVII. A terceira seita, a Zen-Obaku, foi fundada apenas no final do século XVII na época do
xogunato Tokugawa.
56
Prática de meditação comum às seitas budistas Zen no Japão.
57
YUSA, Michiko. Religiões do Japão. Lisboa: Edições 70, 2002. p.54.
58
ALDEN, Dauril. The Making of an Enterprise: the Jesuits in Portugal, its Empire and beyond, 1540-1750.
Stanford: Stanford University Press, 1996. p.60.
59
FELDMANN, Helmut. As Disputas de São Francisco Xavier com os Bonzos da Doutrina Zen Relatadas por
Luís Fróis e João Rodrigues. in CARNEIRO, Roberto e MATOS, A. Teodoro de (dir). O Século Cristão do
Japão: atas do colóquio comemorativo dos 450 anos de amizade Portugal-Japão 1543-1993. Lisboa: Barboza e
Xavier Ltda, 1994. pp.70-78.
60
Servos das residências, das igrejas e das instituições jesuíticas no Japão.
61
Auxiliares laicos dos jesuítas.
62
COSTA, João Paulo de Oliveira e. Op. Cit. 2007. n.34. p.69.
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De acordo com os jesuítas, a comunidade cristã nipônica atingiu um tamanho
considerável em pouco tempo se levarmos em consideração à distância e o número reduzido
de missionários. Os padres “muitas vezes tiveram que tomar decisões utilizando seu próprio
julgamento e intuição. Eles estavam sozinhos em um país com o que para eles, possuía uma
civilização estranha, mas que haviam lhes recebidos bem, e muitos desejavam o batismo”63.
Contemplando as estruturas sociais dos japoneses, Francisco Xavier SJ identificou que os
daimiôs,64 os samurais65 e os bonzos constituíam as principais elites da terra, e ter acesso a
esse microuniverso social não seria era uma tarefa simples. Pelo relacionamento que tinham
com os mercadores nanban-jins,66 alguns daimiôs permitiram que os padres pregassem
evangelho em suas províncias com a promessa adquirirem mercadorias ocidentais e as armas
de fogo.67 Quando se estabeleciam em uma região, os padres abriam duas frentes de pregação:
uma entre a família do daimiô e dos seus samurais, e a outra entre a população. Além de
circular pelos mosteiros, templos e santuários, foi nos vilarejos e nas aldeias que os jesuítas
perceberam que havia indivíduos que se destacavam por sua liderança comunitária. Como
resultado da observação da vida social dos japoneses, o apostolado laico foi organizado com
base nos modelos comunitários de confrarias ou de irmandades leigas.68 A partir de 1560,
quando os missionários iniciavam a conversão de alguma comunidade, algum tipo de
irmandade era criada exclusivamente para os japoneses convertidos. Essas instituições tinham
a função de ajudar a moldar uma nova identidade, baseada no catolicismo e na sacralização do
território. Além de atuarem nas igrejas, o apostolado laico foi inserido nessas associações, e
acabavam prestando auxílios não só aos padres, mas também aos cristãos japoneses.69

63
COSTA, João Paulo de Oliveira e. Op. Cit. 2007. n.34. p.70.
64
Aristocracia guerreira japonesa dos séculos X ao XIX.
65
Comandantes e combatentes do exército de um daimiô ou do seitai-xógum.
66
Apelido dos portugueses e dos jesuítas no Japão.
67
Como exemplo dessa relação, em 1568, o daimiô de Bungo, Otomo Yoshishige, pediu aos jesuítas que
intercedessem ao capitão-mor da nau do trato e as autoridades portuguesas de Goa, para que lhe enviassem mais
pólvora e armas de fogo, para que ele pudesse combater um levante em Yamaguchi. O daimiô Otomo
Yoshishige utilizou o argumento de sempre ter favorecido os jesuítas e a cristandade em suas terras, para fazer
tal pedido as ao padre e aos portugueses. Carta de Otomo Yoshishige de Bungo, 13/09/1568. In: GARCIA, José
Manuel (ed). Cartas que os Padres e Irmãos da Companhia de Jesus Escreveram dos Reinos do Japão e da
China. Edição fac-símile das Cartas de Évora de 1598. Maia: Castoliva Editora, 1997. p.250.
68
NOSCO, Peter. Secrety and the Transmission of Tradition: issues in the study of underground christians
(Japanese Journal of Religious Studies 1993, v.20). In: TURNBULL, Stephen R. Japan’s Hidden Christians,
1549-1999. London: Psycology Press, 2000. v.1. p.07.
69
COSTA, João Paulo de Oliveira e. The Misericórdias Among Japanese Christian Communities in the 16th and
17th Centuries. Bulletin of Portuguese-Japanese Studies. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2002. n.5.
pp.72-74.
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Em posição inferior aos dógicos dentro das missões, os kambos e os gihiyacuxás eram
recrutados entre os adultos do sexo masculino, batizados, considerados bons cristãos, e que
possuíam mais influência nas comunidades cristianizadas70. Stepehn Turnbull afirma que as
origens dos termos estão nas terminologias japonesas dos kamboyakus e jihiayakushas,
podendo variar conforme a região.71 Para Keith Lewis, os gihiyacuxás foram uma adaptação
que os missionários fizeram dos jihiyaku, considerados os auxiliares dos bonzos da doutrina
Zen.72 Os gihiyacuxás surgiram da tentativa dos missionários adotarem um nome japonês para
ajustar as ideias cristãs e budistas, dando origem aos homens com o dever da compaixão,
também conhecidos como homens de misericórdia.73 Tanto os kambos quanto os gihiyacuxás
realizavam funções semelhantes, mas apenas os primeiros seguiam o modelo religioso.
Enquanto os kambos raspavam suas cabeças e usavam os hábitos negros em sinal de devoção,
os gihiyacuxás podiam constituir famílias, como os índios temachtianos no México.74
Ambas as categorias de auxiliares não chegaram a preencher a Companhia de Jesus,
mas apesar disso, realizavam tarefas importantes, como organizar os funerais, preparar os
nativos para receberem o batismo, aprontavam as igrejas para as missas e festas religiosas,
ajudavam nas procissões, iam pelas ruas convocando a população para os cultos, atuavam
como enfermeiros nos hospitais e nas obras de assistência, além de dar suporte aos padres, aos
irumans75 e aos dógicos na catequese. Assim como no caso dos canacápoles, os kambos e os
gihiyacuxás se tornaram organizadores da cristandade, atuando dentro e fora das paróquias.
Na menor escala das hierarquias do apostolado laico nipônico, estavam os komonos.
Ikuo Higashibaba e Liam Matthew Brockey definem os komonos como irmãos menores e
servos das residências e igrejas jesuíticas.76 Além disso, eram encarregados da limpeza
doméstica, da arrumação das igrejas e da preparação das refeições.77 A partir de 1580, os
komonos foram introduzidos como servos no colégio, nos seminários e na diocese de Funai.78

70
BEVANS, Stephen B. e SCHROEDER, Roger P. Constant in Context: a theology of mission for today. New
York: Orbis Books, 2004. p.186.
71
TURNBULL, Stephen. The Kakure Kirishitan of Japan: a study of thier development beliefs and rituals to the
present day. London: Routledge Publisher, 1998. pp.69-71.
72
LEWIS, Keith D. The Catholic Church in History: legend and reality. New York: Crossroad Publishing
Company, 2006. p.115.
73
COSTA, João Paulo de Oliveira e. Op. Cit. 2002. n.5. p.71.
74
Idem. p.70.
75
Forma com que os jesuítas e os japoneses se referiam aos irmãos leigos.
76
HIGASHIBABA, Ikuo. Op. Cit. 2001. p.22 e BROCKEY, Liam Matthew. The Visitor: André Palmeiro and
the jesuits in Asia. Cambridge, London: Harvard University Press, 2014. p.361.
77
HIGASHIBABA, Ikuo. Op. Cit. 2001. p.22.
78
LÓPEZ-GAY, Jésus. Op. Cit. 1967. n.36.p.24.
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Os únicos indivíduos enxertados no apostolado laico japonês, que de regra faziam
parte da hierarquia cristã, foram os irmãos leigos admitidos pela Companhia de Jesus. Os
jesuítas japonesaram o vocábulo para designá-los, que passou a ser “iruman”. Em sua maioria
eram portugueses que vinham da Índia, e a partir de 1550, contaram com um número reduzido
de japoneses admitidos na congregação.79 Os irumans absorviam as funções dos kambos e dos
dógicos.80 Pelo fato de já fazerem parte da congregação, tiveram preferência ao serem
indicados aos colégios e a ordenação sacerdotal. Foi o caso de Bernardo de Kagoshima, que
serviu Francisco Xavier SJ e os padres ainda nos primeiros anos81. Ele foi enviado para a
Índia, e depois para a Europa, completou seus estudos, foi ordenado sacerdote e admitido82.
Nos séculos XVI e XVII, os nativos que assumiram as funções mais valorosas dentro
do apostolado laico foram os dógicos. A designação do vocábulo é mais complexa em relação
às outras funções. Em concordância com Jesús López-Gay e Juan Ruiz-de-Medina, os dógicos
foram definidos como “conviventes e no vocábulo do século XVI era um termo religioso,
budista que designava os jovens que entravam nos templos para se dedicarem ao serviço dos
bonzos”83. Além de acompanhar bonzos, eles atuavam “no serviço doméstico, com os
afazeres de casa, cuidavam dos enfermos, preparavam os altares, atendiam as visitas,
preparavam o chá etc.”.84 A escrita do termo nas fontes jesuíticas podia variar, há referências
esses catequistas como doxuku, doyukus, dojukus ou dógicos,85 sendo as duas últimas às
formas comuns utilizadas pelos historiadores.
A palavra dógico só apareceu nos escritos jesuíticos em 1580. Antes disso, os padres
se referiam aos moços, catequistas, meninos de casa, raspados ou irmãos. Juan Ruiz-de-
Medina defende a ideia de que para evitarem estranhamento entre os japoneses, os jesuítas
preferiram não arriscar em associar uma função das seitas Zen ao catolicismo.86 Entre 1549 e
1578 os dógicos eram reconhecidos na correspondência jesuítica conforme seus serviços. A
Historia de Japam do Luís Fróis SJ faz várias referências ao vocábulo ainda nas primeiras

79
COSTA, João Paulo de Oliveira e. Op. Cit. 2007. n.34. p.71.
80
BOXER, Charles Ralph. The Christian Century in Japan (1549-1650). California: University of California
Press. 1951. p.220.
81
LACH, Donald F. Asia in the Making of Europe: the century of discovery. Chicago: The University of
Chicago Press, 1994. v.1. t.2 p.672.
82
GONOIA, Takashi. Relations Between Japan and Goa in the 16th and 17th Centuries. in BORGES, Charles J.
e FELDMANN, Helmut (ed). Goa and Portugal: thier cultural links. New Delhi: Concept Publishing Company,
1997. p.103.
83
LÓPEZ-GAY, Jésus. Op. Cit. 1967. n.36. p.11.
84
Idem. p.12.
85
Idem. p.11.
86
RUIZ-DE-MEDINA, Juan. El Neologismo Dojuku: datos historicos. in Archivum Historicum Societatis Iesu.
Roma: Ed. Archivum Historicum Societatis Iesu, 1999. n.68. p.190.
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décadas da evangelização.87 Não podemos esquecer que a obra foi escrita em 1585, cerca de
cinco anos depois de Alessandro Valignano SJ ter feito referência a primeira definição do
termo. Quando esteve em Nagasaki, em agosto de 1560, o visitador explicou a origem do
neologismo, se referindo aos dógicos como “os japoneses que servem de intérpretes e nos
ajudam na conversão, dos quais comumente se pretendem entrar na Companhia de Jesus”88.
George Elison admite a ideia do emprego do neologismo pelos jesuítas, contudo, ao
examinar especificamente a seita Zen-Zoto, afirmou que os dógicos se aproximavam mais do
que os bonzos consideravam como jishas,89 ou seja, os noviços que viviam nos mosteiros.90
Segundo a historiografia, os dógicos podem ter vários sentidos confluentes, o que, por um
lado, torna evidente o caráter plural de sua cooperação entre os jesuítas. Um número
considerável de estudiosos, tais como Amando Martins Janeira91, Niel Fujita92, Jurgis
Elisonas93, Keith Lewis94, Heinrich Dumoulin95, Joseph Moran96, Ikuo Higashibaba97, Juan
Ruiz-de-Medina98, Jesús López-Gay99, Dauril Alden100, George Elison101, João Paulo de
Oliveira e Costa102 e Charles Ralph Boxer103 associam o termo às tarefas despenhadas por
estes nativos. Esses japoneses aparecem descritos como acólitos, catequistas, intérpretes,
tradutores, sacristãos e auxiliares. Em certas ocasiões, pela escassez de pessoal, acabavam
realizando as mesmas tarefas dos kambos e dos gihiyacuxás. Os dógicos ainda trabalhavam

87
Idem. p.191.
88
Japonica-Sinica Archivum Romanum Societatis Iesu. Carta de Alessandro Valignano de Nagasaki,
06/08/1580. 8.I.273v. Apud RUIZ-DE-MEDINA, Juan. El Neologismo Dojuku: datos historicos. In: Archivum
Historicum Societatis Iesu. Roma: Ed. Archivum Historicum Societatis Iesu, 1999. n.68. p.191.
89
No budismo Zen eram os noviços que atuavam como colaboradores dos bonzos.
90
ELISON, George. Deus Destroyed: the image of Christianity in Early Modern Japan. Cambridge: Harvard
University Press, 1973. P.62.
91
JANEIRA, Amando Martins. O Impacto Português sobre a Civilização Japonesa. Lisboa: Publicações Dom
Quixote, 1950. p.327.
92
FUJITA, Niel S. Japan’s Encouter with Christianity: the catholic mission in pre-modern Japan. New Jersey:
Paulist Press, 1991. p.74.
93
ELISONAS, Jurgis. The Evangelic Furnace: Japan’s firts encouter with the West. in THEODORE DE BARY,
Wm, GLUCK, Carol e TIEDEMANN, Arthur E. (ed). Sources of Japanese Tradition: 1600 to 1868. New York:
Columbia University Press, 2013. p.136.
94
LEWIS, Keith D. Op. Cit. 2006. p.115.
95
DUMOULIN, Heinrich. Zen Buddhism: a history – Japan. Indiana: World Wisdom, 2005. v.2. pp.39-41.
96
MORAN, Joseph Francis. The Japanese and the Jesuits: Alessandro Valignano in sixteenth-century Japan.
New York: Routledge, 1993. p.57.
97
HIGASHIBABA, Ikuo. Op. Cit. 2001. p.22.
98
RUIZ DE MEDINA, Juan. Verbete: Dojuku. In: O’NEILL, Charles E. e DOMINGUEZ, Joaquim Maria (dir).
Diccionario Histórico de La Compañia de Jesús. Madrid: Universidad Pontifícia de Comillas, 2001. pp.1133-
1134.
99
LÓPEZ-GAY, Jésus. Op. Cit. 1967. n.36. p.10.
100
ALDEN, Dauril. Op. Cit. 1996. p.62.
101
ELISON, George. Op. Cit. 1973. p.71.
102
COSTA, João Paulo de Oliveira e. Op. Cit. 2007. n.34. p.73.
103
BOXER, Charles Ralph. Op. Cit. 1951. p.88.
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nos hospitais como enfermeiros, serviam como embaixadores dos padres, colaboravam com
as obras de assistência, ajudavam a organizar os espetáculos teatrais e participavam da
confecção de imagens religiosas.104 Apesar do dinamismo funcional, os dógicos se dedicavam
a catequese e participavam da tradução de catecismos e textos religiosos105.
Quando Francisco Xavier SJ esteve no Japão buscou no chinês, elementos para
compreender a língua e a escrita japonesa. Ainda nos primeiros anos, percebeu que se tratava
de um idioma ideográfico distinto.106 Dentre as especificidades do japonês, destaca-se a única
maneira de falá-lo e as várias formas de escrevê-lo. A escrita japonesa se dividia em três
alfabetos: o hiragana, alfabeto vulgar; o katakana que era utilizado para expressar conceitos; e
havia o kanji, que funcionava para expressar termos religiosos e mitológicos.107 Os dógicos
possuíam a tarefa prática de ajudar aos jesuítas a transporem os obstáculos linguísticos. No
momento anterior a fundação dos seminários no país, a formação dos dógicos era precária,
eles eram instruídos nas próprias igrejas ou nas residências jesuítas. O português era falado
com certa dificuldade, a comunicação com os padres e com os catecúmenos era feita
basicamente em japonês, e a escrita em hiragana.108
No contexto de trocas linguísticas, os dógicos se tornaram verdadeiros mediadores
culturais, transitando de uma realidade para a outra no ato da pregação.109 Devido à
desenvoltura e o traquejo que lhes eram exigidos em relação ao idioma e ao aprendizado do
evangelho, os jesuítas inicialmente deram a preferência ao recrutamento de indivíduos do
sexo masculino, entre o final da adolescência e o início da idade adulta. A justificativa por
detrás dessa atitude se referia ao fato dessas pessoas terem idade suficiente para não
esquecerem sua língua vernácula, além de possuírem uma capacidade de aprendizado melhor
do novo idioma e da doutrina cristã em relação aos adultos e aos idosos.110 Antes da chegada
de Alessandro Valignano SJ ao Japão, os dógicos não provinham necessariamente das elites

104
Idem. pp.219-221.
105
HIGASHIBABA, Ikuo. Op. Cit. 2001. p.22 e p.28.
106
Carta de Francisco Xavier de Cochim, 14/01/1549. In: BAPTISTA, Francisco de Sales (ed). Op. Cit. 2006.
p.397.
107
FERRO, João Pedro. Os Contatos Linguísticos e a Expansão da Língua Portuguesa. In: MARQUES, Antônio
Henrique R. De Oliveira (dir). Op. Cit. 1998. v.1 t.1. pp.360-363.
108
MORAN, Joseph Francis. Op. Cit. 1993. p.167.
109
Carlo Ginzburg definiu o mediador cultural como aquele indivíduo que, por conta do processo de
aproximação de outra realidade, acaba tendo sua própria identidade reformulada, tornando-se capaz de
estabelecer o intercâmbio cultural entre dois mundos distintos. GINZBURG, Carlo. Os Pombos abriram os
olhos: Conspiração popular na Itália do século XVII. In: GINZBURG, Carlo, CASTELNUOVO, Enrico e PONI,
Carlo (orgs). A Micro-História e Outros Ensaios. Lisboa: Difel Editorial, 1989. p. 131
110
LABORINHO, Ana Paula. A Questão da Língua na Estratégia de Evangelização: as missões do Japão. In:
CARNEIRO, Roberto e MATOS, A. Teodoro de. (dir). Op. Cit. 1994.
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da terra. Muitos foram incorporados pelo tipo de talento que podiam oferecer na catequese.
Foi o caso de Lourenço o Cego, conhecido como Lourenço de Hizen. Segundo Luís Fróis SJ,
em 1551, havia um japonês na cidade de Yamaguchi que:

não enxergava nada por um dos olhos e do outro muito pouco. Ele ganhava a vida
como de costume no Japão, através da viola, tangendo e cantando pelas casas dos
fidalgos, dizendo graças ou recitando histórias antigas [...] e lhe vindo ter as orelhas,
escutou por uma gente estranha que pregava uma nova lei naquela cidade.111

Após o batismo e a instrução de Lourenço o Cego, passou a atuar nas pregações


cantando trechos do evangelho. Lourenço o Cego permaneceu como auxiliar e pregador dos
jesuítas até 1592, quando veio a falecer em Nagasaki112.
Ao longo das décadas de 1560 e 1580, a documentação jesuítica apresenta referências
consideráveis a esses catequistas nativos. Nomes como Agostinho, Alexandre de Yamaguchi,
André de Yamaguchi, Antônio Japonês, Antônio de Bungo, Bernardo de Kagoshima,
Constantino de Sawa, Cosme de Kyoto, Damião Japonês, Diogo Japonês, João Fernandes,
João de Ikitsuki, Lourenço o Cego, Lucas de Kutami, Matheus de Yamaguchi, Miguel de
Kagoshima, Paulo de Funai, Paulo Pregador, Lourenço Pereira, Paulo Senshu, Cosme Takai,
Antônio de Kasuga, Jorge Neshiho, João de Yamaguchi, Paulo Miki, Nicolau Japonês, João
de Torres, Tomás de Kyoto etc. aparecem na Historia de Japam, nas Cartas de Évora de 1598
e até mesmo nos catálogos da Companhia de Jesus no Japão presentes na Monumenta
Historica Japoniae.113 Convém notar que a maioria dos nomes de batismo fazia referência aos
santos cristãos, e como sobrenome lhes era atribuído à cidade em que foram batizados.
Juan Ruiz-de-Medina afirma que ser um dógico era antes de tudo aderir a um novo
estilo de vida. Por viverem no convívio dos inacianos, foram-lhes impostos os valores
religiosos comuns à clausura dos padres.114 Como gesto de religiosidade, assim como os
kambos, os dógicos raspavam suas cabeças – prática comum aos bonzos japoneses – e
passavam a usar o hábito negro de algodão comum aos jesuítas.115 Na presença da população
japonesa, mantinham a mesma dieta baseada na alimentação dos bonzos e dos missionários,

111
FRÓIS, Luís. Historia de Japam (ed. José Wicki). 1ª ed., 1583-1597. Lisboa: Biblioteca Nacional de Lisboa,
1976-84. v.1. p.42.
112
Carta Ânua da Província da Índia de Goa, 15/11/1593. in WICKI, José. Op. Cit. 1972. v.16. p.355.
113
Cf. FRÓIS, Luís. Historia de Japam (ed. José Wicki). Op. Cit. 1976-84. 5v, GARCIA, José Manuel (ed). Op.
Cit. 1997 e SCHÜTTE, Josef Franz. Monumenta Historica Japoniae (1553-1654). Roma: Monumenta Historica
Societatis Iesu, 1975. v.1.
114
BOXER, Charles Ralph. Op. Cit. 1951. p.215.
115
Idem. p.215.
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sendo-lhes proibido o consumo de bebida alcóolica e de qualquer tipo de carne.116 Antes da
chegada de Alessandro Valignano ao Japão SJ, os dógicos não tinham pretensões de serem
ordenados ou admitidos pela Companhia de Jesus, e desta forma, não foram obrigados a
proferir qualquer tipo de voto, bastavam ter na vida dos padres um exemplo para conduzirem
as suas.117 Gaspar Vilela SJ foi um dos que mais incentivaram os catequistas japoneses, no
entanto, se manteve cético em relação à entrada desses indivíduos na vida religiosa e na
congregação. Em 1557, da ilha de Firando, em Hirado, quando foi questionado pelos dógicos
sobre o voto de castidade, o padre que “não consentimos pelo perigo de depois o demônio
pudesse persuadi-los contra a castidade e a vida perfeita”.118
A ordenação e admissão de nativos do mundo colonial ibérico foi um assunto
intensamente debatido pelos escolásticos, tanto na Europa, quanto no mundo colonial. No
Oriente, inicialmente os jesuítas permitiram o ingresso de europeus e nativos, mas se
recusaram a aceitar os mestiços como sócios. Patrícia de Souza Faria observou que além da
condição hierárquica e de pureza de sangue – categorias utilizadas para discriminar os
indivíduos na Europa durante a idade moderna119 – os missionários adotaram o critério de
origem para dimensionar o nível de qualidade atribuída as diferentes populações asiáticas,
segundo a percepção de alteridade que constituíam do outro. Em 1550, o Seminário de Santa
Fé e o Colégio de Goa representavam as esperanças dos jesuítas em formar um clero nativo
no Oriente. Das dependências da Companhia de Jesus em Roma, o secretário geral João
Afonso Polanco SJ escreveu ao provincial de Portugal, Miguel de Torres SJ, recomendando a
admissão de indianos do apostolado laico e que se destacaram nessas instituições de ensino.120
Em 1568, o visitador do Oriente Gundislau Álvares SJ se dirigiu ao geral da Companhia de
Jesus, Francisco de Bórgia SJ, recomentando que os inacianos não devessem admitir e
ordenar nativos e mestiços da Índia Portuguesa, salvo raríssimas exceções.121 Sua atitude
reflete o enraizamento do clero secular e de outras instituições eclesiásticas mais ortodoxas,
como o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, a partir de 1560.

116
Idem. p.216.
117
BOXER, Charles Ralph. Op. Cit. 2007. pp.36-37.
118
Carta de Gaspar Vilela de Firando (Hirado), 29/10/1557. in GARCIA, José Manuel (ed). Op. Cit. 1997. p. 58.
119
FARIA, Patrícia de Souza. Percepções sobre os Nascidos no Oriente Português: classificação e hierarquias
nas controvérsias em torno do clero nativo (Goa, séculos XVI-XVIII). In: ASSIS, Ângelo Adriano Faria,
MANSO, Maria de Deus Beites e LEVI, Abraham (org). Quando o Mundo Era Português: da conquista de
Ceuta (1415) à atribuição da soberania de Timor-Leste (2002). Évora, Viçosa e Washington: NICPRIQCCH-
UFV, 2014. v.1. pp.83-85.
120
Carta de Juan de Polanco de Roma, 21/11/1555. in WICKI, José. Op. Cit. 1972. v.3. p.308.
121
Carta de Gundislau Álvares de Goa, ?/12/1568. in WICKI, José. Op. Cit. 1972. v.7. p.575.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 21-43 | www.ars.historia.ufrj.br 37
Trilhando por uma linha mais ortodoxa, em 1570, Francisco Cabral SJ foi nomeado
superior do Japão. Desde que os jesuítas ensaiaram as primeiras conversões no arquipélago,
que a ideia de uma política de integração dos auxiliares e catequistas ao clero nativo vinha
sendo trabalhada pela Companhia de Jesus. Francisco Cabral SJ considerava os chineses e os
japoneses possuíam defeitos tão graves quanto os indianos.122 Do lado oposto, em 1573:

o geral da Companhia de Jesus Everardo Mercuriano designou Alessandro


Valignano como visitador da província jesuítica de Goa. Em 1577, Alessandro
Valignano definiu aqueles que não deveriam ser recebidos pela Companhia de Jesus.
A rejeição recaiu sobre “principalmente todos aqueles que tivessem alguma raça de
cristão-novo, pois eram concebidos como infames. Da mesma forma, não deveria ser
recebida “nenhuma pessoa natural da terra”, salvo os japoneses123.

Alessandro Valignano SJ chegou ao Japão em 1579, e logo percebeu que os dógicos


seriam o carro-chefe do processo de evangelização.124 O visitador e o superior tinham
propostas distintas referentes ao futuro do apostolado laico nipônico, e o choque político entre
eles foi inevitável. Francisco Cabral SJ permaneceu como superior da missão japonesa até
1581.125 Além do Japão, assumiu o mesmo cargo em Macau em 1586. Francisco Cabral SJ
chegou a ser superior de Goa em 1592, onde veio a falecer, em abril de 1609. No tempo em
que circulou pelo Oriente Português, insistiu em defender sua postura mais rigorosa em
relação aos nativos. Enquanto isso, no Japão, Alessandro Valignano SJ aproveitou sua partida
para colocar em prática o projeto de aperfeiçoamento do apostolado laico e de preparação dos
dógicos para a admissão congregação ou para serem ordenados, através do estabelecimento do
Colégio de Funai e dos Seminários de Azuchi e Arima, e do Noviciado de Usuki.126
Apesar de defender a superioridade dos japoneses, Alessandro Valignano SJ
reconheceu que os nipônicos também tinham defeitos que poderiam contaminar os dógicos
caso fossem indicados à admissão ou a ordenação. Para Maria de Deus Beites Manso e Lúcio
de Sousa, os jesuítas viam os japoneses como inconstantes, preguiçosos em relação ao

122
BOXER, Charles Ralph. Op. Cit. 1951. p.166.
123
FARIA, Patrícia de Souza. Op. Cit. 2014. v.1. p.91.
124
ALDEN, Dauril. Op. Cit. 1996. p.62.
125
Idem. p.65.
126
ZUPANOV, Ines G. A Religião e as Religiões. in SERRÃO, Joel e MARQUES, A. H. de Oliveira (dir). Nova
História da Expansão Portuguesa: o império oriental, 1458-1665. Lisboa: Editorial Estampa (não publicado).
p.53.
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aprendizado,127 impiedosos e praticantes do infanticídio e da sodomia. No entanto, de maneira
cautelosa, o jesuíta trabalhou em prol de repaginar a história dos dógicos no Japão.
Com a existência de dois seminários, o sistema de recrutamento se modificou. Para
ingressar como catequistas, os missionários passaram a dar preferência aos filhos das elites
japonesas, como igualmente fizeram na Índia e na América Hispânica128. Antes os votos eram
proibidos, mas no intuito de separá-los dos demais, foram permitidos que os dógicos que
possuíssem vocação religiosa, proferissem de espontânea vontade, os votos de castidade,
obediência e dedicação às missões129. No seu Sumário das Coisas do Japão, o religioso
estipulou regras específicas para os catequistas japoneses que viessem ser recebidos pela
Companhia de Jesus. Alessandro Valignano SJ destacou a principal característica física dos
japoneses como elemento definidor de sua capacidade – foram considerados brancos.130 O
padre também apontou que os japoneses seriam os mais aptos a compreenderem seus próprios
costumes com o propósito de desenvolver meios de acomodação mais eficazes do que os
jesuítas e os irmãos europeus que ainda não estivessem familiarizados com o idioma e cultura
nipônicos.131 Alessandro Valignano SJ reforçou a natureza diversificada de suas ocupações na
catequese, nas igrejas e fora delas132.
As décadas de 1580 e 1590 foram marcadas por acontecimentos importantes dentro do
contexto histórico do cristianismo no Japão. João Paulo de Oliveira e Costa considera que
apesar da morte de Oda Nobunaga – que durante muito tempo favoreceu os missionários – e
postura agressiva de Toyotomi Hideyoshi em relação ao catolicismo não significou um
verdadeiro recuo para as missões133. Os seminários prosperaram durante a década de 1580.
Em 1588, as autoridades eclesiásticas erigiram o Bispado de Funai, em Bungo. D. Luís de
Cerqueira SJ foi consagrado bispo na cidade de Évora em 1594, mas só assumiu seu posto na
diocese japonesa cerca de quatro anos mais tarde. Assim que esteve no Japão, foi sensível a
questão dos dógicos estudantes dos seminários, e iniciou um projeto de ordenação dos
primeiros sacerdotes seculares japoneses no Japão entre 1599 e 1614. Uma das questões

127
A maneira liberal com que enxergavam a educação dos japoneses refletia no seu aprendizado nos colégios e
nos seminários. Os jesuítas se queixavam da falta de empenho dos estudantes para aprenderem o latim. MANSO,
Maria de Deus Beites e SOUSA, Lúcio de. Op. Cit. 2013. v.10. p.122.
128
ALDEN, Dauril. Op. Cit. 1996. p.63.
129
LÓPEZ-GAY, Jésus. Op. Cit. 1967. n.36. p.19.
130
VALIGNANO, Alessandro. Sumario de las Cosas de Japon 1583: Adiciones del Sumario de Japon 1592 (ed.
José Luís Alvarez-Taladriz). 1ª Ed., 1583. Tokyo: Sophia University, 1954. p.182.
131
Idem. pp.183-184.
132
LÓPEZ-GAY, Jésus. Op. Cit. 1967. n.36. pp.21-23.
133
COSTA, João Paulo de Oliveira e. O Cristianismo no Japão e o Episcopado de D. Luís Cerqueira. Tese de
Doutorado. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1998. pp.285-286.
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centrais que impedia a ordenação dos dógicos era a falta de aprofundamento do estudo do
latim134. D. Luís de Cerqueira SJ criou um noviciado especializado para complementar a
formação dos dógicos que se destacavam nos seminários135. Mesmo após o falecimento de
Alessandro Valignano SJ em 1606 e de D. Luís de Cerqueira SJ em 1614, os que mais
favoreceram a institucionalização do apostolado laico japonês, o modelo de catequista
produzido a partir dos dógicos sobreviveu à época das grandes perseguições do xogunato136
Tokugawa. Para Stephen Turnbull, o clímax da adaptação cristã a essa nova realidade de
conflitos veio com os primeiros padres japoneses ordenados ainda no início do século XVII,
que apesar dos percalços, conseguiram manter as comunidades cristãs em plena atividade
durante décadas após a grande expulsão.137
No continente asiático os missionários se depararam com sociedades complexas e
hierarquicamente rígidas. A permanência das missões nessas regiões dependeu
essencialmente da participação dos nativos enquanto mediadores religiosos entre as práticas
de evangelização e as populações locais. O uso de intérpretes foi largamente utilizado pelos
europeus nos espaços coloniais, principalmente no comércio e na diplomacia. No entanto,
segundo os próprios missionários alertavam, a falta de habilidade desses indivíduos com a
doutrina cristã não fazia deles a primeira escolha dos padres. Pensando na criação do
apostolado laico com feições nativas, Francisco Xavier e outros jesuítas observaram a rotina
dos templos e dos mosteiros hindus, budistas e xintoístas, e tentaram adaptar as funções
religiosas desempenhadas pelos auxiliares nativos as missões cristãs. As funções mais
complexas desenvolvidas pelo apostolado laico compreendiam a catequese, a tradução de
textos religiosos, a confecção de imagens e de catecismos, a preparação das igrejas, das festas
do calendário litúrgico, do batismo e dos rituais funerários. Tanto na Índia quanto no Japão, a
preparação dessas pessoas passou pelo processo de educação jesuítica oferecida em suas
residências, seminários e colégios instalados no Oriente. Pela falta de missionários e de
suporte, muitos padres defenderam a ideia de que os catequistas asiáticos devessem ser
ordenados ou admitidos pela congregação. Por outro lado, outra parte dos inacianos e da
cúpula da igreja católica questionou a atitude. No século XVI, ocorreram inúmeros embates
institucionais sobre o futuro desses nativos nos planos do catolicismo na Ásia. Apesar das
proibições, a forma com que os jesuítas enxergaram e definiram a sociedade nipônica,

134
MORAN, Joseph Francis. Op. Cit. 1993. p.161.
135
MORAN, Joseph Francis. Op. Cit. 1993. pp.165-167.
136
Era o governo do seitai-xógum.
137
TURNBULL, Stephen. Op. Cit. 1998. pp.69-70.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 21-43 | www.ars.historia.ufrj.br 40
permitiu que um grupo seleto de japoneses viesse a ser ordenado e admitido pela Companhia
de Jesus no final do século XVI, por influência do padre Alessandro Valignano SJ. Essa
predileção pelos nipônicos – e logo depois pelos chineses – permitiu que o catolicismo
sobrevivesse furtivamente no arquipélago japonês, mesmo durante as perseguições
empreendidas pelos seitai-xóguns do clã Tokugawa no século XVII.

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Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 21-43 | www.ars.historia.ufrj.br 43
Artigo

GÊNERO E PODER NA CRISE SUCESSÓRIA


PORTUGUESA DE 1578-80: BREVES NOTAS
SOBRE A CANDIDATURA DE D. CATARINA,
DUQUESA DE BRAGANÇA
FERNANDA PAIXÃO PISSURNO

Resumo: Partindo do estudo de caso de D. Catarina, duquesa de Bragança, pretendemos


analisar brevemente o ambiente político-cultural europeu hostil da segunda metade do século
XVI em relação à possibilidade de uma rainha reinante. Neta por linha masculina de D. Manuel
I, cognominado O Venturoso (1469-1521), por meio de seu falecido pai, o infante D. Duarte
(1515-40), a duquesa de Bragança encontrou-se como a última pretendente legítima da casa de
Avis durante o breve e tenso reinado de seu tio, o Cardeal Rei D. Henrique (1512-80). Apesar
de ter sido considerada desde o princípio pelo idoso monarca como sendo a herdeira legítima
de Portugal em detrimento de outros influentes candidatos, como Felipe II da Espanha e D.
Antônio, prior do Crato, o fato é que a pretensão de D. Catarina apenas seria reconhecida como
válida mais de duas décadas depois de sua própria morte, com a ascensão de seu neto, D. João
IV, ao trono português durante a Restauração de 1640.

Palavras-chave: História de Portugal. Casa de Avis. Casa de Bragança.

Abstract: Leaving from that case study of Catherine, duchess of Braganza, we intend to analyze
the european political and cultural environment from the second half from the XVI century
regarding the possibility of a reigning queen. Granddaughter on masculine line from Emmanuel
I, also known as The Fortunate (1469-1521), by her deceased father, the infant Edward (1515-
40), the duchess of Braganza found herself as the last rightful claimant of the House of Aviz
during the brief and tense reign of her uncle, the Cardinal King Henry (1512-80). Although she
was considered the lawful heiress of Portugal since the beginning by the old king, in detriment
of other important candidates, like Philip II of Spain and Anthony, prior of Crato, the fact is
that the aspiration of Catherine would only be recognized as valid more than two decades after
her own death, with the ascension of her grandson, D. John IV, to the Portuguese throne during
the Restoration of 1640.
Keywords: History of Portugal. House of Aviz. House of Braganza.

Artigo recebido em 26 de fevereiro de 2016 e aprovado para publicação em 4 de maio de 2016.


Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-
mail: fernandapissurno@yahoo.com.br.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 44-61 | www.ars.historia.ufrj.br 44
Aclamado rei de Portugal cerca de três semanas após a derrota em Álcácer-Quibir, que
alijara parte razoável da alta nobreza portuguesa e calamitara o reino1, D. Henrique foi o quinto
filho homem a nascer do casamento entre D. Manuel I e sua segunda esposa, Maria de Aragão,
terceira filha dos Reis Católicos. Longe da linha sucessória, ele foi desde cedo direcionado à
carreira eclesiástica, uma vez que havia pouca possibilidade que ascendesse ao trono. Em 1578,
entretanto, ele foi aclamado como rei depois da morte de seu sobrinho-neto, D. Sebastião, por
ser o último filho vivo de D. Manuel. Como toda a descendência de seu irmão mais velho, D.
João III, já falecera anteriormente, o trono recairia sobre a progênie de algum de seus irmãos;
o sucesso reprodutivo destes não foi, porém, muito maior. D Luís, o secundogênito, foi pai
somente de um filho ilegítimo antes de sua morte em 1555. O filho seguinte, D. Fernando,
faleceu sem descendência em 1534. Por fim, tanto D. Afonso2 quanto D. Henrique se
mantiveram celibatários como membros da Igreja. Neste contexto, o único filho homem a gerar
herdeiros legítimos sobreviventes foi o último filho varão sobrevivente de D. Manuel I, D.
Duarte, que viria a contrair matrimônio com D. Isabel de Bragança e geraria três crianças antes
de sua morte prematura em 1540, incluindo D. Catarina, a futura duquesa de Bragança3.
O objetivo deste trabalho é estudar brevemente a questão do gênero na crise sucessória
posterior através da candidatura desta infanta. Orientando-nos por meio de obras guiadas pela
Nova História Política e pela História de Gênero, nos propomos a analisar como a derrota da
candidatura da filha de D. Duarte e a vitória de Felipe II de Espanha não se deveu apenas ao
poderio bélico do segundo, mas também ao ambiente político-cultural europeu adverso da
segunda metade do século XVI em relação à possibilidade de uma rainha reinante4,
principalmente na Península Ibérica. Para este pequeno estudo, nos utilizaremos de teóricos de
época e de alguns importantes pontos das Allegações de Direito, principal obra de sustentação
da defesa da pretensão de D. Catarina, duquesa de Bragança, ao trono de Portugal5.

1
POLÒNIA, Amélia. D. Henrique. Círculo de Leitores, 2005, pps. 192 e 194.
2
Ele foi o quarto filho homem de D. Manuel e Maria de Aragão, nascido em 1509. D. Afonso faleceria ainda
durante o reinado de D. João III, não tendo participação na crise sucessória posterior.
3
As outras crianças seriam D. Maria, duquesa de Parma (1538-77), esposa de Alexandre Farnese e mãe de
Rainúncio Farnese, e D. Duarte, duque de Guimarães (1541-78), que viveu em celibato.
4
Como em outros casos, as exceções aqui confirmam a regra. Falaremos rapidamente dos casos de Maria I e Isabel
I de Inglaterra mais adiante, além de Isabel I de Castela.
5
Um estudo bem mais extenso e completo do tema se encontra na monografia de nossa autoria “As Allegações da
duquesa de Bragança para herdar a Coroa portuguesa: justiça e política na Península Ibérica”, concluída no
segundo semestre de 2015.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 44-61 | www.ars.historia.ufrj.br 45
De fato, desde muito cedo ficou claro que o reinado de D. Henrique seria principalmente
“um mero compasso de espera polarizado em torno do tema da sucessão”6 - para citar aqui a
estudiosa Mafalda Soares da Cunha, autora de um importante estudo sobre o tema - no sentido
em que a falta de herdeiros diretos inequívocos da dinastia dos Avis abria uma luta política-
militar, embora a princípio somente política-jurídica, pela herança de Portugal. Esta
possibilidade já era considerada desde a ascensão ao trono de um homem idoso, preso desde a
juventude pelos votos clericais. Um matrimônio de D. Henrique, para que fosse produzido um
herdeiro legítimo e incontestável que pudesse garantir a soberania do reino, chegou realmente
a ser considerado, como mostra Amélia Polónia em sua detalhada biografia do Cardeal Rei;
afinal, como direito eclesiástico e não divino, o celibato poderia ser revogado pelo papa
Gregório XIII. Rapidamente, contudo, o esforço português, que se pretendia secreto, foi visto
como condenado pelos interesses de Espanha7. Em tal contexto, a organização da sucessão foi
transformada de fato em uma questão jurídica, com os pretendentes à sucessão sendo
notificados para que alegassem perante D. Henrique e juízes assessores - a serem eleitos pelas
Cortes - o que julgavam serem as bases de seus direitos. Os principais candidatos à sucessão do
trono de Portugal, neste sentido, foram a duquesa de Bragança, o rei de Espanha e o prior do
Crato8.
Nesse ponto, D. Catarina não deixava de estar numa posição bastante favorecida. Além
de ser uma infanta portuguesa de quase 40 anos com herdeiros vivos, o que a diferenciava
positivamente dos outros dois principais candidatos, ela ainda era a sobrinha preferida do
Cardeal Rei e sua favorita pessoal para sucedê-lo, como já demonstrado, por exemplo, no livro
da historiadora Jacqueline Hermann sobre o sebastianismo em Portugal9. Embora a
legitimidade e a maturidade fossem vantagens certas para a sua candidatura ao trono português,
a feminilidade indubitavelmente não o era, podendo ser analisada, na verdade, como um ponto
bastante prejudicial de corrosão. Para examinar mais especificamente este ponto, julgamos

6
CUNHA, Mafalda Soares da. “A questão jurídica na crise dinástica” IN: MATTOSO, José (dir.) História de
Portugal. Terceiro Volume: No alvorecer da modernidade (1480-1620). Lisboa: Editorial Estampa, 1993-1994, p.
553.
7
POLÒNIA, Amélia, 2005, op. cit, pps. 205, 212-213 e 219.
8
Também apresentaram suas candidaturas ao trono português o duque de Saboia, único filho sobrevivente da
segunda filha do Venturoso, e o herdeiro do ducado de Parma, primogênito homem da irmã de D. Catarina. Muito
embora apenas Rainúncio pudesse alegar ser o herdeiro do trono português segundo o costume tradicional, nem
ele nem Manuel Felisberto realmente perseguiram suas candidaturas, de forma que abordaremos neste artigo
apenas as principais pretensões.
9
HERMANN, Jacqueline. No Reino do Desejado: a construção do sebastianismo em Portugal, séculos XVI e
XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 169.
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apropriado ter em perspectiva a concepção de Louise Tilly de que, mais do que existir enquanto
categoria biológica, as mulheres também teriam uma existência social, tendo assim suas vidas
modeladas por costumes e opiniões derivadas de estruturas de poder10. Assim, a abordagem
deixaria de ser necessariamente biológica e passaria a ser também sócio-cultural - e, como
consequência, também crucialmente política. Para alguns autores do século XVI, como John
Knox, que escreveu contra as rainhas Maria I da Inglaterra11 e Maria, Rainha dos Escoceses12,
o governo feminino não era natural ou juridicamente legal, além de contrário às Escrituras. Em
sua análise deste autor, a estudiosa Merry Wiesner defende até mesmo que, para Knox, os
súditos de tais “monstros” não precisavam sequer de justificativa para se rebelar13. Tal
sentimento pode ser visto nas palavras do próprio:

“(…) I say, that it doth manifestly repugn that any woman shall reign or bear dominion
over man. For God, first by the order of his creation, and after by the curse and
malediction pronounced against the woman, by the reason of her rebellion, hath
pronounced the contrary. (…) Hereby may such as altogether be not blinded plainly
see, that God by his sentence hath dejected all women from empire and dominion
above man. For two punishments are laid upon her, to wit, a dolor, anguish, and pain,
as oft as ever she shall be mother; and a subjection of herself, her appetites, and will,
to her husband, and to his will. From the former part of this malediction can neither
art, nobility, policy, nor law made by man, deliver womankind; but whosoever
attaineth to that honour to be mother, proveth in experience the effect and strength of
God’s word. But (alas!) ignorance of God, ambition, and tyranny, have studied to
abolish and destroy the second part of God’s punishment (…) But horrible is the
vengeance which is prepared for the one and for the other, for the promoters and for
the persons promoted, except they speedily repent. For they shall be dejected from the
glory of the sons of God to the slavery to the Devil, and to the torment that is prepared
for all such as do exalt themselves against God.”14

10
TILLY, Louise. “Gênero, História das Mulheres e História Social” IN: Cadernos Pagu. No 3, 1994, p. 3.
11
Única filha sobrevivente de Henrique VIII de Inglaterra e Catarina de Aragão, reinou de 1553 até 1558.
12
Única filha sobrevivente de Jaime V, Rei dos Escoceses, e de Maria de Guise, reinou por direito próprio de 1560
até 1567, muito embora o reino estivesse sob regência desde a morte de seu pai em 1542.
13
WIESNER, Merry. Women and Gender in Early Modern Europe. Cambridge: Cambridge University Press,
2000, p. 291.
14
KNOX, John. The first blast of the trumpet against the monstruous regiment of women. 1558, p. 9. Disponível
online em: http://www.gutenberg.org/ebooks/9660. Acessado em 25/11/2015. Em português: “(...) Eu digo que
deve ser manifestadamente repugnado que qualquer mulher possa reinar ou ter domínio sobre os homens. Deus,
primeiro pela ordem de sua criação, e depois pela praga e maldição proferidos contra as mulheres, por causa de
sua rebelião, terá dito o contrário (...) Desta maneira, não pode ser completamente escondido de vista que Deus
em sua sentença abateu todas as mulheres de império e domínio sobre os homens. Duas punições foram colocadas
sobre ela, a saber: dor e angústia toda vez que for mãe, e sua sujeição, e de seus apetites, para seu marido e sua
vontade. Da última parte da maldição deriva que mulheres não podem fornecer arte, nobreza, política ou lei para
os homens, mas quem obter a honra de ser mãe pode provar o efeito e força da palavra de Deus. Mas a ignorância,
ambição e tirania estudaram para abolir e destruir a segunda parte da punição de Deus (...) Mas horrível é a
vingança que foi preparada para eles, para os promotores disso e as pessoas promovidas, exceto se eles rapidamente
se arrependerem. Por isso, eles serão abatidos da glória dos filhos de Deus para a escravidão do Diabo, e para o
tormento que é preparado para aqueles que se levantam contra Deus.” Tradução nossa.
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A argumentação de Knox contra o governo feminino pode ser considerada como algo
extrema, principalmente quando comparada a alguns de seus contemporâneos, mas não
realmente muito diferente. Mesmo considerando-se que o autor inglês fazia parte dos
protestantes exilados pela rainha católica Maria I e que, portanto, sua escrita deve ser analisada
em concomitância com o cenário de turbulência religiosa da Inglaterra no período, Knox ainda
se encontra de acordo com o pensamento de época que via a mulher como naturalmente inferior
ao homem, numa relação em que o valor feminino crescia na medida em que ela se mostrasse
submissa e dócil, mas, em princípio, era tratado de acordo com as baixas, ou mesmo negativas,
expectativas relacionadas ao sexo feminino, segundo Ivone Leal em seu ensaio sobre a mulher
no século XVI15. Mais uma vez, tal ponto pode ser visto nas palavras de Knox:

“I except such as God, by singular privilege, and for certain causes, known only to
himself, hath exempted from the common rank of women, and do speak of women as
nature and experience do this day declare them. Nature, I say, doth paint them further
to be weak, frail, impatient, feeble, and foolish; and experience hath declared them to
be inconstant, variable, cruel, and lacking the spirit of counsel and regiment. And
these notable faults have men in all ages espied in that kind, for the which not only
they removed women from rule and authority, but also some have thought that man
subject to the counsel or empire of their wives were unworthy of all public office.” 16

Mesmo autores mais condescendentes, como John Aylmer, bispo protestante que
escreveu An Harborowe for Faithfull and Trewe Subjects durante o reinado da meia-irmã e
sucessora de Maria I, Isabel I17, que defendia que o sexo de uma mulher não a excluía
automaticamente de reinar, assim como a infância de um rei criança ou a enfermidade de um
monarca deficiente também não o excluíam do comando, reconhecia a inferioridade do gênero
feminino perante sua contraparte. Para Aylmer, uma rainha poderia exibir as qualidades
masculinas necessárias para a liderança, ao mesmo tempo em que visivelmente não era um
homem. O pensamento mais corrente no século XVI, contudo, parece ser aquele representado

15
LEAL, Ivone. “A mulher e o amor no século XVI: afectividade, sexualidade, casamento – uma abordagem do
tema”. IN: Análise Social. Volume XXII (92-93), 1986, p. 771.
16
KNOX, John, 1558, op. cit, p. 7. Em português: “Exceto quando Deus, em seu privilégio singular, e por certas
causas, conhecidas apenas por ele, livrou uma mulher de sua posição comum, falo das mulheres como a natureza
e a experiência as classificam até hoje. A natureza, eu digo, as pintou para serem fracas, frágeis, impacientes,
débeis e tolas; e experiência as declarou serem inconstantes, variáveis, cruéis, e sem o espírito do conselho e do
regimento. E em todas as eras os homens repararam em tais falhas notáveis , pelo qual eles não apenas removeram
as mulheres do domínio e da autoridade, mas alguns também pensaram que homens sujeitos ao conselho ou
domínio de suas esposas eram indignos de qualquer cargo público.” Tradução nossa.
17
Única filha sobrevivente de Henrique VIII e Ana Bolena, reinou de 1558 até 1603.
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pelo autor que consideramos um exemplo de meio-termo entre Knox e Aylmer – Jean Bodin.
Se um Estado era como uma casa, argumentava ele em The Six Books of the Commonwealth, e
em uma casa era o pai quem possuía o poder de comando, assim também deveria acontecer em
um Estado18. Quando trata da questão específica da possibilidade de sucessão em linha feminina
em seu livro, Bodin declara:

“I have said that the crown ought to descend in the male line, seeing that gynecocracy
is directly contrary to the laws of nature. Nature has endowed men with strength,
foresight, pugnacity, authority, but has deprived woman of these qualities. Moreover
the law of God explicitly enjoins that the woman should be subject, not only in matters
concerning law and government, but within each particular family (…) Even the civil
law forbids to woman all charges and offices proper to men, such as judging, pleading,
and such-like acts. This is not only because of their lack of prudence, but also because
vigorous action is contrary to the sex, and to the natural modesty and reserve of
women…”19

Nesta situação, como agir quando o próprio Deus parecia agir para que uma donzela
herdasse um trono? A resposta era, evidentemente, casá-la para que seu marido governasse com
ela20, ou, como parece o cenário mais realista no século XVI, por ela.
Em tal cenário europeu, a Península Ibérica não era exceção. Basta lembrar a batalha
verdadeiramente propagandística que Isabel I de Castela teve que liderar para manter o trono
depois de conquistá-lo em 1474, que envolveu tanto reconhecer quanto rejeitar sua natureza de
gênero feminino, numa trajetória que pode ser vista com mais detalhes no artigo de Elizabeth
Lehfeldt a respeito21. De qualquer forma, Portugal não era Castela, e nunca tivera realmente
uma rainha reinante em toda a sua história. A única possibilidade real para isso fora a princesa
D. Beatriz, única filha sobrevivente de D. Fernando I e esposa de João I de Castela, em fins do
século XIV. O matrimônio dela, que na próxima geração levaria à união dos reinos de Portugal
e Castela, não provocou reações imediatas na época do casamento, provavelmente devido ao

18
WIESNER, Merry, 2000, op. cit, p. 292.
19
BODIN, Jean. Six Books of the Commonwealth. Oxford: Basil Blackwell, 1955, p. 245. Em português: “Eu disse
que a Coroa deve passar em linha masculina, visto que a ginocracia é diretamente contrária às leis da natureza. A
natureza dotou os homens com força, previdência, pugnacidade e autoridade, mas privou as mulheres destas
qualidades. Além disso, a lei de Deus explicitamente intima que mulheres deveriam se sujeitar, não apenas em
questão referentes à lei e ao governo, mas dentro de cada família particular (...) Mesmo a lei civil proíbe às
mulheres todos os encargos e cargos próprios aos homens, como os de julgamento, suplicante, e outros atos
similares. Isto não é apenas pela falta de prudência delas, mas também porque ações vigorosas são contrárias ao
sexo, e à natural modéstia e reserva das mulheres...” Tradução nossa.
20
FRASER, Antonia. As Seis Mulheres de Henrique VIII. Rio de Janeiro: Edições BestBolso, 1992, p. 138.
21
LEHFELDT, Elizabeth. “Ruling Sexuality: The Political Legitimacy of Isabel of Castile” IN: Renaissance
Quarterly. 53, no. 1, 2000, p. 41.
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fato do rei ainda ser jovem e poder gerar filhos homens. Com sua morte súbita em 1383,
contudo, o monarca castelhano marchou com seus exércitos para que sua esposa fosse
proclamada rainha de Portugal22. Este flagrante desrespeito ao contrato nupcial desencadeou
uma revolta popular que colocou em 1385 no trono o primeiro Avis, D. João I de Portugal, tio
ilegítimo de D. Beatriz23.
Não discutiremos em detalhes aqui como se deu o processo de queda da dinastia de
Borgonha e ascensão da linhagem dos Avis. Uma questão, porém, nos parece relevante: a
retirada dos direitos sucessórios de D. Beatriz pelo pai no contrato nupcial desta com João I de
Castela. Em princípio, vemos a decisão como motivada menos pela juventude da princesa na
época do consórcio e mais por seu gênero em si, servindo mesmo como um caso exemplar da
vida das mulheres ibéricas, quase sempre sobre a tutela do pai ou do marido e reduzidas
sucessivamente ao papel de filha, esposa e mãe, num contexto em que a identidade portuguesa,
ao conviver com uma identidade hispânica, a natio hispânica, era fundamentalmente uma
respublica christiana24. Neste contexto, nenhuma consequência seria mais natural do que a
tradição recusar ao gênero feminino qualquer autoridade sobre o poder “público” e político
português, tendo seu papel limitado à procriação e à vida familiar25. Assim, elas seriam
incapazes politicamente, pelo princípio estabelecido em Portugal na primeira metade do século
XV com a promulgação da Lei Mental, que excluía as mulheres da sucessão aos bens da Coroa
– a não ser por permissão especial do rei26. Neste sentido, julgamos conveniente para este estudo
examinar brevemente um caso envolvendo Catarina de Áustria, esposa de D. João III e avó de
D. Sebastião; apesar de tal exame consistir em, na verdade, um desvio do assunto principal de
nosso estudo, consideramos que as observações nele contidas serão muitíssimo benéficas às
nossas análises sobre a importância da questão de gênero da candidatura da duquesa de
Bragança ao trono português na crise sucessória de 1578-80.
Em 1557, procurando receber o favor da rainha, o advogado Rui Gonçalves escreveu o
pequeno livro Dos privilegios e praerogativas que ho genero feminino tem por direito comum

22
SERRANO, César Oliveira. Beatriz de Portugal – La pugna dinástica Avís-Trastámara. Santiago de
Compostela: Instituto de Estudios Gallegos, 2005, pps. 31 e 91-92.
23
MACEDO, Newton de. História de Portugal – Volume II: De D. João I aos Filipes. Lisboa: Lello e Irmão,
1936, pps. 6 e 11.
24
SILVA, Ana Cristina Nogueira da Silva; HESPANHA, António Manuel. “A Identidade Portuguesa” IN:
MATTOSO, José (dir.) História de Portugal. Quarto Volume: O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Editorial
Estampa, 1998, pps. 20-23.
25
SERRANO, César Oliveira, 2005, op. cit, pps. 30-33.
26
HESPANHA, Antônio Manuel. “O estatuto jurídico da mulher na época da expansão”. IN: Revista Oceanos.
Número 21, janeiro-março, 1995, p. 9.
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& ordenações do Reyno mais que ho genero masculino. A sua publicação provavelmente teve
como objetivo fortificar a autoridade da protetora de Gonçalves e recém-empossada regente do
reino após a morte de seu marido27, visto que procurava reabilitar as mulheres frente ao
pensamento da época, mostrando-as mesmo como mais virtuosas e privilegiadas em certos
aspectos do que os homens. E, como em outras obras dedicadas à rainha D. Catarina, o livro de
Rui Gonçalves também se preocupa em tecer elogios à virtuosa consorte de D. João III. Para
isso, ele compara sua protetora a outras mulheres famosas por suas virtudes. Entre vários e
diversos exemplos, são citadas a profetisa Olda, a juíza Débora, Sara, mulher de Abrahão,
Penélope, esposa de Ulisses, além da imperatriz romana Lívia, consorte de Augusto e a
bizantina Teodora, imperatriz de Justiniano, e a governante egípcia Cleópatra VII, sem esquecer
“A efclarecida fenõra Raynha dona Maria da felice memoria, may del Rey noffo fenhor”28,
lembrada de forma especial por seu amor conjugal à D. Manuel I.
Falando especificamente das heroínas bíblicas, o intento do autor parece ter sido exaltar
a sabedoria das personagens, muito embora a idealização das figuras as coloque evidentemente
muito acima das contemporâneas de Gonçalves. Já as imperatrizes são louvadas por seus bons
conselhos – em especial Teodora, conhecida por participar ativamente no governo de seu
marido. Por sua vez, Cleópatra VII é lembrada por sua liberalidade, e Penélope é exaltada por
ter se mantido estritamente fiel e casta enquanto aguardava o retorno do marido da guerra de
Troia. O intento de Gonçalves parece ter sido exatamente ressaltar as mais conhecidas virtudes
das célebres personagens femininas, mas ele também não esquece mulheres conhecidas por sua
‘virilidade’, como Joana d’Arc e Isabel I de Castela, avó de D. Catarina, fazendo então um dos
maiores elogios possíveis à rainha portuguesa ao compará-la com sua lendária antepassada29.
Seria um grande erro, contudo, cometer o anacronismo de classificar o autor como
‘feminista’, como já bem recordaram António Manuel Hespanha30 e Luísa Stella de Oliveira
Coutinho Silva31 em seus respectivos estudos sobre o tema. Gonçalves, em realidade, em nada

27
SANTOS, Giovanna Aparecida Schittini dos. Direito e Gênero: Rui Gonçalves e o Estatuto Jurídico das
Mulheres em Portugal no Século XVI (1521-1603). Dissertação (mestrado em História) – Faculdade de Ciências
Humanas e Filosofia, Universidade Federal de Goiás. 2007, pps. 63-65.
28
GONÇALVES, Rui. Dos privilégios & praerogativas que o gênero feminino tem por direito comum e
ordenações do Reino mais do que o gênero masculino. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1992, p. 34. As citações aqui
feitas estão em português do século XVI.
29
SANTOS, Giovanna Aparecida Schittini dos. Direito e Gênero: Rui Gonçalves e o Estatuto Jurídico das
Mulheres em Portugal no Século XVI (1521-1603). Dissertação (mestrado em História) – Faculdade de Ciências
Humanas e Filosofia, Universidade Federal de Goiás. 2007, pps. 77-80.
30
HESPANHA, António Manuel, 1995, op. cit, p. 1.
31
SILVA, Luisa Stella de Oliveira Coutinho. “O Pensamento Político na Época de Catarina de Áustria e as
Mulheres no Governo”. IN: Revista do Instituto do Direito Brasileiro. Ano 2, no 10, 2013, 11668-11669.
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abdicou do discurso paternalista tradicional do século XVI no que dizia respeito ao gênero
feminino, como fica evidente em sua análise nos supostos benefícios que as mulheres teriam na
legislação portuguesa. Apenas para citar dois exemplos do texto, uma regra previa que mulheres
honestas e honradas não poderiam ser presas por dívidas civis32. Além disso, mesmo que elas
não pudessem procurar justiça por conta própria, tinham permissão para fazê-lo no caso de
“descarrego de consciência”, já que “onde fe trata de faude dalma, não temos conta com as
fubtilezas de dereito”33. Talvez mais significativamente ainda, contudo, é perceber que, em Dos
privilegios e praerogativas, as mulheres são idealizadas de acordo com as virtudes esperadas
do gênero feminino. Desta forma, elas são louvadas por suas qualidades tradicionais, mas,
paradoxalmente, suas grandes obras destacadas retém uma natureza masculinizada. Ainda que
Gonçalves afirmasse se opor aos discursos vigentes, portanto, seu livro Dos privilegios e
praerogativas – dedicado à uma rainha regente, lembremos - mostra que, em realidade, ele de
nada tinha de diferente do pensamento da época.
Tudo isso demonstra ainda mais a frágil posição em que a homônima da rainha se
encontraria décadas mais tarde na disputa pelo trono português. Apesar de podermos muito bem
ver a disputa jurídica imposta pelo rei D. Henrique como uma estratégia para permitir a
ascensão, de forma duplamente legítima, da candidata que ele considerava como sendo a de
direito, ainda havia uma série de problemas nesta pretensão. A primeira - e mais crítica, como
já previamente analisado - era o próprio gênero de D. Catarina. O ambiente político-cultural
português, afinal, seguindo o clima no restante do continente europeu, não era favorável, em
princípio, à possibilidade de uma rainha reinante34. Mesmo que D. Henrique estivesse
impossibilitado em casar-se e gerar herdeiros indisputáveis para o trono, ainda existiam outros
candidatos para a sucessão portuguesa além da duquesa de Bragança, homens maduros e com
ascendência real, como os já citados Felipe II de Espanha e D. Antônio, prior do Crato. Apesar
disso, em teoria, como no caso de sua ancestral Isabel I de Castela, a dificuldade de gênero de
D. Catarina poderia ser algo compensada pela existência de duas importantes figuras: um
marido com quem poderia dividir a soberania, o duque de Bragança, e um filho homem e
herdeiro, D. Teodósio.

32
Ibidem.
33
GONÇALVES, Rui, 1992, op. pps. 32-48.
34
A existência de rainhas reinantes ao Norte da Península Ibérica, como no caso de Maria I da Inglaterra, tratou-
se muito mais da absoluta ausência de homens na árvore genealógica legítima da Casa real do que um pensamento
diferenciado anglo-saxão quanto aos direitos de sucessão femininos.
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D. João, casado com D. Catarina havia pouco mais de 15 anos àquela altura dos
acontecimentos, retinha em si importantes características para sua pretensão de herdar o reino
português juntamente com sua esposa. Além de chefiar a poderosa Casa de Bragança, tendo,
portanto, aquele elemento da naturalidade tão desejável em um rei num período em que a teoria
do poder político ainda estava bastante ligada aos laços naturais de senhorio35, ele ainda seria
um dos herdeiros possíveis do trono por direito próprio, sendo descendente direto do rei D.
Duarte por meio de sua neta Isabel de Viseu, irmã de D. Manuel I e esposa de D. Fernando,
duque de Bragança. Estes aspectos positivos, porém, não poderiam ser totalmente contrapostos
à sua suposta fraca capacidade de comando e impopularidade crescente entre a aristocracia e o
povo36, o que teria colaborado para que a possibilidade de sua presença como possível rei não
ajudasse a fortalecer a candidatura de D. Catarina. A própria duquesa de Bragança, aliás, parecia
ser uma figura pouca estimada entre os populares, o que não ocasionava muita adesão à sua
candidatura neste segmento37. Além disso, seu filho D. Teodósio, cuja importante presença
poderia ter contrabalançado a imagem negativa do duque, foi mantido afastado da cena
portuguesa por estar em poder do duque de Medina-Sidonia, vassalo de Felipe II, primeiramente
em Marrocos e depois em Espanha, após seu resgate feito a mando de Felipe II após a batalha
de Alcácer-Quibir. Este literal sequestro do herdeiro do ducado provavelmente visava
enfraquecer a candidatura brigantina38.
De qualquer forma, mesmo que o representante de D. Catarina, o duque de Bragança,
aparentemente fosse incapaz de atitudes mais enérgicas a favor da pretensão da esposa, D.
Henrique continuaria a demonstrar sua franca preferência por ela durante seu reinado. Por outro
lado, a progressiva concentração de tropas espanholas na fronteira com Portugal demonstrava
efetivamente a fraqueza da solução jurídica tão valorizada pelo Cardeal Rei, que em sete de
fevereiro de 1579 finalmente convocou o Conselho de Estado para decidir sobre a reunião das
Cortes que julgariam a causa da sucessão. Poucos dias depois, as cartas de notificação aos
pretendentes começaram a ser expedidas, provocando imediatos protestos dos representantes
do rei espanhol, que citavam os Artigos de Lisboa de 1499 em defesa do direito de herança de

35
HESPANHA, Antônio Manuel. Os Áustrias em Portugal – Balanço Historiográfico. IN: Lusotopie. 1998. P.
146.
36
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal – Volume III: o Século de Ouro (1495-1580). Editorial
Verbo, 1978, p. 85; POLÒNIA, Amélia, 2005, op. cit, pps. 224 e 238.
37
CUNHA, Mafalda Soares da, 1993-1994, op. cit, p. 561.
38
COSTA, Alberto de Sousa. Dona Catarina, Duquesa de Bragança – Rainha de Portugal à face do Direito.
Lisboa: Fundação da Casa de Bragança, 1958, pps. 243 e 184; TEIXEIRA, José. O Paço Ducal de Vila Viçosa –
sua Arquitectura e suas Colecções. Lisboa: Fundação da Casa de Bragança, 1983, p. 65.
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Felipe II. Os Artigos tratavam, em resumo, das garantias de D. Manuel I perante o reino
português quando era presumível a herança espanhola de D. Miguel, seu filho com a
primogênita dos Reis Católicos. Resumidamente, o rei português assegurava que os principais
postos do reino – relativos à justiça, fazenda, cargos militares, entre outros - apenas seriam
ocupados por naturais, jamais por estrangeiros. Da mesma forma, as Cortes não poderiam
acontecer fora de território português, sempre havendo uma Casa real portuguesa
independentemente se seu monarca estivesse ou não em terras lusitanas – no caso em que ele
deveria ser acompanhado por conselheiros do reino.
De fato, estes passaram a ser estratégicos para a estratégia de defesa da candidatura
espanhola ao trono de Portugal na crise de 1578-80. A importância disto para Felipe II nos
parece evidente em tal contexto, tanto que ele se apresentaria como uma espécie de restaurador
deste plano manuelino de união das três coroas ibéricas, eventualmente frustrado pela morte de
D. Miguel em 150039. Neste sentido, a utilização dos Artigos para a pretensão espanhola não
apenas servia para fortalecê-la juridicamente perante a candidatura da duquesa de Bragança,
como também combater a resistência do reino português a um rei castelhano. Mas seria
realmente possível falar de um sentimento patriótico português na época? Neste ponto,
consideramos adequado adotar a perspectiva de Polónia; para esta autora, mais do que um
movimento nacionalista, existiria uma afirmação de anticastelhanismo tendo como base todo o
passado histórico português de lutas pela autonomia, desde a fundação do reino por D. Afonso
Henriques até a crise de 1383-8540. Este sentimento, porém, não seria tão defendido pela
aristocracia do Antigo Regime, que em princípio estaria propensa a julgar tais questões pela
lógica da linhagem, mas pelas camadas mais populares da sociedade. Torna-se fácil
compreender, então, um dos motivos pelo qual alta nobreza aderiu em pequeno número à
pretensão ilegítima de D. Antônio. Mesmo excluindo o aliciamento dos grandes do reino
português para a causa de Felipe II de Espanha41, a nebulosidade do nascimento do filho de D.
Luís ainda constituía-se um ponto de difícil superação42. De fato, a candidatura de D. Antônio
se baseava fortemente no direito de eleição do povo português em eleger seu monarca. Era
inegável a popularidade de D. Antônio entre o povo e os procuradores dos conselhos43, o que o

39
BOUZA, Fernando. Imagen y Propaganda – Capítulos de Historia Cultural del Reinado de Felipe II. Madrid:
Ediciones Akal, 1998, pps. 123-133.
40
POLÒNIA, Amélia, 2005, op. cit, p. 224.
41
COSTA, Alberto de Sousa, 1958, op. cit, p. 183.
42
D. Antônio supostamente nascera de uma amante cristã-nova de seu pai chamada Violante Gomes, que morrera
em um convento.
43
CUNHA, Mafalda Soares da, 1993-1994, op. cit, p. 560.
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colocaria em franca vantagem em relação aos demais candidatos se a solução de 1385 fosse
novamente adotada pelos portugueses.
De qualquer maneira, D. Henrique sequer considerava este sobrinho um candidato
legítimo à Coroa; desde a recusa de D. Antônio em prosseguir com a vida religiosa após a morte
de D. Luís em 1555, as relações entre ambos haviam sido profundamente prejudicadas. Após
as tentativas de D. Antônio para fazer valer a sua pretensão, D. Henrique mandaria desterrá-lo,
privá-lo de suas honras44 e prendê-lo45 – isto num contexto em que a demora do rei e das Cortes
- por fim reunidas em 1º de abril de 157946 - em escolher um sucessor já havia levado alguns
representantes da Câmara de Lisboa a defender a tese de eleição, para grande ultraje do rei.
Enquanto isso, Felipe II de Espanha, intransigente em seus direitos ao trono, continuava a cercar
o reino com suas tropas47. E seria neste contexto de crise e peste espalhando-se por Portugal
que as Allegações de Direito de D. Catarina, duquesa de Bragança, foram oficialmente
apresentadas perante o Cardeal Rei. Apresentaremos rapidamente agora seus pontos mais
importantes.
Principal obra de sustentação da defesa da pretensão de D. Catarina ao trono de Portugal,
Allegações de Direito é uma peça jurídica de 276 páginas, que foi oferecida a D. Henrique em
22 de outubro de 1579. Escrita em sua maior parte pelos doutores Félix Teixeira e Afonso de
Lucena, desembargadores da casa de Bragança, o documento é construído em torno de cinco
questões que qualificam a pretensão da duquesa de Bragança à Coroa, ao mesmo tempo em que
desqualificam os demais candidatos. A primeira questão discorre basicamente a sucessão por
eleição ou herança, acabando por concluir que enquanto existirem candidatos legítimos – como
no caso português – a primeira não pode ser aplicada. Descartada a tese de eleição, sobrariam
então duas maneiras de resolver a sucessão de D. Henrique - o direito sanguíneo e o direito
hereditário. Embora o texto reconheça que a princípio pode parecer que o primeiro é mais
adequado, até mesmo devido ao costume de sucessão recorrente, acaba por concluir que esse
princípio seria prejudicial ao direito real de dispor o reino à sua vontade, “alheando, diuidindo
em vida, ou per morte, & deixando ò livremente a quem quifeffem, como fe faz nas coufas
próprias & hereditárias”48. O direito hereditário seria uma resposta a tal impasse.

44
SERRÃO, Joaquim Veríssimo, 1978, op. cit. p. 82.
45
COSTA, Alberto de Sousa, 1958, op. cit, p. 234.
46
MACEDO, Newton de, 1936, op. cit. p. 96.
47
HERMANN, Jacqueline, 1998, op. cit, p. 172.
48
TEIXEIRA, Félix; LUCENA, Afonso de. Allegações de Direito, que se offereceram ao muito alto, e muito
poderoso Rei Dom Henrique nosso senhor na causa da sucessão destes reinos por parte da Senhora Dona
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De certa forma, o direito hereditário acaba por conter alguns argumentos do direito
sanguíneo em sua apresentação, uma vez que qualquer rei deveria legar a herança a algum de
seus parentes próximos. Procurando o bem do reino, porém, ele deve proceder como se este
fosse uma herança própria sua, o que já teria sido feito por vários reis ibéricos. A primeira
questão é concluída exatamente com a defesa deste princípio, discursando contra uma possível
limitação do poder dos reis de decidir sobre a sua sucessão, que também não deve ser pautada
pelas regras de heranças comuns ou por uma possível eleição prejudicial caso haja “parente
algum que defcenda do fangue Real”49. Tal conclusão apenas reforçaria a defesa do princípio
de herança, tão importante para a pretensão da sobrinha favorita do rei. Por outro lado, ela
também colabora para a candidatura do rei espanhol. Este obstáculo à consolidação jurídica da
candidatura da duquesa de Bragança é tratado na resposta da segunda questão, que discorre
sobre a possibilidade de sucessão feminina.
Curiosamente, contudo, as Allegações começam exatamente por negar tal direito.
Conforme o direito do reino, segundo os autores, as mulheres não poderiam ser admitidas em
cargos públicos ou jurídico-administrativos. Desta forma, seria lógico presumir que elas não
estariam habilitadas à sucessão do reino. Um governo feminino pareceria de fato prejudicial,
observando-se a natureza inferior de grande parte das mulheres, à maioria das quais faltaria
“fortaleza, conftancia, prudência & liberalidade”50. Além disso, poderia haver outros
inconvenientes que poderiam macular a nobreza da Casa Real, prejudicando inclusive os
herdeiros da Coroa. De qualquer forma, pelas leis e costumes da Península Ibérica, as parentas
do rei nem poderiam ser admitidas na sucessão, nem sequer as filhas do monarca. O documento
inclusive fornecem exemplos históricos da última afirmação, como o caso do rei D. Sancho II,
que foi sucedido pelo irmão D. Afonso III por não ter filhos legítimos, apenas filhas, e o caso
de D. Beatriz de Portugal, rainha de Castela, que não teria sucedido ao pai por sua natureza
feminina.
Por outro lado, como já demonstrado na resposta à primeira questão, a sucessão dos
reinos ibéricos era feita predominantemente por direito hereditário, e que este costume e direito
real era mais forte do que o direito sanguíneo normalmente aplicado em morgados e bens
vinculados. Além disso, era bastante conhecido por doutores vários textos que mencionavam

Catherina, sua sobrinha, filha do Inffante dom Duarte, seu irmão, a 22 de outubro de MDLXXIX. Almeirim, 1580,
p. 32. As citações aqui feitas estão em português do século XVI.
49
Idem, p. 53.
50
Idem, p. 55.
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rainhas e condessas proprietárias, além de outras dignitárias semelhantes, uma vez que leis e
costumes muito antigos previam a sucessão feminina nos reinos da Península Ibérica, como nos
casos da rainha Urraca de Castela e Leão, que sucedeu a seu pai, e a rainha Sancha de Leão,
que sucedeu a seu irmão, assim como, num exemplo mais pertinente, a rainha Isabel I de
Castela. Outros reinos também admitiriam a sucessão feminina, como no caso inglês, onde “a
Rainha dona Maria foccedeo a el Rey Eduardo 6”, sendo seguida após sua morte pela irmã
Isabel. Da mesma forma, D. Beatriz poderia ter sucedido a seu pai, D. Fernando I, se fosse
legítima, o que segundo o documento se provara posteriormente não ser o caso51, uma vez que
o casamento de seus pais fora anulado devido a um matrimônio anterior de sua mãe.
Portanto, segundo as Allegações de Direito, não haveria em Portugal ou nos reinos
ibéricos “lei, ou cuftume particular em contrario” da sucessão real por parte das mulheres52, até
mesmo porque no caso português o reino coubera primeiramente à D. Teresa de Leão e a seu
marido para ser herdado pelos descendentes – o que inclui as mulheres – da união de ambos.
Da mesma forma, o rei D. Afonso II incluíra a filha em seu testamento como possível sucessora,
além de D. Dinis e D. Fernando I. Isso não significaria, é claro, que as mulheres precederiam
aos homens em qualquer caso, mas apenas que elas seriam capazes para uma eventual sucessão,
apesar de todas as suas limitações, e isso tanto pelo direito comum e opiniões de doutores
quanto pelas leis e costumes da Península Ibérica53. O argumento que justificaria a exclusão
feminina da sucessão porque a linhagem até então fora transmitida por via masculina é
considerada, neste sentido, errônea, uma vez que as mulheres ainda carregavam sangue real de
qualquer maneira54. Como as três questões restantes provam que o benefício da representação
é juridicamente correto em casos de sucessão colateral, a filha do infante D. Duarte acaba por
emergir ao final do documento como sendo a candidata mais adequada para herdar a Coroa
portuguesa.
Ainda que beneficiada pelo favor do próprio rei, porém, a pretensão de D. Catarina
apenas enfraqueceu cada vez mais enquanto D. Henrique adoecia. Contudo, depois que o rei,
último dos filhos sobreviventes de D. Manuel I, faleceu em 31 de janeiro de 1580 e seu
testamento foi aberto, foi verificado que nele não havia nada de definitivo sobre a questão
sucessória portuguesa. De fato, a julgar-se pelo conteúdo do documento, o Cardeal Rei estava

51
Idem, p. 62 e pps. 77-78.
52
Idem, pps. 63-64.
53
Idem, pps. 67-68.
54
Idem, p. 75.
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muito mais preocupado com a salvação de sua alma com quem viria a sucedê-lo no trono55. Os
governadores que então assumiram, percebendo-se com os poderes bastante limitados diante de
uma iminente revolta popular, dissolveram as Cortes. Depois de algumas semanas de
paralisação, o prior do Crato foi aclamado por populares em 19 de junho, na cidade de
Santarém, sendo recebido sem resistências em Lisboa quatro dias depois56. Felipe II, declarado
rei por sentença dos governadores pouco menos de um mês após tais eventos, ordenou então a
invasão do reino. A pretensão dinástica de D. Catarina, retida na vila de Setúbal com seus filhos
– incluindo D. Teodósio, devolvido em março à Vila Viçosa, possivelmente como parte das
negociações entre Felipe II e o duque de Bragança para que a duquesa desistisse de sua
candidatura – devido ao avanço da peste, já não parecia ser a prioridade. Em 25 de agosto,
ocorreria a batalha de Alcântara nas intermediações de Lisboa, que marcaria o fim do curto
reinado do prior do Crato em Portugal e a ascensão de Felipe II. Após vencer o primo ilegítimo
no continente e obrigá-lo ao virtual exílio, o rei espanhol foi confirmado como monarca
português nas cortes de Tomar em abril de 1581 em meio à anuência silenciosa dos antigos
partidários de D. Catarina, que já fora a favorita do Cardeal Rei.
Contudo, apesar de toda esta aparente derrota da pretensão de D. Catarina, o novo rei se
relacionaria com a Casa de Bragança em tais termos que indicavam que a candidatura derrotada
da duquesa ainda representava uma ameaça. Além de todas as tentativas anteriores de nítido
suborno, que incluíam sugestões de matrimônio vantajosas para os filhos do casal ducal, Felipe
II ainda teria avançado com uma proposta de casamento em direção à própria duquesa após ela
enviuvar em 158357; se tivesse se realizado, este teria sido o quinto casamento do rei espanhol58.
D. Catarina, contudo, recusaria o pedido, assim como a ideia de tornar sua filha mais velha, D.
Maria, a rainha futura de Espanha e Portugal por uma união com o herdeiro de Felipe II. Isso
provavelmente teria se dado devido ao dote pedido: os próprios direitos da duquesa ao trono de
Portugal. A importância de uma renúncia formal da pretensão brigantina muito depois da

55
SOUSA, Antônio Caetano de. Historia genealógica da Casa Real Portugueza: desde a sua origem até o
presente, com as Familias ilustres, que procedem dos Reys, e dos Serenissimos Duques de Bragança: justificada
com instrumentos, e escritores de inviolável fé: e oferecida a El Rey D. João V. Disponível online em:
http://purl.pt/776. Acessada em 02/12/15. Pps. 434-441.
56
COSTA, Alberto de Sousa, 1958, op. cit, p. 323; PERES, Damião. 1580 – O governo do Prior do Crato.
Barcelos: Companhia Editora do Minho, 1929, pps. 24 e 30.
57
CUNHA, Mafalda Soares da. “Estratégias Matrimoniais da Casa de Bragança e o Casamento do Duque João
II”. IN: Hispania. LXIV/1, número 216, 2004. p. 52.
58
Depois de ficar viúvo respectivamente de 1) D. Maria de Portugal, 2) Maria I de Inglaterra, 3) Isabel de França
e 4) Ana de Áustria. Esta última falecera poucos anos antes, no auge da crise dinástica. Devemos lembrar que, a
essa altura, D. Catarina já passara dos quarenta anos; logo, a geração de herdeiros tornara-se improvável.
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derrota oficial torna-se, portanto, ainda mais marcante ao observar-se o quão Felipe II parecia
aparentemente bem assentado no trono português.
Desta forma, podemos concluir que, mesmo que a vitória de Felipe II ter sido de fato
consolidada por um meio político-militar, esta foi auxiliada em grande parte devido à resistência
do ambiente político-cultural europeu hostil da segunda metade do século XVI em relação à
possibilidade de uma rainha reinante e, por consequência, à solução jurídica tão defendida pelo
Cardeal Rei para possibilitar a sucessão de D. Catarina. Seria precipitado, contudo, negar sua
importância ou mesmo relevância após a morte de D. Henrique, uma vez que ela ajudaria a
possibilitar uma dissidência tranquila da Casa de Bragança durante o reinado dos três reis
Habsburgo em Portugal, embora fosse, de fato, a atividade dos antoninos que mais eficazmente,
durante boa parte deste período, representou uma resistência mais palpável. A rivalidade dos
Bragança em relação à casa reinante, portanto, pode ser considerada como sendo uma invenção
retrospectiva59. De qualquer forma, o que não pode ser negado é que a recusa perene de D.
Catarina em abdicar de seus direitos ao trono português até a própria morte em 1614 – indicando
até mesmo certa obstinação de sua parte quanto à solução jurídica - foi um dos instrumentos
mais importantes que permitiria que seu neto pudesse reivindicar com sucesso a coroa
portuguesa durante a Restauração de 1640

Referências bibliográficas

Fontes

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59
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63.
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parte da Senhora Dona Catherina, sua sobrinha, filha do Inffante dom Duarte, seu irmão, a 22
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Capítulos de livros
CUNHA, Mafalda Soares da. “A questão jurídica na crise dinástica” IN: MATTOSO, José (dir.)
História de Portugal. Terceiro Volume: No alvorecer da modernidade (1480-1620). Lisboa:
Editorial Estampa, 1993-1994.
SILVA, Ana Cristina Nogueira da Silva; HESPANHA, António Manuel. “A Identidade
Portuguesa” IN: MATTOSO, José (dir.) História de Portugal. Quarto Volume: O Antigo
Regime (1620-1807). Lisboa: Editorial Estampa, 1998.

Artigos de periódicos

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Áustria e as Mulheres no Governo”. IN: Revista do Instituto do Direito Brasileiro. Ano 2, no
10, 2013.

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Artigo

LEGISLAÇÃO, SEXUALIDADE E
PROSTITUIÇÃO: PRÁTICAS JURÍDICAS NO
PORTUGAL MODERNO
ALEXANDRE RODRIGUES DE SOUZA*

Resumo: este artigo analisa as deliberações jurídicas sobre as meretrizes e práticas ligadas a
sexualidade comercial do Portugal Moderno. A investigação tem como foco os textos
legislativos, procurando contextualizar as situações, personagens, práticas e captar as
transformações legais diante do assunto ao longo deste período. A narrativa explorada analisa
desde a legislação geral do reino como as Ordenações Afonsinas (1446), Ordenações
Manuelinas (1521) e o Código Filipino (1603) e inclui também alvarás, circulares e editais
régios que procuraram regular a prostituição em Portugal e suas possessões.

Palavras-chave: legislação, sexualidade e prostituição.

Abstract: This article analyzes the legal deliberations on harlots and practices related to
commercial sexuality of modern Portugal. This research focused on the legislation, seeking to
contextualize situations, characters, practices and raises the legal changes on the subject over
this period. The exploited narrative analyzes from the general law of the kingdom as the
Afonsinas Ordinances (1446), Manuelinas Ordinances (1521) and the Philippine Code (1603)
and also includes licenses, circulars and royal edicts that sought to regulate prostitution in
Portugal and its possessions.

Keywords: legislation, sexuality and prostitution.

No início da Época Moderna, a prática da prostituição foi submetida a várias formas de


fiscalização e repressão, através de sanções disciplinares da moralidade religiosa, da sociedade
e do Estado. Apesar do tom condenatório, a atividade do meretrício esteve historicamente
presente na Europa para atender as explosões demográficas dos séculos XVI e XVII, acolher
homens itinerantes à mercê de novas modalidades econômicas, como o mercantilismo, e
valorizar o papel do matrimônio, subtraindo das ruas e do espaço urbano as desordens e
violências decorrentes do enclausuramento de mulheres.1 Arlette Farge destaca “as cidades

Artigo recebido em 22 de outubro de 2016 e aprovado para publicação em 25 de novembro de 2016.

Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 62-77 | www.ars.historia.ufrj.br 62
integram a prostituição e a fornicação masculina como produtos naturais de que a sociedade
tem necessidade. Assim, será dada aos homens a virilidade que eles esperam e as mulheres
respeitáveis, mães e viúvas, serão preservadas do adultério pela institucionalização da
prostituição.”2
A historiografia tem apontado uma infinidade de práticas sociais associadas ao comércio
do corpo durante a Época Moderna. A atividade era variada e vai desde o trabalho das cortesãs
nas cortes, a alcoviteira que tem sua casa de prostituição, a mulher que usa a prática como
recurso temporário e ainda o meretrício artesanal ou familiar. A prática está inserida num
conjunto de manifestações sexuais como o amancebamento, libertinagem e sua relação com os
costumes morais.3
No entanto, a moralidade da contrarreforma caminhou radicalmente contra as atitudes do
comércio carnal. O processo de constituição da sexualidade moderna é iniciado em grande parte
pelo policiamento cristão dos pecados da carne.4 O meretrício sofreu enorme perseguição nesse
período, se comparado ao período da baixa Idade Média onde os prostíbulos eram mantidos
pela municipalidade. O momento é marcado pelo “fechamento dos bordéis municipais desde o
século XVI e marginalização das prostitutas”, com confisco rigoroso as “coabitações pré-
nupciais e do concubinato, tudo sob pena de excomunhão ou mesmo multas e prisão”. Soma-
se a isso o “enclausuramento dos adolescentes nobres e burgueses em colégios onde os
costumes são, pensa-se, mais facilmente supervisionáveis. Esta repressão, que pode ser
considerada um aspecto importante da Reforma católica na França começou, entretanto, antes
do Concílio de Trento e se prolongou até os séculos XIX e XX”.5

* Doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense/UFF, onde desenvolve pesquisa sobre a História
social da prostituição nas Minas do século XVIII, com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior/CAPES, sob orientação do Prof. Dr. Luciano Figueiredo. Agradeço aos alunos do curso de Estágio
Docente Seminário História da Cultura - GHT00570, oferecido no primeiro semestre de 2016 à Graduação de
História da UFF, que contribuíram nas discussões em sala de aula enquanto escrevia este texto. E-mail:
alexandrers@id.uff.br
1
FLANDRIN, Jean-Louis. O sexo e o ocidente. Evolução das atitudes e dos comportamentos. Trad. Jean Progin.
São Paulo Ed. Brasiliense, 1988; ROSSIAUD, Jacques. A prostituição nas cidades francesas do século XV. In:
Sexualidade Ocidentais. São Paulo, Brasiliense, 1986; FARGE, Arlette. A Prostituta – Dissidências. PERROT,
Michelle & DUBY, Georges. História das Mulheres no Ocidente – Do Renascimento à Idade Moderna, volume
3. Porto: Afrontamento, 1991;
2
FARGE, Arlette. A Prostituta – Dissidências. PERROT, Michelle & DUBY, Georges. História das Mulheres no
Ocidente – Do Renascimento à Idade Moderna, volume 3. Porto: Afrontamento, 1991. p. 462.
3
Hufton apresenta um panorama da prostituição na Europa do século XVI ao século XVIII, de um ponto de vista
social e econômico. Cf. Olwen Hufton. The Prospect Before Her: A History of Women in Western Europe, 1500
– 1800. Londres, 1996, p. 299-331.
4
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. 6ª ed., Rio de Janeiro: Graal, 1985, p.25.
5
FLANDRIN, Jean-Louis. O sexo e o ocidente. Evolução das atitudes e dos comportamentos. Trad. Jean Progin.
São Paulo Ed. Brasiliense, 1988, p. 10.
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Como o meretrício, os personagens envolvidos e suas práticas eram vistos pela legislação
portuguesa na Época Moderna? O texto apresentado é uma proposta de análise de fontes legais
que procura indicar características, a natureza das infrações apresentadas, como essas mulheres
e homens eram cobrados e ao mesmo tempo estigmatizados nesta documentação. Apesar de
fornecerem pouquíssima ou nenhuma evidência dos eventos mais cotidianos, esses documentos
permitem entender como os textos legislativos viam o tema e, ao mesmo tempo criavam
conjuntos de definições para controle dessa prática.

Práticas jurídicas no Portugal Moderno


Os discursos sobre a prostituição e sobre os delitos sexuais em geral não são de todo
uniformes e oscilam entre a repressão e a permissividade. No período medieval português,
tolerava-se melhor a prática da prostituição do que os comportamentos sexuais considerados
“irregulares”, destacou Maria Angela Beirante. As mulheres que faziam comércio de seu corpo
eram denominadas de “mulheres do Segre, putas, mundanais, mundanas, públicas, mancebas e
mancebas do mundo”. Eram mulheres de “costumes soltos, véus bem assafroados” e estavam
quase sempre envolvidas em conflitos. Os encontros fortuitos, que envolviam desonestas e
“prostitutas” não eram permitidos próximos ao lugar sagrado.6 Contudo, nos códigos
legislativos promulgados nos séculos posteriores o tom dominante foi de condenação expressa
de práticas associadas à prostituição ou ao seu favorecimento.
A tolerância em relação a prática durante a Idade Média foi reformulada em princípios da
Época Moderna. A partir do século XV aspectos relacionados com a mancebia e as meretrizes
que atuaram fora dela começam a ser regulados.7 As prostitutas que atuavam dentro dos bordéis
eram vistas com maior respeito. Enquanto aquelas que estavam nas ruas permaneciam à
margem do poder das autoridades. A prática clandestina será perseguida e penalizada e, além
disso, colocada jurídica e socialmente diferenciada.
Manter-se afastadas, evitar “conversação com as [mulheres] boas”, trajar “vestuário
adequado à profissão” e possuir “arruamento próprio da mancebia” foi o que determinou uma
lei outorgada em 1481, durante as Cortes de Évora, para o comportamento das meretrizes. Tudo
em “ordem e bom regimento” para que fosse garantido o bem comum.8 Em Lisboa, a mulher

6
BEIRANTE, Maria Angela. As mancebias nas cidades medievais portuguesas. In: A mulher na sociedade
portuguesa – visão histórica e perspectivas actuais, vol. II. Coimbra: 1986, p. 226-228.
7
ROSSIAUD, Jacques. A prostituição na Idade Média. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
8
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as maiorias na Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
1993, p. 123.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 62-77 | www.ars.historia.ufrj.br 64
que na corte ou na cidade” fosse pega e se “provasse que com o corpo ganhava dinheiro
publicamente, não se negando aos que a ela quisessem ir fora da mancebia, deveria ser presa e
degradada por quatro meses fora da cidade e pagasse mil reis para quem a acusasse”, declarou
o Alvará de 8 de Julho de 1521.9 Regular as mancebias é uma estratégia de dominar a violência
urbana e proteger a honra das famílias. A boa reputação estava também estava ligada ao gênero
do indivíduo. Para todas as mulheres, a honra era uma questão sexual.10
Em Portugal, “os juízes e corregedores do crime de Lisboa”, não deveriam receber
“querelas aos rendeiros nem alcaides da dita cidade, nem a outras pessoas, de mulheres
solteiras, por dizerem que ganhavam dinheiro fora da mancebia, ou que não estavam nela”.
Estas querelas não poderiam ser motivo de prisão nem vexame. Elas deveriam ser demandadas
“ordinariamente pela prisão e sendo condenadas se fizesse nelas execução, como de direito se
devia fazer”, determinou um alvará de junho de 1538.11 A mulher pública se caracteriza na
sociedade e na legislação dependendo do seu local de trabalho. Podia estar entre aquelas que
atuavam nos prostíbulos, em casas ou ruas. Esta caracterização estava diretamente ligada a
situação legal da mulher, que podia ser solteira, casada, viúva etc.12 Na base do comércio carnal
está a mulher desonesta. Há uma preocupação com a desordem e a corrupção moral que a figura
da prostitua causava. Porém, o texto legislativo citado não envolve a figura da alcoviteira, como
no caso das Ordenações.
Durante os últimos tempos da Idade Média surge uma maior animosidade em relação as
alcoviteiras, afirma Maria Beirante. No século XV aparecem também as primeiras medidas
contra a figura dos rufiões.13 Os textos das Ordenações Afonsinas apontam como eles são
responsáveis pela perdição das mulheres honestas, pois lhes “falecem as coisas necessárias para
governança de sua vida, lançam-nas à mancebia, pondo-as nas estalagens para publicamente
dormirem com os homens passageiros”. Ali essas mulheres “ganham no dito pecado”. E quando
o local já não é mais rendoso ou enfadonho, “levam-nas às Vilas, e Cidades, de que ouvem
maior fama, por ali mais ganharem, e ali as põem nas mancebias públicas” para ganharam o seu

9
Alvará de 8 de Julho de 1521: fl 11 do liv. 3. Disponível em:
http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=49&id_obra=60&pagina=409 Acesso em 12/08/2016
10
WIESNER, Merry E. Ideas and laws regarding women. In: Women and Gender in Early Modern Europe.
Cambridge University Press, 2000, p. 40.
11
Alvará de 12 de Junho de 1538: fl. 121 do liv. 3. Disponível em:
http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=49&id_obra=60&pagina=409 Acesso em 12/08/2016
12
O Título XIX traz: “Das mulheres solteiras que ganham com seus corpos”. Disponível em:
http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=49&id_obra=60&pagina=409 Acesso em 12/08/2016
13
BEIRANTE, Maria Angela. As mancebias nas cidades medievais portuguesas. In: A mulher na sociedade
portuguesa – visão histórica e perspectivas actuais. Vol. II. Coimbra: 1986, p.15.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 62-77 | www.ars.historia.ufrj.br 65
“torpe ganho”. Os rufiões tem papel de defender essas mulheres dentro da comunidade, pois os
mesmos tinham função de lhes “defender de quem quer que lhes queria fazer desafiado”.14
Alcoviteiras e “alcayotas” eram gravemente punidos segundo livro das Ordenações
Afonsinas. O Livro 5º Tit. 16 previa penas severas às mancebias. O texto descreve que “todo
homem, ou mulher, que em sua casa alcovitar mulher virgem, ou casada, ou religiosa, ou viúva,
que viva honestamente, ou consentir que em sua casa alguma dessas mulheres façam mal de
seus corpos, pela primeira vez sejam açoitados por toda a Vila”, percam seus bens e, em caso
de segunda vez, sejam penalizados com a morte. A pena capital vale também para homem ou
mulher que alcovitar mulher casada, ou for seu paniguado (hóspede). O mesmo para quem
“cristã para judeu, ou mouro”.15 No início do século XVI, as Ordenações Manuelinas (1521)
condenavam à morte “alcouuiteiras, e alcouuiteiros” e aqueles que “em sua casa consentem as
mulheres fazerem mal de seu corpo”. A pena valia tanto para homem como mulher, que
alcovitassem mulheres casadas. O mesmo para quem alcovitasse filha, ou irmã “daquele, ou
daquela com viver, ou for seu paniguado” ou ainda alcovitar cristã para mouro, ou judeu, “ou
qualquer outro infiel”.16 A pena capital continua com os mesmos casos de condenação da
Ordenação anterior durante a vigência do Código Filipino.17 Os ideais de constituição da
família cristã e de limpeza de sangue associados à honra são os principais estatutos defendidos
na legislação. O conceito de mulher prostituta se constitui em conexão com a ideia de
matrimonio. Quando se fala na presença de mulheres no mundo da prostituição refere-se a um
amplo espectro de personagens com condições pessoais e vitais muito diferentes. Os delitos
contra a moral sexual levam a mulher a fama pública, a infâmia, a perder a reputação social,
que a deixa numa situação de exclusão muitas vezes irreparável.18
A mulher casada, mulher virgem, religiosa, viúva e a cristã são figuras que aparecem em
todas as Ordenações portuguesas. Mas com o passar dos séculos a lei torna-se mais intolerante

14
Ordenações Afonsinas. Livro V. Tti. XXII: Dos refiaaes, que teem mancebas na mancebia prubica pollas
defenderem, e averem delas o que ganham no pecado da mancebia. Disponível em:
http://www.ci.uc.pt/ihti/proj/afonsinas/l5pg86.htm Acesso em 12/08/2016
15
Ordenações Afonsinas. Livro V, Tít.: Das alcoveiteiras, e alcayotes. Disponível em:
http://www.ci.uc.pt/ihti/proj/afonsinas/l5pg53.htm Acesso em 12/08/2016
16
Ordenações Manuelinas. Livro V, Tit. XXIX: Das alcouuiteiras, e alcouuiteiros, e dos que em sua casa
consentem as molheres fazerem mal de seu corpo. Disponível em:
http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/manuelinas/l5p87.htm Acesso em 12/08/2016
17
Ordenações Filipinas. Livro V, Tit. XXXII: Dos Alcoviteiros e dos que em suas casas consentem a mulheres
fazerem mal a seus corpos. Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1183.htm Acesso em
12/08/2016
18
HERNÁNDEZ, Margarita Torremocha. La prostitución através de la justicia penal: definición y control de la
moral sexual em la Edad Moderna. In: Juan José Iglesias Iglesias Rodríguez, Rafael M. Pérez García y Manuel
F. Fernández Chaves (eds.), Comercio y cultura en la Edad Moderna. Actas de la XIII Reunión Científica de la
Fundación Española de Historia Moderna, Sevilla, Editorial Universidad de Sevilla, 2015, p. 1456.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 62-77 | www.ars.historia.ufrj.br 66
e outras figuras femininas começam a surgir. Filha e irmã aparecem citadas a partir das
Ordenações Manuelinas, bem como alcovitar criadas.
Além das figuras citadas, as Ordenações Filipinas trazem a pena de degredo para aqueles
que alcovitarem algum parente ou dentro de quarto grau contado segundo Direito Canônico,
que estivesse de “portas a dentro” e ainda moças que estiverem sob alguma guarda. Em
Portugal, durante a Época Moderna, a pena de morte sempre foi prevista para a figura dos
alcoviteiros. Entretanto, as penalidades e a distinção dos indivíduos alcovitados tornam-se mais
diversificadas com o passar dos anos.
Uma outra característica das práticas ligadas à prostituição neste período é que a ela era
vista como uma desordem sobre a via pública.19 A publicidade dos casos despertava
preocupação dos legisladores. As outras penalidades aplicadas, quando não eram o caso de
morte, refletem o interesse de acabar com esta mazela dentro da comunidade. Os açoites pela
vila e o degredo foram sempre previstos nas três Ordenações como forma de punição. A única
diferença é a inserção do degredo para possessões ultramarinas no tempo da expansão
ultramarina.
As Ordenações Manuelinas estabelecem degredo em alguns casos para Ilha de São Tomé.
O tempo de desterro era de dez anos para quem alcovitasse criadas e para sempre nos outros
casos. Posteriormente o Brasil passa a ser o destino dos alcoviteiros, durante a vigência do
Código Filipino, definindo-se o período de dez anos para quem alcovitasse criados ou moça sob
guarda. Nos outros casos a penalidade também se agravava com exílio perpétuo. A repressão
reflete o interesse em distanciar a mulher pública de seu local de origem e acabar com o
escândalo no espaço onde ele é produzido, no intuito de acabar com a mazela social e a
desordem que ele causa.
Quanto ao lenocínio, as Ordenações distinguiam alcoviteiros e rufiões, sendo os primeiros
os que em sua casa acolhiam mulheres que se prostituíam e os segundos os que mantinham
“manceba theuda em mancebia, de que receba bem fazer, ou ella dele”. Os alcoviteitos eram
punidos de acordo com o estado civil da mulher que albergavam, por exemplo, se estas fossem
casadas a pena prevista era a morte. Já para os rufiões se reservava o degredo ao arbítrio régio
para o Norte de África (ou perpétuo para fora da vila e termo se fossem escudeiros) e uma multa
de mil reais para o delator. Nas Ordenações Filipinas, o Título XXXIII “Dos rufiões e mulheres

19
FARGE, Arlette; FOUCAULT, Michel. Le désordre dês familles: les lettres de cachet des archives de la Bastille.
Paris: Gallimard, 1982, p. 11-16.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 62-77 | www.ars.historia.ufrj.br 67
solteiras”20 defende que nenhuma pessoa tenha mancebia, sob pena de serem sejam açoitados
publicamente pelo lugar.
A pena tem diferença para homens e mulheres. Se for homem, era degradado para África,
e no caso da mulher iria para o Couto de Castro Marim. Cada um dos acusados deveria pagar
mil reis, para quem os acusar. Porém, “sendo ele Seudeiro,21 ou se tratar como tal, seja somente
degredado para fora da Vila”, além do pagamento de multas. Porém, “se as mulheres forem
culpadas neste malefício, antes de serem presas, se casarem, ou entrarem em Religião, se
guardará em todo, o que dissemos no Título 27: Que nenhum homem Cortesão, ou que costume
andar na Corte, traga nela barregão.”22
O princípio da lei é hierárquico tanto para os personagens envolvidos quanto para as
penalidades aplicadas. A gravidade dos casos estava diretamente associada às figuras femininas
alcovitadas sendo os castigos mais graves para aquelas que estivessem mais próximas do círculo
familiar ou ligadas ao mundo cristão, como é o caso de mulheres casadas ou católicas. Esta
preocupação reflete o interesse do Estado e da Igreja em preservar os valores da família e da
moral cristã.
O texto legislativo demonstra preocupação de distinção social caso algumas dessas
mulheres condenadas não fossem degredadas para a Ilha de São Tomé. As Ordenações
Manuelinas determinavam que essas mulheres se diferenciassem das outras com um sinal de
distinção e infâmia. Assim, em caso de alguma mulher for condenada por alcoviteira e, “em
alguma das penas sobreditas onde não haja de morrer, ou ir para Ilha de São Tomé, traga sempre
polaina23 vermelha na cabeça fora de sua casa, a ali ponha na sentença, e não a trazendo seja

20
Ordenações Filipinas. Livro 5 Tit. 33: Dos rufiães e mulheres solteiras. Disponível em:
http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1184.htm Acesso em 12/08/2016
21
“Os peões e villãos passavam a servir domesticamente a Cavalleiros, e como pagens de lança a levar-lhes os
escudos, e então erão Escudeiros, e talvez por bons serviços armados Cavalleiros; e podiam ser filhados em foros
de Escudeiros Fidalgos, e Cavalheiros Fidalgos.” Ordenações Filipinas. Livro 4 Tit. 92: Como o filho do peão
sucede a seu pai. Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l4p942.htm Acesso em 12/08/2016
22
O texto diz que neste caso as mulheres “serão relevadas das ditas penas, que pelo dito malefício mereciam. E
casando-se na Cadeia, depois de serem presas pelo dito crime, ou começadas de acusar, posto que soltas andem,
não serão por isso relevadas de haverem as penas contidas nesta Ordenação, sendo em o dito pecado convencidas”.
Código Filipino. Livro 5 Tit. 27: Que nenhum homem Cortesão, ou que costume andar na Corte, traga nela
barregão. Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1178.htm Acesso em 12/08/2016
23
Segundo dicionário Bluteau, trata-se de “meias de pano grosso, sem palmilhas, que se põem sobre meias, e
cobrem meio pé por cima do sapato” que as alcoviteiras não degradadas traziam na cabeça por infâmia.
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra: Collegio das
Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728. 8 v.. Disponível em: http://www.ieb.usp.br/online/index.asp Acesso em
15/08/2016
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 62-77 | www.ars.historia.ufrj.br 68
degredada para sempre para a Ilha de São Tomé”.24 A mesma sentença continuou valendo
durante as Ordenações Filipinas, quando os indivíduos eram exilados no Brasil. Trata-se de
uma necessidade de essas mulheres serem distinguidas publicamente.
A alcoviteirice era um negócio feminino, lembra Jacques Rosiaud.25 As acusações, os
autos dos processos e a própria linguagem comprovam o fato. Por outro lado, a função
simbólica do vestuário enquanto marca de distinção social estava amparada por questões
jurídicas, destaca António Manoel Hespanha em sua análise sobre as cores e as instituições de
ordem durante o Antigo Regime.26 Era também uma forma de reconhecimento dessas mulheres
dentro da comunidade.
No entanto, na Ilha de São Tomé, por exemplo, elas eram tratadas com rigor pela
legislação. Um alvará de 9 de novembro de 1559 diz que elas não deveriam viver “entre gente
honesta”, portanto poderiam ser “expulsas para fora das povoações, e condenadas, se voltassem,
em 10 cruzados, e no dobro se reincidissem; e degredadas para fora da Ilha, pela terceira vez, e
presas deviam ser conduzidas a este reino”. O texto ordena ainda “que estas mulheres vivendo
fora das povoações não admitam em suas casas, nem deem pousada a mercadores, ou
passageiros, aliás teriam as mesmas penas, e os que lá ficassem”. O Alvará proíbe também que
os capitães dos navios conduzam das ditas mulheres para o reino do Congo, ou quaisquer outras
terras dos gentios. Essas mulheres não deveriam usar saias e panos abertos por diante da cintura
para baixo, a modo das gentias, pois estariam sujeitas a multas.27
Em Portugal algumas resoluções como esta citada acima marcaram o caráter punitivo
para as prostitutas. Em um regimento assinado em março de 1603, os quadrilheiros, agentes
responsáveis pela segurança pública das cidades, seriam designados para identificação e
denúncia, junto das autoridades judiciais, de meretrizes, alcoviteiras e casas de alcouce. O texto
diz:
E assim terão muito cuidado de saber, se em suas quadrilhas alguns barregueiros
casados, ou casa de alcouce, ou alcoviteiras, ou feiticeiras, ou casas de tabolagem de

24
Ordenações Manuelinas. Livro 5 Tit.XXIX: Das alcouuiteiras, e alcouuiteiros, e dos que em sua casa consentem
as molheres fazerem mal de seu corpo. Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/manuelinas/l5p87.htm
Acesso em 12/08/2016
25
ROSSIAUD, Jacques. A prostituição, sexualidade e sociedade nas cidades francesas do século XV. In:
Sexualidades ocidentais. SP: Brasiliense, 1985, p. 97.
26
HESPANHA, Antonio Manoel. As cores e a instituição da ordem no mundo do Antigo Regime. In: FURTADO,
J. F. (Org.). Sons, formas, cores e movimentos na modernidade atlântica: Europa, Américas e África. São Paulo:
Annablume: Belo Horizonte: Fapemig; PPGH-UFMG, 2008, p.356. No caso das mulheres, “as libertas usavam
vestidos de cores diferentes das matronas: verde desmaiado ou amarelo, açafrão, mirtilo, ametista, cor de vinho ou
rosa, azeviche, castanho, amêndoa; enquanto que estas usavam tecidos mais caros, cor púrpura. Também o cabelo
negro as distinguia das prostitutas que usavam louro.
27
Alvará 9 de nov. de 1559.
http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=49&id_obra=60&pagina=411 Acesso em 12/08/2016
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jogo, ou em que se recolham furtos, ou se agasalhem ladrões, e homens de má fama,
ou vadios; para o que visitarão as estalagens, e tabernas de suas quadrilhas; e se vivem
em suas quadrilhas mulheres que para fazer mal de si recolhem publicamente homens
por dinheiro, ou que estão infamadas de fazer mover outras mulheres com beberagens,
ou por qualquer outra via (...).28

A lei é combinada ainda com o Alvará de 25 de Dezembro de 1608. Aqui se determina


que os corregedores dos bairros ficassem incumbidos de fazerem devassas. Segundo os juristas,
nos “ditos bairros há muitas mulheres solteiras, que vivem pública e escandalosamente entre
outra gente de bom viver, e com escândalo da vizinhança”. Estas mulheres “publicamente
vivem mal, ganhando por seu corpo, e não se negando a ninguém, contra a fórmula da lei”.
Logo, deveriam ser despejadas de suas casas fazendo-as “passar às ruas públicas, ordenadas
pela Lei”. Porém, “havendo outras mulheres, que não sejam tão públicas, e escandalosas, e que
tenham em seu viver mais resguardo, se dissimulará com elas”. Aqui há um claro princípio de
tolerância à prática da prostituição dentro do texto legislativo. O que se pode perceber é que o
problema estava na publicidade de prática. A cada seis meses os julgadores de bairro deveriam
fazer devassa também contra os “amancebados, assim homens, como mulheres, barregueiros
casados, e de suas barregãs, e de alcoviteiras, dos que dão, ou consentem alcouce em suas casas,
e dos que recolhem furtos, e das mães, que consentem as suas filhas usar mal de si (...)”.29
Apesar de a figura da prostituta provocar vivas reações por parte da Igreja e do Estado, neste
período a prostituição foi entendida “como mal absoluto, pecado sem remédio, crime ou mal
necessário – e, tantas vezes, tudo isto ao mesmo tempo”.30
A legislação que regula a prática da prostituição permanece nas mãos dos corregedores
de bairro e somente é alterada pelo Alvará de 25 de Junho de 1760, pelo qual se criou a
Intendência Geral da Polícia da Corte e Reino, pondo-se pelo § 4 do dito Alvará debaixo da
inspeção superior deste Supremo Magistrado todos os delitos, cujo conhecimento pela anterior
legislação pertencia aos Corregedores e Juízes de Crime dos bairros de Lisboa, e portanto a
prostituição pública debaixo da sua inspeção e superior fiscalização.31 Um Aviso de 27 de abril
de 1780 reafirmava aos ministros de bairros que enviassem os seus oficiais às casas de

28
Regimento de 12 de março de 1603.
http://www.governodosoutros.ics.ul.pt/?menu=consulta&id_partes=94&accao=ver&pagina=33 Acesso em
12/08/2016
29
Alvará de 25 de Dezembro de 1608.
http://www.governodosoutros.ics.ul.pt/?menu=consulta&id_partes=94&accao=ver&pagina=278 Acesso em
16/08/2016
30
FARGE, Arlette. A Prostituta – Dissidências. PERROT, Michelle & DUBY, Georges. História das Mulheres no
Ocidente – Do Renascimento à Idade Moderna, volume 3. Porto: Afrontamento, 1991, p. 462.
31
Alvará de 25 de junho de 1760. PORTUGAL. Leis, decretos etc.
[Alvará com força de Lei da criação da Intendência Geral da Polícia e seu Regulamento,de 25 de Junho de 1760].
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 62-77 | www.ars.historia.ufrj.br 70
mulheres prostitutas, e escandalosas para ver se encontram nelas alguns dos muitos
vadios, e ladrões, que presentemente grassam por esta capital, e que devem ser logo
presos como também às lojas de bebidas, tabernas e bilhares; e os vadios e prostitutas
que ali encontrarem devem ser presos logo e conduzidos à Casa Pia (…).32

A política de controle e higienização das cidades exige ações do poder público. Aos
confessores era ensinado a instruir seus penitentes que de maneira alguma passeassem em “ruas
infames”, muito menos frequentem “casas das meretrizes e do jogo, às tabernas e outros lugares
onde fisicamente se respira um ar pestilento ou infeccionado com exalações que se levantam
dos corpos minados de doenças, tais como o gálico, sempre existente nas mulheres lascivas”,
relata o médico Francisco de Melo Franco, na sua Medicina teológica, obra publicada em
1794.33 Alain Corbin, num estudo sobre a arqueologia dos cheiros, demonstra como a ciência
médica do período dá a entender que “certos indivíduos exalam um fedor animal”. Várias
categorias participavam desta visão, dentre elas a prostituta. Essa figura era aparentada ao lixo,
“e sua presença cessa assim que desaparece o dejeto”.34 No século XVIII, as prostitutas eram
entendidas como mulheres que pecavam contra o caráter, pois ao fazerem “venal a formosura
que a própria natureza lhes deu, ofendem a si próprias (...) prejudicam a pátria, por que
ordinariamente se fazem estéreis, e se são fecundas dão início a uma ignominiosa
posteridade...”, declarou um dicionário de época.35
Os textos demonstram uma ideal de decência e limpeza nos espaços urbanos. A legislação
procura preservar a honra e os bons costumes, combinado lei e moral. Era papel das autoridades
manterem a ordem e controlar os lugares. A libertinagem e a prostituição eram confundidas nas
tabernas e botequins, tanto em Portugal como no Brasi narrou Aurélio de Oliveira.36 Apesar de
não constituir um crime, num período onde a honra feminina estava marcada como uma cicatriz
no seu corpo e nas suas práticas, o exercício do meretrício não escapou aos olhares daqueles

- [Lisboa]: reimpresso na Officina de Miguel Rodrigues, [1760]. - 11 p. Disponível em:


http://purl.pt/17387/1/index.html#/3/html Acesso em 16/08/2016
32
Arquivo Nacional Torre do Tombo, Ministério do Reino, mç. 454, «Ofício de 30 de Dezembro de 1797» apud
BARREIROS, Bruno Paulo Fernandes. Concepções do corpo no Portugal do Século XVIII: sensibilidade, higiene
e saúde pública. Tese (Doutorado em História, Filosofia e Património da Ciência e da Tecnologia), Universidade
Nova de Lisboa, 2014, p. 228. “A Casa de Correção de Santa Margarida de Crotona, situada na Casa Pia do Castelo
de São Jorge, foi o lugar destinado à reclusão de prostitutas, meretrizes e outras mulheres acusadas de
comportamento escandaloso e desviante”, afirma o autor.
33
BNRJ. Manuscritos/IPM. 26,3, 25. FRANCO, Francisco de Melo. Medicina teológica ou súplica humilde, feita
a todos os senhores confessores, e diretores, sobre o modo de proceder com seus penitentes na emenda dos pecados,
principalmente da lascívia, cólera e bebedice. Lisboa: 1794.
34
CORBIN, Alain. Saberes e odores: o olfato e o imaginário social nos séculos XVIII e XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987, p. 186.
35
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez e latino. São Paulo: USP/Instituto de Estudos Brasileiros.
Disponível em: http://www.ieb.usp.br/online/index.asp Acesso em 15/08/2016
36
OLIVEIRA, Aurélio. A mulher no tecido urbano dos séculos XVII-XVIII. In: A mulher na sociedade
portuguesa, Visão Histórica e perspectivas atuais. Coimbra: Portugal. Actas, vol. 1, 1985, p. 310-333.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 62-77 | www.ars.historia.ufrj.br 71
que estavam preocupados com a constituição de uma moralidade cristã nos trópicos. No caso
da América portuguesa, os “incontinentes e fornicários vagos” deveriam ser admoestados,
segundo a legislação eclesiástica determinada pela Constituição do Arcebispado da Bahia,37
publicadas em 1707. O texto dizia ainda ser “justo, e decente, que se não admitisse aos
pecadores públicos” o sacramento da comunhão. Sendo eles “os públicos excomungados,
interditos, feiticeiros, mágicos, blasfemos, usurários, e públicas meretrices, e os que estão
publicamente em ódio, e outros quaisquer públicos pecadores”.38 As “pessoas leigas, homens,
ou mulheres convencidas de incontinentes, e fornicarias vagas” envolvidas no crime de
amancebamento deveriam ser “repreendidas, e advertidas paternalmente, e não se emendando”
seriam “admoestadas por termos, sem pena pecuniária, para que perseverando em seu pecado,
se proceda contra elas como for justiça”.39
No entanto, a Constituição do Arcebispado da Bahia considerava alcovitaria e o alcouce
crimes de “detestável, péssimo, e gravemente aborrecido por direito, por ser o princípio de toda
a desonestidade, pois por meio de pessoas, que alcovitam mulheres, e as dão em sua casa a
homens, perdem muitas a castidade, e honra”. E penalizava a

qualquer pessoa, seja homem, ou mulher, que for convencida de dar mulheres a
homens, consentindo, que com elas pequem em sua casa, ou em outra, ou que as
solicitar, ou induzir por qualquer via, que seja para pecarem com homens, pela
primeira vez seja presa, e condenada em dez cruzados, e dois anos de degredo para
fora do Arcebispado; e pela segunda vez se lhe dobrará a pena pecuniária, e do
degredo; e pela terceira será degradada por dez ano para Angola, ou S. Thomé, e fará
penitencia pública com carrocha [carroça] à porta da nossa Sé, ou da Igreja, em cuja
Freguesia houver cometido o delito; o que se entenderá, quando o alcouce não tiver
outra qualidade, e que agrave o delito.40

Caso se prove que a alcoviteira, ou o alcoviteiro deu ou solicitou “mulheres casadas,


donzelas, viúvas honestas de boa reputação, mulheres a quem servia, ou filhas, ou parentas, que
estiveram nas casas, ou debaixo da administração da dita alcoviteira, ou alcoviteiro; ou de que
alcovitou a sua própria mulher, ou consentiu se pecasse com ela”, nestes casos seja preso e
condenado com pena pecuniária de dez cruzados se for o caso de primeira vez e ainda em dois

37
Para redação deste texto uso a publicação de 1853: Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia feitas, e
ordenadas pelo Ilustríssimo, e Reverendíssimo Senhor D. Sebastião Monteiro da Vide : propostas, e aceitas em o
Synodo Diocesano, que o dito Senhor celebrou em 12 de junho do anno de 1707. S. Paulo : Na Typ. 2 de Dezembro
de Antonio Louzada Antunes, 1853. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/222291 Acesso em
20/08/2016
38
Constituição do Arcebispado da Bahia. Título XXIV. Das pessoas, que são obrigadas a receber o santíssimo
sacramento da eucaristia, e em que tempo, e a que pessoas se não pode, nem deva dar. p. 37.
39
Constituição do Arcebispado da Bahia. Título XXIII. Como se procederá contra as mulheres casadas, ou solteiras
reputadas por donzelas, sendo compreendidas em amancebamento, p. 342.
40
Constituição do Arcebispado da Bahia. Título XXV. Da alcovitaria, e alcouce. p, 344-345.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 62-77 | www.ars.historia.ufrj.br 72
anos de degredo para fora do Arcebispado. E repetindo o delito pela segunda vez, deveria ser
pago o dobro “e sendo pessoa capaz de pena vil fará penitencia pública (carroça à porta da nossa
Sé), e será degradada por cinco anos para Angola. Às pessoas de “maior qualidade” deveriam
ser acrescentadas “pena pecuniária, e degredo, conforme circunstancias, e escândalo que
houver.” Em caso de mais uma vez se repetir as penas se agravaram de acordo com qualidade
das pessoas, e também das circunstâncias do delito. Entretanto, se o crime não for consumado
“e que com efeito as mulheres solicitadas pecaram com homens, mas somente se provar, que o
alcoviteiro, ou alcoviteira deu os recados, e enganou, ou solicitou da sua parte, serão as penas
moderadas arbitrariamente”.41
O exemplo apresentado para o caso da América portuguesa demonstra também como o
caso da perseguição à prática do alcoviteirismo pode ser observado na legislação eclesiástica42
apontando certas aproximações entre o reino e suas possessões em relação ao ofício do
meretrício e, principalmente aos seus agenciadores, destacando uma clara atenção dedicada à
marginalidade da alcoviteira e da prostituta.

Considerações finais
As leis e as prisões não são registros acurados de transgressão sexual, mas fornecem
alguns indícios de como a sociedade sinalizava os seus limites de tolerância e o seu sentido de
identidade moral.43 Espaço de reafirmação das normas sociais e de mediação entre grupos ou
indivíduos em conflito, as práticas jurídicas representam um lugar de conceituação das normas
sociais. Figuras marginais como as prostitutas são conhecidas através dos indivíduos que mais
condenaram sua prática.
O texto procurou abordar as diversas situações legais das meretrizes, destacando como
desequilibro entre o mundo masculino e feminino também pautou as formas de repressão. Neste
período, as mulheres eram divididas em virtuosas e mal procedidas, com a linha divisória entre
esses dois grupos estreitamente ligados à sexualidade feminina. Em teoria, não havia áreas
cinzentas neste código moral. Logo, qualquer mulher que procurou o prazer sexual fora do
casamento era o mesmo que uma prostituta.44

41
Idem.
42
Cf. GOLDSCHMIDT, Eliana Maria Rea. Convivendo com o pecado: na sociedade paulista colonial (1719-
1822). São Paulo: Annablume, FAPESP, 1998, p. 62-64.
43
ROSSEAU, G. S. POTER, Roy. Submundo do sexo no Iluminismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 30
44
SOCOLOW, Susan M. Iberian Women in the Old World and the new. In: The Women of Colonial Latin America.
Cambridge University Press, 2000, p. 8.
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Uma das figuras mais reprimidas pelos códigos jurídicos é alcoviteira ou alcoviteiro. Os
textos legislativos pouco destacam a figura da prostituta em si, apenas seus “coadjuvantes” são
perseguidos. Alcoviteiras e alcoviteiros se dedicavam à tarefa de transformar mulheres honestas
em desonestas. Os textos apontam uma distinção legal entre prostituição e alcoviterice, embora
a base comum dessas práticas sejam os tratos ilícitos e o escândalo. No entanto, a percepção
social sobre essas figuras envolvidas com o exercício da prostituição é negativa para todos,
sendo sempre tratados como figuras marginais desta sociedade.
Compreender a prostituição, suas características, penas e personagens envolvidos através
da legislação significa também entender que o ofício dessas mulheres deve ser inserido em
condições específicas que a época moderna apresenta, já que o comércio carnal neste período
faz parte do contexto de controle e normalização social, perseguição dos pecados públicos e
institucionalização dos modelos familiares. Nesse sentido, a prostituição foi submetida a várias
formas de fiscalização e repressão, através de sanções disciplinares da moralidade religiosa, da
sociedade e do Estado. Logo, demonstrar a moralização legislativa em Portugal no que
concernia às meretrizes e agenciadores do trabalho sexual foi uma forma de entender como
prostituição se definia a partir de certas práticas e categorias que eram perseguidas neste
período.

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Artigo

O ESTIGMA DA “IMPUREZA” DOS CIGANOS E


OS MODELOS DE DISCRIMINAÇÃO NO
MUNDO PORTUGUÊS
NATALLY CHRIS DA ROCHA MENINI

Resumo: No presente artigo buscaremos refletir sobre a construção do estigma da impureza do


sangue dos ciganos no mundo português, atentando para os modelos discriminatórios aplicados
a este grupo étnico em Portugal durante o período moderno.

Palavras-chave: história cigana; etnicidade; discriminação.

Abstract: In this paper, we reflect towards the construct of the stigma of impurity of the gypsy
blood in the Portuguese world, attempting to the discriminatory models applied to this ethnic
group in Portugal during the Early Modern Age.

Keywords: gypsy history; ethnicity; discrimination.

Ciganos: uma origem controversa, variadas denominações


Sendo de cultura ágrafa, os ciganos não deixaram documentos escritos e, deste modo, a
origem dos ciganos e o porquê de sua dispersão pelo mundo são assuntos tão discutidos como
não resolvidos.1 No entanto, desde a constituição da ciganologia como área de conhecimento
na Europa, os estudos linguísticos, antropológicos e históricos apontam para a origem indiana
dos ciganos. Ainda assim, é importante destacar que as atribuições de uma origem hindu para
os ciganos não possuem comprovação empírica. Além disso, como bem destaca o historiador
Angus Fraser, as semelhanças linguísticas são indícios de que os ciganos viveram na Índia por
tempo prolongado e motivos ainda desconhecidos, mas não são suficientes para comprovar que
os mesmos são originários daquela região.2 Portanto, não há um consenso sobre a origem dos
Rom, ainda que a ascendência hindu seja a mais sugerida pelos pesquisadores.

Artigo recebido em 2 de março de 2016 e aceito para publicação em 20 de setembro de 2016.



Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. E-
mail: natallymenini@gmail.com.
1
PEREIRA, Cristina da Costa. Os ciganos ainda estão na estrada. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p. 19.
2
FRASER, Angus. The Gypsies. Oxford: Blackwell Publishers, 1992, p. 22. (tradução minha)
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Sem dúvida, a indefinição que sempre existiu em relação à origem dos ciganos
contribuiu para as variadas denominações que lhes foram atribuídas pelos europeus. De acordo
com estudos historiográficos, a entrada desses grupos na Península Ibérica se processou em
princípios do século XV e, por terem tido as suas origens associadas ao Egito, passaram a ser
denominados egitanos e gitanos pelos espanhóis. Por outro lado, os ciganos na Espanha
também foram considerados originários da Grécia e por essa razão foram chamados de “gregos”
na Constituição da Catalunha de 1512.3
Adolpho Coelho, em seu clássico estudo etnográfico sobre os ciganos em Portugal,
compartilha da tese de que os ciganos entraram no reino lusitano ainda no século XV pela
fronteira castelhana, especialmente pelas Estremadura e Andaluzia espanholas.4 Segundo
Coelho, com a entrada desses grupos em Portugal, os mesmos passaram a ser chamados de
ciganos em referência aos atsinganos da Grécia. O termo “cigano/a”, portanto, foi uma
categoria fabricada pelos portugueses no período moderno, tendo sido utilizada para designar
os grupos de nômades que pelas fronteiras espanholas entravam em caravanas no reino de
Portugal.

A constituição de uma identidade étnica cigana no mundo português


Enquanto segmento presente na sociedade portuguesa desde fins do século XV, os
grupos ciganos sensibilizaram o dramaturgo português Gil Vicente (1465-1536) e uma das
primeiras referências documentais sobre os mesmos em Portugal é justamente uma obra
literária vicentina. Trata-se de Farsa das ciganas, peça teatral produzida no ano de 1521,
representada “ao muito alto e poderoso rei Dom João Terceiro em sua cidade de Évora”.5
Cabe destacar que Gil Vicente produziu – com um espírito de independência
tipicamente renascentista – peças de crítica social, entre as quais, apresenta destaque é o
conjunto das “farsas vicentinas”. De acordo com Antônio Barreiros, o dramaturgo criou tipos
sociais bem definidos e, descontando mesmo os exageros e as pinturas caricaturais, a sociedade
portuguesa quinhentista ficou estampada nas obras vicentinas com certo realismo.6 Decerto,

3
COLEHO, Francisco Adolpho. Os ciganos de Portugal com um estudo sobre o calão. Lisboa: Imprensa Nacional,
1892, p. 164.
4
Ibidem, idem.
5
VICENTE, Gil. Farsa das ciganas. In: ____. Obras completas de Gil Vicente. Lisboa: Publicações da Biblioteca
Nacional, Tomo IV, 1928, p. 226.
6
BARREIROS, Antônio José. História da literatura portuguesa (século XII-XVI). Braga: Pax, 1973, pp. 348-355.
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através da visão satírico-dramática vicentina, podemos analisar como os ciganos passaram a ser
reconhecidos pelos portugueses de seu tempo.
As ciganas, protagonistas da farsa, são representadas como mulheres pedintes e
mentirosas que, andando sempre juntas a cantar e dançar, oferecem a leitura da sorte (la buena
ventura ou ainda la buena dicha como era conhecida na época) e o ensinamento de feitiços em
troca de recompensas e esmolas, ao passo que os homens ciganos aparecem como negociadores
duvidosos, propondo a barganha de cavalos. Acresce que todos os personagens da farsa estão
em constante mobilidade e caminham sempre em grupo:

Andemos irmãs e vamos a estas senhoras de grande formosura, veremos a sorte, a


buena ventura e elas nos darão as suas recompensas para que comamos (...) Bela
senhora, nos dê algo precioso para que eu diga a tua sorte só um pouquinho custa.
Mostre-me a mão e te direi uma bela buena ventura mostre-me a mão senhora formosa
(...).7
Qual de vós senhores, trocará um potro meu, criado na páscoa das flores e tenho dois
especiais cavalos bons, que tal? Senhores querem trocar um potro que tenho por
qualquer outro? Querem burricos? Comprem burricos pretos e garridos (...). 8

Conforme podemos verificar, as atuações dos personagens vicentinos apontam para


alguns conteúdos culturais compartilhados pelos ciganos Calóns, que estiveram ligados tão
somente à organização social desse grupo étnico no reino de Portugal ao longo da época
Moderna.
Sabemos que as atividades desempenhadas pelas mulheres e pelos homens ciganos se
configuraram como importantes sinais de diferença étnica. Os homens ciganos desempenhavam
atividades ligadas principalmente ao comércio de cavalos, que eram importantes tanto para
transportar os grupos em suas andanças como para as suas negociações. Com a prevaricação de
alguns indivíduos e, sobretudo, devido aos estereótipos que lhes foram conferidos, as atividades
dos ciganos foram constantemente postas sob suspeita, sendo comumente acusados de “ladrões
de cavalos” e de “trapaceiros”.
As mulheres ciganas desempenhavam atividades quiromantes, as chamadas buenas
dichas ou ainda buena ventura, conforme representado na farsa de Gil Vicente. A adivinhação
pelas linhas das mãos, prática milenar originária da Índia, era uma atividade exclusiva das
mulheres, que ofereciam a “leitura da sorte” em troca de recompensas dos não ciganos. De um
modo geral, as chamadas “feitiçarias ciganas” foram associadas a essas práticas quiromantes

7
VICENTE, Gil. Farsa das ciganas. In: ____. Obras completas de Gil Vicente. Lisboa: Publicações da Biblioteca
Nacional, 1928, pp. 226-227.
8
Ibidem, p. 226 (verso).
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realizadas pelas mulheres, classificadas pelas autoridades seculares e religiosas como
verdadeiras fraudes, distanciando assim os ciganos dos considerados feiticeiros confessos do
reino.
Foi o que se sucedeu com a cigana Garcia de Mira que, em 1582, foi processada pela
Inquisição em Portugal. De acordo com o processo, Garcia de Mira fez, entre outras coisas,
aparecer a figura de um defunto num papel posto em água. Segundo a confissão da cigana, a
mesma utilizou “pedra hume para brunir o papel”. Os inquisidores, não concebendo ligação da
ré com influências malignas, mas sim com artifícios fraudulentos, contentaram-se em
repreender a cigana, obrigando-a a restituir o dinheiro que a mesma recebeu para a prática do
embuste.9
Para Adolpho Coelho, os ciganos não constituíram um grupo rigorosamente perseguido
pelo Santo Ofício em Portugal porque, em caso de ameaças, aceitavam empregar os
sacramentos católicos e confessavam (conforme o fez Garcia de Mira) que as suas feitiçarias
eram apenas “embustes” sem nenhuma ligação com o sobrenatural. Ainda assim, sabemos que
os ciganos foram reconhecidos no reino luso pelas práticas das suas “ciganarias”, ou seja, por
seus “procedimentos considerados embusteiros e fraudulentos.”10
É inequívoco que as andanças dos ciganos, a prática das suas atividades quiromantes e
os seus estilos de vida nômades (tais como o hábito de residir em tendas e barracas) levantavam
a suspeita das autoridades régias portuguesas, sobretudo porque na época Moderna, quaisquer
pessoas ou grupo de pessoas cuja atitude ante o catolicismo não fosse clara, eram consideradas
ameaças para a manutenção da ordem social. A ordem social nesse sentido consistia de fato na
“desigualdade das coisas”11, prevendo para cada um o seu lugar numa rede hierarquizada de
posições. Sabemos que durante a época Moderna portuguesa o bom costume “deveria seguir
uma ética social que estava assentada na ideia de ordem e no respeito aos privilégios atribuídos
a cada categoria social”,12 ao passo que a moral configurava-se como um conjunto de valores e
de princípios norteados pela ortodoxia religiosa católica.
Assim, os ciganos foram desqualificados pelos cristãos na época Moderna, que
associaram o seu modo de vida a uma aparente “promiscuidade” uma vez que os mesmos

9
COELHO, op. cit., p. 177-179.
10
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez & latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus,
1712-1728, p. 311.
11
Ver: HESPANHA, Antonio Manuel. Imbecillitas: as bem-aventuranças da inferioridade nas sociedades de
Antigo Regime. São Paulo, Annablume, 2010.
12
LARA, Silvia. Fragmentos Setecentistas: escravidão, cultura e poder na América Portuguesa. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007, pp. 89-90.
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viajavam, conviviam e dormiam todos juntos em ranchos. Somado a isso, o seu estilo de vida
nômade estava alheio ao modelo de comportamento socialmente vigente no reino de Portugal,
tornando-se intolerável para as autoridades régias que, através da produção de diversos
decretos, alegavam que os comportamentos dos ciganos prejudicavam a manutenção da ordem
e dos bons costumes no reino:

Eu El Rey faço saber aos que este alvará virem que por se ter entendido o grande
prejuízo e inquietação que se padece no Reino com uma gente vagabunda que com o
nome de ciganos andam em quadrilhas vivendo de roubos enganos e embustes contra
o serviço de Deus e meu, demais das ordenações do Reino, por muitas leis e provisões
se procurou extinguir este nome e modo de gente vadia de ciganos com prisões e penas
de açoites, degredos e galés, sem acabar de conseguir; e ultimamente querendo eu
desterrar de todo o modo de vida e memória desta gente vadia, sem assento, nem foro,
nem Paroquia, sem vivenda própria, nem oficio, mandei que em todo Reino fossem
presos e trazidos a esta cidade (...).13

É importante destacar que o compartilhamento da fé católica, o uso da língua-mãe


portuguesa e a naturalidade lusitana constituíram uns dos principais critérios conformadores de
uma identidade coletiva portuguesa que se procurou afirmar durante a época Moderna. Tendo
em vista que a construção de uma identidade coletiva pressupõe a presença do “mesmo nos
outros”14, os indivíduos ou grupos que não atendem aos critérios de pertencimento passam a
ser diferenciados e estigmatizados em uma dada sociedade. E parece ter sido esse o caso dos
ciganos, mas também de outras minorias étnicas e religiosas que viviam nas fronteiras do reino
de Portugal e de suas colônias ultramarinas.
Sabemos que com a entrada dos grupos ciganos na península ibérica e a aquisição de
vocábulos novos a partir da interação com os espanhóis e portugueses, os ciganos acabaram
modificando o conteúdo linguístico da língua romani (aparentada ao sânscrito) e passaram a
engendrar um novo dialeto, o caló.15 Desse modo, o compartilhamento do dialeto caló
constituiu-se como uma das principais características dos ciganos enquanto grupo étnico, sendo
a pronúncia do caló um elemento fundamental na construção identitária desses sujeitos nos
domínios portugueses.
De acordo com Adolpho Coelho, os vocabulários presentes na língua dos ciganos
ibéricos sofreram forte influência das línguas espanhola e portuguesa, com o surgimento de

13
Alvará de 5 de fevereiro de 1649. In. Ius Lusitaniae: fontes históricas de direito português. Disponível em:
www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt.
14
ADESKY, Jacques. Pluralismo étnico e multiculturalismo: racismo e anti-racismos no Brasil. Rio de Janeiro:
Pallas, 2009, p. 40.
15
Ver: PEREIRA, Cristina da Costa. A língua cigana. In: _____. Os ciganos ainda estão na estrada. Rio de
Janeiro: Rocco, 2009, pp. 48-54.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 78-92 | www.ars.historia.ufrj.br 82
palavras derivadas tanto do espanhol como do português.16 Tendo em vista que a língua-mãe
portuguesa constituiu-se como um importante critério para a reafirmação de uma identidade
coletiva portuguesa no Império Português, a língua passou a ser um dos traços diferenciadores
entre os portugueses e os grupos étnicos que viviam em Portugal e em suas colônias
ultramarinas.
No caso dos ciganos, a língua romani, transformada em dialeto caló a partir do contato
com os povos ibéricos, porém incompreendida e recusada pela sociedade dominante, passou a
ser chamada de “geringonça” pelos dirigentes portugueses e pelas autoridades coloniais.
A indumentária peculiar dos ciganos também constituiu uma importante característica
identitária desse grupo e, tal como a língua, foi constantemente proibida pelas autoridades
régias que, através da promulgação de contínuas leis e decretos, ordenavam a proibição do uso
dos chamados “trajes ciganos” nos domínios lusos. No conjunto das leis e disposições régias
portuguesas destinadas aos ciganos não há informações detalhadas sobre as características
dessas vestimentas, mas, levando em consideração os registros etnográficos de Adolpho Coelho
sobre os ciganos que viviam no Alentejo no século XIX, podemos identificar algumas
características que nos aproximam desses trajes.
Em seu trabalho, Coelho nos informa que os ciganos “gostavam de vestuários ornados
(ainda que muito rudimentar), de colares de contas (as mulheres) e de abotoaduras metálicas,
mas deixavam cair em farrapos com facilidade esse vestuário”.17 Sendo assim, é provável que
os ciganos em Portugal enfeitassem as suas vestimentas com adornos e adereços peculiares. Tal
como desenvolve Silva Lara, a tradição legislativa portuguesa a respeito das roupas permitidas
às diversas categorias sociais iniciou-se no século XV e, desde os tempos iniciais, “a
necessidade de regular a questão caminhou junto com aquela de reprimir os excessos.”18 De
acordo com a historiadora, inúmeras prescrições eram gerais nessas leis, proibindo que qualquer
pessoa usasse, por exemplo, enfeites, botões, fivelas e fitas, estabelecendo assim critérios
visuais que permitissem marcar exclusividades para membros da corte ou da casa real.
Essas determinações acabavam tratando as pessoas de “inferior condição” de modo
mais coletivo, juntando gente diversa (como oficiais mecânicos, lacaios e negros) numa mesma
categoria.19 No conjunto das leis voltadas especificamente para os ciganos, a proibição dos

16
COELHO, op. cit., p. 14.
17
Ibidem, p. 195.
18
LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América Portuguesa. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007, p. 87.
19
Ibidem, p. 90.
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chamados “trajes ciganos” nos espaços de expressão portuguesa foi recorrente durante os
séculos XVI-XVIII. Se de um lado procurava-se reprimir os excessos, de outro as autoridades
esforçavam-se para enquadrar os ciganos nas normas portuguesas, buscando romper com a sua
identidade étnica.
Portanto, levando em consideração que as identidades étnicas e sociais são constituídas
e transformadas a partir das interações sociais e que a etnia resulta de um conjunto de
representações que os grupos interatuantes constroem, mantendo na fronteira identitária o “nós”
confrontado com o “eles”; os registros documentais da época nos ajudam a refletir sobre os
elementos constitutivos de uma identidade étnica cigana no mundo português.
Tal como formula o antropólogo Fredrik Barth, do ponto de vista analítico o conteúdo
cultural das dicotomias étnicas podem ser de duas ordens diferentes. A primeira ordem
corresponde aos sinais e signos manifestos, que conformam as “características diacríticas” que
os indivíduos exibem para mostrar a sua identidade (tais como vestimenta, língua e estilo de
vida). A segunda ordem corresponde àquilo que o autor denomina de “orientações valorativas
básicas”, ou seja, os padrões de moralidade pelos quais as performances dos indivíduos e grupos
são julgadas.20
Especialmente através de seus trajes particulares, do dialeto caló compartilhado, do
nomadismo e das ocupações tradicionalmente ligadas aos seus estilos de vida, os ciganos
conformaram a sua identidade étnica no mundo português. Nesse sentido, a constituição dos
ciganos como grupo étnico em Portugal se processou através de uma organização alheia à
morfologia social predominante, contribuindo para o estabelecimento de fronteiras (critérios
identitários) entre os que foram admitidos no reino de Portugal e os que se buscaram excluir e
estigmatizar ao longo de três centúrias.
Tal como formula Erving Goffman, o estigma pode ser compreendido como uma relação
entre atributo e estereótipo. Ao reexaminar os conceitos de estigma e de identidade social,
partindo de uma visão interativa, o sociólogo apresenta três tipos de estigma: as “deformidades
físicas”, as “culpas de caráter individual” e os “estigmas tribais de raça, nação e religião” que,
segundo o autor, “podem ser transmitidos através de linhagem e contaminar por igual todos os
membros de uma família.”21 Considerando esse terceiro tipo, podemos afirmar que os ciganos

20
BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: LASK, Tomke (Org.). O guru, o iniciador e outras
variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000, pp. 32-33.
21
GOFFMAN, Erving. Estigma – nota sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro:
Guanabara, 1988.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 78-92 | www.ars.historia.ufrj.br 84
constituíram um grupo étnico duplamente estigmatizado no mundo português, tendo sido
tachados como grupo de ladrões e de embusteiros em potencial, mas também como uma “raça
infectada”.
Desse modo, a constituição de uma identidade étnica cigana em Portugal foi
acompanhada de processos de estigmatização que incluíram os ciganos no rol dos considerados
criminosos e desviados sociais, mas também no rol dos grupos marcados como “raças infectas”
ou ainda como “grupos contaminados” no reino de Portugal. Sendo assim, cabe-nos questionar
sobre a construção do estigma da impureza dos ciganos e sobre as medidas discriminatórias que
lhes foram aplicadas em Portugal no período moderno.

A invenção da “impureza” dos ciganos no mundo português


Sabemos que a discriminação contra os judeus conversos na Península Ibérica deu início
aos estatutos de pureza de sangue. Estes foram institucionalizados com base na ideia de que os
judeus convertidos portavam uma mácula transmitida de geração em geração, tornando inaptos
também os seus descendentes. Conforme aponta Giuseppe Marcocci, a aplicação dos estatutos
de pureza de sangue ocasionou a exclusão oficial “dos cargos públicos, da carreira eclesiástica
e de diversas profissões qualquer súdito em cujas veias corressem sangue de judeus ou mouros,
mas também, já a partir de 1514, de ciganos e ameríndios, e de 1603, de negros e mulatos.”22
De acordo com a historiografia, o primeiro estatuto de pureza de sangue surgiu em 1449
na cidade de Toledo, prevendo que os judeus convertidos ao cristianismo ficassem a partir de
então inabilitados para ocupar qualquer cargo público. No Edito de Toledo, os judeus conversos
eram “acusados de indignidade em assunto de religião pelo fato de guardarem a Lei Mosaica e
se referirem a Jesus de Nazaré como um judeu, enquanto os cristãos o adoravam como o
verdadeiro Messias, o Salvador.”23 Para Maria Tucci Carneiro, os teólogos espanhóis nada mais
fizeram do que construir uma teoria que atribuía aos judeus conversos uma mácula maligna,
transformando os seus descendentes em indivíduos “malditos”, acusados, dentre outras coisas,
de contribuírem para o empobrecimento de nobres e cavalheiros cristãos e de praticarem
sacrifícios rituais em dias sagrados para os católicos.

22
MARCOCCI, Giuseppe. Escravos ameríndios e negros africanos, uma história conectada: teorias e modelos de
discriminação no império português (1450-1650). Revista Tempo, Niterói, v. 15, n. 30, p. 51, jul. 2010.
23
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O sangue como metáfora: do antissemitismo tradicional ao antissemitismo
moderno. In: ________. ; GORESTEIN, L. (Org.). Ensaios sobre a intolerância: inquisição, marranismo e
antissemitismo. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005, p. 345.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 78-92 | www.ars.historia.ufrj.br 85
Em Portugal, Dom Manuel ordenou no ano de 1497 o batismo forçado de todos os
judeus que habitavam o reino lusitano. Através de tal ordem o monarca introduziu os suportes
para completar o processo de conversão na península ibérica, por meio da imposição do
cristianismo como a verdadeira e única religião a ser permitida no reino, forçando assim a
conversão dos judeus. Já nas primeiras décadas do século XVI, período em que foi estabelecido
o Tribunal da Santa Inquisição em terras portuguesas, também se tornou progressiva a utilização
de estatutos de pureza de sangue em Portugal por parte das diversas instituições, o que
contribuiu para a formação de um complexo sistema de discriminação em face daqueles
estigmatizados como “grupos contaminados”.
No que tange a estrutura argumentativa, os considerados “limpos de sangue” integraram
a categoria dos homens brancos europeus, referenciados como propagadores da verdadeira fé
católica, aqueles cujos antepassados desde sempre transmitiram a reta disposição para receber
a mensagem de Cristo e, sobretudo, resistiram à mescla das gerações, mantendo o seu sangue
puro, autodenominando-se como “cristãos-velhos”. Desse modo, os diversos grupos que viviam
nos espaços de dominação ibérica, em especial os judeus conversos, chamados “cristãos-
novos”, mas também os judeus, mouros, ciganos, indígenas e negros foram estigmatizados
pelos cristãos-velhos como grupos portadores de sangue pecaminoso e, por isso, categorizados
como “grupos contaminados” ou ainda “raças infectas.”24
Assim, partindo da premissa de que os conversos (em especial os cristãos-novos) eram
falsos cristãos, somente “os fidalgos portugueses cuja origem remota contasse com a fama
pública de serem cristãos-velhos reuniam, em potencial, as condições de acesso aos títulos de
honra, tornando-se aptos a ocupar distintas posições sociais.”25 Tal como observa Larissa
Viana, a formulação de que a falsa crença dos judeus e mouros teria maculado o seu sangue
tornando incapazes os seus sucessores “desprezava o dogma da virtude regeneradora do batismo
e institucionalizava pela primeira vez na história europeia um modelo de discriminação baseado
na ascendência.”26
Sabemos que durante o século XVI os estatutos de pureza de sangue se difundiram pelo
clero regular, pelas Câmaras Municipais, por magistraturas e ordens militares portuguesas, de

24
É importante destacarmos que o conceito de raça empregado nos estatutos se tratava de um conceito associado
à linhagem, à ancestralidade e ao sangue, sendo distinto do conceito biológico herdeiro do cientificismo do século
XIX. Ver: FIGUEIRÔA-RÊGO, João. A honra alheia por um fio: os estatutos de limpeza de sangue nos espaços
de expressão ibérica (sécs. XVI-XVIII). Lisboa: Fund. Calouste Gulbenkian, 2011.
25
VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem. São Paulo: Editora Unicamp, 2007, p. 52.
26
Ibidem, idem.
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modo que a admissão nessas instituições só passou a ocorrer após o exame prévio da
ascendência dos candidatos. Assim, essas disposições segregacionistas provocaram
impedimentos de ordem étnico-religiosa, mas também de ordem aristocrática, uma vez que
também discriminavam aqueles que tivessem exercido trabalhos manuais ou que descendessem
de trabalhadores mecânicos. Desse modo, às restrições baseadas na ideia de “impureza de
sangue” somaram-se os impedimentos justificados pela “falta de qualidade”.27
Larissa Viana desenvolve que durante o século XVII ocorreu uma gradativa
aproximação entre as noções de “impureza” e “desonra” com questões mediadas pelas
categorias de cor atribuídas aos sujeitos e, desse modo, o estigma da impureza de sangue se
revestiu de novos significados especialmente em função da expansão da sociedade escravista
na América Portuguesa.
Conforme aponta a historiadora, diante das especificidades da experiência colonial, a
ideia de “impureza” dos mulatos atendeu aos novos desafios de produção de categorias de
classificação aplicadas às gerações de descendentes de africanos na colônia. Viana sugere que
a elaboração da ideia de “impureza de sangue mulato” teve como base uma combinação de
temas relativos à ascendência africana e à mestiçagem e uma das possíveis origens desse
estigma pode estar ligada ao mito da maldição de Cam derivado da narrativa bíblica contida no
Gênesis, na qual Cam após ver o seu pai Noé nu teria sido amaldiçoado com a servidão eterna
de toda a sua descendência. Deste modo, a noção de impureza dos mulatos pode estar associada
a essa ideia de maldição original lançada sobre os africanos e os seus descendentes,
conservando-se assim uma matriz de ordem religiosa na identificação da impureza dos mulatos,
antes já aplicada aos judeus e mouros e seus descendentes.28
No caso dos ciganos, torna-se necessário realizarmos um esforço para compreendermos
em que medida o estigma de “impureza de sangue cigano” construiu-se através de um
vocabulário cristão. Em “Origen y principio de la lengua castellana”, composto e publicado
pelo clérigo regular Bernardo Aldrete em 1674, os ciganos são definidos como “gente perdida,
vagabunda, inquieta e enganadora”. Ainda em suas definições o clérigo nos informa que no
reino espanhol acreditava-se que por terem os ciganos se recusado a abrigar o menino Jesus, a
sua mãe Maria e o seu pai José durante a peregrinação no Egito, “sobre eles foi lançada a

27
DUTRA, Francis. Ser mulato em Portugal nos primórdios da época moderna. Revista Tempo, Niterói, v. 15, n.
30, pp. 101-114, jan. 2011.
28
VIANA, op. cit., pp. 51-58.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 78-92 | www.ars.historia.ufrj.br 87
maldição de que eles e seus descendentes fossem peregrinos pelo mundo, sem terem alento e
nem morada permanente.”29
As informações sobre os ciganos em Portugal contidas no “Vocabulário Portuguez e
Latino” produzido pelo clérigo regular Raphael Bluteau aproximam-se muito daquelas
compostas no reino espanhol por Aldrete. Conforme consta no dicionário de Bluteau, no reino
de Portugal os ciganos eram concebidos como “vagabundos”, “ladrões” e “embusteiros” que se
fingiam originários do Egito e que foram “obrigados a peregrinar pelo mundo, sem assento,
nem domicílio permanente por serem descendentes dos que não quiseram agasalhar o divino
Infante, quando a Virgem Santíssima e São José peregrinaram com ele pelo Egito.”30
Decerto, os significados atribuídos ao termo “cigano” em ambos os dicionários
repercutem os valores dominantes na época Moderna, na medida em que as designações ali
contidas vão de encontro aos padrões de moralidade pelos quais os comportamentos dos grupos
ciganos foram julgados. Chama-nos atenção os esforços para atribuir aos ciganos características
negativas segundo uma cosmologia cristã, de modo que a condição de ser cigano foi muitas
vezes associada à ideia de maldição divina.
Certamente, a construção do “mito da rejeição ao menino Jesus” contribuiu para
justificar a inclusão dos ciganos no rol dos “grupos contaminados” previstos nos estatutos de
pureza de sangue, uma vez que a própria noção de “impureza” dos ciganos pode estar associada
a uma fabricada maldição original do grupo.
Essas questões ligadas à ideia de limpeza de sangue permearam as sociedades ibéricas
ao longo de três séculos, com ênfase entre a segunda metade do século XVI e a primeira metade
do século XVIII. Nos espaços de expressão portuguesa, o rigor da aplicação dos estatutos pelas
distintas instituições variou de acordo com as especificidades da época e conforme a posição
ocupada e a influência social do requerente e de sua família. Portanto, é importante destacarmos
que a mobilidade de indivíduos pertencentes aos ditos grupos contaminados no seio de circuitos
de poder mais amplos pôde ocorrer em determinadas circunstâncias em Portugal e em suas
colônias ultramarinas.
Conforme analisa Viana, muitos indivíduos experimentaram na colônia americana a
possibilidade de um processo de limpeza de sangue através de serviços prestados à Coroa, quer

29
ALDRETE, Bernardo. Origen y principio de la lengua castellana. Madri, Ano 1674, p. 32.
30
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez & latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus,
1712-1728, pp. 311-312.
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por atos de bravura ou por atos de lealdade.31 Com isso, lideranças indígenas aliadas aos
portugueses e mesmo alguns descendentes de africanos conseguiram contornar os estigmas
ligados à mestiçagem e conquistaram posições de prestígio na sociedade colonial. Também
Francis Dutra nos revela que vinte e sete homens receberam dispensa em Portugal por serem
mulatos e conseguiram ingressar com o título de “Cavaleiro” nas Ordens Militares Portuguesas
do Cristo, Santiago e de Avis durante o século XVII.32 No entanto, como procuraremos discutir
adiante, a atitude em relação aos ciganos que à época viviam em Portugal foi nitidamente mais
desfavorável.
Em meados do século XVII, durante a guerra da Restauração Portuguesa (1640-1668),
os estatutos de pureza de sangue já tinham atingido as diversas instituições do reino. Com o
elevado número de deserções no contexto da guerra de Restauração, tornava-se necessário
efetuar anualmente novos levantamentos de tropas. Nessas circunstâncias, embora a hostilidade
que se tinha pelos ciganos no reino de Portugal, as autoridades bragantinas recrutavam homens
de etnia cigana, de modo que muitos ciganos serviram no exército luso contra Castela.
Conforme ratificou D. João IV em seu alvará de 1647, as ordens de prisão e degredo
não deveriam ser aplicadas aos ciganos alistados que estavam “servindo nas fronteiras
procedendo na forma e lugar dos naturais” e, por isso, receberam licença dos Governadores das
Armas “para morarem em lugares e vilas do Reino naturalizados com cartas de vizinhança”.33
Portanto, as informações contidas no mencionado alvará nos levam a afirmar que os homens
ciganos que serviram no exército português durante a Restauração conseguiram autorização
para viverem no reino com as suas famílias.
No entanto, se a prestação de serviços à Coroa durante a guerra possibilitou a esses
homens ciganos a autorização para se fixarem no reino, as suas chances de conseguirem
ingressar em carreiras militares continuaram bastante adversas.
Em 12 de agosto de 1643, o Conselho de Guerra da Monarquia Portuguesa examinou
uma petição enviada por Fernando de Almeida, cigano. O requerente pedia ao rei a autorização
para levantar em Portugal uma companhia de cinquenta soldados ciganos e, em troca, solicitava
a patente de capitão.34 Durante o debate que ocorreu em Lisboa, dois membros do Conselho de

31
VIANA, op. cit., 62.
32
DUTRA, op. cit., 101-114.
33
Alvará de 1647. In. Ius Lusitaniae: fontes históricas de direito português. Disponível em:
www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt.
34
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Conselho de Guerra, Consultas, Maço 3, Caixa 28, nº 119 – Sobre
Francisco de Almeida, cigano.
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Guerra chamados Álvaro de Sousa e Fernão Teles ressaltaram as qualidades militares e a
coragem de Francisco de Almeida, declarando-se favoráveis ao pedido do cigano aspirante a
capitão. Os fidalgos também justificavam o seu parecer favorável ao requerimento de Francisco
de Almeida argumentando que a formação de uma companhia de ciganos seria interessante
“porque mais serviços farão os ciganos a V. Majestade no exército que espalhados pelo reino
roubando os vassalos de V. Majestade e na companhia farão este dano aos inimigos”.
Desse modo, as afirmações dos membros do Conselho de Guerra indicam que os
soldados ciganos que prestavam serviços à Coroa continuavam a ser estigmatizados “como um
grupo em que todos os indivíduos que o compunham partilhavam das mesmas características
morais negativas, as quais se perpetuariam de geração em geração.”35 Nesse sentido, era a
suposta predisposição natural para o roubo que levava Álvaro de Sousa e Fernão Teles a
acharem interessante a formação de uma companhia formada por ciganos para “saquear”
Castela. Na reunião do Conselho, o bailio votou contra o requerimento de Francisco de
Almeida, justificando que se deveria evitar “os danos e roubos que farão em qualquer lugar em
que entrem.”36 Em 17 de agosto de 1643 o monarca D. João IV rejeitou o pedido do cigano que
poderia ter se tornando capitão do exército português se não fossem os estigmas que recaíam
sobre o grupo étnico ao qual pertencia.
Outro caso interessante esteve presente no discurso de Tomé Pinheiro da Veiga,
procurador da Coroa, que em 1646 se pronunciou em defesa dos descendentes de Jeronimo da
Costa, um soldado cigano que combateu nas tropas bragantinas nas fronteiras do Alentejo e que
veio a falecer em 1644, na batalha do Campo do Montijo “morto com muitas feridas, pelejando
sempre muito esforçadamente”.37 Como retribuição pelos serviços prestados, a esposa de
Jeronimo e os seus filhos obtiveram a permissão do monarca D. João para morarem no reino de
Portugal, desde que o seu filho homem iniciasse como oficial mecânico.
Contrariando-se ao despacho, Tomé Pinheiro da Veiga argumentou que os serviços
prestados por Jeronimo da Costa eram merecedores de que a sua família herdasse os soldos e
de que o seu filho homem fosse feito cavaleiro fidalgo, defendendo ainda que “nunca tenham
os seus descendentes ofícios mecânicos e sirvam sempre na guerra e milícia nos postos de

35
GOMES, João Pedro. Redefinições identitárias, xenofobia e exclusão racial em Portugal em meados do
seiscentos. Paris: Centre de Recherches sur le Brésil Colonial et Contemporain, 2012, p. 23.
36
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Conselho de Guerra, Consultas, Maço 3, Caixa 28, nº 119 – Sobre
Francisco de Almeida, cigano.
37
Documento disponível em: COELHO, Francisco Adolfo. Apendice documental. In: ____. Os ciganos de
Portugal com um estudo sobre o calão. Lisboa: Imprensa Nacional, 1892, p. 240.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 78-92 | www.ars.historia.ufrj.br 90
soldado e presídios.”38 Mas, embora a defesa do procurador da Coroa, o monarca optou por
manter o despacho, negando qualquer possibilidade de obtenção de títulos aos descendentes do
soldado cigano.
Certamente esses acontecimentos contribuem para demonstrar que durante a época
Moderna as chances de ascensão social de indivíduos ciganos no reino de Portugal foram muito
limitadas. Portanto, no presente trabalho procuramos enfatizar que os ciganos conformaram um
grupo étnico discriminado no mundo português e mesmo os homens ciganos que conseguiram
obter licença para morarem no reino com as suas famílias (através da prestação de serviços
militares) tiveram restrições para ingressarem em ordens militares ou receberem patentes. Os
ciganos, portanto, incluíram os chamados “grupos contaminados” nos domínios lusos ao passo
que também integraram a categoria dos indesejáveis do reino de Portugal, sofrendo medidas
discriminatórias e penas de degredo ao longo de todo o período moderno.

Referências Bibliográficas
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Rio de Janeiros: Pallas, 2009.
BARREIROS, Antônio José. História da literatura portuguesa (século XII-XVI). Braga: Pax,
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iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000.
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. O sangue como metáfora: do antissemitismo tradicional ao
antissemitismo moderno. In: _____; GORESTEIN, L. (Org.). Ensaios sobre a intolerância:
inquisição, marranismo e antissemitismo. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005.
COELHO, Francisco Adolpho. Os ciganos de Portugal com um estudo sobre o calão. Lisboa:
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Niterói, v. 15, n. 30, jan. 2011.
FRASER, Angus. The Gypsies. Oxford: Blackwell Publishers, 1992.
FIGUEIRÔA-RÊGO, João. A honra alheia por um fio: os estatutos de limpeza de sangue nos
espaços de expressão ibérica (sécs. XVI-XVIII). Lisboa: Fund. Calouste Gulbenkian, 2011.
GOFFMAN, Erving. Estigma – nota sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de
Janeiro: Guanabara, 1988.
GOMES, João Pedro. Redefinições identitárias, xenofobia e exclusão racial em Portugal em
meados do seiscentos. Paris: Centre de Recherches sur le Brésil Colonial et Contemporain,
2012.
HESPANHA, Antonio Manuel. Imbecillitas: as bem-aventuranças da inferioridade nas
sociedades de Antigo Regime. São Paulo: Annablume, 2010.

38
Ibidem, idem.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 78-92 | www.ars.historia.ufrj.br 91
LARA, Silvia. Fragmentos Setecentistas: escravidão, cultura e poder na América Portuguesa.
São Paulo, Companhia das Letras, 2007.
MARCOCCI, Giuseppe. Escravos ameríndios e negros africanos, uma história conectada:
teorias e modelos de discriminação no império português (1450-1650). Revista Tempo, Niterói,
v. 15, n. 30, jul. 2011.
PEREIRA, Cristina da Costa. Os ciganos ainda estão na estrada. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.
VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem. São Paulo: Editora Unicamp, 2007.
VICENTE, Gil. Obras completas de Gil Vicente. Lisboa: Publicações da Biblioteca Nacional
Tomo IV, 1928.

Documentações
Alvará de 1647. In. Ius Lusitaniae: fontes históricas de direito português. Disponível em:
www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt.
Alvará de 5 de fevereiro de 1649. In. Ius Lusitaniae: fontes históricas de direito português.
Disponível em: www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt
Sobre Francisco de Almeida, cigano. In. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Conselho de
Guerra, Consultas, Maço 3, Caixa 28, nº 119.
COELHO, Francisco Adolfo. “Apendice documental” In. COELHO, Francisco Adolfo. Os
ciganos de Portugal com um estudo sobre o calão. Lisboa: Imprensa Nacional, 1892

Dicionários
ALDRETE, Bernardo. Del origen y principio de la lengua castellana. Madri, ano 1674.
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez & latino. Coimbra: Collegio das Artes da
Companhia de Jesus, 1712-1728, pp. 311-312.

Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 78-92 | www.ars.historia.ufrj.br 92
Artigo

AS MINAS DE PARANAGUÁ E A
RESTITUIÇÃO DA COMPANHIA DE JESUS A
SÃO PAULO (1649-1653)
LUIZ PEDRO DARIO FILHO

Resumo: A década de 1640 foi período de constantes conflitos dentro de São Paulo. Optando
por manter a expulsão dos jesuítas da vila – que ocorreu em julho de 1640 – os colonos
contrariavam a decisão oficial régia, promulgada através de alvará no ano de 1643. Com isso
famílias paulistas, inacianos e autoridades coloniais se envolveram em constantes embates
sobre a questão. No centro do imbróglio estava o debate em relação ao acesso a mão de obra
indígena aldeada. Foi apenas com as notícias de descobrimentos de ouro nos sertões do
Paranaguá, em 1649, que a Coroa passa a ter interesse mais ativo em relação a região, intervindo
de forma mais direta no assunto e sendo decisiva para a restituição do Colégio jesuítico em
maio de 1653.

Palavras-chave: Bandeirantes paulistas; Companhia de Jesus; Minas de Paranaguá.

Abstract: The 1640s was a period of constant conflicts within São Paulo. Opting to maintain
the expulsion of the Jesuits from the village – which took place in July of 1640 – the settlers
contradicted the royal official decision, promulgated by license in the year of 1643. Therewith,
families of paulistas, ignatians and colonial authorities have engaged in a constant battle on that
matter. In the center of this imbroglio was the debate regarding access to the indigenous labor
force. It was only with the news of gold discoveries in the backlands of Paranaguá, in 1649,
that the Crown begins to have more active interest in that region, intervening more directly in
that subject and being decisive for the refund of Jesuit College in May of 1653.

Keywords: Bandeirantes paulistas; Societyof Jesus; Paranaguá’s mines.

A expulsão dos jesuítas da vila de São Paulo, em julho de 1640, é assunto continuamente
revisitado pela historiografia bandeirante. Antes vista como manifestação da autonomia e

Artigo recebido em o1 de março de 2016 e aprovado para publicação em 21 de março de 2016.


Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense. E-mail:
lpdariofilho@yahoo.com.br.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 93-111 | www.ars.historia.ufrj.br 93
independência paulista,1 a destituição do colégio jesuítico é hoje compreendida como produto
da progressiva disputa pela mão de obra indígena aldeada entre jesuítas e colonos 2. Já a
restituição do colégio jesuítico, em maio de 1653, recebeu pouca atenção historiográfica.
Publicada em meados do século XIX,3 a interpretação do genealogista Pedro Taques teve
vitalidade no círculo de historiadores do tema durante todo o século XX. Taques argumentava
que o retorno dos inacianos se devia exclusivamente à articulação de João Pires e Fernão Dias
Paes Lemes, ambos fiéis à ordem religiosa, que intervieram em favor dos padres.4 Em análise
sobre a restituição do colégio jesuítico a vila de São Paulo, John M. Monteiro enfatiza que as
condições estabelecidas para o regresso dos jesuítas eram-lhes desfavoráveis,5 pois
enfraqueceram o poder que a Companhia de Jesus dispunha para coibir a escravidão ameríndia
no planalto. Logo, mesmo aceitando o reestabelecimento dos inacianos na vila, seu retorno era
marcado pela demonstração de força dos seus moradores, perdendo os padres “o controle dos
aldeamentos, e sua voz de oposição ao cativeiro indígena fora praticamente emudecida”.6
Pretendo, ao longo deste artigo, complexificar a abordagem em relação a este episódio.
Como veremos – apesar de o conflito envolver diretamente, e primordialmente, as
animosidades entre paulistas e jesuítas – existia outro ator que passaria a se interessar
diretamente pelo assunto, a Coroa lusa. A partir da circulação de informações sobre o
descobrimento de ouro nos sertões do Paranaguá em 1649, o embate pelo regresso dos padres
da Companhia de Jesus a São Paulo passou a ser do interesse da recém-restaurada monarquia
portuguesa, que planejava ter maior controle sobre as futuras minas. D. João IV, alçado ao trono
em dezembro de 1640, já se posicionava oficialmente, desde 1643, favorável à restituição do
colégio jesuítico da vila de Piratininga. No entanto, somente a partir de 1649 veremos o

1
MAGALHÃES, Basílio de. Expansão geográfica do Brasil colonial. 4ª Ed. São Paulo: Ed. Nacional. INL, 1978,
p. 59 e TAUNAY, Affonso de E. História geral das bandeiras paulistas. São Paulo: Museu Paulistas, 1948, Vol.
3, pp. 20-28.
2
MONTEIRO, John M. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia
das Letras, 1994. pp. 141-145.
3
Sua obra, Nobiliarquia paulistana, histórica e genealógica, começou a ser escrita em 1742 mas foi publicada
muito posteriormente, apenas no século XIX, pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Ver: LEME, Pedro
Taques de Almeida Paes. Nobiliarquia paulistana, histórica e genealógica. 5ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: Edusp, 1980. 3 tomos.
4
LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Nobiliarquia paulistana, histórica e genealógica. Tomo II, pp. 88-90 e
TAUNAY, Affonso de E. História Seiscentista da vila de São Paulo. São Paulo: Tipografia Ideal, 1928. Vol. 2,
pp. 184-186.
5
Os jesuítas teriam que abandonar o litígio contra a expulsão e desistir de indenizações em relação aos danos
sofridos. Em relação à questão indígena, deveriam abdicar do breve de 1639, que colocava livres de todos os índios
da colônia, e de qualquer outro instrumento de defesa da liberdade ameríndia. Os termos da restituição do colégio
jesuítico se encontram em: Registro Geral da Câmara Municipal de São Paulo. São Paulo: Publicações do Arquivo
Municipal de São Paulo, Divisão do Arquivo Histórico, 1562-1822, Vol. 2, pp. 373-374.
6
MONTEIRO, John M. Negros da Terra. p. 147.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 93-111 | www.ars.historia.ufrj.br 94
monarca se envolver de forma mais direta no equilíbrio político do planalto paulista, intervindo
a favor da restituição do colégio jesuítico na região.

A Restauração Portuguesa e os seus reflexos no planalto paulista

A tão aclamada Restauração portuguesa causou resistências e animosidades. O triunfo


“dellevantamiento separatista luso desató odios y fidelidades casi a la par, em Portugal y em
CastilIa, y, en no pocos espíritus, dudas hasta el final de la guerra, allá por 1668”.7 O ultramar
luso, que foi alvo de diversos investimentos por parte da Coroa espanhola durante o período da
União Ibérica8, presenciou dezenas de revoltas entre as décadas de 1640 e 1680.9 Não eram
todos os grupos, nas diversas vilas e cidades imperiais, que viam com bons olhos o abrupto
rompimento com a monarquia católica.10 Se a insatisfação com a política fiscal de Olivares,
principal motivo da sublevação liderada pelos Bragança,11 possuía legitimidade no Reino,12
esse ressentimento não se generalizara pelos diversos núcleos coloniais presentes nos

7
VALLADARES, Rafael Ramírez. El Brasil y las Indias españolas durante la sublevación de Portugal (1640-
1668).Cuadernos de Historia Moderna, No. 14, Madrid: Editorial Complutense, 1993. pp. 151-172.
8
O Brasil, como região geograficamente importante para a defesa natural das minas de Potosí frente a cobiça das
monarquias europeias, ao ser inserido dentro da esfera de influência de Madrid conheceu diversos
redirecionamentos na sua formação política e econômica. Foi o caso da maior intervenção dos governadores-gerais
dentro das capitanias e a intensificação do controle exercido sobre a taxação do açúcar produzido. Para maiores
detalhes, ver: MARQUES, Guida. O Estado do Brasil na União Ibérica. Penélope. Fazer e desfazer a história. n.
27, 2002.
9
FIGUEIREDO, Luciano. O império em apuros: notas para o estudo das alterações ultramarinas e das práticas
políticas no império colonial português, séculos XVII e XVIII. In: FURTADO, Júnia (org.). Diálogos oceânicos:
Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império Ultramarino Português. Belo Horizonte:
HUMANITAS, 2001, pp. 197-254.
10
Ana Paula Torres Megiani aponta para o conjunto de realidades plurais e ambíguas que existiam nos diversos
núcleos coloniais do Brasil no período. Na repartição sul existiam profundos laços mercantis, envolvendo comércio
e contrabando, que ligavam colonos das Américas espanhola e lusitana. Já nas capitanias do Norte, a principal
preocupação era com a defesa do território. Essa conjuntura produziu diversas e distintas reações ao rompimento
institucional com a Monarquia espanhola. Ver: MEGIANI, Ana Paula Torres. O Brasil no contexto da Guerra de
Restauração Portuguesa (1640-1668). In: MEGIANI, Ana Paula Torres; PÉREZ, José Manuel Santos; SILVA,
Kalina Vanderlei. (Org.). O Brasil na Monarquia Hispânica (1580-1668) Novas interpretações. São Paulo:
Humanitas, 2014, p. 185.
11
A política implementada pelo Conde-Duque de Olivares para romper com a insolidariedade fiscal dos reinos
que compunham a Monarquia espanhola encontrou fortíssimas resistências. Ver: BERNAL, Antonio Miguel.
España, proyecto inacabado. Costes / benefícios del Império. Madrid: Fundación Carolina – Centro de Estúdios
Hispânicos e Iberoamericanos - Marcial Pons, 2005. Para um olhar mais atento para o caso português dentro do
Império espanhol: ÁLVAREZ, Fernando Bouza. Portugal no Tempo dos Filipes. Política, cultura, representações
(1581-1668). Lisboa: Cosmos, 2000.
12
Apesar da insatisfação com a política fiscal implementada pelo Conde-Duque de Olivares, não havia consenso
em relação à legitimidade do movimento Restaurador dentro da própria nobreza portuguesa. Mafalda Soares da
Cunha argumenta que pouco menos da metade da aristocracia lusitana optou por Madrid ou teve posições
profundamente ambíguas face à cisão com a Monarquia Hispânica. Ver: CUNHA, Mafalda Soares da. Os
insatisfeitos das honras. Os aclamadores de 1640. In: SOUZA, Laura de Mello e, FURTADO, Júnia Ferreira e
BICALHO, Maria Fernanda (orgs.). O Governo dos Povos. São Paulo: Alameda, 2009, p. 486.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 93-111 | www.ars.historia.ufrj.br 95
continentes americano, africano e asiático. A aclamação de D. João IV abriu, dessa forma,
espaço para indefinições e realinhamentos. O consenso em relação à legitimidade institucional
do novo monarca necessitaria ainda ser produzido,13 e os primeiros anos de seu reinado abriam
espaço para diversos tipos de contestação.
Em relação a São Paulo, dentro daquela conjuntura histórica específica – posterior à
expulsão dos jesuítas da vila em julho de 1640 – o que foi de fato relevante para a formação do
quadro de tensões locais era o posicionamento dos moradores da vila em relação ao controle
direto exercido pela Câmara municipal sobre os índios aldeados. Protagonistas de expedições
militares contra as reduções jesuíticas do Guairá e do Tape ao longo das décadas de 1620 e
1630, colonos paulistas se envolveram também em imbróglios envolvendo as aldeias coloniais
locais. Existiam grupos, ligados às famílias Camargo e Bueno, favoráveis a administração direta
da mão de obra ameríndia por parte das famílias do planalto. Da mesma forma, havia facções,
aliados dos Taques e Pires, contrários a esse controle direto, que representava, na prática, o
cativeiro daqueles indígenas.14
Após a morte de Pedro Taques pelas mãos de Fernando de Camargo, em 1641, o modelo
do controle direto da Câmara municipal sobre as aldeias vingou em São Paulo.15Nesse mesmo
ano de 1641, os colonos enviaram delegados à corte como forma de oficializar a sua lealdade.
Os escolhidos foram Luiz da Costa Cabral e Balthazar de Borba Gato. Dentre outros temas,
como as riquezas minerais e as possibilidades de construção naval que a repartição sul da
América lusa apresentava, os colonos justificavam a expulsão da Companhia de Jesus da vila.16
A principal linha argumentativa traçada pelos paulistas era de que os padres tinham como
principal objetivo jogar os índios aldeados contra os colonos, fazendo intrigas e prejudicando a

13
D. João IV tinha completa consciência dessa situação. Exemplo disso era que, necessitando cooptar lealdades,
já em fevereiro de 1642 e atendendo solicitações demandadas pela câmara municipal do Rio de Janeiro, confere
aos cidadãos e moradores da cidade “as honras, privilégios e liberdades de que gozavam os cidadãos da cidade
do Porto”. A honraria seria ainda conferida, posteriormente, aos moradores da Bahia e do Maranhão. Ver:
MELLO, Isabele de Matos P. de. Poder, Administração e Justiça: Os Ouvidores Gerais (1624-1696). Rio de
Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura; Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2010, p. 90.
14
José Carlos Vilardaga demonstra como que, ao longo do período da União Ibérica, a questão sobre o cativeiro
dos índios aldeados não era consenso dentro da vila paulista. Para maiores detalhes, ver: VILARDAGA, José
Carlos. São Paulo na órbita do Império dos Felipes: conexões castelhanas de uma vila da América Portuguesa
durante a União Ibérica (1580-1640).Tese (Doutorado em História Social) - Departamento de História da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010, pp. 312-362.
15
Trabalho com os conflitos que atravessam a vila ao longo da década de 1640 na minha dissertação de
Mestrado, que defenderei em março na UFF.
16
O documento foi recuperado no século XVIII por Pedro Taques, no entanto a parte que continha a data se perdeu.
Affonso de E. Taunay conseguiu localizar o envio dos delegados pela câmara no dia 4 de abril de 1641, um dia
após a submissão formal da vila à Coroa lusa. Taunay também transcreve a procuração. Ver: TAUNAY, Affonso
de E. História geral das bandeiras paulistas. Vol. 3, p. 46-47.
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produção dentro das lavouras locais. A maior prejudicada com isso era a Fazenda Real. Citavam
o famoso caso do padre Manoel de Morais, inaciano paulista que havia passado para o lado dos
flamengos após lutar contra a invasão holandesa no Nordeste,17 afirmando que o
comportamento do padre era típico dos jesuítas, que não tinham na fidelidade ao Rei a sua
principal motivação. Além de potenciais traidores, acusavam os religiosos da Companhia de
Jesus de estarem cooperando, em segredo, com estrangeiros contrabandistas, sendo a sua
expulsão da vila questão emergencial. Era claro o esforço, por parte dos paulistas, de legitimar
e fornecer credibilidade à destituição do colégio jesuítico da vila. O esforço local dos partidários
dos Camargo, Bueno e Rendón, de procurar consolidar a sua hegemonia era somado ao esforço
imperial de fornecer autenticidade para o controle das famílias paulistas sobre as aldeias e a
mão de obra indígena, sendo a presença e mediação inaciana, na realidade, fator extremamente
nocivo para a própria prosperidade do processo colonial.18
D. João IV, contudo, após o parecer do Vice-Rei do Brasil, D. Jorge Mascarenhas19,
expediu alvará em 3 de outubro de 1643,20 decidindo pela restituição do colégio jesuítico em
São Paulo. Iniciava-se, a partir daí, conflito entre a câmara municipal paulista e as autoridades
coloniais e metropolitanas em relação ao retorno dos jesuítas à vila. Conflito este que seria
marcado pelo tensionamento, com os oficiais camarários se negando a obedecer a ordem régia
ao reivindicar o seu direito a decidir pelas questões jurídicas e políticas locais. Sustentou-se,
dessa forma, a hegemonia dos grupos ligados às famílias Bueno e Camargo em São Paulo. Ao
viabilizar – ao menos na prática – o acesso aos ameríndios aldeados, se supria a demanda
constante das famílias locais por mão de obra para o trabalho dentro das suas lavouras. A Coroa,
mesmo com a pressão exercida pelo Alvará de 1643, não conseguiu quebrar essa hegemonia e
teve que conviver com a situação. São Paulo, como área economicamente periférica, não

17
Para análise recente e original sobre a trajetória de Manuel de Morais: VAINFAS, Ronaldo. Traição: um jesuíta
a serviço do Brasil holandês processado pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
18
Rafael Ruiz argumenta que a forma como os jesuítas agiram em 1640, com a leitura da Bula Pontifícia em praça
pública, como fora feito no Rio de Janeiro e em São Paulo, constituía lesão grave ao Padroado régio. A Bula
deveria ser autorizada, antes, pelo Conselho de Estado espanhol, o que não ocorreu, fortalecendo a argumentação
jurídica da defesa dos colonos. Era uma circunstância que permitia que os paulistas acusassem os jesuítas de agir
contra a lei, usurpando o poder temporal. Ver: RUIZ, Rafael. São Paulo na Monarquia Hispânica, pp. 182-184.
19
D. Jorge de Mascarenhas estudou duas petições contrarias aos paulistas. Uma acusação dos jesuítas contra os
moradores da Repartição Sul e outra, das Câmaras de S. Paulo, S. Vicente, Santos e RJ contra a Companhia de
Jesus. Defendia que os inacianos fossem restituídos em seu colégio e bens dentro da vila de São Paulo, para que
exercitem pacificamente os ministérios espirituais na região. Mascarenhas afirmava que os “ditos padres não
poderem ser privados de sua igreja, casa e bens ecclesiasticos, pelos moradores da dita villa, sem graves escrupulos
de consciencia e censura da igreja”. Ver: TAUNAY, Affonso de E. História geral das bandeiras paulistas. Vol.
3, p. 52.
20
TAUNAY, Affonso de E. História geral das bandeiras paulistas. Vol. 3, p. 54. O autor transcreveu o alvará
integralmente.
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ocupava lugar de prioridade dentro dos quadros imperiais portugueses. Pelo menos não até
1649, quando notícias sobre o descobrimento de minas na região começaram a circular dentro
da capitania de São Vicente.

As minas de Paranaguá e as suas possibilidades


Em finais do século XVII, a descoberta do ouro nos sertões dos Cataguases, assim como
sua posterior ocupação, foi acontecimento marcante na história da América portuguesa e da vila
de São Paulo. Desde a expedição do paulista Fernão Dias Pais, organizada entre 1671 e 1674,
e que tinha como objetivo a descoberta de prata e esmeraldas no sertão do Sabarabuçu,21 a
Coroa deixava explícito seu suporte e apoio a empresas que tivessem nos descobrimentos de
minerais preciosos o seu objetivo principal. Com a chegada, em 1698, do governador do Rio
de Janeiro, Artur de Sá e Menezes, à região mineradora, foi imposto, pela primeira vez, algum
tipo de controle régio sobre as minas. Os descobrimentos22 estavam assegurados, e o regimento
das minas, redigido em 1700,23 viria a consolidar a questão.
Essa questão, aliás, sobre a existência de ouro e minerais preciosos no interior da capitania
de São Vicente é bem mais antiga. Remete-nos, no mínimo, a finais do século XVI, quando a
esquadra do almirante asturiano Diego Valdés aportou em São Vicente e, em carta
posteriormente escrita ao Rei, exaltava as riquezas e possibilidades econômicas que a repartição
sul da América lusa possuía, entre elas o ouro e os minerais preciosos no interior da capitania,
incluindo aí a vila de São Paulo.
Em 1595, dois colonos paulistas, Afonso Sardinha, o velho, e Afonso Sardinha, o moço,
anunciavam o descobrimento das minas de Jaraguá, Viraçoiaba e Vuturuna, localizadas nos

21
Fernão Dias declarou, em 1671, a intenção de promover a entrada descobridora. O então governador-geral,
Afonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça, passou a enviar diversas cartas ao sertanista, prometendo-lhe
honras e mercês caso ela fosse bem-sucedida. A expedição seria um marco, pois seu filho, Garcia Rodrigues,
retornando à vila com amostras de esmeraldas encontradas, armou novas expedições para descobrimentos na
década de 1680. Com o posterior descobrimento de ouro naqueles sertões na década seguinte, Rodrigues, assim
como a sua descendência, acabaram amplamente remunerados pela Coroa, com títulos, cargos públicos, terras e
privilégios. Fernão Dias Pais, morto durante a primeira expedição, não viveria para ver os descobrimentos. Ver:
ANDRADE, Francisco Eduardo de. A invenção das Minas Gerais: empresas, descobrimentos e entrada nos
sertões do ouro da América portuguesa. Belo Horizonte: Autêntica Editora/Editora PUC Minas, 2008, pp. 65-80.
22
Na opinião de Francisco Eduardo de Andrade os descobrimentos eram mais do que simples “achamentos”. Eram
algo mais complexo do que isso dentro da cultura política do antigo regime luso. Representavam empresa não
apenas militar, mas igualmente política, nos quais os laços entre a Coroa e os súditos surgiam reforçados. Era
prática que conformava o Estado e determinava o campo de poder do monarca. Ver: ANDRADE, Francisco
Eduardo de. A invenção das Minas Gerais: empresas, descobrimentos e entrada nos sertões do ouro da América
portuguesa. p. 62.
23
A respeito da presença de Artur de Sá e Menezes na vila e a redação do regimento e suas determinações, ver:
ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das minas: ideias, práticas e imaginário político no século
XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 50-62.
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arredores da região planaltina. D. Francisco de Souza, então Governador-Geral do Brasil, como
apresentado anteriormente, não apenas coloca essas minas como prioridade dos interesses da
monarquia filipina, como se desloca, ele mesmo, para a capitania, firmando moradia na vila de
São Paulo. Souza ficou na vila até sua morte, em junho de 1611, com exceção ao intervalo entre
1606 a 1609, quando foi à Corte se defender de acusações e negociar mais mercês e privilégios
para distribuir nas minas. Apesar de ter voltado triunfante, com grande parte dos seus interesses
atendidos em Madri, as minas acabaram se tornando muito mais uma miragem do que uma
realidade, sobretudo após o seu falecimento. Frustrado o projeto minerador do governador-
geral, as minas paulistas ficariam relegadas a segundo plano dentro dos projetos imperiais por
algum tempo.24
No dia 31 de outubro de 1649, circulavam, em São Paulo, boatos a respeito da existência
de ouro na vila de Paranaguá. Havia, igualmente, suspeitas de que o ouro descoberto estaria
sofrendo descaminhos por parte dos colonos que o encontraram.25 No dia 27 de novembro do
mesmo ano, Pascoal Affonso, ocupante do cargo de provedor das minas, apresentava
requerimento. Afirmava ele que haveria, na vila do Paranaguá, um colono de nome Theodosio
Ebanos, que teria feito, na própria região dos descobrimentos, casa de fundição, quintando e
mandando marcar ouro junto dos oficiais locais. E isto seria crime, pois ele não possuía
autoridade para exercer essa função, sendo a sua ação, portanto, contrária ao regimento real. Os
quintos, segundo Affonso, teriam que ser quintados dentro da vila de São Paulo, onde o rei tem
casa de moeda.26 Com isso, ele pedia ajuda aos oficiais da câmara de São Paulo, para auxiliarem
com o fornecimento de índios para que se pudesse ir a Paranaguá prender Theodosio Ebanos.
Não tenho notícias sobre o que aconteceu com Theodosio Ebanos, visto que tanto as atas
como o registro geral da câmara de São Paulo não pronunciam mais o seu nome. No entanto,
as notícias das minas encontradas aos arredores da vila de Paranaguá despertaram o interesse e
cobiça dos paulistas e a notícia desses descobrimentos começaram a circular, o que afetaria
diretamente a vida dentro do planalto paulista. Tudo isso porque o equilíbrio local que havia

24
Apesar do fracasso do projeto, Vilardaga defende que é complicado falar da inexistência de ouro e minerais
preciosos nas minas descobertas pelos Sardinha. Alguma possibilidade real e efetiva deve ter sido vislumbrada por
D. Francisco, visto que ele mesmo fez questão de possuir as suas próprias minas na região. Teriam sido, na
realidade, minas superestimadas. O autor acredita que existiu ouro, em menor quantidade do que fora alardeado,
e que ele foi retirado e utilizado para fins comerciais. O mais provável, também, é que ele não tenha sido registrado
pelos colonos como forma de escapar do fisco e do quinto. Ver: VILARDAGA, José Carlos. São Paulo na órbita
do Império dos Felipes, pp. 185-186.
25
Actas da Câmara Municipal de São Paulo. São Paulo: Publicações do Arquivo Municipal de São Paulo, Divisão
do Arquivo Histórico, 1562-1822, Vol. 5, pp. 389-390.
26
Id. Ibid. pp. 391-392.
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sido forjado ao longo da década de 1640 passaria, progressivamente, a sofrer maiores pressões
pela sua alteração.
Analisando os limites entre poder temporal e poder espiritual dentro da prática e do
pensamento político da América espanhola, Alejandro Cañeque afirma que a política global era
compreendida, no século XVII, mais nos termos de uma “cristandade” universal do que de
“estados independentes”. Constata também que, dentro desses termos, a universalidade da ideia
imperial não contemplava a concepção simplista da subordinação da igreja ao poder do Estado.
Muito disso se devia ao fato de que as relações entre o poder civil e a autoridade espiritual
aconteciam dentro de um contexto em que a lei canônica desfrutava de grande preeminência.
Os bispos, nomeados pelo monarca através do Padroado régio, deviam fidelidade e obediência
ao rei. Contudo, ao mesmo tempo em que eram leais vassalos da monarquia espanhola,
defendiam – em muitos casos de forma ferrenha – a autoridade episcopal, batendo de frente
com os representantes da Coroa na América. Os membros dos cabildos, audiências e o próprio
Vice-rei, ao mesmo tempo, eram encorajados pelos pensadores do período a não temerem os
juízes eclesiásticos, mesmo em casos de excomunhão. Apelações às audiências ou às instâncias
superiores do poder real seriam o caminho para a absolvição de qualquer ação injusta por parte
das autoridades religiosas. Apesar do potencial conflitivo desse embate entre poder temporal e
espiritual no Novo Mundo, Cañeque aponta que, apesar da contradição que isso possa
representar na teoria, a realidade política demonstrava que este era um sistema que funcionava.
O Rei, ao governar uma monarquia marcada por diversos poderes autônomos, se beneficiava
dos diversos conflitos jurisdicionais que envolviam poderes locais e regionais, inclusive entre
as esferas de poder temporal e espiritual. Envolvidos em disputas e conflitos, esses homens
tinham que recorrer e apelar para as instâncias superiores de poder, o que permitia a Coroa ter
maior poder de interferência e controle sobre os rumos tomados dentro da colonização
americana. Com os diversos poderes que exerciam influência dentro dos núcleos coloniais
ultramarinos divididos, a capacidade de intervenção política do rei aumentava
significativamente.27
Para o caso aqui estudado, por ser a Coroa lusa igualmente uma monarquia polissinodal
e corporativista como a espanhola, acredito que a análise do autor possui relevância. Apesar de
não haver bispos em São Paulo no período, a forte presença da Companhia de Jesus na região

CAÑEQUE, Alejandro. The king’s living image. The culture and politics of vice regal power in Colonial Mexico.
27

New York: Routledge, 2004, pp. 79-82.


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produzia, igualmente, recorrentes conflitos com o poder local. Sobretudo no que diz respeito ao
controle sobre a mão de obra ameríndia aldeada. A própria Coroa espanhola, no período da
União Ibérica, capitalizou essas controvérsias locais e promulgou as leis de 1611, procurando
organizar a administração das aldeias coloniais da América portuguesa segundo o modelo
peruano. No caso da monarquia lusitana, ao longo da primeira década do período pós-
Restauração, percebemos o interesse de D. João IV pela restituição do colégio jesuítico desde
1643. Apesar de não ser tratado como prioridade pela Coroa portuguesa, o retorno dos jesuítas
ao planalto foi continuamente enfatizado como decisão oficial do monarca, não cedendo aos
argumentos dos colonos paulistas que insistiam em denegrir os inacianos. No entanto, a partir
de 1649, com a circulação de informações a respeito dos descobrimentos das minas do
Paranaguá, o quadro passava a mudar de figura. Ainda envolvida, dentro do território europeu,
com a guerra de Restauração contra a Espanha – que duraria até 1668 – Portugal assistia
também a elite pernambucana em guerra declarada pela expulsão dos flamengos do Nordeste
brasileiro. Os cofres régios, exauridos pelas necessidades econômicas imperiais, poderiam ter
o socorro dos possíveis metais preciosos descobertos no sertão da capitania de São Vicente. Era
uma oportunidade única e, mais do que nunca, a tática de “dividir para governar”, com o retorno
da Companhia de Jesus à região, poderia beneficiar a Coroa lusa. Ainda mais quando a vila de
Piratininga se encontrava dominada, hegemonicamente, pela família Camargo e sua parentela,
que resistiram, ao longo de toda a década de 1640, à interferência de autoridades coloniais em
São Paulo. Com isso, o retorno dos inacianos à vila, que já era decisão oficialmente apoiada
por D. João IV, passava a ser prioridade para a monarquia portuguesa.
Importante também enfatizar que, se o descobrimento de ouro e minerais preciosos
apresentava oportunidade econômica preciosa para as monarquias modernas, também
representava chance única para as famílias que habitavam a região mineradora. No início do
século XVII, não foram apenas os membros da comitiva de D. Francisco de Souza que se
beneficiaram das minas, conseguindo terras, bons casamentos e ofícios. A inserção dos recém-
chegados através de casamentos com as famílias dos homens bons locais demonstrava como as
mercês e privilégios não ficariam restritos aos aliados mais diretos do Governador-Geral. O
estabelecimento das minas demandava forte aparato técnico-administrativo, com diversos
cargos a serem criados e ocupados. Para além da autoridade do administrador das minas, foram
criados cargos como os de mineiros, fundidores, alferes, avaliador, partidor, medidor, avaliador
de fazenda, repartidor de terras, procurador e escrivão do campo, capitão da gente de cavalo e

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escrivão da ouvidoria.28 Todos eles servindo para acomodar membros novos e antigos de
homens bons da vila. Privilégios de armar cavaleiros, como foi o caso de Sebastião de Freitas
e Antonio Raposo, ambos em 1601, também foram utilizados pelo governador, retornando ele,
para a vila, em 1609, com o direito de conceder 20 hábitos da ordem de Cristo e armar mais
cem cavaleiros. O projeto de D. Francisco de melhor integrar a costa do Brasil ao mundo
hispânico, com todas as possibilidades comerciais e de aliança que se abririam a partir disso,
também foram bem-vindas. As conexões com as vilas guairenhas, que perduraram no período
posterior ao fracasso do projeto minerador, são a prova de que as famílias paulistas souberam
aproveitar a oportunidade. Fora isso, o fato de que o Governador-Geral do Brasil, nomeado
diretamente por Felipe II, havia optado por se estabelecer e morar na vila paulista, trazendo
para a região status e relevância dentro da dinâmica sociopolítica imperial nunca antes sentida
por seus moradores, foi também elemento marcante da sua passagem pelo planalto.
As informações relacionadas aos descobrimentos do sertão do Paranaguá começaram,
dessa forma, a produzir movimentos fora de São Paulo. No dia 28 de novembro de 1651, D.
João IV escreveria para a vila comentando as amostras de pedras enviadas a Portugal das minas
descobertas por Theodosio Ebanos na vila de Paranaguá. Afirmava que a quantidade de pedras
teria vindo em menor quantidade do que deveria, pedindo que se procurasse descobrir todo o
possível em relação às ditas minas. Enfatizava a importância de descobrir a condição necessária
para o trabalho minerador e, caso encontrando mais metais, que enviassem a Lisboa o mais
rápido possível.29 Em carta de 24 de maio de 1652, Salvador Correia de Sá e Benevides, então
governador das minas da repartição sul da América lusa, nomeava seu primo, o capitão Pedro
de Sousa Pereira, provedor e contador da real fazenda da cidade do Rio de Janeiro, ao cargo de
administrador das minas da repartição Sul em sua ausência.30 Pedro, chegando à vila em 22 de
setembro de 1652, apresentou na câmara carta patente com a nomeação passada por Benavides
e começou os preparativos para a construção de novo projeto minerador.31 Já em outubro, Pedro
de Souza encontra-se passando provisões e firmando alianças junto a sertanistas locais. O
paulista Álvaro Rodrigues do Prado ficaria como principal responsável pelos descobrimentos,
sendo nomeado capitão dessa empresa. Aos colonos que ajudassem no empreendimento, o mais
novo administrador das minas prometia que todos teriam “grans prêmios e (ilegível) mercês”32.

28
VILARDAGA, José Carlos. São Paulo na órbita do Império dos Felipes. p. 165.
29
Registro Geral da Câmara Municipal de São Paulo, Vol. 2, pp. 368-369.
30
Id. Ibid. pp. 343-344.
31
Id. Ibid. p. 347.
32
Id. Ibid. p. 359.
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Em 30 de abril de 1653, Pedro de Souza enviava carta a D. João IV afirmando que já havia
dado conta da fortificação e defesa da região dos descobrimentos. Concluía a carta afirmando
que o Governador-Geral não poderia ter jurisdição em relação às Minas, pois, para seu
benefício, seria melhor que se dessem jurisdição e alçada aos “capitães das ditas capitanias de
São Paulo e São Vicente, e das câmaras, justiças e ministros delas”33.
O sonho dos minerais preciosos, e todas as suas possibilidades, estava de novo vivo dentro
do imaginário e das dinâmicas locais da vila paulista.34 Ao mesmo tempo que isso representava
cobiçadas oportunidades para os homens bons paulistas, apresentava, igualmente,
possibilidades para a Coroa firmar alianças e fortalecer laços vassálicos com seus súditos no
ultramar. O descobrimento das minas, como ficaria claro no final do século, representava,
também para a monarquia, a oportunidade de remunerar serviços prestados e mudar equilíbrios
dentro das dinâmicas sociopolíticas locais e regionais. Ambos, Coroa e colonos, possuíam
consciência do que a descoberta de ouro e minerais preciosos representava para a cultura
política do antigo regime luso. Era oportunidade única.
A vila paulista, dominada ao longo da década de 1640 pelas famílias ligadas aos Camargo
e Bueno, enfrentava, no final desse período, interferências diretas da Coroa e de autoridades
coloniais no que dizia respeito ao retorno da Companhia de Jesus para a região. O retorno dos
jesuítas para o planalto, no entanto, representava disputa mais profunda do que simples quebra
de braço em relação ao domínio sociopolítico de São Paulo. Antes do que simples rivalidade,
como já exposto, a questão envolvia dimensão econômica mais profunda com as famílias
dominantes, procurando consolidar uma cultura de administração das aldeias que passasse pelo
seu controle direto, o que era inviável com a presença dos inacianos na vila. Apesar das pressões
externas, demonstravam força e coesão suficiente para fazer valer seus interesses naquele
primeiro momento. No entanto, o controle que exerciam localmente não abarcava todas as
famílias: fora a resistência da Coroa, dos governadores e dos padres, existiam colonos dentro
da vila que, apesar de serem minoria, se opunham ao domínio dos Camargo e sua parentela
dentro do próprio planalto.
Mesmo tendo conseguido consolidar sua hegemonia após o assassinato de Pedro Taques,
em 1641, é pouco provável que padres aliados aos jesuítas como Domingos Gomes Albernaz

33
Id. Ibid. p. 369.
34
As notícias a respeito das minas do Paranaguá desaparecem das atas e do registro geral da câmara paulista a
partir do ano de 1654, dando a entender que o descobrimento foi, novamente, mais uma “miragem” do que,
propriamente, realidade concreta dentro dos sertões da capitania de São Vicente.
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tenham logrado entrar na vila com a função de padre visitador, tanto em 1646 como em 1649,
sem ter o mínimo suporte de algumas famílias do local.35 Fortalecido no Rio de Janeiro pelo
prelado Antonio Loureiro, pela família Sá e Benevides e pela política pró-jesuítica da Coroa,
pouco adiantaria esse apoio imperial se não existisse, dentro do planalto, apoio e capilaridade,
por menor que fosse, ao retorno dos inacianos. Vale lembrar, como já demonstrei, que,
posteriormente à década de 1620, sobretudo após as expedições militares que devastaram as
reduções guairenhas, as tensões dentro do planalto aumentaram consideravelmente. Nem todos
os colonos concordavam com a conduta violenta e antijesuítica de certos sertanistas, como era,
mais explicitamente, o caso de Pedro Taques. Mas, ele não estava sozinho dentro dessa disputa,
com a família dos Pires, sobretudo João Pires, se alinhando de forma similar36.
A descoberta de ouro na vila de Paranaguá representava, dessa forma, possibilidade de
mudança no equilíbrio político que havia marcado a região planaltina ao longo da década. Para
a monarquia era a chance de cooptar colonos com as oportunidades sociais e econômicas que
as minas representavam. Cabia à Coroa condicionar essas oportunidades ao retorno da
Companhia de Jesus a São Paulo, questão essa que era essencial para que a Coroa quebrasse a
hegemonia local dos colonos ligados ao Camargo, Rendón e Bueno. Apenas dessa forma, com
a presença dos jesuítas no local e os poderes locais divididos, surgiriam espaços para que os
interesses régios pudessem penetrar dentro da futura região mineradora.
A simples notícia dos descobrimentos já pareciam afetar, mesmo que minimamente, os
equilíbrios locais da vila. Como a restituição do colégio jesuítico já havia sido decretada em
decisão régia desde 1643, alguns colonos, provavelmente ambicionando as oportunidades de
mercês e cargos que surgiriam com as minas, se tornaram mais abertos ao retorno dos inacianos
a vila. Colonos esses que anteriormente deveriam ceder ao controle das famílias que
dominavam o cenário político paulista, mas que começaram a ver um alinhamento à política de

35
Albernaz causou diversos conflitos dentro da vila. Sua política pró-jesuítica criou forte insatisfação com as
famílias locais. Trabalhei o tema de forma mais pormenorizada dentro do 1º capítulo da minha dissertação de
mestrado, que defenderei em março na UFF. Affonso Taunay também analisa a trajetória do padre em São Paulo.
Para maiores detalhes, ver: TAUNAY, Affonso de E. História Seiscentista da vila de São Paulo. Vol. 1, pp. 163-
170.
36
O padre Domingos Gomes Albernaz voltaria a ser expulso da vila em 1651, visto que o padre Manuel de Araújo,
escrevendo à vila de São Paulo, pedia que permitissem o regresso do padre e de seu auxiliar. Albernaz conseguiria
voltar à vila, se apresentando na câmara no dia 19 de junho de 1652. Contudo, muito provavelmente pela existência
de animosidades contra ele, resolveu ir morar na vila de Santana da Parnaíba, onde moravam diversos familiares
dos Taques e dos Pires que haviam se mudado para a região posteriormente ao assassinato de Pedro Taques em
1641. Affonso de E. Taunay descobriu a assinatura do padre em diversos inventários datados da Parnaíba em 1653,
dando a entender que sua estadia na região não foi curta. Ver: TAUNAY, Affonso de E. História Seiscentista da
vila de São Paulo. Vol. 1, pp. 181-182. Sobre a apresentação de Albernaz na câmara da vila em 1652, ver: Actas
da Câmara Municipal de São Paulo, Vol. 5, p. 519.
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D. João IV como a estratégia mais promissora a ser seguida. No dia 06 de agosto de 1650, nem
um ano após os boatos da descoberta de ouro se presentificarem nas atas da câmara, o
procurador da Companhia de Jesus, Domingos da Rocha, se encontrava na vila. Ele mandou
notificar, na câmara, o quanto a igreja do colégio jesuítico se encontrava em ruínas, ficando
deliberado pelos oficiais locais, que Domingos ficaria incumbido de vir, dentro de 15 dias, com
índios da aldeia de Carapicuhyba, que eram da Companhia de Jesus, para murar e consertar a
igreja e o colégio. O procurador dos inacianos, entretanto, não concordou com a deliberação,
afirmando que não cabia a ele, nem aos jesuítas, tratar de tais obras. Além dos índios serem
voluntários, sem os padres terem poder de mando sobre eles, deveria caber aos oficiais e aos
colonos do planalto a execução de tal serviço.37 A simples circulação de informações do
descobrimento de minerais preciosos fazia com que as negociações a respeito do retorno da
Companhia de Jesus à vila ganhassem novo fôlego. A postura de Domingos da Rocha buscando
impor, como procurador da Companhia de Jesus, os termos sob os quais se daria a restituição
do colégio jesuítico, demonstra que o equilíbrio de forças na vila, assim como o suporte ao
retorno dos inacianos, começava a mudar. As negociações pareceram perder força em inícios
de 1651, sem qualquer notícia da presença de jesuítas na vila. Mas, em 16 de dezembro de 1651,
vemos o procurador da câmara fazendo requerimento aos oficiais a respeito de acordos a serem
firmados acerca do retorno dos padres da Companhia de Jesus para o planalto.
Todavia, a oposição aos jesuítas, assim como ao padre Albernaz, continuava forte,
sobretudo por parte da família Camargo. O padre seria expulso entre o final de 1650 e início de
1651, conseguindo voltar apenas em julho de 1652, estabelecendo-se na vila de Santana da
Parnaíba, como já abordei anteriormente. Em relação ao retorno dos inacianos, o ouvidor da
capitania de São Vicente, Paulo do Amaral, apresentou, em primeiro de agosto de 1651, carta
de diligência no Rio de Janeiro. Se queixava o ouvidor de que, antes de terminado o seu triênio
exercendo o cargo na ouvidoria da capitania, detinha informações de que José Ortiz de
Camargo, irmão de Fernando de Camargo e atual juiz ordinário de São Paulo, queria se eximir
de obedecê-lo, desrespeitando a sua jurisdição. O então ouvidor-geral da repartição sul,
Balthazar Castillho e Andrade, despachando no dia 16 de setembro do mesmo ano, garantia a
autoridade de Paulo do Amaral, reafirmando-o como legítimo ouvidor de São Vicente.38 Apesar
de não sabermos, explicitamente, o motivo de José Ortiz ter confrontado a autoridade de Paulo

37
Actas da Câmara Municipal de São Paulo, Vol. 5, pp. 433-434. Affonso de E. Taunay também aborda o episódio,
ver: TAUNAY, Affonso de E. História Seiscentista da vila de São Paulo. Vol. 1, p. 178.
38
Registro Geral da Câmara Municipal de São Paulo. Vol. 2, pp. 281-282.
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do Amaral, antigo aliado dos Camargo, é pouco provável que a discórdia não passasse pelo
vigor ganho nas negociações referentes à restituição do colégio jesuítico.
A família Camargo, envolvida diretamente com o assassinato de Pedro Taques e a
expulsão dos inacianos, perdia aliados, suporte e hegemonia dentro da vila de São Paulo.39 Sob
o perigo do retorno dos jesuítas ao planalto e de perder, consequentemente, o acesso direto à
mão de obra indígena presente nas aldeias, José Ortiz e seus aliados optaram por não reagir de
forma pacífica a repentina mudança de equilíbrio dentro do poder local. Não encontrando
espaço para articulação junto aos ouvidores da capitania e da repartição sul, restava apelar à
Bahia. Terminando o triênio de Paulo do Amaral como ouvidor de São Vicente, Ortiz vai a
Salvador pleitear a nomeação ao cargo junto ao Governador-Geral, Conde de Castello Melhor,
conseguindo ser nomeado em abril de 1652. A nomeação foi registrada na câmara em outubro
do mesmo ano.40
Entretanto, a Coroa lusa encontrava-se disposta a aproveitar a conjuntura favorável. Em
julho de 1651, D. João IV passou carta ao Rio de Janeiro nomeando João Velho de Azevedo
como Ouvidor-Geral da repartição sul do Estado do Brasil. Instituído em 2 de janeiro de 1608,
este cargo foi criado junto ao do Governo Geral da repartição sul, durante o período da União
Ibérica. Com a fundação do novo Governo Geral, separado do Governo Geral da Bahia,
construiu-se um governo independente, fazendo-se necessária uma administração da justiça
autônoma, criando-se a Ouvidoria Geral da repartição sul.41 A Coroa lusa manteve o cargo e
continuou nomeando súditos para a função. A carta que definia o regimento de Velho de
Azevedo, passada em 10 de julho de 1651 e registrada em São Paulo em 29 de abril de 1652,
afirmava que governadores e capitães-mores não poderiam mandar soltar pessoas presas pelo
novo Ouvidor, nem teriam o poder de libertar homens homiziados. Não poderiam “governador

39
O exemplo de Paulo Amaral, confrontado por José Ortiz, denuncia que o equilíbrio de forças no planalto já não
era tão favorável à família Camargo. Participante das expedições militares que dizimaram as reduções jesuíticas
da região do Guairá, Amaral havia tido protagonismo na contestação aos jesuítas. Em 1633, inclusive, participou
da tentativa de expulsar os padres da aldeia de Barueri em ação organizada conjuntamente a Antonio Raposo
Tavares. Nomeado ouvidor de São Vicente em dezembro de 1648, foi durante seu triênio no cargo que as minas
foram descobertas e que as negociações para a restituição do colégio jesuítico avançaram. Há, dessa forma, indícios
de que Paulo Amaral já não era tão resistente assim ao retorno dos padres da Companhia de Jesus à vila. Sobre o
seu envolvimento na tentativa de expulsão dos padres da aldeia de Barueri ver: VILARDAGA, José Carlos. São
Paulo na órbita do Império dos Felipes. p. 327. Sua nomeação para ouvidor da capitania de São Vicente no dia
11 de dezembro de 1648 se encontra em: Registro Geral da Câmara Municipal de São Paulo. Vol. 2, p. 180.
40
Sobre o episódio de José Ortiz de Camargo pleitear o cargo junto ao governador-geral, ver: TAUNAY, Affonso
de E. História Seiscentista da vila de São Paulo. Vol. 2, pp. 65-67. A nomeação de José Ortiz para o cargo se
encontra em: Registro Geral da Câmara Municipal de São Paulo. Vol. 2, pp. 350-352.
41
Com o fim da divisão do governo da colônia, em 1612, a Ouvidoria Geral da Repartição Sul continuou existindo.
Ver: MELLO, Isabele de Matos P. de. Poder, Administração e Justiça. p. 31 e 41.
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geral nem capitão mór nem Camara” retirar Azevedo do cargo, nem o prender ou suspendê-lo.
Já no caso do mais novo ouvidor cometer algum excesso que seja tão grave a ponto de merecer
pena de morte, este apenas poderia ser preso em flagrante delito e “de outra maneira não”42. A
manutenção da autonomia do cargo vinha acompanhada de duas inovações em relação ao
regimento passado ao último Ouvidor, Baltazar de Castilho, em 1647. Ambas diziam respeito
ao fato de que Velho de Azevedo ficaria responsável por visitar as minas de ouro em São Paulo,
fornecendo notícias ao Rei. A historiadora Isabele de Mello, que pesquisa o tema dos ouvidores
gerais do Rio de Janeiro, afirma que, a partir do regimento de 1651, o “ouvidor passa a exercer
funções cada vez mais de caráter fiscalizador”.43 Me parece claro que Velho de Azevedo foi
orientado a defender os interesses da Coroa dentro das minas recém-descobertas. Ou seja, a
confrontar, no que fosse possível dentro da sua jurisdição, a hegemonia que os Camargo e a sua
parentela exerciam dentro da região. Continuar exercendo pressão pelo retorno da Companhia
de Jesus ao planalto seria, então, papel que caberia também ao ouvidor.
Em inícios de 1653, novo tumulto tomou conta da vila de Piratininga. Houve manobra,
por parte de Jerônimo de Camargo e José Ortiz de Camargo, para tentar embargar as eleições.
Eles teriam impedindo a abertura do pelouro e o acesso dos moradores aos vereadores e juízes
votados na eleição anual44. Era tentativa de anular a eleição e prorrogar, ao máximo possível, a
continuação dos oficiais da câmara eleitos em 1652, quando Jerônimo de Camargo assumira o
posto de juiz ordinário.45 Os pelouros apenas poderiam ser abertos após o julgamento sobre o
embargo, que havia sido decretado por Jeronimo. Caberia a José Ortiz de Camargo, ouvidor da
capitania de São Vicente, julgar a questão, mas ele não se encontrava na vila no início daquele
ano. Isso permitiu que a câmara eleita em 1652 governasse até abril de 1653 quando, no dia 26,
sindicantes teriam chegado à vila com o intuito de julgar casos de pessoas “que estavão
criminozas e as livrarão”.46João Velho de Azevedo, o Ouvidor-Geral da repartição sul do
Estado do Brasil, também viera capitanear a correção que seria realizada. Na abertura dos

42
O documento se encontra em: Registro Geral da Câmara Municipal de São Paulo, Vol. 2, pp. 329-330.
43
MELLO, Isabele de Matos P. de. Poder, Administração e Justiça. p. 39.
44
Affonso de E. Taunay, reproduzindo a versão de Pedro Taques escrita no século XVIII, afirma que se articulou
manobra, por parte da família Camargo, tanto de José Ortiz como de Jerônimo, de embargar as eleições de 1653,
impedindo a abertura do pelouro e o conhecimento moradores votados na eleição anual. Eles teriam procurado
anular a eleição, prorrogando, dessa forma, a continuação dos oficiais da câmara eleitos em 1652. Ver: TAUNAY,
Affonso de E. História Seiscentista da vila de São Paulo. Vol. 2, p. 83.
45
Domingos Barbosa Calheiros, histórico aliado dos Camargo, era o outro juiz ordinário eleito em 1652. Ver: Para
a lista dos oficiais camarários eleitos em 1652, ver: ACVSP. Vol. 5.
46
Actas da Câmara Municipal de São Paulo. Vol. 6, p. 19.
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pelouros, no dia 8 de maio.47 Jeronimo de Camargo, assim como José Ortiz, acabou se
ausentando da vila. Na sua ausência, sendo ele juiz ordinário do ano anterior e detentor das
chaves do prédio da câmara, Velho de Azevedo

logo mandou aos capirteiros que lhe metessem os machados, executando-se o mesmo
com as portas, que fechadas impedião o ingresso para a sala do concelho. Estando
dentro mandou fazer o mesmo a huma arca de madeira grossa, dentro da qual se
conservava a dos Pelouros, que tinha feito o intruso Ouvidor José Ortiz de Camargo,
no anno de 1652, como temos referido. Quebrada tambem a arca dos Pelouros, forão
estes dados ao fogo da presença do mesmo Dezembargador Geral em acta da Camara48

Feita nova eleição, sem a presença dos Camargo, abria-se espaço para nova composição
política no planalto. Aproveitando-se da situação, e destituindo José Ortiz de Camargo do cargo
de ouvidor de São Vicente no mês seguinte,49 João Velho de Azevedo soube capitalizar a
conjuntura a favor dos interesses da Coroa lusa. Alguns dias mais tarde, em 14 de maio, a
restituição do colégio jesuítico seria consolidada em documento oficial,50 selando a volta da
Companhia de Jesus para o planalto paulista.
Em articulação local questionável que procurava perpetuar seu poder na vila, os Camargo
acabaram fornecendo ao novo Ouvidor-Geral da repartição sul do Brasil a brecha jurídica que
ele desejava para intervir dentro da sua esfera local de poder. Talvez preocupados com a perda
de sua hegemonia política, optaram por embargar as eleições de forma precipitada e duvidosa,
o que gerou, muito provavelmente, protestos e resistência dentro das famílias que já não se
encontravam mais dentro da sua órbita de influência. A realização de uma sindicância já no mês
de abril do mesmo ano, sendo necessária sua retirada da vila, demonstra como haviam perdido
o controle sobre os rumos políticos do planalto. Já para a Coroa, ainda com expectativas em
relação aos descobrimentos minerais, a movimentação equivocada de Jerônimo e José Ortiz foi
bem-vinda. Enfraquecidos em sua influência sobre os colonos paulistas, a restituição do colégio
jesuítico garantiria, a médio prazo, a manutenção das divergências locais, abrindo
possibilidades de intervenção régia sobre os rumos a serem tomados na colonização dos sertões

47
Id. Ibid. p. 21.
48
Affonso Taunay transcreve o documento, ver: TAUNAY, Affonso de E. História Seiscentista da vila de São
Paulo. Vol. 2, p. 83.
49
Em 16 de junho, João Velho de Azevedo destituiria José de Ortiz Camargo do cargo de ouvidor da capitania de
São Vicente, nomeando João Homem da Costa para a função. Ver: Registro Geral da Câmara Municipal de São
Paulo. Vol. 2, pp. 386-387.
50
Registro Geral da Câmara Municipal de São Paulo. Vol. 2, pp. 373-374.
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da capitania de São Vicente. Naquela conjuntura específica, poucos resultados poderiam ser
mais positivos do que aquele.

Conclusão
Por mais que existissem mecanismos jurídicos dentro da cultura política lusa, como a
tradição da autonomia municipal e autogestão local, que permitia aos oficiais de São Paulo
resistirem às pressões e interferências da metrópole, o controle da vila por parte da elite local
era frágil. Formada em sua grande parte por famílias de origem plebeia e que encontraram
formas de enriquecer e ascender socialmente através de mercês, cargos e ofícios criados e
fornecidos por autoridades metropolitanas e coloniais,51 o equilíbrio que sustentava o domínio
dos Camargo, Rendón e Bueno sobre a vila, na década de 1640, era suscetível à conjuntura e às
circunstâncias externas. Assim como haviam ascendido socialmente e economicamente devido
a fatores e interferências que envolviam a ação de agentes imperiais externos à vila, seu controle
sobre a dinâmica sociopolítica local também era suscetível a esses tipos de intervenções. A
descoberta de ouro na vila da Parnaíba, somado ao esforço de D. João IV para ter maior poder
de interferência na localidade, representaram fator determinante nessa “equação” imperial –
que acabaria levando a Companhia de Jesus de volta para São Paulo.
Embora os termos do retorno inaciano à vila tenham sido mais favoráveis aos moradores
do que aos padres,52 a restituição do seu colégio foi vista e sentida como vitória, tanto pelos
jesuítas como pela Coroa.53 Para os padres, representava o fim de querela indesejada dentro do
seu projeto missionário. Para D. João IV, a inserção da Companhia de Jesus em São Paulo
representava não apenas a presença de aliados de primeira hora da Restauração dentro do
planalto, mas, mais do que isso, a quebra da hegemonia que os Camargo e sua parentela

51
No caso paulista sobretudo após a passagem de D. Francisco de Souza pela vila, na primeira década do século
XVII. Para maiores detalhes, ver: VILARDAGA, José Carlos. São Paulo na órbita do Império dos Felipe, pp.
152-187.
52
Ver nota 5.
53
O rei enviou carta à câmara de São Paulo no dia 11 de dezembro de 1654: "Juizes, vereadores e mais officiaes
da camara da villa de S. Paulo. Eu el-rei vos envio muito saudar. Pela provisão que com esta vos mando remetter
entendereis como fui servido de approvar os procedimentos que João Velho de Azevedo, ouvidor da capitania do
Rio de Janeiro, teve na correição com que foi á essa villa e capitania de S. Vicente e resoluções que tomou, por
tudo ser conforme á justiça e bom governo, e muito do serviço de Deus e meu, e de annular os que em contrario
teve depois José Ortiz de Camargo, enviado pelo conde de Castello-Melhor, sendo governador deste Estado: pelo
que vos encommendo, encarrego muito e mando que em tudo cumprais e guardeis e façais dar á sua devida
execução a dita provisão, tão inteira e pontualmente como de vós confio, estando certos que fico com particular
lembrança do serviço que me fizestes na aceitação dos religiosos da companhia, e bom termo com que vos
houvestes com o ouvidor e pessoas que o acompanharam". Affonso de E. Taunay transcreveu a carta, ver:
TAUNAY, Affonso de E. História Seiscentista da vila de São Paulo. Vol. 2, p. 194.
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conseguiam impor na vila de Piratininga. Seu domínio local estava associado ao modelo de
controle das aldeias e da mão de obra indígena diretamente pelas famílias paulistas, garantido
após a expulsão dos jesuítas em julho de 1640. O retorno dos inacianos produziria conflitos
constantes entre poder temporal e espiritual em relação aos rumos das aldeias coloniais, o que
abria espaço jurídico, e político, para a intervenção da Coroa dentro da região. Com o
“descobrimento” das minas de Paranaguá, a monarquia lusa ambicionava ter o maior nível de
influência possível dentro da região. E a presença dos jesuítas possuía papel decisivo dentro
desse contexto.
A reintegração dos padres da Companhia de Jesus significava também outra vitória para
D. João IV. Apresentava a possibilidade de estender sua autoridade e soberania em região que,
ao longo do período da União Ibérica, se integrou, através de laços familiares e comerciais, à
América espanhola. Existiam famílias paulistas que ainda mantinham esses laços, assim como
haviam, dentre algumas delas, colonos que resistiam em enxergar a submissão à Coroa lusa
como o melhor caminho para os seus interesses. D. João IV sabia muito bem disso. Dessa forma,
a restituição do colégio jesuítico ao planalto representava também passo importante dentro da
ambição portuguesa de (re)inserção da vila de São Paulo dentro da sua zona de influência,
vinculando-a, de forma mais concreta, às malhas do seu Império.

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(Doutorado em História Social) - Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

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Artigo

ADIVINHAÇÃO E CURANDEIRISMO NA
BAHIA COLONIAL – O CASO DO MESTIÇO
PEDRO RODRIGUES
FELIPE AUGUSTO BARRETO RANGEL*

Resumo: Os arquivos inquisitoriais portugueses encontram-se recheados de documentações


acerca das práticas mágicas atlânticas. Neste sentido, iremos refletir sobre um conjunto de
informações acerca das magias realizadas na América portuguesa, atentos às mestiçagens
espirituais afro-atlânticas, através da denúncia feita contra o mestiço forro Pedro Rodrigues,
morador no Recôncavo da Bahia, em fins do século XVIII. O réu era tido como adivinho e
curandeiro, segundo os denunciantes que revelaram uma parcela de suas vivências e atividades.
Metodologicamente, auscultaremos os indícios documentais, buscando possibilidades
interpretativas acerca das magias naquela circunscrição, desvelando facetas do mosaico de
crenças mágico-religiosas que circulavam pela Bahia colonial.

Palavras-chave: Práticas mágicas; Inquisição; Bahia colonial.

Abstract: The Portuguese inquisitorial files are filled with documentation on the Atlantic
magical practices. In this sense, we will reflect on a set of information about the spells
performed in Portuguese America, attentive to the spiritual african-Atlantic miscegenation
through the complaint made against the mestizo lining Pedro Rodrigues, resident in the Bahia
Recôncavo, in the late eighteenth century. The defendant was seen as diviner and healer,
according to whistleblowers who revealed a portion of their experiences and activities.
Methodologically analyze documentary evidence, seeking possible interpretations about the
spells that constituency, revealing mosaic facets of magical-religious beliefs circulated by the
colonial Bahia.
Keywords: Magic practices; Inquisition; Colonial Bahia.

As práticas mágicas da América portuguesa foram objeto de estudos de uma grande


gama de pesquisadores. Fervedouros, cartas de tocar, calundus, bolsas de mandinga, embrulhos,
cabaças recheadas, entre uma infinidade de elementos e combinações curiosos compõem o
arsenal de instrumentos espirituais construídos pelo homem moderno. Mas nem todas as
materializações das experiências espirituais dos povos atlânticos cabiam entre as classificações
do catolicismo. Ambiguidades, imprecisões e equívocos recheiam os registros documentais,
revelando níveis de incompreensão e plasticidade. As finalidades eram variadas (assim como

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os termos), e congregavam noções e elementos mágico-religiosos diversificados, para espanto
dos religiosos cristãos.
No Brasil, depois da obra seminal de Laura de Mello e Souza, O Diabo e a Terra de
Santa Cruz,1 inúmeros estudos se encarrilharam para compreender as experiências espirituais
de uma América portuguesa extremamente multifacetada, social e culturalmente. Os frutos
desta mestiçagem foram posturas e experiências ambíguas, desenhadas sobre um lastro de
possibilidades, interpretações e resistências, que eram reconhecidas no bojo de complexos
culturais distintos, como nos sugeriu John Thornton, no âmbito de sua concepção das religiões
afro-atlânticas.2
De acordo com a compilação feita por Laura de Mello e Souza, na obra supracitada, a
diversidade de magias se dividia em quatro grandes grupos. Em primeiro, no grupo da
sobrevivência material (adivinhações, curas, benzeduras, questões do universo ultramarino),
percebemos as práticas voltadas para as demandas diárias: descobrir paradeiros, curar doenças,
encontrar objetos perdidos, entre outras; em segundo, em deflagração de conflitos (infanticídio,
tensões vicinais, tensões senhor versus escravizados, amuletos de proteção corporal), a autora
promoveu uma compilação acerca de situações conflituosas entre os sujeitos, ao discutir as
fraturas da vida cotidiana; as questões acerca da vida conjugal, amizades e afetos integram a
sessão da preservação da afetividade (cartas de tocar, orações, sortilégios); e, por fim, na
comunicação com o sobrenatural (metamorfoses, pactos, invocações, possessão, calundu,
catimbó) aparecem os casos mais próximos das heresias buscadas pelo Santo Ofício – práticas
com desenho diabólico mais visível, inspiradas nas variações dos tão procurados sabás
europeus. O número total de incidências apontado pela autora – 205 casos – já foi superado
com novos dados. No entanto, sua pesquisa ainda possui o caráter basilar no bojo dos estudos
sobre as religiosidades e magias na América portuguesa.3
Sobre as práticas mágicas na região, Laura de Mello e Souza aponta que figuraram como
um ajuste dos colonos ao meio em que estavam.4 A depender da situação, como pontuado
acima, elementos mágicos eram posicionados, auxiliando na resolução das agruras cotidianas.

Artigo recebido em 03 de janeiro de 2016 e aprovado para publicação em 21 de março de 2016.

* Mestre pelo Programa de Pós – Graduação em História da Universidade Estadual de Feira de Santana, UEFS.
E-mail: felipedeaugusto@gmail.com
1
SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
2
THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico, 1400 – 1800. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2004, p. 312.
3
SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz, Op. Cit., p. 514.
4
Ibidem, p. 208.
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Esse auxílio sobrenatural possuía um caráter imediato. As religiosidades seguem um perfil
semelhante, pois adaptavam elementos da ritualística cristã, especialmente, a questões
vivenciadas no cotidiano. Adivinhava-se ou curava-se utilizando objetos furtados das igrejas,
fazia-se embrulhos com orações visando malefícios, entre muitas outras.
A Inquisição portuguesa, criada em 1536, através do estabelecimento da bula Cum ad
nihil magis, era responsável por rastrear as heresias - e esta não consistia necessariamente na
dúvida dos dogmas ou das deliberações da Igreja, mas na não aceitação da correção, ao se
insistir no erro.5 As feitiçarias se dividiam em um grande rol de práticas mágicas –
adivinhações, superstições, curandeirismo, sacrilégios, entre outras. Os religiosos acreditavam
que o diabo intervia nas feitiçarias, através de pactos, considerando-as heresias. De acordo com
o Regimento Inquisitorial de 1640, o terceiro dos quatro que estiveram em vigor (1552, 1613,
1640 e 1774), quem fizesse alguma das práticas mágicas citadas, incorreria “nas penas de
excomunhão, confiscação de bens, e em todas as mais, que em direito estão postas no crime de
heresia”.6
Segundo o dicionário de Rafael Bluteau, o praticante de bruxaria seria aquele que possui
pacto com o demônio, “em cujo poder faz coisas maravilhosas, e de ordinário mal”.7 Já o
feiticeiro seria aquele que “faz malefícios, ou doenças com ervas venenosas, e outras drogas; e
talvez intervindo obra diabólica”.8 Percebemos que o religioso coloca a feitiçaria e a bruxaria
no rol de malefícios, desencadeados pela participação diabólica. A diferença que aparece nas
entrelinhas das duas definições é que o poder da bruxaria emana do demônio, enquanto na
feitiçaria ervas e outros instrumentos podem canalizar as virtudes mágicas, podendo ou não
existir a intervenção diabólica. Não é nosso objetivo aqui apresentar os estudos e definições do
universo da magia, apesar de reconhecer sua importância. O que nos interessa aqui é perceber
uma parcela das variadas práticas mágicas que compuseram o universo sobrenatural da colônia
portuguesa na América, revelando elementos das vivências dos sujeitos que abordaremos.

5
SCHWARTZ, Stuart B. Cada um na sua lei: Tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico. São
Paulo: Companhia das Letras; Bauru: Edusc, 2009, p. 38; BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições:
Portugal, Espanha e Itália, séculos XV – XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 24.
6
REGIMENTOS do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal [1552, 1613, 1640, 1774] In. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico do Brasil. Rio de Janeiro, no. 392, Jan./Dez., pp. 495 – 1020, 1996, pp. 854 - 855.
7
BLUTEAU, Rafael. Diccionario da língua portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e
accrescentado por António de Moraes Silva, natural do Rio de Janeiro. Tomo primeiro: A—K. Lisboa, na Officina
de Simão Thaddeo Ferreira, Anno M. DCC. LXXXIX, p. 200. (Disponível em:
<https://ia600609.us.archive.org/34/items/diccionariodalin00mora/diccionariodalin00mora.pdf>, acesso no dia
02/03/2014).
8
Idem, p. 605.

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O Santo Ofício possuía uma cultura administrativa baseada na classificação e na
identificação de desvios. Sobre a classificação das heresias, Francisco Bethencourt diz que elas
seguiam os tratados específicos, publicados desde fins do século XV, baseados na ideia de que
“não existem novas heresias, mas sim novos rostos para antigos erros. O papel da Inquisição
constituiu em produzir meios de reconhecimento destas heresias”.9 Neste sentido, entendemos
a variedade de práticas classificadas de uma mesma forma.
O Santo Ofício não era o único responsável pela busca, identificação e extirpação das
práticas mágicas. A feitiçaria era considerada um crime de foro misto (mixti fiori) e estava
também sob o jugo régio e eclesiástico. De acordo com a legislação régia, as Ordenações
Filipinas,10 os feiticeiros

se for peão, seja publicamente açoitado com baraço e pregão pela Vila, e mais pague
dois mil reis para quem o acusar. E se for escudeiro (?), e daí para cima, seja degradado
para a África, por dois anos; e sendo mulher da mesma qualidade, seja degredada três
anos para Castro-Marim, e mais paguem quatro mil reis para quem o acusar. 11

E, segundo a legislação eclesiástica, compilada nos livros das Constituições Primeiras


do Arcebispado da Bahia,12 quem usasse

de feitiçarias para mal, ou para bem, principalmente se o fizer com pedras de Ara,
Corporais, e coisas sagradas, ou bentas, a fim de ligar, ou desligar, conceber, mover,
ou parir, ou para quaisquer outros efeitos bons, ou maus, incorrerá em excomunhão
maior ipso facto.13

9
BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições, Op. Cit., p. 49.
10
Código de direito português, figurou como uma compilação do antigo código manuelino (1512 – 1605), feito
por Filipe II de Espanha (Felipe I de Portugal). Sua vigência foi confirmada para continuar em Portugal após a
União Ibérica (1580-1640). Foi sancionado em 1595, mas só foi observado a partir de sua impressão, em 1603.
Objetivava, assim como o código manuelino, organizar a vida jurídica portuguesa.
11
CODIGO PHILIPPINO, ou, Ordenações e leis do Reino de Portugal: recopiladas por mandado d'El-Rey D.
Philippe I. Livro V. Decima-quarta edição segundo a primeira de 1603 e a nona de Coimbra de 1824, addicionada
com diversas notas philologicas, historicas e exegeticas, em que se indicão as diferenças entre aquellas edições e
a vicentina de 1747 (...) desde 1603 ate o prezente / por Candido Mendes de Almeida. Rio de Janeiro: Typ. do
Instituto Philomathico, 1870, p. 1150. (Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/242733, acesso no
dia 16/02/2015)
12
Compilação normativa eclesiástica, construída a partir de um sínodo diocesano, datado de 1707, promovido pelo
arcebispo Dom Sebastião Monteiro da Vide. Figurou enquanto uma contextualização das deliberações do Concílio
de Trento (1545 – 1563) nas terras coloniais, visando regular as práticas destoantes do catolicismo. Este documento
é uma obra de grande importância para o entendimento da organização da vida social e religiosa da América
portuguesa. Foi impresso em Lisboa (1719), em Coimbra (1720) e no Brasil apenas em 1853. FEITLER, Bruno;
SOUZA, Evergton Sales. (orgs) A Igreja no Brasil: Normas e práticas durante a vigência das Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Editora Unifesp, 2011.
13
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Senado Federal,
Conselho Editorial, 2011, p. 314 – 315.

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Ainda de acordo com as definições de Rafael Bluteau, a magia, que se encontra
interligada ao verbete mágica, seria a arte de fazer efeitos maravilhosos, por segredos naturais
ou por ações diabólicas.14 Bebendo desta fonte, entre outras, Francisco Bethencourt, ao tratar
das magias em Portugal durante o século XVI, apresenta dois campos principais dos quais se
subdividem a magia: a magia natural e a magia diabólica.15 A magia natural seria a que por
meios naturais os homens seriam capazes de produzir efeitos extraordinários. A magia diabólica
seria aquela em que o demônio estaria com plena participação nos atos sobrenaturais, através
de pactos e invocações. Neste bojo, o elemento chave é a ideia de prodígio, inerente às duas
formas de magia. Nas palavras de Bethencourt,

Os prodígios procedem, portanto, das virtudes extraordinárias de certos elementos da


natureza, do engenho humano e da intervenção do demônio. A fronteira entre magia
natural e magia diabólica, entre virtude e superstição, é tênue e fluida, dependendo
em muitos casos não de diferenças de conteúdo, nem sequer de forma, mas dos
processos de legitimação consagrados pela Igreja e pela Coroa.16

Ou seja, tendo como centro os elementos da natureza, o engenho humano, ou mesmo as


potencialidades diabólicas, o prodígio seria a eficácia da conjugação do intento mágico com
estes respectivos elementos. No entanto, o autor não deixa de apontar a tenuidade das fronteiras
entre estas formas de magia, tendo em vista que, para o caso português, os procedimentos de
julgar e classificar eram bastante diversificados. E considerando ainda o forte teor de distorção
nas interpretações religiosas das experiências espirituais investigadas.
Neste sentido, atentos a toda esta polissemia espiritual e conceitual, trabalhamos com a
ideia de feitura,17 situando-nos estrategicamente neste oceano de possibilidades. As feituras
condensariam o processo de compreensão e elaboração do instrumento mágico, levando em
consideração a disseminação dos saberes sobrenaturais experienciados em diferentes paragens.
As experiências e vivências de feitores e clientes das magias apareciam de forma bastante
significativa no momento da construção do instrumento mágico.
Devemos estar atentos a estes elementos, pois eles desvelam, com riqueza de detalhes,
dimensões da vida mental e material dos investigados, ou mesmo das testemunhas interrogadas.

14
BLUTEAU, Rafael. Diccionario da língua portuguesa, Op. Cit., p. 42.
15
BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia: feiticeiros, adivinhos e curandeiros em Portugal no
século XVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 171 – 172.
16
Idem, p. 172.
17
RANGEL, Felipe Augusto Barreto. Aos sinais das Ave Marias: furto de hóstias, feituras de proteção e o desenho
religioso da Bahia setecentista. O caso das Diligências de Muritiba. Feira de Santana, 2015. (Dissertação de
Mestrado em História, PGH – UEFS)

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Denúncias, pareceres, cadernos, processos e papéis avulsos, encontram-se recheados de
experiências e vivências dos colonos atlânticos. As práticas mágicas se ancoravam
grandiosamente no cotidiano de quem as utilizava, de forma que todo tipo de informações
integram os registros. Alguns cuidados devem ser tomados ao visitarmos estas janelas do
passado, assim como com qualquer outra fonte, tendo em vista o contexto repressor e
estereotipado de construção dos documentos.18
Neste sentido, a próxima parte tratará da trama em que esteve envolto o mestiço forro
Pedro Rodrigues. Localizamos dois conjuntos de documentos sobre ele: um processo19
(iniciado em 18 de outubro de 1790 e concluído em 01 de agosto de 1792), e um sumário20
(iniciado em 19 de outubro de 1791 e concluído em 24 de janeiro de 1792). O sumário traz um
conteúdo semelhante ao processo, além do acréscimo de um questionário, a ser aplicado na
inquirição das testemunhas. Metodologicamente, cruzamos os dados de ambas as
documentações, sob o prisma da ciência dedutiva e do paradigma indiciário, burilados pelo
historiador italiano Carlo Ginzburg,21 no intuito de compor um mosaico sobre as experiências
e atitudes de nosso investigado.
Não pretendemos apenas evidenciar as práticas de Pedro Rodrigues, documentadas pelo
Santo Ofício, nem muito menos dissolvê-lo num universo quase descarnado de religiões e
religiosidades modernas. Na tentativa de estabelecermos um diálogo entre o local e o global,
pretendemos valorizar as experiências particulares deste sujeito, atentos aos retalhos de sua
trajetória, “à vivacidade e dramaticidade dos enredos singulares”,22 conferindo-lhe um rosto
diante do intrincado lastro das espiritualidades que se desenhavam na Bahia setecentista. Sua
trajetória, com o posicionamento dos detalhes das experiências de todos os partícipes, conferem
a especificidade do caso. Desse modo justifica-se a necessidade de evidência, tendo em vista
que durante muito tempo apenas os grandes nomes possuíam destaque nos estudos históricos.

18
GINZBURG, Carlo. O Inquisidor como antropólogo. Revista Brasileira de História, São Paulo, Vol. I, no. 21,
pp. 09 - 20, 1990/1991.
19
ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO (Doravante: ANTT), Processo de Pedro Rodrigues, Núm.
6681, 1790 – 1792. (Disponível em: <http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=2306741>, acesso no dia 29/04/2013)
20
ANTT, Sumário de Pedro Rodrigues, Núm. 17781, 1791 – 1792. (Disponível em:
<http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=2317769>, acesso no dia: 29/04/2013)
21
GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição.
São Paulo: Companhia das Letras, 2006; GINZBURG, Carlo. Os Andarilhos do Bem: feitiçarias e cultos agrários
nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2010; GINZBURG, Carlo. História Noturna:
decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma
indiciário. In. GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das
Letras, pp. 143 – 179, 1989.
22
VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da História: micro-história. Rio de Janeiro: Campus, 2002, p.
149.

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Experiências Mágicas de Pedro Rodrigues
Pedro Rodrigues era mestiço forro e morador na Freguesia de Santo Amaro da
Purificação, no Recôncavo da Bahia. Consta que sua naturalidade era ignorada, apesar de sua
ascendência africana transparecer na condição de mestiço forro, e também em suas práticas,
como veremos mais à frente. Foi acusado de ser um supersticioso, em 1790, devido às suas
práticas de adivinhação e curandeirismo. Santo Amaro foi fundada em meados do século XVI,
às margens do rio Subaé, a pouca distância de São Salvador e da Freguesia de Cachoeira –
maior vila do Recôncavo.23 Sob orago de Nossa Senhora da Purificação, a igreja matriz de
Santo Amaro foi construída em 1706. Durante o século XVIII, o Recôncavo da Bahia, porção
de terras à qual se encontra Santo Amaro, era famoso pela produção de tabaco, cana de açúcar
e farinha de mandioca.
Bert Barickman, ao tratar das configurações econômicas do mundo escravista, nos diz
que o açúcar provinha especialmente de São Francisco do Conde, Santo Amaro e da freguesia
de Santiago do Iguape; o fumo de Cachoeira; e a farinha, das vilas do sul.24 Barickman aponta
a existência de um tripé, formado pela produção de cana, fumo e farinha de mandioca;
exportação de açúcar, importação de escravos e subsistência, respectivamente. Este era o
complexo econômico ao qual o nosso supersticioso Pedro Rodrigues estava inserido.
Uma forte dinâmica integrava todos os pontos da Bahia colonial. A relação entre a
cidade de São Salvador, o Recôncavo e os sertões – interior da capitania – era de grande
dependência, de forma especial pelos gêneros de origem bovina. Salvador necessitava da carne
que o sertão fornecia, somada ao sebo e ao couro que eram utilizados para diversos fins. Este
último era utilizado largamente na Vila de Cachoeira para embalar os rolos de fumo – produto
de grande importância no comércio de africanos escravizados, na Costa da Guiné. Os bois ainda
eram usados nos engenhos, para transporte e para fazer girar a moenda. De acordo com
Schwartz, “Grandes boiadas percorriam às vezes sessenta quilômetros por dia com destino às
feiras da orla do Recôncavo, onde um ativo comércio tinha lugar”25. Neste interim, um imenso
trânsito de pessoas e saberes se efetivava pelos entornos do Recôncavo.

23
BARICKMAN, Bert J. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 1780 –
1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 102.
24
Idem, p. 44.
25
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550 – 1835). São Paulo:
Companhia das Letras, 1988, p. 88.

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Nas transações do tráfico de africanos o fumo baiano possuía grande predileção - “entre
1700 e 1750, enquanto as exportações anuais de fumo para Portugal se mantiveram em torno
de 170 mil arrobas, aquelas destinadas à África ocidental aumentaram de menos de trinta mil
arrobas para duzentas mil”.26 Os africanos escravizados eram extremamente necessários nas
demandas da América lusa e, em outros termos, de acordo com o jesuíta Antonil, “os escravos
são as mãos, e os pés do senhor de engenho”.27 Eles tinham grande importância nas
movimentações do Recôncavo, alavancando as empreitadas portuguesas, apesar de não se
concentrarem apenas nas lides agrárias. Grandes levas de africanos, de diferentes etnias, foram
desembarcadas na Bahia colonial, imprimindo e disseminando suas vivências e saberes da outra
margem do Atlântico neste novo espaço da América lusa.28
As documentações que encontramos falam pouco sobre a presença de Pedro Rodrigues
neste complexo, apesar de situar algumas de suas atitudes. Nos cabeçalhos da documentação,
na parte referente a “cargos, funções e atividades” o réu aparece como adivinho e curandeiro.
Estes dados foram apresentados pelos denunciantes, já que o réu não chegou a ser convocado
para nenhum interrogatório. Os registros centram-se nas narrativas públicas de seus feitos
mágicos, oferecendo-se na realização de serviços espirituais, publicizando suas virtudes e
potencialidades, situação que incomodava bastante as instâncias religiosas católicas e também
ao poder metropolitano.
De acordo com Dom Sebastião Monteiro da Vide, Arcebispo da Bahia e responsável
pela Província Eclesiástica do Brasil, no início do século XVIII existiam 44 igrejas paroquiais
em toda a capitania da Bahia, com mais de 90 mil almas. Contando “600 léguas para cima”,
existiam 20 no recôncavo, seis em Salvador, seis na parte sul e 12 ao norte – “de sorte que se
as ditas freguesias se repartissem em distritos iguais teria cada uma quase 20 léguas de terreno,
e com efeito, algumas ha que se estendem a mais de 20 léguas, e certamente todas as de fora da
cidade excedem de 2 léguas”.29
De acordo com os levantamentos assinados pelo comissário Dâmaso José de Carvalho,
em 1792, o Arcebispado da Bahia contava com 93 freguesias, 15 aldeias e missões, 13

26
BARICKMAN, Bert J. Um contraponto baiano, Op. Cit., pp. 64 - 65.
27
ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brazil, por suas drogas e minas, com varias noticias curiosas
do modo de fazer o assucar, plantar e beneficiar o tabaco; tirar ouro das minas, e descobrir as da prata, e dos
grandes emolumentos que esta conquista da America Meridional dá ao reino de Portugal, com estes, e outros
generos e contratos reais. Impresso em Lisboa, na officina real deslanderina com as licenças necessárias, no anno
de 1711. Reimpresso no Rio de Janeiro, 1837, p. 31.
28
Sobre esta diversidade de africanos traficados durante o período colonial, Cf. RANGEL, Felipe Augusto Barreto.
Aos sinais das Ave Marias, Op. Cit., pp. 46 – 49.
29
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, Op. Cit., p. 332.

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conventos de religiosos (5 de franciscanos capuchinhos, 3 beneditinos, 3 carmelitas calçados,
1 de carmelitas descalços e 1 de agostinianos calçados) e seis hospícios, dos quais a grande
maioria pertencia a ordens religiosas. Deste total, 24 freguesias se localizavam no Recôncavo
baiano.30 Não encontramos censos que pudessem nos situar de forma mais precisa perante as
populações do Recôncavo neste período.
A denúncia de Pedro Rodrigues foi apresentada em 19 de outubro de 1791, perante o
comissário do Santo Ofício José Nunes Cabral, vigário da igreja de Nossa Senhora das Brotas,
Arcebispado da Bahia. Neste período, o vigário da matriz de Santo Amaro era o padre Lourenço
Vilas Boas, também comissário do Santo Ofício. Este último estava ausente, segundo as
documentações – provavelmente resolvendo alguma pendência eclesiástica, ou mesmo nas
diligências de desobriga em lugares de difícil acesso aos preceitos católicos.
Pedro Rodrigues era tido por curandeiro e adivinho, devido às inúmeras práticas
mágicas que promovia. Talvez, diante de todas as adversidades que os colonos enfrentavam,
seus prestimosos serviços sobrenaturais tenham sido tão requisitados a ponto de ter este único
ofício a se dedicar. Os documentos inquisitoriais revelam inúmeros sujeitos nesta situação por
todo o Atlântico. Alguns, como o angolano Vicente de Morais, acusado de sacrilégio e feitiçaria
em 1716, já era tido como “mestre mandingueiro”31, construindo e comercializando
instrumentos mágicos.
Na América lusa a adivinhação32 e curandeirismo33 eram práticas recorrentes. A
adivinhação (busca por objetos perdidos, animais, escravizados, dinheiro, tesouros etc) era
associada ao diabo, pois os religiosos acreditavam que conhecer o futuro estava além das
potencialidades humanas. Os instrumentais de adivinhação eram vários – usavam-se pedras,
objetos, ossos humanos e de animais, água, vegetais, objetos da ritualística cristã, orações etc.
As práticas de curas voltavam-se para o presente, tendo africanos, índios e mestiços (o próprio
Pedro Rodrigues) como grandes curandeiros, por possuírem conhecimento aprofundados de
ervas e procedimentos rituais. Tratava-se os males do corpo (insolação, dores de cabeça e de
dente) e da alma (feitiços). As curas por meios sobrenaturais aproximavam-se das feitiçarias.

30
ANTT, Mapas das instituições eclesiásticas e das freguesias da ilha dos Açores, e da Baía, Brasil, que recebem
editais, Mç. 63, Núm. 4, 1792. (Disponível em: <http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4482104>, acesso no dia
10/02/2012)
31
ANTT, Processo de Vicente de Morais, Núm. 5477, 1716 – 1717, fls. c0037. (Disponível em:
<http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=2305504>, acesso no dia 10/10/2011)
32
Cf. Adivinhação. In SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz, Op. Cit., pp. 210 a 222.
33
Cf. Curas. In SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz, Op. Cit., pp. 222 a 245.

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Na África, os adivinhos eram bastante requisitados, pois auxiliavam na manutenção do
equilíbrio das comunidades, ao buscarem explicações no mundo sobrenatural. Segundo James
Sweet, durante os séculos XVII e XVIII, a adivinhação era muito usada pelos africanos para
explicar, prever e controlar o mundo a sua volta.34 Cada região africana possuía especificidades
rituais. Através dos casos listados por Sweet, especialmente os que se referiam à Bahia colonial,
o uso de líquidos, sem ou em ebulição, os quais deveriam entrar em contato com os corpos de
acusados, enfeitiçados etc, possuem destaque.35 A diáspora atlântica teceu policromias diversas
para estas práticas de origem africana, diante dos novos contextos e situações. Mas as
especificidades não se perderam completamente. Ainda de acordo com James Sweet, no que
concerne a um lastro espiritual atlântico,

Embora os africanos partilhassem diversas formas de adivinhação, baseadas em


heranças culturais específicas – várias “provas físicas” na África Central, cerimónias
com água na Costa da Mina etc. – existiam alguns rituais que, na sua semelhança
transcendiam as diferenças étnicas e os espaços geográficos. 36

Uma das situações de maior visibilidade revela que, certo dia, Pedro Rodrigues foi
chamado pelo lavrador de canas do Engenho dos Santos Reis, Antônio Ferreira de Essa, homem
branco, casado, para curar uma escravizada sua de feitiços. O fato de ser chamado para este tipo
de serviço coloca em evidência a publicidade do ofício de Pedro Rodrigues, o qual devia atender
a todos os extratos sociais. Em se tratando das práticas mágicas na América portuguesa, todas
as camadas sociais – brancos, escravizados, pardos, crioulos, entre muitos outros - eram sujeito
e objeto delas.37 O lavrador branco estava preocupado com a saúde de sua escravizada, afinal
era um bem precioso, a ponto de ir de encontro às condenações do catolicismo para com as
magias. No entanto, como vimos anteriormente, em se tratando das demandas cotidianas da
América colonial, todos os auxílios sobrenaturais eram bem-vindos.
Por mais que a Inquisição portuguesa desenrolasse seus longos tentáculos sobre todas
as margens atlânticas, a circulação de magias era intensa. Através da oralidade, os importantes
serviços de feiticeiros, adivinhos e curandeiros circulavam, fundindo e refundindo concepções
e experiências sobrenaturais. Esta publicização incomodava grandiosamente os religiosos
cristãos, pois fomentava um poder espiritual paralelo aos rituais sacros do catolicismo. Mas isso

34
SWEET, James H. Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português (1441 – 1770).
Lisboa: Edições 70, 2007, p. 145.
35
Idem, pp. 147 a 157.
36
Idem, p. 158.
37
SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz, Op. Cit., p. 260.

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não quer dizer que os padres não se entregassem às práticas mágicas também. Vale citar o caso
de frei Luís de Nazaré, religioso carmelita da Província da Bahia, morador em Salvador. Foi
acusado em 1740 por abuso de mulheres, falsos exorcismos, práticas mágicas e curas
supersticiosas.38 Frei Luís de Nazaré não era o único.
A eficácia das magias era mais imediata na resolução dos problemas cotidianos do que
seguir o que o catolicismo prescrevia. A repetitiva recitação de terços, orações, novenas,
ladainhas e missas possuía eficácia bastante demorada diante da dinamicidade que os dramas
cotidianos solicitavam.
A documentação revela a crença de que a dita escravizada estava enfeitiçada, e cita que
a cura pretendida por Pedro Rodrigues iria ser feita por “meios ilícitos”39. Cremos que o
denunciante que relatou a situação, nestes termos de perfil heterodoxo, sabia o que os
representantes do Santo Ofício queriam e buscavam, e tratou de se desligar ao máximo das
atitudes do supersticioso Pedro Rodrigues. O momento em que a testemunha denunciava era
balizado por uma série de tensões, pois, em cada depoimento “pesava sempre a ameaça de ser
transformada em réu por procedimento análogo ao que ela tivera quando denunciara
voluntariamente um conhecido. (...) a Inquisição transformava cada testemunha num réu em
potencial”.40 Segundo o dito denunciante, Pedro Rodrigues,

Logo que chegou à casa do mesmo Antônio Ferreira, mandou este por insinuações do
tal curador pedir a ele denunciante que lhe benzesse um pote de água, para se servir
dela no uso dos seus remédios, o que o denunciante não quis fazer, antes a ambos
mandou repreender severamente.41

O procedimento de Pedro Rodrigues parece mais simples que os listados por James
Sweet, por exemplo, citado há poucas linhas. Ao menos no início, algum ritual de benzedura
deveria ser feito – salvo o desconhecimento do denunciante, ou mesmo o desejo de se
desvincular de possíveis envolvimentos com os tribunais. A água benta deveria ser usada para
algum remédio. Cremos que as potencialidades de Pedro Rodrigues iam além do que fora
descrito, e que desenrolaremos mais à frente.
O branco Antônio Ferreira Essa foi quem convocou o adivinhador e curandeiro para
salvar sua escravizada, mas também foi o mesmo que denunciou aos religiosos as práticas de
Pedro Rodrigues, contribuindo no desenrolar da denúncia. Não encontramos nenhum indício

38
SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz, Op. Cit., p. 144.
39
ANTT, Processo de Pedro Rodrigues, Op. Cit., fls. m0005.
40
SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz, Op. Cit., p. 397.
41
ANTT, Processo de Pedro Rodrigues, Op. Cit., fls. m0005.
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que apresentasse outras motivações para a denúncia, para além de seu caráter “ilícito”. Pode ser
que Pedro Rodrigues tenha fracassado em sua empreitada, que tenha ofendido de alguma forma
o dito Antônio... São inúmeras as possibilidades. Interessante como este branco se colocou em
seu depoimento, ao afirmar ter repreendido severamente as práticas de Pedro Rodrigues, mesmo
após ter dito que ele mesmo que convocou o adivinho curador.
Outras pessoas também foram denunciantes: José Manuel, viúvo, branco, morador no
engenho do capitão Caetano Moreira; José Moreira Freyre, solteiro, morador no mesmo
engenho supracitado, filho do capitão Caetano Moreira; além de Francisco Gonçalves, pardo
forro, feitor do engenho de Santa Ana, pertencente a Dona Izabel, viúva de José Pires de
Carvalho. Todos eles eram residentes nos arrabaldes da Freguesia de Santo Amaro da
Purificação.42
O padre baiano Nuno Marques Pereira,43 conhecido como o “Peregrino da América”,
fez observações interessantes sobre as espiritualidades africanas, no início do século XVIII, e
mostrou a relativa “tolerância” de certos senhores de engenho para com as crenças de seus
escravizados. Deparou-se, em uma de suas viagens, com um ritual de calundus, que o
incomodou durante toda a noite, devido ao “estrondo de atabaques, pandeiros, canzás, botijas,
e castanhetas; com tão horrendos alaridos, que se me representou a confusão do inferno”.44 Na
manhã seguinte, ao pedir esclarecimentos ao dono da casa, obteve a resposta de que aquilo

São uns folguedos, ou adivinhações, (me disse o morador), que dizem estes pretos que
costumam fazer nas suas terras, e quando se acham juntos, também usam deles cá,
para saberem várias coisas; como as doenças de que procedem; e para adivinharem
algumas coisas perdidas; e também para terem ventura em suas caçadas, e lavouras; e
para outras muitas coisas.45

O dono da casa ainda tentou se justificar do incômodo, dizendo que se soubesse que
causaria tamanho transtorno “mandaria que esta noite não tocassem os pretos seus calundus”.46
Pelo visto, não era a primeira vez que aquele tipo de manifestação, que remontava a práticas
realizadas na África, acontecia. Nem era o único. O religioso repreendeu o dono da casa, ao

42
ANTT, Processo de Pedro Rodrigues, Op. Cit., fls. m0005.
43
PEREIRA, Nuno Marques. Compendio narrativo do peregrino da America em que se tratam vários Discursos
Espirituaes, e Moraes, com muitas advertencias, e documentos contra os abusos, que se achão introdusidos pela
malicia diabolica no Estado do Brasil. Dedicado à Virgem da Vitoria, emperatris do Ceo, Rainha do Mundo, e
Senhora da Piedade, Mãy de Deos. Lisboa: Na Officina de Manoel Fernandes da Costa, Imprenssor do Santo
Officio, 1728. (Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/02118110#page/1/mode/1up>,
acesso no dia 17/05/2014)
44
PEREIRA, Nuno Marques. Compendio narrativo do peregrino da America..., Op. Cit., p. 123.
45
Idem, pp. 123 - 124.
46
Idem, p. 123.
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afirmar que o apoio a estas crenças iria torná-lo um excomungado. Segundo os relatos, os
instrumentos foram destruídos e o ritual proibido. O que esta narrativa revela é a forma como
este senhor permitia que seus escravizados realizassem seus cultos em suas terras, em
detrimento ao preceituário cristão. E situações como esta possuíam um simbolismo bastante
representativo no bojo das relações sociais escravocratas, pois

sempre que os brancos pediam a escravos africanos que procedessem a adivinhações


em seu nome, os africanos tinham a oportunidade de transformar o poder religioso em
resistência à escravatura. Alguns adivinhos eram capazes de assegurar uma maior
quantidade de poder temporal do que outros, mas o próprio acto de consultar africanos
constituía uma aceitação do poderio espiritual africano, o que resultava em fissuras
no poder colonial e no regime de escravatura. 47

Dom Sebastião Monteiro da Vide, V Arcebispo da Bahia e Primaz do Brasil, fala sobre
o descuido espiritual para com os africanos. Mencionou algumas punições e afirmou que era
impossível “proceder-se contra os negligentes (os senhores) com as penas que estão cominadas,
em razão que fora da cidade geralmente todos são negligentes nesta parte”.48 Ou seja, se nas
cidades já era difícil manter a distribuição do alimento espiritual, na ruralidade as condições
eram ainda piores. Mais à frente o Arcebispo diz:

toda a causa dos inconvenientes ponderados ainda a respeito dos escravos resulta de
serem poucas as igrejas paroquiais, poucos os párocos, poucos os coadjutores e
confessores que temos neste arcebispado, em que finalmente há extrema necessidade
de operários49.

Ele não mencionou, mas talvez o Arcebispo não soubesse que na falta de igrejas, padres e missas,
sujeitos como Pedro Rodrigues assumiam o papel de gestores, ou feitores, do universo espiritual.
O nosso supersticioso foi invocado para solucionar as agruras vivenciadas por uma
escravizada, ao qual suspeitavam estar acometida de feitiços. Não foi citado se fora convocado
para adivinhar a natureza do feitiço, ou quem o lançou, ou se para curar a enferma. Muitos eram
os feitiços feitos por escravizados. Antonil, ao tratar dos feitiços, ou “peçonha”, como ele
mesmo chamou, apontou que os negros eram “mestres insignes nesta arte”.50 A documentação
não revela os motivos e o desfecho da situação à qual Pedro Rodrigues fora convocado. No

47
SWEET, James H. Recriar África, Op. Cit., p. 165.
48
VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Noticias do Arcebispado da Bahia para suplicar a sua Magestade em favor do
culto divino e salvação das almas. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 1891,
Parte I, Tomo LIV, p. 340. (Disponível em <www.ihgb.org.br/rihgb.php?5=p>, acesso no dia 01/11/2014)
49
VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Op. Cit., p. 340.
50
ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brazil, Op. Cit., p. 33.

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entanto, o curandeiro e adivinhador aproveitou a situação para oferecer seus variados serviços
sobrenaturais aos presentes: sabia “fazer invulnerável a que chamam fechar corpo”.51
Se Pedro Rodrigues cobrava algo por seus serviços não foi registrado. De acordo com
Daniela Buono Calainho, alguns africanos em Portugal cobravam por este tipo de serviço, com
dinheiro ou com gêneros, estratégia que minimizava suas precárias condições de existência.52
Encontramos registros de outros mandingueiros que cobravam pelos serviços, como no caso do
angolano Vicente de Morais que fazia “bolças para alguns seus amigos como para uns pretos
(...) ganhando nisto algum estipendio como se fora ofício que tinha aprendido para ganhar o
necessário”.53
Além disso, consta que Pedro Rodrigues benzeu uma conta,54 a qual Jeronimo de
Castro, homem de Portugal, trazia em um de seus braços. Ao fazer determinados sinais com o
braço, além de proferir algumas palavras, a dita conta tinha o poder de “conhecer quem diz mal
dele”.55 A conta estava enfiada em um cordão, ao qual poderia correr ou parar por sua extensão,
de acordo com as palavras ditas. Mas as potencialidades, os prodígios de Pedro Rodrigues não
pararam por aí: seu delator afirmou ver, além de ser
público naquele distrito que travando-se uma pendência entre ele e outra pessoa, e
rumando-lhe aos peitos uma lança com tal força que o levara a uma parede com cujo
impulso esta tremera, e só não obstante a lança o não ferira.56

Benzedura de objetos, curandeirismo, adivinhação, virtudes de estabelecer blindagens


corporais eram grandes as potencialidades de Pedro Rodrigues. Não encontramos referências
se a escrava foi curada, no entanto, o réu aproveitou a ocasião para propagandear seus
préstimos, apesar de tudo aquilo já ser “público naquelas vizinhanças”.57 Não só Pedro

51
ANTT, Processo de Pedro Rodrigues, Op. Cit., fls. m0003.
52
CALAINHO, Daniela Buono. Metrópole das Mandingas: religiosidade negra e Inquisição portuguesa no Antigo
Regime. Rio de Janeiro: Garamond, 2008, p. 94.
53
ANTT, Processo de Vicente de Morais, Op. Cit., fls. m0016.
54
João José Reis trata ainda do uso de amuletos no século XIX, na Bahia. Aponta que “Devem-se também
considerar como uso ritual, não só decorativo, as muitas contas de vidro e outros materiais, além de corais soltos
ou enfiados em colares, em alguns casos de mistura com contas de ouro. O príncipe Maximiliano de Habsburgo,
depois fracassado imperador do México, ao visitar a Bahia em 1860, descreveu encantado a elegância dos negros
que circulavam pelas ruas da cidade e observou que “contas de vidro com amuletos profanos pendem em longas
voltas sobre o peito”. Wetherell viu contas corais decorarem o corpo de crianças negras. O inglês também observou
que os negros usavam à guisa de amuletos, pulseiras de conta de vidro opaco de diversas cores, importados da
costa da África, quiçá por acreditarem que servissem como protetores mais poderosos.” REIS, João José.
Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008, p. 118. O autor acrescenta ainda que “As contas não eram de uso apenas ornamental,
mas consideradas objetos plenos de força mística, o axé ioruba, portanto um componente fundamental dos poderes
divinos dos obás iorubas.” REIS, João José. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e
candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 120.
55
ANTT, Processo de Pedro Rodrigues, Op. Cit., fls. m0003.
56
Idem.
57
ANTT, Processo de Pedro Rodrigues, Op. Cit., fls. m0006.
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Rodrigues, mas inúmeros outros sujeitos eram convocados para resolver estas demandas
espirituais, e, consequentemente, seus feitos mágicos circulavam através da oralidade,
conferindo fama a alguns deles. As documentações do Santo Ofício revelam que as
necessidades eram grandes, diante de toda a atipicidade que as empreitadas atlânticas
suscitavam.
O trecho supracitado, que fala de uma pendência, da qual o réu saiu ileso, apesar de ser
alvejado fortemente por uma lança aos peitos, evoca uma descrição bastante semelhante às
pendências que também aparecem nas vivências do soldado Vicente de Morais, tratado algumas
vezes aqui. No caso de Vicente, a bolsa de mandinga foi o centro de seus feitos, promovendo
uma blindagem corporal, que o defendia de lanças e espadas de seus inimigos. No caso de Pedro
Rodrigues, apenas é mencionada a virtude de “fechar corpo”, mas a situação descrita é bastante
semelhante. Se ele tinha uma bolsa escondida, não sabemos.
Ter o “corpo fechado” significava que o indivíduo submetido a determinados rituais, ou
mesmo que fosse portador de instrumentos mágicos, não teria seu corpo vulnerável a qualquer
ofensa. As bolsas de mandinga58 são um bom exemplo desta lógica de fechamento do corpo.
Eram pequenos embrulhos, de couro ou pano, que congregavam em seu interior uma série de
ingredientes que, quando interligados, promoviam uma blindagem protetora sobre o corpo de
seu portador.
As dinâmicas e conexões atlânticas se revelam nestas similitudes das vivências, dos
elementos que se evidenciavam em todas as suas margens. Em Angola, o universo mágico
corporal dos amuletos configurou-se em torno das mandingas. Na América lusa, a virtude
semelhante, o prodígio, circunscreveu-se em outras terminologias – o fechar corpo. Não
queremos apontar uma ligação direta entre práticas mágicas de ambos os lados. Sinalizamos
apenas a existência de um lastro espiritual comum entre elas que, a partir da leitura dos indícios,
nos dão licença para equiparar crenças de um e do outro lado.
A pesquisa de Eduardo França Paiva59 revelou a existência desta necessidade de “fechar
o corpo” entre as milícias negras nos sertões da Bahia e em Minas Gerais. O autor trabalhou
com um episódio específico, podendo ser equiparado com as lógicas de “fechar corpo” de Pedro
Rodrigues, além das questões belicosas do ambiente vivenciado pelo soldado angolano Vicente

58
SANTOS, Vanicléia Silva. As bolsas de mandinga no espaço Atlântico, século XVIII. Tese (Doutorado em
História Social) Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
59
PAIVA, Eduardo França. De corpo fechado: gênero masculino, milícias e trânsitos de culturas entre a África
dos Mandingas e as Minas Gerais da América, no início do século XVIII. In. FURTADO, Júnia Ferreira; LIBBY,
Douglas Cole. (orgs) Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVII e XIX. São Paulo:
Annablume, pp. 113 – 129, 2006.
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de Morais, ambos tratados acima. As pessoas que transitavam pelos inóspitos espaços da
colônia necessitavam de proteção espiritual eficaz, e as mandingas, contas, escapulários, bolsas,
entre outros, eram uma possibilidade construída, ou reconstruída, pelas dinâmicas atlânticas.
Não comungamos com a ideia de procedência geográfica do autor, já que as mandingas estavam
bem mais ligadas ao espiritual do que a uma procedência geográfica.
A questão da mandinga, e de algumas de suas variações, se insere num universo bastante
dinâmico de classificação de práticas mágicas. Podemos citar, no bojo das possíveis
ponderações, os enquadramentos incertos das magias fornecidos pelos contextos escravocratas
e dos estereótipos religiosos. As assertivas da pesquisadora Vanicléia Silva Santos, acerca da
morfologia inerente a estes amuletos de proteção, como exemplo, nos dizem que

Bolsas de mandinga era um termo “guarda-chuva” que agregou africanos de diversas


origens, crioulos e brancos. A partir de interesses e traços culturais comuns, a
população colonial aderiu ao uso de saquinhos de pano ou de couro, dentro do qual
cabia tudo que uma colônia marcada pela miscigenação cultural podia comportar. 60

A autora mostrou como o termo mandinga foi associado às práticas mágicas, ao universo
religioso atlântico, do que a uma procedência geográfica. Vale repetir ainda que nem todos os
mandingueiros eram negros. O etnônimo mandinga se refere ao Mali, no oeste africano, mas as
mandingas, enquanto magia, não necessariamente possuem esta procedência.61
O africanista James Sweet62 revelou a existência de recriações de práticas africanas em
todo o atlântico português. Os fundamentos do parentesco, da política, da religião, entre outros,
foram transformados de acordo com as novas demandas nas quais os africanos se inseriram.
Enxergamos conexões entre as práticas do mestiço forro Pedro Rodrigues com outras de mesmo
perfil promovidas por africanos e seus descendentes, especialmente na região centro africana.
Segundo Sweet,

Os africanos não necessitavam de “converter” os Portugueses ao seu sistema de


crenças porque as religiões africanas provavam o seu valor através de resultados
temporais. Enquanto que a teologia católica era abstracta e etérea para a maioria dos
africanos – exigindo uma grande dose de fé – a adivinhação africana, as curas e as

60
SANTOS, Vanicléia Silva. As bolsas de mandinga no espaço Atlântico, Op. Cit., p. 233.
61
SANTOS, Vanicléia Silva. Mandingueiro is not Mandinka: the debate among nation, ethnicity and others
designations assigned to Africans in the context of the slave trade. In: LASA2013 XXXI International Congress
of the Latin American Studies Association, 2013, Washington DC. LASA2013. Washington - DC: electronic, Vol.
I, pp. 01 – 20, 2013. (Disponível em:
<https://www.academia.edu/4302331/Vanicleia_Silva_Santos._Mandingueiro_is_not_Mandinka_the_debate_am
ong_nation_ethnicity_and_others_designations_assigned_to_Africans_in_the_context_of_the_slave_trade._LAS
A_2013>, acesso no dia 17/02/2014)
62
SWEET, James H. Recriar África, Op. Cit.

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doenças causadas pela “feitiçaria” mostravam ser bastante reais para os portugueses.
A eficácia dos rituais africanos era comprovada diariamente através de dados
empíricos, à medida que os praticantes testavam o poder e a boa vontade das várias
divindades e espíritos ancestrais. Ainda assim, Portugueses e africanos partilhavam
entre si um conjunto de símbolos e ideias religiosas. Alguns adoptavam apenas os
elementos simbólicos que tinham eco junto das suas próprias mundividências,
enquanto que outros movimentavam-se gradualmente no sentido da aceitação de
cosmologias duais.63

Ou seja, o processo de conversão, como convencionalmente conhecemos, era


necessidade estrutural do cristianismo, dos europeus ávidos por “expandir” e “evangelizar”. O
contexto colonial invertia muitas vezes a ideia de proselitismo e conversão, abrindo os
caminhos para que a eficácia espiritual imediata e comprovada brilhasse com mais intensidade
aos olhos das agruras cotidianas. Mais uma vez, vivência e experiência falavam mais alto no
universo colonial. E as magias atendiam muito bem a este imediatismo.
Após ser denunciado, Pedro Rodrigues desapareceu. De acordo com os registros do
vigário José Nunes Cabral, datado de 24 de janeiro de 1792, “esteve algum tempo naquele
contorno usando de seus embustes, e enganos; porém dali se ausentou, e não pude descobrir de
onde viera nem para onde fora”.64 Deste modo, nosso supersticioso se revelou em trânsitos, o
que fortalece a ideia de que o sobrenatural – chamado de “embuste” e “engano” pelo religioso
– fosse a matéria prima de seu ofício.
Neste documento, o mesmo religioso ainda cita outros sujeitos envoltos em experiências
de perfil semelhante: “É certo também que em outro da Vila de Santo Amaro nas vizinhanças
do engenho dos Padres de São Bento se acha assistindo outro semelhante, como depõem as
testemunhas, porém não achei pessoa que dissesse o nome”.65 Também cita um pardo, chamado
de Manuel de Passos, casado na mesma Freguesia de Santo Amaro, ausente de sua legítima
mulher e casado com outra nos campos da Vila de Cachoeira, além de André Furtado dos
Santos, sem mais informações sobre este último. A queixa do reverendo por mais dados sobre
estes sujeitos encerra o desenrolar da trama de Pedro Rodrigues. Seu argumento centra-se no
fato de que muitos depoimentos e denúncias faltavam com a verdade, além de conterem outros
erros. Imprecisões... assim como toda a sorte de magias da América colonial.

Considerações Finais
As práticas mágicas no Atlântico português se ancoravam nas vivências de seus
partícipes. Enquanto sujeitos ou objetos delas, todas as camadas sociais se viam envolvidas com

63
Ibidem., p. 255.
64
ANTT, Sumário de Pedro Rodrigues, Op. Cit., fls. m0007.
65
Ibidem.
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a plasticidade deste universo espiritual. As experiências cotidianas dos sujeitos contribuíam no
processo de feitura de instrumentos voltados para a proteção corporal, a resolução de problemas
financeiros, afetivos, entre outros. E estes mesmos instrumentos constituíam representações
acerca do próprio universo ao qual estavam inseridos. Os sujeitos que habitavam a colônia
estavam sujeitos a uma série de situações que exigiam instrumentos sobrenaturais específicos
e condizentes àquela realidade – apontada por Laura de Mello e Souza como “condição
colonial”.66
A forma como as documentações inquisitoriais foram construídas contribuem
grandiosamente para o trabalho de todos os pesquisadores interessados pelas vivências dos
tempos modernos. Não apenas àqueles que se dedicam às questões religiosas, tendo em vista
que todo um universo material e mental integrava os registros. Todas as informações acerca do
contexto em que as heresias eram praticadas eram caríssimas para os inquisidores. Além do
que, em se tratando da plasticidade das práticas mágicas e do papel especial que as vivências
individuais tinham nestes processos, a investigação e evidência destas minudências reveste-se
de grande importância, pois desvela concepções de mundo importantíssimas no bojo do diálogo
entre o local e o global. Revela ainda facetas mestiças da colônia portuguesa, especialmente no
século XVIII – momento em que encontramos registros de práticas mágicas bastante específicas
às dinâmicas coloniais na América.
Pedro Rodrigues é apenas um, de uma grande gama de sujeitos que se habilitaram a
gerir as policromias espirituais das colônias atlânticas. Adivinho, curandeiro, feiticeiro,
supersticioso, mandingueiro, eram muitos os termos que os religiosos cunhavam para estes
sujeitos. Explorar casos particulares como este nos permitem adentrar num universo de
vivências miúdas, o vivido, as experiências concretas dos indivíduos, a vivacidade e
dramaticidade de enredos particulares frente às dinâmicas generalizantes, como dito. Muitas
obras já dão conta do universo mágico na Época Moderna, evidenciando grandes questões e
iluminando dinâmicas de longa duração, abarcando territórios imensos. Explorar a
particularidade de cada caso, de pequenos pontos do todo, tem a função de localizar rostos e
especificidades no meio da multidão, dando vida a sujeitos anônimos, desconsiderados durante
muito tempo pela história.

Referências bibliográficas
Livros

66
SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz, Op. Cit., p. 425.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 112-132 | www.ars.historia.ufrj.br 129
BARICKMAN, Bert J. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no
Recôncavo, 1780 – 1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
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Dissertações ou Teses:
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PEREIRA, Nuno Marques. Compendio narrativo do peregrino da America em que se tratam
vários Discursos Espirituaes, e Moraes, com muitas advertencias, e documentos contra os
abusos, que se achão introdusidos pela malicia diabolica no Estado do Brasil. Dedicado à
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Artigo

ENTRE O PRESCRITO E O PRATICADO:


ALIANÇAS, CONFLITOS E MOBILIDADE
SOCIAL NA CONSTRUÇÃO DA NORMA
ESTATUÁRIA E VIVIDA PELOS IRMÃOS DO
ROSÁRIO DE SÃO JOÃO DEL-REI (1787-1841)
LEONARA LACERDA

Resumo: Este artigo disserta sobre a formação de alianças e conflitos presentes no processo de
organização e aplicação do regimento normativo da Irmandade do Rosário de São João del-Rei,
entre os anos de 1787 a 1841. Procuramos, ao longo da exposição, analisar os ideais de
comportamentos e suas leituras diversas ocasionadas pela vivência dos confrades no cotidiano
da confraria, através do estudo das narrativas normativas e de suas interpretações na prática
devocional. Além disso, procuramos demonstrar como estas alianças hierárquicas, forjadas pela
estrutura do poder administrativo do grêmio, definiram tanto a construção de leis prescritas e
praticadas no âmbito da experiência cotidiana dos irmãos. Para cumprirmos este objetivo,
utilizamos a análise conjunta entre os estatutos e as atas de reunião da irmandade, método de
investigação que nos possibilitou alcançar o delineamento dos espaços de conflito e de
negociação engendrados durante os processos de construção da norma.
Palavras-Chave: regimento normativo; irmandade do Rosário, mobilidade social.
Abstract: This is an article about the formation of alliances and conflicts in the process of
organization and implementation of the legal regulations of the Brotherhood of Rosário of São
João Del-Rei, between the years of 1787 and 1841. We analyze, throughout the text, the ideal
behavior and its various redings caused by the experience of the members in everyday
brotherhood, through study of normative narratives and their interpretations in devotional
practice. Other than that, we wish to demonstrate how these hierarchical alliances, formed by
adminastrative power od the guild structure, defined both the construction of prescribed laws
and practiced whithin the everyday experience of the Brothers. In order to meet this parameter,
we use to joint analysis of the statues and minutes of meetings of the brotherhood, reserche
method that enabled us to achieve the space of conflict and negociation engendred during the
standard construction processes.

Artigo recebido em 30 de outubro de 2016 e aprovado para publicação em 29 de agosto de 2016.


Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail:
leonaralacerda@yahoo.com.br.

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Keywords: normative regulations, the Rosary brotherhood, social mobility.

1. Introdução: a construção da norma

As irmandades ou confrarias constituíam-se em associações religiosas cujos leigos se


reuniam em torno de uma devoção ou orago. Suas regras de funcionamento e gestão estavam
regulamentadas em um estatuto ou compromisso. Por este regimento se estabeleciam os
critérios de admissão, os valores a serem pagos pela entrada, anuidades, esmolas aos santos,
como também as normas para eleger a mesa diretora, responsável por administrar os assuntos
cotidianos da confraria. Eram suas finalidades promover o culto público devocional e a
assistência material e espiritual aos “irmãos vivos e defuntos.” A legalidade dessas instituições
dependia do aval de autoridades civis e eclesiásticas. A partir de 1765 todos os compromissos
deveriam ser enviados ao Tribunal da Mesa de Consciência e Ordens.1 Ao lado do poder régio,
a Constituição do Arcebispado da Bahia prescreveu em seu LX Título, Parágrafo 867 a
obrigatoriedade da remessa desses estatutos para a apreciação do bispado local.2
As irmandades do Rosário, conhecidas por arregimentar grande parte da população de
estrangeiros traficados, serviram como locus privilegiado para a reconstituição identitária
desses grupos na experiência da diáspora atlântica. As consolidadas pesquisas3 em torno dos
significados acerca dos papéis desempenhados pelas irmandades negras têm alcançado avanços
consistentes no que diz respeito ao redimensionamento da experiência de homens e mulheres
escravizados no Ultramar. Ao abrirem frentes de análises ancoradas em debates em torno da

1
Em 1532 foi criada a Mesa de Consciência e Ordens para resolver os casos jurídicos e administrativos que
envolviam questões concernentes às ordens militar-religiosas: Ordem de Cristo, Ordem de Avis e Ordem de
Santiago. Com o tempo a Mesa de Consciência e Ordens excedeu suas funções e passou a julgar as causas
eclesiásticas que envolviam os clérigos do reino. O rei por ser grão-mestre da Ordem de Cristo, pelo regime do
Padroado, era quem autorizava o reconhecimento dos compromissos confrariais.
2
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahiasão um conjunto de leis canônicas promulgadas em 1707
que baseavam-se nas tradições bíblicas, nas Constituições Portuguesas e nas diretrizes do Concílio Tridentino que
foram adaptadas à situação colonial. Ao lado das Ordenações Filipinas definiram uma série de obrigações jurídicas,
que embora resguardasse normas de cunho religioso, não estavam dissociadas dos direitos civis. Cf.: MONTEIRO
DA VIDE, Sebastião. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia(1707). São Paulo, Typografia Dois de
Dezembro, 1853. Livro 4. Título LX, Par. 867.
3
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História) Universidade de São Paulo. São Paulo, 1999. BORGES, Célia Maia. Escravos e Libertos nas Irmandades
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dissensão e/ou da coesão comunitária — seja através da ênfase atribuída aos processos de
diferenciação, ou ao aspecto aglutinador desenvolvido pela sociabilidade devocional4 — esses
estudos trouxeram leituras inovadoras no campo da história social da escravidão. Isso se explica
pelo fato dessa nova abordagem conseguir desmobilizar uma noção monofacetada e homogênea
do cativeiro atrelada a uma percepção dualista e rígida entre senhores versus escravos;
negociação versus conflito, acomodação versus resistência.
A Irmandade do Rosário de São João del-Rei foi marcada por todos esses elementos,
principalmente quando nos reportamos ao poder organizacional dos irmãos, às suas alianças
étnicas e culturais e à distribuição dos juizados de santos e reinados. A confraria, fundada em
1708, antes mesmo da instalação do Santíssimo Sacramento (1711), é considerada a mais antiga
da capitania das Minas. Nesta época, a devoção do Rosário já ocupava um altar anexo à antiga
capelinha de “taipa e de cobertura de palha” dedicada à Senhora do Pilar na Vila de São João
del-Rei. Geraldo Guimarães considera a atuação do preto forro Lourenço da Mota decisiva para
instalação da imagem no primeiro templo do arraial. Depois de comandar uma companhia de
escravos e forros armados no cerco do povoado ao lado dos reinóis pelo domínio das jazidas
minerais, envolveu o capitão em uma campanha direta para edificação da devoção protetora
dos homens pretos na Vila de São João del-Rei.5
Por volta de 1720,6 a devoção da Virgem dos pretos já possuía seu templo próprio,
alocando, com o tempo, outras imagens em seus altares laterais7. Nossa Senhora dos Remédios,
São Domingos, Santa Catarina de Siena, São Lourenço, São Vicente Ferrer, São Libório, São

4
Para Maurice Agulhon, a sociabilidade pode ser entendida como uma rede organizacional entre os indivíduos que
se veem pertencentes a uma mesma associação ou grupo social. Esta interação entre os participantes se faz
veiculada a um compartilhamento de normas, valores, emblemas, mitos, alegorias e símbolos quer geram
comportamentos políticos voltados para atender finalidades coletivas do grupo. Deste modo, concebemos que as
práticas de sociabilidade no âmbito da irmandade se instituíam em todas as atividades em que os “confrades se
achassem unidos e incorporados” para designar ações coletivas, tais como: a assistência social, os atos litúrgicos,
as ações celebrativas, os cortejos fúnebres, os festejos de coroação de reis, as reuniões de junta e até mesmo os
atos informais, como a reunião dos irmãos para a recitação do rosário. Cf.: AGULHON, M. Penitent Et Frances-
maçons de l’aancienne Provence:essai sur La sociabilité marionale. Paris: Farard, 1984.
5
GUIMARÃES, Geraldo. São João Del Rei, século XVIII. História Sumária. São João Del Rei. S/Ed, 1996, p.
105.
6
A igreja do Rosário de São João del-Rei começou a ser edificada em 1719. Cf.: SOBBRINHO, A. G.
Sanjoanidades: um passeio histórico e turístico por São João del-Rei. São João del-Rei: A voz do Lenheiro, 1996,
p. 64.
7
São Benedito, São Domingos, Santo Antônio de Catalagernona e Nossa Senhora dos Remédios foram
mencionados nos 1º e 2º parágrafos do cap. 10 “Sobre as Funções”. Cf.: AMNSP- SJDR, Estatutos da Irmandade
de Nossa Senhora do Rosário, dos Pretos de São João del-Rei, 1841, Cap. 10. No compromisso anterior de 1787,
foram mencionados apenas: S. Benedito, Nossa Senhora dos Remédios e Santo Antônio de Catalagerona. Cf.:
AMNSP- SJDR, Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora dos Pretos, 1787, Cap. 13 e Cap. 16. Sobre o culto
das almas do purgatório, ver: AINSR-SJDR, Livro de Certidões de Missas da Nobre Nação de Benguela, 1803.
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Tomás de Aquino e as santidades leigas franciscanas – Santo Antônio de Catalagerona e São
Benedito, além do Reinado da Nobre Nação de Benguela voltado para o culto das almas do
purgatório.8 Esta organização devocional se baseava numa perspectiva corporativa de poder,
em que a autonomia das “partes” não implicava em ruptura com o corpo principal, sustentado
pela “cabeça” da devoção principal, representada pelo Rosário.
Não obstante, independente do juizado de devoção, todos eram “filhos da Virgem” e
deveriam, por isso, seguir as normas estipuladas pelas leis do estatuto da Irmandade. De acordo
com este documento, em sua reforma de 1787, o juiz representava o posto hierárquico mais
elevado dentro da corporação. Era ele quem cuidava da “administração e governo” da confraria,
mediando os conflitos que eclodissem entre os irmãos. Seu papel consistia em advertir os
devotos quando fosse preciso, os orientar nas emendas das faltas e colocar em “boa arrecadação
tudo que pertencesse em fazendas, fábricas e ornamentos”. Deveria conduzir todos os atos de
mesa e funções públicas, como também tinha autonomia para nomear pregadores, em
concordância com a indicação da “juíza e mais oficiais de mesa”. Pagaria pela ocupação do
juizadovinte oitavas de ouro.9
O cargo de escrivão também não era de “menor conta”. Geralmente ocupado por
brancos10 e, a partir da segunda metade do Setecentos completado também por homens de cor
(sobretudo forros ou pardos livres com alguma inserção nas letras), consistia na ocupação
reservada à feitura cuidadosa dos livros, o assentamento das atas de reunião, das entradas de
matrículas dos irmãos e de todas as receitas e despesas da irmandade. Sua incumbência
demandava zelo, diligência e absoluta confiança do juiz e dos outros irmãos de mesa, por ser o
primeiro a presidir a mesa na falta do seu representante máximo. Deveria dar de esmola, o valor
de dez oitavas de ouro.11

8
São Lourenço, São Vicente Ferrer, São Libório, São Tomás de Aquino e santa Catarina de Siena foram
mencionados por SOBRINHO, Op. Cit., p.17.
9
As esmolas de juiz e de juíza foram reduzidas para oito oitavas, segundo a Carta de Provisão de 1789 anexa ao
compromisso. Cf.: AMNSP-SJDR, Cap. 3, Compromisso da Irmandade de N. Sra. do Rosário dos Pretos da Vila
de São João del-Rei (1787). Emenda estatuária de 1789, fl. 18.
10
Via de regra, os irmãos brancos monopolizaram, durante a primeira metade do século XVIII os cargos de
procurador, escrivão e tesoureiro, em razão de serem colocações que exigiam o domínio da escrita. Em São João
del-Rei identificamos quatro tesoureiros escravos, o que demonstra a flexibilização para a ocupação desses. Entre
os nomes, havia: Hilário (escravo de João Bernardino, filiado em 16/05/1846); Serafim (escravo de Dona Mariana,
filiado em 07/10/1839); João Bernardo de Souza Angola (escravo do Alferes Francisco Bernardes de Souza,
entrante em 23/012/1843) e Antônio Congo (escravo de Francisco Ferreira de Oliveira, entrante em 26/01/1823).
Já como escrivão negro, localizamos o nome do forro Francisco Vitorino José Cardoso Silva, entrante em
12/02/1842 e escrivão no ano de 1845. Cf.: AINSR-SJDR, Livros de Entradas da Irmandade de N. S. do Rosário
da Vila de São João del-Rei.
11
Em 1841, este cargo foi substituído pelo Secretário, que cumpria as mesmas funções do escrivão. Cf.: AMNSP-
SJDR, Compromisso da Irmandade de N. Sra. do Rosário dos Pretos da Vila de São João del-Rei (1787), Provisão
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Em seguida, na ordenação corporativa do núcleo organizacional da irmandade, viria o
cargo de tesoureiro. A ele competia concorrer para a conservação de todos os bens da
irmandade, em razão de perpassar em suas mãos todo rendimento da fábrica da confraria. Sendo
pessoa conveniente, de toda confidência e de conhecido zelo no aumento da irmandade, ao
tesoureiro caberia “conservar em cofre fechado todas as joias preciosas da irmandade, bem
como todo o dinheiro que se arrecadar, com o qual fará, por este, todas as despesas
necessárias.”12 Sua esmola de mesário, de acordo com o primeiro estatuto consultado,
correspondia ao valor de cinco oitavas de ouro.
Quanto ao procurador, terceiro cargo de maior importância, caberia assegurar, por
meio da fiscalização, o bom andamento da administração devocional, sendo sua obrigação zelar
pelo aumento e pela conservação na irmandade “de todas as coisas que a ela pertencem”. Os
nomes dos inadimplentes e malfeitores eram levados por ele à mesa, para que fossem apurados
em forma de inquérito e tomadas as devidas advertências e punições, caso procedesse a
comprovação dos comportamentos desviantes.13 Este papel mediador entre os mesários e os
grupos subalternos da confraria fazia do procurador uma referência de equilíbrio entre as
decisões sancionadas pela mesa e a os modos como os devotos não mesários assimilavam essas
determinações. Quando saíam às ruas, o procurador se responsabilizava por admoestar os
irmãos “desordeiros”, procurando manter a “decência” e a “boa ordem” do comportamento
coletivo em atos públicos festivos. Não poderia ele permitir que no cotidiano da irmandade, as
irmãs adquirissem fama por escândalos públicos e os irmãos fossem levados às “práticas
gentílicas e aos vícios de jogos, bebidas e superstições”. Além disso, contava esta autoridade
com o sistema de vigilância mútua, em que os próprios irmãos observavam e repudiavam os
comportamentos considerados consensualmente reprováveis.
E encerrando o círculo obrigatório da organização administrativa, havia os irmãos de
mesa ou mordomos e mordomas, os quais se reuniam periodicamente nas reuniões de mesa
para decidir sobre as questões cotidianas da irmandade. Seu número variou entre 12 a 24
componentes de acordo com os estatutos consultados, sendo obrigados a assistir as juntas
“quando para isso [fossem] avisados pelo procurador ou andadores”. Deveriam promover as

de 1789, fl, 18; Cap. 6, Parágrafo 3º, Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de
São João del-Rei (1841).
12
AMNSP- SJDR, Cap. 6, parágrafo 4, Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de
São João del-Rei (1841).
13
AMNSP-SJDR, Cap. 6, Compromisso da Irmandade de N. Sra. do Rosário dos Pretos da Vila de São João del-
Rei (1787). Ver também: Cap. 6, Parágrafo 5, Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos
de São João del-Rei (1841).
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esmolas em todos os domingos após as celebrações das missas e no ano em que servissem,
pagariam três oitavas de ouro.14 Esses irmãos direcionavam a organização das práticas
assistencialistas do sodalício, como a visita aos doentes e moribundos, o auxílio material às
viúvas dos confrades falecidos, etc. Junto com os oficiais — juiz, escrivão, tesoureiro —
possuíam votos menores nas decisões acerca do direcionamento de gastos e das medidas
administrativas da corporação.
Durante o ato de esmolar pelas ruas da vila, esses irmãos mesários contavam também
com o auxílio do ermitão e do andador, figuras ascéticas e mendicantes, diretamente
envolvidas no recolhimento do petitório das esmolas. Para esmolar, havia a exigência régia de
que a irmandade possuísse uma autorização cedida pelo Tribunal de Mesa de Consciência e
Ordens, além disso, carregava o andador, uma caixinha pela qual havia inserida uma imagem
de Nossa Senhora do Rosário ou de um santo de devoção dos irmãos. Este gesto servia, segundo
Borges, para conferir ao doador “a impressão de ofertar realmente o dinheiro ao santo [dando-
lhe] a sensação de adquirir créditos na economia de salvação.”15 Pelo compromisso de 1787 de
São João del-Rei, notamos a presença da reivindicação dos confrades para que seu ermitão
pedisse nas ruas pelas “obras da igreja, não só nesta Freguesia, mas ainda nas mais desta
Capitania”.16 Já pela reforma estatuária de 1841, ao invés da indicação do ermitão há a
referência de dois andadores, os quais deveriam ajudar “a Mesa a pedir esmolas em todos os
domingos do ano”, tendo cada um deles a incumbência de pagar de dois mil réis por mês.17
Neste mesmo compromisso de 1841 foi proposta uma ampla reestruturação da
composição da mesa administrativa, com a supressão de alguns cargos e a eleição de outros.
Deste modo, a administração corporativa ficou ordenada na forma seguinte: um rei, uma rainha,
um provedor, uma provedora, um secretário, um tesoureiro, um procurador, 12 irmãos de
mesa, 12 irmãs de mesa, um zelador, duas zeladoras e dois andadores.18 Houve a inserção
oficial do reinado e da provedoria na composição dos quadros de governança da irmandade.

14
AMNSP-SJDR, cap. 7, Compromisso da Irmandade de N. Sra. do Rosário dos Pretos da Vila de São João del-
Rei (1787). Ver também: Cap. 6, Parágrafo 6º, Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos de São João del-Rei (1841).
15
BORGES, Op. Cit., p. 92.
16
Este pedido para esmolar fora da freguesia foi negado pela Carta de Provisão de 1789. Cf.: AMNSP-SJDR, cap.
7, Compromisso da Irmandade de N. Sra. do Rosário dos Pretos da Vila de São João del-Rei (1787). Provisão de
1789, fl. 18.
17
AMNSP- SJDR, Cap. 6, Parágrafo 6, Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de
São João del-Rei (1841).
18
AMNSP- SJDR, Cap. 2, Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de São João del-
Rei (1841).
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Saíram os cargos de juízes e juízas, dando lugar aos reis e rainhas, provedores e provedoras
para o exercício das mesmas funções diretivas. Esta reformulação organizacional marcou
também a entrada de zeladores, zeladoras e andadores. A ascensão oficial do reinado no
gerenciamento dos postos mais elevados da confraria sublinhou uma peculiaridade da
irmandade de São João del-Rei, pois a maioria das associações negras não reconhecia
formalmente a inserção de reis e rainhas no exercício das funções administrativas dos assuntos
devocionais, por serem tais encargos tradicionalmente reservados aos juízes e juízas.
Praticada pelos menos desde o final do século XVIII, a eleição de reis e rainhas se
institucionalizou definitivamente na irmandade, demarcando o declínio notório das forças
políticas dos juízes e a tomada de atribuições cujos papéis estavam longe de ser exclusivamente
honoríficos aos dias festivos. Nesta associação o Rei do Congo assumia uma atribuição de
mando na governança da associação, ao ter como dever:

Presidir todas as mesas, a exceção do dia 25 de dezembro; chamar a ordem com


brandura e com tom de advertência a todos os mais mesários e irmãos não mesários,
indicando-lhes os meios de arrecadar e por em boa guarda, tudo quanto for pertencente
à Irmandade. Este mesário, a bem da Coroa, que pode cingir nos dias de festivos da
Irmandade, trará igualmente empunhada uma vara de prata e sempre que com ela sair
incorporado à rua e dará de mesada a quantia de trinta mil réis e a Rainha outro tanto. 19

Quanto ao provedor, competia “substituir o rei” na sua ausência e de “mãos dadas com
ele”, caberia cumprir todas as exigências mencionadas acima. Junto com a provedora, o
provedor e o rei trabalhariam pela boa arrecadação da irmandade e como sinal distintivo,
usariam os ocupantes da provedoria, uma vara de prata durante as procissões e outros
cerimoniais religiosos. Já os cargos de secretário (antigo escrivão), tesoureiro e procurador
mantiveram, nesta reestruturação administrativa, as mesmas prescrições descritas no estatuto
anterior, com a ressalva de pagarem novos valores de esmolas ajustados pelo novo
20
compromisso. Com a incumbência de avisar os confrades sobre todas as atividades da
confraria, os irmãos andadores perambulavam por toda vila, anunciando os sepultamentos, as
procissões, as festas, os peditórios e outros acontecimentos litúrgicos da irmandade.21

19
AMNSP- SJDR, Cap. 6, Parágrafo 1, Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de
São João del-Rei (1841).
20
O secretário deveria pagar 14$000, o tesoureiro 12$000 e o procurador 6$000 réis. Cf.: AMNSP- SJDR, Cap. 6,
Parágrafos, 3,4 e 5, Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de São João del-Rei
(1841).
21
Os andadores pagavam de esmola 3$600 réis, cf.: AMNSP- SJDR, Cap. 6, Parágrafo 8, Compromisso da
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de São João del-Rei (1841) .
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Para a vigilância do asseio e limpeza da capela e de seus paramentos e alfaias, contava
a associação com o auxílio do zelador e das irmãs zeladoras.22 Quanto aos cuidados aos irmãos
doentes, moribundos, presidiários estavam reservados principalmente às irmãs mesárias. De
acordo com os apontamentos estatuários, as mesárias foram excluídas formalmente das
instâncias decisórias por não possuírem votos nas juntas administrativas, assegurados somente
aos irmãos do sexo masculino.23 No entanto, ao confrontarmos essa informação com os dados
extraídos com os livros de matrículas, pudemos verificar que a maioria dos cargos de reinado
foi ocupada por mulheres, ou seja, dos nomes listados entre os reis e rainhas, havia 27 mulheres
para 21 homens. Estas irmãs receberam também notável destaque na própria participação do
corpo de matriculados, ao perfazerem, entre o período de 1782 a 1850, a representação de
55,4% do total de 1431 entrantes. 24
Em trabalho anterior, constatamos, por meio de estudos de trajetórias das irmãs forras,
que, embora afastadas oficialmente dos poderes decisórios da confraria — conforme
prescreviam as normatizações estatuárias — estas mulheres exerceram funções de mando
dentro da agremiação, principalmente nos setores informais, como o banquete festivo. Foram
elas também a protagonizar papéis decisivos na arregimentação de esmolas para a organização
dos ritos em homenagem ao orago da corporação, ao ocuparem, com maior frequência do que
os homens, os cargos de juizados de promessa e de reinados. 25
Para maiores esclarecimentos sobre os confrontos entre norma prescrita e regra
praticada, desenvolvemos, no próximo item, um estudo de caso no qual um irmão banido do
corpo confraternal conseguiu, por meio da tessitura de redes, retornar à confraria e, ainda,
assumir um dos postos de maior poder, o de procurador. A argumentação construída em sua
defesa se dirigia às possibilidades de leituras distintas das cláusulas previstas pelo estatuto da
irmandade.

2. O desvio da norma prescrita e a construção das regras praticadas

Termo de banição (sic) do Irmão Francisco Pinto de Magalhães, escravo de Dona


Maria Custódia que se deu a indignar o prestígio da mesma e determinado pela Mesa.
Aos 25 dias do mês de janeiro do ano de 1833 no Consistório da Irmandade de N. Sra.

22
AMNSP- SJDR, Cap. 6, Parágrafo 7, Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de
São João del-Rei (1841).
23
Cf.: AMNSP- SJDR, Cap. 6, Parágrafo 7, Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos
de São João del-Rei (1841).
24
AINSR-SJDR, Livros de Entradas do Rosário de São João del-Rei (Nº 17, 20 e 23, Período: 1782-1850).
25
DELFINO, Op. Cit., p. 177-182.
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do Rosário, achando-se reunida a atual Mesa abaixo assinada [ilegível] deste indigno
e péssimo Irmão Francisco Pinto de Magalhães em que pediu com instância que a
Mesa assentou por bem dar baixa no seu Termo para nunca mais ser Irmão desta
Irmandade, determinou a Mesa não precisar que o mesmo se queixe ao Ministro para
mudar a tal baixa notando ser a sua aquisição mais justa possível pelos argumentos
que muito deixaste sem fazer a Irmandade e entrando para Sacristão da mesma em
ano de 1829 continuou a prestar o ano de 1830 quando saiu neste tempo aproveitando-
se da capa de bom Irmão Zelador teve a animosidade de desviar com um Rosário de
ouro do mesmo Deus, que passando quase de todo de muito aperto que se lhe fez
somente apresentou um [apagado] muito desmontada por mim continuando o mesmo
com ceras, incensos e várias alfaias da Irmandade como seja as toalhas novas dos
altares que todas sumiram na mesma grande descomunhão e outros mais motivos que
a denúncia pede acatar por todos estes motivos anotou a Mesa ser muito justa a sua
reclusão.26

Francisco Pinto de Magalhães Crioulo, escravo de Dona Maria Custódia, deu entrada
como irmão na confraria do Rosário dos Homens Pretos27 de São João del-Rei em 06 de
novembro de 1825. Em seu registro de matrícula não consta o valor de meia oitava exigida
como joia de entrada, porque o escravo foi agraciado pela mercê28 do próprio capelão da
irmandade, o Padre Manoel Joaquim de Castro.29 Como podemos notar, o escravo crioulo
possuía inserções diferenciadas na associação desde o seu ingresso, não só por ostentar um
sobrenome em distinção das denominações genéricas do cativeiro como Congos, Benguelas,
Crioulos etc., mas por filiar-se pela mercê de uma das principais autoridades na irmandade: o
sacerdote capelão. O que teria ocorrido para que o irmão assumisse um cargo da mais patente
confiança como o de sacristão e depois recebesse tão sérias denúncias e pesadas acusações de
roubo das alfaias e bens sagrados da irmandade?
Em consulta ao litígio instaurado entre o sacristão e os irmãos mesários impresso ao
longo das atas de administração da irmandade, os segundos consideravam muito justa a
suareclusão porque o confrade infringiu as normas estatuárias e se indispôs, de forma abusiva,

26
AINSR-SJDR. Livro 40, Atas de Administração, Termo de banimento do Irmão Francisco Pinto de Magalhães,
escravo de D. Maria Custódia (25/01/1833), f. 11.
27
Considerada a Irmandade do Rosário mais antiga da Capitania de Minas Gerais, a associação de São João del-
Rei foi fundada em 1720.
28
Este era o termo utilizado pelos irmãos, quando algum entrante se matriculava sob o signo do privilégio da graça
concedida por algum membro já estabelecido no corpo da associação. Geralmente, quem distribuía as “mercês”
na irmandade eram reis, rainhas e mesários. Cf.: DELFINO, Op. Cit., p. 290. Vale acrescentar que a mercê consistia
numa espécie de dádiva ou benefício — pela qual se estreitavam as reciprocidades entre o benfeitor (antigo
associado) e o beneficiado (novo integrante). Sendo assim, a reciprocidade estabelecida pelo pacto entre os
confrades se tornou um dos pontos nodais na definição de hierarquias e de coesão grupal no interior da confraria,
promovendo, deste modo, uma ampla rede de dependências múltiplas entre os envolvidos nesses acordos. Para
maiores informações sobre os significados acerca da reciprocidade e da economia do dom no Antigo Regime, ver:
HESPANHA A. M. & XAVIER “Redes clientelares”. In: MATTOSO, J. (org) História de Portugal. Lisboa: Ed.
Estampa, 1998.
29
AINSR-SJDR. Entradas de Irmãos da Irmandade de N. S. do Rosário de São João del-Rei, matrícula de Francisco
Pinto de Magalhães Crioulo, escravo de Dona Maria Custódia (06/11/1825).
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com o capelão da irmandade. Diante deste agravamento, suas alianças tecidas durante a filiação
não foram suficientemente capazes de evitar o seu banimento em 1833. Não obstante, vale
lembrar que o compromisso ou estatuto da confraria era a primeira regra a ser seguida pelos
devotos quando se filiavam em irmandades. Assim, quando lançava o escrivão o assento de
entrante, o recém-integrante prestava juramento diante das normas. Estas eram lidas ao
matriculado em voz alta e o ritual sempre se repetia durante o dia de posse das eleições, no
momento em que a nova mesa dirigente assumia os encargos administrativos frente à assistência
coletiva dos irmãos reunidos para o ritual da investidura dos postos de poder.30
A expulsão, como aconteceu com o sacristão, deve ser encarada como o último recurso
a ser tomado, uma vez que todas as possibilidades de negociação e de emenda já haviam se
rompido. Esta era, portanto, a pena máxima estipulada pelas regras dos estatutos de muitas
irmandades. O irmão banido costumava ser enxovalhado publicamente, seu nome, riscado do
termo de entradas e, às vezes, a expulsão obedecia até mesmo a um cerimonial com direitos a
toques de sinos cujas badaladas visavam anunciar a morte simbólica do irmão recluso. 31 Após
o banimento, este dificilmente conseguiria se filiar novamente em outras associações, muitas
destas se preveniam recusando-se a receber irmãos segregados de outras corporações. Esta
medida constituiu uma forma de evitar problemas futuros com devotos que traziam o estigma
da “renitência e orgulho”, comportamentos frequentemente combatidos pelas regras estatuárias
nas quais primavam, antes de tudo, pela boa convivência e obediência à estrutura hierárquica
da irmandade.
Analisando as regras normativas do estatuto, não é difícil constatar a aplicação da pena
máxima em casos de furto, desvios de recursos e empréstimos não autorizados pela mesa.32 No
entanto, as reprimendas assinaladas no corpo de leis estavam direcionadas, efetivamente, aos
oficiais responsáveis pelo zelo do patrimônio da irmandade: o procurador, o juiz, o tesoureiro
e o escrivão. Geralmente esses membros possuíam as chaves do cofre, isto é, uma arca de

30
A leitura pública do compromisso no dia da posse era feita, por exemplo, na Irmandade do Rosário em Aiuruoca.
Cf.: ACMC, Art. 32, Compromisso da irmandade de N. Sra. do Rosário da Freguesia de Conceição de Aiuruoca,
Termo da vila de Campanha (1809). Sobre o ritual de investidura dos cargos, cf.: AMNSP-SJDR, Cap. 7
“Fórmulas de Posse”, Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de São João del-Rei
(1841), fl. 9.
31
BNL, Seção dos Manuscritos Reservados, Cap. 12: “Da maneira que se procederá contra os Irmãos que não
pagarem suas esmolas e contra aqueles por quem o Tesoureiro mandar cada mês tirar esmolas pelos fiéis nesta
Vila”, Compromisso Reformado da Irmandade de São Gonçalo Garcia da Vila de São João del-Rei, Comarca do
Rio das Mortes (01/12/1783).
32
AMNSP-SJDR, Cap. 14 e Cap. 15, Compromisso da Irmandade de N. Sra. do Rosário dos Pretos da Vila de São
João del-Rei (1787).
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madeira na qual cada agremiação guardava o tesouro arrecadado pela irmandade. Cada bem ou
receita adquiridos deveriam ser minuciosamente escriturados e lançados pelo escrivão ou
secretário nos assentos do Livro de Bens. Esses registros dependiam da fiscalização da mesa
empossada, de modo que os mesários antigos deveriam prestar contas de todas as aquisições
(em forma de esmolas, doações, legados pios, heranças) e recursos de saída, como as despesas
festivas, ornamentarias da capela, sepultamentos, missas, procissões etc..
O sacristão, ao contrário desses oficiais, não tinha responsabilidade direta pelas receitas
da irmandade, suas funções também não estavam discriminadas pelas regras estatuárias de 1787
e de 1841 (ambos os compromissos vigentes no período eleito deste estudo). No entanto, este
auxiliar desempenhava a função de preparar o material litúrgico antes das celebrações das
missas e de outros atos eclesiásticos oficiados pelo Reverendo Capelão, conforme as descrições
das atas de contratação do sacristão.33Todas as alfaias, toalhas, cálices e outros bens sagrados
deveriam estar impecavelmente asseados para o preparo das celebrações, aliás, a limpeza fixou
uma das grandes preocupações dos devotos, pois o manuseio dos instrumentos sagrados exigia
cuidados especiais. Roger Callois sustenta que os ritos de purificação asseguram uma passagem
perfeita do estado profano para o sagrado, evitando, assim que a mácula do mundo terreno
invada o estado ungido de comunicação com o transcendente.34
Por seu turno, os rituais de preparo dos instrumentos litúrgicos, antes dos atos religiosos,
constituíam-se em etapas fundamentais para a consagração do estado de pureza que selava o
início do contato entre os fiéis com o Ser Tremendum e seus representantes intermediários
personificados nas figuras dos santos. Além do sacristão, estavam envolvidos nessas tarefas, os
zeladores e zeladoras. A esses irmãos competiam “vigiar sobre o asseio e limpeza do templo e
de todas as suas alfaias, paramentos e trastes.”35Além disso, o procurador e as irmãs mordomas
também os auxiliava nos cuidados com a manutenção diária do recinto sagrado. Havia a
supervisão diária das armações dos andores e dos altares na capela do Rosário, junto à
manutenção da lâmpada do altar de Nossa Senhora, a qual deveria estar permanentemente
acesa, “bem limpa e preparada”.36

33
AINSR-SJDR. Livro 40, Atas de Administração, ver os termos de contratação do sacristão expostos ao longo
do livro.
34
Cf.: CALLOIS, Roger. O Homem e o Sagrado. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 39.
35
AMNSP-SJDR, Cap. 6, Parágrafo 7º, 1841, Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos de São João del-Rei (1841).
36
AMNSP-SJDR, Cap. 6, Compromisso da Irmandade de N. Sra. do Rosário dos Pretos da Vila de São João del-
Rei (1787).
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Em conformidade com as disposições estatuárias, este segmento formava um setor
intermediário, pelo qual se exercia um papel relevante para a ordenação do funcionamento
orgânico do corpo social sedimentado pela associação. A propósito, esta estrutura
organizacional do grêmio dependia efetivamente de uma concepção corporativa e hierárquica
de poder baseada numa leitura escolástica de composição do universo. Sendo assim na base
piramidal do corpo associativo situavam-se os irmãos devotos sem cargos administrativos, no
centro alocavam-se os mesários ou irmãos de mesa (neste patamar se posicionavam os
zeladores) e no topo, os membros oficiais.37 Geralmente os postos de oficial arregimentavam
os cargos de juiz, escrivão, tesoureiro e procurador, definidos hierarquicamente nesta ordem
de importância.38 Com efeito, toda vez que houvesse necessidade, “para o bem das almas” dos
vivos e defuntos, os irmãos oficiais e mesários decidiam em atos de mesa, os principais rumos
e “utilidades da irmandade para o bom regime e governo da mesma”.39
As reuniões de junta aconteciam no consistório da irmandade, sob a presidência do
Reverendo Capelão ou do Pároco, “não faltando nunca, tal caso o juiz, o escrivão, o tesoureiro
e o procurador como parte principal daquele corpo”.40 Nesse sentido, os modos de governar
não se restringiam exclusivamente às cláusulas normativas impressas nas leis estatuárias. Essas
devem ser entendidas como o ponto de partida a orientar o comportamento geral da corporação,
isto é, as formas de admissão, os procedimentos eleitorais e administrativos. Todavia, o
processo de escrituração e estruturação da norma não se encerrava na palavra dos
compromissos, de modo que a dinâmica interna — regida pela vivência devocional e pelos
antagonismos cotidianos — constituíam o fiel da balança para a implementação, na prática, do
modelo ideal de conduta postulado pela carta normativa.
Nessa perspectiva, a construção das regras internas — forjadas diariamente pelo
confronto entre os parâmetros ideais e os antagonismos vividos no âmbito da confraria — tinha
por ocasião das juntas, o espaço de manobra decisivo para a discussão dos anseios desses
diferentes grupos. Nesta ocasião, os participantes da devoção discutiam os interesses coletivos
e as formas de gerenciamento dos bens sagrados administrados pelos membros da corporação.

37
Cf.: PRECIOSO, Daniel. Terceiros de cor: Pardos e Crioulos em Ordens Terceiras e Arquiconfrarias (Minas
Gerais, 1760-1808). Tese de Doutorado em História. Niterói: UFF, 2014, p.69.
38
Posteriormente, a partir das primeiras décadas do Oitocentos, o rei e o provedor tomaram lugares privilegiados
na ocasião das reuniões de mesa da irmandade e nos assuntos decisórios da administração da irmandade de São
João del-Rei, o que será melhor explicado mais à frente.
39
AMNSP-SJDR, Cap. 15, Compromisso da Irmandade de N. Sra. do Rosário dos Pretos da Vila de São João del-
Rei (1787).
40
AMNSP-SJDR, Cap. 15, Compromisso da Irmandade de N. Sra. do Rosário dos Pretos da Vila de São João del-
Rei (1787).
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No entanto, esta acirrada disputa pelo controle dos espaços decisórios (postos administrativos),
também definidores dos modos de governança, não pertencia à esfera da base piramidal dos
devotos desvinculados aos postos de poder, mas aos grupos privilegiados. Esses, assertivamente
denominados por Oliveira como “grupos de pressão”, muitas vezes se alternavam, por muitos
anos, formando verdadeiras redes de alianças étnicas e consanguíneas nas estruturas de mando
das irmandades.41
As eleições, por outro lado, era um momento no qual se inspirava poucas mudanças
nesses ciclos de alternância, uma vez que a própria estrutura do sistema eleitoral conspirava
para este tipo de permanência dos grupos fundadores ou daqueles estrategicamente organizados
e aliados aos setores privilegiados. Nos processos de escrutínio do Rosário de São João del-Rei,
por exemplo, a votação nunca acontecia de modo universal e direto, pois dependia,
inicialmente, da indicação dos nomes elegíveis aos cargos. Esta indicação era tradicionalmente
feita pelos antigos ocupantes dos cargos dirigentes. Baseado num sistema de lista tríplice, os
oficiais indicavam os irmãos “mais zelosos no culto e serviço da Mãe de Deus” 42 para o
enquadramento dos respectivos cargos. O processo de escolha decorria, a princípio, em segredo,
e os nomes aprovados pelos irmãos mesários recebiam nas urnas o apontamento de favas
brancas, os reprovados, favas pretas.43
Como podemos notar o mecanismo eleitoral indireto, praticado não só pela agremiação
de São João del-Rei,44 reproduzia um sistema de privilégios no interior da associações. Nesta
rede de alianças os nomes previamente indicados já se colocavam em situação de vantagem em
relação àqueles destituídos de acordos pré-estabelecidos e arranjos antecedentes com os
poderosos confrades dirigentes, os quais muitas vezes, asseguravam lugares cativos aos seus
filhos, esposas, cunhados e amigos numa extensa rede de dependência. Em trabalho recém-
defendido, Delfino demonstra como algumas famílias consanguíneas construíram verdadeiras
“dinastias” de reis e rainhas na irmandade sanjoanense, perpassando para filhos, netos, genros
colocações importantes nos postos de poder material e simbólico no interior da confraria. Por

41
OLIVEIRA, Op. Cit., 291.
42
AMNSP-SJDR, Cap. 2, Compromisso da Irmandade de N. Sra. do Rosário dos Pretos da Vila de São João del-
Rei (1787). Ver também: Cap. 3, Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de São
João del-Rei (1841)
43
AMNSP-SJDR, Cap. 2, Compromisso da Irmandade de N. Sra. do Rosário dos Pretos da Vila de São João del-
Rei (1787).
44
Ver os compromissos de Aiuruoca e de Arraial do Brumado. Cf.: ACMC, Livro 2, Cap. 17, Compromisso da
Irmandade de N. S. do Rosário dos Homens Pretos da Freguesia de N. S. da Conceição de Aiuruoca. Termo da
Vila de Campanha (1809). AMNSP- SJDR, Livro 2, Cap. 3, Compromisso da Irmandade de N. S. do Rosário dos
Pretos. Arraial de São Gonçalo do Brumado. Distrito de São João Del Rei (1815).
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ora centraremos nossa atenção ao caso emblemático do crioulo zelador Francisco Pinto de
Magalhães quanto à sua desobediência às normas estatuárias e à ruptura de alianças,
inicialmente bem sucedidas, como a do seu apadrinhamento pelo reverendo capelão.
Em 24 de fevereiro de 1834, o irmão banido encaminhou uma petição à mesa da
irmandade pela qual dizia que fora ele alvo de injustiças dos mesários dirigentes daquele ano
de 1832, o mesmo ano em que serviu ao cargo de sacristão. Afirmou ainda, que, sem autoridade
e obediência ao sagrado compromisso, aqueles oficiais o riscaram injuriosamente do livro de
termos de assentos de matrículas. Solicitava nesta missiva, um novo tratamento no qual pudesse
reparar as injúrias sofridas,45 pois agora na condição cidadão de livre, se enxergava como
portador de direitos, antes inviabilizados pelo seu estado de cativo.
Hebe Mattos esclarece a supressão do traço de sangue e da cor pela Constituição de
1824, no entanto, os direitos de cidadania não se estendiam plenamente aos ex-escravos, pois
a legislação imperial exigia como pré-requisito para ser considerado cidadão, a condição de ter
nascido ingênuo, isto é, não escravo. Por isso, os escravos alforriados, mesmo quando
apresentavam a renda mínima exigida para serem classificados como “cidadãos ativos” ou
votantes, não gozavam integralmente dos direitos de participação política, pois o estigma do
cativeiro não lhes possibilitava a igualdade de direitos civis assegurados aos brancos
proprietários. Por outro lado, os filhos e netos desses libertos, caso acumulassem o nível de
riquezas necessárias para serem votantes ou elegíveis poderiam usufruir plenamente dos
direitos políticos.46
Todavia, a eventual ascensão material dos descendentes de libertos significava uma via
de mão-dupla, pois, ao mesmo tempo em que a “elite de cor” nascida livre adquiria para si a
extensão dos direitos de cidadania, segregava, na mesma proporção, os segmentos não brancos
mais empobrecidos, classificados ainda pelo estigma da ascendência cativa. Este processo de
exclusão desembocou no que a autora denominou como o paulatino “silenciamento da cor”47

45
Aguiar fez um estudo importante sobre a apropriação dos parâmetros morais da honra do Antigo Regime pelas
comunidades confraternais de cor. Utilizando de processos crimes movidos por ofensas de injúria ou por crimes
de “reparações de honra” e cartas remetidas ao Conselho Ultramarino, o autor demonstrou que os princípios
morais atrelados aos “modos de viver à lei da nobreza” também influenciaram o modus vivendi desses indivíduos
que não aceitavam a desqualificação social no forma de insultos, injúrias e rebaixamento de sua imagem, uma vez
que procuravam ascender a um estatuto superior naquela sociedade. Nesse sentido “manter a honra” significava
combater os mecanismos de desqualificação social. Cf.: AGUIAR, Op. Cit., p. 160.
46
MATTOS, H. M.,Escravidão e Cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2000, p.
43.
47
MATTOS, H. M., Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1998, p. 292-307.
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de modo que as novas gerações se esforçavam para perder gradativamente a referência da cor
nos registros oficiais.
Nesse sentido, esta foi uma estratégia articulada pela população livre descendente do
cativeiro para fazer valer seus direitos de cidadania, numa sociedade em que os princípios de
igualdade e equidade ainda passavam longe da aceitação geral, em função das barreiras
imputadas pelas marcas da escravidão. Sendo assim, o “empardecimento” de um africano
alforriado ou de seus filhos constituía um fenômeno muito comum capaz de exemplificar o
campo de mobilidade social presente nessas classificações da cor do indivíduo. Neste caso,
retomando ao nosso sacristão, Francisco Pinto de Magalhães deixou de ser classificado nos
registros consultados como crioulo e na missiva encaminhada e reproduzida pela mesa, se auto-
representou como “cidadão livre”:

Diz Francisco Pinto de Magalhães que ele suplicante, servindo de sacristão nesta
Capela de Nossa Senhora do Rosário, alguns anos aconteceu que no ano de mil
oitocentos e trinta e dois, não sabendo qual o motivo porque caiu na indignação de
que os mesários que sem autoridade o riscaram de Irmão e lhe puseram no mesmo
Livro, cotas muito injuriosas, por cujo motivo vem o suplicante requerer a esta Mesa
que lhe façam justiça, mandando o Escrivão que risque nela [rasgado] as cotas, para
nessas [rasgado] se ler, bem como que são breve (sic) os Capítulos do Compromisso
respeito ao Suplicante, fazendo-se-lhe novo assento, visto que aquela Mesa não tinha
autoridade para insultar o suplicante como insultou, que agora na condição de
Cidadão Livre vem requerer assim, os seus Direitos e portanto, pede-lhe a Vossa
caridade que tendo em vista o Compromisso, que façam justiça, deferindo-lhe na
forma requerida [rasgado], segundo assim consta da dita Petição (...) 48

Nota-se o acento dado à condição de liberdade e a influência do discurso de cidadania,


viabilizado pela Carta Constitucional de 1824, nas ponderações feitas pela petição do sacristão
encaminhada à irmandade. Um dos argumentos utilizados pelo irmão liberto para que a Mesa
reconsiderasse as acusações feitas a ele, residia no fato deste se achar em estado de “liberdade”
e ser, portanto, um cidadão do Império. Por outro lado, as justificativas utilizadas pelos oficiais
consistiam no argumento da retidão ao cumprimento das regras previstas pelo compromisso.
Nesse sentido, a retórica empregada para condenar, e até mesmo para o sacristão se defender
das alegações de furto e de desvios de comportamento assentavam-se em leituras divergentes
dos capítulos quatorze e quinze do texto compromissal, pelos quais estabeleciam os modos de
comportamento a serem seguidos dentro e fora da irmandade. Nas duas cláusulas também se

48
AINSR-SJDR. Termo de Declaração da Mesa a uma Petição de Francisco Pinto de Magalhães, 24/02/1834.
Livro 40, Termos de Administração.
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preveniam quanto às causas do banimento e as outras faltas mais leves, além da reprimenda
máxima havia a descrição de outras advertências para os desvios menos graves.49
Pela leitura da missiva encaminhada pelo ex-sacristão fica claro o seu pedido à mesa
para que seus dirigentes conferissem a folha vinte e cinco do mesmo estatuto cuja orientação
alertava ao não julgamento precipitado antes da aplicação de outras admoestações. As
reprimendas, imputadas antes da aplicação da pena máxima, serviriam como instrumento
pedagógico e catequético, na medida em que as advertências iniciais poderiam viabilizar o
reparo dos erros cometidos e a modificação do comportamento do devoto infringente. Este
argumento estava subentendido na elaboração da defesa do sacristão, pois a missiva insistia na
retomada de leitura do compromisso para que aplicações dos julgamentos fossem justas e
equitativas ao erro praticado e quando este fosse cuidadosamente comprovado. De acordo com
o capítulo estatuário evocado em defesa do sacristão pela petição:

A Mesa desta Irmandade terá o maior cuidado e vigilância para que nesta Santa
irmandade se não aceitem para Irmãos dela pessoas de péssimos costumes, e que
sejam sempre de bom procedimento e não sirvam de desdouro à Irmandade,
principalmente que não sejam orgulhosos, enredadores e usem de superstições, furtos
e bebidas com que percam o juízo, os quais não admitirão e se depois de admitidos
incorrem em algum destes defeitos, sendo repreendidos pela Mesa, primeira e
segunda vez e não se abstiverem e emendarem de semelhantes erros e vícios logo os
expulsarão da dita Irmandade. O que também se praticará com as Irmãs, que além do
sobredito não sejam honestas e vivam depravadamente, que tudo farão termo nos
livros da Irmandade, que houver para esse efeito, pondo-se cota no termo que assinar
de sua entrada.50

As regras citadas acima traziam um teor severo e categórico, mas ao mesmo tempo,
permitiam as chances de emenda dos irmãos nas duas primeiras advertências e a expulsão só
poderia ocorrer na terceira reprimenda. Na listagem dos comportamentos desviantes mais
repudiados, podemos apontar: a renitência em seguir as decisões da mesa, as bebedeiras durante
as festas, a prática de furto e roubo (dentro e fora das irmandades), os vícios em jogatina,
afeições às práticas de feitiçaria e o ofício da prostituição (para o caso das irmãs que se
“desonestavam causando desdouro à Irmandade”). Não obstante, as leis estatuárias devem ser
constantemente confrontadas com outros documentos capazes de disporem de informações

49
AINSR-SJDR. Termo de Declaração da Mesa a uma Petição de Francisco Pinto de Magalhães, 24/02/1834.
Livro 40, Termos de Administração. Ver também: AMNSP-SJDR, Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário dos Pretos da Vila de São João Del Rei (1787), cf.: Cap. 14 e cap. 15, fl. 15-16.
50
AMNSP-SJDR, Cap. 14, Compromisso da Irmandade de N. Sra. do Rosário dos Pretos da Vila de São João del-
Rei (1787).
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acerca dos fragmentos de vivência e de leitura diária dessas cláusulas inscrita na prática
cotidiana desses irmãos.
Muitas vezes essas proibições poderiam adquirir uma feição de letra morta com o passar
dos anos, na medida em que a dinâmica de funcionamento devocional se alterava. Quando tal
defasagem acontecia, novos parâmetros normativos precisavam ser acionados para reorganizar
o aparato burocrático, litúrgico, caritativo e assistencial dessas irmandades, através das
reformas. Com efeito, essas alterações estatuárias traziam à tona novas reivindicações da
irmandade e, por isso, precisavam ser encaminhadas novamente às autoridades civis e
eclesiásticas para uma nova confirmação, não perdendo a confraria, deste modo, a chancela de
entidade reconhecidamente oficial. Nesse sentido, mesmo servindo os compromissos como
espaço de regulamentação das regras devemos ficar atentos para o caráter dinâmico em que
situava o terreno movediço da construção das normas associativas. Dito de outra forma, o
campo de estabelecimento normativo estatuário dependia da legitimação da vivência
consuetudinária e do fluxo contínuo de acordos, interesses e reivindicações múltiplas dos
diferentes segmentos representativos do corpo social da irmandade.
Nessa confluência, a reciprocidade contínua instaurada entre as forças sociais —
presentes nos campos decisórios da corporação — auxiliava o constructo da percepção que os
irmãos tinham de justiça, isto é, dos direitos e obrigações de cada associado. Deste modo,
parâmetros morais de conduta se forjavam a partir desta dialética relacional grupal, ou do que
assertivamente Thompson denominou por mutualismo desigual51 entre as redes
interdependentes. As alianças hierárquicas para a definição de postos de poder na administração
do grêmio funcionavam como vetores capazes de engendrar códigos de condutas ancorados
numa perspectiva consuetudinária dos modos de governar a associação. Por outro lado, Norbert
Elias reitera esta força exercida pela vivência grupal com base em seu conceito de economia
psíquica do habitus.52 Segundo o sociólogo, a interiorização dos códigos sociais depende muito
da coerção promovida pelas pressões normativas ocasionadas pelas regras compartilhadas pelos
veículos de sociabilidade (os grupos). Outrossim, simultaneamente ao controle externo
exercido pelo grupo, os indivíduos criam mecanismos internos de coerção psicológica, fazendo
com que seus atos individuais venham a ser orientados constantemente pela auto-observância

51
THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia
das letras, 1998, p. 261.
52
ELIAS, N. A sociedade de corte. Investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de
janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 19.
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desses códigos sociais. A partir deste “controle severo dos afetos e emoções”, as proibições
psicológicas passam a ser até mais eficazes dos que as leis escritas, fazendo da vigilância mútua
e auto-punitiva, o instrumento imperativo necessário para o bom funcionamento dos
dispositivos morais de conduta dentro de uma sociedade.
Na irmandade, esta forma de introjeção de valores não era diferente, pois o sistema de
coesão comunitária — baseado no compartilhamento de signos, práticas, ritos e códigos de
conduta — elaborava, efetivamente, fortes pressões sociais nas escolhas e nos modos de agir
do indivíduo filiado. A vigilância mútua, ao lado inculcações psicológicas proibitivas se
tornavam um instrumento coercitivo altamente perspicaz na recriação dos parâmetros de
comportamento grupal. Nesse sentido, o anseio pelo aprimoramento espiritual e moral pregado
como bandeira-mor da vida associativa funcionava, fundamentalmente, como referência
catalisadora do modelo ideal da cristandade leiga difundida pelas irmandades.
Deste modo, devemos levar em conta que os confrades também interpretavam as leis
estatuárias ao sabor das circunstâncias e dos arranjos sociais engendrados a partir da percepção
consuetudinária dos modos de governar a irmandade. Mesmo quando raramente os associados
escravos e libertos possuíssem o domínio das letras, esses homens e mulheres tomavam
conhecimento dessas leis pela via da leitura oral do compromisso (feita no ato de admissão e
no cerimonial de posse). Além disso, a experiência vivida em torno dos códigos costumeiros
conferia sentido prático ao ordenamento cotidiano daquele grupo devocional.
Sendo assim, o exercício contínuo do uso deste aparato de signos e ritos assegurava as
condições mínimas de coesão associativa, ou aquilo que Elias definiu por “carisma grupal”.53
Este era o mecanismo responsável pela transmissão de regras normativas e pelo estado de
pertencimento e identidade construída entre os indivíduos com o grupo de aderência. Em vista
disso, consideramos que as maneiras de administrar os bens sagrados e as formas de
organização da irmandade impressas nos estatutos entrecruzavam-se, permanentemente, com
uma rede valorativa muito maior tecida pelas tramas, disputas, acordos e reivindicações
múltiplas da arquitetura emaranhada e complexa da experiência associativa leiga na escravidão.
A inserção nesta complexa dialética entre norma e prática, fez com que o sacristão
conseguisse — mesmo depois de sua expulsão — jurar um novo termo de admissão em 1834.
Seu termo de banimento recebeu riscos posteriores no livro e, em 1843, assinou a rogo, um
termo de posse de um dos cargos mais elevados da irmandade, o de procurador. Em consistório

53
ELIAS & SCOTSON. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 20
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da capela, ao lado do Rei Vitorino José Cardoso da Silva e demais mesários, prometeu o ex-
escravo, na condição de “cidadão livre”, “cumprir e guardar” novamente todas as leis do
sagrado Compromisso.54

Considerações Finais
Ao longo desta análise, constatamos a complexidade inerente ao processo de construção
normativa, não só prescrita — através dos estatutos — mas aquela praticada pelos irmãos em
sua vivência cotidiana. Observamos que o compromisso servia como parâmetro orientador de
regras moralizantes de convivência e de diretrizes para o funcionamento do grêmio. Nesse
sentido, a confecção e aplicação destas leis dependiam, efetivamente, do potencial de
organização e atuação dos grupos hegemônicos da corporação. Estes sujeitos, privilegiados pela
política de alianças sucessórias, alcançaram maiores espaços de manobras para escrever e
interpretar as normas escritas. Isto ocorria conforme as tensões circunstanciais forjadas pelos
acordos e conflitos internos às esferas de estratificação elevada da associação.
Outro ponto desenvolvido diz respeito à relação entre mobilidade social, silenciamento
da cor, ocupação de cargos elevados da confraria e a potencialização dos espaços de manobras
referentes às interpretações do código prescrito da irmandade, como pudemos vislumbrar pelo
liberto Francisco Pinto de Magalhães. Ao ingressar na irmandade, ainda escravo, pela mercê
do capelão, o confrade galgou postos estratégicos na confraria e, mesmo após ser acusado de
furto e ser expulso do grêmio, conseguiu argumentar, através de uma leitura convincente do
compromisso, sobre o seu direito de permanência no grupo. Evidentemente, a mesa diretiva só
reviu suas medidas punitivas, também amparadas pela leitura do estatuto, em razão do sacristão
ter vinculado seu discurso de defesa à sua condição de mobilidade social, alcançada pela carta
de liberdade.

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54
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Campanha, (1814).

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Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de São João del-Rei
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Livros de Entradas do Rosário de São João del-Rei (Nº 17, 20 e 23, Período: 1782-1850).
Livro 40, Termos de Administração da Irmandade do Rosário dos Pretos da Vila de São João
del-Rei (1818-1851).

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Artigo

UM PANORAMA DA LEGISLAÇÃO EM FAVOR


DOS RECÉM-NASCIDOS ABANDONADOS NO
IMPÉRIO PORTUGUÊS AO LONGO DA ÉPOCA
MODERNA
CAYO DE-ANNYS MARIANO TEIXEIRA

Resumo: Buscaremos, neste presente artigo, levantar um breve panorama da legislação que
orientou o fenômeno do abandono de recém-nascidos no Império português durante a época
Moderna, mostrando que esse fenômeno por mais que estivesse presente desde a Antiguidade,
foi somente a partir do século XV que as Ordenações Manuelinas criaram as primeiras leis que
estabeleceram critérios para o acolhimento e o financiamento dos expostos, ao
responsabilizarem legalmente as Câmaras pelo financiamento da criação deles até os sete anos.
Ao longo de três séculos a dinâmica do abandono permaneceu sem grandes mudanças, e
somente em meados do século XVIII perceberemos mudanças significativas nas leis de
assistências aos enjeitados.
Palavras-chave: Enjeitado; abandono; legislação.

Abstract: This article was developed in order to treat a short perspective of the law that guide
the newborn abandonment phenomenon in the Portuguese Empire during the Modern Age,
showing that only in the beginning of the century XV, the Manueline Ordinatices created the
first laws that determinate how should work the system of reception and gave to the Municipal
Council the responsibility to finance the education of foundlings, although this phenomenon
was present since Old Age. Along three centuries, the dynamic of abandonment keeping with
no significant changes and only in the middle of the century XVIII major chances could be
notable in the support’s laws to foundlings.
Keywords: Foundlings; legislation; abandonment.

Esta pesquisa visa à análise da legislação sobre o abandono de recém-nascidos ao longo


da Época Moderna, estendendo-se até a primeira metade do século XIX, período em que, de
modo geral, foram registrados altos índices de abandono tanto na Europa como na América

Artigo recebido em 25 de outubro de 2016 e aprovado para publicação em 12 de dezembro de 2016.


Bacharel e licenciado em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF. E-mail: cayo01-rj@hotmail.com
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portuguesa. No intervalo proposto para análise será possível ainda acompanhar a evolução da
assistência prestada a essas crianças, através do surgimento de novas leis que buscavam garantir
maiores providências a esses desvalidos.
Uma importante fonte de investigação nesta pesquisa será a compilação do jurista e
bacharel António Joaquim Gouveia Pinto, publicada em Lisboa no ano de 1820, que buscou
resumir, em um só livro, as providências portuguesas estabelecidas em relação aos expostos,
também conhecidos como enjeitados.1
Além da utilização da Compilação das Providências, nos debruçaremos sobre a
bibliografia acerca do tema. Apesar de o abandono se fazer presente desde a antiguidade, o tema
não teve muita ressonância na historiografia e só a partir dos anos de 1970 passou a ser mais
explorado pelos historiadores da história da demografia e da cultura, assim como os estudos
sociais da família e do cotidiano.2
Apesar de vários historiadores terem produzido numerosos estudos sobre instituições de
caridade como as Santas Casas de Misericórdia, quando o assunto é a Roda dos Enjeitados esse
número é muito menor, tendo uma maior projeção somente na década de 1980. Não podemos
desprezar o trabalho desenvolvido pelo historiador brasilianista Russell-Wood3 sobre o
abandono de recém-nascidos na Santa Casa de Misericórdia da Bahia, que surgiu no final da
década de 1960.
Philippe Ariès (1960),4 historiador francês que foi pioneiro no estudo da História da
Criança também é um exemplo, e que neste período nos ajudará a compreender a criança e o
seu cotidiano. A brasileira Maria Luiza Marcílio (1968),5 que volta seus estudos para História
Social e Demografia Histórica, é outro exemplo.
Em 1992, Isabel dos Guimarães Sá6 publica na Revista Penélope um artigo onde busca
interpretar o abandono de crianças através das fontes jurídicas, que muito contribuiu com esta
pesquisa. No final da década de 1990, surgiram novos trabalhos para nos ajudar a compreender

1
PINTO, Antônio Joaquim Gouveia. Compilação das providências, que a bem da criação, e educação dos expostos
ou enjeitados que se tem publicado. Lisboa: Impressão Régia, 1820.
2
Sobre estudos demográficos ver BURGUIÈRE, André. A demografia. In: LE GOFF, Jaques; NORA, Pierre.
Historia. Novas Abordagens. Trad. Henrique Mesquita. Rio de Janeiro: F. Alves, 1995, p. 59-82.
3
WOOD, A. J. R.. Fidalgos e filantropos: A Santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1550-1775. Brasília: Ed. Da
Universidade de Brasília, 1981.
4
ARIÈS. Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.
5
MARCÍLIO, M. L. A cidade de São Paulo: povoamento e população, 1750-1850, com base nos registros
paroquiais e nos recenseamento antigos. São Paulo: Edusp, 1974.
6
SÁ, Isabel dos Guimarães. Abandono de crianças, infanticídio e aborto na sociedade portuguesa tradicional
através das fontes jurídicas. Penélope – fazer e desfazer a história, n. 8, 1992.
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melhor esse tema do abandono, da infância, e da família no Brasil como podemos mencionar
Maria Luiza Marcílio (1998); Renato Pinto Venâncio (1999) e Renato Franco (2014).
Porém, antes de entrarmos propriamente na legislação do abandono, é interessante
fazermos um breve panorama da história do abandono, para que possamos logo de início
perceber que essa prática corriqueira não era o mesmo que abortar ou matar, apesar dos destinos
de muitos desses recém-nascidos fosse a morte, por distintos motivos.
Adentrando no universo mais conceitual, vale destacar que o termo “criança
abandonada” não estava inserido no vocabulário daquela sociedade, seja em âmbito jurídico ou
religioso. Esse termo só começa a ser utilizado no final do século XIX 7 e correspondia às
crianças infratoras, aos delinquentes, contraventores e vadios, ou seja, não era utilizado para
designar as crianças a qual nos referimos.
Os termos que a sociedade utilizava para essas crianças, no período estudado, eram
“enjeitada” e/ou “exposta”, ou em menor proporção “desamparada”. Por essas ficava entendido
que eram as crianças recém-nascidas que os pais ao abrir mão de sua criação e tutela, os
abandonavam em locais públicos e desprotegidos – como, por exemplo: praças, ruas, portas da
vizinhança ou das igrejas e terrenos baldios – a mercê da sorte e as intempéries do tempo; ou
ainda, nos locais destinados ao recolhimento desses desvalidos como as Casas da Roda.
Já que estamos tratando de crianças abandonadas, precisamos também contextualizar
como a infância era percebida no período estudado, para não sermos anacrônicos. “Ainda que
os discursos insistam sempre em noções ideais, a percepção da infância está diretamente ligada
às experiências históricas, às circunstâncias econômicas e às condições sociais de cada
comunidade”, resume-nos Renato Franco8.
O historiador define a infância neste período da época moderna como algo ambíguo, que
não era decidido de forma arbitrária. Sabia-se que as fases da vida estavam divididas em
infância, puerícia, adolescência, mocidade, idade varonil, velhice e idade decrépita, entretanto
a delimitação precisa das idades era confusa. Exemplo dado é o limite etário utilizado para
identificar a saída da infância para a adolescência entre crianças de sexo diferentes, pois para
os meninos a puberdade começava aos 14 anos, enquanto que para as meninas era aos 12.
No Vocabulário Português e Latino, a infância era definida como a idade dos meninos

7
AREND, Silvia Maria Fávero. De exposto a menor abandonado: uma trajetória jurídico-social. In: VENÂNCIO,
Renato Pinto. (Org.). De Portugal ao Brasil: uma história social do abandono de crianças. São Paulo/Belo
Horizonte: Alameda /Ed. PUC Minas, 2010.
8
FRANCO, Renato. A piedade dos outros: o abandono de recém-nascidos em uma vila colonial, século XVIII.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014. p. 37.
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enquanto não falasse, ou até que fizesse uso da razão “conforme a opinião que querem que a
infância também significava a idade que se estende até o princípio da adolescência, a saber, aos
14 anos”.9 Além do sexo a condição social também poderia ser um critério etário, isso fica claro
no alvará de 1758 sobre o tráfico de escravos que definia como “criança” os escravos que não
tivessem alcançado altura superior a quatro palmos, aproximadamente um metro10.
Apesar de a infância ser percebida de forma variável, para os enjeitados o dever de auxílio
previstos na legislação ditava uma data para término do auxílio, conforme bem explica Franco:
“As idades-limite que afetavam a vida dos enjeitados eram: três primeiros anos, conhecidos
como período de lactação; os 7 anos indicavam o fim da inocência e do auxílio de criação; aos
12 anos para as meninas e aos 14 para os meninos marcavam a entrada na puberdade; aos 25
anos imputavam-lhes a maioridade, o que para os expostos ocorria aos 20 anos”.11

1- O abandono de recém-nascidos:
O ato de abandonar um recém-nascido não é um fenômeno recente. Segundo Maria Luiza
Marcílio,12 “abandonar bebês é um fenômeno de todos os tempos, pelo menos no Ocidente.
Variaram apenas, no tempo, as motivações, as causas, as intensidades, as atitudes em face do
fato amplamente praticado e aceito”. Desse modo, em muitas grandes civilizações da
Antiguidade, nas quais o abandono já estava inserido ao contexto da época, crianças eram
descartadas sem remorso e tal ação era até regulamentada.
Podemos citar como exemplo, o abandono de Moisés, um famoso caso bíblico, retirado
das escrituras do Antigo Testamento, em que a criança foi deixada às margens do Nilo num
cesto. Recolhido e adotado pela filha do faraó, Moisés foi amamentado por sua própria mãe que
era serva da filha do Faraó e se tornou um importante homem, conhecido por livrar da
escravidão o povo hebreu (Gên.: 25, 12-6).13 Tanto na Bíblia como no Talmude, Marcílio nos
aponta existir numerosas alusões ao abandono de bebês, o que nos mostra ter sido um costume
frequente, e regulamentado, que dava ao pai o poder de vender seus filhos em caso de miséria
ou de necessidade.
Na mitologia e filosofia existem diversos casos de abandono: “Júpiter, deus da Luz, foi
igualmente abandonado por seus pais ao nascer. Zeto e Anfíon, os gêmeos, filhos de Zeus e

9
BLUTEAU, Rafael. Vocabulário português e latino. Tomo I. Coimbra: s.n., 1712, p. 121.
10
VENÂNCIO, 1999, op. cit.p.22.
11
FRANCO, 2014, op. cit. 42.
12
MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998, p. 21.
13
Idem, p 21-22.
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Antíope, foram expostos no monte Citéron e recolhidos por pastores. [...] A lista de figuras
mitológicas abandonadas, ao nascer, por seus pais não termina aí: Esculápio (filho de Apolo),
Hefesto, Ate e a deusa Cíbele, além de Príamo, Hércules, Licasto e Parrásio. Na maioria dos
casos da mitologia, o abandonado sobe na categoria social, torna-se herói e tem um destino
brilhante.”14
Foi na Alta Idade Média, com a intenção de minimizar os altos índices do infanticídio
(assassínio de crianças) e do aborto, práticas combatidas pela Igreja Católica, que houve a
institucionalização do local de destino para os enjeitados, que seriam os mosteiros.
A Igreja e pequenas instituições de leigos tiveram um importante papel na recepção e
distribuição dessas crianças abandonadas, entre os séculos V e X15, pois foi a responsável nesse
período por grande parte da assistência prestada a eles e pela criação de normas que os
favorecessem, mesmo que na prática nenhum concílio16 ou decreto canônico – leis da igreja –
proibisse ou condenasse o enjeitamento de crianças por interpretá-lo como um mal menor diante
do infanticídio.
Em Marcílio17 vimos que em Portugal a prática do abandono e de assistência as crianças
“(...) vem de longe: remonta à Idade Média e é anterior à própria constituição da nação
portuguesa. Desde, pelo menos, o século X, a assistência caritativa de caráter público esteve
presente por meio de pequenos hospitais (albergarias, hospícios, gafarias, enfermarias, asilos,
mercearias) por todo o território de Portugal”.
A partir do século XII, com o ressurgimento da vida urbana no Ocidente, e da afirmação
da doutrina do Purgatório vimos a comunidade cristã dedicar atenção a essas crianças
desvalidas por incentivo a prática da caridade alheia, tendo em vista que a adoção era uma
forma de demonstrar a bondade cristã, e também por interesses econômicos como o aumento
da mão de obra, que neste período era muito importante; políticos, como legitimação do poder
dessa Instituição; sociais e culturais, que se intensificaram ainda mais a partir do século XIV,

14
Idem, p. 22.
15
Com a queda do Império Romano a Igreja Católica inicia um período de superposição na esfera da vida pública
e para legitimar seu poder passa a atuar em diversos setores sociais, ganhando com isso uma projeção sem
precedentes, sobre esse assunto vide: GIBBON, Edward, Os Cristãos e a Queda de Roma. Trad. José Paulo. Ed.
Abreviada. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
16
Por concílio entende-se: Junta de pessoas de Hierarquia Eclesiástica, que tem voto em matérias de Dogma, Moral
Evangélica, e Disciplina, presidida pelo Bispo, Arcebispo, Patriarca, Papa, ou seus Legados. Definição em:
SILVA, António de Morais. Dicionário da língua portuguesa. Vol. I. Lisboa: Tipografia Lacerdina, 1789. p. 436.
Marcílio (1998, p. 28-29) acrescente-se que os Concílios de Vaison (442), de Agda (506), de Arles (552) e de
Mâcon (581) procuraram encorajar os fiéis a acolher os expostos, mas não fazem menção a proibição ou
condenação, nem sequer penalidades aos pais que abandonasse seus filhos.
17
MARCÍLIO, 1998. op. cit. p 89.
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período este que por diversas razões acompanhamos a elevação dos níveis de pobreza e
epidemias, que dizimaria grande parte da sociedade europeia.
Marcílio18 diz ainda que “As primeiras instituições de assistência direta à criança
abandonada foram criadas a partir dos esforços conjugados da sociedade e da coroa, no
momento em que surgiram as confrarias de caridade e as corporações de ofícios”, porém em
Portugal na Idade Moderna, com a criação das Misericórdias podemos perceber o esforço não
somente da centralização institucional, como também da ampliação e homogeneização das
assistências a esses enjeitados.
O compromisso da Misericórdia, publicado pela primeira vez em 1516, passava a partir
de então a padronizar esses estabelecimentos e as formas de sua manutenção, dando Lisboa
como referência para as demais instituições do mundo português. Da mesma forma que as
portuguesas, as misericórdias fundadas no Brasil que seguiam o modelo de Lisboa (1498),19
valendo-se de suas particularidades, carregavam semelhanças consideráveis.
No fim do século XV, e principalmente no século XVI e XVII, foram se multiplicando
por toda a Europa o surgimento de estabelecimentos que centralizavam o recolhimento e o
amparo a esses desvalidos, até porque se levarmos em consideração os valores morais e
religiosos da época que ditavam que: se uma mulher engravidasse de um filho não esperado
neste período só lhe restaria três alternativas para se livrar do filho: o descarte do recém-nascido
em locais ermos, o infanticídio ou a Roda.
Ao longo do século XVIII e primeira metade do século XIX milhares de crianças foram
abandonadas em todas as cidades da Europa. Trata-se de um fenômeno de âmbito europeu –
mas não somente – com particular incidência na chamada Europa Meridional. Portugal, a
Espanha, a França napoleônica e as unidades políticas da península itálica conheceram um
abandono maciço de crianças, ao qual fizeram face através de práticas assistenciais especificas
e diferenciadas.20
Na América portuguesa a prática do abandono também se tornou bem popular entre os
diferentes grupos sociais, pois mesmo sendo uma prática condenável moralmente que se
associava as condições de honra e de pobreza, dentre as possibilidades, a entrega das crianças
nesses locais de acolhimento era visto como uma alternativa mais honrosa e humana, bem mais
tolerada que o infanticídio e o aborto, que do contrário passaram a ser condenadas, colocando

18
Idem, p. 90.
19
Idem, p. 145.
20
SÁ, op. cit. p. 75.
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assim em evidência o abandono como melhor alternativa para se livrar dos filhos.
Essas instituições ficaram conhecidas como “Casa da Roda”, ou ainda “Roda dos
Expostos”, por possuírem um equipamento como bem descreve Marcílio: “de forma cilíndrica
e com uma divisória no meio, esse dispositivo era fixado no muro ou janela da instituição.
[Onde] no tabuleiro inferior da parte externa, o expositor colocava a criança que enjeitava,
girava a Roda e puxava um cordão com uma sineta para avisar à vigilante – ou Rodeira – que
um bebê acabara de ser abandonado, retirando-se furtivamente do local sem ser reconhecido”,21
também era um local para centralizar o acolhimento dessas crianças abandonadas em uma
instituição, tal como padronizar a assistência de forma geral.

1.1- Causas do abandono:


A historiografia brasileira acerca das causas do abandono desses recém nascidos defende
que eles, em sua maioria, envolviam razões morais, e principalmente econômicas. Podemos
perceber isso neste trecho da obra de Renato Franco que nos diz que no mundo católico, os
enjeitados eram consequência natural da fraqueza humana, ou seja, a prática de abandoná-los
estava associada à preservação da honra dos pais, e também à pobreza. 22 Da mesma forma,
Marcílio nos revela que “em sua quase totalidade, as crianças que eram abandonadas provinham
dessa faixa de miseráveis, de excluídos. A pobreza foi a causa primeira – e de longe maior – do
abandono de crianças, em todas as épocas”.23
De acordo com Franco, era comum enjeitar filhos de relações com impedimentos legais
ou religiosos como a condenação às mães solteiras e aos celibatos, sem dúvidas contribuíram
para o aumento do abandono. Segundo ele, para certos segmentos a justificativa moral
prevalecia sobre as demais, como exemplifica no testamento deixado por Maria Hilária que
relata “vivendo no estado de solteira, nele tive vários filhos, que por recato e decência se
batizaram por expostos e vem a ser: Narciso José da Costa, já falecido [...], Rosa Maria de Jesus
[...], José Joaquim da Costa, João Evangelista da Costa, Antonio Joaquim da Costa (...)”.24
Além desse testamento percebemos tal ação em alguns bilhetes que eram deixados junto
às crianças, como por exemplo: “Irmão Bento Pinto da Fonseca, acompanha a esta a um menino
para Vossa Mercê (...) a quem por mercê e honra de Deus pertence tomar conta dessas crianças

21
MARCÍLIO, 1998. op. cit. p57.
22
FRANCO, 2014, op. cit. p. 62.
23
MARCÍLIO, 1998, op. cit. p. 257.
24
FRANCO, 2014, op. cit. p. 66-67.
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quando nascem de pessoas recolhidas e que são família que tem Pai e por causa deste
impedimento se não podem criar”25 e “Trouxe uma carta pedindo que por seus pais serem
impedidos, e estarem para casar, se crie a dita menina com todo zelo, que breve a mandarão
buscar, e que igualmente lhe pusessem o nome de Antonia.”26, porém esses motivos estavam
longe de serem os únicos motivos que levassem a prática do abandono.
Venâncio ao consultar a historiografia internacional nos informa que os principais
motivos que levavam ao abandono eram bem parecidos com os defendidos pela historiografia
brasileira, pois as causas apontadas eram: a condenação social por filhos ilegítimos, a miséria,
o controle familiar, a orfandade, etc.
Para a América portuguesa, segundo Marcílio, o concubinato, a mestiçagem, a
ilegitimidade foram fenômenos inter-relacionados e de larga difusão. Exemplifica ela, que no
século XIX, em Salvador, de cada duas crianças que nasciam livres, uma era ilegítima.27
Analisando de forma geral o Brasil no período entre o fim do século XVIII e o fim do XIX,
Marcílio percebe que 5%, em média, das crianças que nasciam livres eram abandonadas,
enquanto 36% das crianças nascidas livres eram ilegítimas, conclui desta forma que aqui no
Brasil diferentemente da Europa que neste período enfrentava o recrudescimento do abandono,
nos aqui assistíamos o aumento significativo da ilegitimidade.
Que a miséria contribuiu e muito para o aumento dos índices de abandono não é novidade.
Em muitas cartas isso ficava explícito, como nos exemplos a seguir: “Vai esta menina já
batizada e chama Ana e pelo Amor de Deus se pede a Vossa Mercê a queira mandar criar
atendendo a pobreza de seus pais”;28 e “as duas meninas portadoras dessa carta foram deixadas
por necessidade de sua mãe em casa de uma pobre, que vive de esmolas dos fiéis, e por isso
que elas vem agora procurar asilo desta Casa da Santa Misericórdia”.29 No entanto não podemos
esquecer que essa prática não estava restrita a um segmento social.
Se consultado os testemunhos de letrados da época como os irmãos da Mesa, médicos,
juristas, viajantes, entre outros, vamos perceber que as motivações para o abandono, além da
pobreza, eram associadas à imoralidade, à falta de amor das mães para com seus filhos, à cobiça,
à irresponsabilidade, à falta de instruções das classes pobres, à incapacidade dos pais por conta
de doenças, entre outros. Estes mesmos letrados associavam as Casas da Roda a locais próprios

25
Matrícula de 19 de agosto de 1760. Casa da Roda do Rio de Janeiro. apud Venâncio, 1999, p. 79-80.
26
Matrícula de 1 de fevereiro de 1920. Casa da Roda de Salvador. apud Venâncio, 1999, p. 80.
27
Idem, p. 128.
28
Matrícula de 29 de maio de 1758. Casa da Roda de Salvador. apud Venâncio, 1999, p. 80.
29
Matrícula de 17 de junho de 1830. Casa da Roda de Salvador. Apud Venâncio, 1999, p. 80.
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para encobrir o nascimento dos filhos ilegítimos, por preservar o anonimato dos pais.
A incapacidade dos pais por conta de doenças em algumas vezes também levavam ao
abandono. Outras vezes as causas do abandono eram as doenças que sofriam as crianças ou a
má formação, o que fazia que muitas vezes as Casas da Roda fossem utilizadas como depósitos
temporários de crianças, tendo em vista que em muitos bilhetes eram manifestados o desejo de
se recuperar a criança, conforme evidências: “(...) Remeto este menino branco chamado
Antonio José Coelho, para tratá-lo com amor cuidado que puder por que acha doente, já
batizado, e tem idade de 2 anos, e dito a seu tempo se há de procurar por ele.” 30; “(...) Remeto
este pequeno por nome João Adelino Maria, (...) por causa de sua mãe estar alienada e não haver
parentes na Bahia que possam criá-lo, o qual tem de ser procurado logo que sua mãe se
restabeleça ou seus parentes tenham ciência do fato”.31
Sem dúvida a maior parte das crianças que encontraram acolhimento nas Rodas provinha
de lares pobres, de pais não casados, sem condições de controlar sua prole e sem condições de
sustentar seus filhos. Como percebemos, muitos foram os motivos que levaram ao abandono,
tornado cada vez mais frequente pelo simples fato de não existir nenhum constrangimento ou
condenação jurídica ou social ao ato de expor um filho.

1.2 - O surgimento das leis:


Acreditamos que o surgimento das punições impostas àqueles que praticassem atos de
infanticídio ou de aborto, colocou em evidência o abandono como alternativa bem mais
tolerável para se livrar dos filhos, e foi preciso, através da jurisprudência, estabelecer barreiras
nítidas entre o abandono e o infanticídio. Foi também preciso criar critérios que permitissem
condenar uns e tolerar os outros atos.
A coroa preocupava-se com esses pequenos enjeitados, e procurando salvaguardá-los
juntamente com esforços da sociedade criaram as primeiras instituições leigas de assistência
direta a essas crianças abandonadas, que durante os séculos XVI e XVII, tais confrarias tiveram
peso fundamental na proteção da infância desvalida e na prática da caridade, conforme ditava
a doutrina cristã.32
Somente a partir das Ordenações Manuelinas (1512) o cuidado com os abandonados

30
Matrícula de 3 de dezembro de 1822. Casa da Roda de Salvador. Apud Venâncio, 1999, p. 81.
31
Matrícula de 23 de maio de 1870. Casa da Roda de Salvador. Apud Venâncio, 1999, p. 81.
32
MARCÍLIO, 1998, p. 90. SILVA, Jonathan Frichini. A ilegitimidade e a exposição de crianças. Conexões
historiográficas (América Latina, séculos XVIII-XIX). USP – Ano V, n. 8, 2014, p. 57-78.
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passou a ser uma obrigação legal: as câmaras municipais se tornaram responsáveis por
financiar, até os sete anos de idade, o sustento dos expostos nascidos sob jurisdição do
concelho.33 Esse modelo de financiamento baseado na responsabilidade das municipalidades
foi referendado nas Ordenações Filipinas (1603),34 garantindo ainda a autonomia dos concelhos
de lançar fintas sem autorização prévia dos corregedores.35
A exposição, além de se tornar legal juridicamente e de garantir o anonimato, era
interpretada como uma alternativa em defesa da vida. Não havia qualquer tipo de punição legal
para aqueles que praticassem o abandono sem colocar a vida do bebê em risco. Diferente do
infanticídio que por ser um crime deveria ser condenado, a prática do abandono deveria ser
amparada.
Este primeiro momento predominou seu caráter caritativo praticado pelos cristãos leigos
ou pelas instituições destinas para o acolhimento. Por esse motivo, Portugal no Antigo Regime,
estabeleceu normas e regimentos às instituições de proteção a estas crianças, que passaram,
através das Santas Casas de Misericórdia, a assumir e centralizar em um só local a prestação
das assistências, o que não desobrigava às Câmaras da responsabilidade financeira para com os
expostos.
Segundo Sá (1992) nos séculos XVII e XVIII, a jurisprudência sobre a condição jurídica
do exposto mostra-se fragmentária, por esse motivo algumas questões eram objeto de
divergência entre os autores. Por exemplo, a sua condição de legitimidade foi resolvida somente
em situação de compromisso, aceitando-se a legitimidade presumida em caso de dúvida, e
sendo o exposto tratado pela lei, teria direitos iguais as crianças legítimas.
Franco complementa dizendo que “diferentemente dos órfãos, para quem a morte dos

33
“Porém se alguns órfãos que não forem de legítimo matrimônio forem filhos d’alguns homens casados ou de
solteiros, em tal caso, primeiramente, serão constrangidos seus pais, que os criem; e não tendo eles por onde os
criar, se criarão à custa das mães; e não tendo uns nem outros por onde os criar, sejam requeridos seus parentes
que os mandem criar; e não o querendo fazer ou sendo filhos de religiosos, ou frades, ou freiras ou de mulheres
casadas, por tal que as crianças não morram por míngua de criação, os mandarão criar à custa dos bens dos
hospitais, ou albergarias, se os houver na cidade, vila ou lugar ordenados para criação dos enjeitados; e não
havendo aí tais hospitais ou albergarias, se criarão à custa das rendas do concelho; e não tendo o concelho rendas
por onde se possam criar, se lançará fintas por aquelas pessoas que nas fintas, e encarregos do concelho hão de
pagar, a qual lançarão os oficiais da câmara.” Ordenações Manuelinas, Livro I, título 67, parágrafo 10.
34
Ordenações Filipinas, Livro I, título 88, parágrafo 11.
35
“E se o dito Conselho quiser lançar finta para conseguir algum feito e demanda, que outrem haja em alguma das
nossas Relações, o escreverão ao Juiz; ou Juízes do feito, os quais lhe darão carta para fintar com autoridade do
Regedor, ou Governador, até a quantia que lhe necessário parecer. Porém, se a finta não houver de ser mais que
até quarto mil réis poderão escrever ao carregador da Comarca, o qual lhe dará licença para a dita finta, na maneira
que em seu Título 58 é conteúdo. E sem a dita carta de cada um dos sobreditos não poderão os Oficiais da Câmara,
nem do Conselho lançar finta para coisa alguma, salvo para criação dos meninos enjeitados”. Ordenações
Filipinas, Livro I, título 66, parágrafo 41.
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progenitores era uma referência incontornável, a criança exposta se encontrava em seu grau
zero de ascendência”, mas que poderiam herdar qualquer tipo de bens, observando as
disposições legais vigentes. Por fim, seguindo a tradição jurídica romana, uma vez enjeitadas,
as crianças eram consideradas livres. No império português, o princípio da liberdade dos
expostos foi reafirmado pelo alvará de 31 de janeiro de 1775, reivindicando a ingenuidade
natural e habilitação pessoal dos expostos. Portanto não poderiam em caso algum serem
reduzidos a escravos, mesmo que fossem filhos de escravos.36
Vale lembrar que a situação do exposto era transitória porque correspondia somente aos
primeiros anos de vida, nos quais se encontravam a cargo da sociedade, através das instituições
públicas. Segundo Franco, depois dos sete anos, passavam a ter o mesmo estatuto dos órfãos,
ficando sob a responsabilidade do juiz de órfãos. Em tese, a particularidade estava no fato de
os expostos serem emancipados aos 20 anos, cinco anos antes dos órfãos.
Do ponto de vista legal, em locais que não houvesse instituições de apoio aos enjeitados,
a municipalidade deveria incumbir-se de sua criação e educação ou deveriam contratar famílias
criadeiras e financiar as despesas com a alimentação e vestuários dos desvalidos até que
completassem 7 anos de idade.37 Deste modo, aquele que recolhesse em sua residência uma
criança exposta deveria levá-la a batizar e em seguida se quisessem poderiam solicitar ajuda
financeira à Câmara para sua criação. Cabia à Câmara pagar as criadeiras para criarem aquelas
crianças que não encontrassem famílias que as adotassem.
Apesar da obrigatoriedade legal, o cuidado com os expostos era caro. Por isso muitas
câmaras se negavam a financiar qualquer tipo de assistência, alegando falta de verbas. Outras
forneciam recursos aos criadores em locais que não dispunham das Rodas, ou procuravam
instituir e administrar uma Casa da Roda nesses locais.38 Outras Câmaras ainda, de acordo com
Sá, procuraram estabelecer contratos com as Misericórdias locais encarregando-as da
administração dos expostos por meio de um pagamento mensal.
As primeiras instituições de proteção à infância desvalida, na América portuguesa só
surgiram no século XVIII, apenas dois exemplos bem-sucedidos implantaram rodas de
expostos: Salvador, em 1726, e Rio de Janeiro, em 1738. A Casa da Roda do Recife, inaugurada

36
FRANCO, op. cit. 2016, p. 3. SÁ, op. cit. p. 88.
37
Ordenações Filipinas, Livro I, título 88, parágrafo 11.
38
FRANCO, Renato. Órfão na Colônia. Revista de História da Biblioteca Nacional, ed. n.º 61, outubro de 2010.
Disponível em: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/orfao-na-colonia (Último acesso em
01/04/2016)
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em 1789, ficava sob o controle exclusivo da câmara local, segundo Franco.39 De acordo com
Marcílio a principal justificativa da existência das Rodas foi a de ser efetivamente um meio
eficaz para inibir o infanticídio e o aborto.
O processo de recebimento e de encaminhamento dos bebês lançados nas Rodas de
Expostos, na América portuguesa, era o mesmo dos estabelecidos em Portugal. O modelo
brasileiro baseou-se no da Roda de Expostos da Misericórdia de Lisboa, nos diz Marcílio, que
inclusive no Livro de Registros (1819-1822) da Roda do Rio de Janeiro relata-se, de maneira
completa, a forma de lançamento na Roda.40
Diferente do que acontecia em algumas Rodas na Europa,41 na América portuguesa, do
mesmo modo que a de Portugal prestavam-se assistências aos expostos quase que de forma
indiferenciada. As criações das Rodas estavam ligadas a estabelecimentos financeiramente
estáveis ou contaram com legados para poder financiá-las. Como foi o caso da Santa Casa de
Salvador, que recebeu o legado de João de Mattos Aguiar em 1700, e da do Rio de Janeiro, que
foi criada a partir da doação, ainda em vida, do confrade Romão de Mattos Duarte.42
Vale ressaltar que tanto no Brasil colonial como no período Imperial apenas uma parcela
das crianças abandonadas foi assistida por essas instituições, pois boa parte ou morreu ao
desamparo ou foi acolhida em casas de família; segundo Franco, para o caso por ele estudado:
Vila Rica, do total de crianças enjeitadas, 95,7% foram deixadas as portas de domicílios, 53%
sendo expostos a mulheres e 47% a homens, certamente casados.43

1.3- A temporalidade das leis para os expostos:


Observamos que somente a partir da Idade Moderna houveram tentativas, na esteira do
fortalecimento dos Estados modernos, de oferecer respostas a essa problemática, dando origem
às primeiras leis que estabeleceram critérios para o acolhimento e o financiamento dos expostos.
Conforme já dissemos, foi no século XVI, com as Ordenações Manuelinas, que os

39
FRANCO, 2014, p. 25.
40
MARCÍLIO, 1998, p. 146.
41
A Roda da Itália, por exemplo, desde o século XVI possuía dois sistemas de assistência, um destinado aos filhos
legítimos e outro voltado aos de origem desconhecida. Vide Venâncio, 1999, p. 31-34.
42
Romão Duarte deixou em seu testamento registrado o motivo de sua doação para a criação da Roda: “Tendo em
vista a lástima com que perecem algumas crianças enjeitadas nesta cidade, porque umas andam de porta em porta,
aos boléus, até que morrem, e outras se acham mortas pelas calçadas, e praias, por não haver quem as recolha
[concorro] com uma esmola e doação para a criação, alimento, e remédio desses inocentes, por atender que será
do divino agrado esse sufrágio e benefício por sua alma”. Arquivo da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro,
Lata 35C. apud Franco, 2014, p. 57-58.
43
Idem, p. 87.
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concelhos municipais foram obrigados legalmente a prover a criação de órfãos e expostos, e
que foram autorizados a lançar fintas especiais ou a criar loterias para esse fim. Mesmo assim,
consideramos pertinente repetir esse dado para contextualizarmos temporalmente o surgimento
das leis em favor dos expostos.
No século XVII, essas disposições que eram válidas para todo Império ultramarino, foram
referenciadas outra vez nas Ordenações Filipinas em 1603, ao declarar que se o filho não fosse
legítimo – nessa categoria figurava também os expostos – o pai seria constrangido a criá-lo “e
não tendo este, sua mãe; e não tendo também está, seus parentes; ou vão a casa pia, ou às rendas
da câmara, que não bastando, serão supridas por fintas que lancem ao povo”44, ou seja, em tese,
só em última instância caberia as câmaras assumir a responsabilidade pela criação dos expostos,
lançando fintas para tal finalidade e repassando desta forma o ônus dessa assistência para a
população, garantindo ainda a autonomia dos concelhos de lançar fintas sem autorização prévia
dos corregedores como previsto na mesma Ordenação, Livro 1, título 66, parágrafo 41.
Posteriormente às Ordenações, ainda no século XVII, de acordo com Pinto, foi
promulgada a Lei de 15 de Janeiro de 1652, que mencionava as referidas formas de atentar
contra a vida das crianças, que por mais que não falasse expressamente da exposição dos filhos,
e do aborto, determinava que pudessem os corregedores proceder45 contra os assassinos, ainda
que eles não conseguissem a morte das suas vítimas.46
Podemos perceber, que principalmente a partir da segunda metade do século XVIII,
importantes leis foram criadas em favor dos enjeitados, e segundo Venâncio os aspectos tratados
nelas dizia respeito à origem social dos mesmos, a exemplo o Alvará de 31 de janeiro de 1775,
que reafirmava a liberdade de todos os enjeitados, pois, seguindo a tradição jurídica romana a
liberdade estava atrelada à condição de ingênuo desses sem-famílias.47
A lei de 1775 do Marquês de Pombal, apresentada acima, recomendava bom tratamento
às crianças abandonadas de forma indistinta48, tal como a Circular da Intendência Geral de

44
Ordenações Filipinas, Livro 1, título 88, parágrafo 11.
45
Pinto diz que quando a exposição ocorresse em locais ermos, ou seja, tivessem os pais colocado em risco a vida
dos filhos – ato de infanticídio - deveria o Magistrado criminal do distrito ao tomar conhecimento dos fatos lhes
aplicar a “summaria”; e quando as crianças aparecessem mortas por acidente ou propositalmente deveriam lhes
aplicar a “devassa”. PINTO, 1820, Artigo XII.
46
PINTO, 1820, Artigo XII. SÁ, 1992, p. 84-85.
47
BOSWELL, J. The Kindness of Strangers. The abandonment of children in Western Europe from late Antiquity
to the Renaissance. NY: Pantheon Books, 1988, p. 53-137. Venâncio, 1999, p. 35. Franco, 2016, p. 2-3.
48
Segundo a lógica subjacente às leis portuguesas, não havia, portanto, muito sentido em diferenciar os pobres com
família dos sem família, pois viver em precárias e frágeis estruturas familiares era uma condição de pobreza. Em
razão disso, não deveria haver formas de socorro infantil diferenciadas (Venâncio, 1999, p. 33).
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Polícia, de 24 de maio de 1783, sancionada pela rainha D. Maria I, que dizia que as
municipalidades submetidas ao império português deveriam instalar Casas de Rodas:

em todas as Cidades, e Vilas do Reino deve haver Casa da Roda, para expor os
meninos, que se enjeitarem, e esta existir em um lugar mais acomodado, que possa
haver, em cada uma das terras, em que devem estabelecer-se; para que mais facilmente
se possam expor as crianças, sem serem observados, e conhecidos tão facilmente os
seus condutores.

Fica expresso ainda no parágrafo 7 dessa Circular que pardos e pretos deveriam ser
declarados ingênuos, no §8 que a menor idade para os expostos findava aos 20 anos de idade.
Aparecia nele ainda uma atenção com as condições sanitárias do local: “preocupando-se,
contudo, se possível for, um lugar bem ventilado e sadio”.49 Ao referenciar diversos pontos
presentes no Alvará de 1755, também procurou definir a situação e indicar os direitos dos
expostos após completar 7 anos de idade.
Não podemos deixar de dizer que foi ainda no século XVIII que mais uma vez foram
confirmados, através do decreto de 31 de Março de 1787, os privilégios que os reis concederam
em diferentes tempos e leis não só aos enjeitados, mas também às pessoas que os tem criado e
educado, como observou Pinto no artigo 44 de sua compilação.50
Seguindo essa tendência no século XIX a Circular da Intendência Geral da Polícia de 05
de Junho de 1800, tal como o alvará de 9 de Novembro de 1802, não só reafirmaram antigos
privilégios para as amas, mas concederam novos, como pode ser observado nos §7 e 9 do Alvará
de 18 de Outubro de 1806, que lhes outorgavam salários proporcionais ao trabalho, podendo
estes variar de acordo com a região; e usufruto das Casas enquanto ali se empregassem, gozando
de boas acomodações.51
Gouveia Pinto, ainda no prefácio de sua compilação diz que o cuidado e a criação dos
expostos é um dos objetos mais dignos de consideração da realeza. Por esse motivo buscou
reunir em um único livro as providências que, histórica e juridicamente, foram desenvolvidas
em diferentes cidades e vilas do Reino, originando desta forma um regulamento único para uso
em diferentes nações letradas.
Para dar fôlego a esse cuidado das Majestades para com os enjeitados, no início do século
XIX foram promulgadas a Circular da Intendência Geral da Polícia de 22 de Maio de 1807 e

49
PINTO, 1820. Artigo I, p. 7.
50
PINTO, 1820, p. 37.
51
PINTO, 1820, p. 9.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 154-171 | www.ars.historia.ufrj.br 167
posteriormente a Portaria de 24 de Outubro de 1812. Segundo Marcílio, foi no período
napoleônico que a obrigatoriedade de instalação e funcionamento de Roda dos Expostos foi
decretada em todo o Império. O Decreto de 1811, em seu 3º Artigo, determinava que “em cada
hospício destinado a receber as crianças abandonadas deveria haver uma Roda onde possam ser
deixados os enjeitados”.52
Em 1827, foi elaborada outra lei, que de acordo com Renato Venâncio, visava a
regularizar as finanças do conjunto das instituições brasileiras destinadas aos enjeitados. A lei
instituía que todos os legados pios não cumpridos deveriam ser enviados “aos hospitais dos
distritos respectivos” e que na ausência desses, tais legados deveriam ser utilizados com a
criação dos expostos.53
Conforme nos diz Venâncio, o socorro aos enjeitados também foi mencionado na lei de
1828, redigida por Dr. José Clemente Pereira a pedido do imperador, essa nova regulamentação
para as Câmaras Municipais foi sancionada em 1º de outubro, conhecida como Lei dos
Municípios, deixava a cargo das municipalidades, a partir desse momento, a obrigação por
conservar as Casas de Caridade, como lemos no seu Título III, Art. 69: “[as Câmaras] cuidarão
do estabelecimento e da conservação das casas de caridade, para que se criem os expostos, se
curem os doentes, necessitados e se vacinem todos os meninos do distrito...”; e no Art. 70
“quanto aos estabelecimentos de caridade, de que se trata o Art. 69, se achem por Lei, ou de
fato encarregados em algumas cidades ou vilas a outras autoridades individuais, ou coletivas,
as Câmaras auxiliarão sempre quanto estiver de sua parte para a prosperidade, e aumento dos
sobreditos estabelecimentos” E, finalmente no seu Art. 76, do Título IV: “e nas cidades, ou vilas
onde não houverem casas de misericórdia, atentarão principalmente na criação dos expostos,
sua educação, e dos mais órfãos pobres e desamparados”.54
Como essa Lei, de 1828, as obrigações das Câmaras foram reformuladas, e abriu
precedente para que elas se livrassem de tão difícil obrigação, pois nos locais que houvesse as
Santas Casas, as Câmaras poderiam oficialmente repassar a elas, seu dever de cuidar dos
expostos. Onde não as houvesse, segundo Marcílio, algumas municipalidades do Império
deixariam de contribuir com as Misericórdias ou com as famílias para subsidiar a criação dos
expostos.

52
MARCÍLIO, 1998, op. cit. p. 79.
53
VENÂNCIO, 1999, op. cit. p. 35.
54
VENÂNCIO, 1999, op. cit. p. 36. MARCÍLIO, 1998, op. cit. p. 143.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 154-171 | www.ars.historia.ufrj.br 168
Acrescenta Venâncio55 que além de se preocuparem com as finanças e com a garantia de
liberdade dos enjeitados, os legisladores introduziam a obrigatoriedade da vacinação dos
expostos, antes mesmo de a medida ser generalizada para o conjunto da população livre.
Exemplifica com o seguinte trecho do texto legal de 1830:

Todos os Expostos serão vacinados depois que excederem dois meses de idade (...) a
vacinação será feita na mesma Casa dos Expostos nas segundas e sextas-feiras de cada
semana (...) todos os Expostos vacinados que se estiverem criando fora da cidade,
deverão estar na semana seguinte, e no dia correspondente àquele em que forem
vacinados para se observar a vacina.

De acordo com Marcílio, a partir do século XVIII, século este das ideias secularizantes e
críticas à Igreja associada à mentalidade produtiva e utilitarista, surge uma atitude de prevenção
em relação às confrarias em substituir, às obras pias e aos grêmios, e há uma progressiva
tendência em substituir a caridade religiosa, ou particular, por uma beneficência pública. Nesta
nova fase, que foi ampliada no século XIX, e sob essa nova ótica, os expostos deveriam ser um
instrumento de progresso, um agente a serviço do bem do Estado.
Desse modo, podemos dizer que essa mudança de raciocínio inaugurada no século XVIII
e difundida no XIX fez com que as leis a favor dos expostos fossem criadas. Mas, nos utilizando
das palavras de Sá,56 é lícito afirmar que foi esse, em traços largos, o quadro jurídico do
abandono em Portugal e na América portuguesa, que, como vimos, não registrou variações
significativas ao longo de mais de três séculos. Em muitos locais, além disso, por falta de
fiscalização, não passou de letra morta. Isso afetou diretamente todos aqueles que faziam parte
da dinâmica do enjeitamento e que, portanto se beneficiariam dessas leis e assistências.

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BLUTEAU, Rafael. Vocabulário português e latino. Tomo I. Coimbra: s.n., 1712.

55
VENÂNCIO,1999 op. cit. P. 36
56
SÁ, op. cit. 1992, p, 89.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 154-171 | www.ars.historia.ufrj.br 169
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Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 154-171 | www.ars.historia.ufrj.br 170
Brasília: Ed. Da Universidade de Brasília, 1981.

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Artigo

LIVRES E NOBRES PARENTES DE ESCRAVOS


(RECÔNCAVO DA GUANABARA, FREGUESIA
DE SÃO GONÇALO, RJ, SÉCULO XVII)
JÚLIA RIBEIRO AGUIAR*

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar a formação de redes de parentesco entre livres e
nobres da terra e entre estes e suas escravarias numa freguesia rural do Rio de Janeiro em
meados do seiscentos. Pretende-se demonstrar que o estabelecimento de relações de compadrio
entre famílias da nobreza da terra refletia-se também na conformação das redes de seus cativos,
que acabavam por ter o alcance de suas relações limitadas pelas de seus senhores. As redes
horizontais entre senzalas pertencentes a famílias aliadas e o parentesco vertical entre estes
sujeitos da nobreza e escravos não apenas consolidava consórcios entre nobres como ratificava
seu status perante o grupo e corroborava sua legitimidade social no interior das escravarias.

Palavras-chave: redes, parentesco, escravidão.

Abstract: This article aims to analyze the formation of kinship networks between free man and
landed nobility and between them and their slaves at a rural parish of Rio de Janeiro in the mid-
seventeenth century. We intend to show that the establishment of kinship relations between the
families from landed nobility also reflected in the formation of networks of their captives, which
had the scope of their relations limited by their masters. Horizontal networks between slave
quarters belonging to allied families, and the vertical relationship between these individuals
nobility and slaves not only consolidated consortia between noble but also ratified its status to
the group and its social legitimacy within the slaves.

Keywords: networks, kinship, slavery.

Entre 1650 e 1660, Dona Isabel Tenreira da Cunha e o Capitão Luís Cabral de Távora1
batizaram quatro dos 11 filhos na paróquia de São Gonçalo, e em todas estas ocasiões, foram

Artigo recebido em 23 de fevereiro de 2016 e aprovado para publicação em 23 de outubro de 2016.

* Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
bolsista do CNPq. E-mail: juliaribeiroaguiar@gmail.com
1
Cabral de Távora pertencia à linhagem dos Arias Maldonado, uma das primeiras a receber sesmarias na região
de São Gonçalo. Seu avô, o Capitão Miguel Ayres Maldonado, foi agraciado em 1605 pelo então governador
Martim Correia de Sá com terras na região, após atuar em guerras e no apresamento de índios. Cf: AGUIAR, Júlia
Ribeiro. Por entre as frestas das normas: nobreza da terra, elite das senzalas e pardos forros em uma freguesia
rural do Rio de Janeiro (São Gonçalo, sécs. XVII-XVIII). Dissertação (Mestrado) Universidade Federal do Rio de
Janeiro – PPGHIS, 2015.
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escolhidos como padrinhos sujeitos também oriundos da nobreza da terra. De acordo com as
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, no ato do batismo os padrinhos contraíam
parentesco espiritual com aquele que escolheram apadrinhar, tal como com seus pais.2
Apadrinhar significava estabelecer um pacto de proteção diante de Deus, e no Antigo Regime,
este compromisso poderia resultar em benefícios materiais para os afilhados, fosse em vida ou
após a morte do padrinho, através de doações testamentárias; e poderia significar igualmente a
inserção do protegido em redes clientelares, políticas e/ou matrimoniais.3
Assim sendo, membros das principais famílias da terra buscavam reforçar e ampliar
redes de sociabilidade através da escolha de padrinhos poderosos para suas crias. No gráfico
abaixo, temos as escolhas de padrinhos entre as mães livres de São Gonçalo segundo seu status
marital na década de 1651-1660. Nele, vemos que Isabel Tenreira e Luís Cabral não foram os
únicos a buscar bons padrinhos para suas crianças: todas as 90 mães livres distintas da freguesia
elegeram compadres livres para batizar seus filhos.

Gráfico 1: Porcentagem de mães livres distintas segundo a condição jurídica e social de seus parceiros e de seus
compadres, Freguesia de São Gonçalo do Amarante, RJ, 1651-1660
100%

67%
62%

38%
33%

0% 0% 0% 0% 0% 0% 0%
PADRINHO LIVRE

PADRINHO LIVRE

PADRINHO LIVRE
PADRINHO FORRO

PADRINHO FORRO

PADRINHO FORRO
PADRINHO ESCRAVO

PADRINHO ESCRAVO

PADRINHO ESCRAVO
PADRINHO DA ELITE

PADRINHO DA ELITE

PADRINHO DA ELITE

MÃES LIVRES SOLITÁRIAS MÃES LIVRES COM PARCEIROS MÃES LIVRES COM PARCEIROS
LIVRES DA ELITE

Fonte: ACMN, livro de batismo de livres, freguesia de São Gonçalo do Amarante, RJ.
Quadro 1: número de mães livres distintas segundo a condição jurídica e social de seus parceiros e de seus
compadres, Freguesia de São Gonçalo do Amarante, RJ, 1651-1660

2
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2010. pp.138-139.
3
OLIVEIRA, Victor Luiz Alvares. “Transmitindo patrimônios e administrando engenhos no Rio de Janeiro
colonial: o caso dos Sampaio e Almeida e o Engenho Rio Grande”. In: Retratos de família, p. 174-269.
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MÃES LIVRES SEGUNDO A
CONDIÇÃO JURÍDICA E Nº DE REGISTROS
CONDIÇÃO SOCIAL DE SEUS
SOCIAL DOS COMPADRES DE BATIZANDOS
PARCEIROS
PADRINHO ESCRAVO 0
PADRINHO FORRO 0
MÃES LIVRES SOLITÁRIAS PADRINHO LIVRE 4
PADRINHO DA ELITE 0
TOTAL 4
PADRINHO ESCRAVO 0
PADRINHO FORRO 0
MÃES LIVRES COM
PARCEIROS LIVRES
PADRINHO LIVRE 44
PADRINHO ELITE 27
TOTAL 71
PADRINHO ESCRAVO 0
PADRINHO FORRO 0
MÃES LIVRES COM
PARCEIROS DA ELITE PADRINHO LIVRE 5
PADRINHO DA ELITE 10
TOTAL 15
Fonte: ACMN, livro de batismo de livres, freguesia de São Gonçalo do Amarante, RJ.

É preciso definir quem considerei como parte da categoria “elite”. O conceito de


“nobreza da terra” mostrava-se aqui inadequado, haja vista que nem todos os senhores de
engenho ou capitães de ordenanças descendiam dos primeiros conquistadores e povoadores da
capitania. Assim sendo, utilizo o conceito de “elite” tal como sugerido por Thiago Krause para
aludir

aos membros da açurocracia (senhores de engenho, lavradores ricos e seus parentes


próximos), irmãos de maior condição das Misericórdias, os principais oficiais
camarários e os detentores dos mais altos postos na administração periférica, na tropa
paga e, principalmente, na ordenança, pois seus oficiais estão entre as figuras mais
presentes no cotidiano das freguesias rurais.4

Do total apresentado, portanto, temos que, dos 86 casais formados (mães livres distintas
com pais livres nomeados), em oito deles ambos os membros eram da elite, ou seja,
apresentavam algum título – dona no caso das mulheres – ou estavam ligados à posse de terras
e escravos; em sete apenas o pai apresentava titulação; e em 17 somente a mãe fora registrada
como dona, o que nos dá um total de 32 famílias pertencentes ao estrato social superior daquela
localidade (37%). Se filtrarmos apenas estas 32 famílias, constatamos que em 19 delas (59%),

4
KRAUSE, Thiago. Compadrio e escravidão na Bahia seiscentista. In: FRAGOSO, João; GUEDES, Roberto;
SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Arquivos paroquiais e História Social na América Lusa. Rio de Janeiro:
Mauad X, 2014, p. 292.
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o padrinho ou a madrinha, ou ambos, também eram donas e capitães procedentes desta mesma
elite.
Tais dados nos mostram que não era apenas através de alianças matrimoniais
endogâmicas que a nobreza da terra (e demais membros da elite) mantinha e reproduzia seu
status. As relações de compadrio também reforçavam as ligações eventualmente feitas via
matrimônio entre membros de famílias senhoriais, assim como atuavam no sentido de expandir
suas redes de sociabilidade.
Entendo por rede “um complexo sistema de vínculos que permitem a circulação de bens
e serviços, materiais e imateriais, no marco das relações estabelecidas entre seus membros”, tal
como definiu Michel Bertrand.5 Esta rede se caracterizava, ainda, por relações fragmentadas,
estruturadas não em torno a um núcleo central, mas em torno de vários centros que geram uma
estrutura polinodal, construída no interior de um grupo que tem uma existência prévia à rede e
que serve de apoio a estas relações entre os membros dela.6
Estas redes, portanto, fossem construídas através de alianças matrimoniais ou do
parentesco fictício, implicavam em um enraizamento social e político desta elite agrária na
freguesia. Isso reiterava não somente uma hierarquia social de caráter costumeiro, como o ethos
desta nobreza, que desprovida de títulos e foros de fidalguia titular do reino, legitimava-se
socialmente através de parentescos rituais e relações clientelares.7
Através dos registros de batismo de livres e escravos da freguesia de São Gonçalo, é
possível reconstruir partes dessas redes. O Capitão Jerônimo Barbalho Bezerra, nascido em
1616, era filho de Luis Barbalho Bezerra, governador do Rio de Janeiro entre 1643 e 1644, o
que o colocava no seleto grupo de fidalgos da terra. Em 1644, casou-se com Dona Isabel
Pedrosa, filha de João do Couto Carnide e Córdula Gomes, com quem teve seis filhos.

5
BERTRAND, Michel. “De la família a la red de sociabilidad”. Revista Mexicana de Sociología, Vol. 61, nº 2,
abril-junho 1999, p. 62.
6
Idem, p. 61.
7
FRAGOSO, João. Capitão Manuel Pimenta Sampaio... In: ______; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Na
trama das redes: política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010.

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Figura 1: Genealogia dos Barbalho Bezerra*, freguesia de São Gonçalo do Amarante, RJ, século XVII

LUIS BARBALHO
Dona Maria de
João do Couto Carnide Cordula Gomes BEZERRA (1584 – 1644)
Mendonça
Governador do RJ

Capitão Jerônimo Capitão Agostinho Dona


Dona Isabel Pedrosa Guilherme Barbalho Cecília
Barbalho Bezerra
(1631 – 1709) Barbalho Bezerra Barbalho
(1616 – 1661)

João Batista
de Matos Dona Felipe Barbalho Dona Capitão Luis Dona Ana
(Lisboa, Micaela Bezerra (1647-?) Páscoa Barbalho Bezerra Maria de
1641-1717) Pedrosa Barbalha (1660-?) Vasconcelos
(1653 – 1722) (1650-?)

Capitão Jerônimo Alferes Jerônimo Barbalho


Barbalho Bezerra Bezerra (1694-?)
(1672-1717)
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* A família extensa dos Barbalho Bezerra é muito maior do que a aqui representada. Procurei reproduzir alguns de seus membros socialmente mais notáveis.
Figura 2: Redes de compadrio de Jerônimo Barbalho com livres e senhoriais, freguesia de São Gonçalo do Amarante, RJ, século XVII

Lucas da Maria Sebastião


Legenda:
Silva Coutinha Coelho
Filiação

Beatriz Escolástica
Compadrio

Ana
Manoel da Fagundes
Costa de
Macedo
Capitão Jerônimo
Joana
Barbalho Bezerra
Isabel Domingos
Pereira Freire
Salvador

Inocência Mateus Ignácio


Margarida
Maria Vieira
Beatriz de Manoel
Almeida da Orta Inês de Gregório
Freitas de Veras
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Nos registros de batismo de livres da freguesia de São Gonçalo, Jerônimo aparece como
padrinho de 14 rebentos, filhos de 12 casais distintos de livres e senhoriais, ao lado de
madrinhas donas, registradas costumeiramente como filhas e/ou esposas de membros da elite
da terra, que o conectavam, pelo menos, a outras cinco famílias senhoriais distintas, como
ilustra parcialmente a figura 2.
Jerônimo Barbalho apadrinhou, por exemplo, Beatriz, filha de Manoel Alvares e Dona
Úrsula. Manoel Alvares, por sua vez, foi padrinho de um dos filhos do senhor de engenhos
Manoel da Orta, tendo este último elegido como padrinho de seus outros dois filhos o capitão
Jerônimo Barbalho.
Jerônimo batizara também Joana, filha de Dona Isabel Pereira e do capitão de infantaria
Manoel da Costa de Macedo, cujo segundo filho (de um total de cinco), foi apadrinhado por
Domingos Freire, que por sua vez elegera Jerônimo duas vezes como padrinho de seus filhos.
Assim, Jerônimo estendia suas redes aos Freire e à família Costa de Macedo, mas também à
família do senhor de engenho Manoel Gomes Brabo, cuja esposa Joana Gonçalves fora
madrinha no batizado da filha de Costa Macedo.
Manoel Gomes Brabo e Joana Gonçalves, ao levarem seus seis filhos à pia de batismo,
optaram por padrinhos e madrinhas pertencentes ao alto escalão da elite, portanto, donas,
capitães e senhores de engenho da freguesia. Dentre os eleitos, como Simão Botelho de
Almeida, o capitão Hipólito Lopes Serqueira e Dona Ana Fagundes, esposa do capitão
Sebastião Coelho, estava Dona Isabel Pedrosa, esposa do capitão Jerônimo Barbalho.
Por sua vez, o capitão de infantaria Hipólito Lopes Serqueira e sua esposa Dona Joana,
ao batizarem Salvador, filho único, registraram Joana Gonçalves como madrinha. Já as filhas
de Sebastião Coelho e Ana Fagundes foram também apadrinhadas por Manoel Gomes Brabo e
Jerônimo Barbalho. O mesmo Simão Botelho de Almeida foi padrinho de uma das filhas de
Dona Marta de Freitas e do senhor de escravos Domingos Dias. Dias apadrinhou um dos filhos
do senhor Gregório Veras, que como vemos na figura 3, elegera também Jerônimo Barbalho
como padrinho de sua outra filha.
Se mapearmos parte destas relações de compadrio mencionadas, temos a seguinte
esquematização:

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Figura 3: Senhoriais e livres e seus compadres – freguesia de São Gonçalo do Amarante, RJ, 1651-1660

Manoel da
Costa
Macedo
Domingos
Dias Gregório de Manoel
Veras Alvares

Simão Manoel da
Botelho de Orta
Almeida
Isabel Jerônimo
Pedrosa Barbalho

Domingos
Sebastião
Freire
Coelho

Manoel
Gomes
Legenda: Brabo Ana Fagundes
Joana
Casados
Gonçalves
Padrinho do
filho de Hipólito
Lopes
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A esta altura o leitor já terá certamente “se afogado em nomes”.8 O intuito deste
emaranhado de nomes, contudo, não é dissertar sobre as infindáveis genealogias originadas pelos
primeiros povoadores desta terra e senhores de terra e cativos, até porque este labirinto de laços de
compadrio entre membros da elite se traduz, na verdade, num pequeníssimo fragmento de uma
rede praticamente inesgotável de relações.
Meu propósito com isto é de reafirmar a existência de um ethos da nobreza da terra baseado
em uma hierarquia social costumeira, materializada em relações de proteção construídas sob e entre
as casas.9 Assim, as filhas de Sebastião Coelho e Ana Fagundes, por exemplo, não estavam
socialmente amparadas somente por seus laços de parentesco sanguíneo com os Coelho e os
Fagundes; elas contavam, em realidade, com uma vasta rede de proteção sob a casa dos Barbalho
Bezerra e a dos Gomes Brabo.
Neste momento, devemos frisar que a sociedade seiscentista em que viviam os Barbalho
Bezerra, os Lopes Serqueira, os Costa de Macedo etc., era gerida por uma economia regulada pela
política. Isto porque esta mesma elite da terra que fora responsável pela conquista e povoamento
da capitania e pela montagem da economia açucareira dominava também o governo da República
através de cargos de mando na Câmara concedidos pela Coroa como mercês, o que resultava em
intensas disputas entre diferentes bandos da nobreza.10
Desse modo, o capital excedente gerado pela plantation açucareira era monopolizado pelas
próprias famílias senhoriais, que estavam simultaneamente à frente dos engenhos e do governo da
câmara. Esta acumulação resultava, por um lado, em mais engenhos de açúcar, e por outro, era
utilizada para manutenção e sustento da própria monarquia. Estamos falando, destarte, de uma

8
Referência ao artigo de João Fragoso. FRAGOSO, João. Afogando em nomes. Temas e experiências em história
econômica. Topoi, vol. 5, dezembro 2002, p. 41-70.
9
Entendo por casa a definição utilizada por Nuno Gonçalo: uma fundação por meio de um indivíduo que se destaca
na família e reproduz seu nome, status e todo aparato – baseada em Pierre Bourdieu, segundo o qual a concepção de
família está estritamente vinculada ao conceito de casa, unidade doméstica (house, household) e para quem família é,
antes de tudo, uma ideologia política, uma configuração valorizada das relações sociais e, fundamentalmente, uma
construção da realidade social coletiva. MONTEIRO, Nuno G. Casa e linhagem: o vocabulário aristocrático em
Portugal nos séculos XVII e XVIII, In: Penélope – fazer e desfazer a História, no. 12, 1993. BOURDIEU, P. Razões
Práticas, Campinas: Papirus Editora, 1996, p. 124-133.
10
Sobre o conceito de “bando”, ver: FRAGOSO, João. A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores
famílias da terra do Rio de Janeiro, século XVII. Algumas notas de pesquisa. Tempo, Rio de Janeiro, nº 15, 2003, p.
11-35.
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economia do bem comum, conceito cunhado por João Fragoso para denominar este conjunto de
mecanismos de acumulação econômica derivados da política.11
Portanto, o estabelecimento de laços de proteção e lealdade (tal como as estratégias
matrimoniais) entre as casas visava não apenas à assistência e legitimidade social, como também
abrigava uma série de interesses políticos e econômicos. Este enredar de relações de parentesco e
amizade com a política, que por sua vez entrecruzava-se com a economia, se evidencia também
pelas redes do capitão Jerônimo Barbalho.
Em 1651, Jerônimo Barbalho aparece como padrinho de Salvador, filho de Domingos
Freire e Dona Margarida Vieira, tendo ao seu lado como madrinha Dona Catarina de Barros, esposa
do capitão Francisco Barreto Faria. Senhor de engenho e vereador da Câmara, Francisco Barreto
era conhecido como um dos maiores potentados da freguesia.12 Como sugere a complexa teia de
compadrios da figura 3, e o fato de Jerônimo Barbalho vir a ser, poucos anos depois, padrinho do
segundo filho de Domingos Freire, tal cerimônia de batismo estava promovendo a reiteração de
redes de amizade e proteção que provavelmente já interligavam estes sujeitos há mais tempo.
O capitão Jerônimo Barbalho faleceu dez anos depois, e encontrei para o ano de 1662 uma
escritura de quitação

que dá o Capitão Francisco Martins Soares, como administrador da Companhia Geral do


Comércio, ao Capitão Francisco Barreto de Faria – Diz que está pago da quantia de
850$000 que lhe era devedor o Capitão Jerônimo Barbalho Bezerra, ora defunto,
procedidos de 18 peças de escravos do Gentio de Guiné que o dito defunto lhe havia
comprado.13

Jerônimo Barbalho tinha, portanto, uma dívida de 850$000 com Francisco Barreto oriunda
da compra de escravos africanos (não se sabe a data). Ou seja, os parentescos fictícios e as redes
de amizade eram aqui novamente endossadas, dessa vez por relações de ordem econômica.
O apadrinhamento por fidalgos da terra de crianças nascidas em outras famílias senhoriais
configurava alianças horizontais e atuava como estratégia de manutenção e reprodução do status

11
FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial (séculos
XVI e XVII). In: _______; BICALHO, Maria Fernanda B; GOVÊA, Maria de Fátima. O Antigo Regime nos trópicos:
a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
12
RHEINGANTZ, Carlos G. Primeiras famílias do Rio de Janeiro (séculos XVI-XVII). Rio de Janeiro: Brasiliana,
1965, p. 222.
13
02/03/1662. AN, 1ON, 44, p. 116 Disponível em: http://mauricioabreu.com.br/escrituras/. (Consulta em
24/11/2016).
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desta nobreza, ao mesmo tempo em que reforçava uma hierarquia social de base costumeira,
informada pelo parentesco ritual.
Entretanto, a expansão das redes e da legitimidade social deste grupo não passava somente
pelo batismo de livres, mas também pelo dos escravos:

Gráfico 2: Porcentagem de mães escravas distintas segundo a condição jurídica e social de seus parceiros e de seus
compadres, freguesia de São Gonçalo do Amarante, RJ, 1651-1660

PADRINHO DA ELITE 0%
MÃES COM
PARCEIROS
LIVRES

PADRINHO FORRO 0%
PADRINHO ESCRAVO 17%
PADRINHO LIVRE 83%
PADRINHO DA ELITE 0%
MÃES COM
PARCEIROS
FORROS

PADRINHO LIVRE 0%
PADRINHO FORRO 0%
PADRINHO ESCRAVO 100%
PADRINHO DA ELITE 0%
MÃES COM
PARCEIROS
ESCRAVOS

PADRINHO FORRO 0%
PADRINHO LIVRE 33%
PADRINHO ESCRAVO 67%
PADRINHO DA ELITE 0%
SOLITÁRIAS

0%
MÃES

PADRINHO FORRO
PADRINHO ESCRAVO 36%
PADRINHO LIVRE 64%

Fonte: ACMN, livros de batismos de escravos, freguesia de São Gonçalo do Amarante, RJ.

Quadro 2: número de mães escravas distintas segundo a condição jurídica e social de seus parceiros e de seus
compadres, freguesia de São Gonçalo do Amarante, RJ, 1651-1660

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MÃES ESCRAVAS
SEGUNDO A CONDIÇÃO CONDIÇÃO JURÍDICA E SOCIAL
Nº DE REGISTROS DE BATIZANDOS
SOCIAL DE SEUS DOS COMPADRES
PARCEIROS
PADRINHO ESCRAVO 20
PADRINHO FORRO 0
MÃES ESCRAVAS PADRINHO LIVRE 36
SOLITÁRIAS
PADRINHO DA ELITE 0
TOTAL 56
PADRINHO ESCRAVO 154
PADRINHO FORRO 0
MÃES ESCRAVAS COM PADRINHO LIVRE 75
PARCEIROS ESCRAVOS
PADRINHO DA ELITE 0
TOTAL 229
PADRINHO ESCRAVO 2
PADRINHO FORRO 0
MÃES ESCRAVAS COM PADRINHO LIVRE 0
PARCEIROS FORROS
PADRINHO DA ELITE 0
TOTAL 2
PADRINHO ESCRAVO 12
PADRINHO FORRO 0
MÃES ESCRAVAS COM PADRINHO LIVRE 60
PARCEIROS LIVRES
PADRINHO DA ELITE 0
TOTAL 72
Fonte: ACMN, livros de batismos de escravos, freguesia de São Gonçalo do Amarante, RJ.

O gráfico e quadro acima mostram as escolhas de padrinhos entre mães escravas com pais
de diferentes condições jurídicas em meados do século XVII. Neles vemos que a presença de
padrinhos livres foi expressiva entre as mães escravas solitárias (64%), isto é, mães que não
nomearam os pais de seus filhos.
Poderíamos aventar como hipótese que isto se devia à probabilidade de alguns destes
padrinhos serem em realidade pais destas crianças, e na impossibilidade de reconhecê-las e
legitimá-las perante a Igreja, encontraram no compadrio uma forma de protegê-las. Isso de fato
ocorria.14 Contudo, tomar tal suposição como conclusiva seria simplificar fenômenos muito
complexos.
Não era apenas o status marital das escravas que determinava o alcance de suas redes. Esse
era um dos traços, que em combinação com outros como o sobrenome (se o cativo usava ou não o

14 FARINATTI, Luís Augusto E. Padrinhos preferenciais e hierarquia social na fronteira sul do Brasil (1816-1845).
In: GUEDES, R.; FRAGOSO, J. (org.). História Social em Registros paroquiais (Sul-Sudeste do Brasil, séculos
XVIII-XIX). Rio de Janeiro: Mauad X, 2016, p. 121-144.
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sobrenome de seu proprietário), e a cor (parda, preta, cabra), “formavam um cabedal de relações
sociais que serviam de critérios para a estratificação nas senzalas e diante da sociedade.”15
Como o leitor já terá percebido, até o momento nenhuma de minhas análises leva em
consideração o fenômeno da cor. Isto deve-se ao silêncio sepulcral de cor nos assentos de batismo
de São Gonçalo seiscentista. A cor só começaria a aparecer em princípios do século XVIII, e teve
papel crucial na reiteração das hierarquias costumeiras da freguesia.
No caso das mães escravas que nomearam como pais de seus filhos homens também
escravos, a participação de padrinhos livres é de 33%, ao passo que o número de padrinhos escravos
alcança a cifra de 67%. Esta cifra é muito semelhante a que encontrou José Roberto Góes para a
freguesia de Inhaúma, região também rural da capitania do Rio de Janeiro, onde 65% dos escravos
batizados tinham padrinhos da mesma condição. Para Góes, esta alta percentagem de escravos
apadrinhando outros escravos era um fenômeno típico das grandes escravarias. Nesses casos, o
compadrio se configurava como um meio de inserção social dos africanos recém-chegados,
proporcionando meios para formação de uma comunidade escrava.16
Hebe Mattos compartilha de perspectiva semelhante quando afirma que “do ponto de vista
do escravo recém-comprado para o serviço de roça, os caminhos para conseguir no cativeiro um
espaço mínimo de sociabilidade passavam por integrar-se à comunidade já existente de cativos,
antes que buscar uma difícil e improvável aproximação com seu senhor”.17
Tendo a concordar com Góes e Mattos, já que os escravos denominados por sua origem
africana, geralmente acompanhada do designativo de cor preto(a), eram os mais desprovidos de
expedientes que permitissem criar laços de compadrio com pessoas de status superior.18 Do mesmo
modo, as mulheres africanas eram as que se encontravam na posição mais desvantajosa do mercado
matrimonial.

15
FRAGOSO, João. Capitão Manuel Pimenta Sampaio... In ______.; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.).
Na trama das redes: política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010, p. 277.
16
GÓES, José Roberto. O cativeiro imperfeito. Um estudo sobre a escravidão no Rio de Janeiro da primeira metade
do século XIX. Vitória: Lineart, 1993.
17
MATTOS, Hebe. Uma experiência de liberdade. In: ______. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no
Sudeste escravista (Brasil, século XIX). São Paulo, Editora da Unicamp, p. 77.
18
AGUIAR, Júlia Ribeiro. Por entre as frestas das normas: nobreza da terra, elite das senzalas e pardos forros em
uma freguesia rural do Rio de Janeiro (São Gonçalo, sécs. XVII-XVIII) Dissertação (Mestrado) Universidade Federal
do Rio de Janeiro – PPGHIS, 2015.
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De qualquer modo, o fato é que, assim como demonstrou Fragoso para a freguesia de
Jacarepaguá (1701-1709), em São Gonçalo, as alianças horizontais de compadrio entre os escravos
tendiam para a endogenia, pois acabavam restritas ao universo relacional de seus donos. Esta
endogenia, inclusive, de acordo com Fragoso, era desejada pelos senhores, visto que as relações de
parentesco e clientela entre cativos do mesmo senhor reforçava a lealdade dos primeiros e a
legitimidade do segundo.19
Entre 1648 e 1660, 16 mulheres e 10 homens escravos de Jerônimo Barbalho foram à pia
batismal em São Gonçalo, onde 26 crianças escravas receberam os santos óleos. Além de pais e
filhos, outros 16 homens e 12 mulheres escravos de Jerônimo compareceram a várias destas
cerimônias como padrinhos e madrinhas, perfazendo um total de aproximadamente 100 escravos.20
Sua escravaria era composta por 15 casais escravos, duas escravas casadas com homens
livres e quatro escravas solitárias. Dos 15 casais, três tiveram dois filhos, um teve três filhos e os
11 restantes apenas um. As mães solitárias e as casadas com livres também tiveram filhos únicos.
Sobre os outros 18 escravos distribuídos entre padrinhos e madrinhas, não obtive nenhuma
informação.
O fato de 18 escravos de Jerônimo Barbalho aparecerem como compadres dos filhos de
outros escravos também pertencentes a ele já indica esta tendência à endogenia. Além disso, os
assentos de batismo nos contam que os demais padrinhos e madrinhas cativos não pertencentes à
escravaria de Jerônimo Barbalho eram propriedades de Córdula Gomes, sua sogra, e sujeitos como
Manoel Alvares, Sebastião Coelho, Domingos de Freitas, dentre outros que, como vimos, faziam
parte de uma intrincada malha de relações de compadrio e proteção.
Estas redes, portanto, atestam, primeiro: os limites das redes de sociabilidade dos escravos,
“cujos compadrios podiam ultrapassar os limites das senzalas de seus donos; entretanto, não
ultrapassavam as fronteiras da rede à qual seu senhor pertencia”21; e, segundo, o arraigamento
social destas famílias senhoriais seiscentistas, cujas redes de aliança e compadrio passavam
também por suas senzalas.

19
FRAGOSO, João. Capitão Manuel Pimenta Sampaio... In ______.; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.).
Na trama das redes: política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010, p. 266.
20
Na ausência de inventários, torna-se muito difícil apurar corretamente o número total de escravos por proprietário.
21
FRAGOSO, João. Capitão Manuel Pimenta Sampaio... In ______.; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.).
Na trama das redes: política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010, p. 270.
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Ao analisar a escravaria dos parentes consanguíneos e fictícios de Jerônimo Barbalho,
constatamos a reciprocidade destas redes: a maioria predominante de padrinhos e madrinhas
escravos presentes nos registros de batismo dos escravos de Córdula Gomes, Manoel Alvares,
Domingos Freire, Simão Botelho, Manoel da Orta, Sebastião Coelho, dentre outros, se não eram
propriedade deles mesmos, pertenciam à senzala de Jerônimo Barbalho.
Como outros trabalhos já demonstraram, eram pouquíssimos os casos em que o próprio
proprietário apadrinhava seus escravos.22 Em pesquisas sobre Curitiba e o Recôncavo baiano no
século XVIII, Stuart Schwartz verifica a quase inexistência de apadrinhamento de escravos por
senhores, o que para ele comprova a incompatibilidade entre propriedade cativa e parentesco
espiritual, que refletia-se no conflito de antagônicos – Igreja e escravidão – no evento singular do
batismo. Segundo Schwartz,

O batismo, por representar igualdade, humanidade e libertação do pecado, simbolizava


qualidade incompatíveis com a condição de escravo e apresentava uma contradição
potencial que era resolvida não com a abolição da escravidão ou do batismo, mas com a
manutenção em separado desses elementos conflitantes.23

Recorro aos escritos de Padre Antônio Vieira, quando no Sermão do Rosário diz que “até
nas coisas sagradas e que pertencem ao culto do mesmo Deus, que fez a todos iguais,
primeiro buscam os homens a distinção. (grifo meu)”24 Ora, a igualdade concebida no batismo diz
respeito a igualdade perante Deus. Em um mundo interpretado pelos preceitos organicistas e
corporativos da segunda escolástica, os homens eram naturalmente desiguais, e sob o signo da
casa, os hierarquicamente inferiores deveriam permanecer sob tutela e proteção do pater, a quem
prestavam obediência, uma obediência amorosa, porque voluntária e consentida. Esta proteção, no

22
MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na construção da hierarquia social do Brasil
escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.; GÓES, Roberto. O cativeiro imperfeito. Um estudo sobre a escravidão no
Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX. Vitória: Lineart, 1993. MATTOS, Hebe. Das cores do silêncio: os
significados da liberdade no Sudeste escravista (Brasil, século XIX). – 3ª ed. rev. São Paulo: Editora da Unicamp, 20
Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista (Brasil, século XIX). – 3ª ed. rev. São Paulo:
Editora da Unicamp, 2013.; GUEDES, Roberto. Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social
(Porto Feliz, São Paulo, c.1798-c. 1850). Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2008; SOARES, Márcio. A remissão do
cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos dos Goitacases, c.1750-c. 1830. Rio de Janeiro:
Apicuri, 2009.
23
SCHWARTZ, Stuart B. A sociedade do açúcar. In: _______. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade
colonial, 1550-1835. São Paulo, Cia. Das Letras, 1988, p. 331.
24
VIEIRA, Antônio. Sermão Vigésimo do Rosário. In: BOSI, Alfredo (org.). Essencial Padre Antônio Vieira. São
Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011, p. 207-245.
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caso da relação entre o senhor e seus escravos, podia materializar-se justamente no estabelecimento
do compadrio na pia batismal.
De fato, quando analisamos os batismos de escravos em São Gonçalo, vemos que o número
de proprietários seiscentistas que apadrinharam seus escravos foi mínimo. Para o período entre
1646 e 1668, das 445 crianças filhas de 373 mães escravas distintas, apenas 13 (2,9%) foram
apadrinhadas por seu próprio proprietário.
Dos 13 rebentos escravos batizados por 13 proprietários distintos, quatro eram filhos de
mães e pais escravos, quatro de mães solitárias e cinco eram filhos de mães escravas e pais livres.
Ao buscar dados sobre estes pais livres, a ausência de informações mais refinadas a respeito destes
sujeitos impossibilitou que eu verificasse sua naturalidade, profissão ou cor. Contudo, pude
constatar que nenhum deles era proprietário de escravos, e tampouco provinham de famílias da
nobreza da terra. Considerando a hipótese de tratar-se, portanto, de homens livres pobres ou
libertos, vemos que não eram apenas as crianças oriundas de uniões ilícitas entre escravas e nobres
da terra que logravam proteção de sujeitos da nobreza. Através de compromissos de proteção
gerados na pia batismal, membros da elite senhorial da terra estabeleciam pactos de amizade com
indivíduos de status inferior.
Das 26 crianças escravas do capitão Jerônimo Barbalho levadas à pia batismal, apenas uma
foi apadrinhada por ele. Em 1656, Barbalho batizou Angela, filha de Felicia, sua escrava, e Joseph,
homem livre. Não obtive nenhuma informação a respeito da cor ou procedência de Joseph, mas
considerando a ausência de sobrenome, suspeito se tratar de um homem saído do cativeiro. Nascido
livre ou liberto, o fato é que sua relação com uma escrava serviu de ponte para o estabelecimento
de redes de aliança e compadrio com um membro de uma das primeiras famílias conquistadoras da
capitania. De modo semelhante, por meio do batismo, Jerônimo Barbalho, capitão, senhor de
engenho e filho de um dos governadores do Rio de Janeiro, tornara-se parente espiritual da escrava
Felicia.
A história de Felicia e sua filha, ao que parece, não confirma a hipótese de Schwartz de que
o apadrinhamento de escravos por seus proprietários ameaçava a autoridade destes últimos perante
os primeiros. Pelo contrário, reforçava-a, na medida em que a construção de parentescos rituais e
relações de compadrio entre senhores e escravos pressupunha uma estratificação no interior do
próprio cativeiro, e faziam parte, como ressalta Hebe Mattos,

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de um mesmo código cultural que reforçava o lugar social de cada um e as formas
legítimas ou possíveis de transitar entre elas. A estabilidade desse arranjo social não se
construía apenas sobre a violência e a desigualdade de recursos, mas principalmente sobre
o costume, que abria atalhos e previa recursos (sociais e culturais) para conviver com a
realidade da violência e da desigualdade. [grifo meu]25

Este fenômeno de uma hierarquização das senzalas e, consequentemente, da conformação


de uma elite escrava em seu interior surgia como mais uma expressão de uma hierarquia social de
base costumeira e, portanto, repleta de fraturas. Através delas, cativos ampliavam seus espaços de
autonomia e seus recursos à medida que criavam laços parentais com membros da nobreza da terra
os quais, por sua vez, dependiam em algum grau destas redes na reiteração de seu status.
A estabilidade marital no cativeiro, assim como o estabelecimento de alianças verticais com
senhores e de redes horizontais com cativos pertencentes a outras escravarias podiam potencializar
as oportunidades de mobilidade social. Para os fidalgos das famílias principais da terra, a
estabilidade nas senzalas e o apadrinhamento de escravos podia consolidar alianças com outros
proprietários ao mesmo tempo em que ratificavam seu status perante o grupo. Além disso,
reforçava sua legitimidade entre os cativos na medida em que simultaneamente introduziam um
compromisso de lealdade e proteção e reafirmavam a existência de hierarquias no interior do
cativeiro. Assim, a conformação de uma hierarquia social costumeira era reiterada pelos próprios
cativos em seu intento de distinguirem-se dos demais no âmbito da casa.

Referências bibliográficas

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VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2010.

Gráficos, quadros e figuras


Gráfico 1. AGUIAR, Júlia Ribeiro. Porcentagem de mães livres distintas segundo a condição
jurídica e social de seus parceiros e de seus compadres, Freguesia de São Gonçalo do Amarante,
RJ, 1651-1660. Excel.
Gráfico 2. AGUIAR, Júlia Ribeiro. Porcentagem de mães escravas distintas segundo a condição
jurídica e social de seus parceiros e de seus compadres, freguesia de São Gonçalo do Amarante,
RJ, 1651-1660. Excel.
Quadro 1. AGUIAR, Júlia Ribeiro. Número de mães livres distintas segundo a condição jurídica
e social de seus parceiros e de seus compadres, Freguesia de São Gonçalo do Amarante, RJ, 1651-
1660. Excel.
Quadro 2. AGUIAR, Júlia Ribeiro. Número de mães escravas distintas segundo a condição
jurídica e social de seus parceiros e de seus compadres, freguesia de São Gonçalo do Amarante,
RJ, 1651-1660. Excel.
Figura 1. AGUIAR, Júlia Ribeiro. Genealogia dos Barbalho Bezerra, freguesia de São Gonçalo do
Amarante, RJ, século XVII. Word.
Figura 2. AGUIAR, Júlia Ribeiro. Redes de compadrio de Jerônimo Barbalho com livres e
senhoriais, freguesia de São Gonçalo do Amarante, RJ, século XVII. Word.

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Figura 3. AGUIAR, Júlia Ribeiro. Senhoriais e livres e seus compadres – freguesia de São Gonçalo
do Amarante, RJ, 1651-1660. Word.

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Artigo

NA FUGA, UMA ESPERANÇA DE


LIBERDADE: ESCRAVOS FUGITIVOS NA
ALAGOAS PROVINCIAL
WELLINGTON JOSÉ GOMES DA SILVA 
GIAN CARLO DE MELO SILVA**

Resumo: O presente artigo tem por objetivo mostrar alguns traços da escravidão em Alagoas
durante o segundo reinado. Em nossa análise, usamos como fontes os anúncios de jornal que
notificavam as fugas de escravos ocorridas na década de 1870, em que identificamos as
estratégias desenvolvidas para fugir. A fuga foi uma das reações mais frequentes durante o
período e Alagoas foi uma localidade marcada pela ação dos fugitivos. Algumas dessas fugas
nos revelam uma diversidade, pois, apesar de habitual, essa iniciativa apresentou contornos
variados, em que a compreensão do ambiente onde estavam inseridos foi aspecto fundamental
para o seu sucesso. A compreensão fornecida pelos escritos de E.P. Thompsom serve de viés
analítico para compreendermos os cativos de Alagoas como agentes históricos, donos de suas
ações e que exerceram papeis cruciais para o cotidiano escravista na Alagoas provincial.

Palavras-chave: Fuga; Escravidão; Alagoas

Abstract: The present article aims to show some traces of slavery in Alagoas during the second
reign. In our analysis we used as sources the newspaper ads with the escapes of slaves occurred
in the 1870s, where we identified the strategies developed to escape. The flight was one of the
most frequent reactions during the period and Alagoas was a locality marked by the action of
the fugitives. Some of these fugues reveal a diversity, because, although habitual, this initiative
presented varied contours, where the understanding of the environment in which they were
inserted was fundamental aspect for its success. The understanding provided by E.P.
Thompson's writings serves as an analytical bias for understanding the captives of Alagoas as
historical agents, owners of their actions, and who have played crucial roles in the daily slavery
in the provincial Alagoas.

Keywords: Escape; Slavery; Alagoas

Artigo recebido em 21 de novembro de 2016 e aprovado para publicação em 30 de novembro de 2016


Discente do Mestrado em História da Universidade Federal de Alagoas – UFAL. E-mail:
welligton.esoj@hotmail.com
**
Docente dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Alagoas – UFAL.
E-mail: profgianufal@gmail.com
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 191-208 | www.ars.historia.ufrj.br 191
Fugir foi uma alternativa encontrada por muitos escravos como uma forma de conquistar
sua liberdade, mesmo que esta não fosse exercida plenamente. Fugas aconteceram em todos os
ambientes que tiveram a peja do trabalho escravo. Seja na cidade ou no campo, escravos usaram
deste método como uma tentativa de ruptura imediata com o cativeiro, mas a fuga não lhes
garantia a segurança dos meios legais de liberdade, sendo um meio precário e ladeado pelo
medo da captura.
A fuga, para o escravo, nem sempre logrou êxito, mas contra o regime escravocrata teve
papel fundamental. Funcionou como uma reação concreta ao cativeiro, minando o sistema
diariamente. Senhores a consideravam uma afronta à sua autoridade, pois tal ação poderia, no
mínimo, sugerir alguma fraqueza em seu comando para com os escravos. É difícil mensurar a
fuga em quantidade, porém, essa alternativa podia ser repetida várias vezes pelo mesmo
escravo, como destacou Reis1, seja em pequenos sumiços ou em busca por locais mais distantes.
Em ambas as possibilidades, os riscos eram de conhecimento de todos os envolvidos. Estes
homens e mulheres possuíam características diversas. Os fugitivos eram crioulos, pardos, fulos,
mulatos, jovens, velhos. Não houve distinção entre os escravos, quando o assunto era fuga.
Os escravos que a colocaram em prática nem sempre a usaram como fuga definitiva,
mas como um meio de escapar temporariamente. Algumas fugas tiveram como finalidade rever
antigos familiares apartados em vendas anteriores, ou ainda os negros de ganho, que buscavam
em outras localidades a oportunidade de acumular algum pecúlio extra, aumentar o seu percurso
nos dias de trabalho. Tais situações são chamadas de fugas temporárias ou costumeiras.
Conforme Juliana Farias,

[...] talvez proprietários de cativos nas cidades percebessem algumas fugas como
temporárias, ou seja, “costumeiras”, e aguardassem assim um eventual retorno dos
seus cativos. [...] Muitos escravos fugiam para reunirem-se em festas e/ou
“ajuntamentos”, e outros ainda, como os escravos ao ganho, tentavam conseguir
“trocados” extras para seus negócios e sobrevivência. [...] Não poucos fugiam para
visitar “parentes” 2.

Na busca pela liberdade ilegal, os fugitivos com a real intenção de se livrar do cativeiro
tinham algumas opções como destino. Entre as opções, havia fugas para área rural ou mudança

1
REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação e Conflito: A resistência escrava no Brasil escravista. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 65.
2
FARIAS, Juliana Barreto; Carlos Eduardo Moreira; Flávio Gomes; Carlos Eugênio Líbano Soares . Cidades
negras: africanos, crioulos e espaços urbanos no Brasil escravista do século XIX. 2ª.ed. São Paulo: Alameda, 2006.
pp. 28-29.
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para outra província, tentar alcançar os quilombos urbanos ou mesmo se passar por libertos em
locais que lhes oferecessem essa oportunidade. Nos arredores das cidades, os ajuntamentos de
escravos serviram como atrativo para esses fugitivos. Províncias como Pernambuco, Bahia, Rio
de Janeiro e Minas Gerais sofreram com a proliferação destes quilombos próximos dos núcleos
urbanos3.
A fuga para locais mais afastados dos senhores poderia render maiores frutos. Porém,
ocorrendo o rompimento dos seus laços de solidariedade4 já construídos na localidade em que
vivia o cativo, ao tentar se passar por alforriado, outras ações deveriam ser colocadas em prática
para garantir o sucesso da empreitada. Entre as estratégias para concretizar sua fuga, o cativo
realizava a troca de nome e buscava o uso de uma boa vestimenta para tentar disfarçar sua
condição. Os que decidiam ir para os quilombos formados às margens das cidades sabiam da
existência de relações de comércio e sociabilidade entre os aquilombados e as localidades
próximas. Foi dessa forma que muitos quilombos conseguiram sua manutenção. Tais relações
foram construídas dentro de um campo negro, uma complexa rede que envolvia vários setores
da população livre e escrava. Sobre os contatos e as redes, Flávio dos Santos Gomes e João José
Reis comentam que:

[...] esses contatos acabaram por constituir a base de uma teia maior de interesses e
relações sociais diversas, da qual os quilombolas souberam tirar proveito fundamental
para aumentar a manutenção de sua autonomia. Aí foi gestado um genuíno campo
negro. Essa rede complexa de relações adquiriu lógica própria, na qual se
entrecruzavam interesses, solidariedades tensões e conflitos 5.

Os espaços e relações de solidariedade eram extremamente importantes no cotidiano da


escravidão. Tais afinidades poderiam ajudar no objetivo de amenizar a vivência do cativeiro.
Entre essas relações, o apadrinhamento foi um dos mecanismos que serviu na construção desses
laços. Uma fuga nunca era uma ação individual. Seu sucesso dependia de muitos fatores. Após
fugir, a ajuda de algum companheiro, fosse ele cativo, liberto ou livre, poderia contribuir para
a concretização de seu intento.

3
Sobre os quilombos no Brasil ver: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. (Org.) Liberdade por um fio:
história dos quilombolas no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
4
De acordo com Marcus Carvalho, os laços de solidariedade era um instrumento extremamente importante na luta
contra o cativeiro. Essa relação poderia ser desenvolvida a partir de sentimentos de etnia, raça ou classe na qual os
cativos se ajudavam mutuamente. CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no
Recife, 1822-1850. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2010. pp. 237-238.
5
REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. (Org.) Liberdade por um fio: história dos quilombolas no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 278.
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Ao tratarmos das fugas em Alagoas, veremos sua relação com a liberdade proporcionada
pelo fundo de emancipação, mecanismo criado na segunda metade do século XIX que favoreceu
a alforria de alguns escravos. No entanto, conseguir alforria pelo fundo de emancipação não era
algo fácil, pois, a fuga era um dos critérios que excluía os escravos de conquistar sua liberdade
através das vias legais6.
Vejamos as características das Alagoas...

As fugas na Alagoas oitocentista


Para a província alagoana, as peculiaridades da escravidão estiveram presentes no
cotidiano a partir de várias situações envolvendo homens e mulheres escravizados. Podemos
verificar os casos das fugas individuais ou conjuntas que poderiam representar um dano à
propriedade senhorial. Outra situação era vista na sedução de escravo por pessoas interessadas
em iludir o cativo, fazendo falsas promessas com o ensejo de venda, ou ainda na tentativa de se
passar por liberto, situação vivenciada nos espaços rurais e urbanos, que fazia parte do leque de
possibilidades usadas pelo escravo. Essas e tantas outras características foram encontradas nos
espaços da Alagoas durante o segundo reinado. Tais informações sobre a escravidão podem ser
vistas nos jornais do século XIX, fonte que nos mostra situações de negócios envolvendo a
força de trabalho cativa por meio dos anúncios de compra, venda e aluguel. Por outro lado, nos
apresenta situações como as descritas anteriormente, algo que nos fornece uma possibilidade
para conhecermos um pouco do ambiente escravocrata alagoano.
Através dos anúncios extraídos do jornal O liberal7 do final da década de 1870 podemos
encontrar alguns casos de fugas de cativos que envolveram várias estratégias e se fizeram
presentes em alguns espaços geográficos que abarcam a Província de Alagoas. Em tais lugares,
podemos observar os escravos agindo conforme suas necessidades e aspirações do dia a dia.
Como afirmam Reis e Silva:

[...]na escravidão nunca se vivia uma paz verdadeira, cotidiano significava uma
espécie de guerra não convencional. Nessa guerra tanto escravos quanto senhores
buscavam ocupar posições de força a partir das quais pudessem ganhar com mais
facilidade suas pequenas batalhas [...] Por isso os escravos tiveram de enfrentá-los

6
A liberdade legal através do fundo de emancipação de escravos foi outro aspecto abordado na pesquisa
monográfica. SILVA, W. J. G. da. A busca de um novo destino: Os escravos e a conquista da liberdade na Alagoas
provincial 1878-1880. Monografia (Graduação em História) – Universidade Federal de Alagoas, Maceió,
2015.p.30.
7
Jornal de objetivos liberais, tendo à frente o futuro visconde de Sinimbú. O jornal surgiu em abril de 1869 e
perdurou até 1884, quando suspendeu suas publicações. Sobre a imprensa em Alagoas, ver: SANT’ANA, Moacir
Medeiros de. História da imprensa em Alagoas (1831-1981). Maceió. Arquivo Público de Alagoas, 1987.
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com inteligência e criatividade. Eles desenvolveram uma fina malicia pessoal, uma
desconcertante ousadia cultural, uma visão de mundo aberta ao novo 8.

Quanto à observação desses autores sobre a construção de espaços sociais e de formação


de uma inserção diária dos escravos, podemos observar como tal cotidiano propiciou a
construção do conhecimento sobre a escravidão e as brechas que poderiam ser encontradas. Tal
situação é observada por Michel de Certeau, quando destaca que o conhecimento é formulado
diariamente, desde ações simples e corriqueiras. No caso da escravidão, as resistências diárias,
como a sabotagem na produção de açúcar ou mesmo do canavial, passando pela fuga, poderiam
ser cruciais para mudanças no sistema em favor dos escravos. A essa formação diária, vemos a
tática, sendo desenvolvida no campo do “inimigo”, com seus movimentos realizados em
situações oportunas9. Sendo assim, a interpretação e conhecimento do ambiente em que
estavam inseridos foi essencial para que os cativos pudessem agir com maior segurança.
Foram identificadas vinte e duas fugas em que os homens eram a maioria dos fugitivos,
no total de 15. Tal aspecto foi encontrado ao analisarmos as liberdades conquistadas pelo fundo
de emancipação de escravos no ano de 188010. Voltando ao perfil dos fugitivos, identificamos
que muitos se encontravam em idade produtiva, sendo muito rentáveis aos seus senhores, fator
que poderia dificultar o acesso desses escravos à alforria pela compra e/ou concessão do senhor.
Com isso, o horizonte deixava a fuga como meio mais viável para um acesso rápido à liberdade,
mesmo que essa não pudesse ser vivida plenamente e fosse cercada de perigos.
Talvez, entre os homens, a relação com a fuga pudesse ser mais intensa. Avaliando que
muitos trabalhavam longe dos senhores e se dedicavam a tarefa braçal, fosse nas lavouras ou
nos portos, essa distância poderia favorecer a fuga do cativeiro. No caso das mulheres, as
lavadeiras, escravas de ganho, quitandeiras e tantas outras que realizavam serviços fora da casa
também estiveram distantes dos olhares vigilantes e foram fugitivas em potencial, como lembra
Farias:
os escravos que trabalhavam no ambiente das ruas, como ganhadores e vendedores,
por exemplo, eram tidos como mais capazes de dar conta do desafio da fuga. [...] As
quitandeiras, eximias conhecedoras do labirinto urbano, eram potenciais fugitivas,
com grande capacidade de deixar seus senhores no prejuízo11.

8
REIS & SILVA, op. cit., pp. 32-33.
9
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano 1: As artes de fazer. Petrópolis: Vozes. 2005. p. 94.
10
Sobre os escravos e o fundo de emancipação, vimos que os homens também foram maioria entre os libertos.
SILVA, op. cit., p.33.
11
FARIAS, op. cit., p. 38.
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Apesar de serem fugitivas em potencial. As mulheres poderiam ter maiores dificuldades
na decisão da fuga, em especial quando tivessem filhos. Tal situação não impedia por completo
as possibilidades de fugir, como observamos no caso da escrava Faustina12, que fugiu com sua
filha Balbina, de 12 anos. Porém, uma fuga que envolvia várias pessoas tinha que contar com
mais mecanismos acionados para garantir seu sucesso. Faustina, por exemplo, pode ter contado
com a colaboração de sua antiga proprietária, pois, segundo seu dono, as escravas estavam
acoitadas por ela. Nesse caso, podemos observar dois aspectos importantes que poderiam
ocorrer em meio à escravidão: o acoitamento e o retorno a um antigo senhor.

Acoitamento e retorno ao antigo senhor


Buscar o acoitamento como uma forma de ajuda no momento da fuga foi uma prática
corriqueira em todo o Império. Relacionado inicialmente como roubo, senhores com menos
recurso poderiam usar deste método para conseguir escravos. Porém, as relações de acoitamento
envolviam interesses pessoais e nem sempre estava relacionada à solidariedade, algo que não
era impeditivo de fornecer vantagens mútuas. Por um lado, ao fugir e conseguir abrigo, o
escravo podia conseguir algum acordo em seu favor, uma pessoa que pudesse intervir em seu
nome, melhorando sua existência dentro da escravidão ou alcançando a sua liberdade
legalmente. Sobre tal ação Marcus Carvalho argumenta que:

o “acoitamento” do cativo não se dava por solidariedade pura e simples. A razão maior
dessa putativa proteção era o interesse de alguém em explorar a mão de obra do sujeito
acoitado. [...] Não é uma fuga para se tornar um quilombola, ou um fugitivo a mais
fingindo-se de forro pelas ruas, mas a busca por um senhor menos despótico e/ou
disposto a respeitar alguns direitos que o fugitivo acreditava ter adquirido ou pensava
em adquirir13.

O acoitamento não pode ser reduzido a uma iniciativa apenas do “sedutor”. Vários
escravos foram participativos neste momento. Embarcaram nessa aventura em busca de
amenizar sua condição. Afinal, um senhor menos autoritário seria a chance de desfrutar de um
cativeiro mais brando, se é que isso era possível. Talvez tenha sido essa a intenção de Faustina
e Balbina ao retornarem para casa de Thereza da Silveira Rêgo, sua antiga senhora, algo que
não saberemos e que fica entre as possibilidades da interpretação histórica.

12
O Liberal, ed. 152 julho de 1878.
13
CARVALHO, op. cit., pp. 281-282.
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Alguns escravos chegaram a reivindicar direitos que achavam possuir com o passar do
tempo, provenientes de algum espaço de mobilidade que conquistaram e aos quais os senhores
cederam para que sua autoridade não fosse colocada em risco14. As conquistas de espaços de
inserção e autonomia, por menores que fossem em meio à escravidão, teriam que ser não só
defendidas como reproduzidas. Foram costumes que se transformaram em direitos, em especial
para os cativos que conseguiam exercer seu poder no cotidiano da escravidão.
Uma conquista significativa ocorreu após o ano de 1871. Um exemplo disso foi a Justiça
do Rio de Janeiro, que se tornou um campo de conflito entre escravos e senhores, quando
começou a emergir nos tribunais mulheres cativas procurando sua alforria sob a alegação de
que eram obrigadas a trabalhar como prostitutas15, prática ilegal estabelecida em conjunto com
a lei do Ventre Livre. Essa busca pela justiça pode mostrar como a consciência do que seria um
cativeiro justo16 incentivou muitos escravos a entrar com ações visando a busca de liberdade
para fugir de senhores violentos, intransigentes e que violavam seus direitos. Contudo, mesmo
com alguns direitos, o escravo teria que ser representado no tribunal, pois continuava sem
nenhuma representação legal.
Fugir foi um misto de desejos. Juntos estavam a conquista de espaços e a tentativa de
um cativeiro mais justo. Talvez tenham sido esses fatores que levaram alguns escravos a
retornarem à casa dos seus antigos senhores. Os anúncios indicam que, após serem vendidos,
esses escravos fugiram. Provavelmente não se adaptaram, seja ao novo senhor ou ao trabalho,
e, visando livrar-se de uma negociação que os levaram a um cativeiro mais severo, fugiram com
destino ao antigo proprietário. No caso de Custódio17, suspeitava-se que seu destino tenha sido
Maceió. O anúncio deixa claro que esse buscava um novo senhor. Provavelmente desejava mais
que um novo dono, afinal, veio para a capital da província, espaço que poderia oferecer
melhores oportunidades.
Outro caso de fuga que abordou diferentes aspectos da escravidão foi a de Lucrecia, que
inicialmente foi seduzida por um homem chamado Scipião, uma característica comum no

14
Segundo Eduardo Silva, a Brecha camponesa funcionava como um mecanismo de controle e manutenção
senhorial, ao ceder um pedaço de terra aos escravos os senhores estariam os distraindo das mazelas da escravidão,
essa atitude buscava manter o controle pela persuasão e não violência.
15
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das ultimas décadas da escravidão na Corte. São
Paulo: Companhia das Letras, 2011. p.190.
16
Chalhoub observa que a busca pelo cativeiro justo seria a tentativa dos cativos em se livrar dos trabalhos e
castigos abusivos dos senhores, os escravos adquiriram suas percepções de justiça e moral as quais tentaram
conquistar. Idem, pp. 78-82.
17
O liberal, ed. 271, 16 de dezembro de 1878.
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decorrer da escravidão. Como podemos ver no anúncio abaixo, feito no jornal O Liberal pelo
proprietário de Lucrécia, o senhor do engenho Jequiá.

Imagem 1: Anúncio de fuga da escrava Lucrecia

Fonte: Jornal O liberal 1878 (edição 102 – 25 de maio) APA - Arquivo Público de Alagoas.

Junto com Scipião, Lucrecia provavelmente seguiu rumo à província de Sergipe, onde
seria mais fácil se passar por forra ou livre, ficando o mais longe possível de José Torquato, seu
senhor. Sua fuga talvez tenha sido a única alternativa em busca da liberdade, o que na
historiografia ficou conhecida como fuga-rompimento18, na qual o escravo rompe com todas as
relações com seu senhor e com o mundo que a cerca para tentar viver como livre em outro
lugar. O detalhe deste caso é que o sedutor esteve escondido no engenho do anunciante e,
segundo informações do senhor, praticou o furto de alguns bens, algo que pode ter sido inserido
falsamente como forma de aumentar as chances de busca por parte das autoridades. Afinal, não
era então só um “sedutor” fugindo: era um homem perigoso que praticava furtos. É difícil
imaginar qual era a relação entre Lucrecia e o liberto. Talvez esse tenha sido um caso em que a
rede de solidariedade da escrava foi colocada em ação, ajudando ambos na fuga, no acoitamento

18
J.J. Reis a descreve como uma tentativa de ruptura definitiva com a escravidão. Normalmente isso ocorre quando
o escravo se encontra em um cativeiro severo, violento, ou quando um privilégio ou direito do cativo é retirado.
REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos. (Org.) Liberdade por um fio: história dos quilombolas no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996. pp. 66-67.
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dentro do engenho em nome de algo íntimo dos dois, o amor19, sentimento que ganhou
contornos e significados na sociedade brasileira do século XIX.
Após a fuga, o único recurso dos senhores era contar com a captura do seu escravo
através das autoridades policiais ou algum capitão do mato. A essa altura, nos finais da
escravidão, após as leis de abolição do tráfico e do Ventre Livre, perder um escravo com ofício
seria um prejuízo grande e talvez irrecuperável. Talvez tentando facilitar a captura, caso o cativo
tentasse oferecer serviços, os anúncios identificam as ocupações na descrição dos fugitivos.
Entre os homens fugitivos, Custódio era pedreiro e padeiro, José Tibúrcio20, cozinheiro e
engomador, e Jeronymo, agricultor e carreiro. Entre as mulheres, Lucrecia tinha como profissão
engomadeira e doméstica e Francisca21 tinha como ocupação o tabuleiro. Esses escravos
funcionavam como investimento. Poderiam ser ganhadores ou até mesmo alugados por seus
senhores. Um sinônimo da importância desses cativos para o patrimônio dos seus senhores é a
repetição dos seus anúncios de fuga nos jornais.
Sobre o valor dos escravos ganhadores, podemos salientar que vários senhores viviam
às suas custas. O escravo de ganho era um investimento seguro. Sem dúvidas não faltaria
trabalho para um bom escravo com ofício. Já no campo, as fugas atingiram diretamente alguns
senhores de engenho. Nem todos possuíam escravos em quantidade numerosa. Muitos
engenhos funcionavam com menos de vinte escravos. Moacir Medeiros de Sant’Ana faz
referência a alguns desses engenhos, como o Engenho Liberal, contando com quinze escravos,
ou o Mato Grosso, com dez cativos22. Eram planteis pequenos e, caso fugissem, atingiriam
significativamente o processo produtivo desempenhado na localidade.
Nos anúncios, além da constante repetição das fugas, outra característica importante foi
a riqueza de detalhes com a qual os cativos foram anunciados, sendo possível identificar ofícios,
características físicas e roupas, talvez uma forma de facilitar sua identificação e captura.
Contudo, uma observação feita por Diégues Junior é salutar, pois chama atenção para
quantidade de escravos anunciados com ferimentos e doenças, constatação que pode ter sido
sinal da perversidade de alguns senhores. O autor relata que:

Os anúncios de jornais do século passado apontam um mundo de escravos com sinais


de doença, outros aleijados; [...] Tipos de escravos doentes passam através de

19
Sobre o assunto ver: PRIORE, Mary del. História do Amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2005.
20
O liberal, ed. 98, 21 de maio de 1878.
21
O liberal, ed. 197, 19 de setembro 1878.
22
SANT’ANA. Moacir Medeiros de. Contribuição à história do açúcar em Alagoas. Recife: Instituto do açúcar e
álcool e museu do açúcar 1970. p. 151.
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anúncios de jornais do século XIX, num desfile constante. [...] Afora os casos de
doenças encontram-se em anúncios de jornais [...] casos de defeitos físicos 23.

Partindo dos aspectos levantados por Diégues, foi possível notar a presença de escravos
com tais características. No ano de 1878, os anúncios revelam escravos com deficiências. São
eles o escravo Tertuliano24, identificado como aleijado por conta do pé torto, e os escravos
Claudio25 e Manoel, que tiveram alguns dedos das mãos decepados. No caso de ambos, a
deficiência pode ser consequência do trabalho exercido ou de algum castigo.

Individuais ou coletivas
Outra característica das fugas faz referência às formas que ocorreram. Elas podem ser
classificadas como fugas individuais ou conjuntas, acarretando ainda mais prejuízos para os
senhores e requisitando maior organização por parte dos escravos. Em Alagoas, existiram
alguns casos de fugas coletivas. Um deles é o da escravaria de Manoel Machado, que foi ao
jornal anunciar a fuga de quatro escravos26. Uma fuga desse nível pode revelar características
interessantes: inicialmente um planejamento já desenvolvido pelos escravos, colocado em
prática no momento mais oportuno – véspera de dia santo –, que, em seguida, representava um
duro golpe à vida financeira do senhor. Talvez as atividades dos fugitivos fossem essencial para
o pecúlio de seu dono.
Individualmente os escravos se aproveitaram de alguns espaços dentro do sistema. No
caso dos trabalhadores de portas a fora27; como as lavadeiras, quitandeiras e ganhadores, sua
mobilidade representava um rompimento na vigilância feita pelos membros da casa28, uma
chance de ficar longe do seu senhor cotidianamente. Nesse contexto, podemos ver como foi o
caso de Francisca, que aproveitou seu trabalho como ganhadora para sumir e mudar de nome
ao se apresentar como liberta após a fuga. Sua habilidade em se esconder pode ser percebida ao
verificarmos que faziam mais de seis meses que andava fugida. Seu senhor buscou os anúncios
para tentar recuperar sua propriedade. Diz o jornal que:

23
DIEGUES JUNIOR. Manuel. O bangue nas Alagoas: traços da influência do sistema econômico do engenho de
açúcar na vida e na cultura regional. 3ª. ed. Maceió: EDUFAL, 2006.pp. 178-180.
24
O liberal, ed. 119, 15 de junho de 1878.
25
O liberal, ed. 143, 28 de junho de 1878.
26
O liberal, ed. 216, 11 de outubro de 1878.
27
Nomenclatura designada aos escravos que realizavam serviços na rua.
28
COSTA, Robson. Vozes na Senzala: Cotidiano e resistência nas ultimas décadas da escravidão, Olinda, 1871-
1888. Recife: ed. Universitária da UFPE, 2008. p. 94.
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Em novembro de 1877 fugiu sua escrava Francisca crioula. Com os sinais seguintes:
40 anos mais ou menos, cor fula, alta, seca, espigada, olhos um pouco grandes, com
todos os dentes limados, mas não despontados, ficarão redondos. Ocupava-se em
taboleiro e está passando por liberta. Foi encontrada em Mata Grande e Trombeta.
Promete o abaixo assinado a pessoa que quiser procurar a dita escrava por aqueles
lugares, gratificar, podendo conduzi-la para esta cidade. É de supor que ela esteja de
nome mudado. Manoel Casemiro29.

Os cativos, mesmo com poucos dias de compra, se articulavam. Talvez um


conhecimento prévio tenha sido o mecanismo facilitador da fuga de Azarias e João30,
anunciados como fugitivos apenas vinte dias após sua compra. Ambos sumiram, deixando no
prejuízo o seu senhor. Em sua companhia, João ainda levou sua mãe, liberta que morava na
localidade e cujo nome não sabemos. Os três eram residentes em Quebrangulo, uma região
localizada na zona da mata alagoana. Tal fuga não foi apenas de Azarias e João, mas de uma
família para longe do cativeiro – uma medida extrema que significava impedimento para o
fundo de emancipação, que deixava de fora os cativos que tinham incorrido em crimes. Assim,
Azarias e João estariam impedidos de serem alforriados pelo fundo de emancipação.
As estratégias após a fuga foram variadas, mas vamos observar duas delas: o retorno ao
seu local de origem e a tentativa de se passar por liberto. Os fugitivos Romão31 e Manoel
buscavam o retorno para seu local de origem, respectivamente, Penedo e Anadia. Essa
informação nos mostra que ambos tinham sido vendidos e que foram levados para longe dos
laços formados na escravaria em que moravam. Tentando se passar por libertos estiveram a
escrava Francisca, já mencionada, e o escravo Jeronymo32. Seu anúncio demonstra todo o seu
conhecimento da cidade, ao se movimentar por diferentes locais da província, podendo ser
encontrado desde São Miguel, local de engenhos, até a região do Tabuleiro de Alagoas, mais
próxima ao núcleo urbano. Não por menos foi classificado como ladino.

Quem eram os escravos fugidos?


O perfil dos escravos que fugiram é diverso, pois os fugitivos não apresentaram uma
faixa etária padrão e tinham idades entre 14 e 48 anos, com uma média de 29 anos. Na tentativa
de observarmos melhor os escravos que fugiram montamos o quadro abaixo, que contem
informações de idade, oficio, cor ou área de trabalho.

29
O liberal, ed. 160, 6 de agosto de 1878.
30
O liberal, ed. 205, 28 de setembro de 1878.
31
O liberal, ed.143, 17 de julho de 1878.
32
O liberal, ed.144, 18 de julho de 1878.
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Quadro 1: Perfil dos escravos fugitivos.

Nome Cor Idade Ofício Características


Moleque preto, cheio do corpo, idade de 14 p/ 15 anos, o
Azaria Preto 14/15 - qual tinha sido comprado no dia 7 do corrente ao senhor
Manoel Rodrigues da Roza.
Preto, corpolento, idade de 20 a 22 anos, comprado
também no dia 19 ao Sr. Paulo Jacinto Tenório, morador
João Preto 20/22 -
de Quebrângulo. Consta que levara em sua companhia sua
mãe que é liberta.
Altura regular, mui pouca barba, preto, rosto, alguma coisa
lustroso, destes limadas, boca e nariz muito grossos,
arrasta os pés quando anda, muito humilde, fala grossa,
Benedicto Preto 26-27 -
idade de 26 para 27 anos, trajando calça de algodão azul
claro e palito preto, conduzindo além de outros objetos
seus dois chapéus de massa de couro.
Bem disposta altura regular, cabeça chata, olhos grandes e
Pouco redondos, cor um pouco avermelhada, grossa do corpo e
Catharina - -
avermelhada bem disposta e é pertencente ao Sr. Francisco José da
Silva.
Preto, idade 40-45 estatura regular, olhos vivos e
Claudio Preto 40-45 - vermelho, pouca barba é canhoto e tem dedo indicador da
mão esquerda cortado a segunda junta.
Crioulo, estatura regular, grosso, pés grandes, trabalha um
pouco de carapina, de pedreiro e também de padeiro,
Pedreiro,
Custódio - ≅35 padeiro
levando chapéu de chile ainda novo, camisa e ceroulas de
algodão da terra e mais alguma outar roupa, em trouxa
constante de camisa de chita, calça de ganga ou riscado.
Preto, altura regular, corpolento, representando idade de 30
Jeronymo Preto 30-35 Carreiro a 35 anos, faltando os dentes da frente, ladino, barbado,
bom trabalhador de enxada, e carreiro.
Corpo e altura regulares, cor preta, barba cerrada,
dentadura perfeita, idade de 38 anos mais ou menos e as
Joaquim Preto ≅38 -
maças do rosto saliente. Saiu de camisa e ceroula de
algodão.
16 anos, cor fula, cheio do corpo, com todos os dentes,
cabelos acaboclados, porem crespos ou carapinhos, pés
grandes, tendo os dedos grandes um pouco salientes e
Lucio Fula 16 -
quando assenta os pés abre os dedos e parece ter uma unha
ou ambas falhadas. Quando saio levou o cabelo cortado
que deve ainda estar baixo.
40 mais ou menos, cor fula, alta, seca, espigada, olhos um
Escrava de pouco grandes, com todos os dentes limados, mas não
Francisca Fula ≅40 tabuleiro despontados, ficarão redondos. Ocupava-se em tabuleiro e
está passando por liberta.
Dezenove anos pouco mais ou menos, cor preta, bem
Cozinheira, parecida, tem falta de um dente na frente, boa estatura e
Lucrecia Preta 19
engomadeira corpo regular, fala descansada, cozinha e é boa
engomadeira.
Bem ladino, altura e corpo regulares, tendo três dedos da
mão esquerda decepados pela falange do meio, sendo o
Manoel - ≅22 -
mínimo anelar e o médio. Esse escravo pertenceu a
Francisco Xavier morador de Anadia.
Maria Crioula 48 - Alta, magra, puxa de uma perna.

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Pedro - 23 - Baixo robusto.
Francisco Fulo - - Fulo, alto, corpulento.
Joaquim Crioulo - - Crioulo, baixo, corpulento, sem dentes.
Apelidado de penedo, crioulo, de 40 anos de idade, altura
Romão Crioulo 40 - regular, magro rosto descarnado. Olhos grandes,
vermelhos e pés inchados.
Parda, ainda moça, cabelos pichaim, dentes limados, e
boca um pouco torta evadiu-se a 6 meses, seguramente
Sebastiana Parda - -
sabe-se que vive amaziada na ponta grande foi escrava de
D. Rosa de Mello.
Cor preta, moça bonita figura, levou em sua companhia
Faustina /
Preta - - uma filha de nome Balbina, de idade 12 anos bonita peça
Balbina
foram escravas de D. Luiza Thereza.
Conhecido por Vergulino preto fulo idade de 24 anos,
Tertuliano - 24 - estatura baixa, corpulento, tendo um pé aleijado, isto e
torto.
Estatura regular, corpo pouco menos que regular, mulato
puxando a cabra, com pouca barba, rosto seco, dentes
principiando a apodrecer na frente, tem fala fina e macia,
Mulato p/ Cozinheiro, cabelos um tanto carapinhos, mãos finas, pés chatos, com
Tiburcio 30
cabra engomador trinta anos de idade pouco mais ou menos, e cozinheiro e
engomador. A roupa com que desapareceu foi: calça e
camisa branca, contendo paletó de alpaca preta e botinas e
chapéu de baeta cor de cinza e pequeno.
Fonte: Dados retirados do jornal O Liberal 1878. Arquivo Público de Alagoas – APA.

Quando se referia à idade, alguns senhores não conseguiram precisá-la. Vários não se
preocupavam com as informações pessoais dos cativos, a não ser com a exigência de sua
matricula após 1871. Observamos alguns exemplos: Azarias 14-15, João 20-22, Claudio 40-45,
Jeronymo 30-35, Custódio 35, mais ou menos. Entre os fugitivos mais velhos, podemos notar
algumas características que, a nosso ver, são fatores importantes para sustentar uma fuga. Eles
possuíam o conhecimento de um ofício, que poderia ser uma maneira de assegurar o lado
financeiro da fuga pela possibilidade de realizar pequenos trabalhos enquanto fugiam. Por outro
lado, os ladinos podiam usar do conhecimento do espaço geográfico e das redes de
solidariedade para continuarem escondidos, como fizeram Jeronymo e Romão.
Uma alternativa de fuga envolvia a ação do escravo a partir da sua localidade e de sua
capacidade de compreensão do seu ambiente. A iniciativa podia ocorrer em meio à influência
econômica, social e política, como vemos no caso de Catharina. Sua fuga aconteceu em meio a
uma disputa senhorial, na qual seu verdadeiro senhor, Francisco José da Silva, a entregou a José
Lins Meira como forma de pagamento após dívidas contraídas com este. Com certeza, essa
disputa entre senhores foi decisiva para a escrava escolher o momento de fuga. A descrição de
sua fuga foi publicada:

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Fugiu desta vila no dia 6 de agosto do corrente ano a escrava de nome Catharina e
com os sinais seguintes: bem disposta, altura regular, cabeça chata, olhos grandes e
redondos, cor um pouco avermelhada, grossa do corpo e bem disposta é pertencente
ao senhor Francisco José da Silva morador nesta vila. Dita escrava acha-se embargada
para pagamento de dívidas contraídas ao abaixo assinado como consta de letras
firmadas e vencidas, e consta mais que a dita escrava pretenderá descer como retirante
para povoação de Piranhas de acordo com o senhor. Pede-se as autoridades que a
apreendam em deposito público até as averiguações necessárias. José Lins de Meira33.

A fuga de Catharina representa uma ação bem organizada. Ela soube aproveitar um
momento de indecisão entre senhores para fugir. Iniciativas como essa podem ter acontecido
frequentemente. Já em situações mais complexas, como nas disputas políticas provinciais, as
oportunidades de fuga tornaram-se consideravelmente maiores. As desavenças de grandes
proporções entre as elites locais retirava o foco dos escravos, funcionando como espaço de ação
para a fuga do cativeiro.
Como sabemos, a instabilidade política foi marcante em diferentes províncias do
Império, situação que influenciou boa parte da população. No caso dos escravos, os conflitos
foram extremamente favoráveis para a fuga e motins. Províncias como Pernambuco e Pará
revelaram essa dinâmica de ação escrava em meio à política conturbada. Vários escravos
aproveitaram para se refugiar em quilombos, outros conseguiram passar muitos anos fugidos34.
Pernambuco foi uma das províncias que viveu vários períodos de instabilidade política
ao longo dos oitocentos. Entre eles estiveram a Revolução Pernambucana (1817), a
Confederação do Equador (1824) e a Praieira (1848), além de pequenos conflitos como a
Setembrizada e a Novembrada. Todas essas sedições favoreceram a fuga dos cativos. Tratando-
se dos conflitos da década de 1820, uma das consequências para Recife foi o fortalecimento do
quilombo da floresta do Catucá. Para tal década Carvalho comenta que:

a cidade do Recife foi amordaçada durante essa década. [...] O fato mais importante
desse período foi o apogeu do quilombo de Malunguinho, cuja vida e morte está
intimamente ligada a história política e social de Pernambuco como um todo. Pode-
se dizer que a expansão do quilombo é um dos resultados das brigas de branco entre
1817 e 1824, que abriram brechas no sistema, facilitando as fugas de escravos,
inclusive urbanos35.

A Província paraense também sofreu com questões políticas. Durante a década de 1830,
a Cabanagem modificou o controle sobre a escravidão, as fugas se transformaram em uma

33
O liberal, ed. 186, 6 de setembro de 1878.
34
BEZERRA NETO, José Maia. Ousados e insubordinados: protesto e fugas de escravos na província do Grão-
Pará – 1840/1860. Topoi, Rio de Janeiro, v. 02, p. 73-112, 2001. pp. 73-74.
35
CARVALHO, op. cit., p. 55.
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calamidade e os escravos mais uma vez tiraram proveito da situação. No Pará, as fugas tiveram
um contexto diferente a partir de 1840. O refúgio foram os países vizinhos e não os quilombos.
Após a abolição da escravidão pela França, a Guiana foi um dos principais destinos dos escravos
brasileiros, indicando mais uma vez a capacidade de interpretação de um momento favorável
para os escravos. Analisando as fugas no Pará, Neto lembra que
o movimento de fugas de escravos para a Guiana Francesa, [...] não somente ganhava
novos contornos e significados como aumentava sua frequência nas décadas de 1840
e 1850, [...] acerca das expressas fugas de escravos em direção ao território da colônia
francesa, no período posterior ao término da escravidão na mesma, indica-nos
perfeitamente a leitura política feita pelos escravos, a partir do processo de
intercâmbio de informações havido entre os dois lados da fronteira fazendo com que
as próprias fugas adquirissem novos significados, embalados pela esperança da
obtenção da liberdade em Caiena36.

Em Alagoas, também foram comuns ações de fuga que ocorreram a partir de uma
situação atípica. Na década de 1870, a então região norte do Império passou por períodos de
seca, gerando um forte movimento de migração. Os habitantes da região deixavam suas terras
em busca de novas oportunidades e sobrevivência. Na mesma ou em outras províncias, o grande
fluxo de retirantes acabou sendo favorável aos escravos. Alguns compreenderam que o processo
de migração seria a possibilidade de escapar do cativeiro. Encontramos três registros de 1878
de escravos que tentaram se passar por retirantes e fugir da província. Chatarina, Lucio e
Tiburcio foram exemplos de escravos cientes das mudanças que aconteciam a seu redor
(Imagens 2 e 3). Nos anúncios, as cidades de Penedo e Piranhas, às margens do Rio São
Francisco, se apresentam como destino dos escravos.
Imagem 2: Fuga José Tiburcio Imagem 3: Fuga de Lucio

36
NETO, op. cit., pp. 87-88.
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Fonte: O liberal, ed. 98. 21 de maio de 1878. Fonte: O liberal, ed.197, 19 de setembro 1878.
Nos anúncios, encontramos novamente uma mesma ação apresentando características
diferentes. Ao compararmos as idades (José Tiburcio com 30 anos e Lucio com apenas 16 anos),
vemos que a faixa etária diferente não impediu que esses escravos buscassem a mesma
alternativa de acesso à liberdade. Destacamos ainda o fator da aparência dos fugitivos. O
anúncio de Lucio consta que o mesmo fugiu com o cabelo cortado, enquanto Tiburcio fugiu
bem vestido, com paletó, calça, botinas e chapéu. É possível que o novo corte de cabelo e as
boas roupas tenham sido usados como uma tentativa de disfarce para ajudar na fuga, em especial
para Tiburcio, que, ao fugir calçado e bem apresentável, podia estar buscando esconder sua
condição de escravo.
As fugas citadas, mais as de Lucrecia, que fugiu para Sergipe, e de Romão, que voltou
para Penedo, têm uma semelhança: o Rio São Francisco como rota de fuga. Provavelmente, o
rio foi uma porta de saída para a província sergipana. Os escravos que buscaram outras
províncias talvez tenham relacionado à distância o fim do cativeiro. Entretanto, o destaque é a
participação desses escravos em definir suas escolhas através da capacidade de leitura que
tinham da escravidão.

Adversidades e reinvenção - Conclusões


Essas fugas confirmam a dinâmica da escravidão na Alagoas imperial. A história dos
fugitivos acontece sobre contextos variados, em que a mesma ação apresentava contornos
diferentes. A vivência na escravidão requeria do cativo saber conviver com adversidades e

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conseguir se reinventar. Ao analisar Recife, Carvalho chegou à conclusão que podemos ampliar
para o contexto alagoano. Segundo o autor,

a bem da verdade, a situação demográfica, as condições políticas e econômicas da


província eram desafios para os quais os escravos souberam apresentar respostas,
exercendo uma série de estratégias de resistência cotidianas, adaptadas a realidade em
que viviam37.

Como vimos, em Alagoas não foi diferente. As fugas no ano de 1878 são registros de
histórias marcadas por particularidades, que aconteceram em meio a conflitos senhoriais,
período de seca, corte de laços e busca de um cativeiro mais brando. Todas são ações em busca
de um viver “em liberdade”, realizadas por homens e mulheres que não se renderam ao sistema
e aproveitaram de suas frestas para agir. Podemos perceber que a escravidão não resultou
apenas em castigos e violência, em que os escravos seriam sempre marginalizados, mas, ao
contrário, desenvolveu grupos insubordinados e perspicazes que usaram dos valores senhoriais
em seus propósitos.
Os fugitivos alagoanos agiram por todo o seu território. Atuantes e conscientes de sua
realidade, não só conseguiram espaços a partir das lacunas que a escravidão ofereceu, como
criaram esses ambientes de reação, assim revelando sua capacidade de se reinventar e sendo
agente ativo de suas histórias. Não esqueçamos que nem todos os escravos buscaram a liberdade
como ideal máximo de suas vidas, mas os que tentaram compõem um grupo que não se omitiu
à escravidão. Temos na fuga em Alagoas mais uma forma de oferecer o respaldo necessário da
participação dos escravos na construção de sua realidade, não sendo agentes sociais inertes que
viviam esperando unicamente a vontade de seu senhor.

Referências
Arquivo Público de Alagoas:
Periódico:
O liberal 1878.

Livros e artigos publicados:

BEZERRA NETO, José Maia. Ousados e insubordinados: protesto e fugas de escravos na


província do Grão-Pará – 1840/1860. Topoi, Rio de Janeiro, v. 02, p. 73-112, 2001.

37
CARVALHO, op. cit., p.211.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 191-208 | www.ars.historia.ufrj.br 207
CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-
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bangue nas Alagoas: traços da influência do sistema econômico do engenho de açúcar na vida
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FARIAS, Juliana Barreto; MOREIRA, Carlos Eduardo; GOMES, Flávio; SOARES, Carlos
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Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 191-208 | www.ars.historia.ufrj.br 208
Nota de pesquisa

REFLEXÕES SOBRE O CERIMONIAL DA


ENTRADA DO BISPO DOM FREI ANTÔNIO DO
DESTERRO NA DIOCESE DO RIO DE JANEIRO
(1747)
LUCAS DOMINGUES TORRES DO NASCIMENTO*

Resumo: O presente artigo tem como objetivo promover uma reflexão sobre o cerimonial da
entrada do bispo Dom Frei Antônio do Desterro na diocese do Rio de Janeiro (1747). Deste
modo, será realizada uma interpretação da estrutura do ritual de entrada episcopal e por meio
dela buscar-se-á empreender uma análise da dinâmica social da sociedade fluminense em
meados do século XVIII. A partir disso, será possível delinear como as diferenças e hierarquias
eram legitimadas por meio do cerimonial, a forma com que o lúdico projeta e representa o
social, as estratégias de afirmação do poder episcopal e o funcionamento dos mecanismos de
manutenção da ordem. Posto isso, partindo de um exame dos aspectos ritualísticos, pretende-
se oferecer uma contribuição para o campo da História Social do período colonial mediante
uma maior compreensão das relações entre cultura, política e sociedade no Antigo Regime.

Palavras-chave: Entrada Episcopal; Rio de Janeiro; Dinâmica Social.

Abstract: This paper intends to discuss the ceremonial entrance of Dom Frei Antônio do
Desterro in Rio de Janeiro’s diocese. Thereby, it will be done an interpretation about the ritual
structure of the episcopal entrance that will permits the analyses of the social dynamic of the
fluminense society in mid-eighteen century. The paper will identify how the difference and
hierarchy were legitimated by the ceremonial, the way the ludic can project and represent the
social sphere, the affirmation strategies of the episcopal power and the operation of mechanisms
of the order maintenance. By analysing the ritual aspects, the paper intends to contribute to the
Social History of the colonial period by offering a comprehension of the relations between
culture, politic and society in Ancient Regime.

Keywords: Episcopal Entrance; Rio de Janeiro; Social Dynamics.

Este estudo aborda o cerimonial da entrada do bispo D. Antônio do Desterro, um dentre


os ritos católicos que ocorrem no bispado do Rio de Janeiro ao longo do século XVIII. O nosso

Nota de pesquisa recebida em 21 de novembro de 2016 e aprovada para publicação em 26 de novembro de 2016.
*
Graduando em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), bolsista de Iniciação Científica –
PIBIC/CNPq. E-mail: lucas.dominguestorres@gmail.com

Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 209-220 | www.ars.historia.ufrj.br 209
documento base – Relação da entrada que fez o Excellentissimo, e Reverendíssimo senhor D.
Antonio do Desterro Malheyro Bispo do Rio de Janeiro, em o primeiro dia deste prezente Anno
de 1747 havendo sido seis Annos Bispo do Reyno de Angola donde por nominação de Sua
Magestade, e Bulla Pontifica, foy promovido para esta Diocesi1 – tem um longo título, algo
comum em obras do século XVIII. Pode ser encontrado na Biblioteca Nacional, mais
precisamente na Coleção Barbosa Machado, que faz parte do acervo de Obras Raras da
instituição. Contudo, também pode ser consultado na sua versão digitalizada, disponibilizada
pela Biblioteca Brasiliana Digital da USP.2
O objetivo do presente artigo é promover uma leitura da relação da entrada do Bispo
Dom Frei Antônio do Desterro na diocese do Rio de Janeiro (1747). Deste modo, será realizada
uma interpretação da estrutura do cerimonial da entrada episcopal e através dela examinaremos
a dinâmica social da sociedade do Rio de Janeiro em meados do século XVIII. Entretanto, antes
de chegarmos nestas questões nevrálgicas, devemos apresentar algumas informações
introdutórias, porém essenciais, para compreensão deste trabalho.

A Relação da entrada (...): informações introdutórias


A Relação da entrada (...) é uma narrativa que informa sobre o cerimonial da entrada
de um bispo em sua diocese. Ela relata a cerimônia na qual o prelado toma posse do seu bispado.
Relato esse que vai da viagem dele e de sua comitiva para a diocese em que vai exercer a função
episcopal até os festejos que acontecem na cidade em comemoração pelo acontecimento.
O documento em questão apresenta em seu frontispício dados relevantes sobre a
produção do relato. Conta com o nome do bispo que realizou a entrada, as circunstâncias de sua
nomeação, o nome do escritor do documento, o local e ano em que foi feito e a indicação da
instância que deu a licença para que pudesse circular. Desta feita, a partir deste momento,
trataremos de cada um desses pontos, endossando as informações documentais com relatos
historiográficos, quando possível.
O bispo Dom Frei Antônio do Desterro governou o bispado do Rio de Janeiro entre
1745 e 1773. O mesmo foi nomeado por Dom João V, sendo esta decisão confirmada por Bula

1
CUNHA, Luiz Antônio Rosado da. Relação da entrada que fez o Excellentissimo, e Reverendíssimo senhor D.
Antonio do Desterro Malheyro Bispo do Rio de Janeiro, em o primeiro dia deste prezente Anno de 1747 havendo
sido seis Annos Bispo do Reyno de Angola donde por nominação de Sua Magestade, e Bulla Pontifica, foy
promovido para esta Diocesi. Composta pelo Doutor Antonio Rosado da Cunha Juiz de Fóra, e Provedor dos
defuntos, Capellas, e Resíduos do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Na Segunda oficina de Antonio Isidoro da
Fonceca, Anno de M.DCC.LXVI. O documento, a partir de agora, será citado apenas como “Relação da entrada
(...)”.
2
Disponível para consulta em: <http://www.brasiliana.usp.br/handle/1918/03908100#page/1/mode/1up>
(Acessado em 15/11/2016)
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 209-220 | www.ars.historia.ufrj.br 210
pontifícia de Bento XIV, como informa a “Relação da entrada (...)”3, o que se enquadra na
lógica do Padroado Régio, na qual o monarca português nomeia o bispo e a escolha é legitimada
pelo papa.
Filho dos fidalgos Ventura Malheiro Reimão e Páscoa Pereira Ferraz, Antônio do
Desterro Malheiro Reimão nasceu em 13 de Junho de 1694, em Viana de Lima, na Província
do Minho (Portugal). No ano de 1711, professou como beneditino no Mosteiro de Tibães.
Formou-se em Teologia pela Universidade de Coimbra e, em 1737, foi eleito abade do colégio
de Nossa Senhora da Estrela de Lisboa. No exercício dessa função, em 1738, foi escolhido para
suceder o bispo D. Frei Manoel de Santa Catharina no Bispado de São Paulo de Luanda, em
Angola, onde permaneceu por seis anos, até 1745. Neste ano, foi nomeado para substituir D.
Frei João da Cruz (1740-1745) à frente da diocese fluminense. Sendo assim, chega ao Rio de
Janeiro em 1º de dezembro de 1746 e realiza sua entrada pública na cidade em 1º de janeiro de
1747.4
Como destaca Beatriz Catão Cruz Santos, D. Antônio do Desterro era um religioso de
mentalidade reformista que estava inserido na Jacobeia, que era um

movimento surgido no início do século XVIII, que preconizava a transformação do


catolicismo português através de um rigorismo moral e uma atitude de austeridade,
que correspondesse a uma verdadeira espiritualidade. Propunha a realização de
diversos exercícios espirituais e a valorização dos sacramentos, especialmente a
penitência, tal como fora definida no Concílio de Trento.5

Cabe ressaltar que a postura reformista do prelado também era reflexo, como indica o
trecho supracitado, das disposições do Concílio de Trento (1545-1563) que visavam a dar maior
disciplina ao corpo clerical. Este, por sua vez tinha um papel de destaque na sociedade do
Antigo Regime.
O caráter reformador e rigorista do seu bispado pode ser indicado pelo fato de ele ter
colocado “em prática um conjunto de medidas destinadas a implementar a reforma da Igreja,
garantindo o ministério da fé e a preservação da ortodoxia no território sobre o qual se estendia

3
CUNHA, Op. cit., frontispício.
4
Estas informações sobre o bispo D. Antônio do Desterro foram obtidas em ARAÚJO, José de Souza Azevedo
Pizarro e. Memorias historicas do Rio de Janeiro e das provincias annexas à jurisdicção do Vice-Rei do Estado
do Brasil, dedicadas a El-Rei Nosso Senhor D. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Nacional, 1820, vol. 5.
PEREIRA, Ana Margarida Santos. A legislação sobre escravos no episcopado de D. Frei António do Desterro, Rio
de Janeiro (1747-1773). In: OLIVEIRA, Anderson José Machado de; MARTINS, William de Souza (Orgs.).
Dimensões do catolicismo no Império português (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Garamond, 2014. p. 267-
295. SANTOS, Beatriz Catão Cruz. Reflexões sobre um percurso de pesquisa: o Mosteiro de São Bento e o culto
de São Gonçalo do Amarante. In: FRAGOSO, João; GUEDES, Roberto; SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de.
Arquivos paroquiais e História Social na América lusa: métodos e técnicas de pesquisa na reinvenção de um
corpus documental (séculos XVII e XVIII). Rio de janeiro: Mauad X, 2014. p. 303-328.
5
SANTOS, Op. cit., p. 310.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 209-220 | www.ars.historia.ufrj.br 211
a sua jurisdição”.6 Desterro almejava seguir a agenda Jacobeia, o que significava renovar a
obrigação dos párocos com respeito à ministração dos sacramentos e ritos de sepultamento,
“instaurar a disciplina, reformar os costumes e promover o fervor da fé, tendo em vista o
restabelecimento da vida moral e religiosa da Igreja e dos seus fiéis (...).”7 Ademais, é notável
a preocupação que o bispo tinha com a população de escravos africanos e negros forros, o que
é constatado mediante a análise da legislação durante seu bispado, como elucida Ana Margarida
Santos Pereira.8 Vale mencionar que as iniciativas do prelado relativamente à população de
escravos, grande parcela da sociedade colonial fluminense do século XVIII, podem ter sido
suscitadas pela aproximação com os africanos no período em que esteve à frente da diocese de
São Paulo de Luanda, na Angola. Essa hipótese foi levantada pela historiadora que citamos
anteriormente.9
O autor da Relação da entrada (...) foi o doutor Luiz Antônio Rosado da Cunha. O
próprio documento informa bem pouco sobre este indivíduo. Ele teria sido “Juiz de Fóra, e
Provedor dos defuntos, e auzentes, Capellas, e Residos do Rio de Janeiro”10. Além disso, teria
oferecido, no dia 11 de dezembro de 1746, uma Noite Ática em homenagem ao bispo, em que
foi apresentada a ópera Felinto Exaltado, evento particular e que contou apenas com a
participação de membros da alta sociedade colonial fluminense.11
Rosado é uma personalidade fugidia para a qual há poucas informações. Porém, uma
documentação do Conselho Ultramarino, recentemente encontrada no Projeto Resgate, acervo
de documentos digitais da Biblioteca Nacional, tem sido um caminho para uma maior
compreensão sobre ele. O trabalho de análise destas fontes ainda está em andamento, no
entanto, já podemos assinalar que elas nada revelam sobre a relação existente entre o doutor e
o bispo D. Frei Antônio do Desterro. Por isso, ainda aguardamos o encontro de novas
documentações para avançarmos na compreensão deste aspecto, que permanece obscuro.
As circunstâncias de impressão do documento são muito peculiares. A Relação da
entrada (...) foi provavelmente a primeira obra impressa no Brasil, em um contexto de censura
dos impressos, das ideias e dos meios de divulgação por parte da Metrópole Portuguesa. A obra
foi impressa em 1747, no Rio de Janeiro, mais precisamente na segunda oficina tipográfica de

6
PEREIRA, Op. cit., p. 269.
7
Ibidem, p. 269-270.
8
Ibidem. p. 267-295.
9
Ibidem, p. 268.
10
CUNHA, Op. cit., frontispício. Ao citarmos trechos do documento, utilizaremos sempre a linguagem original,
sendo assim, não atualizaremos a ortografia para o português usual. Desse modo, poderemos manter uma maior
integridade e fidedignidade do relato.
11
CUNHA, Op. cit., p. 7.
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Antônio Isidoro da Fonseca, português que fecha sua primeira tipografia em Lisboa e viaja para
as terras fluminenses, ao que tudo indica, por interesses de natureza econômica e financeira.
Contudo, dois pontos são problemáticos e merecem ser salientados.
Primeiramente, a segunda oficina tipográfica de Antônio Isidoro da Fonseca funciona
em meados do século XVIII (1747-1749) de forma clandestina, pois Isidoro não teria recebido
permissão régia para instalar sua tipografia no Rio de Janeiro. Cabe ressaltar que apenas se terá
uma Imprensa Oficial com a vinda da Família Real para o Brasil, em 1808, ano em que é
instalada a Imprensa Régia.12
Em segundo lugar, o frontispício da Relação da entrada (...) indica também que o
documento conta “Com licenças do Senhor Bispo”13, desse modo, poderia ser publicado,
todavia, essa permissão acaba gerando reações metropolitanas. Afinal, em um cenário de
controle dos impressos que circulavam na América Portuguesa, se tinha uma rígida burocracia
para que uma obra pudesse circular. Em especial no Rio de Janeiro, cidade que por contar com
um porto era mais suscetível de receber obras, vindas da Europa, contrárias à Igreja e à
Monarquia Portuguesa.14 Sendo assim, para que um impresso se tornasse passível de circulação,
eram necessárias as licenças régias e inquisitoriais. Entretanto, a Relação da entrada (...) tem
permissão para circular, em 7 de fevereiro de 1747, apenas por autorização do bispo D. Antônio
do Desterro, sem que as instâncias censórias fossem consultadas. Disto resulta a repressão
metropolitana do Conselho Ultramarino, por meio de carta régia, já em 1747, o fechamento de
sua oficina tipográfica e o retorno de Antônio Isidoro da Fonseca para Portugal, em 1749, por
pressão da ação inquisitorial (Santo Ofício).15
Apesar dos caminhos até aqui trilhados, reconhecemos que os fatores que
impulsionaram a publicação da Relação da entrada (...) permanecem misteriosos. Neste
sentido, ainda são necessários novos documentos e novas análises para que se esclareça o
vínculo existente entre o bispo, o escritor e o tipógrafo Antônio Isidoro da Fonseca. Além disso,
os motivos que possibilitaram que este último conseguisse a aprovação para realizar a
impressão da obra no contexto acima explicitado, de censura dos impressos no Rio de Janeiro
do século XVIII, ainda permanecem sendo incógnitas a serem desvendadas.

12
BRAGANÇA, Aníbal. António Isidoro da Fonseca, Frei Veloso e as origens da história editorial brasileira.
Comunicação apresentada no XXX Congresso de Ciências da Comunicação – Santos: 29 de agosto a 2 de setembro
de 2007. p. 1-15.
13
CUNHA, Op. cit., frontispício.
14
CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão francesa
até a chegada da corte. Ed. 2004. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 145-155.
15
BARROS, Jerônimo Duque Estrada de. Impressões de um tempo: a tipografia de Antônio Isidoro da Fonseca
no Rio de Janeiro (1747-1750). Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2012.
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Metodologia
Como instrumento de leitura da “Relação da entrada (...)” utilizaremos do método
empregado pelo historiador português José Pedro Paiva na análise de um conjunto de relações
da entrada entre 1741-1757, momento de restabelecimento de boas relações entre a Coroa
Portuguesa (D. João V) e a Santa Sé, após um período conturbado de conflitos. Tal método
consiste em compreender a estrutura morfológica da entrada episcopal, algo comum em uma
cerimônia que era regulamentada, e depois empregar uma abordagem exegética, tratando do
significado do cerimonial.16 Vale frisar que José Pedro Paiva foi pioneiro com sua pesquisa,
apresentando, em fins do século XX, um tema pouco explorado pela historiografia: as
cerimônias de afirmação do poder episcopal. Vejamos as duas etapas para analisar uma relação
da entrada.
1º) Morfologia do Ritual: Análise dos seis momentos básicos e comuns a toda e qualquer
relação da entrada. Algo possível, por se tratar de uma cerimônia que era regulamentada por
manuais. Como o Cerimoniale episcoporum (Cerimonial dos bispos), de 1600, feito por
iniciativa do papa Clemente VIII e o tratado de cerimônias episcopais do português Lucas de
Andrade, Acçoens espiscopaes tiradas do Pontifical Romano e cerimonial dos bispos com hum
breve compendio dos poderes e privilégios dos bispos (1671). Para tornar mais clara uma
visualização da uniformidade dos procedimentos nos cerimoniais de entrada episcopal,
utilizaremos de uma citação do próprio José Pedro Paiva:

A dissecação da morfologia dos ritos de entrada que se acaba de executar sugere que
estes tinham seis fases, ou tempos, ou estruturas fundamentais que resumiremos do
seguinte modo. Em primeiro lugar, os momentos que antecediam a chegada do bispo
à Sé, isto é, os relatos das viagens e das comitivas. Em segundo lugar, os actos de
recepção do bispo por parte dos vários corpos da cidade ainda fora de portas. Terceiro,
o do encontro desta já numerosa comitiva com todos os que a aguardam à porta da
cidade, local onde o bispo muda de trajes, beija a cruz e onde, eventualmente, pela
boca de representantes do cabido ou da governança municipal, são proferidas algumas
adornadas palavras de boas vindas e júbilo. Depois sucedia um dos momentos áureos
da entrada que era a procissão que se desenrolava da porta da cidade até à Sé Catedral.
A etapa seguinte, sem dúvidas a mais ritualizada, religiosa, privada, desenvolvia-se
como vimos na Sé e terminava com o ingresso do bispo no paço episcopal. Por último,
o conjunto variado de festejos que assinalavam o acontecimento.17

16
PAIVA, José Pedro. O cerimonial da estrada dos bispos nas suas dioceses: uma encenação de poder (1741-
1757). Revista de Histórias das Ideias, Coimbra, vol. 15, p.121. 1993.
17
Ibidem, p. 133-134.
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2º) Exegese do Ritual: Leitura interpretativa do significado destas cerimônias. Esta seria a
segunda etapa na análise de uma relação da entrada e na presente pesquisa daremos ênfase a
ela, pois reconhecemos a riqueza potencial possibilitada pelo seu desdobramento.

A narrativa: uma visão geral


A partir de agora iremos descrever, de forma geral, a narrativa presente na Relação da
entrada (...). Desta maneira, poderemos dar uma base maior aos apontamentos que serão
realizados mais adiante.
Em 1º de dezembro de 1746, chegava ao porto do Rio de Janeiro o bispo D. Frei Antônio
do Desterro, após uma longa viagem. O documento que informa sobre sua entrada na cidade
demonstra, desde o seu princípio, a expectativa positiva que a chegada do prelado causava no
povo: “se alvoraçarão os animos destes povos, na esperança de conseguirem hum Prelado,
cheyo de tantas prendas, quantas se contem em tão qualificado sugeito”.18 Ao aportar na barra
da cidade, Desterro, dado o seu alto nível de importância, foi prontamente recebido por um
cortejo constituído pelas maiores autoridades citadinas, dentre elas o governador Gomes Freire
de Andrade e o Cônego Doutoral Henrique Moreira de Carvalho, que exercia o cargo de
governador do bispado enquanto o novo bispo ainda não havia sido empossado. Tendo recebido
os cumprimentos devidos à sua pessoa, se dirigiu ao Mosteiro de São Bento (por ser beneditino),
local que lhe serviu de aposento interino durante o período em que se recuperava da fadiga da
viagem.19
O cansaço gerado pela viagem e a indisposição causada pelo longo tempo no mar
fizeram com que o prelado só realizasse a sua entrada pública na cidade, um mês depois de sua
chegada, no dia 1º de janeiro de 1747. Esta demora tornou possível uma maior preparação do
cenário que iria ser percorrido durante a procissão. Editais foram emitidos pelo Senado da
Câmara, com o sentido de normatizar o ornamento das ruas (com flores alcatifadas) e das
janelas das casas (com ricas tapeçarias)20 e especificar o dia, a hora, o percurso processional e
os corpos sociais que deveriam comparecer na cerimônia. Sete arcos triunfais, minuciosamente
descritos por Luiz Antônio Rosado da Cunha em diversas páginas da “Relação da entrada
(...)”.21 foram erigidos no intuito de tornar o evento ainda mais aparatoso e acentuar o poder
episcopal.

18
CUNHA, Op. cit., p. 4.
19
Ibidem, p. 5-8.
20
Ibidem, p. 9-10.
21
Ibidem, p. 12-17.
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Feitos os preparativos para o grande dia, reuniram-se os corpos sociais da urbe no fim
da ladeira do Mosteiro de São Bento, onde se encontrava o primeiro arco e de onde partiria a
procissão em direção à Catedral da Sé. O bispo, revestido de seus hábitos Pontificais, seguiu
em direção ao seu destino, passando pelos setes arcos triunfais “primorosamente ornados”.22
Nesta etapa do registro, Rosado deu grande relevância à figura de Gomes Freire de Andrade
que, montado a cavalo, cumprimentou o bispo e organizou a soldadesca que estava em
prontidão nas ruas. Entretanto, também pôs em relevo a presença dos oficiais militares, dos
membros da Câmara e principalmente dos indivíduos que cumpriram alguma função no cortejo,
como os cidadãos que seguraram as varas do pálio e os sujeitos que carregaram a capa e o
chapéu do bispo.23
Terminada a procissão, Desterro chegou à Catedral da Sé, situada na Igreja de Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito. Iniciava-se assim o momento mais ritualizado da cerimônia
de entrada. Aqui, o secular dá lugar ao religioso e os membros do Cabido passam a interagir
com o prelado. Após um conjunto de gestos, falas e ações extremamente ritualizadas,
protocolizadas pelos manuais anteriormente citados, Desterro, já entronizado como bispo,
despiu os hábitos pontificais. Findada esta etapa, tendo sido vestido com a sua “capa viatoria”,
foi acompanhado por grande comitiva até o Palácio Episcopal, localizado no Morro da
Conceição. Finalmente, os repiques de sino e as luzes das luminárias passariam a marcar as
comemorações pelo acontecimento.24 Nas palavras de Rosado: “a Cidade applaudia esta
apetecida entrada de sua Excellencia Reverendissima”.25

O cerimonial no período joanino


O reinado de D. João V evidencia o grande peso cerimonial conferido às expressões
ritualísticas. Ao contrário do que se pode pensar, no entanto, isso não estava restrito apenas ao
universo eclesiástico.
Sheila Conceição Silva Lima salienta que as ideias políticas durante o Setecentos
também eram expressas mediante uma linguagem cerimonial.26 Ao tratar da política
diplomática portuguesa, demonstra que o desejo de D. João V era, em um cenário de
crescimento da importância da diplomacia como forma de resolução de conflitos, afirmar a

22
Ibidem, p. 10.
23
Ibidem, p. 10-12.
24
Ibidem, p. 17-20.
25
Ibidem, p. 20.
26
LIMA, Sheila Conceição Silva. Em nome do pai, do filho e do poder joanino: Portugal e a santa sé na primeira
metade do século XVIII. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
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paridade de Portugal perante as demais potências europeias. Neste sentido, para obter tal
reconhecimento, investiu em uma “política de representação junto à corte pontifícia, na qual se
destacava a atuação do enviado e, posteriormente, embaixador André de Mello de Castro”.27
Tendo em vista os objetivos da Monarquia Portuguesa, o Enviado Extraordinário de D.
João V à Santa Sé, em 1707, tinha uma missão delicada. Ele deveria por meio de sua atuação
“representar sua casa, isto é, sua corte, de tal maneira que o gabarito do rei representasse sua
soberania”28. Sua função era transmitir uma mensagem que afirmasse a grandeza do poder do
rei e a paridade entre Portugal e as demais cortes europeias. Sua entrada pública em Roma, os
seus dispendiosos gastos (patrocinados pela Coroa Portuguesa) e a sua postura no âmbito social
contribuíram para a visualização e comunicação dessa mensagem.29 Em síntese, “todas as
formas de exibir a grandeza do reino português foram utilizadas pela enviatura”.30
Posto isso, fica claro que o cerimonial era utilizado durante o século XVIII,
especialmente no período joanino, como um meio de transmitir mensagens e afirmar poderes.
E isso ocorria em múltiplas esferas, porque o mundo português estava falando uma linguagem
cerimonial e o objetivo parecia ser apenas um: o de se fazer representar. Evidentemente, grande
parte dos cerimoniais tinha o objetivo de representar algo e os registros destas cerimônias, na
maioria dos casos, tinham um significado que ia muito além de um simples relato, o que pode
ser observado através do exame da Relação da entrada (...).

Significado da “Relação da entrada (...)”: para além de um simples relato


Por meio de uma reflexão, compreendemos que a Relação da entrada (...) mais do que
apenas recontar o cerimonial da entrada do bispo D. Antônio do Desterro no bispado do Rio de
Janeiro, pode nos informar sobre a dinâmica social da sociedade fluminense em meados do
século XVIII e sobre os mecanismos de manutenção da ordem social. Isso ocorre porque o
ritual:

1) Realiza uma certa representação da sociedade fluminense de meados do século XVIII,


de forma ordenada, hierárquica e tripartida: Desse modo, atualiza um ideal de três ordens
oriundo da antiga classificação indo-europeia, que interpreta e divide a sociedade em clero,
nobreza e povo, e enseja distinções entre os corpos sociais, tal como postula Beatriz Catão Cruz

27
Ibidem, p. 24.
28
Ibidem, p. 25.
29
Ibidem, p. 51, 56, 58.
30
Ibidem, p. 58.
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Santos quando trata das procissões de Corpus Christi na América Portuguesa.31 Todavia, vale
ressaltar que, especificamente na representação da sociedade apresentada pela Relação da
entrada (...), alguns aparecem e outros não. Isso nos leva ao segundo ponto.

2) Produz uma memória social e política que ressalta a existência e atuação de


determinados setores sociais e/ou indivíduos em detrimento de outros: Sendo assim,
observamos certo protagonismo do bispo e do governador do Rio de Janeiro, Gomes Freire de
Andrade, no relato da entrada, contudo, em contrapartida, setores sociais mais baixos e a
população negra são invisíveis ou praticamente invisíveis no documento. Portanto, ao que tudo
indica, a preservação de uma memória desses estratos sociais não era relevante.

3) É um instrumento de afirmação e encenação do poder episcopal perante os demais


corpos sociais da cidade: Em uma sociedade de iletrados ver e ser visto era de suma
importância, um meio eficaz das massas populares assimilarem a ordem social e as hierarquias
existentes. Notadamente, havia um caráter pedagógico e comunicador por trás do cerimonial,
assim como é percebido nas procissões de Corpus Christi.32 Nesse evento, a posição de destaque
que o bispo D. Antônio do Desterro assumiu na procissão que foi do Mosteiro de São Bento até
a Catedral da Sé era um reflexo direto da sua posição dentro da hierarquia social da sociedade
fluminense. Além disso, por essa lógica, os demais indivíduos que estavam envolvidos no
cerimonial da entrada tinham também seus lugares sociais afirmados e/ou legitimados pela sua
participação nele. Como os que seguravam as varas do pálio, a capa e o chapéu do bispo. Por
fim, as participações e posições desempenhadas por cada pessoa no ritual, longe de serem
apenas momentos efêmeros de obtenção de prestígio e status, também eram eternizadas nos
relatos escritos. E um exemplo bem elucidativo é dado pelo próprio Luiz Antônio Rosado da
Cunha:

(...) e conduzido sua Excellencia Reverendíssima para o Altar Mayor afim de se


practicarem as ceremonias do Ritual Romano, se revestio de Pontifical, e à porta
principal do Convento o esperou o Senado, para receber a benção de sua Excellencia
Reverendíssima onde se achavão oito Cidadoens, para pegarem nas varas do Pallio,
como se lhes havia determinado, e o Illustrissimo Excellentissimo General, e Senado,
seguião processionalmente a sua Excellencia Reverendíssima e porque nesta Cidade
se achava João Malheiro Reymão Pereyra, Fidalgo da Caza de sua Magestade; Irmão
de sua Excellencia Reverendíssima Ouve por bem o mesmo Excellentissimo, e
Reverendíssimo Senhor, que pela razão do vinculo, lhe servisse de seu Caudatario, e
ao chapeo, Christovão Monis Barreto de Menezes, e na Capa Viatoria, Thomaz de

31
SANTOS, Beatriz Catão Cruz. Os senhores do bispo: a intervenção do bispado na procissão de Corpus Christi
no século XVIII. Revista Tempo, v. 16, n. 33, p. 181. 2012.
32
Idem.
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Gouvea Couttinho, que o affecto, e distinção de suas pessoas os dispos para este
emprego, que sua Excellencia Reverendíssima lhes destinou (...).33

Considerações Finais
Em suma, as cerimônias realizam uma espécie de teatralização da vida social, onde o
espaço da cidade é o cenário e os indivíduos e estratos sociais são os atores. Por conseguinte,
mais do que apenas relatar um acontecimento de extrema importância para o bispado do Rio de
Janeiro, que é a chegada de um novo prelado, o ritual de entrada do bispo D. Antônio do
Desterro, registrado na “Relação da entrada (...)”, figura como um importante instrumento de
afirmação/encenação do poder episcopal e de manutenção e produção de uma dada ordem
social, alinhada aos interesses hegemônicos da Igreja Católica e da Monarquia Portuguesa.
Deste modo, acreditamos que sua análise mostra-se como sendo um meio válido de obtenção
de maiores informações sobre os aspectos que norteiam a dinâmica social da sociedade
fluminense de meados do século XVIII. Mesmo que de maneira introdutória, esse artigo teve o
objetivo de mostrar um pouco dessa contribuição.

Referências Bibliográficas

Fontes Impressas

ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. Memorias historicas do Rio de Janeiro e das
provincias annexas à jurisdicção do Vice-Rei do Estado do Brasil, dedicadas a El-Rei Nosso
Senhor D. João VI. Rio de Janeiro: Impressão Nacional, 1820, vol. 5.

CUNHA, Luiz Antônio Rosado da. Relação da entrada que fez o Excellentissimo, e
Reverendíssimo senhor D. Antonio do Desterro Malheyro Bispo do Rio de Janeiro, em o
primeiro dia deste prezente Anno de 1747 havendo sido seis Annos Bispo do Reyno de Angola
donde por nominação de Sua Magestade, e Bulla Pontifica, foy promovido para esta Diocesi.
Composta pelo Doutor Antonio Rosado da Cunha Juiz de Fóra, e Provedor dos defuntos,
Capellas, e Resíduos do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Na Segunda oficina de Antonio Isidoro
da Fonceca, Anno de M.DCC.LXVI.

Teses e Dissertações
BARROS, Jerônimo Duque Estrada de. Impressões de um tempo: a tipografia de Antônio
Isidoro da Fonseca no Rio de Janeiro (1747-1750). Dissertação (Mestrado em História Social)
– Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia,
Departamento de História, 2012.

33
CUNHA, Op. cit., p. 11-12.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 209-220 | www.ars.historia.ufrj.br 219
LIMA, Sheila Conceição Silva. Em nome do pai, do filho e do poder joanino: Portugal e a santa
sé na primeira metade do século XVIII. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

Comunicações
BRAGANÇA, Aníbal. António Isidoro da Fonseca, Frei Veloso e as origens da história
editorial brasileira. Comunicação apresentada no XXX Congresso de Ciências da
Comunicação – Santos: 29 de agosto a 2 de setembro de 2007. p. 1-15.

Artigos de Periódicos
PAIVA, José Pedro. O cerimonial da estrada dos bispos nas suas dioceses: uma encenação de
poder (1741-1757). Revista de Histórias das Ideias, Coimbra, vol. 15, p.117-146. 1993.

SANTOS, Beatriz Catão Cruz. Os senhores do bispo: a intervenção do bispado na procissão de


Corpus Christi no século XVIII. Revista Tempo, v. 16, n. 33, p. 165-190. 2012.

Capítulos de Livro

PEREIRA, Ana Margarida Santos. A legislação sobre escravos no episcopado de D. Frei


António do Desterro, Rio de Janeiro (1747-1773). In: OLIVEIRA, Anderson José Machado de;
MARTINS, William de Souza (Orgs.). Dimensões do catolicismo no Império português
(séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Garamond, 2014. p. 267-295.

SANTOS, Beatriz Catão Cruz. Reflexões sobre um percurso de pesquisa: o Mosteiro de São
Bento e o culto de São Gonçalo do Amarante. In: FRAGOSO, João; GUEDES, Roberto;
SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Arquivos paroquiais e História Social na América lusa:
métodos e técnicas de pesquisa na reinvenção de um corpus documental (séculos XVII e XVIII).
Rio de janeiro: Mauad X, 2014. p. 303-328

Livros

CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade da


invasão francesa até a chegada da corte. Ed. 2004. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 209-220 | www.ars.historia.ufrj.br 220
Nota de pesquisa

NOTAS SOBRE OS COMENTÁRIOS DE


FERNANDO JOSÉ DE PORTUGAL E CASTRO
AO ÚLTIMO REGIMENTO DOS
GOVERNADORES GERAIS (1796-1805)
GABRIEL DE ABREU MACHADO GASPAR*

Resumo: Provisão régia expedida pelo Conselho Ultramarino em 29 de julho de 1796


encarregava o então governador da Capitania da Bahia, Fernando José de Portugal e Castro
(1752-1817), de fazer uma cópia do Regimento em vigor com observações e pareceres sobre
cada um de seus artigos. O objetivo deste estudo é analisar as observações de D. Fernando ao
Regimento, situando-as tanto no contexto da crescente importância que a preservação das
colônias ultramarinas assumia para a Coroa, quanto naquele da crescente racionalização na
administração colonial, adotada na segunda metade do século XVIII.
Palavras-chave: administração colonial; regimento; Fernando José de Portugal e Castro.

Abstract: Royal provision issued by Conselho Ultramarino on July 29, 1796 charged the
Capitania da Bahia’s governor, Fernando José de Portugal e Castro (1752-1817), to do a copy
of the reigning Regiment with observations and opinions about each article. The aim of this
paper is to analyze D. Fernando’s comments on the Regiment placing them in the context of
the growing importance that the preservation of the overseas colonies assumed by the Crown,
as the rationalizing in the colonial administration, adopted in the second half of the 18th century.
Keywords: colonial administration; regiment; Fernando José de Portugal e Castro.

Em 29 de julho de 1796, Provisão régia expedida pelo Conselho Ultramarino


encarregava o então governador da Capitania da Bahia, Fernando José de Portugal e Castro, de
fazer
huma cópia do Regimento ou Regimentos da vossa respectiva Capitania, como todas
as ordens que os tenha observado, ampliado, ou restringido, practicando-o assim uma

Nota de pesquisa recebida em 23 de novembro de 2016 e aprovado para publicação em 26 de novembro de


2016.
*
Graduando em História pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq. E-
mail: machado.ga18@gmail.com.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 221-231 | www.ars.historia.ufrj.br 221
circunstanciada informação e parecer sobre cada hum dos seus antigos
[procedimentos] practicáveis ou impracticáveis em benefício do Real Serviço.1

Após novo ofício régio de 10 de abril de 1804,2 que recomendava a execução da


Provisão de 1796, Fernando José de Portugal e Castro concluiu o encargo em fevereiro de 1805
e enviou ao Reino seus comentários ao Regimento dado a Roque da Costa Barreto, datado de
23 de janeiro de 1677.3
O objetivo deste trabalho é analisar os comentários de Fernando José de Portugal e
Castro ao Regimento de 1677, situando-os no contexto político em que foram escritos: um
período marcado pelo reformismo ilustrado português, pela crescente racionalização
administrativa nas colônias e pela importância da preservação das possessões ultramarinas para
a manutenção do Império luso-brasileiro.

Um novo regimento para o Governo-geral do Brasil


Em 1548 foi estabelecido, por D. João III, o governo-geral no Brasil. Com o objetivo de
instituir certa ordem jurídica e administrativa no ultramar e resolver as numeras contendas
envolvendo portugueses e nativos,4 o cargo de governador-geral acabou por se constituir como
um dos mais altos postos do Império Português. Conforme salienta Francisco Carlos Cosentino,
“os governadores-gerais exerciam um ofício régio superior com funções delegadas de jurisdição
superior”.5 O cargo era superior por ser exercido em nome do monarca, contudo, sua qualidade
era inferior, uma vez que suas decisões precisavam de confirmação real.
Esse posto foi ocupado entre 1678 e 1682 por Roque da Costa Barreto, célebre por ter
trazido um novo regimento para o governo-geral. A década de 1670 foi apontada por Maria de
Fátima Gouvêa como um momento de “reordenamento da forma de ser da administração da

1
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ), Fundo Marquês de Aguiar, doc. 1, 4, 7 de 30 de julho de 1796.
Provisão Régia expedida em 1796 pelo Conselho Ultramarino recomendando que o govenador da Bahia, Dom
Fernando José de Portugal e Castro, faça a revisão de todos os Regimentos que orientam os governadores.
2
No Regimento, comentado mais adiante, encontra-se menção a este novo Ofício régio.
3
BNRJ, Fundo Marquês de Aguiar, doc. 9, 2, 26 de 10 de maio de 1804. Transcrição completa do Regimento de
Roque da Costa Barreto com as observações de D. Fernando José de Portugal se encontra em: MENDONÇA,
Marcos Carneiro de. Raízes da Formação Administrativa do Brasil, vol. II. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, 1972, p. 739-871.
4
Cf. COSENTINO, Francisco Carlos Cardoso. Governadores gerais do estado do Brasil (séculos XVI-XVII):
ofício, regimentos, governação e trajetórias. São Paulo: Annablume, 2009.
5
COSENTINO, Francisco Carlos Cardoso. Hierarquia política e poder no Estado do Brasil: o governo-geral e as
capitanias, 1654-1681. Topoi, Rio de Janeiro, v. 16, n. 31, p. 515-543, jul./dez. 2015, p. 524.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 221-231 | www.ars.historia.ufrj.br 222
América Portuguesa”.6 Foram criados os bispados de Olinda e do Rio de Janeiro em 1675 e
1676, respectivamente. Teve lugar também a doação de capitanias na parte sul da América, que
culminou com a fundação da Nova Colônia do Santíssimo Sacramento em 1680.
Neste contexto foram elaborados quatro regimentos para ordenar a governação
ultramarina: o dos capitães-mores elaborado no governo do conde de Óbidos, em 1663; aquele
elaborado para o governo-geral, em 1677, e para o governo das capitanias principais de
Pernambuco, em 1670, e Rio de Janeiro, em 1679. O Regimento de Roque da Costa Barreto,
escrito em 1677, destaque deste trabalho, era uma síntese dos regimentos anteriores e esteve
em vigor até 1808. Assim, segundo aponta Francisco Carlos Cosentino, “esse foi um momento
no qual a ordem política administrativa se tornou mais complexa [...]. Era necessário ordenar e
esse regimento definiu o relacionamento do governo-geral com as diversas capitanias”.7

A política colonial portuguesa em fins do século XVIII


O século XVIII constitui um novo ambiente marcado pelas ideias ilustradas e por
grandes movimentos de pensamento que se manifestavam desde as últimas décadas do século
XVII. As novidades do pensamento político e filosófico do século XVII determinaram uma
crise, definida por Paul Hazard, como “crise de consciência europeia”8, acompanhada de uma
revisão crítica das ideias e instituições “no sentido de uma renovação radical das estruturas da
sociedade e do Estado”.9
No caso português, foi somente na segunda metade do século XVIII que se iniciou o
período de grandes mudanças na política da Coroa. Em fins de julho de 1750, Sebastião José
de Carvalho e Melo ascende à pasta de Negócios Estrangeiros e da Guerra.10 Antes disso, havia
servido como embaixador português em Londres (1739-1743) e Viena (1745-1749), período de
fundamental importância para sua formação intelectual11 e para o diagnóstico dos problemas
portugueses. Pombal delineou suas políticas com o objetivo de diminuir a dependência de

6
GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Conexões imperiais: oficiais régios no Brasil e Angola (c. 1680-1730). In:
BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral (Orgs.). Modos de Governar: ideias e práticas
políticas no Império Português (séculos XVI a XIX). São Paulo: Alameda, 2005. p. 183.
7
CONSENTINO, op. cit., p. 529.
8
Ver: HAZARD, Paul. Crise da Consciência Europeia (1680-1715). Lisboa: Cosmos, 1948.
9
ASTUTI, Guido. O absolutismo esclarecido em Itália e o Estado de Polícia. In: HESPANHA, Antonio Manuel
(Org.). Poder e instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p. 252.
10
Cf. MAXWELL, Keneth. Pombal e a nacionalização da economia luso-brasileira. In: _____. Chocolate, Piratas
e outros Malandros. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1999, p. 89.
11
CARDOSO, José Luís & CUNHA, Alexandre Mendes. Discurso econômico e política colonial no Império Luso-
Brasileiro (1750-1808). Tempo – Revista do Departamento de História da UFF, Niterói, v. 16, nº 31, 2012, p. 73.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 221-231 | www.ars.historia.ufrj.br 223
Portugal em relação à Inglaterra, pois considerava o controle exercido pelos britânicos a causa
básica dos problemas econômicos e sociais enfrentados por Portugal em meados do século
XVIII.12 Seguindo a linha dos reformadores, se concentrou na América portuguesa e atuou na
defesa de seus principais produtos: açúcar, tabaco e ouro – ao criar as Companhias de Comércio
do Grão-Pará e Maranhão (1755) e de Pernambuco e Paraíba (1759) e das casas de inspeção.
Para as Minas Gerais, o Ministro ordenou a reforma da fiscalização da produção aurífera com
métodos rigorosos.
A preocupação com as finanças públicas era latente no consulado pombalino e é
confirmada pela criação, em 1761, do Erário Régio. Apesar de ter representado um novo
ordenamento ao sistema de administração financeira de Portugal,13 “tratou-se de um claro sinal
da natureza centralizadora da sua política e institucional”14. As medidas de Pombal se
aproximavam claramente de um processo de instauração de um regime propriamente
absolutista, com o objetivo de redirecionar Antigo Regime luso para garantir uma administração
mais eficaz da sociedade. 15
Um ímpeto reformista decididamente ilustrado ganha fôlego quando Rodrigo de Sousa
Coutinho (1745-1812) assume a Secretaria de Estado da Marinha e do Ultramar em 1796.16
Ilustrado, D. Rodrigo estudou no Colégio dos Nobres, fez viagens à França e atuou como
embaixador português na corte da Sardenha.17 O ministro foi responsável pela articulação de
um amplo programa de reformas e mudanças para Portugal, cujo objetivo era a superação das
tensões e vulnerabilidade do Império Português.18
A tributação e a boa administração do Real Erário eram de extrema importância nestas
“luminosas reformas”, já que, segundo o novo Secretário, “contribuiria muito para a bastança
e a conservação dos grandes domínios ultramarinos”.19 Por isso, ele propôs uma reforma na

12
MAXWELL, op. cit., p. 91.
13
CARDOSO & CUNHA, op. cit., p. 76.
14
CRUZ, Miguel Dantas da. Pombal e o Império Atlântico: impactos políticos da criação do Erário Régio. Tempo
– Revista do Departamento de História da UFF, Niterói, v. 20, 2014, p. 23.
15
Cf. NEVES, Guilherme Pereira das. Do império luso-brasileiro ao império do Brasil (1789-1822). Ler História,
Lisboa, vol. 27/28, 1995, p. 76 e VILLALTA, Luiz Carlos. O Brasil e a crise do Antigo Regime português (1788-
1822). Rio de Janeiro: Editora Fgv, 2016, pp. 27-28.
16
Cf. NEVES, op. cit., p. 79, 83.
17
Cf. MAXWELL, Kenneth. A Devassa da devassa: A Inconfidência Mineira, Brasil e Portugal, 1750-1808. São
Paulo: Editora Paz e Terra, 7ª. Ed., 2010, p. 321-324.
18
O conceito de vulnerabilidade é utilizado por Valentim Alexandre para definir a situação do Império Português
neste período. As tensões adivinham, principalmente, de questões externas e perturbações do sistema internacional.
Ver: ALEXANDRE, Valentim. Os Sentidos do Império: questão nacional e questão colonial na crise do Antigo
regime português. Porto: Edições Afrontamento, 1993.
19
Rodrigo de Sousa Coutinho. Plano sôbre o meio de restabelecer o crédito Público e segurar recursos para as
grandes despezas. 29 de outubro de 1799. Citado por MAXWELL, op. cit., p. 324.
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tributação com o fim do sistema de contratadores, ou seja, da prática de concessão da cobrança
de impostos mediante leilões. Além disso, a escolha dos governadores era imprescindível para
a administração eficiente do Real Erário e da justiça.20 Arno Wehling atesta a formação de uma
elite burocrática cujo objetivo era consolidar o domínio português na colônia, racionalizando
as funções públicas, defendendo as fronteiras e organizando a tributação.21
Neste programa, os domínios ultramarinos assumiram notável importância, pois
constituíam, nas palavras de d. Rodrigo, “a base da grandeza do nosso augusto trono”, uma vez
que, sem eles, Portugal “seria dentro de um breve período uma província da Espanha”22. Assim,
a segurança e defesa do patrimônio23 (isto é, das colônias) também compunham as luminosas
reformas de d. Rodrigo. Segundo Valentim Alexandre,

o estado de guera com a França, a partir de 1793, impunha a presença de uma esquadra
naval no Brasil, para defesa das suas costas, e a formação de escoltas de protecção aos
navios mercantes, que passaram a navegar agrupados em frotas (comboios).24

Isso ocorria porque os planos de D. Rodrigo de Sousa Coutinho eram marcados pela
consciência sobre a indissolubilidade do Império Português enquanto unidade política. Era
fundamental, portanto, a reciprocidade de interesses entre Brasil e Portugal que culminaria na
formação deste Império revigorado.25 Foi neste contexto que d. Fernando José de Portugal e
Castro elaborou seus comentários e observações ao Regimento dado a Roque da Costa Barreto
em 1677.

A defesa dos régios domínios e as observações de d. Fernando José de Portugal


Por vezes qualificado de frouxo, afável, piedoso e brando,26 D. Fernando possuiu uma
ascendente carreira no Império Ultramarino Português: escolhido em 1788 para o governo da

20
Cf. MAWELL, Kenneth. A geração de 1790 e a idéia do império luso-brasileiro. In: _____. Chocolate, Piratas
e outros Malandros. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1999, p. 185.
21
WEHLING, Arno. A Bahia no contexto da administração ilustrada. In: Anais do IV Congresso de História da
Bahia. Salvador: IGHB e Fundação Gregório de Matos, 2002, p. 249-263.
22
Apud MAXWELL, Kenneth. A Devassa da devassa: A Inconfidência Mineira, Brasil e Portugal, 1750-1808.
São Paulo: Editora Paz e Terra, 7ª. Ed., 2010, p. 329.
23
Cf. NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo:
HUCITEC, 9ª. Ed, 2011, p. 136-198.
24
ALEXANDRE, op. cit., p. 88-89.
25
Cf. CARDOSO, José Luís. Nas malhas do Império: a economia política e a política colonial de D. Rodrigo de
Souza Coutinho. In: CARDOSO, José Luís (org.). A economia política e os dilemas do Império luso-brasileiro
(1790-1822). Lisboa: CNCDP, 2001, p. 83
26
Dentre os contemporâneos que assim o qualifica estão: VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia do Século XVIII,
vol. II. Salvador: Itapuã, 1969, p. 423-428. Miguel Antônio de Mello, Informaçam da Bahia de Todos os Santos.
BNRJ, Divisão de Manuscritos, I-31, 21, 34, docs. 1 e 2.
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capitania-geral da Bahia, exerceu o cargo até 1801, quando se viu nomeado para vice-rei do
Brasil; de volta ao Rio de Janeiro com a Corte, em 1808, foi feito Conde e Marquês de Aguiar.
O Regimento dado a Roque da Costa Barreto de 23 de janeiro de 1677 foi o último dado
aos governadores-gerais. Segundo Rodolfo Garcia, esse documento se tornou notável após as
observações feitas pelo vice-rei Fernando José de Portugal em seus 61 capítulos.27 Destes,
dezesseis28 eram concernentes à defesa e aspectos militares, pois, como salienta Marieta de
Pinheiro Carvalho, “a inconstância política europeia refletia-se mediante o receio da metrópole
a possíveis ataques das potências beligerantes nas possessões coloniais”.29
O 3º Capítulo decretava, como primeira obrigação, a visita do governador às fortalezas
e armazéns bélicos da cidade, organizando junto ao Escrivão de Fazenda um inventário sobre
o estado das armas, corpos de tropas e artilharia para remessa ao Conselho Ultramarino. Sobre
isso, D. Fernando declarava ser “o objeto mais importante à defesa da Capitania” e que bastava
que no

novo Regimento se ordene ao Vice-Rei, que depois de tomar posse, vá pessoalmente


ver as fortalezas desta Cidade, como também a Casa das Armas, e o Real Trem,
remetendo um mapa da artilharia e mais petrechos que existem em tôdas as da
Capitania, acompanhado de uma relação dos artigos que faltam, e forem necessários
para se pôrem em bom estado, e para defesa da mesma Capitania, enviando-a pela
Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha, e Domínios Ultramarinos. 30

Esta ordem demonstra a importância que a defesa, por tantos motivos, tinha adquirido
para a Coroa. Fernando Novais,31 ao analisar a questão, exemplifica que o Marquês do Lavradio
em seu Relatório de 1779 descreveu o estado militar e as estratégias de defesa adotadas na
Capitania do Rio de Janeiro. A mesma preocupação foi demonstrada nas Instruções de 1779 ao
vice-rei Luís de Vasconcelos e Souza, em que Martinho de Melo e Castro, então Secretário de
Domínios Ultramarinos, estabelecia a necessidade de cuidar da conservação das tropas.

27
Cf. GARCIA, Rodolfo. O Regimento de Roque da Costa da Barreto e os comentários de D. Fernando José de
Portugal. In: _____. Ensaio sobre a História Política e Administrativa do Brasil (1500-1810). Rio de Janeiro: J.
Olympio; Brasília: INL, 2ª. Ed., 1975, p. 138.
28
São os capítulos 3º., 11 º., 12 º., 13 º., 14 º., 15 º., 16 º., 17 º., 18 º., 19 º., 22 º., 23 º., 31 º., 40 º., 41 º. e 51º.
29
CARVALHO, Marieta Pinheiro de. Defender e preservar os régios domínios: os reflexos da conjuntura europeia
na administração do vice-rei d. Fernando José de Portugal e Castro. In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de
História, v.1. São Paulo: ANPUH, 2011, p. 1.
30
Regimento de Roque da Costa Barreto dos Governadores Gerais. Transcrito em Marcos Carneiro de Mendonça,
Raízes da Formação Administrativa do Brasil, vol. II. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
1972, p. 748. Doravante denominado Regimento.
31
NOVAIS, op. cit., p. 138-139.
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Nas Instruções de 1800 para o vice-rei d. Fernando José de Portugal, insistia-se no
“estabelecimento de um bom, e bem sistema para a defesa externa” e na “criação de Junta
militar para formar, e discernir os Planos para a defesa da mesma capitania, e para a ereção e
conservação das Fortalezas”.32 De fato, antes de ser nomeado vice-rei do Brasil e ainda no posto
de governador da capitania da Bahia, D. Fernando ordenara a elaboração de um plano das
fortificações e fortalezas que incluíam plantas, descrição do arsenal de artilharia e munições de
cada uma das construções, que foi concluído em 1799.33 Reformou igualmente as tropas de 2ª
Linha, construiu três novas fortalezas e fomentou a construção naval.34
Passando ao Capítulo 13º, sobre as fortalezas e suas guarnições, D. Fernando afirma que
os destacamentos que as guarnecem são de tropa paga, e que somente em tempos de guerra
eram compostos por soldados milicianos. Aconselha, com particularidade, a vigilância da
Fortaleza de Santa Cruz, “por ser a chave da barra desta cidade”.35
A recomendação de vigilância dos portos e das fortalezas ainda está expressa no
Capítulo 11º, juntamente com a necessidade de aviso de semelhante prevenção aos
governadores das demais capitanias., O vice-rei comentava, acerca de tal orientação, que já não
se faziam necessárias ordens e avisos aos governadores, mas que se devia

recomendar ao Vice-Rei, na forma dele, que preste aquele socorro que lhe for
requerido, pelos mais Governadores, quanto o permitir a distância em que se acham,
e sem prejuízo da defesa desta Cidade e Capitania, que é a cabeça do Estado, e a de
maior importância.36

Dito de outro modo, D. Fernando defendia ser incumbência do vice-rei do Brasil,


situado no Rio de Janeiro, o socorro e ajuda às demais capitanias, caso fosse necessário, sem
prejuízo à cidade. Em complemento, no Capítulo 12º, ele declara que o estado de defesa e a
manutenção das fortalezas cabia a cada um dos governadores das capitanias.
O assunto da jurisdição e autoridade entre governo geral e governos das capitanias era
tratado no Capítulo 39º. D. Fernando, após expor e examinar as ordens e Cartas Régias, concluía
que algumas matérias “deixaram de lhe ficar sujeitas [ao governador geral], quanto à sua

32
Instruções para D. Fernando José de Portugal, nomeado Vice Rei e Capitão Geral de Mar e Terra do Estado
do Brasil. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), cód. 575, ff. 94-111 apud NOVAIS, op. cit., p. 140.
33
Plano da Fortificação que se acha na Capitania da Bahia feito por ordem do Ilustrissimo, e Excelentíssimo
Senhor D. Fernando Jozê de Portugal Governador, e Capitão General da mesma Capitania No anno de 1799.
BNRJ, Divisão de Manuscritos, 03, 3, 015.
34
Cf. WEHLING, op. cit., p. 261.
35
Regimento, p. 764.
36
Regimento, p. 762.
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economia e governo interior [das capitanias]; porém, não naquelas cousas que respeitarem
principalmente à defesa geral do Estado”.37 Ainda no que tangia à jurisdição do governo geral,
há a questão do provimento dos postos militares. Pelo Decreto de 20 de outubro de 1790,
nenhum oficial militar de qualquer graduação podia ser efetivado sem autorização régia e
proibiam-se os provimentos interinos. Contudo, D. Fernando defende que algumas funções
imprescindíveis aos regimentos militares, como a de Capelão e Cirurgião-mor, pudessem ser
providas pelos governadores, enquanto aguardavam a confirmação régia. Os comandantes das
fortalezas também deviam se providos pelas mesmas razões, enquanto não se recebesse a Carta
Patente, uma vez que o citado decreto compreendia somente oficiais dos corpos de linha.
Percebe-se então a racional percepção de D. Fernando de que determinados postos não
poderiam aguardar o Real provimento e deveriam ser escolhidos pelos governadores. Esse não
era um assunto de menor importância, visto que

a dinâmica administrativa regularmente deixava vagos muitos dos cargos essenciais


para a gestão do território ultramarino, fazendo com que a atuação dos governos
ultramarinos no provimento da serventia dos diversos ofícios da administração fosse
recorrente.38

O contrabando era uma questão fundamental para a preservação dos régios domínios na
América. Nas já citadas Instruções de 1800 ao vice-rei D. Fernando José de Portugal,
recomendava-se

muito eficazmente a observância das sobreditas minhas Reais Ordens que não
consintas que navios estrangeiros jamais entrem nos portos dessa Capitania, com o
falso pretexto de arribadas forçadas a comercializar com a notória infração das leis,
prejudicando aos interesses do comércio colonial.39

Embora o Capítulo 11º do Regimento de 1677 expresse que a defesa dos portos deve
receber do Governador “muito cuidado e vigilância”40, é somente nos capítulos 48º, 49º e 50º
que o comércio com nações estrangeiras recebe maior atenção. Após realizar uma exposição
cronológica de todas as ordens anteriores, d. Fernando destaca que uma das mais essenciais é a
Provisão em forma de Lei de 8 de fevereiro de 1711, na qual se recomenda aos Governadores
que não admitam em seus portos navios de nações estrangeiras que não tivessem Tratados com

37
Regimento, p. 806.
38
COSENTINO, op. cit., p. 531.
39
Instruções para D. Fernando José de Portugal, nomeado Vice Rei e Capitão Geral de Mar e Terra do Estado
do Brasil apud CARVALHO, op. cit., p. 7.
40
Regimento, p. 762.
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Portugal e a ordem de que, ao fim da administração de cada um dos governadores-gerais e vice-
reis, se fizesse uma devassa da execução desta ordem.
As escalas não programadas de navios estrangeiros traziam grandes problemas e
precisavam ser tratadas com cuidado. D. Fernando propunha que, no caso de capitães de navios
sem dinheiro para arcar com despesas de reabastecimento e reparos, estes possam vender
gêneros, como já disposto em alvarás anteriores, unicamente para satisfazer esse fim.
Recomenda-se ao vice-rei e aos demais governadores que procedam com extrema atenção para
evitar fraudes e para que não se venda mais do que a porção necessária para o pagamento das
despesas. Por fim, reconhece que “tôdas estas ordens apertadas são dirigidas a fim de se evitar
o contrabando, que os estrangeiros procuram fazer nos portos do Brasil, com arribadas afetadas
e buscadas de propósito”.41 Afinal,

o comércio que as outras nações, procuram fazer nos portos do Brasil, principalmente
os americanos e inglêses, é sem dúvida muito prejudicial; porque introduzem
fazendas, que tôdas são proibidas, e com grande prejuízo das nossas fábricas 42.

***

Encontra-se nos comentários de Fernando José de Portugal ao Regimento de 1677 uma


grande preocupação com a organização militar da colônia em um momento em que a ideia de
um Império luso-brasileiro ganha vulto, oriunda não

de uma crise econômica do sistema colonial, mas, sim, de uma arguta percepção,
propiciada pelas Luzes, das novas condições políticas e mentais da segunda metade
do XVIII, aguçada pela independência das treze colônias inglesas da América e,
posteriormente, pela Revolução Francesa, no seio de uma reduzida elite
governamental, liderada por Rodrigo de Souza Coutinho 43.

Eram homens ilustrados que conseguiam enxergar a realidade, propor soluções e alterá-
la com o objetivo fundamental de manter a integridade deste poderoso Império luso-brasileiro.
Possível integrante desta elite governamental capitaneada por d. Rodrigo, Fernando José de
Portugal e Castro estava imerso neste ambiente plasmado pela Ilustração luso-brasileira de fins
do século XVIII e não deixou de ser afetado por ele. Suas observações ao Regimento de 1677

41
Regimento, p. 832.
42
Regimento, p. 834.
43
Cf. NEVES, Guilherme Pereira das. Como um fio de Ariadne no intrincado labirinto do mundo: a ideia do
império luso-brasileiro em Pernambuco (1800-1822). Ler História, Lisboa, nº 39, 2000, p. 56.
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estão permeadas por uma racionalidade típica das Luzes e transformaram o Regimento de 1677
no “melhor código administrativo comentado que tivemos no Brasil Colonial”.44

Referências Bibliográficas

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44
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Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 221-231 | www.ars.historia.ufrj.br 231
Entrevista
Entrevista com a historiadora Érika Dias
Entrevistadoras:
Maria Beatriz Gomes Bellens Porto (Doutoranda-PPGHIS/UFRJ)
mbporto@gmail.com
Bárbara de Almeida Guimarães (Mestranda-PPGHIS/UFRJ)1
balmeidag@gmail.com

Apresentação: Érika Simone de Almeida Carlos Dias é licenciada e mestre em História pela
Universidade Federal de Pernambuco (2001) e doutora História Moderna pela Universidade
Nova de Lisboa (2014). Foi pesquisadora e supervisora do Projeto Resgate Barão do Rio
Branco de 1998 a 2013, coordenando várias equipes responsáveis pela organização,
catalogação e indexação dos documentos do Brasil colonial (séculos XVI-XIXI) do Arquivo
Histórico Ultramarino, Lisboa. Atualmente é gerente editorial da Revista Ensaio- avaliação e
políticas públicas em Educação - Fundação Cesgranrio e pesquisadora correspondente da
Universidade Nova Lisboa.

Ars Histórica: Gostaríamos de agradecer sua participação, Érika Dias. O dossiê temático
da 13ª edição da Revista Ars Historica trata do Império Português, séculos (XVI- XIX) e
por isso viemos conversar sobre o Projeto Resgate, sua trajetória acadêmica e pessoal.
Para começar, como foi sua formação escolar e seu encontro com a história?
Érika Dias: Eu sempre estudei em escola pública, todo o fundamental, depois fiz escola
técnica, ensino médio. Meu primeiro vestibular foi para Engenharia Civil na Universidade
Estadual (UPE), e para a Federal de Pernambuco (UFPE), como primeira opção História, e
segunda Direito, mas eu queria fazer História. Entrei na licenciatura da UFPE e mais ou menos
desde o quarto período comecei a ler os documentos coloniais. A Federal de Pernambuco tem
um acervo grande, e foram o Evaldo Cabral de Mello e o José Antônio Gonçalves de Mello,
que pesquisaram muito fora do Brasil, que doaram tudo para o Laboratório de Pesquisa e Ensino
em História (LAPEH) da UFPE. Tinha muito documento que era microfilmado e que eles
imprimiram em papel de fotografia direto do microfilme. Na disciplina de Paleografia me
destaquei porque eu tinha muita facilidade para ler os documentos. Logo depois, houve a prova

1
A entrevista foi feita por Maria Beatriz Porto e Bárbara Guimarães dia 26/10/2016 a partir de perguntas
elaboradas pelo Comitê Editorial. E-mail: revistaarshistorica@gmail.com

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para monitoria e eu passei, sendo monitora da disciplina até o mestrado, sob supervisão da
professora Virginia Almoedo de Assis, uma professora e paleógrafa excelente, de “mão cheia”,
como se diz no Nordeste. Foi aí que comecei de fato a amar trabalhar com a documentação
manuscrita colonial.
No início do meu mestrado, 1997, foi quando o Projeto Resgate iniciou o período áureo.
O Minc precisava de pesquisadores que tivessem experiência com leitura de documentos
coloniais para poder “fechar”, concluir, capitanias grandes como Pernambuco. O Rio de Janeiro
nem tinha iniciado, e a Bahia estava no fim. O Regaste já tinha começado em 1995 e eu entrei
em 1998 para terminar PE. Pernambuco estava na metade da catalogação, com quase 300
caixas. A documentação de Pernambuco no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) estava toda
dividida em 290 caixas, que poderia ser complementada com mais arquivos em Portugal, mas
era evidente que o AHU era o arquivo em que a maior parte da documentação referente às
colônias portuguesas foi guardada. Em 1931, os portugueses escolheram o Palácio de Ega 2 e
juntaram toda essa documentação das colônias em um único acervo e guardaram lá. No AHU
tem Brasil, Índia, África e também documentação que eles chamam de “do Reino”, mas que
tem a ver com as colônias. É uma documentação que vai do século XIV e XV até o século XX,
porque ainda pega a Secretaria de Estado da Marinha Ultramar e sua relação com a África, que
vai até cerca de 1970 quando ainda era portuguesa. Portanto, é um acervo com milhares de
documentos, sendo que quase metade do que está no AHU, do chamado período colonial, é
referente ao Brasil. Era um arquivo que era parada oficial dos pesquisadores brasileiros. Uma
parte da documentação do AHU você encontra no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
copiada ainda no século XIX. Por isso que o projeto também se chama Projeto Barão do Rio
Branco, porque foi justamente o Barão do Rio Branco, como Ministro das relações exteriores,
que mandou poetas, pesquisadores, e outras pessoas para os arquivos portugueses para copiar
essa documentação e trazer para cá. João Cabral de Melo e Neto foi um dos que, já no século
XX, copiou documentos sobre o Brasil e trouxe para o Brasil
O Projeto Resgate nasce disso: da ideia original de trazer essa memória que está fora do
Brasil. Essa ideia nasceu no século XIX, mas só deu frutos em 1959, por causa da ‘briga’ da
França com as ex-colônias africanas que queriam entrar à força nos arquivos franceses e levar

2
Também conhecido como Palácio do Pátio do Saldanha e Palácio dos Condes da Ega, é um imóvel localizado na
freguesia de Alcântara, em Lisboa. A construção data do século XVI e desde então passou pelas mãos da família
Saldanha, sendo posteriormente um hospital das trocas anglo-lusas e usado ainda como quartel general durante o
domínio britânico sobre Portugal. A construção é adquirida pelo Estado em 1919 e hoje funciona como Arquivo
Histórico Ultramarino.
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a documentação de seus países. Mas a França não queria permitir, e essa querela acabou sendo
resolvida pela Unesco em 1974, com a resolução 42123. Isso chegou a virar acordo para que
países com uma memória comum pudessem facilitar e democratizar o acesso às fontes à história
de um país que estava guardada em outro. Mas, só no final dos anos 1980 que o Brasil conseguiu
um acordo com Portugal e somente em 1992, a primeira catalogação aconteceu, com uma
equipe portuguesa, catalogando a documentação de Minas Gerais. O Resgate veio com chancela
do Ministério da Cultura, na pessoa da assessora especial, funcionária da FBN, Esther Caldas
Bertoletti, que muito lutou para que o Resgate conseguisse cumprir o objetivo de tratar,
microfilmar e levar a documentação para o Brasil. Quando eu cheguei, já tinham equipes
brasileiras, havia pelo menos 15 ou 20 pesquisadores e professores brasileiros no AHU, foram
mais de 120 pesquisadores ao todo que participaram do Resgate, entre brasileiros e portugueses,
porque eram muitas capitanias. Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, cada uma tinha cerca de
300 caixas4 e cada caixa tinha pelo menos 70 documentos principais5. Muitas vezes cada
documento principal tinha 5 anexos, então, o volume documental era muito grande. E, em
capitanias como Pernambuco, por exemplo, só o século XVII estava em caixas. E esse século
não representava nem 10 caixas. O rest eram maços, pilhas de documentos, mais ou menos
arrumados cronologicamente e amarrados. Ou seja, foi necessário abrir pilha por pilha, ler os
documentos, e juntar os anexos que, por vezes, estavam espalhados. Por exemplo, o ofício do
governador encaminhando o mapa da carga do navio de São Joao da Boaventura, de 13 de julho
de 1735, e o seu recibo, necessariamente não estavam juntos do oficio principal. Esses recibos
estavam separados, a gente tinha que ler, juntar os anexos desses processos6. De uma forma

3
“A proposta de colaboração bilateral Portugal-Brasil materializou-se institucionalmente, em 1995, por meio de
protocolo assinado pelas autoridades dos dois países, no âmbito da Comissão Bilateral Luso-Brasileira de
Salvaguarda e Divulgação do Patrimônio Documental (COLUSO), estabelecendo como objetivo principal
disponibilizar reciprocamente documentos históricos relativos à História dos dois países. Esse acordo teve entre
seus fundamentos a resolução no 4212, de 1974, da UNESCO, que convidou seus Estados membros “a examinar
favoravelmente a possibilidade de transferir as informações contidas nos documentos provenientes de arquivos
constituídos no território de outros países ou se referindo à sua História”. Considerava “patrimônio comum” os
documentos do passado de países ligados anteriormente pelos laços de colonialismo”. Disponível em
<http://www.cmd.unb.br/pdf/Historia_Digital_Ano_2_N_2_2009.pdf >Acesso em 14/12/16
4
O Arquivo Histórico Ultramarino guarda os documentos soltos ou avulsos em caixas.
5
O arquivo tem mais de 4200 caixas de documentação avulsa, solta. Destas o Resgate organizou, catalogou e
microfilmou 2422. Mas se falarmos apenas em organizar e catalogar este número sobe em mais 250 caixas (Reino
e Brasil Diversos) que não chegaram a ser microfilmadas. Dos 2133 códices, o Resgate microfilmou 833. Juntando
o número de caixas e códices podemos inferir que cerca de 51 % da documentação do AHU foi tratada e
microfilmada pelas equipes do Projeto Resgate. Ver “Projeto Resgate: ampliando os horizontes da história luso-
brasileira”. Disponível em: <https://www.rbhcs.com/rbhcs/article/view/85/84> Acesso em 14/12/16.
6
Para entender o tipo de documentação trabalhada no Projeto Resgate e quais eram as tipologias mais recorrentes
ver “Informação e memória: o Projeto Resgate e a administração do Brasil colonial no século XVIII”. Disponível
em < http://www.repositorios.ufpe.br/revistas/index.php/IRIS/article/view/10> Acesso em 14/12/16.
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geral o que fizemos foi ler, organizar a documentação e formar os processos, estabelecendo o
que era o documento principal e o que era anexo a este documento principal. Para isso tivemos
de aprender o que eram as tipologias documentais e os arquivistas do Arquivo Histórico
Ultramarino foram sensacionais quanto a isso. Bem como a professora Heloísa Liberalli
Bellotto da USP. Aprendemos tudo de tipologias com José Sintra Martinheira, arquivista sênior
do AHU, e com a professora Heloísa.

AH: E a conservação desses documentos?


ED: Excelente! Porque o clima lá não é tão úmido, não é tropical como o do Brasil. E o arquivo,
apesar de ser um prédio do século XVII que precisava de muitas reformas e essa documentação
ter ido para lá em 1931, era bem acondicionada. Não era como os nossos arquivos aqui, porque
eles não tinham o problema da umidade constante, com o clima tropical que nós temos, mofo.
Eles não sofrem desses problemas, os problemas são de outra ordem. No AHU eu não vi a
documentação se perder [por causa da umidade], mas vi ter sérios problemas porque choveu
muito e, na parte em que os documentos estavam, pingou e molhou tudo. Mas não é uma coisa
constante, principalmente depois da reforma de 2005.

AH: O arquivo era aberto antes da década de 1980 para os pesquisadores brasileiros?
ED: Completamente. A questão é que não estava organizado. Porque antes de 1930, quando
essa documentação estava em outro setor, o Castro e Almeida foi pago pelo governo brasileiro
para fazer uma espécie de catálogo da documentação. Ele fez Bahia e Rio de Janeiro, mas tirou
apenas o suprassumo, fez as séries dele, e vendeu o catálogo. Porque era um mundo de papeis,
então, imagina você estudar a Câmara do RJ, cuja documentação estava toda misturada e eram
milhares de documentos, são 300 caixas, cada caixa você multiplica por 70. Era muita coisa. O
catálogo do Rio de Janeiro dele praticamente é composto de consultas, alguns anexos da
consulta e, às vezes, que nem eram da consulta, porque podemos perceber que alguns nem
fazem parte do anexo principal. Por exemplo, você imagina estudar a câmara do Rio de Janeiro
no ano de 1770, tinha que abrir sete caixas! E não tinha número de documento, catálogo, você
tinha que ler um por um para você saber qual era sobre a Câmara e uma caixa podia conter até
120 documentos. Você tinha que ler os 120 ou pelo menos abrir os 120 até achar o que fosse
referente à sua pesquisa. Era brutal a pesquisa. Estava aberto, mas não existia um catálogo pelo
qual os pesquisadores pudessem se guiar. Então, um dos grandes méritos do Resgate e que
beneficiou muito o AHU foi justamente organizar esta documentação.
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Em 1930, o AHU, após deliberações superiores, resolveu fazer a divisão geográfica, o
que de certa forma “destruiu” a forma como essas séries documentais estavam não só planejadas
como organizadas. Mas facilitou a vida do pesquisador. Por exemplo, isso não acontece na
Torre do Tombo. Dificulta a vida do pesquisador? Dificulta, mas também por outro lado quem
pesquisa inquisição consegue ter uma noção de como estes processos estavam. Do mesmo jeito
que eles estavam, eles estão. É o mesmo número que foi dado pelo inquisidor. E está tudo lá.
Aquilo estando descrito, você consegue achar seu processo. Com esse desmembramento das
séries de forma geográfica, isso se destruiu. Porque numa época em que São Paulo fazia parte
de Minas, eles [os atuais Estados] estavam juntos na documentação. Como é que você separa
esse documento? Gomes Freire7 assina como governador das Minas Gerais e São Paulo. Ele era
governador de meio mundo! Se o critério é geográfico, você põe que ele está em Sabará ou em
Ouro Preto, mas ele está falando de problemas do Rio de Janeiro. Então qual é o critério que
você usa? Temático ou geográfico? Porque se for geográfico, e ele está escrevendo de uma vila
lá de Minas, o documento fica em Minas. Mas a discussão dele é a “briga” do juiz de fora com
a Câmara de uma vila do Rio de Janeiro. Então não tem lógica aquele documento ficar
catalogado em Minas Gerais, mas você tinha que ter um critério geral. Então esse critério
geográfico acabou fazendo com que esses erros acontecessem. Em alguns casos, como cada
capitania foi catalogada e organizada em parte por professores e pesquisadores daquela
capitania, aqueles professores muitas vezes tiraram aquela documentação dali porque
entendiam daquilo. Mas só quando fomos fazendo a organização, que a gente descobriu esse
tipo de problema. Então nesse aspecto, essa confusão, essa forma de desmembrar, facilitou
porque, se você pesquisa o Rio, é evidente que é muito mais fácil você chegar no AHU ou hoje
no Projeto Resgate online e olhar, abrir a série Rio de Janeiro, e olhar aquilo que quer, porque
diz respeito ao seu projeto de pesquisa. É muito mais fácil do que “catar” em milhares de cartas.
Mas se por esse lado, facilitou, por outro lado bagunçou, porque existiram casos em que você
não tem como dizer de onde era aquele documento e em qual série você ia localizar ele. Por
isso que o próprio arquivo criou uma série chamada Brasil Geral ou Brasil Generalidades,
documentos que diziam respeito a mais de uma localidade do Brasil ou falavam do governador-
geral do Brasil ou do vice-rei e faziam uma espécie de “apanhado” do Brasil inteiro8. Então, foi

7
António Gomes Freire de Andrade (1685-1763) foi um militar e administrador colonial português, intitulado
Conde de Bobadela. Foi governador das capitanias do Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso e sul
do Brasil.
8
Por exemplo:
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calhar na série Brasil Geral, que é uma série totalmente artificial, porque dentro do Império
Português não existia uma série Brasil Geral. Tinha uma série Índia, África, Brasil, mas não
tinha uma chamada de Brasil Geral. E passou a existir a partir de 1931 por isso, porque eram
documentos que geograficamente você não tinha como localizá-lo corretamente em canto
nenhum.

AH: Os arquivos costumam ser organizados por arquivistas e no caso do Projeto Resgate
foi feito por historiadores. Como você vê esta relação de organização do arquivo pelo
historiador?
ED: Existe de fato essa diferença. É necessário que os pesquisadores brasileiros e professores
aprendam um pouco a forma como os arquivos se organizam. Porque a gente na faculdade não
tem noção de diplomática. Você tem que entender os tipos documentais, porque senão não tem
como fazer o catálogo. As coisas mais simples são as cartas, os ofícios, as consultas... Mas, por
exemplo, se você não sabe o que é um bilhete, ou o que é um escrito, você não vai entender,
você vai chamar aquilo de carta e não é. Então, também foi necessário aprender um pouco com
os arquivistas, Heloísa Bellotto foi fundamental para entendermos as tipologias documentais,
ou seja, o que era aquele documento e porque ele era considerado um documento principal. O
historiador tem muita dificuldade nisso, se as vezes perde a documentação que ele está tentando
achar, ele não sabe direito onde olhar isso, porque acha que toda ordem régia é ordem, e não é.
Existem as leis, existem as cartas régias, existem os alvarás, existem os decretos. Toda ordem
é régia, tudo é ordem régia, mas existem códices específicos para cada coisa. Foi o Sintra,
arquivista do AHU quem me ensinou a diferença entre os diferentes tipos de ordens régias e
tantas outras coisas sobre a documentação. Todo pesquisador do Resgate é grato a ele.
Em determinados arquivos, o que é oficial é oficio, e o que é particular é carta. No AHU
é o contrário: carta é ao rei, ela é oficial; oficio não é ao rei, o ofício pode ser entre autoridades
subalternas, mas de mesmo escalão (digamos assim, hierarquicamente falando), mas também
pode ser algo um pouco mais particular. Muitas vezes os governadores escreviam para os

[post. 1682, Novembro, 6, Lisboa] ALVARÁ do príncipe regente [D. Pedro], proibindo a partir daquele momento
a construção de novos engenhos de açúcar no Brasil, sem licença dos governadores das capitanias. AHU-Brasil-
Geral.
AHU_CU_003, Cx. 1, D. 94.
Como se tratava de engenhos de nenhuma capitania específica, o critério geográfico não permitia pôr este alvará
na Bahia, Pernambuco ou Rio de Janeiro. Para esse tipo de documentação foi criada a série Brasil-Geral ou
generalidades, que não existia originalmente no século XVII, mas que ajudou os arquivistas do AHU a guardarem
os documentos seguindo a lógica do critério geográfico.
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secretários de estado em forma de ofício. Não tem outra forma de escrever. Não é carta. É
ofício. E escreviam ao rei em forma de carta. Então a gente tinha que aprender a diferenciar a
carta do ofício. E como é que a gente fazia isso? Pelos remetentes e pelos destinatários.
Dependendo de a quem se destinava, era possível dizer se aquilo era carta ou ofício. A mesma
coisa com aviso e escrito.

AH: O Projeto Resgate começou com as caixas e trabalhou com os códices também?
ED: Também. São mais de dois mil códices9. Costumamos dizer que a documentação do AHU
está dividida em dois grandes fundos: O Conselho Ultramarino e a Secretaria de Estado da
Marinha e Ultramar (SEMU), o que não é verdade. De forma institucional, e para se entender,
de forma mais geral, é isso. Mas dentro do Conselho Ultramarino tem vários outros fundos: tem
Conselho da Índia, Casa da Índia, Casa da Fazenda, é uma documentação muito misturada.
Dentro dos papéis do que se chama Reino, tem documentação de secretários de outras
secretarias. Essa documentação do AHU está feita de duas formas: é a documentação avulsa,
ou seja, solta, que está nas caixas; e a documentação que está em livros de registros, livros
chamados de códice, mas na verdade não é um códice, porque são cópias de ordens, cópias de
ofícios, cópias de decretos, cópias de consultas, que estão no livro de registro, e que no AHU
convencionou-se chamar de códice10. São 2.133 códices que tem o AHU e de caixas são quase
4.500 caixas. A SEMU vai do final do século XVI, reformada em 1736, e fica até 1833, e
trabalha junto com o Conselho Ultramarino a partir de 1760 mais ou menos, toma quase todas

9
Códices são documentos organizados e costurados (cosidos) em forma de livro com capa de couro. Podem ser
códices de consultas, de alvarás, de provisões – como no caso do Conselho Ultramarino - ou mesmo de avisos e
mandados - no caso das Secretarias de Estado. Além de temáticos no que respeita ao tipo documental (tipológicos)
possuem recorte cronológico, no caso das consultas e avisos também possuem recorte geográficos, isto se
estivermos falando de consultas do serviço real. Os códices de consultas do serviço real o critério é cronológico e
geográfico. Há livros de consultas do serviço real para Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Grão-
Pará e Maranhão e outras partes do império (Angola, Cabo Verde, Índia, etc.). Como dissemos, para estas consultas
o critério é geográfico e cronológico. Por exemplo: consultas de Pernambuco códice 265 (1673-1712), códice 266
(1712-1749), códice 267 (1749-1807). No caso das consultas mais gerais, como por exemplo, consultas de partes,
consultas mistas, consultas de mercês gerais, o critério não é geográfico, pois engloba várias partes do império
português. Neste caso, os livros têm anos bem definidos, e o pesquisador só vai achar um assunto ou uma pessoa
se souber o período no qual o fato aconteceu ou o nome completo do requerente. O critério para estes livros de
consultas é o cronológico. Por exemplo: Consultas mistas, códice 13 diz respeito aos anos de 1643 até 1646, o
códice 14 vai de 1647 até junho de 1652 e assim em diante. No livro 13, no fólio 398 há uma consulta sobre o
pedido de um vigário do Maranhão, já no fólio 398v (verso) a consulta é sobre os procedimentos do governador
de Cabo Verde. Isto é, o critério não é geográfico e sim cronológico.
10
Códice no sentido estrito da palavra é um livro manuscrito. Os códices do AHU são na verdade centenas de
cópias de documentos manuscritos soltos que foram cosidos em forma de livro e encadernados em forma de códice.
O conselho juntou centenas de consultas, cada um dizendo respeito a um assunto, arrumou cronologicamente e
encadernou. Muitas vezes o rei passava a resolução na consulta (avulsa, solta) e também naquela que foi passada
a limpo e encadernada em forma de códice junto com outras.
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as prerrogativas do Conselho Ultramarino, portanto essa documentação coabita nas mesmas
caixas.

AH: Você acha que deveria ter sido mantida a organização original, em vez da geográfica?
ED: Ela era mais complicada, mas fazia mais sentido. Na lógica, se a documentação tivesse
toda organizada, faria mais sentido, porque você também não destruiria a forma como aquele
arquivo foi criado. Porque quando ele era uma instituição do poder central, ele tinha toda uma
organização e toda uma lógica. E no momento em que aquela documentação foi desmembrada
e foi separada, ela perdeu esse fio condutor, e meio que foi recriado artificialmente, entendeu?
Os códices não foram desmembrados, você pega um livro da Secretaria de Estado da Marinha
e Ultramar, de ordens e avisos, e tem ele de 1750 a 1790 e consegue entender a lógica.

AH: Érika, como você percebe a importância do Projeto Resgate para a historiografia
sobre o Império Português?
ED: Então... Tanto para aqui quanto para lá. Os historiadores portugueses de certa forma
descobriram de novo o Brasil, porque em Portugal se estuda muito a Índia, é o tema mais
estudado. O Brasil sempre foi muito deixado de lado, porque tinha isso: a documentação não
estava nada tratada, então a pessoa tinha que ficar catando. A partir do Projeto Resgate, a
Universidade de Lisboa, por exemplo, passou a ter um mestrado de História do Brasil, e os
mestrados e doutorados de História dos Descobrimentos passaram a de fato ter mais trabalhos,
mais alunos a partir de 2003, mais precisamente a partir de 2006.
O AHU também microfilmava a documentação, mas, para preservar fazia-se primeiro o
microfilme, e se digitalizava não o documento, mas o microfilme. O acordo Brasil-Portugal era
para o Brasil ter uma cópia do documento, mas também deixar uma cópia para o arquivo. Nesse
aspecto não saiu um euro da instituição portuguesa. Claro que tivemos ajuda portuguesa. Teve
uma época em que o Projeto Resgate recebeu apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. Eu
mesma tive bolsa dessa fundação. O Resgate recebeu apoio da Comissão Nacional para a
comemoração dos Descobrimentos Portugueses. Em 1998, essa comissão estava a mil porque
as comemorações eram em 2000. Houve muitas bolsas e apoios monetários, então microfilmou-
se essa documentação porque nós tínhamos interesse e era esse o grande ponto da questão. Por
isso, entre outras razões, que de 1985 até 1992, o projeto não saiu do papel, porque
compreensivelmente os portugueses não queriam deixar que a documentação saísse de lá, pois
diminuiria (e diminuiu) o número de brasileiros pesquisadores no AHU. Os microfilmes foram
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dados aos arquivos. Todos os arquivos dos estados receberam uma cópia dos microfilmes do
seu Estado. E todas as universidades, federais sobretudo, com departamento de História
receberam uma caixa de cds (cerca de 300 cds).

AH: A Biblioteca Nacional tem todo o material?


ED: A Biblioteca nacional tem tudo! É a única instituição brasileira que tem tudo. Os
microfilmes, os CDs e agora estão disponíveis pelo site da BN os documentos digitalizados. As
universidades federais que tinham departamento de História também receberam um conjunto
do que estava pronto, que era o primeiro conjunto de CDs do Resgate.

AH: E qual é a situação atual do projeto? Ele se encerrou?


ED: O Projeto em 2014 só éramos eu e outra pesquisadora. O AHU nos dava todo o apoio
possível para que continuássemos o trabalho. Quando vim para cá,11 o Projeto ficou suspenso.
Estávamos até terminando o “Brasil diversos”, mas essa série não foi concluída e o projeto
passou por problemas de orçamento e liberação de verbas. Verba tinha, mas não como chegar
em Portugal, nesse processo de deixar o projeto todo legal, digamos assim, registrado, no
Ministério da Cultura, não deu tempo de acabar o “Brasil diversos”. Outra coisa que o Resgate
fez que não diz respeito especificamente ao Brasil, mas que tem muita documentação sobre o
Brasil é a “Série Reino”, com cerca de 500 caixas. Catalogamos mais de 200, não foi
microfilmado, e pelo menos 30% dessa documentação diz respeito ao Brasil. Com o Resgate o
número de trabalhos sobre colônias cresceu muito. As pessoas tinham muito interesse
antigamente em fazer História Contemporânea porque tinha pouca fonte para estudar colônia.
Estados como o Rio de Janeiro ainda são privilegiados porque têm o Arquivo da Cúria, o
Arquivo da Cidade, a Biblioteca Nacional, o Instituto Histórico... Minas também tem muito
arquivo paroquial. Mas Pernambuco não tem quase nada de arquivo paroquial. A documentação
do arquivo Jordão Emerenciano é basicamente a partir do século XIX. Alguma coisa do século
XVII e XVIII que tinha era doada por José Antônio Goncalves de Melo, das pesquisas que ele
fez fora e doou para a universidade. Agora você imagine Tocantins, Goiás, Rio Branco, o Norte
do Brasil... Era quase impossível ter dezenas de dissertações sobre história colonial da sua terra,
só quem podia fazer era quem viajava para Europa e não tinham tantas bolsas assim na década
de 1990.

11
Érika reside atualmente em Niterói, RJ.
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A maior série do AHU é Brasil. 50% das caixas do AHU são do Brasil, 4279 caixas. O
Resgate catalogou e microfilmou 2422. Se você juntar isso aos códices, cerca de 51% do
arquivo foi microfilmado e organizado pelo Resgate. A documentação do Brasil era de fato a
maior, em termos de quantidade. As segundas maiores são Índia e África. Acontece que o AHU
fez um projeto semelhante para tratar da documentação da África. Só que, coordenado pelo
AHU, intitulado: Projeto África Atlântica. Também fiz parte deste projeto, como pesquisadora
do projeto na catalogação de Angola e séries menores. Fizeram só catalogação, não havia
recursos para digitalização, e hoje a catalogação está disponível na página do AHU12. Eles não
concluíram porque acabaram os recursos, mas conseguiram chegar até meados do século XVIII,
início do período pombalino. Mas o pesquisador pode chegar lá em Portugal, no AHU, hoje e
aquilo que não foi microfilmado, pode ser fotografado. Ele consegue fazer a pesquisa aqui do
Brasil, mas acesso ao documento só presencialmente no arquivo. Fazer a pesquisa de cá já
facilita muito a vida do pesquisador

AH: Você vê alguma diferença entre trabalhar com documentos físicos e digitais? Pela
sua experiência com paleografia e projetos. Tanto o suporte, vantagens e desvantagens...
ED: Com certeza. Não tem historiador que diga que vai gostar de ler o documento no suporte
digital. É horrível. É prático se não tem outro. Mas não tem comparação você pegar no
documento. E nós que somos historiadores adoramos pegar no papel. Isso é importante porque
eu tive que datar muitos documentos pelo tamanho, tipo, cor e marca d’água do papel. Tinham
centenas dos documentos do Rio de Janeiro e do Brasil Geral e do Reino em que eu tinha que
pegar para saber pela textura do papel, pela letra, pela cor da letra para saber se aquele
documento era da década de 1680 e não de 1710. Porque os conselheiros que despachavam
eram os mesmos. Mas como eu poderia colocar lá na capilha que aquele documento era do
século XVII e não do XVIII? Pela marca d’água e tamanho do papel. Os documentos crescem
no século XVII e XVIII. No século XVII o documento cabe dentro da capilha13. Os do século

12
Ver os códices na página do extinto IICT (Instituto de Investigação Científica Tropical). Hoje o AHU está
debaixo da alçada dos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, mas a página continua a mesma: Disponível em
<http://actd.iict.pt/collection/actd:CUF002>
Acesso em 14/12/16
13
Uma espécie de capa de papelão. Toda a documentação do AHU está encapilhada, ou quase toda a
documentação. Os documentos avulsos são acondicionados nas caixas, mas para separar um processo do outro,
um documento principal do outro, utilizamos estas capas (capilhas), feitas especialmente para este fim. Há o nome
do Arquivo na parte de cima e depois o da subsérie (capitania ou parte do império), há espaço para botar o ano, o
mês, dia e o local. E há espaço para se escrever a ementa ou resumo do processo que está dentro da capilha,
explicando ao leitor o que é o documento principal e quantos ou quais são os seus anexos. A padronização não foi
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XVIII passam da capilha. O estilo de letra muda também. A partir de tanto tempo pesquisando
as mesmas pessoas você consegue reconhecer a letra. Eu sabia exatamente quem tinha escrito
mesmo sem serem assinado. Certas nuances, detalhes sobre os documentos, só vêm do papel,
cheiro de documento... [risos]. Agora, é evidente que se você não tem o documento em papel,
você tem acesso ao digital é ótimo, porque dependendo da qualidade da digitalização você
consegue imprimir aquilo e ler. Muitas vezes eu imprimi para poder ler, preferia baixar e
imprimir, e ainda mais quem teve acesso aos CDs, guardou isso em HD e pode imprimir, baixar
aquilo e ler no papel, se acha melhor, porque é possível fazer isso.

AH: Erika, fala um pouco da sua pesquisa no mestrado e no doutorado e sobre a relação
com a historiografia do Império Português, como ela muda depois do Projeto Resgate?
ED: Eu estava terminando o mestrado quando eu fui para o Projeto Resgate e chegando lá
mudei minha pesquisa, porque eu fui trabalhar com as caixas de Pernambuco no século XVIII,
e me deparei com os problemas da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, que é uma
Companhia pombalina que estava em processo de extinção e tinha uma briga muito grande
entre os moradores de Pernambuco e a Companhia. No meu mestrado, trabalhei com essa
questão, mas a gente ainda estava muito imbuído daquela perspectiva da USP, de Império
Português, de política colonial, de sistema colonial, de Fernando Novaes e minha dissertação
de mestrado é um pouco nessa linha, porque eu usei muito José Ribeiro Junior, mercantilismo,
e meio que eu tinha acabado de chegar. Eu cheguei em 1998 e em 2000 tinha que ter escrito a
minha dissertação. Meados de 2001 eu defendi, então eu pouco dialoguei com as fontes e com
a historiografia portuguesas, que é muito ligada a historiografia daqui, que é feita hoje no Brasil.
Só para fazer meu projeto de doutorado que eu fui ler a fundo Hespanha14, Nuno Gonçalo

perfeita, algumas capitanias contaram os anexos outras especificaram. As capilhas foram encomendadas e pagas
pelo AHU, bem como, as novas caixas (maiores) para caber comodamente os documentos maiores, para não haver
necessidade de dobrá-los.
14
Cf. HESPANHA, António Manuel. As vésperas do leviathan: instituições e poder político: Portugal, séc.
XVII. 1994. HESPANHA, António Manuel (coord). História de Portugal. Antigo Regime. Lisboa: Editorial
Estampa, 1993.
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Monteiro15, José Damião Rodrigues16, Ângela Domingues17, o próprio Subtil18. Eu fui
descobrindo essa historiografia portuguesa e aí toda a minha visão de Império Português, aquela
coisa amarradinha, certinha, politicamente construída com projeto para o Brasil, políticas
coloniais fechadas e pensadas para cada século, tudo isso foi desconstruído, quando eu li Fatima
Gouvêa, João Fragoso, Fernanda Bicalho19 historiadores daqui do Brasil. Quando eu comecei
a ler isso, juntando os textos do Nuno Monteiro, do Hespanha, Romero Magalhães 20 quebrou
todo um paradigma historiográfico que eu tinha na cabeça e foi muito complicado, foi muito
difícil rever tantos conceitos. Eu até escrevi um artigo para a revista Ultramares falando de
Império Português, em que eu retornei a esses autores e desconstruí a ideia daquilo que eu tinha
posto na minha dissertação de mestrado21. Nesse artigo, de certa forma me desfaço de todas
essas roupagens que eu tinha, que o próprio Romero Magalhães desconstrói, explicando que no
período pombalino não tinha isso, não tinha projeto para o Brasil, que isso não é verdadeiro,
que estas políticas eram construídas ao sabor do momento, ou seja, as circunstâncias
apareceriam e o governo central em Lisboa pensava em como resolver esse problema, não era
uma coisa “vamos fazer assim” era muito mais, “aconteceu isso e a gente precisa de uma
resposta”22. Vê-se perfeitamente isso, e foi a partir dessa minha construção de projeto de
doutorado que eu comecei a interagir mais e participar mais de congressos lá e cá e a
descontruir, digamos assim, essa minha ideia de Império Ultramarino, baseada nessa minha
visão de historiografia brasileira que vigorou até os anos 90 no Brasil de forma hegemônica.

15
Cf. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O crepúsculo dos grandes: a casa eo património da aristocracia em
Portugal: 1750-1832. 1998. MONTEIRO, Nuno Gonçalo; DE ALMEIDA, Soares. Elites e poder: entre o Antigo
Regime eo Liberalismo. 2003. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O'Ethos' Nobiliárquico no final do Antigo Regime:
poder simbólico, império e imaginário social. Almanack braziliense, n. 2, p. 4-20, 2005.
16
Cf. RODRIGUES, José Damião. Poder municipal e oligarquias urbanas: Ponta Delgada no século XVII.
Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1994.
17
Cf. DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram vassalos. Colonização e relações de poder no norte do
Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 2000.
18
Cf. SUBTIL, José Manuel Louzada Lopes. O desembargo do Paço (1750-1833). Lisboa: Universidade
Autônoma de Lisboa, 1996. SUBTIL, José. Os poderes do centro. História de Portugal, v. 4, 1998.
19
Cf. FRAGOSO, João; DE FÁTIMA GOUVÊA, Maria. O antigo regime nos trópicos: a dinâmica imperial
portuguesa:(séculos XVI-XVIII). Editora Record, 2001. FRAGOSO, João Luís Ribeiro; DE FÁTIMA
GOUVÊA, Maria. Na trama das redes: política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII.
Civilização Brasileira, 2010. FRAGOSO, João, GOUVEA, Maria de Fátima (Orgs). O Brasil colonial. Civilização
Brasileira, 2014 3v.
20
Cf. MAGALHÃES, Joaquim Antero Romero. O Algarve económico: 1600-1773. 1984.
21
Artigo intitulado “Império, administração e poder no Brasil colonial: notas historiográficas”. Disponível em
<https://docs.google.com/viewer?a=v&pid=sites&srcid=ZGVmYXVsdGRvbWFpbnxyZXZpc3RhdWx0cmFtY
XJlc3xneDozNTRkZmQ4YTc3YjdkNWZj> Acesso em 14/12/16
22
Trata-se de um texto curtinho e muito relevante para a compreensão do período pombalino. O autor é o Joaquim
Romero Magalhães, da Universidade de Coimbra, e o texto intitula-se “ Sebastião José de Carvalho e Melo e a
economia do Brasil” ele publicou por último no livro Labirintos Brasileiros. São Paulo: Alameda, 2011.
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Ela ainda vigora, mas não de forma hegemônica, existem outros modelos, e outros pensadores,
e outros historiadores, outras obras que descontroem e se fundamentam para poder fazer essa
crítica do que era o Império Português. O processo de doutoramento em Portugal é muito
particular e muito individual, você “meio” que se forma, vai lendo, vai construindo, refletindo
e escrevendo. Não tem uma cadeira (disciplina) sobre as leituras que você precisa fazer para o
seu tema, não tem uma disciplina sobre historiografia, por exemplo, não, não é assim. Até
porque, a primeira vez que eu li o Hespanha, eu não entendi nada, eu me achei assim uma
energúmena “que, que é isso?” [risos] eu lia e relia várias vezes várias páginas e um dia se fez
“luz”, de tanto eu ler e reler: “Agora eu consigo entender exatamente o que ele quer dizer com
isso!”. Foi muito interessante porque de fato a gente desconstrói o que achava que era um
modelo acabado, fechadinho, tão arrumadinho de causas e consequências de fatores que levam
a isso e aquilo.

AH: E o Resgate nesse processo de desconstrução? Depois dessa leitura, como foi o contato
direto com a documentação?
ED: A documentação te dá uma base muito interessante. Quando você vai ler esses documentos,
tentando entender essa lógica do Império, é muito mais simples você perceber que essa
sociedade colonial, construída assim dessa forma, ou seja, com esses valores de Antigo
Regime, com o pensamento dessas elites exigindo do Rei seus direitos, querendo ser respeitada,
mostrando ao Rei que eles têm direito de cobrar sim, e que o Rei deve a ela de alguma forma,
sabendo quais os canais a serem utilizados para que suas súplicas fossem atendidas, que
determinadas coisas tinham que subir sim ao secretário de Estado, que ele que seria o
intermediário, ou não, que tinha que ir para o Conselho Ultramarino, de que forma aquela
Câmara poderia destituir o governador. Quais eram os canais legais, legítimos, jurídicos para
se embasar uma denúncia em queixa? Quais os critérios para tirar um agente régio que é
contrário aos interesses da elite? De que forma o Rei poderia ouvir? Então, toda essa
negociação, toda essa questão de aliança, de pacto - que Evaldo Cabral de Mello Neto23 explica
muitíssimo bem nas obras que escreveu, e é um dos primeiros a notar isso, a gente vai rever
quando lê, por exemplo, as Cartas da Câmara de Olinda, do Rio de Janeiro - dessas elites, ora
representadas até por categoria. Porque tem lá na documentação “nós, os senhores de engenho,

23
Cf. MELLO NETO, Evaldo Cabral de. Rubro veio: o imaginário da restauração pernambucana. Editora
Nova Fronteira, 1986. MELLO NETO, Evaldo Cabral de. O nome e o sangue: uma fraude genealógica no
Pernambuco colonial. Companhia das Letras, 1989.
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viemos aos pés de Vossa Majestade” pedir isso e isso e isso, por isso, isso e isso, “nós lutamos,
nós derramamos nosso sangue” a Coroa, o Rei tem que entender, ele precisa resolver essa
questão e ver que “nós somos vassalos fiéis”. Lemos sobre esse paradigma de construção de
Império Português e a documentação está embasada, nessa noção, de que existiam valores, um
conjunto de regras, de signos, outra moral, ética, noção de lealdade e fidelidade – não chega a
ser vassalagem no sentido medieval, mas utiliza muito os termos –, aquelas ideias da Idade
Média, ideia de laços, pactos e alianças de fidelidade. Então, isso está na documentação, a gente
vai lendo e confirmando o que muda no século XVII. As arquiteturas de poder, essa concepção
de Império Ultramarino que era uma no século XVII, e que vai mudando, e o papel que Pombal
teve nisso. Esse reformismo que acontece no século XVIII não só em Portugal, mas na Europa
inteira, na Espanha bourbônica... todos os modelos portugueses (as reformas) “são copiadas”
da Espanha. Esse século XVIII é muito mais reformista do que iluminado, podemos dizer assim.
Tem muito mais a ver com reformas administrativas, políticas, do que mesmo com um “Estado
iluminista”.

AH: Quais os temas mais pesquisados nas bases do Projeto Resgate e quais os temas mais
promissores, que tem poucos trabalhos?
ED: O tema mais fácil de trabalhar é administração, quem quer trabalhar com instituições,
tribunais e secretarias, essa documentação é fantástica. E ela tem “muito pano para manga”,
digamos assim. Quem quer trabalhar com comunicação política também, porque você vai ter
muita documentação de governador para secretário de Estado do Rei, vai ter todas as
“confusões” que ocorreram nas capitanias, as que eram mais relevantes subiam ao poder central,
isso em meio a processos que vão do começo ao fim, desde o início da querela, da denúncia, da
queixa, até o que o rei decidiu ou de que forma aquilo ficou resolvido na capitania, seja por
meio de um motim, de uma revolta ou da prisão dos envolvidos, ou da deportação. Outro
assunto muito presente é o da Defesa, principalmente do Rio de Janeiro e do Rio Grande do
Sul, invadidos durante o século XVIII. Há muita documentação para todas essas áreas de
conflito. Século XVII também tem muita coisa sobre os holandeses. Para o século XVIII há
muito material: Fronteiras, limites, índios, miscigenação desses índios, jesuítas. É uma
documentação muito rica tematicamente falando, quando a gente olha a princípio, parece ser
uma coisa mais fechada, administração pura e simples, mas não é. E motins às vezes que nem
aconteceram, mas o medo deles era tão grande, que tem uma resposta, da Coroa ou do governo
sobre isso. Na minha tese de doutorado, analisei uma querela entre senhores de engenho e a
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Mesa da Inspeção sobre o preço do açúcar: a Mesa e os senhores queriam um preço, e a
Companhia Geral queria outro. Os senhores de engenho prenderam as caixas, não vendem. A
Companhia mandou tirar as caixas dos armazéns e o conflito dividiu a capitania. Chegou uma
hora em que os navios estavam no porto, precisavam ir a Lisboa, tinha que levar o açúcar,
porque era o grande produto de exportação da capitania, era dali que vinha o dinheiro dos
dízimos, de uma série de impostos que revertiam para a capitania. O açúcar já estava “vendido”
para Lisboa e os navios estavam precisando carregar e quem carregava os navios era a
Companhia. Os senhores do engenho, respaldados pela Mesa de Inspeção, não liberavam o
açúcar àquele preço de jeito nenhum. E quando a Companhia meio que forçou o governador a
tomar as caixas, os senhores de engenho se armaram, tipo “vai ter uma revolta, não é assim”. O
governador tomou as caixas, mas negociou. Ele chegou num consenso, meio que todo mundo
teve que ficar agradado, porque precisava levar o açúcar. O interessante é que tudo isso foi
resolvido na capitania, o Rei só soube do resultado, porque os navios estavam no porto,
precisando ser carregados. Ele, o governador, [Manuel da Cunha Meneses] não teve tempo para
escrever para Lisboa, para perguntar o que ele iria fazer, ele tinha que fazer e pronto. Se a
solução fosse boa, maravilha. Se fosse ruim, a culpa era dele, ia ser preso e deportado. E não
era a primeira vez que um governador era assassinado. Por isso que na minha tese eu trabalhei
com governadores e suas administrações, não trajetórias individuais. Não quis fazer as
trajetórias, a carreira dos governadores, fiz isso de uma forma muito pequena. Interessava-me
muito mais a forma como eles governavam, como eles interagiam com as elites, com o poder
central, do que qualquer outra coisa. Agora o que acontece, são milhares de documentos, então
você tem que fazer uma triagem, porque, dos documentos que eu pesquisei, que eu levantei, eu
usei um terço. Então aquilo que está citado na minha tese, que parece muito, é um terço daquilo
que eu li. Só que na hora de escolher você não pode escrever tudo, a tese teve 700 páginas.
[risos] Então, eu tinha que cortar, escolher bem.
Agora, também há temáticas pouco estudadas. Tem um tema que o Resgate abriu a
porta, e que eu acho muito interessante, que é a questão do comércio de escravos. Sei que é um
tema recorrente e muito discutido, mas nem sempre utilizando essa documentação. Porque hoje
a gente tem a documentação do Brasil toda tratada e microfilmada, mas a da África não, mas
está catalogada, principalmente século XVII, o início do século XVIII. Então é completamente
possível você fazer um estudo sobre Angola e Pernambuco, Costa da Mina e Bahia, embasado
por outros documentos, que não esses grandes documentos que já estão para lá de vistos,
digamos assim. Então, quem pegar São Tomé e Príncipe, quem pegar Costa da Mina, quem
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pegar Cabo Verde, quem pegar Angola, consegue fazer uma ligação fantástica com o Brasil e
descobrir quem eram os grandes traficantes, de que forma esse comércio era feito. Mas não na
perspectiva daqui para lá, mas nessa perspectiva de Império interligado.

AH– Pensando nos processos de digitalização e exposição na Internet, quase ao mesmo


tempo do Projeto Resgate, o Google também iniciou um grande processo de digitalização
de algumas obras e textos e sofreram grandes críticas. Como você observa o envolvimento
de outras empresas privadas nos arquivos e nos processos de digitalização?
ED:– Do Google eu não posso falar, porque de fato não sei, mas se conseguir digitalizar um
grande número de documentos e disponibilizar acho que é interessante. Falamos muitas vezes
de uma posição muito privilegiada. Por exemplo, os portugueses reclamavam muito do estado
dos CDs do Projeto Resgate. Mas por que eles reclamavam? Porque eles estavam a poucos
quilômetros de onde estava o documento. E eles podiam chegar lá, dizer que não podiam abrir
a imagem e ver o documento. Mas você veja, esse mesmo CD para quem mora no Acre, que
nunca vai pisar em Lisboa. Aquilo que ele conseguir ler do documento que ele conseguia abrir
e baixar seria extremamente relevante para a tese dele. Então, se conseguir digitalizar e colocar
na Internet, eu acho que vale a pena, entendeu?

AH– Independente de ser privado ou público?


ED– Quando se trata da memória de um país, deveria ser um projeto público. E deveria ser uma
política de Estado. É uma das coisas que se tem que criticar do atual governo. O Ministério da
Cultura não é só música, não é só peças e filmes, toda essa parte de patrimônio, de memória e
história do país está na alçada do Ministério da Cultura. De fato, foi um grande mérito, começou
no governo Fernando Henrique, mas que foi continuado de forma grandiosa nos governos Lula
e Dilma, a ideia dessa disponibilização, desse resgate da memória desse país, memória que
estava fora do Brasil. Ou seja, a gente precisava e tinha direito a ter acesso a essa documentação.
Porque antes, só as pessoas que iam até Portugal conseguiam ter acesso a esses documentos. E
para isso você tinha que ter dinheiro, você tinha que ter bolsa de pesquisa. E não era todo mundo
que tinha bolsa de pesquisa nos anos de 1980 e de 1990. O Projeto Resgate facilitou o acesso a
essas fontes, e elas dizem respeito à memória do nosso povo, do nosso país. O grande boom do
Projeto Resgate foi justamente depois de 2000. Antes, os recursos eram muito contados para
microfilmagem, porque era bem caro microfilmar. O pagamento era primeiro em escudos e
depois em euros. Quando a gente conseguiu microfilmar foi muito importante, porque
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conseguiu-se trazer para o Brasil pedaços da sua memória, da sua História. Então, é claro que
deveria existir sim uma política pública e que isso é papel do Ministério da Cultura, sim!
Principalmente esse tipo de documentação, histórica, era bom que o Ministério se lembrasse
disso, que toda essa parte de cultura, memória, história, documentação, patrimônio, que está na
alçada do Ministério da Cultura, e cabe à Cultura, empreender, ter programa, ter projetos. Isso
não pode ficar parado, porque ainda tem muita coisa a ser feita, principalmente internamente,
muitos arquivos estão com a documentação que precisava urgentemente ser microfilmada,
digitalizada, de forma a preservar estes papeis tão antigos e tão pouco cuidados. Na Bahia, há
muita documentação que está se perdendo, por conta do mau estado do Arquivo: mofo, calor,
umidade, tudo. Não existe nenhuma perspectiva dessa documentação ser preservada e isso é
muito triste. Porque vai ter uma hora que a gente não vai ter de jeito nenhum, principalmente
os documentos paroquiais e camarários. Quem estudou isso, beleza. Quem não, não vai nem
saber do que se tratava, porque não vai mais existir. Porque não vai ter acesso a maioria desses
documentos paroquiais, de Santas Casas de Misericórdia, dos jesuítas, das Câmara. Assim,
muita coisa se perde por isso, por falta de política pública. E isso é terrível.

AH: Qual ou quais conselhos você daria a um jovem historiador?


ED– Minha vida inteira foi trabalhando com documentação de arquivo, acho que quem quer
fazer algum trabalho de pesquisa tem que começar lendo, aprendendo com a historiografia, é
verdade, mas que visite os arquivos, sinta o cheiro dos documentos, aprenda a manuseá-los. A
partir do momento que começa a ler sobre a documentação e ler a documentação, vai começar
a entender melhor de que forma pode trabalhar com aquilo. Se não conseguir visitar os arquivos,
tem que abrir os sites dessa documentação, aprenda a fazer as pesquisas. Porque a gente começa
a desistir da pesquisa porque não aprende a utilizar as ferramentas. Um exemplo são os
catálogos da Torre do Tombo, milhares de páginas na internet, dá para ler a documentação sobre
a inquisição de casa, mas, tem de aprender a utilizar de forma correta a ferramenta. Tem que
ler o catálogo direito, não pode ficar só lendo a documentação que interessa, e não pode escrever
tese apenas lendo o verbete. Acho que a coisa mais importante para o pesquisador é a leitura
(livros, artigos) interagir muito bem com a documentação (manuscrita, impressa) e com a
bibliografia, principalmente a mais geral. A documentação tem uma coisa legal porque você se
apaixona por ela. Acho que o grande problema do historiador é esse, que às vezes a gente gosta
tanto da pesquisa, que deixa o trabalho da escrita de lado. Fica muito mais difícil de escrever,
você interage tanto com a pesquisa, é tão interessante, e tão boa de fazer, que chega na hora de
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escrever, você percebe que não era isso que você queria, levantou e pesquisou muito mais
material do que daria conta ler e refletir. É muito difícil o historiador não se apaixonar pelo
arquivo que está pesquisando, a documentação que está lendo, é muito difícil. Então que saiba
dosar isso. O bom era pesquisar a vida toda, mas não pode, tem de parar, ler, refletir e escrever.
Afinal o conhecimento científico só pode avançar se publicarmos os resultados das nossas
reflexões e pesquisas.

AH– Érika, obrigada, em nome do Comitê da Ars Historica, do PPGHIS, agradecemos


muito sua entrevista.
ED– Eu que agradeço!

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Artigo

REFLEXÕES SOBRE O IMPACTO DE


ACONTECIMENTOS NUM PROCESSO
HISTÓRICO: O CASO DA LUTA PELA TERRA
MARÃIWATSÉDÉ (1960-2012)
JULIANA CRISTINA DA ROSA*

Resumo: O caso da luta pela terra Marãiwatsédé é um processo histórico que envolveu índios
Xavante, os quais na década de 1960 foram retirados de seu território para a abertura da empresa
agropecuária Suiá Missú. Envolveu também os posseiros da Suiá, que invadiram a área
remanescente depois de ela ser devolvida para os Xavante em 1992. Logo, este ano se tornou o
epicentro de uma série de acontecimentos, uma vez que a devolução da área desencadeou na
demarcação da área por meio de laudo antropológico, e também na invasão da área por
posseiros e grileiros, incentivados por políticos locais. Vinte anos depois, esses posseiros foram
retirados da área para que os Xavante pudessem retomar o domínio sobre Marãiwatsédé. No
decorrer dos anos, a luta pela terra Marãiwatsédé foi travada através de batalhas jurídicas,
batalhas da memória e batalhas midiáticas. O foco desse artigo é analisar como o fato da retirada
dos posseiros da Suiá foi sendo histórica e socialmente construído como um “acontecimento-
monstro”, que além de impactar toda a região do Araguaia mato-grossense, ganhou repercussão
nacional no ano de 2012, sobretudo através da ação da mídia local que acompanhou e narrou
de forma ativa a “desintrusão dos não índios”, interferindo sobre o acontecimento.

Palavras-chave: Luta pela terra Marãiwatsédé; Acontecimento-monstro; Mídia local.

Abstract: The case of the struggle for Marãiwatsédé land is a historical process that involved
Xavante indians, who in the 1960s were removed from its territory to the opening of the
company Suiá Missú, and the squatters of Suiá, who broke into the remaining area after it is
returned for Xavante in 1992. Thus, this year became the epicenter of a series of events, since
the return of the area triggered the demarcation of the area through anthropological report, and
also the invasion of the area by squatters and land grabbers, encouraged by local politicians.
Twenty years later, these squatters were removed from the area so that the Xavante could regain
dominion over Marãiwatsédé. Over the years, the struggle for land Marãiwatsédé was fought
by legal, memory and media battles. The focus of this article is to analyze how the fact of the
removal of squatters from Suiá was being historically and socially constructed as a "monster
event", which in addition to impact the entire region of Araguaia, gained national attention in
2012, especially through the action of local media that followed and chronicled actively the
"non-intrusion of non-indians", interfering with the event.

Artigo recebido em 28 de fevereiro de 2016 e aprovado para publicação em 14 de junho de 2016.

* Doutoranda em História do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Mato


Grosso. E-mail: julianacristinarosa@gmail.com

Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 250-270 | www.ars.historia.ufrj.br 250
Key words: Struggle for Marãiwatsédé land; Monster-event; Local media.

A luta pela terra Marãiwatsédé (1960-2013)


O Araguaia mato-grossense fez parte de uma região juridicamente construída, a
Amazônia Legal, que foi concebida como área de expansão econômica sobre territórios
“vazios” por parte do planejamento de diferentes governos, que pode ser observada antes
mesmo da Lei de Terras de 1850.

Desde 1822, vêm estimulando e favorecendo o acesso a grandes porções do território


por latifundiários, capitalistas ou grupos econômicos e empresas agropecuárias e de
colonização. Todo um aparato jurídico-político foi montado. [...] e a grande
quantidade de leis e decretos que foram sendo criados para disciplinar o processo de
acesso à terra, que serviu mais para inibir a expansão da pequena propriedade e selar
o compromisso dos governantes com as classes rural e empresária.1

A expansão para estas região se intensificou, sobretudo durante o período do Regime


Militar. Era significativa a utilização de slogans como o do Governo Médici, como “Terra sem
homens para homens sem-terra”, que demonstrava a concepção da terra “vazia”. Nesse período
foi criada a “Operação Amazônia” constituída a partir de uma série de leis, decretos e medidas
práticas que instrumentalizaram a política de governo que deveria ser implementada na
Amazônia Legal. Toda essa política de governo tinha como objetivo principal, segundo os
Governos Militares, incentivar o “progresso” econômico e ações para garantir a Segurança
Nacional.
Nesse contexto, o Araguaia mato-grossense foi sendo reocupado, uma vez que havia a
presença confirmada de povos indígenas e populações tradicionais ocupando anteriormente a
região. Por essa característica, o Araguaia mato-grossense pode ser categorizado como região
de fronteira: um lugar de alteridade e conflito entre populações existentes que tinham domínio
da terra de trabalho e migrantes que passam a tomar posse e adquirir na forma de propriedades
a terra de negócio.

À primeira vista é o lugar do encontro dos que por diferentes razões são diferentes
entre si, como os índios de um lado e os ditos civilizados de outro; como os grandes
proprietários de terra, de um lado, e os camponeses pobres, de outro. Mas o conflito
faz com que a fronteira seja essencialmente, a um só tempo, um lugar de descoberta
do outro e de desencontro.2

1
MORENO, Gislaine. Os (des) Caminhos da Apropriação Capitalista em Mato Grosso. Dissertação (Mestrado
em Geografia Humana) – USP, São Paulo, 1993, p.277.
2
MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano. 2ᵃ Edição, São Paulo:
Contexto, 2009. p.133.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 250-270 | www.ars.historia.ufrj.br 251
Encontros e desencontros que geraram conflitos entre diferentes agentes sócio-
históricos como indígenas, posseiros, peões, grileiros, empresários, fazendeiros, comerciantes,
militantes e outros, e que são protagonistas da luta pela terra.
Dentro dessa perspectiva analítica, a região do Araguaia teve diferentes frentes de luta
pela terra, sendo a disputa por Marãiwatsédé somente um dos casos que ocorreram na região,
mas que ganhou repercussão midiática maior na década de 2010.
A luta pela terra Marãiwatsédé envolveu indígenas Xavante3 e posseiros da Suiá,4 e
seus respectivos aliados, e que teve como local de resistência o Distrito do Posto da Mata, cuja
localização pode ser identificada na imagem abaixo:

Imagem 1 - Mapa da localização da TI Marãiwatsédé e Distrito Posto da Mata

Fonte: AXA (2014).

Nessa imagem é possível identificar o epicentro espacial onde ocorreu o conflito, que
tem como início a compra de parte de um território, (no qual viviam grupos da etnia Xavante),
de mais de 695 mil hectares pela empresa agropecuária Suiá Missú em meados da década de
1960. A consolidação do empreendimento agropecuário resultou na deportação dos Xavante de
Marãiwatsédé em 1966, com o aval do Estado.
Entre a década de 1960 até a década de 1990, a agropecuária Suiá Missú teve incentivos
fiscais e financiamentos de projetos através da Superintendência de desenvolvimento da
Amazônia (SUDAM), e após a década de 1980 e o término desses incentivos por parte do

3
O etnônimo “Xavante” deve ser escrito com inicial maiúscula por se tratar de um substantivo gentílico derivado
de uma coletividade única, um povo. Não pode ser colocado no plural, por convenção, para não cair em
hibridismos: atribuir “s” em palavras que na língua nativa já estão no plural, ou ainda usar o plural em casos que
os nativos não utilizam variação singular/plural; como demonstrado por Evans-Pritchard no clássico da
antropologia britânica “Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande” (1937).
4
A denominação posseiros da Suiá será utilizada por se tratar de uma auto referência, mesmo advertindo que
enquanto categoria social, e são diferenciados socialmente por fatores como origem, profissão, tempo de moradia,
relação com a terra, dentre outras diferenças.
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Governo Federal, os acionistas passaram a fragmentar os mais de 695 mil hectares de terra e
vender, de tal modo que na década de 1990 a área remanescente era de 192 mil hectares.
O ano de 1992 se configurou como o epicentro de uma série de acontecimentos que
modificaram o processo histórico: primeiro com a devolução da área remanescente por parte da
empresa estatal italiana ENI Agip Petroli aos Xavante durante a ECO 92. No mesmo ano,
políticos locais organizam e incentivam uma invasão da área remanescente da Suiá Missú
atraindo tanto posseiros interessados na terra para morar e plantar, como de grileiros e
comerciantes de terras. A Agip do Brasil, filial brasileira da empresa, discordava da devolução
e criou estratégias para vender a área remanescente, e passou a matrícula da área para
comerciantes de terra que, em tese, deveriam fazer a regularização fundiária através da venda
de escrituras das terras ocupadas para os posseiros que haviam invadido a área em 1992 ou
comprado o direito de posse nos anos consecutivos. O processo de venda de escrituras da áreas
permaneceu ocorrendo ao longo de vinte anos.
Paralelamente à ação da filial brasileira, foi a partir da promessa de devolução feita pela
Agip Petroli, que um laudo antropológico foi produzido como instrumento jurídico que
delimitou a área que seria devolvida aos Xavante. Este documento tornou-se igualmente um
instrumento de luta, haja vista que foi produzido a partir da versão da história dos indígenas,
que por seu turno se utilizam da memória do lugar como arma na luta pela terra de
Marãiwatsédé.
Ao longo dos vinte anos posteriores, os posseiros da Suiá adotaram como local de
resistência o Distrito do Posto da Mata, se organizaram politicamente por meio de uma
associação denominada APROSSUM e adentraram na luta através de batalhas jurídicas, batalha
de peritos e a batalha midiática.
O processo de desintrusão dos não índios em 2012 foi construído histórica e socialmente
como um “acontecimento-monstro” que abalou toda a região do Araguaia mato-grossense, uma
vez que gerou revolta nos moradores que consideraram injusta a decisão judiciária. Essa
construção social do acontecimento se deu através da ampla cobertura jornalística realizada
pelos meios de comunicação locais de modo a intensificar o conflito e o drama vivenciado pelos
posseiros que foram expulsos da área.
Diante desses elementos empíricos constitutivos da luta pela terra Marãiwatsédé, será
realizada uma análise do ano de 1992 como epicentro do conflito, e da construção social e
midiática da desintrusão - o acontecimento-monstro, para traçar algumas reflexões sobre a
importância de acontecimentos em processos históricos.

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O ano de 1992: o ano dos acontecimentos que abalaram o processo
No ano de 1992 diversos acontecimentos mudaram os rumos do processo histórico. O
primeiro e principal acontecimento é a sinalização de devolução da área remanescente da Suiá
Missú para os Xavante, originários daquelas paragens. Em seguida o Relatório de identificação
da área indígena “Marãiwatsédé” foi elaborado por uma equipe da FUNAI, legitimando
juridicamente os limites da área para ser consolidada administrativamente pela União como
Terra Indígena (TI). Esse laudo utilizou como principal instrumento de coleta de informações
o uso da memória e oralidade dos Xavante para legitimar seu retorno à Marãiwatsédé.
Outro acontecimento fundamental para esse processo histórico foi a invasão por parte
de posseiros e grileiros da área remanescente, de modo planejado e fomentado por um grupo de
políticos locais. Esse acontecimento configurou-se como epicentro do conflito agrário e
interétnico que resultará no processo jurídico e nos futuros confrontos entre indígenas, posseiros
e grileiros e na posterior desintrusão dos não índios da área no ano de 2012.
Logo um complexo cenário de múltiplos acontecimentos ocorreu naquele ano de 1992,
como as denúncias realizadas pela CNS (Campagna Nord/Sud),5 o envolvimento do Governo
Italiano, a pressão internacional, a luta dos Xavante de Marãiwatsédé, os movimentos sociais e
políticos. Houve também o pronunciamento do presidente da empresa italiana durante a ECO
92, que prometeu a devolução da área aos índios, a elaboração do relatório antropológico. Por
fim, ocorreu a invasão planejada na reunião no Posto da Mata por posseiros e grileiros
entrelaçaram-se numa rede que desencadeou mudanças evidentes de tendências e perspectivas
vivenciadas pelos agentes sócio-históricos envolvidos:

O ano de 1992 marca não somente o início da invasão de Marãiwatsédé, mas também
a luta de ambas as partes nos tribunais. Tanto a Fundação Nacional do Índio (FUNAI),
em nome dos índios, quanto os invasores, representados por seus advogados, entraram
na Justiça para tentar resolver o impasse: a primeira, solicitando a desintrusão da terra
indígena. Os segundos com o intuito de anular o trâmite demarcatório legítimo da TI.
Os dois processos correram em paralelo e, em todas as instâncias, a Justiça brasileira
reconheceu o direito dos Xavante à posse de seu território.6

5 A Campagna Nord/Sud foi um movimento europeu que propunha a cooperação e solidariedade entre os países
do Norte e os do Sul com o lema “Paz, Direitos Humanos, Direitos dos Povos”, que ocorreu a partir da década de
1970 e teve como auge a conferência de parlamentares e representantes de organizações não governamentais
(ONG) que se realizou em Madrid em junho de 1988. O resultado desse encontro foi a “La campagna Nord/Sud
Le proposte dell'appello di Madrid”, que pode ser consultada no centro de documentação dos direitos humanos da
Università degli Studi di Padova.
Disponível em: <http://unipd-centrodirittiumani.it/it/pubblicazioni/La-campagna-NordSud-Le-proposte-
dellappello-di-Madrid/494 >. Acesso: 15/05/2014.
6
OPAN, ANSA. Marãiwatsédé: Terra da Esperança. 2012.
Disponível em: ˂ http://amazonianativa.org.br/Biblioteca.html ˃. Acesso em: 05/11/2013, p. 8.
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Batalhas jurídicas se instauram e os protagonistas assumem mais explicitamente seus
postos na luta, e os posseiros, grileiros, políticos locais, militantes, os Xavante originários de
Marãiwatsédé e os meios de comunicação perceberam que ocorriam mudanças significativas.
A esperança e confiança da devolução do território para os Xavante se inflamou através das
promessas e do laudo antropológico, paralelamente à esperança e confiança de posseiros e
grileiros de se apropriar de uma nova área para morar ou comercializar a terra, apoiados por
políticos locais e do Estado do Mato Grosso. Uns sonhavam com o retorno e outros com a
conquista da terra.

Algumas reflexões sobre o impacto dos acontecimentos nos processos sociais


Uma das principais evidências oriundas dos acontecimentos do ano de 1992 diz respeito aos
impactos inquestionáveis sobre o processo histórico. A partir da invasão da área remanescente pelos
posseiros, uma nova dinâmica foi estabelecida com a entrada na arena de um novo protagonista
disputando a terra Marãiwatsédé e a instauração de batalhas jurídicas que não cessaram nem mesmo
com a desintrusão de 2012.
Essa situação pode ser problematizada através de uma breve revisão bibliográfica sobre a
relação entre acontecimento e processo e/ou estrutura, que foi intensamente debatida por Braudel, Duby
e Sahlins.
Os volteios metafóricos de Braudel são bem conhecidos. Os eventos são meras
perturbações superficiais, espumas nas grandes ondas da história. Reluzem como
pirilampos, cujo brilho tênue continua a deixar na escuridão o mundo a seu redor, ou
como chamas que mal podem ser percebidas, mas cuja “fumaça enganadora” enche a
mente dos espectadores.7

Respondendo às metáforas de Braudel sobre a pouca importância dos acontecimentos


no processo histórico, Duby (1993) afirma: “os acontecimentos são como espumas da história,
bolhas que, grandes ou pequenas, irrompem na superfície e, ao estourar, provocam ondas que
se propagam a maior ou menor distância”.8
Esta constatação do autor parece descrever as características do acontecimento da
invasão por posseiros e grileiros da terra Marãiwatsédé em 1992. Isso porque a invasão de terras
é resultante de um processo mais amplo, por ser uma prática e uma estratégia da luta pela terra
no Brasil, mas se configurou como acontecimento peculiar em uma região e temporalidade.
Seus efeitos vão para além de ondas e espumas, formando um tsunami (ano de 1992) que

7
SAHLINS, Marshall. O Retorno do Evento, outra vez: com reflexões sobre os primórdios da Grande Guerra
fijiana de 1843-1855 entre os reinos de Bau e Rewa. (cap. 11). In: SAHLINS, Marshall. Cultura na Prática.
Tradução Vera Ribeiro. 2. ed. – Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007. (Coleção Etnologia). p. 318.
8
DUBY, Georges. O Domingo de Bouvines: 27 de julho de 1214. Tradução Maria Cristina Frias. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1993, p. 14.
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ganhou volume e intensidade (ano de 2012) e devastou o lugar onde surgiu o abalo sísmico
originário: o Posto da Mata.
No entanto essa percepção da importância dos acontecimentos nos processos históricos
não foi uma norma dentro da historiografia. Historicamente ocorreu um desuso da análise de
eventos/acontecimentos entre parte dos historiadores do século XX, sobretudo das gerações de
historiados ligados aos Annales preocupados com conceituações e críticas contra a história
factual. Um fenômeno que ocorreu de tal modo que evento e estrutura passam a ser praticamente
irreconciliáveis.9
Sahlins (2007)10 fez uma crítica a essa perspectiva:

nas versões antropológicas, os eventos contingentes eram as marés crescentes da


história, que deixavam os destroços desmontados dos esquemas culturais antes
coerentes flutuando na esteira do tempo [...]. O mais importante é que, para uma certa
antropologia, assim como para uma certa história, parecia que o “evento” e a “estrutura”
não podiam ocupar o mesmo espaço epistemológico. O evento era concebido como
antiestrutural e a estrutura, como anuladora do evento.

A utilização do termo “uma certa antropologia” e “uma certa história” demonstra o


cuidado do autor em não generalizar áreas de conhecimento que possuem uma historicidade,
conflitos teóricos e metodológicos entre seus autores. Mas aponta que a historiografia de
Braudel e a antropologia estrutural de Lévi-Strauss (apesar das correções e ponderações que
variaram na ampla obra e trajetória de ambos os autores) foram as maiores responsáveis pela
desconsideração dos acontecimentos/eventos em análises estruturalistas que colocavam em
oposição, e por vezes, em antagonismo a estrutura e o evento.
Sahlins (2007) propõe executar um projeto de síntese entre estrutura e evento,
retomando a crítica à Fernand Braudel em seu livro clássico “O Mediterrâneo” de estabelecer
uma conexão entre níveis estruturais (a longa duração, de perfil estrutural e os fenômenos
conjunturais) que dificultam o historiador de problematizar fenômenos duradouros com eventos
de mudanças rápidas e impactantes se os mesmos são dissociados, e mesmo excludentes.11

9
A antinomia entre evento e estrutura remonta o ano de 1903, com o artigo do sociólogo François Simiand
“Método histórico e Ciências Sociais” que influenciou os historiadores da primeira geração dos Annales através
de sua crítica às biografias e à história factual.
10
SAHLINS, O Retorno do Evento, outra vez: com reflexões sobre os primórdios da Grande Guerra fijiana de
1843-1855 entre os reinos de Bau e Rewa. (cap. 11). In: SAHLINS, Marshall. Cultura na Prática. Tradução Vera
Ribeiro. 2. ed. – Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007. (Coleção Etnologia)., p. 319. No mesmo capítulo, o autor
aponta reflexões sobre “[...] a natureza dos eventos históricos e suas relações com as ordens culturais através da
história do início da história moderna das ilhas Fiji” (p. 316), justificando pelo elemento exótico da região
geográfica e os aspectos estruturais que podem ser revelados pela análise do evento.
11
Sahlins ironiza: “Na verdade, a tabela de oposições que poderia ser construída a partir dos textos dos Annales
seria quase digna dos dualismos cosmológicos de alguns povos da Amazônia” (p. 320).
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A estrutura está para o evento assim como o social está para o individual, o essencial
para o acidental, o recorrente para o idiossincrático, o invisível para o visível, o regido
por lei para o aleatório, o cotidiano para o extraordinário, o silencioso para o audível,
o anônimo para o autoral, o normal para o traumático, o comparável para o singular e
assim por diante.12

O autor afirma ainda que: “Essa antítese não poderia perdurar; ela vem dando lugar à
síntese”;13 isso porque historicamente os “eventos” de 1968 na França reforçaram o debate
sobre a importância dos acontecimentos. Sahlins retoma uma revisão bibliográfica citando os
artigos “O retorno do acontecimento” (1974), do historiador Pierre Nora, e outro de mesmo
nome “Le Retour de l´événement” (1979) do sociólogo Edgar Morin,14 que retomaram o
acontecimento convergido dentro de um sistema, partindo da questão “Sistema e o evento
devem ser considerados em conjunto?”.
Sahlins (2007) concebe as dimensões do evento dentro de um processo, como uma
“estrutura de conjuntura” para se referir ao modo com que “categorias culturais se atualizam
num contexto específico por meio da ação interessada dos agentes históricos e da pragmática
de sua interação”.15
O evento desdobra-se como uma conjugação de diferentes planos estruturais,
respectivamente marcados por fenômenos de ordem diversa. Ele acarreta um diálogo
entre as relações e forças maiores que constituem o objeto histórico [...] e as interações
locais através das quais essa história segue seu curso. A síntese requer processos
complementares de mediações: a transposição de forças globais para os termos da
ação local, e, inversamente, a expansão das ações locais para um plano de
significância global.16

Ocorre uma “dialética do evento” em três momentos: 1) a concretização “na qual as


categorias culturais mais amplas da história são representadas pelas pessoas, objetos e atos
particulares”; 2) “o desencadeamento das forças e relações encarnadas, os incidentes
propriamente ditos, que consistem no que efetivamente fazem e sofrem as pessoas assim
habilitadas como principais agentes históricos”; e 3) a totalização das consequências do
acontecido, ou o retorno do ato/fato sobre a estrutura/sistema “pela atribuição de significados
gerais a incidentes particulares”.17 Os três movimentos da dialética do evento também são

12
SAHLINS, Ibidem, p. 320.
13
O autor pondera que a antítese estrutura e evento não é praticada por todos os historiadores, mas aponta que:
“Essa antítese tem-se prolongado em demasia. É provável que já seja vestigial na prática dos eruditos, embora,
no discurso abstrato, ainda pareça ser voz corrente. E ainda existe um problema com a prática” (p.317-18).
14
In: Edgar Morin. Le Retour de l´événement. Communications, n. 18, 1979, p. 6-20.
15
SAHLINS, O Retorno do Evento, outra vez: com reflexões sobre os primórdios da Grande Guerra fijiana de
1843-1855 entre os reinos de Bau e Rewa. (cap. 11). In: SAHLINS, Marshall. Cultura na Prática. Tradução Vera
Ribeiro. 2. ed. – Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007. (Coleção Etnologia), p. 366.
16
Idem, Ibidem, p. 366.
17
Idem, Ibidem.
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marcados por descontinuidades estruturais que afastam a possibilidade de um desdobramento
mecânico entre o evento e a ordem cultural.
Sahlins (2007) se aproxima de uma “psico-história” e radicaliza ao afirmar que “a
cultura é decidida pela cultura” e que “As estruturas interagem no meio formado pelos projetos
das pessoas”18. Essa percepção parece ser exagerada no poder da ação individual, mas se
justifica pelo caso analisado de ações de chefes que resultam em guerras que envolvem a
totalidade. O autor aponta de maneira inquestionável a importância do local: “as estruturas
locais podem coibir, intensificar, orientar e direcionar de outras maneiras o desenvolvimento
de forças históricas maiores”.19
Essas contribuições de Sahlins sobre o debate sobre a importância do acontecimento se
alinham com a perspectiva do historiador medievalista George Duby, que faz uma defesa do
acontecimento como forma de evidenciar fatos e razões que poderiam ficar obscuros ou
desconsiderados numa análise estrutural:

Pelo próprio fato de ser excepcional, o acontecimento faz emergir, no afluxo de


palavras que ele libera, vestígios que, se não nos detivéssemos nele, permaneceriam
nas trevas, despercebidos, os traços mais banais de que raramente se fala no cotidiano
da vida e sobre os quais nunca se escreve.20

Outro argumento trazido por Duby diz respeito à sua importância dentro de análises
históricas, por ser um epicentro de fenômenos e acontecimentos sócio-históricos que se
entrecruzam neste acontecimento:

o acontecimento sensacional assume um inestimável valor. Pelo que, bruscamente,


ele esclarece. Por seus efeitos de ressonância, por tudo aquilo cuja explosão provoca
a ascensão desde as profundezas do não-dito, pelo que ele revela ao historiador das
latências.21

O que revela um evento/acontecimento como notável é seu aspecto peculiar por estar
prenhe de conteúdos e práticas que ocorreram somente naquele tempo e espaço. “A
significação histórica de um dado incidente – suas determinações e efeitos como “evento” –
depende do contexto cultural”.22

18
Idem, Ibidem, p. 368.
19
Idem, Ibidem, p.368.
20
DUBY, Ibidem, p. 11.
21
Idem, Ibidem, p. 9.
22
SAHLINS, O Retorno do Evento, outra vez: com reflexões sobre os primórdios da Grande Guerra fijiana de
1843-1855 entre os reinos de Bau e Rewa. (cap. 11). In: SAHLINS, Marshall. Cultura na Prática. Tradução Vera
Ribeiro. 2. ed. – Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007. (Coleção Etnologia), p. 325.
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Portanto, para adotar as concepções de Sahlins (2007) e Duby (1993) sobre a
importância dos acontecimentos para a análise dos processos sócio-históricos é preciso buscar
os aspectos peculiares do mesmo. Logo, abre espaço para análises historiográficas de
acontecimentos pontuais, mas que têm influência em diferentes espaços e em diferentes tempos,
pois deixam rastros e são constantemente resignificados. Essa característica dos acontecimentos
será melhor elucidada através da análise de um acontecimento que marcou profundamente a
luta pela terra de Marãiwatsédé: a desintrusão dos não índios da área em 2012.

A construção histórica e social de um “acontecimento-monstro”: o caso da desintrusão


dos não índios em 2012.
Conforme dito anteriormente, o principal foco de resistência dos posseiros da foi o
distrito do Posto da Mata, que tinha um número significativo de moradores que acabaram sendo
expulsos de suas casas e posses no ano de 2012, mas que viviam apreensivos com as ameaças
de desintrusão desde 1998 quando a TI foi homologada.
Mas a desintrusão somente se configurou como uma ameaça real no ano de 2012,
quando a batalha jurídica foi perdida. A partir daí ocorreu a intensificação da batalha midiática,
e os moradores do Posto da Mata passaram a se tornou alvo de assédio por parte de mídia local
e de discursos de políticos, que apesar de todas as evidências contrárias, incentivavam os
moradores a permanecer utilizando promessas de que conseguiriam reverter a situação.
A desintrusão dos posseiros da Suiá se consolidou como um acontecimento-monstro
mesmo antes de ocorrer, e foi construído em larga medida através de uma batalha midiática que
se deu por meio de uma série de reportagens e vídeos amplamente divulgados na região por
meio de canais de televisão e pela internet, de modo que atingiu parte significativa de habitantes
do Araguaia mato-grossense. Os canais de televisão e jornalistas locais elaboravam roteiros e
narrativas que ficavam longe da imparcialidade e, na maioria dos casos, apelavam
emocionalmente em prol dos posseiros da Suiá e até elaboravam, em seus editoriais, discursos
permeados de argumentos que ressaltavam os impactos econômicos para a região como um
todo.
A desintrusão dos Posseiros da Suiá “[...] se tornou um caso emblemático das crescentes
tensões no Brasil entre índios e fazendeiros, que têm explorado novas áreas na esperança de
lucrar com a crescente produção de milho, soja e outras commodities nos últimos anos”.23 Ou
seja, o caso foi significativo e emblemático, sobretudo para a região.

23
GONÇAVES, Carlos Walter Porto. Retireiros do Araguaia: Terra para vida, Terra para a Paz. 2013b. Disponível
em: <http://direitoshumanosmt.blogspot.com.br/2013/09/retireiros-do-araguaia-terra-para-vida.html>. Acesso
em: 02/09/2015, s/p.
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Mas para que tal acontecimento tivesse alcançado tamanha dimensão, foi preciso que
fosse histórica e socialmente construído. Para compreender como ocorre esse processo, é
necessário buscar referências teóricas que permitam compreender a dinâmica e os elementos
principais dessa construção de um acontecimento.
Dosse (2013) afirma que ocorreu um “renascimento do acontecimento” graças à
importância dos significados de sua construção.

A recente atenção voltada para o vestígio deixado pelo acontecimento e suas mutações
sucessivas é absolutamente fundamental e evita o falso dilema depauperado e reduto
de ter de escolher entre um acontecer [événementialité] supostamente curto e uma
longa duração chamado de estrutural. Dentro dessa perspectiva, o acontecimento não
é simples dado que basta coletar e comprovar sua realidade, é uma construção que
remete ao conjunto do universo social como matriz da constituição simbólica do
sentido.24

Ou seja: dentro do processo histórico, a construção de um acontecimento ocorre dentro


de um sistema de sentidos através do qual: “tenta-se conferir uma determinada importância em
função de um sistema de valores”.25
Tendo essa característica de ser construído dentro de sistemas de sentido e valores, fica
evidenciada a existência de uma batalha para elevar um fato para o status de um acontecimento
que é “histórico”. “O que conta não é tanto o acontecimento como tal na sua factualidade, mas
o acontecimento contado, captado na sua narrativa”,26 ele precisa ter ressonância para conseguir
atingir a seus contemporâneos e precisa ser sustentado pelo poder para ser lembrado no futuro.

Fazer acontecimento pressupõe dois fenômenos muito diferentes. Em primeiro lugar,


sobretudo na sociedade moderna midiatizada, isso implica um choque, um trauma, um
abalo que suscita primeiramente um estado de afasia. Esse primeiro aspecto, o mais
espetacular acontecimento, presume uma grande difusão que assegure e assuma sua
repercussão. [...] [Outro aspecto] essencial do acontecimento está, na realidade, no
vestígio, naquilo que ele se torna, de maneira não linear no interior dos múltiplos ecos
de seu só-depois [après-coup].27

“Sua significação é absorvida na sua ressonância; ele não é senão um eco, um espelho
da sociedade, uma abertura”28 e para que tal ressonância tenha sucesso é necessário que sua
narrativa tenha força e encontre “eco” dentro de um sistema de referência formada por crenças,

24
DOSSE, François. Renascimento do acontecimento. Um desafio para o historiador: entre Esfinge e Fênix. São
Paulo: Editora Unesp, 2013, p. 388.
25
Idem, Ibidem, p. 238.
26
Idem, Ibidem, p. 336.
27
Idem, Ibidem, p. 339.
28
NORA, Pierre. O retorno do fato. In: LE GOFF, Jacques (Comp) História: novos problemas. Direção de Jacques
Le Goff e Pierre Nora. Rio de Janeiro: F. Alves, 2ª Edição, 1979, p. 188.
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valores e concepções particulares. Esse sistema gera expectativas ali ancoradas com base na
singularidade e especificidade do contexto, um enredamento específico da forma da narrativa
sobre o acontecimento e aqueles que o transmitem.
Dosse (2013) evidencia que dentro dessa lógica existem “acontecimentos monstros”,
que atingem o cerne de uma comunidade:

O acontecimento-monstro, o acontecimento-mundo que atinge o cerne da


Comunidade ou ainda o microacontecimento que perturba a vida cotidiana do
indivíduo se afirmam cada vez mais como enigmas irresolutos de Esfinge que
interrogam as capacidades de racionalidade e conseguem demonstrar não a sua
inanidade, porém sua incapacidade de saturar o sentido do que intervém como novo,
porque fundamentalmente o enigma carregado pelo acontecimento sobrevive ao seu
desaparecimento.29

Logo, independente de sua dimensão, os acontecimentos deixam vestígios que podem


conduzir a análise numa busca através de um “esforço de apropriação é, na realidade, necessário
para identificar melhor o acontecimento, descrevê-lo, reconhecê-lo, encontrar as prováveis
determinações”.30 E ainda:

Esfinge, o acontecimento é igualmente Fênix que na realidade nunca desaparece.


Deixando os múltiplos vestígios, ele volta constantemente, com sua presença espectral.
Para brincar com os acontecimentos subsequentes provocando configurações sempre
inéditas. Nesse sentido, poucos são os acontecimentos sobre os quais podemos afirmar
que terminaram porque estão ainda suscetíveis de novas atuações31.

Portanto, os vestígios de um acontecimento não desaparecem por completo, e podem


retornar, conforme ocorrido com a deportação dos Xavante em 1966 que retorna e se consolida
como acontecimento sócio-histórico através de provas obtidas por fotografias, documentos
oficiais sobre o transporte e fontes orais no Laudo Antropológico em 1992.
No entanto, uma forma importante para o retorno dos significados e/ou a ressignificação
dos acontecimentos é a transmissão via meios de comunicação que produzem, transmitem e são
geradoras de arquivos audiovisuais sobre acontecimentos: “Nas sociedades contemporâneas é

29
DOSSE, François. Renascimento do acontecimento. Um desafio para o historiador: entre Esfinge e Fênix. São
Paulo: Editora Unesp, 2013, p. 7.
30
Idem, Ibidem, p. 265. Apesar da perspectiva do esforço por buscar tais vestígios e analisar o acontecimento, o
autor pondera que é tarefa particularmente improvável uma análise total de um acontecimento, em virtude de sua
própria natureza: “Cabe ao nosso tempo afirmar a força intempestiva do acontecimento na qualidade de
manifestação da novidade, apreendido como começo. Isso significa aceitar a incapacidade, a aposta impossível de
se confiar através de qualquer investigação, por mais minuciosa que ela seja, o sentido do acontecimento que
continua irredutível ao seu confinamento no sentido concluso e unilateral” (DOSSE, 2013, p. 13).
31
Idem, Ibidem, p. 7.
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por intermédio deles [mass media] e somente por eles que o acontecimento marca a sua
presença e não nos pode evitar”.32
Portanto, além de outras condicionantes, o acontecimento “não é nada sem seus suportes
de comunicação, exemplificando a ideia segundo a qual ser é ser percebido”33 e para se tornar
acontecimento (além das narrativas, memórias) é necessário que seja transmitido:

Longe de ser uma relação de exterioridade, as mass media participam plenamente da


própria natureza dos acontecimentos que elas transmitem. Cada vez mais, é através
delas que o acontecimento existe. Para ser, o acontecimento precisa se conhecido, e
as mídias são de maneira crescente os vetores dessa tomada de decisão.34

A construção histórica e social do acontecimento através de meios de comunicação


depende do poder e das relações políticas, uma vez que: “um acontecimento não é um já-lá,
simplesmente para ser adotado pela mídia. Ele é plenamente a construção dessa última e
depende da hierarquização de importância que decidirá levá-lo ou não à praça pública”.35
Bourdieu (2012) observou que “as relações de comunicação são, de modo inseparável,
sempre, relações de poder que dependem, na forma e no conteúdo, do poder material e
simbólico acumulados pelos agentes”.36 Logo, um acontecimento envolvendo conflito, como
no caso da luta pela terra de Marãiwatsédé, também é construído a partir de disputas por poder
simbólico nos meios de comunicação, em que os agentes sócio-históricos envolvidos tanto no
caso, como com o meio de comunicação agem objetivando impor a “definição do mundo social
conforme seus interesses”, conforme Bourdieu (2012). Dentro dessa lógica, “o poder simbólico
como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer [...] só se exerce se
for reconhecido”.37 Deste modo, o poder simbólico é uma forma transformada e legitimada de
outras formas de poder. Logo, os proprietários dos meios de comunicação detêm um poder
relativo de condicionar o que é acontecimento e o que não é, dentro de um sistema de referência
(crenças, valores etc. da sociedade) tal qual o próprio acontecimento.
Nora (2006)38 afirmou que “o acontecimento midiatizado não é mais garantia do real,
pois é a midiatização que o constituiu”.

32
NORA, Pierre, O retorno do fato. In: LE GOFF, Jacques (Comp) História: novos problemas. Direção de Jacques
Le Goff e Pierre Nora. Rio de Janeiro: F. Alves, 2ª Edição, 1979, p.181.
33
DOSSE, François. Renascimento do acontecimento. Um desafio para o historiador: entre Esfinge e Fênix. São
Paulo: Editora Unesp, 2013, p. 337.
34
Idem, Ibidem, p. 260.
35
DOSSE, Ibidem, p. 338.
36
BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. 16ª edição. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2012, p. 11.
37
Idem, Ibidem, p.14. Apesar dessa importante característica, a eficácia das ações de divulgação junto à opinião
pública não é objeto de análise, que se restringe às ações dos envolvidos na batalha midiática ao longo do processo.
38
In: Aula inaugural do ano letivo 2006-2007, em 13 de outubro de 2006. (DOSSE, 2013, p. 263).
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Noticiário policial, fato singular, fato ordinário, o acontecimento tornou-se
igualmente o lugar de investimento do imaginário de nossa sociedade moderna,
apropriado à narrativa.39
Assim o acontecimento entra em um campo semântico aberto, incerto, e as mídias vão
lhe atribuir um significado, ligando-o a uma categoria semântica particular que seja
capaz de lhe dar um sentido.40

Bonsanto Dias (2011) afirma que “[...] no jornalismo esta noção [acontecimento] está
intrínseca à construção de acontecimento enquanto material noticioso que “constrói” a
realidade”41 e ainda:

Ao relatar o acontecimento, a mídia estaria produzindo não apenas uma descrição do


acontecimento, mas emergindo um novo acontecimento que vem a integrar o mundo a
partir de seu discurso. A notícia emerge à cena pública naquilo que ela pretende fazer-
se vista, reconhecida, lembrada42.

O poder obtido ao narrar, discursar e mesmo construir um acontecimento é próprio dos


meios de comunicação para construção de um acontecimento e de que [...] é impossível separar
artificialmente o que é um acontecimento de seus suportes de produção e de difusão”43, a análise
recai sobre a batalha midiática focando na construção da desintrusão dos posseiros da Suiá
como o acontecimento-monstro através dos meios de comunicação de massa, tendo como base
um sistema de referência social e histórica.
Os meses, semanas e dias que antecederam o “dia D” foram permeados de reportagens
e vídeos divulgados sobre a possibilidade da desintrusão. Essa situação remete a outro caso de
acontecimento mostro transmitido ao vivo:

Assim como o atentado de 11 de setembro de 2011, a televisão transmite os


acontecimentos ao vivo ou com ampla cobertura. [...] a televisão não é responsável por
esse resultado narrativo, que era sobre determinado. Porém, desempenhou um
importante papel, pois ela garantiu a transmissão ao mesmo tempo do conhecimento
visual e da narrativa heroica44.

Essa consideração em relação a outro exemplo de cobertura jornalística permite analisar


como esses meios de comunicação são capazes de construir e consolidar narrativas, a partir de

39
DOSSE, Ibidem, p. 262.
40
Idem, Ibidem, p. 268.
41
BONSANTO DIAS, André. Pensar o acontecimento: Jornalismo, temporalidade e narrativa em uma
perspectiva histórica. In: Verso e Reverso, XXV, 2011.
42
BONSANTO DIAS, Ibidem, p.174.
43
DOSSE, François. Renascimento do acontecimento. Um desafio para o historiador: entre Esfinge e Fênix. São
Paulo: Editora Unesp, 2013, p. 260.
44
Idem, Ibidem, p. 261 apud GLUCK, 2003, p. 138.
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um sistema de valores socialmente consolidado. Isso porque os meios de comunicação
necessitam que sua narrativa seja inteligível aos receptores e que de certa forma, homogeneíze
as múltiplas percepções sobre o acontecimento narrado.

Essa dependência em relação à situação de percepção do agente exige a existência de


realidades múltiplas e discordantes entre elas, segundo diversos depoimentos. O
problema é de saber por qual meio perceber um acontecimento quando sabemos que ele
foi único e que, portanto, é percebido de maneira tão diferente entre seus agentes que
parecem ser acontecimentos distintos, sem correlação45.

Cabe ao historiador trazer as múltiplas percepções e confecções que envolvem um


acontecimento e que não são exploradas pelos meios de comunicação. Mas para realizar essa
análise, primeiro é necessário compreender qual é a importância da cobertura midiática em
relação ao acontecimento analisado. No presente caso, será preciso compreender como a mídia
local agiu e interferiu sobre a desintrusão dos não índios em 2012.

A cobertura jornalística da mídia local e a desintrusão dos não índios em 2012


Os meios de comunicação locais dinamizaram as possibilidades de não apenas o
acontecimento ser transmitido, mas de ser divulgado, sobretudo no ano e meses que sucederam
a concretização da desintrusão. Os vestígios deixados por este acontecimento-monstro podem
ser encontrados antes e depois de seu ápice em dezembro de 2012. As coberturas jornalísticas
dos canais de televisão locais ocorreram de maneira constante nos meses anteriores à
desintrusão, sendo que muitas reportagens foram gravadas e utilizadas como vídeos de
divulgação pelos posseiros da Suiá e seus aliados com finalidade de sensibilizar a opinião
pública sobre sua causa. A ação de equipes de reportagem local foi significativa, e
acompanharam ao vivo a resistência dos posseiros da Suiá através de manifestações e sua
organização nos meses anteriores à desintrusão, o que resultou numa construção de expectativa
da opinião pública sobre o desfecho do conflito.
Para analisar esse fenômeno a partir de elementos empíricos, foram utilizadas como
fontes as reportagens da TV Araguaia, filiada da Record na região que detém audiência
significativa em toda a região. As reportagens apresentam uma narrativa marcada pela emoção.
A utilização de um exemplo de família vitimizada pela situação se deu através da exibição de
imagens de um casal com uma criança pequena reforça a intenção de sensibilizar ainda mais o

45
Idem, Ibidem, p. 271.
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telespectador, a partir de uma identificação a partir da apresentação de uma família à espera do
momento que seria expulsa do lugar onde morava. Apenas um elemento não foi concretizado:
a transmissão de um depoimento emocionado do pai ou da mãe, que preferiram não gravar
entrevista, mas que foi substituído pelo uso da imagem da família e uma síntese com efeito
didático: “um momento difícil”; portanto, a narrativa do acontecimento não perdeu sua
sequência lógica de sensibilizar para depois informar sobre mais fatos.
A principal questão que relaciona diretamente a atuação das narrativas jornalísticas com
a construção do acontecimento ocorreu com a resistência dos posseiros, que foi agigantada. A
divulgação de fatos e relatos dos posseiros afirmando que iriam resistir acabou por aumentar o
temor dos envolvidos com o processo de retirada dos mesmos, e a presença de homens do
Exército, Polícia Rodoviária Federal e Polícia Federal se intensificou no distrito do Posto da
Mata. A partir de 16/11/2012 tropas da Força Nacional, Exército, PRF e PF montam base no
Posto da Mata para realizarem a desintrusão.
A cobertura midiática local continuou construindo suas narrativas e o próprio
acontecimento. Um exemplo ilustrativo foi a reportagem realizada no momento em que os
posseiros da Suiá aguardavam a chegada dos militares meses antes da desintrusão:

Em vigília. É assim que os moradores da área Suiá Missú demarcada como Reserva
Indígena Marãiwatsédé estão passando a noite. Eles revessam, noite após noite, na
tentativa de chamar a atenção das autoridades para a desocupação tão temida pelos
moradores. Enquanto alguns conversam, estes outros pedem auxílio aos céus em
forma de oração. Famílias inteiras estão no local, uma criança de um ano dorme com
o pai e com a mãe. Sem gravar entrevista, eles disseram à nossa reportagem que é um
momento difícil. De repente um alerta: um ônibus cheio de militares chega na barreira
formado na BR 242 (Reportagem TV Araguaia, 10/12/2012).46

Apesar de estarem no distrito e na região cumprindo ordens e com um planejamento de não


utilizar violência contra os posseiros da Suiá, a presença desses agentes foi intimidadora. Sobretudo de
agentes do Exército e da Polícia Federal, nas proximidades da data da desintrusão causava medo e
insegurança aos moradores do Posto da Mata que resistiram à decisão judicial de desocuparem a área.
A presença desses homens gerou, por sua vez, maiores temores e manifestações de posseiro e de aliados,
que ocorreram de diversas formas, acompanhadas ao vivo pela mídia local:

De volta aos Posto da Mata, onde há concentração do movimento, eles preparam mais
um manifesto. Desta vez esticam tecidos pretos no posto, amarram o preto na cabeça
de mulheres, homens e crianças, definindo tudo: estamos de luto pelas famílias da
Suiá Missú. Neste protesto não há um político que represente as autoridades, não há
uma explicação de como será feita a retirada das famílias, não há um plano de

46
Disponível em: ˂https://www.youtube.com/watch?v=5y_d9r2rOMU˃. Acesso em: 20/11/2013.
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desintrusão para a área que deve ser esvaziada a partir dessa segunda feira, dia 10
(Reportagem TV Araguaia, 10/12/2012). 47

Manifestações e protestos foram registrados por meio de fotografias que passam a ser
divulgadas por meio de redes sociais e páginas da internet, possibilitando que o acontecimento
que se aproximava fosse amplamente conhecido. A divulgação do acontecimento foi se
utilizando de exemplos de trajetórias de pequenos e médios posseiros sendo transmitidas e
divulgadas, sobretudo nos meios de comunicação locais. O fato é que eram permeadas de
elementos que provocavam sensibilização. Na mesma lógica, as manifestações utilizaram os
mais vulneráveis como mulheres, idosos e crianças para potencializar a sensibilização da
opinião pública.
Esse argumento sustenta as narrativas que foram noticiadas, mas na véspera da
desintrusão o tom muda e adquire uma entonação de lástima pela derrota dos posseiros:

É triste, mas a realidade é essa. Nós fizemos tudo que a gente pode fazer através dos
veículos de comunicação, abaixo assinado, falando do caso, tentando mexer com o
emocional das nossas autoridades, porque nós não queríamos que chegasse nesse dia
[véspera da desintrusão]. [...] Eu não tenho dúvida de que esse será o final de ano mais
triste destas famílias. Não porque elas estão perdendo bens materiais, não só isso. É
porque é uma derrota física, uma derrota psicológica, uma derrota de cidadania, é uma
derrota de você não ter direito sobre aquilo que você acreditou que sempre foi seu. É
perder a dignidade (Reportagem TV Araguaia, 07/12/2012).48

A fonte oral da jornalista foi o fechamento do programa que a mesma apresentava na


TV Araguaia, e demonstra claramente que aquele meio de comunicação, (personalizada nela
enquanto âncora), tinha uma posição quanto ao processo de luta pela terra Marãiwatsédé e que
havia realizado a divulgação do caso, bem como o apelo emocional para que as autoridades
fossem influenciadas. O tom de apelo emocional permanece a sua narrativa ao falar de família,
direito, cidadania e dignidade. A jornalista incorporou, portanto, a narrativa e mesmo o tom de
revolta e injustiça que estava presente antes, durante e mesmo depois da desintrusão.
Conforme Bonsanto Dias,49 o jornalista é um “agente ativo na construção do
acontecimento. As notícias não refletem o mundo exterior sob a ótica de um profissional
meramente observador que se anula’ e apenas reproduz’ o acontecimento na notícia”. Portanto,
jornalistas como agentes sócio-históricos entram na batalha midiática emitindo opiniões e
endossando argumentos que envolvem o acontecimento. Nas narrativas e editorias é possível

47
Disponível em: ˂https://www.Youtube.com/watch?v=5y_d9r2rOMU˃. Acesso em: 20/11/2013.
48
Programa da TV Araguaia. Disponível em: ˂https://www.youtube.com/watch?v=UtRn4T7VxHss˃. Acesso em:
04/01/2015.
49
BONSANTO DIAS, Pensar o acontecimento: Jornalismo, temporalidade e narrativa em uma perspectiva
histórica. In: Verso e Reverso, XXV, 2011, p.174.
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verificar que os jornalistas locais, na maioria, incorporaram argumentos produzidos pelos
posseiros da Suiá e seus aliados, e o principal era que o acontecimento era injusto.
A presença da equipe de reportagem foi narrada pela mesma jornalista numa cobertura
para o Jornal Agência de Notícias, na qual o posicionamento foi claro:

Nessa quarta-feira a equipe de reportagem do Agência da Notícia foi de Confresa ao


Posto da Mata acompanhar de perto o clima em que as mais de sete mil pessoas que
vivem na área de conflito. Dos poucos mais de 100 quilômetros percorridos pela nossa
reportagem, o cinegrafista Tiago Nalevaiko pode colher algumas imagens da área
produtiva, e o que vimos foram centenas de cabeças de gado nos piquetes, separados
para serem colocados nas estradas e levados para algum lugar sem destino certo, afinal
são quase 300 mil cabeças de gado que estão na área. Além dos pastos, uma grande
área praticamente pronta pra ser transformada em terra de agricultura, além dos 15
mil hectares de terra já plantados com a soja (Reportagem “Suiá Missú: O Vale dos
Esquecidos está de volta”, 06/12/2012).50

A tônica da injustiça social recaia tanto na apresentação de pequenos posseiros


empobrecidos que não tinham condições de comprarem terra para morar e poder tirar dela seu
sustento, como dos grandes “proprietários” que traziam o desenvolvimento econômico para a
região. Construiu-se a percepção de que as batalhas anteriores não haviam resolvido o conflito
e tudo seria resolvido com uma guerra no dia da desintrusão. As narrativas descrevem e
apresentam com imagens a situação da véspera da desintrusão, aguardando junto com os
moradores até que chegou o dia D:

A dois dias do prazo final para a desintrusão dentro do distrito de Estrela do Araguaia,
as cenas mais comuns são essas: polícia nas ruas, oficial de justiça acompanhado de
policiais visitando residências e comércios, caminhões carregados com mudança,
casas e comércios sendo desmanchados e muita, mas muita revolta (Reportagem Rede
TV, 10/12/2012).51

No dia 07/12/2012 foi iniciada a desintrusão, e no dia seguinte ocorreu nova


manifestação com um cortejo de um caixão que simbolizava os “sonhos enterrados” dos
posseiros da Suiá. O dia mais tenso e de conflito entre a Força Nacional e os posseiros foi o
dia 10 e em outro dia parte da população das cidades de Alto Boa Vista e São Félix do Araguaia
interditaram trechos da BR 158 em apoio aos posseiros da Suiá. No dia 04/01/2013 a
desintrusão havia ocorrido e 60% dos posseiros da Suiá haviam sido retirados. A narrativa da
desintrusão foi sendo construída como se o acontecimento fosse uma guerra:

50
Disponível em: ˂https://www.youtube.com/watch?v=UtRn4T7VxHs˃ Acesso em: 04/01/2015.
51
Disponível em: ˂https://www.youtube.com/watch?v=5y_d9r2rOMU˃. Acesso em: 20/11/2013.
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O Posto da Mata, como é conhecido o Distrito Estrela do Araguaia, foi tomado pelas
forças policiais neste domingo, 30 de dezembro. Os policiais entraram dentro da vila
usando bombas de ar lacrimogêneo e balas de borracha na tentativa de intimidar a
população. Eles estavam em muitas viaturas, helicópteros e alguns policiais
encapuzados. Eles montaram uma base no posto de combustível que deu origem ao
nome do distrito Posto da Mata. Logo no posto onde as pessoas estavam juntas em
manifesto, os policiais quebraram o pula-pula que estava no posto e desmancharam
totalmente os barracos que foram levantados próximo ao posto de combustível. As
BRs 242 e 158 continuam liberadas, e o tráfego é normal. Mas dentro do Posto da
Mata o sentimento é de angustia e de revolta. Moradores estão saindo em situação de
desespero pois muitos dizem não ter para onde ir (Reportagem Rede TV).52

A narrativa do “dia D” foi marcada por expressões que remetem ao sentimento dos
moradores de angústia e revolta, mas que não deixaram de ser compartilhados pela jornalista.
Após a desintrusão outras reportagens foram realizadas destacando a situação de abandono em
que estavam das famílias que foram retiradas no processo de desintrusão, mantendo uma
narrativa marcada pelo tom de revolta.
É fundamental destacar que a narrativa jornalística partiu de um conjunto de valores
presentes nos moradores da região e telespectadores. Estes valores estão partem da legitimidade
do domínio da terra daquele que adquiriu a terra ou nela produz. Apesar da invasão de 1992 por
parte de posseiros e grileiros, ocorreu a venda do direito da terra, inclusive com escrituras
registradas em cartório, que levou diversos agentes sócio-históricos a comprar a terra. Esse
elemento, somado a outros como a sensibilização da opinião pública em relação ao fato de que
famílias ficariam sem moradia e terra para se sustentar, permitiu a construção histórica desse
acontecimento-monstro.

Considerações Finais
Após a desintrusão em 2012, a mídia local acompanhou intensamente por mais de um
ano a situação dos posseiros que foram expulsos e ficaram sem ter onde morar e acabaram
acampando as margens de rodovia 158. Depois a cobertura midiática recuou e os
acontecimentos posteriores pararam de ser mostrados nos programas televisivos com a
frequência que era mostrada anteriormente.
No decorrer desse processo histórico, e, sobretudo durante a explosão do acontecimento,
os jornalistas locais se colocaram como agentes sócio-históricos participantes desse
acontecimento-monstro. A atuação desses meios de comunicação e jornalistas como agentes
sócio-históricos envolvidos na desintrusão dos posseiros da Suiá, contribuiu para a divulgação

52
Disponível em: ˂https://www.youtube.com/watch?v=0ayS7t54FXw˃. Acesso em: 20/11/2013.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 250-270 | www.ars.historia.ufrj.br 268
e uma maior ressonância desse acontecimento-monstro de modo que seus vestígios são sentidos
para além do “dia D”.
A luta pela terra Marãiwatsédé não acabou com a desintrusão dos não índios e ainda de
desdobra em batalhas jurídicas e em ações como queimadas criminosas e voos com o despejo
de agrotóxicos sobre as terras dominadas pelos Xavante. Vestígios que, conforme reflexões de
Dosse, possivelmente indicam que uma Fênix pode ressurgir das cinzas e escombros do Posto
da Mata, significando-os e modificando os rumos da luta pela Marãiwatsédé.

Referências Bibliográficas

Livros
BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. 16. ed. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil,
2012.

DOSSE, François. Renascimento do acontecimento. Um desafio para o historiador: entre


Esfinge e Fênix. São Paulo: Editora Unesp, 2013.

DUBY, Georges. O Domingo de Bouvines: 27 de julho de 1214. Tradução Maria Cristina Frias.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do Outro nos confins do humano. 2. ed,
São Paulo: Contexto, 2009.

MORENO, Gislaine. Os (des)caminhos da Apropriação Capitalista em Mato Grosso. Tese


(Doutorado em Geografia Humana) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1993.

Capítulos de livros
NORA, Pierre. O retorno do fato. In: LE GOFF, Jacques (Comp) História: novos problemas.
Direção de Jacques Le Goff e Pierre Nora. Rio de Janeiro: F. Alves, 2. Ed., 1979, p. 179-193.

SAHLINS, Marshall. O Retorno do Evento, outra vez: com reflexões sobre os primórdios da
Grande Guerra fijiana de 1843-1855 entre os reinos de Bau e Rewa. (cap. 11). In: SAHLINS,
Marshall. Cultura na Prática. Tradução Vera Ribeiro. 2. ed. – Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
2007. (Coleção Etnologia).

Artigos em periódicos
BONSANTO DIAS, André. Pensar o acontecimento: Jornalismo, temporalidade e
narrativa em uma perspectiva histórica. In: Verso e Reverso, XXV, 2011.

Fontes Documentais

Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 250-270 | www.ars.historia.ufrj.br 269
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GONÇAVES, Carlos Walter Porto. [Artigo] Retireiros do Araguaia: Terra para vida, Terra
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OPAN, ANSA. [Livro] Marãiwatsédé: Terra da Esperança. 2012. p. 8.


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Reportagem TV Araguaia, 07/12/2012. Programa da TV Araguaia.


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Reportagem Suiá Missú: O Vale dos Esquecidos está de volta, 06/12/2012.


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Reportagem Rede TV, 28/12/2012.


Disponível em: ˂https://www.youtube.com/watch?v=0ayS7t54FXw˃. Acesso em: 20/11/2013.

RODRIGUES, Patrícia de Mendonça. [Laudo]. Relatório de identificação da área indígena


“Marãiwatsédé”. Brasília: FUNAI, Portaria n. 9 de 20/01/1992.

Indicação
AXA - Articulação Xingu Araguaia. [Imagem] Mapa do local do conflito. 12/02/2014.
Disponível em: <http://www.axa.org.br/2014/02/posseiros-retirados-de-maraiwatsede-serao-
assentados-em-santa-terezinha-alto-boa-vista/>. Acesso em: 15/01/2015.

Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 250-270 | www.ars.historia.ufrj.br 270
Artigo

“O BARRIL DE PÓLVORA DE CHAPECÓ”:


REPRESENTAÇÕES DA DISPUTA PELA TERRA
EM SEDE TRENTIN/TOLDO CHIMBANGUE NO
JORNAL O ESTADO – 1982-1985
DOUGLAS SATIRIO DA ROCHA*

Resumo: Em meados da década de 1980, os problemas relativos à terra na região Oeste


Catarinense, ganharam destaque em vários jornais. O contexto do surgimento e atuação de
movimentos sociais no campo, somado às várias problemáticas já existentes nessa região,
marcaram um período em que a mesma, foi abordada como um espaço de constantes
“conflitos”. Nesse cenário, destacamos o movimento de retomada das terras do Toldo
Chimbangue, pelos índios Kaingang, no início da década de 1980. A mobilização dos índios
enfrentou forte resistência das famílias de colonos que moravam nas terras reivindicadas,
desencadeando um contexto de disputas, acompanhado e noticiado na imprensa escrita
estadual. O trabalho de cobertura jornalística do jornal O Estado – jornal de abrangência
estadual, com sede em Florianópolis-SC – fez com que a questão circulasse em diferentes
regiões de Santa Catarina. Mais do que fatos e informações, circularam discursos e
representações sobre uma região historicamente conhecida pelos problemas e disputas em
torno da terra. Diante disso, este artigo tem por objetivo compreender de que modo o jornal
apresentou esta problemática e como certos sentidos e representações foram construídos sobre
a disputa entre índios e colonos. Foram analisadas as publicações do jornal entre os anos de
1982 e 1985, ano da demarcação parcial da terra reivindicada pelos índios Kaingang.

Palavras-chave: Representações; jornal O Estado; disputa pela terra.

Abstract: In the mid-1980s, problems relating to land in the western Santa Catarina region
gained prominence in several newspapers. The emergence of context and role of social
movements in the field added to several existing problems in the region marked a period in
which it was approached as a space of constant “conflicts”. In this scenario, we highlight the
movement of resumption of land Awning Chimbangue by Kaingang indians in the early
1980s. This mobilization of the indians faced strong resistance from the families of settlers
who lived in the lands claimed, triggering a context of disputes monitored and reported in
written press state. The news coverage of the newspaper O Estado – statewide newspaper,
based in Florianópolis, SC – made the issue circulate in different regions of Santa Catarina.
More than facts and information, discourses and representations were also spread, regarding
of a region historically known for problems and disputes over land. This article then aims to

Artigo recebido em 01 de março de 2016 e aprovado para publicação em 01 de junho de 2016.

* Mestrando em História no Programa de Pós-Graduação em História Regional da Universidade de Passo Fundo


– UPF, - bolsista FUPF. E-mail: douglaz@unochapeco.edu.br
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 271-288 | www.ars.historia.ufrj.br 271
understand how the newspaper presented this issue and how certain meanings and
representations were built on the dispute between Indians and settlers. The newspaper
publications analyzed range between 1982 and 1985, the partial demarcation of the land
claimed by the Kaingang.

Keywords: Representations; O Estado newspaper; Disputes over land.

Introdução
As discussões que permeiam este artigo visam identificar e compreender as
representações da disputa pela terra envolvendo índios e colonos de Sede Trentin/Toldo
Chimbangue, no jornal O Estado1, entre os anos de 1982 e 1985. O trabalho parte da
necessidade de analisar um aspecto ainda pouco observado sobre as disputas de terra na
região Oeste de Santa Catarina: as representações construídas pela imprensa escrita. Neste
sentido, tomamos como objeto de investigação, as notícias sobre a disputa de terra entre
índios e colonos, publicados num jornal de Florianópolis, capital de Santa Catarina. Devido a
sua cobertura e distribuição ser estadualizada e no período, ter publicado várias notícias sobre
a questão, o jornal “O Estado”, foi escolhido como fonte principal a ser problematizada. Para
além do caráter informativo que o jornal apresenta, o desafio é compreender esta produção
jornalística e suas implicações na construção de um imaginário, sobre estas disputas e seus
atores sociais.
Seguindo esta proposta, salientamos que as disputas de terra, marcam uma parcela
significativa da história da região Oeste Catarinense e delimitam um lugar na memória e na
representação sobre essa região. As disputas também ganharam um espaço ou uma
continuidade, quase despercebida – a esfera pública – através das páginas da imprensa. É
possível dizer que existe o “conflito”, sendo traduzido para a sociedade, por meio do trabalho
da imprensa, o que pode ser compreendido, como parte do processo de disputa. Nesta
perspectiva, cabe igualmente destacar que os envolvidos, ao mesmo tempo em que são
apresentados e representados pela imprensa, utilizam-se dela e de seu papel mobilizador e
“formador” da opinião pública.
Não é de hoje, que as questões sobre a terra no Oeste, permeiam as pautas da
imprensa. As diferentes problemáticas em torno do tema, que marcaram esta região, foram
apresentadas e debatidas na imprensa ao longo século XX, permanecendo nas páginas dos
jornais, os relatos e principalmente os olhares e filtros da imprensa de cada época. Mais do

1
O Estado era um jornal tradicional do estado de Santa Catarina, com sede em Florianópolis e com sucursais em
várias cidades, inclusive em Chapecó. Inaugurado em 1915, passou por várias transformações ao passo que no
início da década de 1980 foi considerado um dos maiores e mais antigos jornais de Santa Catarina.
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que “informar”, no Oeste Catarinense – e sobre o Oeste catarinense – a imprensa se fez parte
constituinte da história, construindo ideias, discursos e disseminando formas de ver e entender
a “realidade”. Sob esta perspectiva, torna-se necessário examinar suas informações com
outros olhares e buscar compreendê-la, como um agente participante na configuração das
representações sociais de um dado momento.
De fato, a imprensa exerce um papel determinante na construção e circulação de
representações na (e da) sociedade. É um dos meios utilizados para a circulação de formas
simbólicas, sejam elas por meio de imagens ou de discursos. São artifícios usados dentro de
um processo complexo, que tende a construir representações de ideias sobre determinados
elementos presentes no cotidiano.
Charaudeau, referindo-se às representações, afirma que elas,

[…] ao construírem uma organização do real através de imagens mentais transpostas


em discursos ou em outras manifestações comportamentais dos indivíduos que
vivem em sociedade, estão incluídas no real, ou mesmo dadas como se fossem o
próprio real.2

As representações, segundo o autor, “apontam para um desejo social” produzindo


normas e revelando sistemas de valores. “[…] são as palavras que apontam para as
representações […] Palavras usadas em situações recorrentes pelos mesmos tipos de locutores
acabam por tornar-se, portadoras de determinados valores”.3
Jovchelovitch,4 afirma que “Ao se engajar na tarefa simbólica e compartilhada de
representar uma dada realidade, sujeitos sociais elaboram sua relação com o mundo social e o
investem com afetos e valores”. Como foi bem apontado pela autora, os afetos e valores estão
presentes na escrita da imprensa, uma vez que o modo como os eventos podem ser pautados
nela, e como a escrita, muito longe de ser uma expressão isenta e imparcial, releva sob várias
formas e maneiras de uma pessoa, instituição, e/ou grupo de ver a realidade e representá-la.
Desta forma, a imprensa apresenta-se como um dos elementos constitutivos do social,
pois, ao passo que informa, interpreta e opina, propõe as suas leituras da realidade social. Para
Burke e Brigges,5 “O verbo ‘informar’, derivado do latim, originalmente significava em
inglês e francês, não somente relatar os fatos, o que poderia ser incriminador, mas ‘formar a

2
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo, Contexto, 2012. p. 47.
3
Ibidem, p. 48
4
JOVCHELOVITCH, Sandra. Representações Sociais e Esfera Pública: a construção simbólica dos espaços
públicos no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. p. 109.
5
BRIGGS, Asa. BURKE, Peter. Informação, educação, entretenimento. In: ___________Uma história social da
mídia. Tradução Maria Carmelita Pádua Dias; revisão técnica Paulo Vaz. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2006. p. 188.
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mente’”. Neste sentido, como podemos observar, os jornais, por meio de suas publicações,
tendem a informar os indivíduos, mas principalmente, expõem suas intenções frente aos fatos
do cotidiano.
O fato de evidenciarem com maior “prestígio” e alcance/quantidade as suas
interpretações do mundo, confere à sua prática, o poder de “impor” certos sentidos e formas
de compreender a complexidade das relações dos indivíduos do tempo e no espaço. Pois, a
construção do mundo social se emprega também por meio da tentativa de “imposição” e
legitimação da visão daqueles que estão incumbidos de representar a realidade.
Nesse campo, Bourdieu6 evidencia que é através de um poder simbólico a construção
da realidade, no qual também potencializa a “dominação” entre as classes. Vale esclarecer que
“[...] os agentes detêm um poder à proporção de seu capital, quer dizer, em proporção ao
reconhecimento que recebem de um grupo”7. A imprensa, situada neste campo se encarrega de
representar os acontecimentos, conforme suas lentes, ao passo que, por meio de símbolos e
imagens opera no sentido de traduzir e principalmente construir a realidade.

Os símbolos são os instrumentos por excelência da integração social: enquanto


instrumento de conhecimento e de comunicação […] eles tornam possível o
consensus acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para
a reprodução da ordem social […].8

Contudo, através desta “função”, o que se coloca também é uma dominação da visão
de uma classe social sobre a outra, gerando o que Bourdieu chama de “luta simbólica” entre
as classes, para impor a sua definição de mundo social.
Além disso, a cobertura dos acontecimentos, de acordo com Barbosa,9 está estruturada
de forma que legitime também os núcleos de poder. “O noticiário […] marginaliza os núcleos
não hegemônicos. Tais grupos, […] ficam excluídos, passando a figurar como notícia, apenas
quando surgem problemas de grandes repercussões [...]”.10Nesta prática, conforme aponta a
autora, o jornalismo assume um caráter elitista.
Moraes,11 destacando a contribuição teórica de Gramsci, para o entendimento dos
meios de comunicação, indica que “O discurso midiático interfere na cartografia do mundo

6
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: DIFEL, 1989.
7
Ibidem, p. 145
8
Ibidem, p. 10.
9
BARBOSA, Marialva. Jornalistas, “senhores da memória”? In: IV Encontro dos Núcleos de Pesquisa da
Intercom - XXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Porto Alegre – RS, 2004. Disponível em:
http://www.ccmj.org.br/sites/default/files/BARBOSA%20Marialva.pdf. Acesso em: 30/09/2015.
10
BARBOSA, Marialva. Jornalistas, “senhores da memória”? In: IV Encontro dos Núcleos de Pesquisa da
Intercom - XXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Porto Alegre – RS, 2004. p. 03)
11
MORAES, Denis. Comunicação, hegemonia e contra-hegemonia: a contribuição teórica de Gramsci. Revista
Debates, Porto Alegre, v.4, n.1, p. 54-77, jan.-jun. 2010. p. 67.
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coletivo, na medida em que propõe óticas argumentativas sobre a realidade, aceitas por
amplos segmentos sociais, dentro de uma lógica de identificação e correspondência”.
Barbosa12 destaca que como não é possível informar a totalidade, o jornalismo
seleciona e hierarquiza as informações. Os jornais, através de critérios próprios e subjetivos,
classificam a realidade e expõe uma seleção dos temas que devem ser lembrados, aquilo que
não se tem interesse, automaticamente é excluído por não ser noticiado; não ser lembrado.
Nesta perspectiva, Luca13 também destaca que “a imprensa periódica seleciona, ordena
a estrutura e narra, de uma determinada forma, aquilo que se elegeu como digno de chegar até
o público”. É nesta condição que os jornais e jornalistas têm o poder de transformar certos
acontecimentos em notícia e além de dar existência ao acontecimento, têm o poder de
imprimir com exclusividade a “primeira” versão/visão. Sendo assim, suas páginas escritas nos
levam a identificar e problematizar aquilo que determinados grupos elegeram como
importante de ser noticiado e principalmente, os símbolos e imagens utilizados para
representar as visões do seu tempo.

A problemática das disputas pela terra no Oeste e a repercussão na imprensa escrita


Os índios Kaingang do Toldo Chimbangue, no final da década de 1970 e início nos
anos 80,14 construíram um movimento de recuperação de suas terras, fato este que “não
deixou de ser conflituoso, uma vez que as colonizadoras não reconheceram a existência
desses grupos.”15 O movimento remonta a um histórico de problemas em torno da ocupação
desta área. A região que muito tempo fora habitada por populações indígenas e caboclos
inseriu-se numa nova relação – tanto jurídica como econômica – com a terra e a propriedade,
especialmente após o início do processo de colonização, a partir das primeiras décadas do
século XX. Este novo olhar para a terra foi gradativamente excluindo os indígenas e caboclos
e privilegiando os novos grupos – colonos – vindos do Rio Grande do Sul, já inseridos na
lógica de mercado.

[…] a presença indígena não se articulava/articula com o projeto político de


colonização européia e de implantação do progresso, como pode ser visto por várias

12
BARBOSA, Marialva. op. cit.
13
LUCA, Tânia Regina de. A história dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.).
Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2006. p. 139.
14
De acordo com Facco, Lemes, et al (2008) a partir de 1982, com apoio do CIMI os Kaigang começaram a
pressionar efetivamente a FUNAI para reconquistar suas terras. Ver FACCO, Janete; LEMES, Loivo A.;
PIOVEZANA, Leonel. O índio, a aldeia e o urbano na formação sócio espacial de Chapecó. In: Cadernos do
CEOM – Chapecó: Argos, 2008. p. 183-205.
15
RENK, Arlene Anélia. Território e alteridade: construções sociais do oeste catarinense. In: BLOEMER, Neusa
Maria Sens; et al. Os Kaingang no oeste catarinense. Tradição e atualidade. Chapecó: Argos, p. 2007. p.
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obras que tratam da colonização no Oeste do Estado. Os povos indígenas foram
associados ao atraso e muitas vezes considerados como empecilhos para o progresso
e civilização.16

Quanto aos Kaingang do Chimbangue, em especial, Silva17 aponta que eles


permaneceram praticamente sem serem “ameaçados” até inicio do século XX. Para o autor, as
atividades econômicas existentes na região, naquele período, ainda eram incipientes, “levando
em consideração que a atividade econômica estava pautada na exploração madeireira, sendo
que essa encontrava na pouca navegabilidade do Rio Irani, um obstáculo a seu
desenvolvimento”.18 Por esse motivo, segundo D'angelis,19 “a extração madeireira só atingirá
o Toldo Chimbangue em fins da década de 1930”.
O cenário da região vinha mudando consideravelmente, após o fim da Guerra do
Contestado e a definição de limites entre Santa Catarina e Paraná (1916)20. É importante
destacar que o governo de Santa Catarina, após o acordo de limites, passou a incentivar a
colonização da região Oeste, empreendida por companhias de colonização que vendiam lotes
de terras aos colonos do Rio Grande do Sul, descendentes de europeus. As áreas de mata no
Oeste, com “terra nova” e valores favoráveis em relação às do Rio Grande do Sul, eram a
promessa de uma vida melhor para aqueles que migravam.
Dois lados, com práticas e objetivos bem distintos em relação a terra, acabaram se
cruzando em um mesmo espaço. De um lado, os indígenas que tinham a terra e a floresta
como lugar de sobrevivência, forma de vida e continuidade cultural; e de outro, os colonos
16
SAVOLDI, Adiles; RENK, Arlene. Territorialidades cruzadas: a construção das identidades indígenas e
caboclas no Oeste Catarinense. In: 36º Encontro Anual da Anpocs GT11 - Estudos rurais e etnologia indígena:
diálogos e intersecções. Águas de Lindóia – SP, 2012. Disponível em:
http://portal.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=7960&Itemid=76. Acesso
em:15/12/2015. p. 07.
17
SILVA, Marcos Antônio. Memórias que lutam por identidade: a demarcação da Terra Indígena Toldo
Chimbangue (SC) – 1970 – 1986. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, 2006.
18
SILVA, Marcos Antônio. Memórias que lutam por identidade: a demarcação da Terra Indígena Toldo
Chimbangue (SC) – 1970 – 1986. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, 2006. p. 66.
19
D´ANGELIS, Wilmar da Rocha. Toldo Chimbangue: história e luta Kaingang em Santa Catarina. Xanxerê,
SC: Regional Sul do CIMI. 1984. p. 54.
20
Ao tratar sobre a viagem do governador – na época Presidente de estado - Adolf Konder em 1929, Renk (2005,
p. 111) destaca que “O atual Oeste catarinense (território, na acepção clássica da Geografia, enquanto espaço
delimitado) passou por disputas de fronteiras e configurações espaciais. A primeira foi a questão de Palmas, entre
Brasil e Argentina. Dirimida aquela, a disputa é de âmbito interno, na qual Paraná e Santa Catarina discutem
fronteiras, terras impostos e cargos políticos, resultando na Questão do Contestado, resolvida em 1917. Nesse
acordo foi figurado o atual desenho do Oeste Catarinense, valendo-se de fronteiras naturalizadas, fundamentadas
nos cursos d'água: do Rio do Peixe, Uruguai ao Peperi-Guaçú, separando-os dos ‘espanhoes confinantes’ ao
oeste”. Ver: RENK, Arlene. O conhecimento do território: a Bandeira de Konder. In: Centro de Memória do
Oeste de Santa Catarina (ORG.). A viagem de 1929: Oeste de Santa Catarina : documentos e leituras. Chapecó:
Argos, 2005. p. 109 – 128. Arlene Renk, em “Narrativas da diferença” (2004) também afirma que a região oeste
passou a ser denominada como tal a partir de 1920, anteriormente, nos mapas era identificada como zona
desconhecida e despovoada.
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que almejavam a terra e a floresta como campo produtivo a ser transformado.
Diante disso, as populações que já habitavam estas áreas, sentiam de maneira inversa
este processo, pois na medida em que a colonização avançava, a instabilidade e
desestruturação dessas populações também se acentuava.

A situação dos Kaingáng que habitavam a região do Rio Irani passou a ser
preocupante quando no ano de 1919 a Companhia Colonizadora Luce, Rosa & CIA.
LTDA. comprou as terras de posse dos descendentes da Baronesa de Limeira, que
abarcavam a fazenda Barra Grande, a mesma que, em 1892, José Joaquim de
Moraes mandou registrar em seu nome.21

A partir do momento em que as terras passaram a ter um valor econômico maior,


devido o processo de colonização, os Kaingang foram forçados a se deslocarem para áreas
mais afastadas. A Companhia Colonizadora Luce, Rosa & CIA. LTDA, que havia comprado
as terras, pressionava também as autoridades públicas para “retirar” os indígenas.
Posteriormente, a Companhia vendeu as terras para Giocondo e Severino Trentin, e o que se
presenciou foi a gradativa expulsão dos índios Kaingang daquela localidade.

Esgotados os meios de fazer os indígenas sair do Chimbangue, por respeito aos


documentos “legais” por ela apresentados, a Luce Rosa e Cia decide-se por alienar a
maior parte das terras da área, entregando-a a terceiros para colonizar. Vai, porém
impor-lhes, na escritura de compra e venda, “a inclusão da condição que ficará a
cargo dos compradores interessarem-se pela retirada dos intrusos hoje existentes na
gleba de terras vendidas”. Pela referida escritura, vende a Severino e Giocondo
Trentin a área de 1.576,89 hectares [...] dos quais 1200 hectares dentro das terras do
Chimbangue, ficando os restantes 375 hectares a Oeste do Lambedor, fora da
ocupação indígena.22

Enquanto o processo de colonização “prosperava” e apresentava-se como realidade, a


situação dos indígenas foi piorando, dispersando-os para várias localidades, bem como
sujeitando-os a serem peões das terras que antes habitavam. “O processo de concentração da
terra agravava-se, aliado a ele, a incorporação de toda a área não integrada à economia de
mercado [...], levaria à tomada dos últimos cantinhos de terra livre, ainda em poder dos
Kaingang do Chimbangue”.23 Assim, quando já não resta mais terra para o grupo, que se
inicia um movimento de retomada dessas áreas.
Ao longo deste processo, as disputas foram se acentuando, colocando índios e

21
SILVA, Marcos Antônio. Memórias que lutam por identidade: a demarcação da Terra Indígena Toldo
Chimbangue (SC) – 1970 – 1986. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, 2006, p. 66.
22
D´ANGELIS, Wilmar da Rocha. Para uma história dos índios do Oeste Catarinense. Cadernos do Ceom,
Chapecó - SC, v. 6, p. 07-91, 1989. p. 68.
23
Idem, 1984, p. 76.
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agricultores em uma constante luta pela terra, posta não só na justiça, mas também no
cotidiano dos moradores da região – através dos laços familiares e de identidade cultural – e
na imprensa.
Nesse espaço, tanto de disputa pela terra, como disputa simbólica entre sujeitos, com
visões e memórias distintas, observamos a atuação da imprensa “mediando”, através de suas
notícias, os acontecimentos e as vozes em torno da questão.
Conforme indicam Silva e Gouvêa,24 “Notícias relacionadas aos movimentos sociais,
passaram a ser veiculadas com regularidade a partir do final da década de 1970 e com mais
força e vigor a partir da segunda metade da década de 1980”. O “conflito” entre índios e
colonos em Sede Trentin, interior de Chapecó-SC, também teve ampla repercussão na
imprensa escrita. Foram vários os jornais que acompanharam as ações desenvolvidas por estes
grupos, transpondo uma realidade que até inicio da década de 1980 era localizada e regional,
para um contexto estadual e nacional.
Um primeiro levantamento25 encontrou notícias citando o tema em vinte e dois
jornais,26 somando uma quantidade de aproximadamente duzentas e dezenove notícias, entre
os anos de 1982 e 1985.
Tanto pelo envolvimento de várias entidades da região, como pelo acirramento das
disputas entre os índios e os colonos, a questão tomou grandes proporções, sendo debatida em
várias esferas políticas e sociais. Também se tornou matéria para vários jornais, tanto locais,
como estaduais e nacionais.
Importante também destacar, o crescimento do espaço de repercussão do assunto, que
passa a ser noticiado em jornais de abrangência nacional. Por meio de um processo de
retroalimentação, esse crescimento acaba também por interferir na própria cobertura dos
jornais locais e estaduais. É por meio da cobertura dos jornais estaduais e locais, mais
especificamente, pelos correspondentes, que estes jornais nacionais recebem as informações.
Em jornais como, O Estado de São Paulo, foram verificadas uma quantidade
expressiva de notícias sobre o tema, assim como em, O Globo, Correio Braziliense, O Estado

24
SILVA, Cristiani Bereta da; GOUVÊA, Vanessa Moraes de. Movimentos sociais rurais e redemocratização do
Brasil: interpretações possíveis a partir do jornal O Estado (1980-1990). HAO, Núm. 31, 109-132, 2013. p. 110.
24
25
Este primeiro levantamento foi realizado principalmente por meio do Portal Povos Indígenas. Site para acesso:
http://pib.socioambiental.org/pt
26
Jornal O Estado – Florianópolis; Jornal O Porantim; O Estado de São Paulo; Jornal de Santa Catarina -
Blumenau; O Estado do Paraná; O Globo – Rio de Janeiro; Diário da Manhã – Chapecó; Diário de Minas;
Jornal de Brasília; Diário Popular; Correio Brasiliense; Jornal do Brasil; Folha de São Paulo; O Liberal –
Belém do Pará; A Notícia; Diário do Grande ABC; O Dia; Correio Popular; Última Hora; Notícias Populares,
Jornal Elo Cooperativo.
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do Paraná, entre outros, em menor quantidade. Foram alguns dos momentos impactantes que
tiveram sua comunicação em nível nacional. Notícias como a do dia 24/03/1982, publicada no
jornal O Estado de São Paulo, por meio de seu correspondente em Florianópolis, onde
informava:

Os agricultores do município de Chapecó, que estão em litígio com um grupo de


índios Kaingang, têm documentos suficientes para provar que as terras que hoje
ocupam não pertencem aos indígenas, como alegam os dirigentes do Cimi e grupos
da Pastoral da Terra. Segundo o presidente do sindicato dos trabalhadores rural de
Chapecó, Arlindo Schwarz, os agricultores são os legítimos donos de uma área
distante 15 km da sede do município, onde moram cerca de 150 famílias. 27

A notícia publicada no jornal O Estado de São Paulo, diz respeito às primeiras ações
promovidas pelos grupos, onde, de um lado, os indígenas, com auxílio do Conselho
Indigenista Missionário – CIMI solicitavam à FUNAI, a devolução de suas terras, e por outro,
os colonos, em posse de suas escrituras, tratavam de se defender publicamente. Entretanto,
cabe salientar que as notícias não ficaram focadas apenas na divulgação do contexto inicial.
Foi possível identificar nesses jornais de ampla circulação, que as publicações se
estenderam durante todo o processo. Como exemplo para evidenciar a repercussão da questão,
podemos citar alguns dos títulos encontrados e seus respectivos jornais:

- “Liminar da gleba a índios” - O Estado de S. Paulo, 15/12/1982;


- “Cacique exige na justiça que Funai demarque reserva” - O Globo, 22/06/1983;
- “Colonos ameaçam tirar índio da terra” - O Estado do Paraná, 13/12/1983;
- “Em Chapecó, índios ameaçam 900 colonos” - O Estado do Paraná, 13/07/1984;
- “Agricultores querem remoção de Kaingang” - Correio Braziliense, 02/08/1984;
- “Atrito em Chapecó de índios e agricultores” - Diário do Grande ABC, 12/08/1984;
- “Eminente conflito com os índios” - Diário de Minas, 15/12/1984;
- “Índios de SC acampam na Funai” - Jornal de Brasília, 19/03/1985;
- “Caingangues ocupam a Funai em Brasília” - O Estado de São Paulo, 19/03/1985;
- “O fim da vigília dos índios em Brasília” - Jornal da Tarde, 20/03/1985;
- “Com Tancredo doente, tribo fica sem terra” - Correio Braziliense, 23/03/1985;
- “Promessa protelada irrita os Kaingang” - Jornal de Brasília, 12/06/1985.

Encontramos também em quantidade significativa nas publicações do jornal O

27
Jornal O Estado de São Paulo, 24/03/1982. Disponível em: http://pib.socioambiental.org/pt .
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Porantim – jornal criado pelo CIMI, o qual publicava matérias específicas sobre a questão
indígena no Brasil. O Porantim também acompanhou de perto a questão de Sede
Trentin/Toldo Chimbangue, denunciando a situação indígena na região e os impasses da
questão.
Na esfera estadual, os jornais como: A Notícia, Jornal de Santa Catarina, O Estado,
também publicaram em suas páginas, informações sobre a disputa. No entanto, pelo recorte
do trabalho e proposta, escolhemos examinar a cobertura jornalística de apenas um jornal em
específico. Assim, partindo de uma visão mais abrangente, observamos que num jornal do
estado de Santa Catarina, de abrangência estadual, a cobertura da questão e do desenrolar dos
acontecimentos, se deu de maneira significativa. Destaca-se o jornal O Estado, de
Florianópolis, que, mesmo tendo a sua sede distante da região oeste, atuou de forma bastante
ativa.
A partir de então, desenvolveu-se uma pesquisa focada no referido jornal, por meio do
acesso à sua coleção – sob guarda da Biblioteca Pública do Estado de Santa Catarina, situada
em Florianópolis. Foram mapeadas aproximadamente, cento e trinta notícias sobre a disputa
entre índios e colonos em Sede Trentin/Toldo Chimbangue, entre os anos de 1982 e 1985 -
ano da publicação do decreto federal 92.253/1985, demarcando metade da área reivindicada
pelos Kaingang. As notícias encontradas demonstraram que além do aspecto informativo, que
as mesmas assumiram no contexto de sua produção, ficaram registrados nas páginas do jornal,
as escolhas e os sentidos propostos para o entendimento da questão, conforme discutiremos a
seguir.

Representações da disputa pela terra

“Os jornalistas têm ‘óculos’ especiais a partir dos quais vêem


certas coisas e não outras; e vêem de certa maneira as coisas
que vêem. Eles operam uma seleção e uma construção do que é
selecionado.”
(Pierre Bourdieu)

Dizia Marc Bloch: “a história consiste não apenas em saber como os acontecimentos
ocorreram, mas igualmente como foram percebidos”.28 A imprensa, neste sentido, é um dos

28
Citado por Jean-Jacques Becker. Ver: ECKER, Jean-Jacques. A opinião pública.In RÉMOND, René (org.). Por
uma história política. Rio de Janeiro: UERJ/FGV, 1996, p. 201.
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espaços em que podemos observar, como determinados acontecimentos foram percebidos. Ao
menos pelos jornalistas e/ou pelos jornais, ou seja, são as suas percepções que são postas em
circulação por meio das notícias.
Foi através do jornal, como já informamos, que a questão de Sede Trentin/Toldo
Chimbangue, teve ampla repercussão, chegando a vários espaços do estado de Santa Catarina.
A frequência com que eram publicadas as informações sobre a questão evidencia um
acompanhamento e uma atualização constante sobre a disputa.
A questão entre índios e colonos foi apresentada em vários espaços do jornal. A seção
intitulada “Santa Catarina” foi o espaço em que mais notícias foram publicadas, seguida da
seção “Política/Administração”. Nas páginas reservadas ao espaço “Santa Catarina”, estas
questões tiveram oitenta e nove referências, representando um percentual de 74% do total das
publicações. Destas oitenta e nove publicações, vale ressaltar que vinte estiveram estampadas
na capa do jornal. Na seção Santa Catarina, estavam as notícias de abrangência estadual, que
apresentavam o cenário das diferentes regiões catarinenses. Em suma, o estado catarinense,
estaria representado nestas páginas e nessas datas, o leitor que procurava informações gerais
sobre o mesmo, encontrava no local “Santa Catarina” com grande frequência, as notícias
sobre a disputa de terras entre índios e colonos. Na seção “Política/Administração”, foram
encontradas vinte e cinco publicações, sendo que destas, quinze foram publicadas na capa do
jornal. Se na seção “Santa Catarina” os temas são gerais e tentam mostrar um panorama do
que estava acontecendo no estado, nesta, o próprio título “Política/Administração” remete a
uma classificação mais restrita. Em menor quantidade, as notícias também foram publicadas
nas seções “Cidade”, “Geral” e “Polícia”. Em “Cidade”, foram publicadas cinco notícias, e
uma delas foi capa. Na “Geral” somente uma, assim como na seção “Polícia”. Importante
destacar a quantidade de capas ao longo da cobertura: cerca de 35% das publicações
mapeadas, estiveram em destaque para seus leitores.
É importante destacar que, como o jornal tinha abrangência estadual, a quantidade de
notícias sobre Sede Trentin, postas em circulação, no confronto com outras regiões, reforça
uma ideia muito difundida sobre a região oeste, onde historicamente é representada pela
imagem de espaço conflituoso. Outro fator que nos leva a salientar esses elementos, diz
respeito ao fato de que, na seção “Santa Catarina”, espaço onde encontramos o maior número
de notícias, era o local em que estavam as informações de todas as regiões. Ao considerarmos
que na maioria das vezes que o jornal publicava notícias sobre Chapecó, bem como sobre o
oeste catarinense, estavam estampadas notícias sobre a questão de Sede Trentin/Toldo
Chimbangue, assim como outras questões “conflituosas” relacionadas a posse da terra, da
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qual demarcava certas imagens sobre a região. Certamente isto dependia de maneira
fundamental, da percepção do jornal sobre as questões em destaque na região durante aquele
período.
Embora possamos dizer que na época, o que estava em questão era um cenário de
organização e mobilização dos indígenas, que “embalados” por um contexto de abertura
política e ressurgimento de lutas populares, por conquista de direitos e participação política,
iniciaram um processo de retomada de suas antigas terras – Toldo Chimbangue –, o jornal,
necessariamente, poderia e obviamente tinha outros olhares; outras cenas poderiam
representar o que estava acontecendo naquela região.
Uma notícia do dia 11 de junho de 1985, com o título “Campanha exige solução para
índios no Oeste”, demonstra um pouco do clima verificado naquele período, sobretudo, como
o jornal de certa forma se deixa influenciar pela situação, traduzindo para seus leitores uma
realidade com características associadas a um estado quase que de “guerra”.

Chapecó – “Não haverá trabalho, enquanto não houver justiça”. Essa é a frase dos
cartazes que estão pendurados em todas as casas comerciais da localidade de Sede
Trentin Toldo Chimbangue, onde índios e colonos disputam a posse de 2.000
hectares de terra. Desde às 6 horas da manhã de ontem, o Grupo de Jovens e Clube
de Mães (aproximadamente 200 pessoas) estão desencadeando uma verdadeira
“frente de guerra”, contra a passagem de qualquer pessoa ou órgão que esteja
contra o direito de propriedade dos colonos sobre as terras de Sede Trentin. O
movimento é pacífico, garantem os líderes, Maristela Girardi, Ivanir Trombeta do
grupo de jovens e Melania Perin, do Clube de Mães, mas vai perdurar pelo tempo
que for necessário. Querem a presença do Governador do Estado, Esperidião Amim,
e de representantes do Governo Federal, para verificação no local do problema e
conversar com os agricultores, para sentirem a “angústia dos colonos”, observa
Maristela Girardi. Até que isso não aconteça o movimento será mantido. As líderes
dessa manifestação, não irão a Brasília para discutir a questão. Elas querem que toda
e qualquer negociação seja feita na própria localidade de Sede Trentin. Essa é a
forma de pressionar os responsáveis pela solução do conflito em Sede Trentin, que
se arrasta há mais de 40 anos. […] Na estrada principal de Sede Trentin, uma
barreira humana foi organizada para não permitir a passagem de pessoas ou
veículos, que não comprovem a sua intenção e os motivos de estarem na
localidade.29

Antes de tudo, o próprio título da notícia – “Campanha exige solução para índios no
Oeste” – nos chama a atenção. O título anuncia uma intenção que se confunde com o objeto
noticiado, ou seja, são os colonos que estão manifestando. Qual a “solução para os índios”? O
título dá a entender que existe uma campanha para resolver os problemas dos índios, porém,
ao ler a notícia, o que fica evidente é que o problema na verdade é o índio, já que a “angustia
dos colonos” era provocada pela situação de os índios reivindicarem a posse daquela área. A
ideia de “solução do conflito”, naquele momento, significava para os colonos, serem ouvidos
29
Jornal O Estado, Florianópolis, 11 jun. 1985. grifo nosso.
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e ser respeitado o seu “direito de propriedade”, ocasionando consequentemente a retirada dos
índios. Associados a estas observações, destacamos na notícia os momentos em que o texto do
jornal utiliza expressões que remetem a uma caracterização do que estava acontecendo
naquele espaço. Atentamos também para os trechos que sinalizam as representações que
giravam em torno da questão entre índios e colonos. Chamam a atenção as palavras e as
afirmações “estão desencadeando uma verdadeira “frente de guerra”, contra a passagem de
qualquer pessoa ou órgão que esteja contra o direito de propriedade dos colonos sobre as
terras de Sede Trentin”, ou também, “Na estrada principal de Sede Trentin, uma barreira
humana foi organizada para não permitir a passagem de pessoas ou veículos, que não
comprovem a sua intenção e os motivos de estarem na localidade”. Os fragmentos citados,
vinculados recorrentemente a uma ideia de “conflito” marcam o cenário representado pelas
notícias da época.
Outro fragmento que reforça a imagem de um espaço conflituoso, que está prestes a
“explodir” – conforme o próprio texto “incita” – verifica-se em uma das notícias que compara
Sede Trentin, a um barril de pólvora. Conforme pode ser visto, a notícia indica que:

Há mais de uma semana é domingo para as 140 famílias de agricultores, pois pouca
ou quase nenhuma atividade é exercida. Até mesmo as extensas roças, especialmente
de milho, estão abandonadas, dada a situação difícil no “barril de pólvora de
Chapecó”. 30

O texto jornalístico tem como intenção traduzir com maior fidedignidade e realidade,
os fatos que acontecem na sociedade. Entretanto, o compromisso com a verdade nada mais é
que a tentativa de expressar fielmente a leitura que se fez de uma determinada situação,
estando a escrita da notícia, voltada obviamente à interpretação que o jornalista fez ou se
deixou fazer. Se a leitura dos fatos interpretou a questão como um “conflito”, certamente a
notícia do jornal precisa apresentar elementos que remetam ao leitor essa imagem, e isso se
apresenta por meio da escrita. Assim, o texto do jornal evidencia para o leitor, as informações
que dão conta de expressar a sua observação, onde se estabelece o encontro entre os fatos
verificados nas fontes selecionadas e o recorte estabelecido para aquela realidade.
Seguindo esta linha, podemos citar outros títulos e frases que davam conta de
expressar estas imagens sobre a região: “Trentin está prestes a explodir”, insinuava o título
publicado em 04/02/1985. O título de 05/02/1985 indicava: “Conflito de terra aumenta tensão
no oeste”. Nota-se que “o local conturbado”, “prestes a explodir” era associado a uma bomba

30
Jornal O Estado, Florianópolis, 16 jun. 1985.
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que a qualquer momento poderia explodir, aumentando assim a “tensão” na região oeste.
Dentro desta linha de argumentação, “Os agricultores receberam um ultimato”, alertava o
jornal em 26/07/1985. “As últimas 24 horas foram de calma na área conflagrada”, informava
ele no dia 10/08/1985. Anunciava, em 16/05/1985 que “A bandeira branca hasteada ontem
em Sede Trentin pelos colonos em sinal de paz […] não conseguiu produzir o esvaziamento
da tensão”. E em 17/08/1985, o título da notícia informava: “Brancos temem ataque dos
índio”.
O cenário apresentado remete constantemente a um espaço que para além de uma
disputa de terras, confere ênfase ao caráter mais conflituoso entre os indivíduos. A questão da
terra torna-se pano de fundo e o que entra em destaque é um “conflito” repleto de ameaças,
possíveis ataques e invasões.
Desta forma, permeadas por uma ideia predominantemente voltada à constatação de
que Sede Trentin/Toldo Chimbangue se configurava como um espaço de extrema tensão, bem
como uma “área de conflito”, as notícias, em grande maioria apresentavam em suas
abordagens estas percepções. Entretanto, outros elementos também podem ser considerados
nesta relação: a disputa de discursos entre os agentes envolvidos na questão.
O jornal apresentou em suas notícias, “frente a frente”, índios e colonos, bem como
seus representantes, articulando uma série de versões, acusações, defesas e discursos variados.
O jornal apresentava as informações sob o viés da fala dos envolvidos, ou seja, as notícias
privilegiavam majoritariamente a fala da fonte – índios, colonos e seus representantes.
Mas quais foram estas vozes? Qual o peso delas nas representações da questão como
um todo ao longo da cobertura do jornal? Essas questões podem ser discutidas por meio
daquilo que denominamos como “vozes autorizadas”, ou seja, vozes que tiveram espaço e
legitimidade, sendo acionadas para relatar determinadas situações.
Por meio da cobertura do jornal, podemos observar dois grupos em constante oposição
e com estratégias diferentes. Do lado dos colonos, as vozes que permearam os debates no
jornal, foram além dos próprios colonos, os deputados estaduais e federais “representantes do
Oeste”, os vereadores de Chapecó, o próprio prefeito da cidade juntamente com o governador
do estado. Ainda em defesa dos colonos, ecoaram as vozes dos sindicatos e da Federação dos
Trabalhadores da Agricultura do Estado de Santa Catarina. Do lado dos índios, tiveram
participação ativa no jornal as vozes do Conselho Indigenista Missionário – CIMI, a
Fundação Nacional do Índio – FUNAI, a Associação Nacional de Apoio ao Índio – ANAI, a
União das Nações Indígenas – UNI, Conselho de Missões entre Povos Indígenas – COMIN, a
OAB de Santa Catarina, Igrejas e as Pastorais.
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Em defesa dos colonos, destacaram-se as vozes que priorizavam as questões jurídico-
políticas. A terra havia sido comprada e escriturada, por isso, argumentavam, deveria ser
respeitado o direito à propriedade. Ao passo que isto não estava sendo “respeitado”, a via
política era o caminho a ser seguido, por isso o envolvimento de tantos políticos. Por outro
lado, em defesa dos indígenas, prevaleciam as falas e discursos, enfatizando o direito
imemorial dos índios Kaingang sobre as terras do Chimbangue. Das vozes que entravam em
ação, destacavam-se também os argumentos relativos aos direitos humanos, sendo que a terra,
para os índios possuía valores diferentes do que para os colonos, no qual estabeleciam uma
relação muito mais produtiva e econômica do que social e cultural como os índios. Todavia,
resta sabermos ainda, qual dos grupos teve maior visibilidade e espaço no quadro geral das
notícias do jornal.
Numa visão geral, conforme examinamos, as falas a favor dos colonos tiveram –
naquelas notícias, que se usaram delas – maior visibilidade dentro da cobertura jornalística.
Comparado com as notícias, que deram voz e vez aos índios e/ou seus “representantes”, as
notícias com vozes alinhadas aos colonos tiveram maior número, representando cerca de 40%,
seguidas daquelas que tiveram mais que uma versão, ou seja, o contraponto entre as versões e
os discursos, dentro da própria notícia e que totalizaram 31%. E por último, as notícias que
tiveram somente as vozes alinhadas aos interesses dos indígenas, representando 27%.
Fizemos este cálculo identificando as notícias que acionavam falas dos atores envolvidos e/ou
seus representantes para compor o texto jornalístico.
Os dados são importantes, pois nos dão indícios de como a cobertura jornalística, por
mais imparcial que se afirme querer ser, selecionou e priorizou determinados agentes e
determinadas versões sobre a questão. Vale sinalizar que mesmo na tentativa de apresentar as
diferentes vozes e opiniões sobre o tema, este trabalho também se operava de forma subjetiva,
com escolhas, recortes e seleções. O jornal, notadamente, construiu suas narrativas com vozes
que acreditava ser representantes da realidade. É, portanto, através destas vozes, eleitas e
selecionadas, que o jornal imprimia sem sombra de dúvidas a sua leitura.

Considerações finais
Neste artigo evidenciamos o jornal O Estado e alguns aspectos de sua cobertura
jornalística sobre os acontecimentos referentes à questão envolvendo índios e colonos de Sede
Trentin/Toldo Chimbangue, no intuito de problematizar, como a imprensa desenvolve um
papel preponderante na construção da realidade social, tornando-se um importante agente na
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articulação e exposição dos debates de seu tempo.
A análise de como a questão de Sede Trentin/Toldo Chimbangue circulou no jornal O
Estado apresentou novos elementos para a compreensão do papel da imprensa na
mediatização dos fatos sociais. Ao transpor a fronteira da disputa de terra – para fora de seu
entorno – e observar como ela se propagou e alcançou espaços não imaginados, por meio da
imprensa, apresentamos elementos que oferecem consequentemente outras visões sobre os
acontecimentos nessa localidade.
Observar de maneira geral as notícias sobre Sede Trentin/Toldo Chimbangue, nos
revelou que ao mesmo tempo que foram construídas representações sobre os acontecimentos
naquela localidade, a imprensa tornou-se também uma extensão da disputa, uma vez que foi
por meio dela que a questão circulou no meio público motivando novos embates no campo
social e político. O jornal, como demonstramos, foi o espaço pelo qual as vozes se tornaram
públicas, por onde, em maior ou menor grau, os agentes se colocaram para a sociedade; foi o
espaço de pressão, mobilização e comoção de ambos os grupos.
Neste sentido, a repercussão e a exposição na esfera pública propiciou novos
contornos à questão, uma vez que, por meio das representações construídas pelo jornal, tanto
o veículo, como também os atores envolvidos no processo, “sensibilizaram” e “mobilizaram”
a discussão e a opinião pública em torno do tema.
A imprensa escrita lançou seus olhares para este espaço, justamente pela questão das
disputas pela terra – que já era marcante na região oeste – motivando uma série de notícias
sobre os acontecimentos. Através de alguns títulos, foi possível observar uma sequência dos
acontecimentos e principalmente uma continuidade nos assuntos. As notícias publicadas no
desenrolar do processo, construíram uma narrativa para o público leitor, voltada
principalmente à ideia de “conflito” entre os agentes. Estabeleceram por meio de imagens e
textos aquilo que naquele momento era interessante/conveniente retratar, submetendo a
temática à análise dos diferentes grupos de leitores do jornal no estado de Santa Catarina.
Colocaram em destaque, na pauta da opinião pública das regiões de circulação, o oeste e seus
problemas em torno da terra.

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Artigo

A RECEPÇÃO DAS ENCÍCLICAS E A


CONJUNTURA AGRÁRIA BRASILEIRA
ATRAVÉS DA REVISTA ECLESIÁSTICA
BRASILEIRA (1950-1964)
BRUNA MARQUES CABRAL

Resumo: O presente artigo apresenta como escopo fundamental compreender a recepção das
ideias e interpretações dos católicos – leigos e clérigos – referentes às diretrizes contempladas
pela Doutrina Social Cristã. Deste modo, analisaremos os discursos produzidos por intelectuais
católicos brasileiros referentes às suas preocupações com o campo e a recepção de tais
encíclicas. Assim, examinaremos a Revista Eclesiástica Brasileira (R.E.B.) como principal
fonte de compreensão dos discursos supracitados.

Palavras-chave: Revista Eclesiástica Brasileira; questão agrária; encíclicas.

Abstract: This paper has as a fundamental objective understanding the ideas and interpretations
of Catholics – lay and clergy – related to the guidelines contemplated by the Christian Social
Doctrine. Thus, we analyze the discourses produced by Brazilian Catholic intellectuals
regarding their concerns with the field and the reception of such encyclicals. In order to achieve
this, we will examine the Magazine Ecclesiastical Brazilian (R.E.B.) as the main source for
understanding these discourses.

Keywords: Magazine Ecclesiastical Brazilian; agrarian question; encyclicals.

1. Introdução
O pressuposto fundamental deste trabalho envolve a recepção das ideias e interpretações
dos católicos – leigos e clérigos – concernentes às diretrizes contempladas pela Doutrina Social
Cristã, tendo início com o Papa Leão XIII (1878-1903) e sofrendo um aprofundamento nas
encíclicas dos papas posteriores, sobretudo, as de João XXIII (1958-1963) e no Concílio
Vaticano II (1962-1965).

Artigo recebido em 25 de fevereiro de 2016 e aprovado para publicação em 25 de março de 2016.


Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ). E-mail: brunaclio@uol.com.br.
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 289-310 | www.ars.historia.ufrj.br 289
Destarte, analisaremos os discursos produzidos por intelectuais católicos brasileiros
referentes às suas preocupações com o campo e a recepção de tais encíclicas.1 Assim,
examinaremos a Revista Eclesiástica Brasileira (R.E.B.) como principal fonte de compreensão
dos discursos supracitados. Essa publicação periódica foi fundada pelo Frei Thomas Borgmeier
no ano de 1941, com o intuito de ser um elo entre o clero brasileiro, que se encontrava disperso
pelo enorme território nacional, o que resultava em grande dificuldade de comunicação. Sendo
assim, a revista serviu como um espaço de debates, no qual padres, freis e teólogos, expuseram
suas reflexões acerca de diversos temas, tais como, teologia, espiritualidade e realidade sócio-
religiosa.
Com efeito, a estrutura desta pesquisa pode ser dividida da seguinte forma. Na primeira
parte deste artigo, as análises se focarão no panorama da Igreja Católica – tanto no plano
nacional quanto no internacional – entre o final do século XIX e a primeira metade do século
XX.
No momento seguinte, procuramos demonstrar a recepção das encíclicas e o contexto
agrário brasileiro na Revista Eclesiástica Brasileira. Portanto. Buscamos compreender a
trajetória deste periódico, mais especificamente no tocante à reforma agrária.

2. Um breve panorama da Igreja Católica entre o final do século XIX e a primeira metade
do século XX
Referência fundamental desse estudo é Roberto Romano,2 que interpreta a Igreja
Católica como um “Corpo Místico”, isto é, como uma instituição dotada de uma coerência
própria e que possui um projeto teológico-político.3 Por essa razão, para o autor, a Igreja não
pode ser interpretada exclusivamente como um instrumento ideológico do Estado, pois é uma
instituição que estabelece alianças de cunho temporal tendo em perspectiva a ideia de salvação
espiritual do ser humano.

1
É importante ressaltar que no período por nós estudado foram criadas diversas encíclicas, como: Humani Generis
(1952), Ecclesiam Suam (1964). No entanto, optamos por analisar a Mater et Magistra (1961) e a Pacem in Terris
(1963) e as predecessoras Rerum Novarum (1891) e Quadragesimo Anno (1931), por trabalharem a questão social
e os problemas rurais.
2
ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado. São Paulo: Kairós, 1979.
3
A definição do projeto teológico-político para conceituar a ação da Igreja Católica foi inaugurada por Roberto
Romano em sua obra Brasil: Igreja contra Estado. São Paulo: Kairós, 1979. Posteriormente, Jessie Jane Vieira de
Sousa (2002) também o adota. Esse conceito será igualmente assumido em nossa pesquisa por compreendermos
que os projetos desenvolvidos pela Igreja Católica tinham fins no campo do transcendente, e que, ao serem
circunscritos exclusivamente à esfera política, são obscurecidos elementos importantes que dão significado à sua
essência.
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Ao examinarmos a historiografia sobre o tema, percebemos em Bruneau4 um viés
institucional ao analisar o processo histórico da Igreja Católica no Brasil. A ideia substancial
desse pensamento é, segundo Mainwaring5, aquela que abrange as transformações ocorridas
nas instituições, com o objetivo de defesa de seus interesses e de expansão de sua influência.
Concordamos com Jessie Jane V. de Sousa,6 para quem as análises institucionais deixam de
perceber os divergentes modelos de Igreja, os diversos interesses em jogo e os processos de
hierarquização desses modelos.
Nesta perspectiva, podemos entender a Igreja Católica como uma instituição que se
“move no tempo com um profundo sentido de permanência”.7 A partir disso, reconhecemos a
sua capacidade e interesse de se adequar às questões de seu tempo.
Ao final do século XIX e início do XX, a Igreja enfrentou graves desafios à sua inserção
na modernidade. E foi marcada por uma profunda insatisfação das classes trabalhadoras, devido
aos péssimos salários e às condições desumanas a que eram submetidas no ambiente de
trabalho, inclusive, as crianças e as mulheres.
Nesta conjuntura, o Papa Leão XIII8 priorizou a questão social, sendo o seu foco as
relações de exploração dos operários pela burguesia, sob a égide do liberalismo, interpretado
como anticristão e individualista. Assim, foi promulgada a encíclica Rerum Novarum9, no ano
de 1891, na qual a Igreja se pronunciou pela primeira vez sobre as relações entre capital e
trabalho. Vejamos:

Efectivamente, os progressos incessantes da indústria, os novos caminhos em que


entraram as artes, a alteração das relações entre os operários e os patrões, a influência
da riqueza nas mãos dum pequeno número ao lado da indigência da multidão, a
opinião enfim mais avantajada que os operários formam de si mesmos e a sua união

4
BRUNEAU, Thomas C. Catolicismo brasileiro em época de transição. São Paulo: Edições Loyola, 1974.
5
MAINWARING, Scott. Igreja Católica e política no Brasil: 1916-1985. São Paulo: Brasiliense, 1989.
6
SOUSA, Jessie Jane Vieira de. Os Círculos Operários e a intervenção da Igreja Católica no mundo do trabalho
no Brasil: uma discussão historiográfica. Vitória: Revista do Departamento de História da UFES, 1998, p. 01-32.
7
ROMANO, Op. Cit., p. 22.
8
O Papa Leão XIII nasceu em 1810 e foi ordenado sacerdote em 1837. Posteriormente, em 1843, foi indicado
Núncio Apostólico da Bélgica. Em 1846 tomou posse como Arcebispo da região de Perugia, Itália. Foi eleito Papa
em 1878 e o fim do seu pontificado foi em 1903. Um dos seus momentos de destaque foi a promulgação da
encíclica Rerum Novarum, referente à questão social. Disponível em:
<http://w2.vatican.va/content/leo-xiii/pt.html> Acesso em: 10 dez. 2014.
<http://cleofas.com.br/historia-da-igreja-de-leao-xiii-a-pio-xii-1878-1939/> Acesso em: 10 dez. 2014.
9
A presente encíclica foi promulgada pelo Papa Leão XIII em 1891, e foi a primeira a abordar a questão social na
formação da Doutrina Social da Igreja. No entanto, devemos ressaltar que não era a primeira vez que a Sé
Apostólica intervia em defesa dos interesses materiais dos menos favorecidos. Outros documentos de Leão XIII
haviam preparado o caminho; entretanto, a Rerum Novarum foi uma síntese orgânica dos princípios católicos no
campo econômico-social. Disponível em: <www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-
xiii_enc_15051891_rerum-novarum_po.html> Acesso em: 27 jan. 2014.
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mais compacta, tudo isto, sem falar da corrupção dos costumes, deu em resultado final
um temível conflito.10

A partir da Doutrina Social Cristã, ainda sob o papado de Leão XIII, os Papas
subsequentes dialogariam com as forças vigentes no tocante às lutas entre capital e trabalho.
Entretanto, com o crescimento dos conflitos sociais, das organizações operárias e dos partidos
socialistas, na primeira metade do século XX, a instituição católica passaria a criticar menos o
capitalismo, sobretudo no que concernem às desigualdades sociais, e a criticar mais o
comunismo. Esse sistema político foi amplamente combatido, em função da iminência de
Revoluções Socialistas nos padrões da que ocorreu em 1917 na Rússia. Deste modo, o temor
da Igreja frente à possível “Revolução” obteve força em 1959, com a Revolução Cubana e
posteriormente o ingresso de Cuba no Bloco Socialista (1961).11
Não cabe nesse trabalho uma análise histórica apurada de uma trajetória da Igreja no
Brasil. Para os fins propostos nesta pesquisa, é relevante apenas situar a conjuntura na qual o
projeto de reforma agrária da Igreja se inseria, e, portanto destacamos a perspectiva de M.
Lowy.12 Segundo este autor, desde a Segunda Guerra Mundial estavam sendo geradas no seio
da Igreja novas correntes teológicas que propunham outras formas de cristianismo social
(padres operários) com maior abertura para as ciências sociais e a filosofia moderna. Foi sob o
pontificado de João XXIII13 (1958-1963) e o Concilio Vaticano II14 (1962-1965) que estas
novas orientações se legitimaram.

10
Encíclica Rerum Novarum. Disponível em:
<www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_lxiii_enc_15051891_rerumnovarum_po.html>
Acesso em: 27 jan. 2014.
11
No que concerne ao anticomunismo católico no Brasil, apresentamos uma vasta bibliografia, no entanto
destacamos os seguintes trabalhos: BRUNEAU, Thomas C. Catolicismo brasileiro em época de transição. São
Paulo: Edições Loyola, 1974; MAINWARING, Scott. Igreja Católica e política no Brasil: 1916-1985. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1989; RODEGHERO, Carla Simone. Memórias e avaliações: norte-americanos, católicos e
a recepção do anticomunismo brasileiro entre 1945 e 1964. Porto Alegre: UFRGS, 2002; SERBIN, Kenneth P.
Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura. São Paulo: Companhia das Letras,
2001.
12
LOWY, Michael. A guerra dos deuses. Petrópolis: Vozes, 2000.
13
Nasceu em 1881 na Itália e tornou-se franciscano em 1897. De 1901 a 1905, foi aluno do Pontifício Seminário
Romano. Foi secretário do Bispo de Bérgamo, diretor espiritual do Seminário de Bérgamo, delegado apostólico
na Turquia e na Grécia, núncio apostólico em Paris. Em 1958, foi eleito Sumo Pontífice. O seu pontificado, que
durou menos de cinco anos, foi marcado pela promulgação das encíclicas Mater et Magistra e Pacem in Terris,
além da convocação do Concílio Vaticano II. Disponível em:
<http://www.vatican.va/news_services/liturgy/saints/ns_lit_doc_20000903_john-xxiii_po.html> Acesso em: 10
dez. 2014.
14
Podemos dizer que o Concílio Vaticano II foi a mais ampla reforma da história da Igreja, a fim de tornar o
catolicismo relevante em um mundo moderno que se encontrava em rápida transformação. Nesse sentido, o
Vaticano II aprovou medidas como a missa nas línguas nacionais, uma maior ênfase nos leigos, na justiça social e
nos direitos humanos. Inspirada no novo espírito criado pelo Concílio Vaticano II, a Igreja Católica no Brasil busca
se aproximar da religiosidade popular. Para um aprofundamento, ler: AZZI, Riolando. O catolicismo popular no
Brasil: aspectos históricos. Petrópolis: Vozes, 1978.
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A Igreja defendia seus interesses à luz das novas encíclicas que retomavam os pontos
da Rerum Novarum, como a Quadragesimo Anno15, que convidava os católicos a se
comprometerem com a questão social: “enquanto as grandes fortunas se acumulam nas mãos
de poucos ricos, para provar à evidência que as riquezas, produzidas em tanta abundância neste
nosso século de industrialismo, não estão bem distribuídas pelas diversas classes da
sociedade”.16
É esclarecedor como a encíclica Mater et Magistra,17 por ocasião dos 70 anos da Rerum
Novarum, atualizava os princípios da Doutrina Social à luz da conjuntura dos anos de 1960.
Vejamos como a carta reafirmava e adaptava a Rerum Novarum. Observemos os itens 9 e 13
da carta de João XXIII:

9. E hoje, apesar de ter passado tanto tempo, ainda se mantém real a eficácia dessa
mensagem, não só nos documentos dos papas sucessores de Leão XIII, os quais,
quando ensinam em matéria social, continuamente se referem à encíclica leonina, ora
para nela se inspirarem, ora para esclarecerem o seu alcance, e sempre para estimular
a ação dos católicos; mas até na organização mesma dos povos. Tudo isso mostra
como os sólidos princípios, as diretrizes históricas e as paternais advertências contidas
na magistral encíclica do nosso predecessor conservam ainda hoje o seu valor e
sugerem, mesmo, critérios novos e vitais, para os homens poderem avaliar o conteúdo
e as proporções da questão social, tal como hoje se apresenta, e decidir-se a assumir
as responsabilidades daí resultantes.
13. Enquanto, em mãos de poucos, se acumulavam riquezas imensas, as classes
trabalhadoras iam gradualmente caindo em condições de crescente mal-estar. Salários
insuficientes ou de fome, condições de trabalho esgotadoras, que nenhuma
consideração tinham pela saúde física, pela moral e pela fé religiosa. Sobretudo
inumanas as condições de trabalho a que eram frequentemente submetidas as crianças
e as mulheres. Sempre ameaçador o espectro do desemprego. A família, sujeita a
contínuo processo de desintegração.18

15
Encíclica criada pelo Papa Pio XI em comemoração ao quadragésimo aniversário da Rerum Novarum. Na
encíclica Quadragesimo Anno, o Papa insistiu no direito e dever da Igreja de prestar a sua contribuição para a
solução dos problemas sociais mais graves; confirmou os princípios fundamentais e as diretrizes históricas da
encíclica leonina e aproveitou para desenvolver o pensamento social cristão, atendendo às novas condições dos
tempos. No que concerne à propriedade privada, Pio XI tornou a afirmar o seu caráter de direito natural, e acentuou
o seu aspecto e a sua função social. Disponível em:
<www.vatican.va/holy_father/pius_xi/encyclicals/documents/hf_xi_enc_19310515_quadragesimo-
anno_po.html.> Acesso em 27 jan. 2014.
16
Encíclica Quadragesimo Anno. Disponível em:
<www.vatican.va/holy_father/pius_xi/encyclicals/documents/hf_xi_enc_19310515_quadragesimo-
anno_po.html> Acesso em 27 jan. 2014.
17
O objetivo central da encíclica consistiu em lançar um olhar sobre os problemas da vida social contemporânea,
desde as primeiras luzes do ensinamento do Papa João XXIII, a fim de formular um conjunto de observações que
compõem um programa. Deste modo, trata-se de resolver os problemas temporais, a partir da Doutrina Social
Católica. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/encyclicals> Acesso em 28 jan. 2014.
18
Encíclica Mater et Magistra. Disponível em:
<http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/encyclicals> Acesso em 28 jan. 2014.
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Ao lermos a encíclica na íntegra, observamos a reflexão da Igreja frente aos problemas
sociais, sobretudo, às desigualdades oriundas do capitalismo, e a ênfase em alguns pontos
essenciais: 1) as atividades econômicas deveriam basear-se na harmonia entre iniciativa privada
e poder público; 2) a preocupação com o bem-estar material da população; 3) a reafirmação da
propriedade privada19 seria um bem natural de sua função social, exigindo o esforço para que
chegasse a todos; 4) a agricultura.
O Papa João XXIII focava nas questões do subdesenvolvimento e das desigualdades
entre os países e propunha uma ordem econômica mundial voltada para a dignidade de toda a
população. A defesa da justiça e da valorização do homem, da “natureza humana”, segundo
este Papa, independia das ideologias e das crenças. Este era o tom da Doutrina Social da Igreja,
que ressoaria forte na América Latina, principalmente entre os membros do “cristianismo da
libertação”.20

3. A recepção das encíclicas na Revista Eclesiástica Brasileira (R.E.B.)


O periódico, voltado para o clero católico, foi reconhecido pela CNBB como órgão
oficial da Igreja, embora não fosse considerado um veículo “porta-voz da CNBB”. Desde a sua
fundação em 1941, a publicação era trimestral – nos meses março, junho, setembro e dezembro.
O redator inicial e fundador da revista foi Frei Thomas Borgmeier, no período de 1941 a 1952.
Entre 1952 a 1971, Frei Boaventura Kloppenburg tornou-se redator-chefe, ambos do Convento
dos Franciscanos. A revista era publicada pela Editora Vozes, sediada no município de
Petrópolis, Rio de Janeiro. No período por nós avaliado, observamos que a R.E.B. possuía como
objetivo influenciar o clero católico para construir uma unidade doutrinária.
O redator-chefe, na sua apresentação da revista, publicada no primeiro número,
afirmava que

A ideia desta revista retumbou pelo clero brasileiro. Apresentada ao Sr. Cardeal D.
Sebastião Leme, foi aprovada, abençoada por S. Eminência Revma. que, ainda
recentemente, em telegrama dirigido ao redator desta revista assim se exprimiu:

19
Segundo a encíclica, o direito de propriedade, mesmo sobre bens produtivos, apresenta valor permanente, pelo
fato de ser um direito natural fundado sobre a propriedade ontológica e finalista de cada ser humano em relação à
sociedade.
20
Movimento social e político que mobilizou a cultura religiosa e a prática política e de fé. Segundo Lowy, a ideia
principal desse movimento é a “opção pelos pobres” e suas principais características são: a libertação humana
histórica, a crítica social e moral do capitalismo, a releitura da Bíblia a partir da ideia de libertação e a utilização
do marxismo como instrumento de análise da realidade. Para uma maior compreensão, ver: LOWY, Michael. A
guerra dos deuses. Petrópolis: Vozes, 2000.
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“Revmo Sr. Frei Thomaz Borgmeier, Convento de Santo Antônio, nesta reiterando e
confirmando as respeitadas conversas que tivemos, aqui lhe asseguro todo o apoio de
minhas bênçãos e de meu coração de sacerdote e brasileiro para a nossa Revista
Eclesiástica, em boa hora confiada ao talento e zelo de V. Revma. Honrando os foros
de cultura que abonam o nome do nosso clero, a Revista Eclesiástica Brasileira vai
ser muito bem recebida por todos”.21

Ainda nessa primeira edição, evidenciava-se que aquela deveria ser um porta-voz das
necessidades contemporâneas. Podemos perceber a R.E.B. como uma tentativa de
estabelecimento da relação social da Igreja com a modernidade e a capacidade de a instituição
católica apreender esta nova realidade. Declarava a redação daquele momento:

É uma revista para o nosso tempo, adaptada às necessidades da época e do país. O


padre de hoje deve ser mais do que um repetidor de fórmulas antiquadas. “O sacerdote
– escreve Pio XI – deve ser sadiamente moderno, como o é a Igreja que abraça todos
os tempos e todos os lugares, e a tudo se adapta, bendiz e promove todas as iniciativas,
e não se assusta nem mesmo dos mais arrojados progressos da ciência, contanto que
seja verdadeira”. 22

Em setembro de 1951, a atenção da R.E.B. voltou-se para a comemoração do 60º


aniversário da Rerum Novarum.23 Na seção de “Documentação” encontra-se o texto intitulado
“No 60º aniversário da Rerum Novarum”24, que trata de uma alocução do Papa Pio XII, ao
celebrar a missa em comemoração aos 60 anos da encíclica. Vejamos:

Os Romanos Pontífices, a começar pela imortal Encíclica “Rerum Novarum” do


Nosso grande Predecessor Leão XIII, com visão clara e corajoso sentido do dever
apostólico, deram ao movimento operário – o mesmo é dizer, à posição jurídica do
trabalhador e ao seu bem-estar – sólidos princípios e altos fins, cuja necessidade e
sabedoria o tempo e a experiência plenamente demonstraram. Estes princípios e estes
fins a Igreja mantê-los-á sempre inabalavelmente firmes, como parte integrante de
toda a ordem social.25

Ainda na seção de “Documentação”, no texto “Congresso Católico Internacional da


Vida Rural”,26 o Papa Pio XII recebeu os participantes do 1º Congresso Católico Internacional

21
Ibidem, p. 1.
22
Ibidem, p. 03.
23
A presente encíclica foi promulgada pelo Papa Leão XIII em 1891, e foi a primeira a abordar a questão social
na formação da Doutrina Social da Igreja. No entanto, devemos ressaltar que não era a primeira vez que a Sé
Apostólica intervia em defesa dos interesses materiais dos menos favorecidos. Outros documentos de Leão XIII
haviam preparado o caminho, entretanto a Rerum Novarum foi uma síntese orgânica dos princípios católicos no
campo econômico-social. Disponível em:<www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-
xiii_enc_15051891_rerum-novarum_po.html> Acesso em: 27 jan. 2014.
24
Papa Pio XII. No 60º aniversário da Rerum Novarum. In: R.E.B., v.11, fascículo 03, set.1951, p. 726. Biblioteca
Nacional (BN), cód. 2-135, 01, 01.
25
Idem.
26
Papa Pio XII. Congresso Católico Internacional da Vida Rural. In: R.E.B., v.11, fascículo 03, set. 1951, p. 741-
743. Biblioteca Nacional (BN), cód. 2-135, 01, 01.
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para debater os problemas do meio rural. Nessa ocasião, fez referência ao predecessor Pio XI,
na sua encíclica Quadragesimo Anno,27 que havia chamado a atenção para os problemas dos
habitantes do campo, ao abordar as consequências favoráveis e desfavoráveis do capitalismo.
Com as publicações desses e outros documentos, observamos o empenho da revista em
manter viva a memória da Igreja Católica e, ao mesmo tempo, demonstrar a atualidade e a
relevância da encíclica Rerum Novarum. No texto “Orientações pontifícias sobre a questão
rural”, 28
de dezembro de 1956, o Padre Cornélio da Silva ressalta que as encíclicas sociais,
sobretudo a Rerum Novarum, de Leão XIII, e a Quadragesimo Anno, de Pio XI, despertaram a
atenção dos governantes para o cultivador agrícola. Posteriormente, no mesmo artigo, o Padre
Cornélio da Silva propõe uma solução para evitar o êxodo rural e promover o progresso no
campo:

Impõe-se, como solução para se evitar o êxodo rural e se promover o verdadeiro


progresso da vida dos campos, a observância daquela verdade fundamental sempre
sustentada pela doutrina social da Igreja, a saber, que a economia de um povo é um
todo orgânico, no qual todas as possibilidades produtivas do território nacional devem
ser desenvolvidas em sadia e recíproca proporção. Jamais se teria tornado tão grande
a oposição entre cidade e campo, se esta verdade fundamental tivesse sido observada.
A organização do trabalho do campo, com o fim de os trabalhadores melhor serem
ajudados e se ajudarem mutuamente, é lhes também aconselhada. Muitas vezes, o
Papa tem mesmo dirigido a palavra a algumas destas organizações rurais. Entre os
camponeses, devem promover-se iniciativas concernentes à assistência religiosa,
moral, econômica e social das classes agrícolas. Essas instituições e obras de caráter
cooperativo e mutualista têm sido verdadeiras muralhas de defesa contra a irrupção
de correntes subversivas. 29

No texto de Padre Cornélio da Silva, publicado em 1956, ainda no início do governo


JK, fica em evidência, portanto, tanto uma crítica à má distribuição da propriedade rural no
Brasil, quanto um apoio às entidades de caráter cooperativo e mutualista entre os trabalhadores
rurais. Além disso, ao longo da argumentação, o autor ressalta a importância na promoção da
reforma agrária, a fim de que fosse respeitado o duplo aspecto da propriedade: função individual

27
Encíclica criada pelo Papa Pio XI em comemoração ao quadragésimo aniversário da Rerum Novarum. Na
encíclica Quadragesimo Anno, o Papa insistiu no direito e dever da Igreja de prestar a sua contribuição para a
solução dos problemas sociais mais graves; confirmou os princípios fundamentais e as diretrizes históricas da
encíclica leonina e aproveitou para desenvolver o pensamento social cristão, atendendo às novas condições dos
tempos. No que concerne à propriedade privada, Pio XI tornou a afirmar o seu caráter de direito natural, e acentuou
o seu aspecto e a sua função social. Disponível em:
<www.vatican.va/holy_father/pius_xi/encyclicals/documents/hf_xi_enc_19310515_quadragesimo-
anno_po.html.> Acesso em: 27 jan. 2014.
28
SILVA, Padre Cornélio da. Orientações pontifícias sobre a questão rural. In: R.E.B., v.16, fascículo 04, dez.
1956, p. 831-840. Biblioteca Nacional (BN), cód. 2- 135, 01, 18.
29
Ibidem, p. 837-838.
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– deveria prover as necessidades de quem a possuísse – e função social – a propriedade deveria
atender a todas as necessidades da população local. Por fim, destaca: “Para se beneficiar em
toda a extensão a vida do cultivador agrícola, qualquer programa de reforma deverá atender
ainda aos outros aspectos da vida do campo, como o aspecto religioso, moral, social, e não
apenas econômico”. 30
Já em 1961, a R.E.B. direcionou o seu olhar para Roma, posto que nesse ano foi
publicada a encíclica Mater et Magistra,31 do Papa João XXIII. Na seção “Documentação” foi
disponibilizado o texto “Mater et Magistra”,32 promulgado em homenagem ao 70º aniversário
da encíclica Rerum Novarum. E na seção III, “Novos aspectos da questão social”, ressalta-se
que as exigências da justiça e da igualdade não intervêm apenas nas relações entre operários e
empresários. Também dizem respeito às relações entre os diversos setores econômicos, entre
zonas desenvolvidas e outras menos desenvolvidas da economia nacional, e, no plano
internacional, às relações entre países com nível de crescimento desigual em matéria econômica
e social.
Na seção “Crônica Eclesiástica”, analisou-se a repercussão da encíclica tanto no plano
nacional quanto no internacional. Frisou-se, principalmente, a variedade de interpretações que
o documento evocou:

Alguns viram a nova Encíclica como um libelo contra o colonialismo e o capitalismo;


outros descobriram nela um passo da Igreja em direção ao socialismo; e no Brasil
houve mesmo quem encontrasse nas palavras do Papa um apoio à política exterior do
Sr. Jânio Quadros, especialmente ao reatamento com a União Soviética.33

Posteriormente, a R.E.B. divulgou, também, a declaração da CNBB, em setembro de


1961, nas seguintes palavras: “Bastam certamente esses dados para nos inteirarmos da enorme
repercussão da nova Encíclica, que ficará para a História como um dos mais importantes
documentos pontifícios”. 34

30
Idem.
31
O objetivo central da encíclica consistiu em lançar um olhar sobre os problemas da vida social contemporânea,
desde as primeiras luzes do ensinamento do Papa João XXIII, a fim de formular um conjunto de observações que
compõem um programa. Deste modo, trata-se de resolver os problemas temporais, a partir da Doutrina Social
Católica. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/encyclicals> Acesso em: 28 jan. 2014.
32
Papa João XXIII. Encíclica Social Mater et Magistra. In: R.E.B., v. 21, fascículo 03, set.1961, p. 734-773.
Biblioteca Nacional (BN), cód. 2-136, 01, 02.
33
KLOPPENBURG, Frei Boaventura. Repercussão da Encíclica Mater et Magistra. In: R.E.B., v. 21, fascículo 03,
set.1961, p. 778. Biblioteca Nacional (BN), cód. 2-136, 01, 02.
34
Ibidem, p. 778-779.
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A revista considerava as múltiplas percepções sobre a referida encíclica como algo
positivo, tendo em vista que a publicação tinha como horizonte sensibilizar a todos com a sua
mensagem fundamentalmente de justiça social e paz.
O texto realizava críticas às doutrinas marxistas e assinalava que somente nas palavras
da instituição católica poderia se encontrar a saída para os problemas rurais:

Não serão as doutrinas marxistas, ateias e desumanas, que irão salvar o homem do
campo e o operário de um País cristão e de tradições pacíficas como é o Brasil. Aí
está a doutrina social da Igreja, consubstanciada na Rerum Novarum, na
Quadragesimo Anno e, agora, na oportuníssima Mater et Magistra, de João XXIII,
capaz de resolver todos os problemas que afligem o homem do trabalho em nossa
querida Pátria.35

Ainda em relação ao debate sobre o campo, o periódico publicou, em dezembro de 1961,


um escrito na seção “Comunicações” intitulado “A Igreja e a situação do meio rural
brasileiro”.36 Nele, comentava-se a primeira declaração da Comissão Central da CNBB, que
neste período possuía como Presidente o Cardeal Dom Jaime de Barros Câmara37, referente à
situação da zona rural brasileira. A declaração caracterizava-se pela ausência de qualquer
referência ao sistema de posse e uso da terra e também não mencionava nada sobre a reforma
agrária. Inspirada na Mater et Magistra, o documento era dividido em três partes: “roteiro de
atividades”, “ recomendações especiais” e “ em face da expansão comunista no meio rural”.
O “roteiro de atividades” discutiu elementos referentes a projetos de modernização do
setor primário e de melhoramento das condições individuais do homem rural, cujo objetivo
principal seria integrar a agricultura brasileira ao ritmo do desenvolvimento nacional. São
salientados os seguintes aspectos:

a) a obtenção para o meio rural, de serviços essenciais como estradas, transportes,


comunicações, água potável, habitações, cuidados médicos, instrução elementar e
formação profissional, serviço religioso, recreação e, também, tudo que é necessário
a uma casa rural, para seu arranjo e sua modernização;
b) a realização, no setor agrícola, das transformações, que dizem respeito às técnicas
de produção, à escolha das culturas, às estruturas das empresas, necessárias, ou
exigidas pela vida econômica, considerada em seu todo, e de modo a proporcionar,
quanto possível, um digno nível de vida semelhante aos dos setores industrial e de
serviços.

35
MORAIS, Dom Antônio. A ofensiva das Ligas Camponesas. In: R.E.B., v. 21, fascículo 03, set. 1961, p.780.
Biblioteca Nacional (BN), cód., 2-136, 01, 02.
36
CÂMARA, Dom Jaime de Barros. A Igreja e a situação do meio rural brasileiro. In: R.E.B., v. 21, fascículo 04,
dez. 1961, p. 950-953. Biblioteca Nacional (BN), cód. 2-136, 01, 02.
37
É importante ressaltar que o Cardeal Dom Carlos Carmelo Motta foi reeleito Presidente da CNBB, mas alegou
impossibilidade de continuar no cargo. Portanto, foi eleito Presidente o Cardeal Dom Jaime de Barros Câmara.
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c) a proveitosa inserção, em outros setores da produção, da mão-de-obra liberada pela
modernização progressiva da agricultura, proporcionando-se nas regiões de partida e
chegada, formação profissional necessária, ajuda econômica e o socorro espiritual
indispensável.38

Na seção “recomendações especiais”, expressava-se o explícito apoio à ação da Igreja


Católica no meio rural, por meio da Ação Católica Rural, da Juventude Agrária Católica (JAC)
e da Liga Eleitoral Católica (LEC), da sindicalização rural, das Frentes Agrárias e do
Movimento de Educação de Base. O meio rural deveria ser instrumento para a divulgação do
roteiro de atividades dos movimentos sobreditos.
Portanto, o periódico buscou difundir, entre o clero brasileiro, a declaração da CNBB,
na qual eram destacados os pontos da encíclica Mater et Magistra sobre a Rerum Novarum,
ressaltando que a função social da propriedade privada, tal como definida pela Igreja, era
oportuna para a análise da estrutura fundiária do país. Vejamos um trecho do pronunciamento
da CNBB, divulgado na R.E.B.:

A Comissão Central da Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil aproveita


o ensejo de sua primeira reunião após a publicação da “Mater et Magistra” do Santo
Padre João XXIII para, oficialmente, em nome de todo o Episcopado brasileiro,
manifestar, de público, seu regozijo pelo surgimento desta Encíclica, oportuna para o
mundo inteiro, oportuníssima para o caso especial do Brasil.
É intenção nossa aproveitar todos os ensejos para difundir em nosso país as
precisões e os desenvolvimentos trazidos à “Rerum Novarum” pela “Mater et
Magistra” e para divulgar os novos aspectos da questão social indicados e analisados
pelo vigário de Cristo. Estaremos assim contribuindo para renovar os laços de vida
em comum, na verdade, na justiça e no amor.39

Ainda em 1961, na seção “Comunicações”, foi publicado, em dezembro, o texto “Ainda


a hierarquia de valores”,40 pelo Monsenhor Frederico Didonet41, no qual é possível observar
sua preocupação com a situação do meio rural brasileiro:

Para o bem do conjunto, como já foi dito, poderá ser necessário limitar, por algum
tempo, algumas obras materiais, a fim de poder dedicar-se mais ao elemento humano,
a formação de líderes, sem os quais não se terão as massas. Talvez adiar a construção
de um hospital ou reforma da Igreja, para poder organizar e salvar o meio rural,
ameaçado de desintegração, que poderá projetar-se por séculos. Talvez deixar, por

38
CÂMARA, Dom Jaime de Barros. A Igreja e a situação do meio rural brasileiro. In: R.E.B., v. 21, fascículo 04,
dez. 1961, p. 950-951. Biblioteca Nacional (BN), cód. 2-136, 01, 02.
39
Ibidem, p. 950.
40
DIDONET, Monsenhor Frederico. Ainda a hierarquia de valores. In: R.E.B., v. 21, fascículo 04, dez. 1961, p.
959-961. Biblioteca Nacional (BN), cód. 2-136, 01, 02.
41
Nasceu em Ivorá (RS) no dia 27 de dezembro de 1910, e foi o primeiro bispo da diocese de Rio Grande no Rio
Grande do Sul (RS).
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tempo, uma paróquia sem padre, anexando-a a outra, para atender o S.O.S. do
ambiente universitário, tremendamente infiltrado de propaganda marxista. Talvez
mesmo suspender ou limitar as aulas de um seminário, para lançar alguns de seus
padres e, quem sabe, ate seminaristas, a um trabalho urgente e inadiável de
arregimentação de forças e evangelização, para o qual amanhã poderá ser tarde. E a
quem se escandalizar com isto, diremos que foi o que desejou fazer, e em parte fez,
Pio XII, quando, em 1948, a Itália estava na iminência de cair sob o domínio do
comunismo. Que teria adiantado então querer salvar velhas tradições ou veneráveis
estruturas para depois entregar tudo ao inimigo? 42

A partir da citação acima, notamos que, para combater a ameaça de uma infiltração
comunista no campo, a Igreja procurou seguir os preceitos da Santa Sé, sendo utilizado o
exemplo do Papa Pio XII, caso alguém contestasse as referidas medidas.
No ano de 1962, a R.E.B. voltaria o seu olhar para o Concílio Vaticano II (1962-1965),
e, em março, publicou um editorial intitulado “1962: Ano do XXI Concílio Ecumênico”. 43 No
texto abordou-se a importância dos concílios ecumênicos na vida da Igreja Católica e
apresentaram-se algumas características que tornaram o 2º Concílio Vaticano referência na
história da instituição, como: a) preparação sistemática; b) apelo a uma colaboração variada; c)
temário vasto; d) grande número de Bispos.
No mesmo fascículo, na seção de “Documentação”, foi publicado o escrito
“Constituição Apostólica Humanae Salutis”,44 convocando, para 1962, o Concílio Ecumênico
Vaticano II. Também mostrou como a Igreja se adaptou aos novos tempos, haja vista que o
referido Concílio ocorreu em um momento no qual a instituição percebeu a necessidade de
fortificar a sua fé.

O Concílio Ecumênico Vaticano II – Diante deste duplo espetáculo: um mundo que


revela um grave estado de indigência espiritual e a Igreja de Cristo, tão vibrante de
vitalidade, Nós, desde quando subimos ao Supremo Pontificado, não obstante nossa
indignidade e por um desígnio da Providência, sentimos logo o urgente dever de
conclamar os Nossos filhos para dar à Igreja a possibilidade de contribuir mais
eficazmente na solução dos problemas da idade moderna. 45

Enquanto isso, no Brasil, setores da Igreja apoiavam a iniciativa do Papa João XXIII em
dialogar com o mundo moderno, respeitando as diferenças de credo, religião e cultura. O

42
DIDONET, Monsenhor Frederico. Ainda a hierarquia de valores. In: R.E.B., v. 21, fascículo 04, dez. 1961, p.
960. Biblioteca Nacional (BN), cód. 2-136, 01, 02.
43
KLOPPENBURG, Frei Boaventura. 1962: Ano do XXI Concílio Ecumênico. In: R.E.B., v. 22, fascículo 01,
mar. 1962, p. 03-05. Biblioteca Nacional (BN), cód. 2-136, 01, 03.
44
Papa João XXIII. Constituição Apostólica Humanae Salutis. In: R.E.B., v. 22, fascículo 01, mar. 1962, p. 217-
221. Biblioteca Nacional (BN), cód. 2-136, 01, 03.
45
Ibidem, p. 217.
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objetivo era aproximar todos, destacando-se que, para construirmos o bem comum para a
humanidade, fazia-se necessário prevalecerem as semelhanças e a união em detrimento das
divergências.
Em 1963, foi lançada a encíclica Pacem in Terris,46 cuja finalidade seria promover a
paz entre os povos, seguindo a ordem instituída por Deus. Vale destacar que, neste período, o
mundo encontrava-se polarizado entre capitalismo e socialismo, vivendo a chamada Guerra
Fria desde 1947. Em junho do mesmo ano, a R.E.B. publicou o texto “Pacem in Terris” 47:

Pacem in Terris apresenta-se como a continuação da Mater et Magistra no domínio


jurídico, político internacional, talvez com maior unidade de composição e de
redação. O tom da encíclica que pode ser resumida em uma frase; um apelo
apaixonado a cada liberdade para contribuir pela libertação de todas as outras na
comunhão dos valores, e construir com elas o bem comum universal posto ao serviço
do desenvolvimento total de cada pessoa humana. 48

A linha política proposta no periódico, seguindo o pensamento do Papa João XXIII,


entendia que o avanço dos países estava ligado ao desenvolvimento do ser humano, apontando
a reforma agrária como basilar para a paz social. Pois tal reforma poderia proporcionar o bem-
estar da população, por meio de uma distribuição de renda.

4. A Igreja, o golpe de 1964 e o Estatuto da Terra


É importante ressaltar que a R.E.B., no início de 1964, seguindo em parte a tendência
do Concílio Vaticano II, estudava o marxismo no intuito de mostrar que as verdades católicas
eram suficientes para explicar todas as questões levantadas pelos comunistas.
A preocupação em estudar a tradição do pensamento marxista aparece claramente na
R.E.B., mormente no artigo “A Revolução de Cristo”,49 publicado em março de 1964, às
vésperas do golpe. Assim, de acordo com Frei João Batista Santos,50 “(...) o primeiro a fazer da

46
Encíclica Pacem in Terris. Disponível em:<www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/encyclicals> Acesso em: 29
jan. 2014.
47
KLOPPENBURG, Frei Boaventura. Pacem in Terris. In: R.E.B., v. 23, fascículo 02, jun. 1963, p. 290-332.
Biblioteca Nacional (BN), cód. 2-136, 01, 05.
48
Ibidem, p. 291.
49
SANTOS, Frei João Batista. A Revolução de Cristo. In: R.E.B., v.24, fascículo 01, mar. 1964, p. 123-125.
Biblioteca Nacional (BN), cód. 2-136, 01,07.
50
Frei João Batista nasceu na cidade de Franca (SP) em 13 de agosto de 1913 e ingressou na ordem dos padres
dominicanos em 1931 na França. Em 1950, tomou posse como capelão da Vila Brasílio Machado, após
entendimentos como Círculo Operário do Ipiranga, para a compra pelos dominicanos do terreno onde esse círculo
mantinha uma capela improvisada, um armazém e uma casa que abrigava um consultório médico e um curso de
alfabetização de adultos. Informações retiradas do livro SANTOS, João Baptista Pereira dos. Fim de um mundo
aleluia. São Paulo: Paulinas, 1984.
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revolução social uma doutrina, o primeiro a apresentar esse tipo de luta exterior como um meio
de suprimir a injustiça e de abrir caminho para a redenção final e a felicidade de todos na
perfeita igualdade, foi Karl Marx”.51
Às vésperas do golpe, a R.E.B. colaborava com o anticomunismo, indicando a
preocupação da instituição católica com o comunismo no Brasil. No artigo “Manifestos e
denúncias contra a ação do comunismo no Brasil” 52, essa perspectiva fica particularmente em
evidência:

Até pouco tempo o comunismo não era tido como perigo do momento. Nos últimos
meses, contudo, uma quantidade muito grande de testemunhos e manifestos vieram a
alterar,seja da parte da Igreja, seja da parte dos civis e militares, as consciências de
brasileiros contra o perigo vermelho.53

Nessa mesma linha de pensamento, temos a declaração do Cardeal Primaz do Brasil,


Dom Augusto Álvaro da Silva. Vejamos:

O perigo está às portas, dizer-se-ia inevitável, iminente, talvez. Dizem vozes


credenciadas que há presença de forças dirigidas pelo comunismo internacional nas
altas funções administrativas do país; que a marcha dos comunistas e socialistas em
direção ao governo se acelerou.54

Dentre os diversos textos publicado pela revista, destacamos “Declarações da CNBB


sôbre a situação nacional”,55 publicado na seção “Crônica Eclesiástica”, em junho de 1964, isto
é, pouco depois do golpe:

Insistimos na necessidade e na urgência da restauração da ordem social, em bases


cristãs e democráticas. Mas esta restauração não será possível apenas com a
condenação teórica e a repressão policial do comunismo, enquanto não se extirparem
as injustiças sociais e outras modalidades do materialismo, tão perniciosas que geram
o próprio comunismo, e, sobretudo, enquanto o espírito sobrenatural autêntico não
impregnar todas as pessoas e todas as atividades humanas (...). Somos, por isso, pelas
reformas que a hora presente exige, de acordo com o espírito cristão e a Doutrina
Social da Igreja, que tantas vezes temos expendido (...). Não nos curvamos, porém, às
injunções da política partidária, nem às pressões de grupos de qualquer natureza, que
pretendam, por acaso, silenciar a nossa voz em favor do pobre e das vítimas da
perseguição e da injustiça (...). Esperamos que os responsáveis pelos destinos

51
SANTOS, Frei João Batista. A Revolução de Cristo. In: R.E.B., volume 24, fascículo 01, março de 1964, p. 123.
Biblioteca Nacional (BN), cód. 2-136, 01, 07.
52
SILVA, Dom Augusto Álvaro da. Manifestos e denúncias contra a ação do comunismo no Brasil. In: R.E.B., v.
24, fascículo 01, mar. 1964, p. 207-208.Biblioteca Nacional (BN), cód. 2-136, 01,07.
53
Ibidem, p. 207.
54
Ibidem, p. 207-208.
55
CNBB. Declarações da CNBB sôbre a situação nacional. In: R.E.B., v. 24, fascículo 02, jun. 1964, p. 491-493.
Biblioteca Nacional (BN), cód. 2-136, 01, 07.
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temporais do Brasil aceitem, defendam e cumpram os princípios do Evangelho e as
normas da Doutrina Social Cristã, não só porque esses princípios são os nossos, mas
porque constituem a base fora da qual não há, nem poderá haver, ordem social,
segurança, estabilidade e verdadeiro progresso.56

A tônica da posição da CNBB é “restauração da ordem social, em base cristã e


democrática”.57 Aqui aparece claramente uma questão importante: a convicção de que, passada
a ameaça comunista, que supostamente pairava no governo Jango derrubado, era hora de voltar
à normalidade cívica e política. Mas superar a ameaça comunista e, ao mesmo tempo, realizar
uma volta da “democracia em bases cristãs” significava, concretamente, cumprir parte da
agenda comunista, fazendo reformas de acordo com a Doutrina Social da Igreja. No mesmo
fascículo de junho de 1964, nos deparamos com o texto “A Revolução de Abril e as
comprovantes da subversão comunista”,58 no qual se evidencia que a R.E.B. elogiava e
justificava a ação dos militares e dos demais setores conservadores da sociedade da época, em
prol da ordem, da Igreja e da tradição:

Era por demais evidente a linha comunizante do governo do Sr. João Goulart que,
através de fatos como o reatamento das relações com a Rússia, a unificação de todos
os trabalhadores do país obedecendo ao CGT, este com atuação política, mais que
sindical, a desmoralização crescente das Forças Armadas e a iminente legalização do
Partido Comunista, pretendia levar o Brasil para uma República Sindicalista,
caudatária do imperialismo soviético. Mas contra este plano de comunização
levantaram-se a Igreja, a imprensa nacional e o Exército. No Rio, Dom Jaime quase
que semanalmente denunciava as tramas vermelhas e concitava os brasileiros a
formarem “um bloco único de resistência” e ficarem a postos, prontos para repelirem
qualquer investida dos inimigos da Pátria e da Religião. Igualmente mobilizada se
encontrava a imprensa nacional e num editorial de primeira página de O Globo, em
que se denunciava a sistemática entrega do Brasil ao comunismo pelas autoridades
brasileiras, ouvia-se a voz de alerta levantada pela maioria dos jornais nacionais.
“Basta de entregar o Brasil ao comunismo” – protestava o referido jornal e continuava:
“ O Governo já não pode mais reagir, pois se deixou comprometer com a política de
penetração dos comunistas e entregou o Brasil aos seus piores inimigos”. Por outro
lado, a audácia dos comunistas apresentava-se sempre mais crescente e através de
pressões sobre o Governo Federal seus elementos foram tomando postos-chaves na
administração do País e nas Forças Armadas. E denunciavam os Ministros Militares
a crescente infiltração do Exército. Houve, segundo a tática comunista de dois passos
a frente, um para trás, progressão consciente e planejada na audaciosa operação de
comunizar o país.
Fato decisivo na formação dos blocos antagônicos foi o comício-monstro pré-
reformas realizado no Rio, no dia 13 de março, onde compareceram cerca de 120 mil
pessoas para exigir do presidente da República a legalização do Partido Comunista, o
voto do analfabeto e outras reivindicações comunizantes. Nesta mesma ocasião
assinou o Presidente o decreto da SUPRA e a Emancipação das refinarias particulares.

56
Ibidem, p. 492-493.
57
Ibidem, p. 492.
58
KLOPPENBURG, Frei Boaventura. A Revolução de Abril e as comprovantes da subversão comunista. In:
R.E.B., v. 24, fascículo 02, jun. 1964, p. 493-495. Biblioteca Nacional (BN), cód. 2-136, 01, 07.

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Mas o pavio do grande barril de pólvora que fez explodir os sentimentos cívicos da
nacionalidade, e principalmente das Forças Armadas, foi a revolta dos Marinheiros na
Quinta-Feira Santa, que culminou com a exoneração do então Ministro da Marinha
Almirante Silvio Mota. Conforme palavras do General Mourão Filho: “Os militares
já não suportavam a vergonha de sustentar e manter um governo que dava cobertura
à indisciplina”. E nas palavras do mesmo General: “O último ato de afronta à
democracia foi o comício realizado no dia 31 de março no Automóvel Clube do Rio
de Janeiro, quando o Presidente jogou fora a Constituição e rompeu o que ainda
restava de respeito à lei, à ordem e a disciplina nas Forças Armadas”. Na mesma noite
o General Mourão Filho mobilizava suas tropas sediadas em Juiz de Fora e no dia
seguinte distribuía manifesto à nação, no qual acusava o governo de dar apoio oficial
aos comunistas e concitava “a todos os brasileiros e militares esclarecidos a salvarem
o Brasil e a deporem o Presidente da República que não mais merece ser havido como
guardião da Lei Magna”. (...) No mesmo dia ainda, membros destacados do Alto
Comando do Exército, entre os quais o atual Presidente da República e o atual
Ministro da Guerra, Marechal Castelo Branco e General Costa e Silva
respectivamente, também distribuíram manifesto em que diziam que “a Pátria não
podia mais assistir impassível a esta trágica derrocada das próprias instituições
democráticas, sendo que era o próprio Presidente da República quem incitava à
indisciplina e oferecia plena cobertura a motins desencadeados sob a orientação de
comunistas conhecidos”. 48 horas depois a revolução era vitoriosa, tendo o Supremo
Comando explicado à Nação que a ação militar visava a “conter o avanço comunista
e moralizar a vida pública nacional”. Logo após ser declarada a vitória, começaram
as devassas e notável foi o material subversivo que veio comprovar as denúncias da
acelerada comunização a que estava sendo levada a Nação. 59

Ainda na seção “Crônica Eclesiástica”, de junho de 1964, nos deparamos com um texto
a respeito das “Marchas da Família, com Deus e pela Liberdade”. Nele, apoia-se a Marcha e
principalmente o golpe de Estado de 1964 ocorrido pouco depois.

Por todo o Brasil as Marchas foram promovidas, sempre dentro do espírito que
orientou a primeira: de repúdio ao comunismo, de alerta às autoridades constituídas e
de defesa e profissão de fé democrática e cristã. Estas Marchas tiveram o benéfico
efeito de patentear aos chefes militares onde estavam os desejos do povo e serviram
de estímulo e garantia para a decisão por eles tomada dias depois de depor o Presidente
que já não encontrava eco e crédito na maioria do povo brasileiro. 60

O fascículo da R.E.B., de junho de 1964, é um testemunho importante sobre as


diferenças e talvez tensões políticas existentes dentro da Igreja em relação à conjuntura política
do Brasil pós-golpe; pois enquanto a CNBB já recomendava a “restauração da ordem social,
em base cristã e democrática”61, os editores da revista construíram uma concatenada narrativa
histórica sobre os principais “fatos” que testemunhavam o perfil “comunizante” do governo
Jango e que autorizava e justificava o golpe de Estado que o derrubou.

59
Idem.
60
KLOPPENBURG, Frei Boaventura. Marchas da família com Deus pela liberdade. In: R.E.B., v. 24, fascículo
02, jun. 1964, p. 496. Biblioteca Nacional (BN), cód. 2-136, 01, 07.
61
CNBB. Declarações da CNBB sôbre a situação nacional. In: R.E.B., v. 24, fascículo 02, jun. 1964, p. 492-493.
Biblioteca Nacional (BN), cód. 2-136, 01,07.
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Na conjuntura que antecedeu o golpe, Codato e Oliveira62 observavam que o país
experimentava, sem possibilidade de retorno, os efeitos de polarização ideológica que havia
oposto, em todo período, o liberalismo conservador ao reformismo nacionalista. Essa
polarização chegou ao ápice em março: o Comício da Central do Brasil; a Marcha da Família;
a Rebelião dos Marinheiros; a reunião no Automóvel Clube; e, como conclusão desse momento
de crise, no dia 31, a manobra liderada pelo general Olímpio Mourão Filho cerra o destino do
governo de Jango.
Portanto, a R.E.B. colocava-se ao lado do grupo mais conservador da Igreja, formando
um bloco de resistência ao comunismo, sendo um dos seus líderes o arcebispo do Rio de Janeiro,
Dom Jaime Câmara. Deste modo:

No Rio, Dom Jaime quase que semanalmente denunciava as tramas vermelhas e


concitava os brasileiros a formarem um bloco único de resistência e ficarem a postos,
prontos para repelirem qualquer investida dos inimigos da pátria e da religião. 63

Em 31 de março, as tropas militares lideradas pelo general Olímpio Mourão Filho


saíram de Minas Gerais em direção ao Rio de Janeiro e desencadearam o golpe de 1964. 64 Como
Delgado65, acreditamos que os responsáveis pela deposição de Goulart foram os militares,
respaldados por apoio internacional e em parceria com partidos políticos e segmentos da
sociedade civil, que se opunham à opção política do presidente e de seus aliados históricos.66
Nesse sentido, destacamos o apoio da R.E.B. ao movimento político-militar de 1964.

62
CODATO, Adriano Nervo; OLIVEIRA, Marcus Roberto de. A marcha, o terço e o livro: catolicismo conservador
e ação política na conjuntura do golpe de 1964. Revista Brasileira de História, vol. 24, n. 47, 2004, p. 271-302.
63
KLOPPENBURG, Frei Boaventura. A Revolução de Abril e as comprovantes da subversão comunista. In:
R.E.B., v. 24, fascículo 02, jun. 1964, p.495. Biblioteca Nacional (BN), cód. 2-136, 01, 07.
64
Portanto, ao completarmos 50 anos desse movimento político que rompeu com a ordem constitucional,
recomendamos a leitura do artigo de Lucilia Delgado, no qual a autora faz uma análise sobre as diferentes
interpretações referentes à trajetória política de Jango, à crise institucional de 1960 e um balanço historiográfico
sobre o golpe político de 1964. Ver: DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O governo João Goulart e o golpe de
1964: memória, história e historiografia. Revista Tempo, n. 28, 2009, p. 125-145. Além disso, recomendo a leitura
da obra de Carlos Fico por ser uma referência historiográfica do período estudado. Ver: FICO, Carlos. Além do
golpe. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2004.
65
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O governo João Goulart e o golpe de 1964: memória, história e
historiografia. Revista Tempo, n. 28, 2009, p. 125-145.
66
É importante ressaltar que existem diversas interpretações sobre o golpe de 1964, dentre as quais destacamos o
pensamento de dois autores: Jacob Gorender e Carlos Fico. O primeiro considera o período supracitado como o
ápice das lutas dos trabalhadores brasileiros durante o século XX. Deste modo, Gorender afirma que podemos
compreender os anos de 1960-1964 como o apogeu da luta de classes, no qual se colocou em xeque a estabilidade
institucional da ordem burguesa sob os aspectos da força coercitiva do Estado e do direito de propriedade. Já o
segundo enquadra-se em um novo ciclo produtivo. Fico discorda das teses conspiratórias de médio prazo sobre a
deposição de Jango e insiste que o movimento golpista foi conduzido por lideranças importantes das forças
armadas, sem maior planejamento anterior. Ver, respectivamente: GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A
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De acordo com Caio Navarro de Toledo,67 o golpe de 1964 significou, de um lado, um
golpe contra as reformas sociais defendidas por setores progressistas da sociedade brasileira e,
de outro, representou um golpe contra a democracia política de nosso país. No entanto, a revista
não interpretava desta forma. Para a R.E.B., o golpe não era “golpe”, mas “revolução”.
Tampouco a revista lastimou o colapso da “democracia”, pois, ao que tudo indica, mais
importante do que a ordem democrática, era “moralizar a vida pública nacional”. Ainda de
acordo com a ideologia da revista, ademais, não existia moralidade em tendências políticas
“comunizantes”.
O governo golpista estava motivado a intervir na questão agrária, com o intuito de evitar
que a população rural realizasse intervenções no campo. Em novembro de 1964, o Marechal
Castelo Branco, um dos comandantes do golpe de 1964, promulgou a Lei nº 4.504, mais
conhecida como Estatuto da Terra e que se constituiu como a primeira lei brasileira de reforma
agrária.
Ao pesquisarmos a R.E.B., observamos uma ausência de artigos, documentos e
comunicados a respeito dessa temática. Tendo em vista que a lei nº 4.504 foi promulgada em
novembro de 1964, pesquisamos o fascículo de dezembro do mesmo ano aos que foram
publicados em 1965.
Ao examinarmos a R.E.B. de dezembro de 1964, notamos um predomínio de textos
concernentes a III sessão do Concílio Vaticano II. Em relação às publicações de março e junho
de 1965, observamos uma preponderância de assuntos estritamente religiosos. Já o fascículo de
setembro dedicou-se aos debates conciliares e o de dezembro tratou-se de um repertório geral
das publicações de 1941 a 1965, elaborado pelo Padre Waldomiro Pires Martins, posto que no
presente ano a revista completava o 25º aniversário e seria uma forma de reavivar a sua
memória.
Por fim, a R.E.B. não se manifestou sobre o Estatuto da Terra. Este pouco interesse em
debater o novo documento legal contrastava nitidamente com o período anterior ao golpe de
1964, quando o periódico acompanhou e participou ativamente dos debates sobre a necessidade
de uma reforma agrária. A nosso ver, a revista considerou dispensável pronunciar-se sobre o
Estatuto, posto que a ameaça comunista fora extinta com a instauração de um regime de exceção

esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Ática, 1987. FICO, Carlos. Além do golpe.
Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2004.
67
TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: O golpe contra as reformas e a democracia. Revista Brasileira de História.
São Paulo, v. 24, n. 47, 2004, p. 13-28.
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em nosso país. Nesse sentido, o debate sobre a reforma agrária no periódico era caudatário de
uma preocupação maior: evitar que o comunismo e os comunistas conquistassem os corações e
as mentes dos fiéis.

5. Conclusão
Ao problematizarmos a Igreja Católica como uma instituição que se “move no tempo
com uma lógica própria” e como um “Corpo Místico”, portador de uma verdade transcendente,
reconhecemos, assim como Roberto Romano68, a sua capacidade e interesse de adequar-se às
questões do seu tempo. Por tal razão, para o autor, a Igreja não pode ser interpretada
exclusivamente como um instrumento ideológico do Estado, pois é uma instituição que
estabelece alianças de cunho temporal, tendo em perspectiva a ideia de salvação espiritual do
ser humano e os seus próprios interesses institucionais.
Ao percebermos os divergentes modelos de Igreja, identificamos concepções
dissonantes sobre os meios de implementar a reforma agrária, copiosamente observados nos
textos publicados na Revista Eclesiástica Brasileira. Tais embates intensificaram-se às vésperas
do Concílio Vaticano II (1962-1965), pois o clima de maior tolerância com opiniões distintas
instalava-se entre alguns leigos e clérigos brasileiros.
Ao examinarmos nossa principal fonte, a R.E.B., constatamos a sua postura a favor de
uma providência imediata, com o intuito de sanar os conflitos no meio rural
brasileiro.Entretanto, o periódico apoiava uma Reforma Agrária baseada na ordem pública e na
paz, uma vez que contribuiria para a solução dos problemas que afligiam o país, tais como:
êxodo rural; inflação; ameaça do comunismo e conflito entre grandes proprietários de terra e
camponeses. A revista defendia um projeto dentro dos moldes capitalista – isto é, calcado na
pequena propriedade familiar privada e não no controle estatal ou coletivo da terra. Portanto, a
reforma deveria ser um instrumento de modernização econômica e não de profundas
transformações sociais. O escopo principal era manter a população no campo de maneira
sustentável, com o intuito de conservar os valores tradicionais e, desta forma, garantir ao
catolicismo a permanência do seu espaço de liderança na zona rural garantido.
No que se refere ao golpe de 1964, destacamos o apoio da R.E.B. àquele movimento
político-militar. Deste modo, a revista posicionou-se ao lado do grupo mais conservador da

68
ROMANO, Op. Cit. 1979.
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instituição católica, formando um bloco de resistência ao comunismo, “para repelirem os
inimigos da pátria.”
Posteriormente, as diferenças dentro da Igreja ficaram evidentes. De um lado a CNBB
já recomendava a “restauração da ordem social, em base cristã e democrática”. Enquanto isso,
os editores da revista construíam uma concatenada narrativa histórica sobre os principais
“fatos” que testemunhavam o perfil “comunizante” do governo Jango. A narrativa traçada,
então, autorizava e justificava o golpe de Estado que o derrubou.
Por fim, a revista mostrou-se a favor de uma reforma agrária imediata. Contudo, ao
longo da pesquisa, constatamos que os pronunciamentos católicos sobre o Estatuto da Terra na
R.E.B. ficaram muitíssimo aquém do debate sobre a necessidade de uma reforma agrária que
se desenrolava no periódico antes do golpe de 1964. Assim, concluímos que a R.E.B. engajou-
se no debate sobre a reforma agrária para defender o corpo místico e institucional da Igreja
contra o que seus editores acreditavam ser um grande e perigoso inimigo: o comunismo.

Referências bibliográficas

Fontes Primárias
Encíclicas Papais
Rerum Novarum (1891)
<www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_lxiii_enc_15051891_rerum-
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Quadragesimo Anno (1931)


<www.vatican.va/holy_father/pius_xi/encyclicals/documents/hf_pxi_enc_19310515_quadrag
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Mater et Magistra(1961)<www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/encyclicals>Acesso em: 28


jan. 2014.

Pacem in Terris (1963) <www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/encyclicals> Acesso em: 29


jan. 2014.

Periódico
Revista Eclesiástica Brasileira
Papa Pio XII. No 60º aniversário da Rerum Novarum. In: R.E.B., v.11, fascículo 03, set.1951,
p. 726. Biblioteca Nacional (BN), cód. 2-135, 01, 01.

Papa Pio XII. Congresso Católico Internacional da Vida Rural. In: R.E.B., v.11, fascículo 03,
set. 1951, p. 741-743. Biblioteca Nacional (BN), cód. 2-135, 01, 01.

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KLOPPENBURG, Frei Boaventura. A reunião dos arcebispos do Brasil no Rio de Janeiro. In:
R.E.B., v.12, fascículo 04, dez. 1952, p. 990-991. Biblioteca Nacional (BN), cód. 2-135, 01,03.

SILVA, Padre Cornélio da. Orientações pontifícias sobre a questão rural. In: R.E.B., v.16,
fascículo 04, dez. 1956, p. 831-840. Biblioteca Nacional (BN), cód. 2- 135, 01, 18.

Papa João XXIII. Encíclica Social Mater et Magistra. In: R.E.B., v. 21, fascículo 03, set.1961,
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KLOPPENBURG, Frei Boaventura. Repercussão da Encíclica Mater et Magistra. In: R.E.B.,


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Artigo
UM EXAME DA ATUALIDADE DO
PENSAMENTO DE BERTRAND RUSSELL EM
VIDA E OBRA
JÚLIO CÉSAR AUGUSTO DO VALLE 

Resumo: O propósito deste artigo consiste em destacar os elementos que justificam a atualidade
do pensamento de um importante filósofo e matemático do século XX por meio de um exame
que procura enfatizar fatos relevantes de sua biografia bem como tópicos de sua contribuição
acadêmica às diversas áreas com que teve contato. Trata-se, com efeito, de Bertrand Russell
(1870-1972), responsável por uma vasta produção científica e literária. Procuramos, a partir
disso, sinalizar um exame fundamentado na proposição de quatro categorias consideradas
relevantes para compreender as disposições que animaram os caminhos de Russell. Tais
categorias buscam, em síntese, destacar elementos constituintes do pensamento russelliano que,
nesta leitura, se tornam importantes, inclusive, para a compreensão de sua atualidade.

Palavras-chave: Bertrand Russell, biografia, história

Abstract: The purpose of this article is to highlight the elements that justify the relevance of
the thought of a major philosopher and mathematician of the twentieth century through a survey
that seeks to emphasize the relevant facts of his biography as well as topics of his academic
contribution to the various areas that he had contact. It is, in fact, Bertrand Russell (1870-1972),
responsible for a vast scientific and literary production. We seek from that signal an
examination of the proposition of four categories considered relevant to understanding the
provisions that animated the Russell paths. We seek, through these categories, in short, to
highlight elements of the Russellian thought that, in this reading, become important, even to
understand its relevance.

Keywords: Bertrand Russell, biography, history

Provavelmente não exista caminho mais apropriado para compreender o que moveu as
disposições de um homem do que rememorar fatos que lhe foram importantes em sua biografia,
articulando-os, quando houver possibilidade, com as ideias que expressou e que chegam até a
atualidade por meio de seus escritos e do registro de outros. É evidente que, em se tratando de
Bertrand Russell, uma figura singular entre os filósofos de seu século por muitas razões, este

Artigo recebido em 22 de fevereiro de 2016 e aprovado para publicação em 19 de maio de 2016.


Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São Paulo. E-mail:
julio.valle@usp.br
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exercício demanda maior cuidado e talvez mesmo um estudo apenas com esta finalidade.
Todavia, em certa medida, compreender o modo como construiu suas opiniões e seu modo de
pensar único envolve inevitavelmente o estudo de sua biografia, o que constitui, portanto, o
intento da exposição a seguir.
Bertrand Arthur William Russell, nascido no dia 18 de maio de 1872 no País de Gales,
aproximadamente um ano após o falecimento de seu padrinho John Stuart Mill, foi neto do
primeiro Conde Russell – estadista liberal e duas vezes Primeiro Ministro – com quem viveu,
além da avó, durante toda a formação escolar. Isso porque sua mãe faleceu devido à difteria,
em 1874, e seu pai, que não se consolara da perda da esposa, faleceu dois anos depois, após
delegar a tutela dos filhos a dois livres-pensadores. Disposição anulada pelos avós que criaram
os netos na mansão que lhes foi dada pela Rainha Vitória.
Da avó, por quem sentia a mais profunda admiração, Russell herdou inúmeros traços
marcantes, dentre os quais destaco o fervor e convicção morais que sempre o caracterizaram.
Ademais a frase escrita na Bíblia que recebeu da avó – “Não seguirás a multidão para a prática
do mal” – apontou a “orientação a que este aderiu, corajosamente, durante toda a vida”.1
Definiu, muitas vezes, a boa vida como aquela em que nos dedicamos a causas impessoais, cujo
próprio caráter supera nosso tempo de vida, e, embora nunca tenha reconhecido devidamente,
muito de sua concepção sobre a vida assemelha-se e coincide com o que defendia e vivia sua
avó. Na verdade, Russell se aproximou deste reconhecimento ao observar: “Não acredito que
ela jamais haja tido tempo de notar que estava ficando velha. Esta, creio eu, é a receita adequada
para se permanecer jovem”.2
Em suas obras, embora se recorde da infância como um período sobremodo solitário de
sua vida, não há momento em que a veja como infeliz, o que muito provavelmente, é devido ao
ardor com que, menino, se dedicou aos estudos: primeiro em matemática e, depois, em filosofia.
Com apenas onze anos, conheceu, por meio do irmão, a geometria de Euclides, mas
decepcionou-se profundamente ao descobrir que os axiomas não poderiam ser demonstrados, e
só consentiu em prosseguir com os estudos porque o irmão mais velho garantiu que progresso
algum seria possível de outro modo. Posteriormente, Russell escreveria que apenas consentiu
porque imaginou que conhecer tudo o que irmão conhecia em matemática seria interessante,
mas sempre se sentiu perplexo diante do corpo de conhecimentos cuja primeira impressão fora

1
AYER, Alfred Jules. As ideias de Bertrand Russell. São Paulo: Cultrix, 1974, p. 18.
2
RUSSELL, Bertrand. Retratos de Memória. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958b, p. 45.

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de indiscutível clareza. Não obstante, afirma que jamais venceu inteiramente suas dúvidas
fundamentais quanto à validade da matemática, tal como sua filosofia viria, ulteriormente, a
evidenciar. Trata-se, evidentemente, de um dos primeiros momentos de sua insubordinação.
No mesmo período, que abrange o fim de sua infância e o início de sua adolescência,
Russell sentiu profundo pesar ao constatar que se afastava intelectualmente da avó. Entre os
motivos que corroboraram este afastamento, sempre destaca o fervor religioso da avó, com o
qual só havia correspondido na infância. Para o menino, trata-se de um dos momentos mais
delicados de sua vida, porque, além das discordâncias religiosas, havia também seu interesse
pela filosofia e o que este representava na tradição da família Russell.
Afortunadamente, não tardou para que o jovem iniciasse seus estudos em Cambridge,
onde encontrou o ambiente propício para florescer intelectualmente. Como reconhece diversas
vezes, na universidade, fez amizades que manteve durante toda a vida. Em meio às várias
discordâncias de ordem filosófica e religiosa que tinha em casa, dedicou-se à matemática por
entender que era destituída de conteúdo ético e que, por esse motivo, não suscitaria novas
discordâncias com a família, mas, sobretudo, com a avó. Apesar disso, mesmo em Cambridge,
não encontrou as justificativas que esperava desde o primeiro momento de estudos com seu
irmão. Em suas palavras, “tardou quase vinte anos para que eu encontrasse toda a justificação
que parecia possível, e mesmo isso ficou muito aquém das minhas esperanças juvenis”.3
Entretanto, o estudo da matemática o conduziu ao enfado – um “enjoo pela matemática,
resultante de demasiada concentração e demasiada absorção pela espécie de habilidade
requerida nos exames”.4 Por esse motivo, quando saiu de seu último exame de matemática,
jurou a si mesmo que nunca mais retomaria tais estudos, chegando, inclusive, a vender todos
os livros que tratavam sobre o assunto. Depois disso, em suas palavras, “nesse estado de
espírito, o estudo da filosofia me proporcionou todo o encanto de uma paisagem nova, quando
se sai de um vale”.5
Todavia, não foi apenas o enfado provocado por anos de estudo de matemática que
motivou sua transição à filosofia, mas também o ceticismo que sentia com relação à religião.
Afinal, este ceticismo, que o fizera duvidar mesmo da matemática, também o fizera duvidar dos
dogmas fundamentais da religião. Quando isso aconteceu, Russell examinou um a um os
dogmas religiosos que conhecia esperando, profundamente, encontrar razão para aceitá-los,

3
Ibidem, p. 4.
4
Ibidem, p. 14.
5
Ibidem, p. 14.
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porém não via resposta alguma ao agnosticismo que sugeriam. Decidiu, após decepcionar-se
com as pretensas certezas que oferecia a religião, que o estudo de filosofia poderia suprir-lhe
duas carências: primeiro, “o desejo de encontrar algum conhecimento que pudesse ser aceito
como indubitavelmente certo” e, segundo, “o desejo de encontrar alguma satisfação para os
impulsos religiosos”.6
Não obstante, a decisão de estudar filosofia não ocorreu de modo brando, justamente
devido ao fato de que, de acordo com a tradição, a família de Russell se dedicava à política
desde o século dezesseis e, por isso, pensar em qualquer alternativa era, além de um disparate,
uma traição à memória de seus antepassados, de modo que sua família fez, em seu dizer, “tudo
para mostrar que o meu caminho seria suave, se escolhesse a política”.7 Além das comodidades
que o caminho da política oferecia para um membro de sua família, havia, de fato, muita pressão
no sentido de reiterar que este também deveria ser seu caminho. Russell, que chegou a hesitar,
escolheu, por fim, a filosofia, que exercia sobre ele atração irresistível, observando, contudo,
que se tratara de sua primeira experiência acerca de um conflito e julgou-a penosa.
Posteriormente, tornou-se noivo, em uma relação que desagradou claramente sua
família, mas casou-se em poucos anos, antes de conseguir uma bolsa de estudos avançados no
Trinity College, que não exigiam que ensinasse ou residisse em Cambridge. Assim, em
companhia da esposa, para estudar política e economia, viajou para Berlim, publicando, neste
período, seus primeiros escritos, dentre os quais destaco German Social Democracy (1896) e A
Critical Exposition of the Philosophy of Leibniz (1900).
Posteriormente, em um congresso em Paris, conheceu o lógico italiano Giuseppe Peano
e seu próprio sistema de lógica matemática, que pareceu a Russell o instrumento de análise
lógica que vinha procurando há anos. “Em verdade a notação de Peano é assaz incômoda e
Russell viria a aperfeiçoá-la sensivelmente; serviu, entretanto, para alertá-lo quanto à
possibilidade técnica de efetuar uma redução da matemática à lógica”. 8 Desde então, Russell
dedicou-se a compreender e estender os métodos de Peano, além de empenhar-se na análise das
noções fundamentais da matemática, produzindo um esboço de seu livro The Principles of
Mathematics (1903), que figura, ainda hoje, como um marco na história da matéria. Não
obstante, Russell rejeitou alguns aspectos desta primeira grande obra – sobretudo aquilo que
estava impregnado do realismo platônico – e acrescentou, à apresentação da segunda edição, a

6
Ibidem, pp. 12-13.
7
Ibidem, p. 4.
8
AYER, As ideias de Bertrand Russell, p. 17.
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afirmação de que sua tese central era de que a matemática e a lógica são idênticas. 9 Contudo,
para defender seguramente sua posição, foi preciso que Russell reelaborasse a lógica conhecida.
O árduo trabalho requerido, em que contou com a cooperação de seu antigo orientador e amigo
Alfred North Whitehead, culminou na elaboração e publicação dos Principia Mathematica
(1910), a contribuição, por excelência, de ambos à matemática.
Durante os dez anos dedicados à produção da obra, Russell não permitiu que
desaparecesse seu interesse pela política: no início do século, “fez campanha em prol do livre
comércio e quando a viu triunfante, com a vitória liberal nas eleições gerais de 1906, passou a
empenhar-se em favor da causa do sufrágio feminino”.10 Nos anos que sucederam, apesar de
difíceis por envolverem sua separação da primeira esposa, Russell publicou um livro por ano,
mostrando que não se descuidara do estudo dos temas por que se interessava. Tornou-se
professor temporário em Harvard, mas logo retornou à Inglaterra, onde viveu a comoção gerada
pelo início da Primeira Guerra Mundial.
O entusiasmo, que predominava na Europa às portas da guerra, paralisava Russell, para
quem “não era possível acreditar que a Europa fosse tão insensata a ponto de mergulhar na
guerra, mas estava persuadido de que, se houvesse guerra, a Inglaterra seria envolvida”.11
Assim, a fim de evitar maior catástrofe, Russell empreendeu seus primeiros passos na direção
da paz: colheu assinaturas de um grande número de amigos e professores para uma declaração
em favor da neutralidade, que foi publicada no Manchester Guardian. No dia que a guerra foi
declarada, entretanto, grande parte de seus signatários mudaram de opinião e iniciou-se um
período de grande solidão em sua vida. No mesmo dia, caminhou pelas ruas e praças inglesas,
constatando, para sua infelicidade, que a maior parte das pessoas estava encantada diante da
perspectiva da guerra e escreveu: “Eu ingenuamente imaginara, como a maioria dos pacifistas
afirmava, que as guerras eram impostas a populações relutantes por governos despóticos e
maquiavélicos”.12
Sem qualquer apoio dos amigos e professores e incapaz de alheamento, Russell dedicou
todas as suas energias a escrever contra a guerra e fazer discursos em reuniões pacifistas. Em
nenhum momento acreditou ingenuamente que suas atividades pudessem repercutir da maneira
como desejava, mas sentia-se obrigado a fazer o que pudesse. O patriotismo que sentia e as

9
AYER, ibidem.
10
Ibidem, p. 20.
11
RUSSELL, Retratos de Memória, p. 24.
12
Ibidem, p. 25.
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concomitantes vitórias alemãs torturavam-no, mas considerava “que, para honra da natureza
humana, aqueles que não tinham perdido a cabeça deviam demonstrar que permaneciam
firmes”.13 Dessa preocupação, resultaram dois livros: Principles of Social Reconstruction
(1916) e Roads to Freedom (1918) que observavam, particularmente, aquilo que se referia às
causas da guerra e às maneiras possíveis de evitá-la. Sua mente, neste momento, se
insubordinava ao que se mostrou ser um dos episódios de maior falta de lucidez da história
humana e Russell definitivamente não seguiu a multidão para a prática do mal.
No mesmo período, apaixonou-se novamente, desta vez, pela mulher cujo amor
representava o “refúgio do mundo de ódio que o cercava”, e, depois de sua demissão do Trinity
College, foi conduzido à prisão por toda a campanha pacifista que produzia. Na prisão, onde
esteve durante quatro meses, pôde redigir Introduction to Mathematical Philosophy (1918).
A Primeira Guerra terminou e, com seu fim, não havia mais motivo para a prisão de
Russell, que foi imediatamente readmitido no Trinity College. Então, quando declararam
oficialmente o término da guerra, repetiu seu passeio pelas ruas e praças e notou que todos se
rejubilavam, inclusive ele, embora tenha permanecido tão solitário quanto antes.
Nesse cenário, quando irrompeu a Revolução Russa, Russell, primeiro, a saudou, como
o fez toda a gente, mas, logo que pôde visitar a Rússia, constatou que o regime era odioso, de
maneira que, depois de longas conversas com Lênin, concluiu que “tudo o que estava sendo
feito e tudo o que se pretendia fazer era inteiramente contrário ao que qualquer pessoa de
espírito liberal teria desejado”.14
Os radicais da época consideravam que todos os intelectuais da esquerda deveriam
apoiar a Revolução de qualquer maneira, precisamente porque todas as forças reacionárias se
opunham a ela e a criticavam severamente. Russell, diante disso, teve dúvidas sobre como
deveria agir, mas em pouco tempo decidiu que alguns princípios não deveriam ser sacrificados
em nome de qualquer movimento: declarou publicamente que o regime bolchevista era
abominável e nunca encontrou motivo para mudar de opinião. Como ocorrera outras vezes,
Russell insistia em manter-se insubordinado às violações que via no mundo e corria,
evidentemente, o risco de novas retaliações. Tudo, de fato, teria sido muito pior se não
conseguisse nesse período uma viagem à China, onde passou um ano inteiro.

13
Ibidem, p. 25.
14
Ibidem, p. 7.
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Durante a estadia na China, Russell entrou, pela primeira vez, em contato com os
problemas que a Ásia vivia e impressionou-se, sobretudo, com a aparente anomia em que
viviam os chineses. Não obstante, impressionou-se, também, com tudo o que encontrou de
admirável na tradição do país, embora julgasse que “nada daquilo poderia sobreviver às
investidas postas em prática pela rapacidade do Ocidente e dos japoneses”. Por conta
precisamente destas investidas, não teve “a menor dúvida de que veria a China transformada
em moderno Estado industrial, tão agressivo e militarista como as potências a que ela era
obrigada a resistir”15 – algo que, de fato, tornou-se realidade depois de alguns anos. Ainda
assim, durante o ano que passou no oriente, pôde desfrutar da serenidade que caracterizava a
vida na Ásia.
Ao fim desse ano, Russell retornou à Inglaterra e casou-se novamente, dedicando seu
ardor intelectual aos problemas sociais que encontrou, sobretudo, no que diz respeito à
educação. Como disse: “Não me agradava a educação convencional, mas achava deficiente, na
maioria das escolas quanto ao lado puramente escolástico, o que se chama ‘educação
progressiva’”.16 Concomitantemente ao nascimento de seu primeiro filho, publicou dois livros
em que discorria especificamente sobre o tema: Education and good life (1926) e Education
and the social order (1932).
Candidatou-se ao parlamento como membro do Partido dos Trabalhadores duas vezes
e, depois de doar quase todo o dinheiro de que ainda dispunha, sobretudo, à Universidade de
Cambridge e uma de suas faculdades para moças, viajou quatro vezes aos Estados Unidos para
lecionar. Durante este período e, principalmente, depois dele, Russell encontra-se no auge de
sua atividade literária. Dentre as publicações dessa época de sua carreira, destaco Why I Am Not
a Christian (1927), considerado, pelos cristãos de sua época, um dos mais blasfemos livros da
história da humanidade; Sceptical Essays (1928), em que propõe uma metodologia de análise
fundamentada no ceticismo para a maior parte dos assuntos que estudava; Marriage and
Morals (1929), em que enfrenta os hábitos mais cristalizados do código moral da sociedade
ocidental no que tange ao casamento e às relações amorosas; e The Conquest of Happiness
(1930), em que disseca, com sua análise centrada no indivíduo, os fatores que contribuem para
a felicidade humana e os que a impedem. Como bem denota Ayer,17 “estes livros, considerados
chocantes, na época, prejudicaram o autor, por advogarem certa medida de liberdade sexual e

15
Ibidem, p. 32.
16
Ibidem, p. 8.
17
AYER, As ideias de Bertrand Russell, p. 28.
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contribuíram para a alteração de clima que hoje os faz parecer atuais”. O mesmo autor declara
que os leu em sua juventude, quando ainda eram inéditos, e é testemunha do benéfico efeito
que tiveram sobre sua época.
No sentido de corroborar e, ao mesmo tempo, aplicar aquilo em que acreditava, Russell
e sua esposa decidiram fundar uma escola própria, que orientaram em linhas progressistas, mas
não anárquicas que, embora Russell admita em seus escritos não ter tido êxito na experiência,
mantivera-se até o início da Segunda Guerra Mundial, quando Russell se separou de sua esposa.
Depois da morte de seu irmão, quase no mesmo período, Russell tornou-se o terceiro Conde
Russell. Todavia, com o título, também herdou a obrigação de pagar a pensão da segunda esposa
de seu irmão, embora não tenha recebido dinheiro algum para isso.
Iniciou-se, portanto, novo período de dificuldades financeiras para Russell; porém,
afortunadamente, seu entusiasmo literário reapareceu. Destaco, neste período de animada
produção escrita, os títulos Freedom and Organization 1814-1914 (1934), em que exibe sua
capacidade de escrever história política e, mais especificamente, uma tentativa no sentido de
traçar as causas principais da transformação política verificada no período de cem anos que
precederam a Primeira Guerra; In Praise of Idleness (1935), em que denuncia os males
provenientes tanto da crença, cada vez mais difundida, na virtuosidade do trabalho, como da
crença de que o caminho para a felicidade e a prosperidade consiste em sua diminuição
organizada; e Which Way to Peace? (1936), em que sustenta uma posição pacifista com a qual
se mostrou insatisfeito à medida que se aproximava a Segunda Guerra.
Em suas pesquisas para a escrita de Freedom and Organization 1814-1914, contou com
a colaboração de Patrícia, comumente conhecida como Peter Spence, jovem que havia ensinado
na escola mantida pelos Russell com quem veio a se casar e ter mais um filho. Depois disso,
com a publicação de Power (1938), retoma sua dedicação à filosofia com uma série de
conferências em Oxford e também na London School of Economics. Em ambas, estimulou o
debate com filósofos jovens, entre os quais se encontrava Ayer. Algo que deve ser enunciado,
obrigatoriamente, é o fato de que, em Power, Russell define o poder como uma nova categoria
para a análise social a fim de provar que somente a partir da compreensão de que o “poder é a
causa das atividades que são mais importantes nos assuntos sociais, é que a história, quer seja
antiga ou moderna, pode ser corretamente interpretada”.18 Notoriamente, trata-se de um dos
aspectos mais relevantes de sua obra no sentido de atestar a atualidade de seu pensamento.

18
RUSSELL, Bertrand. O poder, uma nova análise social. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957, p. 4.

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Posteriormente, viaja com a família para os Estados Unidos, onde desempenha funções
de professor visitante na Universidade de Chicago e na Universidade da Califórnia, pouco antes
de receber a indicação para lecionar em Nova York, que desencadearia uma polêmica
controvérsia pública em que seus opositores – a esta altura de sua vida, grupos vinculados a
todo tipo de conservadorismo, tanto religioso como político – conseguiram a revogação da
indicação.
Não obstante, tal episódio constituiu um marco na luta histórica da universidade contra
as forças obscurantistas que tentaram, ao longo dos séculos, impedir o desenvolvimento de
ideias que contribuíssem à crítica, por exemplo, dos dogmas das religiões institucionalizadas.
Em favor de Russell, manifestaram-se os reitores de todas as universidades nas quais já havia
lecionado, além de seus amigos, professores e alunos. Destacavam-se, em sua defesa, seu amigo
Albert Einstein e seu antigo orientador Alfred Whitehead. Entre os argumentos que
fundamentaram o processo, dois foram essenciais para a decisão judicial: Russell teria, em seus
escritos, manifestado seu apoio à homossexualidade e ao adultério e isso bastou para provocar
o despautério generalizado que caracterizou os trâmites processuais. De fato, é possível
encontrar fundamentos bastante claros de uma nova moral sexual nos escritos de Russell.
Porém, como ressalta John Dewey, em um artigo do jornal The Nation, aqueles que procuram
em seus “escritos quaisquer formas de imundice e obscenidade ficarão decepcionados”.19
Por conseguinte, Russell encontrou muita dificuldade de conseguir outro emprego nos
Estados Unidos e todas as viagens que faria para suas conferências foram canceladas.
Afortunadamente, “a Universidade de Harvard, que já o havia convidado para ministrar as
‘William James lectures’, teve a coragem e a decência de manter o convite”20. Não tardou para
que fosse convidado para retornar ao Trinity College e, com um adiantamento sobre os direitos
de publicação, conseguiu publicar, em seguida, History of Western Philosophy (1945), que se
tornou seu livro mais bem-sucedido do ponto de vista financeiro e permitiu que vivesse o
restante de sua vida sem preocupar-se com dinheiro.
Foi reconhecido novamente como um professor respeitável em Trinity College quando
as autoridades inglesas decidiram que havia se tornado venerável e “que sua hostilidade ao
comunismo poderia ser usada em proveito do país”21. Enviaram-no, por esse motivo, a Berlim
para lecionar durante certo tempo, ocasião em que escapou da morte devido a seu vício de fumar

19
RUSSELL, Bertrand. Por que não sou cristão. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 223.
20
AYER, As ideias de Bertrand Russell, p. 31.
21
Ibidem, p. 33
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cachimbos. Isto porque, durante uma visita à Noruega, a aeronave que o transportava
precipitou-se no porto de uma cidade e, por uma fatalidade, todos os passageiros que estavam
no compartimento para não-fumantes morreram. Russell, já idoso, foi obrigado a nadar certa
distancia até ser resgatado por um bote, mas nada o acometeu além da água gelada.
Inicia-se, então, o período de maior prestígio em toda a carreira do filósofo, embora
tenha também se separado da esposa. Nos anos seguintes, foi agraciado, consecutivamente, com
a Ordem do Mérito e com o Prêmio Nobel de Literatura. No mesmo período, foi eleito
“Honorary Fellow” da British Academy e convidado pela BBC para proferir a primeira série
das “Reith Lectures”, que vieram a ser publicadas sob o título Authority and the Individual
(1949). Casou-se, então, com Edith Finch, que conhecia há muitos anos. Conforme aponta
Ayer, “esse casamento foi muito feliz e deu a Russell a paz de espírito que ele não tinha
experimentado antes”.22
Ulteriormente, deixou-se absorver crescentemente pela política devido ao receio de uma
terceira guerra mundial, durante a qual temia, sobretudo, que o uso de armas atômicas
condenasse a maior parte da espécie humana à destruição. Desde que reconheceu a ameaça
como iminente, devotou muito de seu tempo à campanha pelo desarmamento nuclear, tornando-
se um dos primeiros intelectuais em favor da causa. Remava, novamente, insubordinado à
corrente do mundo.
Os livros que publicou nesse momento – Common Sense and the Nuclear Warfare
(1959) e, sobretudo, Has Man a Future? (1961) – evidenciam de modo suficientemente tangível
seus esforços no sentido de promover, além do desarmamento nuclear mundial, um estado de
paz estável, que poderia ser obtido, conforme sugere, por meio de um governo mundial.
Em consonância ao movimento a que se dedicava, Russell convenceu muitos cientistas
proeminentes de sua época, dentre os quais destaco Joliet-Curie, Linus Pauling e Albert
Einstein, a assinar um manifesto em favor da cooperação científica e social pacífica. Tornou-
se, concomitantemente, presidente da Campanha Pró-Desarmamento Nuclear, mas demitiu-se
depois de dois anos para assumir a direção do Comitê dos Cem que, à época, desencadeava
campanhas de desobediência civil.
Em vista de suas atividades anteriores, suas responsabilidades ganharam maior
notabilidade, ao passo que interveio fortemente na crise cubana; “defendeu a causa dos judeus

22
Ibidem, 34.
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na Rússia, dos árabes em Israel e dos prisioneiros políticos na Alemanha oriental e na Grécia”;23
correspondeu-se com líderes de estado; e, finalmente, criou a “Bertrand Russell Peace
Foundation”. Julgou que a maior ameaça à paz mundial fundamentava-se na atuação do governo
norte-americano, sobretudo, no Vietnã. Para consubstanciar sua luta, criou o Tribunal
Internacional de Crimes de Guerra, que contou com a ajuda de Jean Paul Sartre e de Simone de
Beauvoir, para averiguar os crimes de guerra cometidos pelas tropas norte-americanas em
território vietnamita. Uma síntese brilhante de todo seu movimento em favor da independência
do Vietnã e de seu povo foi publicado sob o título de War Crimes in Vietnam (1967), seu último
livro, quando desconsideramos sua autobiografia.
Russell, novamente, em seus últimos anos de vida, demonstrou corajosamente sua
lealdade à educação que recebeu da avó: nunca seguiu a multidão para a prática do mal.
Qualquer que fosse a forma como esta prática se apresentasse – desde as razões imperialistas
que conduziram à Primeira Guerra Mundial e à Guerra do Vietnã, até as melhores intenções
que conduziram à Revolução Russa –, Russell esteve, durante toda a vida, convicto de seus
princípios e, apesar dos momentos de hesitação e dúvida, soube sempre como agir.
Embora a surdez o tenha afligido em seus últimos anos, acompanhada da dificuldade
para deglutir, Russell demonstrou durante toda a vida muito boa saúde e decidiu como seu
último dia chegaria: “Desejaria morrer enquanto ainda estivesse trabalhando, sabendo que
outros continuarão o que não posso mais fazer, e satisfeito com a ideia de que o que era possível
foi feito”.24 Bertrand Russell faleceu no dia 2 de fevereiro de 1970, quase aos noventa e oito
anos de idade, inspirado até o fim da vida por seu “fervor moral, a constante preocupação com
a humanidade e a surpreendente energia física e moral que sempre o estimularam”.25
Muitas lições depreendem-se, a meu ver, desta longa e estimulante trajetória. Inspira-
nos a perseverança com que Russell perseguiu seus princípios e objetivos, posicionando-se, não
poucas vezes, contra o mundo para salvá-lo de sua própria insanidade e despautério. No entanto,
não é apenas a partir dos acontecimentos concretos descritos em sua biografia que podemos
aprender. Talvez, a lição de maior valor para a contemporaneidade decorra, ao invés disso, de
seu modo de pensar – de seu modo de perceber e entender o mundo em que viveu –, que o
orientou sobre como agir quando todos os antigos critérios de validade moral se perderam ou
se tornaram insuficientes, em meio às crises do século XX. O que demonstra, portanto, a

23
AYER, As ideias de Bertrand Russell, p. 35.
24
RUSSELL, Retratos de Memória, p. 46.
25
AYER, As ideias de Bertrand Russell, p. 36
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importância de seu pensamento político é sua atualidade: o fato de que seu modo de pensar
permaneceu relevante apesar do transcorrer dos anos e, por isso, merece dedicada atenção.
Evidentemente, não há um método por meio do qual seja possível analisar um modo de
pensar, sobretudo, um modo de pensar ativo como o de Russell, expresso ao longo de mais de
setenta livros. No entanto, proponho uma análise fundamentada em quatro categorias essenciais
de seu pensamento político, a fim de acentuar os delineamentos por meio dos quais compreendo
o próprio Russell. É relevante observar que todas as categorias que utilizo em minha análise
estão intimamente associadas e, apesar de distintas, complementam-se.
Em primeiro lugar, evidencio sua compreensão da humanidade como um todo, como
espécie biológica engajada em ajustar-se a seu meio ambiente.26 Para compreender
efetivamente seu pensamento político, é necessário, antes, entender que Russell não via motivo
racional para a divisão da humanidade em grupos políticos, senão para que uns pudessem impor
prerrogativas e privilégios em detrimento de outros.
Sob essa perspectiva, condenou o nacionalismo, sobretudo devido a dois aspectos: por
um lado, porque “um mundo cheio de patriotas pode ser um mundo pleno de discórdia” e, por
outro, porque “quanto mais intensamente uma nação crê em seu patriotismo, tanto mais
fanaticamente indiferente se torna ao mal sofrido pelas demais”. Deve-se reconhecer, por meio
da categoria da “compreensão da humanidade como um todo”, a convicção de Russell de que
“quando os homens tiverem aprendido a subordinar seu próprio bem ao bem de um todo mais
amplo, não poderá haver qualquer razão válida para conter a raça humana”.27
Trata-se, de fato, de uma convicção que Russell desejava ver construída por meio da
educação, conforme afirma no seguinte excerto:

Penso que no programa educacional devemos insistir no princípio de que a


humanidade é uma família com interesses comuns – portanto a cooperação é mais
conveniente do que a rivalidade, e amar o próximo é, não só um dever moral
normalmente inculcado nas aulas de religião, mas também o melhor caminho a seguir
para alcançar a felicidade própria.28

Ademais, Russell fundamentava sua convicção na premissa de que devemos “aceitar a


ideia de que o nosso vizinho também tem direito a ser feliz, se nós próprios queremos ser

26
RUSSELL, Bertrand. New hopes for a changing world. Londres: George Allen & Unwin Brothers, 1951.
27
RUSSELL, Bertrand. Princípios de reconstrução social. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958a, p. 37.
28
RUSSELL, Bertrand. A minha concepção do mundo. Brasília: Brasília Editora, 1970, p. 177.
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felizes”29 e esperava, assim, que cada homem e cada mulher pudessem compreender que “o
indivíduo não é o fim e o objetivo de sua própria existência”: além do indivíduo, como explica,
existe a comunidade e o futuro da humanidade.30 Considero, acima de tudo, que sua intenção
basilar era promover uma superação do sentimento de nacionalismo exacerbado, que vigorava
e fora causa dos mais terríveis desmandos de sua época, e sua consequente substituição pelo
amor à humanidade, capaz de evidenciar a irracionalidade dos motivos de quaisquer guerras,
desencorajando-as. Com isso, Russell determinou que, a fim de superar o despautério da guerra
e do nacionalismo, “o conceito em mira será o da raça humana como um todo, a lutar contra o
caos externo e a cegueira interna, com a débil luz da razão a desenvolver-se em fanal”, de
maneira que qualquer forma de divisão deve ser confrontada: “a divisão entre raças, nações e
credos deve ser apresentada como loucuras que nos distraiam da luta contra o caos e as trevas,
pois que essa luta constitui a atividade humana essencial”.31
Em segundo lugar, destaco a concepção da história de Russell que, em perfeita
consonância com a categoria anterior, proporcionou-lhe a constatação de que um modo mais
abrangente de compreender a história seria fundamental para promover as mudanças de que a
humanidade necessita. Russell foi um leitor ávido e interessado da história e iniciou seus
estudos quando, depois de verificar “a crueldade, a perseguição e a superstição aumentar em
grandes saltos”, sentiu grande tristeza, da qual gostaria de se desfazer. Afortunadamente, com
uma compreensão mais apropriada da história, concluiu que “a loucura é perene, mas que, não
obstante, a raça humana sobreviveu”, além de que “as loucuras de nossa própria época são mais
facilmente suportadas quando vistas tendo em segundo plano as loucuras do passado”.32
Posteriormente, o que primeiro obteve destes estudos, foi “a sensação de que é uma gota num
grande rio e não uma entidade à parte, estreitamente delimitada”. Por esse motivo, defendeu
desde então que todo aquele “cujos interesses se acham limitados pelo curto espaço de tempo
que vai do nascimento à morte, possui uma visão míope e uma limitação de perspectiva que
dificilmente poderão deixar de reduzir o alcance de seus desejos e esperanças”.33
Depois de ressaltar que o mesmo se verifica para comunidades inteiras, prossegue
considerando a desconstrução das certezas consolidadas no tempo e na tradição como outro
aprendizado proveniente do estudo da história. Assim, a partir do entendimento de que “a

29
Ibidem, p. 179.
30
Idem, 1958a, p. 140.
31
RUSSELL, Bertrand. Educação e vida perfeita. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956b, p. 228.
32
RUSSELL, Bertrand. Ensaios Impopulares. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956c, p. 93.
33
Idem, 1958b, p. 177.
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certeza absoluta constitui a fonte de muitas coisas más de nosso mundo atual”, Russell defende
tratar-se de “algo de que a contemplação da história deveria curar-nos”, precisamente porque
“se verificou que muita coisa considerada como sabedoria se converteu, mais tarde, em
insensatez – o que nos sugere que muito da nossa suposta sabedoria não é melhor do que a
anterior”.34
Ademais, da constatação de que o ensino foi usado para glorificar a guerra, Russell
depreende que “a história devia versar mais sobre o mundo em geral do que sobre um país em
particular e devia salientar mais as questões de importância cultural do que as guerras”, de modo
que, quando seu estudo for inevitável, “não devem ser ensinadas somente sob o ponto de vista
do vencedor e dos feitos históricos”.35 Durante este estudo, conforme acrescenta Russell, o
educando “deve meditar sobre o campo de batalha com os seus feridos, sentir a angústia dos
que ficaram sem lar nas regiões devastadas e conhecer todas as crueldades e injustiças para as
quais a guerra oferece oportunidades”.
Em vista disso, Russell afirma que um ensino mais apropriado da história pode ser a
medida certa para o enfrentamento dos diversos problemas que encontra no modo de viver de
seu século e evidencia que “schools will have to teach not only the narrow and biased
nationalistic history which has hitherto been often thought sufficient, but world history from an
impartial point of view”.36 Observo que, conforme enunciado anteriormente, há notória
consonância entre as principais categorias de seu pensamento, cuja confluência pode ser
verificada em sua afirmação sobre a criança frente à educação: “o comportamento entre iguais
é o que ela mais precisa aprender. Muitas das desigualdades existentes no mundo são artificiais
e será uma boa coisa que a criança as ignore”.37
A fim de encerrar a abordagem da segunda categoria do pensamento de Russell, gostaria
de acrescentar sua defesa de que o ensino da história, e também da geografia, deveria ser
iniciado por meio do cinema, apropriado para

34
Idem, 1958b, p. 177.
35
RUSSELL, Bertrand. Educação e ordem social. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956a, pp. 100-101.
36
Idem, 1951, p. 146. “As escolas deverão ensinar, não a estreita e enviesada história nacionalista que tem sido,
até agora, frequentemente suficiente, mas a história do mundo de um ponto de vista imparcial” (tradução livre do
autor).
37
Idem, 1956b, 157.
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To cure provincialism in space and time, and to make children realize that actual
human beings with actual feelings can be outwardly very different from the people
among whom they live, but inwardly composed of the same human material. 38

Mais uma vez, é possível observar a correlação entre as duas primeiras categorias de
seu pensamento, precisamente porque, conforme o excerto anterior revela, trata-se de uma
tentativa de estimular a compreensão da humanidade como um todo por meio da história que,
como vimos, seria ensinada, primeiro, com filmes. Trata-se, ademais, de um modo de pensar a
educação que nos reitera sua atualidade.
Em terceiro lugar, apresento a coerência consigo mesmo, apesar do mal-estar com o
mundo como a categoria mais intáctil do pensamento de Russell, de modo que, para
compreendê-la inteiramente, devemos recorrer à experiência de Sócrates. Em Górgias, Sócrates
propõe leis morais, sobre as quais tenta, com certa dificuldade, convencer seus interlocutores.
Dentre tais leis morais, destacam-se as máximas: “É melhor sofrer o mal do que o cometer” e
“é melhor para o agente ser punido do que se manter impune”. Então, no decorrer de sua
argumentação, Sócrates empreende a seguinte afirmação:

Aliás, ao menos eu julgo, excelente homem, que é melhor que minha lira, ou o coro
do qual sou corego, seja desafinada e dissonante e que a maioria dos homens não
concorde comigo e afirme o contrário do que digo, do que eu, sendo um só, dissone
de mim mesmo e diga coisas contraditórias.39

E, dessa maneira, nos ensina uma lição ímpar sobre seu modo de agir: acaso discorde
de outras pessoas, posso sempre me afastar de seu convívio, contudo nunca posso afastar-me
de mim mesmo. A lição de Sócrates nos demonstra, inclusive, o motivo por que é melhor sofrer
o mal do que o cometer: quando cometo o mal, sou obrigado a conviver com um malfeitor e
não há como desvencilhar-me dele.40
Sócrates considera, evidentemente, de tal modo intolerável estar em desacordo consigo
mesmo que prefere, além da lira desafinada, estar em desacordo com a maioria dos homens, o
que o colocaria em mal-estar com o mundo. O pensador por excelência, Sócrates, demonstrou

38
Idem, 1951, p. 205. “Curar o provincialismo no espaço e tempo e fazer com que as crianças percebessem que o
verdadeiro ser humano, com sentimentos reais, pode ser externamente bastante diferente das pessoas entre as quais
elas vivem, mas interiormente é composto pelo mesmo material humano” (tradução livre do autor).
39
PLATÃO. Górgias/Platão. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 295.
40
Esta interpretação do diálogo no Górgias coincide com aquela apresentada em ARENDT, Hannah.
Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
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que a força do enunciado moral está intimamente associada à vida de seu enunciador e o fez
acatando sua condenação à morte como corruptor da juventude quando lhe ofereceram a
redenção somente a expensas de sua renúncia à investigação e à filosofia. Logo, apesar de sua
consideração e de seu afeto por Atenas, nunca renunciaria à filosofia nem mudaria seu modo
de vida para que não estivesse em desacordo consigo mesmo, a despeito de estar, assim, em
profundo mal-estar com o mundo. Por esse motivo, passados dois mil anos, ainda discutimos
os ditos e feitos memoráveis de Sócrates.
Quando me refiro, portanto, à coerência consigo mesmo, apesar do mal-estar com o
mundo como categoria do pensamento de Russell, entendo, sobretudo, sua capacidade de, como
o fez Sócrates, manifestar-se contra os homens e contra o mundo para que nunca estivesse em
desacordo consigo mesmo. Capacidade que, embora estivesse presente em sua personalidade
durante toda a vida, fora apresentada, destacadamente, em três momentos: durante sua
adolescência com relação à religião e no decorrer tanto da Primeira Guerra Mundial como
também da Revolução Russa.
No primeiro deles, sua adolescência, Russell sentia profundo incômodo e pesar à medida
que percebia sua descrença na fé religiosa de sua família, corporificada nas fortes crenças da
avó. Depois de analisar um a um os dogmas fundamentais de sua religião na esperança de
encontrar razão para sustentar sua fé, chegou, então, ao ponto em que se tornou insustentável e
rebelou-se, segundo ele, em nome do intelecto. O interesse que demonstrou durante toda a vida
pela filosofia surgiu nesse preciso momento enquanto toda a família o reprovava severamente
pelo abandono da fé religiosa. O que sobrelevo desta delicada situação é que, apesar de sentir-
se infeliz por estar “intelectualmente afastado da avó e por dar-se conta de que rejeitar-lhe as
crenças religiosas aumentava a distancia entre os dois”,41 como descreve Ayer, Russell não
cedeu às reprovações da família e, com isso, não se contradisse.
Quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial, Russell sentiu-se solitário em toda
campanha pacifista a que se dedicou. Muitos professores e amigos que conheceu quando
ingressou em Cambridge repreenderam-lhe amargamente e duvidaram de seu amor pela
Inglaterra. Então, apesar das torturas de seu patriotismo, que o fazia sofrer a cada derrota
inglesa, Russell manteve-se firme na luta pela paz:

Não obstante, jamais tive um momento de dúvida quanto ao que devia fazer. Às vezes,
sentia-me paralisado pelo ceticismo; outras vezes, mostrava-me cínico ou, então,

41
AYER, As ideias de Bertrand Russell, p. 15.
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indiferente, mas, quando a guerra irrompeu, foi como se eu ouvisse a voz de Deus.
Sabia que me competia protestar, por mais inútil que o protesto pudesse ser. Toda a
minha natureza estava envolvida naquilo.42

Mais uma vez, demonstrou que não entraria em desacordo consigo mesmo, ainda que
isto o colocasse diante do desagrado de muitos dos amigos que mais considerava. Por fim,
durante o início da Revolução Russa, Russell viveu outro momento de grande solidão ao
manifestar-se contra o que estava ocorrendo no país. Construiu-se, de certo modo, uma norma
rígida de conduta, segundo a qual nenhum intelectual de esquerda poderia criticar, sequer
construtivamente, o sistema soviético, sobretudo, porque políticos e intelectuais de direita
podiam aproveitar-se das críticas para endossar as suas próprias.
Russell viu-se novamente em meio ao mesmo dilema, mas optou mais uma vez por
manter-se íntegro em suas convicções: depois de regressar de uma visita à Rússia, onde
conversou durante horas com Lênin, redigiu seu primeiro livro denunciando o que encontrava
de inconsistente no país, depois da Revolução. Provocou para si, com isto, o desagrado de mais
amigos, professores e intelectuais europeus, escrevendo, posteriormente: “Nisto divergi de
quase todos os amigos que fizera desde 1914. A maioria das pessoas ainda me odiava por ter-
me oposto à guerra, e uma minoria, que não me odiava por esse motivo, me denunciou por não
louvar os bolchevistas”.43
E, para concluir, em quarto lugar, assinalo sua insubordinação ao estabelecido. Trata-
se, definitivamente, de sua característica mais notável e, de algum modo, também mais simples,
precisamente porque, para Russell, “o pensamento, por excelência, caracteriza-se por ser
revolucionário, anárquico e subversivo44 – além de sua indiferença com relação ao privilegio,
às instituições estabelecidas e aos hábitos confortáveis”.
Existem inúmeros exemplos que evidenciam o modo como sua concepção do
pensamento se manifestou no que se refere a áreas aparentemente bastante distintas. Dentre tais
exemplos, destaco, principalmente, sua relação com a religião. Afinal, de acordo com a
perspectiva de Russell, poucas coisas devem figurar mais adequadamente no conjunto de
“privilégios, instituições estabelecidas e hábitos confortáveis” do que a religião.
Russell tornou-se, desde a adolescência, um crítico severo da religiosidade, sobretudo,
cristã, motivado por seu entendimento de que a religião representa, muitas vezes, uma resposta
covarde da humanidade frente ao universo, que decorre precisamente de sua convicção de que

42
RUSSELL, Retratos de Memória, p. 25.
43
Ibidem, p. 7.
44
Idem, 1958a, p. 120.
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“o medo é a base do dogma religioso, assim como de muitas outras coisas na vida humana. O
medo dos seres humanos, individual ou coletivamente, domina muito de nossa vida social, mas
é o medo da natureza que dá origem à religião”.45 Dessa maneira, depreende-se sua
compreensão de que a religião teria dignificado certos tipos de medo que não foram, desde
então, julgados vergonhosos.
A despeito de reconhecer que a humanidade é digna de ser preservada precisamente
devido à sublimidade que demonstrou por meio da religião, da arte e da literatura, Russell crê
que a maior parte das pessoas aceita a religião por motivos emocionais. Mais especificamente,
aceitam-na justamente porque acreditam que a religião é responsável pela virtude do homem e,
por isso, nos dizem que é errado atacá-la.46
A partir disso, podemos constatar o modo como Russell associa a religião à comodidade
das instituições estabelecidas e dos hábitos confortáveis. No entanto, o que Russell criticava,
mormente, encontrava-se no substrato da religião enquanto dogma:

A religião impede que nossos filhos tenham uma educação racional; a religião nos
impede de exterminar as causas fundamentais da guerra; a religião nos impede de
ensinar a ética da cooperação científica, em lugar das antigas doutrinas aterradoras a
respeito do pecado e do castigo. É possível que a humanidade esteja no limiar de uma
idade de ouro, mas, se estiver, primeiro será necessário matar o dragão que vigia a
porta – esse dragão é a religião.47

De fato, seu posicionamento não surpreende. Afinal, Russell assistiu às mais terríveis
guerras da história e soube, desde o primeiro momento, que o cristianismo professado pela
maioria dos países envolvidos não fora capaz de aplacar ou sequer amenizar as hostilidades
manifestas. Ademais, Russell, que sempre advogou em favor de medidas para o controle
mundial da natalidade, encontrou muita resistência em sua campanha, principalmente, por parte
dos cristãos, afirmando que a questão do crescimento populacional “desde o advento do
cristianismo tem sido deixada à mercê do cego funcionamento do instinto”.48
Assim, aos “cristãos” Russell não poupava críticas, que se impregnaram de sua agudeza
e sagacidade. Dizia, por exemplo, que quando Cristo nos ensinou que devíamos amar uns aos
outros, “causou tanta fúria que a multidão gritou: Crucifiquem-no! Crucifiquem-no!”. E
completa: “desde então, os cristãos têm seguido a turba mais que ao Fundador de sua religião.

45
RUSSELL, Bertrand. No que acredito. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 37.
46
Idem, 2011.
47
Ibidem, p. 68.
48
RUSSELL, Bertrand. O casamento e a moral. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977b, p. 166.
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E aqueles que não são cristãos de modo algum ficam atrás”.49 Em outros escritos, defende que
devemos aprender como “corporificar nos assuntos humanos um pouco daquele espírito de
fraternidade que Cristo ensinou e que as igrejas cristãs esqueceram”.50
Todavia, Russell não dirigiu suas duras críticas à religiosidade apenas, mas a tudo que
dela decorria de alguma forma. Os códigos morais tradicionais também foram alvo de sua
censura e desaprovação, sobretudo aqueles que, reconhecidamente, provinham da moralidade
cristã. Dentre as normas da moralidade que criticava, destaco principalmente a moral sexual,
que julgava demasiadamente perniciosa, defendendo, por exemplo, ainda na primeira metade
do século XX, que não havia motivo racional para criminalização da homossexualidade.
Depreendia sua defesa da constatação de que a maior parte das leis que condenavam a
homossexualidade “é efeito de uma bárbara e ignorante superstição, em favor da qual não é
possível apresentar um único argumento racional”.51 De forma mais ampla, constatara que “é
fato curioso que as coisas a que os deuses se opõem raramente fariam muito mal se não
despertassem a cólera divina”.52
Os atos e palavras descritos anteriormente evidenciam, de fato, seu hábito de contestar,
frequentemente, aquilo que era estabelecido e encontraremos, portanto, inúmeras passagens em
que se rebela contra as normas da moralidade e da conduta que predominaram em seu século.
Reconhecia, por exemplo, que, durante muito tempo, as mulheres “foram conservadas
artificialmente burras e, consequentemente, desinteressadas”53 e grande parte da humanidade
padecia agora devido à falta das contribuições que poderiam lhe ter proporcionado.
É possível, também, compreender, de um modo mais abrangente, a crítica de Russell à
moralidade vigente como produto de sua concepção da história – segunda categoria de seu
pensamento, como proposto no presente estudo. Asserção que se torna evidente quando, depois
de descrever a prática do canibalismo dos astecas – que o faziam por temer que a luz do sol
esmaecesse – e a prática de algumas tribos que mantinham as mulheres confinadas em lugares
escuros dos dez aos dezessete anos – com receio de que a luz do sol pudesse engravidá-las –,
Russell formula a seguinte questão:

Será que nossos modernos códigos de moralidade nada contêm que seja análogo a
essas práticas selvagens? É possível que proibamos apenas as coisas que são

49
RUSSELL, Bertrand. Ética e Política na sociedade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1977a, p. 146.
50
RUSSELL, Bertrand. Ideais Políticos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 90.
51
Idem, 1977b, p. 77.
52
Idem, 1956a, p. 72.
53
Idem, 1977b, p. 22.
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verdadeiramente danosas ou, de uma forma ou de outra, tão abomináveis que
nenhuma pessoa decente seria capaz de defendê-las? Não estou muito certo disso.54

Destarte, devido as suas inúmeras tentativas de descontruir o que havia sido canonizado
por anos de tradição, a importância da insubordinação ao estabelecido como categoria de seu
pensamento deve ser sublinhada. Afinal, conforme Russell justificava, “o hábito animal é
suficiente, por si mesmo, para fazer o homem gostar dos velhos processos, da mesma maneira
que faz com que um cavalo goste de seguir certa estrada que geralmente costumava seguir”.55
Por fim, é possível elucidar algumas das íntimas relações entre as quatro categorias de
seu modo de pensar. Evidencio, de início, que sua compreensão da humanidade como um todo
e sua insubordinação ao estabelecido provêm muito semelhantemente de sua concepção da
história. Afinal, é por conceber a história da humanidade como o faz Russell que é possível
perceber que o estabelecido é sempre um produto social e pode ser desfeito quando é pernicioso
e causa danos à humanidade. Da mesma forma, sua capacidade de nunca contradizer a si
mesmo, apesar de seu mal-estar com o mundo, deriva precisamente das outras três categorias.
Justamente porque compreende a história de maneira mais ampla e concebe a humanidade como
uma grande família, é capaz de perceber quando determinados empreendimentos, a despeito do
bem que promovem, causam dor e sofrimento a grande parcela do mundo, o que lhe era
intolerável. Além disso, insubordinar-se contra o estabelecido pode ser entendido como causa
e efeito de sua concepção da história: ambas as categorias, para além de se complementar,
retroalimentam-se. As maneiras de associar as quatro categorias são muitas e todas reiteram a
convicção moral que delas decorre, acentuando os contornos do pensamento deste filósofo.
Torna-se uma possibilidade interessante, portanto, que as tenhamos em mente durante a leitura
de seus escritos.
Depreendemos do estudo da biografia e das principais categorias do pensamento de
Russell, muito da virtude e do vigor que qualificam sua relevância. Há de se reconhecer,
portanto, que, embora Russell tenha vivido quase cem anos durante um século em que o mundo
sofreu muitas mudanças, o exame de sua biografia nos sinaliza momentos de crítica lúcida e de
muita contribuição teórica às questões importantes que preocuparam mulheres e homens de sua
época. Questões que ainda nos preocupam por sua seriedade e que, também por isso, tornam o
pensamento russelliano relevante na atualidade.

54
Idem, 2009, p. 61.
55
Idem, 1956a, p. 10.
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Referências Bibliográficas

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AYER, Alfred Jules. As ideias de Bertrand Russell. São Paulo: Cultrix, 1974.

PLATÃO. Górgias/Platão. São Paulo: Perspectiva, 2011.

RUSSELL, Bertrand. New hopes for a changing world. Londres: George Allen & Unwin
Brothers, 1951.

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Artigo

OS CRÍTICOS CINEMATOGRÁFICOS E A
REVISÃO DO MÉTODO CRÍTICO NA DÉCADA
DE 1950
OSCAR DE PAULA NETO

Resumo: O presente artigo tem como objetivo apresentar o debate em torno da revisão do
método crítico cinematográfico publicado nas páginas do periódico mineiro Revista de Cinema
durante a década de 1950. O revisionismo defendido por parte dos críticos, principalmente
esquerdistas, estava ligado aos aportes teóricos introduzidos pelo êxito do neorrealismo italiano
e consistiu num dos principais dinamizadores do processo de modernização pelo qual os estudos
cinematográficos passaram naquele período. A revisão buscava atualizar a crítica de cinema
brasileira, ainda atrelada a valores e teorias já consideradas ultrapassadas que apenas levavam
em consideração os aspectos estéticos do filme, sem nenhuma preocupação com seu caráter
político e social. Dessa forma, buscamos apresentar as principais teses defendidas durante o
debate e sua importância para a reflexão cinematográfica brasileira.

Palavras-chave: cinema; crítica cinematográfica; revisão.

Abstract: This article aims to introduce the debate on the review of the film critic method,
published in the pages of the magazine Revista de Cinema during the 1950s, The revisionism
advocated by the critics, mainly leftists, was linked to investments theoretical introduced by the
success of Italian neorealism, which comprised one of the main drivers of the modernization
process by which film studies began in that period. The review sought to update the criticism
of Brazilian cinema, still linked to values and theories already considered outdated that only
took into account the aesthetic aspects of the film, with no concern for its political and social
character. Thus, we seek to present the main theses presented during the debate and its
importance to the Brazilian film reflection.

Keywords: cinema; film criticism; review.

Artigo recebido em 16 de fevereiro de 2016 e aprovado para publicação em 16 de maio de 2016.


Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, bolsista
CAPES. E-mail: oscarjpneto@gmail.com

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Introdução
Geralmente, quando nos deparamos com pesquisas que relacionam história e cinema, o
uso do filme como fonte é a principal maneira de dar corpo a interesses que se preocupam com
esse bem cultural e o torna um dos principais elementos do campo cinematográfico. Obviamente
que, para a existência de tal campo, é necessário que o objeto filme exista e, certamente, a
importância do campo está atrelado à sua órbita. No entanto, o filme necessita de toda uma
constelação de fatores que garanta sua circulação, apropriação e recepção. É a partir disso que a
figura do crítico de cinema se mostra essencial para a existência do filme em sua totalidade, assim
como os críticos necessitam do filme para a existência de seu próprio campo.
Os críticos são responsáveis pela invenção do olhar e das práticas que delimitam as
maneiras de ver, compreender e apreender um filme, movimento ou cineasta. Dessa forma, a
crítica se torna tão importante quanto os próprios filmes, pois é a criadora das palavras que os
definem, dos relatos que os narram e das discussões que os revivem. O ato da crítica traz em
seu bojo o caráter da reflexão, e todas as suas práticas se destinam a dar profundidade à visão
do filme. Também tem como reflexo, principalmente para os historiadores, a revelação de um
dos seus principais interesses: a revelação de representações do mundo, a partir das imagens
em movimento e dos escritos de quem as analisa.1
Sendo assim, a crítica é tida como essencial para melhor analisar o cinema em seu
contexto, levando em consideração que ela própria também está inserida num contexto
determinado pelos vários aspectos que formam a sociedade e sua cultura. Desse modo, a
decifração dos códigos que regeram as críticas é fundamental para a história do cinema e,
consequentemente, para a história propriamente dita. Como bem apontou Marc Ferro, um filme
possui relações intrínsecas com os outros setores da sociedade, responsáveis por transformá-lo
em um reflexo e testemunho da representação do momento em que foi produzido. Do mesmo
modo, o texto crítico sobre um filme está também entremeado por essas características do filme,
e ainda mais por revelar como ele foi recebido e apropriado por um contemporâneo da obra –
nesse caso, o analista. Ferro, ao pensar a relação dos filmes com a história, indicava, num
movimento que ultrapassava os limites da obra, que a crítica não se limitava unicamente ao
filme, mas se integrava ao mundo que a rodeava e com o qual se comunicava.2

1
BAECQUE, Antoine de. Cinefilia: invenção de um olhar, história de uma cultura, 1944-1968. 1. ed. São Paulo:
Cosac Naify, 2010, pp. 32-34.
2
FERRO, Marc. Cinema e história. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 87.
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No caso do cinema, forma artística muito recente, inevitavelmente, os seus analistas
passaram a operar com categorias e classificações tomadas de outras artes para analisar as obras.
Com a crescente autonomização do campo cinematográfico a partir da aceitação do cinema
enquanto arte, num processo que teve origem a partir da década de 1910, houve o aumento das
possibilidades estéticas do cinema e, consequentemente, a definição de conceitos com os quais
os analistas do cinema deveriam operar a fim de refletir as produções cinematográficas. No
caso brasileiro, apesar de o debate já estar presente na crônica cinematográfica há algumas
décadas, é a partir de 1940 que se percebe o crescimento da produção crítica e a busca pelo
fortalecimento dos parâmetros e formas de apreciação que auxiliavam no discernimento do
público. Era o momento de criar uma reflexão sistemática sobre o cinema, focada na recepção
e análise dos filmes produzidos, através do debate intelectual pretensamente distanciado das
preocupações unicamente técnicas, tal como o uso de determinada luz, o desempenho dos atores
e o fundo musical.
Assim, nos dedicaremos ao longo deste artigo em traçar as diversas ações da crítica de
cinema no Brasil, numa ação que conjugava, ao mesmo tempo, a solidificação, a autonomização
e a renovação do ato crítico e da cultura cinematográfica. Muitas dessas ações buscavam refletir
não somente o caráter artístico do cinema, que, naquele momento, já estava bastante
solidificado, mas também adentrar questões mais abrangentes, que englobavam a possibilidade
de modernização da cultura brasileira, assim como posicionamentos políticos e reflexões sérias
sobre a sociedade brasileira. Por isso nos dedicaremos aos debates empreendidos pela crítica na
década de 1950, principalmente da Revista de Cinema, um dos principais periódicos imbuídos
do objetivo de diversificar e modernizar a crítica brasileira e a cultura cinematográfica no país.

Revista de Cinema e a cultura cinematográfica


Revista de Cinema foi um dos principais periódicos dedicados ao cinema na década de
1950, publicado regularmente entre 1954 e 1957 e, depois, com dois volumes publicados em
1961 e mais dois em 1964, quando encerrou suas atividades de forma definitiva. Em suas
páginas, muitos dos nomes mais conceituados da crítica e da crônica cinematográfica de Minas
Gerais, bem como de outros estados do país, informaram e discutiram sobre os principais
assuntos relativos à sétima arte. Além disso, também foram publicadas diversas traduções de
textos dos principais críticos, cineastas e teóricos reconhecidos mundialmente, como André
Bazin, Guido Aristarco, Sergei Eisenstein, Sigmund Kracauer, Vsevolod Pudovkin e outros. A
publicação tinha como principal meta fomentar e difundir uma cultura cinematográfica de alto
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nível entre o público brasileiro, ainda muito carente de materiais que tratassem de forma mais
aprofundada os assuntos cinematográficos.
Durante os anos em que se manteve em publicação, a revista foi um dos principais
veículos específicos sobre cinema e, juntamente com a ação dos cineclubes, a atuação dos
críticos e cronistas cinematográficos pôde informar um público mais amplo, ainda que restrito
aos modestos quadros da cinefilia. O número de cineclubes em várias cidades do país cresceu
vertiginosamente durante a década de 1950, como também a crítica cinematográfica passou a
desfrutar de maior visibilidade nos jornais de grande circulação, através do alargamento do
espaço concedido às informações sobre cinema e artes, além da criação dos suplementos
literários.
Podemos indicar, dessa forma, que a tentativa de criar uma “consciência
cinematográfica brasileira” estava na ordem do dia para as experiências das revistas e outros
meios de comunicação que se debruçaram sobre o assunto. A Revista de Cinema se destacou
de outros periódicos congêneres devido à longa duração com que se manteve em publicação,
mantendo-se fiel ao seu estilo e público. Apesar dos hiatos em sua trajetória, funcionou durante
quase uma década e refletiu o processo de absorção do cinema enquanto arte no Brasil e sua
integração pela cultura erudita. Cabe destacar que as ações dos outros periódicos específicos
sobre cinema também foram de notável relevância para o fomento da cultura cinematográfica
brasileira em momentos anteriores, mesmo que muitas delas tivessem um efeito mais em nível
local, devido às dificuldades de editoração e distribuição no mercado editorial do Brasil.
Devemos ressaltar as atuações de revistas como Para Todos, Cinearte e A Scena Muda
no incentivo ao cinema brasileiro, notadamente durante as décadas de 1920 e 1930. Elas
reivindicavam maior espaço ao cinema ficcional nacional e, para isso, seus editores apostaram
na “Campanha pelo Cinema Brasileiro”, que significou o início da emergência de uma
consciência cinematográfica nacional. Segundo tal campanha, o Estado deveria assumir o papel
de destaque como mediador de nossa indústria cinematográfica, propondo leis de proteção e
fomento das fitas nacionais. Apesar disso, tais revistas serviam basicamente à divulgação do
cinema hollywoodiano, o que as tornava pouco abertas às reflexões e discussões em torno do
fazer crítico e de questões estéticas e cinematográficas mais complexas, diferentemente da
proposta da Revista de Cinema.
Ao analisar, na década de 1960, a atuação da Revista de Cinema no decênio anterior, o
crítico Cyro Siqueira, um de seus fundadores, afirmou que ela teve duas principais etapas em
sua maneira de tratar dos estudos cinematográficos: a primeira foi caracterizada principalmente
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pela forma do debate acadêmico, na qual seus redatores faziam um debate “mais ou menos
livresco”; e a segunda, baseada na forma do debate do cinema pelo cinema, era realizada
conforme os moldes traçados pela revista francesa Cahiers du Cinéma.3 Siqueira não definiu
claramente os períodos aos quais se refere, porém podemos indicar que o primeiro momento,
nos limites que aqui nos interessam mais, se refere à ênfase a assuntos que os artigos dos
primeiros anos de publicação davam: o neorrealismo italiano e sua influência no cinema
realizado naquele momento; e os debates em torno da suposta necessidade da revisão do método
crítico. Ambos os assuntos ganharam grande espaço nos primeiros números da revista e estavam
intimamente interligados, já que a revisão do método crítico era influenciada pela ascensão do
movimento italiano na cultura cinematográfica mundial.
Segundo o crítico literário Silviano Santiago, ao refletir a atuação e experiência dos
intelectuais atuantes na capital mineira durante a década de 1950, existia um caráter
paradigmático no campo crítico cinematográfico daquela cidade e, consequentemente, na
Revista de Cinema. De acordo com ele, o clima eufórico e rico pelo qual passou a crítica de
cinema mineira tinha ramificações e diálogos efetivos com outros centros cinematográficos e
culturais brasileiros. Era o momento em que a crítica, cada vez mais, deixava de lado o adjetivo
“literário” e se constituía como um gênero ensaístico autônomo. Esse fato proporcionou o
deslocamento da arte literária como principal alvo das reflexões da intelectualidade mineira
para os postulados sobre a sétima arte. Por conseguinte, o cinema, durante a década de 1950, se
tornou a principal porta de entrada para as outras manifestações artísticas, principalmente por
conta de seu forte apelo popular, desempenhando o papel conquistado outrora pela literatura.4
Dessa forma, com base nas indicações propostas por Pierre Bourdieu, esse processo,
que representou a mudança de paradigmas em relação ao cinema brasileiro, desempenhava um
papel de autonomização do campo cinematográfico que já estava sendo gestado em outros
países. Por isso, todo o debate empreendido pelos críticos e outros agentes do campo, marcado
por cisões, polêmicas e eventuais equívocos, foi fundamental para a reflexão cinematográfica
brasileira daquele momento e das décadas posteriores. As ações mais bem definidas e colocadas
em prática pelos agentes responsáveis por tomar a dianteira desse processo auxiliaram na
configuração dos gêneros, épocas e estilos que caracterizaram aquele universo e que marcaram
as discussões sobre a situação do cinema brasileiro, tanto teórica quanto praticamente. O

3
Revista de Cinema, n. 3, jul.-ago. 1964, p. 6.
4
SANTIAGO, Silviano. “Apresentação”. In: OLIVEIRA, Elysabeth Senra de. Uma geração cinematográfica:
intelectuais mineiros da década de 1950. 1. ed. São Paulo: Annablume, 2003, pp. 14-15.
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sociólogo francês estabelece que, dentre todas as invenções que acompanham a emergência de
um campo de produção artística, uma das mais importantes é, sem dúvida, a elaboração e o
consequente monopólio de uma “linguagem artística” própria. Consequentemente, é
fundamental que os agentes adquiram o direito de serem os únicos “juízes da produção” da qual
tecem reflexões, produzindo eles próprios os critérios de percepção e de apreciação dos seus
produtos, afirmando seu papel como especialistas daquele campo.5
Destarte, afirmando a difusão e gestação de uma cultura cinematográfica colocada em
prática por muitos periódicos surgidos na década de 1950, a Revista de Cinema buscou ser um
dos mais importantes dinamizadores desse esforço. Até 1964, a revista chegou a ter nove
representantes em todo o país, que expandiam a efervescência do debate cinematográfico para
além da capital mineira.6 Num dos editoriais do periódico foram anunciadas algumas mudanças
na apresentação gráfica que coincidiam com a ampliação da tiragem mensal, com base na boa
receptividade do periódico pelo público, bem como com o fato de ser mais procurada em outras
cidades do que na própria capital mineira. O sucesso da revista foi dedicado à necessidade
crescente de um canal especializado em cinema no Brasil, que, através do apoio do numeroso
grupo de estudiosos do “bom cinema”, poderia processar a imprescindível e desejada revisão
dos quadros do cinema do país.7

A revisão do método crítico e o desenvolvimento da crítica no Brasil em 1950


Todos os esforços colocados em prática pelo campo da crítica cinematográfica no Brasil
na década de 1950 tenderam a divulgar as ideias e discussões já bastante presentes entre os
intelectuais que frequentavam os cineclubes e outros espaços que propiciavam a sociabilidade
cinéfila. Não foi por acaso que naquele momento diversos novos agentes tenderam a sair da
marginalidade intelectual para ganhar destaque nos meios que poderiam ser apreciados pelos
mais diversos tipos de público. Cabia, naquele instante, organizar e difundir a apreciação pelo
cinema como manifestação artística que esse reduzido número de cinéfilos compartilhava, na
tentativa de tornar mais sofisticado o gosto estético do espectador comum. No Brasil, isso se
refletiu como a melhor maneira de ultrapassar o mau gosto do público, alienado pelo consumo
das chanchadas e do cinema americano comercial.

5
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011, pp. 288-290.
6
OLIVEIRA, Elysabeth Senra de. Uma geração cinematográfica: intelectuais mineiros da década de 1950. 1. ed.
São Paulo: Annablume, 2003, p. 37.
7
Revista de Cinema, n. 8, nov. 1954, p. 4.
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Essa geração cinematográfica que pululou em diversos centros urbanos do país se
animou com a possibilidade de finalmente alcançar patamares consideravelmente qualitativos
para o cinema brasileiro, melhorando suas atribuições técnicas e artísticas. Isso poderia ser
executável mediante a divulgação nos periódicos e jornais diários dos seus apontamentos, nos
quais propalaram o que de mais arrojado era discutido nas reuniões, debates, cineclubes e
cinematecas. Era o momento de transformar a cultura brasileira – atrasada e ignorante, segundo
esses intelectuais –, em algo moderno, através da pregação do cinema enquanto cultura, como
meio ativo de ultrapassar o subdesenvolvimento e a ignorância. Era o momento de superar os
insucessos das experiências cinematográficas colocadas em prática até aquele momento e
construir um cinema mais condizente com suas necessidades cinéfilas. Desse modo, os críticos
buscavam conectar a indústria cinematográfica brasileira com as inovações que estavam a
transformar a sétima arte em outras cinematografias mais avançadas.
De acordo com Ismail Xavier, era comum nas diversas correntes da crítica
cinematográfica europeia identificar o cinema como um sopro de autenticidade na cultura,
como recusa de artifícios e elogio às novas técnicas de reprodução. Na França, o momento do
pós-Guerra foi muito profícuo para a crítica e a teoria cinematográfica, propiciado pelo novo
clima cultural criado pela Liberação, marcado pelas noções de compromisso, engajamento e
existencialismo nas suas mais diferentes acepções. Todos esses fatores ajudavam a constituir o
horizonte de reflexão que atingia todas as esferas culturais, e o cinema foi um dos mais
influenciados. A reflexão que afastava as formulações mais apocalípticas em face da cultura de
massa e do caráter popular do cinema, formuladas pela teoria crítica de Adorno e Horkheimer,
acabou por respaldar novas possibilidades ao campo cinematográfico.8 Por outro lado, a
experiência do neorrealismo italiano também propiciou novas formulações e expectativas para
a prática cinematográfica e a crítica. Esses novos elementos atingiram a reflexão crítica
brasileira e se difundiram no campo cinematográfico nas décadas de 1950 e 1960, alterando
substancialmente a relação da intelectualidade com o cinema.
Entretanto, apesar dos esforços de renovação por grande parte da crítica cinematográfica
brasileira, havia a coexistência dessas novas formulações com ideias herdadas da tradicional
crônica cinematográfica, marcadas por questões já anacrônicas ao campo artístico em geral.
Segundo Jean-Claude Bernardet e Maria Rita Galvão, o debate cinematográfico das primeiras

8
XAVIER, Ismail. “Apresentação”. In: BAZIN, André. O que é o cinema? 1. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2014,
pp. 18-23.
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décadas do século XX foi circunscrito pela relação deste com as outras áreas culturais, acabando
então por se ater a preocupações que, muitas vezes, estavam deslocadas do cinema ou que já
estavam superadas no campo artístico geral. Os autores salientam que podemos interpretar os
debates cinematográficos anteriores à década de 1950 ainda como um prolongamento do debate
literário, pois a crítica e o campo cinematográfico no Brasil eram dependentes conceitual e
intelectualmente, principalmente da crítica literária, campo autônomo e de contornos bastante
nítidos em comparação ao cinema brasileiro.9
Logo o desenrolar dos primeiros esforços críticos no Brasil e a evolução do pensamento
cinematográfico estrangeiro e sua eventual difusão na intelectualidade brasileira acabaram por
também propiciar a emergência da renovação do pensamento crítico nacional. Com isso, se
deram as diversas lutas simbólicas que marcaram o ambiente da crítica cinematográfica na
década de 1950: ideias renovadoras e conservadoras, na tentativa de fazer existirem o cinema
brasileiro e a crítica, como sua propiciadora. O esforço dos intelectuais estava atrelado à euforia
propiciada pelo contexto político que foi instalado no país durante aquele momento, por meio
da atuação do governo de Juscelino Kubitschek. Isso permitiu o estímulo de reflexões e
soluções que eram perpassados pelos apelos desenvolvimentistas e nacionalistas, que levaram
aos debates no âmbito cultural a esperança de superar a condição colonial que marcava o atraso
da cultura brasileira.
Dessa maneira, a crítica de cinema significava um dos principais canais de expressão
das inquietações que demarcavam a intelectualidade brasileira, agora pensada como uma forma
de ensaio literário, política e cultural. Conforme indicado por Cyro Siqueira, os filmes
representavam uma janela aberta para várias culturas que permitia visualizar mentalidades e
condutas diversas, já que o cinema, enquanto fenômeno social e crítico, oferecia visões de
mundo que poucas artes eram capazes de fornecer.10 Assim, nos primeiros anos da década de
1950, fazia-se premente uma separação bastante definida, para além da concepção estética que
dividia o campo crítico. Tal separação era definida mediante posicionamentos políticos
influenciados pelo ideário esquerdista que se difundiu no Brasil pós-Guerra no contexto
marcado pela Guerra Fria.

9
BERNARDET, Jean-Claude e GALVÃO, Maria Rita Eliezer. Cinema: repercussões em caixa de eco ideológica
(as ideias de “nacional” e “popular” no pensamento cinematográfico brasileiro). 1. ed. São Paulo: Brasiliense,
1983, pp. 15-6.
10
Revista de Cinema, n. 2, maio-jun. 1961, p. 46.
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Cabe ressaltar que, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos não
se mostravam inquietos pelo fato de os comunistas estarem desempenhando um papel
proeminente no processo de democratização da América Latina, tido como positivamente bem-
vindo em alguns países, dentre eles o Brasil. No entanto, na medida em que as relações
diplomáticas entre as duas grandes potências mundiais se deterioravam e o alinhamento do
Brasil ao modelo econômico americano se intensificava, podemos perceber o endurecimento
do governo brasileiro para com os comunistas. Estes, em contrapartida, radicalizavam sua
posição contra o discurso e a prática imperialista dos Estados Unidos, o que decorreu na
cassação do PCB, que provocou um decréscimo vertiginoso do número de membros filiados.11
Essa conjuntura propiciava o crescimento do entendimento de que era dever dos
intelectuais lutar para a solidificação de uma sociedade mais igualitária. Entre as décadas de
1930 e 1950 houve no país grande mobilização política por parte de muitos intelectuais. Eles
acreditavam na possibilidade de novas formas mais democráticas de organização social e de
ampliação do acesso à cultura por grupos que eram socialmente excluídos e marginalizados até
então. Além disso, havia a busca pela modernização e transformação das velhas e estanques
maneiras de conceber e manifestar a cultura brasileira. No entanto, devemos salientar que isso
não era exclusivamente causa colocada em prática pelos intelectuais de linhagem esquerdista,
mas um projeto da intelectualidade como um todo que tinha como intento nacionalista fortalecer
a cultura brasileira.
Desse modo, pela ação dos intelectuais de esquerda, o realismo socialista foi adotado
como uma forma de combate no âmbito cultural, pois tinha o intuito de aproximar a cultura do
povo, uma vez que trazia uma linguagem mais acessível e temas que tratavam do cotidiano do
homem popular. Os produtores dos mais diversificados bens culturais se incumbiram de dotar
suas obras de reflexões políticas, colocando em prática a função social dos artistas. Eles
deveriam compreender o universo do trabalhador e incentivá-lo a engajá-lo na luta pela
igualdade social. O período de 1947 a 1953 comportou a ascensão do realismo socialista, que
já vinha sendo aprimorado desde a década de 1920 na URSS, e correspondeu à tentativa dos
Partidos Comunistas ao redor do mundo de se submeterem e se adequarem às esferas cultural,
artística e literária da política stalinista. De fato, o realismo socialista se difundiu entre a

11
BETHELL, Leslie e ROXBOROUGH, Ian. A América Latina entre a Segunda Guerra Mundial e a Guerra
Fria. 1. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, pp. 28-30.
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intelectualidade rapidamente após o Estado Novo e foi de grande preponderância nos debates
que marcaram a crítica de cinema até fins da década de 1950.12
Foi em meio a essas discussões que assuntos como a revisão do método crítico e o
impacto do neorrealismo italiano tornaram-se alguns dos principais temas debatidos pela crítica
brasileira durante a década de 1950, causando polêmicas e enervadas contendas com direito a
réplicas e tréplicas publicadas nas páginas dos periódicos e jornais. A discussão sobre a revisão
do método crítico, presente desde o primeiro número de Revista de Cinema, trazia um debate
que já vinha sendo gestado nas cinematografias ao redor do mundo, principalmente pela crítica
italiana, a partir dos postulados do crítico Guido Aristarco. O debate crítico no Brasil
evidenciava um consenso sobre a necessidade de revisão crítica da teoria clássica, que deveria
ultrapassar o legado teórico marcado pelo princípio da montagem formulada em conexão com
o pensamento das vanguardas da década de 1920. Dessa forma, o realismo era tomado naquele
momento como novo eixo da discussão estética para algumas vertentes da crítica.13
O pensamento de Guido Aristarco significava para os críticos brasileiros a possibilidade
da abertura teórica em direção às outras formas do realismo não tão ortodoxo quanto a vertente
socialista zdhanovista. O crítico italiano reconhecia a importância do “conteúdo” e até mesmo
sua primazia, todavia, ao contrário do realismo soviético, não o colocava como único elemento
para a realização cinematográfica. Aristarco ressaltava que os “meios expressivos” utilizados
num filme em função do conteúdo, através de informações históricas e culturais, poderiam
dialogar efetivamente com ele. Dessa maneira, ele defendia que os adeptos do realismo
socialista saberiam encontrar um equilíbrio que permitisse a valorização do conteúdo sem que
isso significasse o sacrifício total da forma. Se houvesse a total despreocupação com a forma,
o conteúdo, por mais valores humanos que expressasse, poderia ser anulado, dispersado ou
prejudicado mediante a aplicação de uma forma inadequada. O crítico não esquematizava por
completo como se daria o equilíbrio entre forma e conteúdo, no qual o último predominaria,
mas deixava aberta a possibilidade de que existiam várias soluções, que dependiam, na verdade,
dos limites de cada realidade nacional.14

12
MORAES, Dênis de. O imaginário vigiado: a imprensa comunista e o realismo socialista no Brasil (1947-53).
1. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.
13
XAVIER, Ismail. “Bazin no Brasil”. In: BAZIN, André. O que é o cinema? 1. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2014,
p. 391.
14
AUTRAN, Arthur. “Alex Viany e Guido Aristarco: um caso das ideias fora do lugar”. In: FABRIS, Mariarosaria
e SILVA, João Guilherme Barone Reis (orgs.). Estudos SOCINE de cinema – ano III. 1. ed. Porto Alegre: Sulina,
2003.
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A discussão em torno da revisão do método crítico conseguiu grande destaque na
Revista de Cinema, principalmente durante o ano de 1954. Tal discussão pode ser tida como
um dos principais campos de batalha da crítica brasileira daquele momento na busca de
renovação e autonomia da crítica no seio da cultura brasileira. Naquele instante, os críticos
expuseram suas principais reivindicações para a modernização do pensamento crítico que era
realizado até aquele momento no Brasil. Diante disso, cabe agora a exposição de algumas das
principais teses defendidas pelos críticos envolvidos no debate da revisão do método crítico.
Sendo assim, é importante frisar o início de tal debate, colocado em prática por Cyro Siqueira:

Coincidindo com a sistematização dos novos caminhos abertos ao cinema no pós-


Guerra – caminhos que tanto são de ordem exclusivamente mecânica como relativos
às próprias noções estéticas do meio –, a crítica cinematográfica vem sendo solicitada,
num plano mais ou menos internacional, a um processo revisionista, destinado,
segundo seus defensores, a ajustá-la às mais recentes conquistas (já que não se fala
em involução) realizadas no terreno da chamada sétima arte. 15

De acordo com a definição elaborada pelo crítico, o revisionismo tinha raízes de origem
italiana, oriundas do principal movimento cinematográfico do momento pós-Segunda Guerra
Mundial, o neorrealismo, e se compôs, além dos filmes que revolucionaram a forma de fazer
cinema, também de grandes debates e divisões entre a crítica e profissionais de cinema italiano
como um todo.16 No entanto, Siqueira questionava a validade real de o revisionismo
corresponder a um imperativo do atual panorama do cinema e os eventuais assuntos que eram
discutidos para a resolução dos problemas da prática cinematográfica.17
Segundo os indicativos do crítico, tal revisão já havia sido colocada em prática pela ação
do cineasta soviético Vsevolod Pudovkin e era orientada conforme os ditames do realismo
socialista soviético, que “desprezava todas as normas estéticas do cinema, substituídas pela
pesquisa em direção à realidade”. Assim, o crítico ressaltava que o debate em torno do realismo
pela intelectualidade brasileira acabava por resultar em extrapolações, que “levaram as
discussões a se localizarem ainda sobre outras especiosidades igualmente enganosas”, tal como
a da validade do cinema americano e a superação da forma.18
Siqueira apontava ainda que o revisionismo crítico se instalou de “modo curiosíssimo”
no Brasil, pois foi transplantado para o país sem quaisquer discussões de ordem teórica ou

15
Revista de Cinema, n. 1, abr. 1954, p. 3.
16
Revista de Cinema, n. 1, abr. 1954, p. 5.
17
Revista de Cinema, n. 1, abr. 1954, p. 9.
18
Revista de Cinema, n. 1, abr. 1954, p. 4.
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mediante debates de preocupações estéticas, nos quais a crítica brasileira em geral pudesse se
definir e refletir em relação ao fato, estabelecendo então uma desagregação no campo crítico,
“menos cinematográfico do que político”.19 Por isso, conforme as afirmações do crítico, o
debate cedo perdeu a profundidade no Brasil, enquanto ganhava intensidade polêmica que em
nada alterou a fisionomia lacunar e empobrecida da literatura cinematográfica nacional, pois
apenas causava um verdadeiro vazio intelectual no movimento crítico brasileiro.
Para Cyro Siqueira, que foi um dos fundadores da Revista de Cinema, aquele ambiente
cultural pobre em que se encontrava a crítica de cinema no Brasil era propiciado, sobretudo,
pela escassez de materiais com que os interessados no assunto pudessem aprofundar seu
conhecimento. A carência de publicações especializadas reduzia o trabalho da crítica
cinematográfica ao espaço ligeiro e de grande apelo de massa que era o universo do jornalismo
diário brasileiro.20 Os ensaios de crítica cinematográfica, tal como já acontecia com a crítica
literária e a crítica de arte, responsáveis por tratar de assuntos de maneira mais aprofundada e
detalhada, eram ainda esporádicos e desencontrados. Assim, a implantação de um novo método
de crítica de cinema, num ambiente que nem percebia que havia de fato um movimento crítico,
se tornava superficial e não encontrava o eco necessário no seio do campo.
Por outro lado, o crítico Alex Viany, ao adentrar o debate sobre a revisão do método
crítico, ressaltava a necessidade de uma revisão crítica empregada na análise da obra
cinematográfica. Viany lamentava o fato de poucos críticos terem tomado conhecimento do
debate no campo cinematográfico brasileiro, o que impossibilitava que ele ganhasse maiores
proporções. Segundo o crítico, isso acontecia sobretudo devido à falta de melhor comunicação
entre a própria crítica e a ausência de canais de expressão pelas quais ela pudesse expressar
suas opiniões, ou seja, a ausência de uma rede que interligasse os críticos. No Brasil, os críticos
de cinema, segundo Viany, no melhor dos casos, ainda refletiam mais “empirismo e
espontaneísmo” do que “estudo e dialética”, observação em que revelava ser necessário atenção
e esforço por parte dos que se aventuravam em desbravar a crítica cinematográfica.21
Viany, ao discorrer na revista Fundamentos acerca da função do crítico, já tinha
afirmado que, na crítica brasileira, ainda persistiam as figuras danosas dos “fósseis” e dos
“estetas”, que atrapalhavam a reflexão cinematográfica. Os primeiros eram representados por
aqueles críticos que, apesar de estudarem e entenderem a arte cinematográfica, se mantinham

19
Revista de Cinema, n. 1, abr. 1954, p. 4.
20
Revista de Cinema, n. 1, abr. 1954, p. 4.
21
Revista de Cinema, n. 3, jun. 1954, p. 7.
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defensores da primazia do cinema mudo sobre o cinema sonoro; e os segundos ficavam presos
exclusivamente aos limites da arte pela arte e se pautavam unicamente nos sentidos estéticos
do filme, não os interligando com o mundo em que foram produzidos. Para o crítico, ambos os
tipos poderiam ser deixados de lado da crítica de cinema, pois enquanto um não podia ser levado
a sério, o outro havia parado no tempo.22
Por isso, Viany assegurava que muitos dos críticos acreditavam que aqueles debates em
torno do revisionismo, além de infrutíferos, não passavam de caprichos do grupo de críticos
preocupados com “finuras”, com “coisas de requintados” e sem utilidades práticas. No entanto,
o crítico reforçava que a repercussão da discussão em torno da revisão do método atingiria até
o mais inocente espectador, de modo que era essencial para a relação do cinema com o público,
para que houvesse o melhor enquadramento do cinema nas novas demandas sociais. Assim, a
revisão caracterizava um sentido de alerta em torno das descobertas de novos processos
mecânicos e da enunciação das questões estéticas subordinadas às doutrinas filosóficas,
ideológicas e políticas que marcavam aquele momento. O crítico afirmava estar reticente quanto
à possibilidade de se efetuar um revisionismo da crítica, mas julgava de suma importância que
a crítica em geral se esforçasse em refletir algumas das possíveis contribuições do realismo
socialista para as novas ideias que marcavam a arte e, consequentemente, o pensamento
cinematográfico.23
Um dos principais artigos que refletiram a necessidade de revisão do método crítico foi
o apresentado pelo professor Fábio Lucas, em que, através da análise dos posicionamentos
favoráveis ou contrários dos críticos ao revisionismo, ele afirmou que a crítica de cinema
daquele momento podia ser dividida em dois grandes grupos com definições mais ou menos
claras: de um lado, os que acreditavam que o cinema era uma realidade artística regida por leis
peculiares, pelo que se devia extirpar qualquer ligação da arte do cinema com concepções
sociopolíticas – os formalistas/esteticistas; e, de outro, os que pretendiam buscar nos filmes as
mensagens explícitas ou implícitas que dotavam o cinema de função social, por intermédio do
isolamento de elementos discursivos que alimentavam a opinião pública e podiam influir nos
destinos humanos – os críticos-históricos.24
Para além dessa divisão proposta por Fábio Lucas, o pesquisador Arthur Autran a
complementa com mais algumas definições que marcavam a atuação da crítica brasileira, pois

22
AUTRAN, Arthur. Alex Viany: crítico e historiador. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 64.
23
Revista de Cinema, n. 3, jun. 1954, pp. 8-10.
24
Revista de Cinema, n. 18, nov. 1955, p. 29.
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considera que aquela divisão não dava conta de todo o conjunto: 1) críticos que ainda
veneravam o cinema silencioso, oriundos, sobretudo, da velha crítica atuante desde a década de
1930, representados pelos críticos Pedro Lima, dos Diários Associados, e Octavio de Farias,
que publicava seus textos de forma esparsa em diversos periódicos; 2) a crítica católica, com
destaque para a figura do Padre Guido Logger, que se envolveu na discussão da revisão do
método crítico, como veremos a seguir – tal grupo era extremamente atuante através da criação
de cineclubes, da imprensa católica e de revistas cinematográficas especializadas, como a
Revista de Cultura Cinematográfica, assim como também contava até mesmo com a publicação
de livros; 3) críticos que não eram propriamente críticos, pois atuavam mediante soldo das
distribuidoras ou de círculos de exibição, ou apenas transcreviam releases dos lançamentos. Tal
grupo era numericamente bastante expressivo, chegando a dominar por vários anos a
Associação Brasileira de Cronistas Cinematográficos.25
Fábio Lucas, além de professor, foi um dos críticos literários mais influentes da cena
cultural mineira, responsável pela fundação da revista Vocação em 1951. Ele repreendia o
visível amadorismo da crítica cinematográfica brasileira, pois ela ainda demonstrava a ausência
de conhecimento das ideias que orientavam “a atividade crítica de um modo geral e de ideias
fundamentais de estética, da cartilha mesmo de qualquer crítica especializada”. O crítico
acabava por condenar os dois lados indicados por ele da contenda da crítica cinematográfica,
mas mantinha ressalvas mais enfáticas contra a ação da crítica esteticista, porque esta era mais
numerosa e gozava de maior espaço na mídia para difundir suas “questões estéticas sem
sentido”, o que acabava por dificultar a interação da crítica com o público.26 O professor
mostrava-se contrário às proposições extremadas de ambos os lados do debate, pois elas
assumiam opiniões limitadas e pouco reflexivas. Lucas defendia uma crítica cinematográfica
que se utilizasse das duas vertentes, que unisse a política e a arte em medidas justas, pois os
críticos não deveriam excluir ou exaltar o estético ou o social, já que os dois elementos
compunham o grosso da análise do filme.27
Enquanto isso, Salvyano Cavalcanti de Paiva, crítico da revista Manchete e do Correio
da Manhã, defendia que o realismo era a solução para a crise pela qual o cinema e a crítica
estavam passando, crítica essa cuja revisão seria extremamente necessária. O crítico assegurava
que a função do revisionismo consistia, em primeiro lugar, na remoção de certos princípios

25
AUTRAN, Arthur, Alex Viany: crítico e historiador. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 108.
26
Revista de Cinema, n. 18, nov. 1955, p. 29-30.
27
Revista de Cinema, n. 21, fev.-mar. 1956, p. 11.
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superados, já que os críticos, no ato de julgar um filme moderno, acabavam por aplicar um
padrão antiquado e inválido, insuficiente muitas vezes em relação às propostas oriundas das
inovações estéticas e técnicas.28 Pretender ignorar as conquistas técnicas do cinema, tidas por
Paiva como fontes das novas conquistas de ordem estética, era erro gravíssimo, por elas
sinalizarem os fatores do progresso que ocorriam no cinema e as múltiplas possibilidades de
reflexão que isso propiciava. Paiva afirmava que ignorar tais conquistas seria equivalente aos
críticos da década de 1930, que, “numa atitude tola e inútil”, não procuravam compreender o
fenômeno novo que o cinema falado oferecia e a revolução que ele causaria na arte
cinematográfica.29
Por isso, o crítico asseverava que era natural, no mundo capitalista, que “as estéreis
discussões formalistas sobre cinema” ocorressem de forma tão intensa, pois este sempre agira
com o intuito de produzir “filmes formalistas e sua apresentação como o suprassumo, a última
palavra em arte”, a fim de que fosse proveitosa a produção em larga escala de filmes ruins para
o consumo de milhões de espectadores. No entanto, Salvyano Cavalcanti de Paiva, apesar de
se posicionar contra essa atitude formalista, indicava que a revisão não necessariamente
implicava a subestimação da forma, e salientava o contrário: a crítica não poderia nem deveria
abandonar a forma na análise de um filme. Paiva também militava por meio da discussão em
torno da revisão do método crítico a favor do aspecto político e ideológico que a crítica
cinematográfica deveria assumir a fim de analisar as obras, já que os críticos deveriam se
posicionar como militantes na batalha das ideias. Isso se devia ao fato de que o cinema era uma
arte que se colocava como meio para atender as grandes multidões, exigindo a disposição da
crítica no tocante a servir de guia das massas incultas:

É fatal que a crítica de arte derive em crítica política? Não necessariamente. Mas seria
hipocrisia conceber uma ‘crítica de arte pura’: apoliticismo é uma invenção de
comodistas e aproveitadores, de arrivistas de todos os matizes. [...] O crítico deve ter
uma alta consciência cinematográfica; nessas condições, ele deve informar e orientar.
[...] Não deve jamais submeter seu gosto e sua crítica ao gosto da massa inesclarecida
que, por preguiça mental, ‘prefere’ o produto de baixa categoria que lhes oferecem os
produtores com o objetivo de anular a consciência social. 30

Por sua vez, o crítico Fritz Teixeira de Salles, também defensor do revisionismo, alegava
que, no caso particular da crítica cinematográfica, a influência idealista-formalista teria tido papel

28
Revista de Cinema, n. 6, set. 1954, p. 7.
29
Revista de Cinema, n. 6, set. 1954, p. 8.
30
Revista de Cinema, n. 6, set. 1954, p. 10.
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preponderante para a definição do ainda esquálido campo crítico de cinema. Assim como seus
colegas, o crítico salientava que o interesse pelos estudos cinematográficos era algo relativamente
muito recente e que a crítica daquele momento deveria incentivar o seu desenvolvimento para
que houvesse o fortalecimento do campo cinematográfico no Brasil e, por isso, a revisão se
tornava altamente necessária.31 A revisão do método crítico, tida como plena de renovação
criadora para Salles, envolvia os mais variados problemas das modernas concepções
coordenadoras dos critérios analíticos da sétima arte. Essas concepções apontavam para os
problemas que estavam sendo transformados pelas novas conquistas da arte cinematográfica,
destacando-se reatualizações de questões já clássicas, mas ainda não totalmente resolvidas nos
debates estéticos do cinema, tal como conteúdo e forma, formalismo e realismo. De acordo com
Fritz Teixeira de Salles, o neorrealismo, até certo ponto, não era marcado pelo academicismo,
como se mostrava o formalismo, pois se baseava na busca constante dos elementos fundamentais
da realidade social sobre a qual se exerceria a crítica, aparecendo então como a melhor
demonstração de equilíbrio entre forma e conteúdo.32
Cyro Siqueira chamava a atenção, no auge dos debates, para o fato de que a “ala marxista
da crítica nacional” era a mais interessada em defender seus pontos de vista em prol da defesa
da revisão do método crítico. Siqueira, no intuito de enriquecer o debate em torno da questão,
pedia ao “setor liberal da crítica nacional” para tecer contribuições acerca da revisão, a fim de
dar continuidade ao tema e diversificar os pontos de vista.33 O espaço e o debate abertos pela
Revista de Cinema eram considerados pelo crítico como propiciadores da resolução da inércia
em que a crítica brasileira estava imersa até aquele momento.
O debate trazia o ordenamento dos novos enunciados básicos sobre os quais se orientava
a exegese do filme frente aos novos dilemas com os quais se defrontava o crítico
cinematográfico na década de 1950. No entanto, tal debate revelava um fato curioso: ao mesmo
tempo em que a questão do revisionismo representava para os críticos esquerdistas uma
realidade atuante e urgente, capaz de exigir e provocar definições imediatas, por outro lado,
mostrava o silêncio e a quase total “omissão” da crítica liberal em relação ao assunto. Segundo
Siqueira, talvez isso se desse pelo fato de que os críticos “liberais” não tinham o que dizer sobre

31
Revista de Cinema, n. 5, set. 1954, p. 26.
32
Revista de Cinema, n. 4, jul. 1954, p. 24.
33
Revista de Cinema, n. 6, set. 1954, p. 4.
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o assunto, pois duvidavam da concreta necessidade da revisão, acreditando ser suficiente o
cabedal de conceitos e teorias com os quais já operavam.34
Fora os artigos de Siqueira, foi o Padre Guido Logger que melhor defendeu uma posição
contrária à necessidade da revisão. O padre era presidente do Centro de Orientação
Cinematográfica, órgão criado em 1953 por meio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), como parte da missão do Office Catholique International du Cinéma (OCIC), que
oferecia cursos e seminários a fim de estimular a formação de cineclubes nas instituições ligadas
à Igreja. O crítico católico defendia a forma “clássica” de se analisarem os filmes, pois, segundo
ele, era “o mais acertado, porque mais filosófico, mais conforme os princípios perenes da
Estética, que pairam sobre todas e quaisquer evoluções, fórmulas e enriquecimento dos meios
técnicos de expressão de uma arte”.35 A opinião de Logger revelava a coexistência do conflito
estético, mas, sobretudo, de cunho ideológico, que havia se instalado no seio da crítica daquele
momento, ressaltando a configuração da “luta simbólica” que buscava atualizar ou manter os
parâmetros que o campo da crítica deveria adotar. O esteticismo exacerbado contra o uso do
cinema como ferramenta de transformação social aguçou o acirramento de ânimos de ambos os
lados, mas propiciou o enriquecimento da crítica cinematográfica brasileira.
Para Logger, os defensores do método crítico não baseavam a necessidade de revisão
no deslocamento de apreciação da forma cinematográfica e do seu conteúdo, mas se
confundiam conceitualmente sobre a própria forma e o próprio conteúdo, dando margem para
que esta se baseasse em aspectos secundários. Assim, os que buscavam a revisão não se davam
conta de que nunca o conteúdo, por mais variado que fosse, poderia trazer elementos novos à
verdadeira crítica cinematográfica, a não ser pela forma como era representado o tal conteúdo.
Por isso, o crítico defendia ser desnecessária a revisão de método da crítica cinematográfica,
por mais que fossem apresentadas novas correntes ou movimentos cinematográficos, pois se
referiam sempre a fórmulas extrínsecas e secundárias à própria arte cinematográfica que cabiam
nos tradicionais moldes utilizados pela crítica até então.36
Por fim, Logger aponta que menos atenção para os assuntos ligados à revisão seria mais
importante, em função de sua defesa ser fruto da “profunda influência” que vinha sendo
exercida pelas propagadas ideias marxistas e comunistas no Brasil, que tinham o intuito de
transformar “a obra de arte num ridículo instrumento social”. Posicionando-se contrariamente

34
Revista de Cinema, n. 7, set. 1954, p. 10.
35
Revista de Cinema, n. 8, nov. 1954, pp. 5.
36
Revista de Cinema, n. 8, nov. 1954, pp. 10-12.
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aos postulados do realismo socialista, o padre clamava por “uma arte cinematográfica, livre e
independente de escolas e fórmulas, psicológicas, dramatúrgicas, realistas ou realistas-
socialistas”, sendo “universal e humaníssima”. Dessa maneira, seria mais cômodo que os filmes
representassem “o homem completo, real, vivo, em seu grupo, de todos os tempos, de todas as
raças, não só do ponto de vista documentário, mas na sua intimidade profunda, cotidiana, para
que assim levassem aos homens ‘lições moralistas concretas’”.37
Para concluirmos a exposição em torno da revisão do método crítico, é interessante
apontar para dois fatores que dificultavam e contradiziam o próprio movimento revisionista na
crítica, segundo Cyro Siqueira: a incompatibilidade e defasagem de conceitos e fatores de
interpretação, que demonstravam a falta de unidade que marcava na prática a reflexão do grupo;
e o debate que remetia a um assunto que já não encontrava mais tanto eco na crítica
cinematográfica por já estar superado pela vanguarda liberal, em que havia várias reflexões
importantes e renovadoras no tocante à relação entre forma e conteúdo, não existindo mais a
forte presença da crítica essencialmente formalista. Em relação ao primeiro aspecto levantado,
Siqueira apontou que a antinomia que marcava os defensores da revisão poderia ser tolerada no
setor liberal da crítica, porém soava incoerente no discurso de um grupo que tentava se afirmar
e mostrar que seus postulados eram realmente relevantes. Para o crítico, essa confusão não era
positiva para a reflexão que ainda estava tentando se firmar e buscar adeptos, enquanto a
reflexão em torno da forma se mostrava mais coerente e sólida.38

Conclusão
Podemos indicar que, no seio do debate em torno da revisão do método crítico, os
críticos que defendiam ou repeliam o revisionismo acabaram por corresponder a um dos
dilemas que marcam em grande parte a intelectualidade brasileira, que era a aplicação de
modelos teóricos explicativos elaborados nos países centrais, oriundos de profundo diálogo
com específicas realidades sociais e tradições intelectuais, grandemente diferentes da realidade
brasileira. Muitas vezes, essa aplicação de teorias estrangeiras, utilizadas para a análise de
objetos marcados pelas características de um país periférico e ainda em processo de
modernização e industrialização como era o Brasil, acabava por se revelar distante e insuficiente
para o diagnóstico e a eventual resolução dos problemas que atingiam a sociedade do país.

37
Revista de Cinema, n. 8, nov. 1954, pp. 12.
38
Revista de Cinema, n. 7, out. 1954, pp. 10-14.
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Guido Aristarco, por exemplo, muito citado por Alex Viany e os outros defensores da revisão
do método crítico, tinha como principais influências as ideias de Antonio Gramsci e,
principalmente, da estética de Georg Lukács, ainda sem muita difusão no Brasil até fins da
década de 1950, o que acabou propiciando o uso de conceitos utilizados pelo crítico italiano de
maneira imprecisa e equivocada.39
Por isso, muitas vezes, os críticos refletiram a questão da indústria cinematográfica de
forma superficial e pouco reflexiva, pois tentavam adequar a fragilidade do cinema brasileiro,
ainda em processo de solidificação, conforme comparações com indústrias cinematográficas já
bem solidificadas. Podemos perceber que o debate em torno do revisionismo, embora tenha
ocupado espaço de destaque durante 1954, não foi continuado nem indicado diretamente como
catalisador das transformações pelas quais passaram o cinema brasileiro nos anos seguintes.
É imprescindível levar em consideração que a revisão do método crítico estava em
sintonia com o temário da primeira geração de críticos envolvidos no periódico mineiro, que se
mostrava mais acadêmico e pouco prático, ainda não detentor do viés engajado assumido no
decorrer das publicações. No entanto, as metarreflexões presentes nos textos defendidos durante
a querela do revisionismo, assim como outros textos difundidos nos mais diferentes periódicos
durante a década de 1950, refletiram de diversas formas o exercício da crítica e sua função na
sociedade daquele momento. Mesmo que defendendo ideias conservadoras e já anacrônicas em
torno da teoria crítica, assim como da indústria cinematográfica brasileira, o debate estava
presente e crescentemente difundido, gerando inúmeras interpretações e pontos de vista.
A modernização da crítica e, consequentemente, uma produção cinematográfica mais
atrelada aos seus postulados foram possíveis graças a esse espaço aberto durante a década de
1950 em função da participação ativa da crítica no processo de realização cinematográfica.
Também houve a transformação das ideias de vários críticos sobre a relação da crítica com a
sociedade e sobre o cinema brasileiro. O próprio Cyro Siqueira foi um dos críticos que
modificaram seus posicionamentos perante a produção nacional e a crítica cinematográfica,
defendendo o cinema como arte da história em vez de arte da imagem, como defendia no auge
dos debates revisionistas de 1954. Apesar de todas as deficiências que marcaram a atuação dos
críticos de cinema brasileiros na década de 1950, foi a ação conjunta desses intelectuais que
colocou a crítica de cinema na órbita da discussão cultural mais geral.

39
AUTRAN, Arthur. Alex Viany: crítico e historiador. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003, pp. 68-9.
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Capítulos de livros
AUTRAN, Arthur. Viany e Guido Aristarco: um caso das ideias fora do lugar. In: FABRIS,
Mariarosaria e SILVA, João Guilherme Barone Reis (orgs.). Estudos SOCINE de cinema – ano
III. 1. ed. Porto Alegre: Sulina, 2003, pp. 101-107.

SANTIAGO, Silviano. Apresentação. In: OLIVEIRA, Elysabeth Senra de. Uma geração
cinematográfica: intelectuais mineiros da década de 1950. 1. ed. São Paulo: Annablume, 2003, pp. 14-
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XAVIER, Ismail. Bazin no Brasil. In: BAZIN, André. O que é o cinema? 1. ed. São Paulo:
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Resenha

A INQUISIÇÃO NA COLÔNIA: OS FAMILIARES


DO SANTO OFÍCIO NA CAPITANIA DA BAHIA
ALEX ROGÉRIO SILVA *

SOUZA, Grayce Mayre Bonfim. Para Remédio das Almas: comissários, qualificadores e
notários da Inquisição Portuguesa na Bahia Colonial. Vitória da Conquista: Edições UESB,
2014.

Nenhuma misericórdia nem perdão para os heréticos, exceto se eles se


submeterem à vontade do inquisidor. (SALA-MOLINS, Louis. Le
Dictionnaire des inquisiteurs - Valence, 1494. Paris: Galilée, 1981, p. 297.).

Resenha recebida em 25 de Fevereiro de 2016.

*
Mestrando em História e Cultura Social pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – FCHS – da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP – Campus de Franca). Bolsista do Fundo de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). E-mail: alex465@gmail.com
Revista Ars Historica, ISSN 2178-244X, nº13, Jul/Dez 2016, p. 353-356 | www.ars.historia.ufrj.br 353
No período moderno, a preocupação da Igreja com os desvios de ortodoxia fez com que,
na busca pela preservação da unidade dogmática, reestabelecesse o chamado Tribunal do Santo
Ofício da Inquisição, na qual, estabeleceu tribunais em Portugal e Espanha, além disso, reativou
o tribunal romano existente desde o período medieval.
A atuação do Santo Ofício português, como em Espanha, estava direcionada
primordialmente para a repressão a movimentos heréticos. Na ocasião, eles significavam a
permanência das práticas religiosas das minorias étnicas convertidas ao cristianismo e dos
descendentes dessas minorias, também chamados de criptojudeus, cristãos-novos ou marranos.
Ao contrário da Espanha, Portugal não instituiu tribunais em sua colônia americana,
estando ela vinculada ao Tribunal Metropolitano de Lisboa. Entretanto, os desvios de conduta
por parte dos colonos eram verificados pelos chamados familiares do Santo Ofício, que eram
pessoas vinculadas ao Tribunal e que exerciam a função de “protetores” da moral na América
Portuguesa.
Para Remédio das Almas: comissários, qualificadores e notários da Inquisição
Portuguesa na Bahia Colonial é fruto da pesquisa de doutoramento pela Universidade Federal
da Bahia e publicado posteriormente em 2014, de autoria da prof. Grayce Mayre Bonfim Souza,
atualmente professora do Departamento de História da Universidade Estadual do Sudoeste da
Bahia (UESB). O lugar destes personagens, que tiveram um grande papel na atuação
inquisitorial na colônia, foi tomado pela historiografia que remete ao território baiano.
Resultado de uma imensa pesquisa a partir de diversas tipologias de fontes, oriundas
dos arquivos da Inquisição de Lisboa, localizados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo
(aproximadamente 90% das fontes utilizadas na pesquisa) e do Arquivo Histórico Ultramarino
e de visitas aos locais onde os familiares atuavam, a proposta da autora foi “montar um quadro
de atuação e articulação entre os agentes inquisitoriais na Bahia Colonial e seus comandantes
na metrópole”. A investigação tem por marco temporal o período do século XVII até o início
do século XIX, precisamente entre os anos de 1692 e 1804, datas estas estabelecidas por serem
correspondentes, respectivamente, à primeira e última habilitação de familiar do Santo Ofício
para a respectiva capitania.
O livro é composto por quatro capítulos bem escritos de modo a abarcar toda a ação
inquisitorial através dos familiares do Santo Ofício na Capitania da Bahia. Para isso faz uso de
tabelas e gráficos, de modo a serializar os dados obtidos por meio das fontes. Com isso, aponta

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a preocupação da autora em não só apresentar e debater o assunto, mas também em tornar o
texto de certa forma acessível aos leitores especializados, bem como ao público em geral.
O primeiro capítulo, intitulado Santo Ofício da Inquisição Portuguesa em destaque:
trajetória, métodos, ritos e procedimentos, tem por intento tecer um breve histórico do Tribunal
do Santo Ofício Português, desde o conceito de heresia, passando pela Inquisição Medieval até
sua irmã Inquisição Espanhola, ressaltando as relações entre monarquia e a instituição
inquisitorial e os momentos de conflitos entre as instituições. Posteriormente, seguindo uma
linha cronológica, a autora aborda os procedimentos e normas que a Inquisição estabelecia para
o seu funcionamento, ao mesmo tempo atentando as ações na capitania da Bahia, evidenciando
a delegação de competências aos primeiros familiares. Há também observações acerca dos
Regimentos Inquisitoriais, que eram importantes escritos devido às suas orientações, as quais
os familiares deveriam seguir no exercício de sua função.
Justiça eclesiástica, poder inquisitorial e formação de rede de agentes na Bahia é o
título dado pela autora ao segundo capítulo, na qual apresenta a composição do padroado no
Brasil e as relações entre as autoridades eclesiásticas e inquisitoriais na Bahia. É evidenciada a
cidade de Salvador ao grau de “importante cidade no contexto do Império Português”,
baseando-se nas referências da historiografia atual, mas também em obras datadas dos séculos
XVII ao XIX. Além disso, a partir da documentação inquisitorial realiza a discussão acerca da
formação da rede de familiares do Santo Ofício baiano e o fluxo de comunicação que estes
estabeleceram com o Tribunal do Santo Ofício de Lisboa.
A terceira parte da obra, cognominada Clérigos em nome do Santo Ofício: Comissários,
Qualificadores e Notários, versa sobre as diretrizes adotadas pelo Tribunal Inquisitorial frente
ao processo de candidatura aos cargos da instituição. Nesse processo, chamado de diligências
de habilitação, era verificado a formação acadêmica do aspirante a familiar, como também sua
condição socioeconômica. A importância do cargo de forma a se afirmar na sociedade baiana
foi uma das motivações pelas quais se intensificaram os respectivos processos, na qual a autora
verificou aproximadamente cem processos com o intuito de habilitação ao cargo de familiar.
“Pelo reto ministério do Santo Ofício Comissários no exercício das funções
inquisitoriais” é o último capítulo do livro, que apresenta a atividade dos familiares da
Inquisição, utilizando para isso livros de registro geral de correspondências, correspondências
enviadas ao tribunal lisboeta, denúncias e processos inquisitoriais. Através destas fontes é
possível mapear o deslocamento de diversos de familiares no exercício de suas atividades como

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também verificar a atuação de familiares nomeados para exercer funções em outras capitanias,
mas, que possam ter agido na Bahia, entretanto seus nomes são omissos em livros de registros
e expedientes.
Para Remédio das Almas: comissários, qualificadores e notários da Inquisição
Portuguesa na Bahia Colonial demonstra de forma ampla a atuação da Inquisição na Bahia e de
certa forma na América portuguesa através de seus funcionários/familiares, como também uma
grande obra sobre a História da Bahia no período colonial. É uma obra de grande valor
historiográfico, que constrói uma leitura indispensável àqueles que se interessam pela História
e para as futuras pesquisas que envolvam a atuação da Inquisição na América Portuguesa.
Através dela podemos refletir sobre a atuação e estruturação da sociedade no Brasil colônia e
pensar sobre as suas permanências no Brasil contemporâneo.

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Anexo
Pareceristas da Décima Terceira edição da
Ars Historica

Prof. Ms. Alexandre de Souza Rodrigues – (UFF)

Prof.a Dr.a Ana Paula Torres Megiani – (USP)

Prof. Dr. Antonio Marcos Myskiw – (UFFS)

Prof.a Dr.a Daniela Buono Calainho – (UERJ)

Prof. Ms. Diego Airoso da Motta – (UFRGS)

Prof. Dr. Gabriel Jucá de Hollanda – (PUC-RJ)

Prof. Dr. George Felix Cabral de Souza – (UFPE)

Prof. Dr. Gian Carlo de Melo Silva – (UFAL)

Prof. Dr. Guilherme Amaral Luz – (UFU)

Prof. Ms. Hugo André Flores Fernandes Araújo – (UFRJ)

Prof. Dr. Ítalo Domingos Santirocchi – (UFMA)

Prof. Ms. José Eudes Arrais Barroso Gomes – (Universidade de Lisboa)

Prof.a Dr.a Mara Regina do Nascimento – (UFU)

Prof. Dr. Mario Fernandes Correia Branco – (UFF)

Prof.a Ms.a Natalia Ribeiro Martins – (UFMG)

Prof. Dr. Rafael Ale Rocha – (UEA)

Prof.a Ms.a Raquel Hoffmann Monteiro – (USP)

Prof.a Dr.a Sheila Conceição Silva Lima – (UCAM)

Prof.a Dr.a Thaís Continentino Blank – (FGV/CPDOC)

Prof. Dr. Washington Dener dos Santos Cunha – (UERJ)

Prof. Dr. Yllan de Mattos Oliveira – (UNESP)


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