ARTIGO - Corpo e Automultilação - Um Estudo de Caso
ARTIGO - Corpo e Automultilação - Um Estudo de Caso
ARTIGO - Corpo e Automultilação - Um Estudo de Caso
Resumo: Este estudo tem como objetivo, proporcionar reflexões, através de um estudo de
caso, a partir do entendimento dos relatos, que permeiam a vida de uma paciente, atendida em
psicoterapia individual no Serviço Integrado de Saúde – SIS, num período de seis meses. O
caso será explanado brevemente, para que seja possível a compreensão dos aspectos
subjetivos e questões que transpõe esses relatos, dentro de um contexto psicanalítico.
Considerando seu sofrimento, sua subjetividade e seu contexto vivencial, faremos um
embasamento teórico sobre os conceitos de corporeidade e automutilação.
INTRODUÇÃO
1
Acadêmica do curso de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul e estagiária do Serviço Integrado de
Saúde (SIS) na Abordagem Psicanalítica. (lucianamborges82@gmail.com).
2
Docente do curso de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul e orientador de Estágio Curricular do
Serviço Integrado de Saúde (SIS) na Abordagem Psicanalítica. (jerto@unisc.br)
O caso a ser estudado, refere-se a uma paciente nominada Rosa (nome fictício), na
faixa dos quarenta anos, encaminhada ao Serviço Integrado de Saúde – SIS, pelo Centro de
Atenção Psicossocial de Santa Cruz do Sul - CAPS II, com o diagnóstico de Depressão,
Estresse Pós-Traumático, Fibromialgia e dificuldades em aceitar suas limitações físicas. A
paciente inicia a psicoterapia individual na abordagem da Psicanálise, sendo atendida, de
maio a outubro de 2018. Nesse período aconteceram 13 atendimentos psicoterapêuticos, tendo
a periodicidade semanal.
HISTÓRICO
Nascida em uma família humilde, primogênita, tendo uma irmã, morou no interior até
a idade escolar, quando a família mudou-se cidade. Sem recursos financeiros, aos 7 anos,
Rosa, foi trabalhar como faxineira, numa casa próxima a que vivia. Estudava na parte da
manhã e trabalhava à tarde, recebia como pagamento roupas usadas e comida. Nos primeiros
atendimentos, Rosa chora muito e percebo sua dificuldade em trazer à sessão o motivo de seu
sofrimento.
No decorrer dos atendimentos, Rosa conta que aos 14 anos, conheceu um rapaz e
iniciaram um namoro. Em um determinado dia, ela e o namorado sofreram um acidente de
moto onde, o namorado foi levado ao hospital de ambulância e os amigos que estavam
presentes, chamaram um conhecido para levar Rosa em casa. Ela estava machucada e esse
conhecido ao invés de levá-la embora, a violentou sexualmente (era virgem), a espancou e
desferiu golpes de faca.
Posteriormente, ela e a família, foram perseguidas e ameaçadas durante muito tempo
pelo estuprador, o que a fez alimentar um desejo de vingança por anos. Rosa dedicou boa
parte da vida a trabalhar de maneira incansável, fazendo muitas horas extras em uma fábrica.
Passados alguns anos após o estupro, casou-se com o namorado da época, tiveram uma filha.
Em seus relatos, Rosa conta que sofreu bullying na escola, pois tinha problemas na sua
arcada dentária, o que tornava seus dentes tortos e desalinhados. Era alvo de deboches e
risadas, recebia muitos apelidos, o que lhe causava muito constrangimento, vergonha e
revolta, pois se achava feia.
Alguns anos depois, a paciente começa a trabalhar como cabeleireira, onde iniciaram
seus problemas físicos, a Fibromialgia. Impossibilitada de trabalhar, com muitas dores e sem
controle das mãos, a depressão se instala. Resolve voltar para o interior, compra uma área de
terras e tenta a vida como agricultora. Conta que não tem mais ânimo e nem vontade de sair
de casa, só tem vontade de dormir e ficar na cama. Sente-se muito triste por estar nessa
condição, o que a levou a tentar suicídio, tendo se arrependido depois.
Durante os atendimentos Rosa também traz questões sobre a maternidade e questiona-
se em ter sido boa mãe. Conta que a gravidez foi muito difícil, cheia de medos, angustias e
dificuldades. Conta que quando soube que gestava uma menina, ficou muito triste e
inicialmente não aceitava a filha. Fala que sempre foi muito rígida e castradora com a menina,
chegando a ser agressiva fisicamente.
Conta que sente medo de encontrar com o estuprador na rua ou que ele descubra onde
ela mora, muitas vezes pensa estar sendo perseguida por ele novamente. Durante todos os
atendimentos Rosa, chora muito, sente-se sem saída, diz não conseguir viver, pois teme por
sua vida.
Após algum tempo em atendimento, Rosa expõe que roí as unhas até a carne, come a
pele dos dedos da mão e arranca as unhas dos dedos dos pés, fazendo isso de forma
compulsiva e repetitiva, como forma de alivio e autopunição, posteriormente sente-se mal,
devido às dores que sente e a grande quantidade de sangue que sai dos pés. Porém, não
consegue encontrar outra maneira de extravasar suas angustias e seu sofrimento, que tem lhe
corroído por dentro.
A paciente em questão apresenta as suas dores emocionais, traduzidas no corpo, sendo
que, desde muito jovem, as questões corporais estão relacionadas com o seu sofrimento
psíquico. Durante toda sua vida passou por dificuldades, tanto financeiras quanto físicas e
psicológicas. Como forma de proteger-se e sobreviver, Rosa recalca e nega de si mesma seu
sofrimento emocional, ocupando-se no trabalho para que não tenha tempo de pensar sobre si e
sobre tantas formas de violência que foi exposta.
É evidente o quanto Rosa se encontra em sofrimento, físico: corpo falho que a impede
de trabalhar e manter sua autonomia e independência. Emocional: ter que olhar para o passado
de tristezas e angustias e dar-se conta de que aquilo que viveu e enterrou está emergindo com
muita força.
Rosa faz uso de antidepressivo, ansiolítico e antipsicótico, para ajudá-la nesse
processo de dor e depressão, onde a dor da alma não pode mais se esconder e o corpo não
consegue suportar tanto sofrimento vivido e que está preso. A paciente não fala com ninguém
sobre o que aconteceu em seu passado e isso a deixa ainda mais fragilizada, pois diz que
ninguém entende o que se passa com ela.
Nessa perspectiva, faz-se necessário o entendimento das questões relacionadas à
corporeidade e a automutilação, levando em consideração todo um contexto psicanalítico.
CORPOREIDADE
um ego corporal; não é simplesmente uma entidade da superfície, mas é ele próprio a projeção
de uma superfície” (FREUD, 1923/1976, p. 40).
O corpo, segundo Fernandes (2011), é um centro de investimento para descarga de
sofrimento e frustração passando a ser um simbolismo cultural do mal-estar das pessoas, onde
o corpo passou a ser um representante da subjetividade e frustrações com o mundo. No caso
em questão, percebe-se que a paciente traz muito essa relação de sofrimento emocional
relacionado ao corpo, percebe-se em sua fala, “[...] eu era cabeleireira quando comecei a ter
fibromialgia, então tive que parar de trabalhar porque não conseguia mais segurar um pente.
Trabalhar me faz bem, eu adoro e me realizo, mas agora não posso fazer mais”.
Nesse sentido, fica evidente o quanto a imagem corporal negativa, que Rosa tem de si
mesma, a subjetiva, projetando nesse corpo o seu sofrimento e a impedindo de satisfazer-se
profissionalmente. Uma das maneiras encontradas para suportar esse sofrimento é expressa-lo
através da automutilação.
AUTOMUTILAÇÃO
Podemos entender a pulsão de morte como a força biológica que afeta o indivíduo,
para a destrutividade de ordem psíquica (RUDGE, 2006). A pulsão de morte está conectada e
é inseparável psiquicamente do supereu: o sentimento de culpa e a busca de punição
inconsciente. É a manifestação da tensão entre eu e supereu, representando a força da pulsão
de morte (FREUD, 1937/1977b).
Considerando que automutilação é todo ato voluntário de agredir o próprio corpo sem
a intenção consciente de suicídio, incluindo: cortar, queimar, escoriar a pele e bater em várias
partes do corpo de forma repetitiva, mesmo sendo um processo doloroso, continua sendo
realizada por ter um significado para aquele que a produz. A automutilação pode ser pensada
como uma formação de compromisso, frente à pulsão de morte.
A automutilação é um tipo de acordo para evitar a total aniquilação da pessoa, o que
conduziria ao suicídio. É um compromisso para evitar a aniquilação total do sujeito (BIZRI,
2014). Representa uma vitória, da pulsão de vida sobre a pulsão de morte (ARAÚJO et al.,
2016).
Dunker (2017) diz, “[...] a automutilação é uma prática para redução da angústia [...]
de uma aflição que não tem nome [...] aflição flutuante entre o corpo e o psíquico”. Percebe-
se esse entendimento quando a paciente relata: “[...] Sinto uma angustia que vai tomando
conta de mim e vai me sufocando. E quando sinto a dor, tenho um alívio”.
O entendimento de automutilação, consta no DSM-V (ASSOCIAÇÃO AMERICANA
DE PSIQUIATRIA, 2014), como um comportamento que pode estar associado com a
tentativa de reduzir emoções negativas como tensão, ansiedade, autocensura e/ou uma
dificuldade interpessoal. A automutilação também está presente na Classificação
Internacional de Doenças (CID-10, versão 2008), citada como “F98.4 – Estereotipias
motoras”, que aparece com a seguinte definição:
da paciente em questão. Para Dunker (2017), “[...] essa indeterminação (uma das faces da
angústia) se apresenta como uma experiência de intrusão de gozo”.
Para Lacan, citado por Dunker (2017), “gozo é diferente de satisfação e do prazer [...],
o gozo de junta com a angústia que é interrompida com a conversão do gozo em outra coisa
[...] que estão ligadas por uma espécie de mutação da angustia, por descarga corporal”. Esse
conceito pode ser relacionado com a seguinte fala da paciente: “[...] quando eu arranco as
unhas dos pés, eu esqueço de tudo e me concentro só nessa dor, faço isso sempre”.
Além disso, temos o conceito de sadismo, descrito por Freud (1930/1977b, p. 144),
que informa que a satisfação sádica, para pode vir acompanhada de um extraordinário gozo
narcisista que oferece ao eu “a realização de seus mais arcaicos desejos de onipotência”,
mesmo sem propósito sexual ou na fúria destrutiva. Entende-se que a paciente, ao tentar
destruir o seu corpo, tenta destruir o desejo do outro pelo seu corpo, do qual ela construiu
como corpo de sofrimento, após a violência física que viveu.
Freud (1920/1977ª, p. 34) também traz a ideia de uma compulsão à repetição, que está
vinculada ao princípio de prazer, “também rememora do passado experiências que não
incluem possibilidade alguma de prazer e que nunca, mesmo há longo tempo, trouxeram
satisfação, mesmo para moções pulsionais que desde então foram recalcadas”. No instante em
que Rosa, se auto-mutila, ela está se punindo por seu corpo ser de desejo, ao mesmo tempo
em que pune seu agressor: “[...] minha angústia é tão grande que preciso arrancar de mim
para poder suportar continuar vivendo”.
Sendo assim, conforme Bizri (2014), as marcas no corpo são uma expressão do
sofrimento, uma mensagem corporal que o sujeito encontrou para representar suas angustias,
que não cessam quando expressadas por palavras. Entende-se que as automutilações são
formas de linguagem expressa no corpo, para expressar o não dito, tendo significados
individuais para cada pessoa, desde punição, alivio da angustia, manipulação e inclusão em
grupo (FERNANDES, 2011).
Desta forma, compreende-se a automutilação transfere para o corpo, como meio de
expressão, a própria subjetividade e a subjetividade do mundo, algo psiquicamente
incontrolável.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, J. F. et al. O corpo na dor: automutilação, masoquismo e pulsão. [S.l.: s.n.], 2016.
FREUD, S. Além do princípio de prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1977a. (Obras completas, v.
18).
FREUD, S. O ego e o Id. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud).