NOS MARES DO FIM DO MUNDO - Bernardo Santareno

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NOS MARES

00 FIM 00 MUNDO
BeRNARDO SANTAReNO

NOS MARES
O O FIM 00 MUNDO
(Doze mcaca com 06 pcacadorC6 bacalhoeiro6

portugueac4, por boneoa da TerrCl Nova

e da Gronelândia)

EXPO'Q8°

o 1997. Herdeiros de Henwrdo Snnt,1rcno e Parílue EXPO 98. S.A.

Com UII1 agradeclmculo a Luís Gomes.

A puhlicação das crônicas ,HIUi presentes. extraidns do livro

Nos Mares do Fim do Mllndo, foi gentilmente autorizada pelos herdeiros

de Bernardo 'Santareno

Ilustração c Design

Luís Filipe Cunha

Tiragem

sooo exemplares

COIIII>OSição

Fotoco11I11ogrli fiei'!

Selecçílo de Cor

Grnflseis

Impressão e Ac.'lbamenlo

Prinlcr Portuguesa

Depósito Legal

115 '40/97

ISBN

97,z·0396-Jl-J

Lisboa, Dezemhro de 1997


Aa peiaa do balanço

Mar bom, marzinho: Um cinzento bonito e brilhante, ter­

namente ondulado. A estibordo, lá longe, a costa, pínca­

ros de neve c1aríssimos, luminosos e amáveis como um ri­

so. E Sol: um solzito semiacordado que, friorento, tenta,

neste começo de Primavera, espreguiçar-se por aqui, so­

bre os bancos da Terra Nova. Cem, milhares de blocos de

gelo, pequenos uns, outros maiores, oscilam graciosamen­

te ao sabor das ondas. E sobre um destes minúsculos

icebergues, a bizarria inesperada de uns dez ou doze

patos-mergulhões, grotescos, buliçosos, simpatiquíssimos . . .


B E R Il A R B O S A II T A R E Il O

Passam agora mesmo junto d o David Melgueiro: olham­

-nos sem sobressalto, alegremente, sem sequer quebrarem

a ininterrupta cadeia das suas cabriolas, cómicas e tão co­

municáveis. . . que parecem humanas!

- «Que fazes tu com esses tijolos às costas, Zé Claro?!»


- «São "as peias do balanço", senhor doutor. . . »
E o rapaz, suado apesar do frio, mais vermelho pelo

esforço, deixou pesadamente cair, sobre o convés, aquele

saco enorme que o trazia vergado:

- "Hã mais de mêa hora qu'eu ando com isto às cos­


tas: Da mãquina mandam-me p'r'a proa ... da proa p 'r'a a
ré. . . agora vou lã acima, à ponte. . E ninguém é capaz de
.

me dizer, à confiança, ond'é que'eu hê-de arrimar isto. . .


Valha-me Deus!. . . O senhor doutor sabe . . . é por causa dos
balanços do navio. . . pra fazer o equilíbrio. . . »

E o Zé Claro abria para mim uns olhos deliciosamente

inocentes, dum castanho muito leve, quase amarelos, aqui

e além salpicados por pintas escuras . . . : Como os dum bi­

chito novo, um gato bravo lá da serra.

Tinha, quando muito, dezoito anos e fazia a sua pri­

meira viagem.
1105 MA RES 00 fiM 0 0 MU II O O

Um pouco atarracado, musculoso, o moço era loiro,

de carne naturalmente avermelhada, os dentes puros sem

mácula . . .

Então, e u não resisti e deixei-me rir: O rapaz, u m tan­

to surpreendido e envergonhado, embora desconhecendo

a causa, riu-se logo também . . .

- "Quem te mandou fazer este serviço, Zé Claro?»


- "Foi o senhor Primêro das máquinas... Ai, tenho que

ir... "
E, subitamente sério, o Zé Claro preparava-se já para

pegar, ainda uma vez mais, naquele saco monstruoso: Eu

tive pena dele . . .

- «Deixa lá isso, rapaz: Não vês que é brincadeira?


Andam a mangar contigo . . . »

Uma vez mais, abriu para mim uns olhos intrigados e

confusos. Depois, estrondosamente, deixou cair os tijolos.

Estava rubro, violáceo, a tremer de ira:

- «Rais os partam!»
E sentou-se em cima do saco, agora triste, quase a

chorar:

- «Andam a fazer pouco de mim... »

Eu tentei acalmá-lo: Que não, que todos os anos fa-


B E R II A R O O S A II T A R E II O 10

ziam a mesma graça aos «verdes», que aquilo era coisa pa­
ra rir . . .

- "Vou-me mas é embora. . . Logo que possa, vou-me


embora. . . Cabrões!. . . »

Recomeçara a nevar. Levei-o então para a proa e,


abrigados, continuámos a conversar: O Zé Claro era das
bandas da serra da Estrela, sempre vivera de apascentar
ovelhas e nunca, até agora, pusera os olhos no mar. . . Mas
aconteceu ter uma sua irmã, criada de servir no Porto,

casado com um pescador:


- "E vai daí botei-me a pensar, a pensar. . . Eu cá nunca
tinha visto o mar, senhor doutor!. . . Tudo isto são coisas
que se metem na cabeça dum home, na é assim? A calqueI'
pode acontecer. . . Ora, ilusões! Atão, como pude, ajuntê o
dinhêro da viage, e pronto, lá vou eu de abalada até ao
Porto!. . . Mais me valera que . . . »
Interrompeu-se, brusco, e ficou-se a olhar o mar, ou­
tra vez encolhido, como um cãozito espancado:
- "Se eu soubesse. . . Cornos!. . . Fazerem de mim o tam­
bor da festa . . . Ná, senhor doutor, eu cá na sou home pró
mar! Nem quero. Na gosto desta vida. Na senhor, dou-me
por sastifêto. . . Tomara mas era ir-me embora e já . . . já
hoje!. . . »
11 II O S MA R E S DO fiM DO MU II O O

E calou-se de novo. Olhei-o bem de frente, na face:


Duas lágrimas corriam, grandes e puras, pela larga cara

afogueada.. . Era uma verdadeira criança! Depois, a voz


entre cortada, apontou-me a costa:
- "Cada vez que os mês olhos caem acolá, naqueles
montes de neve. . . ai, senhor doutor!, alembra-me logo a
serra da Estrela. . . ma i-Ias minhas ovelhas. . . É uma dor
d'alma!. . . Nunca eu tivesse de lá saído . . . nunca!»
- "Acabarás por te habituar ao mar, Zé Claro. . . »
- "Ná, na habituo. E mesmo na quero. Quando eu vi o
mar pela primêra vez, lá na foz do Douro. . . gostê. Atão
sim, gostê muito: Achê-o lindo e mais grande, mais gran­
de!. . . Pois na descansê, enquanto na embarquê: Asnêras
qu'um home faz, ratoêras qu'o Diabo artimanha!. . . Mas
agora, na senhor, já na gosto do mar, na posso com ele,
ganJlê-lhe medo: O mar é traiçoêro, só pensa na morte
dum home . . . »

Deixei-o. Anoitecia. Então o Zé Claro foi buscar uma


flauta de cana (trouxera quatro, qual delas a mais bem
acabada, todas feitas por ele!) e, sempre virado para os
montes brancos de "São Paulo», tocou, tocou . . . encheu o
mar e o vento com as saudades que lhe mordiam no pei­
to: Ai, minha rica serra da Estrela!
B E R II A R D O S A II T A R EII O 12

Estou com o Zé Claro: ele não é homem para o mar.

Não há névoa, nem brisa, nem espuma que se lhe pegue!

Ele todo, a sua carne virgem, a verde música da sua flau­

ta, a claridade das suas lágrimas, o cheiro das suas pra­

gas ... tudo isso fala de terra negra, de giestas e de roche­

dos, de ventos secos que nem facas afiadas, de fontes

frescas e airosas, de bailaricos sapateados em chão firme

de tojo e alecrim...

Como, homem do mar? O Zé Claro?! Nunca o será:

Nunca a sombra ondeada das vagas escurecerá os seus

olhos, nunca as estranhas árvores do fim do mundo darão

flor em seus dedos, nunca a sua alma será habitada pela

lua dos marinheiros - aquela terrível lua sangrenta, cor­

tada de negro pelo vulto erecto dos mastros ...


Antigamente

Antigamente... Como eu gosto de ouvir aos mais velhos

pescadores, as histórias - «isto foi mesmo assim, senhor


doutor! - dos tempos bárbaros da pesca do bacalhau!...
..

Juntamo-nos ali n a pequena enfermaria (quatro leitos, al­

guns armários e uma marquesa improvisada), eu sentado

na velha cadeira de coiro e eles em redor, na berma dos

beliches: Pela porta, entre as baleeiras carregadas de

mantimentos (prontas para sair, se necessário for!), uma

nesga de mar verde escuro e um pedaço de céu emara­

nhado em cinzas e negro...


B E R II A R B O S A II T A R E II O 14

E vem à baila o caso daquele capitão que encerrou

dois moços de convés, adolescentes ainda, no frigorífico,

por os ter surpreendido a furtarem não sei que gulosei­

mas aí guardadas: Quando enfim de lá os tiraram, vinham

quase mortos, os pobres!

E o daquele outro capitão que, quando os homens lhe

apareciam com um dedo doente por panarício, osteíte ou

moléstia congénere (ainda não havia médicos de bordo,

nem sequer enfermeiros . . . ), se lhes dirigia paternalmente:

- «Mostra lá isso, rapaz.. . põe. . . bota aqui o dedo em


cima desta mesa, para eu ver bem. .. assim. . .»

E pronto! lá se ia o dedo, cortado rente sob o golpe

súbito e brutal dum pesado cutelo.

Mas o pior, o pior de quantos capitães têm governado

navios bacalhoeiros, morreu ainda há pouco tempo:

- «Era de Ílhavo, senhor doutor. Uma peste, uma pra­


ga de Deus! Aquilo na era home, era o próprio Diabo!. . . »

Tantos e tão cruéis agravos fez, que um dia, durante

uma das suas últimas viagens, a tripulação revoltou-se.

E tendo-o amarrado de pés e mãos, prestes a baldeá-lo,

mantinham-no deitado e seguro sobre a amurada do na­

vio: Hesitavam ...


15 II O S M A R E S O O FIM D O I� U II D O

Logo o velho capitão, num golpe de audácia:

- « Vamos, rapazes: Assim, não estou bem, doem-me as

costas. Resolvam: borda fora, p'r 'o mar; ou então, depres­


sa, p'ra dentro!. . . »

Surpreendidos e dominados pela coragem do velho, os

homens abrandaram: e puseram-no dentro.

Uma vez em terra, nenhum fugiu ao castigo do terrível

capitão: um a um, desgraçou-os a todos, inexoravelmente.

- «Morreu há poucos anos ainda, senhor doutor, lá


em Ílhavo: Tinha uma nascida ruim que, palmo a palmo, o

foi minando todo. . . O alma do diabo dava urros que se


ouviam lá longe, na estrada de A veiro! Bem feito, bem
feito.»

Um silêncio. Pensativo, com as asas do terror a crispa­

rem-lhe o fluido melancólico, o mais velho, o tio Zé da

Avó, juntou:

- «Era um home mau, um danado, senhor doutor! En­


tre as mulheres, tinha fama de lobisome . . . E eu já na digo
nada! Lembrar-me a mim . . . olhe que isto é tão verdade,
senhor doutor, como eu chamar-me Zé: Vi, vi eu, com es­
tes dois que a terra, ou o mar, há-de comer! Durante três
dias e três noites, antes de ele morrer, os corvos, um
B E R tl A R D O S A tl T A R E tlD

bando de dez pelo menos!, não lhe desampararam a casa:


nem os gritos, nem as pedras, nem os foguetes foram ca­

pazes de os tresmalhar. Sempre ali, cerrados, a voarem


como doidos em redor do prédio/. . . Aquele tinha manhas

com o Demónio, senhor doutor!... "


o bobo

Foi no Granja, um velho lugre de três mastros, ao que me

dizem já desaparecido.

O Albino «algarvio" era o bobo do veleiro: não havia

n inguém na companha, desde os moços de convés até aos

oficiais da ponte, que não gostasse de «molhar a sopa ...

Uns puxavam-lhe a camisola, outros tiravam-lhe o barrete

e todos o feriam com graçolas pesadas, achincalhando-o

com alcunhas e risos destemperados. O Albino ia sofrendo

em silêncio e às vezes, que remédio!, chegava mesmo a

emprestar aos lábios um sorriso dolorosamente preguea-


B E � II A � O O S A II T A � E II O \6

do. Mas no interior, lá por dentro, era uma chaga viva,

um cancro que, sem tréguas, o vinha roendo: Malvados!

Se lhes pudesse ser bom . . . Mas não podia. Enfim, uma des­

graça: ele, ali no navio, era o fantoche, o bombo onde to­

dos malhavam, o escarrado iro para onde, sem cerimónia,

os outros cuspiam! Mas tantas lhe faziam que um dia . . .

ora, ora, u m dia. . . nada, sempre nada! Estava sozinho,

não tinha ninguém por ele: como um bicho desprezível e

feio . . . Feio! Todos lho chamavam. E cabeçudo, e torto, e

marreco . . . Feio: de tudo, seria talvez o que mais o fazia

sofrer! Por duas ocasiões já, em acessos de raiva, calcara

a pés juntos o espelhinho de algibeira. Ah, mas eles não

sabiam ainda quem era o Albino! E daí talvez tivessem ra­

zão: em muitas horas, quase sempre!, sentia-se manso e

receoso como um boi capado. Até um dia, só até um

dia! . . . Que se acautelassem, pois uma vez o palonça, o po­

bre diabo, podia perder a cabeça e . . .

U m mar d e gargalhadas apagava sempre a s suas amea­

ças: Como os odiava, nestas alturas!

E passava as noites a remoer planos de vingança, ar­

repios de terror e lágrimas de abandono. Então ele, Albi­

no, não seria um homem como os outros?! Tinha que o


\' 1105 I�AnE S DO FI M DO M UII D O

provar, tinha que lhes mostrar do que era capaz. Era um


homem, ele era um homem!
Mas os dois piores, os mais verdugos, seriam o cozi­
nheiro Ricoca e o seu ajudante, o Mazorro: Ganhara-lhes
medo, só de vê-los ficava com febre! Inda ontem o Rico­
ca, à saída da cozinha, lhe passara uma rasteira de tal jei­
to, que ele fora estatelar-se no convés, no preciso mo­
mento em que uma volta do mar galgava a amurada:
Ficara todo encharcado, da cabeça aos pés. Em redor, os
outros apertavam o ventre, de tanto rirem . . .
Ná, não podia continuar assim: perdera o gosto pela
vida e sentia-se como um espantalho de eira, como uma
vela esfarrapada ao vento. Os outros faziam-lhe tudo quanto
queriam e ele nem reagia, sempre se ficava quedo e mudo:
Verdade, verdadinha, ao cabo e ao resto, não passava dum
reles cobarde. Só de pensar na mulher e no filho, sentia a
cara arder de vergonha e o corpo alagado em suores frios:
Rico chefe de família, não haja dúvida!
Ah, mas aquele RicocaL .. A raiva que lhe tinha! E o
outro, esse Mazorro do diabo, não era melhor . . . Pudesse
ele!
Tinha que poder: ou arranjava coragem para tirar vin­
gança daqueles dois, ou deitava-se ao mar.
B E R tl A R O O S A tlT A R E tl O 20

E, noite após noite, foi acumulando projectos, imagi­

nando torturas, sonhando com os olhares admirativos dos

outros da companha ao saberem o que, enfim, fizera. . .

Mas vinha a manhã e era como s e o vento marítimo lhe

apagasse o lume das veias: cada dia mais amarfanhado,

mais triste. Uma miséria, uma vergonha I Aquilo tinha que

acabar: ou ele, ou os outros dois! Daquela noite não pas­

saria. Mas como? Sozinho, apenas com as suas próprias

forças, não podia: estava mais que visto. E, contra o seu

costume, naquela tarde, logo ao jantar, bebeu fartamente.

E depois continuou . . . até sentir fósforos de lume acende­

rem-se-Ihe na cabeça e ondas de sangue correrem-lhe pe­

los olhos. Os da companha, admirados, riam e davam-lhe

palmadas nas costas. Então, veio o Ricoca:

- «Eh, Albino! Eh, algarvio!, atão o que é isso, home?


Queres afogar as mágoas?. . . Calem-se p'r'aÍ, rapazes: Na
sabem que ele inda na recebeu cartas da família? São coi­
sas qu'acontecem a calquer mortal: se calhar a mulher. . . »

E os risos chocarreiros apertaram-no, como um círcu­

lo de chumbo a ferver. Um pouco cambaleante, o Albino

conseguiu erguer-se à altura do cozinheiro: olhos nos

olhos do inimigo, as mãos contraídas nos bolsos, os den-


21 1I 0 S MA RES 00 FIM 00 MU IIOO

tes arreganhados como os dum lobo, o «algarvio», por mo­


mentos e em silêncio, bafejou com o seu hálito azul es­
pesso a cara surpreendida do Ricoca; depois, de súbito,
soltou uma gargalhada impressionante, estridente e sacu­
dida como um soluço e, sem palavra, afastou-se precipita­
damente dali. Desta vez os pescadores não chicanaram:
antes ficaram calados, inquietos, num vago pressentimen­
to de perigo.
E realmente foi nessa mesma noite (quantos, passados
já mais de quinze anos, ainda a recordam angustiados!)
que o Albino, mais conhecido no mar pelo «algarvio», es­
faqueou barbamente, enquanto dormiam nos beliches, o
cozinheiro Ricoca e o seu ajudante Mazorro: Cego de fú­
ria, bêbado de vinho e de sangue, deu facadas à toa, no
peito, no pescoço . . . por onde achou carne penetrável!
Quando, enfim, conseguiram arrancar-lhe a lâmina
das mãos, o Albino mostrava a face tinta de vermelho e,
em uivos lamentosos, chorando e rindo convulsivamente,
repetia baixinho:
- «Ai, a minha mulher. . . ai, o mê filhinho . . . estão des­
graçados, estão desgraçados!. . . »
E o «algarvio» foi logo amarrado a o mastro d o meio,
com guarda permanente.
B E R II A R O O S A II T A R E II O 22

Toda a noite ondeou, em volta do assassino, uma vaga

crepitante de archotes. O vigia recebera ordem para dis­

parar, contra quem quer que tocasse no preso: Só por is­

so, o Albino não foi estrangulado naquele anel de lume,

movediço e feroz.

Quando a madrugada veio, o Albino, esfarrapado, sujo

de sangue, estava roxo de frio e de terror! A cada amea­

ça, a cada impropério, a cada escarro que lhe lançavam

os da companha, o homem só gemia:

- «Ai, o mê filhinho. . . ai, o mê filhinho!. . "


.

Mais não dizia.

E, nem a neve que incessantemente caía, nem as on­


das do mar que mais duma vez o cobriram, puderam lim­

pá-lo daquele sangue.

Depois levaram-no para o Gil Eannes.

Aí, mais compreensivos, deixavam-no andar à solta

pelo navio. Mas ele nunca mais quis falar. E mal comia.

De noite, ouviam-no chorar. O comandante, condoído,

tentava animá-lo: o Albino sorria tristemente, abanava a

cabeça e, sem palavra, punha os olhos no chão. Assim

sempre.

Foi ainda com este mesmo sorriso triste, sem ódio


23 II O S IA A R E S O O F I IA O O IA U II O O

nem fúria, que, naquela manhã de procela, o Albino gal­

gou a amurada do Gil Eannes para se lançar ao mar revol­

to. Houve quem o tivesse visto, neste preciso momento: e

todos afirmam que ele cumpriu o acto serenamente, sem

a costumeira precipitação desesperada, sem a mínima ati­

tude ritual, nada disso .. . simples, naturalmente, com o tal

sorriso triste e infantil a chorar-lhe nos lábios.

Lá ficou. Não foi possível salvá-lo.


o ciclone

Aquilo levantou-se de repente e durou uma noite inteira.

O Infante de Sagres atirado ora acima, ora abaixo, pelos

dedos descomunais do mar, lambido ferozmente pelos ca­

belos zumbidores do vento, era uma coisita, a fugir entre

os urros da deusa Fúria!

Foi em 1949, na lena Nova, no mês dos ciclones - Se­

tembro.

E ninguém ainda pôde esquecer.

Perto, enredemoinhados na mesma leva pavorosa, o

Cruz de Malta (foi ao fundo em Agosto de 1958), o Lavra-


B E R II A R O O S A II T A R E II O 21

dor, o Paços de Brandão (que se abriu nestes mares, em


1951) e o veleiro Ana Maria...

Entre os lugres, pela telefonia, o terror escorria nas

vozes aflitas dos capitães: ciclone assim, tempestade tão

bruta, não havia memória!

Até o comandante João Campos, do Infante de Sagres,

conhecido pelo seu feitio animoso e folgazão, corria ago­

ra febrilmente do desânimo para o desespero: Tudo perdi­

do! Tudo perdido!

A vaga entrava pela casa da máquina, com uma vio­

lência incontível, livre! como no convés. Impossíveis as

comunicaçóes entre a proa e a ré: Nesta última, não havia

água potável. No rancho, os pescadores, inibidos pelo me­

do para a acção, escondiam-se acossados na fé: com as

velas que, dolorosamente, acendiam, iam gastando as últi­

mas esperanças. . .

O Infante de Sagres lutava por atingir a costa e refu­

giar-se em St. John's: Mas como?! Com um vento assim, o

lugre seria naturalmente arremessado de encontro às ro­

chas e, é claro, desfeito num ai!:

- ,<jesus, Jesus! Ah, Senhora dos Aflitos!»


Quando o Fernando de Í lhavo se arriscou no convés, a
27 II O S MA RES O O FI M O O M U II O O

tentar a travessia, um bote, erguido em peso pela força

do vento e logo atirado pela borda fora, atingiu-o mesmo

na cara, rasgando-lhe brutalmente uma das faces!: Mais

vivos os gritos e as rezas pungentes, à proa.

O contramestre Domingos, um homenzarrão batido

por mais de trinta anos destes mares, a certa altura, não

teve mão em si: era vê-lo, a chorar, numa convulsão de

amor e de medo, agarrado ao filho, o António, que vinha

pela primeira vez ao bacalhau, de moço . . . Pobre rapazi­

to!: ele, ele, seu pai! é que era o culpado. Tão novinho, a

bem dizer uma criança... E nunca mais acabava aquele

abraço frenético, transido de espasmos viris. Coisa assim!:

era de arrepiar.

Foi então que o velho Joaquim Rico, meio louco, en­

trou pela casa da máquina dentro e, pondo-se de joelhos,

deu em pedir, com uma insistência alucinada, ao motoris­

ta Almeida que acabasse com ele, que o matasse!!

- «Ai, Senhor dos Mareantes! Senhora da Nazaré, acu­


di-nos, valei-nos nesta aflição!»
Apenas o cozinheiro João Perqueixo (quem tal havia

de dizer?!), geralmente anafado e molengão, mantinha e

cimentava a sua calma: seguido pelo ajudante Eurico, em


B E R II A R O O S A II T A R E II O 26

pleno convés devastado, estupendo de energia, sempre

meticulosamente sereno, o homem ia cortando, um a um,

os cabos das velas esfarrapadas. . . Que valente, que verda­

deiro valente!

E os choros, as promessas gritadas, as orações raste­

jantes, as blasfémias do desespero. . . iam furando o vento

com agulhas de sangue:

- "Senhor dos Mareantes! Senhora do Mar! salvai-nos!


salvai-nos!!"
Nada: o céu, negro de nuvens, duro e calado como

uma parede.

Madeiras, mastros, todo o navio, rangiam perigosa­

mente: A violência do mar, agora, era um paroxismo mos­

truoso e desgrenhado!

O ró Rito, um moço morenote e alegre como uma pa­

poila, rasgado o juízo, desatou a correr pelo convés, di­

teito à borda: se lhe não deitam logo a mão, atirava-se ao

mar! E uivava, como um cão ferido.

A baía de St. John's estava à vista: Mas quem podia

atracar lá?! O vento soprava cada vez mais rijo.

- "Deus! Deus do Céu! Senhora das Dores! acudi-nos


nesta tormenta!"
II O S MA R E S 0 0 F I M 0 0 M U II O O

Foi então que . . . isto só visto, só quem lá esteve: dou­

tra maneira como se há-de acreditar?!. .. foi então que, de

repente, o vento mudou de direcção:

- «Milagre! Milagre!! Milagre!!!"

Todos caíram de joelhos: em farrapos, sedentos e es­

fomeados, triturados pelo terror. . .

Com u m drio ainda aceso, ao nível dos olhos, o t i'João

Borba, encolhido num canto, chorava silenciosamente: e as

suas grandes lágrimas mudas cintilavam lâminas vermelhas,

como se fossem de lume.

O João Perqueixo, ainda com a faca ferozmente eriça­

da na mão, completamente nu (rasgada e levada toda a

roupa pelo vento e pelas ondas!), quedava-se imóvel, an­

sioso, como que em expectativa dolorosa: nem podia

acreditar!

- «Mi/agre! Mi/agre da Virgem!!"

Ou ando, enfim, o Infante de Sagres entrou em St. John's,

era esperado por algumas centenas de pessoas emo­

donadas: O lugre aparecia desconjuntado, as velas es­

farrapadas, o convés drasticamente varrido de tudo

quanto o ocupava, os homens ainda lívidos de angústia,


B E R tlA R D O S A tl T A R E tl O 30

miseráveis. . . E todos que tal viam, incontivelmente, cho­

ravam.

Foi então que o Zé Rocha, mal postos os pés em chão

firme, num ímpeto, se lançou de joelhos: e, assim, humil­

demente, o coração líquido de gratidão, beijou a terra

negra!
Funeral marítimo

Foi no Santa Mafalda. O homem apareceu morto de ma­

nhã, no beliche: Doença súbita.

O navio estava no alto mar, a mais de vinte e quatro


horas de navegação para terra: Era pois indicado prepa­

rar-lhe um funeral marítimo.

Assim, o cadáver foi envolto em serapilheiras e li­

gado com ferro, como manda a lei. Depois colocaram-no

sobre um estrado improvisado no meio do convés.

Pesarosos e confusos, os homens da companha, todos

presentes, olhavam o camarada morto. . .


B E R II A R O O S AII T A R E II O 32

Só a liberdade b ulhenta e garrida das gaivotas ras­

gava, com roucos gritos quase ferozes, o silêncio total e

lívido.
Na ponte, o capitão leu e fez assinar por oficiais e

mestres "o protesto do maro>.

Finalmente, quem sabia ou sentia rezou pela salvação

daquela alma.

Tinha começado a nevar: os homens, de cabeça des­

coberta, mostravam já largas madeixas brancas. Também

o vento soprava mais forte: E o pano que embrulhava o

morto ondulou, mais vivamente pregueado.

Muitos dos presentes, ajustando os abafos, contraí­

ram-se arrepiados.

E o grito das gaivotas tornou-se impudico, como um

foguete de festa.

Era o momento:

- "Nesta hora de Deus e de Sua Mãe Mar'Ía Santíssima,


lançai o cadáver ao mar!"
Num movimento geral de recuo, os homens adensaram

a sombra dos rostos. Depois, insistentemente, os olhares

caíram sobre aqueles três ou quatro que o acaso tinha co­

locado mais perto do estrado . . . Estes, num primeiro im-


33 II O S MARES D O FI M DO M U II O O

pulso, estenderam os braços para o morto, esboçando a

flexão do tronco . .. Mas de repente fizeram-se hirtos e fo­

ram esconder-se atrás dos outros. O capitão, da ponte,


instigava-os com o olhar. . .
Ninguém cumpriu a ordem.
Um brado mais violento e autoritário, ou uma qual­
quer imprecação, quebraria a solenidade da cena. Por is­
so, o capitão, duro e pausado, repetiu:
- «Em cumprimento da lei e segundo as normas deste
funeral marítimo, mando que seja deitado o cadáver ao
mar!»
Todos se encolheram mais ainda, bisonhos e lúgubres.
O grito das gaivotas, agora, parecia um riso gutural e
cruel. Isto durou, penosamente, dois ou três minutos.
O capitão, rubro de cólera, mal se continha. . .
Então, l á do fundo, da proa, o Chico d e Alcântara
avançou, por momentos olhou sobranceiro, quase trocis­
ta, os companheiros, e depois, em passos seguros dirigiu­
-se para o cadáver, prendeu-lhe o gancho e, decidido, fê-
-lo descer para o mar.

Ouando, passados dias, o Chico começou de inchar - os


pés primeiro, depois as pernas e por fim o corpo todo -
B ER tlAR O O S A tl T AR E tlO 34

não houve ninguém na companha que não pensasse o

mesmo: Foi castigo!

O médico bem falou em insuficiência cardíaca e coisas

quejandas, mas. . .

- "Tá bom de ver, entra p 'los olhos a dentro: um ho­

me com'o Chico, uma torre de saúde, ficar assim de re­

pente, sem mais aquelas!. .. Foi castigo, foi castigo!»

E o Chico de Alcântara começou a empreender: pen­

sando bem, aquela acção não a fizera ele por caridade

para o morto... não senhor!. . . Foi orgulho, alarde de va­

lentia. Mas uma coisa destas!.. .

E o Chico - tão distraído até então dos caminhos do

Céu! - deu em rezar, fez penitência rija, cumpriu promes­

sas custosas . . . Nada. Sempre a piorar. Foi então que ele

resolveu deixar a vida de pescador. Duma vez para

sempre.

E assim fez: estabeleceu-se em terra.

Pois vão lá vê-lo agora: de novo gordo e abastado,

que é um louvar a Deus!

- "Querem maior prova, rapazes? Q mar botou-o fora,

nunca mais o quis dentro dele, ganhou-lhe raiva! . . O Chi-


.
35 /I O S MA R E S O O FI M O O MU II D O

co na respeitou o morto: Deitou o cadávre ao mal', como


quem J'amanda um pouco de peixe podre. . . E o mal' vin­

gou o morto. Tá bem de ver: Querem coisa mais clara?!


O mal' vomitou-o. E se ele não se vai embora tão depres­
sa, matava-o! Matava-o, rapazes, tenham vocês a certezi­
nha. . . Eu conheço o mar!»
E o ti'Tó Ruço, os lábios trémulos, nos olhos um lume

alto, olhou em redor: Todos baixaram a cabeça, como

quem reza. Só eu, no meio dos pescadores, tentei um sor­

riso incrédulo. . . logo cortado pela profunda e dolorosa

gravidade com que os outros me isolaram. E o silêncio en­

volveu-nos a todos.

Igual, monótona a voz do mar?!

Nunca, como neste momento, eu senti que tal não é

verdade: Antes variada, rica, cheia de incidências, de mú­

sicas longínquas, de carícias rolantes, de ocultas ame­

aças . . .
frederik6haab6

Pescamos a 63° de latitude norte, em frente do maior gla­

ciar do mundo - o Frederikshaabs. Gelos eternos.

No mar sereno, na neve que cai em silêncio, no ar

límpido e calmo, oculta-se não sei que segredo branco e

cruel, não sei que perdido gesto dum deus impassível e

gelado . . .

E passam, lentamente, o s grandes icebergues: Pode­

rosos, n a realidade terríveis, a matéria de que são fei­

tos, grácil e imaculada, fá-los parecerem só decorati­

vos, mesmo amáveis. . . Mentem! Erguidos com a subs-


OE R IlA R OO S AIlT A R E Il O 38

tância do riso, no fundo escondem os olhos da violên­

cia.

Um desses blocos de gelo parece uma grande mâo de­

cepada e lívida: nem sequer lhe faltam as veias, em com­

plicadas nervuras dum azul belíssimo . . .

Outro é como uma máscara fúnebre, adolescente e no­

bre, em cujos olhos brancos o sol fez ninho.

E passa ainda um cisne hierático e real vogando sere­

no sobre a orla do tempo . . .

Diluídos e m finíssima neblina, esquecidos n o eco (an­

tigo de mil anos!), os anjos do Silêncio impregnam tudo

com a penumbra da sua natureza.

É como que um pressentimento desgrenhado no fundo


de nós, como uma lãgrima viva e cálida num rosto de ge­

Io, como um traço de sangue na fronte do vento . . .

S e levado pela brisa que, sem rugas nem cor, nasce

nos montes desta costa, ainda virgens de pegadas huma­

nas, eu fosse até um dos icebergues e se por ele, pelo co­

ração do seu centro, passasse incorrupto e nítido, eu sin­

to, sei ! , que, depois de tal travessia, qualquer poderia ler

nos meus olhos a primeira palavra dita no mundo, ou as­

pirar no meu sorriso o perfume da primeira flor da Terra,


31 II O S MA R E S O O F I M O O M U II O O

ou sentir na bênção dos meus gestos o frémito que fez no

ar a primeira asa de pássaro. . .

E que todas a s raízes, a s mais profundas, da minha

sombra, todas as cicatrizes do meu pecado, toda a macia

adiposidade do meu medo, tudo isto lá ficaria no iceber­

gue branco e gélido, de tudo isto eu me libertaria para

sempre: enquanto das veias azuis do gelo, negros e medo­

nhos, fugiriam peixes monstruosos que jamais alguém

viu . . .

Frederikshaabs: a paisagem que Deus criou, quando

pensou a humana virtude da pureza!


06 banta6ma6 da Gronelândia

- «Eh, gentes! oiçam o conselho de quem lhes quer


bem: Na vão! É morte certa rapazes ... »

O velho que assim arengava, o ti'Rufino, estava no

meio. À volta, os outros todos, alguns ainda meio despi­

dos. No mar, mal começava a luzir a madrugada. Lá onde

os homens conspiravam, à proa, apenas a luz débil de

duas lâmpadas. E o velho, caído o lábio inferior, trémulo

de indignação, mostrava os dois incisivos, grandes e ama­

relos, ornamentos únicos da mandíbula ossuda. . .

- «Nunca nenhum navio português s'astreveu a pescar


B E R II A R D O S A II T A R E II O 42

110 tal. . . como diabo se chama o mar? ... Grolândia, na é?

Porque carga d'água há-de ser a gente os primêros?! Bo­


tem atenção no que lhes diz um velho: Na vão, homes! Na
queiram ir amigos!!»
Os rostos miseráveis dos pescadores assustados torna­

ram-se mais duros, os maxilares mais tensos de violência,

os olhos semicerrados luziram ferozes . . . E o Tó Petinga,

afastando abruptamente a basta madeixa loira que sempre

lhe cobria a testa, ajuntou com voz embargada:

- «Quem lá na põe o pé, sê eu: Livra, na será o filho


do mê pai! Ah ti 'Refino, olhe qu'eu ouvi dizer que, lá pra

esses mares, 'té a prõpria água de beber gela nas vazí­


lhas. . . Tão a ver, anh?!»
E logo o Zé Cravo:

- «E o lume, Tó Petinga, o lume? Quem será capaz d'o


atear, lá pra essas bandas?!"
Enquanto ouvia a fala dos moços, o ti'Rufino, mais en­

rugado o velho rosto, apoiava, acenando com a cabeça:

- «É como dizem, rapazes. Falaram dirêto! Parece qu'o


gelo é tanto que, mais duma vez, lá têm ficado barcos pri­
sionêros: nunca mais voltaram, nunca mais ninguém lhes
pôs a vista em cima!"
43 ti O S MA R E S O O F I M O O M U II O O

- "Morríamos de frio e de sede!» - gritava o Tó Pe­

tinga.

A manhã ia abrindo, nas altas vagas, brancas pétalas

de espuma; o vento, fugindo ao frio, enrodilhava-se nas

nuvens cinzentas.

À proa, o alarido crescia, rouco e surdo como um ru­


gido. O Tó Petinga escarrou ruidosa, virilmente. O Zé Cra­

vo acabou de vestir a roupa oleada e, agora roxo de pres­

ságio, veio outra vez ao centro:

- "Se fosse só isso. .. se fosse só isso, ti'Refino! Penam


por lá almas do outro mundo, fiquem todos a saber. ..
Mentira? Foi o mê avô Lavagante quem m 'o contou, por
ter ouvido dizer. . . Ah, ti'Refino, vossemecê sabe qu'o mê
avô na é home d'invenções. . . Parece qu'em certos dias, de
tão desesp'radas qu'andam, as alminhas 'té levantam os
navios ao ar: os barcos ficam grandes, altos como torres!»
E o Zé Cravo, com as costas da mão, assoou-se estrepi­

tosamente. Os outros, excitados, gritavam agora franca­

mente: Ouvia-se à ré. O Sol nascente, apanhando em

cheio alguns dos homens, os que mais próximo estavam

do convés, lavava-os num banho sangrento, dum verme­

lho vítreo. Então, o comandante do Rio Lima (era o nome


B E R II A R O O S A II T A R E II O 44

do navio veleiro em que tais acontecimentos se passa­

vam), alto e corpulento, um verdadeiro gigante, violáceo

de fúria, desceu à proa:

- «Eh, cambada de madraços! eh, punhado de cobar­


des! que é isso agora?! Conspirais? E contra quem, posso
sabê-lo? . . Vamos, estou a ouvir: Não dizem nada? Que
homens valentes! Tu, Rufino, tu és o padre-mestre: Pois
então fala. Fala, com mil raios!!»
E o homenzarrão, a tremer de cólera, batia com as

botifarras nas tábuas do sobrado, que todas rangiam.

Os tripulantes, acossados, recuavam, olhando-o ranco­

rosos. Chamavam-lhe o capitão Caveira, estropiando ma­

leficamente o nome de Cajeira. O velho Rufino, pálido co­

mo um morto, não arredou pé. Q comandante já mal se

continha:

- «Fala, alma do diabo, ou esqueço-me da tua idade e


racho-te. . . Racho-te, de alto a baixo!»
E crescia para o velho, sempre calado e imóvel. Foi

então que o ró Petinga, vencendo o medo, conseguiu fa­

lar: voz rouca, húmida de sangue, mordida pelo ódio:

- «Dêxe o velho que na tem culpa, sô capitão. Tamos


todos d'acordo: esta campanha na vai consigo p 'r'a Gl'Oe-
45 ti O S MAR E S D O F I M D O M U II D O

lândia! Volte a Portugal e trate d'arranjar outra. A gente

na vai! Ah, homes, é ou não verdade isto qu'eu digo?!"


E todos, aquecendo, tomando ânimo, ulularam:

- «Na vamos! Na queremos ir!!!"

O capitão chegara ao auge: Num urro medonho, ati­

rou-se ao rapaz agarrando-o pela gola do casaco e, aba­

nando-o em frenesim, quase o mantinha levantado do

solo . . .

- «Ah, filho dum cão! ah, grandessíssimo malandro!


então tu tens a coragem de me dizer, a mim, na minha ca­

ra que. . .»

A raiva sufocou-o. Todos esperavam que ele descarre­

gasse o punho terrível sobre a cabeça do moço: Espasmo­

dicamente, as mãos dos homens contraíram-se; alguns

chegaram mesmo a dar um passo em frente; o ti 'Rufino,

agora aflito, puxava o Petinga para trás . . . Mas, de súbito,

o capitão afastou, brutal, o moço para o lado e avançou

para o grosso da companha:

- «Ah, ele é isso? Não vão, não é assim? Não querem


ir? . . Revoltam-se?! Fiquem sabendo que isto é uma rebe­
lião e por tal haveis de pagar, à fé de quem sou! Está por­
tan to assente: Não seguem para a Groenlândia?! E quem
B E R ti A R O O S A II T A R E ti O

manda? Não há capitão neste navio? Quem manda aqui,


desgraçados?! Pois haveis de ir, essa vos juro eu: Vão, vão

e tornam a ir!!"
O ti'Rufino, de cabeça baixa, a olhar para o chão, a

voz mais trémula, mas nítida ainda, obstinadamente, con­

seguiu articular:
- "Nada, só capitão, na veja nisto calquer ofensa con­

tra vossemecê, mas a gente na pode ir: os homes arre­


ceiam esses mares estranhos. Cada qual tem a sua própria
família: havemos de deixar-nos matar?!"
- "E quem lhes disse que o mar da Groenlândia é pior
que este, aqui da Terra Nova? Tenham vergonha nessas
caras, não sejam maricas!. . " - volvia o capitão.
.

- "Na vamos!" - ousou o Zé Cravo.

- "Vão! Quero eu!! Mandou eu!!!"


E o Cajeira, espumando de raiva, dava pontapés apo­

calípticos num molho de cordas para ali arrumado: Metia

medo o homem! Com os grandes olhos congestionados e

sangrentos a saírem das órbitas, fuzilava os pescadores,

em relâmpagos duma violência selvagem:

- "Oiçam. . . oiçam duma vez para sempre, seus pol­


trões: Eu prometi ao armador que havia de ir com este
II O S MA R E S D O FIM D O M U lI o O

navio à Groenlândia, que só voltaria a Portugal com o po­

rão cheio de bacalhau. . . Prometi-lhe eu, empenhei nisso a

minha palavra!! Estão a ouvir bem? Nunca, nunca até ao

dia d'hoje, o capitão Cajeira faltou à sua palavra! Nun­

ca!!!»

- "A água gela. . . » - choramingou o Toino da Zefa.

- "MorJ'Íamos de frio. . . » - insistiu o Manei do Ro -

sário.

- "Na queremos ir!!» - gritou mais uma vez, de novo

bravio, o Zé Cravo.

Por momentos, o capitão olhou o moço em silêncio,

cruelmente. Depois, num impulso incontível, foi-se a ele,

arrastou-o como um boneco até ao mastro do centro e,

com uma grossa corda, a este o amarrou, decidido, sem

uma quebra na fúria.

- "EIl, mulherengos! Eh, homenzecos de pataco!, ouvi­

de bem: o que agora sucede ao Zé Cravo, sucederá a outro

qualquer que tente desobedecer-me. . . A outro qualquer,

velho ou novo, verde ou maduro!»

E, dizendo tal, o Cajeira fixava o ti'Rufino, com um

olhar odiento, estranho e sinistro. O homem, sempre em


B E R tl A R O O S A tlT A R E tl O

silêncio, aguentou-lhe por momentos a vista . . . Depois,

abanando tristemente a cabeça, retirou-se do grupo.

O capitão Cajeira, mais uma vez, vencera a batalhaI

Pouco a pouco, os outros, derrotados, afastaram-se tam­

bém . . .

E foi assim que o Rio Lima pescou, pela primeira vez

para barcos portugueses, nas ãguas tenebrosas da Grone­

lândia. Cumpriu-se pois a promessa do capitão Cajeira:

voltou a Portugal com o porão cheio de bacalhau. E com

as grandes velas, sujas e rasgadas, ufanas de glória.

Nas tardes soalheiras de Í lhavo, é certo e sabido que,

mais uma vez, aquele velhote truculento, palrador e um

tanto trôpego já, reunirá à sua volta uma assembleia dou­

tros, tão idosos como ele, aos quais, novamente, contará

alguma das suas façanhas. . . que não têm conto. Local da

acção: um banco no jardim da vila.

Pois este velhinho rabujento, que ainda gosta de rir

com grandes gargalhadas sonoras, só cortadas pela tosse

brônquica e impertinente . . . é quanto hoje resta do temido

e glorioso capitão Cajeira!


o lobi6omem

Porquê?! Era de desesperar o mais pachof/'ento: Todos os

navios em redor com o convés repleto de peixe, e só

aquele mais não fazia que somar lanços nulos com sacos

meios,.. Que diabo, até parecia praga ou bruxedo! No

mesmo mar, com os mesmos processos de pesca, com pes­

soal igualmente adestrado , O ambiente estava a tornar­


..

-se explosivo: em arco tenso os nervos, a lógica riscada

pelos vidros, os olhos mais antigos do instinto de novo à

superfície,

Sim, a coisa não era natural: ali pesava uma qualquer


B E R II A R D O S A IIT A R E II O 50

influência estranha e demoníaca, urna estrela fria e terrí­


vel, um olhar sobre-humano e malsão, talvez um pecado
oculto e nefando atraindo o castigo . . .
- "Ah, Z é Grilo, tu alembras-te? . . . »

- "Que conversas são essas, home? Alembrar-me de


quê?. . . »

- "Ora. . . lá na nossa terra. . . pois, o ti'Manel Torto. . . »


- "Cais ManeI. . . o lobisome?!»
- "Pois atão!. . . E na m'arreganhes assim os olhos, 110-
me. . . Nunca se viu? Era o primêro, 'tralmente! Essa ago-
I'a!. . . »

- "Tu pensas que. . . »

- "Penso, Zé! penso, sim senhor! Cum mil raios, na


tens olhos pra ver nessa cara? O Santo André virou agora
mesmo oito sacos, o Bissaia vai além carregadinho, já de
volta pra Portugal... E a gente?. . . A gente, Zé Grilo?! An­
da, responde. . . »

- "Será. . . um lobisome? julgas tu que. . . »

- «É um lobisome, Zé Grilo! Assim eu tenha certa a


sarvação da minh'alma!. . . »
E , desde então, o s dentes acerados a brilharem nos
olhos sombrios, todos deram em se espiar mutuamente,
reservados, atentos, ferozes . . .
51 1105 MA R E S 00 F I M 0 0 MUII O O

Ora aconteceu que uma noite, como antes em muitas

outras, um dos ajudantes de máquina, rapazito ainda,

acordou mais uma vez sobressaltado, ao ouvir o terceiro­

-maquinista que, no beliche de cima, sofria um dos seus

espectaculares e ruidosos pesadelos . . . Aquilo era de fazer

arrepiar um homem: uivos de lobo, gemeduras, pragas as­

sanhadas!. .. Este pensamento atravessou-o de repente, co­

mo um relâmpago: e se o lobisomem. . . sim, se fosse o ter­

ceiro? Sentou-se na cama.

Cada vez mais colorida e corporizada, a suspeita, co­

mo um surto de febre, apossava-se do moço. O outro, lá

em cima, gritava agora mais forte, mais aflito. «É ele, é


ele mesmo!», pensou o ajudante. Então, a tremer, receoso,

o rapaz levantou-se pé ante pé e foi-se à proa: tinha que

desabafar, com mil diabos!!

Uma hora depois, não havia ali um só homem adorme­

cido: as cabeças hirsutas dos pescadores, algumas osten­

tando grandes barbas selvagens, saíam dos beliches, api­

nhadas umas sobre as outras, como bagos dum gigantesco

cacho, que a luz frouxa do local tornava sonâmbulo e o

brilho fulgurante dos olhos perigoso:

- «É o tercêro-maquenista, digo-to eu! P 'Jas Cinco


B E R II A R DO S A IIT A R E II O 52

Chagas de Cristo, tu já alTeparaste bem nele? Anda p'r 'ali


consumido, mais pisado qu'o grão no moinho.. . É ele!

O lobisome é ele!"
Todos se vestiram, rapidamente. O rumor, surdo e

contido, rastejava pela proa como uma bicha e a todos

largava fogo:

- «É preciso picá-lo, rapazes! Um lobisome só deixa de


fazer mal, depois de picado... "

Os homens agora já não se continham: gritavam, ben­

ziam-se, enrodilhavam-se uns com os outros, medrosos e

odientos . . .

- «Quem?... Quem quer lá ir picá-lo?.. . Enquanto ele


dorme... Quem há-de ser? . .. "

Um silêncio confuso e apavorado. Depois, sucessiva­

mente, todos os olhares caíram sobre o ajudante de má­

quinas: o mocito, a voz presa na garganta, fez com a cabe­

ça que não, recuando assustado . . .

Mas o s outros, u m a um, botaram fala, foram dando as

suas razões: Que tinha de ir ele, que não podia mesmo ser

outro, até porque ninguém conhecia melhor o camarote

do terceiro . . . Nesta altura, o rapaz já maldizia a ideia que

tivera e quase tomava a escolha da sua pobre pessoa para


53 II O S M ARE S O O FI M O O MU " O O

tal façanha, como um castigo de Deus. Mas, enfim, não

havia mais remédio: não podia escusar-se, porque os ou­


tros. . . E olhou-os bem, ansiosamente. Um arrepio fê-lo es­
tremeceI' dos pés à cabeça: à sua volta ia-se apertando,
cada vez mais, um círculo de olhos implacáveis, de dentes
cerrados, de mãos contraídas. . . Não podia escolher.
Lá foi. Em silêncio, engolindo a própria respiração, os
olhos alucinados, entrou no camarote: O terceiro dormia,
agora calmamente. A luz que passava pela porta entrea­
berta, deixava-o ver, pendente do beliche, em braço nu:
ali mesmo, naquele braço é que tinha de picar! E o moço
preparava uma espécie de forquilha de arame, para tal
empresa improvisada . . . «É agora, tem que ser agora! .. E se
ele acorda, se o reconhece e logo ali o mata, ou lhe faz
encanto mau?. . . "Valha-me Nossa Senhora!.. Lembrou-se
então de que, uma vez picado, o lobisomem perderia todo
o seu poder. Por outro lado, mal lhe tocasse, ele trataria
de fugir e o outro nem sequer o veria . . .
Suspirando, o terceiro deu uma volta n a cama: O rapaz,
com o susto, tropeçou numa cadeira . . . E quedou-se assim,
encolhido, o coração a saltar-lhe pela boca: esteve quase
para gritar. Lá se conteve. Olhou: o terceiro dormia ain­
da, o braço outra vez de fora. . .
B E R II A R D O S A II T A R E ti O 54

Pronto, tinha que ser, c'um raio! Agora, ou nunca! Es­

tendeu a forquilha para medir a distância, verificou que a

porta do camarote se mantinha aberta . . . Por segundos, fe­

chou os olhos: «Ai, Senhor dos Mareantes! .. Cerrou os den­

tes com força, retesou os músculos, e, cego, atirou-se com

a forquilha sobre o braço do terceiro!

Depois, como possesso, fugiu: ofegante, a cara suja

de ranho e de saliva, a tropeçar em tudo quanto encon­

trava . . .

Os outros esperavam-no:

- "Picaste-o 7. . ...

- "Piquei-o. .. ai, piquei-o todo!»

E o rapaz, chorando alto, atirou-se para cima dos beli­

ches, logo cobrindo a cabeça com as mantas.

Ainda mal acordado, o terceiro-maquinista examinou

o ligeiro arranhão que tinha no braço: fez um gesto de

surpresa. . . ?

Depois, ao ver o arame caído no chão, sorriu com bo­

nomia e, voltando-se para o outro lado, adormeceu de

novo: brincadeira do segundo, ou do piloto. . .


55 1105 M A R E S 00 F I M 0 0 M U tl D O

o mais estranho é que, logo no dia seguinte, a sorte

da pesca mudou: E, com a abundância do peixe, voltou a

claridade ao riso. Coincidência? Vão lá dizer isso aos ho­

mens do convés! . . . Não acreditam, é claro. E eu também

não.
A6 mulhere6 d06 «mai6 rijo6
navegadore6 do mundo,,'

o ti'Fausto tem quatro filhos: três rapazes e uma rapariga.

Os moços já andam ao bacalhau nos navios de linha: um

deles no Ilhavense, o outro no Creoula, o terceiro no Se­

nhora da Vida. Quanto à pequena, já em idade casadoira,


essa fica na Fuzeta com a mãe, a ti'Deolinda.

No coração do velho, um grande desgosto: que os fi­

lhos tenham escolhido também a vida do mar! Bem basta-

' Alan Williers.


B E R II A R O O S A II T A R E II O 56

va O que ele, Fausto, tinha passado em quarenta anos de

Terra Nova e Gronelândia . . . Bem bastava! Mas enfim, é o

destino da gente.

- «Graças a Deus qu'os mês rapazes são bons pescado­


res: primêras linhas, todos três! Melhores qu'ê nunca fui,
bonda a verdade. . . E grandes, ele é cada um!, muito maio­
res d'alturas qu'a mim, sô dotôr. . . »

E logo juntava apreensivo:

- «Mas, mil anos qu'ê vivesse, sempre m'hei-de alem­


brar do mê pai, que Deus haja, qu'ê vir cair ó mar e lá fi­
car pra sempre! O mê pobre pai, sô dotôr!! Andávamos os
dois no mesmo navio... Eu era atão moço. . . Foi aqui, na
Terra Nova. . . Ná, nunca mais posso esquecer-me!»
No coração do ti'Fausto, este desgosto; e uma grande

inquietação: a filha.

Sente-se velho, a mulher cada vez mais acabada e a

rapariga ainda em casa, solteira: Terá que casá-Ia bem,

para que fique amparada, senhora do seu próprio lar. Mas

para tal - é o costume da Fuzeta - o ti'Fausto precisa de

juntar dinheiro que chegue para lhe comprar o enxoval e

uma casita também: Será capaz, terá ele ainda forças para

isso?
51 ti O S M A R E S D O F I M 0 0 M U tl O O

É certo que a ti'Deolinda - um cavaco, sempre roída


de moléstias, coitada! - e a rapariga, lá na terra, sempre

vão ajudando: As mulheres da Fuzeta não ficam ociosas,


enquanto os homens se arriscam ao mar, não senhor! To­
das trabalham: nas fábricas de peixe que há em Olhão, ou
preparando o biqueirão pescado nas costas do Norte de
África. . . seja no que for. Mas, pensando bem, que vale o

ganho de duas mulheres, uma delas já com os pés para a


cova? Além disso, sempre havia as despesas da casas, do
dia-a-dia. . .
Enfim, vidas!
Os filhos não lhe davam já cuidados: casados e bem
entregues. Pudesse ele dizer o mesmo da «piquena» !
lá jeitozinha era ela, benza-a Deus! Mas até isto, esta
mesma formosura, é um perigo: Ele, Fausto, não é cego,
bem via os olhos dos mais pescadores, quando a filha vi­
nha com a mãe ao bota-fora do navio, na largada para a
Terra Nova . . .
- "Cum mil raios, que s'os olhares dos homes novos
quêmassem, a rapariga ficava-me fêta em tOTl'esmos!"

Nas Gafanhas da Nazaré e da Encarnação, na d'Aquém,


na do Carmo, na Vagueira . .. em todas as Gafanhas de Í 1ha-
B E R II A R O O S A II T A R E II O lO

vo, as mulheres amanham a terra, durante o tempo (às ve­

zes, dez meses por ano!) em que os homens pescam o

bacalhau nos mares distantes da Terra Nova, da Gronelân­

cia, da costa do Labrador. Elas cavam, semeiam, ceifam e

colhem: duramente, com sanha viril. E assim se bastam e

aos filhos. Quando o marido vier da campanha, encontra­

rá a casa cheia como um ovo; e branquinha, sem sombra

de dívida: Então, com a ajuda de Deus, ele poderá com­

prar mais um pedaço de terra.

É assim com o Ribau, com o Chibante . . . com muitos


outros. Com o Sarabando, também gafanhão e dos sete

costados, não será bem assim: muitos filhos e todos pe­

quenos ainda. Mas já alguém o viu triste, ao nosso Sara­

bando? Eu cá, nunca. Pobrete, mas alegrete.

o Adolfo Malhão é um homem alto e moreno (verde­

-negro, como diz o Félix), de longos cabelos e grandes

barbas pretas de azeviche. Perfil bíblico, figura do testa­

mento antigo. Trinta e cinco anos, uns olhos escuros de

iluminado, um sorriso lunar e doce. É de Caminha: Con­

trabandista, pois claro.


11 O S MAR E S O O F I M O O M U II O O

- "OS guardas-fiscais lia brincam, só doutor: às vezes,

atiram mesmo! Têm por lá ficado muitos, os melhores, os


mais novos. . . Quando as barcas voltam sozinhas, das ban­
das de Espanha, I'io a fora, mal vai a coisa: Tomara eu no­
tas de conto, como d'homes tenho encontrado assim,
mortos e já entoiriçados, no fundo das embarcações! To­
mara eu . . . Ná, só doutor, aquilo na é vida pra home que
tenha a família às costas. Por isso é qu'eu vim pró baca­
lhau: corre a gente menos risco. Eu tenho uma filha. . . »

Pois tem; o Malhão tem uma filhita já com onze anos,

perfeitinha de corpo e de feições, esperta, compreenden­

do tudo muito bem, mas. . . que não fala: meningite, com a

idade de meses.

Acontece todos os anos: na época em que o pai costu­

ma voltar da viagem (e ela sabe muito bem qual é!), não

se passa um só dia sem que a menina muda, vestida a rou­

pita domingueira, deixe de ir esperá-lo à estação: com os

olhos ansiosos muito abertos, trémulas de excitação as

pernitas magras, a criança corre de carruagem para car­

ruagem . . . até que, num certo comboio, ele enfim chega!

Então . . .

- «Ah , só doutor, a piquena parece um cãozinho, aos


B E R ti A R D O S A II T A R E II O /2

saltos, em redor de mim! Tão perfeitinha, a'nha rica filha,


tão ladina, mas. . . na fala. Na tem cura. É um dor d'alma,
um dor d'alma. . . Mas eu inda gosto mais dela assim, é pra
ela só qu'eu venho ó mar!. . . »

O Cristóvão Robalo Moço é nazareno. Há bocado mos­


trou-me o retrato, em ponto grande, das duas filhas: Qua­

se mulherezinhas (apesar do Cristóvão ter só trinta anos!),


vestidas a rigor (sete saias, à moda da Nazaré), as moças
ostentam, no pescoço e nas orelhas, um carregamento de

oiro . ..
Com duas filhas assim, daqui a pouco casado iras, o
Cristóvão não se pode descuidar. E a mulher, lá em terra,
vai ajudando, está bem de ver: Vende peixe, pois então!
Como as do Félix, do Formiga, do Chita, dos primos Mur­
raças . . . Que há-de fazer a mulher dum pescador, senão
vender o pescado? Na Nazaré, é assim.
E, na arca grande do Cristóvão, as saias, as blusas
multicolores, as arrecadas e os cordões, os lençóis borda­
dos, cada vez ocupam um espaço maior. . .

- «Que essa mardita estique tanto o pernil, tanto. . .


que toque com os pés n o fundo do mar e com a cabeça na
Lua!»
II O S IA A R E S O O F I IA O O IA U II O O

- "Que, nem de noite, nem de dia, o seu descanso se­


ja maior qu'o das águas do mar!"
- «Que se vire em veneno, o leite que nos seus peitos
mamarem os filhos, nela feitos por outros homens!"
Adúltera? Mulher de pescador? É caso raro, falado e
banido por essa costa além, desde a Fuzeta algarvia até à
Nazaré, desde a Figueira à Póvoa. Mulher adúltera, na
borda de água?!
- "Cal o castigo pra uma mulher que, enqu 'anto o ma­
rido labuta no mar, meses e meses, pra ganhar o sustento
dela e o dos filhos, se vai deitar com outro calquer? Di­
gam, que merece ela, ah homes? Que s'há-de fazer a uma
aluada destas, uma cadela qu'assim bota nódoa suja no
nome limpo de pescador honrado?! Nem a morte, homes,
nem a morte! Mais pisadinha seja ela qu'areia na praia,
mais batida e rebatida qu'as ondas na rocha!"

o nosso capitão Viana recebeu hoje uma boa-nova: o

filho passou para o segundo ano do liceu.


Está muito contente, é claro.
A propósito confidenciou-me que, todo somado o tem­
po de terra, talvez ainda não tivesse vivido quatro meses
com o filho: e o rapazinho, agora, já tem onze anos!
B E R I/ A R D O S A I/ T A R E I/ O 14

Se ele no próprio dia em que se casou (às dez horas

da manhã). logo teve que sair (às quatro da tarde) para o

mar! Ai. a vida dum pescador . . .


Assim. o s pequenos foram crescendo. ele envelhecen­
do. e a companheira de sempre também: Separando-o da
mulher. das crianças. o mar.
Isto. uma vida inteira. Foi «ela» quem educou os filhos
de ambos. quem lhes escolheu caminhos de vida. quem
lhes serviu de exemplo impecável. Ela. sozinha: humilde­
mente. em silêncio. como coisa natural e simples.

o António Cruz enviou. há dias. para os filhos. o se­

guinte telegrama:
«Filhinhos vão vesitar senhora mãe. Tragos sempre
dentro meu coração. Escrevão-me. Não fação coisas más.
por mor de Deus.»
A mulher do Cruz. a «senhora mãe». está. desde há
dois meses. internada no manicómio. À testa da casa. cui­
dando dos quatro ou cinco pequenitos. a filha mais velha:
velha de treze anos.
O Cruz vive crucificado. De quando em quando. deixa­
-se cair. doente de depressão. Depois. lá vem uma carta
da filha e ele recobra alento.
15 II O S M A R E S D O F I M D O M U N D O

É um homem atlético, enorme e brutal de aspecto,


quase antipático.

Pois é este bruto quem, ternamente, pede aos «filhi­

nhos.. para irem ver a «senhora mãe»: o Cruz anda consu­

mido de angústia, doente de saudades e de apreensão.

A carta que, há bocado, ele me veio mostrar, era da

filha mais velha:

«Não tenha cuidados na gente meu paizinho. Eu já

sou uma mulher. Trago os manos bem comidos e a casa


limpa . . . ..
E o Cruz, enorme e desajeitado, a chorar como uma

criança, apenas podia dizer:

- «Coitadinha!. . . ai, coitadinha da'nha filha!. . ...

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