50 Anos de Política Habitacional No Brasil 1964-2014

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Aos Leitores

A Revista de Administração Municipal – RAM agora é digital.


Editado pelo IBAM há mais de 50 anos, o periódico passou por várias transformações em
razão de mudanças nas demandas e práticas da gestão pública e nos recursos tecnológicos à
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Permaneceu, sempre, o objetivo de oferecer aos leitores conteúdos técnicos, ancorados
na experiência e na reflexão de quem vive a Administração Pública como missão, sejam
profissionais vinculados ao Instituto ou especialistas convidados a colaborar no processo de
criação de conhecimento e sistematização de informações de interesse.
Ocorre agora nova apresentação, em modo digital, haja vista o elevado uso desse meio
pelos leitores em geral, com o que se pretende possibilitar maior interatividade entre seu
conteúdo e pessoas ou grupo de pessoas (onde cada um pode tornar-se estímulo do outro) a
partir da relação de leitor e autor.
Os temas, portanto, permanecem como antes, ou seja, procura-se manter conteúdo
que estude, sob diferentes abordagens, as questões que fazem da Administração Pública,
especialmente a municipal, instrumento valioso para promover a cidadania, trabalhando por
direitos e qualidade de vida.
A RAM pretende contribuir para a análise de fatos, o desenvolvimento de teorias, a
proposição de alternativas para a solução de problemas e a oferta de fontes de consulta
para todos os que atuam na área governamental e com ela interagem sob as mais diferentes
denominações, como agentes públicos, estudiosos, colaboradores e interessados pelos temas
em geral.
Os números da Revista, a partir de agora, são de livre e ilimitado acesso, bastando ao leitor
acessá-la na página do Instituto, podendo, inclusive, salvar o arquivo ou imprimi-lo.
As páginas estão abertas a novos colaboradores e as normas para publicação podem ser
obtidas por meio de mensagem para revista@ibam.org.br.
Este número inaugural traz assuntos atuais, tratados por autores que possuem vasta
experiência nas respectivas áreas, pelo que se pode dizer que a leitura será enriquecedora.
Pode-se ler sobre duas políticas nacionais: a habitacional e a assistencial. O material é
importante para quem deseja apreciar os movimentos de centralização/descentralização da
gestão governamental no país. Em seguida, as alianças com o terceiro setor são discutidas com
o intuito de trazer à luz a dimensão colaborativa da implementação das políticas públicas,
enquanto outro trabalho, sobre a participação da mulher na política, enseja o debate sobre
as relações de gênero e a disparidade da presença entre homens e mulheres nas esferas de
poder. Sempre – e ainda mais em um contexto de restrições financeiras – a gestão de bens é
de grande importância para atuar sobre diminuição de custos; daí a relevância do artigo que
fecha o número da revista. Pareceres jurídicos estão presentes nesta edição e serão constantes
nas que se seguirão.
Boa leitura!

2 Revista de Administração Municipal – RAM


Índice

4 50 anos de Política Habitacional no Brasil (1964 a 2014): passos e descompassos de


uma trajetória
Eliana Santos Junqueira de Andrade
22 Conselhos de Assistência Social: reflexões sobre o trabalho do assistente social no
contexto do Sistema Único de Assistência Social – SUAS
Hérculis Pereira Tolêdo
31 Mulher e Participação Política: a inserção desigual
Angela Fontes
42 Alianças com o Terceiro Setor. Ideologia, instrumentação e ação municipal
Gil Soares Junior
59 Gestão de Bens Integrantes do Ativo Municipal
Heraldo da Costa Reis
Pareceres
70 Competência Legislativa Municipal. Controle de zoonoses e “eutanásia animal”
72 Política Urbana. APPs urbanas. Legislação aplicável
75 Realização de exames pertinentes a doenças sexualmente transmissíveis em menores
de 18 anos desacompanhados dos responsáveis pelo Sistema Único de Saúde Municipal

Expediente
A Revista de Administração Municipal é uma Os artigos refletem a opinião de seus autores.
publicação on-line do Instituto Brasileiro de
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Administração Municipal – IBAM, inscrita no Catálogo
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Revista de Administração Municipal – RAM 3


50 anos de Política Habitacional
no Brasil (1964 a 2014): passos e
descompassos de uma trajetória
Eliana Santos Junqueira de Andrade*

Resumo: Análise das políticas habitacionais, do BNH ao Ministério das Cidades, procurando
identificar: os programas no contexto político/econômico; a influência do mercado imobiliário;
a participação dos governos locais e movimentos sociais; os avanços na legislação e os recuos
conceituais. A análise é subdivida em três períodos: de 1964 a 1986, refere-se às políticas do BNH;
de 1997 a 2002, reforça a descontinuidade administrativa, a falta de recursos e a importância do
Estatuto da Cidade para o setor urbano/habitacional; e de 2003 a 2014, apresenta a reorganização
do setor e a implantação do programa Minha Casa Minha Vida.

Palavras-chave: política habitacional; habitação social; questão urbano/habitacional

Este trabalho procura analisar as políticas e iniciativas habitacionais isoladas, ao mesmo


habitacionais formuladas pelos vários governos tempo em que a Constituição Federal (1988) e o
nacionais, desde a fundação do Banco Nacional Estatuto da Cidade (2001) amparavam as bases
da Habitação (BNH), em 1964, até a gestão legais para a reorganização do sistema urbano/
do Ministério das Cidades, em 2014. Procura habitacional no país. O terceiro período (2003
identificar os programas e as linhas de crédito a 2014) corresponde à gestão do Ministério
disponibilizadas à produção habitacional no das Cidades, quando é implantada uma nova
contexto de aspectos políticos e econômicos, estrutura para o setor, para, a seguir, serem
apresentando a influência do mercado adotadas ações pragmáticas, por meio dos
imobiliário, a participação dos Estados e Programas de Aceleração do Crescimento (PAC)
Governos Locais e dos movimentos populares. e do Minha Casa Minha Vida (MCMV), onde são
Busca identificar os avanços na legislação realçadas as principais características deste
urbano/habitacional, no sentido de torná-la mais último e os impactos que a sua implantação
abrangente, assim como os “recuos conceituais” representam para as cidades.
em favor de ações consideradas “estratégicas”.
Nesse sentido, enfatiza aspectos da história que Habitação no período do BNH:
antecedeu a extinção do BNH, quando foram 1964 a 1986
feitas importantes recomendações técnicas No período que coincide com o regime
para a reformulação do sistema habitacional militar, a habitação foi priorizada pelo governo
vigente. O período analisado foi subdivido e a “casa própria” foi considerada uma de suas
em três: o primeiro refere-se às políticas principais bandeiras sociais. O governo, para
implantadas pelo BNH (1964 a 1986), quando responder à crise econômica e política que o
a política habitacional nacional foi estruturada
e valorizada. O segundo período (1997 a * Arquiteta e Urbanista, Mestre em Arquitetura e
2002) tem início com a extinção do BNH, é Urbanismo pela Universidade Federal Fluminense.
marcado por descontinuidade administrativa Consultora na área de habitação e urbanismo

4 Revista de Administração Municipal – RAM


país atravessava, procurou ao mesmo tempo meio dos programas de cooperativas, sindicatos
promover a geração de empregos e obter o de trabalhadores (PROSINDI) e atendia aos
apoio popular, das massas. Foi criado o Banco servidores públicos (PROHASP), nos quais se
Nacional da Habitação (BNH), órgão central incluíam as carteiras militares e os institutos
do Sistema Financeiro da Habitação (SFH) e de previdência social, e o (3) médio, voltado
de Saneamento (SFS), interligado a uma rede às famílias de rendas mais altas, que tinham os
de agentes promotores e financeiros, privados agentes financeiros do SBPE, como promotores
e estatais, com ramificações nos Estados (BNH,1981). Com o passar do tempo, os
federativos e um complexo suporte de recursos programas sociais passaram a atender famílias
financeiros, além das letras imobiliárias e a com renda cada vez mais alta e a sofrer forte
instituição da correção monetária nos contratos influência do mercado imobiliário (SOUZA,
imobiliários. Também foi instituído o Serviço 1999 apud MARICATO, 2008, p.120).
Federal de Habitação e Urbanismo (SERFHAU), A atuação do BNH atravessou diversos
para a promoção do desenvolvimento urbano. períodos. De 1964 a 1967, com a sua organização
O SFH utilizou basicamente duas fontes de e estruturação, foram criados o FGTS (1966)
recursos, voltadas quase que exclusivamente e o SBPE (1967). A seguir, de 1967 a 1971, o
para a construção de moradias, em especial atendimento habitacional foi ampliado por
de “conjuntos habitacionais”: a poupança intermédio do programa de hipotecas que tinha
compulsória dos trabalhadores assalariados os “iniciadores” como promotores, e acabaram
depositada no Fundo de Garantia por Tempo favorecendo as famílias de renda mais altas. De
de Serviço (FGTS) e a poupança voluntária da 1971 a 1979, o BNH foi reestruturado e passou
população que lastreou o Sistema Brasileiro de a atuar como banco de segunda linha, até como
Poupança e Empréstimo (SBPE). O atendimento uma maneira de se resguardar das críticas que
do BNH foi estratificado em três segmentos: (1) vinha sofrendo. Foi instituído o PlanHab, com a
o popular, voltado às famílias de rendas até três meta de zerar o déficit habitacional em dez anos,
salários mínimos, que atuava por intermédio das e o PROFILURB, para financiar lotes urbanizados
COHAB, vinculadas aos Estados, na maioria; (2) às famílias que ganhavam um e meio salários
o econômico, voltado para famílias com renda mínimos e que representavam um terço da
de três a cinco salários mínimos, que atuava por população, além do Programa de Cooperativas

Fonte: Wordpress, 2010

Foto 1
Conjunto Habitacional Distrito de Cidade Tiradentes/SP
O Distrito de Cidade Tiradentes tem 25 anos, está situado a 35 quilômetros do marco zero da Capital Paulista, a Praça
da Sé. Com uma população, de mais de 300 mil habitantes, abriga o maior complexo de conjuntos habitacionais da
América Latina, com cerca de 40 mil unidades habitacionais promovidos pela COHAB-SP e CDHU.

Revista de Administração Municipal – RAM 5


Habitacionais, voltado ao segmento econômico. Desenvolvimento Urbano (CNDU). Sem lograr
A partir de 1980, como reflexo do processo de êxito com essas iniciativas, o governo procurou
abertura política no país, foram ampliadas as suas investir no projeto de lei do desenvolvimento
formas de atuação, com a criação do PROMORAR urbano, enviado ao Congresso em 1983, mas
para urbanização de favelas, onde o BNH voltou também não conseguiu aprová-lo (ARAGÃO,
a atuar na primeira linha, o PROHEMP para os 1999, p. 211). Com crescimento desordenado
trabalhadores e o Plano de Habitação Rural das cidades, ampliou-se a verticalização dos
(VALLADARES, 1983, p. 40-43). edifícios, o mercado fundiário tornou-se
Na vigência do BNH foram produzidas cerca mais inacessível aos pobres e a construção
de 4,3 milhões de moradias, sendo 2,4 milhões de moradias para baixa renda concentrou-
para os segmentos popular e econômico e 1,9 se em conjuntos habitacionais padronizados,
milhões para o segmento médio, (MCidades, de grandes dimensões, localizados nas
2008). No entanto, apenas cerca de 30% da periferias das cidades, onde a terra era mais
produção atendeu de fato às populações de barata e desprovida de serviços básicos de
renda mais baixa (ROLNIK; NAKANO, 2009. infraestrutura, transportes e equipamentos,
AZEVEDO, 2007, p.7), uma vez que parte da deixando o legado de grandes vazios nas
habitação considerada de “interesse social” cidades. (MARICATO, 2008, p.20,21; ROLNIK;
incluía programas que NAKANO, 2009).
beneficiaram mais a Com crescimento desordenado Fatores de natureza
classe média (BOLAFFI, econômica, a partir de
das cidades, ampliou-se a
1980, p.168). Ressalte- 1973, como o aumento
se que apenas 22% das verticalização dos edifícios, o da inflação estimulada
moradias produzidas, mercado fundiário tornou-se pela crise internacional
nessa época, foram
mais inacessível aos pobres e a do petróleo (SINGER,
realizadas pelos progra- 1977, p.157), foram
mas oficiais (CARDOSO; construção de moradias para baixa agravados nos anos
LEAL, 2009), enquanto renda concentrou-se em conjuntos 1980 e abalaram
as restantes foram diretamente o SFH.
realizadas de forma au-
habitacionais padronizados, de Deixou de funcionar o
tônoma pela população. grandes dimensões, localizados seu tripé de sustentação;
No âmbito das nas periferias das cidades baseado na arrecadação
políticas urbanas, do FGTS, na capacidade
verifica-se que os instrumentos instituídos de poupança e no retorno dos financiamentos
em apoio ao seu desenvolvimento foram (ANDRADE; SILVA, 2010. MARICATO, 2008), A
descontínuos e não conseguiram minimizar os compressão salarial imposta aos trabalhadores
impactos da produção habitacional maciça, (1983) quebrou a lógica da correção monetária
especialmente nas regiões metropolitanas, que dava equilíbrio às contas do BNH (ARAGÃO,
onde ocorreu majoritariamente de forma 1999, p.284) e seus reflexos repercutiram na
espontânea (SANTOS, 1980, p. 21). O SERFHAU, redução dos investimentos, no aumento da
ao longo de sua trajetória, foi sendo esvaziado inadimplência, na falta de liquidez dos agentes
de suas funções pelo BNH, culminando com e na redução da produção habitacional. Ao
sua extinção em 1973 (ARAGÃO, 1999, p. 208). mesmo tempo, a credibilidade do sistema
O projeto CURA, lançado em 1972 pelo BNH, era questionada, devido à malversação e
procurou ampliar sua atuação no setor. Em aos escândalos na aplicação de recursos. Os
1974, com o objetivo do governo de exercer movimentos sociais e da luta pela moradia
maior controle sobre a ocupação do solo, foi ganhavam visibilidade (ANDRADE; SILVA,
instituída a Comissão Nacional de Regiões 2010. ROLNIK, 2008) e uniam-se ao movimento
Metropolitanas e Políticas Urbanas (CNPU), político em favor das “diretas já”. Além disso,
substituída em 1979 pelo Conselho Nacional de técnicos e acadêmicos criticavam as políticas

6 Revista de Administração Municipal – RAM


de governo, excessivamente centralizadora, estudos técnicos, somados à necessidade de
burocrática, de caráter clientelista, sem democratização das políticas públicas (SILVA,
participação social e que repassava aos 2005, p.16. AZEVEDO, 2007. SANTOS, 1995,
usuários os custos de infraestrutura, dentre p.36), sofresse uma profunda reestruturação
outras. Os estudiosos no assunto estavam (ANDRADE; SILVA, 2010. MCIDADES, 2008).
preocupados com a transformação da ênfase Mas, o Governo optou por simplesmente sua
inicial de política social em política econômica extinção e “o debate sobre o BNH foi abortado,
de estímulo ao capital privado, que se afastou exatamente quando parecia que as iniciativas
de sua clientela e não conseguia responder pelo sociais, abandonadas desde 1964, poderiam ser
déficit habitacional (VALLADARES, 1983, p.43). retomadas pelo governo conhecido por “Nova
Em 1986, com o fim do regime militar, República” (MARICATO, 2008, p.99). Embora os
instalou-se a Nova República, tendo por encaminhamentos sugeridos pelos técnicos na
presidente José Sarney. Foi, então, instituído época não tivessem a continuidade imaginada,
um Grupo de Trabalho, visando à reformulação os avanços referentes aos direitos sociais foram
do SFH (GTR-SFH)1, formado por técnicos percebidos já em 1988 na Constituição Federal
qualificados na área urbano/habitacional. E, e se firmaram nas constituições estaduais, leis
em seguimento, para ampliar essa discussão, orgânicas municipais, nos planos diretores
o Ministério do Desenvolvimento Urbano e (SILVA, 2005, p.38), no Estatuto da Cidade e na
Meio Ambiente (MDU) solicitou ao Instituto política habitacional a partir dos anos 1990.
de Arquitetos do Brasil (IAB) a organização de Apesar das críticas ao BNH e ao sistema
outro debate, em todas as capitais do país. Esses por ele preconizado, com o seu fim deixou de
debates culminaram com a elaboração de dois existir uma política nacional estruturada e o
relatórios, que além de breves nos diagnósticos acesso à moradia tornou-se ainda mais difícil
traçados, apresentavam fortes críticas à política para a população mais pobre (MARICATO,
do BNH, além de avançarem sobre propostas 2008, p.85). Ao mesmo tempo, a centralização
progressistas. Os documentos resgatavam os imprimida na condução da política habitacional
ideais advindos do movimento pela reforma durante o regime militar desobrigou os estados
urbana, anterior a 1964, e suas proposições e municípios a formularem suas próprias
consideravam o conceito de moradia como políticas, o que tornou ainda mais difícil a
um direito social inserido no direito à cidade. prática de políticas locais no pós-BNH. Somente
Indicavam outras formas de acesso à moradia no final dos anos 1980 alguns governos
que não apenas através da propriedade privada, estaduais e municipais procuraram formular
da casa nova e pronta. Previam a concessão de políticas autônomas (MARICATO,1994), como
subsídios e o crédito direto aos beneficiários. veremos a seguir.
Sugeriam mecanismos facilitadores de acesso
ao solo urbano ocioso, entendendo a habitação Habitação no período pós-BNH:
como um processo e não como um produto. 1987 a 2002
Indicavam a necessidade de articulação do Com a extinção do BNH, a produção
setor urbano e habitacional às demais políticas habitacional ficou ainda mais limitada2. A Caixa
setoriais. Quanto à organização institucional, Econômica Federal, com forte viés comercial,
apregoavam princípios de descentralização e assumiu parcialmente suas atribuições e a
participação na discussão das políticas urbanas regulamentação do crédito habitacional passou
e habitacionais, com a criação de conselhos ao Conselho Monetário Nacional (CMN),
e outros mecanismos de envolvimento social como instrumento de política monetária. Da
(ANDRADE; SILVA, 2010). extinção do BNH até a criação do Ministério das
Esperava-se que o SFH/BNH, com base em Cidades (2003), a política habitacional esteve

1
Instituído pelo Decreto da Presidência da República nº. 91.531 de 15-8-1985.
2
Resolução do Conselho Monetário Nacional n 1464, de 26 de fevereiro de 1988, que restringia o acesso ao crédito a
Estados e Municípios.

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subordinada a diversos ministérios e as ações Plano de Ação Imediata para Habitação (PAIH)
desenvolvidas foram pontuais, descontínuas, como uma ação emergencial, para em 180 dias
muito aquém das necessidades (MCIDADES, promover 245 mil habitações (AZEVEDO, 2007,
2008). p.19), direcionadas a famílias com renda de até
Em contrapartida, a nova Constituição 5 salários mínimos. Eram oferecidas unidades
Federal de 1988 incorporou os conceitos da do tipo embrião,em lotes urbanizados, com
emenda constitucional de iniciativa popular ou sem material de construção para sua
da reforma urbana e consolidou novas práticas ampliação. Também, com recursos do FGTS, foi
públicas no caminho da democratização e da lançado o Programa Empresário Popular (PEP),
valorização das políticas sociais (CARDOSO, para as faixas de renda média, diretamente aos
2007), cujos desdobramentos para a política construtores. A produção habitacional do FGTS
urbana se materializaram no Estatuto da Cidade voltou a crescer. No entanto, foi intensificada a
(2001). tendência de privatização dos investimentos na
Diante da fragilidade das políticas federais área, verificada também no governo anterior,
e com o advento da uma vez que os agentes
Constituição Federal, os públicos receberam
Municípios mais preparados Da extinção do BNH até apenas 21% das verbas e o
para alavancar recursos3 a criação do Ministério restante foi direcionado ao
conseguiram desenvolver das Cidades (2003), a mercado (BOTELHO, 2007,
políticas próprias, houve p.122). Ao mesmo tempo,
o que se pode dizer uma política habitacional esteve a “utilização perdulária
municipalização “por subordinada a diversos dos recursos”, marcada por
ausência” (Cardoso; Ribei- ministérios e as ações “suspeitas de corrupção”,
ro,2000). Desenvolveram- acabou por conduzir o
se, em alguns municípios,
desenvolvidas foram pontuais, sistema a uma “quase”
programas de urbanização descontínuas, muito aquém das falência em 1993, com
de favela, regularização de necessidades liberações de contratos
loteamentos, construção acima das possibilidades
de moradias por mutirão ou autogestão, (CARDOSO; LEAL, 2009), levando à paralisação
dentre outros. Ao mesmo tempo, o elevado na aplicação dos recursos do FGTS de 1991 a
endividamento das COHAB, entre alguns fatores, 1995 (MCIDADES, 2008).
impediu que muitos estados promovessem Com a destituição do governo Collor,
suas políticas habitacionais (ANDRADE; SILVA, assumiu o presidente Itamar Franco (1992
2010). Para compensar essas dificuldades o a 1994) que realizou mudanças importantes
governo, à margem do SFH, lançou o Programa na política habitacional para a população de
Nacional de Mutirões Habitacionais, com baixa renda. Instituiu o financiamento direto à
recursos do Orçamento Geral da União, para pessoa física e ao produtor e a participação de
atender as famílias mais pobres. Entretanto, das conselhos comunitários locais. Foram lançados
unidades contratadas, mais de um terço talvez dois programas habitacionais, desvinculados
não tenha sido construído devido aos efeitos do SFH: o Habitar-Brasil em cidades de porte
da inflação, baixo valor unitário de empréstimo médio e grandes, e o Morar-Município nos
e falta de transparência na utilização dos municípios menores, que juntos produziram
recursos. Já os programas da CAIXA acabaram cerca de 54 mil habitações, com recursos da
sendo direcionados ao setor privado (AZEVEDO, União e contrapartida dos governos locais
2007, p.18). (AZEVEDO, 2007, p.20; BOTELHO, 2007, p.122),
No início do governo Collor de Mello (1990 por meio de urbanização de favelas, produção
a 1992), com recursos do FGTS foi lançado o de lotes urbanizados e melhorias habitacionais.

3
Na Cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, foram desenvolvidos, a partir de 1997, os programas Favela Bairro, de
Regularização de Loteamentos e Novas Alternativas, em imóveis antigos, localizados em áreas centrais da Cidade.

8 Revista de Administração Municipal – RAM


Apesar dos poucos recursos disponibilizados, estados dependia de recursos federais, mas
esses programas conseguiram influenciar ao mesmo tempo, acesso aos recursos estava
a política habitacional no governo seguinte limitado, devido ao contingenciamento imposto
(BOTELHO, 2007, p.122). Nesta gestão foram pelo plano econômico (AZEVEDO, 2007, p. 28-
também concluídas as obras de 240 mil casas 30 BACHA,1997, p.193).
iniciadas no governo anterior. No governo, a seguir, o presidente Fernando
Quanto às tentativas de fortalecimento Henrique Cardoso (1995 a 1998) impôs medidas
da política urbana/habitacional, no período, adicionais de aperto monetário, com restrições
motivados pela constituição de 1988, ocorrerem ao crédito e desindexação de salários (BACHA,
intensos debates com relação ao direito à 1997). No que se refere à política habitacional
moradia e sobre o papel dos cidadãos na foram lançados, com recursos do FGTS, os
gestão das cidades. Em 1992 foram propostas programas Pró-Moradia e Pró-Saneamento que
mudanças ao Sistema Nacional de Habitação previam empréstimos aos estados e municípios.
que não conseguiu aprovação no Congresso. O Esses programas partiam de novos conceitos
Fórum Nacional de Habitação (1992) sugeriu a sobre a moradia, voltavam-se à urbanização,
criação do Conselho Nacional de Habitação, no ao saneamento e melhoria das moradias em
sentido de envolver a sociedade civil e o setor favelas, buscavam a integração entre a política
público nos rumos da política habitacional habitacional, urbana e de saneamento ambiental
(AZEVEDO, 2007, p.23) e buscou regulamentar (AZEVEDO, 2007, p.23) e pressupunham a
o artigo 182 da Constituição Federal de 1988, participação de conselhos no apoio à gestão.
que somente foi aprovado em 2001, com o Mas, o contingenciamento aos recursos fez
Estatuto da Cidade (MARICATO, 2008, p.100). com que esses programas não atingissem
Nessa ocasião, para estabilização da seus objetivos, ignorando a quem, de fato, os
economia e da moeda nacional e buscando empréstimos beneficiariam (BOTELHO, 2007,
adequar os salários ao poder de compra, foi p.123.MARICATO,2008, p.10. MCIDADES, 2008)
lançado o Plano Real, em 1994. A maioria dos e a produção ficou abaixo do planejado.

Fonte: IBAM, 2007

Foto 2
Conjunto do Pró-Moradia – Conjunto Jefferson da Silva - 200 casas em Mogi das Cruzes. São Paulo

Revista de Administração Municipal – RAM 9


Foi estabelecido, ainda, que os recursos do em 2008, que os municípios beneficiados
FGTS financiariam diretamente às famílias, tornaram-se mais capacitados para a gestão
invertendo a lógica então vigente, o que foi habitacional. No entanto, mesmo sendo a falta
considerado a inovação mais importante do de capacitação municipal para a gestão uma das
período. Nesse sentido, foram lançados os grandes fragilidades para acesso aos recursos
programas: Cred-Casa e Cred-Mac, para aquisição públicos (CARDOSO; RIBEIRO, 2000, p. 23).
de unidades habitacionais ou materiais de Vale registrar que não se costumam valorizar,
construção, cujos recursos, nesse caso, podiam nas políticas públicas, ações sistêmicas nessa
ser utilizados, de forma inédita, em áreas direção.
não regularizadas nas cidades. E, ao mercado Nesse governo foi, também, introduzida
privado, com recursos do FGTS e do SBPE, foram à modalidade do “leasing” habitacional, de
oferecidos os Programas Carta de Crédito e de forma pioneira, em operações entre a Caixa e
Apoio à Produção, para construção ou aquisição os empresários, com participação ou não de
de imóveis (BOTELHO, 2007, p.123). Essas linhas estados e municípios na seleção das famílias com
de crédito, embora consideradas acertadas, não renda até 4 ou 6 salários mínimos, dependendo
conseguiram atender as famílias de menor renda, da região do país. O Programa utilizava recursos
para as quais não existe um mercado formal onerosos e não onerosos depositados no
disponível, e estas receberam apenas 9,9% dos Fundo de Arrendamento Residencial (FAR). A
recursos, enquanto, as famílias de renda mais utilização de subsídios viabilizava, em tese, o
alta receberam 200% do previsto (CARDOSO; arrendamento a um baixo valor mensal e, ao
LEAL, 2009). Ressalte-se que o programa Carta mesmo tempo, o sistema de “leasing” facilitaria a
de Crédito mantém-se em vigência na CAIXA até retomada dos imóveis em caso de inadimplência
os dias atuais. (AZEVEDO, 2007, p.25). No entanto, a exigência
Nessa época, foi promovida uma reformulação de comprovação de renda inviabilizou na prática
estrutural no SFH, com a segregação das contas o atendimento às famílias com renda inferior
do FGTS na CAIXA, quando foi instituída a figura a dois salários mínimos. Esta modalidade foi
do Agente Operador na CAIXA, com a finalidade considerada “inovadora” (MCIDADES, 2008) e
de disciplinar as operações de crédito e gerir era uma das antigas reivindicações sociais que
os recursos do FGTS. Foi regulamentado constavam das sugestões para a reformulação
também o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI), do SFH/BNH.
voltado para as rendas mais altas e aos imóveis No âmbito das políticas urbanas, nessa
comerciais, para atrair investidores nacionais ocasião, discutiu-se na Conferência Mundial
e internacionais, disciplinando o setor e sobre Assentamentos Humanos – Habitat
ampliando as garantias. (AZEVEDO, 2007, p.25. II (1996) e na Agenda 21 Brasileira (2000)
CHERKEZIAN; BOLAFFI, 1998, p.127,135). o agravamento dos problemas sociais,
No segundo mandato de Fernando Henrique fruto de gestões e ações não planejadas.
Cardoso (1999 a 2002), em municípios Esses documentos conseguiram contribuir
selecionados, foi desenvolvido o Programa para fundamentação de estratégias de
Habitar Brasil (HBB) (1999), com recursos do enfrentamento de dificuldades presentes nas
Banco Interamericano de Desenvolvimento cidades, tais como: acesso a terra, déficit de
(BID) e da União. Esse programa inovou ao moradias adequadas, déficit de cobertura
privilegiar o componente de Desenvolvimento de saneamento, precariedade urbana e
Institucional (DI) e a elaboração de um Plano baixa qualidade de serviços de transporte
Estratégico (PEMAS), como condição para público, que passariam a balizar o discurso e
acesso aos recursos em ações de urbanização formulação de algumas legislações referentes
de assentamentos precários (UAS). Verificou-se às políticas públicas futuras. Nesse contexto,
no seminário de encerramento desse programa, foi aprovado o Estatuto da Cidade4 (2001),

3
Lei Federal n° 10.257 de 10 de junho de 2001.

10 Revista de Administração Municipal – RAM


significando um avanço na gestão urbano/ que se materializaram na elaboração dos planos
habitacional para o país. Foram instituídos diretores participativos5. Apesar dos avanços
vários instrumentos em apoio ao direito à nas discussões da política urbano/habitacional,
moradia, redução das desigualdades sociais, as medidas econômicas de restrição ao crédito
função social da propriedade, regularização impactaram na produção habitacional que
de áreas ocupadas, atuação planejada e continuou declinando desde a extinção do BNH,
participação social (ANDRADE; SILVA, 2010). conforme demonstra o quadro abaixo.

Quadro 1
Financiamentos concedidos pelo FGTS e SBPE, de 1974 a 2003

Financiamentos habitacionais com recursos do FGTS e do SBPE, no período de 1974 a 2003


Período Média de unidades financiadas por ano
1974/1983 129.000
1984/1993 76.000
1994/2003 40.000

Fonte: Elaboração própria, 2011. Com base em Cardoso e Leal, 2009

A reestruturação da Política Habitação (2004) e estruturou o Sistema


Nacional de Habitação (SNH) em dois
Habitacional no Ministério das Cidades segmentos: o Sistema Nacional de Habitação de
(2003 a 2006) Mercado (SNHM), similar ao de mercado médio
No primeiro mandato do Presidente Lula do BNH; e o Sistema Nacional de Habitação
a política urbano/habitacional foi totalmente de Interesse Social (SNHIS), voltado para
reestruturada, tendo sido criado o Ministério populações de baixa renda, prevendo subsídios
das Cidades (MCidades), para ocupar o vazio diretos e indiretos, entendendo as necessidades
um institucional existente há duas décadas. habitacionais tanto no que se refere à produção
O MCidades, contando com os instrumentos de novas moradias quanto à oferta de condições
do Estatuto da Cidade, conseguiu estabelecer de habitabilidade aos domicílios inadequados
um ambiente institucional e legal propício às (AZEVEDO, 2007, p. 11,12).
reformas reclamadas pela sociedade. (SANTOS Em 2005, foi aprovado o Sistema Nacional
JR., 2004; MARICATO, 2006 IN ROLNIK, 2009). de Habitação de Interesse Social6 (SNHIS),
À estrutura do MCidades integraram-se às junto como Fundo Nacional de Habitação de
políticas urbanas, habitacionais, de transporte Interesse Social (FNHIS) e o Conselho Gestor
e saneamento e foram ampliados os debates do FNHIS (CGFNHIS), oriundo de um projeto
em torno destes temas. Foi realizada a primeira lei de iniciativa popular que permaneceu no
Conferência Nacional das Cidades (2003), congresso por mais de treze anos e contou
estimulada à formação dos conselhos locais e a com mais de um milhão de assinaturas. A lei
elaboração dos Planos Diretores Participativos do SNHIS avançava sobre “pontos centrais
(2004) que motivaram novas discussões sobre da agenda de reforma urbana – como direito
as questões urbanas no nível local. à moradia” (ROLNIK, 2009, p.6). O Sistema
Dentre as medidas adotadas, o governo pressupunha o planejamento participativo das
lançou o documento da Política Nacional de ações, incluindo a construção de moradias e
5
Obrigatório para os Municípios com mais de 20.000 habitantes.
6
Lei Federal nº11.124, de 16/6/2005, regulamentado pelo Decreto nº 5.796 de 6/06/2006 e Resolução do Conselho
Gestor FNHIS de 24/08/06.

Revista de Administração Municipal – RAM 11


a urbanização de assentamentos precários, Os programas PAC e MCMV
e contava com subsídios aos financiamentos.
(2007 A 2014)
Foram garantidos recursos da ordem de um
bilhão de reais ao ano, “a fundo perdido”, o que Na segunda gestão do presidente Lula, ao
foi considerado por técnicos que atuavam na mesmo tempo em que era elaborado o Plano
área uma grande conquista social. A mobilização Nacional de Habitação de Interesse Social
dos governos, estaduais e municipais, e da (PlanHab), o governo passou a investir em
sociedade, para a elaboração dos Planos Locais projetos estratégicos e na produção habitacional
de Habitação e para a confecção dos Planos maciça.
Diretores Participativos, animou por algum No que se refere ao planejamento, o PlanHab
tempo os debates sobre as questões urbano/ (2008) considerava que as necessidades
habitacionais no país. habitacionais no país deveriam ser enfrentadas
É importante registrar que, antes mesmo pela sociedade por meio de diferentes processos
do advento do SNHIS, o FGTS introduziu um de produção, com a conjugação de subsídios e
modelo de “descontos” em financiamentos para financiamentos de forma adequada ao perfil da
as famílias de renda até três salários mínimos, demanda, respeitadas as diversidades locais.
pelos Programas Carta de Crédito Individual Orientava para que houvesse articulação entre
e Associativa (2004), com a interveniência de a questão fundiária e urbana, estruturação da
estados e municípios. O modelo de “descontos” cadeia produtiva da construção civil, maior
alcançou cerca de R$ 4,4 bilhões entre 2005 capacidade institucional do poder público,
e 2007, mas, em muitos casos, a localização cabendo ao Estado à articulação e coordenação
dos empreendimentos e a forma de concessão do processo (MCIDADES, 2008). O PlanHab
foram consideradas discutíveis pelo governo entendia que os assentamentos precários
federal (MCIDADES, 2008). Outros programas deveriam ser “gradativamente transformados”
subsidiados, de menor impacto sobre a em bairros, com níveis adequados de
demanda, foram lançados; o Programa de urbanização e regularização, e ao mesmo tempo
Subsídio à Habitação de Interesse Social – considerava necessário viabilizar a produção
PSH; e o Crédito Solidário, com recursos do de 31 milhões de moradias, em quinze anos,
FDS, apoiados em contrapartidas estaduais para reduzir o déficit existente e suprir a
e municipais (MCIDADES, 2008. ANDRADE; demanda futura. Nesta época foi aprovada a
SILVA, 2010). Ao mesmo tempo, foram mantidos Lei 11.888/2008, que tramitava no congresso
os programas do governo anterior. desde 2001, que assegurou às famílias de
No que se refere aos recursos do SBPE, baixa renda a assistência técnica habitacional
foi aprovada a Lei nº 10.931/2004 que deu gratuita, considerada de grande alcance social.
maior segurança jurídica aos contratos, e o Paralelamente à regulamentação do setor,
Banco Central passou a exigir que os bancos o PAC (2007) foi lançado com atributos
aplicassem efetivamente os 65% dos depósitos de um plano estratégico para estimular o
das cadernetas de poupança no financiamento crescimento econômico, com a intenção de
da habitação. Assim, os investimentos pelo beneficiar 3.960.000 famílias, mediante a
segmento passaram de R$ 230 milhões mensais realização de investimentos em infraestrutura
em 2002, para R$ 1,35 bilhões mensais em 2008. urbana da ordem de 503,9 bilhões de reais,
Ainda com relação ao mercado imobiliário, no período de 2007 a 2010. O PAC incluía em
a partir de 2005, algumas empresas abriram seu escopo a urbanização de algumas grandes
capital na Bolsa de Valores, levando outras a favelas, por intermédio do PAC-Habitação.
adotarem a mesma estratégia, o que aumentou Com vultosos recursos disponíveis, os Estados
a disponibilidade de recursos, chegando e Municípios passaram imediatamente a
inclusive a repercutir no segmento de renda elaborar seus projetos, de forma a garantir os
mais baixa (CARDOSO; LEAL, 2009, p.14). recursos, esvaziando sobremaneira as ações

12 Revista de Administração Municipal – RAM


de planejamento em curso. Até 2010, foram sendo R$ 10,1 bilhões do Orçamento da União,
desenvolvidas 3.556 ações em habitação beneficiando cerca de 940 mil famílias e mais
em todos os estados e em 1.974 municípios, R$ 3,3 bilhões em financiamento do FGTS para
envolvendo recursos da ordem de 13,4 bilhões, 310 mil de famílias (CAIXA, 2010).

Fonte:CAIXA, 2011

Foto 3
Conjunto habitacional do PAC no Complexo do Alemão no Rio de Janeiro/RJ

Na época, o setor da construção civil estava em 2008 (CARDOSO; LEAL, 2009. ROLNIK;
altamente capitalizado, com ingresso de capital NAKANO, 2009).
externo e estoque de terrenos, gerando um Assim, no início de 2009, o governo lançou o
“boom imobiliário”. Ao mesmo tempo, muitas programa MCMV8 voltado ao financiamento da
das grandes empresas do setor abriram ou moradia pronta, através do mercado imobiliário,
adquiriram outras empresas para construir para famílias de renda baixa e média. As famílias
habitações populares (BONDUKI, 2010, com rendimentos até R$1.600,00 receberiam até
p.10,11). Com a influência do setor da construção 96% em subsídios e as famílias com renda até
civil7, o governo decidiu investir pesadamente R$5.000,00 seriam parcialmente subsidiadas.
nesse segmento, tanto para atender a demanda (Rede Cidade e Moradia, 2014). A introdução
habitacional reprimida, quanto para responder de subsídios expressivos na composição dos
à crise econômica internacional desencadeada financiamentos passou a viabilizar em escala o

7
Entrevista concedida a autora por KAUFFMANN, Presidente do SINDUSCON-RJ, em 16/11/2010. Segundo KAUFFMANN,
em 2008, o SINDUSCON-RJ teve uma audiência com a então ministra Dilma Rousseff, da Casa Civil, e apresentou o projeto
denominado “habitação sustentável” para atender a famílias de baixa e média renda, Os recursos seriam provenientes
do FGTS, com subsídios para as faixas de renda baixa e média, além de incluir incentivos ficais ao segmento.
8
MPV 459 – Dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida – MCMV, a regularização fundiária de assentamentos
localizados em área urbana e dá outras providências. Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009.

Revista de Administração Municipal – RAM 13


acesso de famílias mais pobres à casa própria. a estrutura do Programa de Arrendamento
Aos Municípios competia selecionar as famílias Residencial (PAR) (CARDOS; LEAL, 2009),
de menor renda, aprovar os empreendimentos colaborando para a execução dos projetos sem
com agilidade, flexibilizando e adaptando suas licitação. O programa conjugava interesses do
legislações urbanísticas ao modelo do programa. governo e do mercado imobiliário, buscando
A meta do governo era construir um milhão de ganhos políticos e eleitorais para o primeiro e
moradias no país até 2010 e mais um milhão na econômicos para o segundo. Mas, enquanto para
segunda fase, de 2011 a 2014. A primeira fase o governo os ganhos políticos seriam maiores no
aportava recursos da ordem de 34 bilhões de reais atendimento às faixas de renda mais baixas, para o
(MCIDADES,2010). Para viabilizar rapidamente mercado os econômicos seriam maiores nas faixas
o repasse de recursos e subsídios foi utilizada de renda médias. (ARANTES; FIX, 2009, p.4).

Gráfico 1
Recursos do governo federal para habitação popular (2002 a 2010)

Fonte: MCidades, 2010

Quando o governo optou por ter o mercado Logo após o lançamento do programa, Rolnik
da construção civil como seu maior parceiro, e Nakano (2009) alertavam para a perigosa
ao mesmo tempo deixou de lado os interesses combinação de política habitacional com
dos futuros moradores (MAGALHÃES, 2015). E, política de geração de empregos na construção
no que se refere à prioridade de atendimento civil, uma vez “que não são sinônimos” e esta
às famílias, ao contrário do que propunha o não estaria conectada a nenhuma estratégia
PlanHab, “o programa esticou exageradamente urbanística ou fundiária que lhe conferisse
as faixas de renda a serem atendidas, maior consistência. Se o porte desses programas,
beneficiando segmentos de classe média e e quantidades de recursos envolvidos colocou
gerando mercado para o setor privado, com a habitação na ordem do dia, também trouxe à
risco reduzido.” (BONDUKI, 2010, p.13). tona velhas questões que orientaram a produção

14 Revista de Administração Municipal – RAM


modernista na época do BNH. (BONDUKI, 2010, mais uma vez, produzindo moradias sem
p.2). Para Magalhães (2015), “Ficam à margem cidades. (ROLNIK; NAKANO, 2009). O porte
outras necessidades habitacionais, como a dos empreendimentos, a contiguidade entre
urbanização de assentamentos populares eles e a padronização dos projetos estariam
(loteamentos e favelas), onde mora mais da gerando conjuntos semelhantes aos produzidos
metade dos brasileiros. Tampouco se alcançam pelo BNH, “quando a produção massiva gerou
famílias que optam pela construção em lote cidades anônimas e homogêneas” (BONDUKI,
próprio, que continuam sem crédito acessível e 2010, p.17). A construção em escala seria uma
sem assistência técnica”. (MAGALHÃES, 2015) das justificativas para buscar a redução do
A falta de cuidado em articular o programa à custo de produção, mas acabou transferindo
política urbanística, ambiental e social estaria, os subsídios para a especulação imobiliária.
(ARANTES; FIX, 2009. BONDUKI, 2010).

Conjunto Toledo – Senador Camará Conjunto Zaragoza – Paciência


453 unidades habitacionais 497 unidades habitacionais
Fonte: CAIXA/GIDUR/RJ, junho/2011 Fonte: CAIXA/GIDUR/RJ, junho/2011

Conjunto Cascais – Santa Cruz Conjunto Coimbra – Santa Cruz


453 unidades habitacionais 421 unidades habitacionais
Fonte: CAIXA/GIDUR/RJ, maio/2011 Fonte: CAIXA/GIDUR/RJ, maio/2011

Fotos 4, 5, 6 e 7
Conjuntos habitacionais do programa MCMV destinados à faixa de interesse social, Cidade do Rio de Janeiro

Revista de Administração Municipal – RAM 15


Os “Programas habitacionais específicos e renda, foram destinados recursos do Orçamento
adequados às realidades locais que porventura Geral da União. Em capitais e áreas centrais
existiam foram desmobilizados para “fazer passaram a ser permitidas a produção e a
rodar” o PMCMV”. (Rede Cidade e Moradia, exploração de unidade comercial em conjuntos
2014). Diante das flexibilizações concedidas e mais populares, para cobrir despesas de
da agilidade requerida para cumprimento de condomínio, dada as dificuldades de arrecadação
metas, os projetos, principalmente os voltados às de taxas pela população mais pobre, nesse
famílias de menor renda, foram executados onde sentido. Foi admitida a atuação do programa
a terra era mais barata, longe do mercado de em assentamentos precários em processo de
trabalho e sem os equipamentos comunitários desapropriação. As novas medidas incluíram,
necessários. Para Bonduki (2010) o programa ainda, a ampliação da área das unidades e
poderia, ao menos, ter incluído algumas melhoria nas especificações, com aumento do
propostas oferecidas pelo PlanHab, como o valor unitário médio. Aprimorou-se, também,
“subsídio localização”, que consistiria em oferecer alguns procedimentos para registro de imóveis
benefícios aos empreendimentos localizados e regularização fundiária9. E, o Banco do Brasil
em áreas centrais (Bonduki, 2010). Ao mesmo passou a atuar na modalidade voltada às famílias
tempo, foram concedidas várias “vantagens” ao de menor renda. (MCIDADES, 2011).
setor imobiliário, tais como: incentivos fiscais, Os ajustes promovidos, por outro lado, des-
redução nos prazos de tramitação dos processos, consideraram questões essenciais, tais como:
disponibilização de volumosos recursos, a predominância de uma única modalidade de
dispensa de licitação e garantias em caso de oferta de moradia; a falta de participação dos
inadimplência. Com todos esses ingredientes, moradores na decisão de onde morar; a inade-
mais uma vez se impôs a “lógica privada do quação da localização dos empreendimentos;
fazer”. (ROLNIK; NAKANO, 2009. ROLNIK, 2010. a padronização das tipologias habitacionais,
BONDUKI, 2010. VERÍSSIMO, 2010). dentre outras. E, até abril de 2015, o programa
A segunda fase do programa já foi conduzida já havia entregado 2,09 milhões de unidades ha-
no governo da Presidente Dilma Rousseff (2011 bitacionais no país e investido R$ 248,4 bilhões,
a 2014). Alguns aspectos foram revistos, como segundo o Ministério das Cidades (2015).
a ampliação de 40% para 60% no atendimento Prevalece entre os técnicos que atuam na
às famílias de menor renda. Para maior controle área, certo consenso quanto à necessidade de
na concessão das subvenções, foi instituído o uma reformulação mais profunda do programa,
cadastro nacional de beneficiários e adotadas cuja terceira fase estaria prevista para meados de
medidas para evitar a venda do imóvel antes 2015. Em debate realizado no IAB-RJ, arquitetos
de 10 anos. Nesse sentido, a negociação dos e urbanistas lançaram a seguinte questão:
imóveis só poderá ser efetuada com a quitação “Pode o MCMV fazer cidade, além de prover
do valor total, incluindo o subsídio, o que moradia?” Apesar dos 50 anos que separam a
muito provavelmente irá reproduzir os antigos política do BNH do programa MCMV, “eles são
contratos de gaveta, da época do BHN, quando iguais: conjuntos de casas padrão, construídos
as condições mais vantajosas do vendedor não em série, isolados da cidade consolidada e
podiam ser repassadas ao novo adquirente. das infraestruturas e serviços necessários à
Para execução de trabalho técnico-social no população”10. Nota técnica publicada pela Rede
pós-obra, em conjuntos para famílias de menor Cidade e Moradia11 (2014) reforça a necessidade

9
Instituídos pela Lei nº 11.977, de 2009.
10
Magalhães, Sérgio, em palestra no Seminário no IAB, discutiu o programa Minha Casa, Minha Vida, em14/4/15.
http://www.iabrj.org.br/arquitetos-propoem-mudancas-ao-minha-casa-minha-vida. Acesso em 1/7/15).
11
Rede Cidade e Moradia é um consórcio de 11 instituições, coordenadas pelo Observatório das Metrópoles, contratado
em 2013 pelo Ministério das Cidades e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq),
com o objetivo de fomentar a produção acadêmica, o desenvolvimento de metodologias de avaliação e oferecer insumos
para o aprimoramento da política habitacional do país. A Nota Técnica da Rede Cidade e Moradia é uma avaliação parcial
do projeto, ainda não definitiva, divulgada em 25/11/2014.

16 Revista de Administração Municipal – RAM


de reformulação das diretrizes do programa em viabilizando o acesso à moradia para as
prol de territórios urbanos mais justos, menos populações mais pobres. O MCidades,
segregados e mais democráticos. aparentemente, também, preenchia todos os
requisitos e tinha legitimidade para se articular
Considerações Finais com as políticas urbanas, de saneamento e
Se na época do BNH o governo construiu e transporte, nas três esferas de governo, através
estruturou uma política habitacional nacional de variadas formas de atendimento, e para
forte, não aproveitou a oportunidade para contribuir para o desenvolvimento inclusivo
construir cidades mais organizadas e inclusivas, das cidades.
ao privilegiar o capital privado. Acabou Entretanto, a partir de 2007, o governo
priorizando a produção da moradia em escala, passou a priorizar ações de impacto, com metas
não valorizando a implantação de uma política ambiciosas para os programas PAC e MCMV.
urbana, de fato. A estratégia governamental Em relação a este último, relativizando os
voltada à geração de trabalho e renda acabou princípios e as diretrizes que haviam norteado
se sobrepondo à sua atividade fim, voltada ao os instrumentos regulatórios construídos com a
atendimento social. sociedade em apoio à nova política habitacional,
Apesar das críticas ao sistema do BNH, o surpreendendo os técnicos do setor que
período que se seguiu à sua extinção, sentiu, participavam do processo de organização
além da sua ausência, para o planejamento no
pela descontinuidade nível local12. A CAIXA,
A maioria das habitações,
administrativa e falta de no programa, passou a
uma política urbano/ de 50% a 80% de acordo atuar diretamente com as
habitacional estruturada no com especialistas, continua empresas da construção
nível federal, os efeitos das sendo construída no país por civil, o que vem suscitando
reformas macroeconômicas
que inviabilizaram os
autogestão ou autoconstrução, as mesmas velhas críticas,
principalmente sobre o
financiamentos habitacio- sem assistência técnica e em descompromisso com o
nais, embora as discussões locais inapropriados morador e com relação
técnicas tenham avançado, à produção maciça e
culminando com a aprovação do Estatuto da uniforme de moradias em locais desconectados
Cidade. A combinação desses elementos impactou da cidade, criando verdadeiros guetos. “Com o
nas “marchas e contramarchas da agenda da fim do BNH, parecia extinta essa política. Mas o
Reforma Urbana no país” (ROLNIK, 2009, p.3). modelo foi ressuscitado, no Brasil, neste século
Apenas os municípios melhor aparelhados XXI, pelo programa Minha Casa Minha Vida.”
conseguiram desenvolver experiências alternativas (MAGALHÃES, 2015).
próprias. Enquanto isso, a maioria das habitações,
Com a criação do Ministério das Cidades, de 50% a 80% de acordo com especialistas,
a habitação voltou a receber tratamento continua sendo construída no país por
nacional e a ser priorizada como política de autogestão ou autoconstrução, sem assistência
governo. O setor foi organizado e conseguiu técnica e em locais inapropriados. Nem
aprovar instrumentos e leis que haviam sido mesmo quando o BNH implantou uma política
amplamente discutidos, provenientes de antigas habitacional forte essa produção chegou a
reivindicações do movimento pela reforma representar a maioria das moradias edificadas.
urbana. Ao mesmo tempo eram conquistados (CARDOSO; LEAL, 2009). A agilidade do MCMV
volumosos recursos e incorporados subsídios e sua capacidade de atendimento também são

12
No período de 2004 a 2010, o IBAM participava ativamente da elaboração dos Planos Diretores Participativos em
diversos municípios e ajudava a elaborar, em Estados e Municípios, as Políticas e os Planos Locais de Habitação de
Interesse Social, vinculados ao Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social. Apoiava também a constituição de
Fundos e Conselhos Locais de Habitação de Interesse Social.

Revista de Administração Municipal – RAM 17


relativas. “Em seis anos (2009-2014) entregou das Cidades deveria se dispor a resgatar e aplicar
dois milhões de unidades, enquanto o total as diretrizes e proposições que já constam da
construído no país foi de aproximadamente Política Nacional de Habitação (2004) e do Plano
nove milhões de moradias — a maioria, claro, Nacional de Habitação (2008), amplamente
sem nenhum financiamento. Agora, o governo debatidos com a sociedade, que compreendem a
federal planeja a terceira fase do MCMV,para questão da moradia em seu sentido mais amplo,
isso, pretende ouvir construtores e outras no direito à cidade. O SNHIS, também, com
forças políticas e sociais. Faz bem. É necessário seu arcabouço legal, possui todos os atributos
corrigir o rumo”. (MAGALHÃES, 2015). para dar suporte aos programas habitacionais
Não é razoável que um único programa oficiais, ao considerar a diversidade das
oficial, de abrangência nacional em nosso necessidades habitacionais em seus programas.
vasto território, seja direcionado quase que No entanto, para a sua efetividade, seria
exclusivamente à construção de moradias importante assegurar recursos e subsídios na
prontas e através da propriedade privada, em escala necessária ao atendimento adequado
condomínio, pelas empresas de construção ao déficit existente e à demanda futura. Nesse
civil (Rede Cidade e Moradia, 2014), pretenda sentido, tramita no Congresso Nacional o projeto
resolver o problema da moradia no país. Ao de lei denominado “PEC-Habitação” que prevê
mesmo tempo, a maioria dos Municípios, a transferência de recursos orçamentários,
especialmente os de porte médio e pequeno, nas três esferas de governo, para os fundos
ainda carece de adequada capacitação para de habitação, pelo período de 30 anos. Diante
gestão urbano-habitacional e, para esse suporte, dessas premissas, acreditamos que o programa
seria importante contar com financiamentos MCMV, com os devidos ajustes, cumprindo o
oficiais. Ao mesmo tempo, o crédito habitacional, seu devido papel, poderia se inserir no Sistema
como já vem sendo apregoado há muitos anos, Nacional de Habitação. Quem sabe se, com essas
deveria ser concedido diretamente às famílias medidas, não seria viável a moradia fazer parte
que deveriam poder escolher onde morar. da cidade, com o resgate do planejamento das
Para Magalhães (2015), “Não há ingenuidade políticas locais, tornando os Municípios mais
na defesa do protagonismo do morador — é a autônomos, mais preparados e sensíveis para
história de nossas cidades que o atesta”. compreender as necessidades e aspirações da
Na verdade, para que a política habitacional população e menos dependentes da influência
seja realmente mais abrangente, o Ministério do mercado imobiliário e do governo nacional
do momento.

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20 Revista de Administração Municipal – RAM


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estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências.
BRASIL. LEI FEDERAL nº. 11.124, de 16 de junho de 2005. Dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse
Social – SNHIS, cria o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – FNHIS e institui o Conselho Gestor do FNHIS.
BRASIL. LEI nº 11.977, de 7 de julho de 2009. Dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e a
regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas; altera o Decreto-Lei no 3.365, de 21 de junho
de 1941, as Leis nos 4.380, de 21 de agosto de 1964, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 8.036, de 11 de maio de 1990,
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imóveis sem prévio arrendamento no âmbito do Programa de Arrendamento Residencial – PAR e do Programa Minha
Casa Minha Vida – PMCMV.
ARTIGOS DE JORNAL
BÔAS, Villas. Urbanistas alertam: risco de criação de guetos. Preocupação é com conjuntos habitacionais isolados, que
afastam a população do trabalho e dos serviços essenciais. O Globo, 26/3/2009
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vida-380139.asp. Acesso em: 24 ago. 2015
http://raquelrolnik.wordpress.com/2011/09/01/de-cidade-so-tem-o-nome.Acesso em: 24 ago. 2015
http://www.arquitetura.com.br/estudo-encomendado-pelo-ministerio-das-cidades-critica-minha-casa-minha-vida/
Acesso em: 24 ago. 2015
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Revista de Administração Municipal – RAM 21


Conselhos de Assistência Social:
reflexões sobre o trabalho do assistente
social no contexto do Sistema Único de
Assistência Social – SUAS
Herculis Pereira Tolêdo*

Resumo: Reflexões acerca do trabalho dos assistentes sociais no exercício do controle social
democrático, no contexto do SUAS, em especial no Conselho Municipal de Assistência Social
(CMAS). Abordam-se aspectos relevantes mapeados a partir da realidade do Conselho da
cidade do Rio de Janeiro, bem como o entendimento do papel desses profissionais neste espaço
de controle. Entende-se que, atualmente, os assistentes sociais são chamados a ocupar novos
espaços de trabalho, como os dos conselhos gestores de políticas. Esse fenômeno se deve à
atual e privilegiada inserção do Serviço Social no âmbito das políticas sociais, em sua execução,
planejamento, gestão, monitoramento, avaliação, bem como reconhecimento dos conselhos
como espaços sócio-ocupacionais do assistente social, trazidas com o SUAS.

Palavras-chave: Trabalho, Controle Social, Conselho Municipal

A segunda metade do século XX caracterizou- A implementação das ações nos Conselhos


se pela expansão dos direitos políticos e sociais, indicam avanços e apontam desafios, no que
transformando a relação do Estado com a tange à participação social e, em especial, ao
sociedade civil. trabalho do assistente social no exercício do
Não é demais ressaltar que essa relação, controle social democrático da Política de
no Brasil, tomou novas configurações com a Assistência Social.
Constituinte de 1988 que revelou a participação Neste artigo, entende-se controle social
popular como uma das condições essenciais como a participação do cidadão na gestão
da descentralização político-administrativa, pública, na fiscalização, no monitoramento
possibilitando a abertura de espaços para a e no controle das ações da administração
participação da sociedade civil na realização pública no acompanhamento das políticas – um
do controle “democrático” das políticas sociais, importante mecanismo de fortalecimento da
que passam a ser reconhecidas como dever do cidadania.
Estado e direito dos cidadãos. Algumas reflexões acerca do papel dos
É nesse contexto histórico que os conselhos assistentes sociais, conselheiros, representantes
de políticas públicas emergiram, pautados governamentais e da sociedade civil, no
pelos princípios da democracia participativa
e deliberativa, como um dos mecanismos de * Mestrando em Serviço Social – PUC-RJ, graduado
participação da sociedade civil no controle em Ciências Sociais e Relações Internacionais.
social democrático das políticas sociais. Consultor técnico do IBAM.

22 Revista de Administração Municipal – RAM


exercício do controle social, no contexto do a partir da Constituição de 1988 que o cidadão
Sistema Único de Assistência Social, em especial, passa a ter o direito de, perante a administração
o Conselho Municipal de Assistência Social, pública, opinar sobre prioridades, participar,
são aqui destacadas. Abordam-se aspectos decidir, compartilhar, validar e proteger a
relevantes, mapeados a partir da realidade do aplicação dos recursos públicos na geração de
CMAS da Cidade do Rio de Janeiro, bem como benefícios à sociedade.
o entendimento do papel desses profissionais Dagnino (1994) observa que, a partir dos
nesse espaço de controle. anos 90, surge uma nova noção de cidadania, a
Os assistentes sociais são chamados a qual está intrinsecamente ligada à experiência
ocupar novos espaços de trabalho, como os dos concreta dos movimentos sociais. Segundo
conselhos gestores de políticas. Esse fenômeno a autora, a organização desses movimentos
se deve à inserção privilegiada do Serviço Social aliada à luta por direitos – tanto de igualdade
no âmbito das políticas sociais, em sua execução, como da diferença – constituiu a base de
planejamento, gestão, monitoramento, uma nova noção de cidadania e, sobretudo,
avaliação, bem como ao reconhecimento dos a construção e difusão de uma cultura
conselhos como espaços sócio-ocupacionais do democrática contributiva à criação de um
assistente social. espaço público onde os interesses comuns e
os particulares, especificidades e diferenças,
Cenário Político Brasileiro: busca por podem ser discutidos.
maior transparência e participação em A Constituição Federal de 1988 trouxe
nível nacional também uma nova concepção para a
A década de 1990 é um marco para a Assistência Social brasileira. Incluída no âmbito
democracia e para a política social brasileira. da Seguridade Social, regulamentada pela
É nesse período que os movimentos sociais Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), em
e organizações se lançam na luta pela dezembro de 1993, e como política social pública,
redemocratização da sociedade e do Estado. É a assistência social inicia seu trânsito para um

Revista de Administração Municipal – RAM 23


novo campo: dos direitos, da universalização sociais que secularmente se apropriaram do
dos acessos e da responsabilidade estatal. patrimônio público. Por isso mesmo, as formas
A Constituição também institui diversos como a assistência social, a participação e
mecanismos e formas de participação da a representatividade são compreendidas e
sociedade civil como conselhos, conferências, assumidas pelos conselheiros na sua prática
ouvidorias, processos de participação no cotidiana poderão ou não definir o conselho
ciclo de planejamento e orçamento público, como espaço de construção da democracia e de
audiências e consultas públicas, mesas de socialização da política.
diálogo e negociação, entre outros. Atualmente, Não há dúvida de que, no plano normativo,
estuda-se a proposta da Política Nacional de os conselhos de assistência social se configuram
Participação Social que visa normatizar estes como um espaço legítimo de participação da
avanços. Pode-se afirmar que a participação população, devendo expressar os interesses
social constitui, portanto, uma realidade. da coletividade. Contudo, dependendo dos
Com a implementação da Política Nacional atores sociais que compõem cada conselho,
de Assistência Social (PNAS), em 2004, foram da correlação de forças no seu interior e da
pautados os princípios da universalização relação que estabelece com o governo local,
do acesso, da descentralização político- pode também tornar-se alvo de cooptações e
administrativa das decisões e ações e, manipulações. É salutar frisar que:
principalmente, do reforço à participação No Brasil, o estilo político tradicional
organizada de amplos segmentos da sociedade. é de resolver as situações caso a caso e, de
Na lógica do Sistema Único da Assistência preferência, no interior dos gabinetes, e
Social (SUAS), os espaços privilegiados de não de forma clara, global, transparente e
efetivação da participação da sociedade civil pública (...) se o assunto é decidido em petit
são os conselhos e as conferências, convocadas comité entre os mesmos, como pode ocorrer a
ordinariamente a cada quatro anos, os quais vigilância do controle social? (...) o espaço do
têm a atribuição de avaliar a situação da controle social, ainda que institucionalizado,
assistência social e propor diretrizes para o seu não é meramente administrativo, é um
aperfeiçoamento. Cabe aos conselhos, segundo espaço político que põe em cena interesses,
o artigo 18, da LOAS, entre outras funções: imaginários, representações (...) não se pode
1. fiscalizar a execução da política da ser conivente com a transformação do espaço
Assistência Social e de seu financiamento, do controle social em uma continuidade
em consonância com as diretrizes burocrática de reuniões, onde não se tem
propostas pela conferência; o compromisso com os resultados e efeitos.
2. aprovar o plano; (SPOSATI & LOBO, 1992: 371, 372, 373, 377).
3. apreciar e aprovar a proposta Na visão de Raichelis (2011), a implantação
orçamentária da Assistência Social; dos conselhos de assistência social pode
4. definir o plano de aplicação do fundo, significar um impulso na publicização dessa
com a definição dos critérios de partilha política, na medida em que incorpore os
dos recursos, exercidos em cada mecanismos: visibilidade social, controle
instância em que estão estabelecidos. social, representação de interesses coletivos e
Os conselhos também normatizam, democratização.
disciplinam, acompanham, avaliam e fiscalizam Além disso, o controle social não pode ser
os serviços de assistência social, prestados pela entendido como mera fiscalização e denúncia,
rede socioassistencial, definindo os padrões de pois ele só existe na medida em que há
qualidade de atendimento e estabelecendo os informação, conhecimento, argumentação
critérios para o repasse de recursos financeiros. competente e consequente dos atores
Torna-se claro, contudo, que essa envolvidos nas disputas políticas. Portanto,
perspectiva de mudança no domínio da cultura implicam negociação, pactuação, construção de
política enfrenta resistência dos grupos alianças, acordos, diálogos e interfaces.

24 Revista de Administração Municipal – RAM


Um Serviço Social Comprometido com de dois aspectos, entendida como: (a) problema
de violência – repressão, segurança, opressão;
a Igualdade
ou (b) “problema de Assistência Social”.
Desde a crise mundial do capitalismo, Em seus estudos, Netto (2007) observa
em meados dos anos 70, a questão social que desde a década de 1990, o Serviço Social
é entendida como problema circunscrito à está comprometido com a igualdade. Esta
Assistência Social. vertente consolidou a sua hegemonia no debate
Ao analisar a questão social, e suas variadas acadêmico, graças ao esforço de elaboração
abordagens, entende-se que ela se articula teórica de um elenco de autores brasileiros,
diretamente ao desenvolvimento e à origem da estimulados pela Associação Brasileira de Ensino
sociedade capitalista, pautada na acumulação e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS) e pelo
da riqueza extraída na mais-valia, demarcando sistema institucional que fiscaliza o exercício
assim as classes sociais em um constante profissional, organizado na articulação entre o
embate. Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) e os
Baseando-se na propriedade dos meios de Conselhos Regionais de Serviço Social (CRESS)
produção e na divisão do processo de trabalho, e o exercício profissional, regulado por Lei
a fabricação de mercadorias estabelece valores Federal, parametrizado por um Código de Ética
– de uso e de troca – bem como se torna Profissional de caráter imperativo.
determinante na acumulação da mais-valia – Netto (2007) observa que:
entendida como um excedente não pago à força “o exame dos “princípios fundamentais”
de trabalho. deste Código de Ética Profissional deixa
Desse modo, a concepção de questão social explícito que a concepção de Serviço Social
está enraizada na contradição entre capital e nele sustentada tem um compromisso
trabalho, ou seja, é uma categoria que tem sua essencial com a igualdade social entendida
especificidade definida no âmbito do modo não como a equalização homogeneizadora
capitalista de produção. dos indivíduos, mas como a única condição
Inúmeros foram os autores brasileiros que capaz de propiciar a todos e a cada um dos
se debruçaram sobre essa temática. Em seus indivíduos sociais os supostos para o seu livre
estudos, Ianni (1991) observa que desde a desenvolvimento. (...) Mas essa concepção de
escravidão, os movimentos sociais eclodem e profissão não se funda apenas em motivações
colocam-se como dispositivo rotineiro na luta éticas: ela se legitima na exata medida em
da igualdade de direitos. A partir da década de que se contrapõe frontalmente ao reino das
20, a questão social deixa de ser encarada como desigualdades. É nele que vivemos, no Brasil
um “problema de polícia” (repressão) e passa a e na América Latina”. (NETTO, 2007, p. 138).
ser considerada um “problema político”.
Serviço Social e Políticas Sociais: breve
leitura dos desafios da participação
democrática num contexto de
exclusão social
Diante do exposto e dos estudos de Netto
(2009), é possível concluir que o movimento
ocorrido no âmbito do Serviço Social, em
especial, o latino-americano, a partir da década
de 1970, mudou decisivamente os rumos da
profissão do Assistente Social no continente.
Esse processo, denominado Movimento de
Existe uma tendência, segundo Ianni (1991), Reconceituação, desloca o debate da profissão
de se “naturalizar” a questão social, vista à luz do “metodologismo” para o das relações sociais

Revista de Administração Municipal – RAM 25


nos marcos do capitalismo, e com ele passa a dar A organização do CMAS/RJ prevê, para
ampla visibilidade à política social como espaço desenvolvimento de suas ações, a constituição
de luta para a garantia dos direitos sociais. de Assembleia Ordinária e/ou Extraordinária,
Nesse sentido, Telles (1999) destaca que os duas Câmaras de Inscrição de Processos, Mesa
direitos sociais são esforços de estabelecimento Diretora, Secretaria Executiva e Comissões
da justiça social. Portanto, para além do Temáticas – estruturas permanentes. O referido
discurso que vitimiza os pobres, analisar os Conselho possui cinco comissões temáticas, a
direitos sociais, sob a perspectiva dos direitos saber: a) Norma de Assistência Social; b) Política
como regras de sociabilidade, é enfatizar uma de Assistência Social; c) Orçamento e Finanças da
nova dimensão, na qual mais que instrumentos Assistência Social; d) Administração do Fundo
de satisfação de carências de uma clientela Municipal de Assistência Social; e) Comissão
determinada, são formas de sociabilidade, pois Permanente de Apuração de Denúncias. A Mesa
estruturam o espaço público. Diretora do CMAS é constituída por: Presidente,
Sob tal perspectiva, os homens aparecem Vice-Presidente, Primeiro(a) Secretário(a),
como portadores da palavra e de reivindicações Segundo(a) Secretário(a) e Coordenadores das
legítimas, ao invés de recebedores de concessões Comissões Temáticas.
da sociedade e do Estado.
Esse argumento contribui para pensar
a questão social na atualidade, a qual nos
interroga sobre a constituição de uma sociedade
democrática num contexto de exclusão social e
que serve de chave para compreendermos os
desafios da intervenção do assistente social nos
Conselhos de Assistência Social.
Cabe também ressaltar, conforme Mioto e
Nogueira (2013), que a política social alçou um
estatuto teórico, no âmbito do Serviço Social,
que lhe permitiu realizar a articulação entre a
perspectiva analítica de sociedade e de profissão. O CMAS/RJ é composto de forma paritária
Segundo os autores, ao final da década de por 40 membros, entre titulares e suplentes,
1970, os assistentes sociais já se posicionavam tendo como representantes da sociedade
fortemente em relação à “formulação das civil – entidades prestadoras de serviços,
políticas sociais enquanto intervenção estatal”. assessoramento e defesa de direitos; entidades
de organização de usuários e entidades de
Breve Histórico: Conselho Municipal trabalhadores na área de assistência social.
de Assistência Social da Cidade do Rio A maioria das Secretarias Municipais indica
de Janeiro para compor o CMAS/RJ assistentes sociais
O CMAS/RJ foi criado pela Lei Municipal nº (representantes da pasta responsável pela
2.469, em 30 de agosto de 1996. É um órgão política de assistência social, saúde, habitação,
com funções deliberativas, fiscalizadoras, de educação, entre outros) e número significativo
caráter permanente e composição paritária de representantes da sociedade civil – também
entre o governo e a sociedade civil, vinculado à assistentes sociais. Atualmente, estão na
estrutura da administração pública municipal. composição o Conselho Regional de Serviço Social
Sua organização, composição e competência – 7ª Região (CRESS) e o Sindicato de Assistentes
são fixadas em lei, possibilitando a gestão Sociais. Assim, a rede socioassistencial privada
democrática da política de assistência social e e as secretarias municipais têm por hábito a
o exercício do controle social. Tem estrutura indicação de assistentes sociais para compor o
definida pelo Decreto nº 25.591, de 26 de julho referido Conselho, talvez por entenderem que
de 2005, e pelo seu Regimento Interno. essa categoria domine o tema.

26 Revista de Administração Municipal – RAM


Tarsila do Amaral, Operários, 1933.

Não há dúvidas de que as alianças e dever do Estado, vêm colocando em evidência


da sociedade civil com a representação dificuldades e limites para construção dessa
governamental são um elemento fundamental política pública, nos níveis federal, estadual ou
para o estabelecimento de consensos. Como municipal. Um dos obstáculos circunscreve-
prevê a PNAS (2004), os conselhos paritários, se na desconstrução da noção, presente em
no campo da assistência social, têm como boa parte das instituições, de que a política
representação da sociedade civil os usuários de assistência social pode ser equiparada à
ou organizações de usuários, entidades e caridade e à benemerência.
organizações de assistência social (instituições
de defesa de direitos e prestadoras de serviços),
Atuação profissional dos assistentes
trabalhadores do setor (artigo 17, ll). sociais
Um dos aspectos fundamentais para A criação do Conselho Municipal de
a legitimidade da política de assistência Assistência Social atendeu ao novo desenho
social está na participação dos cidadãos, por institucional brasileiro, que projetou sua
intermédio da sociedade civil organizada. Desta ênfase na descentralização administrativa,
forma, busca-se a ruptura com a tendência atribuindo novas responsabilidades ao
histórica de segundo plano da sociedade civil Executivo Municipal que alterou a organização
perante o Estado e o fortalecimento das formas das ações socioassistenciais nos Municípios
democráticas de relação entre as esferas e contribuiu para maior participação da
estatal e privada. É importante assinalar que sociedade no acompanhamento da execução da
cada conselheiro eleito para representar um Política de Assistência Social. Cabe lembrar que
segmento estará não só representando sua os Municípios foram convocados a construir
categoria, mas a política como um todo em sua seus conselhos a partir de iniciativas locais e
instância de governo. autônomas (confirmadas por lei municipal).
Cabe destacar que as constantes avaliações É nesse contexto histórico que os Conselhos
dos processos de implantação da Assistência de Assistência Social emergiram, pautados
Social, como direito dos que dela necessitarem pelos princípios da democracia participativa

Revista de Administração Municipal – RAM 27


e deliberativa, como um dos mecanismos de histórico marcado pelo embate entre posições
participação da sociedade no controle social políticas e ideológicas conflitantes, que a
“democrático” das políticas sociais, ou seja, definem sob a lógica do favor, em detrimento de
institucionalizando a participação da sociedade sua confirmação sob a ótica do direito; portanto,
na tomada de decisões e fiscalização das políticas uma Cultura Política enraizada na identificação
públicas nas mais diversas áreas sociais. com o assistencialismo e com a filantropia.
Raichelis (2011) observa que o controle Assim, o Conselho de Assistência Social é um
social é peça-chave na constituição do espaço espaço complexo, conflituoso e contraditório,
público e que os Conselhos de Assistência onde as negociações e os embates são
Social são entendidos como canais importantes permanentes. Esses espaços ainda revelam uma
de participação coletiva e de criação de novas situação paradoxal de participação, de controle
relações políticas entre governos e cidadãos social e também de corrupção e clientelismo. Os
e, sobretudo, de construção de um processo conselhos, em sua maioria, atuam mais no papel
continuado de interlocução pública. de fiscalizador do que de elaborador de políticas.
No entanto, esse elemento de controle Nesse sentido, as ações da sociedade e, em
social, pensado na perspectiva da democracia especial, dos assistentes sociais, em torno do
participativa, convive com tendências típicas da controle das políticas sociais têm enfrentado
tecnocracia e do clientelismo que “embaçam” a desafios permanentes com o compromisso da
consolidação de uma cultura política democrática garantia do controle e dos direitos sociais.
de Assistência Social. Não há dúvidas de que a criação do
Segundo essa linha de pensamento, apontada Conselho de Assistência Social estimulou maior
por alguns autores (Oliveira, participação da sociedade
2003; Almeida, 1995), a Um dos aspectos fundamentais na organização e gestão
Assistência Social é um da política no âmbito local.
campo político que, de um para a legitimidade da política Por outro lado, exigiu
lado favorece a transição para de assistência social está na uma sociedade capaz de
um modelo participativo, participação dos cidadãos, por defender seus interesses
e, de outro, impede sua
intermédio da sociedade civil e incluí-los na agenda
consolidação, na medida das políticas públicas. O
em que mantêm atitudes e organizada exercício do controle social
práticas perpetuadoras de é uma prática que conjuga
fragilidades dos mecanismos de mediação política. tanto a questão técnica quanto a política e que
Em seus estudos, Oliveira (2003) marca a representação dos assistentes sociais
resgata o entrave constituído pela matriz nos Conselhos Municipais e, consequentemente,
conservadora, enraizada no favor, no mando e o modo como este segmento impulsionou a
no apadrinhamento, baseada na reciprocidade agenda pública em torno do controle social.
e em relações de caráter personalizado, para a A descentralização e a municipalização das
construção da nova Assistência Social brasileira. políticas públicas vêm ampliando o mercado
Ao analisar a ação dos gestores de Assistência de trabalho para os assistentes sociais. Com
Social em Santa Catarina, Oliveira transita isso abrem-se novos canais para atuação
entre o marco da democracia, da tecnocracia, profissional, que não se restringem apenas à
do patrimonialismo e do clientelismo. Sua execução, mas também à formulação e gestão
hipótese é que a cultura política enraizada no das políticas sociais.
campo da Assistência Social funciona como Uma autora que elucida tal discussão é
um dos entraves para a sua construção como Iamamoto (2010), que destaca que a inserção do
política democrática e participativa. assistente social junto às políticas de proteção
Segundo a autora, essa cultura política, social refere-se à particularidade interventiva
especialmente no caso da Assistência Social, do profissional em lidar cotidianamente com
vem sendo construída ao longo de um percurso as múltiplas e diversificadas expressões da

28 Revista de Administração Municipal – RAM


questão social, enfatizando a autora a aptidão número expressivo de participantes envolvidos
do profissional em responder às novas e às (usuários, trabalhadores, gestores).
antigas atribuições. Os conselhos não são percebidos como canais
Dos estudos que analisam a atuação dos de expressão porque são muito burocratizados.
assistentes sociais nos espaços de deliberação Genro adverte que “(...) enganam-se aqueles que
das políticas sociais, encontramos posições pensam que o espaço do conselho é um marco
diferentes e pouco analíticas. De um lado, há neutro, pelo fato de ali estarem representados
o debate que afirma que os assistentes sociais todos os setores e ideologias da sociedade”
contribuem, mesmo que de forma ainda (2003: 35).
reduzida, com o controle social “democrático” Muitas vezes os conselheiros são
das políticas sociais representantes de si
(Bravo; Souza, 2002). próprios e, portanto, fáceis
De outro lado, existem É imprescindível que os de serem cooptados, o que
estudos nos quais a conselheiros aprofundem o somado à desmobilização
inserção dos assistentes em função da relação
sociais ainda não
seu conhecimento sobre a convenial emperra o
está disseminada nos Política de Assistência Social processo de controle social
Conselhos, apesar da e o Sistema Universal de qualificado. Esses espaços
expansão do controle Assistência Social – SUAS, em ainda revelam uma situação
social das políticas paradoxal de participação,
públicas e das diversas
todas as suas dimensões e controle social e também
possibilidades de sua especificidades corrupção e clientelismo.
participação nesses Boa parte dos conselhos
espaços, a partir da Constituição de 1988. atua mais na fiscalização do que na elaboração
Também é importante elucidar que a análise de políticas.
da participação do assistente social no Conselho A política de assistência social traz arraigada
Municipal de Assistência Social leva em conta em si características históricas, impasses para
os pilares éticos, teórico-metodológicos e a materialização da assistência social como
sócio-históricos que fundamentam a direção política pública. Dentre estas, destacam-se: (a)
sociopolítica do Serviço Social na atualidade. pouca publicização da política de assistência
Em seus estudos sobre a atuação de social; (b) fragilidade da participação dos
assistentes sociais no CMAS/RJ, Alchore conselheiros; (c) manutenção do caráter
(2014) identificou que mais da metade dos caritativo das ações e (d) burocratismo –
conselheiros, em torno de 60%, era assistente desafios postos no processo de construção de
social, seguidos pelos psicólogos; quase a um controle social democrático e que envolvem
totalidade de conselheiros possui nível superior diferentes profissionais, com destaque para
e os assessores técnicos são assistentes sociais, os/as assistentes sociais. Também é preciso
inclusive a secretária executiva. reconhecer que há uma dialética, um conflito,
uma tensão permanente entre Estado e
Considerações finais sociedade civil. Não é demasiado lembrar que
No momento de criação dos conselhos, um o SUAS foi construído nessa dialética Estado-
dos objetivos da sociedade civil organizada sociedade civil, demonstrando a importância
foi o de institucionalizar a participação na e a necessidade indispensável de diálogo, de
tomada de decisões e fiscalização de políticas permanente interlocução, em que a atuação
públicas nas mais diversas áreas sociais – fato de assistentes sociais, especificamente na
que ganha dimensão e complexidade mais realidade analisada, faz toda a diferença.
densa nas metrópoles, em função das questões A assistência social é um universo
deste debate, além da distância territorial heterogêneo de ações dispersas e descontínuas
a ser acompanhada/fiscalizada, somada ao de órgãos governamentais e instituições

Revista de Administração Municipal – RAM 29


privadas, que se configura num espaço de saber como funcionam a elaboração, a
multifacetado de práticas sociais. Essa realidade aprovação e a execução do orçamento para que
se reflete na fragilidade da participação possam fiscalizar e monitorar se o poder local
dos conselheiros e da rede na deliberação e está realizando a gestão dos recursos de forma
execução da política de assistência social. correta.
O exercício do controle social é uma prática Talvez resida aí o fato da apropriação desse
que conjuga tanto uma questão técnica quanto espaço pelo profissional do Serviço Social. Entende-
política. Nesse sentido, é imprescindível que os se que estes profissionais estão instrumentalizados
conselheiros aprofundem o seu conhecimento no entendimento das peças orçamentárias – como,
sobre a Política de Assistência Social e o Sistema por exemplo, o Plano Plurianual e a Lei de Diretrizes
Universal de Assistência Social – SUAS, em todas Orçamentárias – para que se possa de forma efetiva
as suas dimensões e especificidades. fiscalizar a execução da política na localidade.
Ainda há muito a percorrer. Mesmo que Certamente, este é um dos maiores desafios
os Conselhos de Assistência Social não sejam contemporâneos enfrentados pelos profissionais
responsáveis pela gestão, os assistentes sociais, da assistência social que desempenham funções
técnicos ou conselheiros têm a responsabilidade nos espaços de controle social democrático.

Referências Bibliográficas
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TELLES, Vera da Silva. Direitos sociais: afinal do que se trata? Belo Horizonte. UFMG, 1999.

30 Revista de Administração Municipal – RAM


Mulher e Participação Política:
a inserção desigual
Angela Fontes*

Resumo: A preocupação principal deste trabalho é dar continuidade ao debate sobre a


participação das mulheres nos espaços de poder e decisão. As mulheres saíram para o espaço
público em situação de desvantagem na medida em que os homens não entraram no espaço
doméstico na mesma intensidade. O número de mulheres ocupando espaços formais de poder
na esfera pública (Executivo, Legislativo e Judiciário) ainda se apresenta em níveis baixos, não
correspondendo ao peso da população feminina brasileira. Mudanças no olhar dos governantes
são possíveis em busca de um mundo melhor, sustentável, priorizando a luta por igualdade de
gênero, exercendo uma política feminista.

Palavras-chave: Participação, Relações de Gênero, Feminismo

Apresentando a questão do movimento feminista sob a influência de


Pensar a presença das mulheres, a nossa obras como O Segundo Sexo (1949), da Francesa
presença, no mundo atual, e em especial na Simone de Beauvoir, da Mística Feminina (1963),
sociedade brasileira, nos leva a reconhecer uma da americana Betty Friedan, e a A Mulher
inserção desigual, sem equilíbrio, em todas as Eunuco (1971), de Germaine Greer, australiana
dimensões do cotidiano dessa sociedade. Por de nascimento, publicado a partir do Reino
outro lado, também é pensar a capacidade que Unido, demonstra que não mais se tratava das
as mulheres possuem de identificar e enfrentar conquistas de direitos civis, como o direito a
os desafios que esse mesmo cotidiano impõe, votar e ser votada, defendido, no Brasil, entre
percebendo as singularidades das posições outras, por Leolinda Daltro e Bertha Lutz1, mas
ocupadas nos grupos sociais dos quais somos descrever a condição subalterna, e submissa,
parte. Ao longo dos tempos – milênios, séculos, das mulheres na cultura masculina, patriarcal,
décadas – as mulheres foram mudando e atuante e numa perspectiva androcêntrica.
sendo mudadas pelas realidades do dia a dia,
pela necessidade de sobreviver tanto material 1
Leolinda Daltro (fundadora, em 1910, do Partido
Republicano Feminino, que, obviamente, não era um
quanto emocionalmente, pela exigência
partido formal) e Bertha Lutz (fundadora da Federação
interior de (re)conhecermos e assumirmos Brasileira pelo Progresso Feminino, em 1922), entre
nossa própria identidade. Desenvolvemos uma outras, deram impulso à luta sufragista no Brasil.
estratégia de sobrevivência física e psíquica.
A última metade do século passado foi palco * Doutora em Geografia-Gestão do Território, UFRJ.
de alterações fundamentais para as mulheres e Mestre em Planejamento Urbano e Regional, COPPE/
em particular para as mulheres ocidentais com UFRJ. Economista, Faculdades Cândido Mendes.
respeito à forma como nos relacionamos com os Secretária Adjunta de Articulação Institucional e
Ações Temáticas, Secretaria de Políticas para as
espaços público e doméstico. O ressurgimento
Mulheres, Presidência da República – SPM/PR.

Revista de Administração Municipal – RAM 31


O objetivo de plena igualdade, nunca sob a responsabilidade dita “natural” das
alcançado, vem sendo buscado de forma mulheres. Porém, é necessário ressaltar que os
muito desigual nos países de diferentes demais serviços urbanos têm papel relevante na
culturas. As reivindicações dos movimentos liberação do tempo de trabalho empregado na
feministas da atualidade mantêm as lutas pelos trabalheira de todo o dia para que as mulheres
direitos sexuais e reprodutivos, pela radical obtenham o usufruto pleno de sua inserção
igualdade nos salários e o acesso a postos de social.
responsabilidade, pela participação política
com equidade, com igualdade de acesso às Possibilidades de romper com a
oportunidades nos espaços políticos das invisibilidade histórica
diferentes esferas de poder. As lutas das mulheres ao longo dos tempos
É necessário reconhecer que a inserção avançaram com maior ênfase nas últimas
da mulher no mundo público foi e ainda é décadas do século passado e nessas que dão
acompanhada de tensões relacionadas com seu início do século XXI. A divisão sexual do trabalho
afastamento do mundo doméstico. Em verdade, ainda hoje dificulta a conciliação dos diferentes
as tensões se acumulam, se reforçam com o papéis e atividades assumidas pelas mulheres
afastamento de quem executa as tarefas de no dia a dia. O reconhecimento de sua relevância
reprodução da força de trabalho no interior da no viver social implica não apenas a revisão dos
casa, considerada “naturalmente” como a única papéis, assim como sair do anonimato, adquirir
responsável pela realização de tais tarefas. visibilidade. As expectativas sociais do “ser
Expõe-se, assim, à luz do cotidiano o desafio mulher”, tendo por pressuposto o que seria o
do reconhecimento e debate pela sociedade papel feminino exercido na esfera doméstica –
brasileira de que tais tarefas de reprodução da reprodução biológica, ênfase na maternidade e
força de trabalho no interior das famílias são nas tarefas domésticas –, e o papel masculino,
de responsabilidade coletiva daquele grupo
familiar e não de apenas um de seus membros,
especificamente uma mulher. Vale reforçar que
continua posto o desafio de um debate amplo
sobre valores e culturas com o objetivo de
propor novas formas de convivência no interior
dos diferentes arranjos familiares visando
absorver as necessidades geradas pelos papéis
e atribuições das mulheres e homens nos
tempos atuais.
Neste contexto, o papel do Estado ganha
maior relevância quando se verifica o quanto
as famílias, compostas pelos diferentes tipos de
arranjos familiares, se apoiam na prestação dos
serviços públicos para que as pessoas que as
integram possam participar do espaço público
enquanto estudantes, professoras e professores,
trabalhadoras e trabalhadores, lideranças
comunitárias, lideranças de partidos políticos,
entre outros papéis que desempenhamos.
São os serviços públicos relacionados
principalmente aos “cuidados” com as crianças
e com os idosos, tanto na área da educação,
da alimentação, quanto da saúde, os que mais
aliviariam a carga das tarefas domésticas ainda Di Cavalcanti, Cena de Rua, 1931.

32 Revista de Administração Municipal – RAM


como seu contraponto, exercido na esfera as mulheres, considerando toda a diversidade
pública e detentor do poder econômico têm que as cerca, são obrigadas a enfrentar na busca
orientado ao longo dos tempos os aspectos por equidade de gênero, participação e poder.
fundamentais e, até certa medida, consagrados Necessário ter claro que participar significa
da divisão sexual do trabalho. tomar parte nos processos de decisão e não
O questionamento dos estereótipos do que é apenas nos processos de consulta. Tendo essa
esperado pela sociedade sobre o comportamento assertiva como pressuposto, a participação das
de mulheres e homens pelos movimentos mulheres nos diferentes espaços da vida em
feministas abriu novas possibilidades para o sociedade gera a afirmação dos direitos civis,
surgimento de ações, atividades e/ou trabalhos políticos e sociais em confluência com os ideais
realizados por mulheres fora do ambiente da da cidadania de igualdade de oportunidade,
família. O avanço das mulheres, medido por de igualdade na participação e de igualdade
diferentes indicadores das ciências sociais, perante a lei. Pensar a esfera pública implica
demonstra o esforço despendido por elas para o pensar no caráter das relações entre Estado
alcance das transformações, assim como o quanto e Sociedade Civil. Ao mesmo tempo, é forçoso
ainda há por fazer. O desafio do que há por fazer reconhecer que a inserção ou inclusão de
envolve reconhecer quão pouco foi alterado do diferentes grupos sociais ocorre de modo
viver masculino. O tênue limite contemporâneo diferenciado e desigual.
entre as esferas pública e privada é objeto de Necessário, também, explicitar que as
debate teórico. “São nesses espaços de poder que mulheres somos diversas e que é essa mesma
as relações entre homens e mulheres ainda hoje diversidade que demonstra a riqueza de todas
ocorrem de modo mitificado, ou seja, aos homens as nossas lutas, por meio dos movimentos
cabem os trabalhos de homem e às mulheres, sociais, em especial os movimentos feministas
trabalhos de mulher. É com esta máxima que se e de mulheres. Participamos dos movimentos
valoram e se hierarquizam os trabalhos. E cada de mulheres com deficiência, LBTs, urbanas,
grupo social, cada “tribo urbana”2, conceitua rurais, do campo, da floresta, das águas, de
trabalho de homem e de mulher de acordo povos e comunidades tradicionais, de povos
com suas histórias e tradições, conformando indígenas e dos distintos grupos étnico-raciais
preconceitos e estereótipo que desempenham e geracionais.
um papel relevante na explicação das normas O engajamento das mulheres em movimentos
sociais e culturais e podem cristalizar situações sociais, associações de bairros ou grupos
discriminatórias e atuando em um círculo de mulheres, rodas de conversas, com focos
vicioso”3. específicos, entre outros, permite verificar
Parte dessa invisibilidade está apoiada nos que expressam de modo significativo suas
diferentes tipos de artimanhas e armadilhas necessidades e reivindicações, não apenas sob o
engendradas ao longo de culturas seculares que enfoque pessoal ou de suas famílias, mas muitas

2
(Sobre o tema ver) Revista Brasileira de ciências Sociais, vol.21, no.60. São Paulo. Feb.2006.
3
FONTES, Angela. A inserção desequilibrada e a busca pela equidade de gênero. X Encontro Nacional da ABET –
Associação Brasileira de Estudos do Trabalho, nov/2007, Salvador, Bahia.

Revista de Administração Municipal – RAM 33


das vezes assumindo um papel de administração mulheres outra forma de se posicionar, outra
comunitária, quando levam para a vivência no forma de enfrentamento. E esse recorte leva
mundo público os “cuidados” relacionados com à constatação de que ao buscarem espaços
a reprodução do dia a dia do bairro, da escola ou para se manifestarem a partir do caminho da
outro espaço comunitário, como os conselhos democracia participativa, as mulheres obtêm
municipais, estaduais e federais. É possível afirmar voz, assumem cargos de direção, embora
que por meio de uma participação ativa nos debates muitas ainda se mantenham na retaguarda.
locais as mulheres buscam influenciar nas tomadas Mas ao ultrapassar a dimensão de participação
de decisões governamentais que impactam suas e caminhar no sentido de atuar no espaço da
vidas, de suas famílias, da coletividade a que democracia representativa, o quadro assume
pertencem. Procuram influir na decisão política novas feições. É fato que a presença das
visando transformá-la numa política pública. mulheres em postos eletivos ou no aparato
A presença das mulheres no desenvolvimento estatal ainda é bastante reduzida.
de suas comunidades e no enfrentamento aos Buscando uma retrospectiva, a tabela 1
processos de exclusão se traduz na construção proporciona um quadro quantitativo sobre
cotidiana de formas de sobrevivência, tanto a evolução da participação das mulheres no
pessoal quanto de suas famílias, por meio de Congresso Nacional, lembrando que estamos
iniciativas criativas e eficientes. Entretanto, trabalhando com o número de eleitas como
no mais das vezes,o reconhecimento desta titulares, e que ao longo da legislatura esse
presença respeita pouco o protagonismo das quadro se altera pelo chamamento para cargos no
mulheres frente às crises econômicas e políticas Executivo e possível suplência masculina. Ressalte-
pelas quais passam as sociedades. se, também, que no Senado Federal os dados se
referem ao número de cadeiras em disputa, que se
Possibilidades de participação política alternam entre um terço (27) e dois terços (54).
e sistema político Verifica-se que o número de mulheres
Aqui temos o interesse em recortar a eleitas passou de 47 na legislatura anterior
participação das mulheres para o mundo da para 51 nesta (10,66% do total), significando
política, espaço por excelência dominado em ambos os momentos da vida brasileira uma
pelos homens, onde as desigualdades de sub-representação considerável em relação ao
gênero e a herança patriarcal da sociedade percentual de mulheres na população brasileira,
se manifestam marcadamente, que exige das que é 51%, conforme dado do censo de 2010.

Tabela 1
Quadro evolutivo de mulheres eleitas
Câmara dos Deputados Senado Federal
Eleições
Nº Absoluto % Nº Absoluto %
1982 8 1,5 0 0
1986 26 5,4 0 0
1990 29 6,0 2 6,0
1994 32 6,0 4 7,0
1998 29 5,7 2 7,0
2002 43 8,0 8 15,0
2006 46 9,0 4 15,0
2010 45 9,0 7 13,0
2014 51 9,9 5 18,5
Fonte: http://www2.camara.leg.br/documentos-e-pesquisa

34 Revista de Administração Municipal – RAM


É necessário chamar a atenção para o fato de promoção e difusão da participação
de que o processo eleitoral de 2014 contou com política das mulheres. Neste caso,
mudanças a partir da minirreforma eleitoral deverá, no ano subseqüente, acrescer o
aprovada em 2010 (Lei 12.034/2010), que percentual de 2,5% do Fundo Partidário
alterou a Lei de Cotas de Gênero de 2009, para essa destinação, ficando impedido
obrigando os partidos a preencher 30% das de utilizá-lo para finalidade diversa;
vagas da legenda com candidaturas femininas, • inclusão do inciso IV ao art. 45, que
ao passo que antes a obrigatoriedade era de trata dos fins da propaganda partidária
apenas reservar esse percentual a partir da gratuita, da Lei nº 9.096/1995 –
reformulação do parágrafo 3º do art. 10 da “promover e difundir a participação
Lei nº 9504/1997, que ficou com a seguinte política feminina, dedicando às
redação: mulheres o tempo que será fixado pelo
Do número de vagas resultantes das regras órgão nacional de direção partidária,
previstas neste artigo, cada partido ou observado o mínimo de 10% (dez por
coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta cento)”.
por cento) e o máximo de 70% (setenta por Em 2013, a aprovação da Lei 12.891/2013
cento) para candidaturas de cada sexo. estabeleceu a campanha institucional do
Importante destacar que para a aprovação Tribunal Superior Eleitoral:
desta lei contribuiu a luta dos movimentos
Art. 93-A. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE),
sociais, além de campanhas desenvolvidas
no período compreendido entre 1° de março
desde 2008 pela Secretaria de Políticas para
e 30 de junho dos anos eleitorais, em tempo
as Mulheres da Presidência da República
igual ao disposto no art. 93 desta Lei, poderá
intitulada “Mais Mulheres no Poder: eu assumo
promover propaganda institucional, em rádio
este compromisso!”, mobilizadora de deputadas
e televisão, destinada a incentivar a igualdade
e senadoras no Congresso Nacional, mulheres
de gênero e a participação feminina na
de partidos políticos, no sentido de alavancar
política.
a participação das mulheres no congresso e na
Entretanto, embora essas alterações,
política partidária.
fiscalizadas e implementadas, representem
Outros pontos importantes da minirreforma
importantes ganhos para as mulheres, ressalta-
dizem respeito à destinação de um percentual
se que mudanças institucionais eficazes ainda
das receitas não inferior a 5% a ser destinado
não ocorreram e só ocorrerão com uma ampla e
ao processo de formação para as mulheres
profunda reforma do sistema político e eleitoral
e, no mínimo, 10% do tempo de Rádio e TV
brasileiro.
para difundir e divulgar a participação política
Os resultados das eleições de 2014 foram
feminina, conforme:
desanimadores: para o cargo de deputada
• modificações no art. 44 da Lei
federal, foram eleitas somente 51 mulheres
9.096/1995, sobre a aplicação dos
(9,9%), ao passo que se elegeram 462 homens
recursos do Fundo Partidário: inclusão
(90,10%); no Senado foram eleitas 5 mulheres
do inciso V “criação e manutenção de
(18,5%) e 22 homens (81,5%). Considerando
programas de promoção e difusão da
o Parlamento como um todo (540 cargos), as
participação política das mulheres
mulheres representam 10,37% – em 2010
conforme percentual que será fixado pelo
foram 9,2% de um total de 567 cargos. Das
órgão nacional de direção partidária,
mulheres eleitas, 12 se declararam negras, 11
observado o mínimo de 5% (cinco por
na Câmara e uma no Senado.
cento) do total”;
Importante registrar que a eleição de cinco
• inclusão do parágrafo 5º, determinando
mulheres para o Senado Federal, elevando
a sanção ao partido que não aplicar 5%
o número de senadoras para 12, ocorreu
dos recursos do Fundo Partidário para
num pleito em que foi renovado somente um
criação e manutenção de programas
terço dos 81 parlamentares, ou seja, estavam

Revista de Administração Municipal – RAM 35


em disputa apenas 27 cadeiras, ou seja, etária dos 40 aos 59 anos, sendo que as
conquistamos 18,5% das vagas em disputa. Das “pontas”representativas dos(as) mais jovens e
eleitas, duas estavam concorrendo à reeleição e dos(as) mais velhos se aproximam com 19,10% e
três são resultantes de primeira eleição. 22,61%, respectivamente. Ressalta-se que não há
A tabela 2 apresenta os resultados dos esforços correlação entre a pirâmide etária nacional onde,
em transformar candidaturas em pessoas eleitas, mesmo com aumento da população idosa4 ao longo
considerando as mulheres, o somatório de dos últimos vinte anos, o percentual em 2010 foi
homens e mulheres negras, as mulheres negras de 10,79% (em 2013, dados apontam 13%5) e de
em particular, os(as) indígenas, assim como os(as) 35,30% para a população da faixa etária de 20 a
jovens, possibilitando verificar que o resultado 24 anos6. Não reflete o perfil etário da população,
com maior sucesso ocorreu entre os(as) jovens. assim como também não reflete a distribuição da
A tabela 3 nos permite constatar, apenas população nem por sexo nem por raça/cor.
constatar, que 58,29% da Câmara Federal Importante registrar que pela primeira vez os
são compostos por deputadas(os) na faixa partidos conseguiram cumprir o determinado

Tabela 2
Candidaturas e pessoas eleitas por sexo, raça/etnia e geracional
Participação no processo eleitoral 2014
Candidaturas Eleitas(os)
Mulheres Negros Mulheres Indígenas Jovens Mulheres Negros Mulheres Indígenas Jovens
(♂+♀) Negras (♂+♀) Negras
2.277 2.965 998 27 466 56 111 12 0 23
100% 100% 100% 100% 100% 2,5% 3,7% 1,2% 0 4,9%
Fonte: http://www2.camara.leg.br/documentos-e-pesquisa

Tabela 3
Composição etária da Câmara Federal - 2014
Faixa Etária Eleita(o) % %
20 a 24 anos 2 0,39
25 a 29 anos 18 3,51
19,10
30 a 34 anos 29 5,65
35 a 39 anos 49 9,55
40 a 44 anos 60 11,70
45 a 49 anos 51 9,94
58,29
50 a 54 anos 97 18,91
55 a 59 anos 91 17,74
60 a 64 anos 56 10,92
65 a 69 anos 40 7,80
70 a 74 anos 10 1,95 22,61
75 a 79 anos 7 1,36
80 a 84 anos 3 0,58
Total 513 100,0 100,00
Fonte: http://www.inesc.org.br

4
Pessoas com 60 anos ou mais.
5
IBGE, PNAD 2013. Disponível em: www.ibge.gov.br Acesso em 21 ago. 2015.
6
IBGE,Censo 2010. Disponível em: www.ibge.gov.br Acesso em 21 ago. 2015.

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pela Lei 9.504/97 visando à equidade de homens e mulheres em todas as etapas do
gênero, mas os dados demonstraram que estas processo eleitoral.
candidatas não conseguiram chegar ao poder. A análise da tabela 4 demonstra que a presença
Deve ser dito, ainda, que a ação afirmativa das mulheres nas Assembleias Estaduais e
proposta, chamada de cota, determina como Distrital, com exceção de 2010, foi se reduzindo a
vimos anteriormente o percentual mínimo cada pleito neste início do século XXI.
(30%) e o máximo (70%) para candidaturas de Os Estados que tiveram maior número de
cada sexo, mas o ideal seria ter paridade entre mulheres eleitas em 2014 foram São Paulo e Rio
Tabela 4
Número de Deputadas/os estaduais/distritais eleitas/os

Eleições Feminino % Masculino % Total


2002 133 12,8 906 87,2 1.039
2006 123 11,6 936 88,4 1.059
2010 138 13,3 901 86,7 1.039
2014 120 11,3 942 88,7 1.062
Fonte: SAIA/SPM/PR. As Mulheres nas Eleições de 2014. http://www.spm.gov.br/sobre/publicacoes/
publicacoes-2014

de Janeiro, que elegeram seis mulheres cada, e o enfrentamento que se tornava necessário
seguidos de Minas Gerais, com cinco mulheres visto que as propostas das mulheres foram
eleitas. Em contraponto, os Estados de Mato ignoradas, correndo sério risco de retrocesso,
Grosso, Paraíba, Espírito Santo e Rio Grande como pode ser considerado o conjunto do que
do Sul não elegeram nenhuma mulher para a foi votado no primeiro semestre deste ano.
Câmara dos Deputados. Quanto aos partidos Em junho de 2015 o debate realizado no
políticos, os que mais elegeram mulheres foram Plenário da Câmara sobre a reforma política
o PT (oito Deputadas Federais e uma Senadora) considerando ações afirmativas, as chamadas
e o PMDB (sete Deputadas Federais e três cotas, para as mulheres,fechou as portas da
Senadoras), seguidos do PSB e PSDB com cinco arena política para as mulheres na medida em
Deputadas Federais cada. que não foram ouvidas as reivindicações dos
O ano de 2014 foi de luta pela reforma do movimentos feministas e de mulheres assim
sistema político no Brasil, iniciada em 2004, também como não ouviram as da Campanha
após a eleição do presidente Lula. Nesse ano pela Constituinte Exclusiva para a Reforma
de 2014 as bancadas femininas da Câmara Política, nem da Coalização Democrática pela
dos Deputados e do Senado Federal lançaram Reforma do Sistema Político e Eleições Limpas,
a campanha“Mais mulheres na política: que mobilizaram mais de 10 milhões de pessoas
tome partido”, com apoio das Secretarias da em torno dessa questão.
Presidência da República de Políticas para Os deputados, homens brancos, nunca é
as Mulheres e de Promoção da Igualdade demais lembrar, não admitiram sequer discutir
Racial. Uma das ações da campanha é levar paridade, nem quota de 30%, nem de 20% de
aos estados informações sobre como vinha mulheres eleitas. Só aceitaram pautar uma
se desenvolvendo a luta pela reforma política emenda apresentada pela Bancada Feminina
no Congresso em 2015, considerando os ao parecer do relator, que escalonava as quotas
debates em andamento sobre a PEC 182/077 em 10%, 12 e 15%. Vale recuperar o relato de

7
PEC 182/07 - REFORMA POLÍTICA - Proposta de Emenda à Constituição nº 182, de 2007, do Senado Federal, que
“altera os arts. 17, 46 e 55 da Constituição Federal, para assegurar aos partidos políticos a titularidade dos mandatos
parlamentares e estabelecer a perda dos mandatos dos membros do Poder Legislativo e do Poder Executivo que se
desfiliarem dos partidos pelos quais forem eleitos” (PEC da Fidelidade Partidária), e apensadas – PEC 18207.

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militante8 do movimento feminista, testemunha Em 25 de agosto de 2015 a PEC 98/2015
presencial do fato. foi aprovada em primeiro turno pelo Plenário
O texto da emenda previa uma espécie de do Senado, com 65 votos favoráveis e sete
reserva de vagas de mulheres eleitas nas contrários. Em sequencia, terá que passar por
próximas três legislaturas, seguindo um mais três sessões antes da votação em segundo
percentual gradual. Na primeira delas, turno e, em seguida, será encaminhada para a
de 10% do total de cadeiras (que é o que apreciação da Câmara dos Deputados.
já temos hoje) na Câmara dos Deputados, A PEC 98/2015 foi construída pela bancada
nas Assembleias Legislativas estaduais, feminina em um acordo que uniu todas as
nas Câmaras de Vereadores e na Câmara senadoras procurando, entre outras situações,
Legislativa do Distrito Federal. Na segunda alterar o quadro que coloca o Brasil na posição
legislatura, o percentual subiria para 12% 116ª no ranking de representação feminina no
e, na terceira, para 15%. As vagas seriam Legislativo num total de 190 países, segundo
preenchidas pelo sistema proporcional. Caso dados da União Interparlamentar.
a cota não fosse preenchida, seria aplicado Com tudo isso, cabe aos movimentos
o princípio majoritário para as vagas feministas e de mulheres seguirem no
remanescentes. A emenda apresentada pela processo de luta em busca de mecanismos que
bancada feminina só conseguiu 293 votos a democratizem o poder com participação dos e
favor do texto; mas o mínimo necessário era das excluídas dos espaços de decisão, na busca
de 308, levando à rejeição da emenda. Houve de mudanças da sociedade, revertendo em
101 votos contrários e 53 abstenções. desdobramentos no Estado brasileiro.
Ressalte-se: esses percentuais inaceitáveis que Mesmo sendo o foco deste artigo a
foram propostos manteriam o Brasil no último participação das mulheres no poder legislativo,
lugar no ranking latino-americano sobre a vale apresentar alguns dados que demonstram
participação das mulheres nos parlamentos a menor presença das mulheres nos cargos
da nossa região. A rejeição da emenda foi de poder e decisão tanto no poder executivo
muito ruim, mas a sua aprovação também quanto no judiciário.
teria sido péssima, afinal, constitucionalizar Com relação aos cargos eletivos, o século XXI
uma quota ridícula seria um atraso. Não não está sendo diferente no que diz respeito
houve mudança constitucional nenhuma! E à participação das mulheres nas eleições
a legislação infraconstitucional, que fixa os majoritárias para os governos dos estados e
limites mínimo e máximo de 30% e 70% de Distrito Federal. Não ultrapassamos os 11%,
candidaturas por sexo continua valendo. alcançados em 2006, e estamos em decréscimo
Em paralelo, a Comissão Temporária da como mostra a tabela 5.
Reforma Política do Senado Federal apresentou Com relação aos cargos não eletivos do
uma proposta de emenda à Constituição: a PEC Executivo a situação não é muito diferente. A
98/20159, que acrescenta o artigo 101 ao Ato das presença de mulheres nos postos de maior
Disposições Transitórias da Constituição para que visibilidade e poder, como as funções ministeriais,
passe a ser obrigatória a eleição de um determinado é ainda muito tímida, mesmo num período em que
número de mulheres nas Casas Legislativas. a sociedade brasileira reelegeu uma mulher para

8
Guacira Cesar de Oliveira. Integra o Colegiado de Gestão do Centro Feminista de Estudos e Assessoria – CFEMEA, 2015,
Brasília, DF. www.cfemea.org.br
9
Segundo o texto da PEC, na primeira eleição após a promulgação da emenda constitucional, pelo menos 10% das vagas
nas Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas, Câmara Legislativa do Distrito Federal e Câmaras Municipais
seriam reservadas às mulheres. Esse percentual passaria para 12% das cadeiras na eleição seguinte e para 16% das
vagas na terceira eleição após a vigência das novas regras. Se o percentual mínimo não for atingido, as vagas serão
preenchidas pelas candidatas com maior votação nominal individual dentre os partidos que atingiram o quociente
eleitoral. Fonte: http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2015-07-27/comissao-apresenta-pec-que-determina-
numero-exato-de-mulheres-no-legislativo.html

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o mais alto cargo da república. Iniciou o mandato sendo que no primeiro mandato tomou posse com
com seis ministras, num total de 39 ministérios, nove ministras em 37 pastas, ou seja, 24,3%.
significando 15,4% dos cargos de primeiro escalão,
Tabela 5
Número de Governadoras/es eleitas/os - 2002, 2006, 2010 e 2014

Eleições Mulheres % Homens % Total


2002 2 7,4 25 92,6 27
2006 3 11,1 24 88,9 27
2010 2 7,4 25 92,6 27
2014 1 3,7 26 96,3 27
Fonte: As Mulheres nas Eleições de 2014. http://www.spm.gov.br/sobre/publicacoes/publicacoes-2014 e http://
www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u41684.shtml

Tabela 6
Distribuição por nível de escolaridade

Escolaridade Masculino Feminino


Fundamental 8% 4%
Ensino Médio ou Técnico 26% 24%
Superior 43% 48%
Aperfeiçoamento / Especialização / Pós-graduação 4% 5%
Mestrado 7% 8%
Doutorado 12% 11%
Fonte: Boletim Estatístico de Pessoal nº 214, de fevereiro de 2014/Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

Com relação ao poder executivo, a A distribuição percentual de mulheres no


distribuição de servidores(as)10, segundo o poder executivo, segundo raça/cor, informa que
sexo, em 2014, temos que 46% são do sexo 24% se identificaram como da cor branca, 9%
feminino. Considerando a distribuição por sexo parda, 2% negra, 2% amarela, nenhuma indígena
e nível de escolaridade, a tabela 6 informa a e as demais não informaram11. O mesmo estudo
maior taxa de escolaridade das mulheres, que informa que 34,7% de cargos de DAS12 Níveis 4
de um modo amplo acompanha a tendência da a 6 são ocupados por mulheres, segundo a raça/
distribuição na sociedade brasileira. cor, em 2014, conforme tabela 7, confirmando a
prevalência do poder masculino e branco.
Tabela 7
DAS Níveis 4 a 6 ocupados por Mulheres – 2014

Raça / Cor % Raça / Cor %


Branca 23,7 Amarela 0,9
Parda 5,4 Indígena 0,1
Negra 1,2 Não informada 3,4

10
ENAP Estudos. Servidores Públicos Federais. Gênero – 2014.
11
ENAP Estudos. Servidores Públicos Federais. Raça/Cor – 2014. Disponível em: http://www.enap.gov.br Importante:
A nomenclatura utilizada no Estudo acompanha a usada pelo Siape para raça/cor que difere da utilizada pelo IBGE. O
IBGE usa a nomenclatura “preta”, enquanto o Siape usa a nomenclatura “negra”.
12
Direção de Assessoramento Superior (DAS): nível de função de nº 1 ao 6, quanto mais alto o DAS maior o poder de
decisão e remuneração.

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Mesmo assim, é possível afirmar que no garantidos pela aplicação de concursos públicos,
setor público estaria o lócus onde as mulheres proporcionando que o espaço venha sendo
disputariam de forma mais equilibrada as conquistado por candidatas que, cada vez mais,
chances de um posto de trabalho, tendo em são aprovadas nos concursos para ingresso na
vista a atitude menos discriminatória do Estado magistratura e também no Ministério Público,
nas contratações, dada à obrigatoriedade do dividindo em números quase paritários os cargos
ingresso no trabalho ocorrer mediante a via do de juízes e de promotores de justiça.
concurso público, provas e títulos. Entretanto, Entretanto, quando se trata das instâncias
se por um lado o acesso é garantido por lei superiores e de cargos providos por indicação,
por outro a continuidade da carreira com o que ainda se tem é a menor participação
a participação das mulheres em posições feminina. Esses dados traduzem a desigualdade
elevadas na hierarquia das instituições não no acesso às oportunidades para transitar em
é contínua por diferentes motivos13, que vão espaços políticos historicamente ocupados
desde a constatação de que são poucas as por homens. A disputa não mais depende da
mulheres que disputam cargos gerenciais ou classificação alcançada pela candidata em
se sentem preparadas para assumir cargos de concurso público de provas e títulos, mas de
chefia até o processo de indicação seletiva e abertura política e de reconhecimento dos
política para os cargos que detêm maior poder próprios pares, na maioria homens.
no processo de tomada de decisão. Desta forma, a sub-representação das
Com relação ao poder judiciário, diferentemente mulheres na cúpula do Poder Judiciário pode
do que ocorre nas Cortes Superiores, a maior ser observada na tabela 8 ressaltando-se que
proporção de mulheres na Justiça de primeiro pela primeira vez no Superior Tribunal Militar
grau reflete critérios de seleção formais e claros (STM) uma mulher ocupa hoje a presidência14.

Tabela 8
Participação das Mulheres nos Tribunais Superiores

Tribunais Superiores Mulheres % Homens % Total


Superior Tribunal Federal – STF 2 18 9 82 11
Superior Tribunal da justiça – STJ 6 18 27 82 33
Tribunal Superior Eleitoral – TSE 2 29 5 71 7
Tribunal Superior do Trabalho – TST 5 19 22 81 27
Superior Tribunal Militar – STM 1 7 14 93 15

Fonte: SAIA/SPM/PR. As Mulheres nas Eleições de 2014. http://www.spm.gov.br/sobre/publicacoes/publicacoes-2014.

Possível pensar em observações finais velha questão sobre o que mais há para ser
Pensar e repensar a condição feminina enfrentado. Quais os desafios que ainda não
nas primeiras décadas do século XXI é tarefa foram descobertos. Ou tudo retorna ao “tornar-
árdua frente aos séculos de lutas em diferentes se mulher” de Simone Beauvoir.
dimensões travadas pelos movimentos Por maior que tenha sido o desenvolvimento
feministas e de mulheres. Surge, ressurge, a tecnológico, os avanços do ter em maior escala

13
Fontenele-Mourão, Tânia M. Mulheres no topo de carreira. Flexibilidade e persistência. Brasília: Secretaria Especial de
Políticas para as Mulheres, 2006.
14
VAZ, Laurita Hilário. O papel da mulher no Poder Judiciário e no cenário brasileiro. Edição nº 175 da Revista JC, 2015.
www.editorajc.com.br.

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do que o do ser, as mulheres continuamos sendo Os estudos sobre uso do tempo são importantes
cobradas pelo desempenho de um papel dito para subsidiar a elaboração de políticas públicas
natural do qual tentamos nos desvencilhar em que transfiram parte da responsabilidade pelas
busca de autonomia plena, emocional, sexual, atividades de reprodução da sociedade das
política, cultural, financeira, familiar e outras mulheres para o Estado.
mais que complementem a plenitude de cada Que barreiras mais precisam ser
uma, de cada ser, de cada pessoa. Novos arranjos ultrapassadas para vencermos a inserção
familiares foram reconhecidos legalmente e há desigual nas diferentes áreas do viver em
uma busca no comportamento cultural de pelo sociedade. E questionamos se ainda, e cada
menos parte da sociedade brasileira para que vez mais, estaremos num eterno processo de
também o sejam no dia a dia. construção. Construção de um caminho de mão
Alguns homens se esforçam na descoberta dupla onde nossa presença no mundo altera
do papel, ou melhor, dos papeis, a serem as diferentes esferas e dimensões do viver em
desempenhados na “nova” constituição sociedade, e por elas somos influenciadas e
familiar. E curiosamente, se é que se pode dizer modificadas.
dessa forma, entre as tarefas domésticas a que O foco deste artigo foram os espaços de poder
trata de cozinhar ganhou status. A gastronomia e tomada de decisão, em especial a participação
se apresentou ao cotidiano. Os meios de política das mulheres buscando formas de
comunicação noticiam diferentes programas mudar o dia a dia de milhares e milhares de
culinários, concursos, circuitos gastronômicos, mulheres. Apostar num “mundo melhor” pelo
e quando temos fotos15 dos eventos em geral feminismo, a exemplo da ministra das Relações
nos mostram que a maioria dos participantes Exteriores da Suécia, Margot Wallström17, que
são homens brancos. Em paralelo cabe a em 2014, ao assumir a pasta, informou que sua
pergunta, se estamos assistindo a tarefa de política exterior seria feminista,estava decidida
alimentar a família enquanto uma atividade a priorizar a luta por igualdade de gênero na
diária, atividade do cuidar para a saída do(a) sua gestão.
trabalhador(a) para o mercado de trabalho, Definiu sua política exterior feminista como
do(a) estudante para a escola, sendo assumida, aquela que busca assegurar os direitos e a
enfim, como uma atividade da família e não participação da mulher no processo de tomada
exclusiva de uma pessoa do grupo familiar, a de decisões centrais, mesmo em negociações
quem se está “ajudando”. de paz. Esta forma inédita de observar as
No sentido de perceber e dimensionar as relações internacionais se sustenta sobre três
atividades domésticas por aquelas/es que eixos, chamados pelo governo sueco de “caixa
as executam, dando visibilidade às mesmas de ferramentas” dos “três erres”: respeito
e apontando como oneram desigualmente pelos direitos, representação e recursos.”
homens e mulheres, desenvolveram-se estudos Mudança no olhar de quem chegou ao
que investigam o uso do tempo, ou seja, que poder, pode dar esperança e, concretamente,
detalham o impacto no cotidiano das mulheres apresentar caminhos aos demais países e
das horas dedicadas às atividades domésticas16. governantes.

15
“Que Marravilha”. O Globo. 26/07/2015. Rio de Janeiro.
16
Tais estudos evidenciam a necessidade de que homens e mulheres se responsabilizem conjuntamente pelas
atividades de reprodução social, compartilhando-as de forma equitativa. Equipamentos sociais e serviços como creches,
restaurantes populares, lavanderias comunitárias e transporte escolar contribuem para que as mulheres aumentem seu
tempo disponível para outras atividades, que incluem desde sua inserção no mercado de trabalho até o descanso e lazer.
http://www.observatoriodegenero.gov.br/menu/areas-tematicas/uso-do-tempo.
17
Margot Wallström, 60 anos, antes de ocupar o cargo de ministra das Relações Exteriores, havia sido integrante da
Comissão Europeia e a primeira Representante Especial do Secretário-Geral da ONU para Violência Sexual em Conflitos.
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/06/150624_politica_exterior_feminista_suecia_rm?ocid=socialflow_
facebook.

Revista de Administração Municipal – RAM 41


Alianças com o Terceiro Setor. Ideologia,
instrumentação e ação municipal
Gil Soares Junior*

Resumo: O presente artigo aborda a colaboração entre o setor público e o chamado terceiro
setor adotando três perspectivas. A primeira registra os conflitos ideológicos que presidiram
o desenvolvimento da relação público/privado e a sua superação em face da imperatividade
contemporânea de uma ação diversificada de um Estado carente de recursos. A segunda resgata
os elementos norteadores da Constituição de 1988 e da Reforma do Aparelho do Estado na
década de 90, os instrumentos jurídicos de cooperação deles decorrentes, alguns números de
sua utilização e a reformulação proposta pelo novo Marco Regulatório das Organizações da
Sociedade Civil. A terceira e última encerra algumas reflexões sobre esta colaboração em nível
municipal e cita alguns exemplos de sua bem-sucedida aplicação local.
Expressões-chave: Estado Máximo, Estado Mínimo, Administração Contratualista, Administração
por Resultados, Convênios, Contratos de Gestão, Termos de Parceria, Marco Regulatório.

Ideologia inimigos externos, à defesa dos indivíduos


As competências do Estado e os limites contra eles mesmos e ao desempenho de obras
de sua ação na organização de seus poderes públicas sem interesse para o setor privado,
dentro da sociedade e na prestação de seus como nos lembra Bobbio1. Esta postura de
serviços se constituíram, ao longo do tempo, Etat Gendarme (Estado Guardião) se amoldava
em palco de longas “batalhas” de formulação perfeitamente aos interesses da emergente
teórica e doutrinária. Estas “batalhas” classe burguesa, ansiosa por remover
concentraram os contendores em dois polos, obstáculos ao desenvolvimento de seus
representando conjuntos de ideias opostas de negócios. Os reforços a este ideário se fizeram
condução de ações no campo socioeconômico sentir na doutrina econômica de Adam Smith,
e político. O primeiro deles, de cunho liberal, que defendia a livre atuação do mercado, como
advogava o Estado Mínimo e o outro, de cunho forma de produção e distribuição de riqueza.
intervencionista, pleiteava o Estado Máximo. A visão intervencionista se nutriu
A corrente liberal, inspirada nos ideais inicialmente das desigualdades sociais deixadas
da Revolução Francesa e no Direito Natural a nu pela Revolução Industrial, denunciadas já
preconizado pelo Contrato Social de Jean no século XIX nas formulações do marxismo.
Jacques Rousseau, buscava enterrar de vez o 1
BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. São Paulo:
padrão absolutista de governo vigente até então, Editora Brasiliense, 2006.
proclamando que o Estado, ao invés de sufocar
e inibir a iniciativa dos indivíduos, impedindo- * Administrador graduado pela Fundação Getulio
os de buscar formas de autorrealização, deveria Vargas e Pós-graduado pelo Institut International
se submeter ao império da lei e se abster de D´Administration Publique (Paris). Advogado
todo tipo de interferência na iniciativa privada. graduado pela UERJ e Pós-graduado em Direito
Deveria se ater à defesa da sociedade contra Administrativo pela Universidade Cândido Mendes.
Consultor técnico do IBAM.

42 Revista de Administração Municipal – RAM


Independentemente destes caminhos mais deve ser algo distinto e mais rico do que os dois
radicais, que levaram à construção do elementos que entraram em choque.
comunismo como alternativa ao capitalismo,
pode ser identificado, já no início do século XX, A superação da dicotomia
dentro da própria sociedade capitalista, um A constatação de que a dicotomia precisa
ideário que se contrapõe à concepção liberal, ser superada está presente em Carvalho Filho2
e que está bem caracterizado pelo pensamento quando alude a um Estado Médio, que se limite
de J. M. Keynes. Buscava ele uma solução para as a intervenções necessárias e adequadas para
crises cíclicas do mercado e suas repercussões cumprir papel de representante dos interesses
no tecido social. Esta solução passava por uma da sociedade e dos indivíduos que a compõem.
forte atuação do Estado, que deveria se fazer Mattei3 fala de um novo desenvolvimentismo,
presente em todas as que atribui ao Estado a
instâncias, garantindo a capacidade para regular a
vitalidade econômica e o Estas alternâncias entre Estado economia, fazer a gestão
controle das repercussões Mínimo x Estado Máximo dão pública com eficiência
sociais. Foi ela que e responsabilidade, im-
orientou, por exemplo, o
lugar a uma interação e fricção plementar políticas macroe-
New Deal, programa de dos dois “contendores” conômicas, estimular a
reconstrução europeia no em busca de uma terceira via competitividade industrial e
pós-guerra. criar mecanismos de redução
Esta dicotomia foi da desigualdade de renda.
confrontada na contemporaneidade com uma É também nosso entendimento que não é mais
série de fenômenos tais como a implosão possível prosseguir com o engessamento típico
do comunismo, a revolução tecnológica desses radicalismos. Elementos integrantes
e a globalização dos mercados, para citar de distintas visões globais polarizantes ainda
apenas alguns. Estes choques, com a gama de se farão presentes no debate sobre as ações
complexidades que aportaram, evidenciaram a adotadas para a Administração Pública,
insuficiência dos padrões ideológicos fechados mas certamente não terão mais a força de
e excludentes que se alternavam, em movimento preestabelecer uma orientação política
pendular, como norteadores das diferentes verticalizada e disseminada, que exclui
construções socioeconômicas e políticas totalmente componentes trazidos por outras
levadas a efeito pela ação governamental. Estas visões. Nos novos tempos, as estratégias e
alternâncias entre Estado Mínimo x Estado ações de Governo trabalham mais com a ideia
Máximo, que em outro trabalho comparei aos de enfatizar aqui e ali aspectos mais sociais
movimentos de sístole e diástole da pulsão ou mais liberais, usando os direcionamentos
cardíaca, dão lugar a uma interação e fricção de fundo ideológico mais no varejo do que no
dos dois “contendores” em busca de uma atacado, admitindo mais flexibilidades do que
terceira via. Entra em cena o velho método se imaginava fosse possível.
dialético, criado na antiga Grécia e utilizado De todos estes embates resta como
com inteligência nas formulações marxistas. A persistência, fruto da decantação produzida ao
dialética é uma forma de análise da realidade longo do tempo, a visão filosófica e poética de
que confronta teorias e que vê a realidade como Gilles Deleuze, sobre esquerda e direita, que
um complexo de processos. Uma afirmação ainda pode informar ou subsidiar o que se esteja
(tese) deve ser contraposta por uma antítese produzindo como política ou estratégia da ação
que é sua negação, em busca de uma síntese que do Estado em conjunto com outras forças sociais.

2
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Estado Máximo x Estado Mínimo: o dilema. Disponível em: http://www.pjf.mg.gov.
br/secretarias/pgm/documentos/revistas/2011/artigo5.pdf Acesso em 21 ago. 2015.
3
MATTEI, Lauro. Gênese – A Agenda do Novo Desenvolvimento Brasileiro. Encontro Internacional da Associação
Keynesiana Brasileira. 4. Rio de Janeiro. 2011.

Revista de Administração Municipal – RAM 43


Para Deleuze4, e o PDT, autores da ação, alegavam, entre outros
ser de esquerda ou de direita é uma questão de pontos, que sendo a saúde um típico serviço
percepção. Ser de direita é como um endereço público, embora não exclusivo, só poderia
postal. Parte-se primeiro de si próprio, depois ser prestado pelo setor privado em caráter
vem a rua em que se está, depois a cidade, o complementar. A lei em questão, abrindo a
país, os outros países e assim cada vez mais possibilidade de transferência de recursos,
longe. Começa-se por si mesmo e na medida servidores e bens públicos para particulares,
em que se é privilegiado, se vive em um país estaria, na verdade, promovendo a substituição
rico, procura-se pensar em como fazer pra da ação do setor público pela do setor privado.
que esta situação perdure. Sabe-se que há O STF entendeu que a Lei é constitucional,
perigos, que isso não vai durar. Como fazer uma vez que a atuação da Corte Constitucional
para que isso dure? não pode traduzir forma de engessamento e de
Ser de esquerda é o contrário. Primeiro cristalização de um determinado modelo pré-
percebe-se o horizonte. Depois, em sucessão, concebido de Estado, impedindo que, nos limites
o mundo, o continente, o país, a cidade, a rua constitucionalmente assegurados, as maiorias
e você mesmo. Sabe que isso não pode durar, políticas prevalecentes no jogo democrático
milhares de pessoas morrendo de fome. Não pluralista possam pôr em prática seus projetos
é possível essa injustiça absoluta. Considera de governo, moldando o perfil e o instrumental
que estes problemas devem ser resolvidos. do poder público conforme a vontade coletiva5.
Ser de esquerda é achar que os problemas do O resultado deste julgamento foi visto
terceiro mundo estão mais perto de nós do como uma ducha fria na manifestação que se
que os do nosso bairro. Não existem governos realizava em São Paulo naquele mesmo dia e
de esquerda. O que pode existir é um governo que comemorava o recuo conseguido na Lei
favorável a algumas exigências da esquerda. de Terceirização, com a exclusão das empresas
Caso ilustrativo deste novo front de estatais do rol das entidades que poderiam
contraposição de elementos da antiga terceirizar atividades fins.
polarização visceral é a ADIN 1.923/98
que contestou a constitucionalidade da Lei A valorização da cooperação
9.637/98, que estabeleceu o contrato de gestão Superados os radicalismos ideológicos
como uma forma de transferência da gestão e adentrando nas considerações sobre as
de serviços para o setor privado. O pedido de alternativas para organização e ação da
liminar foi indeferido. O julgamento da ação administração pública no atingimento de seus
começou em 2011 e só foi concluído agora em objetivos é possível constatar a existência de
16/04/2015. Na fundamentação do pleito, o PT dois motores: a descentralização e a cooperação.

4
DELEUZE, Gilles. O que é ser de esquerda. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=W2f4Hw8cvv0 Acesso
em: 21 ago. 2015.
5
ADIN1923/DF- Relator : Ministro Ayres Britto.

44 Revista de Administração Municipal – RAM


A descentralização possibilitou a expansão vigor valoriza a ação cooperativa do Estado,
da autonomia e da flexibilidade da ação na como no art. 23 § único, em que encoraja leis
esfera pública, possibilitando a criação de uma complementares para a cooperação entre a
administração indireta, formada por entidades União, os Estados e os Municípios; no art. 211
com personalidade jurídica própria, capazes de §4º, que incentiva a cooperação entre os Entes
impulsionar a prestação de serviços públicos e Federados na organização dos sistemas de
ações no campo social (autarquias) e no campo ensino; e no art. 241, em que autoriza a gestão
econômico (empresas estatais). associada de serviços públicos entre instâncias
A cooperação aposta essencialmente em da Federação por meio de consórcios públicos e
instrumentos que permitam uma ação conjunta convênios de cooperação.
entre órgãos das diferentes instâncias da Paralelamente a esta estratégia de fomentar a
Federação, num processo de cooperação dentro do setor
complementação facilitador público, a Constituição de
do atingimento de A cooperação aposta 1988 dedica numerosos
objetivos. Num movimento essencialmente em artigos à promoção da
ainda mais abrangente instrumentos que permitam cidadania e da participação
e de transbordamento, direta da sociedade nas
a Administração Pública uma ação conjunta entre decisões que lhe afetam. O
vai em busca de aliados órgãos das diferentes capital social acumulado
além de suas fronteiras, instâncias da Federação pelos movimentos sociais
tentando captar na e pelas organizações da
iniciativa empresarial ou na organização da sociedade civil qualifica-os para a participação
sociedade civil, seja a expertise, seja a afinidade no processo decisório colaborativo com o
de interesses, sejam ambos, em prol de uma Estado, na condução de políticas públicas e no
ação comum. A ação colaborativa expande atendimento às demandas sociais. Nesta linha,
a capacidade realizadora do setor público, cabe registrar o estímulo ao cooperativismo e às
abrindo perspectivas de composição de uma diversas formas de associativismo registrado no
gama variada de recursos que dificilmente art. 174 §2º e a vedação à interferência estatal
estariam disponibilizados numa iniciativa nestes movimentos expressa no inciso XVIII do
exclusivamente estatal. art. 5º.da Constituição. São precisamente estes
A grande moldura para o exame do espaço últimos dispositivos citados que vão fortalecer
de alianças do setor público com o terceiro a estruturação do terceiro setor, constituído
setor não poderia deixar de ser a Constituição por entidades da sociedade civil de formação
de 1988. Desde sua formulação originária voluntária sem fins lucrativos e com aspirações
ela se mostra bastante avançada, procurando convergentes com as do Governo no campo
equilibrar diferentes tendências presentes social.
na sociedade brasileira. Ao mesmo tempo em
que consagra no art. 170 uma visão neoliberal A Reforma do Estado – Emenda
da atividade econômica, ao privilegiar a Constitucional nº 19/98
livre-iniciativa e a ação do Estado apenas em A reforma empreendida pela Emenda
condições especiais, tem um capítulo inteiro Constitucional 19/98 congrega um conjunto
dedicado aos direitos sociais, que vêm se de dispositivos voltados para uma ampla
somar aos direitos individuais já consagrados reestruturação da Administração Pública,
na Declaração Universal de Direitos Humanos, baseada em três ideias-força: a visão neoliberal
além de privilegiar a função social do direito de não intervencionista do Estado, o caráter
propriedade. contratualista da atuação do setor público e a
Ao lado deste caráter multifacetado, opção pela administração por resultados.
capitaneado pela construção do Estado A visão neoliberal de organização do Estado
Democrático de Direito, a Constituição em se inspira nas reformas privatistas do Reino

Revista de Administração Municipal – RAM 45


Unido na década de 1980. As políticas de descentralização proporcionados pelo Decreto
Margaret Thatcher no Reino Unido, chamadas de 200/1967, que avançaram na expansão da
neoliberais, apostam num modelo que mantém administração indireta, são agora retomados
o Estado nos serviços essenciais e como agente e potencializados. Curiosa é a leitura inversa
regulador, revalorizando as forças do mercado que os autores da reforma fazem deste
e promovendo privatizações. O próprio processo, chamando-o de publicização, como
mentor da reforma, Ministro Bresser Pereira6, se o estivessem vendo do ponto de vista das
reconheceu esta influência ao relatar que sua entidades do terceiro setor que chegam para
viagem ao Reino Unido tinha tido exatamente o colaborar com o Estado. Na verdade, do ponto
propósito de conhecer as reformas feitas por lá. de vista do Estado, promotor da reforma,
O caráter contratualista corresponde a trata-se exatamente do contrário, ou seja,
uma mudança de postura, com o Governo de privatização de serviços que antes eram
saindo de sua redoma imperial e buscando realizados diretamente pelo Poder Público.
ocupar um espaço mais abrangente, flexível Entre as alterações propostas pela Emenda
e integrador, com destaque para a formação Constitucional 19/98 destaca-se a que agrega o
de parcerias e alianças. A contratualização princípio da eficiência aos princípios pilares da
significa a substituição das relações baseadas na administração pública relacionados no art. 37.
subordinação ou comando por relações fundadas Uma vez que se trata de buscar resultados, melhor
na discussão e na troca”7. Gustavo Justino de seria se falassem em eficácia ou, ainda, com mais
Oliveira8 elenca entre os novos paradigmas do propriedade, em efetividade, já que o conceito de
Estado o fortalecimento da negociação por via eficiência está ligado à racionalidade e à economia
de acordos, a cultura do diálogo, a governança processual, não contendo necessariamente o
e o consensualismo. Odete Medauar9 vê a alcance de metas ou o reconhecimento do impacto
Administração como mediadora numa ação das atividades realizadas.
aberta à colaboração dos indivíduos, ganhando Outra alteração essencial é a que cria o § 8º
relevo o consenso e a participação. no mesmo art. 37, com itens I, II e III. O referido
A administração por resultados tem § 8º reza:
linha direta com a Administração por A autonomia gerencial, orçamentária
Objetivos, elemento da Teoria Neoclássica de e financeira dos órgãos e entidades da
Administração de Peter Drucker. O foco são administração direta e indireta poderá ser
as finalidades organizacionais e a eficácia das ampliada mediante contrato, a ser firmado
ações. Seria, na linguagem de Ari Sundfeld10, entre seus administradores e o poder público,
substituir a “administração de clips” pela que tenha por objeto a fixação de metas de
“administração de negócios”. desempenho para o órgão ou entidade (...)
Neste processo, o Estado se requalifica Embora não o mencione expressamente,
como gerente, delegando a execução de este dispositivo ampara a criação de contratos
atividades a quem tem competência para fazê- de gestão, como reconhece Di Pietro11. O item
lo, concedendo-lhe autonomia para gerir com I deste § 8º tem ainda a relevância de aludir a
flexibilidade os recursos que lhe serão oferecidos critérios de avaliação de desempenho que serão
e reservando-se o direito de fiscalizar e cobrar o contraponto para a concessão de autonomia
os resultados almejados. Os mecanismos de aos órgãos administrativos.
6
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Do Estado Patrimonial ao Gerencial In Pinheiro, Wilheim e Sachs (orgs.), Brasil: Um
Século de Transformações. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. p. 222-259. Disponível em http://www.bresserpereira.org.
br/papers/2000/00-73EstadoPatrimonial-Gerencial.pdf Acesso em: 24 ago. 2015.
7
PONTIER, Jean-Marie. Les Contrats de Plan entre L´Etat et les Régions. Paris: PUF, 1998. p.17.
8
OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Contrato de Gestão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
9
MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em Evolução. 2 ed. São Paulo: RT, 2003.
10
SUNDFELD, Carlos Ari. O direito administrativo entre os clips e os negócios. Revista de Direito Público da Economia –
RDPE, ano 5, n. 18, abr./jun. 2007.
11
DI PIETRO, Maria Silvia. Parcerias na Administração Pública. São Paulo. Ed. Atlas.1999. p.197.

46 Revista de Administração Municipal – RAM


Vale deixar claro que o instrumento criado ficou a cargo dos Decretos 2.487 e 2488, ambos
pela legislação acima se aplica apenas no âmbito de 02.02.1998. O Decreto 2.487/98 elenca os
do próprio setor público, daí minha preferência elementos que devem estar contidos no plano
por chamá-los de contratos públicos de gestão, estratégico da agência e no contrato público
em contraponto com contratos de gestão de de gestão, assim entendidos os compromissos
abrangência público-privada que formalizam que devem ser por ela assumidos. O Decreto
alianças entre o setor público e as entidades 2.488/98 estabelece os parâmetros que
do terceiro setor e que serão abordados mais nortearão a maior autonomia e flexibilidade
adiante. Melhor ainda seria se o legislador os administrativa a serem concedidas a estas
tivesse batizado como contratos de programa, agências como contrapartida das exigências
denominação utilizada na Europa para este tipo contidas no contrato. Os contratos celebrados
de instrumento jurídico. Os contratos públicos com o INMETRO desde 1998 mostram que este
de gestão antecipam o espírito contratualista instrumento é viável dentro de determinadas
e de cooperação que irá presidir a criação dos condições e é pena que ele não tenha
instrumentos de colaboração entre o setor efetivamente se tornado em prática muito
público e o terceiro setor, alvo principal deste difundida no setor público.
artigo, daí a validade de algumas observações
sobre eles. Instrumentação das alianças
Os ora nomeados contratos públicos de Ao iniciar o exame dos instrumentos
gestão encontraram dificuldades para sua viabilizadores de alianças entre o setor público
implementação. A primeira e o terceiro setor, cabe lembrar a distinção entre
delas decorre do fato dos a composição de contratos
órgãos da Administração Os contratos públicos de e a composição de acordos,
Pública serem centros gestão antecipam o espírito tendo em vista que ambos
de competência sem possibilitam a colaboração
personalidade jurídica,
contratualista e de cooperação do setor público com o
sendo, portanto, incapazes que irá presidir a criação dos setor privado e existe
de exercer direitos e instrumentos de colaboração entendimento pacificado
contrair obrigações. Para entre o setor público e o na doutrina jurídica sobre
Bandeira de Mello ...Nem este tema.
o Estado pode contratar
terceiro setor Os contratos administra-
com seus órgãos, nem eles tivos (típicos, concessões
entre si, que isto seria um contrato consigo etc.) relacionam a adminis-tração pública com
mesmo – se se pudesse formular suposição tão o empresariado. Nestes contratos existem
desatinada12. Pelas mesmas razões, Di Pietro13 interesses antagônicos (interesse público x
entende que o instrumento teria que ser um lucro), a remuneração passada ao contratado se
termo de compromisso baseado em suas próprias torna dinheiro privado, e a realização de licitação
competências e atribuições. e a definição de prazo são mandatórios. Nos
Como parte da Lei 9.649/98, que tratou de acordos, até aqui genericamente chamados de
diferentes aspectos de ajuste da organização convênios, os interesses entre o setor público e as
da Administração Federal, foi introduzida nos entidades sem fins lucrativos são comuns, o valor
arts. 51 e 52 a figura da agência executiva, como repassado a estas entidades permanece como
potencializadora da celebração de contratos recurso público, não há licitação obrigatória
públicos de gestão. A regulamentação da e pode ser denunciado unilateralmente sem
atuação e papel das agências executivas e do repercussão indenizatória, independentemente
conteúdo dos contratos públicos de gestão do prazo que venha a ser estabelecido.

12
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 31. ed., São Paulo: Malheiros, 2014. p. 209.
13
DI PRIETO, Maria Sylvia. Direito Administrativo, 26. ed., São Paulo: Atlas, 2013. p. 348.

Revista de Administração Municipal – RAM 47


Os convênios público federal, atuando como mandatário da
Os convênios têm sido até aqui o União.
instrumento dominante na formalização de Termo de Cooperação é definido como
toda a ação colaborativa empreendida pelo instrumento por meio do qual é ajustada
Estado. Por este motivo, aqui também torna-se a transferência de crédito de órgão da
importante estabelecer previamente algumas administração pública federal direta, autarquia,
diferenciações terminológicas para que os fundação pública, ou empresa estatal
convênios possam ser melhor caracterizados dependente, para outro órgão ou entidade
em suas diferentes roupagens. federal da mesma natureza.
A primeira distinção a fazer é entre os À luz destas conceituações, para adequada
convênios de cooperação e os convênios tout delimitação de espaço, o que temos até aqui como
court. Os convênios de cooperação são uma instrumento básico de colaboração do setor
alternativa light à composição de consórcios público com o terceiro setor são os convênios,
públicos e estão disciplinados no art. 241 da CF, já que convênios de cooperação, contratos de
na Lei 11.107/2005 e no decreto 6.017/2007, repasse e termos de cooperação estão restritos
estando restritos ao âmbito público intra e ao espaço exclusivo da administração pública.
interfederativo. Já os convênios são o foco do art. Cabe lembrar que os convênios se submetem
116 da Lei 8.666/93 e do Decreto 6.170/2007 à Lei 8.666/93, no que couber, conforme seu
abrangendo também as cooperações com o art. 116. Os objetivos deste dispositivo parecem
terceiro setor. ser dois: dispensar um novo diploma legal para
O Decreto 6.170/2007, que dispõe sobre abordar os mesmos procedimentos gerais e
transferência de recursos da União a entidades marcar as necessárias diferenciações entre
colaboradoras, no âmbito público e público- convênio e contrato aqui já mencionadas.
privado, distingue convênios, contratos de Como aspectos mais relevantes no que tange
repasse e termos de cooperação. a convênios,vale mencionar inicialmente as
O convênio é definido neste Decreto como restrições a sua celebração: (a) a importância
acordo, ajuste ou qualquer outro instrumento a ser transferida não pode ser inferior a
que discipline a transferência de recursos R$100.000,00; (b) as entidades receptoras
financeiros de dotações consignadas nos dos recursos da União não podem ter entre
orçamentos Fiscal e de Seguridade Social da seus dirigentes ou controladores agentes,
União e tenha como partícipe, de um lado, dirigentes de órgãos da Administração Pública
órgão ou entidade da administração pública ou seus familiares, numa óbvia referência aos
federal, direta ou indireta e, de outro lado, princípios da moralidade e impessoalidade;
órgão ou entidade da administração pública (c) as entidades do terceiro setor têm que
estadual, distrital ou municipal, direta ou comprovar experiência no tema do convênio
indireta, ou, ainda, entidades privadas sem fins desenvolvida nos últimos três anos e não podem
lucrativo, visando a execução de programa de ter pendências ou penalidades na comprovação
governo, envolvendo a realização de projeto da adequada utilização de recursos públicos em
s, atividade, serviço, aquisição de bens ou convênios anteriores.
evento de interesse recíproco, em regime de O chamamento público é o método adotado
mútua cooperação. para reunir as entidades interessadas em
Pela meticulosa especificação de sua concorrer à seleção de projetos. As exceções
abrangência, além do amparo legal, esta é a são os casos de emergência ou calamidade
definição de convênio a servir de referência a pública com repasses continuados por 180 dias,
qualquer abordagem deste instrumento. programas de proteção a pessoas ameaçadas
Contrato de repasse é o instrumento e projetos que já estejam sendo executados
administrativo por meio do qual a transferência adequadamente por cinco anos.
de recursos financeiros se processa por O convênio deve ser assinado pelo Ministro
intermédio de instituição ou agente financeiro de Estado ou dirigente máximo da entidade

48 Revista de Administração Municipal – RAM


concedente, sem espaço para delegação. A contas especial, será feito registro no SICONV
contrapartida do convenente poderá ser e será informada a Controladoria Geral da
atendida por meio de recursos financeiros União. Estas irregularidades se constituíram
ou bens e serviços economicamente num dos principais motivos para que fosse
mensuráveis. Embora não possa ser desencadeada a construção de uma nova ordem
modificado unilateralmente, o convênio pode para as alianças do setor público e o terceiro
ser denunciado unilateralmente a qualquer setor que serão abordadas no item referente às
tempo e os eventuais saldos serão devolvidos mudanças em curso.
à entidade ou órgão repassador dos recursos.
Se o convênio implicar repasse de verbas não Acordos com pré-qualificação especial
previstas na lei orçamentária, será necessária Na linha de construção de instrumentos
a respectiva autorização legislativa. As jurídicos para formalizar a cooperação com
entidades do terceiro setor que pretendam o terceiro setor, o movimento de Reforma do
celebrar convênio em nível federal deverão se Aparelho do Estado desencadeado com base
cadastrar no Sistema de Gestão de Convênios na Emenda Constitucional 19/98, criou duas
e Contratos de Repasse (SICONV) onde serão novas figuras legais: o Contrato de Gestão e o
também registrados a celebração, a liberação Termo de Parceria. Fundamentalmente estes
de recursos e o acompanhamento da execução dois instrumentos são variações em torno do
e da prestação de contas. modelo convênio, fundados na necessidade
de uma qualificação formal adicional para as
entidades do terceiro setor que pretendem
negociar com o governo. Justen Filho14 indica
que os conteúdos do contrato de gestão e
do termo de parceria são idênticos, o que
objetivamente não demandaria tratamento
diferenciado. Souza15 vai mais longe dando a
entender que esta complexidade desnecessária
possibilita tratamentos desiguais a entidades
que se encontram na mesma situação jurídica.
Esta constatação de igualdade básica entre
estes mecanismos jurídicos é reforçada quando
lembramos que a Lei 8.666/93 fala num
objetivo e em metas a serem atendidas pelo
As denúncias de irregularidades e desvios partícipe de quaisquer destes tipos de acordo.
de recursos nos convênios geraram o Decreto São visíveis, por outro lado, as semelhanças de
7.592/2011, que estabeleceu algumas medidas espírito e disciplina entre a Lei 9.637/98, que
adicionais de controle tais como a suspensão trata dos Contratos de Gestão, e a Lei 9.790/99,
de 30 dias da transferência de recursos que regula os Termos de Parceria.
para avaliação da regularidade da execução.
Se elas não forem sanadas, as entidades Os contratos de gestão
consideradas em situação irregular serão O contrato de gestão está regulado pela
comunicadas e continuarão com repasses Lei 9.637/98 e não se confunde, como já
suspensos por mais 60 dias. Se persistirem mencionamos, com o contrato público de
os problemas será instaurada tomada de gestão examinado anteriormente. Esta

14
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
15
SOUZA, Rodrigo Pagani de. Controle Estatal das Transferências de Recursos Públicos para o Terceiro Setor. São Paulo:
USP, 2009.

Revista de Administração Municipal – RAM 49


legislação é federal, permitindo que os Estados requisitos da legislação do Ente Federado com
e Municípios possam legislar com autonomia o qual pretende firmar o acordo. Segundo o
sobre o tema. Gustavo Justino os conceitua art. 1º da Lei 9.637, “a organização social é
como “Acordos Administrativos Organizatórios uma qualificação que pode ser atribuída a
e Colaborativos”16. Vale registrar, en passant, a pessoas jurídicas de direito privado sem fins
inadequação do termo contrato de gestão, não lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas a
só pela distinção entre contrato e acordo já ensino, pesquisa científica, desenvolvimento
demonstrada como também pela identidade tecnológico, proteção e preservação do meio
de terminologia com o outro instrumento ambiente, cultura e saúde.” A generosidade
jurídico do setor público na determinação das áreas
já abordado. Sua definição abertas à colaboração
legal está contida no art. 5º: A organização social é uma de terceiros denota a
instrumento firmado entre qualificação que pode determinação do Governo
o Poder Público e a entidade de proporcionar uma ampla
qualificada como organização ser atribuída a pessoas transferência de atividades
social, com vistas à formação jurídicas de direito privado para a esfera privada.
de parceria entre as partes sem fins lucrativos, cujas No nível federal, um
para fomento e execução de dos objetivos da lei era
atividades sejam dirigidas a
atividades relativas ás áreas extinguir determinados
relacionadas no art. 1º. A lei ensino, pesquisa científica, órgãos públicos e recriá-los
estabelece ainda entre os desenvolvimento tecnológico, como Organizações Sociais
seus elementos básicos: a) proteção e preservação do com maior autonomia
o escopo amplo e variado financeira e administrativa,
dentro das área admitidas;
meio ambiente, cultura e para desenvolver as mesmas
b) a observância dos saúde atividades. Um indicador
princípios constitucionais; c) claro desta intenção de
o conteúdo do programa de trabalho, contendo transformação é a exigência de representantes
metas, prazos e indicadores de qualidade e do Poder Público na composição do Conselho
produtividade; d) os limites e critérios para de Administração destas entidades (20 a
as despesas com remuneração e vantagens; 40%). Os artigos 18 a 22 da Lei 9.637/98
e) fiscalização da execução do contrato pelo estabeleceram os critérios e determinações
parceiro público, com avaliação dos resultados para esta absorção de atividades públicas pelas
informados nos relatórios. organizações sociais. Estaria configurada a
A criação da referida lei expressa uma dupla criação de entidade ad hoc, segundo Di Pietro
preocupação do Governo que a projetou. Por “com o objetivo único de se habilitarem como
um lado, abrir espaço para o desempenho organizações sociais e continuarem a fazer o
privado na prestação de serviços públicos, que faziam antes com nova roupagem”17. Este
estabelecendo como parceira a Organização objetivo é polêmico, uma vez que a doutrina
Social (OS), entidade com personalidade jurídica é pacífica no entendimento de que a
jurídica de direito privado e fins não lucrativos. utilização de recursos públicos obriga a entidade
Por outro, cercar este desempenho de critérios convenente a se submeter aos princípios gerais
de apuração e de mensuração, prevendo da administração pública e ao controle dos
medidas em casos de desvio. Tribunais de Contas. A legislação criada pela
Para celebrar contrato de gestão, a entidade Prefeitura de São Paulo, por exemplo, não
do terceiro setor tem que se qualificar como utilizou este mecanismo. A experiência da
Organização Social (OS), atendendo aos Secretaria de Saúde com os contratos de gestão

16
OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Contrato de Gestão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
17
DI PRIETO, Maria Sylvia. Direito Administrativo, 26. ed, São Paulo: Atlas, 2013. p. 571.

50 Revista de Administração Municipal – RAM


desqualificação, respondendo os dirigentes
pelos danos ocorridos.
Outro aspecto que despertou muita
controvérsia foi a necessidade ou não das
organizações sociais serem submetidas a
procedimento licitatório, seja na sua escolha
como parceira do governo, seja nas compras e
contratações que realizar no desempenho das
atividades previstas no contrato de gestão.
Voltamos ao julgamento da ADIN 1.923/98,
já mencionado anteriormente, uma vez que
no voto vencedor do Ministro Luiz Fux, fica
determinado que:
o procedimento de qualificação da OS seja
conduzido de forma pública, objetiva e
impessoal, com observância dos princípios
do caput do art. 37 da CF, e de acordo com
parâmetros fixados em abstrato segundo
o que prega o art. 20 da Lei nº 9.637/98;
para o gerenciamento dos serviços de saúde a celebração do contrato de gestão seja
tem sido considerada como bem-sucedida, por conduzida de forma pública, objetiva e
isto sendo imitada em outros Estados como o impessoal, com observância dos princípios
Rio de Janeiro. As OSs que obtiveram o direito do caput do art. 37 da CF; as hipóteses de
de prestar o serviço já trabalhavam há mais de dispensa de licitação para contratações
cinco anos em assistência à saúde quando foram (Lei nº 8.666/93, art. 24, XXIV) e outorga
contratadas. Este tipo de contratação, segundo a de permissão de uso de bem público (Lei nº
própria Secretaria, possibilitou o planejamento, 9.637/98, art. 12, §3º) sejam conduzidas
o incremento da qualidade e da produtividade, de forma pública, objetiva e impessoal, com
o controle das atividades e a transparência da observância dos princípios do caput do art.
gestão, garantindo a efetiva implementação 37 da CF; os contratos a serem celebrados
das políticas públicas e a correlação entre as pela Organização Social com terceiros, com
atividades prestadas e o custo dos serviços. recursos públicos, sejam conduzidos de forma
Elemento significativo do contrato de gestão, pública, objetiva e impessoal, com observância
presente também como princípio em outros dos princípios do caput do art. 37 da CF, e nos
instrumentos de colaboração do governo, tanto termos do regulamento próprio a ser editado
com o empresariado quanto com entidades do por cada entidade; a seleção de pessoal pelas
terceiro setor, é o atrelamento dos pagamentos Organizações Sociais seja conduzida de forma
à performance do contratado ou convenente. Os pública, objetiva e impessoal, com observância
pagamentos costumam prever um percentual dos princípios do caput do art. 37 da CF, e nos
fixo e um variável. As medidas de fiscalização termos do regulamento próprio a ser editado
do desempenho estão materializadas, por por cada entidade e para afastar qualquer
exemplo, em relatórios anuais, cujo conteúdo interpretação que restrinja o controle, pelo
fundamental é o comparativo entre as metas Ministério Público e pelo TCU, da aplicação de
estabelecidas e os resultados alcançados, e verbas públicas.
na aprovação periódica dos trabalhos por O termo de parceria
Comissão de Avaliação. O não atingimento de
determinadas metas pode implicar a redução O Termo de Parceria está regulado pela
da parcela variável dos pagamentos. Os desvios Lei 9.790/1999. Trata-se de real atividade
de conduta da OS podem ser punidos com a de fomento, de incentivo à iniciativa privada

Revista de Administração Municipal – RAM 51


de caráter público. Trata-se de um novo a pactuar com o Governo é o concurso
instrumento e de uma nova qualificação – de projeto, que, entretanto, não tem sido
Organização da Sociedade Civil de Interesse regularmente utilizado. A tendência é que
Público (OSCIP) este comportamento se altere com os reforços
A Lei 9.790 começa por dizer que só podem trazidos para o chamamento público pela
ser qualificadas como OSCIPs as entidades discussão doutrinária e principalmente pelas
que atenderem aos requisitos da lei em seus recomendações da decisão do STF no caso do
estatutos e normas, estabelecendo ainda no § 1º congênere Contrato de Gestão.
que entidade não lucrativa é a que não distribui Segundo o Decreto Regulamentador
excedentes entre seus associados e que os aplica 3.100/99, o Termo de Parceria pode ter
integralmente na consecução de seu objeto social. vigência superior à do exercício fiscal e pode
No art. 2º são arroladas as vedações à titulação ser prorrogado se existirem excedentes
de OSCIP, sendo excluídas da possibilidade de financeiros. Tem prevalecido no TCU e em
pleitear a qualificação as sociedades comerciais, algumas cortes estaduais o entendimento de
os sindicatos, as instituições religiosas, as que cabe lei autorizativa específica estadual
organizações partidárias, as entidades de ou municipal. A proposta de Termo de Parceria
benefício mútuo, os planos de saúde, os hospitais pode partir do Governo ou da própria OSCIP
privados, as escolas privadas, as organizações interessada. No primeiro caso, o órgão estatal
sociais, as cooperativas, as fundações públicas manifesta o interesse, indicando as áreas e os
ou criadas por órgão público e as organizações requisitos técnicos. Na segunda hipótese, a
creditícias vinculadas ao sistema financeiro OSCIP apresenta seu projeto ao órgão estatal
nacional. O art. 3º elenca as 12 abrangentes que avaliará sua conveniência, relevância e
finalidades que as entidades devem perseguir impacto.
para se qualificarem como OSCIPs, a saber:
assistência social, cultura, saúde, educação, Mudanças em curso
segurança alimentar, meio ambiente, A necessidade de reformulação da relação
voluntariado, desenvolvimento econômico entre o setor público e as entidades da
e social, produção e comércio, assessoria sociedade civil ensejou a construção de um
jurídica, direitos humanos, estudos e pesquisas. processo participativo comandado por um
O art. 4º exige, entre outros, que os estatutos da Grupo de Trabalho Interministerial, criado
entidade declarem o atendimento a princípios pelo Decreto nº 7.568, de 16 de setembro de
legais, a existência de Conselho Fiscal, gestão 2011 e formado por representantes de diversos
transparente e prestação de contas. O art. Ministérios e 14 organizações da sociedade civil
5º relaciona os requisitos burocráticos para de representatividade nacional. O relatório final
obtenção da qualificação e os arts 7º e 8º produzido por este grupo serviu de base para
identificam os modos de perda da qualificação, as discussões no Congresso e para a aprovação
por decisão em processo administrativo ou da Lei 13.019, sancionada em 31 de julho de
judicial que pode ser movido pelo Ministério 2014 e já conhecida como Marco Regulatório
Público ou qualquer cidadão. das Organizações da Sociedade Civil18.
O Termo de Parceria guarda semelhança, O primeiro aspecto a ser considerado
mas tem mais flexibilidade do que o Convênio. dentro do quadro deste novo marco jurídico
Também nele estão presentes os objetivos é uma questão de natureza doutrinária mas
de fomento e interesse público. A forma de que pode impactar na prática o tratamento do
seleção prevista para a escolha da OSCIP tema no âmbito federativo. Rafael Oliveira19

18
BRASIL. Secretaria Geral da Presidência da República. Relatório da Consulta Pública realizada pela Secretaria Geral
da Presidência da República para a Regulamentação Colaborativa da Lei nº 13.019 -2º Semestre de 2014. Brasília, 2014.
Disponível em: http://www.secretariageral.gov.br/atuacao/mrosc/consultas/consulta_15dezembro.pdf Acesso em: 24
ago. 2015.
19
OLIVEIRA, Rafael. Comentários sobre a Lei 13.019. Curso Forum.

52 Revista de Administração Municipal – RAM


entende que embora a literalidade do art. 1º Desta forma, a nova expectativa é que a lei
aponte para uma lei nacional (que institui normas entre em vigor em janeiro de 2016. Alinhamos,
gerais envolvendo todos os entes federativos), a seguir os principais aspectos trazidos por esta
em termos constitucionais estaríamos diante de nova legislação.
uma lei apenas federal (o art. 22 dá competência As novas alianças entre a administração pública
à União para expedir normas gerais apenas para e as organizações da sociedade civil passam a ser
licitações e contratos). A Constituição menciona denominadas parcerias voluntárias, envolvendo
convênios e contratos como dois institutos ou não transferência de recursos financeiros. Estão
diferentes ao longo de alguns expressamente excluídos do
artigos (39 §2º, 199 §1º e alcance da lei as transferências
241 caput) e aqui estamos O chamamento público e de recursos externos previstas
tratando necessariamente de a seleção competitiva são a em tratados, acordos e
modalidades de convênios. Por alternativa definitiva sobre convenções internacionais,
enquanto a tendência tem sido transferências regidas por
apoiar a interpretação literal.
a querela da necessidade ou lei específica e os contratos
Seguindo ainda a literalidade não de licitação nos acordos de gestão. A seleção de
do art. 1º teriam que ser com o terceiro setor organizações da sociedade
excluídas da Administração civil para a composição de
Pública as empresas estatais parcerias voluntárias se dará
envolvidas em atividades econômicas, uma vez mediante chamamento público (procedimento
que ele fala apenas de empresas públicas e de que observa os princípios da administração
economia mista prestadoras de serviços públicos. pública (art. 37 da CF). Este aliás já era o
A nova lei impacta consideravelmente o procedimento adotado pelo Decreto 3.100/99
desenho das composições formais das relações que regulamenta a Lei 9.790/99 ao falar de
de cooperação entre o setor público/terceiro concurso de projetos e pelo Decreto 6.170/07,
setor. Cria dois novos instrumentos de acordo, o regulamentador dos Convênios, que já utiliza a
termo de colaboração e o termo de fomento em expressão Chamamento Público. Vale relembrar
substituição aos convênios e altera a legislação que o chamamento público e a seleção
sobre os termos de parceria, mantendo intacta competitiva são a alternativa definitiva sobre
apenas a regulamentação legal relativa aos a querela da necessidade ou não de licitação
contratos de gestão. nos acordos com o terceiro setor, em função
Embora no art. 3º da Lei 13.019/2014 exclua desta nova disciplina e da decisão do STF nos
de sua aplicação as transferências voluntárias contratos de gestão já comentadas.
regidas por lei específica – no caso a 9.790/99 Assim como acontece com a licitação na
-Termos de Parceria – naquilo em que houver Lei 8.666/93, a Lei 13.019 também admite
disposição expressa em contrário, no art. 4º exceções ao chamamento público. São os casos
garante sua prevalência sobre a 9.790/99 ao de urgência em que há risco de paralisação
prever que ela se aplicará às OSCIPs no que imediata e imprevista de prestação de serviços,
couber. É uma contradição que contraria a casos de greve ou grave perturbação da ordem
aplicação do princípio da especialidade. pública e quando se tratar de programa de
As expressivas repercussões desta nova pessoas ameaçadas. Admite-se também a
legislação sobre os procedimentos vigentes inexigibilidade se houver impossibilidade
impuseram uma sucessiva dilatação da jurídica de competição. Estas medidas
vacatio legis, prevista inicialmente para 90 pressupõem detalhada justificativa e efetiva
dias e alterada primeiro pela Lei 13.102, de publicidade.
26/02/2015, para 360 dias da publicação e mais A celebração do acordo se dará com o Termo
recentemente pela Medida Provisória 684, de de Colaboração se a iniciativa é da Administração
22/07/2015, para 540 dias de sua publicação. Pública, quando ocorreria procedimento “de

Revista de Administração Municipal – RAM 53


oficio”. Se a iniciativa partiu da sociedade civil, compromisso colaborativo, em face dos problemas
o instrumento será o Termo de Fomento. Esta de idoneidade e performance apresentados por
segunda hipótese decorre de Manifestação algumas organizações deste tipo ao longo dos
de Interesse Social, procedimento em que anos. Vários dispositivos exigem transparência
organizações, movimentos sociais ou cidadãos nos procedimentos, impedimento para entidades
apresentam a qualquer tempo propostas de que não estejam regularmente constituídas, que
trabalho na área social que poderão ou não tenham problemas com prestações de contas
se transformar em chamamento público, anteriores ou ainda que tenham agentes públicos
seleção e posterior assinatura de Termo de e seus parentes a ela vinculados.
Fomento, considerados o interesse público e as As atividades para as quais está vedada
disponibilidades orçamentárias. a celebração de transferências voluntárias
Entre os requisitos exigidos das entidades abrangem as que são de exclusiva competência
interessadas em participar do chamamento do Estado, tais como regulação, fiscalização e
público merece destaque a mudança no critério poder de polícia e prestação de serviços cujo
de exigência de experiência das entidades. destinatário seja o aparelho administrativo
Atualmente exige-se experiência nos três do Estado. Neste último caso o instrumento
últimos anos no tema que será objeto do cabível seria o contrato administrativo, num
Acordo. A nova lei exige três anos de existência procedimento de terceirização regulado
da entidade e experiência prévia, sem menção pela Lei 8.666/93. Também não podem ser
a tempo mínimo. Trata-se de uma mudança estabelecidas parcerias voluntárias para
saudável já que, pela legislação atual, se a serviços de consultoria sem objetivo explicitado
experiência da entidade candidata for anterior e para atividades de apoio administrativo.
aos últimos três anos, por mais vasta que seja, Ainda na linha de controle e fiscalização
impediria sua participação. Esta mudança na estão elencados os relatórios técnicos a serem
configuração da experiência exigida é aliás submetidos à Comissão de Monitoramento e
a alteração produzida presente lei no art. 1º Avaliação, a indicação de um Agente Público
da Lei 9.790/99 que institui as OSCIPs e os como gestor do Acordo e as prestações de
Termos de Parceria. Também as OSCIPs só contas, que poderão ser consideradas regulares,
precisarão demonstrar que estão funcionando regulares com ressalvas e irregulares. As
regularmente há pelo menos três anos. sanções contra a entidade faltosa seguem uma
Outro aspecto interessante é a possibilidade gradação, prevendo advertência, suspensão
de atuação em rede. Duas ou mais organizações temporária e declaração de idoneidade.
podem se unir para a execução dos projetos, Uma inovação que chama a atenção e faz
mantida a responsabilidade integral da entidade parte deste conjunto de medidas controladoras
que firmou o Acordo. da ação dos partícipes são as responsabilizações
A nova lei consagra também o procedimento individuais com as consequentes penalidades,
de inversão das etapas de seleção, já adotado em dentro do contexto de atuação previsto
outras legislações que tratam de parcerias com nos documentos firmados. Podem ser
o setor público. Escolhida a entidade, segue- responsabilizados e sofrerem penalidades,
se a verificação de seu pleno atendimento aos dependendo do caso concreto, o administrador
requisitos formais estabelecidos no edital. Caso público, o gestor, o emissor de parecer técnico, a
não atenda, será chamada a segunda classificada organização da sociedade civil e seus dirigentes.
e assim por diante. Trata-se de procedimento Cabe lembrar que a organização da sociedade
obviamente mais racional, que reduz prazos civil indicará pelo menos um dirigente que
e burocracia, já que é inútil a checagem de se responsabilizará de forma solidária pela
documentação de entidades que depois não se execução das atividades e cumprimento das
revelam qualificadas. metas pactuadas na parceria.
O novo diploma jurídico deixa bem claro o
objetivo de reforçar o controle e a fiscalização do

54 Revista de Administração Municipal – RAM


As Alianças em Números Em nível municipal, foram 52 as qualificações
Do total de 290.692 associações e fundações e 15 os contratos de gestão celebrados. Em
privadas sem fins lucrativos, apenas 7% relação a OSCIPs foram identificadas uma
possuem algum tipo de titulação concedida em lei federal (9.790/99), 10 leis estaduais e 16
nível federal. As qualificações como OS ou OSCIP legislações municipais. Em nível estadual, 167
limitam-se a 1,23% deste universo20. Até 2012, entidades foram qualificadas e 15 Termos de
o Ministério da Justiça havia qualificado 6.166 Parceria firmados. Em nível municipal eram 27
entidades como OSCIPs21. As qualificações de as OSCIPs qualificadas mas não havia registro
OSs se limitavam a seis22. de Termo de Parceria firmado24.
A partir ainda de dados em nível federal, Estas informações, embora defasadas de
constata-se que os convênios são a forma mais alguns anos, mostram que ainda há extenso
difundida de colaboração entre o setor público caminho a percorrer na utilização destes
e o terceiro. Isto é bastante compreensível uma instrumentos de cooperação. Por outro lado,
vez que, como vimos, os contratos de gestão vislumbra-se um progressivo interesse nestas
e os termos de parceira para serem firmados modalidades de cooperação em função do êxito
exigem uma pré-qualificação das entidades obtido em experiências municipais.
interessadas. Dados do SICONV informam Ação Municipal
que entre setembro de 2008 e dezembro de
O novo perfil contratualista e negociador
2012 foram firmados em nível federal 8.538
que prevalece na caracterização hodierna da
convênios, com transferência de recursos para
Administração Pública, como forma de mitigar
o terceiro setor. Neste mesmo período foram
a angústia da falta de recursos financeiros e
firmados apenas 115 Termos de Parceria e seis
técnicos, tem seu maior impacto no contexto
Contratos de Gestão23.
municipal. Desnecessário adentrar pelo
Ampliando o horizonte federativo, embora
exaustivo rol de queixas das Prefeituras pelo
com dados de 2008, foram identificadas 57
desequilíbrio federativo entre competências
leis que instituem o modelo de OS/Contrato
e recursos, penalizando a instância que mais
de Gestão, sendo uma lei federal (9.637/98),
diretamente sente a pressão da sociedade pela
15 leis estaduais e 41 leis municipais. Em nível
melhoria na prestação dos serviços públicos.
estadual, 112 entidades foram qualificadas como
Ademais, os textos de normas gerais aplicáveis a
OSs e 28 contratos de gestão foram firmados.
todas as instâncias da Federação tendem a refletir
20
Dados do estudo “FASFIL - Fundações e Associações sem Fins Lucrativos. Rio de Janeiro. IBGE.2012. Disponível em
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/fasfil/2010/default.shtm apud LOPES, Lais et alii. Fomento e
Colaboração: uma nova proposta de parceria entre Estado e Organizações da Sociedade Civil. Disponível em: http://
www.participa.br/articles/public/0008/5672/artigo-sgpr.pdf Acesso em: 24 ago. 2015.
21
Dados da Coordenação-Geral de Tecnologia da Informação do Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e
Qualificação da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, atualizados até 23 de julho 2012. Apud BRASIL.
Secretaria Geral da Presidência da República. Relatório da Consulta Pública realizada pela Secretaria Geral da Presidência
da República para a Regulamentação Colaborativa da Lei nº 13.019 -2º Semestre de 2014. Brasília, 2014. Disponível em:
http://www.secretariageral.gov.br/atuacao/mrosc/consultas/consulta_15dezembro.pdf Acesso em: 24 ago. 2015.
22
Estudo “Relações de parceria entre poder público e entes de cooperação e colaboração no Brasil”, realizado pelo
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Apud BRASIL. Secretaria Geral da Presidência da República. Relatório
da Consulta Pública realizada pela Secretaria Geral da Presidência da República para a Regulamentação Colaborativa da
Lei nº 13.019 -2º Semestre de 2014. Brasília, 2014. Disponível em: http://www.secretariageral.gov.br/atuacao/mrosc/
consultas/consulta_15dezembro.pdf Acesso em: 24 ago. 2015.
23
SICONV-2008. Apud BRASIL. Secretaria Geral da Presidência da República. Relatório da Consulta Pública realizada pela
Secretaria Geral da Presidência da República para a Regulamentação Colaborativa da Lei nº 13.019 -2º Semestre de 2014.
Brasília, 2014. Disponível em: http://www.secretariageral.gov.br/atuacao/mrosc/consultas/consulta_15dezembro.pdf
Acesso em: 24 ago. 2015.
24
Os dados apresentados neste parágrafo foram colhidos do estudo de GRAEF, Aldino e SALGADO,Valéria “Relações de
Parceria entre o Poder Público e Entes de Cooperação e Colaboração no Brasil” Disponível em http://www.planejamento.
gov.br/secretarias/upload/arquivos/segep/modernizacao_gestao_bra_esp/2013/volume_1.pdf Acesso em: 24 ago. 2015.

Revista de Administração Municipal – RAM 55


uma perspectiva predominantemente da União, como organizações sociais para atuação
nada parecendo “caber como uma luva” para específica na área de saúde, aspecto modificado
Municípios e seus contextos econômicos e sociais, posteriormente para abranger também esportes,
menos ainda se eles são de pequeno e médio porte. lazer e recreação. A solução paulista difere da
Em que pesem os aspectos arrolados acima, existe perspectiva inicial da esfera federal de extinguir
espaço para que as administrações locais busquem órgãos públicos e recriá-los com OSs, contida na
adaptações que revertam este instrumental Lei 9.637/98. A Prefeitura reservou os Contratos
jurídico a seu favor. A estratégia para pequenos de Gestão para as unidades previstas na expansão
e médios Municípios passa pela divulgação e do sistema de saúde. Entidades privadas
absorção destes modelos legais e intensa atividade tradicionais de assistência de saúde foram
negociadora em nível local centrada no diálogo incentivadas a criarem novas entidades para
entre a administração pública e as associações da atuação independente em contratos de gestão.
sociedade civil. Esta postura Embora a Lei 14.132/06
é fundamental para criar O consorciamento favorece registre no §1º do art. 5º que
realidades mais específicas, seja a licitação é dispensável nos
na configuração da legislação a atração e integração de termos da Lei 8.666/93, o §3º
municipal que vai dar suporte organizações da sociedade estabelece que a celebração
à cooperação com o terceiro civil num espaço territorial do contrato será precedida
setor, seja nos elementos que
ampliado e de maior impacto de processo seletivo quando
comporão a pauta de ação houver mais de uma entidade
conjunta. Neste contexto, cabe qualificada para prestar o
lembrar o potencial representado pela formação serviço. O Decreto nº 49.523, de 27 de maio
de Consórcios Públicos, também já regulamentados de 2008, que regulamenta a Lei 14.132 dedica
e que refletem uma associação voluntária de os artigos 18 a 31 ao processo seletivo para
administrações públicas locais em favor de escolha da entidade entre as que manifestaram
projetos de escala maior que a de suas respectivas interesse. Outro aspecto que chama a atenção é
circunscrições. O consorciamento favorece a atração a exigência de cinco anos de experiência prévia
e integração de organizações da sociedade civil num a serem comprovados pela entidade pleiteante
espaço territorial ampliado e de maior impacto. do status de OS, contida no parágrafo único do
art. 2º da Lei 14.132. Além disso, desta vez, tal
Experiências locais como no diploma legal federal, estão previstos
A título de referência da utilização de diversos procedimentos de acompanhamento
contratos de gestão em nível municipal, e fiscalização do contrato, havendo para
estão sendo brevemente mencionadas três tanto designação de Comissão de Avaliação e
experiências de contratos de gestão entre o submissão ao controle da Câmara Municipal e
setor público e o terceiro setor que podem ser do Tribunal de Contas do Município.
consideradas como bem-sucedidas pelo fato de Contando com 11 contratos de gestão com
já estarem vivenciando períodos de prorrogação OSs abrangendo 279 unidades de saúde,e
dos acordos inicialmente celebrados. perfazendo um total de recursos repassados de
Prefeitura de São Paulo – Contratos de cerca de 1,5 bilhões de reais, o sistema entrou
Gestão na Área da Saúde em 2014 numa nova fase de aperfeiçoamento.
Uma experiência vistosa em Contratos de Busca-se a padronização dos contratos, para
Gestão é a desenvolvida pela Prefeitura de São maior transparência e eficiência na fiscalização.
Paulo na área da saúde, seguindo o exemplo As novas medidas incluem ainda gestão e
da ação em nível estadual. Ela teve início em regulação inteiramente a cargo da Secretaria
2007. Em 24 de janeiro de 2006, foi aprovada Municipal de Saúde, uma só OS por território,
a Lei Municipal nº 14.132 dispondo sobre a equipe mínima em cada unidade e seleção
qualificação de entidades sem fins lucrativos pública de empregados25.
25
SÃO PAULO. Secretaria Executiva de Comunicação. Prefeitura implementará novo modelo de gestão de unidades de
saúde na cidade. Disponível em: http://www.capital.sp.gov.br/portal/noticia/4972. Acesso em: 24 ago. 2015.

56 Revista de Administração Municipal – RAM


Prefeitura do Rio de Janeiro – Contratos de O Museu, que faz parte do conjunto de iniciativas
Gestão na Área da Cultura26 de revitalização do Porto do Rio de Janeiro, procura
Em 2012, A Prefeitura do Rio de Janeiro e vincular cultura e educação. Articulado com a rede
o Instituto Odeon celebraram contrato para municipal de educação promove intensa atividade
gestão do equipamento de cultura “Museu de de visitação de estudantes, forma professores, e
Arte do Rio – Mar”. É a primeira experiência desenvolve programação curatorial. O modelo
da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de flexível de gestão permite uma estrutura mais
Janeiro no modelo de gestão por OS. A contratada enxuta e a presença constante de curadores e
assume responsabilidade integral pela gestão artistas nacionais e internacionais. O relatório
dos serviços e atividades vinculadas ao Museu, de 2013, referente aos primeiros dez meses de
tendo obtido a necessária permissão de uso existência do MAR, registra 328.602 visitantes,
das instalações. Dois Conselhos funcionam 12 exposições realizadas, das quais duas incluídas
em apoio a esta gestão: o de Administração entre as dez melhores de 2013, 8.349 participantes
do Instituto Odeon e o Conselho Municipal do das atividades da Escola do Olhar e 27.219 alunos
MAR. da rede pública em visitas educativas.

Cidade do Saber – Contrato de Gestão se de um complexo integrado de educação, cultura,


(Bahia)27 esporte e lazer, sendo referência hoje no país como
O primeiro contrato entre a Prefeitura de centro de educação não formal e inclusão social.
Camaçari e o Instituto Professor Raimundo O complexo cultural-esportivo conta com
Pinheiro para gestão da Cidade do Saber data de o segundo maior teatro da Bahia, centro de
2007, tendo desde então mantido a parceria com eventos com quatro auditórios, prédio de 32
pleno cumprimento das metas estabelecidas. Trata- salas para atividades pedagógicas, parque

26
MUSEU de Arte do Rio. Relatório de Gestão. 2013. Disponível em: http://www.museudeartedorio.org.br/sites/default/files/relatorio_
mar.pdf. Acesso em:24 ago. 2015.
27
Cidade do Saber. Quem somos. Disponível em: http://www.cidadedosaber.org.br/quem-somos/cidade-do-saber/ Acesso em: 24 ago. 2015.

Revista de Administração Municipal – RAM 57


aquático e quadra poliesportiva. Mantém ainda destas ações colaborativas. Contornam algum
uma unidade móvel que leva atividades lúdicas desgaste ocorrido com a má performance ou
a comunidades da área rural. com o favorecimento indevido de algumas
organizações da sociedade civil no curso deste
Conclusão período de mais de dez anos de utilização
A intensificação e diversificação da ação destes instrumentos.
cooperativa entre Governo e entidades do Prova de que este processo de colaboração
terceiro setor, impulsionadas no bojo da reforma e integração entre o setor público e o terceiro
do Aparelhamento do Estado promovida setor está em constante progresso é a nota
na década de 1990, são hoje uma realidade. pública emitida pela Associação Brasileira
Superados os radicalismos que cercavam o das Organizações Não Governamentais
tratamento da interação setor público/setor (ABONG) em 29/07/2015 a respeito do novo
privado vai sendo construída uma experiência adiamento da entrada em vigor do Marco
sólida que, entretanto, segue solicitando Regulatório estabelecido pela Lei 13.019/14.
aperfeiçoamentos. Decisões como a do STF na Há um indisfarçável protesto contra esta nova
ADIN 1923 e a extensa elaboração doutrinária prorrogação, por tratar-se de regulação há
que abre alternativas de interpretação jurídica muito almejada e que introduziu significativos
que conduzem a um melhor embasamento legal aperfeiçoamentos na situação vigente. Sugere
nas iniciativas de cooperação empreendidas a entidade que este período adicional de seis
têm contribuído para esta necessária evolução. meses de adiamento seja utilizado na discussão
As mudanças na legislação que passarão de alguns pontos ainda não adequadamente
a vigir em janeiro de 2016, resultado de um solucionados no novo Marco mas conclui:
processo de adequação bastante participativo, Estamos vigilantes e mobilizados/as, ainda
são testemunho deste processo, possibilitando abertos/as ao diálogo mas prontos para
uma melhor caracterização de instrumentos, denunciar omissões ou recuos dos poderes
atendendo reivindicações das entidades e Executivos e Legislativos, que venham a
favorecendo a presença da impessoalidade barrar a efetivação da Lei 13.019/2014.
e moralidade na formalização e execução Nenhum passo atrás!

Bibliografia
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, 3. ed. Editora Saraiva, 2012, p.92.
BRASIL. Presidência da República. Câmara da Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado.
Brasília. 1995
DI PIETRO, Maria Silvia. Parcerias na Administração Pública. São Paulo. Ed. Atlas. 1999.
______. Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2013.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
MEDAUAR, Odete. O Direito Administrativo em evolução. 2. ed. São Paulo: RT, 2003.
OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Contrato de Gestão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. Forense. São Paulo: Método, 2013.
PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Do Estado Patrimonial ao Gerencial In Pinheiro, Wilheim e Sachs (orgs.), Brasil: Um Século
de Transformações. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. p. 222-259.
PONTIER, Jean-Marie. Les Contrats de Plan entre L´Etat et les Régions. Paris: PUF, 1998. p.17.
SOUZA, Rodrigo Pagani de. Controle estatal das Transferências de Recursos Públicos para o Terceiro Setor. São Paulo: USP,
2009.
SUNDFELD, Carlos Ari. O direito administrativo entre os clips e os negócios. Revista de Direito Público da Economia -
RDPE, ano 5, n. 18, abr./jun. 2007.

58 Revista de Administração Municipal – RAM


Gestão de Bens Integrantes do Ativo
Municipal
Heraldo da Costa Reis*

Resumo: Motivaram este artigo as seguintes questões que nos foram encaminhadas para estudos
e avaliações, tendo em vista as NBCTs 16.9 e16.10, do Conselho Federal de Contabilidade.
1. Como deveremos proceder na contabilização das aquisições de bens tangíveis que se destinam
a várias atividades da Prefeitura?
2. Para os bens adquiridos após 1995, devemos atualizar os valores? Em caso afirmativo, como
fazer essa atualização? É através de pesquisa de mercado? Existe alguma metodologia a seguir?
Podemos utilizar as regras existentes para o mercado privado?
3. Os índices de depreciação seriam os mesmos? Ou seja, seria só aplicar a tabela de depreciação
aos valores de aquisição?

Expressões-chave: Bens Patrimoniais. Informações Contábeis/Financeiras. Avaliações/Depreciações

Este texto tem por fim apresentar, para cuja utilização contribui para a concretização
reflexão, os procedimentos contábeis que estão das finalidades institucionais. A informação
sendo utilizados nas atividades relacionadas contábil sobre a situação desses bens tangíveis
com o processo de reavaliação, depreciação e possibilita conhecer:
outros fenômenos de natureza econômica e com • a contribuição na execução das atividades a
a gestão e controle dos bens patrimoniais de que se destinaram;
um ente governamental, no caso, o Município. • a contribuição na formação ou composição
Vale lembrar que, dentre as funções destes dos custos dessas atividades, que podem ser
procedimentos da Contabilidade, destaca-se meio e fim;
a de informar sobre mudanças nas situações • o volume de investimentos feitos para
do patrimônio administrado, que se vão as respectivas aquisições (custos de
apresentando em decorrência de fenômenos de aquisições).
natureza econômica, tal como a inflação, ou de Porém, um dos problemas com que a
ações dos agentes da administração. Em defesa Contabilidade se defronta na produção de
desta função, é preciso que, à medida que as informações úteis e confiáveis é o que se
decisões sejam tomadas pelos gestores, ou relaciona com o custo histórico, valor pelo
que o patrimônio sofra alteração de qualquer
natureza, estas informações estejam refletidas
pelas demonstrações contábeis/financeiras. * Contador pela UFRJ, Mestre em Ciências Contábeis
pelo Instituto Superior de Estudos Contábeis, da
Das situações surgidas como consequência
Fundação Getúlio Vargas (ISEC/FGV). Professor da
das decisões governamentais, destaca-se a Faculdade de Administração e Ciências Contábeis
que se relaciona com os bens tangíveis de uso da UFRJ. Coordenador do Centro de Estudos
especial, tais como os bens móveis, imóveis, Interdisciplinares de Finanças Municipis ENSUR/
equipamentos, máquinas, veículos e outros, IBAM.

Revista de Administração Municipal – RAM 59


qual são feitos os registros de construções ou divergências vêm sendo minimizadas no sentido
de aquisições de bens e serviços destinados às de que seja adotado o regime de competência
atividades em execução. para todas as operações governamentais o
Para melhor entendimento da questão, é que, sem exageros, melhorará a qualidade das
preciso compreender que, em uma economia informações, facilitando, assim, o entendimento
de moeda estável, o valor pelo qual o bem ou o do conteúdo dos relatórios contábeis a elas
serviço é adquirido, registrado e refletido nas relacionados, surgindo daí a justificativa para o
demonstrações contábeis subsistirá até que presente trabalho.
fenômenos de natureza econômica, tal como
a inflação, como já se mencionou, venham a Organizando o Setor de Patrimônio do
alterar-lhe o valor original. Daí a necessidade Município
da utilização de um mecanismo que possibilite A organização do setor do Patrimônio
minimizar os seus efeitos, o que geralmente do Município tem por objetivo auxiliar a
acontece na contabilidade empresarial. Administração no controle da gestão dos bens
Contudo, na contabilidade das entidades patrimoniais de natureza tangível, integrantes
governamentais, em razão das peculiaridades do Patrimônio Municipal, adquiridos pela
que cercam as atividades do governo e, Administração Municipal, a serem utilizados ou
consequentemente, as suas operações, não é comum em utilização nas suas atividades meio e fim.
utilizar-se o mecanismo correção monetária ou Geralmente o setor fica localizado na estrutura
ajuste monetário e até mesmo a depreciação dos da Secretaria de Administração, o que não
bens públicos. Pode-se afirmar ainda que, como impede a sua localização na Contabilidade ou
decorrência dessas peculiaridades, existem certas mesmo na Controladoria Municipal. A Lei local
divergências entre os estudiosos de Contabilidade é que vai determinar a sua alocação.
e de Orçamento governamentais sobre a validade As atividades de controle se iniciam com os
ou não do emprego desses mecanismos nas áreas registros analíticos dos bens, conforme dispõe
do governo. o art. 94, da Lei 4.320, de 17 de março de 1964,
Entretanto, como é do conhecimento de que se transcreve a seguir:
todos os que militam profissionalmente na Art. 94 – Haverá registros analíticos de todos
área da Contabilidade Governamental, tais os bens de caráter permanente, com indicação
dos elementos necessários para
a perfeita caracterização de
cada um deles e dos agentes
responsáveis pela sua guarda e
administração.
Os registros analíticos
descrevem os elementos
caracterizadores do bem, tais
como:
• Designação do bem, ou seja,
o seu nome.
• A sua utilidade.
• A data da sua compra.
• O seu valor de compra.
• De quem foi adquirido.
• Documento comprobatório
da operação de aquisição.
• Vida útil.
Luca Bartolomeo de Pacioli, nascido em 1445, monge franciscano e célebre matemático
italiano, considerado o pai da contabilidade moderna.

60 Revista de Administração Municipal – RAM


Observe o leitor que o dispositivo quer que se denomina de Departamento do Patrimônio.
se indique os agentes responsáveis pela sua Isto dependerá do tamanho da organização
guarda e administração, ou seja, a entidade, municipal.
o órgão em que está localizado, bem como a Observe que se empregou a expressão
natureza da atividade para a qual fora destinado. integrantes ou não, o que significa que podem
Evidentemente, outras informações impor- existir bens de propriedade da entidade e
tantes constarão do controle do bem, tais como: aqueles pelos quais ela responde como fiel
• Metodologia de depreciação. depositária. Estes, evidentemente,não poderão
• Reavaliações. passar por aquele processo. O inventário desses
• Ajustes monetários. bens tem o sentido de ratificar a sua existência,
Os registros sintéticos desses bens serão localização e estado físico.
mantidos pelos Serviços de Contabilidade, O inventário, qualquer que seja o método
conforme o disposto no art. 95 da mencionada utilizado, periódico ou permanente, deve
Lei 4.320/64, cujas classificações serão feitas conter, pelo menos, as seguintes informações:
no Ativo Permanente, que, de acordo com o § • Data e valor da compra, da construção ou
2º, do art. 105 daquela Lei, compreenderá os da produção.
bens, créditos e valores cuja mobilização ou • Localização.
alienação dependa de autorização legislativa. • Código de controle.
Entretanto, de acordo com a Portaria STN nº • Quantidade e saldo atual.
665/2010, essa designação sofreu alteração • Características do bem.
para Ativo não Circulante, para a classificação • Vida útil.
contábil desses bens, o que não exime de que • Valor da reavaliação, ajuste monetário.
certas mobilizações dependerão de autorização • Depreciação, qualquer que seja a
do Poder Legislativo para as respectivas metodologia adotada.
concretizações, isto porque os bens públicos • Valor residual.
guardam as características da inalienabilidade, • Redução a valor recuperável.
imprescritibilidade e da impenhorabilidade. Estas informações deverão ser encami-
Em realidade, a classificação em qualquer nhadas à Contabilidade para os devidos
das designações indicará sempre expectativa registros nas contas sintéticas que refletem os
de mobilização afetante do fluxo de caixa, ativos imobilizados (ativo não circulante) da
isto porque os bens são adquiridos para entidade, ainda que tenham sido registradas
serem utilizados pela Administração nas suas nas contas analíticas.
atividades e não para venda.
A organização do setor implica a construção Avaliação, Reavaliação e Correção
de rotinas de informações para os serviços de Monetária dos Bens Governamentais
Contabilidade, que, por sua vez, as utilizará para A atual legislação sobre Contabilidade e
verificações e ajustes de situações que possam Orçamento Governamentais, tendo à frente a
existir entre esses setores da administração. Lei n° 4.320, de 17 de março de 1964, não trata
do termo correção monetária, conquanto não
Inventários a proíba, mas de avaliação ou de reavaliação,
O processo de avaliação, reavaliação, conforme se depreende do seu art. 106 e
depreciação e outros procedimentos de ajustes respectivos parágrafos, a seguir transcrito.
contábeis, seja de encerramento de gestão ou Art. 106 – A avaliação dos elementos
de exercício ou, ainda, de mandato, se inicia com patrimoniais obedecerá às normas seguintes:
o inventário dos bens integrantes ou não do ...........................................................................................
Patrimônio, cujos registros analíticos e controles II – Os bens móveis e imóveis, pelo valor de
físicos e, se possível for, financeiros, podem aquisição ou pelo custo de produção ou de
ficar a cargo de um setor da Administração ou construção.
da própria Contabilidade, o qual, geralmente, ..............................................................................................

Revista de Administração Municipal – RAM 61


§ 3º – Poderão ser feitas reavaliações dos bens ou avaliado com base no valor de aquisição,
móveis e imóveis. produção ou construção.
Observe que a lei não destaca a atividade a que • Quando se tratar de ativos do imobilizado
possa estar ligado o bem, deixando, portanto, obtidos a título gratuito deve ser considerado
a critério das entidades governamentais o valor resultante da avaliação obtida com
determinar qual será depreciado ou reavaliado, base em procedimento técnico ou valor
podendo ser todos,indistintamente,ou apenas patrimonial definido nos termos da doação.
os que estiverem empregados nas atividades • O critério de avaliação dos ativos do
geradoras de receitas. Isto é uma decisão da imobilizado obtidos a título gratuito e a
Administração. Demais disso, a lei dá uma eventual impossibilidade de sua mensuração
conotação mais ampla aos significados das devem ser evidenciados em notas explicativas.
expressões bens móveis e • Os gastos posteriores
imóveis, as quais abrangem à aquisição ou ao registro
equipamentos, máquinas, A lei não destaca a atividade de elemento do ativo
veículos e outros do gênero, a que possa estar ligado o imobilizado devem ser
terrenos baldios e edificados incorporados ao valor
e terras, aviões, navios (bens
bem, deixando a critério das desse ativo quando houver
imóveis). entidades governamentais possibilidade de geração de
Assim, para os fins de determinar qual será benefícios econômicos futuros
refletir o valor próximo depreciado ou reavaliado ou •
potenciais de serviços.
Qualquer outro gasto
à realidade, os seguintes
procedimentos devem ser que não gere benefícios
adotados pela Contabilidade Governamental, futuros deve ser reconhecido como despesa
quais sejam: a avaliação, a reavaliação, a do período em que seja incorrido.
depreciação e a provável correção monetária Observe que a norma contábil mencionada
ou ajustes monetários. abrange ativos adquiridos por doação
gratuita, cuja avaliação deverá considerar as
Avaliações
características do bem, ou o valor indicado
A NBC T 16.10, do Conselho Federal de
nos termos da doação para a sua integração
Contabilidade, aprovada pela Resolução CFC nº
ao patrimônio da entidade. Se, porventura,
1.137/08, de 21 de novembro de 2008, assim se
se constatar a impossibilidade de mensurar
expressa quando trata das avaliações dos bens
o ativo recebido em doação ou de se aplicar
de uso especial:
critérios de mensuração desses bens, o fato
Avaliação patrimonial: a atribuição de valor
deverá ser explicitado em nota explicativa que
monetário a itens do ativo e do passivo
acompanhará o balanço patrimonial.
decorrentes de julgamento fundamentado em
Os gastos posteriores à aquisição ou ao
consenso entre as partes e que traduza, com
registro do bem, mas que lhes digam respeito,
razoabilidade, a evidenciação dos atos e dos
integrarão o valor original, havendo, entretanto,
fatos administrativos.
o cuidado de se identificar que há possibilidade
Em realidade, a avaliação é feita no momento desse bem gerar benefícios de natureza,
da compra do bem ou do serviço e quando da financeira, social, econômica ou de prestação
imputação do seu custo de aquisição ou de de serviços.
construção de um edifício ou da abertura de uma A Contabilidade da entidade, no que
rua ou de uma avenida, por exemplo, com base respeita às doações recebidas há que segregá-
nos documentos comprobatórios da operação. las de acordo com a sua natureza, ou seja, em
Com referência aos bens tangíveis de uso doação gratuita e em doação com ônus para
especial, assim trata a mencionada norma de o donatário, estas, portanto, com restrições
contabilidade: impostas pelo doador. Neste caso, enquanto as
• O ativo imobilizado, incluindo os gastos condições estabelecidas pelo doador não forem
adicionais ou complementares, é mensurado

62 Revista de Administração Municipal – RAM


cumpridas, o seu valor é o que fora estabelecido Um bem, por exemplo, que tenha sido adquirido
por este, sendo-lhe agregado aqueles que há dois anos pelo valor de R$ 100 (cem reais), e
corresponderem às despesas realizadas durante o seu preço de aquisição atual, de acordo com o
o cumprimento das restrições impostas. mercado, é de R$ 150 (cento e cinquenta reais),
Reavaliações poderá ser reavaliado por este preço, ou, então,
por consenso, considerando, inclusive, as suas
Conforme se verifica pelo § 3º do art. 106
condições, ser reavaliado por um valor menor
da Lei 4.320, de 17 de março de 1964, os
que aquele que o mercado apresenta.
bens tangíveis, móveis e imóveis, poderão ser
As reavaliações pela mencionada norma
reavaliados mediante o emprego de qualquer
devem ser feitas, pelo menos:
metodologia de reavaliação.
• anualmente, para os bens, cujos valores
A reavaliação tem o sentido de dar outro valor
de mercado variarem significativamente
ao bem, considerando certas características
em relação aos valores anteriormente
que lhes são inerentes, tais como a atividade a
registrados;
que se destina, a data e o valor original da sua
• a cada quatro anos, para os demais bens ou
aquisição, construção ou fabricação, localização
grupos de bens da mesma espécie.
(quando se trata de imóveis) e o material
componente da sua estrutura e, ainda, o valor Na impossibilidade de se estabelecer o valor
de mercado caso fosse adquirido, fabricado ou de mercado, o valor do ativo pode ser definido
construído na data da sua reavaliação. com base em parâmetro de referência que
Pela NBC T 16.10, entende-se a Reavaliação: considerem características, circunstâncias e
como ...a adoção do valor de mercado ou de localizações.
consenso entre as partes para bens do ativo, Em caso de bens móveis específicos, o valor
quando esse for superior ao valor líquido contábil. justo pode ser estimado utilizando-se o valor de
reposição do ativo devidamente depreciado.O
valor de reposição de um ativo depreciado pode
ser estabelecido por referência ao preço de
compra ou construção de um ativo semelhante
com similar potencial de serviço.
Ajuste monetário
O ajuste monetário ou correção monetária
tem o sentido de garantir o valor original ou
da reavaliação diante do fenômeno da inflação,
mediante o emprego de índices que podem ser
próprios ou aqueles instituídos pelo Governo
Federal, ou seja, a entidade pode criar os seus
próprios índices tomando por base a inflação, ou
utilizar-se do IPC, do IGP ou de qualquer outro
que venha a satisfazer o objetivo pretendido.
A Lei não obriga a utilização do ajuste
monetário dos bens do governo, mas tampouco o
proíbe. Veja-se, por exemplo, a Lei Complementar
nº 101/2000 (LRF) que autoriza a elaboração
de anexos fiscais às diretrizes orçamentárias a
preços constantes, o que implica que os saldos
orçamentários das despesas provisionadas
possam ser ajustados monetariamente.
O mesmo acontece com os contratos de
Gravura de 1517 – Jacob Fugger em seu escritório ditando para
empréstimos tomados, cujos saldos são ajustados
seu contador-chefe, M. Schwarz monetariamente, resultando em ajuste monetário,

Revista de Administração Municipal – RAM 63


na mesma proporção, aplicado aos valores pelo execução orçamentária, o conhecimento da
quais os bens foram adquiridos com o emprego composição patrimonial, a determinação dos
dos recursos oriundos desses empréstimos. custos dos serviços industriais, o levantamento
O importante, nisto tudo, é que as dos balanços gerais, a análise e a interpretação
informações geradas pela Contabilidade dos resultados econômicos e financeiros.
apresentem valores reais ou próximos à Observe que, dentre os objetivos para os
realidade, a fim de que a situação econômica e quais se organiza os serviços de contabilidade,
financeira do ente federativo ou da sua entidade destaca-se o que se relaciona com a apuração dos
descentralizada seja apresentada de modo a custos dos serviços industriais. Fica claro, pela
satisfazer àqueles que pretendem investir, ou linguagem do legislador da época em que a Lei
mesmo para que o cidadão contribuinte possa foi elaborada, que a expressão custos industriais
tomar conhecimento do que foi feito com as se restringia às atividades de transformação
suas contribuições tributárias. de matéria-prima e outros meios empregados
para concluir algum produto e, lógico, no qual
Redução a valor recuperável
também se inclui a utilização de equipamentos,
Em realidade o conceito de redução a valor representados pela expressão depreciação.
recuperável é empregado no sentido de se obter Por muito tempo se pensou que a entidade
um valor justo, tomando-se o mercado como governamental não tinha a necessidade de
parâmetro para medir o ativo registrado e já calcular as depreciações dos bens tangíveis
devidamente depreciado. Faz-se o confronto empregados nas atividades da organização.
entre os valores referentes ao ativo, ou seja, Entretanto, de uns tempos para cá esse
aquele pesquisado no mercado e o registrado pensamento vem sofrendo mudanças, porque
pela Contabilidade. Se o valor registrado é maior o cálculo do valor da depreciação ajuda a
do que o valor de mercado, faz-se a redução conhecer e a estabelecer situações com as quais
necessária, considerando, também, neste caso, as a entidade vive no seu dia a dia, conforme se
características desse ativo e a respectiva situação exemplifica a seguir:
física, apurando-se desta forma o seu valor.
• Qual o custo de manutenção e funcionamento
Esta, entretanto, é uma metodologia simples,
das atividades de ensino?
havendo a necessidade de avaliar as atividades
• Qual o custo de manutenção e funcionamento
às quais os bens estão vinculados, podendo,
das atividades de saúde?
neste caso, identificar aquelas que geram
• Qual o custo de manutenção e funcionamento
receitas ou simplesmente despesas para se ter
das atividades de limpeza pública?
um visão real do seu valor.
• Qual o custo de manutenção e funcionamento
Depreciação, Exaustão e Amortização das atividades do Legislativo?
A Norma Brasileira de Contabilidade Como vê o leitor, seria longa a lista de
aplicada ao setor público, a NBC T 16.9, atividades para as quais se apresentariam
aprovada pela Resolução nº 1.136/08, de 21 questões relacionadas ao custo de manutenção
de novembro de 2008, do Conselho Federal e funcionamento de outras atividades. O
de Contabilidade, estabelece os critérios e os conhecimento do custo ajudaria a prover a
procedimentos específicos de contabilidade entidade dos recursos necessários à manutenção
para o reconhecimento da depreciação, da e ao funcionamento de todas as suas atividades,
amortização e da exaustão. das quais resultariam benefícios em prol da
A Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, de administração e do cidadão. Evidentemente,
aplicação nacional, estatui as normas gerais na composição desses custos se integraria a
de direito financeiro nas quais se inserem os depreciação dos bem bens tangíveis: móveis,
procedimentos de contabilidade. O Título IX – imóveis, equipamentos, veículos e outros meios
Da Contabilidade –, dispõe no seu art. 85 que necessários ao funcionamento da organização.
os serviços de contabilidade serão organizados Para expressar a contribuição que certos
de forma a permitir o acompanhamento da ativos dão às atividades da organização,

64 Revista de Administração Municipal – RAM


independentemente da natureza do objetivo • Atividades geradoras de receitas,
pretendido, utiliza-se o conceito de depreciação despesas e/ou custos, produtos e/ou
mediante o emprego de metodologia adequada serviços. Neste agrupamento, os ativos
às características do bem e da atividade para tangíveis contribuem para a formação de
a qual fora alocado.O cálculo da depreciação um produtos ou à prestação de um serviço,
dependerá, exclusivamente, do tipo de atividade em que em um ou em outro há receitas,
para a qual o bem fora alocado. ou seja, neste agrupamento se encontram
Assim, em função da natureza da atividade, exclusivamente as atividades remuneradas
a metodologia poderá ser a da linha reta, a ou geradoras de receitas. A depreciação do
dos dígitos crescentes e/ou decrescentes, com bem alocado a qualquer desses serviços
ou sem valor residual, exponencial e outros é calculada: a) para o conhecimento dos
que o leitor poderá verificar consultando os custos finais do serviço para servir de
compêndios especializados em contabilidade respaldo das provisões futuras dos recursos
existentes no mercado. necessários à execução dessas atividades; b)
A depreciação não tem por exclusividade para a formação dos preços do produto ou
refletir a contribuição do bem na formação de do serviço pelo qual será posto à disposição
um produto ou na prestação da sociedade.
de um serviço, para a • Atividades geradoras
formulação do preço de A depreciação não tem de receitas sem vínculos
venda de um e de outro, mas por exclusividade refletir a despesas. Neste
também refletir a formação agrupamento, classificam-se
de um valor acumulado para
a contribuição do bem na aquelas despesas referentes
a reposição desse bem ao fim formação de um produto ou à gestão dos tributos de
da sua vida útil. na prestação de um serviço competência da entidade
A NBC T 16.9, quando e das transferências
trata das depreciações, constitucionais, as quais
assim se expressa: Quando os elementos do ativo incluem as depreciações dos bens utilizados
imobilizado tiverem vida útil econômica limitada, nessas atividades de gestão. Quanto
ficam sujeitos à depreciação, amortização ou aos métodos para a depreciação, a
exaustão sistemática durante esse período, administração adotará aquele que melhor
sem prejuízo das exceções expressamente atender aos seus interesses. Existem vários,
consignadas. Na administração pública, dentre os quais citam-se o da linha reta,
entretanto, para facilitar o entendimento das o exponencial, o dos dígitos crescentes e
contribuições de certos ativos tangíveis, pode- decrescentes, o da produção, o das horas de
se agrupar as atividades da organização como a trabalho e outros, conforme já mencionado.
seguir se indica: Um dos métodos mais utilizados é o da linha
• Atividades geradoras de despesas e/ reta, cujo desenvolvimento é o seguinte:
ou de custos, produtos e/ou serviços.
• D = C - R / N, em que: D = depreciação; C =
Neste agrupamento, os ativos tangíveis
custo original de compra ou de construção;
contribuem para a formação de um
R = valor residual, ou seja, aquele que ao fim
produto ou a prestação de serviço, sem
da vida útil de bem será o seu valor ou custo
que haja geração de receitas. A depreciação
atual. e N = vida útil do bem calculada em
desses bens é calculada apenas para o
anos.
conhecimento dos custos finais de um e de
Porém, qualquer que seja a metodologia de
outro e para servir de respaldo às provisões
depreciação a ser adotada,serão considerados
futuras dos recursos necessários à execução
sempre as seguintes informações:
dessas atividades. Exemplos: Administração,
• a data da compra, da produção ou da
Educação, Assistência Social, Legislativo e
construção;
outras.

Revista de Administração Municipal – RAM 65


• o valor da compra; As demonstrações contábeis da Lei 4.320,
• o estabelecimento de valor residual, se de 17 de março de 1964, Balanço Patrimonial
assim desejar; e Variações Patrimoniais, atualizadas pela
• a vida útil estimada; e Portaria STN nº 665 de 30 de novembro de
• a natureza da atividade para a qual fora 2010, e que os Municípios devem utilizar
determinado. desde 2013, já possuem as contas apropriadas
A amortização, mencionada na NBC para os respectivos registros das variações
T16.9, é empregada para certas despesas que patrimoniais identificadas após as aplicações dos
a própria entidade realiza, por exemplo, com procedimentos de natureza contábil adotados.
a organização de uma Secretaria ou de uma
autarquia ou mesmo de uma empresa, de cujo Implantação e Implementação dos
capital a entidade possa fazer parte, ou, ainda Procedimentos de Avaliações e
de pesquisas científicas que se processem nas Depreciações
áreas da Administração Municipal.
A implantação e a implementação dos
A exaustão é outra forma de se calcular um
procedimentos aqui tratados, inclusive no que
custo de contribuição para a execução de alguma
respeita à adoção do regime de competência
atividade voltada à exploração de minas, jazidas
para as receitas e despesas governamentais,
de minérios, florestas e outros. Pode-se, também,
conforme se depreende da legislação
calcular a exaustão por utilização dos logradouros
pertinente, dependerão do atendimento dos
públicos, tais como ruas, praças, jardins, pontes,
seguintes aspectos:
viadutos, túneis, na qual se empregará uma
• organização da atividade administrativa que
metodologia adequada à situação.
estabelecerá as rotinas de relacionamentos
Por se tratarem de procedimentos
de todos os setores da administração,
específicos de contabilidade de gestão dos meios
inclusive do setor do patrimônio, com a
necessários à manutenção e ao funcionamento
Contabilidade; e
das atividades da organização governamental,
• organização das atividades contábeis como
os quais também envolvem procedimentos de
o plano de contas, as rotinas contábeis,
controle, é interessante que as metodologias e os
as demonstrações, os relatórios e outros
procedimentos sejam parte de normas gerais de
aspectos que devem ser envolvidos para
controle interno, as quais devem ser baixadas por
que os procedimentos possam realmente
lei local, que deverá atribuir aos respectivos Chefes
ser postos em prática.
dos Poderes Executivo e Legislativo a necessária e
O fato é que o setor da Contabilidade não pode
respectiva competência para a determinação de
ficar alheio ao que acontece nos demais setores
normas específicas que prevalecerão no âmbito
da entidade, sob pena das suas informações não
de cada Poder, em obediência ao que dispõe o
produzirem os efeitos que delas se espera.
art. 74 da Constituição da República, devendo
essas normas ser estendidas às entidades da Aspectos Legais
administração descentralizada (autarquias, Conquanto alguns estudiosos de contabilidade
fundações, empresas públicas e sociedades de resistam em aceitar os aspectos legais ou
economia mista) vinculadas à administração jurídicos como características das operações
central do Município. governamentais, lembro que a Contabilidade
Contabilização das Variações não pode ser considerada uma ciência isolada, o
que, aliás, seria absurdo se acontecesse.
As variações por reavaliações, ajustes
Ela se relaciona com o Direito, com a
monetários, depreciações, amortizações ou por
Administração, com a Economia, com a
perdas e danos constatados deverão ser levadas
Matemática, com as Finanças e com outras áreas
à conta patrimonial, e terão tratamento como
do saber, das quais uma virá à tona na medida
variações extraordinárias ou independentes da
em que o usuário da informação contábil a
execução orçamentária.

66 Revista de Administração Municipal – RAM


utilizar para a sua decisão, após analisá-la Conclusão
e avaliá-la, o que vai depender da situação Necessário observar que os critérios para as
refletida e estudada e do objetivo pretendido. avaliações, reavaliações, correções e depreciações
É evidente que os bens tangíveis, adquiridos devem ser uniformes pelo tempo que durar
a vista ou a prazo, destinam-se a atender às o bem, as atividades e a própria entidade. Se,
atividades da organização, qualquer que seja porventura, houver a necessidade de mudar um
o grupo em que estejam classificadas. Mas, se critério adotado, a demonstração que refletir a
porventura os adquiridos a prazo não forem informação sobre a correção e a depreciação será
pagos nas datas de vencimento, o seu dono, acompanhada de nota explicativa, que esclarecerá
sem dúvida alguma, reclamará a sua devolução inclusive o impacto produzido nos resultados
com a alegação de que tem direitos sobre esses apurados de cada atividade executada.
valores. A mesma situação pode ocorrer em Ainda que seja possível reavaliar e corrigir
relação aos direitos do Estado junto a terceiros. monetariamente os bens tangíveis para ajustar
Por exemplo, quando a Contabilidade utiliza o patrimônio da entidade ao seu valor real,
a conta Créditos a Receber/Tributários e Não alerte-se que o possível déficit, econômico ou
Tributários é para representar os direitos do financeiro, somente desaparecerá se outras
Estado sobre os valores a receber de terceiros medidas de natureza política e administrativa
em razão de mandamentos de leis ou de forem providenciadas.
contratos. Por tratar-se de problemas de contabilidade,
Os chamados princípios contábeis, em os critérios a serem utilizados para avaliações,
que se assentam os registros das operações reavaliações, ajustes monetários, exaustão,
realizadas pelo ente federativo ou por sua amortização e depreciações dos bens tangíveis que
entidade descentralizada, são utilizados integram o patrimônio da Entidade Governamental
para dar veracidade às informações geradas devem ser discutidos com a Controladoria da
pela Contabilidade e para assegurar que o Prefeitura, se existir, ou, na falta desta, com o
seu usuário será satisfeito no conhecimento Contador Geral da Prefeitura Municipal, a fim de
da situação econômica e financeira que, no momento da elaboração dos balanços não
do ente federativo ou da sua entidade haja qualquer dificuldade ou obstáculo que venha
descentralizada. a prejudicar o objetivo pretendido.
Leituras Recomendadas
Como reforço do entendimento do conteúdo deste trabalho recomenda-se:
REIS, Heraldo da Costa & MACHADO JR, J. Teixeira. A Lei 4320 Comentada e A Lei de Responsabilidade Fiscal.35ª ed.,rev.
e atual.por Heraldo da Costa Reis, com a introdução de comentários às NBCASPs do CFC. Rio de Janeiro: IBAM, 2015.
______. A Depreciação na Administração Pública. In: Revista de Administração Municipal, nº276, jan/mar 2011, Rio de
Janeiro: IBAM, p.53-54.
______. Custos e Controle Gerencial na Administração Municipal. In: Revista de Administração Municipal, nº276, jan/mar
2011, Rio de Janeiro: IBAM, p.5-18.
______. O Município no contexto das mudanças no sistema de informações contábeis. In: Revista deAdministração
Municipal, Rio de Janeiro: IBAM, n.275, out/dez2010, p.29-32.
______. As Mudanças na LC 101/2000 (LRF). In: Revista de Administração Municipal,nº 272, Rio de Janeiro: IBAM, out/
dez2009, p. 32-36.
______. Razões e Condições para Adoção do Regime de Competência na Contabilidade Governamental. In: Revista de
Administração Municipal, nº 270, Rio de Janeiro: IBAM, abr/jun2009, p. 41-42.
______.O superávit financeiro nas finanças governamentais.In: Revista de Administração Municipal, nº 268. Vol.54. Riode
Janeiro: IBAM, out/dez 2008, p. 40-55,
______.Efeitos das operações previstas no art. 44 da LRF nas finanças do município. In: Revista de Administração Municipal,
nº 266.Vol.53. Rio de Janeiro: IBAM, abr/jun 2008, p.48- -----
______.Regime de caixa ou de competência: eis a questão.In:Revista de Administração Municipal nº 260. Rio deJaneiro:
IBAM, out/dez 2006, p.31-48.

Revista de Administração Municipal – RAM 67


Revista de Administração Municipal – RAM 68
Parecer
Competência Legislativa Municipal.
Controle de zoonoses e “eutanásia
animal”. Esclarecimentos
Ana Carolina Couri de Carvalho*

Consulta
A Câmara consulente indaga a respeito da legalidade de Projeto de Lei, de iniciativa do Chefe
do Executivo, que versa sobre controle de zoonoses, dentre outras medidas no Município.

Resposta um animal em decorrência de processos muito


dolorosos ou incuráveis e, diferentemente do
O legislador constituinte, ciente da importância que acontece com a espécie humana, pode ser
do meio ambiente e das outras formas de vida que indicado pelo médico-veterinário, de acordo
não apenas do homem, inseriu na Carta Política com a legislação vigente.
uma série de dispositivos que exigem por parte Muitas vezes pretende-se utilizar a
do Estado uma atuação positiva na preservação e denominada “eutanásia animal”, de forma
proteção da vida dos animais. distorcida, para controle da população animal,
A Constituição também deixou aos Municípios, decorrente de uma ineficaz política de saúde
em decorrência de sua autonomia político- e do crescente número de cães abandonados
administrativa, a prerrogativa de fixar as e doentes, procedimento este repudiado pela
condicionantes de atividades, bens e serviços que Organização Mundial de Saúde, que recomenda
sejam nocivos ou inconvenientes ao bem-estar da revisão desta política “de extermíno” desde a
população local, dado que lhe incumbe o exercício edição de seu 8º Informe Técnico de 1992.
do poder de polícia administrativa sobre o meio Como demonstrado na obra Zoonosis
ambiente. O exercício desta autonomia legislativa y enfermidades transmisibles comunes al
local deve ser realizada em harmonia aos demais hombre y a los animales, de Pedro Acha, (p.
preceitos constitucionais vigentes. 370, Publicación Científica y Técnica nº 580,
Sobre o mérito do Projeto de Lei, como visto, Organizácion Panamericana de la Salud, Oficina
o Município tem competência para tratar das Sanitária Panamericana, Oficina Regional de
condutas públicas, as chamadas posturas, e para la Organización Mundial de la Salud, 3ªedição,
tratar da proteção aos animais, ainda que no âmbito 2003), uma só cadela pode originar, direta ou
doméstico. Neste sentido, o Município pode e deve indiretamente, com seus descendentes, 67.000
tratar de animais em situação de vulnerabilidade. cães num período de seis anos, e um cão, antes de
O termo eutanásia (do grego eu = bem, bom; ser eliminado, já inseminou várias fêmeas, não
thánatos = morte) é referente à morte sem sendo difícil deduzir que matar não soluciona o
sofrimento. Na medicina veterinária esta prática problema.
é utilizada para interromper o sofrimento de
* Advogada, Assessora Jurídica do IBAM.

70 Revista de Administração Municipal – RAM


Preconiza-se a educação da comunidade Por outro lado, as campanhas de
e o controle de natalidade de cães e de gatos, conscientização sequer dependem de lei para
anunciando que todo programa de combate serem implementadas pelo Executivo, motivo
a doenças deve contemplar o controle da pelo qual diversas disposições constantes do
população canina, como elemento básico, ao lado PL, a exemplo dos arts. 11 e 12, mostram-se
da vigilância epidemiológica e da imunização. desnecessárias.
Cumpre enfatizar que a eutanásia animal Já quanto ao art. 13, como reiteradamente
é sim prática defensável, mas o seu escopo é esclarecido pelo IBAM, o Chefe do Executivo não
eliminar o sofrimento daquele animal que não depende de autorização legislativa prévia para
possui mais chances de cura, e nunca eliminar celebrar convênios, uma vez que insere no âmbito
animais indesejados. Medidas do gênero de sua atribuição típica, mormente tratando-se de
devem estar inseridas no âmbito de uma ação PL de iniciativa do Executivo. Entender de forma
coordenada, mediante criação de campanhas de contrária, seria o mesmo que admitir, na prática,
conscientização, assim como as voltadas para que o Poder Legislativo seria também responsável
a prática de ação social (a exemplo da adoção pelos Convênios firmados pelo Chefe do Executivo,
de cães, da apreensão e recolhimento destes o que posteriormente poderia ser alegado por esse
animais a abrigos públicos), dentre outras último para mitigar sua responsabilidade político-
medidas que consubstanciam atos de gestão administrativa, o que é inadmissível.
administrativa a cargo do Poder Executivo. Muito provavelmente tais imprecisões
Neste ponto, cumpre de plano apontar terminológicas podem decorrer em razão de,
a manifesta inconstitucionalidade do eventualmente, a propositura ser oriunda
parágrafo único do artigo 6º deste PL, que de indicação legislativa. A redação do art. 15
pretende legitimar o extermínio de animais também merece ser reformulada, sendo certo
por critério aleatório, arbitrário e absurdo que não se cogita de “multa por flagrante
erigido pelo legislador local, o que nada tem a ou denúncia”. A multa é administrativa, e
ver com eutanásia animal. encontra-se inserida no poder de polícia
Sobre o tema, cumpre consignar que a administrativa, que nada se confunde com
legislação vigente pune os atos de abuso e de responsabilidade penal.
maus-tratos aos animais, tipificados como Por fim, quanto ao art. 16, para facilitar a
crime ambiental pelo artigo 32 da Lei Federal operacionalização da destinação específica da
nº 9.605/98 e que a Constituição da República, receitas as multas, melhor seria a criação de um
em seu art.225, §1º, VII, declara incumbir aos fundo para este fim.
Poder Público vedar as práticas que submetam Como visto, o que de melhor o Município
animais à crueldade. pode fazer é atuar preventivamente, realizando
Outrossim, verificamos que alguns dispositivos, campanhas de cuidados de animais domésticos
a exemplo do §2º do art. 3º, art. 3º, 6º, 13, 15 e 16, com higienização, tratamento de infecções
merecem ser suprimidos ou reformulados. e esterilização para conter o aumento da
O §2º do art. 3º viola os princípios da população animal e utilizar da “eutanásia
proporcionalidade e razoabilidade, uma vez que animal’ para hipóteses que realmente
cria “direito de preferência” para as pessoas demandam este procedimento excepcional, que
cadastradas em outros programas sociais, o não pode ser distorcido ou banalizado como
que não guarda qualquer relação com o escopo da método de controle de zoonoses em razão de
propositura. A preferência no atendimento deverá ineficiência de política pública de saúde animal.
ser pautar em critérios objetivos que indiquem os Ante o exposto, conclui-se que o Executivo
maiores riscos para os animais ou pessoas. pode legislar sobre o tema, mas que o
Quanto ao art. 6º, a expressão “ressocialização” conteúdo da presente propositura necessita
deverá ser substituída por outra mais pertinente, ser reformulado, enfatizando a manifesta
a exemplo de “adaptação” ou outra que melhor inconstitucionalidade do parágrafo único do
se insira no contexto do PL. artigo 6º deste PL, dentre outros dispositivos.

Revista de Administração Municipal – RAM 71


Parecer
Política Urbana. APPs urbanas.
Legislação aplicável. Considerações
Jean Marc Weinberg Sasson*

Consulta
Indaga a consulente quais as regras que prevalecem a respeito das APPs urbanas: Novo
Código Florestal (Lei nº 12.651/2012) ou a Lei local de Parcelamento de solo editada nos
moldes da Lei nº 6.766/79.

Resposta preservação permanente, quando se tratar


de área localizada em zona urbana. Pela
A Lei Federal nº 6.766/1979, que dispõe redação original do Código Florestal de
sobre o parcelamento do solo urbano, contém 1965, não se fazia distinção entre áreas
previsão em seu artigo 4º, obrigando ao loteador urbanas e rurais.(...) Um ano depois, a Lei
observar uma reserva de faixa não edificável de 6.766, de 19.12.1979, estabeleceu diretrizes
quinze metros de cada lado ao longo das águas básicas para o parcelamento do solo urbano,
correntes e dormentes e das faixas de domínio estipulando no art. 4.º, III que, “ao longo
público das rodovias e ferrovias, salvo maiores das águas correntes e dormentes e das
exigências da legislação específica. faixas de domínio público das rodovias e
No caso, a legislação específica era o ferrovias, será obrigatória a reserva de uma
antigo Código Florestal – Lei nº 4.771/65 – que faixa não edificável de 15 (quinze) metros
considerava Área de Preservação Permanente a de cada lado, salvo maiores exigências da
faixa marginal de qualquer curso de água com legislação específica”. A parte final desse
largura mínima de 50 m para cursos de água dispositivo ajudou a alimentar divergências
com largura entre 10 e 50 m (art. 2º, A, item 2 doutrinárias a respeito da aplicação do
– redação estabelecida pela Lei 7.803/1989) e Código Florestal em área urbana - posto
não previa expressamente a possibilidade da se tratar de legislação específica - o que
existência de Áreas de Preservação Permanente ensejaria maiores restrições daquela faixa
em áreas urbanas. de 15 metros ao longo da faixa marginal dos
Em razão desta ausência normativa, cursos de água, prevista na Lei 6.766/1979.”
ao contrário do novo código, as regras da lei (MILARÉ, Édis, Direito do Ambiente. 8. ed.
de parcelamento de solo urbano prevaleciam rev., atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos
com fundamento no princípio da especialidade. Tribunais, 2013; p. 1266-67).
Neste sentido, nos ensina Édis Milaré:
“Sempre houve controvérsia a respeito
da configuração de uma área como de * Advogado, Assessor Jurídico do IBAM.

72 Revista de Administração Municipal – RAM


No entanto, com a previsão expressa do E DO CÓDIGO FLORESTAL. INEXISTÊNCIA DE
novo Código Florestal, com uma nova redação DIREITO ADQUIRIDO DE POLUIR. Preliminares
empregada ao artigo 4º, I, a, da Lei 12.651/2012, superadas. (...) No mérito, o exercício do direito
o conflito foi dirimido: de propriedade sofre limitação constitucional.
“Art. 4º. Considera-se Área de Preservação Incidência, no caso concreto, das normas
Permanente, em zonas rurais ou urbanas, previstas nos artigos 23, VI e VII, 24, VI, 30,
para os efeitos desta Lei: II e 225 da CRFB/88. O parcelamento ou
I - as faixas marginais de qualquer curso loteamento do solo urbano, pelo Município,
d’água natural perene e intermitente, deve observar a proteção, definida em lei, às
excluídos os efêmeros, desde a borda da calha áreas de preservação ecológica. O Município,
do leito regular, em largura mínima de:(...) ao editar Plano Diretor e definir quais as
b) 50 (cinquenta) metros, para os cursos áreas de zoneamento urbano, pode, no
d’água que tenham de 10 (dez) a 50 âmbito de sua competência legislativa
(cinquenta) metros de largura;” suplementar, alargar a proteção ambiental,
Assim, tendo em vista que a área sendo-lhe vedado restringi-la. A área em
a ser preservada, estabelecida pela Lei questão foi considerada, conforme prova
nº 6.766/79, é menor do que a instituída pericial, terreno de mangue, e é objeto de
pela Lei nº 12.651/2012, prevalece aquela proteção conforme art. 2º da Lei Federal nº
cronologicamente posterior, bem como a 4.771/65 (Código Florestal). A concessão
norma especial em detrimento da norma geral, à 1º apelante de licença de construção da
com base no artigo 2º, §§ 1º e 2º, da Lei de infraestrutura do loteamento “Bairro Jabour”,
Introdução ao Código Civil. pelo Município, permitindo-lhe o aterramento
Desta forma, entende-se que a Lei nº 12.651/ de área de preservação permanente, não cria
2012 prevalece sobre a Lei nº 6.766/1979 direito adquirido de poluir. Inexistência de
no que diz respeito às Áreas de Preservação licença ambiental ou de estudo de impacto
Permanente em áreas urbanas. ambiental. Apelações improvidas. (TRF-2 - AC:
Neste sentido, os dizeres de Édis Milaré: 200202010234085 ES 2002.02.01.023408-5,
“Não obstante a controvérsia outrora Relator: Desembargador Theophilo Miguel,
existente, é certo que o novo Código Florestal Data de Julgamento: 06/06/2007, Sétima
Brasileiro, a Lei 12.651/2012, determina Turma Especializada, Data de Publicação: DJU
expressamente que as áreas de preservação - Data: 01/08/2007 - p. 139, g.n.)”
permanente existem “em zonas rurais ou
Ainda, conforme já asseverou o Superior
urbanas (art. 4º, caput), retirando assim
Tribunal de Justiça no REsp nº 948921, inexiste
qualquer dúvida quanto à aplicabilidade
direito adquirido em degradar o meio ambiente.
desta restrição em áreas urbanas.(...)”
Em que pese os critérios solucionadores de
(MILARÉ, Édis, Direito do Ambiente. 8. ed.
conflitos de norma, há, nesta linha, julgados que
rev., atual. e ampl. São Paulo: Ed. Revista dos
consideram, na hipótese de área antropizada,
Tribunais, 2013; p. 1266-67.)
ou seja, aquelas já totalmente urbanizadas e
Com efeito, em matéria urbanísitca,
modificadas pela ação humana, prevalecer a lei de
é assente que o Município pode editar leis
parcelamento de solo urbano:
que confiram maior grau de proteção ao meio
“AMBIENTAL. APELAÇÃO CÍVEL E REEXAME
ambiente, mas não retroceder o grau de proteção
NECESSÁRIO. EMBARGO A OBRA EXECUTADA
já alcançado, conforme decisão abaixo:
EM LEITO DE RIO. DISTÂNCIA MÍNIMA DO
“DIREITO AMBIENTAL. LOTEAMENTO
CURSO D’ÁGUA. INAPLICABILIDADE DO NOVO
E URBANIZAÇÃO PREVISTO EM PLANO
CÓDIGO FLORESTAL (LEI nº 12.651/2012)
DIRETOR DO MUNICÍPIO DE VITÓRIA.
EMBARGO ANTERIOR A PUBLICAÇÃO DESTA
LICENÇA PARA CONSTRUÇÃO. ATERRAMENTO
NOVA LEGISLAÇÃO. CÓDIGO FLORESTAL (LEI
DE ÁREA ENQUADRADA COMO ÁREA DE
nº 4.771/65). APLICAÇÃO SOMENTE A ÁREAS
MANGUE. SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO
RURAIS. INCIDÊNCIA, NO CASO, DA LEI DE

Revista de Administração Municipal – RAM 73


PARCELAMENTO DO SOLO URBANO (LEI N.º Neste sentido, vale reproduzir o enunciados
6.766/79) E DO PLANO DIRETOR MUNICIPAL do Ministério Público de SC (http://www.mpsc.
(LCM nº 2.147/07). IMÓVEL INSERIDO mp.br/portal/servicos/publicacoes-tecnicas.
EM ÁREA URBANA. PRECEDENTES DESTA aspx), o qual entende prevalecer as regras da Lei
CORTE. CONSTRUÇÃO QUE ATENDEU OS nº 12.651/2012:
REQUISITOS ESPECÍFICOS DA LEI MUNICIPAL. “Enunciado 01: Da aplicação do Código
SENTENÇA MANTIDA. RECURSO E REEXAME Florestal
NECESSÁRIO DESPROVIDOS. (TJ/SC.MS Para definição das áreas de preservação
Apelação Cível em Mandado de Segurança n. permanente existentes às margens de cursos
2013.084452-9)” d’água situados em zona urbana municipal,
“Inexistindo dúvida quanto a que, devido à aplica-se, de regra, o disposto no art. 4º da
sua localização, a obra erguida está cônsona Lei nº 12.651 ou a legislação mais restritiva.”
com os limites edificáveis prescritos pela
cognominada Lei de Parcelamento do Solo Outro fator relevante é a previsão no Novo
Urbano (nº 6.766/79) e pelo Plano Diretor Código Florestal de supressão de APPs em caso de
do Município (LCM nº 2.147/04), e, ainda, em utilidade pública, especificamente aquela prevista
região antropizada, desnuda-se descabida no art. 8º c/c art. 3º, VIII, b. Importante frisar que
a exigência da aplicabilidade do Código este permissivo se trata de uma exceção à regra
Florestal anterior (Lei nº 4.771/65), à vista geral de proteção às APPs.
dos inúmeros precedentes desta Corte Portanto, apenas será permitida a
assentado a prevalência das primeiras, por intervenção em áreas de APP nas hipóteses
conta do princípio da maior especialidade, previstas pelo Código Florestal, entre elas a de
bem como do atual (Lei nº 12.651/12), eis utilidade pública arroladas no art. 3º, VIII, na qual
que superveniente à data de concessão do prevê a possibilidade em caso de construção de
alvará, daí porque é de ser mantido o decreto sistema viário.
de improcedência do pedido inicial.” (Apelação Nesta hipótese, quando ocorrer o
Cível 2013.065968-3, Rel. Des. João Henrique parcelamento de solo urbano, a exceção acima
Blasi, de Orleans, Segunda Câmara de Direito mencionada não pode implicar em autorização
Público, j. em 03/06/2014).” indiscriminada para supressão total da vegetação
protetora de APPs, já que o art. 4º, III da Lei
Pelo acima exposto, em que pese não ser pacífica nº 6.766/79 que traça normas gerais sobre o
a posição jurisprudencial, cumpre ao Município parcelamento do solo urbano obriga o loteador
avaliar a situação jurídica de cada APP urbana, respeitar a reserva de uma faixa não edificável de
verificando se há construções edificadas de acordo no mínimo 15 (quinze) metros.
com a legislação urbanística e ambiental vigente à Assim, quando não for possível respeitar
época. Isto é, apesar das regras estabelecidas pela as regras gerais de proteção de APPs previstas na
Lei 12.651/2012 prevalecerem frente àquelas Lei nº 12.651/2012, protegendo em sua extensão
previstas na Lei nº 6.766/79 em razão do critério de máxima, ou estiver diante de uma permissão de
especialidade e temporalidade, deverá verificar as intervenção em APP, restará, em último caso, as
condições legais vigentes à época das construções/ regras de proteção previstas na Lei nº 6.766/79.
edificações. Diante deste cenário, cabe ao ente
Neste sentido, aquelas áreas antropizadas, municipal verificar a existência de áreas urbanas
instituídas anteriormente à edição do novo consolidadas sob as quais deverão ser aplicadas
código florestal (até 22/07/2012) e, sobretudo, as leis vigentes à época de sua instituição, ao
instituídas sob o manto da legalidade da lei de passo que as novas áreas deverão respeitar as
parcelamento de solo urbano e com margem de disposições protetivas da Lei nº 12.651/2012,
proteção de 15 m, são atualmente áreas urbanas devendo, ainda, diligenciar a adequação das
consolidadas e deverão assim permanecer, sob disposições das leis municipais e do Plano Diretor
pena de violação do princípio da segurança às exigências de proteção de corpos hídricos do
jurídica. novo Código Florestal.

74 Revista de Administração Municipal – RAM


Parecer
Realização de exames pertinentes a
doenças sexualmente transmissíveis em
menores de 18 anos desacompanhados
dos responsáveis pelo Sistema Único de
Saúde Municipal. Considerações
Priscila Oquioni Souto*

Consulta
Indaga o consulente acerca do respaldo legal para a realização de exames pertinentes
a doenças sexualmente transmissíveis em menores de 18 anos desacompanhados dos
responsáveis pelo Sistema Único de Saúde Municipal.

Resposta ECA (Lei nº 8.069/90) garante proteção integral,


prioridade e política de atendimento à criança
Inicialmente, para o escorreito deslinde e ao adolescente, reconhecendo-os como
da questão, o art. 227 de nossa Lei Maior sujeito de direitos e conferindo a importância
assevera ser dever do Estado, da família e da necessária à sua peculiar condição de seres
sociedade proteger e resguardar as crianças e humanos em desenvolvimento. Assim, há de se
adolescentes assegurando-lhes todos os seus considerar que as crianças e adolescentes são
direitos, nos seguintes termos: portadores de direitos e garantias próprias,
ainda que e principalmente por estarem em
“Art. 227. É dever da família, da sociedade
desenvolvimento, independentemente de seus
e do Estado assegurar à criança, ao
pais/responsáveis, familiares e do próprio
adolescente e ao jovem, com absoluta
Estado.
prioridade, o direito à vida, à saúde,
Corroborando as ilações acima, entendemos
à alimentação, à educação, ao lazer, à
oportuna a transcrição de alguns dispositivos
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
do ECA fundamentais para o discernimento da
respeito, à liberdade e à convivência familiar
questão aqui proposta:
e comunitária, além de colocá-los a salvo de
“Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de
toda forma de negligência, discriminação,
todos os direitos fundamentais inerentes à
exploração, violência, crueldade e opressão.”
pessoa humana, sem prejuízo da proteção
(Grifos nossos).
Dentro deste contexto, é preciso observar
que o Estatuto da Criança e do Adolescente – * Advogada, Consultora Técnica do IBAM.

Revista de Administração Municipal – RAM 75


integral de que trata esta Lei, assegurando- Os dispositivos acima transcritos são
se-lhes, por lei ou por outros meios, todas corolários, à luz da condição peculiar de
as oportunidades e facilidades, a fim de lhes ser humano em desenvolvimento atribuída
facultar o desenvolvimento físico, mental, às crianças e aos adolescentes, dos direitos
moral, espiritual e social, em condições de fundamentais à vida, à liberdade e à igualdade
liberdade e de dignidade.” (art. 5º, caput, da Constituição Federal), à
“Art: 11. É assegurado atendimento integral intimidade e à vida privada (art. 5º, inciso X,
à saúde da criança e do adolescente, por da Constituição Federal), à saúde (art. 6º c/c
intermédio do Sistema Único de Saúde, art. 198 e seguintes, todos da Constituição
garantido o acesso universal e igualitário às Federal).
ações e serviços para promoção, proteção e Em cotejo, o Código de Ética Médica
recuperação da saúde. (aprovado pela Resolução CFM nº 1931/2009),
§ 1º. A criança e o adolescente portadores em seu art. 74, assevera ser vedado ao médico
de deficiência receberão atendimento revelar segredo profissional referente a
especializado. paciente menor de idade, inclusive a seus pais
§ 2º. Incumbe ao poder público fornecer ou responsáveis legais, desde que o menor
gratuitamente àqueles que necessitarem os tenha capacidade de avaliar seu problema e
medicamentos, próteses e outros recursos de conduzir-se por seus próprios meios para
relativos ao tratamento, habilitação ou solucioná-los, salvo quando a não revelação
reabilitação.” possa acarretar danos ao paciente:
“Art. 15. A criança e o adolescente têm “É vedado ao médico:
direito à liberdade, ao respeito e à dignidade (...)
como pessoas humanas em processo de Art. 74. Revelar sigilo profissional
desenvolvimento e como sujeitos de direitos relacionado a paciente menor de idade,
civis, humanos e sociais garantidos na inclusive a seus pais ou representantes
Constituição e nas leis.” legais, desde que o menor tenha
“Art. 16. O direito à liberdade compreende os capacidade de discernimento, salvo
seguintes aspectos: quando a não revelação possa acarretar
I - ir, vir e estar nos logradouros públicos dano ao paciente.” (Grifos nossos).
e espaços comunitários, ressalvadas as
Desta sorte, com espeque nas reflexões até
restrições legais;
aqui exaradas, podemos claramente inferir
II - opinião e expressão;
que qualquer imposição, como a exigência de
III - crença e culto religioso;
acompanhamento de responsável no serviço de
IV - brincar, praticar esportes e divertir-se;
saúde que possa por si só obstar ou impedir o
V - participar da vida familiar e
exercício pleno do adolescente de seus direitos
comunitária, sem discriminação;
fundamentais à saúde e à liberdade, deverá ser
VI - participar da vida política, na forma da lei;
rechaçada.
VII - buscar refúgio, auxílio e orientação.”
(Grifos nossos). Não obstante, como forma de serem
“Art. 17. O direito ao respeito consiste assegurados os mesmos direitos anteriormente
na inviolabilidade da integridade física, indigitados, caso a equipe de saúde entenda
psíquica e moral da criança e do adolescente, que o usuário não possui condições de decidir
abrangendo a preservação da imagem, da sozinho sobre alguma intervenção em razão
identidade, da autonomia, dos valores, idéias de sua complexidade, deve, primeiramente,
e crenças, dos espaços e objetos pessoais.” realizar as intervenções urgentes (se houver)
“Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade que se façam necessárias, e, em seguida, abordar
da criança e do adolescente, pondo-os a salvo o adolescente de forma clara a necessidade
de qualquer tratamento desumano, violento, de que um responsável o assista e o auxilie no
aterrorizante, vexatório ou constrangedor.” acompanhamento.

Revista de Administração Municipal – RAM 76


Por tudo que precede, concluímos objetos do direito, mas como sujeitos de direito.
objetivamente a presente consulta no sentido Nesta toada, perfeitamente factível a realização
de que a legislação apresentada (ECA e Código de exames pertinentes a doenças sexualmente
de Ética Médica) deve ser interpretada à luz transmissíveis em adolescentes, ainda que sem
dos princípios constitucionais, bem como do a presença dos respectivos responsáveis, desde
princípio do maior interesse do menor e da que observada a capacidade de discernimento
doutrina da proteção integral, o que nos faz do menor para tanto e quando não detectado
concluir crianças e adolescentes como além de prejuízo maior aos seus direitos.
78 Revista de Administração Municipal – RAM

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