Jogo Sujo - George R. R. Martin PDF
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Sobre a obra:
Sobre nós:
JOGO SUJO
“Apenas os mortos conhecem o Bairro dos Curingas” copy right
© 1998 por John J. Miller.
“Todos os cavalos do rei” copy right © 1998 por Fevre River
Packet Company. “Concerto para sirene e serotonina” copy right
© 1998 por Amber Corporation. “Colapso”, “Derrocada” e
“Que fera rude” copy right © 1998 por Leanne C. Harper. “Jesus
era um ás” copy right © 1998 por Arthur By ron Cover. “Laços
de sangue” copy right © 1998 por Melinda M. Snodgrass. “A
segunda vinda de Buddy Holley ” copy right © 1998 por Edward
Bry ant.
“Matizes da mente” copy right © 1998 por Stephen Leigh.
“Viciada em amor” copy right © 1998 por Pat Cadigan.
“Mortalidade” copy right © 1998 por Walter Jon Williams.
“Posfácio” copy right © 2002 por George R. R. Martin.
O Editor
Outubro de 1986 — Abril de 1987
Apenas os mortos conhecem
o Bairro dos Curingas
John J. Miller
Brennan movia-se pela noite de outono como se fosse parte dela, ou ela parte
dele.
A estação trouxe um frescor que o fez lembrar-se, mesmo que vagamente,
das montanhas de Catskills. Ele sentia falta delas mais que qualquer outra coisa,
mas, enquanto Kien estivesse livre, elas ficariam inacessíveis, como os
fantasmas dos amigos e amantes mortos que vinham assombrá-lo em sonho nos
últimos tempos. Amava as montanhas com tanto afã quanto amava todas as
pessoas com quem falhara durante anos, mas quem, afinal, podia amar a suja
dispersão da cidade? Quem conseguia entendê-la, quanto mais o Bairro dos
Curingas? Não ele, certamente, mas a presença de Kien o ligava tão fortemente
ao bairro quanto correntes de aço.
Ele cruzou a rua, entrando no meio do quarteirão de escombros urbanos que
margeavam o Cry stal Palace. Graças ao seu sexto sentido de caçador, sentia
olhos seguindo-o quando passou pelas ruínas. Ajeitou a bolsa de lona, na qual
carregava seu arco desmontável, para uma posição mais cômoda, imaginando,
não pela primeira vez, que tipo de criatura escolheria fazer das montanhas de lixo
seu lar. Uma ou duas vezes ouviu o farfalho sussurrante que não era do vento, e
vislumbrou breves movimentos que não eram da luz da lua, mas ninguém se
meteu no caminho enquanto ele escalou a escada de incêndio enferrujada que
ficava nos fundos do Cry stal Palace. Subiu silenciosamente no telhado, passou
pelo sistema de segurança — que teria impedido um pouco seu avanço se
Crisálida não lhe tivesse dado a senha — e entrou pelo alçapão que se abria para
o terceiro andar, o domínio privado de Crisálida. O corredor estava totalmente
escuro, mas ele se desviou, de memória, dos delicados aparadores cheios de
bibelôs antigos, e entrou em seus aposentos. Ela estava acordada. Nua, sentada no
desbotado sofá de veludo vinho, jogava paciência com um maço de cartas
antigas.
Brennan observou-a por um momento. O esqueleto, a musculatura
fantasmagórica, os órgãos internos e o sistema circulatório, que formavam uma
renda ao redor de tudo, eram sutilmente iluminados pela luz rosácea do abajur
Tiffany pendurado sobre o sofá. Ele observou os ossos articulados da mão
tirarem uma carta do maço e virar o ás de espadas.
Ela ergueu os olhos para ele e sorriu.
O sorriso, como a própria Crisálida, era um enigma. Difícil de ler, pois o
rosto, que era apenas lábios e borrões de músculos espectrais nas bochechas e
mandíbula, poderia significar qualquer uma das milhares de coisas que um
sorriso poderia querer dizer. Brennan escolheu interpretá-lo como um de boas-
vindas.
— Já faz tempo. — Ela o olhou, crítica. — Tanto que sua barba cresceu.
Brennan fechou a porta e deixou a bolsa com o arco recostada à parede.
— Tive de resolver alguns negócios — ele disse, com voz suave e profunda.
— Imagino. — O sorriso continuou até Brennan não mais ignorar que ele
mostrava certa irritação. — Alguns deles interferiram nos meus.
Não havia dúvidas a que se referia. Várias semanas antes, no Dia do Carta
Selvagem, Brennan interrompera uma reunião no Palace, na qual Crisálida
intermediava a venda de um conjunto muito valioso de livros, inclusive o diário
pessoal de Kien. Esperando que o volume tivesse provas suficientes para que
pudesse esfolar a maldita pele de Kien, Brennan conseguira por fim pegá-lo, mas
ele se mostrou inútil. Tudo que estava escrito fora destruído.
— Desculpe — ele disse. — Precisei daquele diário.
— Imagino — ela repetiu. Os músculos fantasmagóricos inflaram,
indicando um franzir de testa. — E você o leu?
Brennan hesitou por um instante.
— Li.
— E não se oporia a compartilhar suas informações?
Era mais uma exigência do que um pedido. Não seria bom, Brennan pensou,
dizer-lhe a verdade? Provavelmente ela pensaria que era uma tentativa de
manter tudo para si.
— Possivelmente.
— Nesse caso, acredito que poderia perdoá-lo — ela disse, numa voz pouco
convincente. Juntou as cartas lentamente, com cuidado, por sua história e valor, e
colocou-as sobre uma mesa com pés palito que ficava ao lado do sofá. Recostou-
se, lânguida, seus mamilos balançando nas bolsas invisíveis de carne, cujo calor e
textura firme Brennan conhecia bem.
— Trouxe algo para você — ele disse, num tom conciliador. — Não são
informações, mas algo de que talvez também goste.
Sentou-se na beirada do sofá, enfiou a mão no bolso da jaqueta jeans e
estendeu a Crisálida um envelope pequeno e claro. Quando ela esticou a mão
para pegá-lo, a coxa quente e invisível tocou e, em seguida, descansou na de
Brennan.
— É um Penny Black — ele disse, enquanto ela erguia o envelope
translúcido contra a luz. — O primeiro selo de postagem do mundo. Aparência de
recém-impresso, em perfeitas condições. Bem raro nesse estado, bem valioso. O
retrato é uma xilogravura da Rainha Vitória.
— Muito bom. — Ela abriu seu sorriso enigmático. — Não perguntarei onde
conseguiu.
Brennan sorriu, sem dizer nada. Tinha certeza de que ela sabia
perfeitamente onde ele havia conseguido o selo. Pediu-o para Ira quando
estavam inspecionando os catálogos cheios de selos raros que ela surrupiara do
cofre de Kien, o mesmo do qual ela tirou o diário, nas primeiras horas do Dia do
Carta Selvagem. Ira sentiu-se mal por Brennan não ter conseguido o que queria
do diário inútil, por isso, de boa vontade lhe deu o selo quando ele o pediu.
— Bem, espero que você goste. — Brennan se levantou e se espreguiçou
enquanto Crisálida deixava o envelope ao lado de sua pilha de cartas. Havia sido
um dia longo e ele estava cansado. Foi até o criado-mudo ao lado da cama com
dossel abobadado e ergueu o decantador de uísque irlandês que ela mantinha
para ele. Olhou para a garrafa, franziu a testa e baixou-a. Voltou a se sentar com
Crisálida no sofá.
Flexível, ela se estendeu para a frente e cobriu o corpo dele com o seu.
Brennan bebeu do aroma almiscarado e sexual do perfume da mulher, e
observou o sangue correndo pela sua artéria carótida.
— Mudou de ideia? Não vai mais beber? — ela perguntou com suavidade.
— O decantador estava vazio.
Crisálida afastou-se um pouco, encarando os olhos questionadores de
Brennan.
— Eu só bebo amaretto. — Foi uma afirmação, não uma pergunta. Ela
assentiu com a cabeça.
Brennan suspirou.
— Quando vim aqui pela primeira vez, só queria informações. Não queria
nada de íntimo entre nós. Você começou. Se for para continuar e se tornar algo
sério, tenho que ser o único na sua cama. Eu sou assim. É a única maneira de me
entregar para outra pessoa.
Crisálida o encarou por vários segundos antes de responder.
— Não é da sua conta com quem eu durmo — devagar, ela finalmente
falou no seu sotaque britânico que Brennan, com o ouvido treinado, sabia que era
falso.
Ele assentiu.
— Então, é melhor eu ir. — Ele se levantou e virou.
— Espere. — Ela também se levantou. Os dois se olharam por um bom
tempo e, quando ela falou, foi num tom conciliador. — Ao menos beba alguma
coisa. Vou lá embaixo encher o decantador. Você bebe seu drinque e nós... Nós
podemos conversar.
Brennan estava cansado e não havia outro lugar no Bairro dos Curingas onde
ele queria estar.
— Tudo bem — ele disse suavemente. Crisálida enrolou-se em um quimono
de seda salpicado com filetes de fumaça na forma de cavalos galopantes, e
deixou-o com um sorriso que era mais tímido que enigmático.
Brennan caminhou pelo quarto, observando sua imagem atravessar a
infinidade de espelhos antigos que decoravam os aposentos de Crisálida. Devia ir
embora, ele disse a si mesmo, e sair sozinho, mas Crisálida era tão fascinante
fora da cama quanto em cima dela. Apesar de suas melhores intenções, sabia
que precisava de sua companhia e, admitiu, do seu amor.
Fazia mais de dez anos desde que ele se permitira amar uma mulher, mas,
como vinha descobrindo desde sua chegada ao Bairro dos Curingas, tais emoções
não eram as únicas que sentia. Não podia viver apenas de ódio. Não sabia se
conseguiria amar Crisálida como amara sua mulher franco-vietnamita que
perdera nas mãos dos assassinos de Kien. Ele não quis amar mulher nenhuma
enquanto estava no encalço de Kien, mas, apesar de toda a firmeza, apesar do
treinamento zen, o que ele queria e o que realmente acontecia eram duas coisas
completamente opostas.
Brennan ficou no silêncio do quarto de Crisálida, deliberadamente sem
pensar no passado. Longos minutos se seguiram e, de repente, percebeu que ela
já deveria ter voltado.
Franziu a testa. Era quase inconcebível que algo pudesse acontecer a
Crisálida no Cry stal Palace, mas o cuidado que salvara a vida de Brennan mais
vezes do que ele se preocupava em lembrar o fez montar o arco antes de descer
atrás dela. Ele se sentiria um idiota se trombasse com Crisálida no escuro, mas já
experimentara essa sensação. Era preferível a sentir-se morto, algo com que
tinha mais intimidade do que gostaria.
Crisálida não estava nos corredores do terceiro andar, nem na escadaria que
levava até o bar, mas ele ouviu vozes murmuradas enquanto se esgueirava
escada abaixo.
Puxou uma flecha, encaixou-a no cordão do arco e espreitou ao redor na
beirada da escadaria, onde ela se abria para os fundos do bar. Brennan cerrou os
dentes. Teve razão em ser cauteloso.
Crisálida estava em pé diante do balcão longo de madeira polida que corria
por quase toda a extensão do local. O decantador de uísque, ainda vazio, estava
ao seu lado, esquecido. Seus braços estavam cruzados e a mandíbula travada. Os
lábios se comprimiam numa linha fina, raivosa.
Dois homens a ladeavam e um terceiro estava sentado a uma mesa diante
dela. Brennan conseguia discernir poucos detalhes no lusco-fusco da lâmpada
que iluminava o bar, mas percebeu que os homens tinham feições sérias e duras.
Aquele que a encarava tamborilava os dedos ao lado de uma pistola cromada
sobre o tampo da mesa.
— Vamos lá — ele disse numa voz suave, mas que soava perigosa. — Só
queremos algumas informações. Não diremos onde conseguimos. — Ele se
recostou na cadeira. — Logo haverá uma guerra, mas não sabemos a quem
atacar.
— E você acha que eu sei? — Brennan reconheceu a ponta de raiva no falar
arrastado de Crisálida, mas também reconheceu o medo sob o ódio.
O homem sentado sorriu.
— Sabemos que você sabe, querida. Você sabe de tudo que rola nesta
merda de Bairro dos Curingas. Todos nós sabemos que alguém juntou essas
gangues mequetrefes para formar um negócio chamado Punhos Sombrios. Estão
entrando no nosso território, pegando nossos clientes e roubando nosso lucro. E
isso tem que parar.
— Se eu soubesse um nome — Crisálida disse, enfatizando o “se” —,
custaria a você mais do que poderia pagar para saber.
— Você não entende — ele disse. — É guerra, querida. E manter a boca
fechada vai custar a você mais do que você pode pagar. — Ele deixou as
palavras ecoarem enquanto batia os dedos no tampo da mesa. — Sal — disse um
momento depois, fazendo um sinal com a cabeça para o homem que estava ao
lado direito de Crisálida. — Queria descobrir se a famosa pele invisível fica com
cicatrizes.
Sal considerou a questão.
— Vamos ver — ele respondeu.
Ouviu-se um estalido alto, e Brennan viu o brilho de uma lâmina polida. Sal
balançou-a no rosto de Crisálida, e ela recuou contra o balcão. Chegou a abrir a
boca com a intenção de gritar, mas o homem à sua esquerda a apertou com sua
mão enluvada.
Sal gargalhou, e Brennan se ergueu e soltou a flecha que estava segurando,
atingindo Sal nas costas e catapultando-o sobre o balcão. Ninguém tinha ideia do
que havia acontecido, exceto Crisálida, possivelmente. O homem sentado à mesa
agarrou a pistola e se ergueu num salto. Brennan alvejou-o com tranquilidade,
atravessando sua garganta. O brutamonte que segurava Crisálida soltou um fluxo
assustado de obscenidades e procurou a pistola que carregava em um coldre de
ombro debaixo da jaqueta. Brennan atravessou seu antebraço com uma flecha.
Ele soltou a arma e se afastou de Crisálida, encarando a flecha de caça com
ponta de alumínio espetada no braço e murmurou: “Jesus, ai, Jesus”. Depois, se
inclinou para pegar a pistola.
— Encoste nela — Brennan gritou da escuridão — e a próxima flecha vai
acertar seu olho direito.
Sabiamente, o homem endireitou o corpo e se recostou no balcão. Agarrou
o braço ensanguentado e gemeu.
Brennan avançou para a luz difusa lançada pela lâmpada. O homem
encarou a flecha com ponta afiada encaixada no fio do arco.
— Quem são eles? — Brennan perguntou a Crisálida num grunhido áspero.
— Máfia — ela respondeu, sua voz falhando de tensão e medo.
Brennan assentiu, sem tirar os olhos do homem, que encarava a flecha
apontada para sua garganta.
— Sabe quem eu sou?
O mafioso assentiu rapidamente.
— Claro, você é o tal Yeoman... O assassino do arco e flecha. Vejo você o
tempo todo no Post. — As palavras saíram de sua boca numa torrente cheia de
pavor.
— Isso aí — Brennan disse. Depois, olhou para o homem que estava sentado
na mesa e viu que estava curvado no chão, imerso em uma poça de sangue cada
vez maior, com trinta centímetros de flecha saindo de sua nuca. Ele nem se
preocupou com Sal. Havia mandado também uma flecha diretamente para o seu
coração.
— Você é um cara de sorte — Brennan continuou na mesma voz monótona.
— Sabe por quê?
O mafioso sacudiu a cabeça com vigor, suspirando aliviado quando Brennan
relaxou a tensão no fio esticado do arco e afastou-o para o lado.
— Alguém precisa entregar uma mensagem por mim. Alguém precisa
dizer ao seu chefe que esqueça Crisálida. Alguém deve avisá-lo que tenho uma
flecha com o nome dele, uma flecha que não pensarei duas vezes em atirar se
ouvir que algo aconteceu a ela. Acha que consegue fazer isso?
— Claro. Eu consigo.
— Ótimo. — Brennan tirou do bolso de trás da calça uma carta e mostrou-a
ao brutamonte: era um ás de espadas. — Isso é para ele saber que você está
falando a verdade.
Ele agarrou o braço ferido do homem pelo cotovelo e esticou-o. O mafioso
gemeu enquanto Brennan encaixava a carta na ponta da flecha.
— E isso — Brennan disse com dentes cerrados — é para garantir que você
não a perca.
Com um empurrão, ele espetou o outro braço do homem com a ponta da
flecha. O brutamonte gritou pela dor aguda e inesperada. Seus joelhos cederam
quando Brennan entortou o cabo de alumínio da flecha para baixo e ao redor dos
braços, prendendo-os como se fossem algemas.
Brennan puxou-o para ficar em pé. O homem soluçava de medo e dor, e
não conseguia encará-lo.
— Se eu vir você de novo — Brennan disse —, você vai morrer.
O mafioso saiu cambaleando, soluçando e gaguejando protestos
incompreensíveis. Brennan observou-o até ele tropeçar para fora da porta e, em
seguida, voltou-se para Crisálida.
Ela o olhava com medo, e boa parte desse temor, Brennan tinha certeza, era
dele mesmo.
— Você está bem? — ele perguntou suavemente.
— Estou... Acho que estou...
— Você vai ter que responder a um monte de perguntas, a menos que a
gente se livre dos corpos.
— É. — Ela assentiu com firmeza, parecendo de repente decidida, sob
controle novamente. — Vou chamar o Elmo, ele vai cuidar disso. — Ela fitou os
olhos de Brennan. — Te devo essa.
Ele suspirou.
— Sua vida inteira precisa estar baseada em créditos e débitos calculados à
risca?
Ela o olhou um pouco assustada, mas concordou.
— Sim — respondeu, firme. — Sim, precisa. É a única maneira de
acompanhar, de garantir que... — A voz desapareceu, e ela se afastou,
contornando o bar. Olhou para o corpo de Sal e, quando voltou a falar, expressou
um pensamento totalmente diferente. — Sabe, Tachy on me convidou para
aquela excursão mundial. Acho que vou aceitar. Sem falar nas informações que
vou conseguir de todos aqueles políticos. E se há uma guerra de rua entre a Máfia
e os Punhos Sombrios de Kien — ela olhou nos olhos de Brennan pela primeira
vez —, vou estar segura longe daqui.
Eles se encararam por um bom tempo, e em seguida Brennan assentiu.
— Então, é melhor eu ir.
— Seu uísque?
Brennan soltou um longo suspiro.
— Não. — Ele olhou para o cadáver aos seus pés. — Bebidas trazem
lembranças, e não preciso delas hoje à noite. — Ele voltou os olhos para ela. —
Vou ficar... indisposto... nas próximas semanas. É provável que eu não a veja
antes da viagem. Adeus, Crisálida.
Ela observou enquanto ele partia, e uma lágrima cristalina reluzia em seu
rosto invisível. Mas Brennan não olhou para trás.
II
O Twisted Dragon ficava em algum lugar dentro das fronteiras nebulosas entre o
Bairro dos Curingas e Chinatown, o bairro chinês. Uma das fontes de rua de
Brennan lhe dissera que o bar era o ponto de encontro de Danny Mao, um
homem que tinha uma posição moderadamente alta na Sociedade dos Punhos
Sombrios, e que era responsável pelo recrutamento.
Brennan observou a entrada por um tempo. Os flocos de neve rodopiantes
que não ficavam na aba do seu chapéu preto de caubói prendiam-se no seu
bigode espesso e descaído, e nas longas costeletas. Um número considerável de
Lobisomens — que estavam usando máscaras de Richard Nixon este mês —
entrava e saía do lugar. Também viu alguns Garças, embora a maior parte das
gangues de Chinatown fosse exigente demais para marcar encontros em um bar
frequentado por curingas.
Ele sorriu, alisando as pontas do bigode num gesto que já havia se tornado
habitual. Era hora de se certificar de que seu plano era um golpe de mestre,
como às vezes pensava, ou um caminho rápido para uma morte brutal, como
imaginava com mais frequência.
Estava quente dentro do Dragon, mais, Brennan achou, pelos corpos
espremidos do que pelo sistema de aquecimento do bar; e levou um tempo para
encontrar Mao, que ficava, conforme sua fonte havia lhe dito, sentado em uma
mesa nos fundos do salão. Brennan abriu caminho entre as mesas cheias e
garçonetes lentas, bêbados cambaleantes e punks arrogantes que cruzaram seu
caminho enquanto avançava até o local.
Uma garota loira que aparentava estar levemente drogada estava sentada
ao lado de Mao. Três homens enchiam o banco diante da mesa: um era um
Lobisomem com máscara de Nixon, outro, um jovem oriental e, o do meio, um
homem magro, pálido e visivelmente nervoso. Antes que Brennan pudesse abrir
a boca, um punk de rua se pôs na sua frente, bloqueando seu caminho.
Tinha entre 1,95 e 2 m de altura, por isso ultrapassava Brennan em
tamanho, apesar das botas de caubói que lhe acrescentavam alguns centímetros.
Vestia calças de couro manchadas e uma jaqueta de couro muito grande,
decorada com pedaços de corrente. O cabelo espetado o deixava ainda mais alto,
e as cicatrizes pretas e escarlates cobrindo o rosto somavam brutalidade à sua
aparência, bem como o osso — um osso de dedo humano, Brennan percebeu —
que atravessava seu nariz.
As cicatrizes que marcavam o rosto, a testa e o queixo eram a marca dos
Caçadores de Cabeça Canibais, uma temida gangue de rua do passado que se
desintegrou quando Brennan matou seu líder, um ás chamado Cicatriz. Os
membros que não foram assassinados na sangrenta luta pelo poder após a morte
dele começaram a atuar, em grande parte, em outras associações criminosas,
como a Sociedade dos Punhos Sombrios.
— O que você quer? — A voz do Caçador de Cabeça era estridente demais
para soar ameaçadora, mas ele tentava.
— Falar com Danny Mao — Brennan respondeu suavemente, sua voz
modulada no lento balbuciar que lembrava tão bem sua infância. O Caçador de
Cabeça curvou-se para ouvi-lo no meio da música alta, gargalhadas maníacas e
as inúmeras conversas que aconteciam ao mesmo tempo.
— Sobre o quê?
— Não é da sua conta, rapaz.
Brennan observou de canto de olho que a conversa na mesa havia parado e
que todos o observavam.
— Claro que é. — O Caçador de Cabeça abriu um sorriso que,
carinhosamente, ele achou selvagem, mostrando seus dentes da frente lixados.
Brennan gargalhou alto, e o caçador franziu a testa. — Qual é a graça, imbecil?
Brennan, ainda gargalhando, agarrou o osso no nariz dele e puxou com
força. O rapaz berrou e levou a mão ao nariz rasgado, e, logo após ainda levou
um chute nas partes baixas. Caiu com um gemido engasgado, e Brennan jogou o
osso sobre seu corpo encolhido.
— Você — Brennan respondeu, e em seguida sentou-se à mesa ao lado da
loira, que o encarava num espanto entorpecido. Dois dos três homens sentados do
outro lado começaram a se levantar, mas Danny Mao acenou, negligente, e eles
voltaram a se sentar, murmurando algo entre si e fitando Brennan.
Brennan tirou o chapéu, deixou-o na mesa e olhou para Danny Mao, que
devolveu o olhar com aparente interesse.
— Qual é o seu nome?
— Caubói — Brennan respondeu despreocupadamente.
Mao pegou seu copo da mesa e tomou um pequeno gole. Olhou para
Brennan como se ele fosse algum tipo de inseto estranho e franziu a testa.
— É mesmo? Nunca vi um caubói chinês antes.
Brennan sorriu. As dobras epicânticas feitas em seus olhos pelas habilidades
cirúrgicas do Dr. Tachy on combinaram-se, como ele supôs que aconteceria, com
seus cabelos pretos e espessos, além da pele bronzeada, para lhe dar uma
aparência oriental. Essa leve alteração de feições, os pelos recém-crescidos no
rosto e seu sotaque e modo de vestir interioranos compunham um disfarce
simples, mas eficaz. Não enganaria ninguém que o conhecesse, mas, de qualquer
modo, provavelmente não trombaria com um conhecido.
E a ironia do disfarce, pensou Brennan, era que cada aspecto de sua nova
identidade, exceto pelos olhos que Tachy on lhe deu, era verdadeiro. Seu pai
gostava de dizer que a família era irlandesa, chinesa, espanhola, várias tribos
indígenas e totalmente americana.
— Meus ancestrais asiáticos ajudaram a construir as ferrovias. Nasci no
Novo México, mas o achava muito limitante. — Isso também era verdade.
— Então, veio para a cidade grande procurar aventuras?
Brennan concordou.
— Um tempo atrás.
— E se meteu em tantas que precisou usar um apelido?
Ele deu de ombros, sem dizer nada.
Mao deu mais um gole no drinque.
— O que você quer?
— Estão dizendo por aí — Brennan começou, com a empolgação intensa
enterrada sob seu falar arrastado do sudoeste — que seu pessoal vai entrar em
guerra com a Máfia. Você já bateu neles antes, e don Picchietti foi assassinado
há duas semanas por um ás invisível que atravessou um picador de gelo na orelha
dele enquanto jantava em seu restaurante. Certamente foi trabalho dos Punhos
Sombrios. A Máfia vai retaliar, sem dúvida, e os Punhos Sombrios vão precisar
de mais soldados.
Mao assentiu.
— Por que eu deveria contratar você?
— Por que não? Eu posso cuidar de mim mesmo.
Mao lançou um olhar para seu guarda-costas caído, que havia conseguido se
encolher de joelhos, a cabeça descansando no chão.
— Bem justo — ele disse, pensativo. — E você tem estômago para isso,
imagino. — Olhou para os três homens sentados bem juntos no banco do outro
lado da mesa, e Brennan fez o mesmo, com atenção.
O Lobisomem estava sentado na parte de fora e o oriental, provavelmente
um Garça Imaculada, na parte de dentro. O homem que espremiam não parecia
um valentão de rua.
Era pequeno, magro e pálido. Suas mãos eram aparentemente macias e
fracas, os olhos eram pretos e brilhantes. Muitos valentões de rua tinham um
traço de loucura, mas, mesmo à primeira vista, Brennan podia ver que este era
mais que tocado pela insanidade.
— Esses homens vão sair em uma missão. Você se importaria em se juntar
a eles? — Danny Mao perguntou.
— Que tipo de missão? — Brennan quis saber.
— Se você precisa perguntar, talvez não seja o tipo de homem que estamos
procurando.
— Talvez — Brennan respondeu, sorrindo — eu apenas seja cauteloso.
— Cautela é um traço admirável — Mao disse com brandura —, mas a fé e
a obediência aos superiores também.
Brennan botou o chapéu na cabeça.
— Tudo bem. Para onde estamos indo?
O homem pálido riu. Não era um som agradável.
— Para o necrotério — ele disse, exultante.
Brennan olhou para Mao com a sobrancelha arqueada.
Mao concordou com a cabeça.
— Para o necrotério, como disse o Miolo.
— Você tem carro? — o Lobisomem perguntou para Brennan. Sua voz era
um grunhido amolecido por trás da máscara de Nixon.
Brennan negou com a cabeça.
— Vamos ter que roubar um — o Lobisomem disse.
— Então poderemos passar em um drive-thru! — o homem chamado Miolo
provocou. O asiático sentado ao seu lado lançou um olhar levemente enojado,
mas não disse nada.
— Vamos! — Miolo empurrou o Lobisomem, fazendo-o sair da mesa.
Brennan parou um momento para encarar Mao, que o observava com
cuidado.
— Bigode — Mao falou, apontando com a cabeça para Lobisomem — está
no comando. Ele vai contar o que precisa saber. Você está em período de
experiência, Caubói. Cuidado.
Brennan seguiu o improvável trio até a rua. O Lobisomem virou-se para ele.
— Sou Bigode — ele disse em seu grunhido indistinto. — Esse é o Miolo,
como disse o Danny, e esse é o Dragão Preguiçoso. — Brennan voltou a cabeça
para o oriental, percebendo que estava equivocado em sua avaliação inicial sobre
o homem. Não era um Garça. Não usava as cores deles e não tinha atitude de
um membro de gangue. Era jovem, com talvez uns 20 anos, pequeno, mais ou
menos 1,70 m de altura, e magro o bastante para que suas calças baggy
pendessem soltas nos quadris finos. Seu rosto era oval, o nariz levemente largo, o
cabelo meio longo e penteado com indiferença. Não tinha a atitude agressiva do
punk de rua. Era reservado, e carregava um ar de preocupação quase
melancólica.
Bigode deixou-os esperando na esquina. Dragão Preguiçoso ficou em
silêncio, mas Miolo tagarelava o tempo todo, em geral, coisas sem sentido.
Dragão Preguiçoso não prestava atenção nele, nem Brennan depois de um
tempo, mas parecia não fazer diferença para Miolo. Ele continuou balbuciando, e
Brennan o ignorou o máximo que pôde. Em uma ocasião, enfiou a mão no bolso
da jaqueta suja e puxou um frasco de pílulas de diferentes tamanhos e cores,
despejou um punhado e jogou para dentro da boca. Mastigou, engoliu
ruidosamente e abriu um sorriso para Brennan.
— Toma vitaminas?
Brennan não sabia se Miolo estava oferecendo ou perguntando se ele
tomava vitaminas. Então concordou, evasivo, e se afastou.
Bigode finalmente apareceu com um carro. Era escuro, um Buick antigo.
Brennan saltou no banco da frente, deixando os de trás para Miolo e Dragão
Preguiçoso.
— Boa suspensão, macio — Bigode comentou quando partiram. Brennan
olhou para o retrovisor e viu Dragão Preguiçoso concordar e tirar do bolso um
pequeno canivete e um bloco de material branco e macio, que parecia sabão.
Abriu o canivete e começou a descascar.
Miolo continuava tagarelando sem que ninguém o ouvisse. Bigode dirigia
tranquilo, xingando buracos, sinais de trânsito e outros motoristas com sua voz
abafada, olhando o tempo todo para acompanhar o avanço de Dragão
Preguiçoso enquanto ele esculpia cuidadosamente o pequeno bloco com mãos
delicadas e habilidosas.
Brennan não sabia onde ficava o necrotério ou como ele era, mas a
estrutura escura e sombria diante da qual estacionaram atendia a todas as
expectativas.
— Chegamos — Bigode fez o anúncio desnecessário. Observaram o prédio
por alguns momentos. — Ainda parece cheio. — Algumas luzes iluminavam os
recintos espalhados pela estrutura de vários andares, e, enquanto observavam,
pessoas entravam e saíam pela entrada principal.
— Estão prontos? — Bigode grunhiu, olhando pelo retrovisor.
— Quase — Dragão Preguiçoso disse sem erguer os olhos.
— Prontos para quê? — Brennan perguntou, e Bigode virou-se para ele.
— Vocês vão levar o Miolo para a sala que eles usam para armazenar
corpos por mais tempo. Fica no porão. Miolo assume lá. Dragão vai primeiro,
para sondar. E você vai ser a força no caso de algo dar errado.
— E você?
Bigode talvez tenha rido embaixo da máscara, mas Brennan não tinha
certeza.
— Agora que você está aqui, eu só espero no carro.
Brennan não gostava daquilo. Não era o jeito como ele gostava de fazer as
coisas, mas, obviamente, estava sendo testado. Igualmente óbvio, ele não tinha
escolha. Resolveu fazer mais uma tentativa de obter informações.
— O que estamos procurando?
— Miolo sabe — Bigode respondeu, e Brennan ouviu um risinho inquietante
no banco de trás. — E Dragão conhece a planta. Você só precisa cuidar de
qualquer um que tente interferir. — Ele olhou de volta para o retrovisor. —
Pronto?
Dragão Preguiçoso levantou a cabeça.
— Pronto — respondeu calmamente. Fechou o canivete, deixou-o de lado e
examinou com olhos críticos o que havia esculpido. Brennan, perplexo e curioso,
virou-se para olhar melhor e viu que era um rato pequeno, mas quase real.
Dragão Preguiçoso estudou-o com cuidado, assentiu como se estivesse satisfeito,
deixou-o no colo, recostou-se confortavelmente no banco e fechou os olhos. Por
um momento, nada aconteceu, em seguida, Dragão curvou-se, como se estivesse
dormindo ou inconsciente, e a escultura começou a se mexer.
O rabo balançou, as orelhas se ergueram e, em seguida, rangendo no início,
mas com fluidez cada vez maior, a coisa se estendeu. Parou por um momento
para alisar os pelos, depois saltou do colo de Dragão para o encosto do banco do
motorista. Brennan olhou para o animal, que devolveu a olhada. Era um rato
vivo, maldição. Brennan então fitou o Dragão Preguiçoso, que parecia estar
dormindo, e Bigode, que observava, impassível, por baixo da máscara de Nixon.
— Truque ótimo — Brennan falou arrastado.
— É — Bigode disse. — Você vai carregá-lo.
Dragão Preguiçoso, que parecia estar dando vida e possuindo a esculturinha
que acabara de fazer, saltou no ombro de Brennan, correu peito abaixo e entrou
no bolso do seu colete. Ergueu a cabeça, segurando a barra do bolso com as
patinhas. Aquilo era, Brennan pensou, mais do que estranho, e ele tinha a
sensação de que as coisas ficariam ainda mais estranhas antes de a noite acabar.
— Tudo bem — ele disse. — Vamos acabar com isso. — Fosse lá o que
acontecesse.
Entraram no necrotério por uma porta de serviço destrancada em um beco
lateral e desceram pela escada até o porão. Dragão Preguiçoso saiu do bolso,
desceu do colete, passou pela perna da calça e apressou-se pelo corredor mal
iluminado. Miolo correu atrás dele, mas Brennan o deteve.
— Vamos esperar até o ra... Até o Dragão Preguiçoso voltar.
Os olhos de Miolo eram brilhantes, e ele estava ainda mais agitado que de
costume. Suas mãos tremiam quando ele pegou o frasco de pílulas, e derrubou
uma dúzia de cápsulas enquanto engolia um punhado. As pílulas espalharam-se,
fazendo ruídos altos e repetidos. Ele sorriu como um maníaco, e o canto de sua
boca se retorcia em uma careta atormentada.
Que diabos estou fazendo em um necrotério com um maluco e um rato vivo
esculpido de um pedaço de sabão?, pensou Brennan.
Dragão Preguiçoso voltou em disparada — antes que Brennan pudesse
pensar em uma resposta para essa pergunta perturbadora —, movendo-se como
se estivesse sendo caçado pelo gato mais faminto do mundo. Parou aos pés de
Brennan, dançando com entusiasmo. Brennan suspirou, curvou-se e estendeu a
mão. O animal saltou, e ele, ainda agachado, o ergueu até a altura do rosto.
Dragão Preguiçoso sentou-se, os olhos redondos luzindo de inteligência. Ele
raspou a patinha dianteira sobre a garganta várias vezes. Brennan suspirou de
novo. Odiava charadas.
— O que é? — perguntou. — Perigo? Alguém no corredor?
O rato assentiu, empolgado, e ergueu a patinha.
— Um homem? — O animal concordou de novo. — Armado? — Ergueu o
ombro de um modo bastante humano, parecia incerto. — Tudo bem. — Brennan
o deixou no chão e, em seguida, se levantou. — Venha comigo. — E virou-se
para Miolo. — Você espera aqui.
Miolo fez que sim nervosamente, e Brennan partiu para o corredor, com
Dragão Preguiçoso correndo em seu calcanhar. Não confiava no bicho, e
imaginou em qual parte da missão poderia agir. É difícil quando o homem de
quem mais se depende é um rato, pensou.
Na curva do corredor, havia um homem sentado em uma cadeira dobrável
de metal, comendo um sanduíche e lendo um livro. Ele ergueu os olhos quando
Brennan se aproximou.
— Posso ajudar, camarada? — Era de meia-idade, gordo e calvo. O livro
que estava lendo era Ás Vingador n. 49, Missão no Irã.
— Entrega.
O homem fez uma careta.
— Não estou sabendo de nada. Sou o porteiro da noite. Em geral,
recebemos entrega durante o dia.
Brennan entendeu, compreensivo.
— É uma entrega especial — ele disse. Quando chegou perto o bastante, pôs
uma das mãos nas costas e puxou o estilete que carregava em um estojo no cinto,
embaixo do colete. Encostou a ponta da lâmina levemente na garganta do
porteiro. O homem, surpreso, abriu a boca e soltou o livro.
— Meu Deus, senhor, o que está fazendo? — perguntou num sussurro
abafado, tentando mover a garganta o mínimo possível.
— Onde fica a sala de armazenamento permanente?
— Lá adiante, naquela direção. — O porteiro fez pequenos movimentos
com os olhos, temendo mover-se.
— Vá buscar o Miolo.
— Eu não conheço ninguém com esse nome — o gordo ganiu, o suor
brotando da testa.
— Eu não estava falando com você. Estava falando com o rato.
— Ai, meu Deus. — O porteiro começou a murmurar uma oração
incompreensível, certo de que Brennan era um maníaco que estava prestes a
assassiná-lo.
Brennan esperou, paciente, até Dragão Preguiçoso retornar com Miolo.
— Tem mais alguém neste andar? — ele perguntou, incitando o porteiro a se
levantar com um leve girar de punho. O porteiro, respondendo rapidamente, se
ergueu de imediato.
— Ninguém. Agora não.
— Nem guardas?
O porteiro parecia querer sacudir a cabeça, mas a proximidade da lâmina
na sua garganta o impediu.
— Não precisa. Ninguém arromba o necrotério há, sei lá, meses.
— Tudo bem. — Brennan afastou o estilete, e o homem relaxou. — Leve a
gente até a sala de armazenamento. Fique quieto e não tente nenhuma gracinha.
— Para enfatizar, tocou a ponta do nariz do porteiro com o estilete, ao que ele
assentiu cuidadosamente.
Brennan agachou-se e estendeu a mão, para que Dragão Preguiçoso
pudesse alcançá-la. Ele levou o rato até o bolso do colete, segurando o riso pelos
olhos esbugalhados do porteiro, que parecia querer fazer uma pergunta, mas
pensou melhor e desistiu.
— É por aqui — disse, e Miolo e Brennan, com Dragão Preguiçoso espiando
do bolso, seguiram-no.
O homem abriu a porta. Era uma sala escura, fria e deprimente, com
gavetas de corpos nas paredes, estendendo-se do chão ao teto. Era ali que a
cidade mantinha os cadáveres que ninguém queria ou conseguia identificar, antes
de enterrá-los como indigentes.
O sorriso inquieto de Miolo alargou-se quando todos entraram na sala, e ele
saltou de um pé para o outro com uma empolgação mal disfarçada.
— Me ajude a encontrar! — ele ordenou. — Me ajude a encontrar!
— O quê? — Brennan perguntou, realmente perplexo.
— O corpo. O corpo gordo e frio do Gruber. — Ele olhava com frenesi para
as gavetas, pulando numa dança macabra enquanto percorria a parede.
Brennan franziu a testa, empurrou o porteiro na frente e encarou a parede
diante deles. A maioria das etiquetas de nome nos pequenos suportes de metal
tinham apenas números de identidade anônimos. Poucos tinham nomes.
— Aqui, é isso que estão procurando?
O dócil porteiro, que seguia na frente de Brennan, olhou para trás,
esperançoso. Brennan foi até ele. A gaveta que apontava era a terceira de baixo
para cima, na altura da cintura. Na etiqueta estava escrito Leon Gruber, 16 de
setembro.
— Aqui está — Brennan falou, e Miolo atravessou a sala correndo. Deve
haver, ele pensou, algum tipo de mensagem no cadáver, algo que apenas Miolo
pode decifrar. Talvez esse Gruber tivesse contrabandeado algo em uma das
cavidades do corpo... Mas, se fosse assim, com certeza, pensou em seguida, os
técnicos do necrotério já teriam encontrado.
— O corpo está aqui faz muito tempo — Brennan comentou, quando Miolo
abriu a porta e puxou a gaveta na qual jazia o cadáver.
— É, está mesmo, é verdade — o outro respondeu, olhando para o lençol
encardido que cobria o corpo. — Eles armaram. Armaram para mantê-lo aqui
até eu... Até eu conseguir sair.
— Sair?
Miolo arrancou o lençol e expôs o rosto e o peito de Gruber. Era um homem
gordo e jovem, frágil e de aparência molenga. A expressão de medo e horror
fixada no rosto era a pior que Brennan já havia visto em um cadáver. O peito
estava salpicado com buracos de bala — pela aparência, de calibre baixo.
— Sim — Miolo disse, mas sem olhar para os olhos arregalados e mortiços
de Gruber. — Eu estava na prisão... No hospício, na verdade. — De algum lugar
em seu corpo, ele tirou uma pequena serra brilhante. Os lábios retorciam-se em
esgares incessantes, espasmódicos, e a linha de baba no canto da boca pingava do
queixo. — Por violação de cadáver.
— O corpo é para viagem? — Brennan perguntou entre lábios bem
apertados.
— Não, obrigado — ele respondeu, esfuziante. — Vou comer aqui mesmo.
Ele começou a serrar o crânio de Gruber. A lâmina atravessou o osso com
facilidade. Brennan e o porteiro observavam, horrorizados, quando o topo da
cabeça caiu e Miolo, com uma alegria maníaca, algo furtiva, arrancou pedaços
do cérebro de Gruber e enfiou na boca. Mastigou ruidosamente.
Brennan sentiu Dragão Preguiçoso afundar no bolso do colete. O porteiro
vomitou e Brennan reprimiu uma onda crescente de náusea que ameaçava
derrubá-lo, mantendo o autocontrole sombrio, apertando os lábios.
III
IV
Estava um frio de gelar os ossos no heliporto da West Thirtieth Street. O vento era
como um chicote que cortava o macacão manchado que Brennan vestia. O
aroma da neve iminente estava no ar, embora ele mal conseguisse diferenciá-lo
entre o cheiro de graxa e óleo do aeroporto onde, disfarçado de mecânico,
esperava pacientemente.
Brennan era bom de espera. Passou dois dias e duas noites fazendo apenas
isso em um posto de observação oculto do outro lado da estrada diante da
propriedade de Covello, em Southampton. Era óbvio que Covello, optando pela
discrição e não pela bravura, decidira se esconder durante a guerra entre a Máfia
e os Punhos Sombrios. Estava cercado por uma companhia de mafiosos
fortemente armados e protegido por muralhas que eram seguras contra tudo,
exceto contra um ataque de grande escala. Os únicos veículos que podiam entrar
nas propriedades traziam comida para o don e os prepostos que iam consultá-lo, e
mesmo esses eram parados e revistados meticulosamente no portão principal.
O único caminho alternativo era o heliporto no telhado da mansão. Brennan
observou o helicóptero de Covello chegar e partir várias vezes ao dia, em
diferentes ocasiões transportando mulheres com roupas caríssimas e homens
vestidos de preto. Estes, quando identificados pelas fotos que Brennan tirou com
lentes telefotográficas, revelaram-se membros distintos de outras famílias. As
mulheres, aparentemente, eram garotas de programa.
Quando o reconhecimento do terreno terminou, ele esperou pacientemente
no heliporto, que era a base de Covello em Manhattan. Desde que confirmara
que não poderia atravessar as muralhas, ele decidira cruzá-las por cima. No
próprio helicóptero de Covello.
A noite havia caído antes de o piloto aparecer, com um trio de mulheres
trêmulas vestidas com casacos de pele. Não havia mais ninguém perto do
helicóptero. Quando Brennan se aproximou deles, o homem baixou a escada
para a cabine. A primeira prostituta estava tentando entrar a bordo, mas suas
botas de salto alto faziam com que a tarefa ficasse bastante complicada.
Foi quase fácil demais. Brennan chutou o piloto, ao que este cambaleou para
trás, bateu com força contra o helicóptero e deslizou até o chão. A garota de
programa que estava agarrada a ele vacilou, seus braços girando
desordenadamente, e Brennan a equilibrou com a mão em seu traseiro.
— Ei! — ela reclamou, não se sabe se pelo encaixe da mão ou pelo
tratamento ao piloto.
— Mudança de planos — Brennan falou para todas. — Vocês vão para casa.
Elas o olharam com suspeita, e a que estava na escada disse:
— Mas nós nem recebemos ainda.
Brennan abriu seu melhor sorriso.
— Nem foram mortas ainda. — Ele pegou a carteira e a esvaziou. — Para
o táxi — respondeu, entregando as notas.
As três se olharam, encararam Brennan e voltaram a se olhar. A que estava
na escada desceu, encolheu-se de frio e saiu murmurando. As outras a seguiram.
Brennan arrastou o piloto para dentro da cabine. Ele estava apagado e frio,
mas, seu pulso, estável e forte. Brennan olhou-o por um momento. O homem, no
fim das contas, não era nada, nem mesmo um inimigo. Era apenas alguém que,
por acaso, estava no caminho. Brennan pegou um novelo de cordão grosso do
bolso do macacão, o amarrou e amordaçou, deixando o homem no chão da
cabine. Tirou o macacão sujo, o enrolou e jogou em um canto. Atravessou a
cabine até o cockpit e acomodou-se no assento do piloto.
— Vou decolar — Brennan disse para o ar, mas aqueles que estavam na
frequência escolhida o ouviram, e ele partiu para Southampton.
Brennan não pilotava um helicóptero havia mais de dez anos, e esse era um
modelo mais comercial que militar, mas as antigas habilidades voltaram
rapidamente às suas mãos. Pediu a liberação de decolagem, a recebeu e,
seguindo o plano de voo que encontrou em uma prancheta na cabine, logo deixou
para trás o milhão de joias brilhantes que iluminavam a Cidade de Nova York.
Voar sobre Long Island na noite clara e fria lhe deu uma sensação fresca e
nova, na qual ele se perdeu. No entanto, logo viu o iluminado heliporto particular
de Covello bem abaixo. Quando pousou, suave como uma pena, um guarda
carregando um fuzil acenou para ele. Brennan suspirou. Tirou a sensação clara
do céu noturno da mente. Era hora de voltar ao trabalho.
O guarda seguiu despreocupadamente na direção do helicóptero. Brennan
esperou até ele estar a meia dúzia de passos de distância, em seguida baixou a
janela do cockpit e acertou sua cabeça com a Browning com silenciador.
Ninguém o viu entrar na mansão através do alçapão no telhado, tampouco o viu
percorrer quarto a quarto, tão silencioso e determinado como uma assombração.
Ele encontrou Covello em uma biblioteca repleta de livros intocados, que
haviam sido comprados pelo decorador da mansão pelas encadernações, porque
combinavam. O don, que Brennan reconheceu pela foto no dossiê de Transluz,
estava jogando sinuca com seu consulare, enquanto um homem, obviamente um
guarda-costas, observava em silêncio.
Covello perdeu uma tacada certa, xingou-se, em seguida ergueu a cabeça,
franzindo o cenho para Brennan.
— Quem diabos é você?
Brennan não disse nada, simplesmente ergueu a arma e atirou no guarda-
costas. Covello começou a gritar em uma voz curiosamente aguda e feminina, e
o consulare tentou acertar Brennan com o taco de sinuca. Ele se desviou e o
alvejou três vezes no peito, lançando-o sobre a mesa de sinuca. Em seguida,
atirou nas costas do don, enquanto ele corria até a porta.
Covello ainda estava respirando quando Brennan se aproximou. O mafioso
encarou-o com um olhar suplicante e tentou falar. Brennan queria finalizá-lo com
um tiro na cabeça, mas não podia. Tinha ordens a cumprir.
Ele puxou um pequeno saco de náilon preto do bolso de trás da calça, e uma
faca, não muito mais longa e pesada do que aquela que sempre carregava, do
estojo do cinto que ficava na lombar.
Seu tempo era curto, já que os gritos de Covello certamente tinham
acordado a casa, e os capangas já estariam a caminho. Então, se curvou. O don
moribundo fechou os olhos de terror quando viu a faca nas mãos de Brennan.
O homem não era seu inimigo, mas sua morte também não seria uma
grande perda para a sociedade. Ainda assim, enquanto cortava a garganta de
Covello, apertando com força a lâmina para separar a espinha, Brennan só
conseguia pensar em um final mais limpo. Ninguém merecia morrer assim.
Ele ergueu a cabeça de Covello pelo cabelo oleoso e jogou-a no saco de
náilon. Voltou pelos corredores que levavam ao telhado e ao helicóptero.Movia-
se rápida e silenciosamente, mas, dessa vez, foi visto.
Um mafioso disparou uma forte rajada de metralhadora e gritou para os
companheiros. Os tiros não chegaram nem perto de atingir Brennan, mas ele
sabia que agora estavam no seu encalço. Acelerou o passo, atravessando
corredores e subindo às pressas as escadas. Deu de cara com um grupo de
homens. Não tinha ideia de quem eram, e eles pareciam surpresos, mas nada
perplexos com o encontro. Esvaziou o pente da Browning quando o atacaram, e
eles se espalharam sem oferecer resistência quando os sons da perseguição se
aproximaram mais.
Sem interromper o passo, ele falou alto para ouvintes invisíveis:
— Já estou com o pacote e voltando para casa. Preciso de cobertura —
enfiou a mão no bolso do colete, soltou algo no carpete, e continuou a correr.
Uma folha flutuante de papel delicado, dobrada hermeticamente em um
formato pequeno e complicado, caiu de sua mão. Ele não olhou para trás, mas
ouviu o rugido desafiador de um grande felino, terrivelmente alto nos estreitos
corredores, reverberar e ecoar continuamente quando se misturou aos sons da
metralhadora e aos gritos dos homens aterrorizados.
A rota que o levou até o pequeno aeroporto de Suffolk não estava no plano
de voo autorizado, e a viagem não foi tão empolgante com a bolsa manchada e
vazando que ele manteve ao lado no banco do copiloto.
Transluz e Bigode o esperavam no aeroporto com a limusine.
— Como foi?
— Conforme o planejado. — Brennan ergueu a bolsa, e Bigode pegou-a.
Transluz assentiu.
— Enrole num cobertor ou algo parecido e ponha-o no porta-malas. — Ele
percebeu o olhar de nojo de Brennan quando Bigode saía às pressas. — Sim,
também sobra para mim às vezes. Mas Miolo é uma ferramenta útil. Pense em
todas as informações úteis que ele vai tirar do cérebro de Covello.
— Pensei que Miolo estivesse trabalhando em outro problema — Brennan
disse, sem mostrar muito interesse. — Em uma ás chamada Ira.
— Ah, isso? — Transluz fez um gesto de indiferença. — Ele já resolveu.
Pelo visto, Ira não gostava muito de Gruber. Nunca lhe disse seu nome
verdadeiro. Mas ela deixou escapar a data de aniversário uma vez. E Miolo é um
desenhista talentoso... Nossa, difícil pensar nele com alguma qualidade humana
real... Temos ligações fortes em várias agências governamentais, a DMV, por
exemplo. Enfim, a data e o retrato de Miolo serão o suficiente para pegar aquela
vadia.
Uma onda de medo assolou Brennan, expulsando a fadiga que pesava em
seu corpo e espírito. Para escondê-la, esfregou o rosto e deu um grande bocejo.
— Bem — ele disse, tentando desesperadamente soar despreocupado —,
parece bem importante. Gostaria de participar.
Transluz examinou-o com cuidado, mas assentiu.
— Claro, Caubói. Você merece. Não vamos mexer com isso por um dia ou
dois, mas sua aparência me diz que você conseguiria dormir durante todo esse
período.
Brennan forçou um sorriso.
— Eu bem que poderia.
Deixaram-no em um apartamento no Bairro dos Curingas, onde dormiu por
quase 24 horas e depois se arrastou por outro dia antes de receber a ligação. Era
a voz abafada de Bigode na outra ponta da linha.
— Conseguimos o nome dela, Caubói, e o endereço.
— Quem está na jogada?
— Você, eu e dois dos meus colegas Lobisomens. Estão vigiando o
apartamento dela agora.
Brennan concordou. Estava feliz por Dragão Preguiçoso não os
acompanhar. Tinha muito respeito pelo poder e a capacidade de adaptação do ás.
— Mas tem um problema — Bigode disse, hesitando. — Ela se transforma
em uma espécie de fantasma e atravessa paredes e essa merda toda, então, não
podemos ameaçá-la de verdade.
Brennan sorriu. Jennifer era uma moça extraordinariamente difícil de lidar.
— Transluz bolou um plano. Invadimos o apartamento dela e tentamos
encontrar o livro que ele está procurando. Se não, podemos tentar negociar.
Como comprar, por exemplo. Então — ele disse com certa satisfação na voz —,
ela pode acabar com uma bala na nuca em algum momento. E aí, vai virar
fantasma para sempre.
— Bom plano — Brennan se obrigou a dizer. E era. Sabiam seu nome.
Sabiam onde encontrá-la. Ele precisava fazer alguma coisa ou ela não chegaria
viva ao fim do mês, mesmo se eles encontrassem o diário. Sua mente acelerou.
— Encontro vocês em uma hora, no apartamento dela. Passe o endereço.
— Certo, Caubói. Sabe, é bem ruim esse poder dela de virar fantasma. É
bem gostosa. Poderíamos fazer uma boa festinha.
— Sim, uma boa festinha. — Brennan desligou depois de Bigode dar o
endereço do apartamento de Ira. Por um momento, ficou encarando o nada,
invocando todo o treinamento zen para acalmar a mente e tranquilizar o pulso
acelerado. Precisava de calma, não de um cérebro encharcado de ódio, fúria e
medo. Parte dele se surpreendeu com a forte reação às notícias de Bigode. Parte
dele sabia o motivo, mas a maior parte lhe disse para esquecer o assunto por ora,
enterrá-lo e examiná-lo depois. Havia uma maneira de sair dessa encrenca...
Tinha de haver...
Ele afundou a consciência no lago do ser, buscando conhecimento através
da tranquilidade perfeita, e, quando trouxe sua mente de volta, obteve a resposta.
Era Kien, e o que ele sabia do homem, seus medos, forças e fraquezas.
Alguns dos detalhes seriam traiçoeiros e dolorosos de se trabalhar. Brennan
pegou o telefone e discou um número. Ouviu o primeiro toque, em seguida, o
som daquela voz do outro lado da linha:
— Alô? — Ele segurou o aparelho com força, percebendo que sentia falta
de sua voz e, apesar das circunstâncias, estava feliz em ouvi-la novamente. —
Alô?
— Alô, Jennifer. Precisamos conversar...
A neve caía em cortinas que cegavam, e o vento rugia como almas perdidas
através dos cânions cinzentos da cidade. De alguma forma, o inverno parecia
mais frio ali do que nas montanhas. Mais frio, sujo e solitário, Brennan pensou. Os
Lobisomens sem máscara, vestidos como funcionários de manutenção,
esperavam no saguão do prédio de Jennifer. Um era alto e tinha as bochechas
cheias de espinhas. Suas deformidades de curinga estavam escondidas pelo
macacão largo que vestia. O outro era baixo e magro, com a malformação
evidente em sua espinha curvada, que deslocava o torso dos quadris de modo
excêntrico. Bigode e Brennan, também vestindo macacões, batiam a neve das
botas.
— Frio do inferno — Bigode resmungou. — Ela foi embora? — ele
perguntou sussurrando.
O alto e magro assentiu. — Saiu não faz dez minutos. Pegou um táxi.
— Tudo bem, vamos lá.
Ninguém os viu subir. A porta principal cedeu facilmente às ferramentas de
arrombamento dos Lobisomens. Brennan disse a si mesmo que precisava falar
com ela sobre isso, se, ele corrigiu, ainda estivessem vivos quando o assalto
tivesse terminado.
— Vamos ver o quarto primeiro — Bigode disse quando entraram no
apartamento. Ele parou e franziu a testa para as paredes cheias de estantes de
livros. — Merda, encontrar um livro aqui será como uma agulha num maldito
palheiro.
Ele entrou em um quarto pequeno com uma cama de solteiro, um criado-
mudo com luminária, um armário antigo... e mais estantes de livros.
— Teremos de olhar todos os malditos livros — Bigode disse. — Talvez
algum seja oco, ou algo assim.
— Caramba, Bigode — o Lobisomem baixinho disse —, você está vendo
filmes de...
Ele interrompeu a fala e olhou quando uma loira alta, magra e bonita
vestida em um biquíni preto saiu da parede. A imagem tremeu, solidificou-se,
apontou uma pistola com silenciador para eles e sorriu.
— Parados — ela disse.
Eles pararam, mais pela surpresa do que por medo.
Bigode engoliu seco.
— Ei, nós só queremos conversar. Fomos enviados por gente importante.
A mulher fez um sinal positivo.
— Eu sei.
— Você sabe? — Bigode perguntou, surpreso.
— Eu contei para ela.
Todos se viraram para encarar Brennan. Ele havia aberto a gaveta do
criado-mudo e também estava com uma arma nas mãos. Era uma pistola
estranha, de cano longo. Apontou para Bigode. Os olhos do curinga arregalaram-
se no rosto peludo.
— Que porra é essa, Caubói? O que está acontecendo? — Brennan o
encarou inexpressivamente. Mexeu o punho, apertando o gatilho duas vezes.
Houve duas explosões pequenas, quase inaudíveis, e os Lobisomens olharam com
surpresa para os dardos cravados em seu peito. O alto e magro abriu a boca para
dizer algo, suspirou, fechou os olhos e despencou no chão. O outro nem tentou
falar.
— Caubói!
Brennan sacudiu com a cabeça.
— Meu nome não é Caubói. Também não é Yeoman, mas serve.
O rosto de Bigode assumiu uma expressão quase cômica de terror.
— Olha, me deixa ir embora. Não vou falar para ninguém. Juro. Confie em
mim... — Ajoelhou-se, as mãos crispadas, implorando, as lágrimas encharcando
as bochechas peludas.
A pistola de ar de Brennan cuspiu outro dardo, e Bigode caiu de cara no
carpete. Brennan virou-se para Jennifer.
— Oi, Ira.
Ela deixou a arma cair na cama.
— Você não pode... Não pode deixá-los ir?
Brennan negou com a cabeça.
— Sabe que não. Eles me conhecem. Acabaria com meu disfarce. E
arruinaria nosso plano.
— Eles precisam morrer?
Ele se aproximou dela, mas os braços ficaram ao lado do corpo.
— Você se envolveu num negócio mortal. — Ele apontou para os
Lobisomens drogados. — Ninguém pode sair daqui, exceto eu, se você quiser
viver. — Ele parou, parecia perturbado. — Mesmo assim, não há garantia...
Jennifer suspirou.
— A vida deles está nas minhas m...
— Eles fizeram escolhas e levaram uma vida que os trouxe até aqui.
Estavam preparados para te estuprar, desfigurar e matar. Ainda assim... —
Brennan desviou o olhar de Jennifer, olhando para dentro de si. — Ainda assim...
A voz silenciou. Jennifer pôs a mão em seu rosto, e ele o ergueu, os olhos
escuros assombrados por memórias de morte e destruição que, apesar do
treinamento zen, apesar de sua concentração ferrenha, nunca se afastavam da
superfície dos pensamentos.
Jennifer abriu um leve sorriso.
— Gosto dos seus novos olhos.
Brennan sorriu de volta e, quase de forma involuntária, cobriu a mão dela
com a sua.
— Preciso ir. Logo vai escurecer e preciso cuidar deles. — Apontou com a
cabeça para os Lobisomens desacordados. — E de... outros detalhes.
Jennifer concordou.
— Verei você de novo? Digo, logo.
Brennan afastou a mão, virou-se e deu de ombros.
— Já não tem problemas demais?
— Ei, o senhor do crime da Cidade de Nova York me jurou de morte. O que
pode ser pior?
Brennan sacudiu a cabeça.
— Você não conseguiria nem começar a imaginar. Olha, é melhor você
desaparecer. Preciso cuidar de algumas coisas.
Jennifer olhou para ele em silêncio.
— Eu te ligo.
— Promete? — ela perguntou.
Brennan fez um sinal positivo com a cabeça. Ela lançou um último olhar
perturbado para os Lobisomens, em seguida desapareceu através da parede.
Brennan não tinha a intenção de cumprir sua promessa. Nenhuma. De jeito
nenhum. Mas, quando ergueu o primeiro curinga inconsciente nos ombros, sua
determinação já estava enfraquecendo.
♣ ♦ ♠ ♥
Todos os cavalos do rei
George R. R. Martin
♣ ♦ ♠ ♥
Concerto para sirene e serotonina
Roger Zelazny
Vestindo calças cinza, blazer azul e uma gravata cor de sangue coagulado, com o
cabelo ondulado, mechas grisalhas e as unhas feitas, Croy d estava sentado
sozinho em uma mesa ao lado de uma pequena janela do Aces High. Observava
as luzes da cidade através da neve jogada pelo vento além de seu salmão assado,
bebericando um Chateau d’Yquem e revisando os planos para o próximo passo,
enquanto flertava com Jane Dow, que havia passado por ele duas vezes e se
aproximava novamente. Croy d definiu isso mais como coincidência e um bom
presságio, pois a desejou com vários corações (alguns deles múltiplos) em
diversas ocasiões — e, esperando poder encaixar oportunidade e sentimentos,
ergueu a mão quando ela se aproximou e tocou seu braço.
Uma centelha mínima estalou, ela parou e gritou “Ai!”, esfregando o local
onde o choque havia ocorrido.
— Desculpe... — Croy d começou.
— Deve ser a energia estática — ela comentou.
— Deve ser — ele concordou. — Tudo que queria dizer é que você me
conhece, embora não me reconheça nesta encarnação. Sou Croy d Crenson. Já
nos vimos por aí, de passagem, e eu sempre quis me sentar com você e trocar
umas palavras, mas de alguma forma nossos caminhos nunca se cruzaram
tempo suficiente no momento certo.
— Essa é uma cantada interessante — ela falou, correndo o dedo por sua
sobrancelha úmida —, apresentar-se como o único ás de quem ninguém conhece
a aparência. Aposto que um monte de fãs cai nela.
— Verdade — Croy d respondeu, sorrindo, enquanto abria bem os braços. —
Mas posso provar se esperar um minutinho.
— Por quê? O que está fazendo?
— Enchendo o ar com íons negativos para você ter aquela sensação
deliciosamente estimulante que vem antes da tempestade. Apenas uma dica dos
momentos ótimos que eu poderia...
— Pode parar! — ela disse, afastando-se. — Isso às vezes provoca...
As mãos de Croy d ficaram úmidas, o rosto molhado, seus cabelos
emplastaram-se e escorreram na testa.
— Desculpe — ela disse.
— Que diabos — ele retrucou —, vamos transformar isso em uma
tempestade de trovões. — E os raios dançaram entre seus dedos. Ele começou a
gargalhar.
Os outros clientes olharam em sua direção.
— Pare, por favor — ela pediu.
— Sente-se por um minuto e eu paro.
— Tudo bem.
Ela se sentou na frente de Croy d, que secou o rosto e as mãos no
guardanapo.
— Perdoe-me, foi minha culpa. Eu devia ter cuidado com os efeitos da
tempestade em alguém chamada Nenúfar.
Ela sorriu.
— Seus óculos estão molhados — ela disse, estendendo a mão de repente e
tirando-os do rosto de Croy d. — Eu limpo...
— Duzentas e dezesseis visões da doçura úmida — ele declarou quando ela
o encarou. — Como de costume, o vírus me dotou em excesso em vários
aspectos.
— Você realmente me vê em toda essa quantidade?
Ele concordou.
— Esses aspectos de curinga às vezes afloram em minhas mudanças.
Espero que não te incomodem.
— Eles são... magníficos.
— Você é muito gentil. Agora, me devolva os óculos.
— Um momento.
Ela limpou as lentes no canto da toalha de mesa, em seguida devolveu-os.
— Obrigado. Deixa eu te pagar uma bebida? Um jantar? Um cão d’água?
— Estou trabalhando — ela disse. — Obrigada. Desculpe, talvez numa outra
hora.
— Bom, eu também estou trabalhando. Mas, se você estiver falando sério,
eu dou alguns números de telefone e um endereço. Talvez eu não esteja em
nenhum deles, mas pego o recado.
— Me passe então — ela disse, e ele anotou rapidamente em uma
caderneta, rasgou a página e passou para ela. — Que tipo de trabalho está
fazendo? — ela perguntou.
— Investigações sutis — ele falou. — Envolve uma guerra de gangues.
— Sério? Ouvi as pessoas dizerem que você é meio honesto, mas meio
maluco.
— Estão meio certas — ele respondeu. — Então, me dá uma ligadinha ou
passe lá no apartamento. Eu alugo um equipamento de mergulho e podemos nos
divertir.
Ela sorriu e começou a se levantar.
— Talvez eu vá.
Ele puxou um envelope do bolso, abriu, empurrou para o lado um monte de
notas e tirou um pedaço de papel com algo escrito.
— Hum, antes de ir... O nome James Spector diz alguma coisa para você?
Ela congelou e ficou pálida. Croy d se viu molhado novamente.
— O que eu disse que te incomodou tanto? — ele perguntou.
— Você não está brincando? Não sabe, de verdade?
— Não. Não estou brincando.
— Conhece a musiquinha dos ases?
— Algumas partes.
— Golden Boy é triste que dói — ela recitou —, se o Ceifador encontrar,
desvie o olhar... é ele: James Spector é o nome real do Ceifador.
— Nunca soube disso — ele falou. — Nunca ouvi nenhum verso sobre mim.
— Não me lembro de nenhum também.
— Fala sério, eu sempre quis saber.
— Dorminhoco acordado, come a mesa e o prato — ela falou, lentamente.
— Dorminhoco drogado, todo mundo acabado.
— Nossa.
— Se eu te ligar e você chegar nisso...
— Se eu chegar nisso, eu não retorno ligações.
— Vou pegar alguns guardanapos secos — ela disse. — Sinto muito pelas
tempestades.
— Não precisa. Ninguém disse que você fica adorável quando solta
umidade?
Ela o encarou. Em seguida, disse:
— Também vou trazer um peixe cru para você.
Croy d ergueu a mão e mandou um beijo para ela, o que fez com que ele
próprio se desse um choque.
♣ ♦ ♠ ♥
Colapso
Leanne C. Harper
Nômada desceu a rua apinhada de East Village tentando manter a paciência com
o caminhar de C.C. Ry der, como se estivesse passeando no shopping. Parecia
que a cada três metros a ruiva de cabelos espetados via algo que precisava ter.
Nômada estava prestes a sugerir que voltassem ao loft da compositora quando
ouviu um sotaque sulista.
— Ei, vocês aí, qué pasa? — O hiperativo corpo adolescente dentro de um
collant com estampa de tigre e tênis dourados pertencia à sobrinha de Jack,
Cordelia. Ela saiu do restaurante no qual acabara de entrar e agarrou Nômada e
C.C. Ry der pelos cotovelos, para levá-las até o Riviera antes que pudessem
esboçar um protesto. C.C. rapidamente se livrou das mãos dela quando entraram,
mas nenhuma das mulheres se opôs quando Cordelia imediatamente conseguiu
uma mesa. Nômada aprendera que era inútil resistir, a menos que quisesse ter
uma adolescente excessivamente ferida nas mãos.
— Então, cês viram o apelo da Rosemary aos ases pela televisão? —
Cordelia abriu e fechou o cardápio no mesmo movimento. — Vai entrar nessa,
Nômada?
— Não me pediram nada — ela escolheu se demorar com o cardápio. — E
você?
Olhando sobre o cardápio grande demais, Nômada ficou surpresa ao
perceber a expressão de repulsa no rosto de Cordelia. Possivelmente pela
primeira vez, ela conseguiu mantê-la em silêncio.
— Eu, hum, não faço mais isso. — Cordelia abriu o cardápio mais uma vez
e o encarou fixamente. — Posso machucar alguém, sabe? Nunca mais vou fazer
isso de novo. Não é correto.
— Não sei se é uma boa ideia. Vigilantes ases não é o que precisamos nesta
cidade. — C.C. olhou de Cordelia para Nômada antes de pedir licença e se
levantar.
— Então, você tem visto Jack? — Cordelia acompanhou o avanço de C.C.
até o fundo do restaurante com atenção, antes de se virar para Nômada com
olhos grandes e inocentes.
— Vi. Ele perguntou se eu tenho te visto. Já pensou em ligar para o seu tio de
vez em quando? — A irritação de Nômada era evidente em sua voz rouca.
— Estou muito ocupada trabalhando para a Global Fun and Games e tudo o
mais...
— E você não quer mesmo falar com ele, certo?
— Não sei o que dizer... — Cordelia enrubesceu. — Digo, é como se eu não
o conhecesse mais. Você não entende. Fui criada na Igreja. Aprendi que ser um
homo... Que ser como Jack é um dos piores pecados que existem.
— Não é contagioso, e ele é seu tio. Arriscou a vida por você, e você nem
dá uma ligadinha para ele. Fico feliz que seja tão rígida com o que é certo e
errado. — Nômada parecia enojada e inconscientemente fez gesto de desdém
com as mãos para a garota. — Michael faz bem para ele. Nunca vi Jack tão feliz.
— Ah, é? Michael é um filho da puta, isso sim! Eu o vi numa boate no
Village na semana passada. Estava com alguém, e não era o Tio Jack. —
Cordelia estava furiosa.
— Tudo bem aqui? — C.C. sentou-se e olhou para as duas mulheres.
— Tá tudo bem. — Cordelia acenou para chamar a garçonete. — Vai
cantar no meu evento beneficente ou não?
— Vai ficar pedindo e eu continuarei a dizer não. — C.C. sacudiu a cabeça
em exasperação afetuosa. — Só quero escrever minhas músicas, gravar algumas
coisas em casa. Não preciso de um público e, com certeza, não quero um
público.
— C.C., o público precisa de você. É um evento beneficente para as vítimas
do Carta Selvagem e da AIDS. Você, mais do que ninguém, deveria simpatizar
com a causa.
Nômada viu o rosto de C.C. ficar tenso com a menção do vírus Carta
Selvagem. Foram anos de drogas, terapias e Deus sabe o que mais para trazê-la
de volta à humanidade. O maior pesadelo dela era se transformar novamente em
um vagão de metrô vivo formado por nada mais que ódio. Ou algo pior. Ela havia
falado muito pouco sobre isso com Nômada.
C.C. Ry der controlava rigidamente suas emoções, nunca permitindo que
excedessem um determinado nível. Se continuasse a aceitar as dificuldades e
tomar os antidepressivos prescritos, não conseguiria compor. E tornar-se incapaz
de escrever músicas era ainda pior do que a perspectiva de voltar a ser vagão.
Então, ela evitava qualquer situação com a qual não pudesse lidar. Nem mesmo
Tachy on conseguia lhe dizer o que poderia desencadear a série de mudanças
internas que resultariam em outra transformação. Nômada não entendia como
C.C. conseguia viver naquele estado de medo constante e ainda assim criar
canções, mas entendia por que queria ficar longe da maioria dos seres humanos.
E aprovava a decisão.
— Não. — A voz de C.C. havia ficado tão tensa quanto seus músculos,
embora ficasse claro que estava controlando o efeito que a discussão lhe
causava.
— Poderia ser seu grande retorno...
— Cordelia, não tem como retornar se você nunca esteve lá antes. — C.C.
forçou um sorriso. — Tenho certeza de que há candidatos muito mais prováveis
por aí.
— Suas músicas foram gravadas pelos melhores: Peter Gabriel... —
Cordelia mal parou seu discurso diante da chegada dos hambúrgueres. — Simple
Minds, U2... É hora de você mostrar a eles tudo o que pode fazer.
Cansada da discussão e certa de que C.C. estava se controlando, Nômada
expandiu sua mente pela cidade, perscrutando o emaranhado de inteligências
bestiais. Escuridão, luz forte, fome, satisfação; a tensa ansiedade do caçador, o
frio, o medo trêmulo dos perseguidos; morte, nascimento; dor. Tanta dor viva a
cada minuto — por que esses tolos humanos insistiam em criar ainda mais dor
para si com joguinhos? Ela tocou um esquilo com as costas quebradas que fora
atingido por um carro que passava perto do Parque Washington, parando seu
coração e cérebro simultaneamente. No Central Park, um filhote cinzento de gato
correu para um bosque de carvalhos e escondeu-se nos arbustos, girou e
arranhou o nariz do doberman que o perseguia. Nômada sentiu o triunfo do gato
por um instante, antes de ele reconhecer seu toque e guinchar de medo. Sem
sentir a necessidade de forçar o contato, ela prosseguiu. Permitiu-se outro
instante para se certificar de que a ninhada mais recente estava a salvo nos túneis
de serviço aquecidos, embaixo da Rua 42.
Quando seus olhos voltaram ao normal, Nômada percebeu que as duas
haviam parado de conversar.
— Suzanne, você está bem? — C.C. olhou para Nômada e, em seguida,
assentiu lentamente.
— Está sim, Cordelia. — C.C. chamou a atenção da garota de volta para ela,
dando tempo para que Nômada se recompusesse. Às vezes, ficava difícil voltar
ao mundo lento e incoerente dos seres humanos. Um dia, pensou, olhando para
C.C. Ry der, ela não voltaria. Era a única pessoa que ela conhecia que entendia
isso. Um dia, ela perguntaria o que C.C. sentiu quando era a Outra. C.C.
raramente mencionava o fato, mas, quando o fazia, Nômada ainda via uma
necessidade temerosa por trás daqueles olhos.
— Hum, tá. Bem, a GF&G, sabe, ia amar ter você no seu retorno. A
Funhouse é um lugar intimista. Perfeito para você e sua música. — Cordelia
inclinou-se, com mãos estendidas. — E, sabe, Xavier Desmond é um dos seus
maiores fãs.
— Meu Deus, garota, você está virando uma agente bizarra. — C.C.
recostou-se na cadeira anos 1950, coberta de plástico. — E eu já consegui um
agente. Isso já é ruim o bastante.
— Bom, olha só, preciso voltar para casa. Já está tarde. Adorei ver vocês,
meninas. — Cordelia deixou algumas notas na mesa e se levantou. Logo em
seguida, pegou a bolsa de couro de tatu que estava pendurada na cadeira.
Percebendo o olhar de Nômada para o animal morto, empurrou a bolsa para trás
e caminhou de costas até a porta, ainda insistindo com C.C. — Você tem algumas
semanas para tomar sua decisão. O show vai ser no fim de maio. Bono disse que
está ansioso para conhecê-la. Little Steven também.
— Boa noite, Cordelia. — C.C. Ry der estava obviamente chegando ao fim
da paciência. — Estou velha demais para esse tipo de coisa, Suzanne.
— Bom, não importa quem sejam, você vai mantê-los ocupados. — Chris se
serviu de um pedaço do atum grelhado de Rosemary.
— Você disse que não estava com fome — Rosemary segurou o garfo dele.
— Eu menti. Com certeza, não é a Yakuza. Eles estão sofrendo baixas
também. Perderam um dos principais homens aqui na cidade. Parece que nossos
amigos não vão atrás de ninguém se não puderem acabar com a Máfia deles.
Seu programa de confusão autorizada está cobrando seu preço. Eles podem não
estar fora, mas certamente estão em baixa. Está tendo algum problema com
isso?
— Não. Agora que os capos estão todos seguindo nossas instruções, sei de
tudo que está acontecendo em qualquer lugar entre as famílias. Fica mais fácil.
— Odeio dizer isso, mas talvez você precise arrumar uma baixa para nós.
Nada muito grave, só para acalmar qualquer suspeita. — Chris olhou ao redor na
cozinha brilhante. Era o único lugar alegre naquela cobertura escura e sombria.
— Tem biscoitos aí?
— Acho que não. Você está sabendo de algo que eu não sei? — Rosemary
examinou o rosto de Chris.
— Não, só acredito em prevenção. Não quero que ninguém veja um padrão
no que os ases estão fazendo.
— Vou ficar bem. Quem me ligaria, promotora adjunta, à Família
Gambione? Estou mais preocupada com você. — Rosemary empurrou seu prato.
Não mencionaria as suspeitas de Paul para Chris. Ela já sabia o que ele diria. —
Que tipo de segurança você está carregando?
— Beretta, claro. — Chris abriu sua jaqueta de couro preta.
— Não é o que estou perguntando.
— Eu sei, eu sei. Às vezes, você não tem senso de humor, sabe? Estou com
alguns rapazes de confiança. Estão comigo 24 horas por dia. Um deles está ali
fora agora. Outros três lá embaixo. Estou coberto, meu amor. Esses caras me
devem; as almas deles são minhas.
— Fale sobre o que está acontecendo com nossas operações regulares. —
Rosemary ficou aborrecida com a possessividade dele em relação ao grupo de
homens que era dela, mas concluiu que era apenas sua paranoia habitual.
— Não se preocupe com isso. Eu já cuidei de tudo. Cada uma das famílias
tem um representante que se reporta a mim diretamente. Se houver qualquer
problema, eu resolvo. Precisamos descobrir contra quem estamos lutando e
como derrubá-los. — Chris sorriu feliz para o teto. — Sabe, acho que aqueles
garotos ainda não gostam do meu rabinho chinês.
— Ainda estou trabalhando nisso. Já investigou os vietnamitas? A gangue dos
Punhos Sombrios no Bairro dos Curingas está envolvida com eles. Isso já ficou
claro. — Rosemary decidiu não pressionar a questão do seu briefing normal.
Chris estava certo, havia coisas mais importantes em que pensar.
— Bem, estou tentando infiltrar alguém lá. Tem ideia de como é difícil
encontrar um oriental na Máfia? — Chris suspirou de forma elaborada. — Estou
tentando pegar emprestado alguém da Yakuza.
— Boa ideia. Ouça, Chris, preciso de um tempinho sozinha hoje à noite, tá?
— Rosemary hesitou. — Para fazer planos.
— Vou encontrar alguma coisa para me manter ocupado. — Ele soltou uma
risadinha que preocupou Rosemary.
— Fique longe de problemas. Não sei o que farei se te perder.
— Nem eu. — Chris se levantou e beijou o alto da cabeça dela. — Talvez eu
não apareça por alguns dias. Não se preocupe comigo. Só vou cuidar dos
negócios.
Quando ele se foi, Rosemary entrou na biblioteca. Estava tentando manter
suas duas vidas em ordem, mas ficava cada vez mais difícil. Ela havia prometido
a si mesma que tiraria a Máfia dos ramos de drogas e prostituição. Mas, agora
que a guerra estava em curso, não havia como fazer isso. Precisava
desesperadamente de dinheiro. Proteger as pessoas lhe causaria problemas no
gabinete. Paul Goldberg perguntou abertamente se os informantes não
conseguiriam encontrar mais sujeira da Máfia. E aquele comentário sobre Maria
Gambione? Meu Deus. Devia ter alguma coisa que ela pudesse fazer sobre ele.
Matá-lo, antes que ele espalhasse suas suspeitas? Mas era o namorado de
Suzanne. O que poderia fazer?
Ela pensara que seria fácil conduzir as coisas por trás de Chris. Mas, em vez
disso, parecia que ele estava cada vez mais controlando o que acontecia nas ruas,
e não do modo como ela havia planejado. Rosemary descansou a cabeça na
mesa entre os braços esticados.
Sabia que não estava fazendo direito seu trabalho na Promotoria. Mas era
apenas uma questão de tempo até a maldita guerra acabar e ela poder voltar a
fazer o que deveria. Então, poderia se livrar das drogas, da prostituição e da
corrupção. Assim que eles tivessem ganhado a guerra.
Ela acordou do pesadelo com um choro baixinho, rapidamente contido pela
atmosfera pesada da biblioteca. Sonhou com uma imagem religiosa que vira
quando criança, a Crucificação. Porém, era seu corpo alquebrado que estava no
centro da cruz, com Chris pendurado à sua direita e seu pai à esquerda.
Rosemary envolveu-se com os braços para impedir a tremedeira.
♥
Nômada viu o brilho de canos e ouviu o som de pistolas, fuzis e metralhadoras
disparando e destruindo a noite enquanto contornava o prédio. Com um pequeno
exército de ratos, gatos e alguns cães vadios, ela patrulhava o perímetro, como
Rosemary havia proposto na reunião, dois dias antes. Sempre que alguém tentava
fugir, ela e os animais levavam-no de volta à polícia, que aguardava.
Ela quase tropeçou num corpo cujo rosto fora estourado por uma rajada de
metralhadora. Quando recuou, trombou com um policial negro. Ele a segurou
com gentileza, impedindo que caísse.
— Senhora, seria melhor encontrar outro lugar para dormir hoje à noite. —
Suas mãos grandes afastaram-na da batalha que acontecia nas ruas próximas e
silenciosas. Aquelas mãos lembraram-na de Pancada tentando pegar Jack. Ela
girou para se soltar, deixando um casaco de couro sujo nas mãos do policial, e
mancou rapidamente para longe.
Quando se viu novamente escondida na escuridão, fez contato com seus
animais. A amarela permanecia com ela todo o tempo, mas os outros cercaram
o prédio. Com os olhos de um rato agachado numa pilha de lixo, ela acompanhou
o lento avanço de um jovem oriental que tentava fugir da luta. Uma trilha de
sangue o seguia, pingando da perna direita. Ela sentiu o cheiro, e também o
rottweiler fugido, que de repente fechou a entrada do beco. O vietnamita arfou e
começou a andar de costas, lentamente. Mantendo o cão para trás, Nômada o fez
sentar-se, e ele uivou uma mensagem para o céu.
Havia água por todos os lados. Rosemary havia dito que uma nova ás,
chamada Nenúfar, estaria lá naquela noite. Nômada estava cansada de pisar em
poças. Quinze centímetros dos seus casacos e saias estavam encharcados, bem
como suas botas. De onde vinha tanta água? Ela esperava que não houvesse
nenhum incêndio no Bairro dos Curingas.
Mesmo que revelasse sua presença, Nômada organizou uma barreira com
gatos ferozes para impedir qualquer curinga de se aproximar mais que alguns
quarteirões da luta. O armazém do bairro, no centro do anel de proteção, era, de
acordo com Rosemary, um dos maiores arsenais dos Punhos Sombrios. A
concentração de Nômada estava enfraquecendo. Rosemary não pensou muito
em quanto tempo sua ás de estimação poderia continuar a rastrear a mente dos
animais e controlar centenas deles em ação coordenada.
A gata amarela rosnou, despertando Nômada de seus devaneios. Ela se
ergueu de uma parede na qual se mantivera encostada para conservar as forças.
Segurando uma Uzi em posição de disparo, outro vietnamita percorria a rua
escura, movendo-se de uma sombra a outra em silêncio. Nômada fixou-se nele,
em seguida convocou os ratos. Dentro de segundos, uma centena deles atacou o
homem, fazendo-o se afastar. Eles subiram pelas pernas da calça e correram até
os braços, que se sacudiam, mordendo seu rosto e pescoço. O grande número de
ratos o fez tropeçar quando eles cobriram o chão. Ele gritou. A Uzi começou a
disparar, seu fogo pulsante ecoando entre as paredes em um ritmo sinistro com
os gritos do homem. Os dois sons aumentaram em escala até a munição terminar
e a garganta do homem estar arranhada demais para emitir qualquer som.
Seguiu-se um silêncio, interrompido apenas pelo som dos ratos caminhando.
Nômada enviou-os às pressas para uma nova posição. A visão do homem na
poça de sangue a perturbou. Ele não devia ter resistido.
Lasers cruzaram o céu sobre o prédio, cortando-o ao meio, cirurgicamente.
Quando os raios atingiram as poças de Nenúfar, emergiram nuvens de vapor. A
cena iluminada lembrava a Nômada uma representação do inferno à la Ken
Russell.
Usando o filhote que Nômada deixara com ela, Rosemary a chamou.
Nômada virou-se e abandonou o corpo. Ele não fizera nada para ela. Que direito
tinha ela de matá-lo?
Quando ela chegou, Rosemary a esperava a uma porta profunda e sombria.
Nômada andou junto à parede, lembrando-se do vietnamita fazendo o mesmo,
minutos antes. Ninguém a viu entrar.
— O que você vê? — Rosemary não tinha tempo para prelúdios.
— Pegamos todos. Ninguém escapou aos meus olhos.
— Ótimo, ótimo. Os desgraçados não se esquecerão disso tão cedo.
Rosemary estava satisfeita, mas seus pensamentos estavam em outro lugar.
— Viu? Eu sabia que você poderia fazer muito por mim.
Rosemary saiu para a rua, e um policial veio cumprimentá-la.
— Excelente trabalho! Esses ases da senhora realmente fizeram a
diferença, por mais que eu odeie admitir isso. Aquele cara negro, o Martelo? É
extraordinário. Tive calafrios só de estar perto do sobretudo dele. — O capitão
estendeu a mão para lhe dar os parabéns.
— Fico feliz em ter ajudado, capitão. Mas o Martelo do Harlem ainda está
fora do país. Certeza de que não era um de seus infiltrados? — Rosemary sorriu e
apertou sua mão. — Aliás, poderia pedir para um de seus homens ajudar esta
senhora a sair da área? — Apontou com a cabeça para Nômada, que esperava
perto da entrada. — Ela está um pouco perdida.
Antes que o policial pudesse pegá-la, Nômada caminhou pela calçada e
desviou para dentro de um beco. Levou um instante para espalhar os animais
reunidos, depois, seguiu a amarela por uma entrada de esgoto que havia deixado
aberta. Na noite úmida abaixo das ruas, ela refletiria sobre o que havia feito.
Para qual finalidade? Para que a Máfia de Rosemary pudesse continuar? Ao
menos vinte ratos, um gato e um dos cães foram perdidos naquela noite. De novo
não, Rosemary. Seus jogos não valem para mim. Percebendo o brilho nos olhos da
amarela, a seguiu para casa através dos túneis.
Caminhando pela esquina do alto prédio de Paul, Nômada puxou a saia para
baixo ao mesmo tempo em que tentava evitar as poças deixadas pela chuva da
tarde. O porteiro manteve aberta a pesada porta de vidro com um sorriso mal
disfarçado, dizendo-lhe que a vira se arrumar. Ela considerou tornar a vida dele
um pouco mais miserável, lançando um pombo sobre sua cabeça, mas ele não
valia o esforço. Tinha coisas mais importantes na mente. Dependeria do rumo
dos acontecimentos, ela decidiu, mas talvez ficasse com Paul naquela noite.
Ainda se sentia um pouco incomodada com a decisão.
Ela acenou para Marty, que assentiu com a cabeça e marcou-a no livro de
registro de visitantes. Como sempre, os ecos dos saltos estalando no mármore a
deixaram desconcertada. O elevador levou uma vida para chegar. Nômada
concluiu que todos que a viram entrar sabiam o que ela estava pensando sobre
Paul no momento em que o elevador apareceu. Era ridículo. Ela era adulta, pelo
amor de Deus. Deu um suspiro profundo e entrou, seguindo para o apartamento
de Paul, no 32o andar.
Graças aos céus, não havia ninguém no hall. Lá em cima, o carpete parecia
ter sete centímetros de espessura, e ela não fez barulho nenhum quando chegou
até a porta e tocou a campainha. Depois de vários minutos, ela tocou novamente
e começou a prestar atenção a qualquer ruído vindo de dentro do apartamento.
Não ouviu nada. Procurou mentalmente quaisquer criaturas, um camundongo ou
rato, mas o prédio de Paul era chique demais para isso. Sem encontrar pistas, ela
captou um pombo na janela. Algumas luzes estavam acesas, mas ela não via
Paul.
Ótimo. Que noite para levar um bolo. Timing excelente, Paul. Nômada
começou a voltar para o elevador com uma noção de alívio que ela se esforçava
para não deixar transparecer. Na descida, pensou que provavelmente estava
sendo esperada, se não, o segurança não a teria deixado subir. Pela primeira vez,
ficou preocupada com Paul.
Marty, o segurança, o vira entrar muitas horas antes. Tinham conversado
sobre ele ter ganhado um caso, para variar, e ter saído mais cedo para descansar,
antes que Nômada chegasse. Marty corou quando ele mencionou que o senhor
Goldberg lhe dissera para cuidar dela. Paul falou que eles celebrariam juntos.
Não havia registro de Paul saindo, e nenhum dos porteiros o vira deixando o
prédio. O segurança chamou um colega para cobri-lo e levou a chave-mestra
para o apartamento.
Assim que a porta se abriu, Nômada sentiu que algo estava errado. Seguindo
sua sensação de pavor, levou Marty direto para o banheiro. Paul estava nu dentro
da Jacuzzi de mármore preto. O sangue rodopiava ao seu redor, na água
borbulhante. Ele havia tomado um tiro à queima-roupa no olho. Ela o encarou
profundamente, enquanto Marty ligava freneticamente para a polícia.
A polícia a levou para a delegacia e a interrogou por horas. Primeiro,
estavam determinados a fazê-la confessar o crime. Quando o relatório inicial do
legista finalmente chegou, desistiram e começaram a perguntar sobre seu
conhecimento das atividades de Paul. Quem poderia ter desejado sua morte? Ela
pensou em Rosemary várias vezes, mas negou saber de qualquer coisa.
Rosemary teria coragem de matá-lo? Ela sabia que Nômada gostava de
Paul, e até mesmo havia incentivado a relação entre os dois. Seria capaz de
assassinar alguém com quem trabalhava e respeitava? Nômada não se permitiu
responder a essas perguntas.
Eram quase seis da manhã quando C.C. finalmente conseguiu permissão
para levar Nômada para casa. No táxi, ela não disse nada até chegarem ao loft
de C.C., apenas expandiu a mente em busca dos gatos e mentalmente os trouxe
para perto, tremendo. C.C. pegou o jornal na calçada em frente ao prédio e o
enfiou debaixo do braço, levando Nômada para o elevador. No loft, ela ficou
parada encarando uma parede sem a ver, enquanto C.C. preparava um chá.
Nômada percebeu que C.C. chamava seu nome repetidamente. Isso a
trouxe de volta a si. Preferia expandir sua consciência através da cidade. E
também espalhar sua dor. Apenas a urgência na voz da outra a fez se concentrar
no jornal diante dela.
A foto de Rosemary Gambione Muldoon tomava um quarto da primeira
página.
♣ ♦ ♠ ♥
Todos os cavalos do rei
II
♣ ♦ ♠ ♥
Concerto para sirene e serotonina
II
Depois de conferir se não havia ninguém observando, Croy d jogou duas pastilhas
de anfetamina no seu espresso. Suavemente, soltou um palavrão, como parte do
suspiro que se seguiu. Nada estava funcionando como ele previra. Todas as pistas
que tentara durante os últimos dias tinham sido um fiasco, e ele estava se
drogando mais do que devia. Em geral, isso não o incomodaria, mas, pela
primeira vez, tinha feito duas promessas distintas com relação a drogas e a seus
atos: uma profissional e outra pessoal, ele refletiu, que o deixavam sem margem
de manobra. Definitivamente teria que ficar de olho, ou ao menos com algumas
facetas dos olhos, em si mesmo para não estragar tudo; além disso, não queria
decepcionar Nenúfar no primeiro encontro. Em geral, Croy d sentia a paranoia
chegando, e, dessa vez, resolveu deixar que esse fosse o indicador de seu grau de
irracionalidade.
Ele havia corrido a cidade toda tentando rastrear duas pistas que pareciam
ter-se evaporado. Verificou cada possível fachada de sua lista, convencendo-se
de que tinham sido apenas pontos de encontro escolhidos a esmo. O próximo era
James Spector. Embora não tivesse reconhecido o nome, conhecia o Ceifador, o
encontrara rapidamente em diversas ocasiões. O homem sempre o impressionou
como um dos ases mais nojentos. “Se o Ceifador o encontrar, desvie o olhar”,
Croy d murmurou e acenou para o garçom.
— Pois não?
— Mais um espresso, e me traga uma xícara maior, está bem?
— Pois não.
— Aliás, me traga uma jarra inteira.
— Tudo bem.
Ele murmurou um pouco mais alto e começou a bater o pé. “Olhos do
Ceifador. Os olhos do Ceifador”, ele entoou. Deu um pulo quando o garçom
deixou diante dele uma xícara.
— Não chegue tão silencioso assim!
— Desculpe. Não quis assustá-lo. — E começou a encher a xícara.
— Não fique atrás de mim enquanto serve. Fique aqui do lado, onde eu
possa te ver.
— Claro.
O garçom moveu-se para a direita de Croy d; e deixou a jarra na mesa
antes de sair.
Enquanto tomava xícara atrás de xícara de café, Croy d começou a ter
pensamentos que não tinha havia tempos com relação a sono, mortalidade e
transfiguração. Depois de um tempo, pediu outra jarra — definitivamente, era
um problema que exigia duas jarras.
A neve da noite havia cessado, mas os três centímetros que cobriam as calçadas
reluziam sob a luz dos postes, e o vento muito frio erguia redemoinhos brilhantes
pela Tenth Street. Caminhando com cuidado, o homem alto e magro vestido num
pesado sobretudo preto olhou para trás uma vez quando virou a esquina, a
respiração visível e esbranquiçada. Desde que saíra da loja de bebidas, teve a
sensação de estar sendo vigiado. E havia uma figura, distante a uns cem metros,
caminhando do outro lado da rua quase no mesmo ritmo que ele. James Spector
sentiu que talvez valesse a pena esperar o homem e matá-lo, apenas para evitar
qualquer possível aborrecimento no caminho. No fim das contas, havia duas
garrafas de Jack Daniels e uma caixa com seis cervejas Schlitz na sacola, e se
alguém fosse abordá-lo de repente nessas calçadas escorregadias... Ele se
encolheu ao pensar nas garrafas quebrando, pois teria que voltar até a loja.
Por outro lado, esperar o homem e matá-lo ali, enquanto segurava a sacola,
também podia fazê-lo escorregar... mesmo se fosse apenas ao se curvar para
revistar seus bolsos. Primeiro seria melhor encontrar um lugar para deixar as
coisas. Ele olhou ao redor.
Havia alguns degraus que levavam a uma porta mais adiante. James
caminhou até eles e deixou a sacola no terceiro degrau, contra o corrimão de
ferro. Depois, puxou a gola e virou-a para cima, pegou o maço de cigarros do
bolso, tirou um e o acendeu. Recostou-se no corrimão e esperou, observando a
esquina.
Em pouco tempo, surgiu um homem de calças cinza e blazer azul, a gravata
chicoteando ao vento, os cabelos pretos desgrenhados. Parou e o olhou, em
seguida balançou a cabeça e avançou. Quando se aproximou, Spector percebeu
que usava óculos espelhados. Ele sentiu uma pontada repentina de pânico, vendo
que o outro possuía um adequado dispositivo de defesa contra ele. E isso
certamente não era um acaso no meio da noite. Portanto, era mais do que
somente um brutamonte no seu encalço. Ele deu uma tragada longa no cigarro, e
subiu vários degraus de costas, lentamente, ganhando altura para dar um belo
chute na cabeça do cara e tirar seus malditos óculos.
— Ei, Ceifador! — O homem chamou. — Preciso falar com você!
O Ceifador o encarou, tentando se lembrar dele. Mas não havia nada de
familiar no homem, nem mesmo a voz.
O outro se aproximou e parou diante dele, sorrindo.
— Só preciso de um minuto ou dois do seu tempo. É importante. Estou com
muita pressa e tentando manter um pouco da sutileza. Não está sendo fácil.
— Eu te conheço? — Ceifador perguntou.
— Já nos encontramos. Em outras vidas... Quer dizer, em minhas outras
vidas. Também acho que você fez a contabilidade da empresa do meu cunhado,
em Jersey. Meu nome é Croy d.
— O que você quer?
— Preciso do nome do chefe da nova gangue que está tentando tomar as
operações da velha e boa Máfia, que comanda esta cidade há mais de meio
século.
— Tá de brincadeira — Ceifador respondeu, dando um trago final no
cigarro, soltando-o e movendo a ponta do pé para esmagá-lo.
— Não, não estou. Eu preciso mesmo dessa informação para poder dormir
em paz. Acredito que você tenha feito mais que contabilidade para esses caras.
Então, me diga quem dá as cartas, e eu vou embora.
— Não posso.
— Como eu já disse, estou tentando ser discreto. Ou seja, não quero fazer
isso do jeito mais difícil...
O Ceifador chutou o rosto do homem. Os óculos de Croy d voaram sobre o
ombro, e o Ceifador encarou as 216 facetas reluzentes de seus olhos. Ele não era
capaz de fixar o olhar com os pontos de luz.
— Você é um ás — ele disse —, ou um curinga.
— Sou o Dorminhoco — Croy d respondeu quando estendeu a mão e pegou
o braço direito do Ceifador, para depois quebrá-lo no corrimão. — Você deveria
ter me deixado ser sutil. Não machucaria tanto.
Ceifador deu de ombros enquanto se encolhia.
— Continue, quebre o outro também. Mas não posso dizer o que não sei.
Croy d encarou o braço pendurado na lateral do corpo do Ceifador, que,
com o outro, pôs o quebrado no lugar e o segurou.
— Você se recupera bem rápido, não é? — Croy d disse. — Em minutos.
Estou lembrando agora.
— Isso aí.
— Pode fazer crescer um braço novo se eu arrancar?
— Não sei e prefiro não saber. Olha só, ouvi dizer que você é um psicopata,
e acredito nisso. Eu diria se soubesse. Não gosto de me regenerar. Mas tudo que
fechei foi um acordo ruim de assassinato. Não tenho ideia de quem esteja no
comando.
Croy d estendeu as duas mãos, agarrando os pulsos do Ceifador.
— Quebrar você inteiro não vai adiantar de nada, mas ainda há espaço para
a discrição. Já passou por uma terapia de eletrochoque? Experimente essa.
Croy d esperou o Ceifador parar de se contorcer, em seguida, soltou seus
pulsos. Quando conseguiu voltar a falar, o Ceifador disse:
— Eu não posso dizer nada, pois não sei.
— Então, vamos perder mais uns neurônios — Croy d sugeriu.
— Dá um tempo — Ceifador retrucou. — Nunca soube o nome dos
chefões. Isso nunca significou porra nenhuma pra mim. E não significa. Só
conheço aquele cara chamado Olho, um curinga. Tem um olho grande e usa um
monóculo. Eu o encontrei uma vez, na Times Square, ele me deu uma missão e
me pagou. É tudo que sei. Você sabe como é. Também é autônomo.
Croy d suspirou.
— Olho? Parece que ouvi falar dele em algum lugar. Onde consigo achar
esse cara?
— Acho que ele fica no Club Dead Nicholas. Joga cartas lá, já faz um
tempo, na sexta à noite. Sempre quis ir lá e matar o desgraçado, mas não tive
tempo. Isso me custou um pé.
— Club Dead Nicholas? — Croy d perguntou. — Acho que não conheço
esse.
— Antes era Nicholas King’s Mortuary, perto do Bairro dos Curingas. Serve
comida e bebida, tem música e uma pista de dança, e jogatina numa área dos
fundos. Acabou de abrir. Tem uma decoração de Halloween. Mórbido demais
pro meu gosto.
— Tudo bem. Espero que não esteja me passando para trás, Ceifador —
Croy d disse.
— É tudo que sei.
Croy d balançou a cabeça lentamente.
— Vou lá. — Ele soltou o outro e se afastou. — Talvez, depois, eu possa
descansar. Sutil. Muito sutil. — Ergueu a sacola do Ceifador e a deixou em seus
braços. — Aqui. Não esqueça suas coisas. E é bom olhar por onde anda, está tudo
escorregadio. — Continuou a se afastar, de costas, murmurando consigo mesmo
até a esquina. Depois, virou-se e desapareceu.
Afundando até sentar-se no degrau, Ceifador abriu uma garrafa de uísque e
tomou um longo gole.
♣ ♦ ♠ ♥
Jesus era um ás
Existem poucos quarteirões entre o Bairro dos Curingas e o Lower East Side que
limpos e vítimas do vírus chamam igualmente de Fronteira. Ninguém sabe que
grupo começou a usar o termo, mas aplica-se igualmente a qualquer lado. Um
curinga talvez pense que o lugar é a fronteira de Nova York, já um limpo, que é a
fronteira do Bairro dos Curingas.
As pessoas vão à Fronteira pelos mesmos motivos pelos quais algumas
assistem a um filme violento, ou a um bom show de speed metal, ou se acabam
na droga da moda. São atraídos pela ilusão de perigo; uma ilusão segura,
efêmera, que lhes dá algo para comentar em festas frequentadas por pessoas
medrosas demais para ir até lá por si mesmas.
O jovem pregador pensou sobre aquilo enquanto observava a equipe do
noticiário da televisão caminhando na rua de baixo, através da janela do banheiro
do quarto de hotel barato que havia alugado para a noite — embora tivesse a
intenção de usá-lo apenas por poucas horas. A equipe consistia em um repórter
de casaco e gravata, um operador de minicâmera e um sonoplasta. O repórter
estava parando pedestres, limpos e curingas, enfiando o microfone em seus
rostos, tentando fazê-los dizer alguma coisa. Por um momento longo e
atormentador, o jovem pregador teve medo de que seu encontro amoroso com
Belinda May fosse a história que estavam procurando, mas se tranquilizou com a
ideia de que a equipe, sem dúvida, estava rotineiramente nessa vizinhança.
Afinal, onde eles teriam chance melhor de encontrar uma introdução visual forte
para o noticiário das 23 horas? Ele não gostava de ter esses pensamentos
pecaminosos, mas, nas circunstâncias, saboreou a esperança de que a equipe se
distraísse com um acidente de carro espetacular a poucos quarteirões, com muito
do estilo visual que procuravam na forma de fogo e capôs amassados — mas
sem mortes, claro.
O jovem pregador deixou cair a fina cortina branca. Terminou seus
negócios e, enquanto lavava as mãos com movimentos rápidos e eficientes,
encarou seu reflexo cadavérico no espelho sobre a pia manchada de ferrugem.
Era mesmo tão doente ou sua tez pálida e amarelada era apenas o resultado do
brilho das duas lâmpadas sem lustre sobre o espelho? O jovem pregador era
loiro, de olhos azuis e acabara de completar 35 anos; tinha feições bonitas,
dominadas por maçãs do rosto altas e um queixo quadrado com covinha.
Naquele momento, usava apenas uma camiseta branca, uma cueca boxer azul-
clara e meias. Transpirava com profusão. Estava mesmo quente ali, mas ele
esperava deixar o lugar muito mais quente logo.
Mesmo assim, não conseguia evitar a sensação de ser um peixe fora d’água
naquele quarto de hotel ordinário, justamente com aquela mulher que, por acaso,
estava entre os principais membros de sua nova missão no Bairro dos Curingas.
Não que ele fosse inexperiente. Tinha feito aquilo várias vezes antes, com muitos
tipos de mulheres, em quartos como aquele. A mulher fizera aquilo porque ele
era famoso, se sentiu bem ao ouvir seus sermões, ou quis se sentir mais próxima
de Deus. Às vezes, quando ele mesmo tinha dificuldade para se sentir assim, elas
faziam por dinheiro, e os pagamentos eram feitos por um membro confiável do
seu círculo mais íntimo. Poucas mulheres acreditavam estar apaixonadas por ele,
uma tolice; ilusão que, em geral, ele destruía sem muitos problemas, mas apenas
depois de saciar seus desejos carnais.
Mas nada na experiência do jovem pregador o preparara para uma mulher
como Belinda May, que aparentemente estava ali pelo simples prazer de estar.
Ele se perguntou se a atitude dela era típica das cristãs solteiras da cidade grande.
Aonde no mundo Jesus virá, ele pensou, quando chegar a hora de Ele voltar?
Abriu a porta do quarto e, antes de dar um único passo para a frente,
recebeu o choque da sua vida. Belinda May estava sentada de pernas cruzadas na
cama, fumando um cigarro, linda demais, e nua como veio ao mundo. Ele
esperava vê-la nua, claro, mas não tão cedo. E, mesmo assim, pensou que ela
estaria discretamente sob os lençóis.
— Já era hora de aparecer — ela disse. Apagou o cigarro e caiu em seus
braços antes que ele pudesse respirar. Agora ele sabia como uma frigideira se
sentia em chama quente. Ela se agarrou a ele como se quisesse entrar em seu
corpo. O jovem ficou incrivelmente excitado pela sensação dos seios apertados
contra seu peito, e ela havia montado em sua coxa, esfregando-se como se
quisesse chegar ao osso. A língua era como uma enguia explorando a boca do
rapaz. Uma das mãos estava sob a camiseta, a outra dentro da cueca,
acariciando o traseiro dele.
— Hummm... Que gosto bom — Belinda May sussurrou em seu ouvido
depois do que parecia uma eternidade, em um local que era uma combinação
sinistra da estratosfera do céu e os níveis mais baixos do inferno. Sem dúvida, ela
era mais agressiva sexualmente do que o tipo de mulher com o qual ele estava
acostumado. — Venha, vamos para a cama — ela sussurrou, pegando-o pela
mão e puxando-o. Ela subiu na cama, ficou de joelhos e o fez ficar em pé ao
lado dela, encaixando gentilmente sua mão sobre sua vagina.
Embora o jovem pregador experimentasse uma satisfação profunda e
permanente todas as vezes que preliminares levavam a mulher ao orgasmo, se
sentia estranhamente deslocado, como se observasse a cena através de um
espelho. Muito constrangido, pensou outra vez no que estava fazendo naquela
espelunca com a pintura descascando nas paredes mal rebocadas, com aquelas
luminárias ordinárias, a cama com molas rangendo e aquele aparelho de
televisão encarando-o com seu olho insone. Ele se arrependeu de ter cedido ao
pedido de Belinda May para que pegasse um quarto ali, na Fronteira, para o
encontro. Perturbava-o pensar que em alguma parte da alma ele se parecia
muito com as pessoas que vinham sempre àquele lugar para correr riscos
seguros. O jovem pregador queria acreditar que Deus já havia preenchido os
vazios importantes de seu coração.
No entanto, a beleza acessível da mulher o perturbava em um nível mais
profundo do que suas inoportunas dúvidas. Gentilmente, ele a empurrou para
baixo e, com uma sensação estranha, em nada diferente daquela que vivenciara
quando se ajoelhou sozinho pela primeira vez diante de um altar, percebeu como
seus cabelos loiros espalhavam-se sobre o travesseiro como as asas de um anjo.
Ela se contorcia, sedutora, enquanto ele a beijava na orelha e descia para lamber
o pescoço. Ele continuou o trajeto para beijar os seios e sentiu uma onda
renovada de calor no escalpo quando ela sinalizou a medida de sua paixão,
correndo as mãos pelos seus cabelos e gemendo suavemente. Então, chegou à
barriga, passando a língua nas bordas do umbigo raso, o que ele esperava ser um
toque delicado, de mestre. Estava deliciado além de suas forças para entender
quando ela, por fim, separou bem as pernas, um convite que ele aceitou quase
instantaneamente, enterrando o rosto e lambendo-a com ferocidade pagã. Nunca
soube que uma mulher tinha um gosto tão bom. Nunca desejou com tanto fervor
servir outra pessoa, em vez de ser servido. Nunca adorou com tanta humildade,
com tanto afã o altar do amor. Nunca havia se humilhado com tanto prazer, com
tanta imoralidade...
— Leo? — Belinda May disse, movendo-se para trás sobre os cotovelos. —
Aconteceu alguma coisa?
O jovem pregador ergueu-se com os cotovelos e baixou os olhos para entre
suas pernas, onde seu membro pendia tão amolecido quanto um homem
enforcado. Oh, Senhor, por que me abandonaste?, ele pensou, em desespero,
refreando o impulso infantil de entrar em pânico. Sorriu, envergonhado, olhando
além do altar com seu convite ainda bem aberto, além do corpo encharcado de
suor da mulher e daqueles seios brilhantes, para seu rosto doce e sorridente.
— Não sei. Acho que não estou bem esta noite.
Belinda May fez beicinho e esticou-se com tanta inocência e naturalidade
como se estivesse sozinha.
— Que ruim. Tem algo que eu possa fazer para ajudar?
Nos segundos seguintes, ele pesou vários fatores na mente, a maioria
relacionados com qual seria o equilíbrio adequado entre franqueza e diplomacia
delicada. No final, decidiu que ela reagiria bem à franqueza, mas não tinha
certeza de quanto ele poderia sair ileso disso. Acabou sorrindo, de um jeito
selvagem.
— Você gostaria de comer alguma coisa?
A vida dele passou-lhe diante dos olhos enquanto ela girava a perna sobre
sua cabeça, saía da cama e exclamava:
— Que ideia ótima! Tem um restaurante de sushi do outro lado da rua! Você
pode me pagar um jantar! — Seu traseiro balançava de forma tentadora
enquanto desaparecia no banheiro, fechando a porta. Girou a torneira e,
aparentemente antes de começar a se lavar, abriu a porta e esticou o pescoço o
bastante para dizer: — E então poderemos voltar e tentar de novo.
O jovem pregador ficou mudo. Rolou de costas e encarou o teto: o padrão
aleatório das rachaduras entrecruzadas ali era enigmaticamente simbólico de sua
existência inteira naquele momento crítico. Suspirou pesadamente. Afinal, a
possibilidade de que a equipe do noticiário descobrisse seu caso não era a pior
coisa que poderia acontecer com ele.
Agora, a pior coisa seria se descobrissem que ele havia brochado.
Nesse caso, o dano a suas ambições políticas seria incalculável. O povo
norte-americano estaria disposto a perdoar qualquer quantidade de pecados de
um candidato a presidente, mas esperava que os pecadores fossem, ao menos,
bons de pecado.
— Você tem um par de mãos ótimo, sabe? — Belinda May gritou do
banheiro.
Sensacional, pensou Leo Barnett, agarrado ao precipício do desespero com
as forças se esvaindo. Adeus, Casa Branca; adeus, Paraíso.
II
Naquela noite, ele sentia a cidade dentro de si. Sentia o aço e o cimento, o tijolo e
a pedra, o mármore e o vidro; sentia os órgãos tocando vários prédios e lugares
do Bairro dos Curingas, enquanto seus átomos eram ativados (e desativados) no
caminho de ida (e volta) através dos planos da realidade. Suas moléculas
roçavam as nuvens que se arrastavam em direção à cidade como uma onda de
algodão preta que se aproximava; misturavam-se com o ar impregnado de
umidade e a promessa de ainda mais umidade por vir, tremendo ao vibrar do
trovão distante. Naquela noite, ele se sentiu inexoravelmente ligado ao passado e
ao futuro do Bairro dos Curingas: a tempestade vindoura não seria diferente da
última, e seria exatamente igual à seguinte. Como o ferro e o cimento eram
constantes, o tijolo e a pedra para sempre, e o mármore e o vidro imortais.
Enquanto a cidade permanecesse assim, por mais delicada que fosse, ele
também permaneceria.
Seu nome era Quasim. Já tivera outro, mas tudo que conseguia se lembrar
de seu eu pré-vírus era que tinha sido especialista em explosivos. Atualmente,
trabalhava como zelador da Igreja de Nossa Senhora das Dores Perpétuas, e o
Padre Lula, sempre que podia, gostava de falar sobre ele: “A perda do esquadrão
antibombas foi uma vitória para o esquadrão de Deus”.
Em geral, tudo de que Quasim conseguia se lembrar era daqueles fatos
crus, pois os átomos de seu cérebro, como os do restante do seu corpo,
apareciam e desapareciam da realidade o tempo todo, aleatoriamente, elevando-
se a reinos extradimensionais e voltando de uma só vez. Essa característica tinha
o efeito de torná-lo mais que um gênio e menos que um idiota. Na maioria dos
dias, Quasim considerava uma vitória ficar sem se despedaçar.
Mas, naquela noite, manter aquele modesto objetivo se provaria mais difícil
que de costume. O sangue e o trovão estavam no ar. Quasim iria à Fronteira.
Quando chegou à porta no topo das escadas que levavam ao telhado do
humilde prédio onde vivia, partes do seu cérebro vislumbraram o futuro
imediato. Já sentindo o ar frio da noite, enxergou flashes distantes de raios, sentiu
o saibro do telhado estalar sob as solas dos tênis e viu uma velha mendiga, uma
curinga, dormindo junto a um duto de ar quente, com os pertences ao lado,
dentro de um carrinho que havia empurrado até a escada de incêndio.
A interseção entre presente e futuro tornou-se mais vívida e forte no instante
em que ele tocou a maçaneta, e ainda mais potente quando a girou. Quasim já
havia se acostumado a esse tipo de profecia menor. Para ele, diferentes níveis de
tempo se chocavam continuamente como címbalos discordantes. Muito tempo
atrás, ele aceitara a única conclusão possível para viver nesse mundo mental: a
realidade era composta apenas de fragmentos de um sonho estilhaçado antes da
aurora da existência.
Futuro e presente fundiram-se suavemente quando ele atravessou a porta. O
brilho dos raios, o chão de saibro e a velha dormindo estavam lá, porque ele sabia
que estariam. O que Quasim não tinha previsto foi o ranger das dobradiças
enferrujadas da porta — que rascavam como uma serra cortando os pregos
sobre o zumbir do tráfego na rua — acordando a velha de seu sono inquieto. Ela
tinha uma pele amarronzada e escamosa, e o rosto de um rato sem pelos. Os
lábios retraíram-se e expuseram presas brancas e afiadas.
— Quem diabos é você? — perguntou com falsa ousadia.
Ele a ignorou. Sendo um homem corcunda com os quadris pensos para o
lado esquerdo, ele arrastou os pés até o peitoril — com a graça eficiente de um
bailarino permanentemente concentrado numa piada doentia e satírica.
Sem hesitar, Quasim atirou-se.
A velha, acreditando erroneamente que ele estava se suicidando, gritou. Mas
Quasim ignorou o grito. Estava ocupado demais fazendo o que sempre fazia após
pular de um prédio: estar onde desejava estar.
O tempo e o espaço dobraram-se ao seu redor. No instante seguinte, seu
intelecto rapidamente enfraquecido lutou para manter sua autoimagem. Durante
um nanossegundo duradouro, ele quase se perdeu na fluidez do cosmos. Porém,
se manteve e, quando aquele momento terminou, já estava em um beco da
Fronteira.
Agora, Quasim encontrava-se um instante mais próximo do trovão, um
passo mais perto do sangue — um evento mais perto da escuridão final.
III
Aquela era a noite da grande prova de fogo de Vito. O Homem nunca teria
instruído que ele participasse dessa pequena excursão à Fronteira se Vito já não
tivesse demonstrado sua capacidade de lidar com responsabilidades. Claro que
isso também significava que Vito era um pouquinho dispensável, mas tudo bem,
já era esperado. É preciso assumir riscos quando se deseja crescer na Família
Calvino.
E, nos últimos tempos, muitas vagas se abriram na hierarquia da família.
Vito, um jovenzinho ambicioso, esperava sobreviver o bastante para galgar
alguns degraus, o que seria suficiente para fazer outra pessoa assumir os riscos
mais óbvios.
Infelizmente, uma espécie de trégua parecia provável, se fosse mesmo
verdade a fofoca que ouviu de alguns garotos enquanto estava encerando a
limusine do Homem. Estava claro que ele planejava discutir alguns negócios
importantes com um dos bambambãs dos curingas, para controlar as baixas que
haviam dizimado as Cinco Famílias nos últimos tempos.
Um curinga chamado Vermis, sim, esse é o nome, pensou Vito, tenso,
enquanto caminhava por uma calçada no meio da Fronteira, misturando-se a
uma enxurrada de turistas e curingas e, talvez, até mesmo alguns ases. Ele
examinou a rua em busca de possíveis problemas. Não era seu trabalho
caminhar até a recepção daquela espelunca barata e pegar a chave do quarto
onde o Homem e o curinga combinaram de se encontrar, mas não conseguiu
evitar a esperança de perceber algo significativo na área de segurança, para que
o Homem e os rapazes pudessem considerá-lo um pouco menos dispensável.
No entanto, ao entrar na recepção, Vito sentiu-se como um urso cego
caminhando em um acampamento cheio de caçadores. Tentando manter a
postura ereta e a mandíbula encaixada, do modo como ele via os rapazes
fazerem ao apertar algum devedor, foi até o balcão de reservas e bateu nele com
a palma da mão, na esperança de impor-se.
— Estou aqui em nome de um dos, hum, seus clientes mais importantes —
ele disse com um tremor infeliz na voz.
O atendente, um velho fraco de cabelos brancos e usando um tapa-olho
preto, provavelmente um curinga se passando por limpo, mal ergueu os olhos da
revista feminina que estava lendo. A contracapa anunciava algum artigo de
fetiche curinga e, na imagem desfocada, um cara musculoso estava sentado
sobre uma criatura de olhar sensual, mas que, na verdade, lembrava uma bola
gigante de sorvete de baunilha — com braços e pernas magros e mãos e pés
pequenos. Indiferente, ele virou a página.
Vito pigarreou.
O atendente fez o mesmo. Depois de uma longa pausa, finalmente ergueu
os olhos e disse:
— Temos muitos clientes importantes, rapaz. Qual deles você representa?
— Aquele para o qual o senhor deve muitos favores.
As palavras mal tinham saído da boca de Vito quando o velho saltou da
cadeira, pegou uma chave do armário, correu até o balcão e estendeu-a para o
garoto, dizendo:
— Tudo já foi providenciado, senhor. Espero que as acomodações sejam do
seu agrado.
— Não é a minha opinião que conta — Vito respondeu, pegando a chave. —
Preste atenção, do contrário essas páginas vão ficar grudadas — acrescentou,
virando-se para a saída. Por um momento, ele se perguntou se deveria verificar
o quarto, mas depois se lembrou de que suas instruções foram muito sucintas e
diretas. Vá até a recepção e traga a chave para cá. Vito já havia aprendido,
observando alguns camaradas aprenderem do modo mais difícil, que os rapazes
não gostam muito de iniciativas.
Então, ele saiu no ar frio e abaixou a cabeça como se estivesse caminhando
contra um vento forte, embora mal soprasse uma brisa, e sua postura fizesse seus
cabelos pretos e oleosos caírem nos olhos. Sua confiança de que as coisas sairiam
do seu jeito naquela noite, com base em como tinham sido até aquele momento,
foi quase imediatamente refutada pela presença, em todos os lugares, de homens
que ele conhecia — dos dois lados da rua, em pé, sentados em mesas de
restaurantes de junk food ou em carros estacionados. Em geral, o único momento
em que os membros da família e os capangas se reuniam na mesma área era
durante um funeral. Naquela hora, porém, em vez de se mostrarem em suas
roupas de luto, estavam tentando se misturar à multidão. Vito não reconheceu
algumas das pessoas que os acompanhavam, mas algo em sua confiança exalava
um ar de crueldade represada que fazia até mesmo os rapazes mais durões e
grosseirões parecerem um pouco inquietos.
A mente de Vito estava acelerada por uma centena de perguntas. Ele
caminhou apressadamente até a esquina, onde Ralphy o esperava. Ralphy era
um dos assistentes de maior confiança do Homem. Corriam rumores de que era
um matador de aluguel tão talentoso que certa vez acertou um candidato a
prefeito a mais de duzentos metros de distância, e desapareceu na multidão bem
na frente das câmeras de televisão. Vito não duvidava que fosse possível. Para
ele, Ralphy era mais uma força do que um ser humano. Então, quando Vito
parou a uma distância respeitosa dele, ergueu seus olhos para aqueles olhos
castanhos frios sobre as bochechas marcadas pela varíola e viu um homem que o
defenestraria com a tranquilidade com que se pisa em um inseto. Vito estendeu a
chave.
— Aqui está! — ele proclamou, talvez um pouco alto demais.
— Bom — Ralphy disse em sua voz rouca, sem pegar a chave. — Verificou
o quarto?
— Não. Não foi o ordenado.
— Certo. Cheque agora.
— O que está havendo? — Vito deixou escapar. — Ouvi dizer que era para
ser uma conferência de paz.
— Você não ouviu nada. Estamos apenas tomando precauções, e você se
ofereceu para o serviço.
— O que devo procurar?
— Vai saber se encontrar. Agora, vai.
Vito foi. Não sabia se devia ficar contente ou preocupado pelo fato de terem
confiado a ele essa parte da operação. Seus pensamentos foram interrompidos
quando, por acidente, tropeçou num curinga corcunda com a perna defeituosa se
arrastando para fora de um beco.
— Ei, presta atenção! — ele bronqueou, empurrando o homem para longe.
O curinga parou, babando, assentindo com temor para Vito. Algo reluziu em
seus olhos estúpidos, apenas por um segundo, enquanto abria e fechava os
punhos. Durante aquele instante, o curinga se empertigou, e Vito teve a nítida
impressão de que ele poderia esmagar granito com aquele punho gigantesco.
Em seguida, o homem desinflou, outro fio de baba pingou de sua boca, e ele
se arrastou de costas até voltar ao beco e tropeçar numa lata de lixo. Então,
ignorou Vito e fuçou na lata. Encontrou um frango seco e comido pela metade;
deu uma bela mordida nele com seus dentes brancos e retos, mastigando
furiosamente.
Enojado, Vito virou as costas e apressou-se até o hotel. Somente quando
empurrou a porta giratória que levava até a recepção se deu conta de que as
roupas do curinga — camisa de flanela xadrez e jeans azuis — estavam muito
limpas e alinhadas. Não conseguia se lembrar de ter visto um mendigo, reduzido
a procurar comida em latas de lixo, com remendos novos nos joelhos das calças.
Vito tirou a imagem do homem da mente com um erguer de ombros.
Passou pelo balcão, onde o atendente ainda estava com o nariz enterrado na
revista, e, pensando que talvez pudesse sofrer uma emboscada no elevador,
resolveu subir os seis lances de escada até o terceiro andar. O corredor era
escuro e deprimente, e suas lâmpadas fluorescentes lançavam uma espécie de
neblina que mal se refletia nas paredes encardidas, derramando sobre elas uma
claridade desagradável.
Ele encontrou o quarto. Antes de entrar, olhou o corredor de cima a baixo e
constatou que não havia ninguém ali. Conseguia ouvir os sons abafados de alguns
televisores atravessando as portas, bem como o que pareciam ser sons de
encanamento funcionando no quarto do outro lado do corredor. Tudo aquilo eram
atividades bem normais em um hotel, na opinião de Vito, mas, mesmo assim, ele
se sentia incomodado por dentro, como sempre se sentia quando acreditava estar
sendo observado. Com os dedos trêmulos, inseriu a chave na fechadura e abriu a
porta.
Vito se deparou com um horrendo filho da mãe. O homem praticamente
não tinha queixo, duas fendas nasais em vez de nariz, e uma língua bífida que
entrava e saía da boca. O modo como o curinga esgarçou os dentes em um
sorriso para Vito, com aqueles olhos amarelos de predador, era definitivamente
maléfico. Ele se deliciou, pois sabia que já havia apavorado Vito até o fundo do
coração.
— Vejo que oss Calvino esstão mandando garotinhosss para fazer ssseu
trabalho agora. Diga ao sseu chefe que ele pode entrar. Estou ssozinho aqui.
IV
— Talvez eu devesse tentar tirar suas meias da próxima vez — Belinda May
disse, travessa, enquanto o jovem pregador fechava a porta. Ele se encolheu com
a pontada brincalhona de suas palavras quando girou a maçaneta para garantir
que o quarto estava trancado. Ela deu uma risadinha e passou os braços ao redor
dele.
— Calma, reverendo. Você se leva a sério demais. — Deu-lhe um apertão
que fez seu coração palpitar, e ele arriscou um sorriso. — Lembre-se do que
Norman Mailer disse — ela sussurrou, sedutora, nos ouvidos dele: — “Às vezes, o
desejo não é suficiente”. Isso não faz de você menor que homem nenhum.
— Não leio Mailer — ele retrucou quando caminharam até o elevador.
— Os livros dele são muito sórdidos para você?
— Foi o que eu ouvi.
— Ele escreve apenas sobre a vida. E vida é o que está acontecendo
conosco agora.
— A Bíblia me diz tudo que preciso saber sobre a vida.
— Grande bosta.
Chocado com o despreocupado sacrilégio da mulher, ele abriu a boca para
retrucar, mas ela continuou antes que ele pudesse soltar qualquer palavra.
— É um pouco tarde para anunciar sua inocência, Leo.
O jovem pastor suprimiu a raiva. Em geral, ele ficava irritado apenas
perante suas congregações, e não estava acostumado a receber respostas
ousadas. Além disso, não estava habituado à companhia de uma mulher, o que
significava que sua compreensão dos dilemas morais de amor, vida e busca da
felicidade estavam acima de qualquer questionamento. Porém, naquele caso, foi
forçado a admitir, embora não em voz alta para Belinda May, que estava errado,
porque na verdade lera as obras de Norman Mailer — em especial A canção do
carrasco, um exaustivo estudo de caso de um jovem ás atormentado que
executara nove pessoas inocentes ao transformá-las em estátuas de sal. O jovem
pregador ainda tinha uma cópia da versão em brochura, escondida em uma
gaveta no escritório de sua casa a sudoeste da Virgínia, onde era improvável que
alguém a encontrasse. Muitos outros livros de conteúdo moral duvidoso estavam
escondidos na mesma gaveta, e mais outros tantos, a salvo da curiosidade de seus
colegas mais próximos, do mesmo modo que outros pregadores evangélicos
talvez escondessem o conteúdo de seus armários de bebida.
Então, o que mais ele poderia fazer, a não ser deixar que Belinda May
arrancasse o melhor dele? Ele estava satisfeito com a perspectiva de conseguir a
melhor parte do corpo dela mais tarde. Além disso, não estava muito interessado
em sua opinião.
Ela lhe deu outro apertão enquanto esperavam o elevador chegar. A
excitação foi duas vezes maior que antes, porque dessa vez foi no traseiro.
— Você tem uma bundinha linda para ser candidato a presidente — ela
disse. — A maioria hoje parece um bando de cachorros vadios.
Seus olhos desconfiados lançaram-se para a frente e para trás.
— Não se preocupe — ela completou com um beliscão. — Não tem
ninguém aqui.
As portas do elevador abriram-se, e eles se depararam com quatro homens
de expressão impassível e olhos de aço. O jovem pregador sentiu os joelhos
cederem, e o apertão de Belinda May dessa vez transmitiu seu medo e
necessidade de proteção, um sinal direto e veemente.
Os dois homens do meio eram o foco da atenção do jovem pregador. Um
deles era baixo e corpulento, de rosto vermelho e lábios grossos, com uma longa
mecha de cabelos brancos penteados no topo da cabeça, em uma tentativa
fracassada de esconder a careca que brilhava sob as luzes. Seus olhos grandes
indicavam que saltariam se alguém lhe desse um tapa muito forte nas costas. Os
dedos eram grossos e rechonchudos. Apesar do terno preto bem cortado, com
um cravo vermelho na lapela, uma bela camisa branca e um colete cinza, seu
gosto por roupas era no mínimo questionável, graças à gravata de tom vermelho
fluorescente. O homem baforava serenamente um grande charuto Havana. O
tabaco na ponta havia escurecido com a saliva, fazendo lembrar um cocô seco.
Ele soprou a fumaça do charuto no rosto do jovem pregador.
O ato foi deliberadamente desrespeitoso, e o pregador talvez tivesse reagido,
não fosse pelos olhos castanhos e frios do homem alto e marcado de varíola ao
lado do gorducho. Esse tinha lábios finos e pálidos, que pareciam cicatrizes. O
cabelo castanho estava tão grudado que o jovem pregador imaginou-o dormindo
com uma meia calça na cabeça. Usava um sobretudo bege, com uma saliência
clara no bolso direito.
Dois homens musculosos os ladeavam. Usavam as abas dos chapéus viradas
para baixo, o que escondia a maior parte do rosto. Um tinha os braços cruzados,
enquanto o outro, o jovem pregador demorou a perceber, acenava para o casal
abrir passagem.
Os dois obedeceram. Os quatro homens saíram e atravessaram o corredor
sem olhar para trás. O jovem pregador não conseguia tirar os olhos deles,
mesmo quando Belinda May correu para dentro do elevador.
— Leo, venha! — ela sussurrou, segurando as portas abertas com o corpo.
O jovem pregador apressou-se a entrar.
— Quem era aquele?
— Agora não! — Apenas quando o elevador começou a descer Belinda
May acrescentou: — Era o chefe da Família Calvino. Eu o vi uma vez no
noticiário!
— O que é a Família Calvino?
— A Máfia.
— Ah, entendo. Não temos máfia de onde eu venho.
— A máfia é o que ela quiser ser. Há cinco famílias na cidade, embora só
tenha três cabeças no momento. Ou talvez duas. Têm acontecido muitos
assassinatos nas gangues nos últimos tempos.
— Se aquele cara é um bambambã, o que está fazendo aqui?
— Pode apostar que são negócios. O número uno dos Calvino
provavelmente vai mandar incinerar os sapatos quando sair daqui. — As portas
do elevador abriram-se na recepção. Sem se dar conta de que várias pessoas,
inclusive um curinga grandalhão com cara de rinoceronte, estavam em pé na
entrada, Belinda May deu o braço para o jovem pregador e disse: — Por acaso
você trouxe uma caixa de preservativos?
Ele sentiu o rosto ferver. Mas não viu nenhum indício de que alguma
daquelas pessoas o reconheceu. Bom, ao menos não ouviu seu nome sendo
pronunciado ou o clique de alguma câmera. Quando passaram pelas portas
giratórias, ele percebeu que seu alívio por ter saído sem ser reconhecido podia
ser ilusório. Se estivesse sendo seguido por um jornalista da imprensa marrom,
ele nunca saberia até ver a prova nos noticiários noturnos, ou ter lido na primeira
página dos jornais baratos.
— Belinda... Por que você disse aquilo...? — Ele questionou.
— O quê? Sobre os preservativos? — Ela perguntou com inocência, pegando
um cigarro e um isqueiro da carteira. — Parece uma questão razoável. Acho
muito importante que pessoas sexualmente ativas pratiquem sexo seguro, não
acha?
— Sim, mas não na frente de todas aquelas pessoas!
Ela parou na ponta da calçada, virou as costas para ele, protegeu com a
mão o cigarro na boca e o acendeu. Quando se voltou, soltando fumaça, ela
disse:
— Quem se importa? Além disso — acrescentou com um sorriso travesso
—, eu achei que você aprovaria meu otimismo inerente.
O jovem pregador cobriu o rosto com uma das mãos e fechou a outra com
força. Sentiu como se os olhos de cada pessoa na rua estivessem sobre ele,
mesmo que uma avaliação casual da situação demonstrasse que era
simplesmente paranoia.
— Onde você quer comer? — ele perguntou.
Belinda May deu um soquinho brincalhão nas costelas dele.
— Calma aí, reverendo! Eu só estava brincando. Você se preocupa demais.
Continue assim e vamos ficar naquele quarto por semanas. Não sei se tenho
muito crédito no meu cartão.
— Ah, não se preocupe com isso. Vou ver se a igreja faz o reembolso de
alguma forma. Bem, onde quer comer?
— Aquele lugar parece bom — ela disse, apontando para o outro lado da
rua. — Rudy ’s Kosher Sushi.
— Ótimo. — Ele a tomou pelo cotovelo e caminharam até a esquina. Olhou
para os dois lados quando o sinal ficou verde, não apenas para ter certeza de que
todos os automóveis estavam parando, algo que nenhum habitante da cidade
grande considerava natural, mas para ver se por perto havia alguém cuja
presença o preocuparia. A equipe de televisão estava abordando uma jovem no
fim do quarteirão seguinte, e só. Por fim, sentiu a certeza razoável de que estaria
seguro sentado a uma mesa ao fundo de um restaurante, se a equipe voltasse por
aquele caminho.
Antes que ele saísse do meio-fio, alguém trombou com ele. Em uma noite
comum, o jovem pregador teria dado a outra face, mas, normalmente, não se
sentia tão frustrado. Ele gritou: “Ei! Preste atenção por onde anda!”, e em
seguida percebeu, horrorizado, que suas palavras grosseiras tinham sido
proferidas para um curinga.
Um curinga obviamente retardado, corcunda e de olhos turvos. Tinha
cabelos ruivos encaracolados e usava uma camisa xadrez recém-passada e jeans
azuis.
— Desculpe — ele disse, quase enfiando a ponta do indicador no nariz e, em
seguida, como se pensasse melhor, apenas passou o punho sobre ele.
O jovem pregador, por alguma razão, suspeitou que o gesto não era
espontâneo, e teve certeza disso quando o curinga curvou-se, meio endurecido, e
falou:
— Eu era apenas um menino preocupado... Perdido no meu mundo, eu
acho. O senhor me perdoa, não é?
Em seguida, saiu da calçada, como se tivesse mudado completamente de
ideia sobre a direção para a qual seguia. Um pingo de baba caiu do seu queixo,
quase como um reflexo tardio.
Com olhos arregalados e confusos, o jovem pregador deu alguns passos
atrás do homem. Belinda May, exigente, o deteve:
— Leo, onde você acha que está indo?
— Hum, atrás dele, claro.
— Por quê?
Ele pensou sobre a questão durante um momento especialmente
desconfortável.
— Pensei que poderia lhe contar sobre a missão. Ver se ele não precisava
de ajuda... Parecia precisar.
— Belos sentimentos, mas você não pode. Está anônimo aqui, lembra?
— Lembro. Certo. — De qualquer forma, não conseguia mais ver a criatura
miserável, que já havia desaparecido na multidão.
— Vamos encher a barriga de comida — ela disse, novamente pegando-o
pelo cotovelo. Eles atravessaram o cruzamento, que estava parado.
O jovem pregador ainda estava olhando para trás, buscando um vislumbre
do corcunda, quando de repente eles pararam. Ele se virou para ver um
microfone apontado para seu rosto. A equipe do noticiário bloqueava seu
caminho.
— Reverendo Leo Barnett — disse o repórter, um homem alinhado, os
cabelos pretos e encaracolados, usando óculos e um terno azul de três peças —, o
que o senhor, com sua posição bem conhecida sobre os direitos dos curingas, está
fazendo aqui, na Fronteira?
O jovem pregador sentiu a vida passando-lhe diante dos olhos. Ele
conseguiu abrir um sorriso amarelo.
— Ah, minha companheira e eu estamos simplesmente procurando um
lugar para comer.
— Tem alguma declaração a fazer para as páginas sociais? — perguntou o
astuto repórter.
Os cantos da boca do jovem pregador inverteram a posição.
— Tenho como política nunca responder perguntas de natureza pessoal. Esta
jovem está me fazendo companhia esta noite. Ela trabalha na nova missão que
minha igreja abriu no Bairro dos Curingas e sugeriu que experimentássemos um
pouco da cozinha fina que a Fronteira tem a oferecer.
— Alguns comentaristas acham estranho, peculiar até, que um homem que
se opôs aos direitos dos curingas de forma tão veemente no púlpito esteja tão
preocupado com as provações diárias deles. Por que o senhor abriu essa missão?
O jovem pregador não gostou da atitude do repórter.
— Tinha uma promessa a cumprir, foi o que fiz — ele disse, seco, tentando
insinuar que a entrevista estava terminada. O que era, na verdade, precisamente
o oposto de sua verdadeira intenção.
— E qual foi essa promessa? Quem fez o senhor prometer? Sua
congregação?
O repórter mordera a isca. Agora, a maior dificuldade do jovem pregador
era manter uma expressão séria. As informações na sua mente não haviam sido
declaradas antes, e seus instintos acreditavam que aquelas eram as circunstâncias
certas para fazê-lo.
— Bem, se você insiste.
— Há muita especulação sobre a questão, senhor, e acho que o povo tem o
direito de saber.
— Bem, conheci um jovem que havia sido infectado pelo vírus carta
selvagem, e por isso teve muitos problemas. Ele pediu para me ver, e eu vim.
Oramos juntos e ele me disse que eu não poderia fazer nada por ele, mas me fez
prometer que eu ajudaria o máximo de curingas que pudesse, então talvez eles
não se envolvessem no mesmo tipo de problemas que ele. Eu fiquei muito
tocado, e por isso prometi. Poucas horas depois, ele foi eletrocutado. Eu assisti
quando vinte mil volts de força o atingiram, e sabia que precisava manter a
promessa, independentemente do que as pessoas pensariam.
— Ele foi executado? — O repórter perguntou de um jeito estúpido.
— Sim, era um assassino de primeiro grau. Transformou algumas pessoas
em pilares de sal.
— O senhor fez essa promessa a Gary Gilmore? — O repórter perguntou,
incrédulo, o rosto pálido.
— Exatamente. Embora seja possível que ele não fosse um curinga, talvez
algumas pessoas o chamassem de ás, ou um indivíduo com alguns dos poderes
que se esperam de um ás. Não sei, de verdade. Estou descobrindo essas coisas
apenas agora.
— Entendo. E a abertura de uma missão no Bairro dos Curingas teve algum
efeito na sua posição quanto aos direitos deles?
— De forma alguma. O homem comum ainda precisa ser protegido, mas
eu sempre enfatizei que precisamos de compaixão para lidar com as vítimas do
vírus.
— Entendo. — O rosto do repórter continuou pálido, enquanto o sonoplasta e
o operador da minicâmera sorriam, complacentes. Evidentemente eles
perceberam, assim como o jovem pregador, que faltava ao repórter a rapidez de
raciocínio necessária para fazer uma pergunta lógica na sequência.
Mas, como o jovem pregador estava se sentindo razoavelmente compassivo
— bem como confiante de que tinha acabado de conseguir sua “boquinha” de
sessenta segundos no noticiário —, resolveu dar uma trégua para o repórter. Mas,
uma trégua leve.
— Minha companheira e eu precisamos comer alguma coisa, mas acho que
temos tempo para mais uma pergunta.
— Sim, há mais uma coisa que certamente nossos espectadores gostariam
de saber. Afinal, o senhor não fez segredo quanto às suas ambições presidenciais.
— É verdade, mas eu não tenho nada mais a acrescentar sobre o assunto
agora.
— Só responda esta, senhor. O senhor acabou de fazer 35 anos, a idade
mínima para o cargo, mas alguns oponentes em potencial declararam que não
seria possível um homem com 35 ter a experiência de vida necessária para o
posto. Como o senhor responde a essas declarações?
— Jesus tinha apenas 33 quando mudou o mundo para todo o sempre.
Certamente, um homem que chegou à vasta idade de 35 pode fazer algo de bom.
Agora, se me dão licença... — Pegando Belinda May pelo braço, ele passou pelo
repórter e pela equipe e entrou no restaurante.
— Desculpe, Leo, eu não sabia... — ela disse.
— Tudo bem. Acho que cuidei bem deles e, além disso, eu já queria ter
contado aquela história há um tempo.
— Você encontrou mesmo Gary Gilmore?
— Sim. Era um segredo bem guardado. Não havia mesmo necessidade de
revelá-lo antes, embora pudesse ter feito bem para a área de relações públicas
da missão.
— Então, talvez você tenha encontrado Mailer. Ele disse que não foi capaz
de confirmar todas as identidades das pessoas que viram Gilmore no fim.
— Por favor, vamos manter alguns segredos. Do contrário, o que teremos
para descobrir um do outro amanhã?
— Gostariam de uma mesa para dois? — perguntou o maître, um homem
de fraque e cara de peixe usando um capacete com água para respirar. As
palavras do pequeno alto-falante no capacete eram um gargarejo sinistro.
— Sim, no fundo, por favor — disse o jovem pregador. Quando já estavam
sozinhos no reservado, Belinda May acendeu outro cigarro e disse:
— Se aqueles repórteres descobrirem sobre a gente, ajudaria se
garantíssemos para eles que fazemos sexo apenas com a missão de procriar?
Quasim não temia a morte, e a morte certamente não o temia. Ele vivia com um
pequeno pedaço dela em sua alma todos os dias, um pouco de terror e beleza, de
sangue e trovão. Fragmentos desse falecer vindouro chocavam-se
perpetuamente com as imagens efêmeras de seu passado pré-viral dentro do
cérebro.
O quanto esses fragmentos eram distantes? Quasim tinha a sensação de que
o futuro talvez estivesse mais perto do que ele esperava.
Seguiu arrastando os pés até uma banca de jornal e parou diante de uma
fileira de revistas para meninas. Pensou como havia algo perturbadoramente
familiar no rosto do homem no qual havia tropeçado, algo que lhe escapava
enquanto partes de seu cérebro se voltavam para outra dimensão. Quasim teria
largado tudo até se lembrar, mas naquele momento descobriu que era mais
importante lembrar primeiro por que tinha vindo à Fronteira naquela noite.
De repente, sua mão ficou muito fria. Ele a olhou: tinha ido para outro lugar,
e o pulso diminuía aos poucos até ficar um coto, como se a mão tivesse ficado
transparente. Sabia que ainda estava presa ao braço, do contrário ele não sentiria
a dor intensa como quando uma criatura extradimensional lhe comera um dedão
desgarrado. O frio extremo adormeceu seu braço até o ombro, mas não havia
nada que ele pudesse fazer, exceto sofrer até a mão voltar. O que aconteceria
logo. Provavelmente.
Ainda assim, ele não conseguiu deixar de pensar em como Cristo visitou
uma sinagoga e curou um homem que tinha a mão atrofiada.
Algo em seu coração, parecido com fé, lhe dizia que o Padre Lula o enviara
à Fronteira naquela noite para uma missão. Era discutível se a ideia da missão
havia ou não sido originada pela mente fervorosa do padre — muitos estilos de
vida exigiam a ajuda da Igreja de Nossa Senhora das Dores Perpétuas, e o
sacerdote ficava muito feliz ao fornecê-la quando via que só o bem poderia
resultar da ajuda.
Quasim subiu e desceu a rua, observando a cena. Sua suspeita aumentou
quando viu uns poucos homens sentados em mesas na calçada. As roupas
amarrotadas de um homem na banca de jornal, ele lembrou, indicavam que
provavelmente não era o tipo que passava muito tempo olhando revistas de
economia. Finalmente, um número incomum de homens em alerta e de rosto
carrancudo estavam sentados em carros, observando, esperando. Vários
pequenos pedaços de morte manifestaram-se no cérebro de Quasim — morte
que apontava, graças a Deus, para eles.
Por um momento, ele viu as ruas manchadas de sangue. Mas uma inspeção
mais próxima do ambiente indicou que fora apenas uma ilusão de ótica causada
pelo reflexo do neon vermelho na água parada em alguns buracos grandes e
rasos.
No entanto, a revelação não podia explicar o cheiro de sangue e o medo que
permeava o ar, como uma lembrança do que ainda não aconteceu.
Quando partes importantes dos músculos de sua coxa direita desapareceram
para outro plano de existência, onde o ar tinha uma leve acidez, Quasim seguiu
até uma esquina. Lá, fingindo ser um pedinte, esperaria o sangue e o medo se
tornarem reais.
A lembrança do trovão ecoou em seus ouvidos.
VI
VII
— O que seu pessoal quer? — o Homem perguntou com raiva a Vermis depois
que Vito saiu. — Nós dois somos empresários. O que podemos fazer
razoavelmente para que consigamos viver em harmonia?
Vermis sibilou.
— Sssim, essa é a quessstão. A organização que eu represento, como a
organização que você representa, é muito grande. Já tem influência
consssiderável. Então, claro, ela quer maisss.
O Homem soltou fumaça do charuto.
— Sua ambição não me escapou — ele disse com sarcasmo.
Vermis sorriu.
— Não achei que essscaparia. Estou apenas enfatizzzando que, como o
sssenhor, não posssso fazer promesssas pelos outrosss.
— Ah, mas eu posso — respondeu o Homem, fazendo um gesto sutil que
impediu Ralphy de dar “o sinal” para Mike e Frank. — E aposto que o senhor
também, do contrário não teria se dado ao trabalho de vir a essa reunião conosco,
sozinho. Não somos ingênuos, sr. Vermis. O senhor deve ter alguma liberdade
para barganhar, ou não haveria motivo para estar tão, tão sozinho...
— O senhor está sozinho, não é? — Ralphy perguntou, ignorando
completamente o olhar enfurecido que o Homem lhe lançou enquanto passava
por Vermis para chegar até a janela e espiar pela cortina, olhando para a rua.
— Claro que essstou — Vermis retrucou.
De repente, eles ouviram os sons de dois homens brigando no corredor. O
tom rapidamente tornou-se violento. Perceberam quando um punho acertou um
queixo. Alguém grunhiu e bateu com força contra a parede, tum! O impacto fez
o chão tremer. Um dos homens rosnou um xingamento e, em seguida, um novo
baque, tum!, contra a outra parede, duas vezes mais alto que o anterior.
Ralphy afastou-se da janela e virou-se para Mike e Frank.
— Vão olhar. — O barulho continuava com força total.
Os dois, obedecendo, saíram do quarto. Ralphy seguiu-os até a porta para
garantir que estava trancada. Ouviram Mike dizer algo, em seguida o corredor
ficou em silêncio.
— O senhor ainda não respondeu à minha pergunta — o Homem disse.
— Que pergunta? — Vermis retrucou, erguendo os olhos para Ralphy
enquanto o executor voltava à posição na janela.
— O que podemos fazer para viver em harmonia?
— Ah, eu acho que podemosss chegar a uma resssposta razzzoável.
De repente, bateram à porta.
— O que foi? — Ralphy gritou.
— Melhor você vir até aqui. — Era Frank.
— Bom — disse o Homem, respondendo à observação de Vermis. — A
Família Calvino quer ser razoável.
Vermis chiou, a língua saindo e entrando da boca.
Ralphy abriu a porta e gritou:
— O que foi, pelo amor de Deus?!
A resposta foi um tiro. A bala abriu um buraco do tamanho de uma moeda
de um dólar nas costas de Ralphy, espalhando sangue vermelho brilhante pelo
quarto. Ele morreu antes de chegar ao chão, se contorcendo, os olhos encarando
o teto, sem expressão.
Em pé na porta estavam dois brutamontes vestindo parcas. Eles usavam
máscaras de plástico que, mesmo em seu estado de surpresa e choque, o
Homem achou estranhas, perturbadoramente familiares. Frank estava entre eles,
com uma arma apontada para sua cabeça.
Outro tiro, e uma erupção de sangue e cérebro espirrou de sua têmpora e se
espalhou no chão. Frank caiu encolhido.
— Mike? — disse o Homem, com suavidade. Fazia muitos anos desde que
havia testemunhado violência pessoalmente. Ele não parou porque estivesse com
medo ou por ter amolecido com a idade, mas porque seus advogados
aconselharam que conduzisse seus negócios dessa forma. Então, sua reação foi
um pouco lenta — um pouco lenta demais para perceber que agora estava
totalmente sozinho.
Quando ele se levantou com a intenção de chamar seus homens na rua,
Vermis já o havia agarrado. Ele lutou, mas o outro era muito forte. O Homem
parecia uma boneca de pano nas mãos dele.
A última coisa que viu foi a boca aberta de Vermis chegando mais perto de
seu rosto. Em pânico, ele fechou os olhos e os manteve assim quando recebeu
um beijo. Tentou gritar, em seguida a inconsciência o arrebatou, quando Vermis
arrancou seus lábios e cuspiu-os no chão.
VIII
IX
XI
Agora que era tarde demais para fazer diferença, Quasim lembrou que o Padre
Lula o enviara à Fronteira para impedir que Vermis assassinasse um don da
Máfia.
Claro que nem Quasim, Lula ou a pessoa que forneceu informações sobre o
assassinato imaginou que Vermis cobriria seus rastros com um mar de sangue.
Estava se provando ser uma ideia eficaz, ainda que brutal. E, embora Quasim
soubesse que ninguém o culparia por não ter sido capaz de parar o
derramamento de sangue daquela noite, ele se odiou por não ter feito nada para
impedir todo esse sofrimento.
Ele viu tantas pessoas morrerem. Alguns detalhes se perderam quando
partes do cérebro surgiram e sumiram da realidade, mas nada podia diminuir a
noção profunda de desolamento que o dominava. A pior morte fora a do rapaz
escondido embaixo do carro. Ele assistiu às chamas o engolirem rapaz antes de o
evento realmente acontecer. Talvez fosse por isso que era tão desalentador.
Mas a noite não havia terminado ainda. Quasim vira o sangue, mas o trovão
ainda estava por vir.
Ele percebeu tarde demais os sons de sirenes se aproximando, quando
decidiu que poderia também partir com o resto dos sobreviventes. Alguns
mafiosos e Lobisomens ainda se digladiavam na rua, mas Vermis sem dúvida
havia se escafedido muito tempo antes. Quasim ainda estava visualizando onde
queria estar quando viu o Lobisomem, com uma mulher inconsciente no
tentáculo acima da cabeça, caminhando no meio da rua na direção de um grupo
de mafiosos. Estes ergueram as armas.
Quasim não precisava de sentidos precognitivos para imaginar o que
aconteceria em seguida. De alguma forma, porém, sabia que precisava salvar a
mulher.
Estava prestes a girar através do espaço quando viu o homem de rosto
familiar correndo na direção do Lobisomem e da mulher. A explosão que
reverberou na cabeça de Quasim não era exatamente a de um trovão.
XII
XIII
Naquela noite, mais de cinquenta pessoas morreram na Fronteira. Mais de uma
centena ficara seriamente ferida. Porém, a carnificina não foi a principal história
do noticiário naquela noite, nem foi a maior manchete na maioria das primeiras
capas do país. No fim das contas, a guerra de gangues já acontecia havia algum
tempo, e o fato de muitas pessoas inocentes terem sido atingidas naquele horrível
fogo cruzado era infeliz, mas não tinha realmente muitos reflexos, ao que se
sabia, interessantes para o desenvolvimento diário das notícias.
Havia um grande espaço entre Nova York e Los Angeles. Era conhecido
como zona central norte-americana, e, para as pessoas que viviam lá, a história
do momento era aquela sobre o Reverendo Leo Barnett anunciando sua
candidatura a presidente dos Estados Unidos. Ele pousou as mãos sobre o
contorno de algum pobre curinga e o trouxe de volta de uma viagem involuntária
a paragens desconhecidas. Fizera algo que ninguém havia feito antes — usando
apenas o poder de sua fé, havia curado um curinga. Tinha provado que o maior
poder da Terra era o amor de Deus e de Jesus Cristo, e havia transferido um
pouco daquele amor para o corpo de uma criatura que estava sendo poluída por
aquele obsceno vírus alienígena. Mesmo a mídia liberal, que capturara aquele
evento para que o mundo todo o visse em videoteipe, precisou admitir que o
Reverendo Leo Barnett fizera algo incrível. Talvez não o qualificasse para ser
presidente, mas certamente erguia sua cabeça para cima da manada.
Também foi de grande ajuda que, imediatamente após curar o curinga e
assistir aos paramédicos carregando-o numa maca, o Reverendo Leo Barnett não
consultou seus assessores ou esperou para ver como o incidente repercutiria nas
notícias ou como o público o receberia, e tenha simplemente caminhado até a
série de câmeras e microfones e anunciado que Deus dissera que havia chegado
o momento de ele declarar sua candidatura. Demonstrou, de forma clara e
evidente, que podia tomar uma decisão e colocá-la em prática.
Quase de imediato, a posição do Reverendo Leo Barnett nas pesquisas
tornou-se muito alta, muito respeitável. Claro que alguns eleitores ficaram um
pouco preocupados com a presença dele na Fronteira em primeiro lugar,
especialmente com relação àquele quarto de hotel no qual ele e a jovem
voluntária da missão haviam entrado, mas não era como se um deles fosse
casado ou algo assim. E houve um falatório, que não foi confirmado nem
negado, de um anúncio iminente de noivado. As mulheres do Partido Democrata,
como se revelou mais tarde, ficaram especialmente impressionadas com o fato
de que o Reverendo Leo Barnett talvez tivesse encontrado seu amor verdadeiro e
seu destino político na mesma noite. Se fosse verdade, então talvez toda aquela
carnificina não tivesse sido em vão.
III
♣ ♦ ♠ ♥
Concerto para sirene e serotonina
III
O vento vinha e ia como uma onda pesada, fazendo vibrar as janelas dos prédios
na rua, levando bolotas gélidas contra os leões de pedra que ladeavam a entrada.
Aqueles sons intensificaram-se quando a porta da Clínica do Bairro dos Curingas
foi aberta. Um homem entrou e começou a bater os pés e tirar a neve de seu
blazer azul-escuro. Não fez nenhum esforço para fechar a porta atrás de si.
Madeleine Johnson, conhecida também como Chickenfoot Lady, fazendo
plantão parcial na recepção para seu amigo Cock Robin, com quem tinha um
lance bacana rolando, tirou os olhos de suas palavras cruzadas, bateu na barbela
com o lápis e grasnou:
— Feche a maldita porta, senhor!
O homem baixou o lenço com o qual limpava o rosto e a encarou. Ela
percebeu, então, que seus olhos eram facetados. Os músculos da mandíbula
inchavam e desinchavam.
— Desculpe — ele disse, e empurrou a porta até fechá-la. Depois virou a
cabeça lentamente, parecendo examinar tudo na sala, mesmo que, com aqueles
olhos, fosse difícil dizer ao certo. Finalmente, ele disse: — Preciso falar com o
Dr. Tachy on.
— O doutor está fora da cidade — ela afirmou —, e vai ficar fora por
algum tempo. O que o senhor deseja?
— Quero que alguém me coloque para dormir — ele respondeu.
— Aqui não é uma clínica veterinária — ela disse, e se arrependeu um
momento depois quando ele avançou, pois criou uma aura estranha e começou a
emitir faíscas como um gerador de eletricidade estática. Ela duvidou que aquilo
tivesse a ver com uma atitude carinhosa, pois os dentes estavam esgarçados e ele
abria e fechava as mãos como se antecipando uma atividade vigorosa.
— É... uma... emergência — ele falou. — Meu nome é Croy d Crenson, e
provavelmente tenho um prontuário aí. Melhor encontrá-lo. Estou ficando
violento.
Ela grasnou de novo, ergueu-se num salto e partiu, deixando duas penas
pairando no ar diante dele. Ele estendeu a mão e se encostou na mesa. Em
seguida limpou a testa novamente. Seu olhar pairou sobre uma xícara de café
meio cheia ao lado do jornal dela. Ele a ergueu e tomou tudo.
Momentos depois, veio um som de estalos do corredor que ficava depois da
mesa. Um jovem loiro de olhos azuis parou no limiar e o encarou. Vestia uma
camisa polo verde e branca, um estetoscópio e um sorriso de surfista. Da cintura
para baixo ele era um pônei palomino com a cauda trançada com cuidado.
Madeleine apareceu atrás dele e sacudiu as penas.
— É ele — ela disse ao centauro. — Ele disse “violento”.
Ainda sorrindo, o jovem quadrúpede entrou na sala e estendeu a mão.
— Sou o Dr. Finn — ele disse. — Já pedi seu prontuário, senhor Crenson.
Venha comigo até o consultório e o senhor poderá me dizer o que o incomoda
enquanto esperamos.
Croy d cumprimentou-o com um aperto de mão e meneou a cabeça.
— Tem café lá atrás?
— Acho que sim. Vou mandar buscar uma xícara para o senhor.
Mais tarde, sem dizer a Croy d que ele tomava litros de café descafeinado, o Dr.
Finn continuou a falar:
— Estou com medo de dar ao senhor mais drogas além de toda a
anfetamina que o senhor tomou.
— Fiz duas promessas — Croy d disse —, que eu tentaria dormir desta vez,
que eu não resistiria. Mas, se você não me apagar logo, provavelmente eu vou
embora em vez de lidar com toda essa ansiedade. Se isso acontecer, com certeza
vou me encher de bolinhas. Então, me apague com um narcótico. Estou disposto
a arriscar.
O Dr. Finn sacudiu a crina.
— Prefiro tentar algo mais simples e muito mais seguro primeiro. O que
acha de fazermos um pouco de sincronização das ondas cerebrais e
sugestionamento?
— Não conheço o procedimento — Croy d respondeu.
— Não é traumático. Os russos o vêm experimentando há anos. Vou apenas
grudar esses pequenos clipes nas suas orelhas — ele disse, esfregando os lóbulos
com algo úmido — e enviaremos pulsos de baixa amperagem através da cabeça,
digamos, quatro hertz. O senhor nem vai sentir.
Ele ajustou um controle na caixa da qual os fios saíam.
— E agora? — Croy d perguntou.
— Feche os olhos e descanse por um minuto. Talvez tenha uma sensação de
estar flutuando.
— Tudo bem.
— Mas tem peso também. Seus braços e pernas ficam pesados.
— Estão pesados — Croy d reconheceu.
— Ficará difícil pensar em algo específico. Sua mente apenas vai flutuar.
— Estou flutuando — Croy d concordou.
— E deve ser muito gostoso. Provavelmente vá se sentir melhor do que o
senhor se sentiu o dia todo, finalmente terá a chance de descansar. Respire
lentamente e relaxe. O senhor está quase lá. Que ótimo.
Croy d disse algo, mas era um murmúrio indistinguível.
— O senhor está indo muito bem. É muito bom nisso. Em geral, conto de
trás para a frente a partir do dez. Para o senhor, podemos começar de oito para a
frente, pois já está quase dormindo. Oito. O senhor está muito longe e isso é bom.
Nove. O senhor já está adormecido, mas agora vai dormir ainda mais fundo.
Dez. O senhor vai dormir profundamente, sem medo ou dor. Durma.
Croy d começou a roncar.
Não havia camas sobressalentes, mas como Croy d assumiu a rigidez de um
manequim antes de ficar verde e brilhante, sua respiração e batidas do coração
reduzidas a algo entre um urso hibernando e um morto, o Dr. Finn deixou-o ereto
no fundo de um armário de vassouras, onde ele não ocupava muito espaço, bateu
um prego na porta e pendurou a prancheta com o prontuário de
acompanhamento, após ter registrado: “Paciente extremamente sugestionável”.
♣ ♦ ♠ ♥
Maio de 1987
Todos os cavalos do rei
IV
O Bairro dos Curingas o deixava muito nervoso. Por mais que ele já tivesse
voado sobre suas ruas, caminhar naquelas mesmas vias era totalmente diferente.
Felizmente, a Funhouse ficava bem na Bowery. Os policiais evitavam os becos
mais escuros do Bairro dos Curingas como qualquer outra pessoa em sã
consciência, ainda mais depois do início da guerra de gangues, mas os limpos
ainda frequentavam os cabarés de curingas na Bowery, e onde os turistas iam, as
viaturas também iam. Dinheiro dos limpos era o sangue da economia do Bairro
dos Curingas, e esse sangue já estava bem ralo.
Mesmo àquela hora, as calçadas ainda estavam agitadas, e ninguém dava
muita atenção a Tom em sua cara de sapo mal encaixada. No segundo
quarteirão, ele já estava quase confortável. Nos últimos vinte anos, vira toda a
feiura que o Bairro dos Curingas tinha a oferecer pela televisão; este era apenas
um ângulo diferente das coisas.
Nos velhos tempos, a calçada diante da Funhouse estaria apinhada de táxis
despejando passageiros e limusines esperando no meio-fio pelo fim do segundo
show. Mas, naquela noite, a calçada estava vazia, nem mesmo um leão de
chácara estava lá, e quando Tom entrou, encontrou a chapelaria também sem
ninguém. Ele empurrou as portas duplas; uma centena de sapos diferentes
encarou-o das profundezas prateadas dos famosos espelhos da Funhouse. O
homem no palco tinha a cabeça do tamanho de uma bola de beisebol, e bolsas
imensas e ásperas de pele caíam sobre todo seu torso nu, inflando e esvaziando
como pulmões ou gaitas de fole, enchendo o salão com uma música estranha e
triste quando o ar vazava de uma dúzia de orifícios improváveis. Tom encarou-o
com um fascínio doentio até o maître aparecer ao seu lado.
— Uma mesa, senhor? — Ele era atarracado e redondo como um pinguim
com as feições escondidas por uma máscara de Beethoven.
— Gostaria de falar com Xavier Desmond — Tom disse. Sua voz,
parcialmente abafada pela máscara de sapo, soava estranha.
— O senhor Desmond retornou do exterior poucos dias atrás — o maître
disse. — Foi delegado na excursão mundial do senador Hartmann — ele
acrescentou, orgulhoso. — Temo que esteja bem ocupado.
— É importante — Tom disse.
O maître assentiu.
— Quem devo anunciar?
Tom hesitou.
— Diga a ele que é... um velho amigo.
♣ ♦ ♠ ♥
Laços de sangue
Melinda M. Snodgrass
De volta à clínica para cinco horas de trabalho frenético. A maior parte dele,
infelizmente, burocrático. Com um estalo, lembrou-se de Blaise e esperou que
Baby fosse muito divertida. Depois de buscar o menino, Tachy on apressou-se
para levá-lo à aula de caratê. Ficou sentado na saleta ao lado, lendo o Times, um
ouvido desconfiado atento ao dojo. Mas Blaise estava se comportando.
Show beneficente na Funhouse para vítimas de AIDS/Carta Selvagem.
Como gosto de Des, Tachy on refletiu. Interessante que esse evento fosse
acontecer no Bairro dos Curingas. Provavelmente nenhum outro lugar em Nova
York abrigaria o show. Pediriam para colocar protetores plásticos nos assentos.
Existiam muitas similaridades emocionais entre os dois flagelos. Como
bioquímico, via uma correlação diferente, herpes com Carta Selvagem. Mas um
evento beneficente com herpes/Carta Selvagem/AIDS ofereceria muitas
oportunidades para insinuações sexuais infelizes.
Alerta: o secretário de Saúde Pública adverte que transar pode ser perigoso
para sua saúde.
— Se for assim, vou viver uns duzentos anos — murmurou Tach e cruzou as
pernas.
Blaise saiu pulando com seu quimoninho branco. Houve um conflito inicial
com o gerente da escola de caratê sobre o uniforme. A cor padrão era preta,
mas, apesar dos quarenta anos na Terra, Tach ainda tinha uma birra contra a cor.
Operários usam preto. Não aristocratas.
O garoto jogou as roupas nos braços de Tach.
— Não vai trocar de roupa?
— Não. — Ele subiu numa cadeira para olhar um mostruário de shurikens,
kusawagamas e naginatas.
— O idioma causou algum problema? — perguntou a Tupuola enquanto
preenchia o cheque.
— Não. Notável como o inglês dele melhorou nos últimos dias.
— Ele é brilhante.
— Sim, eu sou — Blaise disse, caminhando de cadeira em cadeira para
abraçar Tachy on pelo pescoço. Tupuola franziu o cenho e girou uma caneta
entre os dedos.
— Queria que você me mostrasse essa melhora no inglês.
— Com você é mais fácil falar em francês — disse Blaise, passando para o
outro idioma.
Tach correu a mão nos cabelos lisos do neto.
— Acho que vou ter que desenvolver uma surdez seletiva. — De repente,
ele deu uma risadinha.
— Quê? — Blaise deu uma puxadinha no ombro dele.
— Estava lembrando de um incidente da minha infância. Não era muito
mais velho que você, tinha 15 anos mais ou menos. Decidi que exercícios físicos
eram estúpidos. Apenas treino de luta realmente parecia importar. Então, dei
ordens para que meus guarda-costas fizessem os exercícios físicos para mim. —
Tupuola gargalhou, e Tach sacudiu a cabeça, entristecido. — Eu era um
principezinho insuportável.
— E o que aconteceu?
— Meu pai me pegou.
— E? — Blaise perguntou, ávido.
— Me deu uma surra de arrancar o couro.
— Aposto que os guarda-costas gostaram. — Tupuola riu.
— Ah, eles eram bem treinados demais para demonstrar emoções, mas eu
me lembro de uns reveladores lábios torcidos. Foi muito humilhante. — Ele
suspirou.
— Eu teria parado ele — Blaise disse, os olhos reluzentes.
— Ah, mas eu respeitava meu pai e sabia que ele estava certo ao me
castigar. E eu teria violado os princípios dos psíquicos se entrasse numa longa
batalha mental com meu mais velho na frente dos serviçais. Além do mais,
talvez eu tivesse perdido. — Ele deu um peteleco na ponta do nariz do garoto. —
Sempre há algo a pensar quando você é takisiano.
— Os princípios dos psíquicos. Parece um livro místico dos anos 60 —
Tupuola pensou alto.
Tach se levantou.
— Talvez eu ainda escreva. — Ele se virou para o neto. — E, por falar em
anos 60, tem alguém que eu quero que você conheça.
— Alguém divertido?
— Sim, e gentil e um bom amigo.
Os cantos da boca de Blaise se curvaram para baixo.
— Não é alguém com quem eu possa brincar?
— Não, mas ele tem uma filha.
— Olhe só! Mark, voltei! — Tach anunciou com um rodopio do seu chapéu com
plumas na frente da Cosmic Pumpkin (“Alimento para o Corpo, Mente e
Espírito”) Tabacaria e Delicatessen.
O Dr. Mark Meadows, conhecido como Capitão Viajante, pendia como uma
cegonha no balcão, com um pacote recém-aberto de tofu equilibrado
delicadamente na ponta de seus dedos.
— Ah, uau, doutor. Que bom vê-lo.
— Mark, meu neto, Blaise. — Ele abriu caminho para exibir a criança que
se escondia atrás dele e empurrou-o gentilmente para a frente. — Blaise, je vous
presente, Monsieur Mark Meadows.
— Enchanté, monsieur.
Mark fez o sinal da paz para Blaise e um olhar desconfiado para Tach.
— Acho que você tem muita coisa para contar.
— Tem razão, e um favor a pedir.
— O que precisar, cara, só pedir.
Tachy on deu uma olhada para Blaise.
— Num momento. Primeiro quero apresentar Blaise para Sprout.
— Hum... claro.
Subiram as escadas íngremes até o apartamento de Mark, deixaram Blaise
brincando com sua filha de 10 anos, uma menina adorável, mas com triste
subdesenvolvimento, e acomodaram-se no pequenino e atulhado laboratório do
hippie.
— Então, bicho, conte tudo.
— No geral, foi um pesadelo. Morte, fome, doenças, mas no fim... Blaise, e
de repente tudo começou a valer a pena. — Tachy on refreou a caminhada
nervosa. — Ele é o centro da minha vida, e eu quero que ele tenha de tudo, Mark.
— Crianças não precisam de tudo, homem. Precisam de amor.
Tach pousou a mão com afeto no ombro ossudo do humano.
— Como você é bom, meu querido... querido amigo.
— Mas você não me disse nada. Como você o encontrou, e qual foi a
verdadeira merda que aconteceu na Síria?
— Por isso eu disse que foi um pesadelo.
Eles conversaram, Tachy on mencionou seu medo por Peregrina, todos os
eventos que levaram à descoberta de Blaise. Omitiu seu confronto final com Le
Miroir, o terrorista francês que estava controlando a criança um quarto takisiana.
Sentiu que o gentil e sensível Mark talvez ficasse chocado com a execução do
homem a sangue-frio por Tachy on. Era algo que, em retrospecto, não deixava
Tachy on muito confortável. Ele refletiu, um pouco triste, que, depois de quase a
mesma quantidade de anos em Takis e na Terra, ainda era mais de lá que daqui.
Olhou para o relógio no salto da bota e exclamou:
— Pelo céu chamejante, olhe a hora.
— Hei, que bota maneira.
— É mesmo, encontrei na Alemanha.
— Hei, sobre a Alemanha...
— Outra hora, Mark, preciso ir. Ah, que tolo que sou! Não vim apenas pelo
prazer de vê-lo, mas para perguntar se pode ocasionalmente me emprestar o
Durg? Ele é praticamente imune aos efeitos do controle da mente, e não consigo
levar Blaise para todo lado, nem posso continuar trancando o menino na Baby
toda vez que tiver outros compromissos.
— Durg como babá. Minha cabeça fica meio confusa com isso.
— Sim, eu sei e, acredite, fico muito relutante em deixar o monstro de Zabb
cuidando do meu herdeiro, mas Blaise é como a Mãe do Enxame entre planetas
se o deixar sem supervisão perto de seres humanos normais. Veja, ele não tem
autodisciplina, e não consigo imaginar como instilá-la nele.
Viajante pôs a mão no ombro de Tachy on, e eles caminharam até a porta
do laboratório.
— Tempo, dê tempo ao tempo. E relaxe, cara. Ninguém nasceu pai.
— Nem avô.
Mark olhou para o rosto jovem e delicado e riu.
— Acho que ele vai ter dificuldade em ver você como vovô. Vai ter que se
conformar com...
A visão na sala de estar tirou o ar e as palavras de Mark. Sprout estava só
com sua calcinha de ursinhos, dançando com delicadeza enquanto cantava uma
musiquinha. Rindo, Blaise pulava no sofá e a manipulava como uma marionete.
— K’ijdad, ela não é engraçada? A mente dela é tão simple...
O poder de Tachy on expandiu-se e Sprout — de repente liberta daquele
controle externo aterrorizante — abriu um choro desorientado. Mark agarrou-a
num abraço forte.
— SIMPLES! VOU TE MOSTRAR UMA MENTE SIMPLES!
O garoto se contorceu pela sala como um autômato enferrujado sob o
imperativo brutal da mente do avô.
— ISSO É GOSTOSO? VOCÊ GOSTA...
— NÃO, BICHO, NÃO! PARE COM ISSO! — Tachy on cambaleou com a
sacudida forte. — Tudo bem. — Viajante acrescentou num tom mais moderado
quando a máscara demoníaca que cobriu as feições normalmente gentis de
Tachy on começaram a desaparecer.
— Desculpe, Mark — Tach sussurrou. — Sinto muito, mesmo.
— Tudo bem, cara. Vamos... vamos nos acalmar, está bem?
Tachy on acionou a telepatia.
Você me perdoa?
Não há nada para perdoar, cara.
Meadows ajoelhou-se diante do garoto soluçante, pousando gentilmente as
mãos em seus ombros.
— Viu? Você está tão assustado quanto Sprout ficou. Não tem graça estar
sob controle de outra pessoa. Você tem razão, a mente de Sprout é fraca, mas
esse é mais um motivo para alguém forte como você ser gentil e cuidar de
pessoas como ela. Consegue entender?
Blaise assentiu lentamente, mas Tachy on não confiava na expressão
fechada daqueles olhos púrpura e escuros. E, como era de se esperar, assim que
saíram para a rua na frente da Cosmic Pumpkin, o garoto disse:
— Que debiloide!
— ENTRE NO TÁXI, AGORA!
— Pelos ancestrais! — O vidro estalou sob o salto das botas e por um breve
momento de suspense o tempo voltou, e o passado grudou em sua garganta como
um animal torturante.
Vidro estilhaçando e caindo, espelhos quebrando em todos os lados, facas
prateadas voando... sangue espirrando nos espelhos quebrados.
Tachy on estremeceu e se livrou do pesadelo acordado e encarou a
carnificina que preenchia a Funhouse. Um faxineiro com braços o bastante para
lidar com três vassouras estava ocupado varrendo o vidro quebrado que cobria o
chão. Des, com rosto pálido e franzido, falava com um homem de terno.
Tachy on juntou-se a eles.
— Não tenho certeza se a apólice do senhor...
— Claro que não! Por que eu deveria acreditar que 24 anos de seguro pago
em dia, e sem nenhum sinistro, me daria direito de alguma cobertura agora? —
esbravejou Des.
— Vou verificar, sr. Desmond, e volto a falar com o senhor.
— Pela pureza do Ideal, o que está havendo aqui?
— Quer uma bebida?
— Por favor. — Tachy on puxou a carteira, e Des encarou as notas, um
sorrisinho engraçado repuxando seus lábios, os dedos na ponta da tromba
incongruente tremendo levemente. O alienígena corou e disse, na defensiva. —
Eu pago minhas bebidas.
— Agora.
— Já faz tanto tempo, Des.
— Verdade.
Tachy on chutou um estilhaço de espelho.
— Mas Deus sabe o que isso traz de volta.
— Noite de Natal, 1963. Mal está morto faz tempo.
E logo você também estará.
Não, impossível falar essas palavras. Mas Des falaria? Embora Tachy on,
claro, respeitasse o desejo de privacidade do velho curinga enquanto se
preparava para morrer, ainda assim magoava que ele mantivesse silêncio.
Como faço para dizer adeus a você, velho amigo? E logo será tarde demais.
O conhaque explodiu como uma nuvem branca e quente no fundo da
garganta, banindo os nós que se formaram ali. Tachy on deixou o copo de lado e
disse:
— Você não respondeu à minha pergunta.
— Que pergunta?
— Des, sou seu amigo. Bebo neste bar há mais de vinte anos. Quando entro
e o encontro totalmente quebrado, quero saber por quê.
— Por quê?
— Talvez eu possa fazer algo! — Tachy on virou o restante da bebida e
franziu as sobrancelhas diante dos olhos esmaecidos de Des.
Des pegou o copo e o encheu de novo.
— Por vinte anos eu paguei pela proteção dos Gambione. Agora, essa nova
gangue está fazendo pressão, e eu tenho que pagar os dois. Está ficando um
pouco difícil honrar as despesas extras.
— Nova gangue? Que nova gangue?
— Eles se denominam Punhos Sombrios. Bandidos de Chinatown.
— Quando isso começou?
— Semana passada. Acho que esperaram até saberem que eu estava de
volta à cidade.
— O que significa que estudaram bem o Bairro dos Curingas.
Um dar de ombros.
— Por que não? São empresários.
— São rufiões.
Outro dar de ombros.
— Isso também.
— Que você vai fazer?
— Continuar pagando os dois lados e esperar que eles me deixem viver em
paz.
— Não importa o quanto dure — Tachy on murmurou e secou a nova dose
de conhaque.
— Quê?
— Ah, que diabos, Des, não sou cego. E sou médico. O que é? Câncer?
— É.
— Por que não me contou?
O velho curinga suspirou.
— Por várias razões complicadas. Não quero falar delas agora.
— Nem nunca?
— É possível também.
— Eu considero você um amigo.
— Considera, Tachy ? Mesmo?
— Sim. Como pode duvidar. Não! Nem responda. Eu já vi essa cena; nos
seus olhos e no coração.
— Por que não na minha mente, Tachy on? Por que não lê lá dentro?
— Porque eu honro sua privacidade e... — Seu rosto enrugou-se e deu um
suspiro agudo. — Porque não conseguiria enfrentar o que poderia ler aí dentro —
ele concluiu em voz baixa. Jogou mais notas no balcão e partiu para a porta. —
Vou ver o que posso fazer para tornar sua esperança uma realidade.
— O quê?
— Que você termine seus dias em paz.
— Conhaque — Tachy on falou ríspido para Sascha, o barman cego do Cry stal
Palace. Jogou o chapéu de veludo azul, enfeitado com pérolas e lantejoulas, no
balcão e bebeu de uma vez. Estendeu o copo. — Outro.
Com um rastro de perfume exótico de jasmim, Crisálida acomodou-se na
banqueta ao lado dele. Os olhos azuis flutuando dentro das órbitas ósseas
encaravam-no impassíveis.
— Você deveria saborear um bom conhaque, e não engolir como um
bêbado tomando bebida barata. A menos que queira ficar bêbado.
— Está parecendo uma recrutadora do A.A.
Estendendo a mão, Crisálida enrolou no dedo uma mecha encaracolada de
cabelos vermelhos.
— O que foi, Tachy ?
— Essa guerra de gangues sem sentido. Hoje uma inocente estava na linha
de tiro. Uma criança curinga. Acho que mora neste quarteirão. Lembro de tê-la
visto no último Dia do Carta Selvagem.
— Hum. — Ela continuou a brincar com os cabelos curtos do alienígena.
— Pare com isso! É tudo que tem para me dizer?
— O que eu deveria dizer?
— Que tal um pouco de indignação?
— Trabalho com informações, não com indignação.
— Meu Deus, como você consegue ser fria?!
— São as circunstâncias que me fazem assim, Tachy on. Não peço
compaixão e não tenho pena. Faço o que preciso para sobreviver com o que sou.
Com o que me tornei.
Ele recuou com a amargura da voz da mulher. Pois ela estava entre seus
filhos bastardos, nascidos de seu fracasso e de sua dor.
— Crisálida, precisamos fazer alguma coisa.
— Como o quê?
— Impedir que o Bairro dos Curingas vire um campo de batalha.
— Já virou.
— Então, torná-lo perigoso demais para eles lutarem aqui. Você me ajuda?
— Não. Se eu tomar partido, perco minha neutralidade.
— Quer vender armas para os dois lados, hein?
— Se for preciso.
— Você está atrás do quê, Crisálida?
— De segurança.
Ele desceu da banqueta.
— Não há segurança deste lado da sepultura.
— Continue com todas essas bravatas, Tachy on. E quando tiver algo mais
concreto do que um desejo amorfo de proteger o Bairro dos Curingas, me avise.
— Para quê? Para você me vender para quem pagar mais?
E agora foi a vez de Crisálida recuar, o sangue correndo como uma onda
escura através dos músculos indistintos do rosto.
♠
— Tudo bem, vamos organizar agora — Des vozeou, batendo delicadamente
uma colher na lateral de um copo de conhaque.
A multidão agitada deu um último estremecimento, como uma fera caindo
no sono, e o silêncio preencheu a Funhouse. Mark Meadows, parecendo ainda
mais vago e absurdo nos espelhos distorcidos da Funhouse, chamava a atenção
por seu estado normal. O restante da sala parecia uma reunião de aberrações
carnavalescas. Ernie, o Lagarto, estava com a crista levantada tingida de
vermelho pelas emoções do momento. Aracna, com as oito pernas agarradas no
fio de seda que era expelido pelo corpo bulboso, tecia um xale placidamente.
Engraxado, com o imenso e palerma Doughboy sentado ao seu lado, agitava-se
nervosamente na cadeira. Morsa, com sua escandalosa camisa havaiana, pegou
um jornal do seu carrinho de feira e entregou para Peru. Troll estava com seus
quase três metros recostados à porta, como se estivesse pronto para repelir
qualquer intruso.
— Doutor.
Des despencou numa cadeira como um casaco descartado. Quando
Tachy on avançou para enfrentar a multidão, perguntou-se quanto tempo levaria
para o velho ser forçado a dar entrada no hospital para a temporada final.
— Senhoras e senhores, todos aqui já ouviram falar de Alex Reichmann? —
Houve murmúrios de concordância, simpatia e indignação. — Tive a infelicidade
de ver essa cena apenas momentos depois de os Punhos Sombrios fazerem seu
ataque e conseguirem matar não apenas seus alvos, mas também um dos nossos.
Voltei há apenas poucas semanas. Ouvi histórias de intimidação e vandalismo,
mas pensei que conseguiria permanecer neutro. Nas palavras de outro médico,
talvez ainda mais famoso: “Sou doutor, não policial”. — Essa frase causou
algumas risadas.
— Mas a polícia não está cumprindo suas obrigações para conosco —
Tachy on continuou. — Talvez não apenas por negligência deliberada, mas porque
essa guerra excede muito sua capacidade de manter a paz. Então, gostaria de
propor hoje que formemos nossas próprias tropas da paz. Uma vigilância de
bairro em grande escala, mas com um quê a mais. Muitos de vocês estão
naquela categoria desconfortável de curingas/ases. — O alienígena meneou a
cabeça para Ernie e Troll, cuja força meta-humana era conhecida. — Proponho
que formemos também equipes de reação. Pares de curingas e ases prontos para
reagir a uma chamada de qualquer cidadão do Bairro dos Curingas. Des já
ofereceu a Funhouse como eixo central, a central telefônica, se quiserem, para
as chamadas. Quem concordar fazer parte desse esforço, informará os horários
nos quais estará disponível, seu endereço comercial e residencial. Quem estiver a
serviço aqui vai formar uma equipe para o problema e despachá-la.
— Só um aviso, Tachy — Jube se manifestou. — Esses caras têm armas.
— Certo, mas também são apenas limpos.
— E alguns dos meus... bem, dos “amigos” do Capitão são à prova de bala
— Mark Meadows interveio.
— Como o Tartaruga, Jack e o Martelo...
— Então, você propõe que usemos ases também? — perguntou Des com
um leve franzir de testa.
Tach olhou para ele, surpreso.
— Claro.
— Aviso que Rosemary Muldoon tentou isso em março, e em seguida
descobriram que ela era membro da Máfia. Isso deixou uma impressão bem
ruim para o povo com relação aos ases.
Tachy on deixou a objeção de lado.
— Bem, nenhum de nós será exposto como membro secreto da Máfia.
Então, o que acham? Estão dispostos a trabalhar comigo nesse caso?
— Onde Crisálida fica nisso tudo? — Peru perguntou. — Alguém notou que
ela não está aqui?
— Bem — Tach começou, mexendo-se desconfortavelmente.
— É — Guelra gritou. — Se Crisálida não está aqui, deve significar alguma
coisa. Talvez tenha algo para falar.
Tachy on encarou desalentado o mar de rostos diante dele. Estavam
fechando como flores noturnas que recuam com o toque do sol.
— Crisálida e Des sempre foram as duas principais figuras no Bairro dos
Curingas. Se ela não está nisso, não confio — gritou Peru, sua papada vermelha
sacudindo embaixo do bico.
— E quanto a mim? — Tachy on berrou.
— Você não é um de nós. Nunca vai ser — uma voz soou do fundo da sala,
e Tachy on não conseguiu identificar quem havia falado. Um peso esmagador
parecia ter caído no meio de seu peito com as palavras da mulher.
— Olha, não estamos dizendo que é uma má ideia — disse Estranheza. —
Estamos dizendo apenas que sem Crisálida parece que estamos sem uma parte
importante.
— Se eu trouxer Crisálida? — perguntou o takisiano, já um pouco
desesperado.
— Então, ficaremos do seu lado.
♣ ♦ ♠ ♥
Concerto para sirene e serotonina
IV
Quando Croy d acordou, afastou os cabos dos esfregões, pisou num balde e caiu
para a frente. A porta do armário ofereceu pouca resistência ao empurrão
enlouquecido de suas mãos. Quando ele a abriu e se espreguiçou, a luz atingiu
dolorosamente seus olhos, e ele começou a lembrar as circunstâncias que
precederam seu repouso: o doutor centauro — Finn — e aquela máquina de
dormir esquisita, sim... E outra pequena morte significaria outra mudança no
sono.
Deitado no corredor, ele contou os dedos. Eram dez, tudo bem, mas a pele
era branca como a de um defunto. Chutou o balde para longe, ficou em pé e
tropeçou novamente. O braço esquerdo lançou-se para trás, tocou o chão e
empurrou-o. Isso o impulsionou até ficar em pé e para trás. Ele executou um
salto mortal de costas, caiu em pé, e tombou de novo. As mãos estenderam-se
para o chão para se equilibrar, em seguida as puxou sem fazer contato e
simplesmente se deixou cair. Anos de experiência já lhe traziam a suspeita sobre
qual novo fator havia entrado em sua vida. As compensações exageradas lhe
diziam que tinha algo a ver com os reflexos.
Quando se ergueu de novo, os movimentos foram muito lentos, mas ele
ficava cada vez mais normal ao passo que se explorava. Quando identificou um
lavabo, todos os traços de velocidade ou lentidão excessiva haviam desaparecido.
Quando se observou no espelho, descobriu que, além de ter ficado mais alto e
magro, agora tinha uns olhos rosa, e teve um choque pelos cabelos brancos sobre
a testa alta e glacial. Massageou as têmporas, lambeu os lábios e deu de ombros.
Já estava familiarizado com o albinismo. Não era a primeira vez que havia
voltado com escassez na pigmentação.
Ele procurou os óculos de sol, em seguida lembrou-se que Ceifador os havia
chutado. Não importava. Escolheu outros e pegou um protetor solar. Talvez fosse
melhor pintar o cabelo também, pensou. Menos chamativo desse jeito.
Seja como for, o estômago sinalizava seu esvaziamento de um jeito
frenético. Sem tempo para burocracias, para receber alta apropriadamente —
se, de fato, tivesse dado entrada de um jeito adequado. Não tinha tanta certeza de
que esse fora o caso. Melhor simplesmente evitar todo mundo se não quisesse ser
impedido de sair em busca de comida. Poderia passar outra hora para agradecer
a Finn.
Caminhando como Bentley o ensinara muito tempo antes, todos os seus
sentidos totalmente alertas, ele partiu para a saída.
Croy d entrou no Club Dead Nicholas sob notas de um órgão tocando “Wolverine
Blues”. As janelas tinham cortinas pretas, as mesas eram caixões, os garçons
usavam mortalhas. A parede para o crematório havia sido removida; agora era
uma grelha aberta servida por curingas demoníacos. Enquanto Croy d se movia
no salão, viu que as mesas-caixão estavam abertas embaixo de placas de vidro
grosso; figuras mórbidas — presumidamente de cera — estavam deitadas dentro
em vários estados de agonia.
Um curinga sem lábios, sem nariz nem orelhas, tão pálido quanto ele,
aproximou-se de Croy d imediatamente, pousando a mão ossuda sobre seu braço.
— Perdão, senhor. Posso ver seu cartão de associado? — ele perguntou.
Croy d entregou uma nota de cinquenta dólares.
— Claro — disse o macabro garçom. — Levo o cartão para a mesa do
senhor. Junto com um drinque de boas-vindas. Creio que o senhor vai jantar,
certo?
— Sim. E soube de um carteado bacana também.
— Na sala dos fundos. É de costume que outro jogador apresente o senhor.
— Claro. Na verdade, estou esperando alguém que deve estar chegando
para o jogo desta noite. O nome do camarada é Olho. Ele já está aqui?
— Não. O senhor Olho foi comido. Parcialmente digo. Em setembro do ano
passado, por um crocodilo, nos esgotos. Sinto muito.
— Eita — Croy d falou. — Eu não o vejo sempre. Mas, quando via, ele
costumava fazer uns servicinhos para mim.
O garçom observou-o.
— Como é mesmo o nome do senhor?
— Corretivo.
— Não tenho a intenção de saber dos negócios do senhor — o homem disse.
— Mas tem um cara chamado Fusão, com quem Olho sempre estava. Talvez ele
possa ajudá-lo, talvez não. Se quiser esperar e falar com ele, posso mandá-lo
aqui quando chegar.
— Tudo bem. Vou comer enquanto espero.
Bebendo sua cerveja de boas-vindas, esperando seus dois bifes, Croy d
puxou um maço de cartas Bicy cle do bolso lateral, embaralhou, tirou uma carta
de face para baixo e outra ao lado com a face para cima. O dez de ouros o
encarou no tampo transparente da mesa, sobre a careta agoniada da senhora que
tinha presas, uma estaca de madeira cravada no peito e alguns pingos vermelhos
na careta. Croy d virou a carta de costas; era um sete de paus. Ele a pôs de costas
novamente, olhou ao redor, e virou-a novamente. Agora era um valete de
espadas que acompanhava o dez. A troca de frequência de oscilação era um
truque que ele praticara por diversão na última vez que seus reflexos foram
aguçados. Voltou quase imediatamente quando tentou lembrar-se dele, levando-o
a especular quais outras ações se escondiam em seu giro pré-frontal. Reflexos de
tremor da pálpebra? Contrações da garganta para gritos ultrassônicos? Padrões de
coordenação de membros extras?
Deu de ombros e montou suas mãos de pôquer boas o bastante para bater
aqueles que havia tirado para a senhora com estaca até a comida chegar.
Junto com a terceira sobremesa, o garçom pálido se aproximou, escoltando
um indivíduo alto e careca cuja carne parecia escorrer como cera embaixo de
uma vela. Suas feições ficavam o tempo todo distorcidas, como se nódulos de
tumor passassem embaixo da pele.
— O senhor falou que queria conhecer Fusão — o garçom disse.
Croy d ergueu-se e estendeu a mão.
— Pode me chamar de Corretivo — ele disse. — Sente-se. Deixe que eu te
pague uma bebida.
— Se for vendedor, pode esquecer — Fusão disse.
Croy d balançou a cabeça assim que o garçom se afastou.
— Ouvi dizer que temos um bom carteado aqui, mas não tenho ninguém
para me apresentar — Croy d declarou.
Fusão estreitou os olhos.
— Ah, você joga cartas.
Croy d sorriu.
— Às vezes dou sorte.
— É mesmo? E você conhecia o Olho?
— O bastante para jogar cartas com ele.
— Só isso?
— Pode verificar com o Ceifador — Croy d falou. — Estamos em ramos
similares. Somos ex-contadores que partiram para coisas maiores. Meu nome diz
tudo.
Fusão olhou rapidamente ao redor, em seguida se sentou.
— Vamos deixar esse assunto para lá, ok? Está procurando trabalho agora?
— Não, agora não. Só quero jogar um pouco de cartas.
Fusão lambeu os lábios quando uma saliência correu de cima para baixo
pela bochecha esquerda, passou pela linha do queixo, distendendo-se no pescoço.
— Você tem um monte de verdinhas para distribuir?
— O bastante.
— Ok, você vai entrar no jogo — Fusão falou. — Quero tirar umas dessas
de você.
Croy d sorriu, pagou a comida e seguiu Fusão até a sala dos fundos, onde a
mesa-caixão de jogo estava fechada e tinha uma superfície opaca. Havia sete
deles no início do jogo, e três estavam quebrados antes da meia-noite. Croy d,
Fusão, Moscafeta e Corredor viram pilhas de dinheiro crescerem e diminuírem
diante deles até três da manhã. Então Corredor bocejou, alongou-se e tirou um
frasquinho de pílulas de um bolso interno.
— Alguém precisa ficar acordado? — ele perguntou.
— Vou ficar no café — Fusão respondeu.
— Me dá — Moscafeta disse.
— Nunca toquei nessa coisa — Croy d confirmou.
Meia hora depois, Moscafeta desistiu e insinuou que daria uma olhada na
fila de mulheres curingas que ele prostituía para certinhos querendo passeios
agitados. Às quatro, Corredor estava quebrado e precisou partir. Croy d e Fusão
encararam-se.
— Estamos ganhando — Fusão comentou.
— Verdade.
— Deveríamos pegar o dinheiro e correr?
Croy d sorriu.
— Estou sentindo o mesmo — Fusão disse. — Combinado.
Quando a aurora acariciou os vitrais e os morcegos mecânicos empoeirados
seguiram os fantasmas holográficos em seu descanso, Fusão massageou as
têmporas, esfregou os olhos e disse:
— Vai aceitar minha promissória?
— Não — Croy d respondeu.
— Então, não devia ter me deixado jogar aquela última mão.
— Você não me disse que estava tão quebrado. Pensei que poderia me dar
um cheque.
— Que merda. Não tenho. O que você quer fazer?
— Levar outra coisa, acho.
— Como o quê?
— Um nome.
— Que nome? — Fusão perguntou e encaixou a mão dentro do casaco,
coçando o peito.
— A pessoa que lhe dá ordens.
— Que ordens?
— As que você passa para caras como o Ceifador.
— Tá brincando. Perco meu pau se falar.
— Vai perder se não falar — Croy d falou.
Fusão tirou do casaco uma .32 automática, que ele ergueu na altura do peito
de Croy d.
— Não estou com um pingo de medo. Tem balas dundum aqui. Sabe o que
elas fazem?
De repente, a mão de Fusão ficou vazia e o sangue começou a vazar ao
redor da unha do dedo que estava no gatilho. Croy d lentamente virou a
automática antes de arrancar o pente e ejetar um projétil.
— Tem razão, são dunduns — ele afirmou. — Viu as balas pequenas de
ponta chata? Aliás, meu nome não é Corretivo. É Croy d Crenson, o Dorminhoco,
e ninguém me passa pra trás. Talvez você tenha ouvido que sou um pouco
maluco. Você me dá o nome e não vai descobrir o quanto isso é verdade.
Fusão lambeu os lábios. Os nódulos brilhantes embaixo da pele aumentaram
o ritmo de seu trânsito.
— Vou morrer se eles souberem.
Croy d deu de ombros.
— Não vou falar nada para eles, se você não falar. — Empurrou uma pilha
de notas na direção dele. — Aqui está sua parte por me trazer para o jogo. Me dá
o nome, pegue a grana e caia fora, ou vou te deixar em três dessas caixas. —
Croy d chutou o caixão.
— Danny Mao — Fusão sussurrou —, no Twisted Dragon, perto de
Chinatown.
— Ele te dá uma lista de ataques, te paga?
— Isso.
— Quem tá no comando?
— Pode me arrancar o couro, eu só conheço ele.
— Quando ele está no Twisted Dragon?
— Acho que fica lá direto, porque outras pessoas lá parecem conhecê-lo.
Eu ligo, vou lá, deixo o casaco. Jantamos ou tomamos umas. Não falamos sobre
negócios. Mas, quando vou embora, tem sempre um papel no meu bolso com uns
nomes nele, e um envelope com o dinheiro. O mesmo acontecia com o Olho. É
assim que ele trabalhava.
— A primeira vez?
— A primeira vez demos uma longa caminhada e ele explicou como
funcionava. Depois disso, foi como eu acabei de dizer.
— É isso?
— É isso.
— Tudo bem, você está fora de perigo.
Fusão pegou sua pilha de notas e enfiou no bolso. Abriu a boca retorcida
como se fosse dizer alguma coisa, pensou melhor, pensou de novo e disse:
— Não vamos sair juntos.
— Por mim, tudo bem. Tchau.
Fusão foi até a porta lateral, ladeada por um par de túmulos. Croy d pegou o
que ganhou e começou a pensar no café da manhã.
Croy d subiu de elevador até o Aces High, sentindo falta do poder de voar naquele
início de noite perfeito de primavera. Ao chegar, entrou na recepção, parou e
olhou ao redor.
Seis mesas com doze casais, e uma mulher de cabelos pretos com blusa
decotada prateada sentada sozinha numa mesa para dois perto do bar, girando
um canudo em alguma bebida exótica. Três homens e uma mulher estavam no
balcão. Sons de jazz moderno suave circulavam pelo ar frio, acompanhamento
para misturadores e gargalhadas, estalos e salpicos de gelo, líquidos e copos.
Croy d avançou.
— Hiram está por aqui? — ele perguntou ao barman. O homem olhou-o e
sacudiu a cabeça.
— Está esperando por ele esta noite?
Um dar de ombros.
— Ele não tem vindo muito aqui ultimamente.
— E Jane Dow?
O homem o examinou e disse:
— Está fora também.
— Então, você não sabe ao certo se algum deles vai vir para cá?
— Não.
Croy d meneou a cabeça.
— Sou Croy d Crenson e estou querendo jantar aqui. Se Jane chegar, me
avise.
— É melhor deixar um recado na mesa de reservas antes de se sentar.
— Tem alguma coisa para escrever? — Croy d perguntou.
O barman passou a mão embaixo do balcão, tirou um bloco e um lápis e
passou para ele. Croy d rabiscou uma mensagem.
Quando abaixou o bloco, a mão foi coberta por uma mais delicada, mais
escura, com unhas de um vermelho brilhante. Seu olhar se voltou para trás sobre
o ombro, passou pelo decote prateado, parou um instante, se ergueu. Era a
mulher solitária com a bebida exótica. Numa olhada mais demorada, havia algo
de familiar...
— Croy d? — ela disse, suavemente. — Tomou um bolo também?
Quando encontrou os olhos escuros, um nome surgiu do passado.
— Veronica — ele disse.
— Isso. Boa memória para um maluco — ela observou, sorrindo.
— Hoje é minha noite de folga. Estou careta.
— Parece maduro e distinto com essas costeletas brancas.
— Caramba, sabia que estava sentindo falta de algo — ele disse. — E você
também está sentindo falta de um cliente... digo, um encontro?
— Exatamente. Parece que nós dois pensamos num encontro, certo?
— Verdade. Já jantou?
Ela jogou o cabelo para trás e sorriu.
— Não, e estava ansiosa por algo especial.
Ele tomou seu braço.
— Vou pegar uma mesa pra gente — ele falou —, e já tenho algo muito
especial em mente.
Croy d amassou o bilhete e jogou-o no cinzeiro.
O problema com as mulheres, Croy d refletiu, era que não importava o quanto
fossem boas na cama, no fim das contas queriam usar aquela peça da mobília
para dormir — uma situação que em geral ele não era capaz nem estava disposto
a partilhar. Como consequência, quando Veronica finalmente sucumbiu ao sono
da exaustão, Croy d se levantou e começou a caminhar em seu apartamento em
Morningside Heights, para onde tinham finalmente ido após a meia-noite.
Ele jogou o conteúdo de uma lata de sopa de carne e vegetais numa panela
e botou no fogão. Preparou uma jarra de café. Enquanto esperava que fervesse e
coasse, ele telefonou para seus outros apartamentos com secretárias eletrônicas e
usou um ativador remoto para acionar as fitas com mensagens. Nada de novo.
Ao terminar a sopa, foi ver se Veronica ainda estava dormindo, em seguida
tirou a chave de seu esconderijo e abriu a porta reforçada da saleta sem janelas.
Ligou a única luz, trancou-se e sentou-se ao lado da estátua de vidro reclinada
sobre o sofá-cama. Segurou a mão de Melanie e começou a conversar com ela
— primeiro devagar, mas, depois de algum tempo, as palavras se atropelaram.
Falou para ela do Dr. Finn e da máquina do sono, sobre a Máfia, sobre Ceifador,
Olho e Danny Mao — que ele não conseguira caçar ainda — e sobre como as
coisas costumavam ser legais. Falou até ficar rouco, e então saiu, trancou a porta
e escondeu novamente a chave.
Mais tarde, com uma aurora pálida se espalhando como uma infecção a
leste, ele entrou no quarto ao ouvir sons vindo de lá.
— Ei, madame, pronta para um cafezinho? — ele gritou. — E um pouco de
movimento angular? Um bife...
Ele fez uma pausa para observar a parafernália que Veronica havia
montado para usar sua droga no criado-mudo. Ela ergueu os olhos, piscou para
ele e sorriu.
— Café seria ótimo, querido. Tomo light, sem açúcar.
— Tudo bem — ele respondeu. — Não achei que era usuária.
Ela abaixou os braços nus e assentiu.
— Não aparece. Não se pode usar a veia principal ou estraga a mercadoria.
— Então o quê...
Ela montou a seringa e a encheu. Em seguida, pôs a língua para fora,
segurou a ponta com os dedos da mão esquerda, ergueu-a e injetou a droga
embaixo dela.
— Ai — Croy d comentou. — Onde aprendeu esse truque?
— House of D. Quer que prepare uma para você?
Croy d sacudiu a cabeça.
— Momento errado do mês.
— Você parece um caco.
— Para mim, só em casos especiais. Quando chega o momento, eu tomo
umas bolinhas ou cheiro benzina.
— Ah, bombitas, si — ela disse, assentindo. — Speed, STP, essas merdas
mais fortes. A mistura do maluco. Já ouvi falar dos seus hábitos. Coisa de louco.
Croy d deu de ombros.
— Já experimentei de tudo.
— Yagé, não?
— Já. Não foi tão legal.
— Desoxy n? Desbutol?
— Uhum. Todas elas.
— Khat?
— Caramba, sim. Até mesmo hudca. Você já experimentou pituri? Essa é
das boas. Mas a rotina bagunça um pouco. Aprendi com um aborígene. E
kratom? Vem da Tailândia e...
— Tá brincando.
— Não estou não.
— Cara, eu nunca tive uma conversa assim. Aposto que posso aprender um
monte com você.
— Veremos.
— Certeza que não quer que eu prepare uma?
— Agora o café já vai me fazer bem.
A manhã entrou no quarto, espalhando-se sobre seus movimentos lentos.
— Aqui tem uma chamada Macaco Púrpura Oferece Pêssego e Tira de
Volta — Croy d murmurou. — Aprendi... quer dizer, quem me contou foi a
mulher que me deu o kratom.
— Das boas — Veronica sussurrou.
♣
Quando Croy d entrou no Twisted Dragon pela terceira vez no mesmo número de
dias, partiu direto para o bar, sentou-se atrás de uma lanterna de papel vermelho
e pediu um tsingtao.
Um caucasiano de aparência malvada com cicatrizes ornadas sobre o rosto
todo ocupava uma banqueta dois assentos à esquerda, e Croy d olhou para ele,
afastou o olhar e voltou a olhá-lo. A luz brilhava através do septo do homem.
Havia um buraco de um bom tamanho ali e um pedaço de carne viva na ponta
do nariz. Era quase como se tivesse desistido havia pouco de usar brinco no nariz
por algum motivo forçoso.
Croy d sorriu.
— Não parece muito com um carrossel?
— Hein?
— Ou é só o feng shui aqui? — Croy d continuou.
— Que diabos é feng shui ? — o homem quis saber.
— Pergunte a qualquer um desses caras — Croy d falou com gestos largos.
— Pergunte, em especial, para Danny Mao. É o jeito que a energia circula no
mundo, e às vezes leva você para uma relação complicada. Uma tailandesa me
disse isso uma vez. Tipo, o chi matador virá estourando por aquela porta,
ricocheteará no espelho aqui, será dividido por aquele ba-guá lá e — ele secou a
cerveja, desceu do banquinho e avançou — baterá bem aqui no seu nariz.
O movimento de Croy d era rápido demais para os olhos do homem
seguirem, e ele gritou quando sentiu que o dedo havia passado por seu septo
perfurado.
— Pare! Meu Deus! Corta essa — ele gritou.
Croy d tirou-o da banqueta.
— Duas vezes eu fui ignorado neste lugar — ele disse em voz alta. —
Prometi a mim mesmo que a primeira pessoa que eu encontrasse aqui hoje
falaria comigo.
— Eu falo com você, eu falo! O que você quer saber?
— Cadê o Danny Mao? — Croy d perguntou.
— Não sei. Não conheço ninguém... aai!
Croy d dobrou o dedo e depois esticou-o.
— Por favor — o homem gemeu —, solte. Ele não está aqui. Ele está...
— Eu sou Danny Mao — uma voz bem modulada veio da mesa
parcialmente coberta por uma palmeira empoeirada num vaso. Seu dono
levantou-se e seguiu ao redor da árvore, um oriental mediano, sem expressão,
exceto por uma sobrancelha erguida. — O que você quer aqui, branquelo?
— É particular — Croy d falou —, a menos que você queira ir lá fora na rua
e gritar.
— Não dou entrevistas para estranhos — Danny disse, movendo-se na
direção dele.
O homem cujo nariz Croy d fazia de anel gemeu quando Croy d se virou,
arrastando-o consigo.
— Eu me apresento em particular — Croy d falou.
— Não se incomode.
O punho do homem avançou. Croy d moveu a mão livre com igual rapidez e
o murro parou em sua palma. Outros três socos se seguiram, e Croy d parou-os
de forma semelhante. Ele atingiu um chute atrás do calcanhar do oriental,
erguendo o pé alto e rápido. Danny Mao executou um salto duplo para trás,
aterrissou em pé e recuperou o equilíbrio.
— Que merda! — Croy d observou, movendo a outra mão rapidamente. O
estranho uivou quando algo estalou no nariz e ele foi arremessado para a frente,
chocando-se com Danny Mao. Os dois homens caíram, e o choroso do nariz
espirrava sangue sobre eles. — Feng shui ruim. — Croy d acrescentou. — Vocês
precisam ver isso. Pega a gente toda vez.
— Danny — uma voz veio de trás de um biombo de madeira esculpido
além do balcão. — Preciso falar com você.
Croy d achou que reconheceu a voz e, quando o pequeno curinga escamoso
com rosto amarelo e presas olhou fora do biombo, viu que era Linetap, que tinha
capacidades telepáticas erráticas e em geral trabalhava como vigilante.
— Pode ser uma boa ideia — Croy d falou para Danny Mao.
O homem com nariz sangrando partiu para o banheiro mancando, enquanto
Danny ergueu-se graciosamente, limpou as calças e lançou um olhar enfurecido
para Croy d antes de partir na direção de Linetap.
Depois de muitos minutos de conversa, Danny Mao voltou de trás do
biombo e ficou diante de Croy d.
— Então, você é o Dorminhoco — Danny disse.
— Isso.
— St. John Latham, da empresa Latham, Strauss.
— Quê?
— O nome que você quer. Estou entregando para você: St. John Latham.
— Sem mais resistência? Assim, grátis, sem nada em troca?
— Não. O senhor vai me pagar. Com essa informação, acredito que logo o
senhor vá dormir para sempre. Tenha um bom dia, senhor Crenson.
Danny Mao virou-se e saiu. Croy d estava prestes a fazer o mesmo quando o
homem com o nariz ferrado surgiu do banheiro, segurando um monte de papel
higiênico no nariz.
— Espero que saiba que acabou de entrar na lista negra dos Caçadores de
Cabeça Canibais.
Croy d assentiu lentamente.
— Diga para eles lembrarem do chi matador — ele falou —, e vê se limpa
esse nariz.
♣ ♦ ♠ ♥
A segunda vinda de Buddy Holley
Q uarta-feira
... era uma ocasião especial. Sentia como se estivesse bebendo depois do próprio
funeral.
— Os cajuns fazem grandes velórios — ele disse alto, servindo outro
conhaque. O decantador estava cheio? Não conseguia lembrar. Agora tinha
menos da metade.
Olhou para o telefone de novo. Por que diabos ele não queria falar com
ninguém? No fim das contas, ninguém queria falar com ele. Naquele momento,
pensou que os últimos meses vivendo com Michael haviam passado como se
vivesse sozinho. Agora ele poderia muito bem morrer sozinho. Pare com
autocomiseração. Mas era tão fácil...
— Então, o que foi? — Michael disse, fechando a porta antes de dar um amasso
em Jack. Sem outro cumprimento. Sem preâmbulo. Tão brilhante quanto Jack era
obscuro, alto e magro, Michael sempre parecia trazer algo da primavera
iluminada pelo sol na superfície para o lar subterrâneo de Jack. Não naquele dia.
Jack não conseguia entendê-lo de jeito nenhum.
— Hein? — Michael perguntou. Jack virou o rosto e se desvencilhou dos
braços do outro. Recuou. — Tem algo de errado? — Jack examinou a face de
Michael. As feições do amante eram o modelo puro da saúde vibrante. Da
inocência.
— Acho que é melhor você se sentar — Jack aconselhou.
— Não. — Michael o encarou. — Diga logo o que quer dizer.
A boca de Jack estava seca.
— Fui à clínica hoje.
— E?
— Os exames... — Ele precisou recomeçar. — Os exames deram positivo.
Michael olhou para ele, sem expressão.
— Exames?
— AIDS — ele disse a palavra odiosa. Seu estômago revirou.
— Não — Michael disse e balançou a cabeça. — Não, sem chance.
— Sim — Jack confirmou.
— Mas quem... — Os olhos de Michael arregalaram-se. — Jack, você...
— Não. — Jack o encarou de volta. — Não tem ninguém. Não tem outro,
mon cher.
Michael inclinou a cabeça.
— Tem de haver. Digo, eu não...
— Não é a imaculada conceição, Michael. Não tem milagre aqui. Tem que
ser.
— Não — Michael disse. Sacudiu a cabeça com firmeza. — É impossível.
— Os olhos piscaram rápido e ele desviou o rosto. Em seguida, virou as costas,
abriu a porta e saiu.
“Não.” Jack ouviu Michael dizer mais uma vez.
Q uinta-feira
O volume da fita pirata do novo álbum de George Harrison foi o suficiente para
fazer estremecer as fotos emolduradas da parede do escritório. Por outro lado, o
tamanho do escritório não era suficiente para enfrentar o amplificador do toca-
fitas. Não era um escritório grande e não ocupava um canto da torre de
escritórios, mas, de qualquer forma, era separado, com paredes permanentes e
tinha uma janela.
Cordelia Chaisson estava feliz com ele.
Sua mesa era antiga, de madeira, e continha, além de um computador,
pilhas de álbuns, fitas e kits de imprensa. As fotos na parede diante dela eram de
Peregrina, David Bowie, Fantasia, Tim Curry, Lou Reed e outros famosos, ases
ou não. No meio das fotografias havia um bordado de ponto cruz emoldurado no
qual se lia “CARA, EU SOU DEMAIS”. Pregado na parede atrás e à direita de
Cordelia havia um grande mural retangular com uma lista de nomes
copiosamente alterada com riscos, interrogações e anotações rápidas como
“checar nova produtora”, “fanático rel.” e “não tocam em feriado brit.”.
O telefone tocou e levou algum tempo para Cordelia perceber. Ela girou um
botão no toca-fitas para abaixar o volume e pegou o fone. Luz Alcala, uma das
suas chefes, disse:
— Meu Deus, Cordelia, será que não dava para usar fones de ouvido?
— Desculpe — Cordelia disse —, eu me distraí. É um álbum ótimo. Eu já
abaixei o volume.
— Obrigada — Alcala disse. — Já tem alguma ideia de quem vai gravar os
comerciais para nós?
— Vou repassar a lista. Jagger, talvez. — A jovem hesitou. — Ele não disse
não.
— Ligou para ele na semana passada?
— Bem... não.
A voz de Alcala assumiu um tom levemente reprovador.
— Cordelia, eu admiro o que você está conseguindo fazer pelo show
beneficente. Mas a GF&G tem outros projetos a considerar também.
— Eu sei — Cordelia disse. — Desculpe. Só estou tentando dar conta de um
monte de coisas. — Ela tentou soar mais otimista e mudar de assunto. — As
liberações chegaram da China esta manhã. Significa que estaremos no ar para
mais da metade do mundo.
— Sem contar a Austrália. — Alcala deu uma risadinha.
— Inclusive na Austrália.
— Ligue para o agente do Jagger — disse Alcala. — Está bem?
— Beleza. — Cordelia desligou o telefone. Ela pegou a pequena e intrincada
escultura de pedra no formato de um lagarto da mesa que estava quase coberta
por um monte de fotografias. Era, na verdade, um crocodilo australiano, mas
haviam garantido que era seu primo e, portanto, um fetiche apropriado. Preferia
pensar na imagem como um jacaré. Cordelia devolveu a escultura para a mesa,
deixando-a diante da foto em preto e branco pequena e emoldurada de um
jovem aborígene. Ela fez uma careta para o retrato.
— Wy ungare — ela sussurrou. Seus lábios arredondaram-se num beijo.
Em seguida, girou a cadeira para encarar o mural na parede. Pegou um
marcador grosso e começou a riscar nomes, terminando com uma lista de U2,
Bruce Springsteen, Little Steven, Coward Brothers e Girls with Guns. Nada mau,
ela pensou. Caramba, nada mau mes-mo.
Mas, ela deu uma risadinha de satisfação, havia mais. Ela pegou o
marcador novamente...
♣
As três haviam almoçado mais cedo no Acropolis, na Tenth Street, perto da Sixth
Avenue. Cordelia ofereceu-se para levá-las a um lugar mais elegante. Afinal,
agora tinha uma verba de representação. O Acropolis era um simples café,
indistinguível de milhares de outros na cidade.
— O Riviera fica apenas a poucos quarteirões daqui — ela disse. — É um
lugar bacana.
C.C. Ry der não queria saber. Queria um lugar anônimo para se reunir. Pediu
que se encontrassem bem antes da agitação do almoço. E queria que Nômada
estivesse junto.
Cordelia fez o que a outra queria, pois precisava dela.
Então, terminaram numa mesa coberta com vinil imitando couro com C.C.
e Nômada lado a lado encarando Cordelia e a porta. Cordelia ergueu os olhos do
cardápio e sorriu.
— Posso recomendar a salada de frutas.
C.C. não sorriu de volta. Sua expressão era séria. Tirou o chapéu pork pie de
couro quase disforme e bagunçou os cabelos ruivos espetados. Cordelia percebeu
que os brilhantes olhos verdes de C.C. pareciam muito com os do tio Jack. Tenho
que ligar para ele, ela pensou. Não queria, mas precisava.
— Viu minhas olheiras de panda? — C.C. disse apontando para os olhos.
Naquele dia, não parecia muito com um daqueles compositores e intérpretes de
rock de primeira linha. O efeito era deliberado. Vestia jeans tão velhos e surrados
que pareciam lavados com ácido. Seu moletom largo da John Hiatt parecia ter a
mesma quantidade de lavagens que os jeans.
— Não — Cordelia disse. A pele de C.C. era branca e macia, quase albina.
— Bem, devia ter notado. — Um sorriso fraco pairou sobre os lábios de C.C.
— Tenho perdido o sono com toda essa coisa de show beneficente.
Cordelia não disse uma palavra, continuou encarando os olhos da cantora.
— Sei que esta é a última jogada de Des — C.C. continuou. — E sei que a
causa é boa. Um show beneficente para pacientes de AIDS e vítimas do carta
selvagem é algo que já deveria ter sido feito.
Cordelia assentiu. As coisas estavam se encaminhando bem.
C.C. deu de ombros.
— Acho que consigo sair do buraco de ansiedade por um tempo e tocar na
frente de gente real. — Ela sorriu de verdade agora. — Então, a resposta é sim.
— Que máximo! — Cordelia estendeu os braços sobre a mesa e abraçou
C.C. com força. Assustada, Nômada quase se levantou da cadeira, e Cordelia viu
de soslaio que ela estava pronta para rasgar sua garganta se estivesse realmente
atacando C.C. Cordelia ouviu um rosnado baixo, parecido com o dos gatos de
Nômada, quando ela se afastou de C.C. e voltou à sua cadeira.
— Maravilhoso! — Cordelia afirmou. Parou de balbuciar quando viu o rosto
de C.C. — Ai, desculpa — Cordelia falou, mais calma. — É que eu amo sua
música, amo você como compositora há tanto tempo que gostaria de vê-la
tocando suas músicas mais do que qualquer outra coisa.
— Não vai ser fácil — C.C. confessou. Nômada olhou para ela, preocupada.
— Temos quanto tempo, dez dias?
Cordelia assentiu.
— Por aí.
— Vou precisar de cada minuto.
— Vai ter. Vou deixar alguém como meu contato que vai conseguir o que
você quiser, sempre que precisar. Alguém em quem confio, e você também.
— Quem é? — Nômada disse com evidente suspeita. Os músculos do rosto
magro ficaram tensos. Os olhos castanhos estreitaram-se.
Cordelia respirou fundo.
— Tio Jack — ela disse.
A expressão no rosto de Nômada não era agradável.
— Por quê? — ela perguntou. C.C. olhou para ela. — Por que não eu?
— Pode ajudar C.C. o quanto quiser — Cordelia respondeu, apressada. —
Mas preciso do tio Jack envolvido com tudo isso. Ele é competente, sensato e
confiável. Estou até o pescoço de trabalho — ela disse com franqueza. — Preciso
de toda a ajuda que conseguir juntar.
— Jack sabe disso? — Nômada quis saber.
Cordelia hesitou.
— Bem, tava esperando pra contar pra ele. — Ela percebeu que o sotaque
cajun se manifestava enquanto ela enrubescia. Puxou um freio mental. — Eu
deixei mensagens na secretária, mas ele não responde.
Nômada recostou-se na cadeira e fechou os olhos. Um minuto se passou.
Parecia um longo tempo. O garçom grego aproximou-se para pegar os pedidos.
C.C. lhe disse para voltar em alguns minutos.
Quando voltou a abrir os olhos, Nômada sacudiu a cabeça para desanuviar
os pensamentos.
— Não sei quando o garoto vai responder às suas chamadas.
— Como assim? — Cordelia sentiu uma vertigem, como se seus planos
fossem papéis deslizando para fora de uma mesa cuidadosamente nivelada.
— Está todo quebrado — Nômada disse. — Jack está bem longe...
provavelmente perto da baía de Nova York, acho. Está indo à forra, se acabando
com o tipo de criaturas que você não vê no Aquário Castle Clinton. Com toda a
carne crua que está comendo — ela sorriu sem humor —, não consigo dizer
quando ele volta para jantar em casa.
— Quelle damnation — Cordelia murmurou. — De qualquer forma — ela
disse para C.C. —, me ligue no escritório pela manhã, que vou arranjar algo. Tio
Jack ou outra pessoa.
— Arranje outra pessoa — Nômada disse.
Cordelia sorriu, tranquilizadora. O garçom voltou, e ela pediu a salada de
frutas.
♦
... e marcou C.C. na lista de artistas do show beneficente em letras garrafais e
pretas.
— Carambolas — Cordelia disse alto para si mesma. — Eu sou demais.
Então, hesitou e olhou novamente a edição da Village Voice na mesa. Uma
pequena nota de eventos em caracteres microscópicos estava circulada em
vermelho.
Ela rabiscou um nome adicional no mural.
Sexta-feira
Merde.
Não há como fugir. Foi o que sentiu quando se arrastou para a casa no início
da manhã. Não havia nada de convidativo em entrar na bagunça que estava sua
sala de estar. Jack tropeçou pelos escombros. À frente dele, viu a porta rachada
para o quarto. A mão ainda doía. Mas, naquele momento, os dentes também. A
cabeça, as mãos — parecia que cada osso de seu corpo doía.
— Enfer — ele xingou quando viu a luz vermelha da secretária eletrônica
piscando. Quase conseguiu ignorar o demônio ciclópico; em seguida, curvou-se e
bateu no botão para ouvir as mensagens. Três mensagens de seu supervisor. Jack
sabia que era melhor ligar naquela manhã, ou não teria mais trabalho para voltar.
Ele gostava de viver ali embaixo, e gostava do privilégio de um emprego útil
embaixo, na escuridão.
As outras oito mensagens eram de Cordelia. Não eram muito informativas,
mas também não soavam como emergências. Cordelia dizia o tempo todo que
era importante Jack retornar suas ligações, mas o tom não indicava um perigo
mortal.
Jack voltou a fita de mensagens e desligou a secretária, depois foi para a
cozinha. Deu uma olhada no refrigerador, mas não fez caso de abri-lo. Sabia o
que havia lá dentro. Além disso, simplesmente não tinha fome. Tinha alguma
ideia do que havia devorado no dia e na noite passados e não queria pensar
naquilo. Peixe-agulha cego, albino, algo que ninguém encontraria no cardápio de
qualquer restaurante cajun em Nova York.
Ele foi para o quarto e despencou na cama. Não fez questão de se despir.
Moveu-se apenas o bastante para enrolar-se na colcha antiga. E apagou.
O telefone ao lado da cama o acordou precisamente às oito horas. Sabia
disso porque os números no visor de LED vermelho do relógio queimaram-lhe a
retina quando ele finalmente abriu os olhos e estendeu o braço para interromper
o som estridente que estraçalhava seus ouvidos.
— Hummm. Alô?
— Tio Jack?
— Sim... ah, Cordie? — Ele despertou um pouco mais.
— Sou eu, tio Jack. Desculpe se eu acordei você. Estava tentando te
encontrar já faz um tempo.
Ele bocejou e ajustou o fone para que o travesseiro o segurasse.
— Tudo bem, Cordie. Precisava mesmo ligar pro meu chefe e dizer que
estou com alguma coisa, fiquei doente demais nos últimos dias para ligar.
Cordelia soou alarmada.
— Está doente mesmo?
Jack bocejou de novo. Lembrou-se do que poderia ter dito.
— Mais saudável impossível. Só saí para a gandaia, foi isso.
— Nômada disse...
— Nômada?
— É. — Cordelia parecia estar escolhendo as palavras com cuidado. —
Pedi que ela cuidasse de você. Ela disse que você havia saído para a baía, hum,
para matar umas coisas.
— Dá para descrever assim — Jack falou.
— Tem algo de errado?
Ele esperou alguns segundos antes de responder e deu um suspiro.
— Estresse, Cordie. Só isso. Preciso relaxar.
Ela não soou totalmente convencida, mas finalmente disse.
— Está bem, tio Jack. Olha, você se importa se eu passar aí hoje à noite
depois do trabalho e levar uma amiga?
— Quem? — Jack disse, cauteloso.
— C.C.
Jack pensou na mulher, lembrou-se de tê-la visitado na clínica de Tachy on.
Tinha tudo que ela já havia gravado, álbuns e fitas, em uma estante no quarto ao
lado.
— Acho que tudo bem — ele disse. — Vai me dar uma desculpa para
limpar a casa.
— Não precisa — Cordelia disse.
Ele riu.
— Ah, precisa sim.
— Cinco e meia, tá?
— Pode ser. Aliás, quer adiantar o assunto? — ele perguntou.
Ela foi direta.
— Preciso de sua ajuda, tio Jack. — Ela falou tudo sobre como as coisas
estavam indo com a logística do show beneficente. — Estou soterrada. Não
consigo dar conta de tudo.
— Não sei o quanto posso colaborar com esse tipo de evento.
— Você conhece rock ’n’ roll — ela disse. — Melhor, você consegue lidar
com tudo que acontece.
Quase tudo, ele pensou. O rosto de Tachy on flutuou na frente dele. O de
Michael.
— Puxa-saco — ele disse.
— Vérité.
Alguns momentos se passaram.
— Preciso perguntar uma coisa — Jack falou. — Não estamos nos falando
muito...
— Eu sei — ela disse. — Eu sei. Por ora, não estou pensando muito nisso.
— Sem decisão, então?
— Ainda não.
— Obrigado por ser sincera.
Mais alguns segundos passaram. Parecia que Cordelia queria dizer algo,
mas, por fim, tudo que ela disse foi:
— Tudo bem, obrigada, tio Jack. Estarei com C.C. às cinco e meia. Tchau.
Jack ouviu o silêncio até o circuito desconectar-se. Em seguida, ele se virou
e discou para o supervisor do Departamento de Trânsito. Ele não precisaria se
concentrar para convencer que estava doente.
Quando abriu a porta para Cordelia e C.C., no fim da tarde, Jack percebeu que a
limpeza da sala de estar provavelmente havia sido a parte mais fácil do dia. Os
olhos de Cordelia pareceram se estreitar quando o encararam, como se na
verdade estivesse vendo duas imagens e tentando escolher aquela que ela
perceberia.
— Tio Jack — ela disse. Houve um momento tenso quando ela pareceu
ponderar se lhe dava um abraço.
A mulher que estava em pé ao lado dela aliviou o momento.
— Jack! — disse C.C. — É bom vê-lo de novo. — Ela passou por Cordelia,
entrou na sala de estar, deu um abraço firme em Jack e um beijo carinhoso nos
lábios. — Sabe de uma coisa? — ela falou. — Embora eu tenha ficado fora do ar
por muito tempo, significou muito para mim que você tenha ido me visitar na
clínica. Qualquer coisa que aconteça com você, saiba que estarei lá para te
visitar, viu? — Ela abriu um sorriso.
— Tudo bem — ele disse.
— Mon Dieu — disse Cordelia, olhando ao redor da casa de Jack. — O que
aconteceu aqui?
Os esforços de reparo de Jack não tinham sido totalmente bem-sucedidos.
Um pouco da mobília antiga quebrada estava empilhada em um lado da sala. Ele
não teve coragem de jogá-la num contêiner de lixo. Ainda havia uma chance de
restaurá-la e repará-la com cuidado.
— Quando eu estava entrando na noite passada — ele disse —, escorreguei.
— Foi alvejado tentando escapar, isso sim — disse Cordelia, irônica. — Seja
lá o que tenha acontecido, tio Jack, sinto muito. Era um lugar tão bonito.
— Ainda não está decadente — disse C.C., sentando-se numa namoradeira
com pés em garra. Ela estendeu os braços quando afundou no estofado macio. —
Esta aqui está ótima. — Ela sorriu para Jack. — Tem café?
— Claro — ele disse. — Já está pronto.
— Nômada vinha conosco — C.C. começou a falar.
— Teve que fazer algumas coisas no outro lado da cidade — Cordelia disse.
— Ela me pediu para te mandar um oi — C.C. disse.
— Claro. — Sim, sim, ele pensou. Cordelia ofereceu-se para ajudar com o
café, mas ele a enxotou de volta para a sala de estar.
Quando todos estavam sentados com uma caneca fumegante e um prato de
bolinhos com geleia de morango, Jack perguntou:
— Então?
— Então — C.C. disse —, sua sobrinha é muito persuasiva. Mas meu ego
também. Vou sair da reclusão para o show beneficente, Jack. Voltar aos shows ao
vivo. Na marra. Nada muito planejado. Um potencial de uns dois bilhões de
espectadores. Vai acontecer, na frente de Deus e do mundo. — Ela deu uma
risadinha. — Nada como enfrentar a agorafobia aguda de uma vez.
— Muito impetuoso — disse Jack. — Estou feliz que vá encarar o público.
Coisas novas?
— Algumas antigas, outras novas — ela disse. — Algumas emprestadas,
alguns blues. Tudo depende da chefa aqui. — C.C. apontou para Cordelia. — Se
ela me der mais tempo.
— Vinte minutos — Cordelia disse. — É o que todos vão ter. O Boss, Girls
With Guns, você.
— Igualdade é ótimo — C.C. olhou para Jack. — Então, vai me ajudar com
as preparações para a grande noite?
— Hum — Jack falou.
— A GF&G pode persuadir o pessoal do Departamento de Trânsito a te
liberar um tempo — Cordelia emendou rapidamente. — Falei com um dos caras
do departamento de relações com a comunidade. Achou excelente ter alguém de
lá envolvido em algo assim.
— Uhum — Jack disse.
— Com pagamento — Cordelia disse. — E a GF&G também vai te dar uma
comissão.
— Eu tenho minhas economias — Jack falou baixinho.
— Tio Jack, eu preciso de você.
— Já ouvi isso antes. — Com suavidade dessa vez.
— Por isso digo novamente. — Parecia que a voz de Cordelia, sua
expressão, os olhos, tudo estava num apelo coordenado.
— Seria bom trabalhar com você — C.C. falou e piscou um olho cor de
esmeralda. — Passe livre para o backstage. Do ladinho das estrelas.
Jack olhou para uma mulher e para a outra.
— Tudo bem — ele disse por fim. — Combinado.
— Oba — Cordelia disse. — Vou começar a dar os detalhes. Mas tem mais
uma coisa que eu quero comentar agora.
— Por que eu estou com a sensação de que, nesse momento, eu deveria ser
um jacaré olhando para o arpão? — Jack perguntou.
— Tem planos para hoje à noite? — Cordelia quis saber.
Jack estendeu as mãos.
— Pensei em reformar algumas cadeiras.
— Você vem comigo para New Brunswick.
— Nova Jersey ?
Cordelia assentiu.
— Vamos ao Holidome. Vamos ver Buddy Holley.
Jack disse:
— O Buddy Holley ? Pensei que ele estivesse morto.
— Está fazendo o lounge circuit há anos. Vi uma notinha sobre a
participação dele na revista Voice.
— Ela quer que ele participe do show beneficente — C.C. comentou.
— Um ato de nostalgia? — Jack falou.
Cordelia estava mesmo corando.
— Cresci com a música dele. Eu adoro o homem. Digo, não tem nada certo
com ele sobre o show beneficente. Só quero ir vê-lo e descobrir se ele é o
mesmo de antes.
— Talvez você tenha um choque desagradável — C.C. disse. — Guitarra de
barro e coisas assim.
— Vou arriscar.
— “Not Fade Away ” é minha música favorita de todos os tempos — Jack
falou. — Conte comigo.
— Diga para ele — C.C. falou para Cordelia.
— Nômada vai também — ela disse, relutante.
— Não sei — Jack falou. Pensou no primeiro encontro com Pancada,
quando o gato preto o salvou de se enroscar com o psicopata agressor de gay s. O
gato estava agindo sozinho ou por sugestão de Nômada? Ele nunca perguntou
para ela. Talvez o fizesse antes do show.
— Tio Jack? — Cordelia perguntou.
Ele sorriu para ela.
— Vam’bora!
Sábado
— Ai, meu Deus — C.C. falou, baixo o bastante para que apenas Jack ouvisse. —
Ele está fazendo cover do Prince, do maldito Prince!
— E não muito bem — Jack comentou.
Cordelia ficou preocupada com o trânsito glacial no Túnel Holland, pois os
quatro chegariam atrasados para o primeiro número de Buddy Holley. Ela
também estava preocupada, pois os jovens de Jersey podiam roubar o Mercedes
que Luz Alcala havia emprestado.
— É um Holiday Inn — Jack disse quando estacionaram na entrada.
— E?
— O estacionamento é iluminado — Jack respondeu.
— Tem uma vaga perto do saguão — Cordelia disse, aliviada.
— Quer que eu dê dez dólares para o atendente ficar de olho no carro?
— Faria isso? — Cordelia falou num tom sério.
Então estacionaram, trancaram o carro e entraram no Holidome de New
Brunswick.
A viagem pela cidade foi bem tensa. Jack foi no banco da frente com
Cordelia no volante, Nômada sentou-se atrás no lado oposto, o mais longe de Jack
que conseguiu. C.C. e Cordelia fizeram o melhor para manter uma conversa.
Jack decidiu que era um momento inadequado para questionar Nômada sobre se
seu salvador daquela vez, o gato preto, estava agindo sozinho ou por ordem de sua
dona.
— Vai ser o máximo — Cordelia disse. Ela havia posto uma fita dos maiores
sucessos de Buddy Holley and the Crickets’ no toca-fitas Blaupunkt. O sistema de
alto-falantes era muito, muito bom.
— Cordelia — Nômada disse —, gosto muito de Buddy, mas não quando ele
fere meus ouvidos.
— Ah, desculpa — Cordelia falou. Ela girou o botão para um volume quase
suportável.
O tráfego da noite de sábado diminuiu até um anda-e-para dentro do túnel, o
fedor de escapamento erguia-se em nuvens visíveis, e os quatro no Mercedes
ouviram todas as fitas de Buddy Holley de Cordelia antes de chegarem a Nova
Jersey.
Cordelia ficava cada vez mais nervosa quanto mais tarde ficava.
— Talvez tenha alguém para abrir o show — ela murmurou.
Não havia, mas descobriram que não importava. Quando os quatro
entraram pelas portas do saguão do Holidome, viram que não precisavam se
apressar para conseguir lugares. Mais ou menos metade das cabines e mesas
estava vazia. Era óbvio que a farra do sábado à noite em New Brunswick não
acontecia ali. Pegaram uma mesa a uns nove metros do palco baixo, Jack e
Nômada em lados opostos, separados por C.C. e Cordelia.
E Buddy Holley fez cover de Prince.
Jack reconheceu Holley dos retratos dos discos. Sabia que o músico tinha 49
anos, quase a sua idade. Holley parecia mais velho. Seu rosto estava descaído; a
barriga não era totalmente camuflada pelo casaco prateado lamê. Não usava
mais os antigos óculos de tartaruga pretos; os olhos estavam mascarados por
estilosos óculos escuros de aviador que não escondiam totalmente as bolsas
escuras embaixo dos olhos. Mas ainda tocava a Fender Telecaster como um anjo.
Não se podia dizer o mesmo dos caras do conjunto. O guitarrista base e o
baixista pareciam ter 17 anos, e não estavam inspirados. A indistinta mixagem de
som não ajudava. O baterista se debatia nos tambores, o volume vinha no nível
certo para mascarar totalmente a voz de Holley.
Em ordem rápida, Buddy Holley passou de Prince para um Billy Idol ruim
e um Bon Jovi mais ou menos.
— Não acredito nisso — C.C. resmungou, dando uma boa golada no seu
Campari com tônica. — Ele está fazendo só covers comerciais, as merdas dos 40
mais.
Cordelia assistia em silêncio, sua expressão de entusiasmo inicial
desaparecendo visivelmente.
Nômada sacudiu a cabeça com desaprovação.
— Não devíamos ter vindo.
Talvez, Jack pensou, ele esteja esperando uma luz.
— Vamos dar uma chance.
Quando as desanimadas palmas diminuíram depois de uma tentativa
sofrível de evocar Ted Nugent, uma voz do fundo do lounge gritou:
— Vamos lá, Buddy... toque algumas das antigas! — Uma ovação
entusiasmada se seguiu. A maioria dos aplausos veio da mesa de Cordelia.
Buddy Holley pegou a Telecaster pelo braço e se inclinou para o público.
— Bem — ele disse, o sotaque do oeste do Texas ainda forte —, não
costumo aceitar pedidos, mas como vocês são uma plateia tremenda... — Ele
retomou a guitarra e dedilhou uma sequência rápida de acordes abertos que o
grupo conseguiu seguir mais ou menos.
— Ai, Deus — C.C. disse. Pegou outra bebida quando Buddy Holley entrou
com “Hurray for Hazel”, de Tommy Roe, em seguida um verso rápido de
“Sheila”, por fim uma versão triste, quase como um blues de “Red Roses for a
Blue Lady ”, de Bobby Vinton. Holley continuou por essa senda. Tocou um monte
de músicas que ficaram famosas na voz de Bobby s e Tommy s nos anos 1950 e
1960.
— Quero ouvir “Cindy Lou” ou “That’ll Be the Day ” ou “It’s So Easy ” ou
“T-Town” — disse Cordelia, girando distraidamente seu gim com tônica. — Não
essa merda aí.
Já fico bem com “Not Fade Away”, Jack pensou. Ele assistiu a Buddy Holley
se esfalfar através de uma deplorável retrospectiva pop, e tudo ficou deprimente.
Foi o bastante para que ele desejasse que Holley tivesse morrido no auge de sua
popularidade inicial e não sobrevivido para cair nessa terrível autogozação.
Conversas e gargalhadas de bêbados aumentaram nas mesas ao redor.
Parecia que a maior parte do lounge já havia esquecido completamente que
Buddy Holley estava se apresentando no palco. Quando o cantor terminou o set,
apresentou o número final com muita simplicidade.
— Essa aqui é nova — ele disse. O pequeno público nem mesmo ligou, já
estava ficando agressivo.
— Que se foda! — alguém gritou. — Liga a jukebox!
Holley deu de ombros e saiu do palco.
Os guitarristas acompanhantes abaixaram os instrumentos em silêncio; o
baterista se levantou e deixou as baquetas sobre um amplificador.
— Por que não toca os clássicos? — Cordelia questionou. — Aguentem um
pouco — ela disse aos companheiros. Em seguida, se levantou e seguiu Buddy
Holley quando ele se dirigiu ao bar. Eles a viram séria conversando com o
homem. Ela o levou até a mesa, puxou uma cadeira vazia, pareceu fazê-lo sentar
pela pura força de vontade. Holley parecia se divertir com a situação toda.
Cordelia apresentou os amigos. O músico repetiu cada nome educadamente e
cumprimentou-os com apertos de mão.
Jack achou o aperto de mão do homem firme e quente, nada frouxo.
Cordelia disse:
— Somos quatro grandes fãs do senhor.
— Sinto que estejam vendo tudo isso aqui — Holley falou. — Sinto que devo
desculpas a todos. Não foi uma noite boa. — Ele ergueu os ombros. — Claro, a
maioria das noites em lounges é assim. — Holley abriu um sorriso
autodepreciativo.
— Por que não toca suas músicas? — Nômada perguntou sem preâmbulos.
— Sua música das antigas — Cordelia disse. — As coisas boas.
Ele olhou para todos na mesa.
— Tenho meus motivos — ele respondeu. — Não é uma questão de não
querer. Eu só não posso.
— Bem — Cordelia disse, sorrindo —, talvez eu possa ajudá-lo a mudar de
ideia. — Ela começou a apresentar o projeto do show beneficente na Funhouse,
sobre como Holley poderia tocar cedo no show do próximo sábado, que talvez
ele pudesse fazer um medley das músicas que o levaram ao superestrelato nos
anos 1950 e início dos 1960, que talvez — apenas talvez — o show e o
televisionamento pudessem rejuvenescer sua carreira. — Da mesma forma que
o Bruce Springsteen encontrou Gary U.S. Bonds tocando em bares como este —
ela terminou.
Buddy Holley parecia realmente surpreso com a efusão de entusiasmo de
Cordelia. Ele pôs os cotovelos na mesa, examinando de perto o club soda com
limão que a garçonete havia trazido para ele, para então erguer os olhos com um
sorrisinho.
— Olha — ele disse —, obrigado. Obrigado mesmo. Ouvir algo assim me
fez ganhar a noite... caramba, o ano inteiro. — Ele afastou o olhar. — Mas não
posso.
— O senhor pode — Cordelia disse.
Ele sacudiu a cabeça.
— Pense na minha proposta.
— Não vai adiantar — ele falou. — Não vai funcionar. — Ele deu tapinhas
na mão dela. — Mas obrigado por se lembrar de mim. — E, com isso, acenou
com a cabeça para o restante do grupo, levantou-se e atravessou a fumaça até o
palco para a segunda parte do show.
— Caramba — Cordelia disse.
Jack observou as costas de Holley quando o músico subiu ao palco. Tinha
algo de familiar na forma que o homem caminhava. Havia uma sensação de
derrota. Jack pensou na última vez que vira aquele leve curvar de ombros e a
cabeça baixa quando se olhou no espelho. Hoje de manhã.
Ele imaginou quantos muitos anos e quais desastres haviam derrubado
Buddy Holley. Eu queria... O primeiro pensamento não se completou. Em
seguida, ele disse para si mesmo: Eu queria poder ajudar.
— Quer ir embora ou vai ficar? — C.C. perguntou para Cordelia.
— Vamos — Cordelia disse. Quase baixo demais para ser ouvida, ela
continuou: — Mas acho que volto.
— Como o general MacArthur? — Nômada quis saber.
— Mais como o sargento Preston da Polícia Montada — Cordelia
respondeu.
Domingo
Buddy Holley estava dormindo quando Cordelia bateu à porta do quarto 8420 às
9h25. Ficou óbvio quando ele abriu a porta. Os cabelos grisalhos estavam
desgrenhados. Os óculos um pouco tortos quando ele espiou o corredor através de
um vão da porta.
— Sou eu, Cordelia Chaisson. O senhor se lembra? Da noite passada?
— Hum, claro. — Holley parecia se recompor. — Posso ajudá-la?
— Estou aqui para tomar café da manhã com o senhor. Preciso falar com
você. É muito importante.
Buddy Holley balançou a cabeça, pensativo.
— Você é uma força irresistível? Ou um objeto irremovível?
Cordelia deu de ombros.
— Me dê dez minutos — Holley disse. — Encontro você lá embaixo, no
saguão.
— Promete? — Cordelia perguntou.
Holley deu um sorrisinho, assentiu e fechou a porta.
Buddy Holley chegou à mesa de café da manhã com jeans bem passados, uma
camisa de vaqueiro florida e uma jaqueta de veludo marrom. Parecia o pior
para se usar, mas era confortável.
Ele se sentou e disse:
— Vai tentar me evangelizar de novo?
— Se eu puder. Podemos falar disso depois que tomarmos um cafezinho.
— Chá para mim — ele falou. — De ervas. Eu trouxe. A seleção de chás
daqui é bem mixuruca.
A garçonete veio e pegou os pedidos.
— Isso ao redor do seu pescoço — Holley disse, apontando com o olhar. —
É um amuleto? Vi a noite passada e fiquei interessado.
Cordelia abriu o fecho e estendeu o amuleto para o homem. O pequeno
jacaré prateado e o dente fossilizado estavam presos ao delicado arenito oval
com uma tira rígida de tripa seca.
Holley virou o objeto para lá e para cá, examinando-o de perto.
— Não parece do sudoeste americano. Polinésio? Australiano, talvez?
— Muito bem — Cordelia respondeu. — Aborígene.
— De que tribo? Eu conheço os aranda muito bem, até os wikimunkan e os
murngin, mas este aqui não é familiar.
— Foi feito por um jovem aborígene urbano — Cordelia comentou e hesitou
por um instante. Pensar em Wy ungare a deixava entusiasmada, mas doía ao
mesmo tempo. E como, ela imaginou, estava indo a revolução australiana
central, do jeito que as coisas estavam? Ela esteve muito ocupada com o show
beneficente para assistir ao noticiário. — Ele me deu como um presente de
despedida.
— Deixe-me adivinhar — Holley disse. — O arenito de Uluru? — Cordelia
assentiu. Uluru, o nome verdadeiro daquilo que os europeus chamavam de Ay ers
Rock. — E o réptil é seu totem, claro. — Ele ergueu o objeto contra a luz antes de
devolvê-lo. — Tem uma força considerável aqui. Não é apenas um símbolo.
Ela apertou novamente o fecho.
— Como sabe?
Ele deu uma risadinha marota para ela.
— Só não dê gargalhadas, ok?
Cordelia ficou intrigada.
— Tudo bem.
— Desde que as coisas viraram um inferno... desde que começaram a
desmoronar em 1972 — ele disse, hesitante —, eu comecei a procurar. — Ele
tomou o chá de forma contemplativa.
— O quê? — Cordelia perguntou, por fim.
— Qualquer coisa, qualquer coisa que significasse alguma coisa. Estava
apenas... procurando.
Cordelia pensou por um momento.
— Espiritualmente?
Holley assentiu com veemência.
— Exato! Tinham acabado as limusines, as casas, o jatinho particular e a
vida boa, o... — Ele parou no meio da frase. — Tudo acabado. Devia haver algo
além de virar garrafas e ver o fundo do poço.
— E o senhor encontrou?
— Ainda estou na busca. — Ele encontrou o olhar da moça e sorriu. —
Muitos anos e muitos quilômetros. Sabe de uma coisa? Sou mais popular na
África e no resto do mundo que aqui. Em 1975, meu agente me deu a última
chance e programou essa maluca turnê pan-africana. As coisas degringolaram...
bem, eu degringolei. Fiquei realmente mal depois que voltei de um show em
Johannesburgo. Sei lá como, roubei uma Land Rover e acabei tomando uma
garrafa de uísque Jim Beam no meio da floresta. Sabe como o envenenamento
alcoólico funciona? Moça, eu estava nesse caminho.
Cordelia o encarou, mantida em transe pelo sotaque simples do oeste do
Texas. O homem era um contador de histórias.
— Os bosquímanos me encontraram. Nativos de Kalahari. A primeira coisa
que reconheci foi um xamã Kung inclinado em cima de mim e soltando os gritos
mais profanos que você jamais ouviu. Mais tarde, descobri que ele estava
puxando a doença para si para depois soltá-la no ar. — Holley, contemplativo,
tocou a ponta do polegar nos dentes incisivos. — E esse foi o começo.
— E desde então? — Cordelia disse.
— Continuei procurando. Em todos os lugares. Quando toquei numa série de
bares nas Dakotas e no Meio Oeste, aprendi sobre o Rolling Thunder e as
gerações de Black Elk. Quanto mais aprendia, mais queria saber. — Sua voz
adquiriu um tom onírico. — Quando eu estava com os lakota, implorei por uma
visão. O xamã me conduziu numa cerimônia inipi e me mandou para o monte
receber os wakan, os seres sagrados. — Holley sorriu com tristeza. — Os Seres
do Trovão vieram, mas foi só isso. Eu fiquei molhado e com frio. — Ele deu de
ombros. — E assim foi.
— O senhor continua na busca — Cordelia disse.
— É o que eu faço. Aprendo. Estou sem beber desde a África do Sul. E sem
drogas também. Quanto ao que estou aprendendo, não é fácil trabalhar com uma
educação batista conservadora, mas é o que venho tentando fazer.
Ocorreu a Cordelia que, por tudo que estava dizendo, Buddy Holley ainda
parecia muito ancorado no universo físico. Ela não tinha a mesma sensação de
dissociação etérea que recebia de estrelas do rock espiritualmente transformadas,
como Cat Stevens ou Richie Furay. Ela deu uma mordida no bolinho que já
estava esquecido na mesa.
— A maioria das coisas que sei sobre isso, aprendi com meu amigo
aborígene, mas eu penso sobre isso. Às vezes, no meu trabalho, imagino se as
estrelas do rock, os cantores pop, artistas aos olhos da opinião pública dos Estados
Unidos não são um equivalente contemporâneo dos xamãs.
Holley assentiu com seriedade.
— Homens e mulheres de poder. Sem dúvida.
— Eles têm a magia.
Buddy Holley riu.
— Felizmente, aqueles que acreditam que têm, em geral não têm nada. E
aqueles que realmente possuem o poder, não têm consciência disso.
Cordelia engoliu o bolinho.
— Todos os artistas no show beneficente do próximo sábado têm o poder. —
Holley olhou desconfiado. — Estou mudando o assunto — Cordelia disse num
tom leve.
— Não acho que as coisas mudaram desde a noite passada. Você quer que
eu toque meus clássicos. Não posso.
— Isso é... — Cordelia procurou as palavras. — Isso é uma crise de
confiança?
— Provavelmente faz parte.
— A mesma coisa aconteceu com C.C. Ry der — Cordelia comentou. —
Mas ela mudou de ideia. Vai tocar.
— Que bom. — Holley hesitou. — A verdade é que não posso tocar as
músicas que você quer que eu toque.
— Por que não?
— Não são mais minhas. Quando as coisas começaram a ruir, uma
empresa de Nova York chamada Shrike Music comprou meu catálogo inteiro.
São mesmo umas gracinhas. Já viu o logotipo deles? Uma semínima empalada
numa estaca. Eles deixaram minhas canções no gelo. Odeio, mas não posso pôr a
boca no trombone para consegui-las de volta. — Holley estendeu as mãos,
desamparado.
— Vamos ver isso — Cordelia disse sem hesitar. — A GF&G vai fazer
alguma coisa. Esse é o único impedimento?
— Você acha que pode fazer qualquer coisa, não é? — Holley sorriu
enquanto balançava a cabeça. Dessa vez era um sorriso genuíno. Os dentes eram
brancos e alinhados. — Tudo bem. Você libera algumas canções e vamos ver se
entramos num acordo. Em nome dos velhos tempos.
— Não entendo — Cordelia retrucou.
— Bem, vou te contar uma coisa — Buddy Holley disse. A animação
preencheu suas feições e voz. — Lá atrás, no colegial em Lubbock... Quando Bob
Montgomery e eu estávamos juntos pela primeira vez fazendo umas gravações
malucas, tinha uma garota. Pensei que era apenas... bem... — Ele respirou fundo
e sorriu, envergonhado. — A história já é conhecida. Ela nunca me deu bola.
Anos mais tarde, ela ainda estava na minha cabeça quando gravei “Girl on My
Mind”, em Nashville. Foi na época em que a Decca quis que eu fosse como todo
mundo, com um sucesso de rock ’n’ roll, em 1956. Com essa música, eu não
segui a fórmula. — Ele balançou a cabeça. — Bem, você lembra essa garota.
Ela também sabia o que queria. — Ele se recostou na cadeira e olhou para ela.
— É uma história ótima — Cordelia disse. — É como...
— Rock ’n’ roll — Holley terminou a frase.
Os dois riram. As coisas voltaram aos trilhos, Cordelia pensou.
Segunda-feira
Claro que Jack acreditou em Cordelia quando ela lhe disse no domingo à noite
que seria fácil obter a permissão para Holley tocar suas músicas. Mais ainda, que
a GF&G cuidaria da licença de trabalho de Jack na segunda de manhã, o que o
liberaria para que ele ajudasse Holley a vir para Manhattan. Cordelia arranjou
um quarto no centro, no Hotel California, o principal hotel para músicos
visitantes.
— A gerência — Cordelia dissera — não se importa com o que aconteça
num quarto, contanto que paguem pelos prejuízos. Cartões Amex Platinum são
bem-vindos.
Por volta do meio-dia, enquanto Cordelia fazia as vezes de detetive Nancy
Drew no computador, Jack levou Buddy Holley ao seu quarto no oitavo andar do
Hotel California.
— Você tem uma conta aberta aqui — a recepcionista disse, então pediram
almoços suntuosos.
Jack observou quando Holley desembalou um toca-fitas compacto e uma
caixa de fitas cassete. Era uma seleção eclética de música new age — muito dos
álbuns de Windham Hill, junto com uma série de fitas de relaxamento com
vento, tempestade, mar, chuva — e uma variedade de rock, blues e country das
antigas.
— Tenho umas coisas raras aqui — Holley disse, pegando um punhado do
que pareciam fitas gravadas em casa. — Tiny Bradshaw, Lonnie Johnson, Bill
Dogget, King Curtis. Há umas coisas mais conhecidas também: Roy Orbison,
Buddy Knox, Doug Sahm. — Ele deu uma risadinha. — Uma verdadeira coleção
do Texas, esses garotos perdidos. Também tem um pouco de George Jones, esse
garoto também tem lugar no meu coração. Eu e minha primeira banda tocamos
para ele em 1955, no show de Hank Cochran.
— O que é isso? — Jack apontou para o que parecia ser a única gravação
em vinil na caixa de fitas.
— Isso me orgulha muito. — Holley levantou o disco de 45 rotações. —
“Jole Blon.” A primeira gravação de Way lon Jennings. Fui eu quem produziu
para ele, quando ainda tocava com os Crickets.
Jack pegou o disco e examinou-o com hesitação, como se estivesse olhando
uma relíquia sagrada.
— Acho que ouvi isso na rádio WSN.
— Sim — disse Holley. — Quase todo mundo que respeito daquela época
aprendeu sobre música primeiro ouvindo o Grand Ole Opry.
Jack pôs o 45 de “Jole Blon” para tocar. Uma lassidão imensa o tomou. Ele
olhou para os restos do almoço. A náusea ia e voltava. Ele se sentou no sofá do
hotel e tentou manter a voz firme.
— Antes de vir para Nova York, eu escutava o Opry o tempo todo. Quando
cheguei aqui, encontrei uma estação da Virgínia que passava o programa.
— Veio do mesmo lugar que sua sobrinha? — Holley perguntou,
interessado.
Jack assentiu.
— Tem totem de jacaré também?
Jack não disse nada, tentando controlar a nova dor de estômago.
— O jacaré é um poderoso espírito animal guardião — Holley comentou.
— Eu não abusaria de alguém com esse protetor.
Jack se dobrou e tentou não gemer.
Holley aproximou-se dele.
— Tem algo errado? — Ele correu as mãos pelo peito e pela barriga de
Jack. Os dedos adejaram levemente sobre o estômago dele. Holley assobiou. —
Cara, acho que temos algum problema aqui.
— Eu sei — Jack falou e grunhiu. Qualquer outro ano ele teria certeza de
que poderia evitar uma gastroenterite. Mas Tachy on avisou sobre as infecções
oportunistas. Ele via a imagem instantânea de vírus mirando-o de todos os
buracos pestilentos do mundo. — Talvez seja apenas uma gripe.
Holley sacudiu a cabeça.
— Encontrei uma intrusão poderosa e resistente aqui.
— É um vírus.
— E o vírus te pegou porque sua proteção, seu manto pessoal, está acabado.
— Eu não poderia falar melhor — Jack comentou.
Holley tirou as mãos do abdômen de Jack.
— Desculpe, nada pessoal. Não sei se Cordelia lhe disse, mas eu... bem, sei
algumas dessas coisas. — Jack olhou para ele, perplexo. — O que você precisa
— Holley disse com seriedade — é de um tratamento tradicional. Precisa ter
essa intrusão sugada. Acho que é a única maneira.
Jack não conseguiu evitar e começou a rir, em seguida a gargalhar. Não
conseguia se lembrar da última vez que havia gargalhado daquela forma. Doía
rir, mas ajudava também. Buddy Holley o observou, aparentemente atônito. Por
fim, Jack se endireitou um pouco e disse:
— Desculpe, não acho que, hum, sugar uma intrusão do meu corpo seja
uma boa ideia no momento.
— Não me leve a mal — Holley disse. — Estou falando sobre algo psíquico,
retirar a causa do desconforto usando o poder da alma e da mente.
— Não estou levando a mal. — Jack começou a rir novamente. Mas Dieu,
ele se sentia bem melhor.
Por volta das duas da tarde, Cordelia havia acessado a Base de Referência da
Biblioteca Pública de Nova York e o Banco de Dados dos Registros Públicos em
Albany. Cobriu várias páginas de caderno com números e notas rabiscados. Sua
tarefa parecia um daqueles quebra-cabeças de mil peças que ela nunca teve
paciência para terminar.
A Shrike Music tinha como única proprietária a Monopoly Holdings,
sociedade de Nova York. Cordelia discou o número da central da Monopoly em
Manhattan e tentou falar com o presidente. No fim das contas, conseguiu falar
com o vice-presidente executivo para assuntos corporativos. O homem disse que
a questão Buddy Holley não lhe cabia, mas que ela devia mandar uma carta
detalhada ao presidente da Monopoly, um tal de Connel McCray. Mas Cordelia
não poderia falar diretamente com McCray ?, ela perguntou. O presidente não
estava disponível. Era difícil dizer quando estaria de volta ao escritório.
Cordelia descobriu nos Registros Públicos que a Monopoly Holdings era
uma divisão da Infundibulum Corporation, um consórcio controlado pelo
CariBank, em Nassau. A ligação para a Infundibulum resultou em vinte minutos
frustrantes à espera de uma conversa igualmente insatisfatória com o assistente
executivo do diretor-presidente. A chamada de longa distância para Nassau a
levou a uma voz com forte sotaque das Bahamas alegando um completo
desconhecimento sobre esse tal Holley.
Após desligar, Cordelia considerou a frustração que o telefone representava.
— Acho que vou para casa agora — ela disse a si mesma. Tudo bem fazer
uma pausa. Poderia voltar ao escritório mais tarde e trabalhar a noite toda.
Terça-feira
A GF&G havia decidido que a banda da Funhouse serviria C.C. Ry der e Buddy
Holley. Na verdade, foi C.C. quem os aprovara; a GF&G apenas assinou os
cheques.
— Todos eles são músicos competentes — C.C. disse para Holley.
— Por mim, está bem — ele observou e ouviu enquanto dois guitarristas, o
baterista, a tecladista e o saxofonista afinavam.
Jack observava também. Ensaios eram longos e tediosos. Mas, como
observador, aquilo era o show business em movimento. Era divertido.
Glamoroso. Era o céu.
C.C. levou Holley para o palco. Nômada sentou-se numa mesa à frente,
embora a ação parecesse meio forçada. Jack sabia que ela queria mesmo era
seguir C.C. lá em cima, em cena.
— Se importa se eu sentar aqui? — ele lhe perguntou, pousando a mão no
encosto da cadeira ao lado. Os olhos escuros de Nômada fixaram-se nele com
intensidade por apenas uma fração de segundo. Em seguida, ela deu de ombros,
e Jack sentou-se.
— Tudo bem — C.C. estava dizendo para os músicos no palco. — Vou
começar com essa aqui. Ou talvez terminar. Ah, eu ainda não sei. Tudo que sei
de verdade é que é nova e faz parte dos meus vinte minutos. — Ela plugou seu
violão de doze cordas cor de ébano e dedilhou uma progressão de acordes. —
Temos três dias inteiros para ensaiar. Então se lembrem da vantagem que temos
sobre outros caras, como o Bruce ou U2. — Todos deram um sorrisinho. — Tudo
bem, vamos lá. Essa se chama “As melhores cartas do jogo”. Um, dois, três e...
No momento em que C.C. começou a tocar, ela parecia incapacitada.
“Nervosa”, Jack pensou, era uma palavra leve demais. Não havia multidão. Não
havia público além dos músicos, dos técnicos trabalhando no som e nas luzes e
alguns poucos observadores, como Jack e Nômada. A levada de C.C. estava
extremamente sem graça. Ela parou, abaixou a cabeça enquanto todos no salão
seguravam a respiração. Em seguida, C.C. ergueu os olhos, e para Jack parecia
que aquele movimento havia exigido um esforço enorme. Os dedos acariciaram
as cordas do violão.
— Desculpem — ela disse. E só. E, depois, tocou.
Cordelia percebeu que estava cantarolando “Real Wild Child”. O rock agitado
combinava perfeitamente com a animação daquela tarde. Ela se perguntou por
um momento onde tinha ouvido a música quando identificou a melodia. Sabia
que não estava em nenhum dos álbuns de Buddy Holley. A música devia estar
rolando por aí.
Ela dedilhou os toques de guitarra mentalmente enquanto fazia suas ligações
pós-almoço. Cordelia telefonou para a Funhouse bem na hora em que sua sopa
vietnamita chegou. Jack parecia contente.
— Os ensaios estão ótimos — ele disse. — C.C. e Buddy estão se dando
muito bem. E Nômada até balançou a cabeça para mim quando eu disse bom
dia.
— Como está a parte musical?
— Os dois estão tocando em grande parte música nova... bem, a de Buddy é
toda nova.
— Ele vai conseguir encher os vinte minutos? — Cordelia quis saber.
— Tudo está como antes... eu disse que não teria problema nenhum com
ele. Está tudo bem. Você deveria dar uma hora para ele.
— Não sei se U2 ou o Bruce Springsteen gostariam disso — Cordelia falou,
seca.
— Aposto que eles amariam.
— Não vamos arriscar. — Cordelia sentiu o aroma de caranguejo e
aspargos subindo da sopa no baldinho de isopor. — Tenho que desligar, tio Jack.
Minha comida chegou.
— Tudo bem. — A voz de Jack hesitou. — Cordie?
— Hum? — Ela já havia enfiado a primeira colherada na boca.
— Obrigado por me pedir para fazer isso. É fantástico. Fico muito grato.
Está... mantendo minha mente fora de tudo o mais no mundo.
Cordelia engoliu a sopa quente.
— É só manter C.C. e Buddy Holley felizes. E Nômada também, se for
possível.
— Vou tentar.
Por volta das duas da tarde, Cordelia ligou para a empresa contratada que
estava tentando exorcizar os demônios do ShowSat III, quando, de soslaio, ela
avistou a silhueta de uma figura estranha na porta da sala. Desligando o telefone,
viu um homem distinto de meia-idade vestido com um terno creme de seda que
ela sabia valer dois ou três meses de seu salário. O corte tinha uma precisão
impecável. O nó do foulard estava precisamente posicionado. Com cabeça
inclinada, ele a observava com um olhar penetrante.
— Está bem-vestido demais para ser Tom Wolfe — ela disse.
— Na verdade, não sou. Tom Wolfe, digo. — Ele não sorria. — Se importa
se eu entrar para conversar com você?
— Marcamos horário? — Cordelia perguntou, perplexa. Ela olhou para o
calendário. — Temo que não...
— Eu estava passando por aqui — o homem disse. — Temos um horário. Só
acho que você não foi informada. — Ele estendeu a mão. — Desculpe por não
me apresentar formalmente. Sou St. John Latham, ao seu dispor. Represento a
Latham, Strauss. Espero que já tenha ouvido falar da nossa empresa.
Cordelia avistou um brilho de unhas manicuradas com esmero quando
apertou a mão do homem. Seu aperto de mão era seco e superficial.
— Os advogados — ela disse. — Hum, sim. Por favor, sente-se.
Ele se sentou. Como pano de fundo do terno de Latham, a cadeira Breuer
parecia um pouco pobre.
— Vou direto ao ponto, srta. Chaisson... ou posso chamá-la de Cordelia?
— Como quiser. — Cordelia tentou organizar os pensamentos, pois ter o
sócio sênior de uma das empresas mais caras e maldosas de Manhattan sentado
no seu escritório não pode ser um bom presságio.
— Bem — Latham disse, as mãos juntas e espalmadas, os dedos
indicadores apenas resvalando no queixo fino —, fui informado que a senhorita
tem causado comoção considerável em várias empresas clientes da Latham.
Como a senhorita deve ter descoberto, somos contratados do CariBank Group, e
por isso temos interesse em suas holdings subsidiárias.
— Não sei se entendo...
— A senhorita obviamente foi bem inventiva com seu computador e
modem, Cordelia. E não foi muito discreta em suas ligações para vários dos
diretores.
De repente, as coisas começaram a ficar claras.
— Ah — Cordelia disse —, é sobre a Shrike Music e Buddy Holley, certo?
O tom de Latham era calmo e funcionava com a mesma temperatura de
um supercondutor.
— A senhorita parece ter um grande interesse na família corporativa do
CariBank.
Cordelia sorriu e ergueu as mãos.
— Ei, sem problema, sr. Latham. Não é mais incômodo para mim. Holley
tem uma coleção inteira de novas músicas que a Shrike não pode tocar.
— Srta. Chaisson... Cordelia... a Shrike Music Corporation é a menos
importante de suas pesquisas. Nós, na Latham, Strauss, estamos preocupados
com sua aparente necessidade de informações sobre o restante da família
CariBank. Essas informações talvez sejam... um pouco problemáticas...
— Não mesmo — Cordelia disse com firmeza. — É um problema que não
existe. Honestamente, sr. Latham. Sem problemas. — Ela sorriu para ele. —
Agora, se o senhor não se importar, tenho um monte de trabalho para...
Latham a encarou.
— A senhora vai desistir, srta. Chaisson. Vai cuidar dos seus negócios ou, eu
garanto, vai se arrepender muito, muito mesmo.
— Mas...
— Muito mesmo. — Latham olhou diretamente para ela até que Cordelia
finalmente piscasse. — Espero que tenha me entendido. — Ele se levantou, virou
as costas e saiu com um farfalhar de seu terno caro.
Aquilo a atingiu. Que me enforquem com corde à boy au, ela pensou. Acabei
de ser ameaçada por um dos advogados mais poderosos e predadores de
Manhattan. Então, que me processe.
Cordelia tinha muito a fazer e aquilo a ajudou manter sua cabeça longe da
visita de Latham. Ela ligou para o pessoal técnico responsável pelas transmissões
via satélite e ficou feliz em saber que o ShowSat III estava operando novamente.
No fim das contas, um bom pedaço do outro lado do mundo teria a oportunidade
de assistir ao show beneficente da Funhouse.
— Acho que os gremlins estão em férias — disse o engenheiro consultor.
Então, a telefonista da GF&G transferiu uma chamada a cobrar de Tami,
em Pittsburg.
— Que diabos você está fazendo aí? — Cordelia questionou. — Mandei
dinheiro o bastante para que todas a Girls With Guns inteira pudesse voar para
Newark hoje.
— Você não vai acreditar — Tami falou.
— Provavelmente não.
— Compramos um monte de penas.
— Não compraram cocaína?
— Claro que não! — Tami parecia escandalizada. — Encontramos uma
garota que tinha uma seleção incrível. Precisamos delas para nosso figurino de
sábado.
— Penas não custam seiscentos paus.
— Essas custam. São raras.
— Essas penas vão ajudar vocês a voar? — Cordelia perguntou,
perigosamente.
— Bem... não — Tami respondeu.
— Vou transferir mais dinheiro. Só me passa um endereço. — Cordelia
suspirou. — Então, vocês gostam de viajar de ônibus?
Sexta-feira
Jack e Buddy Holley foram para o camarim de Buddy depois que assistiram ao
Boss fazer seu ensaio. O ensaio final de Holley foi agendado para as dez da noite.
Little Steven, U2 e os Coward Brothers fizeram seus testes no início da tarde. The
Edge tocou, mas fez muitas caretas de dor. Em seguida veio Bruce e os outros
caras lá do outro lado do rio.
— Nem foi ruim — Holley disse.
— O Boss? — Jack perguntou. — Muito bom. Então, como foi quando ele te
tratou como se você fosse um dos rostos esculpidos no Monte Rushmore em vida?
— Bacana. — Holley não disse mais nada.
— Fiquei bem impressionado quando ele perguntou se você tocaria “Cindy
Lou”.
Holley deu uma risadinha.
— Uma coisa engraçada sobre essa música. Sabe que quase ela não foi
“Cindy Lou”?
Jack olhou para ele com cara de interrogação.
Entraram no corredor atrás do palco. A luz não era lá das mais adequadas.
— Cuidado com os fios no chão — Holley avisou. — A boa e velha “Cindy
Lou”. Bem, esse era o título original desde o início, mas, quando os Crickets e eu
fomos gravá-la, nosso baterista, Jerry Allison, pediu que eu mudasse.
— A música? — Jack perguntou.
— O título. Acho que Jerry ia se casar com uma garota chamada Peggy
Sue e pensou que seria o máximo ter uma música com o nome dela.
— Mas não mudou?
Holley riu.
— Ela deu um pé na bunda dele, rompeu o noivado antes que a gente
batesse o martelo sobre a música. Então ficou “Cindy Lou”.
— Eu prefiro — Jack falou.
Percorreram a última curva e chegaram à saleta onde Holley mantinha seu
violão e outras coisas que havia trazido do hotel. Ele entrou primeiro. Quando
apertou o interruptor, nada aconteceu.
— A maldita lâmpada deve ter queimado.
— Acho que não — disse uma voz lá de dentro.
Jack e Holley tiveram um sobressalto.
— Quem tá aí? — Jack perguntou. Holley começou a se afastar da porta.
— Espere — a voz disse. — Está tudo bem se vocês forem Buddy Holley e
Jack Robicheaux.
— Somos nós — Holley confirmou.
— Meu nome é Croy d.
Holley disse:
— Não conheço nenhum Croy d.
— Eu conheço — Jack falou. — Digo, sei quem é você.
A voz soltou uma risadinha.
— Estou com um pouco de pressa e tentando ser sutil, então, por que vocês
dois não entram para fecharmos a porta?
Os dois homens obedeceram. Croy d acendeu uma lanterna e deixou o
facho de luz passar rapidamente pelo rosto dos homens.
— Tudo bem, vocês são quem dizem que são. — Ele deixou a lanterna na
mesa de maquiagem, mas não a desligou. — Tenho algumas informações para
sua sobrinha — ele disse para Jack —, mas lá na empresa não sabem onde ela
está, e eu não tenho tempo para esperar.
— Tudo bem — Jack disse. — Pode falar, eu repasso para ela. Ela está
pulando como uma rã num caldeirão quente, fazendo dez mil coisas para tudo
correr bem amanhã à noite.
— Ela me pediu para dar uma olhada na Shrike Music — Croy d falou.
— Ah, sim? — Holley soou interessado.
— Pensei que pudesse ser uma das frentes dos Gambione. Sabe, lavagem
de dinheiro da Máfia.
— E? — Jack perguntou. — As mãos sujas de Rosemary Muldoon também
estão aí?
— Não — Croy d respondeu. — Não acho. Seja lá o que for a Shrike, e acho
que é suja pra dedéu, realmente não acho que tenha relação com os Gambione
ou com outras famílias. Diga isso a Cordelia Chaisson.
— Mais alguma coisa? — Jack quis saber.
— Sim. Pelos rastros que pude seguir, consegui algumas pistas. O cérebro
por trás da Shrike é o Brecha. Sabe, o advogado, St. John Latham. Se estiver
certo, é melhor sua sobrinha ter muito cuidado. Brecha é um filho da puta
perigoso.
— Tudo bem — Jack falou. — Eu digo para ela.
— Se descobrir mais coisas... — Holley disse.
— Não vou. Tenho meus próprios assuntos para cuidar. — A risada de Croy d
foi muito seca.
— Ah. Bem, obrigado de qualquer forma. Ao menos sei que minhas
músicas não estão enroladas em fios de espaguete — Holley comentou.
— Olha só — Croy d falou com certa animação na voz. — “Shake, Rattle
and Roll” é um dos melhores rocks já gravados. Não deixe que ninguém diga o
contrário. Só queria dizer isso antes de partir.
— Bem — Holley falou —, muito obrigado. — Ele caminhou na escuridão,
na direção da mesa de maquiagem. — Quero cumprimentar o homem que me
disse essas coisas.
— O que posso dizer? Já faz tempo que eu gosto do seu trabalho. Fico feliz
que tenha voltado.
Jack teve a impressão de um rosto pálido e albino na escuridão. Olhos róseos
piscaram quando a luz da lanterna se apagou.
— Boa sorte no show. — Em seguida, a forma indistinta de Croy d saiu pela
porta e foi embora.
— Tudo bem — Jack falou —, vamos ver se conseguimos uma lâmpada
nova. — Ele se encolheu. A dor estava de volta, a dor e algo mais. Na escuridão,
ele tocou o próprio rosto. A pele parecia escamosa. O vírus estava saindo de
controle. Estava ficando difícil permanecer... Ele não completou a frase. Humano
era a palavra que estava procurando.
Sábado
As cristas do oceano musical do U2 os cobriu. Os dedos de The Edge haviam se
curado bem para aquela noite. Bono começou com “With or Without You” com
sua voz exuberante de quem não canta a mesma música do mesmo jeito duas
vezes da mesma forma.
C.C. de repente olhou para Buddy Holley com preocupação. Ela esticou o
braço para equilibrá-lo. Jack foi para o outro lado.
— O que foi, querido? — Ela tocou a testa do homem com as costas da
mão. — Você está queimando.
Nômada parecia preocupada.
— Quer que chame um médico?
Os quatro recuaram quando o câmera passou às pressas com a SteadiCam,
seguindo para o palco.
Holley endireitou o corpo.
— Tudo bem, estou bem. Um pouco de suor de nervoso.
— Tem certeza? — C.C. perguntou, cética.
— Acho que sim — Holley respondeu —, talvez eu esteja me sentindo um
pouco melancólico. — Os três ao seu lado mostraram a mesma incompreensão.
— Esperar para subir no palco está me deixando estranho. Estou olhando para
tudo isso e pensando sobre Ritchie e o Bopper e como eles caíram com Bobby
Fuller naquele Beechcraft em 68, quando Bobby estava testando sua turnê de
retorno. Meu Deus, como tenho saudades deles.
— Você está vivo — Nômada disse. — Eles não.
Holley a encarou. Em seguida, abriu lentamente um sorriso.
— Isso é ser direta. — Ele olhou através das cortinas para a casa cheia. —
Sim, eu estou vivo.
— Você vai se sentar um pouco — Jack falou. — Descansar um instante.
— Lembre-me de uma coisa — Holley pediu. — Quando eu entro?
— Os Coward Brothers são os próximos. Em seguida, Little Steven e eu —
C.C. comentou. — Vou aquecê-los para você. Seu show é antes das Girls With
Guns e do Bruce.
— Confortável estar no meio, hein? Na companhia de pesos-pesados. —
Holley sacudiu a cabeça. — Sabe quanto o mundo mudaria se alguém explodisse
este clube hoje à noite? Nem um pouco. — Ele cambaleou. — Bem, talvez só um
pouquinho.
— Vá se sentar — C.C. disse com firmeza.
Jack olhou para o palco. Era provavelmente o único show de rock a que ele
assistira que não estava cheio de fumo. Mas, no espaço confinado da Funhouse, a
administração, a Secretaria de Saúde e alguns dos artistas haviam implorado por
abstinência. A equipe técnica estava usando uma máquina de fumaça para
conseguir a luz correta. Com as luzes no rosto, Jack não conseguia ver nada. Mas
sabia quem estava lá fora.
♥
Cordelia estava sentada perto do pequeno espaço separado por cordas onde a
diretora de palco estava isolada com seu monitor de vídeo. Tudo parecia ótimo.
Os sinais de satélite teciam uma rede satisfatória, embora só Deus soubesse se
alguém estava realmente assistindo.
Todos os lugares estavam ocupados. Pessoas chegaram a pagar dois mil por
lugares em pé. Cordelia verificou ao redor de sua cadeira antes de o U2 ser
anunciado. A mesa imediatamente atrás dela estava ocupada por um senador
novinho de Nova Jersey, a mulher do senador — chefe de desenvolvimento
cultural de Hoboken —, um ator adolescente, lindo, de fazer o coração palpitar, e
o agente do ator, representando a empresa ICM. Na mesa seguinte à esquerda
estavam o senador Hartmann e seu grupo. Tachy on estava lá atrás também.
Xavier Desmond, sorrindo de orelha a orelha, estava bem na frente.
Bem à direita, Miranda e Ichiko viram-na olhando, acenaram e sorriram.
Cordelia devolveu o sorriso. Luz Alcala e Polly Retty, diretoras da GF&G,
também estavam na mesa com Cordelia. Às vezes, faziam elogios adequados a
ela. Obviamente estavam gostando de como o show beneficente estava
avançando. Que demais, pensou Cordelia. Assim, a Variety vai descrever esse
evento. São bons pra caramba.
O U2 terminou seu set, e o quarteto irlandês saiu do palco. Os aplausos
foram ensurdecedores, e eles voltaram para um bis rápido. Aquilo já estava
calculado no cronograma. Já era de se esperar.
Depois do bis, a tela desceu do teto da Funhouse, quase acertando a grua
Louma, e a propaganda eficiente e doada para o Projeto New York AIDS foi
projetada. Era a parte comercial. Ninguém se importou. Cordelia se perguntou se
deveria ir aos bastidores checar se tudo estava em ordem. Não, ela decidiu.
Precisava estar no lugar onde estava — esperando crises horrendas. Não
precisava procurá-las.
Os Coward Brothers saíram para uma avalanche de aplausos. T-Bone e
Elvis botaram fogo no público com “People’s Limousine” e outros dezesseis
minutos que passaram voando.
Entre os sets, quando a transmissão passava para uma mensagem gravada,
o diretor de iluminação ligava os holofotes sobre as bolas espelhadas e o
candelabro da Funhouse. O interior do clube explodia numa fantasmagoria de
luzes fragmentadas.
Little Steven e sua banda entraram. Os assistentes de palco eram rápidos e
precisos. Os músicos ligavam os instrumentos no sistema da casa e começavam
a tocar. Little Steven puxava um cachecol diferente para cada música. A
multidão adorou.
Era a vez de C.C. Ry der. Ela segurava o braço do violão de doze cordas preto e
lustroso com as duas mãos.
— Não estrangule o violão — disse Holley. Suavemente, ele envolveu as
mãos dela com as suas.
— Merda. — Jack lhe deu um abraço. Nômada não pareceu se importar.
Ela abraçou C.C. por alguns segundos e disse:
— Você vai arrasar.
— Se não — C.C. falou —, espero que desta vez eu vire um trem expresso.
Jack sabia que ela se referia a sua transformação do vírus carta selvagem
de muitos anos atrás, quando o trauma a catalisou e a transformou numa cópia
mais que razoável de um vagão de metrô.
C.C. chegou ao palco a toda e não parou. Era como se tivesse lançado uma
rede de poder sobre o público. Houve um momento, no início, em que ela
titubeou, mas em seguida pareceu reunir forças. Era como se a energia fluísse
para dentro das pessoas em suas mesas para depois ser amplificada e devolvida
para a cantora. A mágica, Jack pensou, da empatia genuína.
Ela começou com um dos antigos sucessos e rapidamente seguiu para suas
novas baladas. Seus vinte minutos passaram num instante para Jack. C.C.
terminou com a canção que havia estreado em público no primeiro ensaio.
— Mas eu teria que entrar agora — Buddy Holley disse com teimosia.
— O acordo é o seguinte — Jack falou —, Bruce e a Girls With Guns
decidiram que querem entrar agora e deixar você para o número final.
Nômada olhou para além deles.
— O Boss e aquela garota, Tami, estão saindo no braço. Parece que ela está
ganhando.
— Mas é meu número — Holley disse.
— Cala a sua boca — disse a líder da Girls With Guns, Tami, enquanto se
reerguia, esfregando o ombro direito. Ela soltava as palavras com afetação
considerável. — Ele e eu — ela apontou para Bruce Springsteen, que sorria de
forma lastimável —, nós dois achamos que aprendemos tudo que sabemos com o
senhor. Então, o senhor será o ponto alto. É isso, Bud. — Ela ficou na ponta dos
pés e beijou-o nos lábios. Holley olhou perplexo.
A diretora de palco estava sinalizando com frenesi.
Os olhos de vidro das SteadiCams davam zooms implacáveis.
As Girls With Guns aumentaram a energia ao virar do avesso a música
melosa de Tommy Boy ce e Bobby Hart, “I Wonder What She’s Doing Tonight”,
pisoteando-a até virar geleia e esfregando o resto nos lábios zombeteiros, e
fazendo uma apresentação infernal. Terminaram com “Proud Flesh”, um hino
cortante de romance e niilismo.
— Então — Tami disse para Bruce quando levou suas irmãs para fora do
palco —, tenta superar.
Bruce Springsteen fez o seu melhor.
Ai, Deus, Cordelia pensou quando os ecos finalmente terminaram. Ela assistiu ao
Boss erguendo a guitarra com uma das mãos e elevando o punho da outra. Que
Buddy consiga arrasar. Por favor. O Boss fez mais uma reverência ao público,
em seguida conduziu a banda para os bastidores.
Cordelia piscou. Pensou ter visto St. John Latham numa mesa ao fundo do
clube. O dinheiro da Latham, Strauss é tão bom quanto o de qualquer pessoa, ela
pensou. O problema era que Latham parecia estar olhando diretamente para ela.
Ela suspirou quando a penúltima propaganda terminou e a diretora preparou
o microfone. O monitor mostrou uma tomada ampla que correu o palco do fundo
para a frente.
— E... vai! — disse a diretora no microfone.
Por favor, Cordelia voltou a implorar mentalmente.
♥
— Alô, Lubbock! — Buddy Holley disse para o público próximo e para os
quinhentos milhões de sombras eletrônicas. A plateia sorriu.
Jack sorriu também de seu lugar privilegiado na beirada do palco. Ele
agachou-se para evitar ficar no caminho da plataforma da câmera que passava
nos trilhos. A dor corroía regularmente suas entranhas, e ele não sabia quanto
tempo aguentaria naquela posição. Percebeu que o que queria naquele momento,
mais do que qualquer coisa, era simplesmente se deitar. Queria descansar. Logo,
logo, ele pensou, mórbido. Descansarei tudo que quiser. Para sempre.
Holley bateu sua primeira nota, em seguida passou os dedos pelas cordas. O
toque mágico de Buddy Holley. Agora talvez fosse uma técnica padrão, mas três
décadas antes havia sinalizado uma revolução.
Fe-e-e-e-era rude
Sem amigos
Sem amor
Para sempre
Jack amou a música, mas a dor era horrenda. Quando não pôde mais
suportar, ele se levantou e saiu em silêncio. Perderia o bis.
Quando Jack escapou pela porta da Funhouse que dava para um beco, sentiu-se
mal no corpo e no coração. Eu devia ter ficado para o bis de Buddy, ele pensou.
Mas Buddy se sairia bem.
Algo gigantesco, de tamanho sobre-humano, raspava no asfalto ao deslocar
seu peso.
Jack parou de uma vez quando uma sombra mais profunda que a escuridão
no restante do beco foi para cima dele.
— Imaginei que uma festa de maricas de luxo como esta atrairia todos os
meus amiguinhos — Pancada disse. — Mas não esperava que o primeiro
desgraçado fosse você. — Sem alerta, a mão direita deformada zuniu, acertando
Jack na cabeça e lançando-o de costas na lateral de tijolos de um prédio.
Jack sentiu algo ceder, se era osso ou cartilagem, não conseguiu dizer. Tudo
que sabia era que se afastava do que era a luz. Queria a escuridão, mas não
ainda, não daquela forma. Tentou lutar. Tinha ciência de que Pancada o havia
prendido com força e o erguera do chão. O brutamonte arrancou o cinto de Jack
e abaixou-lhe as calças.
— Tenho um presentinho de despedida para você, Jack. Acho que você vai
gostar. Aposto que sua sobrinha Cordelia vai se lambuzar quando eu der o dela
também.
Jack tentou se forçar a recuperar a consciência. Em seguida, sentiu o que
Pancada estava enfiando entre suas nádegas. Dentro dele. Esticando e rasgando.
Nada havia doído tanto. Nada!
— Vou guardar a menininha para mais tarde — Pancada disse.
Jesus, Jack pensou em meio à agonia. Cordelia.
— Deixe-a em paz, seu cochon desgraçado!
— Paus e pedras — Pancada falou, emitindo uma risadinha aguda —, mas
apenas o Bolão pode me ferir... — Ele forçou para a frente, e Jack berrou.
Onde estava o outro?, Jack pensou desesperadamente. Seu cérebro parecia
afundar numa névoa destruidora e dolorosa. Preciso de você. Agora. Preciso me
transformar. Apenas desta vez. Apenas para matar esse filho de uma puta.
E, então, sentiu a mudança chegar.
Também sabia que estava morrendo.
Ótimo, ele pensou. Bom para ambos. E uma surpresa para Pancada.
Jack sentiu os dentes brotando na mandíbula alongada. Por pestilência ou
pelas garras, seu filho de uma puta, você vai morrer. O ódio feroz o levou um
pouco mais distante.
Nômada!, seu pensamento gritou noite adentro. Me ouça. Salve Cordelia.
Vou guardar a menininha para mais tarde, a ameaça de Pancada ecoou,
ondulando num vazio. E morreu.
O morto mergulhou na escuridão.
♣ ♦ ♠ ♥
Laços de sangue
II
Dita veio com passinhos incertos pelo corredor, seus saltos incrivelmente altos
estalando no piso de cores esmaecidas.
— Doutor, o sr. Marion foi embora!
Tachy on ergueu os olhos do prontuário que estava estudando.
— Quem?
— O sr. Marion, o tutor.
— Ah, que merda. — Não era um expletivo comum vindo dele, e Dita o
encarou. — Dita, estou ocupado demais para lidar com isso agora, e como esse é
um caso perdido, peço que contrate um novo tutor por mim.
— Mas eu não saberia o que procurar.
— Alguém com conhecimentos sólidos de matemática e ciências. Um
pouco de história e literatura, e um conhecimento ou ao menos apreço pela
música seria ótimo.
O estalo e o chiado do pager, e a voz suave dos alto-falantes o interrompeu.
— Dr. Tachy on, emergência. Dr. Tachy on, emergência.
— Mas...
— Use seu bom senso. — Pendurando o estetoscópio no pescoço, Tachy on
ergueu o telefone da enfermaria do terceiro andar. — O que foi?
— Carta selvagem — veio a resposta concisa do Dr. Finn.
Ele não perdeu mais tempo e partiu para o elevador.
A criança estava se contorcendo na mesa de exame. Os cascos de Finn
estalavam nervosamente no piso enquanto procurava prendê-la. Era o primeiro
médico curinga na Clínica Memorial Bly the Van Renssaeler, e houve uma
resistência inicial da comunidade curinga por medo de que ele tivesse conseguido
entrar na faculdade por conta de cotas e não por mérito. Depois de duas semanas
trabalhando com o jovem, Tach pôde garantir que seus medos eram infundados.
A mãe da criança encarou Tachy on com pânico nos olhos.
Superficialmente, parecia uma limpa; o que seu código genético continha, claro,
era outra questão. Manifestação ou infecção nova? Apenas exames mostrariam.
— O exame inicial não indica transformação. Conseguimos estabilizar a
pressão e os batimentos cardíacos, e eu solicitei um trunfo, mas...
— Obrigado, doutor. Senhora...?
— Wilson — informou a enfermeira.
— Wilson. — Tachy on tomou-a pelo braço, afastando-a da criança
convulsiva. — Sua filha contraiu o carta selvagem, e é bem evidente que ela tirou
uma Rainha Negra. — A mulher ofegou, deu um gritinho e cobriu a boca com a
mão. — Precisamos tomar uma decisão muito rápida. Podemos dar um antivírus
que desenvolvi...
— Pode dar!
— Mas preciso alertá-la que esse tratamento tem uma taxa de sucesso de
apenas 20%. O resultado costumeiro é que não haja melhoria. O vírus segue seu
curso. Também há uma chance muito pequena de morte como reação ao trunfo.
— Ela está morrendo mesmo. Não importa se acelerar o processo.
Uma enfermeira apareceu ao lado dela com os documentos para assinar.
Tachy on já estava preparando a seringa. Finn e três enfermeiras
precisaram se juntar para manter a garota quieta. O êmbolo foi pressionado.
Tach segurou o pulso da menina, o tremular das veias sob os dedos. Cada vez
mais fraco. O monitor parou de registrar. O grito do luto ecoava no choro da
mãe.
O que vinha depois sempre era horrendo. As inadequadas palavras de
conforto, a obtenção de consentimento para uma autópsia, os exames de sangue
nos pais — neste caso, infelizmente, incompleto, pois Beth Wilson tinha auxílio-
família, e o homem que infectara a pequena Sara havia desaparecido de sua vida
muito tempo antes. Ela gastara os últimos trinta dólares do auxílio com táxis,
pulando de hospital para hospital, sendo rejeitada quando o vírus era descoberto,
até por fim chegar à clínica do Bairro dos Curingas. Tach lhe deu dinheiro e a
enviou para casa com Riggs na limusine.
Esparramado na cadeira, Tach puxou uma garrafa da gaveta da mesa e deu
um grande gole.
— Importa-se se eu tomar um trago? — Finn perguntou.
Ele estava no chão, com as quatro pernas impecavelmente curvadas
embaixo dele. Sua pele dourada tremia levemente sobre uma das pernas, e ele se
torceu para se coçar. Tach, virado em sua cadeira, observou o jovem e concluiu
que Finn parecia um personagem da Disney. O rosto pequeno e pontudo, os olhos
azuis puxados para cima, uma confusão de cachos brancos que caíam sobre a
testa e corriam pela coluna para formar uma crina. Sua cauda espalhava-se atrás
dele como um manto branco. Quando estava em cirurgia, eles faziam uma
trança e passavam fita cirúrgica ao redor. Tach sugeriu que ele cortasse o cabelo
curtinho e recebeu um olhar horrorizado como resposta. Em seguida, Tach
percebeu que a cascata de cabelos que raspavam o chão eram o orgulho e a
alegria de Finn.
Encarando aqueles quatro cascos do tamanho de xícaras de chá, Tach quis
perguntar se Finn havia nascido daquele jeito ou se metamorfoseado após o
nascimento. Se tivesse sido uma transformação intrauterina, Tachy on podia
apostar que fora uma cesariana. Mas seria estranho perguntar. Embora Finn
parecesse incrivelmente bem ajustado, Tachy on seria o primeiro a admitir que
não conhecia o homem tão bem.
Finn girava a garrafa devagar entre os dedos e com o cenho franzido para o
nada.
— O que foi? — Tachy perguntou.
— Nunca tinha trabalhado entre curingas até agora.
— É?
— Sim, meu pai teve influência e dinheiro o bastante para me enviar para
as melhores escolas de medicina e me incluir num programa de residência em
Cedars, Los Angeles.
— Então, por que está aqui?
— Pensei que já era hora de conhecer alguns curingas. Ter uma visão da
experiência curinga.
— Isso é muito nobre.
— Não, é culpa mesmo. Cresci num palácio colonial espanhol em Bel Air.
Se papai não pudesse comprar a aceitação das pessoas, ele as intimidava até me
aceitarem.
— O que seu pai fazia?
— Faz. Ele é produtor de cinema. Muito bem-sucedido.
— E você se tornou médico.
— Bem, dificilmente poderia virar ator.
— Verdade — Tachy on se levantou. — Se você quiser ter mais um pouco
de experiência com curingas, estou indo para o Cry stal Palace fazer um relatório
diário. Se quiser me acompanhar.
— Claro. Melhor que ficar aqui esperando outra Rainha Negra chegar.
Queria que vocês tivessem trabalhado um pouco mais antes de mandar o
xenovírus Takis-A para teste em campo.
— Mas, Finn, segundo os padrões de qualquer um, foi um sucesso
estrondoso.
— É mesmo? Diga isso para a senhora Wilson.
♣ ♦ ♠ ♥
Junho de 1987
Todos os cavalos do rei
ENTRADA APENAS $2,50 era o que constava na placa sobre a bilheteria escura
na frente do Museu Popular Carta Selvagem.
A bilheteria estava vazia, as portas do museu trancadas. Tom tocou a
campainha ao lado do guichê. Depois de um minuto, tocou novamente. Ruídos de
pés se arrastando vieram lá de dentro, e uma porta atrás da cabine se abriu. Um
olho apareceu, viscoso, azul pálido, em um talo longo e carnoso que se enroscou
no batente da porta. Ele se fixou em Tom e piscou duas vezes.
Um curinga entrou na cabine. Tinha uma dúzia de olhos em longos talos
preênseis que brotavam da testa e moviam-se sem parar, como serpentes.
Tirando isso, era uma pessoa comum.
— Sabe ler não? — ele falou numa voz fina, anasalada. — Estamos
fechados. — Em uma das mãos, ele segurava uma placa pequena, que deslizou
na frente da janela do guichê. Nela estava a palavra FECHADO.
A maneira que os olhos do curinga se mantinham em movimento deixou
Tom com uma sensação de enjoo na boca do estômago.
— Você é Dutton?
Um a um os olhos viraram-se, e foram parando até todos estarem fixados
nele, observando-o.
— Dutton está te esperando? — o curinga perguntou. Tom assentiu. — Tudo
bem, dê a volta. — Ele deu as costas e saiu da cabine, mas dois ou três olhos
continuaram encarando Tom, curiosos e sem piscar, até que a porta se fechasse.
A entrada lateral tinha uma pesada porta de metal corta-fogo que dava para
um beco. Tom esperou com nervosismo enquanto trancas eram abertas e trincos
erguidos lá dentro. Sempre se ouviam histórias sobre os becos do Bairro dos
Curingas, e aquele parecia especialmente escuro e sombrio.
— Por aqui — o cheio de olhos disse quando a porta finalmente se abriu.
O museu não tinha janelas, suas saletas eram ainda mais sinistras que o
beco. Tom olhou ao redor com curiosidade quando passaram por vários
corredores longos com corrimões de latão empoeirados e dioramas com figuras
em cera de cada lado. Ele havia flutuado sobre o museu milhares de vezes como
Tartaruga, mas nunca havia posto um pé lá dentro.
Com as luzes apagadas, as figuras nas sombras pareciam extremamente
reais. O Dr. Tachy on estava em pé num monte de areia branca, a espaçonave
pintada ao fundo, enquanto soldados nervosos desciam de um jipe. Jetboy tinha
as mãos ao peito enquanto o Dr. Tod, com seu rosto de aço, o enchia de balas.
Uma loira em um collant rasgado lutava na mão do Grande Gorila, enquanto ele
escalava um modelo do Empire State Building. Dúzias de curingas, cada qual
mais deformado que o outro, retorciam-se sugestivamente em algum porão
úmido, as roupas espalhadas ao redor.
O guia desapareceu numa virada de corredor. Tom seguiu-o e se viu frente
a frente com uma sala cheia de monstros.
Mergulhadas nas sombras, as criaturas pareciam tão reais que o obrigaram
a parar. Aranhas do tamanho de minivans, coisas voadoras que pingavam ácido,
vermes gigantes com anéis de dentes serrilhados, monstruosidades humanoides
cuja pele tremia como gelatina; eles enchiam a sala por trás do vidro curvado,
cercando-o por três lados, amontoados uns nos outros, tentando fugir.
— Nosso mais novo diorama — uma voz baixinha soou atrás dele. — Terra
versus Enxame. Aperte os botões.
Tom olhou para baixo. Meia dúzia de grandes botões vermelhos haviam sido
instalados no corrimão. Ele apertou um. Dentro do diorama, um holofote
iluminou um simulacro de cera do Modular suspenso no teto, enquanto raios
idênticos de luz escarlate saíam das armas montadas em seus ombros. Os lasers
atingiam um dos brotos do Enxame, e finos tentáculos de fumaça subiam, e um
longo chiado de dor saía de alto-falantes escondidos.
Tom apertou um segundo botão. Modular desapareceu nas sombras, e as
luzes se acenderam sobre o Uivador, com seus trajes amarelos de batalha,
delineado contra uma nuvem de fumaça de um tanque em chamas. O simulacro
abria a boca, os alto-falantes berravam. Um broto do Enxame tremia em agonia.
— As crianças amam este — a voz disse. — É uma geração criada com
efeitos especiais. Tenho medo que logo exijam mais do que simples bonecos de
cera. É preciso se adaptar aos tempos modernos.
Um homem alto com um terno escuro de corte fora de moda estava de pé
em uma porta de um lado do diorama, e o curinga com os olhos em talos
encolheu-se ao lado dele.
— Sou Charles Dutton — ele disse, oferecendo a mão enluvada. Uma capa
preta e pesada estava jogada sobre os ombros. Parecia que havia saído de uma
carruagem de aluguel na Londres vitoriana, exceto pelo capuz puxado sobre a
cabeça, que escondia o rosto na sombra. — Ficaremos mais confortáveis no
escritório — Dutton disse. — Venha por aqui.
De repente, Tom ficou inquieto. Ele se pegou perguntando, mais uma vez,
que diabos estava fazendo ali. Uma coisa era voar sobre o Bairro dos Curingas
como Tartaruga, seguro num casco de aço, e outra bem diferente era se
aventurar em suas ruas com sua carne totalmente vulnerável. Porém, ele já
havia chegado até ali. Agora, não havia como voltar. Seguiu seu anfitrião através
de uma porta marcada com APENAS FUNCIONÁRIOS e desceu um lance
estreito de escadas. Passaram por uma segunda porta, através de uma oficina
cavernosa no porão, até entrarem num escritório pequeno, mas mobiliado com
conforto.
— Aceita uma bebida? — o homem encapuzado perguntou. Foi até o bar no
canto do escritório e serviu um conhaque.
— Não — Tom disse. Era afetado pela bebida e ficava bêbado rápido, e
precisava de todos seus instintos alertas naquele momento. Além disso, beber
com aquela maldita máscara de sapo seria um inferno.
— Avise se mudar de ideia. — Agitando o copo, Dutton cruzou a sala e
sentou-se atrás de uma mesa com pés de leão. — Por favor, sente-se. O senhor
parece terrivelmente desconfortável assim, em pé.
Tom não estava ouvindo. Algo havia chamado sua atenção.
Havia uma cabeça na mesa.
Dutton notou o interesse e virou a cabeça. O rosto era extremamente bonito,
mas as feições perfeitas estavam congeladas em uma expressão de surpresa. Em
vez de cabelos, o topo do crânio era um domo de plástico com um disco de radar
embaixo dele. O plástico estava rachado. Cabos partidos, escuros e meio
derretidos sacudiam do toco serrilhado do pescoço.
— É o Modular — Tom disse, chocado. Em meio ao atordoamento, ele se
sentou na ponta de uma cadeira com encosto de couro.
— Apenas a cabeça — Dutton comentou.
Tinha de ser uma réplica de cera, Tom disse a si mesmo. Ele estendeu a
mão e tocou-a.
— Não é de cera.
— Claro que não — Dutton afirmou. — É autêntica. Compramos de um dos
cumins do Aces High. Não me importo em dizer que nos custou uma soma
bastante considerável. Nosso novo diorama dramatizará o ataque do Astrônomo
ao Aces High. Vai mostrar como Modular foi destruído durante aquela confusão.
A cabeça dará uma certa verossimilhança à exposição, não acha?
Aquela ideia toda deixou Tom enjoado.
— O senhor não planeja colocar o corpo do Kid Dinossauro na exposição
também, não é? — ele perguntou, irritado.
— O garoto foi cremado — Dutton respondeu num tom direto. — Temos
informações seguras de que o necrotério substituiu-o por um indigente, limpou os
ossos com besouros do tapete e vendeu o esqueleto a Michael Jackson.
Tom perdeu a fala.
— Você está chocado — Dutton disse. — Não estaria se fosse um curinga
embaixo da máscara. Este é o Bairro dos Curingas. — Ele puxou para trás o
capuz que cobria seu rosto. Uma cabeça de defunto sorriu para Tom do outro
lado da mesa; olhos escuros e fundos embaixo do osso pronunciado onde
ficariam as sobrancelhas, pele amarela como couro curtido estendida no rosto
sem nariz, lábios ou cabelos, os dentes expostos num ricto de sorriso. — Quando
se vive aqui o suficiente, nada o choca — Dutton falou. Compassivo, puxou
novamente o capuz para esconder o rosto de caveira viva, mas Tom ainda
conseguia sentir o peso de seus olhos. — Bom — ele falou —, Xavier Desmond
me deu a entender que o senhor tem uma proposta para mim. Uma nova
exposição principal.
Tom já vira milhares de curingas em seus longos anos como Tartaruga, mas
sempre a distância, nas telas das TVs, com camadas de armadura entre eles.
Sentado sozinho em um porão sombrio com um homem encapuzado cujo rosto
era um crânio amarelado era um pouco diferente.
— Sim — ele disse, hesitante.
— Sempre estamos abertos a novas exposições, quanto mais espetaculares,
melhores. Des não é dado às hipérboles, então quando ele me disse que o senhor
nos oferecerá algo realmente único, fiquei interessado. Qual é exatamente a
natureza dessa exposição?
— Os cascos do Tartaruga — Tom disse.
Dutton ficou em silêncio por um momento.
— Não são réplicas?
— São os verdadeiros — Tom lhe disse.
— O casco do Tartaruga foi destruído no último Dia do Carta Selvagem —
Dutton disse. — Eles tiraram peças dele do fundo do rio Hudson.
— Aquele era um dos cascos. Havia modelos anteriores. Eu consegui três
deles, inclusive o primeiro. Placas blindadas sobre um chassi de fusca. Está com
alguns tubos queimados, mas tirando isso está quase intacto. O senhor poderia
limpá-lo, ligar as TVs num circuito fechado, fazer uma simulação real de voo.
Cobrar extra para as pessoas entrarem nele. Os outros dois cascos estão vazios,
mas ainda dão um belo panorama. Se tiver espaço suficiente, poderia pendurá-
los no teto, como os aviões no Smithsonian. — Tom inclinou-se para a frente. —
Se quiser transformar este lugar num museu de verdade, e não apenas num show
de horrores para turistas limpos, precisa de exposições reais.
Dutton assentiu.
— Intrigante. Admito que fico tentado. Mas qualquer um poderia construir
um casco. Precisaríamos de algum tipo de autenticação. Se não se importar que
eu pergunte, como eles vieram parar nas suas mãos?
Tom hesitou. Xavier Desmond disse que Dutton era de confiança, mas não
era fácil deixar de lado 24 anos de precaução.
— São meus — ele disse. — Eu sou o Tartaruga.
Dessa vez, o silêncio de Dutton foi ainda mais longo.
— Reza a lenda que o Tartaruga está morto.
— A lenda está errada.
— Entendo. Não creio que o senhor se importe em me dar uma prova.
Tom deu um suspiro profundo. Suas mãos apertaram os braços da cadeira.
Ele olhou para além da mesa, concentrado. A cabeça de Modular ergueu-se
trinta centímetros no ar e virou lentamente até os olhos estarem fixos em Dutton.
— Telecinesia é um poder relativamente comum — Dutton falou, sem
ênfase. — O Tartaruga distingue-se não pela mera telecinesia, mas por sua força.
Erga a mesa e me convença.
Tom hesitou. Ele não queria estragar um negócio admitindo que não poderia
levantar a mesa, não se estivesse fora do casco. De repente, sem pensar, ele se
ouviu dizendo:
— Compre os cascos, e eu voarei neles até aqui. Em todos os três.
As palavras escaparam com a maior facilidade; apenas depois que elas
estavam lá, penduradas no ar, é que Tom percebeu o que havia dito.
Dutton fez uma pausa pensativa.
— Poderíamos filmar a chegada, rodar em loop como parte da exposição.
Sim, eu acho que seria a autenticação de que precisaríamos. Quanto o senhor
está pedindo?
Tom sentiu um momento de pânico cego. A cabeça de Modular caiu com
um baque seco na mesa de Dutton.
— Cem mil dólares — ele soltou. Duas vezes o que pretendia pedir.
— Demais. Ofereço quarenta mil.
— Nem ferrando — Tom rebateu. — É uma exposição única.
— Uma trinca, na verdade — Dutton enfatizou. — Talvez eu possa chegar a
cinquenta mil.
— O valor histórico já vale mais que isso. Eles vão dar a essa porra de lugar
respeitabilidade. O senhor vai ter filas rodando o quarteirão.
— Sessenta e cinco mil — Dutton disse. — E temo que seja minha oferta
final.
Tom ergueu-se, aliviado, mas um tanto decepcionado também.
— Tudo bem. Obrigado por me receber. Por acaso o senhor não teria o
número do Michael Jackson? — Como Dutton não respondeu, ele começou a
caminhar até a porta.
— Oitenta mil — Dutton disse atrás dele. Tom virou-se. Dutton pigarreou,
como se pedisse desculpas. — É isso. De verdade. Não poderia subir mais, nem
se quisesse. Não sem liquidar alguns dos meus investimentos, o que não estou
preparado para fazer.
Tom parou na porta. Ele quase escapou. Agora, estava travado novamente.
Não viu maneira de sair daquela situação sem parecer um idiota.
— Vou precisar em dinheiro vivo.
Dutton deu uma risadinha.
— Não imagino que um cheque feito à ordem do Grande e Poderoso
Tartaruga seria fácil de descontar. Precisarei de algumas semanas para levantar
essa quantia, mas imagino que posso consegui-la. — O homem encapuzado
ergueu-se de sua cadeira e deu a volta na mesa. — Acordo fechado, então?
— Fechado — Tom falou. — Se incluir a cabeça.
— A cabeça? — Dutton soou surpreso e até divertido. — Sentimental, não?
— Ele pegou a cabeça de Modular e encarou os olhos cegos, sem foco. — É
apenas uma máquina, o senhor sabe? Uma máquina quebrada.
— Ele era um de nós — Tom falou com uma paixão que surpreendeu até a
ele. — Não parece certo deixá-lo aqui.
— Ases — Dutton suspirou. — Bem, suponho que podemos fazer uma
réplica em cera para o diorama do Aces High. É sua, assim que recebermos os
cascos.
— Vocês terão os cascos quando eu tiver meu dinheiro — Tom falou.
— Bem justo — Dutton retrucou.
Jesus, Tom pensou, em que merda eu me meti e que merda eu fiz? Em
seguida, controlou-se. Oitenta mil dólares eram uma dinheirama.
Dinheiro suficiente para fazer valer a pena se transformar em Tartaruga
uma última vez.
♣ ♦ ♠ ♥
Concerto para sirene e serotonina
Após fazer um pequeno favor para Veronica, relatar seu avanço a Theotocopolos
e telefonar para a Latham, Strauss pedindo uma reunião, Croy d encontrou-se
com Veronica para jantar. Enquanto falava sobre o dia, ela sacudiu a cabeça
quando ele mencionou St. John Latham.
— Você tá maluco — ela lhe disse. — Se ele é tão bem relacionado, por que
você quer se meter com esse cara?
— Alguém quer saber algo que ele estava armando.
Ela franziu o cenho.
— Quando encontro um cara de que gosto, não acho legal perdê-lo tão
rápido.
— Não vai acontecer nada comigo.
Ela suspirou e pousou a mão no braço do homem.
— Estou falando sério — ela disse.
— Eu também. Posso me cuidar.
— Como assim? O quanto isso é perigoso?
— Tenho um trabalho a terminar e acho que estou quase lá. Provavelmente
vou encerrar logo o caso sem nem suar e pegar o resto da minha grana e, talvez,
tirar umas férias antes de dormir novamente. Pensei que poderíamos ir para um
lugar realmente bacana juntos... digamos, o Caribe.
— Ah, Croy d — ela falou, tomando a mão dele —, você pensou em mim.
— Claro que pensei em você. Agora, tenho um compromisso com Latham
na quinta-feira. Talvez consiga terminar meu trabalho até o fim de semana.
Então teremos um tempo só pra nós dois.
— Então, tenha cuidado.
— Caramba, estou quase no fim. Não tive problema nenhum até agora.
♣
Após parar em um dos bancos para tirar um pouco mais de dinheiro, Croy d
pegou um táxi até o prédio onde ficava o escritório de advocacia da Latham,
Strauss. Ele havia marcado a reunião descrevendo um caso fictício pensado para
soar caro, e chegou quinze minutos antes do horário. Ao entrar na sala de espera,
ele suprimiu um desejo repentino de medicação. Sair com Veronica parecia
fazer com que ele pensasse nisso antes do tempo.
Ele se identificou para a recepcionista, sentou-se e leu uma revista até ela
dizer:
— O sr. Latham vai recebê-lo agora, sr. Smith.
Croy d levantou-se e entrou na sala. Latham levantou-se de trás de sua
mesa, exibindo um terno cinza cortado com elegância, e estendeu a mão. Era um
pouco mais baixo que Croy d, e suas feições refinadas permaneceram sem
expressão.
— Sr. Smith — ele cumprimentou —, sente-se, por favor.
Croy d permaneceu em pé
— Não.
Latham ergueu a sobrancelha, em seguida se sentou.
— Como quiser — disse. — Por que não me conta sobre seu caso?
— Porque não há caso nenhum. O que preciso na verdade é de algumas
informações.
— Ah? Quais seriam?
Em vez de responder, Croy d desviou o rosto, lançando um olhar ao redor da
sala. Em seguida, sua mão se estendeu e agarrou um peso de papel de pedra
laranja e verde da mesa de Latham. Ele a segurou bem diante de si e a
espremeu, fazendo um som de estalo e esfarelamento. Quando abriu a mão, uma
chuva de farelo caiu sobre a mesa.
Latham permaneceu sem expressão.
— Que tipo de informação o senhor está buscando?
— O senhor fez um trabalho para um novo grupo — Croy d falou —, aquele
que está tentando se apossar da Máfia.
— O senhor é do Departamento de Justiça?
— Não.
— Da Promotoria?
— Não sou da polícia — Croy d retrucou —, e também não sou promotor.
Sou apenas alguém que precisa de uma resposta.
— Qual é a pergunta?
— Quem é o chefe dessa nova família? É tudo que querem saber.
— Por quê?
— Talvez alguém deseje marcar uma reunião com essa pessoa.
— Interessante — Latham disse. — O senhor deseja me contratar para
marcar essa reunião.
— Não, só quero saber quem é a pessoa no comando.
— Quid pro quo — Latham observou. — O que o senhor tem a me oferecer
em troca?
— Estou preparado para poupar para o senhor algumas contas bem caras
com cirurgiões ortopédicos e fisioterapeutas — Croy d disse. — Seus advogados
sabem tudo sobre essas questões, não é?
Latham abriu um sorriso totalmente artificial.
— Mate-me e será um homem morto, fira-me e será um homem morto,
ameace-me e será um homem morto. Seu truquezinho com a pedra não significa
nada. Existem ases com poderes mais bacanas que esse à mão. Agora, isso que o
senhor fez foi uma ameaça?
Croy d devolveu o sorriso.
— Eu morrerei muito em breve, sr. Latham, para renascer em uma forma
completamente diferente. Não vou matá-lo. Mas vamos supor que eu esteja aqui
para fazer o senhor falar, impedir a dor e, vamos supor, que mais tarde seus
amigos estejam prestes a fechar um contrato com o homem que está diante do
senhor. Não importaria. Ele não existiria mais. Eu sou uma série de efemeridades
biológicas.
— O senhor é o Dorminhoco.
— Sim.
— Entendo. E se eu der essas informações, o que o senhor acha que
acontecerá comigo?
— Nada. Quem sabe?
Latham suspirou.
— O senhor me coloca numa situação extremamente desconfortável.
— Essa foi minha intenção — Croy d olhou para o relógio —, e minha
agenda está apertada. Eu deveria ter começado a arrebentar sua cara um minuto
e meio atrás, mas estou tentando ser um cara legal. O que deveríamos fazer,
senhor advogado?
— Vou cooperar com o senhor — Latham disse —, porque não acho que
fará um dedo de diferença no que está acontecendo neste minuto.
— Por que não?
— Posso lhe dar um nome, mas não um endereço. Não sei de onde eles
operam. Sempre nos encontramos em lugares desertos ou falamos ao telefone.
Porém, não poderei lhe dar nem um número de telefone, pois são eles que
sempre entram em contato comigo. E digo que não faz diferença porque não
acredito que os interesses que o senhor representa sejam capazes de causar
algum mal a eles. Esse grupo é bem equipado com ases. Além disso, estou
plenamente convencido de que conseguirão o que talvez possamos chamar de
tomada de controle “corporativa” em breve. Se seu empregador deseja salvar
vidas e, talvez, até mesmo guardar uns trocados para um fundo de aposentadoria,
eu ficaria feliz em tentar conseguir facilitar um acordo.
— Não — Croy d falou —, não tenho instruções para fechar esse tipo de
acordo.
— Ficaria surpreso se tivesse — Latham olhou para o telefone. — Mas se o
senhor desejar repassar minha sugestão, fique à vontade.
Croy d não se moveu.
— Eu farei isso, com o nome que o senhor me dará.
Latham assentiu.
— Como quiser. Minha oferta para negociar não garante a aceitação de
termos particulares, e eu me sinto obrigado a informar o senhor de que talvez não
seja de forma alguma aceitável para o outro lado.
— Eu direi isso também — Croy d confirmou. — Qual é o nome?
— Também para ser totalmente escrupuloso, devo lhe dizer que, se o senhor
me forçar a divulgar o nome, tenho a obrigação de informar meu cliente de que
essa informação foi repassada e para quem. Não poderei assumir
responsabilidades por quaisquer ações que isso poderá desencadear.
— O nome do meu cliente também não foi declarado.
— Como em outras coisas na vida, devemos ser guiados por certas
suposições.
— Pare de enrolar e me diga o nome.
— Muito bem — Latham disse. — Siu Ma.
— Diga novamente.
Latham repetiu o nome.
— Escreva.
Ele rabiscou o nome num bloco, rasgou o papel e entregou-o a Croy d.
— Oriental — Croy d ponderou. — Suponho que esse cara é chefe de um
tong ou uma tríade ou de uma y akuza... um desses clubes de cultura asiática?
— Não é um cara.
— Uma mulher?
O advogado assentiu.
— Não posso lhe dar uma descrição também. Mas provavelmente ela é
baixinha.
Croy d olhou rápido, mas não conseguia decidir se o resíduo de um sorriso
pairava sobre os lábios do outro.
— E aposto que ela não está no catálogo telefônico de Manhattan — Croy d
aventou.
— Boa aposta. Então, já lhe dei o que o senhor veio buscar. Pode levar, não
vai servir de nada. — Ele se levantou, afastou-se da mesa, foi até uma janela e
encarou o tráfego lá embaixo. — Não seria ótimo — ele disse depois de um
tempo — se houvesse uma maneira de vocês, aberrações do carta selvagem,
entrarem com uma ação contra os takisianos?
Croy d saiu, não muito contente com o que havia desencadeado para si.
♣ ♦ ♠ ♥
Matizes da mente
Stephen Leigh
Q uarta-feira, 9h15
Por sete dias, desde que Misha chegara a Nova York, ela teve de se encontrar
todas as noites com o curinga Gimli e as abominações que ele reunia ao seu
redor.
Por sete dias, ela viveu naquela ferida aberta chamada Bairro dos Curingas,
esperando.
Por sete dias não houve visões. E isso era o mais importante.
Visões sempre regeram a vida de Misha. Era Kahina, a Profetisa: os sonhos
de Alá mostraram-lhe Hartmann, o Satã que fazia dançar marionetes em suas
garras. As visões mostraram Gimli e Sara Morgenstern. As visões de Alá a
levaram de volta à mesquita do deserto um dia depois de ela cortar a garganta do
irmão para receber de um fiel aquilo que lhe traria vingança e derrubaria
Hartmann: o presente de Alá.
Aquele era o dia da lua nova. Misha tomou aquilo como presságio de que
haveria uma visão. Ela orou para Alá por bem mais de uma hora naquela
manhã, o presente que Ele lhe concedera embalado nos braços.
Ele não lhe trouxe nada.
Quando por fim ela se ergueu do chão, abriu o baú de roupas laqueado,
sentando-se ao lado da cama bamba. Misha tirou o xador e os véus, trocando-os
por uma saia longa e uma blusa. Ela odiava o tecido claro e colorido e a nudez
pecadora que sentia. Os braços e o rosto à mostra faziam-na se sentir vulnerável.
Misha cobriu o presente de Alá com as dobras do xador que ela não ousava
usar ali. Tinha acabado de escondê-lo sob o tecido de algodão preto quando ouviu
o raspar de passos atrás dela.
Medo e ódio mesclados fizeram-na arfar. Ela fechou com tudo a tampa do
baú de roupas e se empertigou.
— O que está fazendo aqui? — Ela se virou, sem perceber que estava
gritando em árabe. — Saia do meu quarto...
Ela nunca se sentiu segura no Bairro dos Curingas, nem uma vez na semana
que esteve ali. Antes, sempre havia seu marido, Say y id, o irmão, Nur. Havia os
servos e os guarda-costas.
Agora, Misha estava ilegalmente num país, vivendo sozinha em uma cidade
cheia de violência, e as únicas pessoas que ela conhecia eram curingas. Apenas
duas noites antes, alguém fora alvejado e morto na rua, fora daqueles quartos
caindo aos pedaços perto do East River. Ela disse a si mesma que era apenas um
curinga, que a morte não importava.
Curingas eram amaldiçoados. As abominações de Alá.
Era um curinga em pé à porta de seu quarto encardido, encarando-a.
— Saia — ela falou em inglês hesitante, cheio de sotaque. — Eu tenho uma
arma.
— Esse quarto é meu — o curinga disse. — Esse quarto é meu e estou
pegando de volta. Você é só uma limpa. Não devia estar aqui. — A forma magra,
esquelética, deu um passo para a frente e ficou sob a luz da única janela do
quarto. Misha reconheceu imediatamente o curinga.
Tinha pedaços de panos brancos acinzentados enrolados na testa, e as
bandagens sujas estavam meladas e marrons com sangue velho. O cabelo estava
duro com o sangue. As mãos também estavam cobertas e grossas gotas
vermelhas vazavam através dos panos enrolados e encharcados para escorrer até
o chão. As roupas que vestia sobre o corpo magro estendiam-se aqui e ali com
nós escondidos, e ela sabia que havia outras feridas abertas vazando no restante
do corpo.
Ela o via todos os dias, observando-a, vigiando. Ele ficava no corredor do
lado de fora de seu quarto, na rua lá fora do prédio, caminhando atrás dela.
Nunca falou, mas seu rancor era óbvio.
— Estigma — Gimli lhe disse quando ela confessou seu medo dele no
primeiro dia. — É o nome dele. Sangra toda a porra do tempo. Tenha um pouco
de compaixão, caramba. Estigma não causa problemas a ninguém.
Ainda assim, o olhar choroso e tenso de Estigma a assustava. Ele sempre
estava lá, sempre com a cara fechada quando ela encontrava seu olhar. Era um
curinga, bastava. Um dos filhos de Satanás, demônios marcados pelo carta
selvagem.
— Saia — Misha lhe disse novamente.
— É meu quarto — ele insistiu como uma criança petulante. Ele arrastava
os pés nervosamente.
— Você está enganado. Eu paguei por ele.
— Antes foi meu. Eu sempre vivi aqui, desde que... — Os lábios dele se
apertaram. Ele fechou a mão direita num punho; as bandagens encharcadas
escorriam escarlate enquanto ele o brandia diante dela. A voz era um ganido fino.
— Desde que isso aconteceu. Vim aqui na noite em que peguei o carta selvagem.
Nove anos atrás eles me chutaram porque não paguei os dois últimos meses. Eu
disse que pagaria, mas não esperaram. Vão pegar dinheiro dos limpos em vez
disso.
— O quarto é meu — Misha repetiu.
— Você pegou minhas coisas. Eu deixei tudo aqui.
— O proprietário pegou, não eu... estão trancadas no porão.
O rosto de Estigma contorceu-se. Cuspia as palavras como se lhe
queimassem a língua, quase gritando.
— Ele é limpo. Você é limpa. Você não é bem-vinda aqui. Odiamos você.
As acusações fizeram com que as frustrações mascaradas de Misha
transbordassem. Uma fúria fria tomou conta dela, e ela se ergueu, apontando
para o curinga.
— Vocês são os proscritos — ela gritou de volta para Estigma, para o
próprio Bairro dos Curingas. Podia muito bem estar na Síria, dando sermão para
os curingas que mendigavam nos portões de Damasco. — Deus odeia vocês.
Arrependa-se de seus pecados e talvez sejam perdoados. Mas não gaste seu
veneno em mim.
No meio de sua repreensão, sentiu uma desorientação rodopiante, familiar.
— Não — Misha gritou contra o ataque violento da visão e, em seguida,
porque sabia que não havia como escapar da hikma, a sabedoria divina. — In
sha’Allah. — Alá virá como desejar, quando desejar.
O quarto e Estigma tremeluziram em sua visão. A mão de Alá a tocou. Seus
olhos se tornaram os dele. Um pesadelo acordado irrompeu sobre ela, derretendo
a realidade inflexível do Bairro dos Curingas, seu quarto imundo e as ameaças de
Estigma.
Ela estava em Badiy at Ash-sham novamente, o deserto. Em pé, na
mesquita do irmão.
Nur al-Allah estava diante dela, o brilho esmeralda de sua pele perdido por
trás de jorros incrivelmente grossos de sangue que escorriam na frente de sua
djellaba. Sua mão trêmula a apontava, acusadora; o queixo erguia-se para
mostrar os cantos escancarados, contraídos de ossos brancos na ferida aberta na
garganta. Ele tentava falar, e sua voz, que antes era fascinante e ressonante,
agora era toda cascalho e poeira, engasgada. Ela não conseguia entender nada
além do ódio naqueles olhos.
Misha ofegou sob o olhar perverso, acusador.
— Não fui eu! — Ela soluçou, caindo de joelhos diante dele em súplica. —
A mão de Satanás moveu a minha. Ele usou meu ódio e meu ciúme. Por favor...
Ela tentou explicar sua inocência ao irmão, mas quando ela ergueu os olhos,
não era mais Nur al-Allah que estava diante dela, mas Hartmann.
E ele gargalhava.
— Eu sou a fera que arranca os véus da mente — ele disse. A mão
invectivava, avançando enquanto ela se encolhia tardiamente. Como garras, suas
unhas se enterravam nas órbitas da mulher, riscavam a pele suave de seu rosto.
Cega, ela gritava, a cabeça lançada para trás em tormento, contorcendo-se, mas
incapaz de se livrar de Hartmann enquanto os dedos deste rasgavam e
arrancavam-lhe os olhos.
— Não use os véus aqui. Não usamos máscaras. Deixe-me mostrar a
verdade por trás de tudo. Deixe-me mostrar a cor do curinga que está aí
embaixo.
Ele apertava mais forte, arrancando e rasgando. Tiras de carne eram
puxadas quando ele a arranhava, e ela sentia o sangue quente brotando das
feições arruinadas. Ela gemia, soluçava, as mãos tentando empurrá-lo enquanto
ele investia sem parar, puxando músculo a músculo dos ossos.
— Seu rosto será desnudado — Hartmann disse. — E eles correrão de você,
horrorizados. Olhe, olhe as cores dentro da cabeça... é apenas uma curinga, uma
pecadora como o restante. Posso ver sua mente, posso sentir seu gosto. É igual ao
resto. Vocês são iguais.
Através da corrente de sangue, ela ergueu os olhos. Embora a aparição
ainda fosse Hartmann, ele agora tinha o rosto de um jovem, e o zumbido de mil
vespas enfurecidas parecia cercá-lo. Ainda no meio do tormento, Misha sentiu a
mão reconfortante no ombro e virou-se para ver Sara Morgenstern ao seu lado.
— Desculpe — Sara lhe disse. — É minha culpa. Deixe-me mandá-lo
embora.
E, em seguida, a visão de Alá desapareceu, deixando-a arfando no chão.
Trêmula, suada, ela ergueu as mãos para o rosto. Maravilhada, tocou a carne
intacta ali.
Estigma encarou a mulher soluçando nas tábuas lascadas do assoalho.
— Você não é limpa coisa nenhuma — ele disse, e sua voz era comovida,
com uma simpatia relutante. — Você é uma de nós. — Ele suspirou. Gotículas
lentas de sangue subiram, caíram. — Ainda é meu quarto e eu o quero — ele
acrescentou, mas o tom amargurado havia desaparecido da voz. — Vou esperar.
Vou esperar.
Ele caminhou suavemente até a porta.
— Uma de nós — ele disse de novo, sacudindo a cabeça sangrenta,
enrolada em bandagens, e saiu.
Sexta-feira, 18h10
Gimli pôde ver Vídeo no telhado. Ele acenou para ela e assentiu para Mortalha,
que se materializou das sombras da entrada. Gimli fez uma careta. Conseguiu
ouvir a discussão lá dentro do prédio, vozes que grunhiam como uma tempestade
trovejante ouvida no horizonte.
— Caralho, de novo não — ele murmurou.
Mortalha ajustou a correia de sua metralhadora e deu de ombros.
— Precisamos de alguma diversão — ele comentou. — É quase tão bom
quanto Berlim.
Gimli abriu a porta com tudo. Palavras abafadas misturavam-se de forma
ininteligível. Lixa estava gritando com Misha, que estava em pé com braços
cruzados e uma expressão hipócrita no rosto, enquanto Amendoim segurava o
curinga de pele grossa. Lixa agitou o punho para Misha, empurrando Amendoim.
— ... seu fanatismo autocêntrico, cego! Você e Nur são apenas os Barnetts
travestidos de árabes. Têm ódio idêntico em almas pomposas. Vou te mostrar o
que é ódio, sua vaca! Vou te mostrar como é.
Quando as dobradiças enferrujadas da porta rangeram, Amendoim virou o
rosto, os braços ainda envolvendo Lixa. Amendoim estava arranhado com o
esforço de segurar o curinga, os braços riscados com arranhões longos e
ensanguentados. A pele de um limpo teria sido totalmente esfolada, mas a carne
quitinosa de Amendoim era mais resistente.
— Gimli — ele disse, implorando.
Lixa girou nos braços de Amendoim, arrancando um gemido dolorido deste.
Ele apontou para Misha quando olhou para o anão.
— Pode se livrar dela! — ele gritou. — Não vou aguentar essa merda por
mais tempo. — Retorcendo-se, ele se desvencilhou de Amendoim, que o deixou
partir dessa vez.
— Que porra é essa aqui? — Gimli bateu a porta e encarou com ódio. — Eu
conseguia ouvir vocês lá no fim do beco.
— Não vou tolerar mais insultos. — Lixa partiu para cima de Misha,
ameaçador, e Gimli plantou-se entre os dois.
— Ela disse que o Padre Lula vai pro inferno quando morrer — Amendoim
acrescentou, enxugando as feridas com um lenço. — Eu falei pro Lixa que ela
não entende, mas...
— Eu disse a verdade. — Misha soava perplexa, como se custasse a
acreditar na falta de compreensão deles. Balançou a cabeça com os braços
estendidos, como se para se absolver da culpa. — Deus mostrou Seu desgosto
com o padre ao transformá-lo em curinga. Sim, esse Padre Lula vai ser enviado
para o inferno, mas Alá é infinitamente misericordioso.
— Viu? — Amendoim sorriu para Lixa, hesitante. — Está tudo bem, não é?
— Sim, e eu sou curinga, e Gimli também e vocês são curingas, e todos nós
seremos punidos. Certo? Bem, não vou ficar ouvindo essas merdas. Vá se foder,
vadia. — Lixa ergueu o dedo do meio para Misha, virou as costas e saiu. A batida
da porta reverberou por vários segundos após sua saída.
Gimli olhou Misha por sobre o ombro. Para ele, ela era extremamente
bonita fora do vestido preto de funeral, mas nunca parecia à vontade em roupas
ocidentais. Seu misticismo e sua franqueza perturbavam o pessoal. Lixa,
Mortalha, Marigold e Vídeo a odiavam, enquanto Amendoim — por mais
estranho que parecesse — parecia extremamente enternecido, mesmo que ela
não desse nada além de escárnio ao curinga meio estúpido.
Gimli já havia concluído que a odiava. Arrependia-se do impulso que o
levara a encontrá-la após o fiasco de Berlim; desejava nunca tê-la apresentado a
Poly akov. Se não fosse pela prova que ela alegava ter contra Hartmann e o fato
de que ainda estavam esperando informações russas, o Departamento de Justiça
já teria recebido uma denúncia anônima. Ele gostaria de ver o que o maldito
Hartmann pediria para fazer com ela.
Era uma maldita ás. Ases apenas se importavam consigo mesmos. Ases
eram piores que limpos.
— Você tem um tato incrível, sabia?
— Ele perguntou. Eu apenas lhe disse o que Alá me falou. Como a verdade
pode ser errada?
— Se quiser continuar vivendo no Bairro dos Curingas, melhor aprender
quando manter a merda da boca fechada. E isso é a verdade.
— Não tenho medo de ser uma mártir de Alá — ela respondeu com
arrogância, seu sotaque embaralhando as consoantes. — Seria ótimo. Estou
cansada dessa espera, preferiria atacar a fera do Hartmann abertamente.
— Hartmann fez muito pelos curingas... — Amendoim começou, mas
Gimli o interrompeu.
— Será logo. Falei com Jube hoje à noite, e dizem que Hartmann vai fazer
um discurso no Parque Roosevelt na segunda-feira. Todos acham que vai fazer o
anúncio lá. Poly akov disse que entraria em contato assim que Hartmann
oficializasse as coisas. Então, começamos a nos mexer.
— Precisamos contatar Sara Morgenstern. As visões...
— ... não significam nada — Gimli interrompeu. — Faremos planos quando
Poly akov finalmente chegar.
— Então eu vou para esse parque. Quero ver Hartmann de novo. Quero
ouvi-lo. — O rosto dela era obscuro e violento, de um ardor quase cômico.
— Desgraça, você vai ficar longe de lá — Gimli disse com voz alterada. —
Com todas essas merdas acontecendo na cidade, o lugar vai estar coalhado de
seguranças.
Ela o encarou e seu olhar era mais intenso do que ele pensou que poderia
ser. Ele piscou.
— Você não é meu pai ou meu irmão — ela disse como se falasse para
uma criança retardada. — Não é meu marido, não é Nur. Não pode me dar
ordens como faz com os outros.
Gimli pôde sentir o ódio cego e inútil chegando, mas o reprimiu. Não vai
demorar. Só mais alguns dias. Ele a encarou também, cada qual percebendo o
desgosto do outro.
— Hartmann talvez fosse um bom presidente... — A voz de Amendoim era
quase um sussurro enquanto olhava um e outro. Eles o ignoraram. Os arranhões
no braço do curinga vazavam sangue.
— Odeio este lugar — Misha falou. — Estou ansiosa para ir embora. — Ela
estremeceu, interrompendo o contato visual com Gimli.
— Sim, tem um monte de gente por aqui que sente a mesma coisa.
Os olhos de Misha estreitaram-se; Gimli sorriu, inocente.
— Mais alguns dias. Seja paciente — Gimli continuou a falar. E depois disso,
cada um por si. Vou deixar Lixa e os outros fazerem o que quiserem com você. E
acrescentou: — Até lá, guarde suas malditas opiniões para você.
Segunda-feira, 14h30
Misha, que no passado era conhecida como Kahina, lembrou-se dos sermões.
Seu irmão, Nur al-Allah, era muito eloquente ao descrever os tormentos da vida
após a morte. Sua voz convincente, ressoante, vinda do minbar, martelava os fiéis
enquanto o calor do meio-dia torvelinhava na mesquita de Badiy at Ash-sham, e
parecia que os fossos do inferno abriam-se diante deles.
O inferno de Nur al-Allah era cheio de curingas saltitantes e odiosos, os
pecadores que Alá havia amaldiçoado com as aflições do vírus carta selvagem.
Eram a imagem terrena do tormento eterno que aguardava todos os pecadores: o
submundo desgraçado era lotado de corpos deformados que formavam uma
paródia da forma humana, melados do pus que vazava dos rostos escabrosos,
cheios do fedor de ódio, repulsa e pecado.
Nur não sabia, mas Misha sim: inferno era Nova York. Inferno era o Bairro
dos Curingas. Inferno era o Parque Roosevelt numa tarde de junho. E o Grande
Satanás agia ali, diante de todos os seus adoradores: Hartmann, o demônio com
fios amarrados nas pontas dos dedos, o fantasma que assombrava seus sonhos
acordados. Aquele que destruíra, com as próprias mãos de Misha, a voz do
irmão.
Ela viu os jornais e as manchetes elogiando Hartmann, louvando sua frieza
na crise, sua compaixão, o trabalho para terminar com os sofrimentos dos
curingas. Sabia que os milhares de pessoas no parque estavam lá para vê-lo e
sabia o que esperavam que ele dissesse. Sabia que muitos consideravam
Hartmann a única voz de sanidade contra as maluquices pias e cheias de ódio de
Leo Barnett e de outros como ele.
Ainda assim, os sonhos de Alá mostravam-lhe o Hartmann real, e Alá
colocou em suas mãos o presente que o derrubaria. Por apenas um momento, a
realidade da concentração no parque reluzia e ameaçava abrir caminho
novamente para o pesadelo, e Misha quase deu um grito.
— Tudo bem? Você estremeceu.
Amendoim tocou o braço de Misha, e ela sentiu uma repulsa involuntária ao
contato com seus dedos inflexíveis como chifres. Ela viu a mágoa em seus olhos,
quase perdida no casco escamoso do rosto.
— Você não deveria estar aqui — ela lhe disse. — Gimli falou...
— Tudo bem, Misha — ele sussurrou. O curinga mal conseguia mover os
lábios; a voz era um rascar infeliz de ventríloquo. — Odeio minha aparência
também. Muitos de nós odiamos... como Estigma, sabe. Eu entendo.
Misha afastou-se da dor da culpa que a simpatia na voz arruinada de
Amendoim lhe dava. Ansiava por puxar os véus sobre o rosto e esconder-se de
Amendoim. Mas o xador e os véus estavam trancados no baú em seu quarto. Os
cabelos estavam soltos ao redor dos ombros.
“Quando estiver em Nova York, não poderá usar preto, não num dia de
verão. Vão suspeitar de cara que você está lá. Se precisar sair, ao menos tente se
misturar, se pretender ficar em paz. Fique feliz que você poderá ao menos
caminhar à luz do dia; Gimli não ousará mostrar o rosto para ninguém”, Poly akov
lhe dissera antes de ela deixar a Europa. Parecia um pequeno consolo.
Ali, no Parque Roosevelt, apesar do que Gimli dissera na noite anterior, não
havia maneira de ela se destacar. O lugar estava lotado e caótico. O Bairro dos
Curingas havia esparramado sua vida estranha e vibrante nos gramados. Era
1976 novamente, as máscaras do Bairro dos Curingas colocadas alegremente de
lado. Caminhavam sem qualquer pejo da maldição de Alá, ostentando os sinais
visíveis de seus pecados, misturando-se sem controle com aqueles que
chamavam de limpos. Estavam ombro a ombro ao redor do palco instalado na
ponta norte do parque, a mais próxima do Bairro dos Curingas, aplaudindo os
alto-falantes que pregavam a solidariedade e a amizade. Misha ouviu, observou e
estremeceu de novo, como se o calor da tarde fosse uma ninharia, um fantasma
onírico como o restante.
— Você odeia mesmo os curingas, não é? — Amendoim sussurrou enquanto
se deslocavam para mais perto do palco. A grama era desgastada e lamacenta
sob os pés, cheia de jornais e panfletos políticos. Era outra coisa que detestava
naquele inferno; era sempre lotado, sempre imundo. — Mortalha me contou o
que seu irmão pregava. Nur não parecia muito diferente do Barnett.
— Nós... o Corão ensina que Deus afeta diretamente o mundo. Recompensa
os bons e pune os iníquos. Não acho isso horrível. Você acredita em Deus?
— Claro. Mas Deus não pune as pessoas passando para elas um vírus
maldito.
Kahina assentiu, os olhos escuros solenes.
— Então o seu Deus também é incrivelmente cruel, pois quem infligiria
uma vida de dor e sofrimento a tantos inocentes; ou pobre, fraco, um que não
consegue impedir que algo assim aconteça. De qualquer forma, como vocês
podem louvar uma divindade dessas?
A refutação ríspida confundiu Amendoim — desde que chegara ali, Misha
descobrira que o curinga era amável, mas extraordinariamente simples. Ele
tentou dar de ombros, toda a parte de cima do corpo se ergueu, e lágrimas
vazaram de seus olhos.
— Não é nossa culpa... — ele começou.
Sua dor tocou Misha, impedindo-a até mesmo quando ela começou a
interrompê-lo. De novo ela desejou o véu para esconder sua empatia. Não ouviu
o que Tachyon e os outros deixaram claro nas entrelinhas?, ela quis se revoltar
com ele. Não vê o que eles não ousam dizer, que o vírus amplifica suas falhas e
fraquezas, que apenas toma o que encontra dentro da pessoa infectada?
— Sinto muito — ela sussurrou. — Sinto muito mesmo, Amendoim. — Ela
dobrou o braço e esfregou seu ombro com a mão; esperava que ele não notasse
como seus dedos tremiam, o quanto o toque era efêmero. — Esqueça o que eu
disse. Meu irmão era cruel e ríspido, às vezes me pareço demais com ele.
Amendoim fungou. Um sorriso desabrochou em seu rosto afilado.
— Tudo bem, Misha — ele falou, e o perdão instantâneo em sua voz doeu
mais que o restante. Ele olhou para o palco, e os vales se aprofundaram na pele
áspera. — Olhe, lá está Hartmann. Não sei por que você e Gimli têm tanta birra
dele. É o único que ajuda...
A observação de Amendoim distanciou-se no momento em que a massa
reunida ao redor deles lançou os punhos para o alto e comemorou.
E Satanás entrou no palco.
Misha reconheceu alguns ao lado dele: o Dr. Tachy on, vestido em cores
escandalosas; Hiram Worchester, rotundo e inflado; o homem chamado
Carnifex, encarando a multidão de tal forma que ela quis se esconder. Uma
mulher estava ao lado do senador, mas não era Sara, que também frequentava
seus sonhos, com quem ela conversara em Damasco — então era Ellen, a
esposa.
Hartmann acenou, sorrindo com vergonha pela adulação que assolava a
multidão. Ele ergueu as mãos e o alarido aumentou, uma voz rugindo que ecoava
dos arranha-céus para o oeste. Um grito começou em algum lugar perto do
palco, espalhando-se até o parque inteiro: Hartmann! Hartmann!, eles berravam
para o palco. Hartmann! Hartmann!
Então, ele sorriu, a cabeça ainda sacudindo como se não acreditasse, depois
seguiu até a bateria de microfones. Sua voz era grave e limpa, cheia de carinho
com aqueles que estavam diante dele. Aquela voz fazia Misha lembrar-se do
irmão; quando ele falava, o som simples era verdadeiro.
— Vocês são maravilhosos — ele disse.
Então, eles berraram, um furacão de sons que quase ensurdeceu Misha. Os
curingas apertavam-se ao redor do palco; Misha e Amendoim foram lançados
para a frente sem querer naquela onda. Os aplausos e gritos continuaram por
mais de um minuto antes de Hartmann erguer as mãos novamente e um silêncio
inquieto, ansioso, se instalar na multidão.
— Não vim até aqui para falar a vocês os textos que já se esperam de
políticos como eu — ele disse, por fim. — Fiquei muito tempo fora e,
francamente, o que vi do mundo me fez sentir muito medo. Fiquei especialmente
assustado quando voltei e encontrei o mesmo fanatismo, a mesma intolerância, a
mesma desumanidade aqui. É hora de parar de brincar de política e tomar um
rumo político seguro e gentil. Estes não são tempos seguros e gentis. São tempos
perigosos.
Ele fez uma pausa, tomando um fôlego que reverberou no sistema de som.
— Quase exatamente onze anos atrás, estive nos gramados deste Parque
Roosevelt e cometi um “erro político”. Pensei sobre aquele dia muitas vezes nos
anos que passaram, e juro por Deus que ainda não entendi por que deveria sentir
tanto por ele. O que vi diante de mim naquele dia não tinha sentido, foi pura
violência. Vi ódio e preconceito transbordarem, e perdi as estribeiras. Eu. Fiquei.
Louco.
Hartmann gritou as últimas palavras, e os curingas gritaram de volta para
ele em aprovação. Esperou até ficarem em silêncio novamente, e dessa vez a
voz era sombria e triste.
— Há outras máscaras além daquelas que fizeram o Bairro dos Curingas
famoso. Há uma máscara que esconde uma feiura maior que qualquer coisa que
o carta selvagem possa produzir. Por trás da máscara está uma infecção que é
humana demais, e eu ouvi essa voz nas comunidades do Rio, nos kraals da África
do Sul, nos desertos da Síria, na Ásia, na Europa e nos Estados Unidos. Sua voz é
possante, confiante e tranquilizadora, e diz àqueles que odeiam que eles estão
certos em odiar. Prega que qualquer um que seja diferente também é menor.
Talvez sejam negros, talvez sejam judeus ou hindus, ou talvez sejam apenas
curingas.
Com ênfase na última palavra, a multidão enlouquecida uivou novamente,
uma muralha de angústia que fez Misha estremecer. As palavras do homem
ecoavam as visões de forma desconfortável. Ela quase conseguia sentir as unhas
arranhando seu rosto. Misha olhou para a direita e viu que Amendoim estendia o
pescoço para a frente com o restante do público, a boca aberta num grito de
concordância.
— Não posso permitir que isso aconteça — Hartmann continuou, e agora a
voz era mais alta, mais rápida, agitando as emoções do público. — Não posso
simplesmente assistir, não quando vejo que há mais que posso fazer. Vi muitas
coisas. Ouvi aquele ódio insidioso, e não posso mais tolerar essa voz. Eu me
flagro em fúria todas as vezes. Quero arrancar a máscara e expor a verdadeira
feiura por trás dela, a feiura do ódio. O estado desta nação e do mundo me
assusta, e há apenas uma maneira pela qual posso fazer algo para aliviar esse
sentimento. — Ele fez mais uma pausa e, dessa vez, esperou até o parque inteiro
estar segurando o fôlego coletivo. Misha arrepiou-se. O sonho de Alá. Ele está
falando o sonho de Alá.
— Com entrada em vigor hoje, renunciei a meu cargo no Senado e a meu
posto de diretor do CRISE-A. Fiz isso para me dedicar integralmente a uma nova
tarefa, aquela na qual precisarei de sua ajuda também. Anuncio agora minha
intenção de ser o candidato democrata à presidência em 1988.
As últimas palavras ficaram perdidas, enterradas sob o clamor titânico dos
aplausos e gritos. Misha não conseguia mais enxergar Hartmann, perdido num
mar ondulante de braços e faixas. Ela não achou que poderia haver sons tão
elevados. A aclamação a ensurdeceu, a fez levar as mãos aos ouvidos. Os gritos
de Hartmann! Hartmann! recomeçaram, punhos curingas erguendo-se no ritmo
da batida.
Hartmann! Hartmann!
O inferno era barulhento e caótico, e seu ódio perdeu-se na celebração. Ao
seu lado, Amendoim gritava com o restante, e ela olhou-o com repulsa e
desespero.
Ele é tão forte, Alá, mais forte que Nur. Mostre-me que esse é o caminho
certo. Diga-me que minha fé será recompensada.
Mas não houve nenhuma visão como resposta. Havia apenas o furor da voz
dos curingas e Satanás banhando-se em seus louvores.
Ao menos tudo começaria. Naquela noite. Naquela noite eles se
encontrariam e decidiriam a melhor estratégia para destruir o demônio.
Segunda-feira, 19h32
Poly akov foi o último a chegar ao armazém, o que deixou Gimli furibundo. Já
era ruim que ele não tivesse certeza de que poderia confiar em qualquer um da
antiga organização da CSJ de Nova York. Era o bastante que ele estivesse lidando
com Misha por quase duas semanas, aguentando seu nojo de curingas. Era
suficiente que os ases do Departamento de Justiça de Hartmann estivessem à
espreita em todo o Bairro dos Curingas atrás dele; que a agitação de Barnett
fizera de qualquer curinga alvo legítimo para gangues de limpos; que as batalhas
ininterruptas entre as organizações do submundo tivessem transformado as ruas
num risco alto para todos.
Como cereja do bolo, ele sentia que um resfriado se aproximava.
Gimli espirrou e assoou o nariz num grande lenço vermelho.
Fazia um tempo de merda no Bairro dos Curingas.
A chegada de Poly akov deixou o humor de Gimli ainda pior. O russo entrou
no lugar sem bater, abrindo a porta com tudo.
— A curinga no telhado está em pé contra a luz do poste — ele proclamou
em voz alta. — Qualquer idiota pode vê-la. E se eu fosse da polícia? Vocês todos
estariam presos ou mortos. Amadores! Dilettante!
Gimli limpou suas narinas bulbosas e macias e olhou para o lenço.
— A curinga no telhado é Vídeo. Ela lançou uma imagem sua aqui dentro
para avisar que você estava a caminho... ela precisa de luz para projetar.
Amendoim e Lixa teriam pegado você na porta se eu não o reconhecesse. —
Gimli enfiou o lenço úmido de volta ao bolso e deu dois socos na parede. —
Vídeo — ele gritou para o telhado. — Mostre ao nosso convidado um replay, ok?
No centro do armazém, o ar reluziu e escureceu. Por um momento,
estavam todos olhando para o beco do lado de fora do armazém, onde um
homem corpulento estava nas sombras. A escuridão reuniu-se, pulsou, e eles
tiveram uma visão de cabeça e ombros do homem: Poly akov, fazendo uma
careta ao olhar na direção de Vídeo. Em seguida, a imagem se esvaneceu com a
gargalhada de Gimli.
— E você nem mesmo viu a porra do Mortalha atrás de você, viu? — ele
quis saber.
Uma figura esguia materializou-se das sombras atrás de Poly akov e deu um
cutucão nas costas do russo.
— Bang! — Mortalha sussurrou. — Morreu. Esta é a roleta do curinga russo.
— Ao lado da porta, Amendoim e Lixa abriram um sorriso amarelo.
Gimli precisou admitir que Poly akov, sendo um limpo, levou numa boa. O
homem atarracado apenas assentiu sem olhar para Mortalha.
— Aceite minhas desculpas. Claro que você conhece seu pessoal melhor
que eu.
— É, não é mesmo? — Gimli fungou, o nariz pingava como uma torneira
velha. Ele acenou para Mortalha. — Cuide para que ninguém mais entre, não há
mais nenhum convidado. — O curinga magro e negro assentiu.
— Hora dos condenados — Mortalha disse, outro sussurro. Um sorrisinho
surgiu da forma vaporosa que, em seguida, se dissolveu nas sombras.
— Então, temos ases conosco — Poly akov disse.
Gimli riu sem alegria.
— Ponha Vídeo perto de um dispositivo elétrico e o sistema nervoso dela
fica sobrecarregado. Ponha a menina na frente de uma maldita televisão e logo
bate a arritmia. Perto demais e ela morre. E o Mortalha perde substância todos os
dias, como se estivesse evaporando. Mais um ano, ele estará morto ou imaterial
para sempre. Ases, que merda, Poly akov... são curingas, como o resto. Sabe,
aqueles dos quais vocês se desfaziam nos laboratórios russos.
Poly akov apenas grunhiu com o insulto; Gimli ficou decepcionado. O
homem passou os dedos entre os cabelos grisalhos e eriçados e assentiu.
— A Rússia cometeu seus erros, como os Estados Unidos. Há muitas coisas
que eu queria que não tivessem acontecido, mas estamos aqui para mudar o que
podemos, não é? — Ele encarou Gimli com um olhar fixo. — A ás síria chegou?
— Estou aqui.
Misha veio do fundo do armazém. Gimli viu seu olhar afiado para
Amendoim e Lixa. Sua atitude era ácida e condescendente. Ela caminhava como
se esperasse ser servida. Gimli talvez pudesse achar sua escura pele árabe
extremamente atraente, mas — exceto em fantasias noturnas — ele não se iludia
imaginando que talvez acontecesse alguma coisa. Sabia qual era sua aparência:
“um sapinho verruguento e nocivo que se alimenta do tronco apodrecido do ego”
— uma frase de Wilde, o poeta do Bairro dos Curingas.
Gimli era um curinga, esse era o ponto principal para a vadia. Misha tinha
certeza de que Gimli sabia que era tolerado apenas para conseguir a vingança
contra Hartmann. Ela não o via como uma pessoa; era apenas uma ferramenta,
algo para usar porque nada mais adiantaria. A percepção o enfurecia todas as
vezes que olhava para ela. Apenas avistar a mulher já era o bastante para fazê-lo
querer gritar com ela.
Farei de você minha maldita ferramenta um dia.
— Estou pronta para começar. As visões — ela sorriu, fazendo Gimli reagir
com cara fechada — foram otimistas hoje.
Gimli zombou.
— Seus malditos sonhos não vão preocupar o senador, vão?
Misha girou, os olhos chamejantes.
— Você desdenha do dom de Alá. Talvez seu escárnio seja o motivo pelo
qual Ele fez de você uma imitação esmagada de um homem.
Isso foi o bastante para estilhaçar a pouca moderação que ele tinha. Um
ódio rápido e incandescente encheu Gimli.
— Sua puta desgraçada! — Gimli berrou. A postura do anão alargou-se
sobre as pernas musculosas, seu peito de barril expandiu-se. Um dedo estendeu-
se do punho que ele apontou para ela. — Não vou tolerar essa merda, nem de
você, nem de ninguém!
— PAREM COM ISSO!
O grito veio de Poly akov quando Gimli deu um passo na direção de Misha.
O rugido fez a cabeça de Gimli virar-se; o movimento fez com que ele sentisse
pontadas.
— Amadores! — Poly akov soltou. — Esse é o tipo de estupidez que Mólny a
disse ter destruído vocês em Berlim, Tom Miller. Acredito nele agora. Esse bate-
boca mesquinho precisa acabar. Temos um objetivo comum; concentre seu ódio
nisso.
— Discursos lindos não dão em merda nenhuma — Gimli ralhou, mas
parou. O punho abaixou-se, os dedos relaxaram. — Somos uma conspiração bem
improvável, não é? Um curinga, uma ás, um limpo. Talvez seja um erro, hein?
Não tenho mais certeza se compartilhamos o mesmo objetivo comum. — Ele
olhou feio para Misha.
Poly akov deu de ombros.
— Nenhum de nós quer que Hartmann ganhe força política. Temos razões
diferentes, mas nisso concordamos. Eu não gostaria de ver um ás com poderes
desconhecidos como presidente da nação que se opõe à minha. Sei que Kahina
gostaria de vingar o irmão. Você tem um ressentimento antigo contra o senador.
E, por menos que você se importe com esta mulher, ela trouxe provas claras
contra Hartmann.
— É o que ela diz. Ainda não vimos nada, vimos?
Poly akov grunhiu.
— Tudo o mais é circunstancial: boatos e especulações. Então, vamos
começar. Do meu lado, eu gostaria de ver o “presente” de Misha.
— Vamos falar da realidade primeiro. Então poderemos nos entregar a
fantasias religiosas. — Gimli argumentou. Ele conseguia sentir o controle da
reunião escapando entre os dedos; o russo tinha presença, carisma. Os outros já
olhavam Poly akov como se fosse o cabeça do grupo. Esqueça seus sentimentos,
por piores que sejam. Precisa vigiá-lo ou ele assumirá o controle.
— De qualquer forma, queria ver o presente — o russo insistiu.
Gimli inclinou a cabeça para Poly akov, que devolveu o olhar com
suavidade. Finalmente, Gimli pigarreou ruidosamente e fungou.
— Tudo bem — ele rosnou. — O palco é seu, Kahina.
Quando Gimli a olhou, ela abriu um sorriso rápido e triunfante. Aquilo fez
Gimli concluir que, quando aquilo terminasse, ele cobraria a conta pela
arrogância de Misha. Se precisasse, exigiria ele mesmo o pagamento.
Misha foi até o fundo do armazém novamente e voltou com um pacote
enrolado em panos.
— Quando os ases nos atacaram na mesquita, Hartmann foi ferido — ela
disse. — O pessoal o examinou lá, rapidamente, e se refugiaram imediatamente
logo depois disso. Eu... — ela parou, e um olhar da dor lembrada obscureceu seu
rosto. — Eu já havia fugido. Meu irmão e Say y id, os dois terrivelmente feridos,
uniram-se aos seus seguidores e foram para as profundezas do deserto. No dia
seguinte, uma visão me disse para voltar à mesquita. Lá, eu recebi isto aqui: é o
casaco que Hartmann usava quando foi alvejado.
Ela desenrolou o pacote no chão de cimento.
O casaco não tinha nada de impressionante — um casaco esportivo cinza
quadriculado, empoeirado e amassado. O tecido tinha um leve odor de mofo. No
ombro direito, um furo desfiado estava cercado por uma mancha irregular
vermelho-amarronzada que se espalhava peito abaixo. Enrolado dentro dele
havia uma pilha de papéis num envelope pardo. Misha folheou-os.
— Fui a quatro médicos em Damasco com o casaco — ela continuou. —
Eles examinaram as manchas de sangue de forma independente, e cada qual me
deu um relatório confirmando que o sangue tinha vindo de alguém infectado pelo
vírus carta selvagem. O tipo de sangue combina com o de Hartmann, “A”
positivo. Tenho a confirmação do homem que me entregou de que este é o
casaco de Hartmann; ele o pegou após a briga, pensando em guardá-lo como
uma relíquia de Nur.
— Porra, uma carta de confirmação de um terrorista e o sangue que
poderia ter vindo de qualquer pessoa — Gimli bufou. — Olha só, todos nós aqui
podemos acreditar que é o sangue de Hartmann, mas só isso não adianta. O
maldito apresentou um exame sanguíneo. Acha que ele não pode apresentar
outro resultado negativo com todo mundo que conhece?
Poly akov assentiu com ponderação.
— Pode e vai.
— Então, vamos atacá-lo fisicamente — Misha falou, espantada com
aquelas pessoas. — Se não querem meu presente, mate-o. Eu ajudarei.
O olhar no rosto da mulher fez Gimli rir, e a gargalhada trouxe uma tosse
entrecortada e pigarreada.
— Meu Deus, tudo que eu preciso é um resfriado — ele murmurou e disse:
— Que sede de sangue do caralho, hein?
Misha cruzou os braços diante do peito, desafiante.
— Não tenho medo. Você tem?
— Não, está louca? Sou realista. Olha, seu irmão tinha ao redor guardas
com Uzis e Hartmann escapou, não foi? Eu tinha o desgraçado amarrado a uma
cadeira, todos nós armados, e, um a um, nós partimos, uma decisão que não
acreditamos termos tomado uma hora depois. Depois, Mackie Masser, que estava
com uma arma carregada sem nenhuma segurança, ficou enlouquecido e fatiou
todo mundo que restou, e ainda assim não tocou num fio de cabelo do bom
senador. — Gimli cuspiu. — Ele consegue manipular as pessoas a fazer as coisas,
esse deve ser seu poder. Ele tem todos os ases ao redor dele. Não vamos chegar
até o homem, não desse jeito.
Poly akov assentiu.
— Infelizmente, preciso concordar. Misha, você não conhece Mólniy a, o ás
que foi com Gimli para Berlim — ele disse. — Ele poderia ter matado Hartmann
com um simples toque. Falei muito com ele. Fez coisas lá que foram desleixadas
e sem sentido para um homem com a lealdade e a experiência dele. Seu
desempenho foi extremamente incoerente com seu histórico. Foi manipulado:
parte da prova que tenho está em seu depoimento.
Lixa cutucou Amendoim.
— Setenta e seis — ele disse para Gimli. — Eu me lembro. Você falou com
Hartmann quando estávamos todos prontos para marchar. De repente, você disse
para a gente dar meia-volta e voltar ao parque.
A memória era tão amarga como foi onze anos antes. Gimli havia remoído
aquilo muitas vezes. Em 1976, a CSJ estava prestes a se tornar uma voz legítima
dos curingas, ainda assim, de alguma forma, ele perdeu tudo. A CSJ e o poder de
Gimli ruíram na esteira do tumulto. Desde Berlim, desde seu encontro com
Misha, aquela reflexão havia tomado um rumo diferente.
Agora, ele sabia a quem culpar por seu fracasso.
— Porra, você está certo. Aquele filho da puta. Por isso eu quero derrubá-
lo. Com Barnett ou qualquer dos outros políticos limpos, sabemos com quem
estamos lidando. Sabemos o que esperar. De Hartmann, não. E por isso ele é
mais perigoso que o resto. Lembra-se de Aardvark, Amendoim? Aardvark
morreu em Berlim, junto com muitos outros; sua morte e a de todos, no fim das
contas, é culpa de Hartmann, esse maldito.
O corpo inteiro de Amendoim se moveu quando tentou sacudir a cabeça.
— Não está certo, Gimli. De verdade. Hartmann trabalha pelos curingas.
Ele aboliu as Leis, ele fala bonito com a gente, ele vem até o Bairro dos
Curingas...
— É. E eu faria o mesmo se quisesse aplacar as suspeitas de todo mundo.
Uma coisa eu digo, sabemos quem é Barnett. Podemos cuidar dele a qualquer
momento. Tenho mais medo de Hartmann.
— Então, faça alguma coisa sobre ele — Misha interrompeu. — Temos o
casaco. Temos sua história e a de Poly akov. Leve isso para sua imprensa e deixe
que acabem com Hartmann.
— Mas não temos merda nenhuma ainda. Ele vai negar. Vai apresentar
outro exame de sangue. Vai enfatizar que a “prova” foi apresentada por um
curinga que o sequestrou em Berlim, um russo que tem relações com a KGB e
por você, que diz que seus sonhos dizem que Hartmann é um ás e que está
sofrendo com a ilusão lunática de que ele a obrigou a atacar seu irmão terrorista.
A porra de um exemplo clássico de transferência de culpa.
Gimli adorou a vermelhidão que subiu pelo pescoço de Misha. É, essa foi na
mosca, não foi, vadia?
— Temos provas circunstanciais, claro — Gimli continuou —, mas, se nós
as levarmos, ele vai dar risada, e a imprensa também. Temos que nos unir a
outros. Deixar que sigam na nossa frente.
— Suponho que você já tenha alguém em mente — Poly akov comentou.
Gimli pensou ouvir um leve desafio na voz do homem.
— Sim, tenho — ele disse a Poly akov. — Digo que precisamos levar o que
temos a Crisálida. Pelo que ouço, ela está extremamente interessada em
Hartmann, e não tem nenhuma diferença com ele. Ninguém sabe mais sobre
qualquer coisa no Bairro dos Curingas que Crisálida.
— Ninguém sabe mais sobre Hartmann que Sara Morgenstern. — Misha
dispensou a sugestão de Gimli. — Os sonhos de Alá me mostraram o rosto dela.
É quem destruirá Hartmann, não Crisálida.
— Claro. Ela é a amante de Hartmann. Achamos que Hartmann tem
poderes mentais, então, quem é mais provável que ele controle? — Agora, a dor
de cabeça lançava pontadas nas têmporas de Gimli, e sua cabeça parecia cheia
de muco. — Temos que ir a Crisálida.
— Não sabemos se essa Crisálida vai ter algum interesse em nos ajudar.
Talvez Hartmann a controle também. Minhas visões...
— Suas visões são uma porcaria, minha senhora, e estou ficando de saco
cheio de ouvi-las.
— São um dom de Alá.
— São um dom do carta selvagem, e todo curinga sabe o que tem nesse
pacote. — Gimli ouviu a porta do armazém se abrir. Seu olhar girou de Misha
para ver Poly akov em pé ao lado da porta. — Onde você vai, caramba?
Poly akov expirou com força.
— Já ouvi o bastante. Não serei pego com gente estúpida. Vão até Crisálida
ou até Morgenstern, não me importa. Desejo sorte, pode funcionar. Mas não vou
me associar a isso.
— Tá indo embora? — Gimli falou, descrente.
— Temos um interesse comum, como eu disse. Isso parece ser tudo. Façam
o que quiserem, não precisam de mim para isso. Vou fazer as coisas do meu
jeito. Se eu descobrir algo interessante, entro em contato.
— Vai tentar qualquer coisa sozinho e, muito provavelmente, vai ser pego.
Vai alertar Hartmann que tem gente atrás dele.
Poly akov deu de ombros.
— Se Hartmann é a ameaça que vocês acham que é, ele já sabe disso. —
Poly akov meneou a cabeça para Misha, Lixa e Amendoim. Saiu e fechou a porta
suavemente.
Gimli conseguia sentir os olhares dos outros sobre ele. Fez um gesto obsceno
para a porta.
— Que ele vá pro inferno — Gimli falou em voz alta. — Não precisamos
dele.
— Então, vou procurar Sara — Misha insistiu. — Ela vai ajudar.
Você não tem escolha. Não agora.
Gimli assentiu, relutante.
— Tudo bem. — Ele suspirou. — Amendoim vai conseguir uma passagem
de avião para você ir até Washington. E eu vou procurar Crisálida. — Ele pousou
a mão na testa e sentiu-a suspeitosamente quente. — Por ora, vou para a cama.
Terça-feira, 22h50
Gimli disse que ela devia tomar cuidado e verificar se ninguém estava vigiando o
apartamento de Sara. Misha achou que era paranoia do anão, mas esperou
bastante antes de atravessar a rua, ficando na espreita. Nunca havia maneira de
saber se Say y id, seu marido, que estava à frente de todos os aspectos de
segurança da seita de Nur, teria concordado.
— Nenhum amador jamais verá um profissional, a menos que ele queira
ser visto — ela se lembrou de ele dizer. Pensamentos sobre Say y id traziam de
volta lembranças dolorosas: sua voz desdenhosa, os modos dominadores, o corpo
monstruoso. Ela sentiu um alívio mesclado ao horror quando ele foi derrubado na
frente dela, os ossos estalando como galhos secos, um baixo gemido animal
saindo de seu corpo ferido...
Misha estremeceu e atravessou a rua.
Ela apertou o botão do interfone na porta da frente, novamente maravilhada
com a obsessão norte-americana com a segurança ineficaz — a porta era de
vidro chanfrado. Dificilmente impediria qualquer pessoa desesperada de entrar.
A voz que respondeu soou cansada e cautelosa.
— Sim? Quem é?
— É Misha. Kahina. Por favor, preciso falar com você...
Houve um longo silêncio. Misha pensou que talvez Sara não respondesse
quando o interfone soltou um clique seco.
— Pode subir — a voz disse. — Segundo andar. Em frente.
A tranca da porta zuniu. Por um momento, Misha hesitou, sem saber ao
certo o que fazer, em seguida empurrou a porta. Entrou no saguão com ar-
condicionado e subiu as escadas. A porta estava entreaberta; no espaço entre a
porta e o batente, um olho a encarou quando se aproximou. Ele recuou, e Misha
ouviu uma corrente estalar. A porta abriu-se mais, mas apenas o suficiente para
deixá-la passar.
— Entre — Sara disse.
Sara estava mais magra do que Misha se lembrava, quase esquálida. Seu
rosto estava pálido e tenso; havia bolsas escuras sob os olhos. Parecia que seu
cabelo não era lavado havia dias, caindo reto e sem brilho ao redor dos ombros.
Trancou a porta atrás de Misha, em seguida se recostou nela.
— Você está diferente, Kahina — Sara falou. — Sem xador, sem véus, nem
guarda-costas. Mas eu me lembro da voz e de seus olhos.
— Nós duas mudamos — Misha falou com suavidade e viu a dor tremeluzir
nas pupilas circundadas de preto.
— Acho que sim. A vida é foda, não é? — Sara afastou-se da porta,
esfregando os olhos.
— Você escreveu sobre mim depois... depois do deserto. Eu li. Você me
entendeu. Você tem uma alma gentil, Sara.
— Não tenho escrito muito nos últimos tempos. — Ela foi até o centro da
sala de estar. Apenas uma lâmpada estava acesa; Sara se virou na penumbra. —
Por que não se senta? Vou pegar algo para beber. Quer alguma coisa?
— Água.
Sara deu de ombros. Entrou na cozinha, voltou alguns minutos depois com
dois copos. Entregou um deles para Misha, que conseguia sentir o cheiro de
álcool no outro. Sara se sentou no sofá diante de Misha e deu um grande gole.
— Nunca fiquei mais assustada do que naquele dia, no deserto — ela disse.
— Pensei que seu irmão... — Ela hesitou, olhando para Misha sobre a borda do
copo. — Pensei que ele estava totalmente enlouquecido. Sabia que todos
morreríamos. E então... — Ela tomou um gole comprido.
— Então eu cortei a garganta dele — Misha terminou. As palavras doíam,
sempre doíam. Elas não se olhavam. Misha pousou o copo na mesa ao lado do
sofá. O tilintar do gelo contra o vidro parecia incrivelmente alto.
— Deve ter sido uma decisão muito difícil.
— Mais difícil do que você pode acreditar — Misha confirmou. — Nur
era... e ainda é... profeta de Alá. É meu irmão. É a pessoa que meu marido
seguia. Eu o amo por Alá, por minha família, pelo meu marido. Você nunca foi
mulher na minha sociedade; não conhece a minha cultura. Não consegue ver
séculos de condicionamento. O que eu fiz era impossível. Era preferível eu cortar
minha mão a permitir que ela o fizesse.
— Ainda assim você fez.
— Eu não acho — Misha disse suavemente. — E também não acho que
você acredita nisso.
O rosto de Sara estava na escuridão, envolto pelos cabelos iluminados por
trás. Misha conseguia ver apenas o brilho dos olhos dela, o cintilar da bebida nos
lábios enquanto erguia novamente o copo.
— Os sonhos de Kahina novamente? — Sara zombou, mas Misha pôde
sentir as palavras tremerem.
— Fui até você em Damasco por causa das visões de Alá.
— Eu lembro.
— Então lembra que, naquela visão, Alá me disse que você e o senador
eram amantes. Lembra que eu vi uma faca, e Say y id lutando para tirá-la de
mim. Lembra que eu vi como Hartmann pegou sua desconfiança e a
transformou, e como ele pegou meus sentimentos e os usou contra mim.
— Você disse um monte de coisas — Sara objetou. Ela se encolheu ainda
mais fundo no sofá, abraçando os joelhos junto ao peito. — Eram símbolos e
imagens estranhas. Talvez não tenham significado nada.
— O anão também estava naquela visão — Misha insistiu. — Você deve
lembrar... eu lhe disse. O anão era Gimli, em Berlim. Hartmann fez a mesma
coisa lá.
O suspiro de Sara foi hostil.
— Berlim... — ela arfou e, em seguida: — Tudo coincidência. Gregg é um
homem compassivo e afetuoso. Eu sei disso, melhor que você ou qualquer outra
pessoa. Eu o vi. Estive com ele.
— Coincidência? Nós duas sabemos o que ele é. É um ás, um ás oculto.
— E eu digo que é impossível. Há um exame de sangue. E, mesmo se fosse
verdade, como isso muda as coisas? Ele ainda está trabalhando pelos direitos e
pela dignidade de todas as pessoas... diferente de Barnett, de seu irmão ou de
terroristas como a CSJ. Você não me mostra nada além de insinuações contra
Gregg.
— Os sonhos de Alá...
— Não são sonhos de Alá — Sara interrompeu, irritada. — É apenas o
maldito carta selvagem. Flashes de precognição. Há meia dúzia de ases com a
mesma capacidade. Você tem vislumbres dos futuros possíveis, é isso:
previsõezinhas inúteis que nada têm a ver com qualquer deus.
A voz de Sara ficara mais alta. Misha conseguia ver a mão da mulher
tremendo enquanto pegava outra bebida.
— O que você achou que ele fez, Sara? — ela perguntou. — Por que você o
odiava no passado?
Misha pensou que Sara poderia negá-lo, mas não negou.
— Eu estava errada. Eu pensei... pensei que ele pudesse ter matado minha
irmã. Houve coincidências, sim, mas eu estava errada, Misha.
— Ainda assim, posso ver que você está com medo, pois talvez estivesse
certa, porque o que estou dizendo talvez seja verdade. Meus sonhos me dizem...
eles me dizem que você está remoendo isso desde Berlim. Eles me dizem que
você está assustada porque se lembra de outra coisa que eu lhe disse em
Damasco; que o que ele fez comigo, ele também faria com você. Não percebeu
como seus sentimentos por ele mudam quando ele está com você, e isso também
não faz você refletir?
— Desgraçada! — Sara gritou. Jogou o copo de lado, e ele bateu contra a
parede quando a mulher se levantou. — Você não tem direito!
— Eu tenho provas. — Misha falou suavemente, mesmo com a ira de Sara.
Ela encarou calmamente o olhar raivoso da mulher.
— Sonhos — Sara rosnou.
— Mais que sonhos. Na mesquita, durante a luta, o senador foi alvejado. Eu
estou com o casaco dele. Mandei analisar o sangue. A infecção está lá, seu vírus
carta selvagem.
Sara sacudiu a cabeça violentamente.
— Não. Isso é o que você quer que os exames mostrem.
— Ou Hartmann falsificou o próprio exame de sangue. Seria fácil para ele,
não é? — Misha persistiu. A agonia selvagem em Sara feria Misha, mas ela
insistiu. Sara era a chave, as visões todas diziam que era. — E isso significaria
que, talvez, você esteja certa sobre sua irmã. Explicaria o que aconteceu comigo.
Explicaria o que aconteceu em Berlim. Explicaria tudo, todas as perguntas que
você teve.
— Então, vá para a imprensa com essa prova.
— Eu vou. Agora mesmo.
A cabeça de Sara balançou para trás e para a frente numa recusa obstinada.
— Não é suficiente.
— Talvez não só isso. Precisamos de tudo que você possa nos contar. Você
deve saber mais... outros incidentes estranhos, outras mortes...
Sara ainda estava sacudindo a cabeça, mas seus ombros encolhidos e a
raiva haviam esvanecido. Ela se virou para Misha.
— Eu não posso confiar em você — ela disse. — Por favor, vá embora.
— Olhe para mim, Sara. Somos irmãs nesse caso. Nós duas fomos feridas,
e eu quero justiça, como você quer justiça por sua irmã. Choramos e sangramos,
e não há cura para nós até que saibamos. Sara, eu sei como podemos misturar
amor e ódio. Estamos ligadas por essa maneira estranha, horrível. Permitimos
que o amor nos cegasse. Eu amo meu irmão, mas também odeio o que ele fez.
Você ama Hartmann, mesmo que haja um Hartmann mais obscuro escondido.
Não consegue ir contra ele porque, ao fazê-lo, provaria que se entregar foi um
erro, porque, quando ele está aqui, tudo em que você consegue pensar é no
Hartmann que ama. Teria que admitir que você está errada. Teria que admitir
que você se permitiu amar alguém que estava te usando. Então, você continua
esperando.
Não houve resposta. Misha suspirou. Ela não poderia falar mais nada, não
quando cada palavra havia aberto uma ferida visível em Sara. Ela se moveu até
a porta, tocando Sara gentilmente nas costas quando passou. Misha conseguiu
sentir os ombros de Sara se moverem com lágrimas silenciosas. A mão de Misha
estava na maçaneta quando Sara falou, com a voz embargada.
— Jura que é o casaco dele? Está com ele?
Misha manteve a mão na maçaneta, sem ousar se virar, sem se permitir ter
esperanças.
— Sim.
— Confia em Tachy on?
— O alienígena? Não conheço. Gimli parece não gostar dele. Mas vou
confiar nele se você confia.
— Tenho que estar em Nova York no mais tardar esta semana. Me encontre
na frente da Clínica do Bairro dos Curingas na quinta-feira, às 18h30. Leve o
casaco. Vamos pedir para Tachy on examiná-lo e, então, veremos. Veremos, isso
é tudo. É suficiente?
Misha quase arfou, aliviada. Ela queria rir, queria abraçar Sara e chorar
com ela. Mas apenas assentiu.
— Estarei lá. Prometo, Sara. Quero a verdade e só.
— E se Tachy on dizer que isso não prova nada?
— Então, aprenderei a aceitar a culpa pelo que fiz — Misha começou a
girar a maçaneta, mas parou. — Se eu não estiver lá, saiba que é porque ele me
impediu. Você terá que decidir o que fazer.
— O que lhe dá uma desculpa conveniente — Sara falou com sarcasmo. —
Tudo que precisa fazer é não aparecer.
— Você não acredita nisso. Acredita?
Silêncio.
Misha girou a maçaneta e partiu.
Terça-feira, 22h00
Crisálida abriu a porta do escritório de uma vez. Ela prestou pouca atenção ao
anão que estava sentado em sua cadeira, os pés descalços em cima da mesa.
Fechou a porta — o som de outra noite agitada no Cry stal Palace diminuiu para
um sussurro de maré distante.
— Boa noite, Gimli.
Gimli estava se sentindo péssimo. A falta de surpresa nos olhos brilhantes de
Crisálida fez com que ele se sentisse pior.
— Eu deveria aprender que você nunca é pega de surpresa.
Ela abriu um sorriso com lábios apertados que flutuou sobre um
emaranhado de músculos e tendões.
— Há semanas sei que você está de volta. Notícia velha. Então, como está
seu resfriado?
Gimli fungou, uma inalação longa e úmida. Outro calafrio correu sua
espinha como uma bandeja de cubos de gelo.
— Uma merda. Estou um caco. Estou com uma febre que não cede faz dois
dias. E claro que tenho alguém na minha organização que não consegue ficar de
boca fechada.
Ele fez uma careta terrível para ela.
— Não ficaria resfriado se usasse sapatos. Você me trouxe um pacote
também.
— Que porra — Gimli explodiu. Ele baixou as pernas e pulou da cadeira
com uma careta. O movimento repentino o deixou zonzo, e ele se apoiou na
mesa com a mão. — Eu também poderia ter entrado pela porta da frente. Por
que não pulamos a conversa toda e você só me dá a resposta?
— Na verdade, não sei a pergunta ainda. — Ela soltou uma risada curta e
seca. — No fim das contas, há alguns limites, e eu estou preocupada com
questões mais imediatas do que com política nos últimos tempos. Não há
segurança lá fora para nenhum curinga, não apenas para você. Mas eu posso
fazer conjecturas educadas — Crisálida continuou. — Diria que sua visita tem
relação com o senador Hartmann.
Gimli bufou.
— Merda, depois daquele fracasso em Berlim, não precisou de muito para
adivinhar.
— É você que está impressionado pelo que sei, não eu. É você que precisa
se esconder perto do East River para os federais não te prenderem.
— Inferno, os vazamentos são grandes mesmo. — Ele sacudiu a cabeça.
Cambaleou para a lateral da mesa e arrastou-se novamente para sua cadeira.
Fechou os olhos por um segundo. Quando voltar, pode ir para a cama de novo.
Talvez, dessa vez, quando acordar, vai ter passado. — Meu Deus, estou péssimo.
— Nada infeccioso, espero eu.
— Nós dois já temos a pior infecção que poderíamos contrair. — Gimli
lançou de esguelha um olhar injetado para Crisálida. — E, falando nisso, suponho
que você já saiba que nosso senador Hartmann é um maldito ás.
— Sério?
Gimli escarneceu.
— Sei de algumas coisas também, lady. Uma delas é que Downs tem feito
perguntas estranhas, e que vocês estão se vendo com bastante frequência. Minha
conjectura é que vocês estão pensando a mesma coisa.
— E se eu estiver? Mesmo supondo que você esteja correto, e eu não, por
que você se importaria com isso? Talvez um presidente ás seja uma boa. Muita
gente sente que Hartmann fez mais pelos curingas que a CSJ.
Gimli deu um salto e ficou em pé com a afirmação, esquecendo o mal-
estar. A raiva abriu vales fundos em seu rosto gorducho.
— A maldita CSJ era a única organização que dizia aos malditos limpos que
não podem manipular a nós, curingas. Não ficamos lá segurando nossos chapéus
nas trombas como o velho lambe-botas do Des. A CSJ fez com que eles
prestassem atenção, mesmo que tivéssemos que fazer isso dando uns tapas na
cara deles. Não vou ouvir bobagens sobre Hartmann ser melhor que a CSJ.
— Então, sugiro que vá embora.
— Se eu for, não vai ver a porra do pacote.
Ele pôde ver Crisálida ponderando, e sorriu, a raiva rapidamente esquecida.
É, você está louca para ver. A velha Crisálida se fazendo de difícil. Sabia que ela
gostaria de ver. E foda-se Misha se ela não gostar.
— Com você nunca existiu almoço grátis, Gimli. Qual o pagamento pelo
pacote?
— Você ir a público com ele. Vazar isso com o resto do que eu tenho para
você, junto com tudo que você e Downs fuçaram. Vamos tirar Hartmann da
corrida presidencial.
— Por quê? Porque ele é um ás? Ou porque Gimli quer uma vingançazinha
pessoal?
Gimli cerrou os dentes e, em seguida, destruiu a imagem com um espirro.
— Porque ele é um desgraçado sedento por poder. É como o resto dos
burocratas egocêntricos e loucos por dinheiro no governo, só que ele tem um ás
para ajudá-lo. Ele é perigoso.
— Você se livra de Hartmann e o próximo presidente talvez seja Leo
Barnett.
— Merda. — Gimli cuspiu; Crisálida olhou para a pelota no tapete com
horror. — Ele pode conseguir a indicação, mas não a presidência. Barnett é
apenas um limpo; pode ser retirado se tiver que ser. Com Barnett ao menos
sabemos o que esperar. Hartmann é uma maldita incógnita. Você não sabe o que
ele vai conseguir ou o que vai fazer com o que consegue.
— Como, talvez, fazer algumas coisas corretas.
— Como, talvez, tornar as coisas piores. Isso não é por mim, é pelos
curingas. Olhe para os malditos fatos que você aprecia tanto. O que Hartmann
toca é destruído. Ele usa as pessoas. Mastiga bem e cospe a carcaça quando o
gosto acaba. Ele me usou, ele usou a irmã de Nur, ele fodeu a mente do meu
pessoal em Berlim. É nitroglicerina pura. Só Deus sabe o que mais ele fez.
Ele parou, esperando que ela contestasse, mas não o fez. Gimli tirou um
monte de lenços do bolso, assoou o nariz e riu para ela.
— E você desconfia das mesmas coisas — ele continuou. — Porra, eu sei
disso, porque você não teria ficado aqui ouvindo esse tempo todo se pensasse
diferente. Quer meu pacotinho porque talvez ele prove a verdade.
— Prova é uma coisa nebulosa. Olhe para Gary Hart. Ninguém precisou de
“prova” com ele, apenas uma falta de negação.
— Existe a prova com o carta selvagem. No sangue. E eu consegui o sangue
de Hartmann.
Gimli apresentou o casaco de Misha. Enquanto estendia o tecido manchado
de sangue sobre a mesa de Crisálida, ele contou a história. Quando terminou, um
leve enrubescer apareceu na pele transparente de Crisálida, as tramas dos vasos
sanguíneos se estendendo e espalhando com a empolgação. Gimli riu, embora
sua cabeça latejasse com a febre.
— É seu, de graça — ele lhe disse. Um acesso de tosse o assolou, espasmos
secos, e ele esperou até passarem, limpando o nariz na manga da camisa. —
Você me conhece, Crisálida. Eu posso fazer de tudo, mas não mentir. Quando
digo que é o sangue de Hartmann, é verdade. Mas não é suficiente, não sem algo
mais. Precisa apenas fazer alguma coisa com isso. Interessada?
Ela tomou o tecido entre os dedos, tocando com hesitação as manchas de
sangue.
— Deixe-me ficar com ele — ela falou —, quero que um amigo faça os
exames, talvez leve alguns dias. Se as manchas forem de um ás, então
poderemos fazer acordo.
— Foi o que pensei — Gimli disse. — Isso significa que você tem mais
coisas sobre Hartmann, não é? Cuide bem do casaco. Pego com você mais tarde.
Agora, vou para casa e me apagar.
Terça-feira, 23h45
Gimli tremia com febre quando saiu da sala de Crisálida. Foi até a traseira da van
de Lixa, mas disse ao curinga que voltaria sozinho. Foda-se o risco, ele pensou.
Estou cansado de bancar o fugitivo. Vou ter cuidado.
Saiu pela porta dos fundos do Cry stal Palace para um beco que fedia a
cerveja velha e comida apodrecendo. A náusea rapidamente pegou-o pelas
entranhas; apoiando-se com a mão no contêiner de lixo, ele se inclinou com
violência, esvaziando o estômago com a primeira onda de enjoo e, em seguida,
tentando inutilmente vomitar mais. Mesmo assim, não se sentiu melhor. Seu
estômago ainda parecia um nó, os músculos doíam, parecia que tomara uma
surra, e a febre piorava.
— Que merda — ele arfou e cuspiu com a boca seca.
Ele quis ter ouvido Lixa e deixado que esperasse. Empurrou o contêiner e
segurou o estômago, começando a caminhada para o armazém. Seis malditos
quarteirões. Não é tão longe.
Ele havia passado quatro deles quando o estômago se rebelou novamente.
Dessa vez foi muito pior. Não havia nada no estômago. Gimli tentou ignorar,
arrastando os pés para continuar a caminhada.
— Meu Deus! — ele gritou, o rosto retorcido em agonia. A dor jogou-o de
joelhos atrás de uma fileira de latas de lixo, tentando desesperadamente respirar
entre ondas de ânsias desesperadas. Suas entranhas queimavam, a cabeça
latejava, o suor encharcava a roupa. Ele socou o concreto até os punhos ficarem
feridos e ensanguentados numa tentativa de bloquear o tormento interno com a
dor externa.
Piorou. Cada músculo do corpo parecia ter espasmos naquele momento, e
Gimli uivou, um berro animalesco. Rolou no chão, retorcendo-se, os músculos do
corpo em rebelião descontrolada — pernas agitando-se, mãos em punho, coluna
arqueada pelo tormento. O braço quebrou sob a pressão dos bíceps e tríceps que
se contraíam com selvageria, a ponta exposta rasgando a pele. O osso girou
diante de seus olhos como um ser vivo, abrindo ainda mais o ferimento. Parecia
que lhe haviam despejado ácido nos intestinos, porém, de alguma forma, a dor
parecia ceder, e aquilo o deixou ainda mais assustado.
Ele estava entrando em choque.
Os espasmos terminaram de uma vez, deixando-o em posição fetal. Gimli
não conseguia se mover. Ele tentou, dobrar um dedo; seu corpo estava totalmente
fora de controle. Por um momento, Gimli pensou que ao menos havia terminado.
Alguém o encontraria; alguém teria ouvido seus gritos. Os moradores do Bairro
dos Curingas sabiam o que fazer — eles o levariam para Tachy on.
Mas não havia acabado. O braço quebrado estava diante dos olhos
arregalados, e ele observou, a ponta do osso do braço derretia como uma vela no
forno. Conseguia sentir o corpo murchando, mudando por dentro, se
liquefazendo. A pele inchou, estendida como um imenso balão cheio até estourar
com água escaldante. Ele tentou gritar, mas não conseguiu abrir a boca. Seus
olhos também — as latas de lixo, a parede, o braço quebrado na sua frente, tudo
se dissolvia, distorcendo-se como se o mundo ficasse turvo e desaparecesse. Ele
não conseguia tomar fôlego. Sentiu-se sufocado, incapaz de respirar.
Ao menos Crisálida está com a porra do casaco. O pensamento era de uma
objetividade que o surpreendeu.
Um ruído como o de papel sendo rasgado soou, assustando uma ratazana
curiosa que havia rastejado para mais perto do estranho montinho. Gimli não
conseguia ver nem ouvir, mas a sensação estava lá, como um atiçador
incandescente enfiado em sua espinha. Um pequeno rasgo apareceu no meio das
costas. Lentamente, a fissura cresceu, a carne abrindo-se em faixas longas,
irregulares.
No vazio angustiante e silencioso, Gimli se perguntou se já havia morrido, se
aquilo não era o inferno eterno que Misha jurava que estava esperando por todos
os curingas. Ele gritou mentalmente, xingando Misha, xingando Hartmann,
xingando o carta selvagem e o mundo.
E então, como uma bênção, ele perdeu a consciência.
Q uarta-feira, 12h45
No beco atrás do Cry stal Palace, uma figura corpulenta com um sobretudo preto
aproximou-se de um homem vestindo uma máscara de palhaço. O rosto coberto
da figura de sobretudo escondia-se atrás do que parecia uma máscara de
esgrima.
— Ok, senador, fomos os últimos a sair — a aparição disse. — Os últimos
clientes já foram. Os funcionários acabaram de sair; o lugar está vazio. Crisálida
está em sua sala com Downs.
A voz baixa soava feminina, o que significava que a persona de Patti estava
responsável por Estranheza naquela noite. Gregg entendia que o curinga havia
sido três pessoas no passado, dois homens e uma mulher envolvidos em um
relacionamento amoroso duradouro. O carta selvagem juntou-os em um ser,
embora a fusão tivesse sido incompleta e fluida. As formas erguiam-se e
mudavam sob o sobretudo de Estranheza. Seu corpo nunca descansava — Gregg
o vira uma vez sem tecidos para escondê-lo, e a visão foi perturbadora. Aquilo
(ou talvez eles, pois Estranheza sempre se referia a si mesmo no plural) sofria
constantes metamorfoses. Patti, John, Evan: nunca inteiramente um deles, nunca
estáveis, sempre lutando contra si mesmos. Ossos estalavam, a carne
apresentava protuberâncias e torções, as feições iam e vinham.
O incessante processo era terrível — o Titereiro sabia melhor que todos.
Estranheza lhe dava o alimento emocional pelo qual ele ansiava simplesmente
por existir. O mundo de Estranheza era um banho de dor, e as matrizes triplicadas
de sua mente eram rápidas para mergulhar na depressão negra, triste.
A única constante de Estranheza era a força de sua forma maleável. Nisso,
Estranheza ultrapassava Carnifex e, talvez, competisse com Mordecai Jones ou
Braun. Estranheza tinha também uma grande lealdade ao senador Hartmann.
No fim das contas, Estranheza sabia que Gregg era compassivo. Gregg
importava-se com os curingas. Era a voz da razão contra fanáticos como Leo
Barnett. Ora, ele era um dos poucos que haviam perguntado a Estranheza como
estava e ouviram com simpatia a longa história da vida do curinga. Gregg
poderia ser um limpo, mas ia até os curingas e conversava com eles, apertava as
mãos e mantinha suas promessas políticas.
Estranheza teria feito qualquer coisa que o senador Hartmann pedisse. O
pensamento fazia o Titereiro se contorcer deliciado dentro de Gregg. Aquela
noite... aquela noite mantinha a promessa de ser deliciosa.
O Titereiro estava cansado de arriscar pouco, mesmo que Gregg não
estivesse.
Gregg mandou aquela personalidade escondida para os recônditos da
mente.
— Obrigado, Patti — ele disse. Através do Titereiro ele conseguia sentir um
toque de prazer naquilo: as psiques individuais em Estranheza gostavam de ser
reconhecidas. — Você sabe o que fazer?
Estranheza assentiu. O que talvez fosse um seio escorreu lentamente para a
lateral esquerda do sobretudo.
— Vou vigiar o lugar. Ninguém entra ou sai, além dos dois que o senhor me
indicou. Simples. — As palavras ficaram trêmulas quando o formato da boca
alterou-se por trás da máscara de esgrima.
— Bom. Agradeço muito.
— Não há de quê, senador. Tudo que precisa fazer é pedir.
Gregg sorriu e forçou-se a dar um tapinha no ombro de Estranheza. As
coisas estavam deslizando embaixo do casaco. Ele reprimiu um calafrio quando
o apertou levemente.
— Obrigado novamente, então. Estarei de volta em mais ou menos vinte
minutos.
A gratidão e a lealdade que emanavam de Estranheza fizeram o Titereiro
gargalhar lá dentro. Gregg ajustou a máscara de palhaço enquanto Estranheza se
recostava nas portas dos fundos. Elas rangeram; uma corrente de metal estalou lá
dentro. Gregg andou a passos largos através das portas decadentes.
— Estamos fechados. — Crisálida estava em pé à porta de sua sala com
uma arma de aparência desagradável na mão; atrás dela, Gregg conseguia ver
Downs.
— Estava esperando por mim — Gregg disse, suavemente. — Você me
mandou uma mensagem. — Ele tirou a máscara de palhaço. Mesmo sem um elo
de marionete com a mulher, ele pôde sentir a mistura de medo e resistência nela,
um travo amargo que despertou o Titereiro. Gregg deu uma risadinha, deixando
um pouco de seu próprio nervosismo ressoar.
Por que tão incerto?
Deveria ser óbvio. Mesmo com as informações que Vídeo nos mostrou, não
sabemos de tudo. Gimli não confiava o bastante em Vídeo; ele não a deixava ver
tudo. Eles têm o que Kahina e Gimli tinham.
E você tem a mim.
Gregg planejou bem: Vídeo fora uma marionete maravilhosa e dócil por
anos. Ainda assim, mesmo com o que ela conseguiu transmitir-lhe, mesmo com
o que obteve das agências de inteligência do governo e de outras fontes, ele ainda
estava tateando na penumbra. Um passo em falso aqui, e tudo estaria terminado.
Gregg sempre fora cuidadoso, sempre buscara o caminho seguro.
Negligência era algo com que não ficava confortável, e aquilo era negligente.
Porém, desde a Síria, desde Berlim, parecia ter sido forçado a escolher esse
caminho.
— Desculpe, não consegui vir durante seu expediente — ele continuou, sua
voz quase defensiva. — Senti que sua reunião talvez fosse particular demais para
isso.
Bom. Deixe que pensem que eles são o lado forte, ao menos um pouco.
Precisa conhecer o que eles sabem.
Crisálida abaixou a arma; músculos expandiram-se sob o braço transparente
e sobre o peito — o vestido que envergava pouco escondia do corpo. Os lábios
vermelhos que pareciam flutuar na carne vítrea apertaram-se.
— Senador — ela disse com aquele sotaque falso e aspirado que Gregg
detestava. — Suponho que o senhor sabe o que o senhor Downs e eu gostaríamos
de discutir.
Gregg suspirou. E sorriu.
— Você quer falar sobre ases — ele disse. — Especialmente aqueles que
estão, por assim dizer, na moita e que pretendem ficar assim. Vocês querem ver
o que eu talvez possa fazer por vocês. Acho que isso em geral se chama
chantagem.
— Ahh, que palavra feia. — Ela voltou à sala. Seus lábios estreitaram-se, os
assustadores olhos de caveira piscaram. — Por favor, entre.
A sala de Crisálida era luxuosa. Uma mesa de carvalho polida, poltronas de
couro aveludado, um tapete caro no centro do assoalho de madeira maciça,
estantes de madeira nas quais lombadas adornadas com folhas douradas se
alinhavam em conjuntos. Downs estava sentado e nervoso. Sorriu com hesitação
para Gregg quando o senador entrou.
— Ei, senador. Que conta de novo?
Gregg não se deu ao trabalho de responder. Olhou feio para Downs. O
homenzinho fungou e recostou-se na cadeira. Crisálida passou por ele numa onda
de perfume e sentou-se atrás da mesa. Ela acenou para uma das poltronas vazias.
— Sente-se, senador. Não creio que nossos negócios tomem muito tempo.
— Exatamente sobre o que estamos falando?
— Estamos falando sobre o fato de que estou considerando contar ao
público que o senhor é um ás. Tenho certeza que o senhor ficaria muito infeliz
com isso.
Gregg esperava que Crisálida fosse ameaçá-lo; sem dúvida, estava
acostumada a colher resultados daquela tática, e ele não duvidava que ela se
considerava a salvo da violência física ali. Gregg observou Downs de canto de
olho. O repórter mostrou-se do tipo nervoso na turnê carta selvagem, e não
conseguia controlar a agitação agora. O suor brotava-lhe da testa; ele esfregou as
mãos e se retorceu na poltrona. Se Crisálida estava tranquila ali, Downs não
estava. Bom. O Titereiro ficou alerta. Foi um erro não termos pegado o cara
antes. Vou pegá-lo agora.
Não. Ainda não. Espere.
— O senhor é um ás, não é, senador? — Crisálida fez a pergunta com frieza,
fingindo indiferença.
Gregg sabia que eles esperavam que negasse. Então, ele simplesmente
sorriu.
— Sou — ele respondeu com a mesma calma.
— Seus exames de sangue foram falsificados?
— Como podem ser falsificados de novo. Mas não acho que precisarei fazê-
lo.
— O senhor tem confiança exagerada em seu poder, então.
Gregg, olhando para Downs e não para Crisálida, conseguiu ver a hesitação.
Ele sabia o que o homem estava pensando: Um telepata que se projeta? Um
poder mental como o de Tachyon? E se não pudermos controlá-lo?
Gregg sorriu calmamente para emprestar credibilidade àquele equívoco.
— Seu amigo Downs não está tão seguro — ele disse a Crisálida. — Todos
no Bairro dos Curingas sabem sobre a pele vazia de Gimli encontrada na noite
passada em um beco, e ele se pergunta se eu tive algo a ver com isso. — Era um
blefe. Gregg ficou tão surpreso (e deliciado) quanto qualquer outro com as
notícias, mas viu a cor desaparecer do rosto de Downs. — Ele se pergunta se eu
não poderia ter sido capaz de forçar sua cooperação através do meu ás.
— Não pode. E seja lá o que tenha acontecido com Gimli não tem nada a
ver com o senhor, não diretamente — Crisálida respondeu com vigor. — Não
importa o que ele ache. Meu melhor palpite é que o senhor tem um poder
mental, mas com um alcance bem limitado. Então, mesmo se o senhor puder
fazer com que digamos sim agora, não poderá nos forçar a cumprir.
Ela sabe! O uivo do Titereiro ecoou na cabeça de Gregg. Vai ter que matá-
la. Por favor. Terá um gosto bom. Poderíamos obrigar Estranheza a fazê-lo...
Ela suspeita, isso é tudo, ele respondeu.
Qual a diferença? Mate-os. Temos marionetes que teriam prazer nisso. Mate-
os e não teremos que nos preocupar.
Se matarmos agora teremos mais vestígios para encobrir. Misha não falaria;
ainda não sabemos qual prova Crisálida recebeu. Gimli saiu sozinho de cena, mas
ainda há outro homem na memória de Vídeo, o russo.
E Sara. O escárnio do Titereiro era agudo.
Cale a boca. Podemos controlar Sara. Crisálida terá planos prontos contra a
própria morte. Não podemos arriscar.
O debate interno levou apenas um instante.
— Sou político. Isso aqui não é a França, onde o carta selvagem é chique.
Estou numa luta em que Leo Barnett usará o ódio aos curingas como ferramenta.
Eu vi a carreira de Gary Hart ser destruída por insinuações. Não vou deixar que
isso aconteça comigo. Ainda assim, as pessoas talvez olhem para qualquer prova
que vocês tenham e questionem. Talvez eu perca votos. As pessoas dirão que
exames de sangue podem ser falsificados, olharão para Síria e Berlim com
desconfiança. Não posso me permitir perder terreno para a especulação.
— O que significa que podemos chegar a um acordo. — Crisálida sorriu.
— Talvez não. Acho que vocês ainda têm um problema.
— Senador, a imprensa tem suas obrigações... — Downs começou, em
seguida ficou em silêncio com o olhar contundente que Hartmann lhe deu.
— A revista Ases dificilmente pode ser chamada de imprensa legítima.
Deixe-me colocar as coisas dessa forma: seu problema é que vocês não sabem
do que sou capaz. Digo a vocês que Berlim e Síria não foram acidentes. Digo
que, agora mesmo, a pequena gangue de Gimli está sendo presa. Digo que vocês
não terão como escapar de mim se eu quiser encontrá-los. — Ele virou a cabeça
levemente na direção da porta. — Mackie! — ele chamou.
A porta se abriu. Sorrindo, Mackie entrou, segurando uma mulher que
cambaleava num longo abrigo. Mackie puxou o abrigo dos ombros da mulher,
revelando que estava nua e manchada de sangue. Ele a empurrou a mulher pelas
costas, e ela se esparramou no tapete, diante de uma horrorizada Crisálida.
— Sou um homem razoável — Gregg disse enquanto Crisálida e Downs
encaravam a figura que gemia no chão. — Tudo que peço é que pensem sobre
isso. Lembrem-se de que vou contestar qualquer prova. Lembrem-se de que
posso e vou apresentar o exame de sangue negativo. Pensem sobre o fato de que
não quero nem ouvir o mais leve rumor. E percebam que eu os deixo vivos
porque são as melhores fontes de informação que conheço: vocês ouvem tudo,
ou fizeram com que eu acreditasse nisso. Usem essas fontes. Porque, se eu ouvir
qualquer rumor, se eu vir um artigo nos jornais ou na Ases, se eu perceber que as
pessoas estão fazendo perguntas estranhas, se eu for atacado, ferido ou mesmo
me sentir vagamente ameaçado, saberei aonde ir.
Downs encarava Misha boquiaberto; Crisálida havia afundado para trás
contra a mesa. Ela tentou encontrar os olhos de Gregg e falhou.
— Veja bem, eu pretendo usá-la, não o contrário — Gregg continuou. —
Considero os dois responsáveis pelo silêncio e pela segurança. Vocês dois são
muito bons no que fazem. Então, comecem descobrindo quem são meus inimigos
e trabalhem para impedi-los. Sou vingativo e perigoso. Sou tudo que Gimli e
Misha tinham medo que eu fosse.
“E se qualquer pessoa souber disso, vou considerar culpa de vocês. Talvez
vocês prejudiquem minha campanha presidencial para serem considerados
heróis, mas vai parar por aí. Não podem provar nada. No fim das contas, eu
nunca matei ou feri ninguém com as minhas mãos. Depois, eu ainda estarei nas
ruas. E encontrarei vocês sem nenhum problema. Daí eu farei o que faria com
qualquer inimigo.”
Titereiro estava rindo em sua mente, ansioso. Gregg sorriu para Crisálida e
para Downs. Ele abraçou Mackie, que o observava com avidez.
— Divirta-se — Gregg lhe disse. Deu um leve aceno com a cabeça para
Crisálida que foi arrepiante em sua indiferença, e saiu da sala. Fechou a porta e
recostou-se nela até ouvir o zumbido do ás de Mackie.
Ele deixou o Titereiro solto para cavalgar a loucura brilhante, colorida e
estranha do jovem. Mal precisou tocar em Mackie.
Lá dentro, Mackie ajoelhou-se e tomou a cabeça de Misha em seus braços.
Nem Crisálida nem Downs se moveram.
— Misha — ele sussurrou. A mulher abriu os olhos e a dor que ele viu atrás
deles o fez suspirar. — Uma mártir tão boa — ele lhe disse. — Ela não falaria,
não importa o que eu fizesse, sabem — ele falou para os outros com admiração,
seus olhos agitados, brilhantes. As mãos vagavam pelo corpo dilacerado. — Ela
poderia ser uma santa. Esse silêncio em sofrimento. De uma nobreza
desgraçada. — O sorriso que ele abriu para Misha era quase carinhoso. —
Primeiro eu a possuí como um garoto, antes de cortá-la inteira. Algo a dizer
agora, Misha?
A cabeça da mulher rolou de um lado para o outro, lentamente.
Mackie deu um sorriso espasmódico, respirando forte e rápido.
— Você não podia ter odiado os curingas de verdade — ele falou, olhando
para seu rosto. — Não poderia ou não deveria ter falado. — Havia uma tristeza
estranha na maneira em que ele dizia aquilo.
— Shahid. — A palavra era um sussurro dos lábios inchados e manchados
de sangue. Mackie inclinou-se para ouvi-la.
— Árabe — ele lhes disse. — Não falo árabe.
As mãos dele agora zumbiam, como um brado. Ele correu os dedos ao
redor dos seios dela como uma carícia, e o sangue escorreu em seguida. Misha
soltou um grito rouco; Downs engasgou e vomitou. Crisálida permaneceu estoica
até Mackie deslizar a mão para a barriga de Misha e deixar que os intestinos se
derramassem sangrentos sobre o tapete.
Quando terminou, ele se levantou e tirou o sangue e a carne que o cobriam.
— O senador disse que vocês saberiam como cuidar da bagunça — ele
disse aos dois. — Ele falou que vocês conheciam tudo e todos. — Mackie deu
uma risada, alta e maníaca. Começou a assobiar Ópera dos três vinténs, de
Brecht.
Com um aceno despreocupado, ele atravessou a parede e desapareceu.
Q uinta-feira, 19h35
Sara estava em uma esquina diante da Clínica do Bairro dos Curingas. Uma
frente fria viera do Canadá; nuvens baixas e rápidas cuspiam círculos úmidos no
asfalto.
Ela olhou novamente para o relógio. Misha já estava mais de uma hora
atrasada. “Estarei lá. Prometo, Sara. Se eu não estiver lá, saiba que é porque ele
me impediu. Você terá que decidir o que fazer.”
Sara xingou baixinho, desejando saber o que pensar, o que sentir.
“Você terá que decidir o que fazer.”
— Posso ajudá-la, srta. Morgenstern? — A voz grave de Tachy on assustou-
a. O alienígena de cabelo escarlate examinou-a de cima a baixo com um olhar
de preocupação intensa no rosto que talvez ela considerasse cômico em outro
momento; durante a recente excursão, ele indicara mais de uma vez que a
achava atraente. Ela riu, odiando o tom histérico da risada.
— Não. Não, doutor. Está tudo bem. Eu estava... estava esperando por
alguém. Devíamos nos encontrar aqui...
Tachy on assentiu com seriedade, seus olhos reluzentes recusando-se a
deixá-la ir embora.
— Parecia nervosa. Eu a observei da clínica. Pensei que talvez houvesse
algo que eu pudesse fazer. Tem certeza de que não há nada que eu possa fazer
para ajudá-la?
— Não. — Sua recusa foi muito ríspida, muito alta. Sara foi forçada a sorrir
para aliviar o efeito. — De verdade. Obrigada por perguntar. Eu já estava indo
embora. Não parece que ela vá aparecer.
Ele assentiu. Encarou-a. Por fim, deu de ombros.
— Ah — ele disse. — Bem, foi bom vê-la de novo. Não precisamos agir
como estranhos agora que a viagem terminou, Sara. Talvez um jantar qualquer
noite dessas?
— Obrigada, mas... — Sara mordeu o lábio inferior, agitada, desejando que
Tachy on fosse embora. Ela precisava pensar, precisava sair dali. — Talvez na
próxima vez que eu estiver na cidade?
— Farei questão de lembrá-la. — Tachy on fez uma mesura, como um lorde
vitoriano, olhando-a de um jeito estranho, em seguida se afastou. Sara observou-
o atravessando a rua até a clínica. O céu estava começando a despejar uma
garoa contínua. As luzes dos postes tremeluziam no crepúsculo precoce. Um
curinga com pernas estranhamente tortas e uma carapaça correu da calçada
para a cobertura de um alpendre. A chuva começou a empoçar nas sarjetas
cheias de lixo.
“Somos irmãs nesse caso.”
Sara desceu da calçada e correu até um táxi parado na rua. O motorista
limpo encarou-a através do espelho retrovisor. Seu olhar era grosseiro e direto;
Sara desviou o olhar.
— Aonde estamos indo? — ele perguntou com um evidente sotaque eslavo.
— Siga para longe do centro — ela disse. — Só me tire daqui.
“O que ele fez comigo, ele também faria com você. Não percebeu como seus
sentimentos por ele mudam quando ele está com você, e isso também não faz você
refletir?”
Ah, Andrea. Sinto muito, sinto tanto.
Sara se recostou e observou através da janela a chuva manchar os prédios
de Manhattan através das janelas.
♣ ♦ ♠ ♥
Laços de sangue
III
Uma apendicectomia rotineira. Não deveria ter dedicado tempo para isso, mas
Tommy era sobrinho do Velho Sr. Cricket, e não se ignora velhos amigos. Tach
tirou as roupas de cirurgia de um verde bilioso, escovou os cabelos curtos e fez
uma careta. Em seguida, fez a ronda em cada um dos quatro andares da clínica.
O hospital ficava escuro no início da noite. Dos vários quartos, ele ouvia
televisões com o som baixo, conversas cochichadas, e, de um deles, um soluço
triste, desesperado. Por um momento hesitou, em seguida entrou. Mandíbulas
poderosas e olhos ovais opacos o encaravam numa moldura de cabelos grisalhos.
O corpo magro atrás do avental do hospital revelou ser uma mulher.
— Senhora? — Ele ergueu a prancheta. Srta. Willma Banks. Setenta e um
anos de idade. Câncer no pâncreas.
— Ai, doutor, me desculpe. Eu não queria... eu estou bem, de verdade. Não
quis ser um incômodo... aquela enfermeira foi tão ríspida...
— Incômodo algum. E qual foi a enfermeira?
— Não quero fazer fofoca ou ser inoportuna sem necessidade.
Óbvio que era, mas Tachy on ouviu educadamente. Não importava o quanto
um paciente fosse cansativo, ele insistia na cortesia e no atendimento da equipe.
Se alguém tivesse violado essa regra mais básica, ele queria saber.
— E meus filhos nunca vêm me ver. Pergunto ao senhor, para que servem
os filhos se nos abandonam quando mais precisamos deles? Trabalhei todos os
dias por trinta anos para que eles pudessem ter vantagens. Agora, meu filho
Reggie... ele é corretor da bolsa em uma grande empresa de Wall Street... tem
uma casa em Connecticut e uma mulher que não suporta olhar para mim. Estive
apenas uma vez na casa deles quando ela estava fora com meus netos.
Não havia o que dizer. Ele estava sentado, ouvindo, a mão dela pousada
levemente na dele. Trouxe para ela um copo de suco de cranberry da sala das
enfermeiras e deu uma bela bronca na equipe. Bola pra frente.
O café que ele tomava todos os dias estava subindo do fundo da garganta,
azedo com o ácido estomacal. Bom, se fosse se sentir bilioso, poderia também
acabar com isso de uma vez. Ele abriu a porta de um apartamento e entrou. Mal
conseguia pagar o espaço, mas nenhum paciente merecia ser colocado com o
horror que jazia comatoso atrás daquela porta. Depois de quarenta anos vendo
vítimas do carta selvagem, ele pensava estar acostumado a qualquer coisa, mas o
homem que jazia deformado na cama era uma afronta àquela afirmação.
Preso no meio do caminho entre um ser humano e um crocodilo, o corpo de
Jack estava deformado pelas pressões não naturais do carta selvagem interagindo
com o vírus da AIDS. Os ossos do crânio haviam se alongado, produzindo o
focinho do crocodilo. Infelizmente, o maxilar inferior não se transformara.
Pequeno e vulnerável, pendia embaixo dos dentes afiados como lâmina do
maxilar superior. A barba por fazer escurecia o queixo. Na área do torso, a pele
mesclava-se a escamas. A linha entre as áreas que tinham intersecção se abrira
em dolorosas fendas vermelhas, e o soro vazava das rachaduras.
Tachy on estremeceu e esperou que, lá nas profundezas do coma, Jack
estivesse além da dor. Pois devia ser agoniante. Por anos, Jack visitara fiel e
pacientemente C.C. Ry der. Agora, por ironia, ela havia se curado e recebido alta
para uma nova vida, enquanto o paciente e fiel Jack tomara o seu lugar.
— Ah, Jack, algum amante chora por você ou ele morreu antes de você
entrar nessa morte em vida? — ele sussurrou.
Erguendo a prancheta, Tachy on releu suas notas, que indicavam que o vírus
da AIDS não avançava quando Jack estava na forma de crocodilo.
Memórias jaziam como folhas espalhadas, pretas e murchas. Tachy on
caminhava entre elas, enrubescendo de culpa, pois aquela era uma intrusão. No
fundo da mente moribunda de Jack havia uma centelha de luz, um brilho
espasmódico. A alma humana. Mais ao fundo ainda, o gatilho que lançaria
Robicheaux completamente em sua forma animal. Um toque de Tachy on e a
transformação seria permanente.
Ele era médico. Com juramento de salvar vidas. Jack Robicheaux tinha uma
sentença de morte. A presença do carta selvagem entremeada no código de suas
células atualmente mantinha o vírus da AIDS sob controle. Mas apenas
postergava o inevitável. No fim das contas, Jack morreria.
A menos que...
A menos que Tachy on o mudasse para sempre. O que não era humano não
poderia morrer de uma doença humana.
Mas a vida valia qualquer preço? E ele teria esse direito?
O que devo fazer, Jack? Devo fazer essa escolha por você, já que não
poderá fazê-la sozinho?
Aquilo seria diferente de desligar um respirador?
Ah, sim.
Mais tarde, quando se recostou na parede do elevador enquanto este chiava
lentamente na descida para o térreo, considerou novamente o conselho de Queen
para que pedisse ajuda. Mas muito disso apenas eu posso fazer. E só existe um de
mim. E todo mundo quer um pedaço. Sacudindo a cabeça como um pônei
cansado, saiu de lá para a sala de emergência.
E quase foi atropelado por uma enfermeira que passou correndo com um
frasco de trunfo. Trinta e dois, ele pensou, aumentando a conta, e acompanhou-a
através do vidro. Finn estava preparando a injeção. Caminhando até a maca,
Tachy on começou um exame rápido. A blusa da mulher estava aberta, revelando
o forte tom de café com leite da pele. Monitores estavam grudados no peito; uma
enfermeira segurava uma máscara sobre a boca e o nariz. Uma película nociva
cobria o corpo da paciente, umedecendo as roupas, vazando de todos os poros.
Foi em consequência de seu distanciamento de médico que não a reconheceu até
erguer uma pálpebra. A enfermeira tirou a máscara para lhe dar espaço para
trabalhar e...
Arfando, ele pôs de lado os sais de cheiro e se livrou das mãos que o
seguravam.
— Tudo bem com o senhor?
— Doutor?
— Beba isto.
— Me esqueçam! — Agarrando o braço da enfermeira como um bêbado,
ele se pôs em pé com dificuldade. Pegando o pulso de Finn, empurrou a seringa
para longe. — QUE DIABOS ESTÁ FAZENDO?
— É... é nossa única injeção... é um carta selvagem.
— NÃO PODE SER! EU CONHEÇO ESTA MULHER! É UMA ÁS!
O curinga se encolheu com a loucura mostrada pelo rosto de Tachy on. O
takisiano reiniciou o exame. Finn galopou para a frente e segurou-o com força.
— Está perdendo tempo! Está impedindo a única chance que ela tem! É um
carta selvagem!
— Impossível! O vírus foi criado para resistir à mutação. Ela é uma ás
estável. Não pode ser reinfectada.
— Olhe para ela!
Ofegante, Tach olhou da seringa para o corpo de Roleta, que vazava, e
novamente para a seringa.
— Me dê isso aqui!
Seus dedos deslizaram na película de muco malcheirosa, e a agulha
arranhou a veia. Roleta gritou.
— Limpe isso.
Mas, por mais rápido que limpassem, seus poros sangravam ainda mais
rápido. Finalmente, Tachy on acertou a agulha.
Pelos ancestrais. Que funcione. Que desta vez funcione!
Mas ultimamente parecia que suas preces encontravam apenas o silêncio.
Roleta estava começando a lembrar uma múmia de mil anos à medida que
a umidade vazava de seu corpo. De repente, as pálpebras piscaram e abriram;
ela encarou o rosto dele, confusa.
— Tachy on. — Um sussurro grasnado. — Eu estava voltando. Para você. —
Ela sugou o ar, um som de acordeão prestes a morrer. — Você ainda está
esperando?
— Estou.
— Mentiroso. Estou morrendo. Você está fora de perigo.
— Roleta.
A pele de Tachy on coçava com o pensamento de tocá-la, mas ele se forçou
a recostar o rosto contra o dela. Suas lágrimas mesclavam-se ao muco.
— Você destruiu minha vida. Você e sua doença. Finalmente ela está
terminando seu trabalho. Estou... tão... feliz.
Longos minutos depois, Finn puxou Tach para longe e puxou o lençol. A dor
atravessou o alienígena quando seus joelhos estalaram no chão frio de lajotas. As
mãos curvaram-se sobre a boca, ele reprimia os soluços. Em parte de tristeza.
Em parte de culpa, pois ele não estava esperando.
Muito mais pelo terror.
— Fiquei realmente louco hoje, mas pensei sobre o que você disse, e não os
controlei.
— Ótimo. — Tachy on olhou para dentro do refrigerador como se esperasse
uma iluminação vinda da caixa de leite azedo e de uma tigela cheia de pêssegos
mofados. — O que você disse?
O garoto ficou paralisado.
— Ah, Blaise, estou tão orgulhoso de você.
A rigidez se dissipou do corpinho sob o abraço forte de Tachy on.
— E você está falando inglês. Percebi isso também. Estou tão cansado que
está demorando um tempo para eu entender as coisas.
Blaise ergueu o braço e encostou o punho contra a boca de Tachy on. Tach
deu um beijo. Numa mudança repentina de assunto, o garoto perguntou:
— Tio Claude não era uma pessoa muito boa, não é?
— Não, mas é possível entender parcialmente seus motivos. Nunca é fácil
ser um curinga.
— O que você faria se fosse um curinga?
— Me mataria.
Blaise ficou boquiaberto com a expressão indescritível no rosto fino de seu
k’ijdad.
— Que bobagem. Qualquer coisa é melhor que a morte.
— Não concordo. Vai entender quando for mais velho.
— Todo mundo me diz isso. — Fazendo bico, Blaise saiu da cozinha e jogou-
se no sofá. — Jack, Durg, Mark, Baby. Acho que deve ser verdade se naves, seres
humanos e takisianos concordam. Mas não queria ser um curinga nojento igual
ao Homeleca. E se você fosse como Jube, Crisálida ou Ernie?
— Mesmo assim, não conseguiria viver. — Tach juntou-se a ele no sofá. —
Minha cultura idealiza o perfeito. Crianças defeituosas são destruídas no
nascimento e indivíduos normais são esterilizados se for determinado que lhes
falta valor genético suficiente.
— Então, ser comum é tão ruim quanto ser de... defeituoso? — ele
perguntou, tropeçando na palavra estranha.
— Bem, não muito, e um padrão genético muito aleatório também pode pôr
uma pessoa em risco. Eu quase fui esterilizado por conta do meu sangue sennari,
mas minhas capacidades mentais extraordinárias foram consideradas suficientes
para superar o imprevisível sennari e minhas outras... falhas.
— Você tem um filho em Takis?
— Não.
Tachy on se perguntou por um breve momento se o esperma que ele havia
deixado num banco em Takis ainda existia, ou se os apoiadores de Zabb
providenciaram a destruição. Ou, pior ainda, se Taj inseminou alguma fêmea?
Era irônico que, em uma cultura tão avançada tecnologicamente como a
takisiana, houvesse uma desconfiança fundamental com a inseminação artificial
e os úteros artificiais. Quanto aos úteros, existe até um certo sentido; em uma
cultura telepática, era melhor que a criança estivesse ligada à mãe, mas havia
pouca justificativa para o ato sexual.
Exceto pelas óbvias.
Dez meses! Dez meses sem sexo.
Ele afastou a mente daquele pensamento desagradável e concentrou-se
novamente em Blaise. Havia tanto a ensinar-lhe sobre a cultura takisiana. Mas ele
deveria realmente se importar? O menino nunca poderia ser apresentado à
família. Era uma abominação. Também havia muito na cultura takisiana que, de
perto, não fazia sentido. Como dizer a uma criança de 11 anos que as disputas
sanguinárias, a procriação controlada, a tensão e as expectativas quase
insuportáveis que faziam parte da vida dos lordes psi não eram românticas ou
maravilhosas, mas sim mortais ao extremo, e levaram seu avô para aquele
mundo alienígena?
— Conta uma história.
— O que faz você pensar que eu sei alguma história?
— Você parece mais um conto de fadas que real. Tem que saber histórias.
— Tudo bem. Vou contar como H’ambizan domou a primeira nave. Muito
tempo atrás...
— Não.
— Não?
A expressão de Blaise sugeria que seu avô era um idiota.
— Aaaah, claro. Era uma vez... — Ele ergueu uma sobrancelha
questionadora. Blaise assentiu, satisfeito, e se aconchegou no braço de Tachy on.
— E há tanto tempo que até mesmo o Kibrzen mais velho mentiria se dissesse
que lembra, as pessoas foram forçadas a fazer uma jornada através das estrelas
a bordo de naves de aço. O que era pior, eles não podiam construir essas naves,
pois Alaa, com sua linhagem feneça, assinara um contrato com os Mestres
Comerciantes, e as pessoas foram proibidas de construir espaçonaves. Então, a
riqueza de Takis foi sangrada no espaço e escorreu para os bolsos da predadora
Rede.
— O que é a Rede?
— Um vasto império comercial com 130 raças-membros. Um dia,
H’ambizan, que era um astrônomo notável, estava pairando entre as nuvens no
nascedouro das estrelas e teve uma visão incrível. Brincando entre as nuvens de
poeira cósmica, como botos nas ondas, ou borboletas através das flores, havia
formas gigantes e incríveis. E H’ambizan caiu no convés, agarrando seu crânio
ressonante, pois a cabeça estava cheia de um grande cantar. Seus assistentes
morreram de alegria e choque, pois suas mentes não conseguiam absorver os
pensamentos das criaturas. Mas H’ambizan, sendo dos Ilkazam, era mais robusto.
Controlou o medo e a dor e lançou-se com um só pensamento. Um único
comando. E tão grande era sua força que a horda de naves ficou em silêncio e
reuniu-se como baleias cuidadosas ao redor da pequena nave de metal.
“E H’ambizan escolheu a líder da horda e se vestiu para enfrentar o vácuo,
subiu na superfície irregular da nave. E, curiosamente, Za’Zam, mãe das naves,
abriu uma cavidade para receber o homem.”
— E daí H’ambizan controlou a mente da nave e fez com que ela levasse
ele para casa!
— Não. H’ambizan cantou, e Za’Zam ouviu, e os dois perceberam que,
depois de milhares de anos de solidão, haviam encontrado as metades perdidas
da alma. Za’Zam percebeu que, guiadas por essas pequenas e estranhas
criaturas, as ’Ishb’kaukab deixariam a vida nômade pastoril e alcançariam a
grandeza. E H’ambizan percebeu que havia encontrado uma amiga.
Tach inclinou-se e beijou a testa do garoto. Pensativo, Blaise mordeu o lábio
inferior e ergueu os olhos.
— Por que H’ambizan não percebeu que agora ele poderia combater a
Rede? Por que ele percebeu uma coisa tão boba?
— Porque essa é uma história de saudade e arrependimento.
— Não devia ser sutil?
— Deveria.
— Mas H’ambizan e Za’Zam lutaram contra a Rede?
— Lutaram.
— E venceram?
— Mais ou menos.
— Essa história é de verdade?
— Mais ou menos.
— Não é como estar um pouco grávida?
— O que você sabe sobre isso?
Blaise ergueu o nariz e olhou com superioridade.
— Um dia, quando não estiver tão cansado, vou te contar sobre
manipulação genética e o eterno programa de procriação que acontecia antes de
termos naves como a Baby.
— Então, não existiam naves selvagens?
— Ah, sim, havia, mas não eram tão brilhantes quanto essa história mostra.
— Mas...
Tach pousou um dedo nos lábios do menino.
— Mais tarde. Seu estômago está roncando tão alto que estou com medo
que ele pule para fora e morda meu braço.
— Um novo poder do carta selvagem! Estômagos assassinos!
Tach lançou a cabeça para trás e gargalhou.
— Venha, pequeno kukut, vamos buscar seu jantar.
— No McDonald’s.
— Ah, que alegria!
Ele conseguia ouvir a voz de Blaise pipar como um passarinho ou uma flauta
prateada, e os tons ribombantes mais profundos da voz de um homem. Um
violoncelo ou um fagote. Havia carinho naquela voz, conforto e algo
irresistivelmente familiar. Tachy on saiu do pequeno vestíbulo e entrou na sala de
estar. Blaise estava sentado na sala de jantar, uma pilha de livros diante dele. Um
homem corpulento e mais velho com cabelos grisalhos e uma expressão
levemente melancólica mantinha o menino no lugar com um dedo indicador
achatado. Seu sotaque era musical, bem como o de Tachy on.
— Ai, pelo Ideal... não!
Victor Demy enov ergueu os olhos escuros para encontrar os lilases de
Tachy on. Sua expressão era irônica e sutilmente maliciosa.
— K’ijdad, este é George Goncherenko. — A rigidez alarmante do avô
pareceu contagiar o menino, e o garoto titubeou e perguntou: — Tem alguma
coisa errada?
— Não, criança — disse George/Victor. — Ele está apenas surpreso em ver
que nós nos demos tão bem. Você aterrorizou muitos dos meus predecessores.
— Mas não o senhor — Blaise comentou. Em seguida, ele acrescentou para
Tachy on: — Ele não tem medo de nada.
É melhor você ter medo de mim!, Tachy on disse telepaticamente para o
agente da KGB.
Não, temos um ao outro na palma da mão.
— Blaise, vá para o seu quarto. Preciso conversar com este cavalheiro.
— Não.
— FAÇA O QUE ESTOU MANDANDO!
— Vá, criança. — George/Victor disse, encorajando-o com a mão gentil. —
Vai ficar tudo bem. — Blaise agarrou o homem num forte abraço, em seguida
correu da sala.
Tachy on atravessou a sala a passos largos e serviu um conhaque com as
mãos que tremiam de medo e choque.
— Você! Pensei que estivesse fora da minha vida. Você me disse que estava
se aposentando. Estava terminado. Você mentiu...
— Menti! Vamos falar sobre mentiras! Você reteve algo que eu precisava.
Algo que me custou tudo!
— Eu... Não sei do que você está falando.
— Ah, deixa disso, Dançarino, seu treinamento comigo foi melhor que isso.
Você reteve deliberadamente as informações sobre Blaise. Tem experiência o
bastante para saber o valor dessa pequena informação.
Hamburgo, 1956. Uma pensão decadente, mas limpa, e Victor repartia
bebidas e mulheres em doses limitadas, enquanto treinava e interrogava o
takisiano. Em poucos anos eles chutaram-no para que ele continuasse sua descida
até a sarjeta. Ele lhes deu tudo que tinha, e não fora o suficiente. O segredo o
corroera anos a fio, mas trinta anos era um bom tempo, e ele já havia começado a
pensar que estava a salvo. E, então, veio o telefonema durante a parte final da
excursão da Organização Mundial da Saúde, e o controle da KGB estava de volta
a sua vida.
— Meus superiores souberam de Blaise, de seu potencial e poder, mas eu,
que treinei e comandei você, fui deixado na ignorância. Não acreditaram no meu
desconhecimento, mas em serviço duplo. Eles tiraram a única conclusão
possível.
As sobrancelhas erguidas sacaram a resposta do seu ex-pupilo:
— Acharam que você mudou de lado, que se tornou um agente duplo.
Victor fez uma careta para a frase teatral. O conhaque explodiu no fundo da
garganta quando Tachy on o engoliu. Alguma explicação, alguma justificativa se
fazia necessária.
— Eu o quero a salvo de você.
— Eu diria que sou o menor dos seus problemas.
— Como assim? O que quer dizer com isso?
— Nada. Esqueça.
— Isso foi um comentário sobre mim?
— Meu Deus, não. Apenas enfatizo que vivemos em tempos perigosos.
— Victor, estão procurando por você? — Tachy on perguntou, sem saber se
se referia aos mestres russos da KGB ou à CIA.
— Não, todos pensam que estou morto. Tudo que resta é um carro
carbonizado e um par de cadáveres torrados irreconhecíveis.
— Você os matou.
— Não finja surpresa, Dançarino. Você também é um assassino. Na
verdade, temos mais em comum do que você pode imaginar. Como essa criança.
— Quero você fora da minha vida!
— Estou na sua vida para sempre. Melhor se acostumar.
— Eu mando você embora!
A voz de Demy enov paralisou-o antes que ele desse três passos.
— Peça para Blaise.
Tachy on lembrou-se do abraço. Nas semanas desde que ele tirara Blaise da
França, o menino nunca havia tido um gesto tão afetuoso. O garoto obviamente
amava o russo grisalho. O que aconteceria com o relacionamento entre Tach e o
garoto se ele mandasse embora abruptamente esse homem? Tach afundou no
sofá e cobriu o rosto com as mãos.
— Ah, Victor, por quê? — Ele, na verdade, não esperava uma resposta e
não conseguiu uma.
— Ah, sim, como vamos ser amigos, você deve saber meu nome
verdadeiro. Amigos não mentem uns para os outros. Meu nome é Georgi
Vladamirovich Poly akov. Mas pode me chamar de George. Victor está morto.
Você o matou.
♣ ♦ ♠ ♥
Viciada em amor
Pat Cadigan
A vista da cidade a partir do Aces High era de tirar o fôlego, até inspiradora.
Observando o entardecer, Jane olhava o vazio pela janela da cozinha, a
frustração e a infelicidade fazendo sua dança habitual no estômago. Atrás dela, a
equipe da cozinha trabalhava sem parar para dar conta do almoço antes dos
preparativos para o jantar, ignorando educadamente o fato de que Jane deixara
intocada a salada que fizeram para ela. Estava sem apetite nos últimos dias.
Inclusive havia parado de fingir que embalava o almoço para mais tarde e o
jogava no lixo às escondidas.
Sabia que rolavam boatos de que ela estava anoréxica, não exatamente a
melhor publicidade para um lugar como o Aces High. Era como uma piada de
mau gosto para Hiram, depois de ele ter aumentado suas responsabilidades no
restaurante, de recepcionista para supervisora substituta. Hiram estava muito
estranho naqueles dias, mas não perdia peso. Estava num giro de boa vontade
pelo mundo. Hiram Worchester, Embaixador da Boa Vontade. Era muito melhor
que Jane Dow, a Idiota da Máfia.
Memórias do tempo com Rosemary lançavam-na mais fundo ainda na
depressão. Sentia falta dela; melhor, sentia falta da pessoa que pensou que
Rosemary era e do trabalho que ela pensou estar fazendo. Tudo soava fino e
nobre — tentar neutralizar a histeria antiases e anticuringas que crescia
abastecida por políticos e pregadores histéricos e extremistas. Rosemary era uma
heroína real para ela, alguém com um halo de luz ao redor; precisava muito de
um herói depois de toda a vilania com os Maçons e o assassinato terrível e
grotesco de Kid Dinossauro. Seu encontro com a morte não deixou uma
impressão muito forte nela, exceto pelo contato com aquela criaturazinha
horrível e maléfica chamada Astrônomo. Raramente pensou nele depois disso, e
Rosemary foi o antídoto para o veneno do Astrônomo.
Até março, quando ela começou a se flagrar pensando que talvez fosse
melhor se Hiram tivesse simplesmente deixado que ela despencasse até a rua.
Parecia ter um instinto infalível para se envolver exatamente com as
pessoas erradas. Talvez esse fosse seu verdadeiro poder de ás, não a capacidade
de reunir água. Ela poderia se vender como um detector de bandidos, pensou
com amargura, mudar seu nome de Nenúfar para Vareta Radiestésica. Sim, eu
simplesmente amo essa gente, eu os seguiria para qualquer lugar, faria qualquer
coisa por eles — chamem a polícia, devem ser traficantes de pessoas e
admiradores de pornografia infantil.
Sua mente lhe trouxe a imagem de Rosemary Muldoon, sorrindo para ela,
elogiando seu trabalho intenso, e sentiu uma pontada de deslealdade e culpa. Não
havia maneira de fazê-la pensar que Rosemary era uma pessoa realmente ruim.
Boa parte dela ainda queria acreditar que a amiga fora sincera sobre o trabalho,
que, fosse lá o que fosse com que estivesse envolvida como chefe de uma
família mafiosa, ela realmente queria fazer algo pelas vítimas do vírus carta
selvagem.
Sim, ela pensou com firmeza, há muito de bom em Rosemary, ela não era
como todos os outros. Talvez algo terrível tivesse acontecido com ela para levá-la
a aceitar e abraçar a Máfia. Ela conseguia entender; meu Deus, como conseguia.
A mente deixou de lado a lembrança e pairou sobre o homem chamado
Croy d. Ela ainda tinha os números de telefone que ele lhe dera. Qualquer
momento, quando quiser companhia, alguém para conversar... aposto que poderia
ouvi-la por horas. Talvez até mesmo a noite toda, mas isso dependeria de você,
Olhos Brilhantes. Ninguém havia mostrado tanta petulância ao flertar com ela.
Croy d, de óculos escuros, chamando-a de Olhos Brilhantes; ela mal percebeu
quando sorriu com a lembrança. Não havia nenhuma relação exposta entre ele e
a organização de Rosemary. Estava escondida fundo demais ou ele era outro
idealista, como ela. Como ela queria acreditar que este era o caso, a maioria
provavelmente diria o contrário — e ela ainda estava tentada a pegar aqueles
números de telefone e surpreendê-lo com uma ligação. Não havia maneira de
ela poder realmente fazer isso, o que talvez fosse bem o motivo pelo qual ele lhe
dera o número em primeiro lugar.
Sua vida inteira estava de cabeça para baixo, revirada. Talvez fosse o que o
vírus carta selvagem realmente fizera, a transformou no alvo de todas as
pegadinhas que o mundo pudesse pregar.
De repente, a voz de Sal parecia estar falando com ela em sua mente: Não
está sendo justa consigo mesma. Nunca acreditou que os Maçons eram bons, não
estava cega ao que o Astrônomo realmente era. E, quanto a Rosemary, ela foi
muito mais esperta que você, esperteza das ruas — tirou vantagem de você e isso
deveria deixá-la com vergonha, não você. Se ela for ao menos capaz de sentir
vergonha.
Sim, Salvatore Carbone teria dito algo muito parecido para ela se estivesse
vivo. O fato de conseguir chegar a essa conclusão sozinha mostrava que seu caso
não era totalmente perdido, pensou. Mas a ideia não melhorou seu humor ou
trouxe de volta o apetite.
— Com licença, Jane — disse uma voz atrás dela. Era Emile, que havia
começado pouco tempo antes dela no Aces High e agora era o novo maître. Ela
limpou o rosto úmido rapidamente, feliz por ter conseguido ganhar mais controle
sobre a tendência de atrair enorme quantidade de água do ar quando estava sob
estresse, e virou-se, tentando sorrir para ele educadamente. — Acho que é
melhor você vir até a plataforma de carregamento.
Ela piscou para ele, confusa.
— Desculpe?
— Uma situação se desenvolveu e achamos que você é a única que pode
lidar com ela.
— O senhor Worchester sempre...
— O Hiram não está aqui e, francamente, duvidamos que ele seria útil
nesse caso.
Ela encarou Emile, tensa. Ele era um dos críticos mais ativos (e
implacáveis) do comportamento de Hiram, um grupo que parecia ganhar mais
adeptos a cada dia, todos eles empregados decepcionados e todos eles, para seu
completo desespero, mais corretos do que ela gostaria de admitir.
Desde seu retorno da excursão, Hiram estava... estranho. Parecia ter pouco
interesse real e nenhum entusiasmo pelo Aces High nos últimos dias, agindo
como se o restaurante fosse algum albatroz terrível no seu ombro, um incômodo
pesado que o impedia de fazer algo de importância maior. E estava se
comportando de forma abominável perante a equipe; suas maneiras quase
corteses haviam desaparecido, ele agia com distração ou de forma rude e
abusiva. Exceto com ela. Hiram ainda era amigável com ela, embora parecesse
ser um esforço enorme e óbvio controlar-se e concentrar sua atenção. Ele
sempre fora atraído por ela; Nenúfar sabia disso desde a noite em que ele salvara
sua vida. E se sentia culpada por não sentir o mesmo por ele. Ser subordinada de
alguém que gostava dela quando não conseguia retribuir a afeição era uma das
situações mais desconfortáveis que podia imaginar. Ela o compensou pelas
roupas caras que ele lhe dera e se esforçava para ser a melhor funcionária que
Hiram poderia querer em troca da segurança do emprego (e do generoso
salário) que ele lhe concedia. Nos últimos tempos, aquilo significava defendê-lo,
mesmo diante de pessoas que o conheciam havia muito mais tempo que ela e,
supostamente, tinham mais motivos para se dedicar a ele. Algumas delas eram
mais virulentas, talvez porque tinham dias muito melhores a lembrar do Aces
High. Se pudesse fazer Hiram ouvir, ela pensou, encarando os olhos verdes e frios
de Emile. Se ela pudesse fazê-lo entender o quanto estava arruinando a própria
autoridade, credibilidade e respeito, ele seria capaz de impedir esse terrível
declínio, dar meia-volta e voltar a ser Hiram Worchester, grande mestre
restaurateur. Naquele momento, era como se ele estivesse morrendo.
— Que tipo de situação? — ela perguntou com cuidado.
Emile sacudiu a cabeça de um jeito rápido e rígido, o que mais pareceu um
arrepio.
— É mais fácil você vir comigo — ele disse. — O que precisamos agora é
de uma ação rápida e decisiva de alguém que tenha autoridade para exercê-la.
Por favor. Venha comigo.
Dando um suspiro profundo, ela forçou a calma e foi com Emile até o
elevador.
A cena na plataforma de carregamento era algo parecido com um filme
dos irmãos Marx, mas sem tanta graça — como um remake de um filme dos
irmãos Marx, ela pensou, observando a equipe da plataforma trabalhando
furiosamente na recarga de um caminhão, enquanto dois funcionários da
Brightwater Fish Market descarregavam (ou talvez redescarregavam, e um
terceiro dos funcionários da Brightwater estava sobre uma caixa, cara a cara
com Tomoy uki Shigeta, o novo sushiman. O homem da Brightwater era um limpo
baixinho, troncudo, que parecia ter pressão alta; Tomoy uki era um ás magro de
2,10 metros que, durante o período da lua nova, vivia como golfinho entre as 23
horas e 3 horas da manhã. Juntos, pareciam um grupo de comédia ensaiando um
esquete, embora o homem da Brightwater estivesse fazendo um escândalo, e
Tomoy uki às vezes soltasse algumas palavras suaves que pareciam provocar o
outro a gritar mais ainda.
— O que está havendo aqui? — Jane perguntou na sua voz mais séria.
Ninguém a ouviu. Ela suspirou, olhou para Emile e, em seguida, berrou:
— Calem a boca, todos vocês!
Dessa vez, a voz dela cortou o ar, e todos se calaram, virando-se para olhá-
la quase ao mesmo tempo.
— O que está havendo aqui? — ela perguntou novamente, olhando para
Tomoy uki. Ele fez uma pequena mesura.
— A Brightwater fez uma entrega de peixe ruim. A carga inteira se perdeu,
e isso já faz um tempo. — Os tons educados de um brâmane de Boston de
Tomoy uki não carregavam nenhuma hostilidade ou impaciência. Jane pensou
que ele era a pessoa mais profissional que já havia conhecido e desejava ser
mais como ele.
— Algum tempo atrás ela foi carregada neste caminhão para entrega aqui.
A menos que Hiram tenha outra fonte, não conseguiremos abrir o sushi bar ao
entardecer.
Jane tentou farejar o ar sem ser muito óbvia. Tudo que conseguia sentir era
o cheiro de peixe esmagado, como se a maior parte do oceano tivesse sido
recolhida e descarregada na vizinhança. Ela não conseguia dizer se o odor era
bom ou ruim, apenas que era ofensivamente forte, e se a carga ficasse na
plataforma mais tempo, ela iria estragar, se já não estivesse estragada.
— Olhe, senhora, isso aqui é peixe, e peixe fede — disse o homem da
Brightwater, mexendo o lábio superior sob o nariz, como se para enfatizar sua
opinião. — Agora, faz muito tempo que entrego cargas de peixe fedido para
Hiram Worchester e muitas outras pessoas, e a coisa sempre cheira assim. Não
gosto do cheiro também, mas é do jeito que é. — Ele olhou para Tomoy uki com
raiva. — Peixe tem que cheirar mal. Ninguém vai me convencer do contrário. E
ninguém vai me dizer para voltar com a minha carga, a menos que seja o próprio
Hiram Worchester.
Jane assentiu bem de leve.
— O senhor sabe que o senhor Worchester me deu poderes para agir como
sua representante em todas as transações comerciais que tenham a ver com o
cardápio do Aces High?
O homem da Brightwater — Aaron era o nome no bolso de sua camisa —
inclinou a cabeça larga e olhou para ela com olhos semicerrados.
— Fale logo de uma vez, está bem? Não tente me enrolar com toda essa
lenga-lenga, olhe nos meus olhos e fale logo.
— O que eu quis dizer — Jane falou, um pouco desconcertada — é que
qualquer decisão que eu tome será uma decisão de Hiram Worchester. Ele a
apoiará 100%.
O olhar de Aaron passou de Jane para Emile, depois para um dos
funcionários da plataforma e chegou a Tomoy uki, que o encarava, impassível.
— Ah, por Deus, o que eu estou fazendo olhando para você? Você vai apoiá-
la 100%.
Tomoy uki virou-se para Jane, erguendo as sobrancelhas numa pergunta
silenciosa.
— O peixe está passado, Tom? — ela perguntou em voz baixa.
— Está. Com certeza.
— É isso que vou dizer ao senhor Worchester?
— Exato.
Ela assentiu.
— Então a carga volta para a Brightwater. Sem discussão — ela acrescentou
quando Aaron abriu a boca para contestar. — Se não estiver fora desta doca em
quinze minutos, vou chamar a polícia.
O rosto largo de Aaron contorceu-se numa expressão de descrença hostil.
— Vai chamar a polícia? Qual a acusação?
Dessa vez, Jane fungou tão alto quanto pôde.
— Descarga de lixo. Despejo ilegal de detritos. Poluição do ar. Qualquer
uma dessas funcionaria. Tenha um bom dia.
Ela virou-se de uma vez e voltou ao prédio com a mão sobre o nariz e a
boca. O cheiro de repente ficou nauseante.
— Muito bem, Jane — Tom falou enquanto ele e Emile alcançavam-na às
portas do elevador. — Hiram não teria conseguido se livrar dessa melhor.
— Hiram não teria conseguido se livrar dessa, ponto — Emile murmurou,
ameaçador.
— Não, Emile — ela retrucou e sentiu como ele a encarava, surpreso.
— Não o quê?
As portas do elevador abriram-se e eles entraram.
— Não fale mal de Hiram. Digo, do senhor Worchester. — Ela apertou o
botão para o Aces High. — É ruim para o moral.
— Hiram é ruim para o moral, caso não tenha percebido. Se ele estivesse
tomando conta das coisas, a Brightwater nunca teria sequer pensado em tentar
nos passar aquela carga podre. Isso mostra simplesmente que os boatos sobre ele
já correram, todo mundo sabe que ele não serve para mais nada...
— Por favor, Emile. — Ela pousou a mão no braço magro do rapaz, olhando
para seu rosto, implorando. — Todos sabemos que há algo de errado, mas todas
as vezes que você ou outros funcionários dizem algo assim, diminuem a chance
de ele ser capaz de consertar as coisas. Ele não vai poder se recuperar do que
quer que seja se todos estivermos contra ele.
Emile pareceu de fato um pouco envergonhado.
— Deus sabe que, se alguém deseja o bem dele, esse alguém sou eu, Jane.
Mas a maneira que ele está se comportando esses dias me lembra... bem, de um
drogado. — Ele estremeceu. — Eu detesto drogados. E todos os viciados.
— O que você diz é verdade, Jane — disse Tom do canto oposto do elevador
onde ele estava em pé com os braços dobrados diante do corpo esguio —, mas
nada disso vai nos trazer um sushi bar para esta tarde. Hiram nunca achou
adequado me contar seu plano de contingência para esse tipo de eventualidade.
Então, a menos que você saiba o que fazer, ou puder encontrar Hiram e fazer
com que ele fale, o Aces High vai ter que voltar atrás nessa promessa. O que
pode ser a ruína. Um passarinho me contou que um jornalista tem reservas para
hoje à noite, especificamente para resenhar o sushi bar para a New York
Gourmet. Não preciso dizer o que aconteceria com o Aces High se ele tivesse
uma resenha negativa.
Cansada, Jane esfregou a testa. Isso deve ser o que chamam de humor
negro, ela pensou. Quando tudo parece ficar cada vez pior e você acha que vai
começar a rir sem parar até que alguém o leve embora.
Num gesto casual, Tom moveu-se para o outro lado do elevador para ficar
perto de Emile. Da mesma forma casual, ela se afastou para que pudessem se
tocar sem que ela visse. Ninguém deveria saber que eram amantes, mas ela não
sabia por que eram tão malucos para manter o relacionamento em segredo.
Talvez algo a ver com a AIDS, ela pensou. A percepção de que todos os gay s são
portadores da AIDS trouxe uma nova onda de perseguições aos homossexuais.
Ela quase conseguia ficar feliz que Sal não vivesse para ver isso.
— Posso encontrar Hiram — ela disse depois de um tempo. — Tenho quase
certeza de que sei onde ele está. Emile, você cuida das coisas até eu voltar. — Ela
entregou a Emile a chave sobressalente da sala de Hiram. — Você não vai
precisar disso, mas, caso aconteça alguma coisa... Quando eu voltar, teremos um
sushi bar. A seleção talvez seja um pouco mais limitada do que gostaríamos, mas
podemos realizá-lo se fizermos com... hum... bastante desenvoltura. Podemos,
Tom?
— Eu sou a desenvoltura em pessoa — Tomoy uki disse, seu rosto totalmente
impassível, enquanto Emile reprimiu um sorriso. A visão dos dois fez com que ela
se sentisse repentina e insuportavelmente sozinha.
— Bom — ela disse, infeliz. — Vou só pegar minha bolsa e já saio. — O
elevador parou e deixou-os no salão de jantar do Aces High. — Com sorte, vocês
já terão notícias minhas em uma hora.
— E sem sorte? — Emile disse, pressionando, mas não com hostilidade, pelo
que ela conseguiu perceber.
— Sem sorte — ela disse, pensativa —, acha que pode ficar doente, Tom?
— Eu poderia ter feito isso desde o início — ele disse, curto e grosso.
— Claro, mas assim não teríamos tentado. Teríamos? — Ela tentou erguer a
cabeça como se estivessem cara a cara. — Vamos continuar tentando até não
restar mais opção. Entenderam?
Os dois assentiram.
— E mais uma coisa — ela disse quando eles começaram a se afastar. — A
partir de agora, chamem-no de sr. Worchester. — Emile franziu um pouco o
cenho. — Para todos, até mesmo para mim. Vai ajudar na motivação. Até
mesmo na nossa.
Emile mordeu o lábio, tenso, e, em seguida, para alívio dela, assentiu.
— Entendido, Jane. Ou deve ser srta. Dow?
Ela deixou o olhar cair por um momento.
— Não sou maluca pelo poder, Emile. Se realmente entende, você sabe
disso. Estou tentando salvá-lo. Salvar o sr. Worchester. Eu devo isso a ele. — Ela
olhou novamente para Emile. — Todos nós, cada um à sua maneira.
Tom a encarava e, pela primeira vez, ela viu ternura em seu rosto suave e
frio. Sentindo-se desconfortável, ela pediu licença para pegar a bolsa na sala de
Hiram e chamar um táxi. Surgiu uma sensação de vitória dentro dela enquanto
descia novamente de elevador. O temperamental Tomoy uki gostava dela, uma
conquista nada desprezível, e ela conseguira trazer Emile para o seu lado, ao
menos por ora. Ele deve gostar de mim também, ela pensou, quase eufórica.
Talvez fosse uma fraqueza terrível querer tanto que gostassem dela, mas
certamente estava conseguindo muitas coisas por isso. Ou conseguiria, se fizesse
com que Hiram cumprisse as promessas que ela fizera, ou insinuara.
O táxi estava esperando na entrada; ela embarcou e deu ao motorista um
endereço no Bairro dos Curingas, ignorando a segunda olhada que ele lhe dera.
Eu sei, eu não pareço muito mais que uma Chapeuzinho Vermelho na boca do
Lobo Mau, ela pensou com acidez quando se recostou no banco traseiro. Ficaria
surpreso se soubesse que eu já matei gente — e que posso fazer você voltar para
as cinzas também, se me causar algum problema?
Ela reprimiu o pensamento, sentindo-se envergonhada. Mentira quando
dissera que não era louca por poder. Claro que era — não é difícil ser quando se
tem uma capacidade de ás. Era o lado escuro de seu talento, e ela precisava lutar
contra ele o tempo todo, ou poderia se tornar algo como o terrível Astrônomo ou
o pobre Fortunato. Ela se perguntou por um instante onde ele estava agora e se se
lembrava dela do jeito que ela se recordava dele.
Pararam em um semáforo vermelho e um curinga esfarrapado, com
enormes orelhas de burro, lançou-se no meio do capô para lavar o para-brisa.
Bloqueando o som dos gritos do taxista para o curinga, ela tentou se acalmar para
o confronto inevitável com Hiram. Ela não devia ter aquele endereço, tampouco
deveria saber de quem era esse endereço. Hiram talvez a despedisse e a jogasse
para fora sem deixar que ela dissesse uma palavra, enquanto Ezili ficaria atrás
dele, rindo.
Jane temia encarar Ezili — todos a chamavam de Ezili Rouge. As fofocas
que corriam no Aces High era que, no Haiti, ela era uma espécie de
superprostituta que Hiram “resgatara” da pobreza devastadora das favelas — ou
seja, ela era praticamente uma ás no departamento sexual, e qualquer homem
(ou mulher) que tivesse essa experiência não aceitaria nenhuma outra pessoa. E
Hiram supostamente tivera essa experiência. Havia outros rumores — que ela
era a ex-amante de um superchefão das drogas, que estava se escondendo; que
ela própria era a chefona das drogas; que chantageara Hiram ou alguém para
trazê-la aos Estados Unidos; e uma porção de outras coisas.
Qualquer que fosse a verdade, Jane não gostava dela e o sentimento era
mútuo. A única vez que Ezili fora ao Aces High, fora ódio à primeira vista para as
duas. Ela ficou completamente perplexa com o calor excessivo que parecia
emanar da mulher e totalmente intimidada com seus olhos estranhos — onde
deveriam ser brancos, eram de um vermelho injetado. Arrogante, Ezili dirigiu-se
a ela como srta. Dow, errando a pronúncia para rimar com cow (vaca), em vez
de low (baixo), com uma entonação desdenhosa que causou uma raiva
instantânea nela. O que piorava as coisas era o fato de que Hiram parecia
realmente estar sob a influência de Ezili. Sempre que ele olhava para ela ou
mesmo a mencionava, Jane conseguia perceber uma mistura bizarra de desejo,
subserviência e impotência em seu rosto, embora, ocasionalmente, uma
expressão de puro ódio surgisse, fazendo com que Jane suspeitasse que, no fundo,
Hiram não gostava de Ezili mais do que ela.
— Ei, delícia!
Ela ergueu os olhos, assustada, para ver o curinga apertando o rosto contra a
janela do carro.
— Saia do táxi, meu amor, e eu levo você para o céu! Tenho mais do que
orelhas de burro!
O semáforo mudou, e o táxi avançou, afastando o curinga. Mesmo sem
querer, Jane se flagrou quase querendo rir. Não havia comparação entre a rudeza
do curinga e as paqueras refinadas que ela educadamente rejeitava no Aces
High, mas por algum motivo algo naquela crueza a tocava. Talvez apenas por ser
engraçada, ou porque o curinga era uma vítima que não se curvava à sua
condição, ou porque ele não havia realmente aparecido e dito o que mais ele
tinha de burro. Alguém mais mundano que ela teria gargalhado alto. Eu sou
apenas uma flor de estufa, ela pensou, um pouco amarga. Uma flor de estufa
assassina.
O táxi virou uma esquina com tudo e desceu dois quarteirões antes de parar
no meio do terceiro.
— É aqui — o motorista disse, sombrio. — Poderia descer rápido?
Ela olhou para o taxímetro e empurrou várias notas através da fenda do
vidro diante dela.
— Fique com o troco.
A porta estava emperrada, mas o motorista não fez menção de sair para
ajudá-la. Indignada, ela chutou a porta na segunda tentativa e saiu.
— Só por isso não vou desejar um bom dia ao senhor — ela murmurou
quando o táxi saiu às pressas do meio-fio, e então se virou para encarar o prédio
diante de si.
Havia sido reformado ao menos duas vezes, mas nada ajudava; era apenas
feioso e decadente, apesar de ser claramente sólido. Não cairia a menos que o
Grande Macaco o chutasse. Mas, ela bem lembrou, o Grande Macaco não existia
mais. Cinco andares, e o lugar que ela queria ficava no último. Ela crescera em
um apartamento de cobertura num prédio de sete andares, daquele tipo sem
elevadores, e corria para cima e para baixo os sete andares, sem parar, várias
vezes ao dia na juventude. Cinco andares não seriam problema, ela pensou.
Sua corrida terminou no meio do segundo lance de escadas, mas ela
conseguiu continuar sem parar, mesmo que mais lentamente, tomando fôlego
em cada patamar. A escuridão era aliviada pela claraboia fosca sobre a espiral
angulosa das escadas, mas a luz era anêmica e opressiva.
Havia apenas um apartamento no último andar. Hiram poderia também ter
colocado o nome nele, ela pensou enquanto fazia uma pausa no topo da escada,
ofegando um pouco. Em vez da porta opaca e cinzenta que todos os outros
apartamentos tinham, havia um trabalho em madeira de lei personalizado com
uma aldrava de latão ornada e um puxador antigo em vez de uma maçaneta. A
tranca acima era totalmente moderna e segura, mas feita para parecer ainda
mais refinada. Hiram, Hiram, ela pensou com tristeza, vale a pena anunciar sua
presença num lugar como este?
O que ele diria quando abrisse a porta e a visse? O que ele pensaria? Não
importava. Ela precisava fazer com que ele visse o que estava acontecendo, pois
isso o salvaria — salvaria sua vida. Seria um pouco diferente da maneira que ele
havia salvado a dela, mas o Aces High era a vida dele, e se ela pudesse salvar o
restaurante por ele, então ela o recompensaria por sua vida. O equilíbrio entre
eles seria finalmente restaurado, considerando que antes disso ela não pensaria
haver qualquer maneira de fazê-lo.
Nenhuma maneira, exceto uma, e isso ela não conseguiria. O sentimento
não estava lá. Ela sabia que Hiram a teria recebido de qualquer forma, que ele
teria consideração, carinho, a divertiria e amaria e tudo que uma mulher poderia
querer num amante. Mas, no fim das contas, seria horrivelmente injusto com ele,
e quando chegasse ao fim inevitável, seria doloroso e sofrido para os dois. Hiram
merecia coisa melhor. Um homem bom como ele merecia alguém cuja
devoção fosse igual à dele, alguém que mergulhasse por completo em cada parte
de sua vida e lhe desse todos os prazeres da relação. Precisava de alguém que
não pudesse viver sem ele.
Em vez de alguém que teria morrido sem ele?, sua mente sussurrou com
malícia, e ela sentiu outra forte pontada de culpa. Tudo bem, tudo bem, sou uma
vaca, uma ingrata, ela ralhou consigo mesma em silêncio. Talvez seja um erro
fatal eu não amá-lo, pois ele é muito bom. Talvez, se a gratidão pudesse fazer com
que eu me apaixonasse por ele, eu fosse uma pessoa melhor.
E talvez ele também não teria se escondido em um apartamento no Bairro
dos Curingas com um veneno como Ezili Rouge.
Meu Deus, Jane pensou. Ela precisava falar com Hiram. Não podia
acreditar que ele realmente queria manter a companhia de uma criatura dessas.
Precisava ajudá-lo a se livrar dela, encontrar uma maneira de barrá-la no Aces
High. Fosse lá o que ela precisasse fazer para ajudá-lo, qualquer coisa, qualquer
coisa mesmo, ela faria, especialmente se salvar Hiram significasse nunca mais
ter de ver aquela mulher novamente.
Ela se forçou a atravessar o corredor até o apartamento e dar três batidas
secas na aldrava. Para seu desespero, foi Ezili que atendeu.
Ezili estava vestida, se aquela fosse a palavra para tanto, em uma brisa de
material dourado translúcido sobre nada. Jane olhou para o rosto de Ezili
diretamente, recusando-se a deixar o olhar cair abaixo do queixo da mulher, e
disse no tom mais seco e controlado:
— Vim falar com Hiram. Sei que ele está aqui e preciso vê-lo.
Um sorriso lento e quente espalhou-se no rosto de Ezili, como se Jane tivesse
dito algo que ela possivelmente queria ouvir. Balançando-se um pouco, como se
dançasse uma música interior, ela se moveu para trás e gesticulou graciosamente
para Jane entrar.
O apartamento foi uma surpresa. A sala de estar fora cuidadosamente
decorada com motivos completamente haitianos que também refletiam o gosto
refinado de Hiram. Jane se viu incapaz de olhar para qualquer coisa, exceto para
o tapete marrom profundo, exatamente como aquele da sala de Hiram no
restaurante. O lugar era tão Hiram, mas o Hiram mudado, o Hiram estranho que
voltara da excursão pelo mundo. Com Ezili, que se movia lentamente ao redor
dela como uma espécie de criatura predadora, cujo jantar favorito havia
caminhado de forma obediente para suas garras.
— Hiram está no quarto — ela disse. — Acho que, se precisa mesmo vê-lo,
então pode entrar.
Em pé na frente de Jane, ela ergueu os braços para correr as mãos pela
nuca, praticamente lançando seus grandes seios no rosto de Jane, que manteve
seu olhar firme, nivelado, recusando-se a baixá-lo. Algo reluzente brilhou na mão
direita de Ezili quando esta a trouxe para a frente de novo.
Sangue. A calma severa de Jane quase se rompeu. Sangue? Em que, em
nome de Deus, Hiram havia se metido?
A mão avermelhada de Ezili ondulou pelo ar, apontando.
— É por ali. Entre e vai vê-lo. Na cama.
Jane passou pela mulher para chegar à porta sombria e entrou no quarto.
Pigarreou, começou a falar, em seguida ficou paralisada.
Ele estava ajoelhado no chão ao lado da cama como se rezasse. Mas,
definitivamente, não estava rezando.
De pronto, ela pensou que o havia surpreendido no ato de levar uma criança
pequena de cavalinho, e passou-lhe pela cabeça que era seu filho com Ezili, a
gravidez, nascimento e crescimento drasticamente encurtado pela infecção do
carta selvagem, que também fizera da criança um curinga horrível e deformado.
Ela deu um passo até ele, seus olhos cheios de lágrimas de piedade.
— Ah, Hiram, eu...
Ela olhou para o rosto de Hiram indo do ódio à tristeza agonizante, e viu o
que realmente estava em suas costas.
— H-H-Hiram...
Sua voz desapareceu quando uma expressão bizarra e estranha de
curiosidade espalhou-se pelo rosto de Hiram. Não era a expressão de um pai
interrompido enquanto cuidava do filho, e nenhum filho teria ficado preso ao
pescoço do pai pela boca. A criatura encarquilhada nas costas de Hiram tremia
de uma maneira que lembrava os movimentos de Ezili. Mesmo quando ela se
virou para correr porta afora, sabia que era tarde demais.
Quando atingiu o chão, parecia que pesava ao menos 150 quilos.
Mais tarde, quando ela pensou sobre o fato, quando conseguiu pensar em algo,
soube que poderia ter decorrido no máximo meio minuto antes de Hiram se
mover da cama para onde ela estava presa no chão pela barriga. O apartamento
ficou totalmente silencioso pelo que pareceu a Jane um período excruciante antes
de Hiram finalmente se levantar e ficar em pé ao lado de onde ela estava
deitada, brotando água e encharcando as roupas e o tapete.
Ela tentou dizer-lhe algo, mas todo o fôlego havia terminado com a queda.
Em um minuto, quando ela pudesse falar, diria a ele que não precisava fazer
aquilo, que não importava o tipo de problema no qual estivesse metido, ela não o
entregaria para ninguém e tentaria ajudá-lo da maneira que pudesse...
Ouviu um farfalhar baixo quando Hiram deitou-se no tapete ao lado dela,
encarando-a com a mesma expressão de curiosidade. Ele não me reconhece, ela
pensou com perplexidade horrorizada. A criatura ainda estava em suas costas, e
ela apertou os olhos para evitar encará-la.
— Em alguns momentos, você não achará tão difícil me olhar — Hiram
falou. A voz soava estranha, como se alguém estivesse fazendo uma imitação fiel
dele.
— Hi-Hiram — ela conseguiu sussurrar. — Eu... eu não ma-machucaria...
Dedos pequenos tocaram suas costas, e ela percebeu o que estava
acontecendo. Abriu os olhos.
— Não, Hiram — ela implorou, sua voz ficando mais forte —, não deixe...
não deixe que...
O olhar curioso de Hiram desapareceu. No seu lugar, veio uma expressão
tão dolorosa que fez com que ela automaticamente tentasse tocá-lo, mas o peso
mal deixava que ela movesse a mão.
A coisa estava inteira nas costas dela, aninhando-se; ela conseguia sentir
algo se mover no pescoço.
De repente, o peso se foi. Lágrimas reluziam nos olhos de Hiram, e ela
achou tê-lo ouvido sussurrar: Corra.
E, então, algo picou seu pescoço.
Prazer absoluto, ela descobriu, podia fazer uma pessoa desfalecer. Ao menos fez
com que ela desfalecesse. Às vezes, parecia que estava quase no ponto de
apagar, e depois ela se via seguindo uma curva suave de quadril, ou encarando o
rosto de Ezili. O prazer pulsando através dela crescia novamente até derrubá-la.
Uma vez, ela se flagrou encarando os olhos de Hiram enquanto Ezili se
ajoelhava diante dela, e ela sentiu quase uma conexão psíquica com ele. Hiram
estava com fome dela, de Ezili, das duas, mas ainda mais da coisa nas suas
costas. Sentia-se um pouco perplexo e abandonado. Sabia que aquele prazer, não
apenas o prazer do corpo de Ezili, mas daquele contato, o êxtase do beijo. O
beijo. A boca de Ezili, habilidosa como era, empalidecia diante do beijo
verdadeiro.
Indiferente, ela empurrou Ezili e entregou-se totalmente à criatura,
obedecendo a seus comandos silenciosos, revelando o que poderia fazer por ela
sozinha.
Por fim, ela se viu lânguida na cama, pairando semiconsciente,
incandescendo com prazer. Conhecia a maneira que as cobertas caíam contra a
pele, a umidade entre as coxas e a água que ainda acariciava seu corpo
lentamente, o murmúrio de Hiram e Ezili falando. Devia ter sido desconfortável
com o Mestre nas costas dela (Ti Malice, sua mente lhe disse, e ela aceitou o
nome), mas ele parecia totalmente natural lá, como se fosse algo que sempre
deveria estar ali e estava faltando até aquele momento. Ela suspirou de
contentamento. Como passara toda uma vida sem o conforto daquele peso ali, a
doce pressão no pescoço? Ela estava incompleta antes, pateticamente inacabada.
Agora estava completa, mais que completa; talvez até mais que humana.
Sim, muito mais que humana. Ela esperara por isso toda a vida sem saber,
ser cavalgada por essa criatura de beleza que poderia levar seu espírito a novas
alturas de autoconhecimento. Era viver num plano acima do humano. Todos os
novos pensamentos que lhe dera... mas, acima de tudo, o prazer. Ela era feita
para o prazer, pensou com alegria; como foi afortunada por ter sido capaz de
descobri-lo.
— Ezili — a voz dela disse. Em algum lugar fora da visão dela, sentiu Ezili
ficar de prontidão.
— Estou esperando — Ezili falou, soando aquiescente e, ainda assim,
petulante ao mesmo tempo.
— Não acabou ainda.
Ezili suspirou. Um momento depois, sentiu o toque da mão de Ezili.
— Não, isso não. Sua capa de saída está aqui? Queremos... passear.
Jane ouviu-se rir suavemente.
— E eu? — Hiram perguntou.
— Você pode ajudar a me vestir. — Jane ergueu a mão na direção dele. —
Venha, me ajude.
A capa de saída era longa e esvoaçante e tinha um capuz e uma gola grande com
várias dobras. As dobras escondiam a corcova que a criatura formaria sob a
cobertura mais convencional de um suéter ou casaco. A capa em si era um
pouco ostensiva, mas, nas ruas da Nova York do carta selvagem, não causaria
muito alarde. As formas encobertas dos curingas escondendo uma ou outra
característica proeminente já se haviam tornado lugar-comum.
Ezili puxou o capuz para esconder por completo o rosto de Jane, que puxou a
capa ao redor do corpo, desfrutando o pequeno prazer que seu toque
proporcionava.
— Algum lugar interessante — ela disse para Ezili. — Algo em um homem
desta vez.
— E eu vou ficar aqui e esperar por vocês? — Hiram questionou. Seu tom
era satisfatoriamente servil.
— Você sabe que voltarei para você mais tarde. Fique aqui.
— Sim — Hiram respondeu. — Sempre. — Ele manteve os olhos no tapete.
— Vou chamar o motorista.
Jane ficou deliciada ao ver que Hiram estava saindo com a limusine particular
esses dias, com um motorista que deixava o vidro à prova de som fechado em
todos os momentos. Aquilo lhe dava a privacidade que queria, com Ezili ou com
qualquer outra pessoa.
Era como ser uma rainha, Jane pensou; uma rainha ou uma imperatriz.
Agora ela conseguia entender como devia ser a vida do Astrônomo, ser como
ele. Ela o chamara de maldoso e resistira a usar certos aspectos do seu poder —
era de dar risada. O que pensava ser maligno era apenas uma questão de poder.
Não havia realmente isso de bem ou mal — apenas poder e o prazer que ele
trazia. E qualquer coisa poderia ser sacrificada por isso, qualquer coisa, e, se
necessário, tudo. O que for. Sempre.
Passaram por uma banca de jornal e ela vislumbrou uma revista com a foto
de Jumpin’ Jack Flash na capa. Algo vibrou dentro dela. Como seria bom tê-lo ali,
agora. Mas havia muitos homens bonitos no mundo, ruivos ou não. E o que a boa
aparência tinha a ver com isso? Havia boatos sobre os curingas, sobre como, às
vezes, quanto mais grotesca a deformidade, mais dotados e habilidosos eram em
certas coisas...
Ei, linda, tenho mais que apenas as orelhas de um burro!
Ela deu um beliscão em Ezili para chamar sua atenção, gerando mais uma
vez uma explosão de prazer apenas com o movimento, e perguntou aonde ela
queria ir. Em seguida, ela se recostou enquanto Ezili falava com o motorista,
vivenciando o êxtase apenas inspirando e expirando. Inspirando e expirando.
O bar era escuro, exceto pelo holofote branco e quente no pequeno palco onde
um curinga hermafrodita com muitos seios e um homem normal faziam coisas
incomuns um com o outro no ritmo da música. Jane observou através de seus
novos olhos, abraçando a experiência de curiosidade e interesse. Ainda mais
interessante foi a maneira como outros clientes passavam por ela e Ezili.
Passavam pela mesa de canto onde estavam, mostrando que estavam a caminho
do bar ou do banheiro, diminuindo o passo para trocar olhares. Era estimulante
descobrir que podia dispensar alguém com um olhar. Todos a queriam; alguns
deles encaravam Ezili, mas todos olhavam para ela, aninhada em sua capa,
escondendo o espírito do poder nas costas. Eles sabiam, ela pensou. Todos sabiam
que ela era a presença real e que Ezili era apenas sua serva, se muito. Serva
daquela coisa nas suas costas, claro, mas estava em suas costas. Não importava o
que acontecesse mais tarde, estava em suas costas agora, e mesmo que fosse
embora, se nunca mais o tivesse, ela havia sido a Rainha do Prazer por um tempo
e não conseguia imaginar não se sentir assim novamente.
Havia um jovem em pé na frente da mesa, ansioso. O Mestre disse a Jane
para elogiá-lo — magro, jovem, provavelmente com não mais que 17, 18 anos.
Sem características distintivas visíveis além dos rebeldes cabelos ruivos. Um
garotinho lindo. Ela se inclinou para a frente.
— Você está tampando a nossa visão. Por que não se senta? — Ela apontou
para a cadeira ao seu lado.
O garoto se sentou, encarando-a intensamente. Em seguida, sem dizer
palavra, ele deslizou da cadeira e ajoelhou-se diante dela. Quando ela puxou o
vestido para cima, sabia que era a criatura movendo seus braços, mas ela pôs
todo seu entusiasmo no ato, envolvendo-se alegremente com ele, aceitando o
prazer dos dedos encaracolando os cabelos do garoto. Ruivo, ela pensou,
sonhadora, vou fingir que é ele, Jumpin’ Jack Flash...
Uma leve onda de prazer corria pelo seu corpo, como se algo nela estivesse
distraído. Sem vontade, ela olhou sobre o ombro para Ezili.
— Está começando a me entediar — ela se ouviu dizer com voz monótona.
— Talvez por não resistir o bastante, ou talvez não tenha ideias próprias. Pegue a
capa, Ezili.
Os olhos de Ezili pareciam brilhar na escuridão.
— Mova-se com cuidado, minha Ezili.
Ezili sussurrou algo em francês e encaixou-se na lateral da capa,
envolvendo Jane com o braço. Ele a deixaria? Agora? Ao mesmo tempo que
pensava, sentiu-o afastar-se do seu pescoço. Um momento de dor aguda, seguido
por um branco repentino, como se um interruptor fosse desligado. Ela sabia que a
criatura estava se movendo de suas costas para as de Ezili, e quis se virar e puxá-
lo de volta, mas não conseguia se mover.
E a capa deslizou ao redor dos ombros de Ezili, e agora ela era a Rainha do
Prazer.
Ezili levantou-se da cadeira como se estivesse levitando e encarou Jane com
um triunfo desdenhoso.
— Por quê? — Jane perguntou, implorando. — Eu pensei... eu pensei...
Ezili acariciou a cabeça de Jane com rispidez, como se fosse um cão.
— Antigos favoritos não são esquecidos. Novos prazeres trazem grandes
sensações, mas os antigos favoritos, como este cavalo, sabem como me agradar.
E a riqueza de seus apetites... você precisa aprender muito, pequena montaria,
antes de se comparar a ela. — Ezili envolveu os seios com as mãos e ergueu-os
com orgulho.
Jane afastou-se, começando a tremer. Ezili curvou-se e encostou a boca em
sua orelha.
— Vai direto ao ponto de prazer no cérebro, sabia? — ela disse em sua voz
odiosa de Ezili. — Sim. Talvez possa encontrar alguma droga que faça o mesmo.
Poderia suportar horas sem ele. Pode tentar, talvez ajude. E talvez seja muito
melhor comigo agora, branquela. Se quiser o beijo novamente. — Ela lambiscou
a orelha de Jane, e Jane deu um gritinho e um tapa em Ezili. A mulher riu e deu a
volta na mesa, seguindo na direção da saída.
— Espere! — Jane gritou mais alto que a música. — Aonde vai?
Ezili parou, olhando-a com desdém.
— Buscar agitação de verdade lá fora.
— E eu? — ela berrou, desesperada.
Ezili riu novamente; a capa volteou com graça enquanto ela seguia para a
saída.
Jane ficou paralisada por um momento. Vou afogá-la!, ela pensou, mas a
mente perdeu a concentração necessária. O prazer que palpitava em todo o seu
corpo como as vibrações de alguma máquina suave havia desaparecido, e no seu
lugar instalou-se um vazio terrível, como se, quando a criatura se retirou dela, ela
tivesse levado tudo de dentro dela.
Em seguida, ela baixou os olhos e viu o garoto entre suas pernas, rindo para
ela, sua boca e queixo úmidos à luz fraca.
— Vá embora! — ela berrou e bateu no rapaz loucamente, horrorizada
consigo mesma e com ele e com o jeito que a criatura a abandonou.
— Ei, ei! — o garoto gritou, tentando se defender das mãos descontroladas.
— Mãozinha, socorro! A vadia ficou louca!
Vários braços a agarraram por trás, prendendo os braços dela ao lado do
corpo.
— Me solta! — Ela tentou se retorcer, e os braços apertaram ainda mais,
ameaçando quebrar-lhe as costelas. Ela tentou reunir água para lançar no rosto
do agressor, mas sua capacidade parecia tê-la deixado; havia apenas o vazio
onde antes ele estava. O pânico a invadiu. — Socorro, polícia, alguém!
— Cala a boca, puta maldita! — disse uma grossa voz masculina em seu
ouvido, o mesmo ouvido que Ezili lambera. Jane contorceu-se com repugnância,
e os braços apertaram de novo, fazendo doer. Ela tentou amolecer o corpo.
Depois de um momento, os braços relaxaram um pouco, prontos para apertar de
novo se ela começasse a lutar.
— Agora, o que você estava dizendo sobre polícia? Talvez tenha visto um
crime ser cometido?
Jane olhou ao redor. Todos a encaravam, todas as pessoas nas pequenas
mesas espalhadas pelo salão, mas não havia emoção na maioria dos rostos. No
palco, o hermafrodita e o homem haviam parado, sentados na plataforma com
as pernas enroscadas, apertando os olhos para enxergar o salão, incomodados. O
hermafrodita cobriu os olhos com uma das mãos para protegê-los dos holofotes,
procurando o motivo da perturbação.
— Ei, caramba, dá licença? — ele/ela gritou, seu rosto voltado na direção
de Jane. — Estou tentando me concentrar aqui. Acha que essa merda de ser ele-
e-ela é fácil?
— Vá se foder! — alguém gritou com voz rouca.
— É o último show da noite, querido!
— Tudo bem, vagabunda, vamos lá — a voz masculina disse no ouvido de
Jane. — Você arruinou o show. — Os braços ergueram-na e a arrastaram para o
fundo do salão até uma saída diferente da usada por Ezili. O garoto ruivo correu
para abrir a porta, e Jane foi jogada num beco sujo e estreito. Ela caiu no chão
de quatro, gritando de ódio e dor.
— Se manda, vadia. E não apareça de novo aqui.
Ela cambaleou para ficar em pé, pronta para protestar, mas pulou para trás,
caindo contra algumas latas de lixo. O homem em pé na porta não era mais alto
que ela, mas seu torso era largo e deformado para acomodar três pares de
braços. Atrás dele, o rapaz ruivo a encarava com raiva e limpou a boca de forma
ostensiva.
— Ela não pagou, Mãozinha.
O homem olhou para o garoto e foi até Jane, movendo-se mais rapidamente
do que ela pensou que ele podia.
— Ninguém passa meus garotos para trás — ele disse —, especialmente
uma vagabunda magrela que chama a polícia. Pague, vadia, e pode ir embora.
Antes que ela pudesse correr, ele estava sobre ela, correndo as mãos por
seu corpo numa busca grosseira.
— Vamos lá, onde você guarda a grana?
Uma das mãos estava presa entre as pernas de Jane. Ela abriu a boca para
gritar, uma outra mão a tampou enquanto quatro mãos continuavam a revistá-la.
— Cala a boca. Você guarda aqui embaixo, na caixinha de segurança? Vou
dar uma chance para você entregar, do contrário eu vou atrás.
Jane o encarou com cara de piedade; ele tirou a mão de sua boca.
— E aí?
— Não tenho nada — ela sussurrou. — Eles me deixaram aqui sem nada.
O homem a ergueu e a jogou para longe. Ela caiu de lado com tudo num
monte de lixo.
— Que merda, vagabunda. Mas vou deixar um aviso. Desta vez, passa. Não
volte aqui. Estou falando sério.
Jane se ergueu lentamente até ficar sentada, com as pernas junto ao corpo
para se proteger. O homem começou a virar para sair e, em seguida, avançou
sobre ela. Ela deu um gritinho, e ele riu dela, o garoto ruivo juntando-se a ele de
onde estava na porta, encostado com o braço no batente como se estivesse numa
tarde preguiçosa de fim de verão se divertindo com travessuras dos amigos. Sob
a luz ficou óbvio que ele era mais jovem do que ela pensou. O nojo e a pena por
ele começaram a aumentar dentro dela e, de repente, se extinguiu quando
encontrou o grande vazio da ausência de Ti Malice no seu corpo e na sua mente.
Ela irrompeu em lágrimas e algo dentro dela cedeu. De repente, estava coberta
de água.
— Que porra é essa? — o homem gritou para ela. — Que porra é você?
Ele se afastou dela. A visão do curinga de seis braços encolhendo-se pelo
seu poder de invocar as águas lhe trouxe uma pequena e amarga diversão; ela se
concentrou e, dessa vez, encontrou o poder, reunindo alguns litros de água do ar
para lançar no rosto do curinga. Em seguida, enquanto ele ainda estava cuspindo
e rugindo de ódio, ela se levantou e correu.
Ela extraiu a água das roupas o melhor que pôde, mas o poder estava fraco e ela
ficou um pouco úmida durante sua caminhada sem rumo pelo Bairro dos
Curingas no crepúsculo cada vez mais escuro. Sem rumo? Não era bem isso.
Sem vida, talvez, sem vida e vazia, mas em busca do carro de Hiram. Talvez Ezili
tivesse voltado para Hiram, ou Hiram voltado ao Aces High. Se ligasse para
Hiram, talvez ele pudesse enviar alguém para buscá-la...
A lembrança do que acontecera com Hiram foi como um soco no
estômago. Ela conseguiu ver seu rosto, a dor, a raiva, o desespero, a curiosidade
estranha e, depois, Ezili, Ezili e ela mesma...
Ela se inclinou, entre engasgos e ânsia, sem se importar com os olhares das
pessoas passando. Ah, Deus, como ela pôde, o que a fez... com Ezili, Ezili... ela
devia estar maluca, enlouquecida, possuída...
Alguém trombou nela, e ela cambaleou contra a lateral de um prédio,
soluçando com as mãos no rosto. Possuída, sim, mas já havia acabado, deixando-
a pior do que sozinha. O vazio lá dentro parecia aumentar, e ela teve uma
imagem de si sendo sugada por um imenso ralo. Viver sem a completude que a
criatura lhe trouxera, existir sem nenhum prazer, era insuportável.
O tremor dobrou-a de novo, e ela soluçou mais forte ainda. Mais. Ela
precisava de mais, precisava sentir-se completa novamente, aninhada no brilho
do prazer que apenas a criatura poderia lhe dar, e se precisasse ir até Ezili de
novo, até Ezili e Hiram juntos, se tivesse de ir ao bar e subir ao palco com o
hermafrodita e o homem e o curinga de seis braços e o rapaz ruivo, todos ao
mesmo tempo, não seria pedir muito, se a coisa pedisse para ela cortar a
garganta no fim de tudo...
— Ei. Ei. Calma, calma.
Mãos gentis pousaram nos seus ombros. Ela se chacoalhou, a esperança
enlouquecida aumentando e, em seguida, despencando no desespero quando ela
olhou para o rosto grotesco de um palhaço.
— Vá embora — ela disse, empurrando o homem fracamente.
— Olha só, estou tentando ajudá-la. Não se engane com esse rosto. Sei que
é estúpido. Foi um azar eu estar maquiado quando o vírus atacou, agora não
consigo tirá-la. Não é a pior coisa que poderia acontecer, acho eu, só de olhar
para você. — O homem a ergueu e deixou-a recostada à parede, enxugando o
rosto com um lenço. A tristeza nos olhos dele fazia o branco do palhaço e o
grande nariz vermelho ainda mais absurdos, mas ela não tinha vontade de rir.
— Vá embora — ela gemeu —, você não pode me ajudar, ninguém pode,
apenas ele. Preciso encontrá-lo. — Chorando, ela olhou para os braços. Secos.
Ela tocou o rosto, também estava seco. Ela nem conseguia mais invocar suas
lágrimas. Tinha sido a última gota, lá no beco? — Água! — ela gritou. — Quero
água!
— Xiu, xiu, vou buscar um pouco d’água — disse o palhaço, tentando
acalmá-la.
— Por favor! Ele me tirou a água! — Ela caiu contra o homem, chorando
baixinho, mas ainda sem lágrimas.
Curvada na cama em posição fetal, ela ouviu o palhaço falar com uma das
enfermeiras da clínica sem realmente ouvir o que ele estava dizendo. Seu corpo
estremecia incontrolavelmente o tempo todo, mas permanecia seca. Seca, ela
pensou; tão seca sem ele, sem o beijo e o prazer e a plenitude.
— ... algo sobre a água — o palhaço estava dizendo.
— Histérica — disse a enfermeira. — Histeria parece ser a doença do
momento por aqui.
— Não, é mais que isso. Estou com uma sensação ruim. Ela precisa ser
atendida.
A enfermeira suspirou.
— Talvez, mas estamos sem pessoal. Os novos casos estão chegando quase
na velocidade em que conseguimos registrá-los, todos curingas, e dos piores. Se
não descobrirmos a causa, a cidade inteira vai ser infectada. Está correndo um
grande risco, Boze.
O palhaço grunhiu.
— O que um curinga tem a perder?
— Você saberia a resposta se visse a ala de segurança.
— É apenas uma pequena ala de segurança a que vocês têm aí. Lá fora, é
uma grande ala de segurança, e todos nós estamos trancados nela. E quando eu
ando por aí, eu só vejo meu irmão de novo, virado do avesso. Gritando todas as
vezes que o coração bate. Inferno, se vocês não têm gente para ficar com ela, eu
vou ficar com ela, observar os sinais do que ela foi infectada.
Um novo surto de tremor percorreu o corpo de Jane; ela tentou suprimi-lo e
ouvir o que estavam dizendo.
— É muito bonito da sua parte, Boze, mas apenas pelo rápido exame que
fizemos nela na sala da emergência, eu diria que está sofrendo de abstinência de
droga, não de uma infecção do carta selvagem.
A ideia pareceu invadir a mente de Jane com uma luz forte. Ela se sentou e
virou-se para a enfermeira.
— Drogas. Eu preciso de droga.
A enfermeira olhou para o palhaço.
— O que eu disse, Boze? Só outra drogada flertando com a AIDS.
— Eu NÃO sou drogada, sua puta, sou ÁS e exijo ver o Dr. Tachyon AGORA!
O grito arranhou a garganta de Jane, ferindo-a; ela imaginou que podia
ouvir suas palavras ecoando em toda a clínica, chegando até o próprio Tachy on,
onde quer que estivesse.
E, aparentemente, ela imaginou certo; poucos momentos depois, Tachy on
apareceu na porta, a preocupação estampada em seu rosto cansado, tenso.
A enfermeira começou a falar com ele; ele acenou como se dispensasse
suas palavras e foi até a cama, tomando a mão de Jane.
— Nenúfar — ele disse, sua voz cheia de compaixão. — O que houve com
você?
Aquilo a desarmou completamente, e ela o agarrou, soluçando seco. Ele a
abraçou, deixou que ela desabafasse e, em seguida, com delicadeza, deitou-a
novamente na cama.
— Não me deixe assim! — ela gritou, agarrando as mãos dele.
— Xiu, Jane, não vou deixá-la, nem por alguns minutos.
Ela viu que ele não estava apenas cansado, mas à beira da completa
exaustão; em seguida, ela deixou esse fato de lado. Ele precisava ajudá-la. Era
tudo sua culpa, para começo de conversa, e se isso significasse trabalhar exausto
de vez em quando, aquilo era problema dele, o que não era nada se comparado
ao que ela estava passando.
— Preciso de uma droga — ela disse, trêmula. — Eu tomei uma, não foi
minha culpa, eu não queria tomar, fui forçada. Não quero mais, mas eu preciso
dela. Eu poderia morrer sem ela. Eu não sei...
— Que droga? — ele perguntou baixinho, empurrando-a para trás quando
ela tentou se levantar.
— Não sei — ela falou com rispidez e impaciência. — Sei lá, ela vai direto
ao centro do prazer, ela faz... ela causa... eu precisei... mas você deve ter uma
droga. Algo do seu mundo que você possa fazer. Algo que me cure, ou substitua,
como metadona...
— Você precisa de metadona? — A expressão dele era de pavor.
— Não, não, não é metadona, algo como a metadona, mas do seu mundo,
algo que me faça parar de querer...
Tachy on passou a mão pelo rosto.
— Por favor. Você não está falando nada com nada. Por favor, tente se
acalmar. Se você está viciada em drogas, posso enviá-la a outra clínica...
— Não é droga! — ela gritou, e Tachy on cobriu os ouvidos com as mãos. —
Desculpe, ai, desculpe — ela começou a sussurrar —, não é uma droga, não
exatamente, mas é como uma droga...
Tachy on afastou-se dela, pressionando a palma das mãos contra a testa.
— Jane, por favor. Eu perdi a conta do número de horas que estou acordado.
Não consigo nem mesmo expandir minha mente para acalmá-la. A enfermeira
vai lhe dar um sedativo, e vamos transferi-la para outro hospital.
— Não, por favor, não me mande embora! — Ela agarrou o braço de
Tachy on, e ele girou para se livrar dela.
— Você não pode ficar aqui. Precisamos das camas para os novos casos.
— Mas...
Tachy on afastou-se dela com firmeza.
— A enfermeira pode dar o nome de uma clínica perto daqui. Eles podem
ajudá-la. Ou nas ruas; tenho certeza que alguém pode lhe dar o nome de uma
fonte, se é o que você realmente está procurando. — Ele se levantou e saiu pela
porta, cansado, parando para voltar o olhar para ela. — Eu esperava que você
terminasse de outro jeito, Nenúfar. Deve ser uma grande decepção para Hiram
Worchester.
Com essas palavras, ele saiu.
Sem fala, Jane se recostou no travesseiro e encarou o teto. Tachy on estava
cansado, tão exausto que a viu apenas como outra viciada em drogas. Uma
grande decepção para Hiram Worchester. Ao pensar em Hiram, a vontade
explodiu sobre ela com uma intensidade que a levou para fora da cama e a fez
avançar para a porta.
Bem no limiar, ela trombou com a enfermeira.
— Opa, espere aí — a enfermeira disse, empurrando um papel para ela. —
O Dr. Tachy on me disse para lhe dar o nome dessa clínica...
Jane arrancou o papel dela e olhou, tentando mergulhá-lo num jorro d’água
que o transformaria em mingau, mas a necessidade terrível a bloqueou de novo.
Ela ergueu os olhos para a enfermeira.
— Sem droga? — ela disse, beligerante.
Os olhos da enfermeira eram sérios.
— Não aqui, senhorita.
Ela ainda poderia invocar um pouco de água, mesmo que fosse da maneira
convencional. Ela cuspiu no papel e jogou-o no rosto da enfermeira. Em seguida,
atravessou o corredor às pressas até a saída.
No quarto número que ela discou, a secretária eletrônica foi interrompida e uma
voz baixa disse:
— Melhor ser importante.
A voz de Jane de repente a abandonou. Ela segurou com força o fone na
cabine telefônica, a boca abria e fechava, impotente.
— Tudo bem, já vimos se o carro cor de gelo estava lá fora e já derreteu.
Vá ligar pra sua mãe... — Ela percebeu que ele desligaria.
— Croy d! — ela choramingou.
Ela conseguiu realmente sentir como ele mudou de atitude com a voz
feminina.
— Continue, estou ouvindo.
— Sou... sou eu, Jane. Jane Dow — ela acrescentou, tentando se esforçar
para soar calma.
— Jane. Bem. — Sua risada cheia de prazer irritou-a dolorosamente. —
Então você não jogou fora os números que eu lhe dei. Você parece meio
ofegante. Está tudo bem?
— Não. Sim. Digo... — Ela se recostou à parede da cabine telefônica,
agarrando o fone com as duas mãos.
— Jane? Ainda está aí?
— Sim. Claro. — Lentamente, ela se endireitou e tentou se controlar como a
recepcionista do Aces High que flertou tão facilmente com o homem de olhos
facetados. O vazio avassalador dentro dela tornava aquela mulher uma estranha
para Jane. — Ainda estou aqui, e você aí. Acho que significa que um de nós está
mesmo no lugar errado. — A voz dela vacilou na última palavra, e ela mordeu os
nós dos dedos para atenuar o som do choro.
— Se você estiver dizendo que gostaria de consertar essa situação, é a
melhor coisa que ouvi hoje. — Ele fez uma pausa. — Tem certeza de que está
tudo bem?
Algo no fundo de sua mente estava tentando dizer a ela que Croy d soava
como se ele mesmo estivesse no limite, mas ela ignorou. Se houvesse alguém
que poderia conseguir drogas para ela, esse alguém era Croy d. Fosse lá o que
precisasse fazer para ele em troca, não seria pedir muito.
— Tudo vai ficar bem quando você me der seu endereço — ela disse,
trêmula. Como ele não respondeu, ela acrescentou. — Eu realmente quero vê-lo.
Por favor?
— Nunca conseguiria resistir a uma mulher que diz por favor. Me diga onde
você está e eu falo a melhor maneira de chegar aonde estou...
A porta abriu uma fresta ampla para revelar os óculos escuros reluzindo para ela
com uma frieza de inseto. Croy d lambeu os lábios e abriu ainda mais a porta.
— Bem-vinda ao meu quarto, Olhos Brilhantes. Perdoe a expressão, mas
este apartamento é apenas um quarto. — A voz estava diferente; o homem era
mais alto e a pele era muito branca, mas as palavras eram puro Croy d.
Ela entrou no decadente apartamento de um cômodo apenas iluminado por
poucas luminárias espalhadas em pontos estranhos. A mobília era mínima —
uma escrivaninha que talvez viesse do mesmo brechó que as luminárias, uma
mesa de madeira antiga e algumas cadeiras, um sofá quebrado perto da janela.
Não era o lugar mais tranquilizante em que já estivera, mas, recordou, ela não
viera buscar tranquilidade.
— Não é o lugar que costumo escolher para me divertir — Croy d estava
dizendo quando encostou a porta e fechou a fileira de quatro trancas. Ele se virou
para ela, ergueu a mão para os óculos escuros e lambeu os lábios de novo. —
Então. Acho que não consigo oferecer muita coisa, mas posso fazer qualquer tipo
de gim tônica, se quiser.
Ela riu, nervosamente, abraçando o próprio corpo.
— Quantos tipos existem?
— Bem, há gim e tônica, claro. Tônica e gim — ele falou, aproximando-se
dela. Ela reagiu, afastando-se para a outra ponta do quarto, abraçando-se com
mais força. — Gim sem muita tônica. Gim sem tônica nenhuma. Gim e um cubo
de gelo. O que me parece ótimo. Você decide. — Ele lambeu os lábios pela
terceira vez em quase três minutos e foi até a pequena cozinha.
Jane virou-se, tentando controlar os tremores que cresciam dentro dela. Na
companhia daquele homem que a desejava, o vazio a devorava como ácido. Não
faria diferença se a última persona de Croy d fosse o deus Eros. Estar no mesmo
cômodo que ele era uma lembrança excruciante de que aquele prazer poderia
ser apenas Ti Malice; qualquer outra coisa era uma substituição pálida, crua, para
forçar o tempo a passar.
— Decidiu?
Ela saltou quando ele tocou seu ombro e afastou-se dele, esfregando o ponto
como se tivesse sido ferido.
— Não, eu... nada para mim, acho. — Ela deu outra risada nervosa e se
encolheu. Ele inclinou a cabeça com curiosidade, e viu duas Janes nos óculos
escuros. A distorção fazia parecer que ela estava tentando desaparecer dentro de
si mesma.
— Certeza? — Croy d suspendeu o copo e botou dois cubos de gelo na boca,
mastigando-os ruidosamente. Havia apenas cubos de gelo no copo, ela viu. —
Nada de nada?
— Bem, nada não... — Ela fez uma careta, dando um longo suspiro. — Meu
Deus, não sou boa nisso.
— Em quê? — Croy d comeu outro cubo de gelo. — Em que você não é
boa, Olhos Brilhantes? — Ele se aproximou um pouco mais, e ela se afastou. — E
por que é tão importante ser boa nisso?
De repente, algo bateu atrás de seus joelhos, e ela caiu com tudo no sofá.
Croy d aproximou-se rapidamente dela, rolando outro cubo de gelo na boca. O
braço esquerdo deslizou no encosto do sofá, e ela pulou para longe dele. Seu
joelho tocou o dela assim como a mão escorregou do sofá para o ombro da
mulher, movendo-se com muita delicadeza. Ele estendeu a mão e deixou o copo
no beiral da janela atrás do sofá, empurrando um pouco a cortina; a mão dele,
ela viu, tremia levemente. Jane olhou do copo para Croy d. A língua dele se
estendia e corria sobre os lábios a cada poucos segundos agora. Era mais um
tique que uma expressão de desejo.
— Diga, Jane — ele disse com gentileza quando ela chegou ao canto do
sofá. Ele pôs a outra mão no braço da mulher. Ela se contorceu ao contato; havia
outra sensação sob o desagrado do toque que não era de Ti Malice, um tremor,
como se ele estivesse correndo uma longa distância e indo o mais rápido que
podia em vez de estar sentado ali no sofá, tentando tomá-la nos braços. —
Vamos, fale comigo. Diga.
As palavras saíram dela espontaneamente.
— Dorminhoco drogado, todo mundo acabado.
Ele ficou paralisado. Jane olhou para os óculos escuros, vendo apenas seus
reflexos duplos. Por impulso, ela estendeu a mão para os óculos, e ele os puxou
para trás.
— Não. — Ele girou, olhando para os cubos de gelo, e Jane olhou para o
beiral da janela. — Obrigado. A anfetamina seca a gente.
— Onde você consegue? — ela perguntou.
— O quê, a droga? Por quê? — Ele mordeu alguns cubos de gelo. — Está
planejando ficar acordada a noite toda?
— Eu estava apenas imaginando se o seu fornecedor... bem, teria outras
coisas. — Ela deu um suspiro fundo. — Outros tipos de drogas.
Ele olhou para ela intensamente por um momento e, em seguida, avançou
sobre ela, pegando o braço da mulher para puxá-la mais para perto.
— Pare, você está me machucando! — Jane se afastou dos óculos escuros
que se aproximavam do seu rosto e tentou abrir os dedos que apertavam seu
braço.
— Você está na seca? É por isso que veio aqui? — Ele estava quase rindo.
Ela se afastou, começou a levantar e cambaleou, caindo no chão de uma vez. —
Levanta. — Ele a puxou de volta para o sofá com rispidez. — Fale comigo e,
desta vez, algo que eu não saiba. Você está na seca?
— Não é o que você está pensando — ela disse sem olhar para ele.
— Nunca é, Olhos Brilhantes. — Ele lambeu os lábios de novo. Aquilo
estava começando a enlouquecê-la. — Então, que tipo de droga você está
comprando... Cavalinho? Dama? Sonhos azuis? Vermelhos? Cruzamentos
brancos? Bombas pretas, nocaute amarelo berrante? Qual é o seu prazer? — A
voz dele era dura, horrível e, ela sabia, sem nenhuma surpresa, que ele estava
decepcionado pelo que pensava que ela era, assim como Tachy on ficara.
— Meu Deus, o que acham que devo ser, a ideia de todos de Rebbeca da
Sunny brook Farm, a Doce Ás Virgem? — ela gritou para ele. — Tenho que ficar
aqui no meu pedestal, bancando a Boa Menina do Senhor, só para vocês poderem
me dar tapinhas na cabeça e me chamar de virtuosa entre suas safadezas?
Querida Nenúfar, Nenúfar branquinha, Nenúfar virgem impoluta! Não funciona
desse jeito! Vocês todos me levaram para isso, vocês me envolveram em seus
jogos estúpidos, em suas guerras de gangues desgraçadas, vocês todos me
usaram para seus objetivos, e agora todo mundo está chocado porque eu apareço
com a mesma sujeira que vocês despejaram em cima de mim. O que vocês
esperavam?
Ela percebeu que estava ajoelhada sobre ele no sofá, gritando na cara do
homem. Alguns perdigotos haviam voado nos óculos escuros. Ele a encarava,
boquiaberto.
— Acho — ele disse, pausando para lamber os lábios — que anfetamina
não é a única coisa que seca a gente.
Jane dobrou-se com um soluço quando o vazio dolorido a atacou
novamente. Ela sentiu a mão de Croy d tocar levemente seus cabelos e gritou:
— Não me toque, dói!
— Pensei que era meio estranho que você não ficasse, hum, molhada, mas
não tive certeza. Tudo parece meio estranho nesse ponto. — Ele mordeu o último
cubo de gelo. — O que é isso? A velha heroína ou algo mais exótico?
Ela ergueu a cabeça da almofada cheirando a mofo.
— Você não acreditaria se eu dissesse.
— Tente. Diga o que você está procurando.
Com grande esforço, ela ergueu o corpo com as pernas dobradas para
baixo.
— Preciso de algo que vá diretamente ao centro do prazer no cérebro e
estimule continuamente.
— E quem não precisa? — Croy d falou, sombrio, enxugando a última gota
d’água do copo vazio.
— Então? — ela disse depois de um tempo.
— Então o quê?
— Conhece alguém que tenha uma droga assim e venda para mim?
Ele deu uma risada curta e sem humor.
— Caramba, não.
Jane o encarou, sentindo o vazio consumir sua esperança com o restante
dela e, em seguida, absurdamente, ela espirrou.
— Gesundheit — ele disse, automaticamente. — Olha só, não existe esse
tipo de coisa, nem animal, vegetal ou mineral. Exceto, talvez, umas cinco boas
horas de sexo bom, selvagem, e, francamente, no momento só aguento uma
hora. Terrível ter que admitir isso...
Ela saiu do sofá, partindo na direção da porta.
— Ei, espere aí!
Ela parou e se virou, olhando para ele com uma interrogação no rosto.
— Aonde vai?
— Ao único lugar que posso ir.
— E aonde seria?
Ela sacudiu a cabeça.
— Você está errado, Croy d. Essa coisa existe. Existe. Eu sei disso. E espero
que você nunca experimente. É a pior coisa do mundo.
Ele lambeu os lábios de novo e limpou a boca com a palma da mão.
— Duvido, Olhos Brilhantes.
— Bom — ela disse. — Espero que sempre duvide. Que fique onde está. Eu
vou embora.
Mas ela não podia. Precisou esperar pacientemente enquanto ele abria as
quatro trancas antes que ela pudesse fugir às pressas dos reflexos gêmeos de seu
próprio rosto desesperado.
Dessa vez, Hiram abriu a porta para ela, Hiram totalmente sozinho no
apartamento vazio. Ela não precisou pedir para entrar.
— Ele a deixou — Hiram falou baixinho.
— Deixou. — A voz de Jane era um sussurro enquanto ela abaixava a
cabeça.
— Você está... — A voz dele falhou por um momento. — Você está... bem?
Ela ergueu os olhos para ele, e os dele refletiam o vazio que ela sentia
dentro de si.
— Você sabe que não, Hiram. E nem você está.
— Não, acho que não estamos. — Ele fez uma pausa. — Posso lhe oferecer
alguma coisa? Um copo de água, alguma coisa para comer ou... — As palavras
dele pendiam no ar entre eles, absurdos fúteis. Estava oferecendo uma lágrima
para um incêndio na floresta.
Era doloroso demais para continuar assim. Jane ergueu a cabeça com o
máximo de dignidade que pôde fingir.
— Uma xícara de chá quente seria ótimo, obrigada.
Aquilo não existia, e ela quase nunca bebia chá quente, mas seria algo que
eles poderiam fazer além de ficar lá em pé, sofrendo juntos.
Ele se ocupou na pequena cozinha, enquanto ela se sentou na pequena mesa,
encarando o nada. Se o prazer era real, então a ausência do prazer também era
algo palpável; onde havia arrebatamento em todos os momentos, havia a dor do
vazio que ele havia deixado. Meu Mestre, ela pensou com uma repulsa
embotada. Eu o chamei de Meu Mestre.
— Não podia deixar você ir depois de ter me visto — Hiram disse
abruptamente. Ele não se virou, e ela não ergueu os olhos. — Tenho certeza que
entende, agora que sabe.
Ela soltou um pequeno murmúrio, mas não disse nada.
— E ele também a viu em meus pensamentos muitas vezes. Daí, quando
você apareceu... Por que veio até aqui?
A lembrança a fez dar gargalhadas. Alarmado, Hiram deu a volta no balcão
onde o chá estava sendo preparado e a encarou. Ele a olhou tão assustado que ela
tentou acalmar as gargalhadas, mas não tinha controle. Serviu apenas para
gargalhar mais alto, sacudindo a cabeça e acenando para ele se afastar ao ver
que Hiram se movia na direção dela.
— Tudo bem — ela arfou depois de um tempo. — Sério. É tudo tão... tão...
Ela gargalhou novamente por quase um minuto, enquanto ele a observava, o
tormento emanando dele em ondas que ela quase conseguia sentir.
— É tudo tão... insignificante — ela disse, quando finalmente conseguiu
falar. — A Brightwater entregou um carregamento de peixe podre, e eu precisei
mandá-lo de volta. Ninguém sabia o que fazer para conseguir um carregamento
extra para o sushi bar, e Tomoy uki disse que um jornalista da New York Gourmet
estava vindo para fazer uma resenha do sushi bar da tarde. — Ela gargalhou de
novo, mas mais fraco dessa vez. — Acho que não vamos ter sushi bar esta noite.
Eu disse para Tom ficar doente se eu não estivesse de volta em uma hora. Isso
foi... sei lá. Que horas são?
Hiram não respondeu.
— Não, acho que não importa, não é? — ela disse, olhando para ele. —
Consegui o endereço atrás do seu bloco de anotações, mas eu não o usaria a
menos que precisasse de verdade, e senti que precisava. Todos estão ficando
contra você, Hiram. Emile anda por aí dizendo que acha que você é um viciado.
— Eu sou — Hiram disse, desolado. Ele verificou o bule com chá e o pôs na
mesa com duas xícaras. — E você também. E Ezili. E todo mundo que ele tiver
beijado.
— É como você chama isso? — ela disse enquanto ele servia o chá. — Não
tem uma palavra melhor?
— Não. É um vício instantâneo, permanente — Hiram continuou, quase
falando obviedades. — Ele se conecta ao centro de prazer do cérebro. Por isso
tudo parece tão bom. Comer. Mover-se. Fazer amor. Até respirar. E quando ele
sai de você... é como a morte. Não tem cura, nem alívio. Exceto o beijo. Eu farei
tudo por ele. E você também.
— Não.
Hiram parou no ato de erguer a xícara.
— Precisamos nos recompor. Deve haver algum tipo de cura que possamos
tomar, ou mesmo uma droga que possa agir como um bloqueio ou substituto...
— Não, nada. — Hiram sacudiu a cabeça, objetivo.
— Deve haver. Poderíamos procurar isso juntos, você e eu. Eu fui até a
clínica de Tachy on...
A xícara de Hiram estalou no pires.
— Você o quê? Foi até Tachyon? — Seu rosto ficou realmente cinzento; ela
pensou que ele cairia morto de pavor.
— Não se preocupe, eu não contei para ele. E ele não descobriu. Ele está
cheio de novos casos de carta selvagem. Nem se deu ao trabalho de ler minha
mente. Mas se você voltasse lá comigo e falasse com ele...
— Não! — ele rugiu, e ela saltou, derramando chá sobre a mesa. Hiram
imediatamente foi buscar um pano de prato e começou a enxugar a mesa. —
Não — ele disse de novo, mas mais baixo. — Se alguém descobrir, vão matá-lo.
Ele não consegue sobreviver sem um hospedeiro humano. Nós o perderíamos e
ainda não teríamos uma cura. Teríamos que ficar assim pelo resto da vida.
Conseguiria suportar isso?
— Meu Deus, não — ela sussurrou, levando a mão à cabeça.
— Então não fale bobagens. — Hiram jogou o pano de prato na pia e pegou
a mão de Jane. — Vai ficar tudo bem. De verdade. Não é tão ruim a maior parte
do tempo. Não mesmo. Digo, ele exige tanto pelo prazer que dá? E ele deixa a
gente em paz, e não que seja malvado, não mesmo. Se você fosse o único
cavalo, você poderia negar-lhe sua vida? Se você soubesse que ele morreria sem
você, você deixaria acontecer?
Ela afastou a mão, sacudindo a cabeça.
— Hiram, você não sabe o que aconteceu comigo.
— Você não sabe o que aconteceu comigo! — ele gritou. Ajoelhou-se para
olhar o rosto dela, e ela estava horrorizada ao ver lágrimas em seus olhos. —
Seja lá o que você tenha feito é nada comparado com o que fiz! Não acha que
foi horrível para mim? O medo de ser flagrado, a impotência... eu considerei o
suicídio, não ache que não, mas a parte horrível é que talvez haja uma vida após
a morte e ele não esteja lá, e isso seria realmente o inferno! O que aconteceu
com você...! Sabe o que aconteceu comigo? Eu deixei que ele possuísse uma
amiga! Eu jurei que não deixaria, e mesmo assim deixei! Eu deixei que ele
possuísse você!
Ela se afastou dele.
— Ah, Jesus, Hiram, eu quis ter morrido naquela noite, quando o Astrônomo
foi ao Aces High. Eu desejei que você tivesse me deixado cair!
— Eu também desejei! — ele urrou para ela.
A declaração de Hiram pareceu ecoar no silêncio que seguiu. Acabou, ela
percebeu, surpresa. Aces High, sua dívida com Hiram, sua vida como ás, se é
que ela realmente teve uma, tudo. Tudo foi destruído, deixando os dois com nada.
— Você não está molhada — Hiram falou, percebendo tardiamente.
Antes que ela pudesse responder, ouviram uma batida na porta.
Hiram virou a cabeça para o quarto, e ela foi para lá sem protestar,
encolhendo-se no chão próximo à cama. Fosse lá o que estivesse por vir, ela não
estava pronta. A exaustão de repente a assolou; ela encostou a cabeça contra a
lateral do colchão e deixou-se entrar num estranho sono meio acordado. Ouviu
vozes no outro cômodo, mas elas não a impressionaram, mesmo quando a de
Hiram cresceu nervosa. Um tempo mais tarde, sentiu alguém se aproximar e
tentou mergulhar na inconsciência, longe daquela presença, fantasiando
novamente que Hiram a fizera tão leve que podia pairar no céu.
Mas mãos fortes a puxaram para cima e jogaram-na na cama. Ela tentou
resistir, fraca, os olhos piscando, alarmados, mas zonzos. Em seguida, sentiu o
toque suave de dedos pequenos nas costas, e estendeu o pescoço gentilmente para
o beijo.
A cena na sala de estar era confusa, mas Jane estava além dela, pois estava
transportando o Mestre. Havia Hiram, claro, Ezili e dois homens que ela não
reconhecia e nem se importou em saber quem eram, e Emile, especialmente,
amarrado e amordaçado, caído no tapete. O Mestre forçou sua atenção para ele,
e ela aquiesceu, o tempo todo alegrando-se com o novo contato.
— Jane — Hiram disse, tenso. Ela se virou para olhá-lo através de olhos
cobertos de prazer. Ele parecia ter alguma dificuldade em manter os seus olhos
nela, ou talvez no Mestre. Mas não importava. Tudo estava bem de novo.
— Jane.
— Já ouvi — ela disse, totalmente feliz. — O que foi?
— Por que você deu a Emile a chave sobressalente da minha sala?
O Mestre ordenou que ela respondesse, e foi delicioso obedecer.
— Eu o deixei responsável enquanto estava fora. Parecia ser a coisa lógica
a se fazer.
— Quando eu lhe dei essa chave, eu disse que ninguém, ninguém, além de
você devia tê-la, não importava o motivo.
— Você me deu essa chave muito tempo atrás, antes de sair em excursão e,
depois que voltou, pensei que havia esquecido tudo isso. Não pareceu fazer
diferença alguma, pois você não parecia se importar mais. — Ela sorriu,
sonhadora. O punho de Hiram estava cerrado, mas ela não estava preocupada.
Com o Mestre, não havia com o que se preocupar. Ela ficou maravilhada em
como a entrega podia ser mais profunda na segunda vez. Na terceira vez,
provavelmente ela se soltaria completamente e isso seria a perfeição absoluta.
Ela mal podia esperar.
— Você não entendeu o que fez, Nenúfar — Hiram falou, agoniado. —
Você matou esse homem.
Algo nela se incomodou com o uso de seu nome de ás, mas ela ignorou. Seu
Mestre gostou daquilo. Gostava da água que escorria no rosto e pelos cabelos,
encharcando as roupas e o tapete ao redor dos pés.
— Se ela era responsável — a voz dela falou ao comando do Mestre —,
então ela pode cuidar disso, não é, Hiram?
— Isso vai matá-la — Hiram disse. — Ou deixá-la louca.
— Ela já está louca. — Seu Mestre gargalhou com a voz dela. — E ela não
é tão interessante assim, exceto pelo poder. — Seu rosto virou-se para Emile. Os
olhos dele arregalaram-se, e ele fez ruídos desesperados e mínimos com a
mordaça.
— Prepare-o para ela, Ezili — disse seu Mestre. — Estou muito curioso para
ver como será.
Ezili lutou para abaixar as calças de Emile, enquanto ele tentava resistir se
contorcendo. Um dos homens que Jane não conhecia forçou Emile a ficar
deitado de costas, esmagando as mãos presas contra o chão, e ajoelhou sobre
seus ombros. Emile começou a gritar com a mordaça, mas saíam apenas
resmungos abafados. Suas pernas amarradas chutavam para cima, e o homem
apertou os ombros com mais força até ele se aquietar.
Depois de um tempo, Ezili levantou-se, limpando a boca delicadamente.
— Mostre como se faz, garotinha.
Jane moveu-se até Emile e ajoelhou-se ao lado dele. O Mestre já havia
explicado sem palavras o que exigia dela. Não era muito. Queria saber como
seria; sua única missão na vida era mostrar. Ela puxou o vestido para cima e,
despreocupadamente, arrancou a calcinha.
O horror nos olhos de Emile alimentou a sensação quando ela se agachou
sobre seu corpo. Ele ficou paralisado, e ela o ouviu grunhir de dor. A água se
esvaía em estalos rítmicos. Mais sensação. Ela se entregou, deixando a
consciência se dissolver também, como um fluido. Em algum lugar, perdida no
prazer, havia a pequenina Jane gritando contra aquela atrocidade, mas a
pequenina Jane não contava muito diante daquele poder-prazer magnífico. O que
devia ser sacrificado para a satisfação de Ti Malice, seria; se Emile soubesse,
teria se oferecido voluntariamente. Era mais que uma honra. Era uma bênção;
era um estado de graça. Era...
Os olhos dela encontraram-se com os de Emile. Sem se mover e paralisado
embaixo dela, ele encarava Ti Malice. As ondas de prazer desapareceram de
repente, e por um momento abriu-se uma pequena brecha entre ela e o Mestre.
Ela abriu a boca para gritar, e então as ondas irromperam e ela caiu para a
frente. A água derramou-se sobre ela e Emile numa pequena enxurrada.
Ela estava caminhando através de uma terra estranha, bizarra, desolada, e Sal
estava ao seu lado. Ficou um pouco surpresa pelo fato de ele estar
acompanhando-a; pensou que talvez fosse porque Ti Malice a deixara com tão
pouco que ela não existia mais por completo. Porém, era ótimo que, de todos os
fantasmas que poderia ter encontrado, de alguma forma tivesse se encontrado
com Sal. Encontrar Emile teria sido terrivelmente desagradável; talvez ele ainda
não estivesse morto o suficiente para se tornar um fantasma.
Contou tudo que havia acontecido nos primeiros poucos minutos que
estavam juntos, toda a degradação, as mentiras, as promessas quebradas.
Sal perguntou quais eram essas promessas quebradas.
Ora, que eu não confiaria em mais ninguém, Sal. Lembra? Prometi isso
depois do Mosteiro. E, agora, olhe para mim. Confio tanto que despenquei. Em
seguida, ela percebeu que ele sabia e queria apenas que ela dissesse, admitisse.
Tudo bem. Eu admito. Admito tudo. Disse que eu nunca mataria novamente,
não importava o quanto fosse ruim, mesmo se significasse me matar primeiro. E
matei porque ele quis ver como Emile morreria. Ela não precisou explicar quem
ele era; Sal também sabia.
E sempre prometi que eu seria... responsável com meu corpo. Talvez fosse
mais fácil me trancafiar do que finalmente aceitar que nunca estaríamos juntos.
Sal pensou que aquilo era meio engraçado. No fim das contas, ele não era
apenas gay, ele era gay e estava morto, e isso já fazia um tempo também.
Bem, Sal, sendo um morto, você não tem ideia de como é fácil permanecer
fiel à memória de alguém. É realmente fácil quando você está assustado demais
para encarar uma pessoa viva. Homens vivos são realmente ameaçadores, Sal.
Sal disse que entendia o que ela queria dizer.
É, achei que entenderia, não é? Acho que é o tipo de coincidência
engraçada, então, que foi a primeira vez que estive com uma mulher, e o primeiro
homem que realmente tive também era gay.
Sal falou que não via o sentido daquilo tudo.
Bem, é um tema recorrente.
Sal disse que ainda não via sentido.
Deixa pra lá. Estou feliz que você não viveu para ver o que me tornei. Que é
algo que você não presenciou quando se afogou na banheira, isso e a grande
epidemia de AIDS. Digo, se você realmente teve de ir embora, morrer, afogar-se
foi a melhor maneira. Você não gostaria de morrer de AIDS. Ou pelas minhas
mãos.
Sal disse que nunca foi tão paranoico.
Bem, há muita coisa para ser paranoico nesses dias. Descobri que existe uma
forma contagiosa do vírus carta selvagem. Ninguém sabe como está sendo
transmitido. E a maioria das pessoas morre com ele.
Sal disse que certamente era um acontecimento revoltante.
Sim, com certeza é. E sabe o que mais, Sal?
Sal perguntou o que era.
Não há maneira de dizer se você foi exposto. Até acontecer. Talvez eu já
tenha sido exposta. Talvez eu pegue e morra. Eu só espero não ter passado para
mais ninguém.
— Querida, você não é a única.
Jane estava prestes a responder quando percebeu ter ouvido a voz de Sal de
verdade. Mas não soava muito como a de Sal. Ela se virou para ele surpresa e, no
fim das contas, não era Sal ao seu lado, mas um homem estranho, magro e com
cara de ratazana, abaixado com os pelos asquerosos cobrindo as bochechas, o
nariz pontudo e os bigodes.
— É um rosto de camundongo, não de ratazana, senhorita — o homem
disse, cansado. — É possível dizer pelos dentes, se conhecer algo sobre roedores.
Eu era exterminador de pragas, tá? Pode caçoar, por que não? Segui você para
entender o que uma garota bonita assim poderia querer vagando pelo Bairro dos
Curingas a essa hora da noite. Francamente, a senhorita tem mais problemas do
que eu, e não quero saber de nenhum deles.
Ele desapareceu, e ela ficou em pé, no meio de uma calçada sob uma luz
de poste que zumbia.
— Sal? — ela perguntou para o ar. Não houve resposta.
De início, ela ficou com medo de voltar ao mesmo bar, mas viu que era
diferente. Por um lado, não havia palco para show de sexo ao vivo, e a clientela
era mais vívida, com vestes mais brilhantes e coloridas, alguns até mesmo com
fantasias e máscaras.
Quando ela viu o homem sem olhos atrás do balcão, entrou em pânico, e
em seguida percebeu que não podia ser o mesmo que ela havia levado para a
limusine. Quando foi aquilo? Ao menos mil anos atrás. Como uma sonâmbula,
ela seguiu até o balcão e sentou num dos bancos altos. O barman sem olhos,
trabalhando habilmente, de repente endireitou o corpo e virou o rosto para ela.
— Problemas, Sascha? — Um anão materializou-se ao lado dela e prendeu
a mão grossa no braço de Jane.
O barman afastou-se.
— Não a quero por perto. Leve-a para longe de mim.
— Venha, docinho. Não precisa ir para casa, mas não pode ficar aqui. — O
anão começou a puxá-la do banco.
— Não, por favor — ela disse, tentando livrar-se da mão do anão. —
Preciso ver uma pessoa. — Ela sabia que a mulher estava lá agora e era o único
lugar onde ela podia ter vindo para encontrar o que precisava; Crisálida ou
alguém próximo de Crisálida saberia onde ela poderia encontrar uma droga que
preencheria o vazio que Ti Malice deixara nela. Ela se virou para o barman. —
Por favor, não vou machucar ninguém...
— Vá embora — o barman falou, insistente. — Não posso aguentar os
sentimentalidade dela.
Jane olhou ao redor e, em seguida, encontrou Crisálida numa mesa de
canto. Ela deu um puxão forte no braço e se livrou da mão do anão.
— Ei — ele gritou.
Ignorando os olhares dos outros clientes, ela partiu entre as mesas até o
canto onde Crisálida estava sentada, assistindo a tudo com aqueles olhos azuis
estranhos e flutuantes.
— Peguei! — O anão a agarrou pela cintura, e ela caiu de joelhos,
arrastando-se os últimos metros até a cadeira de Crisálida, levando o homem
junto.
Crisálida ergueu um dedo. Os braços do anão relaxaram, mas ele não a
soltou completamente.
— Preciso de informações — Jane falou em voz baixa. — Sobre uma
droga.
Crisálida não respondeu. A expressão que surgiu no seu rosto peculiar era
impossível de entender.
— Fiquei viciada numa coisa contra a minha vontade. Eu preciso... eu
preciso... — Ela enfiou a mão nos bolsos e, milagrosamente, havia dinheiro lá,
um maço pequeno e achatado de notas. Rapidamente, ela as desdobrou e
estendeu. — Eu posso pagar, posso pagar pelas...
Crisálida verificou rapidamente as notas que Jane estava estendendo. Jane
olhou; havia três notas, duas de dez e uma de vinte. Quarenta dólares. Piada de
mau gosto.
Crisálida sacudiu a cabeça e acenou a mão.
— Como eu disse, docinho — o anão falou —, você já está de saída.
Ela se recostou na lateral do prédio com as notas amassadas na mão. O
vazio nela se alargou até ela pensar que o desejo a partiria ao meio.
— Com licença.
Kim Toy.
Ela piscou e, então, percebeu que não era Kim Toy. Aquela mulher era
mais jovem e mais alta, e as feições eram diferentes.
— Eu vi quando Crisálida lhe deu um passa-fora. Que sangue-frio ela tem,
hein? O cretino pegou você ao lado da minha mesa, e achei que a conhecia de
algum lugar.
Jane afastou-se da mulher.
— Deixe-me em paz — ela murmurou, mas a mulher aproximou-se ainda
mais.
— Tipo, acho que você trabalhava para Rosemary Muldoon. Não é?
Jane cambaleou para longe da mulher e, em seguida, caiu de quatro,
estremecendo. Embaixo da dor, sentiu outra coisa, um mal-estar que era mais
físico. Como se estivesse com gripe ou algo pior. A ideia era tão absurda que ela
quase conseguiu rir.
— Ei, você está doente ou algo assim? — A mulher se curvou, pousando
mãos preocupadas nos ombros dela. — Está na seca? — ela perguntou em voz
baixa.
Jane se flagrou chorando sem derramar lágrimas.
— Ah, vamos lá — a mulher disse, ajudando Jane a se erguer. — Qualquer
amiga de Rosemary Muldoon é minha amiga também. Acho que posso ajudá-la.
Apesar do vazio que a devorava por dentro, Jane ficou espantada com o
apartamento luxuoso. A sala de estar rebaixada tinha o tamanho de um salão de
baile. A cor predominante era um rosa delicado, perolizado, até no papel de
parede de seda e no enorme candelabro de cristal.
A mulher a levou alguns degraus abaixo e sentou-a num sofá muito fofo.
— É uma coisa, não é? Parece um lixão lá fora e um paraíso aqui dentro.
Tive que molhar muitas mãos para manter a placa de CONDENADO longe da
fachada. Acabei de decorar na semana passada e estava louca para trazer visitas.
Bebe alguma coisa?
— Água — disse Jane, fraca.
Do outro lado da sala, no barzinho, a mulher olhou sobre o ombro com um
pequeno sorriso.
— Pensei que você conseguisse água sozinha.
Jane ficou rígida.
— Você... você sabe...?
— Não disse que eu a conhecia? Acha que eu traria para cá alguém que não
soubesse quem é? — A mulher trouxe a trabalhada taça de vidro com água e gelo
e sentou-se ao lado dela. — Claro, não é tudo meu. Na verdade, pertence às
pessoas para quem trabalho. Melhor trabalho que já tive, nem preciso dizer.
Jane bebericou a água. As mãos começaram a tremer, descontroladas, e
ela entregou a taça para a mulher antes de derramar o conteúdo. A doença física
a dominou novamente, como uma câimbra, mas pelo corpo todo. Ela ficou bem
quieta até a dor passar.
— Seja lá o que você tenha pegado, espero que não seja contagioso — a
mulher disse, ainda assim gentil. — O que aconteceu... você se apaixonou por um
daqueles canalhas da Rosemary e acabou ficando viciada?
Jane sacudiu a cabeça.
— Não Rosemary.
— Ah, é? Que ruim. Digo, eu esperava que você ainda estivesse em contato
com Rosemary, pois eu gostaria de revê-la. — Ela se inclinou para abrir uma
caixa rosa envernizada sobre a grande mesa de centro. — Maconha? Acalma um
pouco. De verdade. Não parece com nada que você já experimentou antes.
— Não, não é — Jane falou, desviando o olhar do cigarro estendido.
— Aliás, você usou o quê?
— É algo que vai direto para o centro de prazer do cérebro. Você não vai
querer saber. — Ou talvez deveria, Jane pensou de repente. Seus pensamentos
começaram a maquinar um plano. E se ela levasse essa mulher ao apartamento
e a oferecesse a Ti Malice? Ele amava novos cavalos, ela sabia disso...
— Ah, isso é fácil — a mulher falou.
— Como? — Jane olhou para ela, assustada.
A mulher inclinou a cabeça para o lado, olhando-a com curiosidade.
— Tenho um parceiro que desenvolveu algo que vai direto ao centro de
prazer do cérebro.
— Quem é? — Jane perguntou, agarrando o ombro da mulher. — Posso
encontrá-lo? Onde posso achá-lo? Como...
— Ei, ei, ora essa. Calminha. — A mulher tirou a mão de Jane de seu ombro
com a ponta dos dedos e afastou-se um pouco. — É segredo. Idiotice da minha
parte mencionar, mas sendo você amiga de Rosemary e tudo o mais, eu meio
que me esqueci. Olha só. Relaxe e vamos falar sobre Rosemary. — Ela acendeu
o cigarro de maconha com um isqueiro de cristal, deu um bom trago e ofereceu
para Jane.
Ela aceitou o baseado e tentou fazer exatamente como viu a mulher tragar.
A fumaça queimou em seus pulmões, e ela tossiu engasgada.
— Continue a praticar — a mulher disse, dando uma risadinha. — Isso vai
tirar o nervosismo, de verdade.
Algumas tragadas depois, ela já havia mais que pegado o jeito da coisa.
Então, era isso que queriam dizer com ter um barato, ela pensou. O barato era
uma sensação estranha, mas seria agradável, exceto que não conseguia se pôr
entre ela e o vazio devorador. Tentou devolver o cigarro à mulher, mas ela disse-
lhe para ficar com ele, pois Jane precisava mais. Em vez disso, Jane o deixou
cuidadosamente no cinzeiro de vidro trabalhado na mesa.
— Não gostou? — a mulher perguntou, surpresa.
— É... ok. — Jane falou, e sua voz parecia arrastada, muito arrastada, como
um elástico longo e lento. Sua cabeça parecia flutuar sobre os ombros como um
balão de hélio e subir até o teto. Ela se perguntou se Hiram sabia sobre isso.
Mas a mulher queria falar sobre Rosemary, e entre tentar manter a cabeça
sobre os ombros e lutar contra a necessidade de Ti Malice, era difícil
acompanhar o que ela estava dizendo. Se a mulher simplesmente calasse a boca,
talvez ela conseguisse chegar a algum equilíbrio, algo que a impedisse de quebrar
o copo d’água na mesa e usar um dos estilhaços na própria garganta. Aquela era
a única resposta agora; a droga a ajudava a ver aquilo. Ela nunca se livraria da
necessidade de Ti Malice, e se ela voltasse — quando ela voltasse — podia
apenas esperar as piores coisas, mais degradação, mais mortes, tudo feito
voluntariamente, apenas para sentir o prazer de sua presença dentro dela. Todas
as coisas que desejara para Hiram, que ele encontrasse alguém para deixar a
vida completa, ela inadvertidamente pegara para si, exceto que era Ti Malice,
em vez do homem vago, não identificável com que ela sempre sonhara, que às
vezes lembrava Sal e às vezes Jumpin’ Jack Flash e, às vezes, até mesmo Croy d.
Outra piada ruim em uma série ininterrupta. Precisava acabar.
A mulher continuou falando, falando. Às vezes, vinham longos períodos de
silêncio, e Jane saía de sua névoa para descobrir que a mulher não estava mais
no sofá com ela. Ela se recostava na almofada, feliz com o silêncio, e em
seguida a mulher magicamente se rematerializava ao lado dela, continuando a
tagarelar sobre Rosemary Muldoon até Jane pensar que poderia cortar a
garganta dela apenas para se livrar daquela voz.
Mas aquilo era de uma ingratidão atroz. A mulher estava apenas tentando
ajudá-la. Ela sabia disso. Devia retribuir de alguma forma. Oferecer algo.
O número do telefone de Rosemary pairava na superfície da mente e
esperava para ser pescado. E, depois de um tempo, ela fez isso, e a mulher
desapareceu por um tempo muito maior.
Alguém sacudiu-a para acordá-la. A primeira coisa que a atingiu foi a
necessidade, e ela se dobrou, batendo com os punhos na almofada do sofá porque
não era Ti Malice que estava lá, e sim um oriental magro ajoelhado ao lado dela,
sorrindo com uma expressão preocupada para ela.
— Este é o parceiro de quem eu falei — a mulher disse, fazendo-a se sentar.
— Enrole sua manga.
— Quê? Por quê? — Jane olhou ao redor, mas o quarto ainda não clareara.
Sua cabeça parecia pesada e nublada.
— Apenas minha maneira de agradecer.
— Pelo quê? — Ela sentiu a manga sendo puxada para cima e algo frio e
úmido entrando no braço.
— Pelo número de telefone de Rosemary.
— Ligou para ela?
— Ah, não. Você vai fazer isso para mim. — A mulher atou uma borracha
ao redor do antebraço e puxou-o com força. — E, em troca, você vai receber
uma viagem para o paraíso.
O oriental ergueu uma seringa e sorriu, como se estivesse num programa de
auditório exibindo um prêmio.
— Mas...
A mulher estava colocando um telefone sem fio na mão dela.
— Você gostaria de vê-la novamente, não é?
Jane deixou o telefone cair no colo e esfregou o rosto, exausta.
— Não sei bem, na verdade.
— Então, talvez seja melhor você saber. — A voz da mulher ficou mais
firme. Jane ergueu os olhos para ela, surpresa. — Digo, tenho certeza. Tenho
muito para falar com Rosemary. Quanto mais cedo você entrar em contato com
ela, mais cedo vai para o paraíso. Você quer ir para o paraíso, não quer?
— Não sei se posso... não sei se ela vai atender a minha ligação...
A mulher inclinou-se e falou bem perto do rosto de Jane.
— Não vejo escolha para você. Está na seca e não tem para onde ir. Não
posso deixar você ficar aqui para sempre, sabe? A companhia que é dona disso
aqui talvez não queira que eu tenha uma colega de quarto. Claro, eles podem ter
outra opinião se você tiver feito algo por mim.
Jane se afastou um pouco.
— Para quem você trabalha?
— Não seja tão abelhuda. Faça a ligação. Traga ela até aqui para encontrar
você, se possível, ou em qualquer outro lugar, se necessário.
Ela estava prestes a dizer não quando a necessidade avançou novamente,
prendendo a palavra na garganta.
— Essa droga — ela disse, olhando para a seringa. — É... boa?
— A melhor. — O rosto da mulher era inexpressivo. — Quer que eu disque?
— Não — ela falou, pegando o fone. — Eu faço isso.
O homem encostou a ponta da agulha na dobra do braço de Jane e a
segurou lá, esperando, com aquele sorriso largo de apresentador de programa de
televisão.
Ela mal conseguia manter a voz de Rosemary na mente; não havia como manter
a própria voz firme. No início, tentou soar amigável, mas Rosemary arrancou
dela que estava em apuros. O homem e a mulher não pareciam se importar com
o que ela dizia, então continuou, implorando para que Rosemary viesse até ela.
Mas, de maneira irritante, Rosemary disse várias vezes que mandaria
alguém buscá-la, e ela precisou insistir que não adiantaria de nada, ela não queria
ninguém além de Rosemary. Ninguém mais, especialmente homens. Ela fugiria
se visse homens. Aquilo pareceu agradar muito o homem e a mulher.
E, por fim, ela conseguiu que Rosemary concordasse e leu o endereço de
um cartão que a mulher estendeu diante dela. Rosemary hesitou, mas Jane
implorou de novo, e Rosemary cedeu. Mas não lá, não naquele endereço. Em
algum lugar a céu aberto. Sheridan Square. Um olhar confirmou para Jane que
tudo bem para os novos amigos, e ela disse para Rosemary que estaria lá.
— Uma vez assistente social, sempre assistente social — a mulher disse,
desligando o telefone. Ela assentiu para o homem. — Injete.
— Espere — Jane disse baixinho. — Como eu vou chegar lá se...
— Não se preocupe com mais nada — disse a mulher. — Você estará lá.
A agulha entrou, e as luzes se apagaram.
As luzes voltaram bem fracas, e ela viu que estava recostada na lateral de um
prédio. Era a Companhia de Teatro do Ridículo, e ela aguardava para entrar e
assistir à peça. Apresentação tardia, muito tardia, mas ela não se importava. Ela
amava a Companhia de Teatro do Ridículo e estivera em muitos teatros, os
pequenos no Soho e no Village, e no Teatro do Bairro dos Curingas, que havia
fechado pouco antes de ela ir trabalhar para Rosemary...
Rosemary. Havia algo que ela precisava lembrar sobre Rosemary.
Rosemary traíra sua confiança. Mas talvez fosse justo, pois ela fora uma
decepção imensa para Hiram...
Aquilo a atingiu de um jeito tão poderoso que ela pensou que a derrubaria,
mas o corpo não se moveu. Xarope de bordo quente corria em suas veias. Mas,
sob o calor e a languidez, o vazio permanecia, bem aberto, devorando-a, e
qualquer que fosse aquela lassidão, apenas tornou possível que o desejo
esmagasse seus ossos sem muito esforço. Seu estômago deu uma lenta
cambalhota e a cabeça começou a latejar.
Uma sombra pairava suavemente aos seus pés. Um esquilo a olhava como
se de fato a examinasse de alguma forma. Esquilos eram apenas ratos com
caudas pomposas, ela lembrou com inquietação, e tentou se afastar dele, mas seu
corpo ainda não se movia. Outro esquilo chilreou em algum lugar sobre sua
cabeça, e algo passou correndo por ela, quase roçando em suas pernas.
Quando o teatro abriria para que ela pudesse se livrar de todos esses
vermes? A Sheridan Square havia piorado muito desde a última vez que estivera
lá para ver o falecido Charles Ludlam em uma remontagem de O Barba Azul.
Charles Ludlam — ela o amava também, e foi tão injusto ele ter morrido de
AIDS...
Ela suspirou, e uma voz disse:
— Jane?
Era a voz de Rosemary. Ela se empertigou. Viera ao teatro com Rosemary ?
Ou era apenas uma feliz coincidência? Não importava, estava tão feliz em vê-
la...
Tentou olhar ao redor. Estava tão escuro. Havia mesmo uma apresentação
tão tarde? E os esquilos, chilreando e chilreando às raias da loucura — teria sido
fantástico com Ti Malice, mas sozinha era apenas excruciante.
Um feixe de lanterna atravessou a escuridão, e ela se encolheu.
— Jane? — Rosemary perguntou novamente. Estava mais próxima. —
Jane, você está horrível. O que aconteceu? Alguém...
Ela ouviu sons de garras arranhando a lateral do prédio. Jane virou-se na
direção do som e viu Rosemary em pé, a poucos metros de distância. A fraca
iluminação dos postes fazia dela pouco mais do que uma delicada silhueta.
Engraçado, Jane pensou de repente, que o teatro não tivesse luzes de segurança
externas para desestimular arrombadores ou vândalos. Uma sombra mais escura
avançava e recuava ao redor dos tornozelos de Rosemary ; no fim das contas, era
um gato. Rosemary olhou para o gato e, em seguida, para Jane novamente.
— Em que enrascada você se meteu, Jane? — ela perguntou, e sua voz tinha
uma leve irritação.
— A pior — disse a voz de um homem. — Como você, senhorita Muldoon.
Jane sacudiu a cabeça, tentando clareá-la. Ela se lembrou de alguma coisa,
algo sobre uma mulher oriental que não era Kim Toy e um homem com uma
agulha, e de discar um número de telefone...
Uma sombra maior avançou atrás de Rosemary e, de repente, ela estava
em pé com um braço ao redor do pescoço e um cano de arma enfiado no rosto.
— É conveniente que nos encontremos nas sombras — uma voz masculina
disse. Rosemary ficou paralisada, encarando além de Jane. Jane seguiu seu olhar
e viu outro homem recostado tranquilamente no lado oposto do prédio com uma
pistola erguida e pronta para atirar. Jane sentiu que estava começando a
adormecer e forçou-se a manter a cabeça erguida. Seu rosto coçava,
desconfortável, e o desejo por Ti Malice explodiu com tanta força que ela teve
vontade de se curvar. Mas seu corpo conseguiu soltar apenas um leve espasmo.
Eles mentiram, ela pensou com uma sensação de tristeza. A mulher e seu amigo
mentiram. Como as pessoas podem mentir com tanta facilidade?
Havia mais pessoas, mais homens que surgiram da escuridão para cercá-
las. Mesmo com a neblina espessa que era sua mente, Jane conseguiu sentir as
armas e a intenção maléfica. A mulher que a levara para casa não era amiga de
Rosemary, nem dela. Mas era um pouco tarde para deduções inteligentes.
— Viciados não são engraçados, senhorita Muldoon? — disse o homem que
segurava Rosemary. — Essa daí entregou a senhorita por uma mera dose de
heroína normal.
Não, não, não é verdade!, ela quis gritar, mas a voz estava presa pelo
desejo. Os olhos se ajustaram à escuridão, e ela conseguiu ver que Rosemary a
encarava com uma expressão desolada.
— Jane — ela disse —, se existe algo da pessoa que você era, você pode
virar esse jogo...
— N-não... drogada — Jane disse pesadamente. Seus olhos começaram a
revirar.
— Drogados não dão grandes ases — o homem disse, rindo. — Ela não
vai...
Houve um som de asas e algo zumbiu na noite, revoando e batendo
diretamente sobre sua cabeça
— Ei! — ele gritou, soltando Rosemary, que se afastou dele. Ela tropeçou e
caiu de quatro, enquanto várias outras coisas passaram correndo por Jane,
desviaram naturalmente de Rosemary e se lançaram contra os homens.
— Nômada... — Rosemary disse sem fôlego e, em seguida, ouviu uma
explosão de gritos raivosos e lamentos, humanos e não humanos. O homem que
estava em pé, tão despreocupado na outra ponta do prédio, agora afastava um
pombo que voava ao redor de sua cabeça enquanto tentava chutar algo para
longe da perna. Ratazana, Jane percebeu com vagar. Ela nunca vira uma
ratazana tão ousada.
Rosemary ergueu-se e estava se afastando do grupo de homens sob ataque.
Mais formas de vários tamanhos estavam brotando da noite para se lançar sobre
os homens, chiando, gritando, uivando com ódio inequívoco. Alguém se
desprendeu do grupo e correu até Rosemary e Jane, gritando enquanto tentava se
livrar de um rato no braço e arrancando um esquilo do pescoço. Algo caiu com
um estalo aos pés de Jane, e ela abaixou os olhos: uma arma.
Suas pernas cederam e ela deslizou de joelhos. Pegou a arma e encarou-a
por um momento. Rosemary a sacudiu.
— Vamos embora — ela disse, levantando Jane e forçando-a a correr pela
calçada diante do teatro para o outro lado da Sheridan Square.
Vários cães vira-latas estavam esperando por elas numa formação
estranha, esparsa. Jane piscou para eles, zonza, quase indiferente aos braços de
Rosemary ao redor dela. Depois de um momento, os cães avançaram e
correram pelo caminho por que ela e Rosemary tinham vindo. Os gritos dos
homens transformaram-se em berros sobre os sons de grunhidos e latidos.
Jane cambaleou pela rua, ainda nas mãos de Rosemary.
— Que desgraça, corra — Rosemary disse perto do seu ouvido. Às margens
da consciência, ela tropeçou até o ruído terrível começar a diminuir atrás delas.
A ausência de Ti Malice estava tomando conta dela novamente, combatendo a
droga em seu corpo, tornando cada passo mais doloroso que o anterior quando
ela voltou à plena consciência.
Jane deu um empurrão forte em Rosemary e se soltou dela, cambaleando
até um poste de luz. Recompondo-se, olhou ao redor; as ruas estavam desertas,
exceto por elas duas.
— Jane — Rosemary disse, tensa. — Vou levar você para algum lugar em
segurança. E então posso explicar...
— Fique longe de mim! — ela gritou, erguendo a mão. Rosemary afastou-
se rapidamente e ela viu por quê; ainda estava com a arma e a apontava para a
outra mulher. Seu primeiro impulso foi jogá-la longe e dizer a Rosemary que não
queria lhe fazer mal, ela fora enganada e não percebera que estava segurando
uma arma. Mas não importava se ela queria fazer mal ou não a Rosemary —
qualquer um ao redor dela estaria em perigo terrível enquanto ela vivesse.
— Saia daqui, Rosemary — ela disse, trêmula, mantendo a arma consigo.
— Vá para algum lugar seguro, e dê graças a Deus que ainda existe esse lugar
para você. Pois para mim esse lugar não existe mais!
Rosemary abriu a boca para dizer algo, e Jane estendeu a arma de novo.
— Vá!
Rosemary andou de costas alguns passos, virou-se e começou a correr.
Ainda recostada no poste como se fosse algum tipo de bêbado cômico e
inocente, Jane observou a arma na mão. Ela não sabia nada sobre armas, exceto
o que todos sabiam. Mas aquilo seria o bastante.
Apenas ponha dentro da boca. Mire o cano para o alto da cabeça, conte até
três e estará livre. Nada pode ser mais fácil.
A mão girou bem devagar, como se ainda houvesse alguma relutância
dentro dela.
A menos, claro, que você queira caminhar assim pelos próximos quarenta e
tantos anos. O desejo avivou-se nela e sua mão se moveu com rapidez. Cano na
boca, apenas vire a arma para a mira apontar para o céu. O metal tinha um gosto
azedo e fez seus dentes de baixo doer. Ela engoliu com a boca aberta e pegou a
arma com mais firmeza.
Conte até três e estará livre. Ela se lembrou de como foi a primeira vez que
Ti Malice escalou suas costas, a maneira como as mãos pequenas a tocaram,
ávidas, ansiosas, confiantes. Ela devia ter olhado para Hiram da maneira que
Rosemary a olhou. (Um espasmo estremecido percorreu seu corpo, a doença
estranha, física, que ela sentia, mas conseguiu manter a arma no lugar.)
Conte até três e estará livre. Ela se lembrou do toque da pele de Ezili e de
seu gosto. Ezili teria gostado da cena: ela em pé numa rua deserta com uma
arma na boca. (Agora veio uma sensação que rastejava sobre os ombros e pelos
braços, pelo torso, pernas, como se um pequeno incêndio tivesse irrompido na
pele.)
Conte até três e estará livre. Ela se lembrou de Croy d; lembrou-se de
caminhar com Sal apenas para vê-lo se transformar num homem com cabeça
de camundongo. Era para Sal que ela era uma grande decepção, não para Hiram
Worchester. Sal acreditava no que ela era. Hiram nunca a conheceu de verdade.
(Sua pele começou a esquentar.)
Conte até três e estará livre. Ela lembrou que nada daquilo importaria se
alguém trouxesse Ti Malice para ela naquele instante, bem naquele momento, e
o encaixasse em seus ombros. Ela largaria a arma e receberia a presença
exultante dele dentro de si, e ele tiraria a importância de tudo aquilo no universo
de prazer que conseguia despejar no vazio que se ampliava nela enquanto ficava
em pé, sentindo a rigidez da pistola contra o céu da boca. (Agora, ela fervilhava
viva.)
Conte até três e estará livre. Um pequeno movimento chamou sua atenção;
no meio-fio, um esquilo a encarava com seus olhos brilhantes e curiosos. Ela
engoliu de boca aberta novamente e contou sem pressa.
Um. Dois. Três.
Seus dedos apertaram o gatilho. Por mais absurdo que fosse, a voz de Sal
falou em sua mente. Ei, cara mia, que diabos você está fazendo agora?
No completo silêncio da rua, o clique foi ensurdecedor.
O tiro falhou.
Ela caiu no asfalto, e a onda escura e morna da febre a cobriu por
completo.
Ela estava em um reino suave de muitas cores. Elas vinham e iam, convertendo-
se em vozes humanas, às vezes falando diretamente com ela. Não conseguia
responder, não era seu reino, ela apenas estava esperando ali. Além disso, eles
diziam coisas engraçadas. Coisas como O coma é inequívoco, não acontece dessa
forma com todos eles, mas, quando acontece, sabemos o que é e Por que não a
colocamos em uma banheira e pronto. Do jeito que a água brota, a pele dela vai
apodrecer antes que consiga morrer, e, a mais estranha, Jane, por que eu não
consegui ajudá-la? Eu não devia ter deixado minha fadiga me fazer falhar com
você. Essa era a cor mais brilhante, uma sombra extraordinária de vermelho, às
vezes com tons amarelos reluzentes.
Um pouco mais tarde, todas as cores desapareceram (Desligue as máquinas
e tire-as daí, ela não vai acordar) e houve apenas paz por um momento. Em
seguida, em algum lugar distante, um telefone tocou. É para você, alguém disse,
e ela imaginou que fosse com ela.
Jane. Chegou a hora.
Ela acordou para uma consciência estranha, suave, que lembrava um sonho
lúcido. A voz que havia falado com ela soava familiar. É você, Sal? Estive
procurando por você em todos os lugares. Onde você está?
Isso não importa agora. Chegou a hora.
Hora de quê, Sal?
Hora de você levantar. Há uma coisa muito importante que você precisa
fazer. Vamos lá, abra os olhos e saia da cama.
Ela se sentou, olhou ao redor. Clínica de Tachy on. Ela se perguntou como
acabara chegando ali novamente.
Não se preocupe com isso. Precisa se apressar.
Tudo bem, Sal.
Ela saiu da cama e caminhou com os pés descalços lentamente pelo quarto
até a porta. Quando chegou à entrada, olhou para trás na cama. Havia uma
forma pálida no colchão, dissolvendo-se lentamente como um truque fotográfico.
Aquela era eu, Sal?
Era você. Não é mais. Atravesse o corredor, não há tempo a perder.
Ela parecia flutuar no corredor, os pés descalços a poucos centímetros do
chão frio. Era uma maneira bacana de caminhar, ela pensou. Estar morta tinha
muitas vantagens no quesito conforto.
Você não está morta.
Ela aceitou aquilo com tranquilidade. Não parecia valer a pena discutir.
Essa porta. À direita. Entre nesse quarto.
Ela entrou no quarto e pairou perto de uma das duas camas, olhando para o
ocupante. No passado, ela poderia achar sua aparência assustadora e lamentável.
Agora ela olhara para ele com calma completa e racional, aceitando a visão da
enorme cabeça no travesseiro, furada como a lua, exceto que cada furo tinha um
olho, a maioria deles aberto. Eles a observavam com a mesma calma, ou assim
parecia.
Um pequeno buraco perto de um dos furos abriu, e ela ouviu o chiar da
respiração.
— Quem é você? É médica?
Ouça com cuidado, pois eu preciso ir embora agora e você precisa se
lembrar.
Ela sentiu uma pontada de medo. Me deixar de novo? Precisa mesmo?
Sim. Mas vou deixá-la com um presente. É um presente muito importante.
Um presente que Croy d lhe deu.
O que é?
Vai descobrir.
Algo no ar suave ao redor dela mudou, e ela sabia que estava sozinha com o
curinga.
Agindo sem ser movida pela vontade, sua mão puxou o lençol, expondo o
restante do corpo do curinga, que era salpicado com mais olhos, quase inteiro.
Eles pareciam estar se formando enquanto ela observava. Ela teria que trabalhar
rápido para não o ferir.
Ela subiu no colchão ao lado dele e sorriu. Uma área, felizmente, havia sido
poupada até aquele momento, e foi lá que ela começou, movendo-se com
gentileza.
— Moça, que diabos você está fazendo?
Ela não podia responder, mas não era necessário. Certamente ele conseguia
ver muito bem o que ela estava fazendo.
— Hammond. Ei, Hammond! Acorde! Diga que não é um sonho!
Ela ignorou os sons da cama ao lado, ignorou tudo menos sua tarefa, exceto
que tarefa era uma palavra totalmente errada para aquilo. Amar alguém não era
uma tarefa. Amar alguém podia operar milagres.
Ela sentiu as mãos dele movendo-se cuidadosamente sobre ela, sentiu-o
estremecer de dor. Os olhos. Como eles todos devem doer quando alguém o toca,
ela pensou, e imaginou quem fora tão negligente para cobri-lo com um lençol.
Talvez ele só estivesse esperando para morrer; era a ala terminal, no fim das
contas.
— Não se preocupe — ela disse para ele. — Farei de tudo.
— Faça o que quiser! — ele disse e gemeu com prazer quando sentiu como
ela o envolvia.
Era diferente quando era amor, ela pensou com felicidade. Quando era
amor, não havia dor, nem vergonha, claro. Quando era amor, você desejava
curar a outra pessoa de todas as dores. E quando era amor, aquilo era realmente
possível.
Ela espalmou as mãos sobre o peito do homem e deitou a cabeça para ouvir
as batidas cardíacas. Seus braços a envolveram, e ela conseguiu sentir a nova
força neles quando se mexeram juntos. Perto daquilo, Ti Malice era uma
imitação triste, patética de um beijo.
E, com esse pensamento, ela percebeu que o vazio terrível dentro dela havia
desaparecido, e ela estava livre. Levantou-se e soltou um grito de júbilo.
Um quarto cheio de vozes respondeu.
Foi como um interruptor sendo acionado — de repente, ela estava acordada,
realmente acordada, e percebeu que estava cavalgando um homem numa cama
de hospital, um homem totalmente normal, com dois, apenas dois olhos verdes,
cabelos loiros, que olhava para ela com um sorriso beatífico no seu rosto jovem e
comum.
— Moça — ele disse —, isso é o que eu chamo de medicação!
Ela se virou e viu que o quarto atrás dela estava cheio de curingas de todas
as variedades e, entre eles, retidos à força, estavam duas enfermeiras e um
médico.
Eles se soltaram de quem os prendia e correram até a cama, afastando-a e
examinando o homem.
— Eu vi, mas não acredito!
— Bem diante dos meus olhos...
— Pensei que este aí já estava morto...
— Quem é você? Qual é o seu quarto?
Ela se afastou das perguntas para os braços dos curingas que a aguardavam.
Um homem deformado, cujas feições tinham sido bagunçadas estendeu seu
rosto distorcido para perto do dela e perguntou:
— Posso ser o próximo?
— Não, eu! — gritou mais alguém, e mãos a agarraram, puxando-a de
todos os lados, tentando lançá-la ao chão.
— SAL! — ela gritou.
De repente, o quarto foi invadido por uma névoa e, em seguida, um paredão
de água derrubou a porta, atingindo todos eles. Jane deixou que a água a levasse
pela sala, até a cama do ex-curinga. Ela rolou sobre a cabeceira e deslizou para o
chão. Mais névoa entrou na sala enquanto ela engatinhava ao redor do
amontoado de pessoas confusas, aos berros e encharcadas com água até o
tornozelo, e fugiu através da porta aberta.
Quando os alarmes dispararam, ela já havia fugido do prédio.
A lanchonete era muito diferente do Aces High, e a clientela não dava gorjetas,
mas não esperavam muito mais em troca. A maioria deles mal olhava para ela
— uma garçonete com um corte de cabelo curto, punk, e um uniforme grande
que lhe caía mal não era tão notável assim naquela parte da cidade. A
proprietária era uma matrona chamada Giselle que a chamava de Cordeirinha e
não pedia mais dos empregados que chegar no horário e tentar lembrar boas
piadas que ouviam dos clientes. Giselle colecionava piadas, e os clientes cativos
sempre ficavam felizes em fornecê-las.
Como o homem de duas cabeças que vinha todas as segundas, quartas e
quintas-feiras pela manhã para comer sanduíche de bacon com ovo. Eles sempre
tinham uma piada nova a oferecer.
— Ei, você ouviu a última? — eles diziam quando ela deixava o prato na
frente deles. — Tem uma notícia boa e uma notícia melhor.
Ela sorria para cada cabeça educadamente. O homem de duas cabeças era
o melhor, ou os melhores, na gorjeta.
— A boa notícia é que tem uma mulher que pode transformar um curinga
num limpo de novo transando com ele!
Seu sorriso ficou paralisado, mas eles não perceberam.
— Sabem qual é a melhor?
A cabeça de Jane balançou, incapaz de falar.
— Ela é realmente linda! — As duas cabeças soltaram uma gargalhada e
bateram uma contra a outra por acidente. Ela tentou rir com elas, mas não
conseguiu nem mesmo soltar um leve ha-ha-ha. As cabeças ficaram sérias e
olharam para ela, levemente decepcionadas por sua falta de reação.
— Ei, a gente acha que você precisava ser uma curinga...
— ... para gostar da piada — a outra cabeça terminou e deu mais uma
risadinha.
— É... é muito boa, de verdade — ela disse com uma voz alegre demais. —
Tenho que lembrar de contar para Giselle quando ela chegar. Acho que ela não
ouviu essa ainda.
— Bem, não esqueça...
— ... de dizer a ela...
— ... com quem ouviu primeiro!
— Não esqueço — ela disse, ainda mantendo o sorriso paralisado para cada
cabeça. — Não vou esquecer. Prometo.
♣ ♦ ♠ ♥
Derrocada
Leanne C. Harper
Nômada entrou no loft de C.C. Ry der esperando que ela estivesse no estúdio. Em
vez disso, Cordelia estava incomodando C.C. novamente. Ela se perguntou o que
Cordelia queria dessa vez. Nômada teve de se desviar de ainda mais pessoas
usando inúteis máscaras cirúrgicas. Ela não tinha simpatia por aqueles que
haviam entrado em pânico com esse novo surto do vírus carta selvagem. Talvez
fizesse bem para eles. Acompanhada pela gata amarela, Nômada foi até o sofá e
sentou-se no chão ao lado de C.C. A amarela encostou a cabeça no colo de
Nômada. As duas mulheres a cumprimentaram com um aceno de cabeça antes
de continuarem a discussão.
— Tem algo estranho naquela Shrike. Eu sinto isso. — Cordelia inclinou-se
para a frente, enfática. — E o que estão fazendo com Buddy não é correto. Ele
escreveu aquelas canções!
— Cordelia, a Shrike Music é uma empresa perfeitamente legítima.
Conheço gente que grava com eles. São empresários sérios. Se Holley cedeu os
direitos das músicas, foi decisão dele. — C.C. sacudiu a cabeça, cansada. — Essa
indústria é cheia de transações. É como funciona. Agora você já sabe disso.
Buddy já tem músicas novas. São boas. Deixa para lá.
— Mas eu soube, falando com Buddy, que não foi decisão dele. Ele só não
quer me dizer o que aconteceu. — Cordelia assumiu aquela expressão que
mostrava a Nômada que ela não desistiria. Nômada se levantou e foi até a
cozinha. A obsessão de Cordelia em salvar o mundo trouxe a desconfortável
lembrança de freiras mais jovens que ela conhecera quando criança. Todas
queriam ser santas, de verdade.
— Os antigões foram roubados. Olhe para Little Richard. Não foi correto,
não foi justo. Mas foi legal. Você não pode fazer nada. Buddy tem outras
preocupações agora. O show correu bem. Deixa estar.
— Mas você o viu poucas semanas atrás. Tocando em um Holiday Inn em
Nova Jersey ! Alguém precisa ajudá-lo, e eu vou fazer isso. — Os olhos de
Cordelia brilhavam com o fervor dos convertidos.
— Deixe Buddy levar a vida dele.
— Ei, não foi minha ideia dessa vez. Eles querem me ver. — Cordelia agitou
as mãos com inocência no ar.
C.C. sacudiu a cabeça, resignada.
— Então, qual é o seu grande plano?
Nômada cortou um pedaço de queijo cheddar para si e outro para a gata.
Mordiscando o seu, ela voltou para a sala de estar.
— Tenho uma reunião com um executivo da Shrike amanhã. Eu o deixei na
geladeira até bem depois do show. — Cordelia se encolheu no sofá e abraçou os
joelhos. — E eu preciso saber o que perguntar para ele.
— Está perguntando para mim? — C.C. suspirou e esticou a mão para pegar
um pedaço do queijo de Nômada.
— Isso. Para você. Minha especialista em contratos de gravação. —
Cordelia empertigou-se, triunfal, e abriu um sorrisinho para C.C. — Quero ver os
contratos originais, certo?
— Eu garanto que eles não vão deixar que veja o contrato de Holley.
— Vou dar um jeito. — Cordelia sorriu, espontânea. — Uau, preciso ir.
Cordelia já estava em pé e partiu na direção da porta.
— Vejo vocês mais tarde. Tchau, meninas.
Rosemary estava se sentindo cada vez mais temerosa com toda a situação. Chris
estava armando alguma, ela conseguia sentir. Não precisava ser uma telepata
como Nômada para sentir que estava enrascada. Ela não via nenhum animal ao
redor dela, nem mesmo um rato. Não era um bom sinal. Onde diabos estava
Nômada?
Ela reduziu deliberadamente o passo no corredor. Tentou se concentrar no
perigo e em como usá-lo. O que esperava por ela no pequeno quarto imundo no
qual estava prestes a entrar? Rosemary puxou sua arma.
Testou a maçaneta. A porta estava destrancada. Ela a empurrou para abri-la
para o quarto com seu ocupante. O homem que foi descrito para ela como Croy d
estava lá em pé, quase saindo.
— Quem é você? — Ele obviamente estava surpreso em ver uma mulher.
Com a arma, Rosemary gesticulou para ele se sentar na cama de ferro. Ela
manteve as costas na parede ao lado da porta. — Meu Deus, você é Maria
Gambione!
— Preciso saber o que você encontrou de fato. — Rosemary apontou a
arma para o homem do outro lado do quarto, segurando-a como sempre
praticava, com firmeza. — Você não vai a lugar nenhum.
Lá fora, na escada de incêndio, Chris esperava Rosemary sair de lá com o
vírus. Mentalmente, ele a encorajou a se aproximar de Croy d. Não conseguia
ouvir o que estavam conversando. Não importava, contanto que Croy d fizesse
com ela o que havia feito aos capos. Chris sabia que Croy d tivera contato com o
vírus de alguma forma. Nada mais poderia ter feito aquilo. Por que ela não se
aproxima?
Ele viu a arma de Rosemary subir. Croy d movia-se com rapidez. Antes que
Chris saísse do caminho, Croy d lançou a luminária do criado-mudo pela janela e
seguiu-a pela escada de incêndio. Chris cambaleou para trás, mas, na pressa de
se livrar de Rosemary, Croy d já estava no gradil de ferro do patamar. Ao
finalmente ver Chris, Croy d agarrou-o e jogou o homem para o próximo lance
de escadas. Chris engasgou e tentou engatinhar para descer os degraus. Um tiro
quase acertou Croy d, e ele subiu a escada dois degraus por vez.
Rosemary ficou paralisada quando Croy d atravessou a janela. Assim que o
eco dos estilhaços soou pela pensão, ela ouviu os guarda-costas vindo até ela.
Seguiu Croy d pela janela quebrada e o viu subir a escada de incêndio. Atirou
nele mais para pará-lo do que para matá-lo. O único caminho para sair de lá era
descer a escada de incêndio. Chris estava tossindo e convulsionando no patamar
embaixo dela. Quando ela ouviu os homens entrarem na porta atrás dela, estava
correndo degraus abaixo e saltando sobre o seu amante. Não parou.
— Desgraçado! — ela chiou para ele enquanto o deixava para trás. Partiu
para o chão, sabendo que os homens de Chris a matariam no ato. Precisaria de
sorte e movimentos rápidos, mas havia apenas uma chance de conseguir se livrar
dos guarda-costas e dos homens lá na frente. Era sua única chance.
♣ ♦ ♠ ♥
Concerto para sirene
e serotonina
VI
Croy d rodou de metrô e táxi e caminhou por mais de quatro horas, escondido
atrás dos óculos escuros, cruzando e recruzando a ilha em um padrão de fuga
calculado para confundir qualquer pessoa. E, pela primeira vez na vida, ele viu
seu nome iluminado na Times Square.
CROYD CRENSON, diziam as letras flutuantes no alto da lateral do prédio.
— LIGUE PARA O DR. T. EMERGÊNCIA.
Croy d parou e encarou, lendo várias vezes. Quando se convenceu de que
não era uma alucinação, deu de ombros. Deviam saber que ele passaria lá e
pagaria as contas quando tivesse uma chance. Era muito humilhante insinuar
para o mundo todo que ele era um mau pagador. Provavelmente tentariam
cobrar por uma cama também, ele pensou, quando o armário de vassouras devia
ser muito mais barato. Queriam fodê-lo como a todos os outros. Eles poderiam
muito bem esperar.
Soltando impropérios, correu até uma entrada do metrô.
♣ ♦ ♠ ♥
Laços de sangue
IV
♣ ♦ ♠ ♥
Concerto para sirene e serotonina
VII
Quando Homeleca piorou, Croy d estourou a tranca da porta atrás dele, deixando-
o entrar nas ruínas poeirentas de um pequeno apartamento de dois cômodos cujo
proprietário obviamente o usava para guardar mobília quebrada. Ele localizou
um sofá gasto no qual o curinga brilhante se esparramou, trêmulo. Croy d limpou
um pote de geleia que encontrou perto de uma pia ao lado do quarto e lhe deu
água para beber. Empurrando para o lado uma parafernália antiga para drogas,
Croy d sentou-se em um pequeno banco rachado enquanto o outro bebericava a
água.
— Você está doente? — Croy d perguntou.
— Não. Digo, sempre me senti como se estivesse com gripe, mas essa é
diferente. Estou sentindo como não me sentia há muito tempo, quando tudo isso
começou.
Croy d cobriu o curinga trêmulo com uma pilha de cortinas que encontrou
em um canto, em seguida se sentou de novo.
— Termine de contar o que aconteceu — Homeleca disse depois de um
tempo.
— Ah, sim.
Croy d tomou uma metanfetamina e uma dextroanfetamina e continuou sua
história. Quando Homeleca desmaiou, Croy d não percebeu. Continuou falando
até notar que a pele de Homeleca havia secado. Então, ficou em silêncio e
observou, pois as feições do homem pareciam se rearranjar lentamente. Mesmo
drogado, Croy d foi capaz de identificar o início de um ataque de carta selvagem.
Mas, mesmo drogado, isso não fazia nenhum sentido. Homeleca já era um
curinga, e Croy d nunca tinha ouvido falar de ninguém — exceto ele mesmo —
sofrendo um ataque pela segunda vez.
Ele sacudiu a cabeça, levantou-se e caminhou, saindo do apartamento. Já
era tarde, e ele estava com fome novamente. Levou alguns momentos para
identificar o novo turno que assumira a vigilância de seu quarteirão. Concluiu que
não os botaria para fora. A coisa mais razoável a fazer, ele achou, seria sair e
conseguir algo para comer, em seguida voltar e ficar de olho no Homeleca em
transformação durante sua crise, de um jeito ou de outro. Depois desaparecer,
cair ainda mais na clandestinidade.
Ao longe, uma sirene soou. Outro helicóptero da Cruz Vermelha veio e se
afastou, baixo, vindo do sudeste na direção da cidade alta. Lembranças daquele
primeiro Dia do Carta Selvagem giraram em sua cabeça, e Croy d concluiu que,
talvez, fosse melhor conseguir outro lugar para ficar antes de comer. Sabia de
uma pocilga, não muito longe, onde ele poderia desaparecer das ruas sem dar
satisfação a ninguém, desde que tivessem vagas — o que geralmente era o caso.
Desviou-se de seu caminho para verificar.
Como um grito de acasalamento, outra sirene respondeu à primeira, da
direção oposta. Croy d acenou para o homem que estava pendurado de cabeça
para baixo no poste de rua, mas o camarada se ofendeu ou ficou assustado e
voou para longe.
De algum lugar, ele ouviu um alto-falante dizendo seu nome,
provavelmente dizendo coisas terríveis sobre ele.
Seus dedos apertaram-se no para-lama de um carro estacionado. O metal
rangeu quando ele puxou e arrancou um grande pedaço. Em seguida se virou,
dobrando o pedaço de metal; o sangue pingava de um rasgo na mão. Ele
encontraria aquele alto-falante e o destruiria, mesmo que estivesse alto num
edifício ou em cima de uma viatura de polícia. Ele impediria que falassem dele.
Ele...
Aquilo o entregaria — ele percebeu num momento de lucidez — ao
inimigo, que podia ser qualquer pessoa. Qualquer um, exceto o cara com o vírus
carta selvagem, e Homeleca não poderia ser inimigo de ninguém naquele
momento. Croy d jogou o pedaço de metal na rua, depois encolheu a cabeça e
começou a uivar. As coisas estavam ficando complicadas de novo. E
desagradáveis. Precisava de algo para acalmar os nervos.
Enfiou a mão que sangrava no bolso, puxou um punhado de pílulas e
engoliu-as sem conferir o que eram. Precisava ficar apresentável para ir e pegar
um quarto.
Correu os dedos pelos cabelos, limpou as roupas, começou a caminhar num
ritmo normal. Não era longe.
♣ ♦ ♠ ♥
Laços de sangue
O homem envolveu a mão com membranas entre os dedos no pulso de Tachy on,
indicou um bloco de papel e rabiscou: Quanto tempo acha que tenho?
— Alguns dias.
Tachy on percebeu o estremecer de Tina Mixon. Sabia que ela considerava
sua franqueza como o limite da brutalidade, mas ele não gostava de mentir para
as pessoas. Um homem precisava de tempo para se preparar para a morte. E
esses seres humanos com suas sensibilidades delicadas. Não falavam sobre a
morte ou recobriam-na de eufemismos. Por outro lado, não tinham o mínimo
pudor em causar mortes.
O chiado do respirador ficou alto na sala quando o homem escreveu com
dificuldade:
Vocês conseguem encontrar aquela mulher?
— Ela desapareceu, sr. Grogan. Sinto muito.
Use seus poderes. Encontre a mulher!
Tachy on inclinou a cabeça e relembrou a cena (apenas três dias atrás?
Parecia uma eternidade) que seu olhar desacreditado encontrou. Foi responder à
mensagem de uma desordem no terceiro andar. Ele correu até a ala, em seguida
ficou paralisado e encarou a água lavando as pontas dos sapatos.
Devia haver sessenta pessoas em uma sala projetada para dez. Curingas
encharcados e desgrenhados agarravam-se às camas como sobreviventes de um
naufrágio. Irritados, serventes do hospital passavam esfregões no chão inundado.
Um homem de cabelos aloirados estava sobre uma das camas, balbuciando
histericamente enquanto duas mulheres curingas batiam em seus joelhos e
acrescentavam seus gritos agudos ao pandemônio geral.
— A porra de uma visão. A porra de uma visão dourada. E olhem para
mim! — gritava o homem de cabelos aloirados. — Olhem para mim!
— Por que precisava ser uma mulher? — gemeu uma mulher. — Talvez
você tenha pegado o poder dela. Me come. ME COME!
Tachy controlou sua mente impiedosamente. E a do homem balbuciante e
de todos os outros que pareciam querer causar problemas. Os curingas
remanescentes encararam-no como alvos em uma caça ao peru.
Estavam menos intimidados agora.
Como aquela chantagem patética de um moribundo.
— Desculpe — Tachy on repetiu a Grogan e saiu da sala.
E topou com um grupo de curingas que o espreitavam.
— Bom dia.
— O que tem de bom? — resmungou um curinga grande com uma porção
de cílios no lugar dos dentes, o que deixava sua dicção abafada, e Tachy on
precisava se esforçar para entendê-lo.
— Você está vivo, sr. Konopka, que é muito mais do que os menos sortudos
podem dizer — o alienígena falou com rispidez. Ele puxou o estetoscópio e
torceu-o nas mãos.
— Chama isso de viver? — perguntou uma mulher. — Eu pareço um
monstro, meu marido me deixou, perdi meu emprego...
— Todo mundo tem uma história — Tachy on disse rapidamente, seguindo
pelo corredor. Eles o seguiram.
Konopka entrou na frente do takisiano e parou-o com um soco forte no peito
do pequeno alienígena.
— O que vocês estão fazendo para encontrar aquela mulher?
Por um bom momento, Tachy on lutou com emoções conflitantes: acalmá-
los com uma mentira tranquilizante ou ser xingado por eles contando a verdade.
O curinga deu outra cutucada com a unha longa e afiada do dedo indicador.
— Hein? Hein? Responda...
Tach perdeu a paciência.
— Não estou fazendo absolutamente nada para encontrar aquela mulher.
— Seu desgraçado, eu vou matar você. — Konopka ergueu o punho,
ameaçador.
Outro homem gritou.
— Você não se importa conosco!
Tachy on voltou-se para o segundo homem e o agarrou pelos ombros.
— Não! Isso não é verdade. Xuan, eu me importo mais do que você
consegue conceber. Mas eu também preciso pensar em Jane. Olhe para vocês.
— Ele atacou a multidão com seu olhar lilás. — Vocês são como animais
caçando.
— Aquela garota pode nos curar. Você precisa encontrá-la.
A raiva diminuiu em Xuan, substituída por um pedido humilde.
Konopka virou o alienígena para encará-lo.
— Você nos deve isso, Tachy on, porque fez de nós o que somos, e não pode
fazer merda nenhuma para nos curar!
Surgiram gritos de apoio.
Tachy on olhou para o balcão das enfermeiras, onde Tina estava tremendo
sobre a mesa telefônica. Ele meneou minimamente a cabeça. Tudo que aquela
situação não precisava era da chegada dos seguranças.
— Todos vocês, voltem para os quartos.
— Não fuja, Tachy on!
— Ouçam — ele pediu. — Aquela garota é uma pessoa, um ser humano.
Não é uma maldita máquina feita para curar curingas. Vocês a teriam matado
três dias atrás. Considerem o terrível dilema que ela enfrentou. Pensem nela
também e não apenas em vocês mesmos. Como posso confiar em vocês quando
não consigo confiar em mim para fazer o que é correto e justo com Jane?
Finn apareceu num elevador e estava com a pata dianteira levantada como
se estivesse pronto para pisar no chão de linóleo. Com um murmúrio baixo, a
multidão começou a se dispersar. Todos, exceto Konopka. Ele agarrou o casaco
de seda vinho e ergueu os pés de Tach do chão. Finn deu um meio galope adiante,
girou nas esguias pernas dianteiras e soltou um coice bem no meio da bunda de
Konopka. Com um rugido, o curinga soltou Tachy on e virou-se para enfrentar
esse novo ataque.
— Deixa disso! — gritou Finn. — E volte para o seu quarto. — O punho de
Konopka voou. Finn recuou, mas quatro pernas são menos ágeis que duas. O soco
acertou.
— Lambe-botas de limpo!
Tachy on derrubou Konopka no chão, roncando.
— Por que não fez isso antes? — Finn perguntou, esfregando a bochecha
avermelhada.
— Possivelmente porque estou cansado de vitimá-los. — Tachy on virou-se,
seu casaco de rabo longo farfalhando ao redor dele. Finn teve que trotar para
manter o passo.
— Não é sua culpa.
— Que parte dessa bagunça? A criação do vírus? Não, não é totalmente
minha culpa. O fato de Croy d ter se tornado um transmissor? É provável que, de
novo, esteja fora do meu controle. O fato de que Jane é agora a pessoa mais
caçada no Bairro dos Curingas? Talvez não. Mas ela é minha responsabilidade, e
eu preciso encontrá-la e protegê-la se puder. — Tachy on esmurrou a parede do
elevador, rompendo a pele sobre os nós dos dedos.
Finn ergueu a mão e estancou o sangue que escorria com um lenço.
— Relaxa, vamos encontrá-la.
— Vamos? — Tachy on lambeu o sangue, refletindo. — Mais precisamente,
deveríamos?
— Há! Eu golpeio você com meu ataque mental assassino. E eu sobrevivo! Você
perde outra vida. — Tachy on jogou a pequena caneta marcadora na pilha de
descarte. — E eu posso fazer isso de verdade também. — Os olhos de Blaise
reluziam à luz da luminária. — Aposto que, se eu treinasse muito, poderia matar
com a mente.
Poly akov ergueu os olhos do jornal.
— Não é um talento a cultivar.
— Posso fazer isso?
— Esqueça, Blaise.
— Posso?
— Eu disse, esqueça.
O queixo pequeno e redondo endureceu, os lábios apertaram-se numa linha
teimosa.
— Talvez eu só tenha que praticar em alguém, já que você não...
Tachy on esticou-se sobre a mesa de jantar e plantou um tapa que derrubou
o garoto da cadeira.
— Tachyon! — berrou o russo.
— Blaise! Blaise! Desculpe. Desculpe. Você está bem? — Horrorizado, ele
pegou a criança nos braços. — Ah, pelo Ideal, me perdoe.
O garoto esperneou, acertando Tach sobre o olho. Sua capacidade emanou
dele em trêmulas ondas prateadas que tentaram romper os escudos do avô.
Tachy on aquietou Blaise com uma fustigada do seu poder.
— Ouça. Estou terrivelmente cansado e sob muito estresse. Sei que não é
uma desculpa adequada, mas ofereço como explicação. Não quero que você
aprenda a matar. Causa uma coisa na alma, pois você fica muito ligado à vítima.
Não é como um jogo de faz de conta. — Gesticulou para o tabuleiro do jogo
Talisman. — Você precisa cavar fundo, rasgar camada após camada da mente
da pessoa antes de conseguir matá-la.
— Já fez isso? — Blaise murmurou com o lábio inchado.
— Sim, e isso me assombra até hoje.
Poly akov aproximou-se do alienígena e pousou a mão em seu ombro.
— Eu pesei a vida de Rabdan contra a vida do restante da Terra. Ele
precisou morrer, foi necessário, mas... — Ele abraçou o menino. — Você precisa
aprender a ser gentil, Blaise. Nem de brincadeira pense em praticar com seres
humanos. Nosso pecado original foi tratá-los como animais de laboratório. Você
não...
O trinado do telefone o interrompeu.
— Doutor. Aqui é Jane.
— Jane? Onde...
— Não, sem perguntas. Apenas ouça. Tenho um endereço e um número de
telefone de Croy d. Apenas um. Eu ouvi no rádio. Acho que consigo entender por
que precisa encontrá-lo.
— Jane, desculpe não ter ajudado antes.
— Tudo bem. Eu estava muito na seca. Você não vai machucá-lo, vai? Ele
foi bacana comigo. Odeio pensar que estou traindo, mas...
— Mais pessoas vão morrer se você não me disser. Você fará bem ao me
contar.
— Tudo bem. Ele tem um apartamento em Eldridge. Eldridge, 323.
Terceiro andar. 555-4491.
— Obrigado, Jane, muito obrigado. Minha criança, nós precisamos... — Mas
ele estava falando com o zumbido da linha desligada.
Desligou o fone e ficou diante de um dilema moral capcioso. Se... quando
eles capturarem Croy d, e se ele acordar em uma nova forma que não seja com
o poder de transmissão, muito bem. Mas se essa mutação continuar, então as
decisões se tornariam mais difíceis. Manter o homem em isolamento para o resto
da vida?
Ou matá-lo...
Ele estava bailando a mais intrincada e maravilhosa contradança, mas não havia
outros homens. Apenas ele, e uma longa fila de mulheres. Bly the e Saaba, Dani e
Angelical, M’orat, Jane e Talli, Roleta, Peregrina, Victoria e Zabb agarravam-no
pelo ombro e tentavam intervir.
Murmurando e grunhindo, Tach enterrou a bochecha mais fundo no
travesseiro. O cheiro do antisséptico e a textura grosseira da fronha o
enfureceram. Eu não tolero uma cama como essa. Como eles ousam? Que
descaramento!
Tentou abrir as pálpebras coladas, encarou os olhos azuis no rosto franzido
de Victoria Queen.
Sorriu para ela.
— Você dança divinamente.
— Ah, acorde! — Ela estocou uma agulha no braço dele.
— Ai!
— Estimulante. Nosso herói. Você finalmente encontrou alguém com um
poder de controle mental superior no pior momento possível.
— Ele não era superior! Foi meu próprio poder que ricocheteou de volta
para mim. Nada mais poderia ter passado pelos meus... — Ele se interrompeu,
envergonhado por sua justificativa indignada, continuando em um tom punitivo.
— Nós o pegamos?
— Não.
Ele enterrou o rosto nas mãos.
— Ó, ancestrais, que bagunça.
— Sim — ela disse e saiu do quarto.
Croy d escapou. E se Serpentina tiver morrido? Outra baixa por conta dos
seus erros.
O estalo de cascos delicados no assoalho.
— E agora, chefe?
— Vou me suicidar.
— Resposta errada.
— Vou procurar a polícia.
— Eles vão pirar — observou o curinga enquanto desfazia os nós da crina
branca.
— Que opção eu tenho? Queria manter esse segredo, evitar o pânico, mas
Croy d agora sabe que está sendo caçado. Ele vai desaparecer. Precisamos de
uma tropa para encontrá-lo. E esse companheiro. Ligue para Washington, peça
para o CRISE-A os arquivos de um ás com poderes de bumerangue.
O takisiano ergueu-se da cama, ficando rígido. Encolheu-se quando
explorou o ferimento no ombro. Correu as mãos pelos cachos embaraçados.
— Eu falhei.
— Como você poderia saber?
— Como está a equipe?
Finn abaixou a cabeça e inspecionou as mãos.
— Que houve? Troll? Serpentina?
— Serpentina. Ela entrou em reação de Rainha Negra minutos depois de
você cair.
— O período de incubação...
— Deve estar encurtando.
— Ele continua a mudar o vírus.
— Então, talvez sofrerá mutação até se tornar não viral?
— Eu não teria tanta sorte. Tudo que eu toco leva à morte.
— Pare com isso! Não é verdade! Não temos tempo para que sinta culpa.
Se alguém errou, fui eu. Eu deixei que ele fosse embora.
— Você não tinha como saber que ele se tornaria um transmissor.
— É exatamente o meu ponto. O que está feito, está feito. Vamos pensar no
futuro.
— Se houver um.
— Vamos fazer acontecer.
— Como você consegue ser tão otimista e se ajustar à situação?
— Sou idiota demais para ser de outro jeito.
♣ ♦ ♠ ♥
Todos os cavalos do rei
VI
A grande porta de metal ondulado da garagem rangeu sobre sua cabeça quando
deslizou nos trilhos. O dispositivo de abertura era antigo e ruidoso, mas ainda fazia
seu trabalho. Poeira e luz do dia infiltraram-se no bunker subterrâneo. Tom
desligou a lanterna e pendurou-a num gancho preso a uma viga de madeira que
segurava a parede de terra batida. As palmas da mão estavam suadas. Ele as
limpou na calça jeans e parou, observando os cascos de metal diante dele.
A escotilha se abriu no casco mais antigo, o fusca blindado. Ele havia
passado a última semana substituindo os tubos de aspirador de pó, azeitando os
trilhos das câmeras e verificando a fiação. Estava pronto dentro das condições
possíveis.
— Eu e minha maldita boca aberta — Tom falou para si. Suas palavras
ecoaram pelo bunker.
Ele poderia ter alugado um caminhão, talvez um trailer. Joey teria ajudado.
Dar ré até a borda do bunker, carregar os cascos e levá-los até o Bairro dos
Curingas da forma mais fácil. Mas não, ele precisava ir e dizer a Dutton que os
levaria voando até lá. O curinga nunca acreditaria nele se aquelas coisas fossem
entregues pela UPS.
Olhou para a escotilha aberta, tentou imaginar-se entrando na escuridão e
selando a porta atrás dele, trancando-se naquele caixão de metal, e sentiu a bile
subindo no fundo da garganta. Ele não conseguiria.
Só que não tinha escolha, tinha? O ferro-velho não era mais dele. Uma
equipe chegaria em menos de três semanas para começar a limpeza de toda a
merda que se acumulara ali nos últimos quarenta anos. Se os cascos ainda
estivessem ali quando eles aparecessem com os tratores, era fim de jogo.
Tom se obrigou a avançar. Não era um grande problema, disse a si mesmo.
O casco estava bom, ele conseguiria atravessar a baía, fizera isso mil vezes.
Então, precisaria fazer mais uma vez, pronto. Uma vez e estaria livre.
Todos os cavalos do rei e todos os homens do rei...
Tom ajoelhou-se, pegou a borda superior da escotilha e deu um suspiro
longo e lento. O metal estava frio sob os dedos. Ele inclinou a cabeça e se puxou
para dentro, fechando a escotilha. O estalo ressoou-lhe nos ouvidos. A escuridão
era completa lá dentro, e estava frio. A boca ficou seca, e ele conseguia sentir o
coração palpitando.
Andou às cegas na escuridão em busca do assento, sentiu o estofado de vinil
rasgado, contorceu-se para chegar a ele. Poderia muito bem estar em uma
caverna no centro da Terra, morto e enterrado, pois estava muito escuro. Tênues
linhas de luz vazavam para dentro ao redor da parte externa da escotilha, mas
não o suficiente para iluminar lá dentro. Onde estava a merda do interruptor de
força? Todos os cascos mais novos tinham controles táteis embutidos nos braços
do assento, mas não este mais velho, ah, não. Tom tateou no escuro sobre a
cabeça e prendeu os dedos em algo metálico. Doeu. O pânico agitou-se dentro
dele como um animal assustadiço. Estava escuro pra diabo, onde estavam as
luzes?
Então, de repente, estava caindo.
A vertigem o atingiu como uma onda. Tom agarrou o braço do assento com
força, tentou dizer-se que aquilo não estava acontecendo, mas ele podia sentir. A
escuridão girava e cambalhotava. O estômago embrulhou, ele se inclinou para a
frente, batendo a cabeça na parede curva do casco.
— Eu não estou caindo! — ele gritou, alto. As palavras soaram-lhe nos
ouvidos enquanto ele caía, indefeso, preso em seu casco blindado. Ele buscava
fôlego enquanto as mãos agitavam-se loucamente, tateando contra a parede,
deslizando sobre vidro e vinil, apertando interruptores em todos os lugares.
Ao redor, as telas de TV acenderam-se, turvas.
O mundo equilibrou-se. O fôlego de Tom reduziu a velocidade. Ele não
estava caindo, não, olhe lá fora, era o bunker, ele estava sentado no casco, seguro
no chão no fundo de um buraco, era isso, ele não estava caindo.
Imagens difusas em preto e branco encheram as telas. Os televisores eram
um desencontro de tamanhos e marcas, havia pontos cegos óbvios, uma imagem
estava correndo lentamente na vertical. Tom não ligava. Conseguia ver. Não
estava caindo.
Descobriu os controles de rastreamento e pôs as câmeras externas em
movimento. As imagens na tela mudaram lentamente enquanto ele rastreava
tudo ao redor. Os outros dois cascos, cascas vazias a poucos metros de distância.
Ele ligou o sistema de ventilação, ouviu um ventilador começar a girar, sentiu o
ar fresco banhar seu rosto. Sangue estava pingando sobre seus olhos. Havia se
cortado durante a crise de pânico. Ele o limpou com as costas da mão e afundou-
se no assento.
— Tudo bem — anunciou em voz alta. Havia chegado até ali. O resto era
mel na sopa. Para o alto, para o alto e para longe. Fora do bunker, através de
Nova York, último voo, nada mais simples. Ele empurrou para cima.
O casco balançou lentamente de um lado para o outro, ergueu-se talvez três
centímetros do chão, em seguida caiu com uma pancada.
Tom grunhiu. Todos os cavalos do rei e todos os homens do rei, ele pensou.
Reuniu toda a concentração, tentou decolar novamente. Nada aconteceu.
Ficou sentado, rosto sério, encarando sem ver as formas diáfanas em preto
e branco nas telas dos televisores e, finalmente, admitiu a verdade. A verdade
que escondera de Joey DiAngelis, de Xavier Desmond e até de si mesmo.
O casco não era a única coisa que estava com defeito.
Por mais de vinte anos, ele pensou ser invulnerável atrás da armadura. Tom
Tudbury talvez tivesse dúvidas, medos, inseguranças, mas não o Tartaruga. Sua
telecinesia, alimentada pela crença na invencibilidade, sempre aumentava, ano
após ano após ano, contanto que ele estivesse dentro do casco.
Até o Dia do Carta Selvagem.
Eles o derrubaram antes mesmo que ele soubesse o que estava
acontecendo.
Estava bem alto sobre o Hudson, atendendo a um chamado, quando algum
poder de ás atravessou a armadura como se ela não existisse. De repente, sentiu-
se doente, fraco. Precisou lutar para não desmaiar, e conseguiu sentir o imenso
casco sacudir no meio do voo quando sua concentração vacilou. Um momento
antes, a visão ficou borrada, ele viu o garoto no paraglider mergulhando. Em
seguida, houve um estouro tremendo que feriu seus tímpanos, e o casco morreu.
Tudo apagou. Câmeras, computadores, fita cassete, sistema de ventilação,
tudo queimado ou apagado na mesma fração de segundo. Um pulso
eletromagnético, ele leu depois nos jornais, mas tudo que ele sabia na hora era
que ficara cego e indefeso. Por um momento, ficou chocado demais para ter
medo, esmurrando loucamente nos controles, mergulhado na escuridão,
desesperado para acionar a energia novamente.
Nem mesmo percebeu que haviam jogado uma bomba de napalm nele.
Mas, com a napalm, chegou novamente a fraqueza. Então, ele perdeu o
controle; o casco começou a tombar, mergulhando na direção do rio lá embaixo.
Dessa vez, ele realmente apagou.
Tom deixou as lembranças de lado e correu os dedos pelos cabelos. Seu
fôlego já acelerara de novo, e ele estava coberto com uma fina camada de suor
que fazia a camisa grudar no peito. Encare os fatos, ele disse, você está
aterrorizado.
Era inútil. O Tartaruga estava morto, e Tom Tudbury podia no máximo
brincar com sabonetes e cabeças de robô, mas nunca levantaria algumas
toneladas de um casco blindado no ar. Desista. Chame Joey, jogue os cascos
velhos na baía, abra mão. Esqueça o dinheiro, o que são oitenta mil dólares? Não
vale sua vida, isso é certo, Steve Bruder o faria rico de qualquer forma. As águas
da baía de Nova York eram extensas, escuras e frias, era um longo caminho até
Manhattan. Ele teve sorte uma vez, o maldito casco explodiu quando despencou
no fundo do rio, deve ter sido a napalm ou a pressão da água ou algo assim, um
acidente maluco, e o choque da água fria de alguma forma o fez acordar, e ele
conseguiu chegar à costa em Jersey City. Ele devia ter morrido.
O café da manhã subiu para a boca do estômago e, por um momento, Tom
pensou que vomitaria. Abatido, abriu o cinto de segurança. A mão tremia.
Desligou os ventiladores, os motores, as câmeras. A escuridão se fechou ao redor.
O casco deveria torná-lo invulnerável, mas se transformara numa
armadilha mortal. Ele não conseguia erguê-lo. Nem mesmo para a última
viagem. Ele não conseguia.
A escuridão tremeu ao seu redor. Sentiu como se fosse cair de novo.
Precisava sair dali, imediatamente, estava sufocando. Poderia ter morrido.
Mas não morrera.
O pensamento surgiu do nada, desafiador. Poderia ter morrido, mas não
morrera. Ele não podia erguer o casco novamente, mas erguera, exatamente
naquela noite.
Aquele mesmo casco. Quando, finalmente, voltou ao ferro-velho, estava
meio afogado e exausto, zonzo com o choque, mas também estranhamente vivo,
revigorado, alegre pelo simples fato de ter sobrevivido. Ele saiu com o casco e
cruzou a baía e fez loops sobre o Bairro dos Curingas, subiu no lombo do cavalo
que o derrubara, mostrou a todos eles, o Tartaruga ainda estava vivo, o Tartaruga
recebeu tudo que eles podiam lançar, eles o derrubaram e lançaram bombas de
napalm nele e o jogaram como uma pedra no fundo do maldito rio Hudson, e ele
ainda estava vivo.
A multidão o aclamou nas ruas.
As mãos de Tom se estenderam, acionaram um interruptor, um segundo. As
telas iluminaram-se de novo. Os ventiladores começaram a girar.
Não faça isso, seu medo sussurrou dentro dele. Você não pode. Estaria morto
agora se o casco não tivesse explodido...
— Mas ele explodiu — Tom disse. A napalm, a pressão d’água, alguma
coisa...
As paredes do quarto. Vidro quebrado em todos os lugares, os travesseiros
rasgados, penas voando pelo ar.
A água fez um tristonho som gorgolejante em algum lugar na escuridão fria,
fechada. O mundo se retorceu e girou, afundando. Estava muito fraco e zonzo
para se mover. Sentiu os dedos gélidos nas pernas, subindo mais e mais, e em
seguida o choque repentino quando a água alcançou a virilha, acordando-o. Ele
rasgou o cinto do assento com dedos dormentes, mas tarde demais, o frio
acariciou-lhe o peito, ele tentou se levantar e perdeu o equilíbrio, e depois a água
estava sobre a cabeça e ele não conseguia respirar e tudo ficou preto,
extremamente preto, preto como o túmulo, e ele precisava sair, precisava sair...
Rachaduras na parede do quarto, cada vez mais quando o pesadelo vinha. E
imagens numa revista, fragmentos de placa blindada aberta e retorcida, soldas
estilhaçadas, parafusos soltos, o casco inteiro quebrado como um ovo. A placa
curvada para fora.
Foda-se tudo isso, ele pensou. Fui eu. Eu fiz isso.
Ele olhou para a tela mais próxima, agarrou os braços do assento e
empurrou para baixo com a mente.
O casco ergueu-se suavemente, através do bunker, para cima da porta da
garagem, para dentro do céu da manhã. A luz do sol beijou a pintura verde e
rachada de sua armadura.
♣
Surgiu no céu a leste, no Brookly n, com o sol atrás dele. A viagem era mais longa
assim, quando ele circulou sobre a Staten Island e os Narrows, mas aquilo
disfarçava o ângulo de aproximação, e vinte anos de tartarugagem lhe ensinaram
todos os truques. Ele se aproximou dos grandes contrafortes da Ponte do
Brookly n, baixo e rápido, e nas telas ele viu os pedestres matutinos lá embaixo
erguerem os olhos surpresos quando sua sombra passou sobre eles. Era uma
visão que a cidade nunca vira antes e nunca veria novamente: três Tartarugas
sobrevoando o East River, três espectros de ferro vindos das manchetes do
passado e da terra dos mortos, movendo-se em formação justa, dando voltas e
giros ao mesmo tempo e fazendo um extravagante loop duplo sobre os telhados
do Bairro dos Curingas.
Para Tom, no casco central, as reações nas ruas faziam tudo aquilo valer a
pena. Ao menos ele se retiraria em grande estilo; gostaria de ver as revistas
dizendo que aquilo ali era Vênus.
Foi um inferno tirar os outros cascos do bunker; destruídos ou não, sua
armadura ainda emprestava a eles muito peso e, por um momento, pairando
sobre o ferro-velho em Bay onne, ele não achava que seria capaz de lidar com os
três. Em seguida, teve uma ideia melhor. Em vez de tentar levá-los
individualmente, imaginou-os soldados aos pontos de um triângulo gigante
invisível, e ele ergueria o triângulo no ar. Depois disso, foi mel na sopa.
Dutton estava com uma equipe de filmagem na Ponte do Brookly n uma
segunda no telhado do Museu Popular Carta Selvagem. Com tudo que haviam
gravado, surgiria pouca dúvida sobre a autenticidade dos cascos.
— Tudo bem — Tom anunciou através dos alto-falantes após ter pousado os
cascos no telhado amplo e reto. — O show acabou. Corta. — Filmar sua
aproximação e aterrissagem era uma coisa, mas ele não permitiria qualquer
gravação dele saindo da escotilha. Com ou sem máscara, era um risco que não
queria assumir.
Dutton, alto e sombrio, com seu capuz puxado sobre as feições, fez um gesto
decidido com a mão enluvada, e a equipe de filmagem — todos curingas —
carregou os equipamentos e saiu do telhado. Quando o último deles desapareceu
nas escadas, Tom respirou fundo, encaixou a máscara de sapo de borracha,
extinguiu o poder e saiu ao sol matutino.
Depois de emergir, ele se virou para uma última olhada para o que estava
deixando para trás. Lá fora, à luz do dia, eles pareciam diferentes do que se
mostravam na penumbra de seu bunker. Menores, de alguma forma. Mais
desgastados.
— Difícil se afastar, não é? — Dutton perguntou.
Tom se virou.
— Sim — ele disse. Embaixo do capuz, Dutton estava usando uma máscara
de leão de couro com uma longa juba. — Você comprou essa máscara na
Holbrook’s.
— Sou dono da Holbrook’s — Dutton respondeu. Ele examinou os cascos. —
Estou pensando em como vamos entrar com eles no museu.
Tom deu de ombros.
— Botaram uma droga de baleia no Museu de História Natural; algumas
tartarugas deve ser fácil. — Ele não estava se sentindo tão tranquilo quanto
tentava soar. O Tartaruga deixou fulas algumas pessoas durante aqueles anos,
desde os criminosos de rua até Richard Milhous Nixon. Se Dutton não fosse
cuidadoso, todos ou qualquer um deles poderiam estar lá fora esperando por ele,
e, mesmo se não estivessem, tinha a pequena questão de ir para casa com oitenta
mil dólares em dinheiro. — Vamos acabar com isso — ele disse. — Trouxe o
dinheiro?
— Na minha sala — Dutton respondeu.
Desceram as escadas, Dutton na frente, Tom seguindo, olhando ao redor
com cautela a cada lance. Estava frio e escuro dentro do prédio.
— Fechado de novo? — Tom perguntou.
— Os negócios estão indo de mal a pior — Dutton admitiu. — A cidade está
com medo. Esse novo surto de carta selvagem afastou os turistas, e até os
curingas estão começando a evitar multidões e locais públicos.
Quando chegaram ao porão e entraram na sombria oficina de paredes de
pedra, Tom viu que o museu não estava totalmente deserto.
— Estamos preparando algumas exposições novas — Dutton explicou
quando Tom fez uma pausa para admirar uma jovem esguia, com jeito de
garoto, vestindo uma réplica de cera do senador Hartmann. Ela havia acabado de
dar o nó na gravata com dedos longos e habilidosos.
— Este é para nosso diorama da Síria — Dutton explicou enquanto a mulher
ajustava o casaco xadrez cinzento do senador. Havia um rasgo em um dos
ombros onde uma bala havia passado, e o tecido ao redor estava cuidadosamente
manchado com sangue falso.
— Parece muito real — Tom disse.
— Obrigada — a jovem respondeu. Ela se virou, sorrindo e estendendo a
mão. Havia algo de errado com seus olhos. Eram apenas íris, um preto com
vermelho profundo e brilhante, com a metade do tamanho de olhos normais.
Ainda assim, ela não se movia como uma cega. — Meu nome é Cathy e eu
adoraria fazê-lo em cera — ela disse quando Tom apertava sua mão. — Sentado
em um dos cascos, talvez? — Ela inclinou a cabeça e tirou uma mecha de cabelo
de cima dos olhos estranhos e escuros.
— Hum — Tom falou —, prefiro não.
— Sábio de sua parte — Dutton falou. — Se Leo Barnett se tornar
presidente, alguns de seus camaradas ases talvez desejem ter mantido mais a
discrição. Não vale a pena ser muito exibicionista nestes dias.
— Barnett não vai ser eleito — Tom falou com algum fervor. Ele inclinou a
cabeça para a figura de cera. — Hartmann vai impedi-lo.
— Outro voto para o senador Gregg — Cathy disse, sorrindo. — Se mudar
de ideia sobre a estátua, é só me dizer.
— Você será a primeira a saber — Dutton disse para a garota. Ele pegou o
braço de Tom. — Venha — ele pediu.
Passaram por outros elementos do diorama sírio em vários estágios de
montagem: o Dr. Tachy on em trajes árabes completos, sapatos curvados nos pés;
o gigante Say y id feito de cera com três metros de altura; Carnifex com seu
ofuscante traje de luta branco. Em outra parte do salão, um técnico trabalhava
em orelhas mecânicas de uma imensa cabeça de elefante que estava sobre uma
mesa de madeira. Dutton passou por ele com um leve menear de cabeça.
Então, Tom viu algo que o fez ficar paralisado.
— Caramba — ele disse em voz alta. — Aquele é...
— Tom Miller — Dutton completou. — Mas acredito que preferia ser
chamado de Gimli. Temo que seja parte de nosso Hall da Vergonha.
O anão os encarava com desdém, um punho erguido sobre a cabeça como
se discursasse para uma multidão. Os olhos vítreos, borbulhando de ódio,
pareciam segui-los aonde fossem. Não eram de cera.
— Uma peça brilhante de taxidermia — Dutton disse. — Precisávamos agir
rapidamente antes que a decomposição começasse. A pele estava rachada em
dezenas de pontos, e tudo dentro dele havia se dissolvido... ossos, músculos,
órgãos internos, tudo. Esse novo carta selvagem pode ser tão implacável quanto o
antigo.
— A pele dele — Tom disse, enojado.
— Eles têm o pênis de John Dillinger no Smithsonian — Dutton disse
calmamente. — Por aqui, por favor.
Dessa vez, quando chegaram à sala de Dutton, Tom aceitou um drinque.
Dutton estava com o dinheiro cuidadosamente amarrado e arrumado em
uma discreta valise verde, quase surrada.
— Notas de dez, vinte e cinquenta, algumas de cem — ele disse. — Gostaria
de contá-las?
Tom apenas olhou para as notas verdes novinhas, a bebida esquecida na
mão.
— Não — ele disse suavemente após uma longa pausa. — Se não estiver
tudo aí, sei onde você mora.
Dutton deu uma risadinha educada, foi para trás da mesa e puxou uma
sacola de papel com o logotipo do museu na lateral.
— O que é isso? — Tom perguntou.
— Ora, a cabeça. Tinha certeza que desejaria levar numa sacola.
Na verdade, Tom quase havia se esquecido da cabeça do Modular.
— Ah, sim — ele disse, pegando o pacote. — Claro. — Ele olhou lá dentro.
Modular olhou para ele também. Rapidamente, fechou a bolsa. — Muito bom.
Era quase meio-dia quando Tom saiu do museu, a valise verde na mão direita e a
sacola de compras na esquerda. Ele piscou à luz do sol, em seguida partiu para a
Bowery em um passo enérgico, cuidando para ver se não estava sendo seguido.
As ruas estavam quase desertas, então não achava que seria difícil identificar se
alguém o seguisse.
No terceiro quarteirão, Tom tinha certeza de que estava sozinho. As poucas
pessoas que viu eram curingas usando máscaras cirúrgicas ou coberturas mais
elaboradas para o rosto, e eles mantinham de Tom, e entre eles mesmos, a maior
distância possível. Ainda assim, ele continuou andando, apenas para se garantir. O
dinheiro era mais pesado do que imaginara, e Modular era surpreendentemente
leve, então parou duas vezes para trocar de mão.
Quando chegou à Funhouse, abaixou a valise e a sacola de papel, olhou
cuidadosamente ao redor, não viu ninguém. Tirou a máscara de sapo e enfiou-a
no bolso da jaqueta.
A Funhouse estava escura e trancada com cadeado. FECHADO ATÉ
SEGUNDA ORDEM dizia a placa na porta. Eles fecharam as portas pouco depois
que Xavier Desmond foi hospitalizado, Tom sabia disso. Lera sobre isso nos
jornais. Aquilo o entristecia imensamente e o fazia se sentir mais velho do que já
se sentia.
Com o rosto à mostra e nervoso, mudando de um pé para o outro, Tom
aguardou um táxi.
O trânsito estava muito leve, e quanto mais esperava, mais inquieto ficava.
Deu cinquenta centavos a um bêbado que acabara de chegar cambaleando
apenas para se livrar do homem. Três punks com as cores dos Príncipes
Demoníacos lançaram um olhar longo, severo e especulativo a Tom e sua valise.
Mas suas roupas eram tão surradas quanto a valise, e eles devem ter concluído
que não valia o suor.
Finalmente, conseguiu pegar o táxi.
Deslizou no assento traseiro do grande táxi amarelo com um suspiro de
alívio, a sacola de compras no assento ao lado dele, a valise sobre o colo.
— Vou para Journal Square — ele disse. De lá, poderia pegar outro táxi para
levá-lo a Bay onne.
— Ah, não, ah, não — o taxista disse. Tinha os olhos escuros. Tom olhou
para sua licença. Paquistanês. — Não Jersey — o homem disse. — Ah, não, não
vou para Jersey.
Tom tirou uma nota de cem amassada do bolso da calça.
— Aqui — ele disse. — Fique com o troco.
O taxista olhou para a nota e abriu um sorriso largo.
— Muito bom — ele disse. — Muito bom, Nova Jersey, ah, sim, estou muito
alegre. — Ele pôs o táxi em movimento.
Tom já se sentia em casa. Abriu uma janela e recostou-se no assento,
aproveitando o vento no rosto e o peso delicioso da valise no colo.
Um uivo distante atravessou os telhados lá fora; alto, fino, urgente.
— Ai, o que é isso? — o taxista perguntou, soando perplexo.
— Sirene de ataque aéreo — Tom respondeu. Ele se inclinou para a frente,
alarmado.
Uma segunda sirene começou a soar, mais próxima, alta e penetrante. Os
carros começaram a estacionar nas calçadas. Pessoas nas ruas paravam e
erguiam os olhos para os céus brilhantes, vazios. Ao longe, Tom conseguia ouvir
outras sirenes juntando-se às duas primeiras. O barulho aumentava cada vez
mais.
— Porra — Tom disse. Ele se lembrou da história. Soaram as sirenes de
ataque aéreo no dia em que Jetboy morrera, quando o carta selvagem foi
lançado sobre uma cidade inocente. — Ligue o rádio — Tom pediu.
— Ah, perdão, senhor, não funciona, ah, não.
— Desgraça — Tom xingou. — Tudo bem. Vá mais rápido, então. Vá para
o Túnel Holland.
O motorista acelerou e passou um semáforo vermelho.
O barulho diminuiu lá atrás enquanto Tom fugia através de becos e ruas laterais.
Percorreu três quarteirões e já ofegava quando percebeu uma porta de porão
aberta sob uma livraria. Hesitou por um instante, mas, quando ouviu o som de pés
correndo numa rua transversal, ele acabou decidindo.
Estava frio e quieto lá dentro. Tom soltou com alegria a valise e sentou-se de
pernas cruzadas no chão de cimento. Recostou-se à parede e ouviu. As sirenes de
ataque aéreo finalmente haviam silenciado, mas ele ouvia buzinas e uma
ambulância ao longe, e o retumbar nervoso dos gritos.
À sua direita, ele ouviu um arrastar de passos.
A cabeça de Tom virou-se de uma vez.
— Quem está aí?
Silêncio. O porão estava escuro e sinistro. Tom se levantou. Podia jurar que
ouvira alguma coisa. Deu um passo adiante, parou, inclinou a cabeça. Em
seguida, teve certeza. Alguém estava lá atrás, atrás das caixas. Conseguia ouvir o
som rápido e entrecortado da respiração.
Tom não chegaria mais perto. Afastou-se na direção da porta e deu um
empurrão telecinético nas caixas. A pilha inteira caiu, o papelão rasgou-se, e
dúzias de edições de Piadas mais nojentas de curingas em papel cuchê
cascatearam de uma caixa rasgada. De trás das caixas, surgiu um grunhido de
surpresa e dor.
Tom avançou e empurrou o alto das caixas na pilha que se movia devagar
para o lado, usando a mão dessa vez.
— Não me machuque! — a voz embaixo dos livros implorou.
— Ninguém vai machucar você — Tom afirmou. Ele moveu a caixa
rasgada, espalhando mais livros no chão. Meio enterrado embaixo deles, um
homem estava em posição fetal, braços enroscados na cabeça para protegê-la.
— Saia daí.
— Eu não estava fazendo nada — o homem no chão disse numa voz fina,
sussurrada. — Eu só entrei para me esconder.
— Eu estava me escondendo também — Tom falou. — Tudo bem. Pode
sair.
O homem se mexeu, esticou-se, ficou em pé com cautela. Havia algo de
terrivelmente errado na forma que ele se movia.
— Minha aparência não é muito bonita — ele alertou naquela voz fina,
farfalhante.
— Não me importo — Tom disse.
Caminhando em dolorosos movimentos laterais de caranguejo, o homem
avançou até a luz, e Tom deu uma boa olhada nele. Um instante de repulsa deu
lugar a uma pena repentina, avassaladora. Mesmo à luz penumbrosa nos fundos
do porão, Tom conseguia ver como o corpo do curinga havia ficado cruelmente
retorcido. Uma das pernas era muito mais longa que a outra, com três juntas, e
presas para trás, então o joelho se curvava na direção errada. A outra perna, a
normal, terminava num pé torto. Um amontoado de pequenas mãos vestigiais
cresciam da carne inchada do antebraço direito. A pele era negra brilhante,
branca como osso, marrom-chocolate e vermelho-cobre em trechos por todo o
corpo; não havia como saber de que raça era originalmente. Apenas o rosto era
normal. Um rosto bonito; olhos azuis, loiro, forte. Um rosto de astro de cinema.
— Eu sou Mistureba — o curinga sussurrou, tímido.
Mas os lábios de astro de cinema não se moviam, e não havia vida naqueles
olhos profundos, azul-claros. Em seguida, Tom viu a segunda cabeça, o rosto
horrendo e pequeno de macaco observando cuidadosamente da camisa
desabotoada. Ela se projetava torta do ventre grande do curinga, roxa como uma
escoriação velha.
Tom se sentiu nauseado, o que devia ter se estampado no rosto, pois
Mistureba se afastou.
— Desculpe — ele murmurou —, desculpe.
— O que acontece? — Tom se forçou a perguntar. — Por que está se
escondendo aqui?
— Eu os vi — o curinga disse de costas para Tom. — Aqueles caras.
Limpos. Eles pegaram aquele curinga; estavam batendo nele com vontade.
Fariam o mesmo comigo, se eu não fugisse. Disseram que era tudo nossa culpa.
Eu preciso chegar em casa.
— Onde você mora? — Tom quis saber.
Mistureba fez um som úmido, abafado, que poderia ser uma risada, e se
virou um pouco.
— Bairro dos Curingas — ele disse.
— Certo — Tom falou, sentindo-se muito estúpido. Claro que vivia no Bairro
dos Curingas, onde mais ele poderia viver? — Fica a poucos quarteirões de
distância. Eu levo você lá.
— Tem carro?
— Não — Tom respondeu. — Vamos ter que caminhar.
— Não caminho muito bem.
— Vamos devagar — Tom disse.
Foram devagar.
O crepúsculo caía quando Tom finalmente saiu, com cuidado, do refúgio no
porão. A rua ficou quieta por horas, mas Mistureba estava assustado demais para
se aventurar lá fora antes do anoitecer.
— Vão me machucar — ele dizia o tempo todo.
Mesmo quando o ocaso começou a escurecer, o curinga ainda hesitava em
se mover. Tom saiu primeiro para verificar o quarteirão. Havia luzes acesas em
poucos apartamentos, e ele ouviu o som de uma televisão berrando de uma
janela no terceiro andar, e mais sirenes de polícia ao longe. Tirando isso, pairava
um silêncio sepulcral na cidade. Caminharam pelo quarteirão bem devagar, de
porta a porta, como soldados num filme de guerra. Não havia carros, pedestres,
nada. Todas as lojas estavam escuras, protegidas por grades sanfonadas e portas
de aço. Até os bares da vizinhança estavam fechados. Tom viu algumas janelas
quebradas e, bem na esquina que viraram, o chassi queimado de uma viatura de
polícia no meio do cruzamento. Um imenso outdoor da Marlboro fora
desfigurado com tinta vermelha; estava escrito: MATEM TODOS OS
CURINGAS. Ele decidiu não levar Mistureba por aquela rua.
Quando voltou, o curinga estava aguardando. Havia levado a valise e a
sacola de compras para a entrada.
— Disse para não tocar nisso — Tom bronqueou, irritado, e sentiu culpa
imediata quando viu como Mistureba se encolhia com sua voz.
Ele pegou a valise e a sacola.
— Vamos — ele falou, saindo. Mistureba seguiu-o, cada passo uma dança
terrivelmente torta. Eles seguiram devagar. Seguiram muito devagar.
Pararam na maioria dos becos e ruas laterais a sul da Canal Street,
descansando com frequência. A maldita valise parecia ficar mais pesada a cada
quarteirão.
Estavam tomando fôlego ao lado de uma caçamba pouco depois da Church
Street quando um tanque passou pela boca de um beco, seguido por meia dúzia
de homens da Guarda Nacional a pé. Um deles olhou para a esquerda, viu
Mistureba e começou a erguer o fuzil. Tom se levantou e entrou na frente do
curinga. Por um instante, seus olhos encontraram os do soldado. Era uma
criança, Tom viu, não mais que 19, 20 anos. O garoto olhou para Tom por
bastante tempo, em seguida baixou a arma, assentiu e continuou sua marcha.
A Broadway estava estranhamente deserta. Um único camburão
contornava um caminho de carros abandonados. Tom observou-o passar
enquanto Mistureba se encolhia atrás de umas latas de lixo.
— Vamos — Tom falou.
— Vão nos ver — Mistureba disse. — Vão me machucar.
— Não vão, não — Tom prometeu. — Olhe como está escuro.
Estavam no meio da Broadway, movendo-se de carro a carro quando as
luzes dos postes acenderam-se, repentinas e silenciosas. As sombras
desapareceram. Mistureba deu um ganido alto de medo.
— Venha — Tom lhe disse, apressado. Eles cambalearam para o outro lado
da rua.
— Parados aí!
O grito parou-os na beirada da calçada. Quase, Tom pensou, mas quase só
contava quando se jogava ferraduras e granadas. Ele se virou lentamente.
O policial usava uma máscara cirúrgica branca de gaze que abafava a voz,
mas seu tom ainda era profissional. Seu coldre estava desabotoado, a arma já
sacada.
— Você não precisa... — Tom começou a falar, nervoso.
— Cala a boca — o policial disse. — Vocês estão violando o toque de
recolher.
— Toque de recolher? — Tom perguntou.
— Você me ouviu. Não escuta rádio, não? — Ele não esperou a resposta. —
Mostrem as identidades.
Tom, cuidadosamente, baixou a valise e a sacola no chão.
— Sou de Nova Jersey — ele disse. — Estou tentando chegar em casa, mas
fecharam os túneis. — Ele pegou a carteira e a entregou ao policial.
— Jersey — o policial disse, examinando a carteira de motorista, e em
seguida a devolveu. — Por que não está em Port Authority ?
— Port Authority ? — Tom perguntou, confuso.
— O centro de liberação. — A voz do policial ainda era brusca e
impaciente, mas mostrava claramente que concluíra que eles não eram uma
ameaça. Ele devolveu a arma ao coldre. — Quem é de fora da cidade deve se
apresentar em Port Authority. Passa pelo médico, eles te dão um cartão azul e o
mandam para casa. Se eu fosse você, seguiria para lá.
A Rodoviária de Port Authority era um zoológico, na melhor das
circunstâncias. Tom tentou imaginar como estaria agora. Todo turista, trabalhador
de outro município e visitante na cidade estaria lá, junto com um monte de
assustados cidadãos de Manhattan fingindo ser de fora da cidade, todos eles
esperando sua vez por um médico ou lutando por um assento em um dos ônibus
que partiam da cidade, com a polícia e a Guarda Nacional tentando manter a
ordem. Não precisava de muita imaginação para conceber o tipo de pesadelo
que se desenrolava na 42nd Street.
— Eu não sabia. Vou direto para lá — Tom mentiu — assim que levar meu
amigo em casa.
O policial deu uma olhada séria para Mistureba.
— Cara, você está assumindo um grande risco. Dizem que o transmissor é
algum tipo de albino, e ninguém disse nada sobre cabeças extras, mas todos os
curingas se parecem no escuro, certo? Aqueles meninos da Guarda são bem
estressados também. Se virem uma dupla como vocês, talvez decidam atirar
primeiro e pedir identidades depois.
— Que porra é essa? — Tom perguntou, e a pergunta soou pior do que ele
poderia imaginar. — O que está acontecendo?
— É bom ligar o rádio de vez em quando — o policial disse. — Talvez evite
que você leve um balaço na cabeça.
— Quem vocês estão procurando?
— Um curinga desgraçado está espalhando um novo tipo de carta selvagem
pela cidade toda. Ele é forte pra burro e maluco. Perigoso. E está com um
amigo, um novo ás que parece normal, mas balas ricocheteiam quando batem
nele. Se eu fosse você, largaria o estranho aí e corria para Port Authority.
— Eu não fiz nada — Mistureba sussurrou.
Sua voz era baixa, quase inaudível, mas era a primeira vez que ele ousava
falar, e o policial ouviu bem o bastante.
— Cala a boca. Não estou a fim de ouvir curinga nenhum. Se eu quiser
ouvir sua voz, eu te falo.
Mistureba encolheu-se. Tom ficou assustado com o ódio na voz do policial.
— Não precisa falar com ele desse jeito.
Isso foi um erro, um grande erro. Acima da máscara cirúrgica, os olhos do
policial estreitaram-se.
— É mesmo? Quem é você, um daqueles maricas que gostam de transar
com curingas?
Não, idiota, Tom pensou, furioso, sou o Grande e Poderoso Tartaruga e, se eu
estivesse no meu casco agora, eu pegaria você e jogaria no lixo, que é onde você
deveria estar. Mas ele disse:
— Desculpe, oficial. Não quis ofender. É um dia difícil para todo mundo,
certo? Podemos ir embora agora? — Ele tentou sorrir enquanto pegava a valise e
a sacola. — Vamos, Mistureba — ele disse.
— O que tem nessa pasta e nessa sacola? — o policial perguntou de repente.
A cabeça do Modular e oitenta mil dólares em dinheiro, Tom pensou, mas
não disse. Ele não achava que estava infringindo qualquer lei, mas a verdade
provocaria perguntas que ele não estava preparado para responder.
— Nada — ele falou para o policial. — Algumas roupas.
Mas ele hesitou tempo demais.
— Por que não damos uma olhada? — o policial retrucou.
— Não — Tom soltou. — O senhor não pode. Digo, não precisa de um
mandado de busca ou um motivo, ou algo assim?
— Eu tenho um bom motivo bem aqui — o policial disse, sacando a arma.
— Estamos sob a lei marcial e temos autoridade para atirar em saqueadores na
hora. Agora, coloque os seus pertences no chão lentamente e se afaste, babaca.
Aquele momento parecia demorar muito, muito mesmo. Em seguida, Tom
fez o que o policial mandou.
— Mais para trás — o policial disse. Tom recuou até a calçada. — Você
também, feioso. — Mistureba afastou-se para perto de Tom.
O policial avançou, curvou-se e puxou uma das alças da sacola de compra
para olhar lá dentro.
A cabeça de Modular voou e bateu no meio da cara dele.
O sangue espirrou do nariz do policial com um estalo nauseante e manchou
a gaze da máscara. Ele soltou um grito abafado e cambaleou para trás. A cabeça
acertou-o na barriga, girando como uma bola de canhão. O policial grunhiu
quando despencou no chão. Caiu de bunda na rua.
A cabeça girou ao redor dele. O policial ergueu a pistola com as duas mãos
e atirou. O vidro em uma janela de segundo andar estilhaçou-se quando a cabeça
voltou e acertou a têmpora do homem. O policial bateu nela com o cano da
pistola; em seguida, algo arrancou a arma da mão dele e a fez deslizar até um
bueiro próximo.
— Filho de uma puta — o policial conseguiu dizer. Tentou ficar em pé, os
olhos tão vidrados quanto os de Modular. O nariz ainda sangrava; a máscara
cirúrgica havia assumido um tom vermelho vívido.
A cabeça voltou para um novo ataque. Dessa vez, o homem conseguiu
agarrá-la e controlá-la a poucos centímetros do rosto. O longo cabo que
balançava do pescoço cortado assumiu vida própria e serpenteou para dentro de
uma narina do policial, que gritou e agarrou o cabo. A cabeça voou para a frente,
as duas testas se chocaram. O policial desabou. A cabeça circulou ao redor dele.
O policial gemeu e rolou para longe, sem tentar se levantar.
Tom voltou a respirar.
— Ele morreu? — Mistureba perguntou num sussurro ansioso.
O coração de Tom ainda estava encharcado de adrenalina; levou um tempo
para as palavras saírem.
— Que porra — ele disse. Que diabos ele fez? Tudo aconteceu tão rápido.
A cabeça de Modular caiu, atingiu a sarjeta e rolou. Tom se ajoelhou sobre
o policial caído e sentiu o pulso.
— Está vivo — Tom disse. — Mas a respiração está fraca. Pode ter sofrido
uma concussão, talvez até rachado o crânio.
Mistureba se aproximou.
— Mate-o.
Tom virou a cabeça e encarou o curinga, horrorizado.
— Está maluco?
O rostinho horrendo e púrpura de macaco estava esticado para a frente,
atravessando a frente da camisa. A umidade brilhava nos lábios finos e apertados.
— Ele quis nos matar. Você ouviu, ouviu do que ele nos chamou. Ele não
tinha direito. Mate-o.
— De jeito nenhum — Tom falou. Levantou-se, limpou as mãos na calça
jeans compulsivamente. A tensão já havia se dissipado; sentia-se agora mais do
que um pouco enjoado.
— Ele sabe quem você é — Mistureba sussurrou.
Tom de alguma forma conseguiu esquecer aquilo.
— Merda, merda, merda — ele xingou. O policial tinha visto sua carteira de
motorista.
— Eles vão atrás de você — Mistureba insinuou. — Eles saberão o que você
fez e vão procurá-lo. Mate-o. Pode matar, não conto para ninguém.
Tom se afastou, balançando a cabeça.
— Não.
— Então mato eu — Mistureba disse. Os lábios se arreganharam para
mostrar incisivos amarelados, e o rosto enrugado esticou-se para baixo até a
garganta do policial. A camisa de Mistureba ficou solta onde estava a barriga. A
cabeça se lançou na carne macia sob o queixo do policial, sacudindo na ponta de
um metro do tubo transparente brilhante que o ligava ao torso do curinga. Tom
ouviu ruídos úmidos e de sucção ávida. Os pés do policial começaram a
tremelicar. O sangue esguichava, Mistureba engolia e sugava, o líquido grosso e
vermelho começou a subir pela carne grossa e vítrea do pescoço.
— Não! — Tom gritou. — Pare!
O rosto de macaco continuou a se alimentar, mas, sobre o corpo do curinga,
a segunda cabeça, a de astro de cinema, virou-se para encarar Tom com olhos
azul-claros e sorrir, beatífico.
Tom estendeu a mente para agarrar Mistureba com a telecinesia, ou tentou,
mas nada aconteceu. A fúria que o preenchera quando o policial os ameaçou
havia desaparecido; agora havia apenas horror e temor, e o poder sempre o
abandonava quando ele estava com medo. Ele ficou lá, impotente, mãos
fechando e abrindo enquanto Mistureba roía com dentes tão cruéis e afiados
como agulhas.
Então, ele saltou para a frente e agarrou o curinga por trás, abraçando o
torso deformado e puxando-o para trás. Por um momento, eles se atracaram.
Tom estava com sobrepeso e fora de forma, e nunca fora especialmente forte,
mas o curinga era tão fraco quanto disforme. Eles tombaram para trás,
Mistureba se debatendo um pouco nos braços de Tom até a cabeça se soltar do
pescoço rasgado do policial com um estalo suave. O curinga sibilou, furioso. O
pescoço longo e brilhante girou como uma serpente sobre o ombro esquerdo,
olhos pálidos encarando furiosos, insanos com a frustração. Dentes vermelhos
estalavam enlouquecidos, mas o pescoço não era longo o bastante.
Tom girou e lançou-o longe. As pernas desencontradas do curinga se
prenderam sob ele, e ele tropeçou e caiu com tudo na sarjeta.
— Vá embora daqui! — Tom gritou. — Vá embora daqui agora ou vou
fazer o mesmo que fiz com ele.
Mistureba chiou, a cabeça balançando para a frente e para trás. Em
seguida, com a mesma velocidade que surgiu, a sede de sangue desapareceu, e
mais uma vez o curinga se encolheu de medo.
— Não — ele sussurrou —, por favor, não. Eu só quis ajudar. Não me
machuque, senhor. — Seu pescoço se encolheu de volta para dentro da camisa,
uma enguia transparente, longa e grossa, voltando ao covil, até restar apenas o
pequeno rosto assustado, tremendo entre os botões. Nesse momento, Mistureba já
havia se erguido. Lançou a Tom o último olhar suplicante, em seguida girou e
começou a correr, braços e pernas trabalhando de forma grotesca.
Tom parou o sangramento do policial com um lenço. Ainda havia pulso,
mas era fraco, e o homem obviamente perdera muito sangue. Ele esperava não
ser tarde demais.
Olhou ao redor para os carros abandonados e partiu na direção de um. Joey
o ensinara uma vez como fazer uma ligação direta; esperava com todas as forças
que ainda lembrasse.
♣ ♦ ♠ ♥
Mortalidade
Corra.
A consciência abriu caminho através da mente como um raio. Parecia vir
em explosões, como linhas de texto de uma impressora a laser muito rápida...
mas não, era mais complexo que isso. Um mestre tecelão formava a maior e
mais intrincada tapeçaria do universo, tudo numa questão de segundos, e fazia
tudo no cérebro.
Os olhos se abriram. O fogo de santelmo reluziu diante dele como uma
aurora polar. Um ruído agudo atacou os ouvidos. Ondas subsônicas moviam-se
através de seu corpo como as marés.
O ruído diminuiu. Os circuitos internos correram verificações na velocidade
da luz. O radar riscou uma imagem em seu cérebro e a sobrepôs nos sistemas
visuais.
— Todos os sistemas monitorados estão em funcionamento — ele se ouviu
dizer.
O fogo de santelmo fluorescente se desvaneceu, revelando vigas de telhado
nuas e tortas, uma claraboia entreaberta com o vidro pintado de preto por dentro,
diagramas pregados às pressas nas paredes, cabos elétricos pendurados. Os
ventiladores elétricos causaram uma grande agitação no ar. Algo no quarto se
moveu, captado primeiro pelo radar, em seguida pelo sistema visual.
Reconheceu a figura, o homem alto e grisalho com nariz de falcão e olhos
desdenhosos. Maxim Travnicek. Um sorriso frio entortava os lábios de Travnicek.
Ele falava com um sotaque da Europa central.
— Bem-vindo, torradeira. A terra dos vivos o aguarda.
Meia hora depois, carregando dois sacos de lixo cheios de caixas de fast-food, o
androide abriu a claraboia, flutuou através dela, cruzou o telhado, em seguida
desceu pelo duto de ar que levava ao beco atrás do prédio. Sua intenção era jogar
o lixo em uma caçamba que ele sabia estar esperando no beco.
Seus pés tocaram o concreto quebrado. Sons ecoaram no beco. Respiração
funda, um gemido gutural. Um som estranho, lírico, como de um pássaro.
No Bairro dos Curingas, os sons podiam significar qualquer coisa. A vítima
de um assalto sangrando contra a parede de arenito; Homeleca, o triste e horrível
curinga, com dificuldade para respirar; um sem-teto apagado e tendo um
pesadelo; um cliente da Freakers que bebera demais ou tivera muitas visões
grotescas e tombara para vomitar até as tripas...
O androide foi cauteloso. Abaixou os sacos de lixo em silêncio até deixá-los
no chão e flutuou sem fazer ruído a poucos metros acima da superfície. Girando
o corpo na horizontal, ele espiou o beco.
A respiração ofegante vinha de Travnicek. Ele estava com uma mulher
contra a parede, investindo contra ela com as calças abaixadas até os tornozelos.
A mulher usava uma máscara feita sob medida sobre a parte de baixo do
rosto: uma curinga. A parte superior do rosto não era desfigurada, mas também
não era bonita. Não era jovem. Usava uma bata justa, uma jaqueta prateada e
uma minissaia vermelha. Suas botas plásticas eram brancas. O som trinado vinha
de trás da máscara. Uma rapidinha num beco estava custando a Travnicek cerca
de 15 dólares.
Travnicek murmurou algo em tcheco. O rosto da mulher era impassível. Ela
observava a parede do beco com olhos sonhadores. O som musical que fazia era
algo que provavelmente soltava a todo momento, um som apartado do que ela
estava fazendo. O androide concluiu que não queria mais observar aquilo.
Deixou o lixo no duto de ar. O som trinado o perseguiu como uma revoada
de pássaros.
♠
A primeira coisa que o androide viu foi um televisor. Seu tubo havia implodido.
Um cabide de metal estava encaixado no lugar de uma das antenas quebradas.
Havia uma cama de campanha no meio do recinto. O colchão estava
embalado em plástico. Não havia lençóis. Mobília barata atravancava o restante
do quarto.
O androide recuperou seu corpo e se ergueu no meio do cômodo. Ouviu
vozes no recinto ao fundo. Sua artilharia se moveu na direção do som e travou
em posição.
— Alguma coisa quebrou todos os vidros. — A voz era rápida, fervorosa,
estranhamente intensa. — Algo estranho está acontecendo.
— Talvez uma onda sônica. — Outra voz, mais grave. Com certeza mais
calma.
— As xícaras nas prateleiras? — A voz era muito insistente, falava tão
rápido que as palavras se encavalavam. — Alguma coisa quebrou as xícaras nas
prateleiras. Ondas sônicas não fazem isso. Não em Nova York. Alguma outra
coisa deve ter feito isso. — O homem não esqueceria o assunto.
Modular pairou até a entrada. Os dois homens estavam na minúscula
cozinha do apartamento, inclinados espiando o pequeno refrigerador. Leite e suco
de laranja pingavam das bordas da pequena geladeira.
O homem mais próximo era jovem, de cabelos escuros, belo como um
astro de cinema. Estava de jeans azuis e uma jaqueta Levi’s. Segurava o pedaço
de uma jarra na mão.
O outro era magro, pálido, nervoso e com olhos rosados.
— Qual de vocês é Croy d Crenson? — perguntou o androide.
O homem de olhos rosados virou-se e deu um grito.
— Você explodiu! — ele berrou e, com velocidade impressionante, pegou
uma arma sob a jaqueta.
Modular concluiu com plena certeza que aquilo soava como consciência
pesada. O teto era baixo demais para ele manobrar sobre o primeiro homem,
então estendeu um braço enquanto se movia para a frente, com a intenção de
prender o segundo homem dentro da geladeira e chegar perto do albino.
Mas este não se moveu quando o androide o empurrou. Ele nem mesmo
mudou de postura, parcialmente escorado pelo refrigerador. Modular parou,
atônito. Empurrou com mais força. O homem endireitou o corpo, sorriu e não se
moveu.
O suposto Croy d acionou sua pistola automática. O som ribombou no
cômodo pequeno. O primeiro disparo errou, o segundo afundou a pele plástica no
ombro do androide e o terceiro e quarto tiros atingiram o companheiro de Croy d.
O homem ainda assim não reagiu, nem depois de ser alvejado. As balas não
ricochetearam ou se achataram no impacto, apenas caíram no encerado riscado.
Balas não funcionam, o androide pensou. Nem pense no canhão.
Modular afastou-se, desceu até o chão e desferiu um murro direto no peito
do jovem. O rapaz não se moveu, nem sequer se abalou. As balas de Croy d
estalavam enquanto cruzavam o ar. Algumas delas acertaram o amigo, nenhuma
acertou o androide. Ele esmurrou de novo, com força total. O resultado foi o
mesmo.
O jovem golpeou, o soco devolvido tinha uma rapidez incomum. O punho
acertou Modular e o lançou para trás, fora da cozinha. O androide atravessou o
velho painel de lata da parede mais ao fundo e também as palhetas de persiana
no outro lado. O pó da tinta com uma dúzia de camadas de grossura caiu como
neve cinzenta das paredes antigas. Luzes vermelhas de dano acenderam-se na
mente do androide.
Modular ergueu-se da parede — o longo tubo do canhão ficou preso e exigiu
um golpe de ombro para soltá-lo. Ele viu o albino avançar com velocidade sobre-
humana, o refrigerador erguido nos braços. O androide tentou sair do caminho,
mas a parede o atrapalhou, e Croy d se movia muito rápido. O refrigerador
lançou Modular de volta à parede, alargando o buraco. Suco de laranja
chapinhava no interior da geladeira.
Modular acionou seus geradores de voo e voou para a frente, agarrando o
refrigerador e usando-o como um aríete. Croy d perdeu o equilíbrio e entrou
rodando na sala principal, os braços agitados, antes que a cama de campanha o
acertasse atrás dos joelhos, e ele despencasse no chão. O androide continuou
avançando, empurrando o refrigerador com força total sobre o companheiro de
Croy d.
O homem ainda não se movia. O fogo de santelmo encheu o corredor
quando os geradores do androide entraram em força total. O homem ainda não
se movia.
Esqueça disso. Parta para cima de Croyd.
O androide soltou o refrigerador e alterou o padrão de voo para seguir na
direção do albino. Muito rápido, antes que ele pudesse se mover alguns
centímetros, o jovem golpeou com o outro braço, e um antebraço bateu contra o
alto do refrigerador.
Modular voou novamente contra a parede, entrando no apartamento de
alguém dentro de um aquário de sessenta litros, na parede exterior. Pedaços da
consciência do androide fragmentaram-se com o choque. Uma enchente verde
foi despejada sobre o carpete. Peixes tropicais começaram a morrer.
Um momento pulsava sem-fim em sua mente. Não conseguia lembrar seu
objetivo, não conseguia reconhecer as escamas brilhantes espalhadas que se
debatiam desesperadas diante de seus olhos. Os sistemas automáticos lentamente
reordenaram suas lembranças.
O dia e seu longo advento de desespero voltaram. Ele se destacou da
parede. Suas energias precisavam de carga. Não conseguiria ficar insubstancial
naquele momento, e não poderia voar. O canhão de 20 mm pendia sobre um
ombro. O laser parecia intacto.
O apartamento era decorado com cuidado, com gravuras abstratas, um
tapete oriental, mais aquários. Um móbile pendia próximo ao teto. O morador
parecia não estar em casa. A distância, ouviu o som de polícia se aproximando. O
androide passou pelo buraco até o apartamento de Croy d, viu que o albino e seu
companheiro haviam fugido e subiu de escada até o loft de Travnicek. No
caminho, sua consciência desapareceu duas vezes, por intervalos de meio
segundo. Quando ele a recuperava, movia-se mais rápido.
Ouviu os passos pesados da polícia lá embaixo.
Travnicek abriu a porta quando ele bateu. Os pés estavam descalços, e todos
os dedos haviam caído. Uma coisa azul e peluda estava começando a crescer em
cada ferimento.
— Maldita cafeteira — Travnicek disse.
O androide sabia que aquilo não melhoraria.
— Croy d não foi tão problemático quanto o outro. — O androide havia tirado o
macacão e estava arrumando o furo na carne sintética. O canhão estava sobre a
mesa. Teria que conseguir um substituto no arsenal do exército onde havia
encontrado o primeiro.
Travnicek estava trabalhando nos componentes quebrados. Ele disse à
polícia que ouviu tiros, mas ficou com medo de descer para telefonar pedindo
ajuda. Aceitaram a explicação sem comentar e não entraram no apartamento
onde o androide ficou escondido num armário.
— Nada foi muito danificado, torradeira — Travnicek disse. — O monitor
de campo se soltou. Por isso estava perdendo a consciência. Vou prender o
desgraçado de uma vez por todas. Tirando isso, apenas umas coisinhas aqui e ali.
Ele se empertigou. Os olhos ficaram vidrados.
— Comutador de função de renormalização danificado — ele disse. —
Substituir imediatamente. — Sacudiu a cabeça, franziu a testa por um momento,
em seguida virou-se para o androide. — Abra o peito novamente. Acabei de
lembrar uma coisa.
Travnicek estava coçando uma das mãos perto das juntas dos dedos. Ele
baixou os olhos, percebeu o que estava fazendo e parou. Parecia um pouco
pálido.
— Depois que eu te arrumar — ele disse —, você volta para a rua. Esse tal
Croy d deve estar usando seu poder para transformar mais gente. Isso vai dar a
você uma pista da localização. Quero você procurando por ele.
— Sim, senhor. — O peito do androide abriu. Percebeu que a nuca de seu
criador estava começando a inchar, e que a carne tinha um tom nitidamente azul.
Decidiu não fazer menção à mudança.
O androide patrulhou a noite toda, buscando nas ruas figuras familiares. Seu
receptor interno de rádio estava sintonizado para qualquer alerta, tanto da faixa
da polícia como da Guarda Nacional. Numa edição matutina do Times roubada
de uma pilha próxima a uma banca de jornal fechada, ele descobriu que houvera
meia dúzia de casos de carta selvagem nas duas horas seguintes a sua luta com
Croy d. Três dos casos no Bairro dos Curingas, os outros três eram de pessoas
viajando juntas em um expresso número 4 partindo para o norte pela Lexington
Avenue. Croy d e seu companheiro pegaram o metrô ao menos na parada da
42nd Street.
Também descobriu numa edição da Newsweek que encontrou num cesto de
lixo que Croy d e seu protetor desconhecido haviam combatido e neutralizado um
grupo de curingas liderado por Tachy on poucos dias antes.
Ele queria ter sabido disso antes. Embora o artigo não desse mais detalhes,
talvez saber que a dupla era perigosa tivesse feito diferença.
Enquanto pairava sobre as ruas, os olhos e o radar procurando por imagens
familiares, ele repassava a luta no apartamento. Tentou derrubar o desconhecido,
e ele não se moveu. Socos atingiam-no e paravam. Quando o androide tentou
atropelá-lo com o refrigerador, o movimento simplesmente parou. Balas não
ricocheteavam no homem, apenas perdiam sua energia e caíam no chão.
Perdiam sua energia, o androide pensou. Perdiam sua energia e morriam.
Portanto, o desconhecido absorvia energia cinética. Em seguida, a
transformava e usava no próprio ataque. Precisava ser atingido primeiro,
Modular percebeu, porque ele parecia precisar absorver o ataque do androide
antes de contra-atacar.
A satisfação tomou conta da mente do androide. Tudo que ele precisava
fazer para evitar o outro cara era não o atingir. Se ele não tivesse energia para
absorver, não poderia fazer nada.
E, se as coisas dessem errado, o androide poderia usar o laser de micro-
ondas como último recurso. O desconhecido absorvia energia cinética, não
radiação.
O androide sorriu. Agora tinha uma carta na manga para o próximo
encontro.
E tudo que precisava fazer era encontrá-los.
Às 14h31, duas pessoas tiraram a Rainha Negra na 47th Street, perto da Praça
Hammarskjold. O rádio chiou com comandos da polícia de Nova York e da
Guarda Nacional pedindo reforços no prédio das Nações Unidas, no caso de
Croy d querer fazer algum movimento na ONU.
Modular estava sobre o local segundos após o alerta. Duas vítimas estavam
estiradas na rua à distância de um quarteirão, uma jazia parada, o corpo
transformado em algo monstruoso, a outra se contorcia de dor enquanto os ossos
se dissolviam e ela era esmagada pelo peso do próprio corpo. Ambulâncias
verde-oliva do MASH estavam se aproximando, seguidas a distância pela
ambulância da cidade com a sirene ligada. Não havia nada que Modular pudesse
fazer pelas vítimas. Fez um voo rápido de busca sobre o quarteirão, em seguida
começou a voar em círculos cada vez mais amplos. Outra vítima do carta
selvagem a oeste dos outros, na Third Avenue, deu outro ponto focal para sua
busca.
Em seguida, viu um dos alvos, o companheiro de cabelos castanhos de
Croy d. Estava vestido como o androide o vira da última vez, jaqueta Levi’s e
jeans. Estava caminhando na 48th Street, refazendo seus passos, e se movia
rapidamente, as mãos nos bolsos e olhar fixo nos pedestres adiante.
Modular voou para trás de um parapeito de um prédio do outro lado da rua,
em paralelo a ele, movendo a cabeça para manter a vigilância sobre o alvo.
Havia pouco tráfego de pessoas, e o androide achou fácil segui-lo. O jovem não
olhava para cima. As sirenes das ambulâncias uivavam ao longe.
O jovem começou a se mover para o norte, na Second Avenue. Ele
caminhou três quarteirões e, em seguida, empurrou a porta giratória do prédio
claro de um banco.
O androide pairou sobre o prédio do outro lado da rua enquanto decidia o
que fazer, depois voou rapidamente pela Second Avenue e desceu ao solo, com
cuidado para não deixar que seus movimentos pudessem ser vistos da porta
frontal do banco. As pessoas de máscaras brancas abriram bastante espaço para
ele na calçada.
O androide ficou insubstancial e atravessou a grossa parede do banco, em
seguida enfiou o rosto na lateral. O guardião de Croy d havia atravessado o
saguão do prédio, passado pelos guichês de caixa e falava com um guarda
gorducho e grisalho que estava sentado num banquinho perto de uma das portas
traseiras. O guarda assentiu, apertou um botão e uma porta corrediça se abriu. O
jovem entrou no elevador e a porta se fechou.
Modular saiu do prédio. Aparentemente, o companheiro de Croy d estava
seguindo para um cofre. O androide passou através do pavimento, assustando
alguns pedestres.
Embora a visão estivesse escura, o sistema de navegação interno o
mantinha perfeitamente alinhado. Ele desceu, em seguida avançou. A parte de
cima da cabeça, que continha olhos e radar, moveu-se hesitante através de uma
parede: o androide percebeu uma caixa-forte gigantesca com uma funcionária
atrás de uma mesa, de costas para ele. Pilhas de notas novas, cada uma enrolada
cuidadosamente com papel, estavam sobre a mesa.
Cofre errado. O androide afastou-se para trás, seguiu de lado, avançou de
novo e entrou numa fileira de cofres.
Caixa-forte correta. Permanecer insubstancial estava drenando suas
reservas de energia: não poderia ficar assim por muito tempo.
O companheiro de Croy d estava marchando com outro guarda até uma
grande caixa. Ele e o guarda inseriram as chaves, e o jovem puxou a caixa. O
androide memorizou a localização, em seguida observou o posicionamento de
todas as câmeras e monitores de segurança.
Sua energia estava se esgotando. Ele se afastou, subiu até a calçada, tornou-
se substancial, voou sobre o telhado do outro lado da rua e pousou.
Provavelmente o conteúdo da caixa de depósito não importava, embora, se o
conteúdo se provasse relevante, ele sempre poderia voltar.
O companheiro de Croy d ficou no banco por mais dez minutos, o que
permitiu uma recarga completa para o androide. Quando o homem surgiu,
começou a retraçar os passos para sul, virando a oeste na 50th Street para evitar
ambulâncias e a polícia militar erguendo postos de controle na 47th, em seguida
partiu às pressas para a Lexington Avenue, onde virou para sul novamente. O
androide o seguiu, voando de telhado em telhado. Sua presa foi para o sul na 44th,
depois para oeste para passar por uma das entradas laterais da Grand Central
Station.
O androide ficou insubstancial e voou através da parede no segundo andar
da estação. Pousou na sacada de mármore polido e observou a presa passando
pela porta embaixo dele.
A estação estava quase deserta. As entradas das plataformas estavam
guardadas por soldados do Exército com boinas pretas. Estavam com
equipamento de guerra biológica completo, gorros e máscaras de gás abaixados,
mas prontos. O companheiro de Croy d foi até uma escadaria que levava ao
andar de lojas e desceu.
O androide o seguiu, movendo-se com cuidado, tornando-se insubstancial
quando necessário para espiar os cantos. O jovem desceu mais, através de uma
porta de serviço com a tranca quebrada, depois para os túneis dos trens que se
estendiam para o norte da estação. Escoras de ferro enferrujadas apoiavam o
que parecia ser o meio de Manhattan. Às vezes, lâmpadas ofereciam uma luz
difusa. O lugar cheirava a umidade e metal. O androide, mantendo o alvo em
vista com o radar, seguiu-o sem dificuldade.
Ele encontrou um cadáver, um homem com várias camadas de roupas
esfarrapadas, cujo corpo parecia ter se calcificado, transformando o mendigo
numa figura agachada com um olhar de horror e dor permanentemente
esculpido no rosto. Bem, Croy d estivera ali. Havia outro corpo a uns cem metros
adiante, uma mendiga velha com as bolsas agarradas ao redor. O androide olhou
mais de perto.
Não era a mendiga que conhecera. O androide ficou aliviado.
— Conseguiu pegar? Conseguiu? — A voz ansiosa do albino saltava da
escuridão.
— Sim.
— Deixa eu ver.
— Um monte de chaves. Envelope com dinheiro.
— Me dá a chave do cofre.
O androide se esgueirou para mais perto. O estrépito de um trem se
aproximando vinha do norte.
— Aqui está. Não deveria ter se arriscado lá fora.
A voz rápida do albino era tingida pela desconfiança.
— Não sei se posso confiar em você. E sua assinatura não estava no cartão.
— O guarda mal olhou para mim. Acho que estava bêbado.
— Me dá a arma.
— Essa coisa é pesada. O que é?
— Automag .44. A arma mais poderosa já feita. — Croy d encaixou um
coldre de ombro embaixo do braço. — Se o robô vier atrás da gente, quero poder
afundá-lo. Essa coisa usa balas de fuzil da OTAN.
— Meu Deus.
O albino disse alguma coisa, mas Modular não conseguiu ouvir. O trem
estava se aproximando. Seu farol delineava os pilares de ferro. Croy d e o
companheiro começaram a se mover na direção de Modular. Em silêncio, o
androide levitou até o teto sujo, pairando à sombra de uma viga.
A luz amarela já brilhava nos pilares de ferro quando o trem avançou para o
sul, sem parar. O ruído ecoou no espaço cavernoso. Croy d e seu guarda-costas
passaram embaixo do androide.
Croy d ergueu os olhos, de alguma forma alerta — talvez tenha visto o
androide pairando com sua visão periférica. O albino gritou alguma coisa
abafada pelo som do trem e agarrou a pistola com incrível velocidade. O
companheiro começou a se virar.
Modular desceu do teto, os braços agarrando o albino por trás. O trem
banhou a cena como a luz gritante de um cinema. Croy d gritou, tentou se debater
de um lado para o outro. Sua força era consideravelmente maior que a de um ser
humano normal, mas não se igualava à do androide. Modular ergueu-se no ar, as
pernas envolvendo Croy d, e começou a voar para o sul. O vento do trem o
impulsionou.
— Ei...! — O companheiro corria atrás deles, agitando um braço. — Traga
ele de volta!
A arma gigante, ainda presa na axila de Croy d, disparou para baixo através
do casaco de Croy d. Um tiro ricocheteante tirou faísca de uma escora de ferro.
O guardião de Croy d se desviou. Saltou diretamente no trajeto do trem.
Houve uma explosão de luz, um som estalado. O trem parou. O jovem foi
lançado quinze metros adiante nos trilhos. Quando atingiu o chão, ouviu-se um
pequeno estouro de eletricidade entre ele e o trilho mais próximo.
O homem ficou em pé. À luz do farol do trem, o androide conseguiu ver seu
sorrisinho.
Modular fez um breve cálculo da quantidade de energia cinética causada
por um trem totalmente carregado a uns 25 quilômetros por hora. Embora o
guardião de Croy d não tivesse absorvido tudo, e o excesso tivesse vazado num
estouro de luz — felizmente seus poderes tinham alguns limites —, o total do que
ele absorvera era surpreendente. O laser do androide chiou ao rastrear o homem
em pé nos trilhos.
O homem agachou-se, apoiando os pés contra o trilho, e pulou. Deu o salto
para ficar à frente do androide e interceptá-lo. O homem cambalhotou no ar, era
claro que não estava acostumado a percorrer distâncias daquela forma, em
seguida atingiu uma escora e caiu ao chão. Sem eletricidade dessa vez. Ele se
ergueu e olhou para o androide que se aproximava com os dentes cerrados. Suas
roupas fumegavam.
Cálculos rápidos passaram pelos circuitos macroatômicos, seguidos pelo
arrependimento com velocidade da luz. Modular nunca havia alvejado uma
pessoa antes. Não queria fazê-lo agora. Mas Croy d estava matando pessoas,
mesmo em esconderijos, mesmo nos túneis embaixo da Grand Central Station. E,
se o guardião de Croy d pusesse as mãos no androide, faria seu esqueleto de liga
metálica em pedacinhos.
O androide atirou. Em seguida, estava caindo, os braços amolecidos. Croy d
foi ao chão. O androide estatelou-se aos pés do jovem, que estendeu a mão e
agarrou-o pelos ombros. O androide tentou se mover, mas não conseguiu.
Modular percebeu que o protetor de Croy d não absorvia apenas energia
cinética. Absorvia qualquer tipo de energia e podia devolvê-la instantaneamente.
Erro crasso, ele pensou.
De repente, estava voando novamente. Ele bateu contra a lateral de um
trem intermunicipal e atravessou-a, esparramando-se vários assentos depois
sobre um monte de vidro e alumínio retorcido. A valise de alguém tombou no
corredor, papéis voaram. O androide ouviu um grito.
Seus sensores registraram o cheiro de queimado.
As poucas pessoas a bordo — executivos cujo trabalho os forçava a entrar
na cidade em quarentena — correram em seu auxílio. Erguendo-o de sua queda
desajeitada pelos assentos, eles o deitaram com cuidado no corredor.
— O que é isso na cabeça dele? — perguntou um homem grisalho de
bigode.
As imagens de radar haviam desaparecido. Sua unidade de controle fritara
quando o guarda-costas de Croy d devolveu o pulso de micro-onda
correspondente. O monitor que controlava sua capacidade de se tornar
insubstancial havia apagado. Sua sobrepele de liga metálica tinha um belo
buraco. O excesso de energia havia estourado vários disjuntores. O androide
reiniciou o máximo que pôde deles e sentiu o controle voltar aos membros.
Alguns disjuntores não reiniciaram.
— Perdoem-me — ele disse e se levantou. As pessoas se afastaram. O trem
chacoalhou quando começou a se mover de novo, e o androide tombou para trás,
girando os braços, e caiu sentado no corredor. As pessoas correram novamente
até ele. Sentiu as mãos que o ajudavam no lado direito, mas não no lado
esquerdo. Equilíbrio e coordenação ainda estavam afetados. Ele reorientou os
circuitos internos, mas ainda havia algo de errado.
— Com licença. — Ele abriu o zíper e puxou a metade superior do
macacão. Os passageiros do trem arfaram. Carne plástica estava escurecida ao
redor do ferimento. Modular abriu o peito e fuçou lá dentro com uma das mãos.
Alguém se afastou e começou a passar mal, mas os outros passageiros pareciam
interessados, uma mulher ficou em pé no assento e estendeu o pescoço para
espiar o interior do androide através dos óculos de tartaruga.
O androide retirou uma de suas unidades internas de orientação, viu as
conexões derretidas e suspirou mentalmente. Devolveu a unidade ao lugar. A
viagem para casa seria bem sacolejante. Certamente não poderia voar.
Olhou para as pessoas no trem.
— Alguém teria cinco dólares para eu pegar um táxi? — ele perguntou.
A viagem até o Bairro dos Curingas foi humilhante e perigosa. Alguns passageiros
ajudaram-no a sair da estação, mas mesmo assim ele caiu algumas vezes. Com
algum dinheiro que recebera do homem de bigode, ele pegou um táxi no outro
lado do quarteirão até o prédio de Travnicek. Empurrou o dinheiro através da
fenda do vidro à prova de balas do táxi, em seguida cambaleou para a calçada.
Ele andou um pouco, arrastando-se um pouco pelo beco até o prédio de
Travnicek, em seguida subiu pela escada de incêndio até o telhado. De lá,
engatinhou até a claraboia e desceu para dentro do apartamento.
Travnicek estava deitado na cama de campanha, nu até a cintura. A pele
estava azul-clara. Cílios que se contorciam, cobertos por pelos longos, cresceram
onde estavam seus dedos dos pés e das mãos. Uma mosca zumbia sobre sua
cabeça.
A pele inchada ao redor do pescoço havia rachado, revelando um colar de
órgãos. Alguns eram reconhecíveis — orelhas em formato de trompete, olhos
amarelados, alguns normais em tamanho, outros não —, mas outros órgãos eram
impossíveis de reconhecer.
— Os únicos fantasmas de movimento à esquerda — ele murmurou — são
fantasmas de reparametrização. — Sua voz era grossa, indistinta. O androide teve
a intuição de que os lábios talvez estivessem crescendo. E as palavras pareciam
meio estranhas, como se ele não mais compreendesse inteiramente seu sentido.
— Senhor — Modular disse. — Senhor, fui danificado de novo.
Travnicek sentou-se com um estalo. Os olhos reunidos ao redor do pescoço
giraram para se concentrar no androide.
— Ah, torradeira. Você parece... muito interessante... assim. — Os olhos em
seu crânio estavam fechados. Talvez, o androide pensou, para sempre.
— Preciso de reparos. O companheiro de Croy d refletiu meu laser de volta
para mim.
— Por que você atirou nele, liquidificador? Todas as formas de energia são
iguais. O mesmo que a matéria, até certo ponto.
— Eu não sabia.
— Imbecil. Acho que deveria ter herdado um pouco da minha inteligência.
Travnicek saltou do catre, movendo-se muito rápido, mais rápido que um
ser humano normal. Agarrou uma viga de telhado com uma das mãos, girando
para ficar de cabeça para baixo. Plantou os pés no teto, os cílios cabeludos
estendidos, em seguida retirou a mão da viga e ficou invertido. Olhos amarelos
encaravam o androide o tempo todo.
— Nada mau, hein? Não me sentia tão bem há anos. — Ele se movia com
cuidado pelo teto na direção do androide.
— Senhor. O controle de radar está queimado. Perdi um estabilizador. Meu
controle de fluxo está danificado.
— Já ouvi. — A voz era serena, flutuante. — Na verdade, eu não apenas
ouço, mas percebo você com todos os sentidos. Só não sei ainda o que alguns
deles são.
Travnicek agarrou outra viga do telhado, balançou-se até o chão e se soltou.
A mosca zumbia levemente a distância. A tristeza aumentou na mente analógica
do androide. Um chiado crescente de medo, como ruído branco, sibilava o tempo
todo no fundo dos pensamentos.
— Abra o peito — Travnicek ordenou. — Me passe o monitor. Há uma
unidade de orientação sobressalente no armário.
— Tem um buraco no meu peito.
Os olhos amarelos fitaram-no. O androide esperou um surto.
— Melhor você arrumar — Travnicek disse, afável. — Quando tiver tempo.
— Ele pegou o monitor de fluxo e foi até uma bancada. — Está ficando difícil
pensar em tudo isso — ele confessou.
— Preserve sua genialidade, senhor. — Modular tentou não deixar seu
desespero transparente. — Combata a infecção. Trarei Croy d aqui.
Um toque ácido tingiu a voz de Travnicek.
— Certo. Faça isso. Agora me deixe aqui com as minhas coordenadas
fermiônicas, tudo bem?
— Sim, senhor — disse Modular, levemente tranquilizado.
Ele cambaleou até o armário e começou a procurar um novo giroscópio.
♦
— Não quero ter que caçá-los — Modular disse. — Se me virem de novo, vão
fugir. E vão espalhar a praga durante a fuga.
— Muito bem. — Os olhos violeta de Tachy on reluziram enquanto as mãos
brincavam com as lapelas de veludo do casaco lavanda. Sua pistola .357 e o
coldre estavam sobre a mesa diante dele. Na parede do escritório, ao lado de um
conjunto de títulos honorários, estava uma placa em vermelho, branco e azul
com o texto: O HOMEM: HARTMANN. O ANO: 1988. O PLANO: O FUTURO
DE NOSSAS CRIANÇAS.
— Meu esquadrão curinga pode ser útil. Alguns deles já provaram ser
capazes de fazer vigilância sem ser percebidos.
— Ótimo. Eu deveria ficar aqui com seu pessoal mais poderoso. Então,
poderíamos sair juntos.
O conteúdo da caixa de depósito de Croy d estava espalhado na mesa de
Tachy on, e ele olhava para as coisas.
— Há apenas três endereços que ficam em Manhattan — Tachy on disse. —
Suspeito que ele esteja tentando um desses antes de procurar túneis e pontes.
Sophie Cega pode usar a audição apurada para ouvir o que estiver acontecendo
atrás de uma janela fechada, usando as vibrações da janela como um
diafragma. Vazante é motorista de táxi, portanto discreto... talvez ele pudesse
fazer interrogatórios que na boca de outra pessoa pareceriam suspeitos. —
Tachy on franziu o cenho. — Contudo, o companheiro de Croy d... aquele jovem
cavalheiro bonito vai ser um osso duro de roer.
— Lutei com ele duas vezes. Mas acho que sei como seu poder funciona.
Tachy on o encarou. Inclinou-se na mesa, empurrando pistola e coldre, a
expressão intensa.
— Diga mais, senhor.
— Ele absorve energia e a devolve. Pode atacar apenas depois de ser
atacado. Absorve todo tipo de energia, cinética, radiação...
— Psiônica — Tachy on murmurou.
— Mas se você não acertá-lo primeiro, ele não tem nenhuma energia a
mais que uma pessoa normal. Então, seja lá o que acontecer, não podemos
atacá-lo. Apenas ignorá-lo, não importa o quanto ele se faça de alvo tentador.
— Sim. Muito bom, Modular. Merece uma distinção.
O androide olhou para Tachy on e a apreensão girou em sua mente.
— Preciso pegar Croy d o mais rápido possível. Eu não sou suscetível ao
vírus carta selvagem, então acredito que deva lidar com ele sozinho... ele tem
força suficiente para atravessar seus trajes bioquímicos. Sou poderoso o bastante
para subjugá-lo, se eu não tiver que me preocupar com mais ninguém.
— A tarefa é sua.
Mais simples do que ele esperava.
A sensação de triunfo instalou-se no androide. Ele seria capaz de capturar
Croy d e levá-lo a Travnicek sem interferência.
Finalmente as coisas pareciam se ajeitar.
♠
O telefone tocou na mesa de Tachy on. O alienígena puxou o fone de uma vez.
— Tachy on falando. — Modular viu os olhos violeta de Tachy on dilatarem-
se com interesse. — Muito bom. Merece uma condecoração, Sophie. Fique aí até
chegarmos. — Ele pousou o fone no gancho. — Sophie acredita que eles estão no
apartamento da Perry Street. Consegue ouvir duas pessoas, e uma delas está
falando sem parar, como se estivesse sob efeito de estimulantes.
O androide ergueu-se rápido. Sua bolsa de emergência já estava preparada,
e ele a pendurou nas costas. Tachy on apertou um botão no telefone.
— Diga para o esquadrão se aprontar — ele disse. — E, depois de um
intervalo suficiente, informe a polícia.
— Vou voar na frente — o androide disse. Ele abriu as portas e quase
atropelou um negro magro e empertigado que estava bem do lado de fora, na
sala da secretária. Vestia um traje bioquímico e uma máscara preta e branca da
morte com penas. Seu cheiro era terrível, de mofo e carne podre. Um curinga.
— Perdão, senhor — o homem disse. Sua voz era educada, como de um
barítono de teatro. — Poderia me levar com o senhor?
O software de Modular teceu sub-rotinas rápidas para eliminar o cheiro do
homem de suas entradas sensoriais.
— Eu o conheço?
— Sr. Covafunda. — Uma mesura rápida. — Sou membro do esquadrão
curinga do bom doutor.
— Não pode seguir com eles na ambulância?
O androide sentiu um sorriso por trás da máscara dramática.
— Acredito que, no confinamento de um automóvel, meu odor se torne
bastante... avassalador.
— Entendo.
— Covafunda. — A voz de Tachy on era estrangulada. — O que está fazendo
na sala da minha secretária? Estava tentando ouvir a conversa?
— É Sr. Covafunda, doutor. — A voz grave de ator era ríspida.
— Perdão. — A voz de Tachy on era anasalada.
— Respondendo à sua pergunta, estava esperando para falar com nosso
amigo artificial. Gostaria de poupar os outros membros do esquadrão do fardo do
meu... perfume.
— Certo — o alienígena disse entredentes. — Faça como quiser, Modular.
O androide e o Sr. Covafunda saíram da clínica com um trote rápido, e
Modular envolveu o curinga com os braços por trás e ergueu-o no ar. O vento
desarrumou as penas da máscara do Sr. Covafunda.
— Senhor — o androide disse. — O senhor possui outras habilidades além
de, hum...
— Meu cheiro? — A voz grave era desprovida de diversão. — Claro que
tenho. Além de cheirar como se estivesse morto, tenho os poderes da morte.
Posso trazer o frio do túmulo para meus inimigos.
— Isso me parece... útil. — Louco, o androide pensou. O curinga havia
cheirado tanto seu perfume que ficara maluco.
— Também sou rápido e potente — o Sr. Covafunda acrescentou.
— Bom. Croy d também. — Rapidamente o androide falou sobre o albino e
suas capacidades, e também sobre o guarda-costas. — Ah, sim — ele
acrescentou —, Croy d está carregando uma arma. Uma Automag .44.
— Uma arma afrontosa. Deve estar se sentindo inseguro.
— Fico feliz que não se importe.
O prédio marrom da Perry Street entrou no campo de visão lá embaixo.
Modular aterrissou a favor do vento, a poucos metros de uma mulher de meia-
idade, magra e de cabelos longos usando óculos escuros e carregando uma
bengala branca. Estava em pé à sombra da entrada. A mulher ergueu os olhos.
Seu nariz se retorceu.
— Covafunda — ela disse.
— Sr. Covafunda, se não for pedir muito.
— Nesse caso — disse Sophie Cega — Sou Srta. Yudkowski.
— Nunca me dirigi à senhorita de forma diversa.
Um par de orelhas, redondas como de um rato de desenho animado,
pareceram inflar ao lado da cabeça, erguendo-se como balões atravessando a
cortina de cabelos longos e escuros. Ela inclinou a cabeça na direção de Modular.
— Olá, seja lá quem for. Não o ouvi até agora.
— Eu não sabia que fazia barulho.
— Estão um pouco atrasados, cavalheiros — Sophie disse. — A dupla saiu
faz poucos minutos. Logo depois que eu voltei do telefonema.
O aborrecimento faiscou através dos circuitos do androide.
— Por que não nos disse?
— Deus me livre de interferir quando o Sr. Covafunda está me corrigindo.
— Para onde foram?
— Não disseram. Acredito que pegaram a saída dos fundos.
Sem dizer mais nada, Modular agarrou o Sr. Covafunda novamente e se
ergueu no céu. Rapidamente percorreu o distrito, com o radar à procura. O Sr.
Covafunda ficou passivamente em seus braços. Em silêncio, o androide pensou,
como um túmulo.
— Estamos a caminho. — A voz de Tachy on chiou nos receptores de
Modular.
— Temos um problema — Modular disse, enviando ondas de rádio
silenciosas na direção da clínica. Ele explicou rapidamente.
— Continuaremos a rumar na sua direção, Modular — Tachy on falou.
— Lá — disse o Sr. Covafunda, apontando. Um par de imagens de tamanho
humano se destacou da sombra de um pilar de ferro enferrujado que ajudava a
escorar a deserta West Side Express Highway.
O androide ficou surpreso. O curinga tinha uma incrível visão noturna. Ele
pairou em silêncio na direção da dupla. Precisava chegar a quase trezentos
metros antes de ter certeza de que eram Croy d e seu companheiro.
A inquietude o agitou. Da última vez ele quase morrera.
Sua luz é muito intensa. A voz de Kate ecoou em sua mente.
Os dois estavam carregados: o jovem levava um pacote volumoso, e Croy d
carregava um motor de popa sobre um ombro. Croy d falava sem parar, mas o
androide não conseguia ouvi-lo. Os dois caminhavam com agilidade por uma rua
de concreto danificado e pararam numa cerca de alambrado que separava um
píer do rio Hudson do continente. O albino deixou sua carga no chão, verificou o
cadeado e a corrente que trancavam o portão e quebrou o ferrolho com um
rápido giro de dedos. Os dois atravessaram o portão e passaram por uma guarita
deserta com janelas estilhaçadas.
O píer estava deserto. Exceto por alguns barcos presos ali por quarentena, o
porto de Nova York estava vazio, um contraste para o agito na costa de Jersey.
— Vão tentar sair da ilha — disse o Sr. Covafunda.
— É o que parece.
— Ponha-me no chão. Posso lidar com eles.
— Um momento. Preciso contatar Tachy on. — Ele enviou uma mensagem
de rádio para Tachy on, não ouviu resposta, e precisou se erguer 150 metros para
seus pulsos chegarem à ambulância. O Sr. Covafunda movia-se, irrequieto.
— O que está fazendo, homem? Estão fugindo. Deixe-me no chão.
Assim que ouviu uma resposta, Modular desceu rapidamente. Enfrentar
Croyd de novo, ele pensou. Lembrou-se dos primeiros momentos de existência, a
luta confusa ao redor do Empire State Building, os cabelos loiros de Cy ndi
revoando como uma estrela brilhante sobre a mão escura do macaco. Luz muito
intensa, ele pensou.
Ele soltou o Sr. Covafunda perto do portão. O curinga limpou-se.
— O que foi tudo aquilo? — ele questionou.
— Explico mais tarde.
Os dois saltaram ao som de um gemido próximo. O alarme do androide
desapareceu quando viu um homem gorducho e inconsciente perto da cerca,
uma garrafa de conhaque próxima da mão tatuada. O bêbado usava calças de
couro, botas e um boné da NYPD, a polícia de Nova York. Seu peito estava nu e
trazia anéis de aço pendurados nos mamilos.
Modular fixou essa visão na memória. Uma visão para guardar, pensou.
— Não podemos esperar — o curinga disse. — Aqueles dois vão escapar
antes de a ambulância chegar.
O Sr. Covafunda virou-se e removeu a máscara. Não havia deformidade
facial que Modular pudesse ver de longe. O curinga puxou o capuz e a máscara
de gás e começou a se mover com velocidade até o píer, seguindo um par de
trilhos enferrujados. Seus pés caminhavam em um silêncio surpreendente.
— Espere — disse Modular. — Eles vão vê-lo.
O curinga não prestou atenção. Foi até a beirada do píer, abaixou-se sob
uma balaustrada e desapareceu. O alarme soou na mente de Modular. Ele se
ergueu no ar e volteou embaixo do píer.
O Sr. Covafunda ainda avançava, caminhando nas tábuas antigas e corroídas
de cabeça para baixo, o passo enérgico, o Hudson escuro e silencioso rolando
embaixo da cabeça. O androide voou para perto dele.
Uma possibilidade lhe ocorreu. A mente rodou exames e verificações
cruzadas.
A possibilidade foi confirmada em mais de 90%. Constituição, talentos, raça,
idade aproximada... tudo batia. Os sotaques eram muito diferentes, e as vozes
substancialmente diversas quanto a tom e timbre, mas as verificações de
determinadas palavras-chave mostraram uma correspondência surpreendente.
Por que, Modular imaginou, Atravessador ficaria tão fedido e se disfarçaria
como curinga?
Ou aquela era outra manifestação do carta selvagem do Atravessador?
Talvez ele fosse Atravessador parte do tempo, e quando começava a cheirar mal
se transformava no Sr. Covafunda.
Talvez fosse apenas maluco. Por que alguém se disfarçaria de curinga?
Decidiu não mencionar suas conclusões ao ás invertido ao seu lado.
— Não disse que podia andar de cabeça para baixo — ele disse.
— Não? — A voz era abafada pela máscara. — Às vezes me esqueço de
algumas coisas.
— Mais alguma coisa que você pode fazer que eu deva saber?
Modular começou a ouvir a voz de Croy d. O Sr. Covafunda olhou-o.
— Psiu. Silêncio.
O androide sentiu um sorriso sombrio por trás da máscara.
— Silencioso como o túmulo.
Eles continuaram. O Sr. Covafunda atravessou com facilidade um
emaranhado de madeira e suportes de metal do píer que se agigantavam ao
redor como as costelas de um animal gigante e extinto. A voz de Croy d
aumentou. Modular lembrou-se da chuva de estrelas flamejantes que sinalizou a
descida do Enxame. Luz muito intensa.
— Nunca tive uma porra de uma chance — Croy d falou. — Meu Deus.
Nunca aprendi nada sobre a merda do mundo. Nem álgebra. Nem nada. — Ele
riu. — Eu ensinei a eles uma coisa ou duas. Fique comigo, garoto. Vamos ensinar
umas lições muito interessantes para eles, você e eu.
O androide pensou em Cy ndi, Alice e nas outras. Não nos conhecemos da
fuga do macaco? Ele pensou na luz muito intensa e tentou fazer o movimento
preciso, perfeito. Tentou encontrar a maravilha na situação, voando embaixo do
píer com a água lenta esperando embaixo dele; e um ás disfarçado,
provavelmente insano e de cabeça para baixo, caminhando com passos decididos
ao seu lado.
No meio do píer havia uma escada de madeira que descia até as águas
escuras. A voz de Croy d parecia estar bem acima deles.
— Tudo bem, garoto. Vamos lá. Siga o velho Dorminhoco. Eu sei como
sobreviver neste mundo.
O Sr. Covafunda virou-se para o androide e gesticulou. Apesar da falta de
jeito dos trajes, o significado era claro: você voa pelo lado oposto do píer, eu
espero aqui.
Ótimo, o androide pensou. Eu ataco e, enquanto eles estiverem me matando,
Covafunda ataca por trás. Excelente.
— Me dá o pacote, rapaz. — A voz de Croy d.
Não parecia haver tempo para entrar numa discussão com o Sr. Covafunda.
O androide voou para trás do píer, desviando das escoras de metal, e em seguida
surgiu do outro lado.
Croy d estava ao lado da escada, encarando seu companheiro e, por
coincidência, o androide. O amigo de Croy d estava com uma pequena faca e
havia cortado o cordão e o papel que embalava seu pacote.
Croy d ficou alerta.
— Merda! O robô!
Seu braço ergueu-se num movimento veloz, e ele pegou a arma.
De novo não, pensou o androide. Ele acelerou, rumando direto para o
albino.
Croy d fazia movimentos frenéticos para puxar a arma. A imensa pistola
prateada parecia ter ficado presa embaixo do braço. Seu companheiro, sem a
velocidade sobre-humana do outro, virou-se lentamente e se pôs entre Croy d e o
androide em ataque.
As escolhas pulularam nos circuitos do androide. Ele não podia atingir o
guarda-costas de Croy d, não sem carregá-lo com energia, e não podia chegar a
Croy d sem atropelar o outro. Ele mergulhou para a superfície do píer, aterrissou
sobre as mãos e tropeçou. Farpas rasgaram seu macacão. Ele parou aos pés do
jovem. O homem o encarou.
Ouviu-se o som de tecido rasgando. Com um grito triunfal, Croy d conseguiu
desprender a arma e mirá-la. Pílulas pretas espalharam-se sobre a neve suja,
caindo de um bolso interno rasgado.
O Sr. Covafunda ergueu-se por trás de Croy d, repentino e sinistro como um
espectro. A mão enluvada estendeu-se e se fechou sobre a arma. Ele puxou para
trás, e a Automag disparou com um som parecido com o fim do mundo.
O curinga soltou um grito quando o coice da arma atingiu sua mão. A pistola
caiu com um estampido na superfície do píer. A bala, que havia atingido o
guarda-costas de Croy d nas costas, também caíra.
Ops, pensou Modular.
O jovem mergulhou para cima dele, o punho direito fechado. Modular rolou
para se esquivar. O homem girou para cima dele, queimando sua carga de poder
enquanto socava as tábuas. O androide deu um chute para cima, lançando o
homem de costas no píer. Provavelmente havia conferido uma pequena carga ao
homem, mas nada com que se preocupar.
Croy d, nesse meio-tempo, bateu o cotovelo no peito do Sr. Covafunda. O
curinga cambaleou para trás e bateu no corrimão. Pregos enferrujados
gemeram. Croy d agarrou o motor de popa, olhou sobre os ombros e jogou-o
com toda a força, não nos inimigos, mas no guarda-costas. Tentando carregar a
energia, o androide pensou.
Ele voou diante do motor, que bateu com tudo em seu ombro, jogando-o
para trás. O companheiro de Croy d ergueu as mãos para cima e agarrou os pés
do androide. Dedos enterravam-se com força desesperada na carne plástica.
O Sr. Covafunda tomou impulso no corrimão e acertou Croy d por trás com
o antebraço. Croy d girou com os dedos em forma de garra. Seus olhos rosados
faiscavam com um brilho assassino. Ele arranhou o curinga, tentando rasgar-lhe
o traje. O Sr. Covafunda se desviou. Os dois se moviam com velocidade sobre-
humana.
Modular ergueu-se no céu. O jovem agarrou-se corajosamente às pernas
do androide. Chutá-lo, o androide pensou, serviria apenas para deixá-lo mais
forte.
De repente, Croy d estremeceu. Arfou, abraçou a cintura. O ar agradável do
verão de repente ficou alguns graus mais frio.
O frio do túmulo, o androide pensou. Não era uma metáfora elaborada. O
curinga estava falando sério.
Luzes brilharam na outra ponta do píer. Uma sirene uivou. A ambulância da
Clínica do Bairro dos Curingas havia chegado.
Croy d cambaleou para trás. Agarrou o pacote, jogou-o no Sr. Covafunda. O
curinga desviou-se com facilidade, e o pacote caiu na água.
— A morte é fria, sr. Crenson — disse o Sr. Covafunda. Sua voz grave de
ator soou além da máscara, sobre o som da ambulância que se aproximava. — A
morte é fria, e eu sou frio como a morte.
O curinga ergueu o punho cerrado, e a temperatura caiu ainda mais. Croy d
cambaleou, ficando de joelhos. Seu rosto branco havia azulado. Seu companheiro
deu um grito indignado e soltou-se sobre o píer com a Automag bem diante de si.
Agarrou a arma e apontou para a figura em trajes bioquímicos.
Croy d caiu de cara no chão. Seus membros tremiam sem controle.
O androide mergulhou em velocidade máxima. A arma disparou com o
estalo de um trovão. Um projétil pesado atingiu a subestrutura de metal de
Modular e se desviou para dentro da noite. A energia da arma começou a girar o
androide. Incapaz de parar a tempo, ele bateu contra o corrimão de segurança e
lançou-se sobre o Hudson. Estabilizou o giro e começou a fazer a volta para
continuar a luta.
As luzes da ambulância piscavam sobre o píer. Lá embaixo, o pacote estava
inflando automaticamente ao toque da água. Um bote de borracha.
O Sr. Covafunda, ainda se movendo com velocidade incrível, afastou-se do
guarda-costas de Croy d. O jovem teve dificuldade em manejar a pesada arma.
Atirou duas vezes e errou as duas.
O Sr. Covafunda ergueu o punho.
— Não! — Modular gritou.
A temperatura caiu de novo. O guarda-costas de Croy d cambaleou e
despencou, a arma caindo-lhe da mão.
Funcionou, o androide pensou, atordoado. Em seguida, ele percebeu que a
habilidade do Sr. Covafunda não disparava frio, mas roubava calor. Com a
energia sendo retirada, e não aplicada, o talento do guarda-costas não tinha
qualquer serventia.
Modular fez um loop no ar, desceu até o albino, agarrou Croy d pelo
colarinho e pelo cinto. Freios berraram quando a ambulância parou. Curingas em
trajes bioquímicos saíram às pressas. Gargalhadas ribombaram por trás da
máscara de gás do Sr. Covafunda.
O androide ergueu-se no céu com seu fardo trêmulo e acelerou. Curingas
perplexos, as máscaras dando a eles uma visão afunilada, espreitaram o céu,
tentando ver para onde ele e Croy d tinham ido.
Modular sacudia Croy d como um boneco de pano.
— Por que você me explodiu? — ele gritou.
Os dentes de Croy d estavam batendo com tanta força que era difícil
entender o que dizia.
— Pareceu uma boa ideia na época.
Os prédios passavam a toda a velocidade embaixo dele. A fúria avançava
dentro do androide. Ele sacudiu Croy d novamente.
— Por quê?
Croy d começou a se debater. Modular suprimiu os movimentos
descoordenados do albino com facilidade.
Ele percebeu que havia vencido. Com cuidado, tentou guardar aquela
sensação.
♣
Travnicek, com uma roupa nova feita sob medida, estava com uma mulher no
deque de observação do Aces High. Os cabelos dela eram loiros e
encaracolados, o vestido leve, decotado e quase transparente. Usava botas de
plástico brancas. Travnicek inclinou-se para ela, as línguas azuis lambiscando a
partir do colar de órgãos, deixando rastros úmidos no rosto da mulher. Ela
estremeceu e se afastou.
— Que merda, cara. Você não está me pagando para isso.
Travnicek enfiou a mão no bolso e puxou um rolo de notas.
— Quanto mais você quer?
Ele ergueu uma nota de cem dólares.
A loira hesitou. Seu rosto assumiu traços de determinação.
— Muito mais.
Hiram passou como um fantasma, os olhos voltados para o restaurante, mas
sem ver nada.
— Meu Deus. — A voz de um cliente pairou sobre o som da multidão. —
Hiram não costumava permitir esse tipo de coisa aqui.
Modular encolheu-se e se virou. Sua cadeira perto da janela do restaurante,
a uma distância da plataforma suficiente para ouvir o que acontecia, lhe dava
uma visão melhor de Travnicek do que ele queria.
Havia algumas experiências das quais não conseguia gostar.
Kate olhou para o casal e acendeu um cigarro.
— Que abordagem.
— Parece funcionar muito bem.
Ela o olhou.
— Senti uma certa ironia no seu comentário. Conhece aquele cara?
— Já nos conhecemos.
— Tudo bem. Não vou mais perguntar.
Travnicek, rindo, entregou para a mulher um rolo de notas. Suas línguas, ou
fosse lá o que fossem, continuaram a explorar a mulher. Ouviam-se sons de nojo
no bar.
Ignorando a confusão, a garçonete de cabelos vermelhos foi até a mesa.
— Sobremesa? — ela perguntou.
— Sim — o androide disse. — Crostata, torta de laranja e a torta de
zabaione com chocolate.
— Sim, senhor. Alguma coisa para a senhora?
Kate olhou para Modular e mostrou a língua.
— Não para mim. Estou contando calorias.
— Muito bem. Café?
— Aceito. Obrigada.
Kate bateu a cinza do cigarro no cinzeiro. Era uma mulher pequena, com
cabelos castanhos desgrenhados e os olhos cálidos de Jeanne Moreau.
— Não sei se Epicuro aprovaria esse tipo de gulodice — ela comentou.
— Meus dias estão contados. Quero provar de tudo. — Ele sorriu. — Além
disso, eu não ganho calorias.
— Só ampères. Eu sei. — Ela pegou a mão dele e deu um apertozinho. —
Você está bem? Agora que caiu do Olimpo e está vivendo entre os mortais?
— Acho que estou me acostumando. Mas ainda não sei se gosto.
— E seu criador?
— A genialidade foi embora.
— Então você está liberado.
— Não. Ainda sou obrigado a obedecer-lhe. Também combato inimigos da
sociedade no tempo livre. — E arrombo cofres, ele pensou, embora não o
dissesse. Usando um disfarce para ninguém me reconhecer.
Ela parecia perturbada.
— Queria que houvesse algo que pudéssemos fazer.
— Não parece haver.
— Ainda assim. — Ela deu um trago no cigarro. — Você poderia aprender
física. Metalurgia. Esse tipo de coisa. Poderia manter você em pé.
— Sim. Eu poderia me matricular numa escola noturna.
— Por que não em tempo integral?
Ele deu de ombros.
— Por que não?
Kate riu.
— Podem impedir uma pessoa de entrar na sala de aula por não pagar a
matrícula. Não sei se vale para uma máquina.
— Posso descobrir.
O androide olhou sua companheira.
— Obrigado. Você me ajudou a ver as coisas com outra perspectiva.
Ela sorriu.
— De nada. À disposição.
A cabeça de uma pessoa apareceu sobre a sacada do deque de observação.
Era o Atravessador. O androide o encarou, lembrando o Sr. Covafunda. Por que
alguém se disfarçaria de curinga?
O jovem ás passou pela sacada e entrou no bar.
A garçonete trouxe o carrinho de sobremesas e uma jarra de café. Kate,
olhando com ódio para as sobremesas, empurrou a cadeira para trás.
— Preciso ir ao toalete. E então — ela suspirou — tenho que voltar para
Estácio e companhia.
A garçonete empurrou o carrinho de sobremesas para permitir que um
cliente passasse. O androide reconheceu o indescritível homem de cabelos
castanhos que estava no restaurante quando ele conversou com o Atravessador.
Ele acenou com a cabeça para o homem, mas falou para Kate.
— Obrigado por vir aqui comigo — ele disse. — Eu fiquei esperando que
uma emergência interrompesse o jantar. Uma invasão alienígena, uma fuga de
macaco gigante, alguma coisa.
Kate olhou-o, surpresa.
— Não ouviu falar do macaco?
O coração do androide pesou.
— Não.
— Ele não é mais macaco. Ele...
Modular ergueu a mão.
— Poupe-me dos detalhes.
O cliente magro de cabelos castanhos olhou para eles.
— Na verdade — ele disse —, eu sou o macaco.
O androide olhou para ele. O homem estendeu a mão.
— Jeremiah Strauss — ele disse. — Prazer em conhecê-lo.
O androide permitiu que sua mão fosse apertada.
— Olá — ele disse.
— Não faço mais o macaco. — Jeremiah Strauss parecia ávido por
companhia. — Mas ainda consigo fazer o Humphrey Bogart. Vejam isso!
O ex-macaco começou a se concentrar. Suas feições lentamente
começaram a se rearranjar.
— Não vou bancar o otário por sua causa, benzinho — ele sibilou. Seu rosto
talvez fosse parecido com o de Bogart dentro do caixão.
— Muito bom — Modular disse, constrangido.
— Querem ver o Cagney ?
Ele olhou para Kate, viu seu olhar vidrado.
— Talvez outra hora.
Strauss parecia envergonhado.
— Ansioso demais, hein? — ele disse. — Desculpe. Eu só não me recuperei
ainda. Se acha que foi ruim ficar morto por um ano, cara, experimente ser um
macaco gigante por vinte. Meu Deus, da última vez que ouvi falar em Ronald
Reagan ele era ator.
— Toalete — Kate falou. Ela olhou para Strauss. — Prazer em conhecê-lo.
Ela fugiu. Modular deu a mão para Strauss e se despediu.
A garçonete empurrou o carrinho de volta à mesa e entregou as
sobremesas.
— Tínhamos uma mensagem para o senhor uns dias atrás — ela disse e deu
uma piscadela. — Uma ligação da Califórnia. Mas pensei que talvez fosse uma
má ideia entregar a mensagem quando estava com outra moça. — Ela enfiou a
mão no bolso e entregou um bilhete rosa com a mensagem. Um número
interurbano estava escrito no alto do papel.
Bem-vindo de volta. Novo número de telefone. Ligue logo. Com amor, Cyndi.
P.S.: Seu coração voltou a funcionar?
Modular memorizou o número, sorriu e amassou o papel.
Alegria, ele pensou.
— Obrigado — o androide disse. — Se a moça ligar de novo, diga a ela que
a resposta é sim.
Ele estendeu a mão para as sobremesas.
Novas experiências estavam em todos os lugares.
♣ ♦ ♠ ♥
Laços de sangue
VI
Se a situação não fosse tão mortífera, talvez até fosse engraçada. Modular
desaparecendo sobre os telhados com Croy d nos braços, e o esquadrão curinga e
Tachy on com a boca aberta, estupefatos, acompanhando-os com o olhar. Troll
pigarreou, uma explosão de som como uma motoniveladora de estrada
movendo-se sobre o cascalho. Ele empurrou a figura amolecida de Bill
Lockwood para o takisiano como um homem apresentando sua caça.
— Bem, ao menos pegamos esse daí — ele disse, com timidez.
— De que adianta esse cara! Bem, talvez eu possa tratá-lo — Tach
murmurou, mal-humorado, e todos voltaram à clínica.
Poucas horas depois, a temperatura do homem misterioso estava voltando
quase ao normal. Ele ficou deitado, piscando meio grogue na cama do hospital,
preso por correias. Tachy on puxou uma cadeira e encarou o rosto belo e insípido.
— Você nos causou um monte de problemas, sabia? Por que diabos você
protegeu Croy d com tanto desespero? Você será responsabilizado diretamente
pela morte de centenas de inocentes!
Para constrangimento de Tachy on, o rosto jovem do homem contorceu-se,
e ele começou a chorar.
— Eu só estava cuidando de Croy d — ele balbuciou enquanto Tach limpava
suas lágrimas com o lenço. — Ele é a única pessoa que foi boa comigo. Ele me
deu rosquinhas. Ele me transformou num ás.
— Quem diabos é você?
— Não vai ler minha mente?
— Estou cansado e irritado demais para ler sua mente. — Tachy on sentiu
que, de alguma forma inexplicável, ele decepcionou o homem.
— Sou... era o Homeleca... mas não use esse nome! Sou um ás agora.
— Homel... — A voz de Tachy on desapareceu, e ele balançou a cabeça,
desconsolado.
As lembranças, como uma apresentação de slides trêmula, ampliaram-se
em sua mente. O horrível personagem coberto de muco fugindo do leão de
chácara que carregava um taco de beisebol na Freakers... os Príncipes
Demoníacos atormentando o curinga miserável até o sangue se misturar ao
muco verde... os nojentos sons das adenoides que saíam das caçambas onde
Homeleca dormia.
— Ah, pelas naves e ancestrais, ele transformou você num ás e você ficou
tão agradecido... — As palavras falharam de novo.
— O que vai acontecer comigo? — Bill Lockwood perguntou.
— Não sei.
Havia um tumulto crescente na recepção. Troll uivava como um búfalo
indignado, e a voz de Tina era alta e aguda. Um nome surgiu da cacofonia... o de
Tachy on.
Modular circulava no alto com Croy d enrolado num lençol como uma
múmia revoltada. Tachy on e Troll entraram aos tropeços em seus trajes, e o
androide jogou Croy d na câmara de isolamento. Tachy on havia se preparado
semanas antes; vidro de prisão de segurança máxima, uma porta de aço bem
reforçada. Estavam prontos.
Croy d abriu caminho através do vidro em menos de dois minutos. E
desapareceu embaixo de uma pilha de corpos que tentavam segurá-lo. Horas
depois, o vidro foi substituído, e uma cerca eletrificada estendida na parede.
Croy d atravessou-a em menos de um minuto. A eletricidade parecia agir
como estimulante.
Troll ergueu os olhos, com seus quase três metros sobre Croy d, preso com
algemas de aço nas mãos e nos pés.
— Doutor, não vou conseguir ficar sentado nele pro resto da vida.
Eles substituíram o vidro novamente. Tachy on discutia o uso de cortinas de
aço com os especialistas de segurança de Attica. Eles deram de ombros e
enfatizaram que aquelas paredes nunca aguentariam a tensão.
Então, Finn apresentou uma ideia maluca.
— Considere as vacas — ele observou, batendo gentilmente no chão com as
delicadas patas dianteiras. Victoria Queen quase saiu às pressas para buscar um
sedativo. — Elas são tão estúpidas que não caminham sobre linhas pintadas numa
estrada porque pensam que é uma cerca de pasto.
— Sim, mas Croy d é um homem, não uma vaca — Tachy on explicou com
paciência.
— Mas é muito sugestionável.
— Como você sabe?
— Eu o coloquei para dormir com um treinamento de ondas cerebrais e
sugestão, lembra?
Eles prenderam os terminais nele e tentaram o mesmo truque. Dessa vez
não funcionou. Então, eles pintaram barras na janela. E na porta.
Croy d ficou muito dócil depois disso.
Contanto que ninguém entrasse no quarto.
Por favor, durma. Durma, Croyd, por favor.
Tachy on fez essa oração todos os dias durante quatro dias, mas não havia
resposta do albino, que caminhava nervosamente dentro das paredes de vidro
pintadas da câmara de isolamento.
Tachy on tentou dar uma ajudazinha à natureza. Depois de o treinamento de
ondas cerebrais não ter dado certo, ele bombeou gás lacrimogêneo na sala, pôs
drogas na comida de Croy d. E Croy d continuava teimosa e infecciosamente
acordado. E, a cada hora que ficava acordado, o vírus sofria mutações.
Croy d era um holocausto ambulante. E uma decisão precisava ser tomada.
Tachy on olhou para suas mãos. Lembrou-se do coice da arma quando matou
Claude Bonnell. Lembrou-se da Mulher em Chamas. Lembrou-se de Rabdan.
Ideal. Estou cansado de lidar com a morte. Poupem-me, ancestrais, não
quero fazer isso de novo.
Peregrina sorriu para ele da cama do hospital, em seguida fez uma careta e
mordeu o lábio com força quando outra onda de dor a percorreu. Seus olhos azuis
estavam demasiadamente brilhantes, e suas maneiras alegres pareciam mais
maníacas que o normal. Tachy on teve compaixão. Precisou lutar para manter o
sorriso. Nas próximas horas, ela daria à luz, e os dois saberiam o que essa
experiência poderia fazer com o feto que agora lutava para se soltar do corpo
inchado da mulher.
Ele pousou a mão gentil na protuberância da barriga e sentiu a contração
estremecer os músculos.
— Cesárea talvez fosse mais fácil para o nosso garoto.
— Não. McCoy e eu estamos muito convictos quanto ao parto normal.
— Onde ele está?
— Lá fora, pegando café.
— Vocês ainda insistem em ficar tão juntos?
— Sim.
— Maridos sempre dão muito problema.
— Eu achei que você diria isso, Tachy querido. — Ela conseguia parecer
quase sexy, apesar de sua condição. — Aliás, não estamos casados. — Outro
espasmo, e ela arfou. — Quanto tempo mais?
— Ainda está no começo.
— Excelente.
— Mães de meia-idade. É mais difícil para vocês.
— Não me encoraja e agora me insulta.
— Desculpe.
Ela estendeu a mão para ele.
— Tach, eu estava brincando.
— Tente descansar. Vejo você em algumas horas.
— Combinado.
♦
McCoy estava aguentando muito bem. Ao menos não havia desmaiado e sido
arrastado para fora da sala de parto. Às vezes, ele até se lembrava de instruir Per
a respirar rápido, pressionar para baixo, respirar. As reações dela a esses
lembretes úteis eram diretas e pouco elogiosas. Outro grito rouco saiu de sua
garganta, e ela arqueou o corpo com a ajuda dos estribos.
Tachy on, com os olhos pairando entre os monitores e o colo do útero
dilatado, disse suavemente:
— Você está indo bem, Per. Só mais um pouco agora.
Ele expandiu sua mente e tocou a ainda não formada da criança que abria
caminho no canal de parto. Medo, fúria por ter seu confortável mundo arrancado
de forma tão abrupta. (Definitivamente, filho de Fortunato.) Tachy on acariciou e
tranquilizou aquela mente, observando a palpitação frenética diminuir.
Vai ficar tudo bem, homenzinho. Não me dê o desgosto de estar com a razão.
Quantas vezes ele havia se agachado entre os joelhos de mães, recebido
crianças que em seguida viravam mingau nas mãos? Muitas, demais.
Um estrondo o fez virar na banqueta em que estava, e o alienígena arfou,
surpreso, quando viu três homens armados atravessando as portas da sala de
parto. Peregrina ergueu-se nos cotovelos e encarou-os com ódio.
— AI, JESUS!
— Que diabos significa isso?
Tach afastou-se levemente do agressivo cano de Uzi apontado na sua
direção. Os outros intrusos simplesmente engoliram seco e encararam com
rostos vermelhos as partes de Peregrina.
— Vocês romperam a integridade estéril desta sala. Saiam!
— Estamos aqui para levá-lo.
— Estou um pouco ocupado agora. Estou fazendo um parto. FORA! — Tach
sacudiu as mãos enluvadas para enxotá-los.
— Vão à merda — McCoy gritou, fazendo exatamente o que Tachy on
havia rezado para que não fizesse.
O controle mental de Tach derrubou o cameraman e, quando tomou a
mente do atirador, este disparou rajadas pelo teto. O vidro das lâmpadas tilintou
ao redor dele.
— McCoy ! — Peregrina lutou para se soltar das mãos de Tina.
— Deite-se! Ele está bem. Ainda vai ser idiota por mais um dia.
— Libere meu camarada ou eu mato você. Um de nós dois vai matá-lo, ou
a essas mulheres — gritou o oriental nervoso. O Dr. Tachy on liberou o atirador.
— Agora, venha conosco.
— Cavalheiros, não sei por que estão aqui, ou quem são, mas estarei à
disposição depois de ter feito o parto desta criança. Não posso desaparecer pelo
ralo. Preciso sair por aquelas portas, então façam a gentileza de me esperar na
outra sala.
Ele puxou o banquinho na posição entre as pernas de Peregrina e retomou
seu silencioso monólogo interno e externo com mãe e filho.
— McCoy — ofegou Peregrina.
— Dormindo.
Os gritos e contrações de Per vinham em ondas. Tach não gostava da ideia
de pressioná-la, mas... De repente, o bebê deslizou. Levando a mão à vagina, ele
aninhou a cabecinha na palma da mão e ajudou John Fortune a chegar a seu
novo mundo.
Tach sentiu gosto de sangue e percebeu que havia mordido o lábio inferior.
Ele envolveu o bebê em ondas de calor, amor e conforto. Não mude! Não se
transforme! Pelo Ideal, não se transforme!
O bebê estava em suas mãos, um menino perfeito com uma cobertura
grossa de cabelos pretos. O muco foi sugado da boca, que formava um biquinho.
Erguendo-o, Tachy on massageou-lhe as costas, e o garoto soltou um berro
poderoso. Tach piscou para as lágrimas caírem, limpou sangue e muco do bebê e
deixou a criança sobre a barriga flácida da mãe.
— Ele está bem. Ele está bem. — Os dedos brincavam gentilmente pelo
corpo da criança chorosa.
— Sim, Per, ele é perfeito. Você tinha razão.
Os detalhes finais foram providenciados; cordão cortado, a criança recebeu
uma limpeza mais completa e foi enrolada em algodão de cordeiro. Tachy on e
Tina puseram Peregrina sobre a maca, em seguida levantaram McCoy
desmaiado sobre outra. Um rosto apareceu na janela da sala de parto. Tach
encolheu os ombros e ignorou.
— Doutor, o que está acontecendo? — sussurrou Tina.
— Não sei, minha cara, mas presumo que aqueles cavalheiros armados me
dirão.
♣
♦
As horas se arrastavam. A admiração de Tachy on por Bradly Latour Finn
aumentava a cada momento que passava. O pequeno curinga confortou os mais
velhos, alegrou os jovens e fez brincadeiras com as crianças. Seu sorriso
despreocupado nunca desapareceu. Nem quando os guardas, mais e mais
nervosos, lançavam palavrões ou pancadas em sua cabeça encaracolada. Nem
quando Victoria Queen berrou histericamente:
— Vamos todos morrer, e como você pode ficar assim tão calmo, porra?
— Sou estúpido demais para fazer diferente.
Ele trotou até Tachy on, as pontas das armas seguindo seu avanço através da
cafeteria lotada. Fez uma pausa breve ao lado de uma mesa onde Miolo não
parava de balbuciar. Assentiu com seriedade por vários segundos.
— Eu não poderia concordar mais.
— Senta! — gritou um dos guardas.
Finn afastou-se delicadamente até uma cadeira. Retorceu os quadris. Com
tristeza, balançou a cabeça e trotou até Tach. O alienígena suspirou com surpresa
ao perceber pela primeira vez a cauda do curinga. Havia sido cortada pouco
depois da raiz.
— Sua cauda!
— Vai enfeitar alguma jaqueta de Lobisomem.
Estupidamente, aquilo quase entristeceu Tachy on mais do que qualquer
coisa que havia acontecido até então.
— Sua cauda — ele se lamentou de novo.
— Vai crescer. Além disso, era muita vaidade da minha parte. — Ele se
inclinou. — Doutor, algumas dessas pessoas precisam de medicação.
— Eu sei.
Tachy on saiu da mesa e, com a mão pousada levemente no pescoço de
Finn, caminhou até Brennan. Era uma cena absurda. O alienígena nanico vestido
com calças curtas até o joelho, o jabô desamarrado caindo como uma cascata
espumante, os caracóis cor de cobre esvoaçando enquanto caminhava, e o
pequeno centauro palomino galopando como um cavalo lippizano ao seu lado.
— Várias dessas pessoas estão tomando medicamentos. Posso levar alguns
da minha equipe e pegar as drogas?
— Drogas. Parece bom — disse um Lobisomem, rindo.
— Dê o que a gente quer — Brennan disse.
— Não.
— MERDA! — Danny Mao esmagou um cigarro em uma salada do chef
enrolada em celofane. A ponta acesa atravessou o plástico e deixou uma mancha
preta no queijo e na carne. — Quanto tempo vamos ficar aqui?
— O quanto precisar — Brennan respondeu, seco.
— Caubói, deixe a gente matar uns desses feiosos desgraçados — Danny
Mao encarou com nojo os curingas encolhidos. — A gente vai fazer um favor
para eles.
Brennan cercou Tachy on.
— A garota.
— Não.
Por que está fazendo isso?
Por que você?
Mais vinte minutos se arrastaram em agonia. Tachy on, com os olhos
semicerrados, dedilhava uma sonata para violino nos joelhos, a cabeça
marcando o tempo da música silenciosa.
— Caubói, ele tem poderes mentais. E se ele estiver chamando o esquadrão
curinga agora mesmo?
Lee concordou com o único outro oriental do grupo.
— Danny está certo.
— Ele não vai pedir ajuda. Sabe dos riscos de um ataque lá fora. Quantos
deles — Brennan estendeu e girou o braço para mostrar os pacientes e a equipe
apavorados — serão mortos no tiroteio? — Ele avançou para Tachy on, os olhos
cinzentos e sérios. — Quantos deles teremos de matar como pagamento pela
traição?
— “Traição.” — Tachy on saboreou a palavra. Os olhos lilases encontraram
os cinzentos. Os cinzentos abaixaram-se primeiro.
— Tudo bem, então você não quer começar a apagar velhas doentes —
disse Danny, encarando uma com desgosto. — Mesmo se forem feias como um
cu sujo. Por que não usamos ele? — Estendeu o polegar na direção de Miolo, que
devorava com culpa um pedaço de torta e mantinha seu incessante monólogo. —
É para isso que estamos aqui.
Brennan limpou o suor.
— Não sabemos o que Tachy on poderia fazer com ele. É um metabolismo
alienígena.
Danny foi até um velhote, agarrou-o pelos cabelos grisalhos e grossos, e
enfiou o cano de sua Colt Py thon na boca sem dentes. Victoria Queen
choramingou. Uma agitação correu pelos reféns. Tachy on ergueu-se um pouco
da cadeira, em seguida afundou quando percebeu que o chinês estava
concentrado em Brennan.
— Não acho que você tenha o que é preciso, Caubói — Danny disse em um
tom perigosamente baixo. — Acho que foi um erro colocar você no comando.
Agora, ou você junta coragem e age, ou eu ajo.
— Tudo bem — gritou Brennan. — Vamos usar o Miolo.
Danny tirou a pistola da boca do curinga e encaixou a ponta do cano na
garganta de Tachy on. Suspiros e agitação correram pelos prisioneiros.
— Mas não aqui. Na sala dele. E Miolo. — O ás ergueu os olhos e
interrompeu sua mastigação enérgica. — Traga uma colher.
Brennan deixou cinco homens de guarda na cafeteria. Observou Tachy on
examinando os quinze homens que o cercaram no elevador. Era um olhar que
conhecia — um homem pesando a situação. Sem gostar da resposta.
Isida, meu roshi, o que vem primeiro? A busca da alma de um homem ou a
amizade transitória deste mundo?
Não houve resposta. De alguma forma, Brennan tinha a sensação de que,
mesmo se o velho estivesse presente, ainda assim não haveria resposta.
O rosto magro de Tachy on era sereno. Estava claramente resignado à
morte. Brennan duvidava que o alienígena a enfrentaria em silêncio. Tentaria
alguma coisa antes do fim.
Miolo arrotou e bateu na barriga.
— Não devia ter comido aquele pedaço de torta. Espero ter espaço para
esse aí. Ei, como vamos abrir a cabeça dele? — Os olhos de Tachy on
arregalaram-se. De repente, ele se dobrou e vomitou sobre os pés de Danny.
— Que merda! — o oriental gritou.
— Ler mentes não é um poder tão bacana, hein? — falou Brennan
entredentes. — Você descobre o que te aguarda. Lee, vá lá embaixo na sala de
cirurgia e traga uma serra.
— Por que não vamos direto lá pra baixo? — lamentou o garoto, tapando o
nariz contra o fedor.
— Porque não quero. — Tensão e fúria estalavam entre as palavras.
Eles entraram na sala de Tachy on, e Brennan fechou a porta com cuidado.
Danny puxou o cão da arma e riu sobre o ombro para Brennan.
— Eu cuido disso, Caubói. Acho que você não tem estômago para isso.
Não foi uma decisão consciente. Brennan simplesmente esticou a mão e
desligou as luzes. O brilho de Nova York formou um quadrado prateado ao redor
das cortinas fechadas, mas o restante da sala foi mergulhado numa escuridão
horrível.
Tachy on foi ao chão quando o brilho de dois canos de arma quase o
cegaram. Um corpo foi ao chão.
— Merda! Ele tem uma arma — ouviu Brennan berrar.
Pelos deuses, ele queria ter uma.
Empurrando com cotovelos e joelhos, Tachy on rastejou pelo carpete
grosso. Um pé o acertou com força nas costelas, e ele reprimiu um grito. O
homem tomou uma cabeçada, descarregando a Uzi numa longa rajada enquanto
caía. Alguém gritou.
Sentindo a maçaneta, Tachy on agarrou-a com a mão melada de suor, abriu
a porta com tudo e passou por ela correndo. Bateu-a rapidamente, e as balas
estouraram a madeira fina, salpicando o rosto do alienígena com farpas. Ele
correu.
Equilibrando-se com uma das mãos, ele virou no corredor no momento em
que a porta se abriu com tudo e a perseguição começou.
Novamente, a voz de Brennan.
— Metade de vocês vem comigo. Vamos pegá-lo.
Quinze que viraram catorze, que viraram treze, talvez até doze, se aquela
rajada de Uzi tivesse acertado um deles. Então, eram seis contra um. Situação
ainda terrível, e muitos para um controle mental, a menos que ele pudesse
separá-los, e ele não gostava dessa ideia de jeito nenhum.
Então, para onde ir?
“Este é o Lugar da Morte.”
Tachy on abriu a porta para as escadas e saltou como um cervo caçado,
subindo dois degraus por vez. Eles estavam na escadaria atrás dele.
“Mas o gamo viveu... Porque chegou primeiro à corrida pela vida.”
Era um risco desesperado. Precisava ser assumido. Dois andares abaixo,
seu pessoal estava encolhido. Se os perseguidores lembrassem, voltassem para
ameaçá-los...
Ele pegou as chaves, avançando num estouro final de velocidade. Seu
fôlego era um soluço na garganta seca. Não conseguia ver Croy d através da
ampla janela de observação da sala de isolamento. A tranca girou e ele
aguardou, mão na maçaneta. A matilha de caça já havia saído da escadaria,
latindo empolgada.
“Lá está ele!”
Ele entrou na sala com uma cambalhota. Passou direto por Croy d, que
estava agachado, esperando ao lado da porta. Mas não esperava um pacote
compacto, dobrado e rolando. Tachy on ergueu-se de pronto.
— Croyd, me ajude. Eles estão atrás de nós!
Uma mão quis alcançá-lo. Tachy on se desviou, deixando que a inércia
deixasse Croy d a um metro dele. Evitá-lo era sua única esperança. Se Croy d o
agarrasse, o ás o quebraria como vidro frágil. Os olhos vermelhos estavam
enlouquecidos, o rosto pálido entortado não era humano.
Os caçadores chegaram. Tachy on lançou-se num mergulho longo que o
levou para perto da cama. Croy d rosnou, confuso, caçando. Seus olhos
encontraram os do primeiro atirador. A Uzi avançou, mas o homem soltou um
uivo como um vapor sendo expelido de uma locomotiva e começou a derreter.
Dentro de segundos, ele afundou sobre os joelhos em uma poça cada vez maior
de borbulhante gosma rosa.
A mão de Croy d avançou para outro, agarrando a junção entre ombro e
pescoço. Tachy on empurrava-se desesperadamente contra a parede, ouviu ossos
estalando. O homem despencou com um pescoço quebrado. Gritos encheram a
sala.
De repente, uma labareda incandescente surgiu, e o caçador transformou-
se numa tocha humana. Dentro de segundos, tudo que restava era o fedor de
azulejo queimado e carne assada, e uma mancha escura no chão.
Um dos três sobreviventes disparou. A bala enterrou-se no pé descalço de
Croy d. Jogando a cabeça para trás, o albino uivou de dor. Agarrou a arma e
arrancou-a da mão do homem. Croy d avançou para acertá-lo com o cano. A
pele rachou e abriu quando a mira da arma rasgou a carne macia do rosto.
Aos pés de Tachy on, outro homem se contorcia. As convulsões eram tão
violentas que ele havia se curvado literalmente como um arco, a cabeça nos
calcanhares. Sangue corria de sua boca, onde ele havia partido a língua com os
dentes.
Rainha Negra. Sem manifestação curinga. Três de sete. Sangue e linhagem,
me permita viver. Quero viver.
O medo era uma coisa viva que o agarrava pelo pescoço, travando-lhe a
respiração nos pulmões. Tachy on lutava para recuperar o fôlego.
O garoto, Lee, estava no fundo da matilha. Aterrorizado, deixou a arma cair
e fugiu. Croy d atacou o lado do agressor, que caiu como uma marionete
ensanguentada, e correu em perseguição.
Tachy on, virando a cabeça como se o pescoço fosse feito de vidro,
observou a carnificina. Olhou seu corpo esguio. Deu um soluço de alegria.
Afastando-se da parede, ele agarrou uma Uzi e correu pelo corredor. A janela
sobre a escada de incêndio havia sido arrancada da parede. Olhando pelo buraco
deixado, viu uma figura sombria desaparecer entre os contêineres de lixo no
beco. Odiando-se, ele atirou, ouviu o zumbido das balas ricocheteando em tijolo e
metal, mas nenhum outro som. Croy d fugira.
Seus joelhos cederam, e ele quase caiu. Um braço forte deslizou ao redor
de sua cintura, e o takisiano soltou um grito de terror. Ele atacou com seu poder
mental e ficou paralisado quando reconheceu a mente.
— Brennan.
Tinham poucos minutos antes que a polícia chegasse. Tachy on estava sentado
atrás de sua mesa, serviu duas doses de conhaque e saudou o impassível humano.
— Considero você... um amigo. Obrigado.
Brennan estava recostado na cadeira, os pés com botas sobre a mesa. O
corpo de Danny espalhado no carpete ao lado dele.
— Levou muito tempo até eu me decidir.
— Você tinha muito em risco. Fico grato.
— Cala a boca. Já me agradeceu o bastante. Bem, melhor eu dar o fora. —
Brennan puxou um ás de espadas do bolso e jogou a carta sobre o corpo. — Dar
a todos eles algo em que pensar.
— A polícia... e quem mais?
— Como assim? — Brennan ficou tenso na porta.
— Quem está por trás disso? — O silêncio estendeu-se entre eles. — Daniel,
eu exijo saber. Você me deve isso.
O homem voltou-se devagar para encarar o alienígena.
— É perigoso.
— Está me dizendo algo que eu já não saiba? Esse homem molestou meu
povo, avançou sobre meu território e declarou guerra contra mim. Isso precisa
parar.
— E como você pretende conseguir isso?
— Fazendo com que ele acredite que sou mais perigoso para ele do que ele
para mim.
Um sorriso torceu a boca forte, desapareceu, começou a crescer em
estágios lentos. Tachy on observou fascinado. Foi a primeira vez que viu Brennan
sorrir.
— Esse é o meu objetivo.
Tachy on estava se sentindo muito animado quando voltou à clínica. Parou para
dar tapinhas alegres em cada leão de pedra, em seguida subiu as escadas num
trote. Croy d não poderia permanecer muito mais tempo acordado. Com certeza,
seu poder de contágio desapareceria na próxima transformação. Kien estava, por
ora, neutralizado. Óbvio que o vietnamita quebraria sua palavra, mas talvez
Brennan já tivesse alcançado seu objetivo até lá, e Kien não seria mais um
problema.
Tachy on seguiu para o porão e desligou a elaborada série de trancas
eletrônicas que protegiam seu laboratório particular. Era lá que ele fabricava a
droga para Angelical e perseverava em sua pesquisa por um vírus-trunfo
aperfeiçoado.
Era a força do hábito que o levava a tirar sangue e executar o teste XVTA.
Era óbvio que ele estava bem. O Ideal e os percentuais estiveram com ele na
última noite.
Ele deslizou a lâmina sob o microscópio eletrônico, concentrou-se e leu seu
destino na teia intrincada do carta selvagem. Com um grito, ele jogou a bandeja
de lâminas e tubos de ensaio no chão. Bateu os punhos na mesa, gritando “não”
para o resultado.
Calma, calma! Estresse pode despertar o vírus.
Em silêncio, ele se ajeitou na banqueta, sentou-se com as mãos
entrelaçadas e pensou. Se ele se manifestasse, provavelmente morreria.
Aceitável. Ele poderia se tornar um curinga. Inaceitável. O trunfo? Último
recurso.
Jane!
A ironia de um homem impotente sendo salvo pelo sexo lhe ocorreu, e ele
riu. Quando percebeu que a risada vinha da histeria e não do humor, ele se
conteve.
E o futuro?
Buscar Jane. Remover ao máximo o estresse da vida. Continuar a viver. A
casa Ilkazam não criava covardes.
E, o mais importante: Blaise.
O garoto era tudo que tinha agora. Seu sangue e semente estavam
envenenados. Não haveria outros filhos.
♣ ♦ ♠ ♥
Concerto para sirene e serotonina
VIII
Novamente estavam atrás dele. Se não podemos confiar nem mesmo em nosso
médico, ele se perguntou, com quem podemos contar? Os uivos das sirenes eram
quase um manto contínuo de ruído agora.
Ele arremessou pedaços de concreto, quebrou semáforos e avançou do
beco para a entrada. Agachou-se dentro de carros estacionados. Observou
helicópteros passarem, ouvindo o flup-flup contínuo das hélices. De tempo em
tempo, ouvia partes de apelos através de um ou outro alto-falante. Falavam com
ele, mentiam para ele, pediam que ele se entregasse. Ele riu. Nem que a vaca
tossisse.
Era tudo culpa de Tachy de novo? Uma imagem piscou em sua mente, o
pequeno avião de Jetboy avançando como um peixinho entre baleias imensas se
alimentando no céu meio nublado de uma tarde. Lá atrás, quando tudo começou.
O que havia acontecido com Joe Sarzanno?
Sentiu cheiro de fumaça. Por que as coisas sempre queimavam em
momentos de encrenca? Ele esfregou as têmporas e bocejou. Automaticamente,
procurou uma pílula no bolso, mas não havia nenhuma. Abriu com tudo a porta
de uma máquina de Coca-Cola em frente de um posto de serviços todo apagado,
estourou a caixa de moedas, em seguida colocou as moedas de volta no
mecanismo, pegou uma Coca-Cola em cada mão e se afastou, bebericando.
Depois de um tempo, viu-se diante do Museu Popular do Bairro dos
Curingas, esperando para entrar, e percebeu que o lugar estava fechado.
Ficou ali, indeciso, por talvez dez segundos. Em seguida, uma sirene soou
nas proximidades. Provavelmente bem na esquina. Ele avançou, quebrou a
fechadura e entrou. Deixou o preço da entrada na pequena mesa à esquerda e,
reconsiderando, acrescentou mais um pouco pela fechadura.
Sentou-se num banco por um momento, observando as sombras. De quando
em quando ele se levantava, caminhava e voltava. Viu novamente a borboleta
dourada, suspensa como se prestes a sair voando do grifo dourado, os dois
transmutados pelo ás Midas, morto prematuramente. Ele olhou novamente para
os jarros com fetos de curingas, e uma parte torta de uma porta de metal com a
marca do casco de Devil John.
Caminhou entre os dioramas dos Grandes Eventos na História do Carta
Selvagem, pressionando o botão várias vezes na parte Terra × Enxame. Cada vez
que ele apertava, Modular atingia um monstro do Enxame com seu laser. Em
seguida, localizou a estátua do Uivador gritando...
Apenas depois de ter dado o último gole na última Coca-Cola, ele percebeu
a pele humana diminuta, estufada, exposta numa caixa de vidro. Chegou mais
perto, apertando os olhos e leu o cartão que indicava ter sido encontrada num
beco. Ele respirou fundo quando o reconheceu.
— Pobre Gimli — ele disse. — Quem poderia ter feito isso com você? E
onde estão suas entranhas? Meu estômago revira quando vê essas coisas. Onde
estão seus gracejos agora? Vá até Barnett, diga a ele para pregar até todo o
inferno congelar. No fim, será a pele dele também.
Ele se afastou. Bocejou novamente. Seus membros estavam pesados.
Virando num corredor, encontrou três cascos de metal, suspensos por longos
cabos no ar. Parou e os observou, percebendo imediatamente o que eram.
Sem mais nem menos, saltou e deu um tapa no mais próximo dos três —
um chassi de fusca com placas blindadas. O chassi ressoou e girou nas amarras,
e ele saltou uma segunda vez e estapeou de novo antes de outro ataque de
bocejos.
— Tendo um casco, viajar — ele murmurou. — Sempre seguro aí dentro,
não era, Tartaruga... contanto que não esticasse o pescoço para fora?
Começou a rir de novo, em seguida parou quando se voltou para um que ele
lembrava com mais nitidez — o modelo dos anos 1960 — e não conseguiu
estender a mão alto o bastante para encostar no símbolo da lateral, mas leu “Faça
amor, não faça guerra”, o lema pintado em uma mandala em formato de flor.
— Merda, diga isso para os caras que estão tentando me matar. Sempre quis
saber como é lá dentro — ele acrescentou. Saltou e agarrou-se na beirada do
casco, puxando-se para cima.
O veículo sacudiu, mas aguentou facilmente o peso. Em um minuto, ele
estava acomodado lá dentro.
— Ah, doce claustrofobia! — ele suspirou. — Parece tão seguro. Eu
poderia...
Ele fechou os olhos. Depois de um tempo, começou a emanar uma luz bem
fraca.
♣ ♦ ♠ ♥
“Q ue fera rude...”
Leanne C. Harper
Um dos acordos que ela fizera foi que os homens que estavam entrando no
armazém antes dela seriam atendidos da melhor maneira possível. A maioria não
eram mais homens. Eram os curingas que sobreviveram à reunião com Croy d.
Ela ainda imaginava como Chris havia conseguido aquilo.
Quando telefonou para os parentes para contar sobre Chris, esperava uma
reação de alegria por essa chance de vingança. Em vez disso, recebeu uma
aceitação desinteressada. A vingança seria executada, mas porque era a coisa
decente a se fazer, não porque qualquer um, vítima ou guardião, pudesse ter
algum prazer nisso. Ela ficou surpresa, mas, agora que estava ali, entendeu. Não
gostava do que estava prestes a acontecer. Não sentia absolutamente nada.
Naquele dia, encontrara uma entrada lateral e uma rota para o mezanino do
armazém abandonado no Bairro dos Curingas. Se Chris estivesse lá, ela não o
veria. Dessa vez, quando chegou ao ponto de observação, ouviu as vítimas
movendo-se pelo armazém procurando por ele. Os ruídos que faziam ficaram
tão próximos que chegaram a nauseá-la, mas ela se forçou a assistir. No fim das
contas, era sua culpa.
Os ruídos aumentaram. Ela viu sua presa e arfou. Não esperava aquilo. O
que havia sido um homem de 30 anos, agora era uma coisa bamboleante coberta
de pelos. Suas garras riscaram o concreto quando percebeu que estava sendo
perseguido. Quando virou a cabeça para olhar os inimigos, os dentes afiados no
focinho pontudo brilharam à luz da lua que atravessava as claraboias quebradas.
A única coisa que ela reconheceu foi o rabinho embaraçado que ainda caía em
suas costas.
As vítimas dele, as vítimas dela, se arrastavam, com líquido vazando de seus
corpos, pelos corredores do armazém na direção do autor de sua dor. Algum
deles ainda sabia o que eles eram ou como haviam se tornado criaturas
deformadas que se aproximavam daquele que era Chris Mazzucchelli? Um
alarido excitado irrompeu quando Chris foi identificado. Ele sibilou para os
perseguidores, golpeando o ar com suas garras estendidas. Eles foram
implacáveis. Mesmo depois que derramou sangue, eles se aproximaram,
cercaram-no com cuidado para ficar fora de seu alcance.
Chris foi encurralado em uma área do armazém atulhada com maquinário
enferrujado. Ele não conseguia escalar, e seus agressores aproximaram-se para
matá-lo. Rosemary tentou olhar, mas, em vez de se lembrar do homem que
havia tentado matá-la, recordou o homem carinhoso que ela escolhera como
amante. Assistiu à execução por apenas um momento antes de sentir ânsia e
virar as costas para os gritos agudos que foram seguidos por gorgolejos líquidos.
Mesmo os sons eram mais do que ela conseguia aguentar. Rosemary fugiu,
mas os ruídos a perseguiram muito tempo depois de ela ter embarcado no navio
e se deitado, enrodilhada, na cama com as mãos pressionadas sobre os ouvidos.
♣ ♦ ♠ ♥
Apenas os mortos conhecem
o Bairro dos Curingas
Epílogo
As novas trancas que Jennifer mandara instalar eram tão eficazes que Brennan
não conseguiu entrar no apartamento dela. Isso era bom, ele pensou. Jennifer
provavelmente precisaria delas.
Ele se sentou no patamar da escada de incêndio do lado de fora do quarto de
Jennifer e observava o tráfego da cidade que passava embaixo dele. Odiou a
cidade quando chegou. Ainda odiava, na verdade, mas agora odiava ainda mais
pensar que a deixaria.
E ele precisava deixá-la. Quando chegou à cidade, nada poderia impedi-lo
de derrubar Kien. Teria sacrificado céu e inferno para pegá-lo. Mas, agora, ele
não era o mesmo homem. Agora ele se permitia a preocupação, e precisou
pagar o preço pela sua fraqueza. Kien havia vencido. Sua vingança terminara.
Observou a cidade se mover embaixo de seus pés, percebendo pela primeira vez
como as montanhas seriam solitárias.
A tarde quente de primavera havia caído no lusco-fusco antes que um
pequeno som no quarto atrás dele o fizesse se virar. Jennifer, em casa vinda da
biblioteca, estava olhando pela janela, observando-o. Depois de um momento,
ela atravessou o quarto, abriu a janela, e Brennan entrou.
— Ora — Jennifer disse —, a cada tantos meses você aparece, como um
reloginho.
Ela estava brava, e Brennan sabia por quê. Ele não a via desde que havia
impedido uma emboscada dos Punhos Sombrios no apartamento durante o
inverno. Havia algo de um acordo tácito entre eles de que ele voltaria para vê-la,
mas não o havia feito até aquele momento.
— Preciso avisá-la. — Não havia maneira fácil de dizer isso. — Estou indo
embora da cidade. Kien disse que a deixará em paz, mas não confio nele.
Jennifer franziu o cenho.
— Está indo embora por minha causa?
Brennan deu de ombros.
— Digamos que escolhi os vivos e não os mortos.
O franzir aumentou.
— Ele me usou para ameaçá-lo. Disse que mandaria seus capangas atrás de
mim se você continuasse em cima dele.
— Algo assim — Brennan admitiu. — Ele enfatizou que não teria nada a
perder se eu o derrubasse. Que não haveria nada que pudesse ameaçá-lo e
impedir que ele matasse você.
Jennifer assentiu lentamente.
— Entendi. Então, minha vida significa tanto para você que desistiu de sua
vingança, que deixou Kien vencer?
Brennan soltou um suspiro profundo e concordou com a cabeça.
Jennifer sorriu.
— É bom saber disso. Vai tornar as coisas mais fáceis.
— Coisas? — Brennan perguntou, desconfiado. — Que coisas?
— Coisas que nem você, muito menos Kien consideraram. O fato de que
não deixarei que ninguém mais me faça de refém. O fato de que não posso ser
feita refém se ninguém souber onde estou. — Ela olhou para Brennan por um
momento longo, bem longo, e sentiu uma pontada de dor no amor e na beleza
que viu em seu rosto. — Adeus, Daniel, e boa caçada.
Ela se transformou em fantasma. Saiu das roupas e atravessou a parede do
quarto, desaparecendo. Brennan encarou a parede branca extremamente
confuso. Ela se foi, desapareceu como um espectro exorcizado.
— Espere... — ele resmungou, mas era tarde demais. O quarto estava vazio,
exceto por ele e seus pertences, abandonado e desprezado, agora e para sempre.
— Espere...
Ele soltou seu peso na cama, vencido pelo choque e por um sentimento
avassalador de perda que o atingiu com a força de um golpe físico.
— Você não entende — ele disse em voz alta para o quarto vazio, em parte
para si, em parte para a Jennifer desaparecida, abalado com a força dessa
percepção repentina. — Kien me deu a escolha, mas fui eu quem a tomei,
sozinho. Quero você mais que ele. Quero amar mais que odiar... a vida mais que
a morte...
A voz dele sumiu e ele encarou a parede por onde Jennifer havia
desaparecido. Seus olhos quase caíram das órbitas quando ela atravessou a
parede com a cabeça.
— Que bom. — Ela sorriu. — Esperava que você fosse dizer algo assim.
Ele deu um salto da cama.
— Meu Deus do Céu! Volte aqui e fique sólida!
— Por quê? Vai me beijar ou me bater?
— Vai ter que arriscar — Brennan começou a falar, mas a boca de Jennifer
cobriu a dele antes que ele pudesse chegar na metade das palavras.
— Sabe — Jennifer disse quando finalmente tomaram fôlego —, talvez seja
melhor jogar o jogo de Kien... ao menos por ora.
Brennan assentiu, o braço direito enlaçando com firmeza a cintura da
mulher, a esquerda traçando com gentileza as curvas delicadas do rosto e do
queixo.
— Tem razão. — A voz dele, os olhos, eram sonhadores e tinham um
aspecto estranho. Jeniffer ficou pasma e imensamente contente ao ver a
felicidade e, talvez, até o contentamento neles. — Tenho um lugar lindo nas
Catskills que eu gostaria que visse. E não volto ao Novo México desde... desde...
Deus, faz tanto tempo assim?
Ela sorriu e beijou-o de novo.
— E Kien? — ela perguntou quando se separaram.
Brennan deu de ombros.
— Ele estará aqui. Posso esperar. — Seu sorriso voltou, mas havia uma
frieza nele que a assustava e a atraía, chamando-a como uma mariposa para
uma chama perigosa. — É isso que um caçador faz de melhor.
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Todos os cavalos do rei
VII
— Isso é ridículo. — Bruder estava em fúria. Ele estava com um par de luvas de
couro de motorista numa mão e as batia contra as pernas compulsivamente
enquanto falava. — Percebeu o que está fazendo? Está jogando fora uma
fortuna. Milhões de dólares. Além disso, está abrindo uma brecha para um
processo. Tudbury e eu éramos sócios; esta terra me pertence.
— Não é o que o testamento diz — Joey DiAngelis disse. Estava sentado no
capô comido por ferrugem de um Edsel Citation de 1957, uma lata de cerveja
Schaefer na mão, enquanto Bruder andava de um lado para o outro diante dele.
— Vou contestar o maldito testamento — Bruder ameaçou. — Caramba,
pegamos empréstimos juntos.
— Os empréstimos serão pagos — Joey disse. — Tuds tinha um seguro de
cem mil. Sobrou muita grana mesmo depois das despesas funerárias. Você vai
receber o seu, Bruder. Mas não vai pegar o ferro-velho, pois é meu.
Bruder apontou para ele, as luvas pendurando-se de sua mão.
— Se acha que não vou pro tribunal com isso, melhor pensar bem. Vou
arrancar tudo o que você tem, seu babaca, inclusive essa merda de ferro-velho.
— Vai se foder — Joey DiAngelis disse. — Então me processe, não dou a
mínima. Posso pagar advogados também, Bruder. Tuds me deixou todo o resto
das coisas dele, a casa, a coleção de quadrinhos, sua participação na empresa.
Vendo isso tudo se precisar, mas vou ficar com este ferro-velho.
Bruder fechou a cara.
— DiAngelis — ele disse, tentando soar um pouco mais conciliador —, ouça
a razão. Tudbury queria vender este lugar. De que vai adiantar um ferro-velho
abandonado? Pense em todas as pessoas que precisam de moradia. Essa
incorporação será uma vantagem enorme para a cidade toda.
DiAngelis tomou um grande gole de cerveja.
— Acha que sou idiota ou o quê? Não vai construir abrigo para sem-teto.
Tom me mostrou os planos. Estamos falando de casas de 250 mil dólares, certo?
— Ele olhou ao redor para os hectares de lixo e carros enferrujados. — Bem,
que se foda. Cresci neste ferro-velho, Stevie. Gosto dele do jeito que está.
— Então, você é um idiota — Bruder disse, ríspido.
— E você está na minha propriedade — Joey disse. — Melhor você dar o
fora, ou eu posso enfiar um pedaço de cano no seu rabo. — Ele amassou a lata
de cerveja na mão, jogou-a de lado e deslizou do capô do Edsel. Os dois homens
ficaram frente a frente.
— Não pode me intimidar, DiAngelis — Bruder falou. — Não somos mais
crianças no pátio da escola. Sou maior que você e malho três vezes por semana.
Fiz artes marciais.
— Ah, é — Joey disse —, mas eu jogo sujo na luta. — Ele riu.
Bruder hesitou, em seguida virou-se com irritação e seguiu pisando duro até
seu carro.
— Isso não acabou! — ele gritou, virando-se para trás.
Joey sorriu enquanto o via partir com o carro.
Depois que Bruder foi embora, Joey foi até seu carro e pegou outra
Schaefer da caixa no banco do passageiro. Tomou o primeiro gole às margens
quando a maré subiu na baía. Era um dia úmido, cheio de vento, encoberto, e em
uma hora mais ou menos se tornaria uma noite úmida, cheia de vento e
encoberta. Joey sentou-se numa pedra e observou a luz fraca pintar um arco-íris
nas manchas de óleo da água e pensou em Tuds.
O velório e o funeral foram com caixão fechado, mas Joey foi até a sala
dos fundos depois que todos haviam saído e disse ao agente funerário júnior que
queria ver o corpo. O carta selvagem não deixou sobrar muito de Tom. O
cadáver tinha pele de um tatu, escamosa e dura, e um leve brilho esverdeado,
como se fosse radioativo ou algo assim. Os olhos eram imensos sacos de gelatina
rosa brilhante, mas ele estava usando os óculos de aviador de Tom, e ele
reconheceu o anel do colegial no dedo rosado de uma das mãos com membrana.
Não que houvesse espaço para dúvida. O corpo fora encontrado em um
beco do Bairro dos Curingas, usando as roupas de Tom e carregando todos os
documentos dele, e o próprio Dr. Tachy on havia feito a autópsia e assinado a
certidão de óbito após comparar a documentação dentária.
Joey DiAngelis suspirou, esmagou outra lata de cerveja na mão e jogou-a
de lado. Ele se lembrou de quando ele e Tom montaram o primeiro casco juntos.
Na época, as latas de cerveja eram feitas de aço, e era preciso ser forte para
esmagar as desgraçadas. Agora, qualquer velho fracote podia fazer isso.
Ele pegou o restante da caixa de cerveja e caminhou de volta para o bunker.
A grande porta estava aberta, e lá dentro Joey viu o brilho de maçarico de
acetileno. Ele se sentou com as pernas sobre a beirada e balançou a caixa de
cerveja diante de si.
— Ei, Tuds — ele gritou lá para baixo —, pronto para uma pausa?
O maçarico se apagou. Tom saiu de trás da estrutura do imenso casco
construído pela metade. Que monstro maldito, Joey pensou de novo enquanto
olhava para o esqueleto; seria quase duas vezes maior que o casco anterior,
hermeticamente fechado, à prova d’água, autônomo, computadorizado, blindado
até não poder mais, um casco de 150 mil dólares, porra, toda a grana da maleta e
mais a maior parte do seguro também. Tuds estava falando em canibalizar
aquela maldita cabeça que ele trouxe para ver se poderia imaginar uma maneira
de consertar o radar e grudá-lo no equipamento.
Tom tirou os óculos protetores. Eles deixaram grandes círculos pálidos ao
redor de seus olhos.
— Babaca — ele gritou —, quantas vezes eu vou ter que dizer: Tudbury está
morto. Não há ninguém em casa além de nós, tartarugas.
— Vá a merda, então — Joey disse. — Tartarugas não tomam cerveja.
— Esta aqui toma. Passa pra cá... aquela bosta de maçarico é quente.
Joey jogou o que restava da caixa com seis.
Tom pegou, tirou uma lata e a abriu. A cerveja espirrou sobre seu rosto e
cabelos. Joey gargalhou.
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Epílogo
George R. R. Martin
George R. R. Martin
23 de julho de 2002
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Índice
CAPA
Ficha Técnica
Agradecimentos
Nota do editor
Nota aos leitores
Outubro de 1986 — Abril de 1987
Apenas os mortos conhecem o Bairro dos Curingas
Todos os cavalos do rei
Concerto para sirene e serotonina
Colapso
Todos os cavalos do rei
Concerto para sirene e serotonina
Jesus era um ás
Todos os cavalos do rei
Concerto para sirene e serotonina
Maio de 1987
Todos os cavalos do rei
Laços de sangue
Concerto para sirene e serotonina
A segunda vinda de Buddy Holley
Laços de sangue
Junho de 1987
Todos os cavalos do rei
Concerto para sirene e serotonina
Matizes da mente
Laços de sangue
Viciada em amor
Derrocada
Concerto para sirene e serotonina
Laços de sangue
Concerto para sirene e serotonina
Laços de sangue
Todos os cavalos do rei
Mortalidade
Laços de sangue
Concerto para sirene e serotonina
“Que fera rude...”
Apenas os mortos conhecem o Bairro dos Curingas
Todos os cavalos do rei
Epílogo