Mídia e Discurso: A Construção de Sentidos

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Capa Afra de Medeiros
Poiesis Editora 2018
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proibida qualquer reprodução de partes ou de todo o conteúdo dessa
publicação sem a autorização prévia da Editora.

MÍDIA E DISCURSO
A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C955d CRUZ, Adriano Charles Silva.


Mídia e Discurso: a construção de sentidos (livro
eletrônico). – Marília : Poiesis Editora, 2018.
102 p.: 634 Kb.
Formato: e-Book e PDF.
ISBN 978-85-61210-76-2

1ª Edição 1. Análise do discurso. 2. Semiótica discursiva. 3.


Cultura midiatizada. I. Cruz, Adriano Charles Silva. II.
Título.
CDD – 401.41

Índice para catálogo sistemático:


1. Análise do discurso – 401.41
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO • 8
CONSIDERAÇÕES INICIAIS   •  10
1 A ANÁLISE DE DISCURSO   •  13
2 OS SENTIDOS NA FOTOGRAFIA   •  18
3 OS SENTIDOS NO DOCUMENTÁRIO  •  29
4 OS SENTIDOS NAS REVISTAS SEMANAIS  •  44
5 OS SENTIDOS NOS MEMES • 66
6 OS SENTIDOS NAS INSCRIÇÕES URBANAS  •  83
CONSIDERAÇÕES FINAIS • 97
POSFÁCIO  • 100
SOBRE O AUTOR  •  102

À memória de Dalvanir Avelino


Ao Itamar Nobre
À Cristina, Nona e Nilma
À turma da 6, amigos de uma vida
Adriano Charles Silva Cruz

APRESENTAÇÃO lidade da arte, mediante a análise da fotografia de Philip-Lorca


diCorcia e do documentário Elena e o envolvimento cidadão nas
manifestações populares nos muros das cidades.
A leitura desta obra é recomendável para aqueles que já nave-
gam na análise discursiva, e também para quem deseja se aproxi-

O
professor e pesquisador Adriano Cruz nos oferece atra- mar a essa perspectiva dos acontecimentos.
vés desta obra, que já se mostra perspicaz em seu título Vale a pena aceitar a provocação do autor e atentarmos aos
Mídia e Discurso: a construção de sentidos, a oportunida- processos envolvidos na construção de sentidos, na multiplicida-
de de adentrarmos na análise do discurso de abordagem francesa, de de discursos que, mediante disfarçadas intencionalidades de
porém, com a marca dos pesquisadores brasileiros que seguiram naturalização, nos atingem no nosso dia a dia.
essa corrente, fundamentalmente a pesquisa de Eni Orlandi.
Este livro representa um “olhar para dentro” do próprio cami-
nhar e, ao mesmo tempo, uma mirada instigante enquanto à telha Letícia Beatriz Gambetta Abella
discursiva em diversas esferas que priorizam discursos textuais e/ Professora Doutora na Faculdade de Humanidades e Ciências
ou imagéticos. da Educação e na Faculdade de Informação e Comunicação, da
O autor faz uma retrospectiva da sua própria pesquisa dis- Universidade da República (UDELAR), no Uruguai.
cursiva, considerando alguns dos textos que foram divulgados
durante os últimos anos em diversos espaços científicos. Apesar
de se apresentar, num primeiro momento, como um percurso ec-
lético, o livro tem uma coesão intrínseca ao evidenciar a ideologia
como uma teia que perpassa toda manifestação discursiva.
Cruz constrói uma trilha que atravessa diferentes paisagens
semióticas, materializadas neste trabalho, num olhar para a foto-
grafia, o documentário, as revistas semanais, os memes e as ins-
crições urbanas. A arriscada intenção de colocar linguagens di-
versas na mesma arena, ainda que separadas em capítulos, acaba
se transformando numa oportunidade para o leitor de vivenciar
o discurso como uma entidade dinâmica, dialógica e onipresente
nas mais diversas formas de expressão características da moderni-
dade multimodal na qual estamos imersos.
Um dos pontos mais contundentes da abordagem do autor é a
sensibilidade para vincular suas análises a questões que interagem
no nosso cotidiano, tais como: a representação de atores sociais
publicamente notórios, o caso de Lula e Marina Silva; a materia-

8 9
Adriano Charles Silva Cruz

CONSIDERAÇÕES INICIAIS Elena, o papel da memória na construção da imagem de Marina


Silva (REDE) pelas revistas jornalísticas, a discursivização do cor-
po de Lula (PT) nos memes e as modalidades discursivas encon-
tradas em pichações e graffiti.
Proponho uma forma de olhar a mídia por meio do discur-
so, alinho essa discussão com a intersecção de três eixos funda-
Sabemos que todos temos ou que possuímos imagens, que elas
vivem em nossos corpos ou em nossos sonhos e esperam para
mentais: história, imagem e sujeito. Como significam as imagens
serem convocadas por nossos corpos a aparecer. midiáticas? Como são produzidos sentidos? São as questões que
norteiam este trabalho.
Hans Belting Ressalto que imagens, vídeos e textos não são transparentes,

E
ao contrário, ambíguos. Estão sujeitos à construção de sentidos a
ste livro contém um conjunto de textos escritos entre 2008
partir de condições específicas e a partir do lugar social de quem
e 2018, frutos de minhas pesquisas acadêmicas. Inseridos
os produz e de quem os consome.
em formato de livro, os textos sofreram modificações e
atualizações. Acredito que, nesse formato, produzem um efeito Os discursos são produzidos em uma cultura midiatizada em
de continuidade temática, as ideias se repetem e se atualizam nas que as esferas sociais são estruturadas e ambientadas pela comu-
variações dos fenômenos e dos objetos. nicação. Também, estão inseridos no contexto do capitalismo
financeiro e volátil. Dentro de um quadro de mudança da mo-
O leitor verá que alguns temas perpassam as análises: a re-
dernidade “líquida”, as transformações tecnológicas interferem
tomada de discursos anteriores, os efeitos da memoria e da ide-
na comunicação que, por conseguinte, alteram a cultura da socie-
ologia e a construção de subjetividades. Pretendo demonstrar o
dade de acordo com as novas potencialidades comunicacionais. O
potencial analítico da teoria discursiva na análise de produtos da
alcance global dos conteúdos, a interatividade e a mobilidade dos
mídia. Embora, desde os anos de 1980, ocorra um direcionamen-
meios têm dinamizado o fluxo de conteúdos e produtos. Novas
to para análise de imagens, é comum as pessoas associarem a teo-
formas de sociabilidade são calcadas pelas tecnologias e relações
ria apenas à análise de textos verbais.
em rede, desde o namoro em aplicativos como o Tinder ao riso
No primeiro capítulo, procuro apresentar os principais con- irônico produzido pelos memes.
ceitos discursivos mobilizados: discurso, ideologia, interdiscurso
O consumo das mídias se tornou um processo coletivo na
e formação ideológica e discursiva. Tais conceitos não esgotam
construção de uma “cultura da convergência”, participação mais
o arsenal teórico da “disciplina”, em movimento e atualizações
intensa do público, especialmente, nas redes sociais. Os leitores
constantes. Recomendo, para aqueles que quiserem uma intro-
compartilham, editam e produzem conteúdos com um simples
dução mais detalhada, a leitura do livro Introdução à Análise de
smartfone. Assim, espectadores assumem um papel importante
Discurso, de Eni Orlandi e do meu A charge no governo Lula.
na propagação e circulação discursiva.
Nos capítulos seguintes, diferentes questões discursivas são
Embora tenha privilegiado os produtos midiáticos tradicio-
abordadas por meio da análise de objetos da mídia: a relação entre
nais, há espaço para uma reflexão sobre a comunicação alternati-
invisibilidade e visibilidade na fotografia de Philip-Lorca diCor-
va encontrada nos muros das cidades andinas.
cia, a formação da identidade e da subjetividade no documentário

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Mídia e Discurso

Não há discursos sem alteridade. Este livro foi tecido em con- 1 A ANÁLISE DE DISCURSO
versas, discussões e leituras de inúmeras vozes. Entre essas, agra-
deço a Ci Ramos, Ruy Rocha e Williane Silva pelos comentários
e sugestões.

‘As palavras e as coisas’ é o título – sério – de um problema;


é o título – irônico – do trabalho que lhe modifica a forma,
lhe desloca os dados e revela, afinal de contas, uma tarefa
inteiramente diferente, que consiste em não mais tratar os
discursos como conjuntos de signos (elementos que remetem
a conteúdos ou a representações ), mas como práticas que
formam sistematicamente os objetos de que falam.

Michel Foucault

O
leitor já deve ter percebido que há inúmeras escolas ou
orientações de análise discursivas. A que trabalhamos foi
desenvolvida, na França, a partir dos estudos do filósofo
Michel Pêcheux (1938-1983)  e do linguista Jean Dubois (1926-
2015), no final dos anos sessenta. Mas foi, no Brasil, com as pes-
quisas de Eni Orlandi (1942 -), que a Análise de Discurso (AD)
de linha franco-brasileira se consolidou e proporcionou ressigni-
ficações às matizes e formulações iniciais.
Em princípio, delimito o que seria “discurso”: ele não se res-
tringe a uma troca de informações ou a uma mensagem; esse con-
ceito possui uma dimensão não somente comunicativa ou ima-
gética, mas também ideológica. O discurso é um efeito de sentido
que brota do cruzamento entre história, sujeito e ideologia.
Assim, a teoria discursiva não esgota as análises no espaço das
imagens e textos, mas considera o contexto amplo denominado
de condições de produção, ou seja, o quadro sócio-histórico e ide-
ológico que está imbricado em todo o fazer humano. A ideologia1

1 Segundo Orlandi, a “ideologia não se define como o conjunto de representa-


ções, nem muito menos como ocultação de realidade. Ela é uma prática signi-
ficativa; sendo necessidade da interpretação, não é consciente – ela é efeito da

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Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

é percebida como um efeito necessário para a geração de signifi- outras palavras, pode-se dizer que o interdiscurso é um princípio
cados. constitutivo da linguagem, marcado pela presença da “alteridade”,
já que não existe discurso adâmico, sem gênese na história. Assim,
Dessa forma, a noção de formações ideológicas perpassa o tra-
todo discurso retoma, refuta, rememora, contradita ou silencia ou-
balho analítico, porque são desses lugares sociais que os sujeitos
tros discursos.
interpretam os sentidos.
Às vezes, é possível reconhecer a presença dessa interdiscur-
É nesse encontro entre um sujeito historicamente situado e
sividade pelas marcas materiais nos textos e imagens, tais como:
a sua formação ideológica que são gerados os efeitos de sentido;
citações, discurso direto, ironia, refutações, paródia, paráfrase,
logo, o discurso é algo dinâmico, mutável e suscetível às relações
entre outros. É, em razão do movimento dessa “memória” que
sociais e históricas. Por conseguinte, essa teoria não propõe mo-
nós produzimos sentidos no interior de formações ideológicas.
delos estanques de análise, mas mobiliza os conceitos a partir da
natureza dos fenômenos. O discurso perpassado pela heterogeneidade não se restrin-
ge apenas aos textos. Há uma “prática intersemiótica4” que se re-
Outro aspecto é o que considera a heterogeneidade que com-
laciona a outros domínios semióticos como as imagens, os sons,
põe a produção na mídia e fora dela2. A teoria advoga que há uma
entre outros. Essa interpenetração de imagens, via memória, é
necessária interação entre discursos, em razão dos movimentos
denominada de intericonicidade 5.
da memória. De fato, o leitor, certamente, concordará que não
existe produção imagética isolada da cultura, da história e desco- Em outras palavras, as significações são produzidas segundo a
nectada do mundo. formação ideológica do sujeito6. A partir da perspectiva althusse-
riana7, a Análise de Discurso defende que ideologia não opera no
O interdiscurso3, conforme Pêcheux, diz respeito ao movi-
mento da memória e à retomada de discursos já proferidos. Em
4  MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos Discursos. Curitiba: Criar Edi-
ções, 2005.
relação do sujeito com a língua e com a história em sua relação necessária, para
que se signifique”. ORLANDI, Eni. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do 5 Arbex parte da constatação de que o processo de “leitura”, ligado ao signo
trabalho simbólico. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 48. verbal, também, pode ser aplicado ao signo plástico, às imagens. Entende que
nos textos sincréticos ou híbridos, sobretudo no processo de colagem, se pode
2 Pêcheux denomina o “primado teórico do outro sobre o mesmo”, ou seja, o
verificar um caráter intericônico: “esse cruzamento de “enunciados” encontra-
primado da interdiscursividade. PÊCHEUX, Michel. A Análise do Discurso:
se pois nas colagens pictóricas, que se constituem da interferência de uma mul-
três épocas. In: GADET, Françoise; HAK, Tony. (Org.). Por uma análise au-
titude de outras imagens, de um mosaico de imagens. Mais à frente, conclui:
tomática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas:
“para designar o caráter ‘intertextual’ das colagens, sugerimos então o neologis-
Unicamp, 2001, p. 315.
mo ‘intericonicidade’” . ARBEX, Márcia. Intertextualidade e intericonicidade.
3  Segundo Orlandi, o interdiscurso é o “saber discursivo que torna possível In: I Colóquio de Semiótica da UFMG, 2000, Belo Horizonte. Anais... Belo Ho-
todo dizer e que retorna sob forma de pré-construído, o já dito que está na base rizonte: UFMG, 2000, p. 1-12, p. 6.
do dizível, sustentando cada tomada da palavra”. ORLANDI, Eni. Análise de
6 Daí que o interdiscurso pode ser pensado como o conjunto de todas as forma-
discurso: princípios e procedimentos. 7. ed. Campinas: Pontes, 2007, p. 31. Se-
ções discursivas que permite aos sujeitos falarem e silenciarem.
gundo Pêcheux, o interdiscurso ou memória discursiva “seria aquilo que, face
a um texto que surge como acontecimento a ler, vem estabelecer os ‘implícitos’ 7 A representação de mundo ideológica é para Althusser uma representação de
[...] de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio mundo determinada pelas condições de existência. Essa “relação imaginária é
legível”. PÊCHEUX, Michel. Papel da Memória. In: ACHARD, Pierre et. al. em si mesma dotada de uma existência material”. ALTHUSSER, Louis. Apare-
Papel da memória. 2. ed. Campinas: Pontes, 2007, p. 52. lhos Ideológicos de Estado São Paulo: Cortez, 1987, p. 90.

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Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

mundo como um espectro, e sim de maneira concreta nos sujeitos pesquisas se deslocaram dos grandes discursos, materializados
e em sua relação com o mundo. Em outras palavras, a ideologia em textos, para o formigamento do dia a dia, materializados em
se materializa para os homens por meio das práticas humanas, ou imagens, quase sempre mediadas pela mídia.
seja, está entre o sujeito e as atitudes deste.
Até hoje, essa diversidade epistemológica compõe às análises
Nesse sentido, defendo o papel coesivo da ideologia na so- e as formulações teóricas. A análise discursiva da mídia, confor-
ciedade e sua maneira de naturalizar os processos discursivos. A me emprego neste livro, dialoga profundamente com as ciências
ideologia e o inconsciente se inter-relacionam e marcam a subje- sociais e com as teorias da comunicação10.
tividade. A ideologia se materializa nas marcas dos textos e das
imagens a partir de suas condições de produção. Os sujeitos assu-
mem posicionamentos discursivos distintos; logo, é por intermé-
dio das formações discursivas que a ideologia se faz presente nas
materialidades visuais e linguísticas. Em síntese, as palavras e as
imagens significam a partir das formações ideológicas.
Desde sua origem, essa teoria discursiva articulou saberes de
outros campos. No final da década de 1960, o grupo pecheuxtiano
articulou no interior da “disciplina” as leituras althusseriana do
marxismo e a lacaniana da psicanálise com a linguística saussure-
ana8. Mais à frente, nos anos de 1980, houve a entrada da arque-
genealogia foucaultiana, em razão das pesquisas de Jean-Jacques
Courtine.
Com o início da midiatização da sociedade, naquela época,
houve um redirecionamento para análise das “línguas de vento”,
metáfora para as metamorfoses do discurso político à época, que discursividades políticas tradicionais pelas formas breves, vivas e efêmeras do
já se imbricava com a linguagem publicitária9. Dessa forma, as discurso publicitário. Elas dotavam a fala pública de uma volatilidade da qual
as línguas de madeira estavam, sem dúvida, desprovidas”. COURTINE, Jean-
Jacques. Discurso e imagens: para uma arqueologia do imaginário. In: PIOVE-
8  Em 1975, no artigo escrito com Catherine Fuchs, Pêcheux apresenta essa ZANI, Carlos; CURCINO, Luzmara; SARGENTINI, Vanice. (Org.). Discurso,
relação entre as disciplinas, nos termos: “o materialismo histórico como teo- semiologia e história. São Carlos: Claraluz, 2011, p. 147.
ria das formações sociais e de suas transformações, compreendida aí a teoria
10 A AD no Brasil mantém uma ancoragem na história e nas relações sociais.
das ideologias; - a linguística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos
De maneira alguma, a disciplina pode ser encarada como uma Linguística
processos de enunciação ao mesmo tempo; - a teoria do discurso como teoria
Aplicada, pois a relação pecheuxtiana com a linguística é sempre agônica, já
da determinação histórica dos processos semânticos [...] essas três regiões são
existiam inúmeras rupturas entre o pensamento do filósofo e o de Saussure na
atravessadas e articuladas por uma teoria da subjetividade (de natureza psica-
constituição da teoria. Para Pêcheux, a língua é uma materialidade de natureza
nalítica)”. PÊCHEUX, Michel; FUCHS, C. À propósito da AAD: atualização e
linguística, mas também histórica. Nas palavras de Pêcheux e Fuchs, a língua
perspectivas. In: GADET, Françoise; HAK, Tony. (Org.). Por uma análise au-
é o “lugar material onde se realizam os efeitos de sentido”. PÊCHEUX, Michel;
tomática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas:
FUCHS, Catherine. À propósito da AAD: atualização e perspectivas. In: GA-
Unicamp, 2001, p. 163-164.
DET, Françoise; HAK, Tony. (Org.). Por uma análise automática do discurso:
9 Conforme explica Courtine: “Certamente, trata-se de um recobrimento das uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Unicamp, 2001, p. 172.

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Adriano Charles Silva Cruz

2 OS SENTIDOS NA FOTOGRAFIA11 de eterno diálogo com o passado.


Se, mesmo hoje, o desejo do real acompanha a produção fo-
tográfica, importantes movimentos estéticos descentraram essa
perspectiva, produzindo metáforas e alegorias imagéticas. Entre
essas imagens, estão as do fotógrafo americano Philip-Lorca di-
Corcia e os sentidos de nostalgia e solidão no cotidiano produzi-
A data faz parte da foto: não porque ela denote um estilo, mas dos em algumas de suas obras.
porque ela faz erguer a cabeça, oferece ao cálculo da vida, a
O fato é que inimaginável as nossas sociedades sem a presença
morte, a inexorável extinção das gerações: é possível que
Ernest, jovem, estudante fotografado em 1931 por Kertész,
da fotografia. Utilizada nos mais diversos momentos, ela se pre-
ainda viva hoje em dia (mas onde? Como? Que romance!). sentifica no início ao fim da existência humana.
Sou o ponto de referência de qualquer fotografia, e é nisso A imagem fotográfica é mais que um objeto, constitui-se em
que ela me induz a me espantar, dirigindo-me a pergunta uma “magia” na visão barthiana, capaz de tangenciar o real, per-
fundamental: “por que será que vivo aqui e agora?”. petuar a vida ou apontar a morte. A fotografia torna-se então um
fascinante objeto de estudo; além de ser uma das mais significati-
Roland Barthes
vas expressões artísticas da contemporaneidade.

A
fotografia é uma das mais significativas expressões da cul- Neste capítulo, mostro como a obra de Philip-Lorca diCorcia
tura ocidental. Durante anos, a relação com o referente foi está imersa na discussão sobre os efeitos do real14, a construção
o paradigma que sustentou sua onipresença no cotidia- de mitos e a redescoberta do cotidiano. O meu objetivo é trazer
no. Todavia, verifica-se uma crise e um tensionamento dessa sua provocações e questionamentos sobre a fotografia e a crise da re-
função indicial ou mimética da realidade a partir da “moderni- presentação, visando desautomatizar o olhar para esse objeto.
dade líquida”. Fotógrafos refutam essa pretensão com trabalhos
destoantes do realismo, afastando-se do ideal de verossimilhança. Do desejo do real às mitologias imagéticas
Imagens míticas, como as de Che Guevara, acompanham o
Desde o seu surgimento, a fotografia atrai a admiração dos ho-
imaginário do homem apontando para a sua reprodução inces-
mens. Um dos motivos desse fascínio seria a íntima relação da
sante no atual estágio da modernidade. Por outro lado, a foto-
foto com aquilo que denominamos de “realidade”, ou seja, seu
grafia compõe novos “lugares de memória” 12 que formarão os
valor indicial. Ainda hoje, não poucos defendem que a foto te-
quadros da “memória coletiva13” Nesse sentido, pululam imagens
que tangenciam a dor e apontam para outras alhures, num jogo 14 O próprio diCorcia entra no debate: “Há, nas minhas fotografias, uma si-
tuação artificiosa que resulta de uma construção minha, em que uso estas e
11 Uma versão deste texto foi publicada na revista Razón y Palabra. outras pessoas para representar determinadas narrativas. O que daqui se infere,
portanto, é tão intenso quanto seria se nada construísse ou nada encenasse, e
12  Segundo Nora, a memória não tem uma natureza espontânea, mas é pro-
me propusesse a uma reportagem de natureza documental”. DICORCIA, Phi-
duzida em “lugares” que possuem os sentidos material, simbólico e funcional.
lip-Lorca. Notícias recentes do sonho americano. Disponível em: http://5dias.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Revista
net/2004/04/30/noticias-recentes-do-sonho-americano-republicando-a-mi-
do Programa de pós-graduação em História da PUC, 10, 7-28, 1993.
nha-entrevista-ao-fotógrafo-philip-lorca-dicorcia-a-pedido-do-ezequiel/.
13  HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 2004. Acesso em: 20 jun 2004.

18 19
Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

ria a função de registrar o mundo. “Mas será verdade? Se assim na o sonho da mimese total.
for, como explicar que existam fotografias em preto-e-branco e
Nesse sentido, no espaço das cidades americanas, é possível
fotografias coloridas? Haverá, lá fora no mundo, cenas em preto-
enquadrar imagens arquetípicas, como testemunha Philip-Lorca
-e-branco e cenas coloridas?”, questiona-nos Flusser15.
diCorcia: “[...] os personagens fotografados desempenham deter-
Advogo que o efeito de realidade da câmera fotográfica ou, em minados papéis, ou representam, nas ruas, determinados arqué-
outras palavras, de transparência ou espelhamento do mundo, é tipos”.
um efeito ideológico, um apagamento das condições de produção,
Ao fotografarmos, realizamos, por motivos óbvios, determi-
conforme a teoria marxista de Althusser.
nadas escolhas, ou seja, damos um corte no tempo-espaço. O
Todavia, essa é uma relação necessária e constitutiva, esta- momento do clique é a conclusão das nossas escolhas e, parafra-
belecida a priori com o objeto fotografia. A aparelhagem técnica seando Barthes17, o momento da morte. Por isso, reitero que, ape-
constituída ao longo da história favoreceu esse “efeito ideológico” sar das tentativas do realizador, a fotografia não consegue senão
de evidência do mundo lá fora, conforme defende Dubois: “A fo- reproduzir uma parte do que denominamos de “real”.
tografia [...] é considerada como a imitação mais perfeita da rea-
Ora, se a reprodução do real tornou-se um sonho irrealizável,
lidade. E de acordo com os discursos da época, essa capacidade
esse desejo não foi arrefecido – o homem, por trás das câmeras,
mimética procede de sua própria natureza técnica, de seu proce-
não cessará de desejá-lo. Frustração e impossibilidade, na vida e
dimento mecânico, que permite fazer aparecer uma imagem de
na técnica, posto que o “real é impossível”.
maneira ‘automática’, ‘objetiva’, quase ‘natural’ (segundo tão-so-
mente as leis da ótica e da química), sem que a mão do artista A fotografia segue onipresente e irresistível pelo século XXI,
intervenha diretamente” 16. no tempo da proliferação das imagens digitais. Seria apenas o re-
alismo que nos atrai? Se percebermos suas limitações na reprodu-
A “ilusão especular da fotografia” tem sido refutada pelo atual
ção do “objeto mundo”, ainda assim, tem poder de nos emocionar
estado da arte: a maioria dos autores afirma que a fotografia não
ao produzir certa imortalidade do objeto fotografado.
é uma mera transcrição da realidade. As escolhas do fotógrafo,
desde a forma ao sentido, impõem limites e configura o objeto Dentre as imagens reproduzidas e propagadas na internet, o
representado. Guerrilheiro Heroico de 1960 não perdeu a sua eloquência. Uma
das imagens mais conhecidas do mundo foi tirada por Alberto
No fotojornalismo, essa é uma questão-problema quando se
Korda, quando Guevara tinha 31 anos, durante uma manifestação
evocam os critérios de objetividade e a “vontade de verdade” que
pelas vítimas do atentado que explodiu o navio francês La Coubre
norteiam a prática. Em uma perspectiva discursiva, as construções
no porto de Havana.
fotográficas estão imbricadas no quadro contextual sócio-históri-
co e de uma cultura de visualidade: pululam imagens arquetípicas O olhar longínquo, os cabelos longos, o figurino utilizado,
ou mitológicas mediadas pelo aparato tecnológico. Assim, há um tudo isso contribui para despertar o interesse pela imagem. Essa
trabalho de intervenção na construção da imagem, que desmoro- obra é mítica: Guevara remete a Cristo, com seus cabelo e barba
longos e o semblante sereno. Mas as condições históricas e dis-
15 FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. Ensaios para uma futura filosofia cursivas de sua vida e de sua morte levaram o leitor a sentimentos
da fotografia. São Paulo: Hucitec, 1985, p. 22.
16  DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Campinas: Papirus, 2001, p. 27. 17 BARTHES, Roland. A câmara clara. Lisboa: 70, 1981.

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Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

não sentidos antes. A prova disso é que a foto foi somente publi- presentado. Há os que verão nela a prefiguração do herói; outros,
cada seis anos depois do clique. Esse gap temporal foi necessá- a do Messias. Um deus ou um ateu, a fotografia de Guevara será
rio para a discursivização do revolucionário em mito, no qual as evocada em outros momentos históricos e lidas a partir das con-
imagens técnicas colaboraram de forma considerável. “Apesar do dições históricas em circulação.
Che ter negado a imagem de Cristo como ícone de sua vida [...]
O Guerrilheiro Heroico é alguém que não está mais entre nós
essa imagem representa o destino aonde seus passos o conduzi-
– mas que já esteve. Eis a questão inquietante. Da mesma forma,
ram, quando se transformou em um célebre christomimétés18 do Barthes se admira ao contemplar uma foto, porque tem certeza
século XX” 19. que a pessoa representada esteve ali, mas que agora não mais está.
Figura 1: O guerrilheiro heroico, Alberto Korda, 1960. Ou seja, a fotografia, ao mesmo tempo em que perdura o obje-
to representado, negação do tempo e da morte, paradoxalmen-
te, aponta-nos o fim, parafraseando Barthes o esteve ali, mas não
mais está21.

Imagens do cotidiano e da solidão


Se o interesse dos fotógrafos pelos mitos não se esvaiu com o tem-
po, a procura por assuntos do cotidiano ganhou força nos últi-
mos anos. Trata-se de lançar novas perspectivas para o homem
comum, “todo mundo e ninguém” na expressão de Michel de
Certeau. É esse o interesse do fotógrafo analisado, a banalidade do
cotidiano, expressa nesses termos: “quando comecei a desenvol-
ver trabalho em 1976, o que intentei foi reduzir o nível em que o
assunto, por si só, seria o critério do interesse da obra, propondo-
me, por isso, fotografar imagens tão banais quanto a de alguém
Fonte: https://focusfoto.com.br/che-guevara/
olhando para dentro de um frigorífico” 22.
É nesse campo do cotidiano que a ênfase no realismo se so-
Que imagens construímos de uma fotografia como aquela? bressai: fora do estúdio, na rua, nas cidades se flagra o homem em
O que ela nos diz? Quem é o retratado? Quem sou eu? No jogo sua vida ordinária. Mais uma vez, a fotografia realiza seu sísifo
imaginário de espelhos20, construímos sentidos para o objeto re-

18 “Um signo icônico de Cristo, uma figura quase divina, mas não por nature- HAK, Tony. (Org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à
za e sim pela graça. Para adotar essa noção histórica à nossa época midiática obra de Michel Pêcheux. Campinas: Unicamp, 2001.
proponho o conceito de corpo icônico pela tecnologia midiática da imagem”. 21  BARTHES, Roland. A câmara clara. Lisboa: 70, p.119.
ANDACHT, Fernando. Uma proposta analítica da imagem da celebridade na
mídia. Tecnologia e Sociedade. Curitiba, 2005, p. 127-150, p. 147. 22 DiCORCIA, Philip-Lorca. Notícias recentes do sonho americano. Disponí-
vel em: http://5dias.net/2004/04/30/noticias-recentes-do-sonho-americano-
19  Idem, p. 146.
-republicando-a-minha-entrevista-ao-fotógrafo-philip-lorca-dicorcia-a-pedi-
20  PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso. In: GADET, Françoise; do-do-ezequiel/. Acesso em: 20 jun. 2004.

22 23
Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

trabalho: aspira a ser reflexo do mundo. antes que aquilo que se pode ver nestes trabalhos é uma repre-
sentação de várias tipologias, ou arquétipos, das classes baixas da
As resistências a esse paradigma pode ser observada nas fo-
sociedade. Muitas destas pessoas provêm de famílias dissolvidas,
tografias e no discurso de Philip-Lorca diCorcia: “parto, efetiva-
de instituições assistenciais ou de prisões” 26.
mente de uma representação truncada da realidade, mas esta frag-
mentação não obsta que se conheça o que está representado” 23. Ora, dessa forma, o olhar do fotógrafo se dirige ao cotidiano
americano e dá espaço a representação da “vida dos homens in-
O trabalho com a luz, tornando-a um elemento estético, o
fames27” em sua maioria, composta por prostitutos que trazem as
enquadramento dos personagens e um estranhamento na com-
marcas de sua profissão inscritas na imagem: em cada foto há um
posição fotográfica marca a obra do fotógrafo americano. Os per-
preço, registro do uso de seus corpos.
sonagens são dirigidos para conseguir a oposição ideal, aspirada
pelo fotógrafo. Paradoxalmente, as imagens constroem um efeito Figura 2: Catherine, 1980.
de realidade, um realismo poético que deforma o objeto para pro-
duzir efeitos metafóricos. “O resultado é o de um realismo estra-
nho à fotografia analógica transportando-nos para o imaginário
de um ‘isto não foi’” 24.
A partir da década de 1970, desponta com seus trabalhos na
fronteira da realidade com a arte conceitual. Em muitas de suas
obras, as pessoas foram pagas para posar. O fotógrafo se interessa,
sobretudo, por temas destoantes do sonho americano: pobreza,
marginalidade e prostituição. “O que pretendo que ressalte com
clareza dos meus trabalhos é o facto concreto de que as figuras
aí reveladas estão presentes como indivíduos privados dos seus
direitos. Trata-se sempre de alguém que está excluído do espaço
desse tal ‘sonho americano’ — um espaço que irremediavelmente
Fonte: https://www.moma.org/artists/7027?locale=pt&page=1&direction=
jamais lhes será acessível, se é que para eles alguma vez o foi25”.
Esses temas não são retratados de forma documental, mas no As paredes, a porta e o cobertor da cama são cor-de-rosa, o
jogo de metáforas produzido pela encenação da realidade. “Penso contraste se dá com a figura de uma pessoa deitada, vestida com
calça azul e camisa preta. Que estranha fotografia! Seria mais co-
23  Idem. mum aproximar-se do corpo na cama. Por que o fotógrafo es-
24  FLORES, Victor. Questões emergentes das atuais negociações entre as cren- colheu esse e não outro ângulo? Não saberemos responder. Essa
ças da imagem analógica e da imagem digital. Disponível em http://www.por- intenção ficará perdida para o sujeito receptor e, talvez, seja o me-
talseer.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/view/3434/ 2501. nos importante; interessa-nos o efeito construído pelas escolhas
Acesso em: 20 jan. 2018.
25  DiCORCIA, Philip-Lorca. Notícias recentes do sonho americano. Disponível
26  Idem.
em: http://5dias.net/2004/04/30/noticias-recentes-do-sonho-americano-re-
publicando-a-minha-entrevista-ao-fotógrafo-philip-lorca-dicorcia-a-pedido- 27  FOUCAULT, Michel. La vida de los hombres infames. La Plata: Altamira,
do-ezequiel/. Acesso em: 20 jun. 2004 1996.

24 25
Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

do fotógrafo. Portanto, o que se abre como perspectiva, nessa foto, Figura 3: “Eddie Anderson; 21 years old; Houston, Texas; $20”, diCorcia,
é o efeito de sentido de isolamento. 1990.

O personagem está só, apesar do olhar onisciente da câmera.


Ele pode ter sido fotografado em casa, num quarto de um motel
ou mesmo à espera do fim em um leito hospitalar. “Por que será
que ela vive ali e agora?28”, retomamos a pergunta de Barthes.
É esse movimento discursivo que, ao mesmo tempo, se vin-
cula com o real, constrói o efeito de sentido de solidão na ima-
gem. Nas fotografias de Philip-Lorca diCorcia29 não importa dar
todas as informações do personagem inscrito na tela: muito não
é dito, silenciado para constituir e intensificar o jogo de projeções
imaginárias do receptor. “O que se pode apreender a partir destas
fotografias não é muito menos que aquilo que se retiraria delas se
eu mostrasse tudo, ou se eu conhecesse estes indivíduos pessoal-
mente muito bem. Mesmo que tivesse passado dias consecutivos a
fotografá-los, procurando documentar os mais diversos aspectos Fonte: https://www.moma.org/artists/7027?locale=pt&page=1&direction
da sua vida, não estou certo de que com isso se ficasse a saber
mais acerca destas pessoas do que passando apenas uma hora a Os efeitos de sentido de solidão se agudizam pelos contrastes:
fotografá-las”30. fotógrafo e representado estão de lados distintos da janela. Ade-
mais, tem-se o jogo de claro escuro e a contraposição dos objetos
Na tela, tem-se um personagem masculino, sem camisa, a
e alimentos, embalados e organizados, com o corpo desnudo do
olhar do exterior para uma janela de uma provável lanchonete,
rapaz. Há outros gestos interpretativos possíveis: entendo que a
na qual se encontram alguns elementos típicos do ambiente: um
denúncia da exploração dos corpos, transformados em produtos,
hambúrguer, um copo de refrigerante, um aparelho − elementos
e da desigualdade social estaria nas bordas da imagem, a partir
metonímicos da cultura americana. A luz recorta o quadro, incide,
da interseção do tema, sujeito retratado e o macrocontexto social.
em ângulo de cerca de 70 graus, sobre o lado esquerdo do perso-
nagem, à direita da imagem. Essa iluminação provoca um contor- A noite absorve a claridade natural do sol. De braços cruzados,
no áureo, semelhante aos usados nas pinturas de santos medievais. vestindo uma camisa verde à mesa, encontra-se um jovem com ar
Essa figura é um paradoxo: ao mesmo tempo em que verossímil, de tristeza. A luz e a sombra novamente inscrevem a imagem em
se apresenta na escolha imagética como surreal. um barroquismo, produzido pelo fotógrafo, tais elementos cons-
troem os sentidos de dramaticidade. Uma imagem de embalagem
28  BARTHES, Roland. A câmara clara. Lisboa: 70, 1981. de Pepsi Cola denuncia um modo de vida, centrado no consumo
29  As próximas fotografias integram a série Hustlers (1990-1992). de produtos monopolizados por conglomerados capitalistas. So-
30 diCORCIA, Philip-Lorca. Notícias recentes do sonho americano. Disponível litário, a personagem parece refletir sobre algo que jamais pode-
em: http://5dias.net/2004/04/30/noticias-recentes-do-sonho-americano-repu- remos saber.
blicando-a-minha-entrevista-ao-fotógrafo-philip-lorca-dicorcia-a-pedido-do-
-ezequiel/. Acesso em: 20 jun 2004.

26 27
Mídia e Discurso

Figura 4: “Brent Booth; 21 years old; Des Moines, Iowa; $30”, diCorcia, 3 OS SENTIDOS NO DOCUMENTÁRIO33
1990.

Somos incessantemente forçados a torcer e moldar nossas


identidades, sem ser permitido que nos fixemos a uma delas.

Zygmunt Bauman

N
o capítulo anterior, observamos os efeitos de sentido em
imagens circunscritas no quadro fotográfico e na imo-
bilidade. Analiso, agora, as questões sobre identidade e
subjetividade à luz dos jogos da memória discursiva. E me dete-
nho sobre a articulação entre imagens e enunciados verbais.
Fonte: https://www.moma.org/artists/7027?locale=pt&page=1&direction
A identidade está em crise, a solidez moderna se liquefez no
Essas imagens de gente simples são perpassadas pelo poder do hibridismo contemporâneo. As grandes certezas e os fundamen-
fotógrafo que os tornam “estranhas fulgurações31”. Esses homens tos sociais mais permanentes se dissolvem em uma época propícia
à margem do american way of life entram na esfera da visibilidade, às transformações. E mais: as identidades, agora cambiantes, se
a partir das construções semiodiscursivas estabelecidas pelo apa- constroem a partir de uma perspectiva da visibilidade midiática.
rato e pelas determinações do fotógrafo. Dessa forma, essas vidas Nos jogos de memória dos sujeitos e do aparato técnico constro-
breves se tornam, como denomina Foucault, “singulares, torna- em-se discursividades de si e do outro, ou seja, processos identitá-
das, por obscuros acasos, estranhos poemas” 32. rios. Ao rememorar acontecimentos, pensamentos, sentimentos e
Envolto no silêncio da noite e na ausência do movimento, emoções, os indivíduos vão se afirmando enquanto sujeitos sin-
essa última imagem sintetiza a construção imagética de um su- gulares.
jeito-fotógrafo, inserido em uma formação ideológico-discursiva, Tateando essa era de hipervisibilidade e espetacularização,
que rompe com o sistema de restrições imagético e hegemônico identifico no documentário contemporâneo pistas simbólicas
que silencia os homens às margens sem, contudo, aderir a uma para se compreender a formação identitária por meio do discurso.
ordem discursiva do espetáculo.
Elegi como norteador desta reflexão uma narrativa documen-
tal calcada no relato da vida de uma mulher, uma história encena-
da em frente às câmeras. O documentário brasileiro Elena (2012),
de Petra Costa, é marcado pelo hibridismo entre o real e o ficcio-
31 FOUCAULT, Michel. La vida de los hombres infames. La Plata: Altamira,
1996.
33 Uma versão desse texto foi publicada na revista Rebecca, Revista Brasileira
32  Idem, p. 121. de Estudos de Cinema e Audiovisual.

28 29
Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

nal e pela enunciação de mulheres, protagonistas desses discursos. presente uma abstração em um objeto ou por meio dele. Ao emer-
gir como tentativa de representação da realidade, o cinema docu-
A questão-problema pode ser elaborada nos seguintes termos:
mental, a partir dos Lumières, minimizou os efeitos da morte. Se
como a identidade das “personagens” é construída sob a instabili-
a fotografia representava o instante final, parafraseando Barthes35,
dade da memória na modernidade líquida?
as imagens em movimento mobilizariam a roda da memória, per-
Entendo que as imagens no aparato cinematográfico são re- petuando a presença dos representados36.
cortes de um construto de realidade ou uma ficcionalização de
A adoção da estética ficcional afronta a barreira do documen-
elementos que buscam parecer verossímeis, sobretudo, no docu-
tário. Essas fronteiras deslocadas e errantes tornam cada vez mais
mentário.
verdadeira a afirmação de que o cinema é um construto complexo
A partir da definição desse problema, delineio como objetivo de representações, conforme afirmou Godard “nem arte, nem téc-
a análise da construção identitária da narradora-personagem e di- nica, um mistério”37.
retora no filme em tela. Para isso, discutirei algumas enunciações
Se as identidades são cambiantes, o gênero documentário as-
e cenas nas quais Petra Costa atualiza e reconstrói a memória fa-
sim também se apresenta em Elena. No documentário, com sua
miliar no processo fílmico34.
vontade de verdade, as fronteiras entre o representado e imaginá-
Em Elena, primeiro longa-metragem da diretora, temos a rio fílmico se confrontam e promovem questões de ordens filosó-
carta de uma irmã viva para uma morta, narrativa recriada com ficas, estéticas e existenciais. Ao permitir a encenação, Petra Cos-
imagens reais e antigas de uma câmera caseira e sons em fita, gra- ta desestabiliza o efeito mimético documental, recurso possível e
vados ao longo dos anos pela irmã mais velha, que se suicida em executável no contexto histórico da modernidade líquida.
1990. Essa tragédia, também desenvolvida com imagens cinema-
O rompimento das fronteiras clássicas entre ficcional e real
tográficas profissionais, é o fio condutor da narrativa que mescla
se consolidou no documentário brasileiro a partir de uma série
elementos ficcionais com a jornada real de três mulheres, costu-
de realizadores. A estética ficcional como afronta às normas do
radas pelo destino e pela pulsão de morte: as irmãs Elena, Petra e
documentário tem em Eduardo Coutinho38 o mais contundente
mãe delas.
representante. Em Jogo de Cena (2006), o hibridismo entre a fic-
Analiso como se desenham as identidades femininas a partir ção e a realidade forma um jogo cênico que combina elementos
da construção dessas memórias autobiográficas ou autoficcionais. ficcionais a partir de histórias reais e desconstrói o gênero, pro-
Ao estudar as identidades femininas na “modernidade líqui- blematizando os seus limites e as suas fronteiras. Elena herda essa
da”, à luz de um documentário híbrido, resvalo na questão fulcral filiação histórica, os jogos narrativos levam a um processo de es-
do cinema como um sistema de representação de mundo e de
construção da realidade. 35  BARTHES, Roland. A câmara clara. Lisboa: 70, 1981.
O termo repraesentare significa, etimologicamente, tornar 36 Em Elena esse simulacro da presença provoca uma expectativa de que a pro-
tagonista ainda estaria viva.
37  GODARD, Jean-Luc. Histoire(s) du cinema. Paris : Gallimard-Gaumont ,
34 A singularidade reside na narrativa autobiográfica e nos múltiplos papeis
1998, p. 182.
desenvolvidos por Petra Costa (diretora, narradora, atriz e roteirista do filme).
Ela estreou como diretora de cinema, em 2009, com o curta Olhos de Ressaca, 38  O autor se destaca pelos documentários Santo Forte (1999), Babilônia 2000
onde, também, utiliza a história de familiares como fio da narrativa. (2001), Edifício Master (2004) e Jogo de Cena (2007).

30 31
Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

tranhamento do documentário, lembro as questões feitas na pri- quida”. Segundo Bauman, o estágio atual da modernidade é mar-
meira vez que o assisti: como essas imagens reais foram gravadas? cado por instabilidade de todas as ordens; ele alude à metáfora
Qual o sentido de se encenar a vida no cinema? do Manifesto Comunista para explicar esse processo: “‘Dissolver
tudo que e sólido’ tem sido a característica inata e definidora da
Esse procedimento estético nos permite extrapolar a máxima
forma de vida moderna desde o princípio; mas hoje, ao contrário
de Zizek, quando desvela a construção do realismo nos reality
de ontem, as formas dissolvidas não devem ser substituídas (e não
shows: “ainda que se apresentem como reais para valer, as pes-
o são) por outras formas sólidas – consideradas ‘aperfeiçoadas’,
soas que neles aparecem estão representando – representam a si
no sentido de serem até mais sólidas e ‘permanentes’ que as an-
mesmas39”.
teriores, e portanto até mais resistentes à liquefação. No lugar de
Em Elena (2012), essa autorrepresentação se exacerba na tes- formas derretidas, e portanto inconstantes, surgem outras, não
situra da narrativa: imagens filmadas em vida pela irmã morta se menos – se não mais – suscetíveis ao derretimento, e portanto
mesclam com a narrativa em off e a representação de seu drama também inconstantes”43.
familiar. O papel da mãe, personagem central do documentário,
Em obra anterior, Bauman44 defende que, durante séculos,
se amalgama com a encenação de atrizes na cena final. A dança
as relações sociais se mantiveram no domínio da proximida-
nas águas mistura bailarinas profissionais com as personagens do
de. A construção artificial dos territórios permitiu um senso de
documentário produzindo um efeito palimpsesto e intericônico40.
pertença à localidade que dava sentido aos habitantes. Naquelas
Para Ramos, essas narrativas documentárias que se revelam condições históricas, a identidade era evidente demais para ser
“ardilosamente” ficções não invalidam as definições do que é um problema, posto que calcada na proximidade geográfica, nos
documentário, stricto sensu41. Concordo com a afirmativa, mas domínios da localidade; todavia, quando o poder aglutinador da
pressuponho que, nesses momentos, estamos próximos à noção vizinhança se reduz, a identidade emerge como desafio.
de acontecimento42, entendido como a irrupção de uma singu-
A identidade na contemporaneidade não seria mais essa “coi-
laridade única e aguda, no lugar e no momento de sua produção.
sa concreta”, mas, nem por isso, inexistente. É possível pensá-la
Esse acontecimento documental nos permite adentrar na análise
na construção narrativa de Elena como elemento aberto e em for-
da identidade feminina.
mação, como revela a diretora Petra Costa que, após ler os diários
da irmã na adolescência, se identifica com as memórias escritas.
Identidades costuradas “Ali decidi um dia fazer um filme sobre este tema da crise de iden-
A crise da identidade é um acontecimento da “modernidade lí- tidade entre as irmãs45.”.

39 ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real: cinco ensaios sobre o 11 de


setembro e datas relacionadas. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 26.
40  Nesse processo de diálogo e ressignificações das imagens, via memória, é 43  BAUMAN, Zygmunt. A cultura no mundo líquido moderno. Rio de Janeiro:
impossível não se evocar a pintura Ofélia de John Everett Millais. Zahar, 2013, p. 16, grifos do autor.
41  RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal...o que é mesmo documentário? São Pau- 44 BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
lo: SENAC, 2008.
45  COSTA, Petra. Entrevista exclusiva. Petra Costa fala sobre o documentá-
42  FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense rio Elena. Disponível em: http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noti-
Universitária, 2004. cia-102960/. Acesso em: 20 de março de 2014.

32 33
Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

Nessa modernidade líquida46 há uma série de “identidades” persistem: “É possível não falar do passado. Uma família, um Es-
inventadas ou à disposição dos sujeitos. Esse processo se constrói tado, um governo podem sustentar a proibição; mas só de modo
antes do nascimento e perpassa os espaços e dispositivos sociais. aproximativo ou figurado ele é eliminado, a não ser que se elimi-
Bauman advoga que a identidade é um “conceito altamente con- nem todos os sujeitos que o carregam [...]. Em condições subjeti-
testado” 47. Essa afirmação nos leva a pressupor que a construção vas e políticas “normais”, o passado sempre chega ao presente”49.
de uma persona social e o reconhecimento de si como parte de um
Esse conflito se evidencia quando a família de Petra Costa
grupo se dá no enfrentamento com a alteridade, como no caso do
tenta apagar as memórias da irmã o que, paradoxalmente, corro-
filme em análise. É somente ao investigar as memórias de e sobre
bora com o processo de investigação da diretora. O percurso de
Elena que Petra Costa consegue se desidentificar com a irmã.
construção de sua identidade/alteridade levará a narradora-cine-
Essas proposições refletem a importância da análise da cons- asta a reconstruir tais fragmentos interditados a partir dos objetos
trução identitária no documentário Elena. E mais: as narrativas pessoais, discursos e imagens de Elena. Assim, esse exemplo nos
são elementos inquietantes para se compreender os atores numa aponta a força do passado que, segundo Sarlo, “continua ali, longe
época de descentramento, hibridismo, paradoxos e mal-estar, ca- e perto, espreitando o presente como a lembrança que irrompe
racterística destes tempos. no momento em que menos se espera ou como a nuvem insidiosa
que ronda o fato do qual não se quer ou não se pode lembrar”50.
Todo processo identitário é construído nos espaços da me-
mória e da lembrança. Halbwachs48 advoga que, por meio da me- A partir da “modernidade líquida” houve um ressurgimento
mória, o passado vem à tona, misturando-se com as percepções do “espetáculo do passado”, conforme aponta Sarlo, com a ênfa-
imediatas, deslocando-as, ocupando todo o espaço da consciência. se na criação de objetos culturais (filmes, livros, espetáculos etc.)
Se a lembrança é de ordem subjetiva, a memória é social, forma- e monumentos que tencionam construir passagens históricas.
da por pensamentos e experiências coletivas imbricadas. Dessa Antes, era impensável a produção de um documentário, com fi-
forma, as lembranças de Petra Costa são assomadas a elementos nanciamento público e privado, sobre a história de uma mulher
construtores de memória: os arquivos escolares e médicos, os di- anônima, posto que os grandes acontecimentos e temas sociais
ários da irmã, o testemunho dos familiares, o retorno aos lugares eram privilegiados: “Esses sujeitos marginais, que teriam sido
em que ela viveu. relativamente ignorados em outros modos de narração do pas-
sado, demandam novas exigências de método e tendem à escuta
Entendo que as lembranças dos indivíduos são construídas,
sistemática dos discursos de memória: diários, cartas, conselhos,
reconfiguradas, encenadas dentro do grupo social de seus atores e
orações”51.
do momento histórico de sua produção. E nem sempre esse pro-
cesso é pacífico, há lutas e resistências para os discursos memo- Toda história de vida está inscrita em corpos de sujeitos de-
rialísticos. Sarlo nos lembra que o passado é sempre conflituoso
e que é impossível reprimi-lo; enquanto existirem os sujeitos que 49 SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva.
viveram os acontecimentos, as lembranças pessoais e coletivas São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 10, grifos
da autora.
50 Idem, p. 9.
46  BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
51 SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva.
47  Idem, p. 83.
São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 17, grifos
48 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 2004. da autora.

34 35
Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

sejantes, partidos pela fragmentação existencial de si. O incons- por outros elementos dramatúrgicos (flashback, narração em pri-
ciente, como linguagem e processo, aponta a falta como condição meira pessoa, depoimentos, inserção de imagens reais, fotografias
da subjetividade humana. Nesse sentido, através da arte, Petra e documentos) que promovem uma atmosfera memorialística e
ressignifica a sua relação com a irmã, conforme declarou em en- poética à narrativa.
trevista: “ao longo do filme, Elena foi virando um ser humano, de
Acerca desse aspecto, Petra declarou que Elena se aproxima
carne e osso, com diversas características. O processo era como se
do curta Olhos de Ressaca (2009), primeiro trabalho dela como
eu constantemente estivesse ganhando uma irmã para em seguida
diretora de cinema: “onde (eu) havia descoberto esta estética mais
perdê-la de novo” 52.
onírica e poética, (de) que havia gostado bastante. É também uma
Defendo que a palavra no documentário funciona como phár- forma de falar da memória e do sonho, usando bastante material
makon e mobiliza a ação das depoentes. O perder e reencontrar a em Super 8, película, 16 mm e VHS” 54. Fica explícita a adoção
irmã produz efeitos dolorosos, mas ressignifica a lacuna do “ou- de uma estética híbrida que explora as reminiscências pessoais
tro”, conforme declarou a diretora na referida entrevista: “Foi de maneira realística, a partir de imagens não profissionais, e a
uma mistura de prazer e dor. A parte prazerosa foi que ganhei estética poética, evidenciada na direção de arte, na sonoplastia e
uma irmã neste processo, já que tinha poucas lembranças da na fotografia.
Elena por ser muito pequena e a via meio como uma lenda. Ao
A identidade, sempre dinâmica, precisa de um sujeito que
mesmo tempo, a dor foi muito grande porque tinha muito mais
represente para si e para o outro uma maneira de se colocar no
consciência para entender o que realmente aconteceu e o quão
mundo, seja por suas atividades, discursos e/ou memórias recon-
trágico foi” 53.
tadas. Há diferentes maneiras dessas “personagens” construírem
É no jogo da memória, calcado na configuração social e cole- seus lugares de fala e suas apropriações da memória. Em Elena a
tiva, com a lembrança, pessoal e subjetiva, traduzido no falar das narração subjetiva evoca pertencimento e produz efeitos de pro-
personagens, construção simbólica, que o processo identitário vai ximidade e intimidade, ouvimos as memórias de Petra como se
se conformando. lêssemos os seus pensamentos e sondássemos suas emoções. Se
rememorar no documentário é sempre ocasião de escolhas, cortes
No emaranhado da memória e supressões, a memória no filme está, como as irmãs, fraturada
no limite do campo cinematográfico.
A identidade construída e encenada é produto relativo e provi-
sório da história de vida e das condições históricas e sociais. Em O postulado da alteridade como estruturante da identidade é
frente às câmeras, os sujeitos ressignificam suas falas e produzem ponto pacífico numa perspectiva discursiva, mas é sempre bom
discursividades distintas do cotidiano, seja pela exploração dos reafirmar que o sujeito sempre negocia com o “outro” suas identi-
recursos técnicos (closes, câmera na mão, imagens desfocadas, sa- ficações e desidentificações. É o que ocorre no processo de redes-
turação das cores, planos abertos, iluminação impressionista) ou coberta e reconstrução das memórias de Elena.
O caráter dinâmico de identidade/alteridade leva-nos à análi-
52  COSTA, Petra. Entrevista exclusiva. Petra Costa fala sobre o documentá- se das personagens de Elena. Quem, afinal, são Petra e Elena Cos-
rio Elena. Disponível em: http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noti-
54 COSTA, Petra. Entrevista exclusiva. Petra Costa fala sobre o documentá-
cia-102960/. Acesso em: 20 de março de 2014.
rio Elena. Disponível em: http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noti-
53  Idem. cia-102960/. Acesso em: 20 de março de 2014.

36 37
Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

ta? Como elas se constituem em diferentes subjetividades, apesar sar de convocada para vários testes em Nova Iorque, onde mora-
dos mesmos desejos profissionais, amor à atuação, doença mental va, a efetivação do sonho não ocorre. Em off, Petra conta como a
e desejo de morte? irmã contactava os produtores, levava fotos, currículo, entrevistas,
mas não obtinha êxito: “os dias passam e ninguém te dá notícia.
Só temos acesso a esses sentidos a partir da fala como materia-
Ninguém liga de volta. Você liga muitas vezes, mas te dizem para
lidade da memória e das rememorações. É nesse plano do simbó-
esperar. Você não suporta esse tempo. Essa espera...”.
lico que empreendo a análise do funcionamento dessas imagens
documentais. Dessa forma, fiz um recorte no plano das falas das Sem conseguir lidar com a frustração profissional e existen-
personagens, embora reconheça que outros elementos narrativos cial, a personagem sucumbe ao suicídio.
(música, enquadramentos, edição, luz, etc.) cooperam na produ-
Em diversos momentos, o documentário põe em destaque os
ção de sentidos. Há um efeito narrativo a ser esclarecido: Petra
elementos biográficos que aproximam as duas irmãs. No início,
sempre se dirige à irmã no presente como se ela pudesse ouvi-la.
Petra narra um sonho recorrendo à metáfora do emaranhado,
Para o espectador, isso gera uma expectativa de que Elena está
nele, podemos observar profundas identificações das duas irmãs:
viva até o momento da revelação do seu suicídio.
“Elena, eu sonhei com você esta noite. Você era suave. Andava por
A construção narrativa do filme da diretora-enunciadora Nova Iorque com uma blusa de seda. Procuro chegar perto. En-
permite um discurso que reforça o amálgama identitário das per- costar. Sentir seu cheiro, mas quando vejo você está em cima de
sonagens, ao rememorar uma fala do pai — talvez, o primeiro a um muro. Enroscada em um emaranhado de fios elétricos. Olho
identificar (ou construir) tais semelhanças: “Na verdade, o nosso de novo e vejo que sou eu que estou em cima do muro, mexendo
pai sempre disse que eu e você herdamos esse sonho de fazer cine- nos fios tentando levar um choque. E caio de um muro bem alto
ma da nossa mãe. E no meio dessas fitas de vídeo, achei esse filme e morro”.
que ela nunca me mostrou. É um filme mudo em que ela interpre-
No universo onírico, linguagem inconsciente por excelência,
ta a protagonista no tempo em que ela ainda sonhava em ser atriz
a autoria das ações é dividida entre Petra e Elena, como elemento
de Hollywood e beijar o Frank Sinatra. Assim se sentia mulher e
indicativo das identidades móveis e em construção. A narração
tentava escapar de um mundo em que se via desadaptada, incom-
de Petra agudiza a dramaticidade da narrativa, aos poucos o es-
preendida. Filha de uma tradicional família mineira, ela não viu
pectador percebe os sentimentos envolvidos nas relações: a mor-
um lugar para si. A não ser casada, mulher, society”.
te precoce da irmã deixa a pequena Petra, então com sete anos,
A identidade é sempre uma negociação entre o que os “outros” perturbada, por isso, será levada ao acompanhamento médico
nos atribuem e aquilo que reconhecemos como nosso. Petra não para diagnóstico e tratamento. Os sintomas neuróticos da filha
apenas rememora o discurso paterno como também se identifica mais nova surgem a partir da consciência efetiva da efemeridade
com ele, mais à frente no filme, ela enuncia: “Hoje eu ando pela humana e, com isso, o medo da perda da mãe. “Começo a fazer
cidade ouvindo sua voz e me vejo tanto em suas palavras que co- promessas constantes. Que não vou comer mais sal, que vou su-
meço a me perder em você”. bir todas as escadas do nosso décimo nono andar de joelhos, que
nunca mais vou me olhar no espelho para ela não morrer”.
O deslocamento, o sentido de incompletude e vazio existen-
cial marcarão passagens relevantes do discurso das três mulheres. O caminho de Petra, treze anos mais nova que a irmã, é o
A mãe, como Elena, deseja frustradamente ser atriz de cinema. da identificação especular, quando adolescente, aspira ao sonho
Tais desejos também não se realizam na vida da protagonista, ape- interditado pela família: torna-se atriz. De certa maneira, esse

38 39
Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

“sonho” fora construído por Elena, conforme depreendemos do çarinas profissionais, ao lado de Petra e mãe, encenam o suicídio
fragmento: “minha mãe disse que você, desde os quatro anos, sa- de si e da mãe. Num mar, um balé de Ofélias. Ao reconstruir os
bia que queria ser atriz. E parece que você sempre dava um jeito desejos de vida e morte, Petra transforma a memória distante de
de me pôr para contracenar com você” e “[...] me treina para ser Elena num ritual de renascimento, ao que conclui: “Eu enceno.
atriz”, conclui a rememoração. Enceno a nossa morte. Para encontrar ar. Para poder viver. Pouco
a pouco as dores viram água, viram memória”. Em seguida, des-
Novamente, a identidade das duas se conecta: duas irmãs,
taca indelevelmente a ação da memória: “As memórias vão com
duas atrizes. Entre elas, o pesadelo da depressão e o medo mater-
o tempo. Se desfazem. Algumas não encontram consolo. Apenas
no de que a filha mais nova se encaminhe para a autodestruição.
um alívio. Encontram brecha na poesia. Você é minha memória
“Nossa mãe sempre me disse que eu podia morar em qualquer lu-
inconsolável. Feita de sombra e pedra. E dela que tudo nasce e
gar do mundo, menos Nova Iorque. Que eu podia escolher qual-
dança”.
quer profissão, menos ser atriz”.
E termina o filme com o “sob o som” da música Dedicated
Contrariando a interdição materna, Petra ingressa no curso
To The One I Love, do Mamas e Papas, cujo fragmento, diz: “toda
de teatro em Nova Iorque. A proteção familiar tenta construir um
noite, antes de você ir para cama, baby/ Sussurre uma oração
apagamento da imagem da irmã morta, mas o resultado é inócuo.
por mim, baby/E diga a todas as estrelas acima:/essa é dedicada
A filha caçula encaminha-se aos EUA, com os pertences da irmã,
a quem eu amo”.
para lhe reconstruir uma memória, enturvada pelo tempo: “que-
riam que eu te esquecesse, Elena, mas eu volto para Nova Iorque Encenar as memórias enturvadas pelo tempo é reconstruir a
na esperança de encontrar você nas ruas. Trago comigo tudo que si mesma pelo fazer fílmico, como o faz a cineasta, antropóloga
você deixou no Brasil”. de formação. Petra realiza uma etnografia de si mesma e de seu
entorno, conectando-se com os “espíritos” que povoam o ima-
Petra não se mata, torna-se atriz e diretora de cinema, e cons-
ginário familiar. Ela exorciza o espectro do “outro” a partir da
trói pelo discurso uma ponte entre Elena e si. É nesse processo que
constituição fílmica, pública e hiper-real. A vida na era da midia-
se dá o afastamento das duas e a consolidação de outra identidade
tização não pode ser apenas vivida, é preciso publicizá-la para os
para a irmã mais nova, rompe-se o emaranhado e Petra se conso-
outros. Para contar esse drama “verdadeiro”, à semelhança das
lida como “outra”. Esse processo de busca de investigação da voz
contadoras de histórias, a diretora recorre ao ficcional e à recons-
da irmã possibilita a transformação da realizadora-narradora: “O
trução poética, desafiando limites dos gêneros fílmicos.
medo de seguir seus passos começou a se desfazer. Eu comecei a
perceber que você, Elena, estava dentro de mim, querendo estar Desde a sua gênese, por meio do legado dos precursores como
em mim. Deixei de sentir isso, a começar a te buscar. Você foi, Mèlies e Griffith, o cinema já se constrói um campo de experi-
ganhou forma e corpo renascendo para mim, mas para morrer mentações entre a ficção e o real. Essas experimentações chegam
de novo. E eu com muito mais consciência para sentir sua morte às imagens hiper-realistas – cujas câmeras perscrutam toda a vida,
dessa vez, imenso prazer acompanhado da dor. Eu me afogo em pensamento e ação das personagens – do final do século passado
você e em Ofélias”. e à ruptura da estética clássica do cinema documental que tem em
Elena um expoente. O que torna o filme singular é o foco subjeti-
Ao fim da narrativa, a diretora-realizadora realiza o grande
vo da narradora-personagem e tom autobiográfico, autoficcional
desejo da visibilidade, transforma a irmã e a mãe em personagens
e memorialístico.
do próprio documentário. Na tomada final, há um rio onde dan-

40 41
Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

A recepção favorável da crítica – foram mais de nove prêmios tras ao redor do mundo.
em festivais – e do público – foi o documentário mais visto no
As narrativas autoficcionais pululam no cotidiano: blogs, re-
Brasil em 2013 – se ancora nas mudanças históricas de produção
des sociais, livros e filmes popularizam a publicação dessas his-
e circulação dos produtos culturais. Nas últimas décadas, houve
tórias. O voyeurismo e o narcisismo complementam esse suces-
uma revalorização do interesse pelas micronarrativas do cotidiano.
so. Continuamos a olhar pelas frechas das fechaduras, sejam elas
E, nesse esteio, volta-se a atenção para as histórias de vidas. Nessa
construídas em madeira ou pixels.
“guinada subjetiva55” processo de enriquecimento da memória na
reconstrução do passado, valorizam-se os relatos, o testemunho e Outra questão importante a se ponderar: na sociedade midia-
os discursos dos sujeitos que viveram in loco os acontecimentos. tizada, o hiper-realismo suplanta o real e se coloca como pres-
suposto da verdade; por exemplo, não importa a informação da
Os discursos em Elena podem nos levar ao equívoco de pen-
morte de Elena, é preciso ouvir os depoentes, exibir o laudo médi-
sar que as relações de identidade/alteridade das personagens são
co, detalhar as reações da mãe em planos, zoom e câmera lenta. A
um processo apenas subjetivo e biográfico. Acredito que os pro-
partir do pressuposto que vivemos uma era de vigilância de todos
cessos históricos – condições de existência – permitiram a ressig-
com todos, num panóptico em rede, podemos generalizar a hipó-
nificação dos sujeitos em tela. Entendo que há três grandes pro-
tese de Aumont “todo filme é um filme de ficção” 56.
cessos intrínsecos à narrativa: a ênfase na subjetividade, ou seja, o
fortalecimento individual dos protagonistas da história, indepen-
dente de sua posição no grupo social; a aceitação da ruptura das
normais clássicas formais e a hipervisibilidade contemporânea e
o esgarçamento da construção da realidade.
Só foi possível produzir um documentário sobre uma biogra-
fia de uma anônima graças ao processo contemporâneo de esteti-
zação do cotidiano, como apontam os reality shows, homens co-
muns rompem a barreira da invisibilidade e encenam suas vidas
diante das câmeras. Já se defendeu que, a partir do atual estágio
da modernidade, os grandes mitos e as grandes narrativas abrem
espaço para as falas do dia a dia, para os discursos menores e para
a celebração do indivíduo.
É sintomático que o filme enfoque a vida e o desejo de uma
atriz profissional que, em tempo da hegemonia das mídias, so-
bretudo nos anos de 1980, quando se passa a história, tem como
grande meta o desejo de entrar no star system. As questões de
história de vida tocam o seio da sociedade capitalista, o sonho
hollywoodiano de Elena também é comungado por inúmeras ou-

55 SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva.


São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007. 56  AUMONT, Jacques. Esthétique du film. Paris: Nathan, 1999, p. 70.

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Adriano Charles Silva Cruz

4 OS SENTIDOS NAS REVISTAS SEMANAIS57 a ex-ministra do Meio Ambiente59 em boa parte dos dois gover-
nos do petista Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011), alcança o
terceiro lugar nas pesquisas de opinião pública, com quase 20%
dos votos válidos, sendo uma alternativa à polarização histórica
entre o principal partido do governo (o PT) e o da oposição (o
PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira).
Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas Em 2014, sem conseguir viabilizar a aprovação do seu novo
condições de produção se apresenta como uma imensa partido (Rede de Sustentabilidade), a candidata aceita ser vice na
acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido chapa do PSB, ao lado do socialista Eduardo Campos. O amál-
diretamente tornou-se uma representação. gama dessa composição já apresentava divergências de posicio-
namentos ideológicos que se tornaram públicos após a morte do
Guy Debord socialista.

D
epois do trágico acidente que vitimou o candidato à Pre- Para viabilizar a nova candidatura, era preciso pensar uma
sidência da República, Eduardo Campos, pelo Partido nova estratégia. O marketing construiu, dessa forma, um ethos
Socialista Brasileiro (PSB), no dia 13 de agosto de 2014, inovador: Marina se apresentava como a candidata da “nova po-
a então vice na chapa, Marina Silva (REDE), atrai os holofotes lítica”, se contrapondo às práticas tradicionais da “velha política”
midiáticos. Com a confirmação de seu nome como presidenciá- brasileira (patrimonialismo, apadrinhamento, política de alianças
vel, ela se torna capa de revista. pela governabilidade são algumas dessas práticas postas em sus-
peição).
A partir desse acontecimento, delineio meu objetivo princi-
pal: analisar o processo de construção midiática da candidata da Dentro dessas condições de possibilidade, analiso as relações
“nova política”, nas três principais publicações semanais brasilei- interdiscursivas60, a partir das seguintes questões: que imagens de
ras: revistas Época, Isto É e Veja, em agosto de 2014, quando Ma- Marina Silva foram construídas? Que jogos de significações são
rina se tornava oficialmente candidata à Presidência. estabelecidos naqueles textos midiáticos?
As trilhas da história nos permitem perceber melhor a disputa Defendo, como hipótese, que o discurso da “nova política” em
entre “formações ideológicas” distintas que se encontra em dis- confronto com polêmicas no interior da coalização PSB e Rede de
puta na “arena discursiva58” das reportagens. Em 2009, depois de Sustentabilidade foi o acontecimento mais relevante a gerar um
anos no Partido dos Trabalhadores (PT), Marina Silva se filia ao discurso de suspeição à candidatura.
Partido Verde (PV) e se candidata à Presidência da República pela Relembro que o discurso é um “efeito de sentidos entre in-
primeira vez em 2010. Considerada o grande destaque da eleição,
59  Foi ministra do Meio Ambiente de 2003 a 2008.
57 Uma versão deste texto foi apresentada no Congresso Ibero-americano de
60  “Este (o interdiscurso) é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar,
Pesquisa em Comunicação em 2017 e teve financiamento da Secretaria de Re-
independentemente. Ou seja, é o que chamamos memória discursiva: o saber
lações Internacionais da UFRN.
discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-cons-
58 BAKHTIN, Mikhail. (Voloshinov). Marxismo e filosofia da linguagem. São truído”. ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 7. ed.
Paulo, Hucitec, 1992. Campinas: Pontes, 2007, p. 31.

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Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

terlocutores61”. Inseparável do conceito de ideologia, o discurso é exemplares por edição. A diferença entre as outras é abissal:
um de seus aspectos materiais. Em outras palavras, o discurso é o a Época, segunda colocada, teve circulação de 392 mil e, a Isto É,
locus no qual se articula a língua e a ideologia. 331 mil exemplares por edição.
Analiso as matérias principais, enunciadas nas capas. Destaco, No Brasil, as revistas semanais investem em produção gráfica
ainda, três62 fotografias em que Marina Silva aparece. e de conteúdo, proporcionando o surgimento de discursos que
superam as premissas da objetividade jornalística. Ao lado dos
Não há separação estanque entre as descrições das materiali-
textos, as capas, as fotografias, os infográficos emitem posiciona-
dades (imagens e textos) e das análises, posto que a descrição e a
mentos ideológicos e cooperam no processo de discussão pública.
categorização dos fenômenos são práticas discursivas63.
Em 2014, os debates e os embates políticos promoveram um am-
A escolha do corpus da pesquisa se justifica pela relevância biente propício para a circulação de dizeres e visualidades agonís-
que as revistas semanais ainda apresentam no contexto do jor- ticas que se cruzaram nas imagens das revistas.
nalismo brasileiro64. Segundo estudo do Instituto Verificador de
Circulação, em 2016, a Veja saltou de 260 mil assinantes digitais, Narrativas, imagens e heterogeneidade nas revistas
em dezembro daquele ano, para 345 mil, em fevereiro de 2017. A
Época, nesse período, passou de 50 mil para 94 mil assinantes on- A premissa de base defende que as narrativas jornalísticas, como
line. O instituto não apresenta dados atualizados das outras duas todos os discursos, são perpassadas pela heterogeneidade. O dis-
publicações. Os últimos coletados foram os de 2014, naquele pe- curso das revistas sobre Marina Silva é construído dentro do jor-
ríodo, a circulação total de revistas semanais foi de 3,65 milhões nalismo e, ao mesmo tempo, é atravessado por outros campos
de exemplares65. A pesquisa total não foi divulgada, apenas um como o religioso, o literário e o pedagógico, evidenciando, dessa
ranking parcial que apontava a revista Veja com a mais lida, entre forma, a sua “tessitura palimpsesta”.
as semanais. De acordo com Pêcheux, os discursos se constroem por ou-
Em 2013, foram produzidas uma média de 1,08 milhão de tros: “algo fala (ça parle) sempre antes, em outro lugar e indepen-
dentemente” 66. O processo interdiscursivo é, pois, o gerador da
61  PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. produção de sentidos. Ele opera por meio dos “já ditos”, enun-
4. ed. Campinas: Unicamp, 2009. ciados produzidos pela memória ou nas enunciações possíveis de
62  Duas delas formam um campo de significação comum. serem produzidas.
63 Para Orlandi “a construção do corpus e a análise estão intimamente ligadas: Dessa forma, diálogos e duelos entre campos distintos são
decidir o que faz parte do corpus já é decidir acerca de propriedades discursi-
vas”. ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 7. ed.
costurados nas narrativas jornalísticas. Citações, discursos indire-
Campinas: Pontes, 2007, p. 63. tos, ironias, dados estatísticos são algumas das formas em que se
materializa a heterogeneidade nas reportagens.
64 Cf. MALAN, Mauro. Circulação das revistas em queda. Observatório da
Imprensa. Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/ Ressignifiquei67 o conceito de intericonicidade na análise de
view/circulacao_das_revistas_em_queda. Acesso em: 17 setembro 2014.
65 Houve uma pequena retração, em 2012, a circulação foi de 3,75 milhões.
66 PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.
Disponível em:  http://www.meioemensagem.com.br/home/midia/noti-
4. ed. Campinas: Unicamp, 2009, p. 149.
cias/2014/03/17/Circulacao-das-semanais-cai-2-7--.html#ixzz3DaXgUlyH.
Acesso em: 08 de junho de 2017. 67 CRUZ, Adriano Charles. A charge no governo Lula. Natal, EDUFRN, 2014.

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Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

imagens jornalísticas e tenho observado o papel fulcral da me- no dos temas veiculados. Os discursos, por seu turno, constroem
mória na produção de sentidos: traços de outras imagens, ges- narrativas sobre o mundo produzindo sentidos, posicionamentos
tos, movimentos, cores, luzes e sombras emergem atualizados e e explicações sobre os fenômenos.
constroem um discurso a partir de outros “já vistos”. Há que se
considerar o papel da cultura da visualidade que nos permite re- As imagens nas capas das revistas
conhecer os códigos, indícios e sinais entre as imagens.
A primeira pesquisa Datafolha realizada, apenas cinco dias da
No mundo dominado pela mídia impressa e eletrônica, nosso morte de Eduardo Campos, mostrava Marina Silva, ainda pro-
senso de realidade é estruturado por narrativas, conforme defen- vável substituta do ex-governador de Pernambuco, com 21% das
de Fulton68. Entendo que o jornalismo constrói discursos sobre intenções de voto. Na pesquisa anterior do mesmo instituto, em
o mundo através de histórias e por uma série de procedimentos 15 de julho daquele ano, Campos tinha apenas 8%, portanto hou-
comunicacionais e antropológicos (os mitos da objetividade e im- ve uma guinada da candidatura do PSB.
parcialidade, o papel heroico do jornalista, os critérios de noti-
ciabilidade etc.) que pretendem ser verdadeiros. Não raro, essas A produção das capas é um dos principais artifícios para se
narrativas são edificadas a partir de simplificações (estereótipos, conquistar os leitores. Expostas nas bancas, nos anúncios, na web
clichês e mitos) que recontam os acontecimentos. e nos outdoors, elas atraem os potenciais compradores e constro-
em significações que podem ou não ser confirmadas nas matérias
A narrativa, conforme Guilhaumou, Maldider e Robin, é um a que se referem.
tipo de discurso que não segue uma ordem cronológica de acon-
Figura 5: mosaico das capas das revistas semanais.
tecimentos. Há sempre “retrospecções, antecipações, rupturas
múltiplas da linearidade temporal” que produzem “a ordem fic-
cional da narrativa” 69.
Por fim, a partir de Silverstone70, defendo que não é possível
pensar a cultura ocidental sem considerar a ubiquidade das ima-
gens jornalísticas, notadamente na esfera da política e do espaço
público.
Ao lado de outras das mídias tradicionais e das sociais, as re-
vistas “agendam” 71 o surgimento dos debates públicos em tor-

68 FULTON, Helen Elizabeth et al. Narrative and media. New York: Cambrid- Fonte: elaborado pelo autor.
ge University Press, 2005.
69 GUILHAUMOU, Jacques.; MALDIDIER, Denise; ROBIN, Regine. Discurso A maioria de nós, leitores, fica, em algum momento, absorta
e arquivo: experimentações em análise do discurso. Campinas: Editora da Uni- na leitura de uma capa de revista. Por conseguinte, as estratégias
camp, 2016, p. 29. comunicacionais e de marketing são dirigidas, com afinco, a essas
70 SILVERSTONE, Roger. Por que estudar a mídia?. 3. ed. São Paulo Loyola, imagens, capazes de não apenas “vender o produto”, mas con-
2011.
71  MCCOMBS, Maxwell E. A teoria da agenda: a mídia e a opinião pública. Petrópolis: Vozes, 2009.

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Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

quistar posições, segundo Scalzo72. para saber se ela é apenas uma miragem ou opção política de ver-
dade” complementa o texto da Veja. Enquanto a revista Época
Duas revistas (Época e Veja) trazem questionamentos dire-
apresenta “As ideias, as chances e os limites da candidatura de
tos à candidata: “Até onde ela vai?” e “Marina presidente?”. Já a
Marina Silva à presidência”. O termo “limite” reforça a suspeição
revista Isto É enuncia um claro posicionamento destacando suas
discursiva à candidata, reforçada no interior do texto, como ve-
“contradições”.
remos.
As capas de Época e Veja são visualmente semelhantes, cons-
Em Isto É, há outra construção imagética: a personagem está
truídas por retratos bem aproximados que se diferenciam apenas
enquadrada de perfil, encoberta em penumbras e sombras, só ve-
pelo fechamento do quadro. Aqui se opera um efeito da interico-
mos nitidamente a boca, o contorno do nariz e um dos olhos. Não
nicidade, a memória de outras capas de revistas, que constroem
há pose, o olhar se volta ao nada, para o extraquadro. A constru-
maior visibilidade para o rosto e o olhar73. Têm-se, nas duas, um
ção intericônica é barroca, contrastiva, se agudiza com a manche-
close da candidata, a câmera é posicionada em contraplongé – de
te em branco, escrita em caixa alta e com variações no estilo e no
baixo para cima – há um esboço de sorriso.
tamanho da fonte: “As contradições de Marina” preenchem mais
Na revista Veja, a luz incide da esquerda para a direita em da metade de um dos hemisférios do quadro. A superfície escura
toda a extensão da cabeça e do pescoço, o cabelo está preso sem se sobressai, predominam os tons escuros, evocando, via memó-
fios revoltos. No lado oposto, há um efeito de sombreamento. As ria discursiva, os efeitos de mistério e medo.
sobrancelhas estão levantadas e olhar se dirige ao céu, construí-
Essa construção discursiva é intensificada pelas adjetivações
do um efeito de aura mística, por vias intericônicas, tem-se uma
e advérbios que se seguem: “Ela sempre teve ideias radicais, posi-
construção comumente usada na figura dos santos e imagens reli-
ções intolerantes e falta de clareza nas propostas. Com sua volta à
giosas. Já na revista Época inverte-se a direção da luz. Em comum,
corrida presidencial, já provoca rachas entre os aliados e desperta
há construção de uma atmosfera solene em torno de Marina, pro-
mais dúvidas e receios que certezas”. O advérbio “sempre” apaga
duzida por operações da memória discursiva.
o movimento histórico, cristalizando as ideias de Marina. A revis-
A personagem não parece posar para as fotos, constrói-se um ta destaca, em amarelo, os termos “posições intolerantes” e “racha
efeito de naturalidade, embora, maquiada e sem grandes imper- entre os aliados”. Ora, se até os aliados discordam dessa “intole-
feições no rosto, tratamento digital realizado por softwares espe- rância”, conseguiria ela então se tornar a presidente da República?
cíficos. A verticalização da imagem e os focos luminosos produz É, por vias parafrásticas, o que essa construção jornalística indaga.
altivez e chama atenção para o rosto. Há um equilíbrio entre foco
Opera-se um discurso de suspeição da candidatura de Marina,
e desfoco nos hemisférios do quadro.
embora modalizado em Época, pois, também, apresenta “ideias”
A aura etérea “photoshopada” é cindida pelo texto que ques- e “chances” e, na Veja, Marina pode ser “uma opção política de
tiona o percurso da candidata: “Com a entrada da ex-senadora verdade” e não um engano ou um “furacão”.
como um furacão na corrida eleitoral, o Brasil tem pouco tempo
Essa primeira aproximação do discurso das revistas já nos
72  SCALZO, Marília. Jornalismo de revista. São Paulo: Contexto, 2003, p. 62. permite concluir que os jogos imagéticos e as relações intertextu-
ais e intericônicas provocam uma atmosfera negativa e de descon-
73  Cf. CRUZ, Adriano Charles. “A construção da insegurança econômica nas
capas da revista Veja”. BOCC, Biblioteca Online de Ciências da Comunicação
fiança a Marina Silva. Vejamos como as reportagens aprofundam
[online]. 2008. essa discursivização.

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Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

A desconfiança em torno de Marina de ideias, nomes e acontecimentos. Assim, conforme defendi80,


inexiste sinonímia perfeita. A nomeação é um processo perpas-
Conforme indiquei, a revista Época apresenta duas reportagens sado pela ideologia, ou seja, as palavras significam por relação de
sobre a candidata: “Até onde ela pode ir?”, por Aline Ribeiro e transferência na qual “o sentido é sempre uma palavra por uma
Alberto Bombig74 e “Será que ela é amiga dos negócios?”, de José expressão ou proposição por uma outra palavra, expressão ou
Fucs75. Em diálogo intratextual, logo depois das matérias, apre- preposição”81.
senta uma entrevista76 com a senadora Kátia Abreu (PMDB), uma
Figura 6: caricatura de Marina Silva.
das principais representantes da chamada “bancada do boi”, o se-
tor do agronegócio. Entre aspas, há um destaque para a fala da
senadora “Marina fez da questão ambiental uma religião” 77.
Do conjunto de textos de Veja , o último, “No labirinto sonhá-
tico”78, de André Pety, traz uma caricatura de Marina Silva, com
traços grotescos, entrando em um labirinto. Como o próprio títu-
lo enuncia, a narrativa jornalística põe em dúvida as propostas da
candidata que “está num labirinto, mas é cedo para dizer se está
perdida ali dentro” 79.
Apesar das especificidades e das escolhas enunciativas dos jor-
nalistas, há pontos comuns entre as matérias analisadas: os recur-
sos às narrações, às descrições, às paráfrases e aos “julgamentos”
se amalgamam na tessitura palimpsesta das reportagens. Citações,
discurso indireto são modalidades que os repórteres utilizam para
promover efeitos de “objetividade”.
Os efeitos de objetividade mascaram o recurso da retomada

74  RIBEIRO, Aline; BOMBIG, Alberto. Até onde ela pode ir?. Época. Rio de
Janeiro: Globo, edição. 846, 25 agosto 2014, p. 26-31.
75  FUCS, José. Será que ela é amiga dos negócios? Época. Rio de Janeiro: Globo, Fonte: Veja (2014b)
edição. 846, 25 agosto 2014, p. 33-34.
76 FUCS, José. Entrevista com Kátia Abreu. Época. Rio de Janeiro: Globo, edi- Pêcheux denomina esse processo de efeito metafórico, “um
ção. 846, 25 agosto 2014, p. 36-38. fenômeno semântico que consiste na substituição contextual de
77 Idem, p. 36.
78 PETY, André. No labirinto sonhático. VEJA. São Paulo: Abril, edição 2388, 80  CRUZ, Adriano Charles. A charge no governo Lula. Natal, EDUFRN, 2014.
27 agosto 2014, p. 66-67.
81  ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 7. ed.
79  Idem, p. 67. Campinas: Pontes, 2007, p. 44.

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Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

dois elementos que compartilham sentidos um com outro” 82. Isto É, há um período textual que aprofunda essa desconfiança, já
que a candidata oculta traços de sua personalidade: “A evangéli-
Entre as diversas nomeações encontradas (candidata, cabo
ca fervorosa de aparência frágil esconde uma personalidade forte,
eleitoral, evangélica, entre outras), há um efeito metafórico que
geralmente inflexível e com escassa capacidade de articulação” 89.
nos chama a atenção: a figura mitológica da esfinge: a presiden-
ciável é “uma esfinge83”, para a Veja, ou uma “esfinge política84”, Segundo Guilhaumou, Maldidier e Robin90, entre outras mo-
para a Isto É. Recorrendo à memória do discurso literário-dra- dalidades, “os segmentos de julgamentos” podem ser marcados
matúrgico, sabemos da dificuldade dos heróis em lidar com esse por advérbios, adjetivos e determinados verbos. Nesse sentido, se
ser: em Édipo Rei, de Sófocles, era preciso decifrar um enigma constrói um “deve ser”, como nos extratos seguintes da revista
para não ser “devorado” pelo monstro. Portanto, estamos diante Época. Neles, os jornalistas constroem expectativas e direciona-
de um segmento de julgamento negativo. mentos para as ações e falas da candidata: “Marina precisa domar
suas convicções para não se tomar vítima delas” 91 e “Marina pre-
Outro processo discursivo eivado de julgamento axiológico é
cisa apresentar no mínimo disposição para esse tipo de atitude, já
o da adjetivação, ao atribuir sentidos e valores às coisas e às pesso-
as, os jornalistas constroem relações parafrásticas e metafóricas durante a campanha” 92.
sobre a candidata85. Dentro do léxico de adjetivações, elegi alguns Ou ainda, no julgamento acerca do discurso da “nova políti-
que dialogam com o discurso de desconfiança à candidata: “Aura ca”, como no fragmento da revista Veja: “Toda essa contenda não
mítica”, em Época86, “comportamento quase messiânico”, na Isto cai bem a uma política que tem como estratégia manter o tom
É87 e “Pentecostal para lá de devota”, em Veja88. Em comum, as emocional contra o lamaçal partidário, encarnada as tão ansiosas
três adjetivações giram em torno do universo mítico-religioso. Na mudanças” 93.
82  PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso. In: GADET, Françoise; Por outro lado, Época abre a matéria principal “Até onde
HAK, Tony. (Org.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à ela pode ir?”, a partir de um narrador onisciente, aos moldes do
obra de Michel Pêcheux. Campinas: Unicamp, 2001, p. 96. discurso literário. “Na madrugada do dia 30 de agosto de 2009,
83  BARROS, Mariana; CEOLIN Adriano; COURA Kaleo. Quão sustentável ela Marina Silva despertou num quarto de hotel em São Paulo e não
é? VEJA. São Paulo: Abril, edição 2388, 27 agosto 2014, p. 60. dormiu mais” 94. O narrador perscruta até os sentimentos dela
84 SEQUEIRA, Cláudio Dantas: JERÔNIMO, Josie. Quem decifra Marina? Isto
É. São Paulo: Três, edição 2335, 27 agosto 2014, p. 37.
89 SEQUEIRA, Cláudio Dantas: JERÔNIMO, Josie. Quem decifra Marina? Isto
85 Segundo Orlandi, existem de dois movimentos de produção de sentidos: a É. São Paulo: Três, edição 2335, 27 agosto 2014, p. 37, grifos meus.
“paráfrase” e a “polissemia”. A primeira é da ordem do repetível, porque está
90  GUILHAUMOU, Jacques; MALDIDIER, Denise; ROBIN, Regine. Discurso
ligada à memória. Já o processo polissêmico desloca os sentidos, é o espaço da
e arquivo: experimentações em análise do discurso. Campinas: Editora da Uni-
ruptura e da transformação dos enunciados. Cf. ORLANDI, Eni. Discurso e
camp, 2016, p. 35.
leitura. São Paulo: Cortez, 1988.
91 RIBEIRO, Aline; BOMBIG, Alberto. Até onde ela pode ir? Época. Rio de
86 RIBEIRO, Aline; BOMBIG, Alberto. Até onde ela pode ir? Época. Rio de
Janeiro: Globo, edição. 846, 25 agosto 2014, p. 28, grifos meus.
Janeiro: Globo, edição. 846, 25 agosto 2014, p. 30.
92 Idem, grifos meus.
87  SEQUEIRA, Cláudio Dantas: JERÔNIMO, Josie. Quem decifra Marina? Isto
É. São Paulo: Três, edição 2335, 27 agosto 2014, p. 37. 93 GASPAR, Malu. Casamento em crise. VEJA. São Paulo: Abril, edição 2388,
27 agosto 2014, p. 65.
88 PETY, André. No labirinto sonhático. VEJA. São Paulo: Abril, edição 2388,
27 agosto 2014, p. 67. 94  RIBEIRO, Aline; BOMBIG, Alberto. Até onde ela pode ir? Época. Rio de

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Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

“sentiu-se sozinha em meio a uma multidão de desconhecidos” 95 A revista apresenta ainda um infográfico em forma espiralada,
e constrói a imagem de uma candidata desequilibrada emocional- “O sistema solar marinheiro” 98, em que ela aparece ao centro –
mente: “O descontrole era tanto que uma de suas filhas saltou da como estrela – a iluminar os planetas – os seus 12 aliados, em ma-
cama e seguiu em sua direção” 96. As sequências das ações da per- tizes da cor amarela. Os corpos celestes estão divididos em graus
sonagem são descritas, passo a passo, como numa cena cinema- de importância e influência: os planetas classe C são “os marinei-
tográfica: “Na tentativa de se recompor, Marina levantou, tomou ros que deverão ganhar relevância até as eleições”, a classe B estão
um banho e fez uma oração” 97. Apenas cinco páginas depois, vem “nomes que ganharam poder com a nova estrutura da campanha”
a explicação: os fragmentos são trechos do livro Marina, a vida e, em A, “conselheiros políticos e econômicos de Marina Silva”.
por uma causa, escrito por Marília Camargo César.
Entre esses planetas, estão nomes socialistas (Luíza Erundi-
Figura 7: O sistema solar marineiro. na-PSB), marineiros, mas também nomes ligados a setores con-
servadores e ao mercado: Walter Feldman “ex-deputado tucano”;
André Lara Resende “ex-presidente do BNDES no governo Fer-
nando Henrique” e Maria Alice Setúbal, “acionista do Banco Itaú
e coordenadora do programa de governo de Maria”. Esse amálga-
ma de posicionamentos ideológicos e discursivos intensificaram
os movimentos críticos à presidenciável.
Em diversos momentos nos textos, o discurso de desconfian-
ça emerge posto que “Marina tem fama de intransigente99” e “per-
sonalidade forte” 100. A mudança para um novo partido (Rede de
Sustentabilidade) também gera inquietação: “Essa possibilidade
lança muitas dúvidas em relação às relações (sic) institucionais
de uma eventual gestão Marina”, continua a revista na página se-
guinte.
Com relação ao mercado, o discurso construído também é o
de suspeição. “Apesar da reação positiva dos investidores à esca-
lada de Marina, ainda parece cedo para afirmar se ela será ‘ami-
ga’ de verdade do mercado” 101. No final dessa segunda matéria, a
expectativa é que ao terminar a campanha, Marina possa mostrar
Fonte: Época (2014)
98 RIBEIRO, Aline; BOMBIG, Alberto. Até onde ela pode ir? Época. Rio de
Janeiro: Globo, edição. 846, 25 agosto 2014, p. 26. Janeiro: Globo, edição. 846, 25 agosto 2014, p. 30.
95 Idem. 99  Idem.
96 RIBEIRO, Aline; BOMBIG, Alberto. Até onde ela pode ir? Época. Rio de 100  Idem, p. 31.
Janeiro: Globo, edição. 846, 25 agosto 2014, p. 26.
101  FUCS, José. Será que ela é amiga dos negócios? Época. Rio de Janeiro: Glo-
97  Idem. bo, edição. 846, 25 agosto 2014., p. 33, grifos originais.

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Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

efetivamente como se consolidará sua condução econômica: “Isso Figura 8: imagem de Marina no Acre.
a tornaria uma candidata ‘confiável’ para os negócios” 102.
É interessante observar que, para a revista Veja, o mercado
“esse ser diáfano e implacável que precifica tudo, mas sem o qual
não se descobriu ainda uma maneira de se viver, aprovou Mari-
na” 103. Uma das razões para isso foi quando “começou a acenar
para o mercado financeiro com a promessa de um Banco Central
autônomo” 104.
Portanto, ungida pelo capital, a reprovação maior dela é por
defender as novas formas de representação popular. Para os jor-
nalistas, a adesão de Marina a esses novos arranjos políticos é um
“terreno movediço, capaz de desestabilizar todas as convicções
sadias” 105 da candidata. Por fim, o discurso jornalístico constrói
uma reação negativa à democracia, conforme lemos no fragmen-
to do mesmo texto: “as democracias morrem pelo excesso de de-
mocracia”.
Os jornalistas de Veja enfatizam os aspectos cronológicos e
biográficos da presidenciável. Apresentam quatro fotografias an-
tigas mostrando fragmentos da história de vida: imagens da então Fonte: Veja (2014)
jovem em Xapuri (Acre), ao lado de Chico Mendes e com Lula e
outros políticos nas eleições de 1994. Em preto e branco, a imagem mostra Marina em posição de
liderança, caminhando com o rosto taciturno e a cabeça levemen-
te abaixada. A memória nos remete a uma gestualidade ligada ao
trabalho, à luta. É a Marina trabalhadora rural que retornará na
foto ao lado do operário Luiz Inácio Lula da Silva.
Figura 9: conjunto de imagens em linha do tempo.

102  Idem, grifos originais.


103  PETY, André. No labirinto sonhático. VEJA. São Paulo: Abril, edição 2388,
27 agosto 2014, p. 66.
104  Idem, p. 67. Fonte: Veja (2014)
105  Idem, p. 66.

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Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

Esse conjunto de imagens intitulado “Onde ela estava em…” É107, e aquela que “não representa o legado de Campos” 108.
busca reconstruir trajetórias, ideias e temas da candidata ao longo
Marina também “toma as decisões sozinhas, fechada em co-
de sua vida. Partes importantes da história recente do país (Gol-
pas”109, continua a revista, “decide lentamente” 110, segundo a Veja
pe Militar, Diretas, Morte de Tancredo Neves, Confisco do Plano
e, ainda por cima, tem uma “postura autoritária, continua a ma-
Collor, Impeachment de Fernando Collor, Plano Real, 11 de se-
téria. Portanto, o eco das polêmicas na mudança da equipe coor-
tembro, Eleição de Lula e Escândalo do mensalão) se cruzam com
denadora intensificou ainda os movimentos de desconstrução da
a vida de Marina. O que ela pensava, agia e fazia nesses aconteci-
imagem pelos jornalistas.
mentos? São as questões norteadoras do quadro.
A revista Veja foi a mais enfática em tencionar essa relação.
As polêmicas sobre Marina Trago dois excertos que explicitam a polêmica em torno das mu-
danças:
As articulações políticas foram costuradas para tornar Marina Sil-
va a “cabeça de chave”, apesar da desconfiança de parte do PSB. Seus parceiros de aliança se insurgiam contra o que consideram
A imprensa não deixou de veicular essa polêmica, apontando os uma postura autoritária. E escancararam as críticas que antes lhes
jogos políticos entre os grupos rivais. Outro aspecto que causou faziam à boca miúda. Eles precisam de Marina tanto quanto ela
depende deles, mas isso não refreou o ímpeto da guerra por po-
tensão foram as resistências históricas de Marina ao agronegócio.
der que arrisca fissurar a costura cuidadosamente construída por
Além de descrever os pontos de tensões, as narrativas trazem um Campos ao longo dos últimos meses – e ainda macular a imagem
receituário sobre como melhorar: são prescrições (deve ser/pre- da ex-senadora representante de uma “nova forma de fazer políti-
cisa ser) e segmentos de julgamentos que marcam uma posição ca”, com a qual pretende ancorar sua estratégia eleitoral111.
ideológica das revistas.
No dia 20 de agosto, a executiva nacional do PSB oficializou Toda essa contenda não cai bem a uma política que tem como es-
a candidatura, antes da definição, dirigentes do partido e Marina tratégia manter o tom emocional e se lançar como uma líder alheia
ao lamaçal partidário, encarnando assim as tão ansiadas mudanças.
discutiram os papéis no processo. Ao assumir, Marina Silva ins-
[...] Afinal, ter o nome arrastado para o centro de uma disputa de
tituiu uma nova equipe para coordenar a campanha eleitoral, o poder típica da velha política só vai fazer Marina soar como uma
que causou reações no grupo político. O então coordenador geral candidata igual aos outros112.
da campanha de Eduardo Campos e secretário geral do partido,
Carlos Siqueira, foi substituído pela deputada Luíza Erundina, 107 SEQUEIRA, Cláudio Dantas: JERÔNIMO, Josie. Quem decifra Marina?
também do PSB, a pedido da candidata. Isto É. São Paulo: Três, edição 2335, 27 agosto 2014, p. 40.

A narrativa desse acontecimento se presentifica nas três revis- 108  Idem.


tas. As citações diretas e indiretas constroem uma tessitura hete- 109 SEQUEIRA, Cláudio Dantas: JERÔNIMO, Josie. Quem decifra Marina?
rogênea que reforça a desconstrução da candidata, nomeada por Isto É. São Paulo: Três, edição 2335, 27 agosto 2014, p. 39.
antigos aliados como “hospedeira”, conforme a Época106 e a Isto 110 BARROS, Mariana; CEOLIN Adriano; COURA Kaleo. Quão sustentável
ela é? VEJA. São Paulo: Abril, edição 2388, 27 agosto 2014, p. 60.
111 GASPAR, Malu. Casamento em crise. VEJA. São Paulo: Abril, edição 2388,
27 agosto 2014, p. 64.
106 RIBEIRO, Aline; BOMBIG, Alberto. Até onde ela pode ir? Época. Rio de
Janeiro: Globo, edição. 846, 25 agosto 2014. 112  Idem, p. 65.

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Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

O léxico adotado transpõe termos próprios do discurso bélico (in- biente, Marina poderá se opor às práticas do agronegócio, setor
surreição, guerra e estratégia) para o jornalismo, o que intensifica que financia muitas campanhas eleitorais no Brasil119 e um dos
os efeitos de sentido de tensão e negatividade. grandes anunciadores de publicidade nas revistas. E não é apenas
uma simples desconfiança, pois “o agronegócio nutre ojeriza por
Além dos segmentos de julgamentos, identifico, especialmen-
te em Época, um discurso normativo para a candidata: “candida- Marina”, conforme a reportagem da Época120.
tos de verdade precisam ser agregadores e ter propostas realistas” Ora, o “agronegócio, que representa 23% do PIB, é o maior
113
. E, mais à frente, continuam os jornalistas: “Marina precisa vilão do meio ambiente” nas ideias da candidata, isso, “apavora os
apresentar no mínimo disposição para esse tipo de atitude, já du- empresários do setor”, segundo a Isto É121. Como se vê, a estraté-
rante a campanha. Ela tem de mostrar que é a terceira via do diá- gia das hipérboles são os recursos discursivos usados para intensi-
logo e da união, não a terceira via da exclusão”. ficar a suspeição de Marina Silva.
A preocupação com o futuro do agronegócio numa possível A receita para melhorar essa desconfiança é dada pela própria
vitória de Marina também se presentifica nas três revistas. Em ou- revista:
tro momento, mostrei a força do discurso neoliberal114 no jorna-
lismo brasileiro e os pontos de tensão entre resistência e poder115. Um ponto fulcral para quem se dispõe a governar o Brasil é dizer
Para obter um contraste entre os discursos de Marina e a pro- com clareza o que pensa sobre nossa maior fonte de divisas, um
dução do agronegócio, as três revistas mostram dados numéricos orgulho tecnológico e científico com produtividade 60% acima da
média dos Estados Unidos: o agronegócio 122.
sobre o potencial produtivo para a economia: 23% do PIB, diz
a narrativa da Isto É116, 25% afirma a senadora Kátia Abreu, em Por outro lado, as contradições de Marina também emergem, pos-
entrevista à Época117, e “60% acima da média” da produção ame- to que o vice Beto Albuquerque (PSB) é “amigo do agronegócio e
ricana, afirma a revista Veja118. defensor da soja transgênica” 123 e, continua a reportagem, “nesse
Em oposição, é fácil identificar a construção de uma atmos- campo, tudo o que Marina combate”. Assim, a narrativa aponta
fera de medo: caso eleita, por sua histórica defesa ao meio am- a política de alianças e governabilidade típica da “velha política”.
Na reportagem da Isto É, Marina é construída como intransi-
113 RIBEIRO, Aline; BOMBIG, Alberto. Até onde ela pode ir? Época. Rio de
Janeiro: Globo, edição. 846, 25 agosto 2014, p. 28, grifos meus.
119 Segundo reportagem da BBC Brasil, o agronegócio mostrou sua força em
114 No contexto brasileiro, a hegemonia neoliberal na mídia é denunciada por 2014 investindo em inúmeros candidatos. Disponível em: http://www.bbc.
KUCINSKI, Bernardo. Jornalismo na Era Virtual: ensaios sobre o colapso da com/portuguese/noticias/2014/09/140910_eleicoes2014_agronegocio_salaso-
razão ética. São Paulo: Unesp, 2005. cial_jf. Acesso em: 08 de outubro de 2017.
115 Cf. CRUZ, Adriano Charles. A charge no governo Lula. Natal, EDUFRN, 120  RIBEIRO, Aline; BOMBIG, Alberto. Até onde ela pode ir? Época. Rio de
2014. Janeiro: Globo, edição. 846, 25 agosto 2014, p. 32.
116  SEQUEIRA, Cláudio Dantas: JERÔNIMO, Josie. Quem decifra Marina? 121 SEQUEIRA, Cláudio Dantas: JERÔNIMO, Josie. Quem decifra Marina?
Isto É. São Paulo: Três, edição 2335, 27 agosto 2014, p. 40. Isto É. São Paulo: Três, edição 2335, 27 agosto 2014, p. 39.
117 FUCS, José. Entrevista com Kátia Abreu. Época. Rio de Janeiro: Globo, edi- 122 BARROS, Mariana; CEOLIN Adriano; COURA Kaleo. Quão sustentável
ção. 846, 25 agosto 2014. ela é? VEJA. São Paulo: Abril, edição 2388, 27 agosto 2014, p. 61.
118  BARROS, Mariana; CEOLIN Adriano; COURA Kaleo. Quão sustentável 123 PETY, André. No labirinto sonhático. VEJA. São Paulo: Abril, edição 2388,
ela é? VEJA. São Paulo: Abril, edição 2388, 27 agosto 2014, p. 61. 27 agosto 2014, p. 67.

62 63
Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

gente com o setor, pois “os empresários do agronegócio não en- neiros cujo objetivo pragmático era a vitória na eleição. Havia o
xergam Marina com bons olhos, e ela não se esforça para encon- receio que a “hospedeira” rompesse a aliança no pós-pleito.
trar um ponto de diálogo com o setor” 124.
Os jornalistas apontaram as contradições de quem pretendia
ser a “nova política”, mas apresentava alianças com as forças rea-
A produção da dúvida e da desconfiança cionárias do mercado e com um candidato a vice-presidente que
Neste capítulo, procurei demonstrar que a análise de imagens é historicamente ligado ao agronegócio.
pode ser articulada com a dos textos verbais no grande amálgama Outros trabalhos poderão questionar em que medida também
das revistas. Vimos que, após a morte de Eduardo Campos, hou- o medo das convicções religiosas da candidata pode ter interfe-
ve uma intensa midiatização de Marina Silva, os jogos políticos e rido nessa construção negativa. As construções de sua imagem,
ideológicos emergiram na construção discursiva das revistas. Em- com aura beatífica, e a referência à “evangélica de posições con-
bora, apresentem peculiaridades, as três revistas semanais promo- servadoras” já indica que esse seria um ponto interessante na aná-
veram um debate sobre os projetos e falas da presidenciável. lise.
Na revista Época, construção da imagem de Marina se assenta Por fim, concluo que as revistas puseram em relevo as polêmi-
num confronto entre o perfil da candidata e um deve ser/precisa cas ao questionar o discurso da “nova política”, construído pelo
ser da revista. Há uma desatualização da voz de Marina. As falas marketing, em meio a práticas já usadas por outros candidatos: a
delas são de outros momentos, não se confrontam os posiciona- política de coalizão e governabilidade e as contradições dos dis-
mentos da revista com entrevistas diretas à candidata sobre os cursos da candidata no passado e no período eleitoral, velhas co-
temas abordados. Há escassez de outras vozes e discursos, sendo nhecidas dos brasileiros.
uma construção mais subjetiva dos jornalistas a partir da inter-
pretação dos acontecimentos e discursos da presidenciável.
Na Isto É, há críticas ainda mais diretas, numa crescente de
adjetivações elencadas, uma após outras, no parágrafo de abertu-
ra. Da mesma forma, não há entrevista com a candidata e as cita-
ções indiretas são extraídas de momentos diversos à construção
da reportagem.
As matérias construíram uma imagem negativa de Marina Sil-
va, a partir dos efeitos de sentido de dúvida e desconfiança. Para
isso, utilizaram como principais estratégias discursivas o questio-
namento; o confronto entre a biografia e o cargo pretendido e, por
fim, a contraposição entre os discursos da candidata e de outros
entrevistados.
As revistas mostram as rusgas da coalização socialistas/mari-
124 SEQUEIRA, Cláudio Dantas: JERÔNIMO, Josie. Quem decifra Marina?
Isto É. São Paulo: Três, edição 2335, 27 agosto 2014, p. 40.

64 65
Adriano Charles Silva Cruz

5 OS SENTIDOS NOS MEMES ção da Petrobras, que envolveria grandes empreiteiras do Brasil.
O ministério público e a polícia federal atribuíram a ele a posse de
um apartamento triplex no Guarujá/SP, que teria sido reformado
com essas vantagens ilícitas, e um sítio em Atibaia/SP.
Esse acontecimento foi intensamente mediado pela imprensa
e levou a conflitos nas ruas, entre apoiadores e opositores; dis-
A medusa é quiçá o outro imunológico em sua forma extrema.
Constitui uma alteridade radical, que nem sequer se pode
cussão entre políticos e até a desaprovação de um ministro125 do
olhar, sem sucumbir. Supremo Tribunal Federal.
Mais tarde, as ações da Lava Jato contribuíram para a corro-
Byung-Chul Han são do governo Dilma Rousseff (2016) e culminaram com a con-

N
denação e prisão de Lula (2018).
o capítulo anterior, mostrei como as revistas semanais
desconstruíram a candidata Marina Silva. De maneira A operação Lava Jato segue a lógica de produção da mídia.
análoga, uma teia de dizeres semelhantes foi tecida so- Com mais de duzentas pessoas investigadas e cerca de uma cen-
bre o ex-presidente Lula (PT). Pretendo discutir essa discursivi- tena condenada, entre políticos e empresários, a investigação foi
zação negativa nos memes na internet. construída como um símbolo de combate à corrupção. O juiz fe-
deral Sérgio Moro se tornou uma celebridade internacional, sen-
Luiz Inácio Lula da Silva é dono de uma biografia cinema-
do incensado como “herói” pela grande imprensa.
tográfica: criança pobre, nascido no sertão pernambucano, o ex-
metalúrgico, após um período de lutas no sindicato e na políti- Longe de ser consensual, a Lava Jato provocou polêmicas gra-
ca partidária, ocupou a Presidência da República por oito anos ças à “teatralização” dos processos penais: interceptação telefôni-
(2003-2010), elegeu sua sucessora, Dilma Rousseff (PT), por duas ca, vazamentos seletivos, gravação e exibição dos interrogatórios
vezes, e se tornou um dos políticos brasileiros mais conhecidos e manifestação constante dos juízes e promotores no Twitter e
no mundo. no Facebook: “algumas decisões tomadas pela 13.ª Vara Crimi-
nal Federal de Curitiba definiram o roteiro para o Big Brother da
As notícias de escândalos de corrupção envolvendo políticos,
Justiça 126”.
de diversos partidos, e o enquadramento seletivo da mídia cons-
truíram uma imagem bem adversa do petista. A seletividade nas condenações e nas investigações e os méto-
dos midiáticos do aparato jurídico-investigatório foram objetos
Em março de 2016, ex-presidente Lula foi submetido a um
de debate. Os corpos dos investigados eram expostos à mídia, pré-
mandado de condução coercitiva no âmbito da Operação Lava
Jato. Ele foi depor “sob vara” para prestar depoimento à Polícia 125 O ministro Marco Aurélio do STF criticou publicamente a medida em en-
Federal, no Aeroporto de Congonhas/SP. O ex-presidente, por trevista ao Estado de S. Paulo. É dele a expressão “sob vara”. Disponível em:
sua vez, prometeu resistir e anunciou, em discurso após o depoi- https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,para-marco-aurelio--preocupa-
-ex-presidente-depor-sob-vara,10000019703 . Acesso em: 2 jun. 2018.
mento, na sede do Partido dos Trabalhadores em São Paulo, que
seria novamente candidato à Presidência. 126 GOMES, Marcus. Alan de Melo. Crítica à cobertura midiática da Opera-
ção Lava Jato. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/do-
Lula fora acusado de obter propinas do esquema de corrup- cumentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_bo-
letim/bibli_bol_2006/122.09.PDF . Acesso em: 20 jun. 2018.

66 67
Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

julgados pela opinião pública. Exibiam as “imagens de investiga- sa. A midiatização131 da Lava Jato foi determinante para a sua per-
dos e réus presos, em regra (desnecessariamente) algemados, sen- manência na agenda pública, pautando inclusive as propostas das
do transportados em veículos da Polícia Federal, ou até mesmo candidaturas presidenciais em 2018.
em gravações de depoimentos que constituirão objeto de acordos Figura 10: capa de Veja, 2016.
de colaboração premiada” 127.
Em janeiro de 2016, um grupo de mais de cem juristas pu-
blicou, em diversos jornais, uma carta aberta com críticas à Lava
Jato. No documento, o grupo criticava os vazamentos seletivos
à imprensa128 e as violações dos “direitos e garantias fundamen-
tais dos suspeitos”. Em outro momento, denunciava o chamado
“massacre midiático” para pressionar a Justiça a manter prisões
provisórias que fazem parte de uma “engrenagem fundamental
do programa de coerção estatal à celebração de acordos de dela-
ção premiada” 129.
De fato, nesse recente reality show político-jurídico, “a priva-
cidade de investigados, ainda que nada tenham a ver com os fatos
apurados, é exposta ao público sem qualquer propósito útil para
a persecução penal” 130.
Em agosto de 2017, a revista Exame trouxe uma matéria sin-
tomática desses tensionamentos: “Por que Moro e Lava Jato não
são unanimidades entre juristas?”, perguntava o título da matéria,
que enumerava os argumentos dos críticos.
Apesar das críticas, os principais atores da “República de
Curitiba” estabeleceram um liame intenso com a grande impren-

Fonte: revista Veja.


127  Idem.
128 Quando se fala em vazamento seletivo, diz-se que há um favorecimento Fotografias, textos e outras imagens sobre a condução coer-
para a negativação pública da imagem de políticos específicos, mais notada- citiva proliferaram no jornalismo e nas redes sociais. Em capa 12
mente os pertencentes a partidos de esquerda. de março de 2016, a revista Veja trouxe a polêmica e o discurso
129  PRADELLA, Thiago. Leia o manifesto dos Advogados que comparam de resistência de Lula, mas o transfigurou intericonicamente em
Lava Jato à inquisição. Disponível em: https://pradella.jusbrasil.com.br/noti-
cias/297190364/leia-o-manifesto-dos-advogados-que-comparam-lava-jato-a- 131 HJARVARD, Stig. A midiatização da cultura e da sociedade. São Leopoldo:
-inquisicao. Acesso em: 20 jul. 2018. Unisinos, 2014.
130 Idem.

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Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

uma medusa. A cara de raiva e o enunciado verbal132 complemen- terializações de discursos provenientes de formações ideológicas
tam a desconstrução do petista. antagônicas ao do lulopetismo.
Imagens, como essa, serão ressignificadas a partir de estraté- É dentro desse quadro, onde se digladiam formações ideológi-
gias irônicas e por movimentos derrisórios nos memes que proli- cas antagônicas, que procuro analisar as significações produzidas.
feram no ciberespaço. Como no exemplo a seguir: Evidencio, agora, as condições de produção que proporcionaram
Figura 11: meme Lula/Jararaca a circulação dos memes.

Os memes na cultura da interação


A interatividade e a convergência dos meios estão à disposição no
toque no smartfone. As interações em redes pontuam o dia a dia
dos sujeitos, surgem novos emissores: a dinâmica da comunica-
ção se complexifica na era do Whatsapp e dos youtubers.
Há uma nova cultura do compartilhamento134, com a forma-
ção de comunidades virtuais, segmentação dos públicos, e a mu-
tabilidade do papel consumidor/produtor. É possível curtir, co-
mentar, compartilhar e, sobretudo, produzir conteúdo e “jogá-lo
na rede”.
Essa possibilidade de tecer novas interações em rede é apenas
uma das faces da sociedade em midiatização. A velocidade de pro-
Fonte: https://bit.ly/2OJuJ2u pagação das mensagens, o excesso da informação e de fake news
são marcantes.
A partir de uma perspectiva discursiva, a luta de classes e
as microlutas133 se materializam em ideologias que, por sua vez, Longe de proporcionar laços permanentes, a modernidade
emergem em práticas sociais e discursivas. Esses discursos são líquida se caracteriza por instabilidade de todas as ordens. Esse
práticas ideológicas que tentam manter ou transformar as rela- tempo de “perigosas incertezas135” se alicerça também no indivi-
ções de poder no interior das formações sociais. dualismo e na transitoriedade.

As duas imagens monstruosas, da revista e do meme, são ma- A “cultura participativa” 136 insere-se num contexto de con-
vergências, de produção e distribuição de conteúdos em diversas
132 A referência à cobra foi uma autonomeação de Lula durante o discurso mídias e plataformas. Assim, um vídeo produzido por um usuário
dele na sede do PT: “se tentaram matar a jararaca, não bateram na cabeça, ba-
do Facebook pode estar no site do jornal local como um “furo” de
teram no rabo”. Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noti-
cia/2016/03/se-tentaram-matar-jararaca-nao-bateram-na-cabeca-bateram-no-
134  JENKINS, Henry. Cultura da convergência. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2009.
-rabo-diz-lula-em-discurso.html. Acesso em: 24 set. 2018.
135 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
133 Um conjunto de tensionamentos dentro de uma mesma classe social, ou
2001.
seja, jogos de poder e resistência nas questões de gênero, sexualidades, raças,
etnias, entre outras. 136 Idem.

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Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

reportagem; analisado por especialistas em um programa de TV sultados, distribuídos em diversas páginas, entre textos, imagens
ou replicado em memes. e outras citações ao tema. Recolhi apenas as imagens linkadas nos
sites encontrados na primeira página da busca, os links estão indi-
O meme é definido como uma unidade de informação cultu-
cados em cada imagem.
ral transmitida entre indivíduos ou de uma geração à outra. O ter-
mo deriva de uma comparação ao gene biológico, emerge como Identifiquei um movimento interdiscursivo que desconstrói
uma analogia explicativa da propagação dos genes e das ideias137. Lula a partir da derrisão sobre a ausência do dedo mínimo. Defen-
do que existe uma discursivização sobre o corpo que falta, a mão
Esses dizeres eram originalmente “histórias, canções, hábitos,
mutilada carrega uma memória de uma anormalidade.
habilidades, invenções e maneiras de fazer coisas que copiamos
de uma pessoa para outra através da imitação” 138. Já na internet Entendo que a derrisão está ancorada em um processo dis-
os memes serão constituídos predominantemente por mensagens cursivo de desconstrução da alteridade. Dessa forma, ela se cons-
com tons humorísticos ou irônicos de caráter replicador. titui numa estratégia enunciativa que não se limita ao riso, mas
na “combinação do humor e da agressividade que a caracteriza e
Os memes podem ser textos, músicas, vídeos e outras imagens
a distingue, em princípio do puro insulto” 140.
que circulam na internet e produzem um discurso condensado,
apelativo e, na maioria das vezes, humorístico. É importante res- A derrisão se aproxima, pois, da zombaria: “traz consigo uma
saltar o caráter opinativo e normativo dessas imagens que virali- dimensão de contestação, desafiar a ordem estabelecida ou os
zam na web, há sempre um discurso de um “deve ser” do meme princípios amplamente aceitos em uma sociedade ou grupo” 141.
sobre o mundo 139. Por vezes, esses enunciados perdem a autoria, Portanto, instauram-se, nos memes¸ jogos irônicos em que são
sendo replicados a exaustão. desconstruídos ou ressignificados o acontecimento e a sua me-
mória.
Na fronteira entre ficção e referencialidade, os memes podem
apresentar imagens absurdas, risíveis ou grotescas. O importan- Nas sociedades midiatizadas, os corpos dos políticos são
te para a construção de sentidos é sua relação com o contexto e submetidos a inúmeras tecnologias que os tornam atrativos aos
com os acontecimentos a que se referem. Dessa forma, a hetero- eleitores. Em 2002, quando se elegeu presidente pela primeira vez,
geneidade discursiva transborda em estratégias derrisórias, como houve uma série de intervenções no corpo e no discurso de Lula
a ironia e a paródia. à luz dos ditames do marketing político. Submetido a transforma-
ções estéticas, o corpo do ex-sindicalista pôde, enfim, ser aceito
As imagens foram encontradas por meio da pesquisa no Goo-
socialmente.
gle a partir da inclusão dos termos “memes” e “condução coerci-
tiva Lula”, no dia 03 de setembro de 2018. O site gerou 62.100 re- Entretanto, as marcas de sua origem operária serão retomadas
em discursos desconstrutores, já que Lula “se limita a maltratar a
137  Segundo Dawkins, “a transmissão cultural é análoga à transmissão gené- língua, engolindo os esses, violentando a sintaxe, forçando erros
tica, no sentido de que, apesar de ser essencialmente conservadora, pode dar
origem a uma forma de evolução”. DAWKINS, Richard. O Gene Egoísta. São
140 BONNAFOUS, Simone. L’arme de la dérision chez J.-M. Le Pen. Hèrmes,
Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 235.
Paris, v. 29, p. 53-63, 2001, p. 53.
138  BLACKMORE, Susan. The meme machine. Oxford: Oxford University
141 MERCIER, Arnaud. Pouvoirs de la dérision, dérision des pouvoirs. (Intro-
Press, 2000, p. 65.
duction) Hermés, Revue. Dérision, contestation, CNRS, n. 29, p. 9-18, 2001, p.
139 SHIFMAN, Limo. Memes in digital culture. Cambridge: MIT, 2014, p. 120. 10.

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Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

de concordância” 142, segundo artigo do jornal Estado de S. Paulo, rie da linguagem145”.


de 2005. Essa sua origem na classe operária seria a receita para
É com o auge da biologização que as deformidades humanas
atrair a atenção do povo, mas também, roubar a cena em eventos
serão identificadas e pesquisadas. Dessa forma, se reconhece que
internacionais: “O presidente que cometeu mais gafes na história
tais monstros eram “horrivelmente humanos” 146. Esses corpos
do Brasil”, categoriza a revista Época. A “sua voz rouca, com erros
transgressores foram incorporados a um saber médico-biológico
de português, metáforas de futebol e piadas do povão, era o elo
e os zoológicos humanos foram interditados.
com a massa, na versão do sindicalista exaltado ou do lulinha paz
e amor” 143, continua a articulista Ruth de Aquino. Essa foi, para Courtine, uma mudança de sensibilidade147, pois
lá onde se via apenas monstruosidade se começou a perceber uma
É preciso entender que todo discurso é um lugar de memó-
enfermidade. A partir do discurso médico-jurídico era preciso
ria: os acontecimentos são lembrados ou esquecidos a partir dos
explicar as raízes patológicas e os desvios dos seres humanos. Em
tensionamentos e das lutas sociais. Os deslizes da norma culta
síntese: identificar, corrigir e normatizar.
gramatical apontam uma origem não burguesa, além disso, Lula
carrega na carne os estigmas de uma deformidade. Entretanto, era preciso saciar o desejo de ver e contemplar os
seres abjetos. Relegado às imagens ficcionais, o “espetáculo da de-
A desconstrução de Lula nos memes formidade” tornou-se mediado pelo aparato técnico, cinema e a
TV. Frankenstein, Drácula, Freaks, King Kong, Medusas, imagens
A partir de uma genealogia da anormalidade, Courtine144 apon- partidas, os “outros” de nós mesmos. Essa estética da monstruosi-
ta que, no século XIX, houve um intenso interesse pelos corpos dade também será retomada, via memória, em diversos produtos
monstruosos. No imaginário, tudo o que escapava à normatiza- da mídia: anúncios publicitários, memes, capas de revistas etc.
ção, seja por falta, excesso, mistura ou separação era considerado
Em Os anormais148, Foucault buscará investigar a mudança da
desviante.
transgressão monstruosa ao domínio da conduta, ou seja, a esfera
Essa corporeidade transgressora figurava nos freaks shows, da justiça e do direito penal.
oferecia um espetáculo de diversão das massas, entre homens ele-
É nessa “sociedade disciplinar” que os indivíduos estarão
fantes, anões, gêmeos siameses e mulheres barbadas. Dessa for-
sujeitos à vigilância constante, os seus corpos e suas almas são
ma, se estabelecia um olhar voyeurista e categorizador dos corpos,
como explica Courtine: “as festas de feiras do século XIX regurgi-
tavam verdadeiros ou falsos ‘selvagens’ a exibir para o prazer de 145 COURTINE, Jean-Jacques. O corpo anormal: história e antropologia cul-
turais da deformidade. In: CORBIN, A.; ______.; VIGARELLO, G. História
multidões ‘civilizadas’ o grotesco das aparências, a animalidade do corpo: as mutações do olhar. O século XX. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008, p.
das funções corporais, a crueza sangrenta dos costumes, a barbá- 256, grifos do autor.
142 KUJAWSKI, Gilberto de Mello. O linguajar de Lula. O Estado de São Paulo, 146 COURTINE, Jean-Jacques. O corpo anormal: História e antropologia cul-
17/02/2005, Espaço Aberto, p. A2. turais da deformidade, p. 300. In: CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques;
VIGARELLO, Georges (Org.). História do Corpo: 3. As Mutações do Olhar: O
143  Época, Ruth de Aquino, 30 de março de 2012. Disponível: http://revistae-
Século XX. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 253-340.
poca.globo.com/Mente-aberta/ruth-de-aquino/noticia/2012/03/voz-de-lula.
html. Acesso em: 20 jun 2018. 147 COURTINE, Jean-Jacques. Decifrar o corpo: pensar com Foucault. Petró-
polis, RJ: Vozes, 2013, p. 118. .
144  COURTINE, Jean- Jacques. Decifrar o corpo: pensar com Foucault. Petró-
polis: Vozes, 2013. 148 FOUCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

examinados e normalizados por meio das instituições como as zeres negativos, como os exibidos nos textos jornalísticos citados.
escolas, fábricas, hospitais e prisões.
Se recorrermos à memória é possível recuperar também uma
Em outros momentos, como no nazismo, o poder/saber mé- série discursos que circulam sobre a mutilação do dedo de Lula.
dico construiu teorias eugênicas e racistas que buscaram medi- Entre esses, o boato de que o acidente foi autoprovocado para ga-
calizar e exterminar os corpos transgressores. A “massa de des- rantir uma aposentadoria por invalidez.
viantes”, vagabundos, homossexuais, prostitutas, será submetida
Em 2010, a revista Trip publicou a reportagem “Um dedo de
à violência dos fascismos e ao controle de um biopoder.
discórdia” 151 recuperando a história da lesão trabalhista. A tragé-
Na passagem da sociedade disciplinar para a de “controle149”, dia ocorreu quando Lula trabalhava como metalúrgico, em São
a discursividade estética levará também às práticas de transfor- Paulo, em meados dos anos sessenta. “Uma noite quebrou o pa-
mações corporais, desde o body bulding nas academias às cirur- rafuso de uma prensa. Eu fiz o parafuso e, quando fui colocar, o
gias plásticas. Tarefa sisífica, pois a falha é constitutiva da vida, companheiro prensista que estava cochilando distraiu-se, largou
apesar da tecnologia, o corpo insiste em envelhecer e a definhar. o braço da prensa, que fechou, e eu perdi o dedo”. Após o aci-
dente, ele recebeu apenas uma indenização “de 350 mil cruzeiros,
Embora, o preconceito com os “corpos diferenciados” persista
suficiente para comprar móveis para a mãe e um terreno”. A re-
e, por vezes, se materialize na linguagem, as sociedades democrá-
portagem explica que o Lula deixou a fábrica no ano do aciden-
ticas promoveram mudanças na ordem discursiva: não se aceita a
te, depois de discutir por aumento de salário e que foi admitido
verbalização do olhar discriminatório, sem sanções, numa escala
como “torneiro” em outra, também na capital do estado.
de reprimendas virtuais à prisão. Dessa forma, nas palavras de
Courtine: “onde quer que se pouse o olhar, a deformidade deve As marcas do sofrimento permaneceram na subjetividade de
passar despercebida” 150. Nesse contexto, emergem dizeres e ima- Lula: “No hospital, o médico olhou o meu dedo e cortou o res-
gens que afirmam o respeito à diversidade e à diferença. to. Fiquei preocupado com a minha mão. Passei alguns anos com
complexo por estar sem dedo. Eu tinha vergonha”152.
Essa nova ordem de discurso é quebrada em momentos de
tensionamento político, especialmente a partir da circulação de A discursivização sobre essa ausência é retomada interdicursi-
discursos apócrifos, que silenciam a autoria, como nos memes e vamente no meme a seguir:
nas “correntes” que circulam nas redes sociais. Por conseguinte,
proliferam discursos estigmatizadores e de ódio, germinados em
tempos de intensa polarização político-partidária.
É nesse contexto histórico que emerge a discursivização con-
traria a Lula. Entendo que isso é apenas um nó em uma rede de di-

149  DELEUZE,  Gilles. Post Scriptum  sobre as sociedades de controle. In:


______. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992.
151  SILVA, Marcos Sérgio. Um dedo de discórdia. Disponível em: https://revis-
150 COURTINE, Jean-Jacques. O corpo anormal. História e antropologia cul-
tatrip.uol.com.br/trip/um-dedo-de-discordia. Acesso em: 10 agosto 2018.
turais da deformidade. In: CORBIN, A.; ______.; VIGARELLO, G. História
do corpo: as mutações do olhar. O século XX. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008, p. 152 SILVA, Marcos Sérgio. Um dedo de discórdia. Disponível em: https://revis-
256, grifos do autor. tatrip.uol.com.br/trip/um-dedo-de-discordia. Acesso em: 10 agosto 2018.

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Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

Figura 12: meme CC 1 Figura 13: meme CC 2

Fonte: https://bit.ly/2DIyiVt

O ingresso de Lula na vida pública aconteceu justamente na


filiação aos sindicatos onde se tornou um líder na resistência à ex-
propriação do trabalhador por um sistema que impõe “docilidade
aos corpos”.
O discurso do meme é calcado no enunciado verbal, os efei-
tos derrisórios são causados pela quebra de expectativa: o que se
espera encontrar em uma investigação são provas ou indícios de
autoria. A ausência do dedo não é representada por imagens, des- Fonte: https://glo.bo/2xPj4ZH
sa forma, silencia qualquer sentido ligado à origem da mutilação. Por vias da memória, é facilmente identificado o referente da
Ao entrar na política e na esfera da hipervisibilidade, algumas imagem. As mãos do presidente, envoltas em algemas, seriam
características corporais de Lula se tornaram símbolos identitá- transformadas em um emoji, ideograma esquemático usado em
rios: a imagem da mão espalmada com apenas nove dedos é um mensagens eletrônicas, especialmente, nos aplicativos de mensa-
desses, que retorna na imagem seguinte. gem para celular. Dessa forma, a ausência do dedo mínimo, me-
tonímia do ex-presidente, se tornará um vetor gráfico, ou seja,
apenas uma imagem.
Reina a zombaria, silencia a trágica história de resistência que
a mutilação de um operário provoca normalmente em outras ma-
terialidades da mídia, fotografias e reportagens, por exemplo. É
uma imagem sem impacto, higienizada e sem os vestígios da de-
formidade.

78 79
Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

Em certa medida, retoma-se a discursivização presente no Figura 15: meme CC4


século XIX sobre o monstruoso como inerente à esfera da diver-
são. Para isso, apaga-se a humanidade, não é uma mão, mas um
símbolo. Por conseguinte, constrói-se um efeito de separação da
alteridade: esse é o “outro”, diferente de “nós”. E não há motivos
para apreensão, ele está aprisionado, dominado por uma institui-
ção disciplinar.
Figura 14: meme CC 3

Fonte: https://bit.ly/2DIyiVt

Ao silenciar os sentidos de dor e sofrimento provocados por


um acidente de trabalho, é possível rir de um corpo que falta.
Nessa terceira imagem, há uma suavização da estética grotes-
ca, já que o dedo ausente não aparece, em seu lugar há o espaço Fonte: https://bit.ly/2P1LSo8
vazio, a lacuna, que denuncia a incompletude, uma deformidade
não aparente, nos jogos de visibilidade/invisibilidade da imagem. Identifico o efeito de despersonalização das ações, os sujeitos
que o encontram não são localizáveis. No texto verbal, há um efei-
Efeito diametralmente oposto tem a próxima imagem, em to de suavização, estratégia de silenciamento da memória: Lula
que a estética do grotesco se presentifica. O enunciado verbal iro- não teve o dedo amputado no ambiente de trabalho, o que evo-
niza a condução coercitiva e desconstrói a imagem de Lula, por caria significações polêmicas no contexto da luta de classes, mas
vias intericônicas. o “perdeu”.
Esse silenciamento de um passado já distante ocorre nos mo-
vimentos da historicidade As mãos de Lula passaram por muta-
ções no tempo, as imagens do operário e do sindicalista deram
lugar às de um líder carismático capaz de seduzir as massas com
“sua voz rouca, com erros de português”.

80 81
Mídia e Discurso

De fato, a voz, os gestos e a mão mutilada compõem uma 6 OS SENTIDOS NAS INSCRIÇÕES URBANAS
identidade e uma imagem reconhecível e reproduzível.
O dito e o não dito coexistem na superfície das imagens e
constroem significações a partir dos jogos de mostrar e ocultar.
No movimento discursivo dos memes analisados, observo o fun-
cionamento de uma das máximas da teoria discursiva: os enun-
ciados adquirem novos sentidos a partir das posições sociais dos As campanhas políticas, os movimentos religiosos, a mais
que os empregam. simples propaganda comercial – valem-se do veículo mural,
numa utilização que, entre nós, vem de longe, da pré-história,
Os memes desconstroem a imagem de Lula graças às suas filia- com homens e raças desconhecidas deixando inscrições em
ções a formações discursivas opostas ao petista, o campo simbóli- pedras.
co das imagens torna-se, dessa forma, uma arena para a confron-
tação ideológica e disputa de sentidos. Luiz Beltrão

N
Os acontecimentos históricos são, por vezes, recortados no
o capítulo anterior, identifiquei o papel da heteroge-
tempo emergindo em novos enunciados, cabe aos leitores e ana-
neidade discursiva na produção de sentidos nos memes.
listas o reconhecimento desse passado, com todas as suas fratu-
Agora, mostro um processo comunicativo popular que,
ras, heterogeneidades e costuras nas malhas dos dizeres. Veremos
embora, não esteja mediado pela tecnologia contemporânea é
como esse cruzamento acontece nas paredes das cidades.
um dos meios de manifestação dos sujeitos mais antigos da hu-
manidade: a inscrição mural.
Nesse sentido, a cidade é uma mídia (do latim medium, “meio”
ou “instrumento mediador”) na qual os autores podem escrever
seus textos e se posicionar discursivamente a partir de um macro-
contexto sócio-histórico. Por outro lado, podemos ampliar essa
compreensão e encarar a urbe como geradora/produtora de iden-
tidades.
De fato, o homem tem-se modificado em sua constituição sub-
jetiva ao habitar e conviver nesses territórios complexos. Desde a
década de 1950, os muros ganham destaque nas manifestações de
protesto de grupos sociais sem acesso à veiculação nos meios de
comunicação tradicionais (rádio, TV e impressos). Esse espaço
de politização urbana esteve associado à configuração política da-
quela geração em seu modus operandi do fazer político. Esse meio
de propagação de discursos políticos ainda mantém importância
ao lado de outros discursos ligados ao cotidiano.

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Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

Durante os meses de junho e julho de 2010, percorri algumas não acabou”, sobretudo na França, porque, relembrado e citado
cidades da América Andina153 onde identifiquei, além desses tex- em diversos produtos das indústrias culturais (filmes, camisas,
tos, outras escrituras que manifestam relações afetivas cotidianas, novelas etc.), ainda gera efeitos na memória de um tempo-espaço
que marcam subjetivamente o espaço urbano. Encontrei diferen- marcado pela luta política, como a Photo d’un graffiti, de maio de
tes discursos nessas materialidades fotográficas que navegam en- 1968 de Edouard Boubat.
tre o político e as relações intersubjetivas, compondo um mosaico Figura 16: Foto de um grafite de Edouard Boubat.
complexo de discursividades.
Ao analisar essas práticas linguageiras e urbanísticas, ressaltei
três discursos recorrentes que, por ora, categorizo como: subver-
sivo, educativo e afetivo. Esta proposta de categorização facilita o
trabalho de análise, porém, está sujeita às inter-relações possíveis
de serem localizadas. Segundo Guatarri, o espaço construído in-
terpela o indivíduo, produzindo subjetividades154.
Elegi as imagens mais significativas para ilustrar as reflexões
sobre o discurso e a heterogeneidade de sentidos no espaço da
cidade. Ressalto que o ato de categorizar não é algo natural, mas
um trabalho do analista, a partir das questões colocadas pelo pro-
blema de sua pesquisa, de suas hipóteses, de seu referencial teó-
rico-metodológico e, por fim, de suas imbricações como sujeito.
Neste sentido, parece-me oportuno retomar uma observação de Fonte: http://effetpapillon.free.fr/depart1.htm
Orlandi quando afirma que “a construção do corpus e a análise
estão intimamente ligadas: decidir o que faz parte do corpus já é “A vida acima de tudo” é uma escrita de protesto, com tons
decidir acerca de propriedades discursivas155”. poéticos, que inspirou grafiteiros em todo o mundo. Nessa pers-
pectiva, o espaço urbano é o lugar de manifestação das lutas e das
Memória da transgressão nos muros resistências de classe, conforme aponta Carlos: “pensar o espaço
também como produto de lutas, fruto de relações sociais contra-
A década de 1960 e suas intensas revoluções nos legaram imagens ditórias, criadas e aprofundadas pelo desenvolvimento do capital”
memoráveis que atravessariam os anos marcando nosso imagu- 156
. Também podemos entendê-lo como meio de manifestação de
nário sobre o fazer político. Dessa forma, 1968 foi um “ano que outras lutas operadas no cotidiano (raciais, religiosas, estéticas, de
gênero etc.), muitas delas distantes dos holofotes midiáticos, mas
153  As imagens são autorais e foram feitas durante a Ruta Inka: al encuentro de
los mayas (2010), em La Paz, Cuzco, Lima, Trujillo, Lambayeque, Loja, Cuenca, presentes nas escrituras das paredes.
Ingapirca, Otavalo e Quito. Esse discurso subversivo, entendido como resistência às or-
154 GUATARRI, Felix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: dens discursivas dominantes do capitalismo contemporâneo,
Editora 34, 1992. tem permanecido como elemento central nos estudos e pesqui-
155 ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 7. ed.
Campinas: Pontes, 2007, p. 63. 156 CARLOS, Ana Fani Alessandri. A cidade. São Paulo: Contexto, 2003, p. 71.

84 85
Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

sas sobre pichações e grafites. Essa preponderância tem gerado sociação).


uma associação quase direta entre essas formas de arte urbana e Figura 17: Fachada de um muro em Loja, Equador.
o discurso político. Entretanto, Canevacci lembra que os espaços
comunicacionais das metrópoles são múltiplos e fluídos, “parti-
cularmente, aquele tipo de comunicação fortemente inovadora
que sai das lógicas tradicionais, dos espaços institucionais, das
práticas sociais, de objetivos universais” 157.
Nessa pesquisa, deparei-me com materialidades que revelam
a constituição de sujeitos insatisfeitos com os sistemas regradores
(políticos, econômicos e ideológicos). Dessa forma, verifico que a
forma de inscrição política dos anos 1970 − legível, centrada no
conhecimento escolar e na grafia desse sistema − ainda marca sua
presença como contestação158.
Todavia, por vezes, o foco do macropolítico se desloca para as
lutas contra outros sistemas de interdição, conforme os estudos
foucaultianos já apontaram.
É nesse sentido que encaminho a interpretação da primeira Fonte: fotografia do autor
fotografia.
O sentido do enunciado – igualdad – pode ser múltiplo, po-
Se na imagem de Boubat a vida deve estar acima de tudo, a rém a imagem feminina e a forma de representação limitam as
liberdade é a tônica do discurso dessa fotografia, encontrada na possibilidades interpretativas. A igualdade requerida deve ser lida
cidade de Loja, no Equador. Tem-se a figura de uma jovem com na perspectiva da luta política de gênero. Ecoa na imagem a me-
cabelos esvoaçantes e chapéu na cabeça. O rosto da moça ocupa mória histórica das lutas de todas as mulheres e homens que re-
quase a metade do quadro. À sua direita tem-se o enunciado “an- cusam a perspectiva sexista e excludente das sociedades machistas
tes de tudo… igualdade”. O mais interessante é que o muro da contemporâneas.
imagem não pertence a nenhuma instituição (escola, igreja, as-
O sujeito-autor, cuja autoria é silenciada na imagem, rechaça
157  CANEVACCI, Massimo. Culturas extremas: mutações juvenis nos corpos o discurso sexista e propõe a primazia da igualdade. O discurso,
das metrópoles. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, p. 46. por outro lado, é construído em uma perspectiva afirmativa, pos-
158  “Nos anos 70 éramos pichadores alfabetizados. Nossas reivindicações to que a mulher está com uma leve expressão de sorriso, por con-
se faziam com letras tradicionais de uma escrita (que se queria) bem legível: seguinte, não há conotações de violência, indignação ou revolta.
‘Fora a Ditadura!’ para quem fosse alfabetizado. E os que não eram também
entendiam, pelo modo como as palavras apareciam nos muros ou em outros Ao mesmo tempo, o discurso na fotografia produz o sentido
lugares inusitados, ou pelas cores (vermelho, preto), que se tratava de um gesto de protesto: a própria escritura na parede denota certo margea-
de contestação ou reivindicação política. Hoje, a pichação é já nos seus sinais
mento das condições artísticas tradicionais (pintura em tela e ex-
indecifráveis para muitos, a própria manifestação da reivindicação e da contes-
tação política e, mais claramente que a pichação de 70, social.” ORLANDI, Eni. posição em museus, galerias, revistas etc.).
Cidade dos sentidos. Campinas: Pontes, 2004, p. 107.

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Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

cionalidade urbana do jogo de quantidade (poucos são os leitores


Figura 18: Fachada de um muro em Cuzco, Peru. e muitos são da periferia, ou são a periferia)” 159.

Das marcas da afetividade ao discurso educativo


Os muros das cidades registram, também, o encontro amoroso
dos sujeitos. Segundo Garcia, o discurso amoroso é caracteriza-
do pela “reafirmação constante da afeição, por meio de palavras
carinhosas, murmúrios e códigos específicos e por entonações
próprias” 160.
Neste sentido, por letras e símbolos pintados com tinta bran-
ca, o sujeito-autor da escrita declara seu amor pelo esposo. As re-
ticências, a repetição de palavras, o uso do diminutivo, as estreli-
nhas e o desenho de sorriso denotam uma escrita emotiva.
Figura 19: Fachada de um muro em Quito, Equador.

Fonte: fotografia do autor

A escrita de protesto, em algumas ocasiões, transgride os limi-


tes da compreensão dos leitores não pertencentes aos movimen-
tos urbanos, tornando-se, por vezes, indecifrável. Nessa fotografia,
registrada na cidade de Cuzco, no Peru, tem-se um exemplo da
mescla de imagens e símbolos não reconhecíveis: há predominân-
cia das cores verde, amarelo e azul em imagens de seres imaginá-
rios pintados e/ou grafitados, sobrepondo-se, em alguns lugares,
às pichações; mas inexistem frases e palavras reconhecíveis.
O “não se fazer compreender” é também um posicionamen-
to ideológico significativo: marca um lugar de resistência ao ou-
tro, apenas os “iniciados” poderão decodificar a mensagem. Esse
mecanismo discursivo gera identidade, ao produzir um reconhe-
cimento e um posicionamento do sujeito em um dado lugar na Fonte: fotografia do autor
estrutura social; em outras palavras, sua inscrição numa formação
“Eu te amo maridinho, você é a melhor coisa que me acon-
ideológica por meio do simbólico.
Para Orlandi, o ininteligível constrói sentidos para os grupos 159 ORLANDI, Eni. Cidade dos sentidos. Campinas: Pontes, 2004, p. 104, gri-
segregados em outra formação ideológica que não a da “informa- fos da autora.
ção-comunicação”. Por conseguinte, “escrevem invertendo a ra- 160 GARCIA, Afrânio. Tipos de discurso. Rio de Janeiro: O Autor, 2003, p. 10.

88 89
Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

teceu. Obrigada por alegrar a minha vida… eu te amo… te amo… ou “kloonger”? São as marcas dos “homens ordinários”, heróis do
te amo… não esqueças.” Numa tradução livre e incompleta, re- dia a dia, “todo mundo e ninguém”, conforme nomeia Certeau163.
gistra uma homenagem ao “sujeito-esposo”. Podemos visualizar Neste sentido, a escrita nos muros é uma um processo comuni-
ainda a assinatura das inicias “M.L”. A autoria está inscrita no cacional acessível a todas as classes, sobretudo aos excluídos do
muro, ou seja, presente na imagem. acesso às mídias massivas.
Se o sujeito é interpelado pela ideologia e individualizado pe- Figura 20: Fachada de um muro em La Paz, Bolívia.
las instituições do Estado161, ele constrói sua identidade também
por meio da escrita.
Ao contrário do visto nas imagens anteriores, o texto não tem
uma preocupação política contestatória, porém, marca um gesto
de afetividade.
Com isso, não digo que não há marcas da ideologia presentes
em todo o fazer humano. Esclareço: o conceito de discurso polí-
tico que defendo opera uma divisão entre os grandes discursos
estabilizados e os discursos da ordem do cotidiano.
É esse discurso do cotidiano que marca a imagem em tela, re-
velando os modos das relações afetivas e os desejos de expressão
da subjetividade, pois, segundo Foucault: “escrever é, portanto,
‘se mostrar’, se expor, fazer aparecer seu próprio rosto perto do
outro162”.
Ademais, defendo que há uma relação ideológica reveladora Fonte: fotografia do autor
dos papéis de gênero estabelecidos cultural e historicamente. To-
davia, defendo que não se observa uma ruptura à ordem vigente, Na imagem, a transgressão se coloca do ponto de vista formal:
ou seja, não há um movimento contestatório político do sujeito- a pichação nos muros é interditada aos indivíduos, em nome dos
-autor. O aspecto ideológico que, porventura, identificamos, é padrões de higienização. Todavia, o enunciado “a primeira namo-
fruto dos gestos interpretativos do analista a posteriori. rada escolhida, mas o primeiro amor” revela a perspectiva de um
sujeito-autor envolvido em uma relação amorosa, inscrito em ou-
Essas falas, por vezes anônimas ou irreconhecíveis, inscre- tra perspectiva ideológica que não a do fazer político stricto sensu.
vem-se na materialidade, a fotografia de um muro em La Paz, Bo-
lívia. Vemos as assinaturas na imagem, mas quem seria “Janase” O desejo de expressar sentimentos e emoções foi o que moti-
vou esses sujeitos-autores à pichação. Ora, esse traço identitário
da afetividade, colocado em segundo plano em muitas análises, re-
161 Conforme defende ORLANDI, Eni. Cidade dos sentidos. Campinas: Pontes, vela nossa constituição humana, nosso “estar-no-mundo”, como
2004.
162 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense 163 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópo-
Universitária, 2004, p. 156, grifos do autor. lis: Vozes, 1994.

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Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

seres emocionais, conscientes e também inconscientes, conforme afetividade, o clima de confidências entre amigos, perenizado na
defende Morin: “O ser humano é um ser racional e irracional, ca- pedra.
paz de medida e desmedida; sujeito de afetividade intensa e instá-
Na fluidez das “metrópoles comunicacionais165” tem-se os
vel. Sorri, ri, chora, mas sabe também conhecer com objetividade;
discursos educativos, que visam disciplinar os sujeitos, subme-
é sério e calculista, mas também ansioso, angustiado, gozador,
tidos ao poder disciplinar, que segundo Foucault: é “um poder
ébrio, extático; é um ser de violência e de ternura, de amor e de
que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior
ódio; é um ser invadido pelo imaginário e pode reconhecer o real,
‘adestrar’: ou sem dúvida adestrar para se retirar e se apropriar
que é consciente da morte, mas que não pode crer nela; que se-
mais e melhor166”.
creta o mito e a magia, mas também a ciência e a filosofia; que é
possuído pelos deuses e pelas Ideias, mas que duvida dos deuses e Nas duas fotos capturadas em Otavalo, no Equador, podemos
critica as Ideias; nutre-se dos conhecimentos comprovados, mas ver o funcionamento dos discursos normalizadores dos compor-
também de ilusões e quimeras” 164. tamentos à luz dos ideais escolares. São imagens de um discurso
Figura 21: Fachada de um muro em Quito, Equador.
permitido, inscritas em fachadas institucionais e em códigos ima-
géticos regulares, aproximando-se do ideal de realismo.
A ideologia oficial se manifesta na estética e na técnica dos
desenhos, pintados aos moldes tradicionais. As crianças repre-
sentadas são todas brancas, num país de maioria mestiça, estão
bem-vestidas, sem vestígios de sujeiras ou fora dos padrões da
“normalidade” das sociedades disciplinares, nas quais a loucura, a
doença e a transgressão devem ser combatidas.
Figuras 22 e 23: Fachadas de uma escola em Otavalo, Equador.

Fonte: fotografia do autor

“Amigos para sempre”, escrito em inglês, revela o poder de


penetração do idioma estrangeiro nas cidades latino-americanas,
metonímia da influência dos Estados Unidos. Essa questão ideo- Fonte: fotografia do autor
lógica perpassa a construção do texto, como aponto nesses gestos
interpretativos, porém o efeito de sentido preponderante é o da 165 CANEVACCI, Massimo. Culturas extremas: mutações juvenis nos corpos
das metrópoles. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
164 MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: 166 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 30. ed. Petrópo-
Cortez, 2001, p. 59. lis: Vozes, 2005, p. 143.

92 93
Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

Quando as classificações falham lidade”167.

Se a escola é uma instituição reguladora de comportamentos, Submetidos à vigilância, a uma “tecnologia do poder”, con-
também o serão as instituições militares, como o exército. Nes- forme define Foucault168, as instituições militares incidem sobre
ses espaços, espera-se a emergência de textualidades educativas os corpos dos indivíduos, controlando seus gestos e suas ativida-
e de incentivo aos valores tradicionais da sociedade, sob pena de des. Dessa maneira, disciplinado, “o corpo humano entra numa
punição. maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recom-
põe169”. Essa prática de poder dociliza os sujeitos e submete-os às
Figura 24: Fachada de instituição militar em Trujillo, Peru.
relações normativas.
Espera-se que as inscrições dos muros militares, tais como
as da escola de Otavalo, produzam efeitos de sentido educativos/
disciplinadores. Entretanto, os mecanismos de poder abrem es-
paço para as estratégias de resistência, conforme mostra a obra
foucaultiana.
As rupturas com as interdições foram capazes de se materiali-
zar em um acontecimento singular no corpus desta pesquisa.
Vemos uma fachada de um alojamento militar em Trujillo, no
interior do Peru. Chama-nos a atenção a expressão popular “ca-
rajo!” que nem sempre tem a conotação negativa do português,
mas ainda assim é considerada uma palavra à margem da escrita
do padrão culto. Diferentemente da língua portuguesa, o carajo
espanhol, com acento de exclamação, pode indicar uma boa sur-
presa, uma alegria ou mesmo ensejar o riso e o humor.
Fonte: fotografia do autor Foucault170 entende os enunciados inscritos num processo de
Foucault, em sua famosa aula no Collège de France, advertia- descontinuidade histórica. O movimento de regularidade e dis-
nos para os mecanismos de controle discursivo das sociedades persão abre espaço para a noção de “acontecimento” como algo
contemporâneas. Não se pode dizer tudo; as instituições sociais que escapa à estrutura, irrompendo no solo da história.
também são operadoras de limitações e silenciamentos das ma- 167 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 13. ed. São Paulo: Loyola, 2006,
terialidades discursivas. “Suponho que em toda sociedade a pro- p. 8-9.
dução do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada,
168  FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 30. ed. Petró-
organizada e redistribuída por certo número de procedimentos polis: Vozes, 2005.
que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
169  FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 30. ed. Petró-
acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materia- polis: Vozes, 2005, p. 127.
170 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2004.

94 95
Mídia e Discurso

No muro peruano, vemos que a “originalidade” está no retor- CONSIDERAÇÕES FINAIS


no de um enunciado corriqueiro, mas interditado às instituições
militares, no local mesmo de sua proibição.
Ademais, o acontecimento discursivo da parede de Trujillo
mostra-nos que as ideias e os textos circulam socialmente e que
há espaço para a quebra da expectativa e das classificações estan-
Quando um rio corta, corta-se de vez 
ques. o discurso-rio de água que ele fazia; 
Dessa forma, essa reflexão abre espaço para repensar os dis- cortado, a água se quebra em pedaços, 
cursos políticos no interior dessa tradicional comunicação alter- em poços de água, em água paralítica. 
nativa, levantando questões sobre essas imagens tão corriqueiras. Em situação de poço, a água equivale 
a uma palavra em situação dicionária: 
Por fim, acompanhando os sinuosos movimentos do (dis)curso,
isolada, estanque no poço dela mesma, 
nos jogos de visibilidade e invisibilidade dos “invólucros dos sím- e porque assim estanque, estancada;
bolos”, identificam-se as redes heterogêneas de sentidos e as posi- e mais: porque assim estancada, muda, 
ções dos sujeitos-autores ao comunicar seus afetos, seus desejos e e muda porque com nenhuma comunica, 
suas contestações no espaço fluido e infindo das cidades. porque cortou-se a sintaxe desse rio, 
o fio de água por que ele discorria. 

O curso de um rio, seu discurso-rio, 


chega raramente a se reatar de vez; 
um rio precisa de muito fio de água 
para refazer o fio antigo que o fez. 
Salvo a grandiloquência de uma cheia 
lhe impondo interina outra linguagem, 
um rio precisa de muita água em fios 
para que todos os poços se enfrasem: 
se reatando, de um para outro poço, 
em frases curtas, então frase e frase, 
até a sentença-rio do discurso único 
em que se tem voz a seca ele combate. 

João Cabral de Melo Neto

A
análise dos discursos que circulam na sociedade pode
contribuir para entender os jogos de poder e resistência
que se encontram em disputa. É possível ainda identificar
os múltiplos processos de produção social dos sentidos, sempre
negociados a partir dos lugares de fala e de silêncio.

96 97
Mídia e Discurso Adriano Charles Silva Cruz

Tentei mostrar que linguagem não é transparente e os signos identificações e contradições.


não são inocentes, às vezes, imagens e textos ocultam sujeitos e
Se a comunicação nos anos sessenta ainda era calcada nos im-
ideologias, mas põem em evidência outros. Nesse sentido, a ex-
pressos, hoje, é impensável não considerar a mediação das redes
plicação matemático-informacional da codificação e decodifica-
sociais e das tecnologias móveis. De fato, a consolidação das tec-
ção de mensagens não é suficiente para entender os processos de
nologias digitais e das novas formas de comunicação mediadas
construção de sentidos.
pela internet reconfiguraram práticas sociais e discursivas e, tam-
Desde a primeira conformação da teoria nos anos sessenta, bém, põe em destaque o papel dos receptores.
houve uma série de mudanças epistemológicas na Análise de Dis-
A capacidade de edição, produção e divulgação relativiza, em
curso. Entre deslocamentos e reposicionamentos, a concepção de
certa medida, o poder da mídia massiva e abre a mirada para os
um discurso fechado em si abriu espaço às análises das formações
processos de reconfiguração das mensagens, sobretudo nas redes
discursivas e dos processos de negociação em seu interior.
sociais.
Tal como um rio, as imagens, textos, vídeos estão em relação a
No Brasil, as culturas são híbridas, convivem o pós-moderno
outros. É preciso observar ainda a natureza da produção, circula-
e o arcaico. Nessas intrincadas fronteiras, surgem novas materia-
ção e consumo das mídias. Assim, o analista se debruça na análise
lidades, como os memes, ao lado das tradicionais imagens, como
da materialidade discursiva em sua relação com o macrocontexto,
as revistas e o cinema, e dos processos comunicacionais alternati-
as condições de produção.
vos, como os muros das cidades.
Ao pensar a linguagem em sua relação com a história, enten-
Entendo que é preciso observar os múltiplos processos de
do que não somos donos exclusivos de “nossos” discursos, mas
discursivização, entre imagens, dizeres e não ditos no interior de
que estamos inscritos em formações ideológicas que interferem
uma cultura midiatizada, em que todas as esferas sociais seguem
na maneira que falamos, produzimos e silenciamos. Todo discur-
a lógica das mídias.
so é interdiscurso, porque está atravessado por outros. Há sempre
margens, brechas e negociações de toda sorte. O discurso é fluido, pois as relações sociais são construídas
nos movimentos descontínuos da história. Assim, os sentidos são
Nesse sentido, os indivíduos usam a linguagem a partir da
também cambiantes, nos fios a fios da memória, se constrói a mo-
formação ideológica, cultural e política em suas relações com a
vência de discursos na liquidez da modernidade.
sociedade.
É preciso interpretar as imagens e textos a partir das estru-
turas institucionais e da cultura. Em outras palavras: quem fala?
De que lugar fala? E de que maneira? São questões que ajudam a
reconstruir os fios de uma teia, sempre heterogênea.
Jornalistas, fotógrafos, diretores, criadores de memes falam de
um lugar social e, por vezes, mudam de posições discursivas. Dito
de outro modo, os sujeitos podem se identificar plenamente com
uma formação discursiva, podem romper com ela ou negociar vá-
rias posições em seu interior. Dessa forma, emergem polêmicas,

98 99
Adriano Charles Silva Cruz

POSFÁCIO utilizados por grupos marginalizados “justamente os que contes-


tam a cultura dominante e estes que compreendem e reconhecem
como grupos sociais que observam e vivem suas diferenças cul-
turais”171.
Cruz nos indica que “linguagem não é transparente” e os

O
s enunciados. As linguagens. As manifestações e as ora- “signos não são inocentes”; “imagens e textos ocultam sujeitos e
ções. Nas instituições, nas representações e atores sociais, ideologias” [...] nunca foi tão hodierno essas afirmações! Num
nas subjetividades, nas políticas e nas culturas; como não contexto cada vez mais midiatizado, tecnológico e fake, de dis-
pensarmos nos discursos? cursos polarizados e truculentos ao redor do mundo ocidental,
o livro Mídia e Discurso reproduz e descreve himeneu longe de
Mídia. Meios, suportes, mensagens e difusão. Como não pen-
uma cisão, pois não conseguiremos deixar de ver, ler ou ouvir a
sarmos nos discursos na mídia? Para nos auxiliarmos nessa tarefa
mídia sem os distintos discursos, nem tão pouco, discursos não
reflexiva, o livro do pesquisador e professor potiguar, Adriano
estarem presentes na mídia. É nessa comunhão e des (h)armonia
Charles Cruz, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, de-
dos fenômenos que Adriano Cruz lança e convida-nos o desafio e
monstra essa sempiterna necessidade de compreendermos a luz
a provocação desta agradável leitura!
da “construção de sentido”.
O pesquisador nos presenteia e nos atualiza com os notá-
veis pensadores no campo do discurso para interpretarmos essas Maria Érica de Oliveira Lima
construções nos diversos suportes: fotografia, documentário, re- Jornalista. Professora Associada do curso de Jornalismo e do
vistas semanais, memes e muros das cidades, recortando, empi- Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade
ricamente, e no rigor metodológico, exemplos que avançam no Federal do Ceará (UFC). Conselheira e ex-presidente (2013-2016)
entendimento da mensagem. da Rede de Estudos e Pesquisa em Folkcomunicação. Coordenado-
A publicação é uma ótima oportunidade para investigadores ra do GP Folkcomunicação, Mídia e Interculturalidade – INTER-
no campo da Comunicação e dos Estudos da mídia, sobretudo, COM e DTI – Folkcomunicação – IBERCOM.
alunos de graduação e pós-graduação que possuem na Análise de Fortaleza, 07 de outubro de 2018.
Discurso (AD) uma das principais teorias, métodos e técnicas nos
seus trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses. Cruz, Eleições gerais no Brasil
especialista destacado na UFRN, lança seu olhar perscrutador e
astuto à emergência dos fenômenos atuais que cada vez mais es-
tão capturados e encadeados pelos discursos.
Muitas dessas afirmativas dos fenômenos expostos aqui, em
especial atenção às declarações nos muros das cidades latino-a-
mericanas por onde passou o pesquisador, nos remetem aos fun-
damentos de Luiz Beltrão que cita o cumprimento das expressões
folkcomunicacionais como meios informais de comunicação, 171 BELTRÃO, Luiz. Folkcomunicação: teoria e metodologia. São Bernardo do
Campo: Umesp, 2004.

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SOBRE O AUTOR

É
graduado em Comunicação e especialista em Jornalismo
Econômico pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, mestre em Comunicação pela Universidade Fede-
ral de Pernambuco, doutor em Letras pela Universidade Federal
da Paraíba, com intercâmbio na Universidade de Paris X e na
Universidade Distrital Francisco José de Caldas (Colômbia). Re-
alizou estágio de pós-doutorado em Comunicação na Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Contato:
adrianocruzufrn@gmail.com

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