Artigo Sagarana

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O lendário, o mítico e o místico em O corpo fechado de João Guimarães

Rosa

Gilson Ventura*

Resumo
Ao nos debruçarmos sobre os estudos da literatura regional produzida
no interior de Minas Gerais, podemos perceber quão grande riqueza nos é
apresentada. Uma das figuras mais estimulantes de se trabalhar quando
tratamos de regionalismo são a figuras dos famosos “valentões” presentes na
literatura mineira interiorana. Junto com a capoeira que se destacou mais no
estado da Bahia para depois se estender para outros como Rio, Recife e Minas
Gerais e a jagunçagem que sempre esteve ligada à ação dos valentões, estes
e sua lenda sempre estiveram presente no imaginário sertanejo. Fazendo uma
lúcida e perspicaz viajem ao tempo, pretende o presente trabalho discorrer
sobre a figura do valentão e sua ligação com o místico aqui tratado nos moldes
da feitiçaria em Corpo Fechado, penúltimo conto da obra Sagarana de João
Guimarães Rosa, representado pelo jocoso Manuel Fulô e seu opositor o
valente Targino.

Palavras chave: Valentão, Minas Gerais, regional.

summary
When we look at the studies of the regional literature produced in the interior of
Minas Gerais, we rejoice at the great richness presented to us. One of the most
stimulating figures to work on when dealing with regionalism is the figures of the
famous "bullies" present in the interior Brazilian literature. Along with the
capoeira that stood out more in the state of Bahia to later extend to others like

______________________________________
*
Mestrando em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC-MG. Bolsista da CAPES. Este
trabalho foi desenvolvido como parte das atividades da disciplina Teoria narrativa em
Sagarana, ministrada pelo professor Alexandre Veloso de Abreu.

1
Rio, Recife and Minas Gerais and the jagunçagem that always was linked to the
action of the bullies, these and its legend always were present in the sertanejo
imaginary. Making a lucid and insightful journey to time, the present work
intends to discuss the figure of the bully and its connection with the mystic here
treated in the mold of witchcraft in Corpo Fechado, penultimate tale of the work
Sagarana by João Guimarães Rosa, represented by the jocoso Manuel Fulô
And his opponent the brave Targino.

Key words: Valentão, Minas Gerais, regional.

Introdução

Lajinha é um município do interior de Minas Gerais. Segundo sua


história, um homem chamado Francisco Mateus Laranja iniciou um trabalho de
derrubada da mata onde viria a crescer o povoado. Em 1910, junto com José
Lucas de Barros, recebeu de Antônio Pedro Garcia, genro do Comendador
Leite, um alqueire de terra onde foi erguida uma capela em honra a Nossa
Senhora de Nazaré. Em 1916, a sede do distrito de Santana do José Pedro -
atual município de São José do Mantimento, conforme lei Estadual n°: 556, de
30 de agosto de 1911 - foi transferida para a povoação do Lajinha do Chalé. A
redução do nome para Lajinha deu-se em 1929. Passou a município em 1938,
desmembrando-se de Ipanema, com parte de território do Município de Mutum.

É nesse contexto que se passa a história de Manuel Fulô e Targino.


Rodeada pelo mito do valentão, Lajinha vai ser palco de um dos mais
inusitados duelos entre essas duas personagens que, assim como em tantas
outras narrativas tem como principal motivação, uma figura feminina.1 Fazendo
um estudo esmiuçado na história dos interiores, chegaremos a essa intrigante
figura do valentão que, era costume, ao ser vencido por um mais valente que
ele, fica como o último valente temido pelos demais. Tendo seus primeiros

__________________________________________

1
Em várias obras literárias, a figura feminina é o ponto inicial de uma disputa que vai distinguir
dois destinos duas ou mais vidas: O tempo e o vento, com Bibiana Terra, e a própria Ilíada
com a figura de Helena.

2
registros no Estado da Bahia e se expandindo para outros estados como Rio,
Pernambuco, São Paulo e Minas Gerais, Vários mistérios envolviam essas
personagens que acabavam por se tornar uma figura mitológica.

José Antônio do Nascimento, mais conhecido como “Nascimento


Grande”, foi um dos valentões mais terríveis de Recife, no fim do
século XIX.[...] Conta a história que Nascimento Grande nunca
perdeu uma briga. Morreu aos 90 anos. Não era de seu caráter
provocar brigas, mas uma vez provocada, ninguém o segurava.
Vários capoeiristas tentaram destronar Nascimento Grande para ficar
com sua fama, mas, todas as tentativas foram em vão. Da mesma
maneira que Besouro tinha poderes sobrenaturais e que era protegido
por um “patuá”, conta-se que Nascimento Grande também tinha o
“corpo fechado” e usava um amuleto no pescoço para se proteger dos
inimigos e das forças negativas. Ninguém pode garantir, mas, o que
todos diziam é que até mesmo as balas não atravessavam seus
corpos.

É esse tom místico que vai permear o conto de Rosa e o encontro dos
“valentões”. Como é costume nos interiores mineiros no início do século, em
que a presença do médico era coisa rara, o que fazia que quando um “homem
da ciência” por lá passava, fazia pousada em uma residência, normalmente do
fazendeiro de maior posse. Em uma de suas passagens pelo povoado, o
doutor, médico de Lajinha e Manuel Fulô conversam descontraidamente sobre
a perpetuação dos valentões e de quem seria o valentão atual e como se dera
sua substituição, etc... Já no inicio da conversa inicial nos é possível estar
cientes do perfil cômico da figura de Manuel Fulô:

‒Ara, ara, seu doutor! Se o tropeiro não tivesse entrado, eu


fazia desordem, e fazia mesmo... Porque, depois, o cachorro do
Adejalma ainda me perguntou, só por deboche, porque ele estava
cansado de saber quem eu era: “Como é que você chama, rapaz?”...
— E você? — Eu pus a mão na coronha da garrucha, e respondi:
“Só eu perguntando p’r’a minha mãe”... — E ele? — Um desgraçado!
Era só ele bulir, e eu mais o tropeiro mandávamos o corpo dele p’ra
o quincumbim... Aquele sujo! Assassino! Tralha! — Que raiva é essa,
fora de hora, Manuel? — Pois o senhor não imagina que, ao depois,
o miserável desse Adejalma, só por medo da minha macheza, me
convidou, mais o tropeiro, p’ra beber com ele e fazer companhia?...
O tropeiro agradeceu e não aceitou, mas eu fui, porque não sou
soberbo...

Toda presunção de valentia em Manuel Fulô, entretanto cai por terra ao


ser desafiado pelo valente Targino, que o confronta dizendo que dormirá com

3
sua noiva na noite anterior ao casamento, causando primeiramente o pavor em
Manuel Fulô e um grande alvoroço na cidade que já se ouriça esperando os
acontecimentos.
O valentão tratado em Corpo fechado não é tema exclusivamente desse
conto em Sagarana. Tangencialmente, vemos essa figura aparecer em outros
contos para se avolumar em Corpo fechado. Em O burrinho Pedrês, o Major
lembra João Manico de sua valentia e a do burro: “— Ara viva! Está na hora,
João Manico meu compadre. Você e o burrinho vão bem, porque são os dois
mais velhos e mais valentes daqui...” Em Duelo, na perseguição de Cassiano a
Turíbio, quando ele adoece, e percebe o pouco tempo de vida que lhe restava,
pensa em procurar um valente pra ir à captura de Turíbio: “E rangia os dentes
ao pensar em Turíbio Todo. Mas, graças a Deus, tinha dinheiro. Indagou se por
ali não haveria um homem valente, capaz de encarregar-se de um caso assim,
assim... Dava até um conto de réis... [...] — E não terá alguém para levar
recado para vir cá algum valentão de aí por perto?... ”Em São Marcos, o
soldado enviado para prender Tião Tranjão também toca no assunto do
valente, ao perceber a resistência de Tião: “-Seu Tião Tranjão, o senhor tem
sua razão particular, toda, porque é homem de brio; mas eu também tenho a
minha, porque estou cumprindo dever de lei. Mas, onde está o homem, não
morre homem!... E gente valente como nós dois devemos de ser amigos!...”
São Marcos possui ainda outra peculiaridade consoante a Corpo fechado, o
fato de se tratar ainda de um conto envolvendo o místico e o mítico ao tratar
sobre a feitiçaria, o que é bem retratado em Corpo fechado e seu desfecho.
Em a hora e a vez de Augusto Matraga, em um diálogo entre Joãozinho Bem-
Bem e Nhô Augusto, ao falar a Nhô Augusto para que deixasse as manias de
reza, Joãozinho Bem-Bem dispara: — Que-o-quê! Essa mania de rezar é que
está lhe perdendo... O senhor não é padre nem frade, p’ra isso; é algum?...
Cantoria de igreja, dando em cabeça fraca, desgoverna qualquer valente...
Bobajada!...

O mítico e o místico em favor de Manuel Fulô

O místico e o mítico sempre estiveram presentes não só na literatura


brasileira como na portuguesa e africana. Em vários contos africanos, a

4
feitiçaria e o curandeirismo é algo referido recorrentemente, dado ser tal fato
um reflexo da própria sociedade de alguns países da África, fato que levou o
antropólogo Luiz Henrique Passador desenvolver no distrito de Homoíne,
Província de Inhambane, no Sul de Moçambique um importante trabalho
visando compreender como se dava a experiência da população local com o
HIV/Aids a partir de suas concepções “tradicionais”. Passador analisou a
estreita relação entre gênero, feitiçaria e medicina tradicional, comprovando o
intenso papel da feitiçaria na explicação e cura para diversas doenças tidas
como tradicionais. Várias obras literárias vêm então abordando tais temas na
literatura africana das quais se destaca a obra 2O sétimo juramento de Paulina
Chiziane, em que o tema é tratado de forma aberta, profunda e direta.
Ao nos atermos a uma pesquisa mais apurada no âmbito da literatura
brasileira, portuguesa ou africana, percebemos esse misticismo sempre
presente de forma direta ou como pano de fundo. Desde Jorge Amado e sua
passagem ao Candomblé em Tenda dos milagres3 a Fernando Pessoa e a
manifestação de seus heterônimos, o misticismo é algo recorrente fazendo
cada vez mais adeptos a temas tão instigantes. Fernando Pessoa afirma que
“desde criança vivia entre personagens imaginários, não sei bem entendido, se
realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em
todas, não devemos ser dogmáticos”. Ao descrever ainda a criação de um de
seus principais heterônimos, Alberto Caeiro, o que se lê é algo realmente
inusitado o que o levou a ter fama de neurótico. Em carta a um dos moços de
uma revista da época denominada Presença, pessoa relata da seguinte
maneira à redação:

No dia 08 de Março de 1914 acerquei-me de um acômoda alta, e


tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre
que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de
êxtase cuja natureza não conseguirei definir. [...] E o que se seguiu foi
o aparecimento de alguém em mim, a quem dei logo o nome de
Alberto Caeiro.

2
A obra de Chiziane retrata exatamente o envolvimento da sociedade africana com o ocultismo,
feitiçarias e curandeirismo. Um empresário envolvido em ações corruptivas procura na feitiçaria
a solução de seus problemas, se envolvendo num “mundo de contrastes e contradições, em
que as forças do bem e do mal travam uma luta contínua e titânica”.

5
3
Em Tenda dos milagres, Pedro Archanjo é Ojuobá, os olhos de Xangô, o pai do povo
deserdado da Bahia. Dos negros, dos mestiços, da gente pobre. Rei do terreiro, dos afoxés,
chamego das mulheres, amigo dos seus pares, confidente e conselheiro de quantos o
procuram.

Pessoa aqui relata ser tomado por uma espécie de força maior que o
toma e escreve por ele deixando então nos transparecer um caráter
extremamente místico em suas escritas.

O corpo fechado
Mais precisamente no século XVI, quando o comércio de escravos veio
para o Brasil, suas crenças e ritos sobreviveram a longas e perigosas viagens
transatlânticas. Nesse mesmo período, cerca de setecentos mil imigrantes
portugueses se fixaram no Brasil trazendo seu próprio estilo de catolicismo.
Muitos desses colonos se assentaram no sertão se tornando o que nós
conhecemos hoje como “o sertanejo”. Outro costume importante comum entre
os dois grupos vindos para o Brasil foi um ritual conhecido como “fechamento
de corpo”. Não havia apenas um tipo de ritual de fechamento, em um deles é
feita uma oração que garante a proteção do corpo. Acredita-se que por tal ritual
é afastado o mal espiritual ou físico. No caso da proteção física, o beneficiário
crê piamente estar protegido contra ataques dos inimigos, sejam por facas,
armas de fogo ou veneno de cobra. Segundo Luís Carlos Mendes Santiago em
seu trabalho “O mandonismo mágico do sertão: corpo fechado e violência
política nos sertões da Bahia e de Minas Gerais”, dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Montes
Claros como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em
História,

A crença no corpo fechado é especificamente brasileira, mas está


inserida em um conjunto de crendices presente em todas as épocas e
em todas as sociedades, centrado na crença na invencibilidade de
uma determinada pessoa, própria, sobretudo, dos períodos de guerra
ou de conflitos generalizados. A invencibilidade é atributo não apenas
de semideuses, mas também de heróis e mesmo de alguns tiranos.

Na década de vinte circulou pelo sertão nordestino brasileiro um dos


maiores cangaceiros cuja fama se deu não só pela vadiagem e maldade
praticada no sertão como as práticas de rituais de fechamento de corpo. Seu

6
nome era Virgulino Ferreira da Silva, conhecido como Lampião. Mais de uma
versão é dada no intuito de explicar a origem do apelido de Virgulino, uma
delas é que sua capacidade de atirar seguidamente, iluminando a noite com
seus tiros, fez com que recebesse tal apelido. Ele, juntamente com seus
capangas recitavam diariamente uma reza na qual acreditava que se a fizesse
regularmente, estaria fora de perigo. Dessa forma Lampião mesclava a fé e a
religiosidade que se estendia para um terreno místico. Percebemos aqui que a
crença no corpo fechado, e jagunçagem e “valentismo” são questões que
sempre estiveram atreladas umas às outras, e transferidas da realidade à
ficção. Guimarães Rosa em Corpo fechado vai se valer exatamente desses
três pilares para tecer sua narrativa. Toniquinho das águas, uma
importantíssima personagem para o desfecho do conto já era uma rixa antiga
de Manuel pelo fato de possuir uma bonita sela mexicana a qual Manuel
sempre desejara comprar, mas que Toniquinho não vendia e ainda insistia com
Manuel para que lhe vendesse a jumenta. Essa personagem era conhecida nos
arredores de Lajinha exatamente por ter fama de feiticeiro e curandeiro. Era
visto por Manuel como aquele que se valia de seus trabalhos e encantos de
magia e feitiçaria para impor medo às pessoas:

Só sabe é fazer feitiço, vender garrafada de raiz do mato, e rezar reza


brava. Tem partes com o porco-sujo... Não presta! Gente assim não
devia de ter! [...] E já pensei também que ele, sabendo que gente dos
Peixotos é gente mesmo opiniúda, e que eu não vendo — nã-o ven-
do! —, que ele queira pôr algum quebranto na minha Beija-Fulozinha,
benza-a Deus!

Ele realmente era o feiticeiro do povoado e impunha certo respeito pelo


medo de feitiço que as pessoas simples do povoado mantinham. Será
importante para a instalação do clímax e o desfecho do conto, fato que se dá
no exato momento em que estavam todos atônitos sem saber o que fazer com
a situação, pois na mente inocente da vizinhança Manuel Fulô estava disposto
a travar uma forte luta com seu opositor, enquanto estava na verdade com um
terrível medo de sair para fora e encontrar o “último valentão”. É aí então que
entra a ação de Toniquinho que, em acordo com Manuel troca a jumenta por
um trabalho de fechamento de corpo, dando-lhe então coragem para enfrentar
Targino apenas com uma insignificante faca.

7
Após fazermos essa relação entre o conto rosiano e os registros de
jagunçagem, o mito dos valentões, dos quais não se é auspicioso que se faça
um estudo sem atrelá-los à questão dos casos de corpo fechado que se
difundiu no sertão é possível que invoquemos aqui o teórico Antônio Cândido.
Em sua obra Literatura e Sociedade, o teórico vai se ater com bastante afinco a
questão da interpretação literária a partir da representação da sociedade em
dada obra. Antônio Cândido, quando diz sobre a literatura em diálogo com a
sociedade esclarece que “para fixar ideias e delimitar terrenos, pode-se tentar
uma enumeração das modalidades mais comuns de estudos de tipos
sociológicos em literatura”. Dentre os tipos,

Um segundo poderia ser formado pelos estudos que procuram


verificar a medida que as obras espelham ou representam a
sociedade, descrevendo os seus aspectos. É a modalidade mais
simples e mais comum, consistindo basicamente em estabelecer
correlações entre os aspectos reais e os que aparecem no livro.
Quando se fala em crítica sociológica, ou em sociologia da literatura,
pensa-se geralmente nessa modalidade, que tem um arquétipo ilustre
no 4La Fontaine et ses Fables, de Taine.

Nessa perspectiva, reconhece-se a importância do estudo de Cândido


quando buscamos na historia dos valentões nordestinos e reconhecemo-los na
cômica figura de Manuel Fulô.

O baixo ou alto grau de narratividade no conto

Para entendermos um pouco a respeito do alto ou baixo grau de


narratividade no conto, vamos refletir qual a narrativa o conto propõe: em
suma, o conto Corpo fechado é narrado pelo médico do povoado o qual vai
narrando a conversa que tivera com Manuel Fulô. Falam a respeito dos
valentões do povoado, quais seriam os considerados valentões e que agora já
não o são e Manuel Fulô aproveita pra contar algumas de suas peripécias por
aquele sertão afora, até que entra no ambiente o atual valentão Targino
dizendo que passaria a noite com sua noiva antes do próprio Manuel no dia do
casamento.O clima
esquenta, as pessoas ficam preocupadas, Manuel se isola e o doutor sai em

8
4
Hippolyte Adolphe Taine (Vouziers, Champanha-Ardenas, 21 de abril de 1828 — Paris, 5 de
março de 1893) foi um crítico e historiador francês, membro da Academia francesa (cadeira
25: 1878-1893). Foi um dos expoentes do Positivismo do século XIX, na França. O Método de
Taine consistia em fazer história e compreender o homem à luz de três
fatores determinantes: meio ambiente, raça e momento histórico. Estas teorias foram aplicadas
ao movimento artístico realista.

busca de uma solução, até que aparece a figura de uma personagem que já
fora citado na conversa entre os dois. Este, o feiticeiro da região fecha o corpo
de Manuel Fulô em troca de sua jumenta. O desfecho é que com o corpo
fechado, Manuel enfrenta Targino apenas com uma faca e mata-o se tornando
então o valentão do povoado.
O grau de narratividade em um texto será dado a partir da quantidade de
eventos que ocorrem durante o enredo. Um aluno mais desavisado correrá o
risco de imaginar que quanto mais extenso o enredo, maior o grau
narratividade, o que será ledo engano. Tem-se um enredo extenso com um
baixo grau de narratividade, ao passo que se pode deparar com um enredo
curto que possui altíssimo grau de narratividade Assim, percebemos com mais
clareza tal distinção ao citarmos o exemplo dado por Yevseyev no seu
trabalho Measuring Narrativity in Literary Texts ao esclarecer a diferença entre
um texto com alto e baixo grau de narratividade : “Um homem entrou e sentou-
se”, e na frase: “Um jovem bem parecido com longos cabelos escuro,
elegantemente vestido, entrou e sentou-se no canto da sala festivamente
decorada, na mesa perto da janela”. Como explica Vyacheslav, o número de
eventos ocorridos na primeira e segunda frase é exatamente o mesmo, o que
ocorre é que na primeira, temos a narrativa mais sucinta que se preocupa em
passar apenas a ocorrência do evento, enquanto que na segunda, o evento é
passado de forma mais detalhada, mostrando certas peculiaridades da cena
que o primeiro exemplo não mostra. Essa segunda frase é típica dos bons
romances, são estratégias de apreensão ao leitor. As entrelinhas entre uma
ação narrativa e outra vão se tornando uma espécie de visgo em que o leitor
dificilmente se perderá.
O que ocorre em Corpo fechado é que, o índice ou grau de narratividade
vai ser menor que o enredo. O diálogo entre o protagonista Manuel Fulô e o
médico que está narrando o fato vai servir como ferramenta de protelação à
narrativa em si. O próprio narrador vai brincar com a questão da efetivação da

9
ação no texto, após ele conversar bastante tempo com Sr. Manuel Fulô,
estando em casa, recebe a visita da noiva de Manuel. Aqui é que o médico fica
sabendo do casamento de Manuel, o que faz com que o mesmo considere
esse momento como o início da história: “Ora pois, um dia, um meio-dia de
mormaço e modorra, gritaram ‘Ó de casa!’ e eu gritei ‘Ó de fora!’, e aí foi que a
história começou”. À frente, há outro episódio em que novamente o narrador-
personagem considera “realmente” o início da história. É um importante
episódio, pois narra a chegada do valente Targino na venda onde Manuel Fulô
e o médico conversavam:

Até que assomou à porta da venda — feio como um defunto vivo,


gasturento como faca em nervo, esfriante como um sapo - Sua
Excelência o Valentão dos Valentões, Targino e Tal. E foi então que
de fato a história começou. [...] Manuel Fulô se escorregara para a
beira da cadeira, meio querendo se levantar, meio curvado em
mesura, visivelmente desorganizado. E eu me imobilizei, bastante
digno mas com um susto por dentro, porque o ricto do fulano era mau
mesmo mau. Manuel Fulô nem esperou que o outro chegasse perto;
foi cantando:
— Boa noite, seu Targino, com’ passou?

Constatamos assim que o grau de narratividade do conto pode ser


considerado baixo, dado o pouco índice de ação entre as personagens e o
tempo do conto se passar mais em torno da conversa entre Manuel Fulô e o
médico. Com vinte e cinco páginas, o conto se inicia com os dois amigos
comentando sobre os pregressos valentões de Laginha, alternando com uma
espécie de narrativa documentária do médico: “Pois foi nesse tempo
calamitoso que eu vim para Laginha, de morada, e fui tomando de tudo a
devida nota”. Na nona página, o narrador-personagem, o doutor
propositalmente ameaça iniciar a narrativa em si, quando diz claramente que a
partir daquele momento, do chamado da noiva de Manuel a história começaria:
“Ora pois, um dia, um meio-dia de mormaço e modorra, gritaram ‘Ó de casa!’ e
eu gritei ‘Ó de fora!’, e aí foi que a história começou”. Entretanto, a partir desse
ponto, o narrador ainda continuam com suas anotações documentárias
relatando o diálogo com o Manuel Fulo. Para o leitor, o conto passa então a ter
característica narrativa nos moldes de Yevseyev , ou seja, caracterizados a
partir do número de eventos ocorridos a partir da décima nona página com a

10
entrada de Targino na venda como citado. Aqui há sucessivos eventos que vão
contribuindo para tornar a narrativa recheada de ações, findando o conto sete
páginas depois.
Vemos que a partir da entrada de Targino na venda, há o início da real
ocorrência de eventos, acontecendo o que foi dito por Prince, citado por
Yevseyev:

Uma passagem onde os sinais do narrado (referindo-se a eventos)


são mais numerosos que os sinais da narração (referindo-se à
apresentação de eventos e seus Contexto) deve ter um grau de
narratividade mais elevado do que uma passagem onde o Reverso é
verdadeiro (Prince 1982: 146, apud. Yevseyev)).

Conclusão
Em carta enviada ao amigo e também escritor João Condé, Guimarães
Rosa, ao discorrer acerca de cada conto de Sagarana, faz o seguinte
comentário de Corpo fechado:

Talvez seja a minha predileta. Manuel Fulô foi o personagem que


mais conviveu “Humanamente” comigo, e cheguei a desconfiar de
que ele pudesse ter uma qualquer espécie de existência. Assim,
viveu ele para mim mais umas três ou quatro histórias, que não
aproveitei no papel, porque não tinham valor de parábolas, não
“transcendiam”.

Na carta, Rosa chega a comentar ainda que, escrevendo Sagarana,


“Tinha de pensar, igualmente, na palavra ‘arte’, em tudo o que ela para mim
representava como corpo e como alma; como um daqueles variados caminhos
que levam do temporal ao eterno, principalmente”. Percebemos na carta que
Sagarana contém não só as letras de Guimarães como (sabe-se que tal
assertiva não se aplica apenas a Sagarana, mas a outras obras do escritor) a
sua própria alma, o sertanejo das gerais, o mesmo que percebemos em
Riobaldo ao narrar o Grande Sertão.
Em Corpo fechado vimos o quanto o tema do valente dialoga
diretamente com o místico e o mítico, de forma que ao trabalhar com a questão
da valentia no sertão, um passeio às confabulações da crença e a feitiçaria é
trabalho sine qua non para que o interpretemos de maneira adequada. O autor
não deixa claro se a vitória de Manuel é dada realmente por ter tido o corpo

11
fechado pelo Toniquinho das águas que vira o momento exato para fazer o tão
sonhado negócio e ficar com a jumenta de Manuel, ou se fora a fé de Manuel
que lhe dera coragem de sair à luta com seu adversário que por sinal também
era um crente das feitiçarias das gerais e conhecendo a fama do Antonico das
pedras das águas e ouvindo de Manuel: “-Atira, cachorro, carantonho! Filho
sem pai! Cedo será, que eu estou rezado fechado, e a tua hora já chegou!
Sentira-se intimidado e recuou fazendo que Manuel Fulô passasse a partir de
então ter a fama do novo valente de Laginha, disseminando seu bordão:
“Conheceu, gente, o que é sangue de Peixoto?”

Referência

AMADO, Jorge. Tenda dos Milagres. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

CÃNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. 8° Edição. São Paulo: Publifolha, 2000.

CHIZIANE, Paulina, O Sétimo Juramento, 2002, Casais de Mem Martins.


Printer portuguesa.

PASSADOR, Luiz Henrique. Guerrear, pacificar, curar: o universo da


“tradição” e a experiência com o HIV/AIDS no distrito de Homoíne, sul de
Moçambique. 2011. 293 f. Tese (Doutorado). Universidade Estadual de
Campinas, Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, São Paulo,
2011.

PAZ, Otávio, Signos em rotação. Tradução de Sebastião Uchoa Leite, São


Paulo, Perspectiva, 1996.

ROSA, João Guimarães. Sagarana . [Edição especial] – Rio de Janeiro: Nova


Fronteira, 2015. (coleção 50 anos)

SANTIAGO, Luiz Carlos Mendes, O mandonismo mágico do sertão: corpo


fechado e violência política nos sertões da Bahia e de Minas Gerais –
1856-1931, 2013, 194 f. Dissertação (Mestrado). Universidade Estadual de
Montes Claros – Unimontes, Programa de Pós Graduação em História. Montes
Claros, 2013.

YEVSEYEV, Vyacheslav. Measuring Narrativity in Literary Texts, Astana,


Kazakhstan. Narratology beyond Literary Criticism Mediality, Disciplinarity
Edited by Meister, Jan Christoph Walter de Gruyter 2005, p. 109–124

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