Suíte para Os Habitantes Da Noite - Anibal Beça
Suíte para Os Habitantes Da Noite - Anibal Beça
Suíte para Os Habitantes Da Noite - Anibal Beça
2ª Avaliação
Suíte para os habitantes da noite - Anibal Beça
I - INTRODUÇÃO
Suíte para os habitantes da noite é um livro de poesias escrito pelo poeta amazonense
Anibal Augusto Ferro de Madureira Beça Neto, mais conhecido apenas por Anibal Beça,
publicada em 1995 pela editora carioca Paz e Terra. A obra é composta por 4 partes: Prólogo,
com 1 poema; Abertura, com 11 poemas; Intermezzo, subdivido em 4 partes, com 13 poemas
na inicial, 4 em Allegro ma non troppo, 1 em Allegro e mais 15 sob Più allegro; e,
finalmente, o Finale, com apenas 1 poema em 1 parte chamada de Più soave.
É possível apreciar isoladamente qualquer um dos 46 poemas da obra, mas há uma
unidade que transpassa todos textos, amarrando-os como uma unidade tal uma suíte musical ,
termo este que “designa um tipo de composição musical que consiste numa sucessão de peças
ou de andamentos instrumentais (geralmente danças)” (KNOOW, 2015). A Suíte de Beça
também empresta da suíte musical sua divisão em três movimentos, começando sua trajetória
ascendente na Abertura, chegando a uma dança mais rápida (allegro) no Intermezzo, para
então desacelerar e fechar a obra em um compasso lento (soave) no Finale. Os títulos dos
poemas também fazem alusão ao mundo musical, sendo cunhados usando termos que
designam ritmos, gêneros e instrumentos musicais, nomes de compositores, situações e
sentimentos.
Este trabalho analisa dois poemas do livro, o de número I (da Abertura) e o penúltimo
(de número XLIV, do Intermezzo), para então discutir sobre a possibilidade de se explicar o
título da obra e de se entender sua supracitada unidade com base apenas nestes dois textos.
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Segundo a enciclopédia Britannica, chorinho é um ritmo musical tipicamente
brasileiro que exige dos músicos “grande capacidade de improvisação” para executar toques
rápidos nos instrumentos, verdadeiros “desafios melódicos”. Bandolim, cavaquinho, flautas e
violões, instrumentos citados no título, são bastante comuns neste ritmo, além de saxofone e
pandeiro. (BRITANNICA, 2019).
Com versos de rimas brancas, sem seguir métrica ou forma fixas, o texto apresenta
inclusive traços de poesia concreta, pois, de acordo com Ariane Soares Pereira da Silva, este
tipo de poesia “estrutura o texto poético a partir do espaço do seu suporte, sendo ele a página
de um livro ou não, buscando a superação do verso como unidade rítmico-formal” (SILVA,
2016), e Beça faz um uso criativo de seu espaço de suporte, a folha de papel do livro,
dispondo nele as palavras de maneira intencional, separadas por espaços, pauta e tabulações,
criando inclusive versos com palavras “soltas”, como se com elas desenhasse formas tal qual
um pôr-do-sol (p. 31) e uma lua refletindo no mar (p. 33). Esta estruturação livre de amarras
formais ou tradicionais torna difícil a classificação ou divisão do poema em estrofes e versos
bem definidos, sendo, por isso, ubíquos o uso de enjambement e a falta de pontuação.
Nos níveis lexical e sintático, esquadrinha-se que é usada a norma padrão da língua e
há no texto uma predominância de adjetivos se comparado a outras classes gramaticais, como
verbos, que são pouco presentes, mas que, quando encontrados, estão em períodos simples no
tempo presente do indicativo.
O poema se inicia com o eu lírico falando em primeira pessoa, colocando-se no papel
do autor, para, nos três primeiros versos, apresentar uma explicação de sua intencionalidade
ao escrever o texto que se segue: fruto de sua vontade, como se sua memória lhe empurrasse a
escrever. Em seguida, o autor define sua composição como “canto / feito de música e
melodias tensas / pousada em 5 linhas / tisnada em 5 notas”, utilizando-se do simbolismo do
número 5 para se referir ao pentagrama musical, que é um papel pautado com cinco linhas e
quatro espaços paralelos no qual as representações das notas musicais são grafadas
(RODRIGUES, 2016). Ademais das referências à partitura, aqui também se encontram as
primeiras menções ao tema noturno que permeia toda a obra. O autor opta pelo adjetivo
“tisnada”, que significa escurecido (PRIBERAM, 2013), para qualificar “5 notas” e logo
explicita o que estas representam: em caixa alta, a própria “NOITE”, cujas 5 letras seriam as
“5 notas escurecidas”.
O que vemos a seguir pode ser interpretado como um degradê de sintagmas que nos
levam a experimentar um contraste entre noite e dia através da progressão das últimas
palavras de cada verso (“escuro” - “sombra” - “clar(a)idade” - “sol”), e, ao usar o pronome
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“nossas”, o eu lírico se inclui entre aqueles que celebram a noite ao passo que demonstram
aversão ao dia, já que este lhes é agressivo com seus raios solares a iluminar suas feridas
emocionais (“cocar de setas luminosas / atiradas contra nossas chagas”).
Vale retornar à expressão “clar(a)idade” para uma análise mais detalhada, pois o uso
de parênteses nos chama a atenção à possibilidade de múltiplas interpretações. Quando se lê o
verso “nossos acidentes passados pela clar(a)idade” como se a última palavra fosse apenas
“claridade”, ele se integra ao jogo de gradação luminosa apresentado no parágrafo anterior.
Porém, quando se analisa o verso como se terminasse em “clara idade”, pode-se interpretá-lo
como sendo dito por uma pessoa de mais idade, portanto mais sábia e esclarecida, olhando
para seus “acidentes do passado”, mas não como acidente no sentido de um acontecimento
negativo que causa danos, e sim no tocante a sua trajetória de vida, repleta de casualidades e
acontecimento imprevistos. O tema acidental se repete no verso seguinte “sustenidos de um
sol”, e, então, os acidentes/acontecimentos do passado do eu lírico seriam tocados e
modificados pelos sustenidos/acidentes solares, já que sustenido também pode significar
“acidente que eleva o som de uma nota natural em dois semitons” (PRIBERAM, 2013).
O sol é acompanhado de três adjetivo dispostos de forma engenhosa no papel:
alinhado à esquerda temos o sol como “presente”, afastado e mais à direita do primeiro
encontra-se o sol “distante”, centralizado na linha de baixo dos anteriores nos deparamos com
o sol como algo “difuso”, ainda mais espalhado na folha visto que há uma uma linha em
branco abaixo deste último.
Na próxima página, os primeiros versos falam de pássaros que vêm todas as noites se
alimentar das “feridas sempre abertas”, uma possível alusão ao mito grego de Prometeu, que,
segundo conta Ana Lucia Santana, foi acorrentado no alto do monte Cáucaso para que tivesse
suas vísceras comidas por uma águia durante à noite como penalidade por ter furtado o fogo
divino e o entregue à humanidade, e, como Prometeu era imortal, seus órgãos se regeneravam
a cada dia, permitindo assim que a águia seguisse com a tortura por 30 mil anos. (SANTANA,
2019)
Esta ideia de ciclo repetitivo é mantida pelos próximos versos, como se observa de
duas formas: pelo uso da expressão “noite a noite”, espaço/tempo este que seria o “reduto
inviolável de todos os retornos”; e pela exaltação de outra figura mitológica: a Fênix, que,
também segundo Santana, seria uma ave que se permitia queimar para assim ressurgir das
cinzas, sendo também uma personagem imortal. O mito da Fênix teria começado no Egito,
com os egípcios acreditando que esse pássaro se tratava do Deus do Sol, Rá. Para alguns
povos antigos, a Fênix simbolizava o próprio sol, que a cada início de dia nasce, e ao fim do
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dia se põe, incendiando-se e morrendo, para dar início à noite, e ao fim da noite renascendo
novamente, uma alegoria ao processo natural da vida (nascimento, desenvolvimento e morte).
Como neste mito há uma forte ligação com a ideia de ressurreição, para os cristãos a Fênix
pode simbolizar a própria ressurreição de Cristo. (SANTANA, 2019)
No contexto deste poema em análise, no entanto, a Fênix não é um ser solar, sendo
louvada como “ó águia noturna”, aqui sendo uma alegoria não à vida, mas à própria noite que
morre quando o sol nasce e que renasce ao fim do dia. Os três versos seguintes são muito
importantes para a compreensão do livro como um todo, pois neles são apresentados os
primeiros exemplos de “habitantes da noite” que estão no nome à obra, sendo estes os
“caminhantes sem pouso”, “andarilhos sem rumos definido” e “caminha/dores de angústias
definitivas” aos quais a Fênix/Noite faz companhia.
O eu lírico volta a se apresentar em primeira pessoa e se coloca como irmão da noite
para então afirmar que a forma pela qual a celebra é pela escrita. Ele diz isto fazendo uso de
várias metáforas (“cravando minha adaga nestas páginas”, “meu sangue nesta partitura”,
“tinta rubra”, “rio de linfa dessa escritura” e “sextante tatuado na pele”), e a escrita é quem o
traz salvação, tal qual um sextante salva um navegador dos perigos do mar (“penedos / rochas
orientais / ninho de tontas gaivotas / mar salgado / de salamandras e morcegos”).
O poema caminha ao encerramento com o uso de uma anáfora da expressão “mar de”
para tecer mais uma exaltação à noite em “Mar da Noite! Mar da Noite! / Mar dos
notívagos Mar de todos”, criando ainda com as palavras a imagem desenhada de uma lua
refletindo no mar. “Dança” pode se relacionar ao próprio movimento deste mar, que também
funciona como uma metáfora à noite, sendo ela pertencente aos notívagos e a todos mais que
neste mar queiram navegar. A derradeira mensagem, “meu alimento”, reitera o papel essencial
da noite na vida do eu lírico, que, para ele, seria tal qual a comida que o nutre diariamente.
O assunto geral do poema se apresenta então como uma ode celebratória à noite e uma
explicação de que o eu lírico é levado a realizar tal celebração através da própria escrita da
“Suíte para habitantes da noite”. O texto também funciona como uma introdução aos temas e
aos personagens noturnos que são recorrentes ao longo do livro.
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qual personagens que habitam a noite tratam da sua relação com ela, terminando em um breve
diálogo entre alguns desses personagens.
Este poema é subdivido em várias poesias com características próprias, uma para cada
um dos personagens que na noite atuam, sendo impossível apresentar uma só análise geral de
todos, porém, vale notar a ausência pontuação e o uso de enjambement em todas.
O primeiro poema, feito pelo próprio eu lírico/autor, possui versos brancos em
redondilha maior, sendo que cada página possui uma divisão de estrofes distinta: a primeira
traz uma estrofe de cinco versos e duas estrofes de quatro versos, quase se apresentando como
um rondel, se não estivesse às avessas; a segunda página possui duas estrofes, uma de nove
versos e outra de seis; a terceira página tem uma estrofe irregular, pois é formada por 15
versos; já na quarta página, há uma estrofe de seis versos, uma estrofe de nove versos e uma
estrofe de um só verso. Via de regra, observa-se enjambement e ausência de pontuação em
todo o texto, porém, são encontradas letras maiúsculas ao iniciar cada novo período, mesmo
dentro de um mesma estrofe.
O tema geral aqui abordado é o movimento conjunto dos notívagos ao fim da noite, e,
para descrevê-lo, observa-se o uso de metáforas, como no trecho “como um relógio preciso /
marcando o tempo da noite / os minutos se apresentam / na ponta dos seus artelhos / e na
dança de vários pés” para designar o conjunto de pessoas caminhando pelas ruas praticamente
à mesma hora quando a noite está por acabar. Além das metáforas, há também o uso de
comparações para qualificar os personagens “habitantes da noite” como dotados de um certo
comportamento automático, realizado de forma quase mecânica, quando o autor os chama de
“autômatos das estrelas” e “baratas condicionadas”.
Outras figuras de linguagem que se fazem presente são: paradoxos, como em “de um
encontro combinado / sem que nunca tenha sido acordado para tal”, e em “(...) coro / do bloco
da solidão”; e antíteses, a exemplo de “nas luzes de suas sombras” e “(nascituro em sua
ogiva)”.
O fim da noite seria o espaço/tempo no qual seus habitantes, como em uma
coreografia social, agem de forma inconsciente mas com aparência de combinada, como que
máquinas condicionadas, daí se entende a referência a Pavlov, figura importante do estudo
clássico do condicionamento (VERSIGNASSI, 2018).
Para finalizar esta parte inicial, o eu lírico fala da noite já no seu fim, próximo do
nascer de um outro dia, como “nascituro em sua ogiva” (denotando mais uma vez sua
preferência pelo horário noturno e aversão ao dia, comparado aqui a uma bomba preste a
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explodir), e então se cala para dar voz aos notívagos, para que contem as histórias e
experiências que guardam consigo. “Falai ó falas da Noite:”
O bêbado é o primeiro personagem a relatar suas experiências noturna, não limitando
o uso do álcool somente a um vício ou a cada gole dado, mas tratando-o quase como um
culto, algo sagrado, sendo isso mais perceptível pelo uso da palavra cálice, um objeto sagrado
do cristianismo. Ao bêbado somente a noite lhe interessa, e a espera por cada fim do dia lhe é
aguardado com ansiedade, para repetir o culto novamente, vivido todas as noites, como em
um ciclo. O poema é dividido em duas partes: um soneto; e três dísticos. Os versos são todos
decassílabos heróicos, já que são acentuados na sexta e décima silábas, mas não são
encontradas rimas.
O músico adentra o poema relatando como seu trabalho influencia a vida das outras
pessoas, alegrando suas almas com o rasgar de sua garganta. Assim como o texto do bêbado,
o poema do músico também traz um soneto e três dísticos, porém este é dotado de rimas,
característica que remete às propriedades do canto. As rimas são intercaladas, externas,
graves, em sua maioria perfeitas (à exceção de salto/palco) e pobres, pois substantivos rimam
com substantivos e adjetivos com adjetivos. O músico fecha seus dísticos indo em busca dos
amantes, na ponte escura da noite, na madrugada de sons, compondo a música de um novo dia
que se inicia.
O terceiro personagem, o padeiro, é um habitante noturno que usa a noite para
trabalhar, preparando o pão que ao início do dia irá para as mesas das famílias, sendo a noite
essencial para a sua atividade. A figura do pão possui muitas simbologias, dentre as quais a
dos cristãos, que relacionam a figura do pão com o Cristo, que ofereceu seu corpo em
sacrifício, assim como no cálice usado pelo bêbado em seu culto. O padeiro usa a expressão
“Me apresento para todos”, e mais adiante, fala que esse mesmo pão alimenta os esquecidos
do mundo, os marginalizados, falas que também remetem a Cristo, que sempre priorizou os
mais pobres em sua vida e na comunhão. O nome do padeiro é Gaspar, mesmo nome de um
dos três reis magos que, segundo a bíblia, viajaram centenas de quilômetros para encontrar o
menino Jesus, quando nasceu. O poema possui duas estrofes, com versos brancos e sem
métrica.
O leiteiro, outro habitante, depende indiretamente da noite, pois geralmente seu
trabalho maior inicia-se pela manhã, bem cedo, tirando o leite das vacas. Seu nome é Baltazar,
nome também de um dos reis magos, e o próprio poema dá uma possível pista: o leite do
Oriente, que alimenta e dá sustância aos mais novos. Não à toa, os reis magos vieram do
Oriente com oferendas para o menino Jesus, sendo que o poema traz o trecho “festejando o
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nascimento dos raios do novo dia”, e Jesus para os cristãos sempre é visto como uma luz, um
sinal de esperança para o caminho da vida. São duas estrofes com redondilhas maiores sem
rimas.
O jornaleiro, quinto personagem apresentado pelo poema, usa a noite como espera,
pois ao nascer do dia entrega para as pessoas os jornais que trazem informações, notícias que
alimentam o intelecto. Seu nome é Melquior, o terceiro rei mago, referenciado no texto, que
viaja com os outros dois reis até o encontro do menino Jesus recém nascido. Seu trabalho não
depende dos efeitos dos dias e do calendário, como chuva e sol, dia santo ou feriado, seu
trabalho é somente entregar as escrituras que revelam os acontecimentos do dia anterior.
Menciona as palavras pão e leite, como oferendas.
As próximas habitantes da noite são as beatas, que tanto no poema como no próprio
cotidiano, dedicam-se a orar pelos pecados dos semelhantes, que vagam perdidos na vida.
Esse poema é datado de preces, outro sinal do ofício dessas personagens. O uso de palavras
como a Besta, trombetas e serpente, lembram os textos do livro Apocalipse ou Revelação, o
último presente na Bíblia sagrada. Também é mencionado o nome de Madalena, mulher
adúltera, perseguida pela sociedade por ser considerada “impura”, e que foi perdoada por
Jesus, conforme descrito nos evangelhos. As beatas falam das Madalenas perdidas, mas, quem
são essas Madalenas no nosso cotidiano, hoje? São as mulheres injustiçadas, apedrejadas por
sociedades machistas que não as vêem com respeito e empatia, mas que aos olhos do Filho
são amadas e acolhidas com dignidade. Para as beatas, a noite é dedicada para as orações,
preces, pedindo auxílio e misericórdia de Deus para os mais necessitados.
A próxima habitante da noite é a prostituta jovem, personagem que bebe diretamente
das vantagens noturnas para o seu trabalho, pois é geralmente nas noites que as pessoas
vagam sozinhas atrás de acompanhantes para saciar seus desejos ou simplesmente para lhes
fazerem companhia. Ela não se esconde atrás de máscaras, surge com a verdade nua e crua de
sua atividade, das coisas que presencia no seu dia a dia. Um ponto interessante é que no
poema das Beatas, Madalena é lembrada, sendo ela sido uma prostituta. A prostituta jovem
surge revoltada, mostrando que é independente de ajuda, de piedade, de pena das pessoas, que
ela se basta. O uso de jargões juvenis, como gala fina, xana, xoxota, retratam traços de sua
juventude, com rebeldia presente. O sexo para ela não é objeto de prazer, mas, sua forma de
sustento, pois mesmo com tantas experiências vividas nas noites, sendo boas ou ruins, o que
mais importa a ela é terminar sua jornada de trabalho com o fruto do seu suor, o dinheiro, que
vem do estalar dos dedos polegar e indicador, dos dedos que abrem as caixas registradoras.
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O cético, próximo personagem, surge no poema com palavras que remetem a fé e
religião, mesmo não se mostrando como um religioso, mesmo que a palavra cético signifique
incrédulo, descrente. Também usa a palavra Serpente, figura bíblica do Apocalipse. O cético
fala de Deus e do homem que nele crê, que nele acredita. No texto a palavra sopro surge, que
pode significar o sopro divino da vida, e o barro, que segundo o que está descrito no livro de
Gênesis, na Bíblia, foi de onde Deus criou Adão, já que esse personagem usa muitas
referências religiosas na sua fala.
A próxima habitante da noite é a prostituta velha, profissional das noites que mesmo
com a idade avançada e não possuindo a mesma agilidade de sempre, segue seu trabalho.
Babel e Pentecostes, usadas por Anibal no poema, são ligados a diversidade de línguas, em
Babel sendo usada para confundir os operários de uma obra que desafiou o poder de Deus, e
em Pentecostes a diversidade de línguas permitiu que os discípulos fossem ao encontro dos
povos do planeta, de diversas culturas, para que ouvissem o evangelho, o testemunho da vida
de Jesus Cristo. A prostituta busca se entender, se conhecer, saber seu lugar no mundo como
uma pessoa, algo que ela perdeu dentro de si mesma.
O operário, habitante da noite, trabalha por pura necessidade, por ordem do seu chefe.
As necessidades do que comer, vestir, usar, onde morar, movimentam os objetivos dele para
se manter como um cidadão.
O professor, figura injustiçada pelas sociedades, dedica-se ao dom do ensino,
trabalhando à noite geralmente para jovens, adultos, idosos, que por diversas circunstâncias
não podem ir à escola durante o dia. Ele surge com perguntas que instigam a busca do
conhecimento, usando a palavra luz, a sabedoria. O professor usa a noite para buscar e
auxiliar seus alunos na busca pelo conhecimento, um ato nobre.
O motorista, próximo habitante da noite que surge no poema, não precisa diretamente
da noite para trabalhar, indo por pura necessidade. Ele precisa da luz, para que nas estradas
não perca a orientação, portanto, a noite pode se transformar num perigoso inimigo.
O poema se encerra com um curto diálogo entre o mendigo, travesti, operário e
professor, com destaque para o uso de palavras como maremoto, ou mar remoto, celacanto e
céu e canto. Eles encerram com a pergunta sobre os sentidos de vida, morte e noite.
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A partir do primeiro poema, “Abertura”, é possível explicar e ligar ao título da obra
pois vemos referências à temática da noite em termos como celebração do escuro, podendo
ser um anúncio ao que virá a ser um dos objetivos da obra: mostrar-nos que no período
noturno há vida, pessoas que vivem e comungam da noite, nos seus trabalhos, nas suas
diversões e em demais atividades. Em Chorinho para bandolim, cavaquinho, flautas e
violões já somos introduzidos diretamente à ideia de uma suíte, com seu conjunto de
instrumentos em movimentos sem interrupção, corroborada pela a dança do final, que, assim
como os mares, estão sempre em constante movimento, fazendo do período da noite, até o
raiar de um novo dia, a sua fonte, seu alimento. No segundo poema, Dança de palavras num
canto de fim de noite, há referências claras ao título, se tratando de uma dança, uma balada,
que pode ser vista como um ritmo musical triste, iniciando com a referência do relógio, que
marca o tempo, algo transitório, transpassando sempre o dia e a noite, que na dança de um
encontro combinado, quase sempre no mesmo horário, vem como uma espécie de
condicionamento, pois é nesse período que os habitantes da noite se sentem mais vivos.
Aníbal traz o nome de Pavlov, fisiologista russo que estudou e fez experiências sobre
condicionamento clássico, querendo dizer que os notívagos tem hora e momento certo para
começarem suas rotinas noturnas, algo já automático, numa “disciplina espartana”, que os
leva a superar a dor, o medo, a tensão frente aos perigos e ciladas da noite. Mais uma vez usa
o termo alimento, reforçando a ideia de que a própria noite é uma fonte de vida, que satisfaz.
Antes de iniciar a outra parte do poema, onde os personagens entram, Aníbal refere-se a eles
como vozes, “falas da noite”, sendo essas figuras, habitantes da noite, que produzem,
trabalham e atuam nesse período.
Ao ler os dois poemas, sendo um no início e outro próximo ao fim da obra, apesar de
não se observar o ínterim da obra, há possibilidade de entendê-la como una e coesa, um
entendimento de que há unidade entre todas as partes do mesmo, pois há traços que ligam as
ideias e os temas dos poemas, como a figura de seus habitantes, sempre sendo retratados
como seres noturnos. A suíte aqui segue uma dinâmica, em que os poemas se interligam, até
por trazerem traços da suíte musical, que é uma série de composições concatenadas.
V - REFERÊNCIAS
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BEÇA, Aníbal. Suíte para os habitantes da noite. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1995
SANTANA, Ana Lucia. Mito da Fênix. Infoescola. Copyright 2006-2019. Disponível em:
thttps://www.infoescola.com/mitologia/mito-da-fenix/. Acesso em: 29/11/2019.
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