(Des) Equilibrios Familiares-Madalena Alarcão

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 190

\~~-~-~ --~~- '-- [":,_..,~-- _____,-"' <:--.- ....

- ~~,- ('----""'""-- --------'


- _,_"!1---.J!' .--.. ........ -""" ~ ......... ....... ,._..,. ...... lllf.kJ ~ .'liJ<J ........, ;;ü.!

colecção Psicologia Clínica e Psiquiatria


coordenada por óscar F. Gonçalves

~(\"-&"'~e Jk~

TÍTULO (Des)Equilíbrios Familiares j 3." edição, Janeiro de 2006


Alarcão 1 COLECÇÃO Psicologia Clínica e Psiquiatria ) ISBN 989-558-067-3 1 CAPA Ovni
1 AUTORA Madalena
(DES)EOUllÍBRIOS FAMILIARES
PAGINAÇÃO Paulo Pratas ! IMPRESSÃO Papelmunde - SMG, Lda. DEPÓSITO LEGAL 237849/06 UMA VISÃO SISTÉMICA

© Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor por OUARTETO, Alameda catouste MADALENA ALARCÃO
Gulbenkian, lote s, e. e. Primavera, loja 15, 3000-090 Coimbra 1 Portugal 1 editora@quarteto.pt
http:/ / llJ w w.qua rteto.pt Glossário
Joana Sequeira

É expressamente interdita a reprodução parcial ou Integral desta obra por qualquer processo, incluindo

a fotocópia e a tradução e transmissão em formato digital. Exceptua-se a reprodução de pequenos excertos


para efeitos de recensão critica ou devidamente autorizada por es<::rito pela QUARTETO.
3.ª EDIÇÃO

~
QUARTETO
Índice

Nota à 2 11 edição ········· . ..7


Prefácio ......... . ··············· 9
Nota ao leitor ........... . 13
Introdução ................................................. . 15

CAPÍTULO 1 - Família como sistema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35


1 - Definição de sistema e propriedades do sistema familiar . ..... 39
2 - Estrutura da família . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53
3 - Commücação na família . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
4 - Mecanismos de funcionamento da família ............ 83
5 - Stress e cri·se familiar . . . . . . . . . . . . . . . .......... 93

<r' CAPÍTULO 2 - Desenvolvimento familiar 107


1 - A formação do casal ..................................... . 115
2 - Família com filhos pequenos .............................. . 131
3 - Família com filhos na escola . . . . ......................... . 153
4 - Família com filhos adolescentes ........................... . 165
5 - Família com filhos adultos .... 185
6 - Variações em tomo do ciclo vital .......................... . 203
6. l. - Famílias reconstituídas ............................ . 206
6.2. - Famílias monoparentais .. 214
6.3. - Frunílias adoptivas 220
6.4. - Famílias de homossexuais 230
6.5. - Famílias comunitárias .............. . 233

CAPÍTULO 3 - (Des)Equih"brios familiares ...... . . .......... 237


1 - Família com P.I. toxicodependente ............. . 253
2 - Família com P.I. delinquente .............................. . 277
3 - Família com P.I. violento e violência familiar ................ . 289
4 - Família multiproblemática ou multiassistida .................. . 317

Nota Final ............. ..................................... . 337


Glossário .. . . ..... . ............................. - . 339
Bibliografia ... . 361
__ .......___ . - ,.... _... .._..,. .........
*'----".t" '-----~- '--- -----~--- "----"""'"' "'--...,--- "-.,-""'!L'--- .,_ ----.~ ',_,_. ---'-_,IA .. ~
_ __
.~ ~ ~ ~~ ~ ~

Nota à 2ª edição

Dois anos volvidos, (des)Equilíbrios Familiares apresenta-se em 2'


edição.
Considerando que o seu conteúdo continua a servir os propósitos que
presidiram à sua elaboração, a autora entendeu manter, no essencial, a
primeira versão desta visão sistémica da vida familiar e das suas relações
com outros sistemas, assim como do próprio percurso da Sistémica.
No entanto, surge a actual edição numa. outra colecção da Quarteto
Editora - Psicologia Clínica e Psiquiatria, coordenada por Óscar F.
Gonçalves. Tendo nela já alguma participação e estando programadas ou-
tras colaborações, a autora e a editora consideraram interessante e útil
nela inserir uma obra que continuará a constituir a base teórica da sua
forma actual de pensar a realidade e nela (com ela) intervir. Ao coorde-
nador da colecção agradecem a abertura demonstrada. O público, que tão
bem acolheu a 1ª edição desta obra, esperam continuar a servir.

Coimbra, Março de 2002

A autora
A editora
Prefácio

Foi em Julho de 1982 que me licenciei em Psicologia.


Tinha tido, até então, dois namorados científicos. Nesse momento
descobri que um deles tinha sido um devaneio, sério mas adolescente.
Por isso ficou pelo caminho. O outro, fruto de uma opção mais adulta,
permitiu-me iniciar um caminho de deséoberta e de afirmação pessoal.
Foi um casamento interessante. Ele, mais velho, muito c1llto e
sábio, teve a inteligência de me cativar sem me abafar. Sempre me
abriu horizontes novos e me deixou experimentar outros caminhos.
Aconselhou-me e apoiou-me em momentos difíceis e cruciais da
minha vida: umas vezes com mais ternura, outras com mais ironia, mas
sempre com muito afecto e respeito. Fez-me sentir que gostava que o
seguisse nas suas opções científicas. Mas deixou-me escolher o meu
próprio caminho. E assim nos separámos, mantendo a amizade, a
cooperação e alguns interesses comuns.

Entretanto, conheci muita outra gente e fiz novos amigos. Alguns


tornaram-se mesmo muito, muito amigos e com eles co-construí novas
aprendizagens. Numa co-evolução entre o que vou sendo como pessoa,
o que aprendi com os outros e comigo própria, o que faz para mim
mais sentido e o que me torna mais feliz.
Escolhi novos parceiros para o trabalho clínico. Que se tornou
claramente sistémico. Mas no meu referencial teórico nunca abandonei
~·~ '-~· ........,._
10
-~ - ~- -~

- ....... ...... """"' ..... \..,,...~_:- -~

II
"""' """'>
""" ........ ...,,. ......,. ........ .....,. -~ ~-

(Des )Equilíbrios familiares Prefácio

as lentes que primeiro utilizei para compreender o ser humano e para Ao chegar aos quarenta anos tive uma alegria muito especial.
conhecer a realidade, ou para dela ter uma leitura. Tenho-me treinado Alguém muito meigo e carinhoso, trabalhador e inteligente, autónomo,
a usar vários. óculos, u·ns com a marca da slstémica outros com a marca receptivo e disponível aceitou partilhar comigo, entre outras coisas, o
da psicanálise. Com outras pessoas, que também usam o mesmo tipo projecto de construir este livro. A ela devo a leitura atenta de todas
de óculos, tenho rnetacornunicado sobre as minhas visões e tentado estas páginas, assim corno a construção ü1tegral do glossário. Pela
construir a minha própria marca. Será esta urna ambição desmedida? enorme alegria que a Joana me dá, de querer ser minha amiga e de
Não sei ... sinto que é minha e que, ao longo da vida, me tem dado querer trabalhar comigo, obrigada.
forças e me tem feito sofrer, sobretudo por receio de não ser capaz. Urna recente editora, arrojada e entusiasta, igualmente disponível
Na minha vida, a simetria e a complementaridade cornunica- e confiante permitiu.me, através de uma das suas linhas editoriais, dar
cionais têm andado de mãos dadas, facilitando um percurso que, corno à luz urna ideia que já vinha alimentando há alguns anos.
não podia deixar de ser, tem tido os seus escolhos mas tem . . tido, tam- A história deste livro conta-se rapidamente. A vontade de escrevê-
bém, muitas coisas boas. Com esta minha "família" tenho tentado -lo decorre da interacção de três grandes necessidades: a de fazer um
manter sempre uma comunicação funcional, metacomunicando, sobre- balanço reflexivo do meu próprio saber, aproveitando a oportunidade
tudo, sobre sentimentos e vivências menos positivas e alimentando-me para o alargar; a de dar a conhecer uma versão escrita dessa reflexão,
das gratificações que a relação permite. Penso que ternos tido a habitualmente divulgada de forma verbal, em contexto de sala de aula
inteligência de não rigidificar a complementaridade nem de entrar em ou em espaço mais alargado de formação; e a de facultar a alunos da
escalada simétrica. Já nos têm tentado armadilhar o percurso mas licenciatura e da pós-graduação um instrumento de trabalho que lhes
espero que o nosso afecto e a nossa inteligência nos deixem continuar pudesse ser útil. Os dois primeiros objectivos estão em grande parte
a caminhar durante um longo futuro. preenchidos. Em relação ao terceiro o futuro responder-me-á ...
Com tão claras intenções auto e hetero-didácticas, este livro não
"Quase-filhos" tenho tido bastantes. Sobretudo em regime de podia deixar de ter a forma de manual. Criado no contexto da literatu-
colocação. Uns mais cordatos, outros mais traquinas; uns mais ra que tenho vindo a consultar e das práticas terapêutica e pedagógica
inteligentes e perspicazes, outros mais limitados; uns mais autónomos, que tenho desenvolvido, ele pretende reflectir a forma corno entendo a
outros mais dependentes; uns mais afectuosos, outros mais distantes. É sistémica, a(s) farnília(s) e os seus indivíduos, os seus movimentos de
uma prol que me tem gratificado muito e que me tem nutrido ao longo co-evolução com os contextos em que se movem, os seus múltiplos
destes quase vinte anos. equilíbrios, as suas principais dificuldades e competências. Esquema-
Os amigos, os colegas e algumas instituições, ou partes delas, têm ticamente estes são os diferentes capítulos do livro, a que se sorna um
constituído uma boa rede de apoio. Sinto que sem ela a vida ter-se-ia glossário final. Mas, sistemicarnente, todos têm um pouco de tudo e,
complicado muito mais e, por isso, tudo tenho feito e continuarei a por isso, cada capítulo alimenta-se, recursivamente, da informação
fazer para poder contar com o seu apoio. Se possível, procurarei existente nos restantes. Assim, cada parte está no todo e o todo está
alargá-la ainda mais. também em cada parte.
A vida, particularmente as pessoas que têm sido significativas
para mim, tem-me permitido experienciar a gratidão, sentimento que Nesta caminhada pela sistémica tenho tido encontros muito fru-
nutre e embeleza. A elas devo, pois, parte do melhor que tenho e por tuosos: de alguns tenho a alegria de guardar, para além das ideias, o
isso lhes quero agradecer do fundo do coração. som, a cor e o cheiro das pessoas, dos vários lugares onde nos ternos
encontrado e das diversas histórias que ternos contado e imaginado; de
12
(Des )Equilíbrios familiares

muitos mais só conheço o saber escrito. Há, entre todos, uma colega Nota ao leitor
com quem tenho feito uma aprendizagem muito especial. Na reflexão
e no trabalho sistémicos seriamos hoje, provavelmente, bem diferentes
se os nossos caminhos não se viessem cruzando tanto nem tivessem
ainda tanto para percorrer. À Paula, minha leitora critica, agradeço,
sobretudo, o quotidiano que me tem ajudado a construir.

Ao António e à Joaninha, que me vêem passar horas agarrada ao


computador, às folhas brancas e às folhas impressas, qt1e se afastam
para eu poder chegar ao fim, à Adília, que até faz férias com a neta para
eu poder ter mais umas horas, e a toda a restante família a ternura de As notas são, para mim, quase um vício. Mas sinto-as necessárias,
quem é feliz por tê-los. quase sempre imprescindíveis. Ou porque acrescentam urna infor-
mação que considero importante mas que, ao ser introduzida no corpo
do texto, perturbaria a lógica da sua construção, ou porque re-orientam
o leitor em relação ao texto global, ou porque traduzem um aponta-
mento de réflexão que me pareceu interessante mas apenas comple-
Coimbra, Setembro de 1999 mentar. Desta forma, as notas acabain por ser, na sua maioria, tão
importantes como o próprio texto. Desculpar-me-á o leitor estes
desvios a que o obrigo. Desejo-lhe que consiga encontrar uma forma
pessoal, satisfatória, de percorrer estas diversas ruelas do meu pensa-
mento sem perder de vista as ruas principais. Estou consciente de que
a arquitectura do meu pensamento tem muito da topografia medieval,
em que ruas, n1elas e becos se entrecruzam para conduzir à praça prin-
cipal. A topografia ortogonal romana é bem mais clara, organizada e
linear mas também é a linearidade do pensamento que a sistémica quer
ultrapassar, para aceder à complexidade do ser humano e da vida
familiar e social...

Pensando poder dessa forma clarificar mais facilmente as ideias


apresentadas, recorri, com alguma frequência, à descrição e leitura de
situações com as quais me tenho deparado no meu quotidiano pessoal
e profissional. Obviamente que alterei, naquilo que não transformava
a leitura c a compreensão que fiz dos casos relatados, os dados que
mais facilmente podiam identificar as pessoas ou as situações referi-
das.

~ -----
__
i!"'-_.Af .,,~ ~~ ·.~
...___ -

--· -- ~~
~.---
~~

-- ~ ·~ ~ ~
......,

Introdução

Ler sistemicamente é um exercício complexo,


circular e permanentemente recursivo.

Na década de quarenta, Ludwig von Bertalanffy, autor da Teoria


Geral dos Sistemas, formulava um conjunto de princípios válidos para
diferentes sistemas, fossem eles biológicos, físico-químicos ou sociais
e, em 1948, Norbert Wiener publicava o seu trabalho sobre cibernéti-
ca.
O conhecimento que a teoria dos sistemas e a cibernética permiti-
ram inspirou diversos investigadores que, unanimemente, aceitaram
aquilo que pode ser considerado o primeiro axioma sistémico - que o
todo é mais do que a soma das partes.

Na década de 50, a terapia familiar começava a dar os primeiros


passos, rompendo com o modelo psiquiátrico tradicional, excessiva-
mente organicista e ü1dividualista. Partindo do contexto clínico,
nomeadamente da intervenção com esquizofrénicos e delinquentes e
das insuficiências sentidas na aplicação do modelo psicanalítico ao seu
tratamento, alguns clínicos e investigadores começaram a focalizar a
atenção na vida familiar, elegendo como unidade de análise as relações
interpessoais e já não a realidade intra-psíquica nem o indivíduo iso-
ladamente considerado. Nos Estados Unidos, mais concretamente em
16 17
(Des)Equilíbrios farniliares Introdução

Palo Alto, Gregory Bateson, Dom Jackson, John Weakland, Jay Haley ajudá-las a funcionar de urna forma não perturbada, a investígação
e, mais tarde, Paul Watzlawiclc, investigavam no sentido de compreen- procurava compreender também os comportamentos ou aspectos per-
der os processos de comunicação nas :famílias com um membro turbadores, aqueles que provocavam instabilidade e crise. Se o feed-
esquizofrénico. -back2 negativo era considerado responsável pela reintrodução, no sis-
tema, de informação auto-correctiva conducente à estabilização do
CJhernéHcu(s} Assimilando o sistema familiar a uma máquina cibernética, a pers- mesmo, o feed-back positivo era visto corno responsável pelo desen-
pectiva sistémica começon por interessar-se mais pela estabilidade do volvimento de um conjunto de modificações que conduziriam o sis-
que pela mudança. Inicialmente tinha como referência o modelo de tema à sua transformação3 •
funcionamento dos sistemas abertos, em equilíbrio, e o seu conceito No quadro de uma concepção que definia o sistema como o "con-
chave era o de horneostasia. junto de elementos em interacção de tal forma que urna modificação
O estudo dos sistemas auto-regulados tinha permitido compreen- num deles provoca urna modificação de todos os outros" (Marc e
der que era por retroacção negativa que eles reduziam, ao mínimo, as Picard, 1984, 21) e que o concebia corno regido pelo princípio da esta-
perturbações exercidas pelo meio. O exemplo clássico utilizado pelos bilidade, em que a morfogénese provocada pelo feed-back positivo era
primeiros cibernetistas foi o do termóstato. Regulado para urna deter- considerada como um mal necessário à obtenção de novo equilíbrio, o
minada temperatura, ele repõe a temperatura prevista todas as vezes sintoma era visto corno um sinal de disfuncionamento de todo o sis-
que as condições térmicas do meio ambiente se modificam. E fá-lo tema, como uma forma de o mesmo comunicar com o seu interior e
reduzindo ao mínimo as suas variações. Por outras palavras, se o ter- com o seu exterior. Sendo-lhe conferido um valor comunicacional, a
móstato está regulado para os vinte graus não é necessário esperar que ênfase da análise familiar era colocada nas comunicações intra-fami-
chegue aos quinze graus para que ele reponha a temperatura inicial: liares a partir das quais podia inferir-se a relação existente. E o sin-
aos dezanove graus acciona o funcionamento do sistema de modo a toma, na sua vertente paradoxal de "pedido de mudança para a não
que, rapidamente, o ambiente retorne os vinte graus. A regulação pos- mudança", era entendido como um alarme do sistema, face ao meio e
sibilitada pela retroacção negativa constitui, então, a ideia fundamen- a ele próprio, e como urna porta de entrada para o terapeuta e para o
tal do que posteriormente se designou por primeira cibernética'. movimento de morfogénese. Não esqueçamos que, nesta primeira
Aplicado este princípio ao sistema familiar, a observação centra- etapa, considerava-se como fundamentat para a sobrevivência dos sis-
va-se nas redundâncias (i.é, nos comportamentos repetidos) e nas temas, que os mesmos fossem capazes de, integrando a informação
regras que conduziam à estabilidade do sistema. Simultaneamente, e recebida do exterior (o feed-back), corrigir rapidamente os desvios de
até porqne as famílias estudadas eram as sintomátícas e era necessário forma a retomar a situação original de estabilidade. No caso da família
sintomática, pensava-se que ela tinha rigidificado o seu funcionamen-
to homeostático, i.é, não tinha aceite a informação transmitida pelo
É importante não esquecer que a teoria cibernética se desenvolveu, durante a
feed-back positivo e, dessa forma, nunca mais conseguia reencontrar
Segunda Guerra Mundial, com objectivos bélicos: pretendia criar armas de guerra
auto-reguladas que, partindo de um ponto distante (sistemas de apontamento anti- urna estabilidade funcional. A estabilidade em que permanecia
-aéreo), chegassem ao alvo com o máximo de precisão. Dois aspectos eram, então, ameaçava a integridade do próprio sistema pois este só conseguia
fundamentais: por um lado, os erros da mira tinham que ser mínimos (daí a importân-
cia da retroacção negativa) e, por outro lado, era necessário poder prever, com o má-
ximo de exactidão, o local em que se encontraria um móvel, veloz, guiado por um ser 2
J?eed-back é habitualniente traduzido por retroacção. Dada a ampla utilização
inteligente capaz de encontrar caminhos de fuga (Boscolo e Bertrando, 1996; Foerster, da palavra inglesa em textos científicos, utilizaremos indistintamente os dois termos.
1996). 1
Na sua aplicação à família este assunto será desenvolvido no capítulo l.

~
J:..~.uC-
..
'--,..-4.,. '-- '--v'-
18
-----~ <-""----.---~ --.,,.d.____.,
..,___ ___ _ ____ __.__._,. ---- ~-_,,,_____,- ---~~ ~- ~ --.-....--- ~~-~
~ -/ .......... ~ ·-~
_.,... -·~ --'-- ---~
-
19
(Des)Equilíbrios familiares Introdução

operar pequenos ajustamentos que se revelavani ineficazes para a um novo período de estabilidade q11e, pela evolução então operada no
transformação necessária naquele momento da sua vida. Com efeito, é jogo interaccional e nos padrões transaccionais do sistema, lhe possi-
importante não esquecer que nos sistemas vivos, como é o caso da bilitasse um funcionamento homeostático não sintomático.
família, a evolução (de cada um dos seus elementos e do sistema total)
implica, por um lado, que nunca é possível voltar ao ponto inicial e, Ana tinha 9 anos e ·frequentava o 4° ano de escolaridade. O seu
por outro lado, que há momentos de crise em que uma mudança na rendimento escolar era muito oscilante e os resultados insuficientes na
estrutura do sistema é necessária. O sintoma podia ser então visto matemática prenunciavam uma reprovação e deixavam os pais, -sobretu-
corno u1na resposta relativamente criativa de um sistema incapaz de do a mãe_, ·muito ansiosos.
realizar o movimento de morfogénese exigido pela crise (natural ou Na família de Ana o pai tinha, claramente, um papel maternal e à
mãe_ competia a definição e imposição das regras. A sua relação com a
acidental)', dado que tinha rigidificado o seu funcionamento homeos-
filha era notoriamente viabilizada pelo acompanhamento que Céu fazia
tático. Criativa na medida em que permitia ao sistema conciliar dois
das aprendizagens escolares de Ana. Fora da temática escolar nem Céu
aspectos aparentemente inconciliáveis: a afirmação da manutenção e a sabia como aproximar-se da filha nem esta sabia ligar-se à mãe.
solicitação da mudança. Ao focalizar o pedido de mudança num pro- Na escola, Ana tinha wn professor muito seu amigo que tinha feito
blema concreto e num indivíduo singular, o sistema pretendia ignorar nela um forte investimento, deslocando um afecto paternal que tinha fica-
uma informação que ameaçava o seu funcionruncnto homeostático. Por do sem objecto (já que o filho o tinha desiludido e abandonado).
isso o desaparecimento daquele sintoma, ou a sua melhoria, era fre- Considerando que a mãe de Ana a superprotegia e pretendendo ser ele o
q1ientemente seguido pelo aparecimento de um outro sintoma, even- único mentor escolar da criança; o professor _dizia a Ana para fazer ostra-
tualmente noutro elemento, ou por um agravamento do primeiro. Mas, balhos de casa sozinha. Se não soubesse fazê-los, ou se se enganasse, ele
enquanto sinal de alarme, o sintoma permitia também que a mudança ensiná-la-ia e corrigi-la-ia no dia seguinte.
fosse exteriormente oferecida ao seu portador. O que os terapeutas fa- Céu e Ivo, por seu turno, consideravam que o professor era uma pes-
miliares procuravam fazer, nessa altura, era compreender o valor soa muito autoritária e Céu entendia que ele era o responsável pelas difi-
culdades da filha, já que ora a discri1ninava ora a superprotegia. Co1no a
homeostático do problema apresentado e reenquadrá-lo no contexto do
matemática era o ponto fraco de Ana e o ponto forte de Céu, esta
funcionamento familiar. Conotando positivamente o comportamento
aproveitava a "deixa,, para estudar com a filha e assim aproximar-se dela.
de todos os elementos da família, i.é, mostrando a sua positividade Presa de um double-bind imposto por duas injunções paradoxais prove-
para o funcionamento familiar, o terapeuta procurava, pela via da mor- nientes de pessoas que estimava e considerava co_mo autoridades (o pro-
fogénese gradual' ou pela via da homeostase", reconduzir o sistema a fessor que lhe dízia para não aceitar a ajuda da mãe e a mãe que lhe dizia
para não ligar ao -que o professor -afmnava e -aprender com ela), Ana
4
Este assunto será igualmente abordado no capítulo 1, ponto 5. procurou ·manter a estabilidade dos sistemas a que.pertencia mostrando à
jA escola estrutural é, sem dúvida, um bom exemplo de uma mudança gradual mãe que precisava dela-e dizendo ao professor que tinha razão. E te-lo
da estrutura da família pela introdução da morfogése. Pense-se como as sondagens são não ameaçando integralmente a sua autowestima. Assim, ora falhava
habitualmente utilizadas para avaliar a capacidade do sistema para aceitar a proposta
claramente na matemática, obtendo um dois ou um três ;nas provas rea-
de mudança. Ou como as prescrições são utilizadas para a fomentar (prescrições de
lizadas, ora atingia, noutras provas da mesma disciplina, um .quinze ou
reestruturação sistémica) ou refOrçar (prescrições de reforço). Para um 1nelhor co-
nhecimento do tipo e funções das prescrições aconselhamos a leitura de Andolfi (1981, um dezassete.
139-199). Face a este problema os pais pediram ajuda para a Ana. Os terapeu-
6
Inscrevem-se, aqui, os modelos de intervenção que utiliza1n o contra-paradoxo tas reenquadraram, primeiro, o sintoma no contexto do sistema famíliar,
terapêutico. Entre outros, Palazzoli e a escola de :i\1ilâo desenvolveram aprofundada- propondo um conjunto de alterações na estrutura-familiar, e, num segun-
mente este tipo de intervenção (Palazzoli et ai., 1978). do tempo, reenquadraram o problema no contexto do -triângulo Ana-
20 21
(Des )Equilíbrios familiares .Introdução

pais(mãe)-professor, provocando o sistema familiar no sentido de este mente, solicitar ao meio ajuda para mudar. Ou, pelo menos, o meio
reequacionar a sua comunicação com o sistema escolar. Finalizadas estas (técnico) assim o entendeu. A dimensão homeostática do sintoma era
transformações, a família prosseguiu o seu desenvolvimento e o sintoma reafirmada pelo comentário da família - "de que estava tudo bem com
desapareceu. ela e de que o único problema era o que o sujeito sintomático apresen-
Sendo um caso bem sucedido, os terapeutas sentiram, muitas vezes, tava" - e pelo seu pedido - "de que o terapeuta mudasse o sintoma mas
alguma dificuldade em implementar as transformações que o diagnóstico
deixasse a família na mesma".
da sih1ação lhes tinha sugerido. Por vezes consideravam que a família
lhes estava homeostaticarnente a resistir. Mas iam co-construindo um per-
curso que se foi afirmando pela mudança. Diríamos que eles estavam na Em 1968, Maruyama insiste, no campo da cibernética, na diferença
cibernética de primeira ordem mas com um pé a sair para o que depois entre sistemas vivos e sistemas não vivos. Enquanto que nestes pre-
descobriram que era a cibernética de segunda ordern7 ! domina a mosfostase (funcionamento produzido mediante retroacções
negativas) nos sistemas vivos predomina a morfogénese (resultante de
No tempo da primeira cibernética e dos sistemas exteriormente um domínio das retroacções positivas sobre as retroacções negativas).
auto-regulados, a família era, então, considerada como uma realidade Também, na prática, os clínicos compreendiam que a estabilidade
objectivável e o seu observador era entendido como uma entidade neu- familiar era feita de pequenas mudanças' e que os movimentos de mor-
tra, capaz de, com perícia e atenção, descortinar as razões do seu dis- fogénese eram não tanto um mal menor mas uma condição necessária
funcionamento e provocar a mudança necessária para que o sistema ao seu pleno desenvolvimento. Neste período, também conhecido por
pudesse retomar um desenvolvimento que a crise tinha parado. Em- segm1da cibernética ou segunda vaga, o observad~JLd~J:.nfatizar
bora os primeiros ciben1etistas soubessem que, nos sist~:mas-..YiY~Q§., o as_ retr{)_ac_ç_õ~s_negativ:1s_para_ _passar ·ª· çaptar...a_interacçi\o .entre
proce_s~()JnióadCl pela mudança.l'Ia.5rre.versível (já quení\Q.é-Jlossível r~Jroacções_ ;negatiy_ªs___ e __ p9si_tiva.s, i.é, entre as tendências __ do ._sistema

voltar exactamente ao estado in.!cial) o seu o_bjeçtivg.fixava-se, por um


fado; ria previsão' cuidádosa-da forma como um sistema poderia opor-
-se à mudança e, por outro lado, na avaliação das probabilidades de s Estas irão ser chamadas mudanças de tipo 1, ou de primeira ordem, enquanto
que a mudança fosse anulada. Estavam criadas as condições para uma que as outras serão apelidadas de mudanças de tipo 2, ou de segunda ordem. Este
assunto será mais desenvolvido no ponto 4 do capítulo 1.
leitura mecanicista, ainda que circular, do funcionamento do sistema. Wiener, ao estudar os sistemas regulados por retroacção negativa, tinha encon-
Em síntese, podemos dizer que: "A primeira cibernética conside- trado uma dificuldade: as máquinas corrigiam o seu funcionamento de acordo com a
rava a família como um sistema que, sujeito a perturbação, modifica- retroacção recebida mas, em vez de se ajustarem progressivamente à meta-proposta,
va as suas condições o mais possível para torná-las semelhantes à sua oscilavam em torno dela. A introdução da noção de circularidade permitiu-lhe explicar
condição inicial, mediante um conjunto de retroacções negativas. As este acontecimento: quando o sistema é estimulado (ou perturbado) exteriormente, o
processo que se desenvolve depende não somente daquilo que o estímulo gera nos seus
novas condições da família eram interpretadas como sinais de uma
componentes e na interacção entre A e B, B e C, ... mas também daquilo que o sistema
possível mudança face à qual ela reagia reduzindo-a ao mínimo. Um tem como finalidade ou propósito, o que cria uma endocausalidade ou causalidade
sintoma num membro de uma família evitava uma mudança maior ao própria. A introdução da noção de informação (elemento fundamental para a regulação
sistema familiar" (Boscolo e Bertrando, 1996, 70), embora, como dos sistemas) e a noção de totalidade sistémica (princípio axiomático da sua própria
vimos anteriormente, constituísse, também, uma forma de, indirecta- existência), acabaram por mostrar que: "Regular é gerar níveis de meta-estabilidade
mais além de, e produto de, uma mudança cofistante em outros níveis do funciona-
mento do sistema" (Pakman, in Foerster 1996, 21). Foi este tipo de mudança, que não
7
Para um conhecimento mais aprofundado deste caso veja-se Alarcão (1998a, altera a estrutura do sistema, que ficou designada por mudança de tipo l. Como se
113-119). compreende, as famílias têm, também, necessidade dela no seu quotidiano .

..L._
"---
,....___ --- --- ~- ,,_ __ ...,._ ,.,_....,.._ __ --~~ ~ - _/'!fllh,t) """" ·· ...u· ·-Lh -· li<V. --vo -· UY --bl ..
22 23
(Des)Equilíbrios familiares Introdução ... __ _ __ ····-

para a morfostase ou para a morfogénese. Dá-se, assim, o reconheci- sável pela compreensão do conjunto das interacções) soçobrotl à ideia
mento das potencialidades evolutivas do sistema: "Um mesmo acon- de causalidade linear, identificando um novo responsável pela pertur-
tecimento, nrun mesmo sistema, terá consequências diversas depen- baçãÜSl~âtiêa'~ a família ou, mais propriamente, a homeostasia
dendo do facto de ocorrer num período de máxima retroacção negati- familiar. Será, pois, necessário entrar mais profundamente num para-
va (máxima estabilidade) ou num período em que é máxima a digmãâa complexidade para que a perspectiva sistémica se enriqueça
retroacção positiva (máxima instabilidade).( ... ) Os processos supostos e reintegr.e a di!11e11s1ip histórica d()_.8-is\ema, a dimensão i11djyicjua1d,()S
por Maruyama são tais que os efeitos de um acontecimento inicial de se,;:s-c;;mponentes, a ideia de si-,.;gularidade, de auto-organização e d.t;
menor importância (kick) podem ver-se reduzidos, ou anulados, ou, outras que adiante referiremos.
antes, ampliados pelo predomínio de retroacções positivas, conduzin- Apesar do sistemismo redutor de que hoje acusamos (e com razão)
do a uma divergência crescente das condições iniciais. Uma pequena a cibernética de primeira ordem, é importante acentuar que ela criou
ou insignificante diferença entre dois membros de uma família, por uma verdadeira ruptura com a epistemologia vigente e toda a terapia
exemplo entre duas crianças, pode representar o começo, o kick, de um familiar desenvolvida até aos anos oitenta obrigou a uma clara alte-
aumento da diferença( ... ) que pode levar ao desenvolvimento de duas ração na forma de equacionar os problemas apresentados pelos indiví-
histórias, de dois destinos, completamente divergentes" {Boscolo e duos. Com efeito, a~g!_;~5!:...ª1:ª!~.miça_r.~,X.1!.sg, desde a sua origem,
Bertrando, 1996, 71-72). No entanto, será necessário esperar por v<Jr 0 slljeito comg_ç:;1usa.dªs. S\l,!\S .. clific11.ldades.. ou_p_ermtlwgQ~s...'LQ..
Prigogine para que a imprevisibilidade da direcção da mudança seja próprio espaço de expressão dessas dificuldadesalarga.cs.e.para.integrar
explicitada e teorizada. Como será necessário aguardar por Maturaua e ()SCOlltíi~(õ~·- ~~___que o _.sintoma_ --~grge, 11 • Estes são, então, considerados
Varela para que a dimensão auto-organizativa dos sistemas e a sua cómo entidades que co-e,;oluem con:; o sujeito sintomático, conferindo
autonomia.reabilitem a importância de uma propriedade dos sistemas um significado e uma função comum ao problema apresentado que,
que a cibernética de primeira ordem acabou por esquecer - a da equi- por isso mesmo, se perpetua. Por outro lado, e essa é a nossa convicção
finalidade'. Finalmente, será necessário que chegue Heinz von Foerster quando lemos os clínicos e quando pensamos no nosso próprio per-
para que, ao falar dos sistemas observantes e da recursividade esta- curso, a prática da terapia familiar era menos redutora do que a sua
belecida entre o sistema observador e o sistema observado, se recupere teorização", razão pela qual temos hoje muita dificuldade em situar
a ideia de co-evolução, tão cara a Bateson'". certos autores num ou noutro destes dois períodos de evolução da

Cibernética Durante a cibernética de primeira ordem, o indivíduo foi esqueci- 11


É necessário referir que, numa primeira etapa, os terapeutas familiares sistémi-
de!.' ordem
do, em favor do sistema total, a história foi posta entre parêntesis, em cos centram-se excessivamente no sistema familiar, esquecendo os sistemas que com
favor da importância das interacções presentes (desenvolvidas no ele estão em relação. Numa segunda fase, e ainda no quadro da cibernética de primeira
"aqui e agora" de cada contexto), e o mndelo da circuli!Ji<ill.de._(respon- ordem, alargam a sua observação e intervenção de modo a poder integrar sistemas
como, p.e., o hospital, a escola, a fábrica. Neste movimento tiveram inegável
importância os trabalhos desenvolvidos pela escola de Milão (Palazzoli et al., 1984,
1987). Evéquoz (1987, 1987/88) estudou, particularmente, as relações entre o sistema
~Aplicadas à família, as propriedades dos sistemas serão abordadas no ponto 1 escolar e o sistema familiar e Benoit (1984, 1986) deu um importante contributo para
do capítulo 1. o estudo das relações com o sistema institucional.
10
De acordo com Bateson (1987), a co-evolução é um processo de crescimento 12
Pode compreender-se que, num período de afirmação, os apresentadores do
conjunto em que a evolução, crescimento e mudança de dois sujeitos em interacção novo modelo sentissem necessidade de enfatizar os elementos que mais o distinguiam
(ou de um sujeito e do seu meio) se interpenetram mutuamente. Constitui, pois, um sis- dos modelos vigentes, nomeadamente do psicanalítico de onde provinham muitos dos
tema de mudança evolutiva. primeiros terapeutas familiares.
24 25
(Des)Equilíbrios familiares Introdução

própria sistémica ou razão ainda pela qual continuamos a usar muitas nética de primeira ordem pretendia descrever os sistemas, a cibernéti-
da suas propostas de intervenção e de organização do próprio proces- ca de segunda ordem procura, para além desse objectivo, descrever
so terapêutico. No fundo, para que uma possível nova evolução con- aquele que os descreve. Na base da mudança operada está a ideia de
ceptual não nos acuse (e com razão) de novo reducionismo, é impor- que não há um observado sem um observador e de que o resultado da
tante que as nossas construções da realidade, nomeadamente as relati- observação é sempre uma construção resultante da interacção recursi-
vas ao sistema familiar, integrem vários pontos de vista, resultem de va entre o que observa e o que é observado (F oerster, 1996).
questionamentos diversos e de níveis diferentes de análise e não es- Não tendo em conta os processos mentais e separando o sistema
queçam que têm autores, seus pais mas não deuses, e, como tal, cons- observado do sistema observador, a cibernética de primeira ordem
trutores de realidades não absolutas e, de alguma forma, imperfeitas. O caiu, corno já afirmámos, numa postura demasiado mecanicista. C"om
nosso saber e o nosso sentir não são lineares mas alimentam-se, recur- efeito, os sistemas humanos ficaram demasiado semelhantes aos sis-
sivamente, de vários componentes, situados em vários patamares. A temas não humanos e despossuidos de algo que é essencial à sua
nossa riqueza estará, então, na sua integração e não na sua clivagem. existência e que define a sua própria complexidade - os significados da
acção. Como afirma Ugazio (1991), o aspecto semântico não foi con-
Mas voltemos um pouco atrás e situemo-nos no universo científi- siderado, dada a ênfase colocada no aspecto pragmático. Como já ante-
co em que a teoria geral dos sistemas e a cibernética se desenvolve- riormente referimos, o domínio do modelo psicanalítico, que então se
ram: nessa altura o destino estava fixado por leis, o acaso não tinha fazia sentir, levou estes primeiros terapeutas, sobretudo os mais li-
lugar no espectro científico e o determinismo impunha o seu domínio; gados ao estudo dos aspectos comunicacionais na sua vertente pra-
o mundo regia-se por uma dinâmica de causa-efeito, apesar da causa- gmática13, a considerar a família como urna caixa negra, i.é, como um
lidade circular que se afirmava (Droeven e Najmanovich, 1997).
Neste quadro, as singularidades do sistema (Elkalm, 1990),
enquanto particularidades específicas do mesmo, essencialmente
expressas ao nível da comunicação analógica e da metáfora, não eram 1
J Com o desenvolvimento da terapia familiar foram surgindo divérsas escolas e

valorizadas nem utilizadas como forma de amplificar as flutuações do modelos de intervenção. Enraizando-se mais profundamente nos contributos da teoria
sistema e conduzi-lo ao ponto de bifurcação de que Prigogine irá falar~......, geral dos sistemas e nos conceitos a partir dela desenvolvidos (tais como, as noções de
sistema, finalidade de sistema, hierarquia sistémica, regulação do sistema), a escola
-nos.
estrutural de Salvador Minuchin enfatiza a ideia de organização estrutural do sistema
Como não fazia igualmente sentido pensar que o observador era familiar e sublinha a necessidade de reestruturação do sistema através da realização de
também um participante que interferia na realidade que observava. Por operações de reestruturação da sua estrutura. Integrando as noções de mudança de 1ª
isso Heinz von F oerster apelidou esta cibernética de cibernética de ; e de 2ª ordem, desenvolvidas por Watzlawick e colaboradores (1975), e a ideia de
primeira ordem ou cibernética dos sistemas observados. __ _ j evolução temporal (particularmente ligada ao ciclo vital), a escola estrutural chama
"'------· ---~--·-~------·"·-,,.,._.__ ---·-. claramente a nossa atenção para a importância de considerarmos a etapa de desen-
volvimento familiar na avaliação da funcionalidade familiar (Minuchin, 1979;
Ciherné1ica No início dos anos 70, von Foerster refere-se, pela primeira vez, à Minuchin e Fishman, 1988). Muito ligados ao estudo da pragmática da comunicação
de 2." ordem
cibernética de segunda ordem, ou cibernética dos. sistemas obser- humana, os autores estratégicos centram-se nos aspectos relacionais/comunicacionais
va11te_s, que, como o próprio nome indica:-se-·dif~~~Cla-··aa-·a:ritêfior, do "aqui e agora" da interacção, procurando mudar os círculos viciosos da comuni-
desde logo, pela inclusão do observador nos sistemas estudados. No cação disfhncional. As suas intervenções são, pois, essencialmente centradas nos pro-
fundo, o que ela visa é, basicamente, a aplicação a si própria dos blemas apresentados e na transformação das redundâncias disfuncionais (Watzlawick
Weak:land e Fish., 1975; Fisch, Weakland e Segai, 1994; Nardone tt Watzlawick, 1995;
princípios da cibernética. Por outras palavras, enquanto que a ciber-
Palazzoli et ai., 1978). Haley (1994) associa-lhes a ideia da escola estrutural sobre a

......_
/
--~---"'' \_ ~~-·,_, ·---~---- .,______ --"""'"~ -- .,_ ____,, ____
-~ --~ -~ ~~ ----- _,,.....- ~
~- -----
26 27
(Des )Equilíbrios familiares Introdução

sistema em que as entradas e as saídas de informação são estudadas podem sobressair do seu carácter unitário" e estrutura como "a totali-
enq11anto comportamentos-comunicação sem que o funcionamento dade das relações efectivas que mantêm os componentes que integram
intra-psíquico do indivíduo tenha que ser equacionado para que o sin- a máquina concreta num espaço determinado" (ín Almeida Costa,
toma possa ser compreendido. De acordo com Onnis (1991), é possí- 1994, 106), e considerando que a vida é, simultaneamente, intercâm-
vel que o facto de Watzlawick e colaboradores terem estudado famílias bio, manutenção e transformação, Maturana e Varela desenvolveram, a
muito disfuncionais, com uma tendência prevalente para neutralizar propósito dos sistemas biológicos, os conceitos de autopoiése" e de
toda e qualquer alteração (tetraacção negativa), tenha feito com que a auto-organização. Desta forma puderam Jl.".!18ª1:... a_estabilidade. e .a..
aplicação da cibernética se fizesse na sua dimensão mais mecanicista. mudan9a _~9rg9 soli4árias__ e mostrar7orn_Q-_µrn_sistema .. Jn,uçla, rp_ai1ten-
Nesta descrição dos sistemas humanos, com circuitos de retroacção ~~~-~!:~P:~-~:?;~Ç-~-º-- ~ _ transfQ!E?:_~~g-º-ª-~JJª_esJ:rumn1. --~-- -
negativa, repetitivos e imutáveis, perde-se a noção de te1npo. O sis-
tema é sempre igual a si próprio e deixa de ter história, já que o passa- Ao definir sistema como "uma unidade global organizada de inter-
do e o futuro dissolvem-se no presente. -relações entre elementos, acções ou indivíduos", Morin (1987, cit. in
Costa, 1999, 56-57) considera que a organização é "a disposição de
Aufo- Enquanto processo de reflexão sobre o conhecimento ( obser- relações entre componentes ou indivíduos que produz uma unidade
-organfaaçílo
vador-participante ou sistema observante) do conhecimento (sistema complexa ou sistema, dotada de qualidades desconhecidas ao nível dos
observado), a cibernética de segunda ordem faz da recursividade uma componentes ou indivíduos". Numa palavra, a organização é o que
norma, mostrando que a evolução faz-se em espiral e não tanto por um garante solidez e durabilidade às inter-relações dentro do sistema, ape-
caminho linear. Para estes novos desenvolvimentos muito con- sar de todas as perturbações aleatórias que o mesmo possa sofrer. A
tribuíram, entre outros, os trabalhos de von F oerster, de Maturana e organização, ao criar uma unidade (sistema) a partir da diversidade
Varela, de Prigogine e de Morin. Vindos de diversas áreas do saber, (elementos ou componentes do sistema), cria ordem onde há desor-
todos eles ajudaram a abrir a porta da complexidade. dem; mas origina também entropia, já que toda a organização supõe a
Se já na etapa anterior a clínica mostrava que os sistemas abertos, desorganização como correlativa. Os sistemas vivos, auto-organiza-
como a família, não são estáticos, conduzindo assim ao desenvolvi- dos, são, então, capazes de captar a desordem, de utilizá-la sem se
mento das noções de mudança de l' e de 2' ordem, são as ideias de destruírem, de se reorganizarem e de se alimentarem dela, criando a
Maturana e Varela que vão dar um contributo decisivo para a com- ordem necessária à sua sobrevivência. Nos sistemas vivos, a tendência
preensão de como é que os sistemas se transformam (mudam) man- para uma rápida desordem (entropia) está, pois, inseparavelmente li-
tendo, no entanto, a sua identidade. Definindo organização como "a gada à sua reorganização (neguentropia).
totalidade das relações que definem uma máquina como uma unidade
e que determinam a dinâmica das interacções e das transformações que

i-1 Maturana distingue dois tipos de sistemas_ dinâmicos: nos sistemas alopoiéticos

a organização permanece a mesma mas produz-se algo diferente dos mesn1os; nos sis-
in1portância do ciclo vital. Murray Bowen (1984), através da noção de triângulo rela- temas autopoiéticos a organização permanece igualmente idêntica mas eles são o pro-
cional, integra os aspectos comunicacionais da interacção mas focaliza a sua atenção na duto do seu próprio funcionamento (Benoit et al., 1988, 27). De acordo com Maturana,
análise das relações intergeracionais, mais particularmente nas dos cônjuges com as suas a família, como sistema aberto, corresponde a este segundo tipo de sistemas, embora,
famílias de origem. As dificuldades do sistema familiar nuclear são, então, entendidas no na realidade, ele se assemelhe mais aos sistemas fechados. É desta forma que podemos
contexto de déficites de diferenciação familiar relativamente às_gerações anteriores. dizer que a noção de autopoiése requer a noção de fecho operacional do sistema.
·:';!
28 i~ 29
(Des)Equilíbrios familiares Introdução

Sintetizando, os sistemas a11to-organizados adquirem e/ou aumen- seu estado interno, podendo criar uma concordância estrutural
tam a sua ordem a partir da ordem anterior, dos fenómenos aleatórios (acoplagem estrutural).
e do facto de, a partir da desordem (ruído), seleccionarem eles próprios A ideia de que o sistema é operacionalmente fechado, i.é, de que
os elementos que lhes são úteis para a sua estrutura (Pakman, in é responsável pelo resultado das suas operações (feitas a partir das per-
Foerster, 1996). A ordem assim encontrada possui uma coesão que a turbações que realiza com o meio) faz dos sistemas vivos entidades
toma estável. completamente auto-referenciais, dotadas de urna lógica interna. Estes
Aplicando o que dissemos à família podemos entendê-la como um sistemas são, então, autopoiéticos, isto é, são sistemas que se auto-pro-
sistema auto-organizado que aceita um conjunto finito de transfor- duzem. Desta forma, deixa de ter sentido procurar conhecer um sis-
mações estruturais, conservando sempre a sua organização. As dificul- tema para, depois, o modificar e passa a ser adequado interroganno-
dades das famílias face às crises e os pedidos de intervenção surgem -nos sobre a forma como o conhecemos. O processo de observação
quando aquela sente ameaçada a sua organização. As implicações delimita um outro sistema autónomo que inclui o observador e o obser-
práticas desta nova formulação são extraordinárias pois permitem vado, interactuando num processo circular e auto-referencial que faz
compreender as razões pelas quais as famílias não aceitam todas as com que tudo o que se disser sobre o sistema observado esteja intrin-
propostas de transformação, mesmo que elas pareçam adequadas à sua secamente ligado às características e limitações do observador.
própria evolução. Durante a cibernética de primeira ordem falava-se de
resistência, agora passará a falar-se de autonomia. Mas voltemos de novo à questão de saber como pode um sistema
Decorre do que dissemos que a interacção do sistema com o seu mudar permanecendo coerente, de türma a melhor compreendermos os
meio é extremamente importante para que ele possa auto-organizar-se. contributos de Ilyia Prigogine.
A diferença entre sistemas auto-regulados e sistemas auto-organizados Edgar Morin, interrogando-se sobre a noção de sistema, substitui
está, então, na capacidade de autonomia do sistema no tratamento da a ideia de que "o todo é mais do que a soma das partes" pela ideia de
informação que provém desse mesmo meio e no tipo de ligação exis- que ''o todo é, ao mesmo tempo, mais e menos do que a soma das
tente entre ambos. Enquanto na cibernética de primeira ordem o meio partes". Explica esta sua tese dizendo que, se é certo que toda a orga-
informava o sistema, tendo, com ele, uma posição de complementari- nização implica o aparecimento de propriedades emergentes no todo e
dade one-up, na cibernética de segunda ordem considera-se que meio nas partes (propriedades que não estão presentes em cada um dos ele-
e sistema estão acoplados um ao outro, sendo que os pontos de mentos considerados isoladamente), também ela obriga a constrangi-
acoplagem são as perturbações. Nos sistemas autónomos as pertur- mentos, a perdas no grau de liberdade das partes, à inibição de certas
bações não são, pois, definidas pelo meio mas é a estrutura do sistema potencialidades (pelo que a relação constrange alguma propriedade de
que define as perturbações permitidas. O efeito da perturbação consiste cada elemento). Desta forma, Morin (in Droeven e Najmanovich,
em conduzir o sistema a um novo estado, a urna nova configuração. 1997) alerta-nos para que a cegueira reducionista (que só vê os com-
Um sistema autónomo é, então, um sistema com forte determinação ponentes isoladamente) deu lugar a uma cegueira holista (que não vê
interna pelo que todo o comportamento auto-organizado é desenvolvi- mais do que o todo). Como já anteriormente afirmámos, se a terapia
do pela diversidade da coerência interna de um sistema operacional- familiar teve o mérito de fazer-nos recuperar da primeira perturbação
mente fechado, ainda que informacionalmente aberto. A interacção oftalmológica, acabou, nos seus primeiros desenvolvimentos, por ficar
entre o sistema e o meio faz-se por um processo de co-evolução ou de igualmente cega.
acoplagem: dois sistemas auto-organizados, autónomos, que se É exactamente deste reducionismo que nos fala Palazzoli e a sua
acoplam vão, necessariamente, desencadear modificações mútuas do equipa quando afirmam: "(... ) Quer dizer, do reducionismo psicanalítico,
-~-:e-'"'~- ~-- ---~.JI'<--- -·~ - __ _...,.-"_ ----- .,,__ ......,. __ ------· ~---#

30 31
(Des )Equilíbrios familiares Introdução

que separava o indivíduo das suas interacções 15 , passou-se ao -se para dar-nos estabilidade e para possibilitar-nos a criatividade. Se
reducionismo holístico, que separava a família (sistema) dos membros a estabilidade é necessária, pois não poderíamos viver num mundo
individuais que a compunham. Com efeito, por ter tido medo de ter totalmente imprevisível, o acaso é igualmente vital para seres humanos
também em consideração, de forma explícita, os indivíduos, as suas conscientes e autónomos. As implicações práticas destas novas formu-
intenções e os seus objectivos, à falta de pessoas vivas e reais vimo- lações são inegáveis: a estabilidade e o equilíbrio deixam de ser vistas
-nos obrigados a personificar o sistema, perdendo flexibilidade mental como metas e o desequilíbrio passa a ser entendido como parte de um
e poder explicativo" (cil. in Droeven e Najmanovich, 1997, 37-38). processo de complexificação. Por outro lado, o modo como um sis-
tema se estrutura não constitui o único possível mas antes t1rna das
Fh1!11a~ões No intuito de compreender melhor a mudança, Ilya Prigogine possíveis formas que, na sua modelização dinâmica, ele encontrou.
e cs!r11t.1r.. s
dõssipativa•
estuda os sistemas afastados do equilíbrio. As descrições termo- Isto não significa que um sistema deixe de desenvolver comportamen-
dinâmicas clássicas consideravam que o sistema evoluía linearmente tos reguladores e mudanças auto-correctivas, que o técnico deixe de
até um estado final que era o do equilíbrio. Ora o que Prigogine veio atender às suas redundâncias e regras sistémicas. O que significa é que
mostrar foi que nos sistemas afastados do equilíbrio não existe uma o acaso, a instabilidade, o desvio fazem igualmente parte de um
única trajectória possível para a evolução desse mesmo sistema: pelo processo dinâmico de crescimento e que os sistemas são autónomos na
contrário, há diversas opções, os caminhos bifurcam-se e o acaso inter- sua forma de amplificar as flutuações.
vém inevitavelmente no desenvolvimento dessas bifurcações. Quando
amplia as suas flutuações, o sistema entra num período caótico, em Temos falado recorrentemente de complexidade. Pode ter ficado a Complexidade

que se desorganiza, mas que, longe de ser negàtivo, lhe permitirá ideia de que ela constitui uma nova meta a que nos propomos chegar.
desenvolver novas estruturas (as chamadas estruturas dissipativas). É, Longe disso. A complexidade é uma forma de abordagem, um estilo
pois, importante sublinhar que caos não significa mera desordem mas cognitivo, um projecto permanente. Por isso é dinâmica e multidimen-
antes possibilidade de criar uma nova ordem 16 • sional (Droeven e Najmanovicb, 1997).
De acordo com o que acabámos de dizer podemos, então, afirmar
que, no universo em que vivemos, o acaso e a necessidade conjugam-
Esta é a história de um sábio que, na presença dos seus discípulos,
administrava justiça entre dois queixosos. Um deles queixava-se de que
1' Embora seja comum, entre os sistémicos, encontrarmos afirmações deste tipo
lhe tinham roubado uma vaca e considerava que o ladrão, presente na
pensamos que as mesmas desconhecem a própria evolução do modelo psicanalítico, na
qual é dado rnn realce particular à importância das relações interpessoais no desen-
sala, devia ser castigado. Depois de reflectir·Iongamente sobre o assunto
volvimento psico-afectivo do indivíduo. Há, no entanto, diferenças substanciais: por o juiz decidiu que, se era assiin como contava, ele tinha razão. Falou .
um lado, a psicanálise focaliza a sua atenção na dimensão intra-psíquica da vivência então o suposto ladrão e explicou que realmente tinha roubado a vaca
dessas mesmas relações e, por outro lado, sublinha o seu impacto na infância e na ado- porque os seus filhos estavam a morrer de fome e ele não encontrava tra-
lescência, considerando que a partir da construção da identidade pessoal (a que o balho, apesar de todos os esforços que tiriha feito para o encontrar. Como
processo adolescencial vai dar uma organização relativamente definitiva) o sujeito é, o seu vizinho era rico achava que ele podia esperar até que pudesse pagar-
em condições de equilíbrio psico-afectivo, relativa1nente autónomo face a essas mes- -lhe.· Depois de pensar: at.uradamente o juiz deu-lhe razão. Aos discípulos
mas relações. Preocupado com a questão etiopatogénica da perturbação mental e que se admiraram de o mestre ter dado razão a duas versões contraditórias
entendendo que a construção do ser humano se joga, fundarnentalmente, até ao final dos mesmos factos o juiz, depois de muito meditar, respondeu que tam-
da adolescência, o modelo psicanalítico privilegia a dimensão intra-individual. bém eles tinham razão.
16 Aplicada às mudanças no sisten1a fatniliar, as ideias de Prigogine serão

retomadas no ponto 4 do capítulo 1.


32 ~-3__
(Des)Equilíbrios familiares Introdução

Este conto tradicional hebraico ilustra a multidimensionalidade dt!llhfamiliar ou institucional). Mas também não pode olhar para a
que o pensamento complexo comporta e constitui uma metáfora exce- história <losTStemã corno-a'explicação da sua configuração actual, das
lente da nova forma de estar sistemicamente com os outros, connosco suas competências e das suas dificuldades. Porque esta é, apenas, uma
(com a nossa identidade técnica) e com a intervenção. das suas histórias possíveis. Uma família sintom_fili.f_a_éuma família
Com efeito, a nova sistémica está a construir um diálogo diferente cuja história está congelada, desvit";liz:lé[a: ~;;:história ofici-;;l; q-;_;;;-;;s~a
sobre o indivíduo, sobre a relação entre os indivíduos e sobre os famÍÜa conta está impedindo aevolução do sistema, o crescimento dos
processos mentais. Numa palavra, é uma outra história (de entre várias seus membros. O terapeuta não pode apropriar-se dessa história para
possíveis) aquela que a sistémica agora conta a propósito das relações modificá-la. Tem, apenas, que ocupar um lugar a partir do qual possa
que se tecem entre os indivíduos, as famílias e os outros sistemas. a_brir espaçosyara ~-ell1ergªnc};u:\e_.110.vªs JJ'1rraçõ_"s-'1_c.Qill!1ruir..p_cla
De acordo com tudo o que acabámos de dizer, o sistema, e natu- família" (Droeven e Najmanovich, 1997, 46). A sua função não é, pois,
ralmente cada um dos seus elementos, é visto como responsável pelas ·;rêscO-b~ir-sintetizar-prescrever (a mudança) mas antes in_yestigar-su_-
suas narrações, pelas suas histórias e construções. A realidade, passa, __gerir-r"2_1:g;'1!1J?'!lr~Jmgi;fiL<le noyo ... até que \l!llª_n()_\'ª_hi2tó_ria11p_ar_<:i,:a.
da ou presente, não existe enquanto tal, não é uma sucessão de factos Nem o terapeuta nem· a família podem vangloriar-se da autoria dessa
objectivamente relatáveis, mas é, sobretudo, um conjunto de significa- emergência: ela produziu-se nos interstícios que ambos conseguiram
dos que cada um de nós constrói num espaço e num tempo determina- criar...
dos, em implícita interacção consigo próprio e com os outros, i.é, com
os significados deles 17 • Mas se é uma_fonstrução _9-_~--ªigD:iflc<!'lli,1S..J!..se o Foi como forma de abrir novos espaços no conhecimento que
acaso é inerente à vi<fa entllujstcuigniliCa.~.(liiJ; opresente.JJãoé_µma vamos construindo sobre o sistema familiar que escrevemos os capítu-
deduÇão lógica do pa_ssado e que outr()_s,_siguificados_Q1Ullitras_cons- los que se seguem.
tru_yões p-odem ser realizadas. Essa é, sem ClíIVia,[,uma das funções do
outr_O_ilãriõSsaVid-ã:·a. -Je-ãI,rir-nos a novos significados, a novas cons-
truções. É óbvio que, para isso, ele tem que partilhar algo connosco,
uma parte do nosso ser, já que, caso contrário, ele seria apenas um
Outro e não um Outro-em-relação connsi~ceo. Mas não pode ser total-
mente como nós pois so aaíferellÇa produz informação (Bateson,
1987), isto é, só da diferença (relativa) surgem as flutuações que nos
podem conduzir a um novo significado, a uma nova história. São as
várias histórias, nossas e dos outros, que vão criando a nossa história;
como é ela, também, que nos permite criar aquelas. Na sua inter-
venção, um técnico não pode, então, negar a dim~nsão histórica do sis-
tema que está a conhecer e com o ql!al vai trabàlhar(s~ja ele indivi-

1 11
Isto permite-nos compreender a razão pela qual, muitas vezes, :as situações
~ relatadas são diametralmente diferentes ainda que compostas por muitos elementos
i~j estritamente iguais. As situações de conflito conjugal são disso um exemplo extraor-
dinário.
~
1
~
....__ ._
('

('
1
1

i
l

(
1
1

l
""".1 ri
t.l
9 >
...,,
(

...
t:l
t.l
"'d
~

(") ~
o r )
9
o
o
.....
...
"'
"',..._
\
J
t
(':>

s
t.l
1·,
\

'
1
1.

t
1
{
\

f
'-:~

É habitual pensarmos na família como o lugar onde naturalmente


nascemos, crescemos e morremos, ainda que, nesse longo percurso,
possamos ir tendo mais do que uma família 18 •
Esta é, então, um espaço privilegiado para a elaboração e apren-
dizagem de dimensões significativasdainteracção: os contactos cor-
porais, a linguagem, a comunicação, as relaç-ões interpessoais. É,
ainda, o espaço de vivência de relações afectivas profundas: a filiação,
a fraternidade, o amor, a sexualidade ... numa trama de emoções e afec-
tos positivos e negativos·que, na sua elaboração, vão dando corpo ao
sentimento de sermos quem somos e de pertencermos àquela e não a
outra qualquer família.
Mas a família é, também, um grupo institucionalizado, relativa-
mente estável, e que constitui uma importante base da vida social.
Tudo isto faz da família um objecto de estudo de diferentes disci-
plinas científicas e um campo de interessada investigação pessoal".
Podendo ser encarada em diversas perspectivas, a família vai ser aqui
fundamentalmente compreendida de um ponto de vista sistémico, já

i& Referimo-nos, naturalmente, à nossa família de origem, à nossa família

nuclear, à família de origem do nosso cônjuge. Hoje em dia, com o aumento das se-
parações, divórcios e recasamentos (ou novas uniões), o número de famílias de que
vamos fazendo parte pode aumentar consideravelmente.
19
Não é sem razão que, nos díferentes curricula escolares, as disciplinas rela-
cionadas com a família despertam um interesse acentuado por parte dos alunos. Hoje
em dia todos sentimos necessidade de conhecer e de cooperar com a família. O espaço
psicoterapêutico de há muito que a reclama ainda que, de modo mais notório, nas si-
tuações em que a dificuldade se cristaliza na criança ou no adolescente. O contexto
/ll;..l ~ ~- ··llJ.'!,J ·~· ........... ~·l!'-.J·· '~ •........,~ ·~- ~ ..........-" ·~j ,. __ .!). __ _
'\,-~-- '-~JllJ-.-11 __ / --,~ ../ ~------</' __ ,...____, ---------- /
38
(Des )Equilíbrios familiares

1
que o mesmo se nos afigura como um interessante instrumentQ_ de
leitura e reflexãp dessa unidade !otat(a família) e. dessa totalid.ade d~~· Definição de família e propriedades do sistema familiar
unidades (os indivíduo;) que a família constitui, num espaço e num~
tempo determinado~. A çm:r1preensã9 sistémica da família, do seu de-
se!J:y_olyim.~n_to_ ~ __ do seu funcionamento, não é hoje exactamente a
mesma que se tinha nos anos cinquenta, sessenta ou mesmo setenta.
Numa fase de maturidade, o modelo abriu-se, como vimos, .iL~CD.m­
plexidade e divei;sidadeda(s) realidade(s) qµe co-constróL É essa teia
conceptual que i1os .propomos começar a percorrer com o _leitor.

Existem, hoje, muitas definições de família mas talvez o mais


importante seja vê-la como um todo, como uma emergência dos seus
elementos, o que a torna una e única2 º. .._,./
Ler sistemicarnente a família implica, então, ter uma visão global
da sua estrutura (dimensão espacial) e do seu desenvolvimento
(dimensão temporal)". Por isso Sampaio e Gameiro (1985, 11-12)
definem-na corno "um sistema, um conjunto de elementos ligados por
um conjunto de relações, em contínua relação com o exterior, que
mantém o seu equilíbrio ao longo de um processo de desenvolvimen-
to percorrido através de estádios de evolução diversificados".

iii Já Jackson "(1965), ao definir família como uma- unidade, nos alertava para a

necessidade de encontrar medidas que a não reduzissem à soma dos selÍs indivíduos:
"Temos necessidade de medii as CaraCterísticas da unidá°de faniíliar -ªupra _individual
para as quais não temos actualmente nenhuma terminologia. Podemos fazer apelo· ao
escolar procura, de forma mais ou menos implicada, mobilizar as relações com a bom·- senso:- o -todo é mais do que a soma das suas partes, é tudo o que nos intereSSa'.'.
família e potenciar uma interacção ou uma comunicação funcional entre os três vér- No mesmo ·sentido,_ Gameiro (1992, 187) afirma: "A famíli~ é uma re_de c_o.i;Dpl~xa ·d_e
tices do triângulo inevitavelmente instituído: o aluno - a escola - a família, O próprio relações e emoções· na qual·se-p·assam sentimentos e--comportamentos que não-são pos-
contexto organizacional não pode esquecer uma realidade que integra tão forte1nente síveis de-- ser peiísados com os instruínéntos criados 'pélo estudo 'dos indivíduos is'ola-
a identidade de cada indivíduo-trabalhador. Todo o trabalho comunitário é hoje rea- dos. Conceitos_ importan~es como o de _personalidade não são aplicâveis ao estudo_ da
lizado no intuito de activar o potencial desenvolviinental dos sistemas familiares, tamília. A simples· ôescrição dos elementos de uma família não serve para transmitir a
tomados na sua dimensão singular (a família Silva ou a família Santos, p.e.) ou na sua riqueza e a complexidade relacional desta estruturau:
dimensão interactiva (as várias famílias que fazem parte da comunidade e que podem 21
A apresentação destes dois eixos de análise do sistema familiar ~ o eixo sin-
constituir, para si próprias, uma importante rede social). crónico, ou do espaço, e o eixo diacrónico, ou do tempo - será feita no capítulo 3.

__
·::,
:~i
40 41
(Des )Equilíbrios familiares p;;ilia como sistema

Enfatizando a dimensão holística de que falamos, Andolfi (1981, 19-20) Joaquim Sousa era um homem alto, grande, moreno, simpático e
define família co1no um '"sistema de interacção que supera e articula den- afável. Filho de uma fratria média, com duas irmãs, uma mais velha e
tro dela os vários componentes individuais" e acrescenta que "a família é outra mais nova, herdara do pai a bonomia e da mãe o pragmatismo. Ao
um sistema entre sistemas e que é essencial a exploração das relações chegar aos trinta- anos casou com Clara Santos, uma mulher mais sisuda
interpessoais, e das normas que regulam a vida dos grupos significativos mas igualmente pragmática. Filha única e órfã de mãe desde os quinze
a que o indivíduo pertence, para uma compreensão do comportamento anos, cedÜ se habituou a lida doméstica de que era eximia executante. Os
dos membros e para a formulação de intervenções eficazes''. Sousa/ Santos tiveram dois filhos: primeiro o Carlos e dois anos depois o
Ivo. Durante os três primeiros anos- Carlos ficou em casa, com a mãe, que
reduziu substanciahnente a sua actividade de psicóloga, e com Luísa, a
r-::o
Sistema De acordo com Hall e Fagen (cit. in Watzlawick, Beavin e
Jackson, 1993, 109-110), um sistema é o "'conjunto de objectos [e das)
relações entre os objectos e os atributos', [sendo que] os objectos são
empregada. Aos quatro começou a frequentar o jardim de infância. N'essa
altura, face a novas solicitações profissionais, Clara deixou Ivo entregue
(\,.1\ aos cuidados de Luísa.
os componentes ou partes do sistema, os atributos são as propriedades A vida em casa dos Sousa/Santos tinha muitas semelhanças com o
dos objectos e as relações dão 'coesão ao sistema todo'. ( ... ) enquanto quotidiano familiar que Joaquim recordava dos seus tempos de criança e
que os 'objectos' podem ser indivíduos humanos, os atributos pelos adolescente. Os dias corriam cahnamente, o casal era caseiro e as crianças
quais eles são identificados são comportamentos comunicativos (em não davam muito trabalho-. Luísa dava mna ajuda preciosa, sobretudo
contraste, digamos, com os atributos intrapsíquicos). Os objectos dos agora que Clara tinha mais solicitações. Havia lll1l princípio que Joaquim
sistemas interaccionfiis são melhor descritos n'ão como indivíduos mas e Clara tinham criado: o de reservar uma das tardes do fim de semana só
como pessoas-comunicando-com-outras-pessoas. ( ... ) Admitindo que para eles. Nas suas famílias não existia essa prática. Em casa dos Sousa o
existe sempre alguma espécie de relação, por mais espúria que seja, fim-de-semana era mna quase permanente reunião familiar e de amigos.
entre quaisquer objectos, Hall e Fagen são de opinião que 'as relações Que '!!gora continuava com os netos, pois era_ lá que Joaquim e Clara cos-
tumavam deixar os filhos- para ir dar uma volta. Em- casa dos Santos,
a ser consideradas no contexto de um dado conjunto de objectos
depois da mãe de Clara morrer, o pai saía sozinho e ela costumava ficar
dependem do problema em estudo, sendo incluídas as relações impor- em casa, por vezes na companhia de umas, vizinhas amigas.
tantes ou interessantes e excluídas as relações triviais ou supérfulas. A Apesar de ambos trabalharem,- era Clara que se ocupava mais das
decisão sobre quais são as relações importantes e quais as triviais com- crianças: dos banhos, do- deitar,. das idas ao médico, da pré-escola.
pete à pessoa que trata do problema'". _Ocupava-se.igualmente-das refeições e da casa,_nas horaS_e nos dias em-
Desta forma, a família pode ser considerada como um sistema que Luísa. não estava.. Joaquim, agora mais envolvido com "a sua publi-
pois, tal como em qualquer outro, também ela: 1) é composta por cidade'~, trabalhava mais horas fora de casa e repartia os seus tempos
objectos e respectivos atributos e relações, 2) contém sub-sistemas e é livres· entre o cuidar do jardim, o brincar com os filhos (sobretudo com
contida por diversos outros.sistemas, ou supra-sistemas, todos eles li- Carlos que já o acompanhava) e os· amigos. Excepção feita para a tarde
gados de forma hierarquicamente organizada e 3) possui limites ou
fronteiras" que a distinguem do seu meio".

atributos afecta o sistema e de todos os objectos cujos atributos são mudados pelo
n O conceito de fronteira ou limite e a sua importância na organização estrutu- comportamento do sistema. "Da definição de sistema e de meio deduz-se, claramente,
ral do sistema familiar serão abordados no ponto 2 deste capítulo. que qualquer sistema pode ser dividido em sub-sistemas. Os objectos pertencentes a
'J De acordo com Hall e Fagen (cit. in Watzlawick, Beavin e Jackson, 1993, 110), um sub-sistema podem muito bem ser considerados parte do meio de um outro sis-
para um dado sistema, o meio é o conjunto de todos os objectos cuja mudança nos seus tema".
\._ '>"\_,~· ·--· ">~ •.. -

42 43
(Dcs )Equilíbrios familiares pru:;nia como sistema

Na família Sousa/Santos, podemos distinguir claramente quatro


do casal. Infe_lizmente Os tempos livres eram cada vez menos e as solici-
tações das crianças cresciam a ollios vistos., Desde· que Joaquim tinha sub-sistemas: o individual, o conjugal, o parental e o fraternal".
podido-entregar-se ao que sempre desejara fazer, animação publicitária, o Podemos também perceber que a família Sousa/ Santos não nasceu de
seu envolvimento_ .profissional triplicara: agora até já sonhava com geração espontânea e não vive isolada. Há toda uma trama relacional
serviço! que com ela interage e que vai ajudá-la a ganhar forma e identidade:
Clara e Joaquim tinham escolhido cuidadosamente o jardim de interna e externa. Com efeito, há muita coisa, nos Sousa/Santos, que
infância de Carlos. Gostaram daquele pelo projecto educativo que tinha, nos permite reconhecer os Sousa e os Santos. Há, também, peculiari-
pela postura das educadoras, muito atentas às necessidades: das crianças e dades que devem ser apenas dos Sousa/Santos pois não se encontram
dos pais, pelo espaço físico de que desfrutava e pelo horário praticado. parecenças em lado nenhum. E há coisas em que os Sousa/Santos são
Clara sentia ainda uma-outra.atracção: a de poder Hexperimentar" aquilo 0 que são pelas solicitações que o exterior (a escola do filho, o traba-
que- em teoria defendia, ou seja,. a cooperação estrCita entre o sistema lho do pai e o trabalho da mãe) lhes pede. Mas também na escola do
escolar e a família. Muito presente, -organizada e clara na-transmissão das
Carlos o ano decorreu de forma diferente pela interacção que se foi
ideias e das- sínteses, .rapidamente se transformou na secretária das
estabelecendo entre os Sousa/Santos, os Hipólitos, os Castro e as
re1miões formais e informais realizadas no Jardim.-Naquele. ai10 em que· o
Educadoras". O que define (ou caracteriza) e delimita todos estes sis-
Carlos ia ·fazer cinco-- anos e estava lá pela -segunda vez, a .escola· tinha
corno projecto "'explorar o reino dos nossos sonhos ... " e como pré-texto temas (família(s), escola, trabalho dos pais, comunidade) e sub-sis-
parte da obra de um conhecido autor plástico. Numa-das reuniões-de_pais, temas são os papéis e funções, as normas e os estatutos ocupados pelos
Clara, sObretudO em articulação :com o casal Hipólito -e com -o casal indivíduos. A clara delimitação destes limites interaccionais permite a
Castro, propôs que os pais, com a ajuda das educadoras e com as suges- cada um, em cada momento e em cada espaço, saber o que pode espe-
tões das crianças, realizassem um CD-Rom didáctico, preferencialmente rar de si próprio, o que podem os outros esperar dele e o que pode ele
dirigido a crianças entre os três e_ os -seis anos, alusivo ao _projecto do esperar dos restantes. E isto com a margem de variação que a com-
J ar_dim ·mas-- que pudesse ser explorado .por -outras crianças ·e outros p~s. plexidade e a tolerância humanas permitem. Os Sousa/Santos
Na consulta de_profissionais da imagem e da área.da.informática, em que mostram-nos, ainda, que, ao desempenhar diferentes papéis, os seus
Joaquim se- envolveu mais do que o-ini_ciâlmente.previsto, e nas reuniões: vários elementos participam e pertencem a diferentes sistemas (ou sub-
subsequentes, .a catadupa de ideias teve que dar lugar ao-desenhar de _um -sistemas). Isto toma, então, evidente que: 1) as fronteiras dos vários
plano realizável. Ao fim de uns meses o trabalho já não era de ninguém
sistemas (ou sub-sistemas) são permeáveis, i.é, permitem a passagem
em particular, ·mas de todos em geral, e as educadoras sentiam-se muito
selectiva de informação, e 2) a compreensão de cada sistema ou sub- Hierarquia
envolvidas na sua tarefa de.-estar com crianças que são ainda muito dos sistémicu
seus-pais ..Poi'"isso, não lanientavam ter deixado·de.lado a programação -sistema (desde o individual ao mais alargado) requer o conhecimento
que inicialmente tinham delineado para abordar aquele projecto. Algu- dos contextos em que participa, o que obriga não só à análise das
mas.vezes ela tiriha sido útil no ·desenvolvimento das novas estratégias. relações horizontais (i.é, aquelas que ocorrem dento do mesmo sub-
Em-casa·dos Sousa/Santos, Ltúsa nem .sempre entendia a ·conversa de
Carlos que aí continuava "os sonhos'' do Jardim .. Clara e Joaquim ficavam
perplexos ao verem Ivo entrar num reino que ninguém lhe tinha especifi-
camente apresentado mas que> afmal, era tão somente o de todas. as crian- z,i Uma breve análise de cada um destes sub-siste1nas será realizada no ponto 2

ças ... deste capítulo. No capítulo seguinte abordaremos a forma como estes diferentes sub-
-sistemas vão co-evoluindo ao longo do ciclo vital da família.
25
E todos os outros que dela faziam parte e a constituíam, embora menos visíveis
nesta história e nesta realidade.
44 ,~
45
(Des )Equilíbrios familiares
·------------------- c~J'7
faIIlília como sistema
~
•.
1

-sistema) como das relações verticais (oll seja, as que acontecem entre acrescenta que: "'A linguagem obriga-nos a ordenar dedutivamente os
diferentes sub-sistemas e sistemas). A esta hierarquia de sistemas (ou dados de forma linear. Influenciados, sem nos darmos conta, pelo
sub-sistemas) em relação chama-se hierarquia sistémica. método linguístico aceitamos e, mais ainda, reforçamos a noção de que
0 universo está organizado sob uma base linear e sob um modelo de
- ) Como sistema a família goza, naturalmente, das mesmas pro- causa-efeito. Uma vez que a linguagem exige um sujeito e um predi-
priedades dos sistemas abertos (Bertalanffy, 1972). cado, aquele que realiza a acção e aquele que a ela se submete,
'"''""'''" Atendendo à propriedade da totalidade, e de acordo com um dos acabamos por concluir que essa é a estrutura do mundo'.( ... ) Estamos
j se11s corolários - o da não somatividade - não podemos reduzir a pois prisioneiros da incompatibilidade absoluta entre os dois sistemas
· família à soma dos seus elementos (ou componentes) nem dos seus primários em que vive o ser humano: o sistema vivo, dinâmico e cir-
atributos (ou características). A vida da família é algo mais do que a cular, e o sistema simbólico (linguagem), descritivo, estático e linear.
soma das vidas individuais dos seus componentes, pelo que tem senti- (. .. ) Dado o carácter descritivo e linear da linguagem, somos obriga-
do observar a lnteracção e equacionar o seu desenvolvimento como dos, para descrever uma transacção, a efectuar uma dicotomia Olt a
sistema 'totaP 6 • De acordo com outro dos seus corolários - o cl'l impos- introduzir uma série de dicotomias. ( ... ) Esta necessidade ( ... ) exige
sibilidade de estabelecimento de relações 1mjlaterafa ~ o ~ornporta­ inevitavelmente um antes e um depois, um sujeito e um objecto ( ... ).
mento de cada um dos seus membros é .iniffsso_ciivel · d~. cornporta- Isto comporta um· postulado de causa-efeito e, consequentemente, urna
~ento dos restantes e ~qúiloqúe Ih~ acontece afecta a família no seu/ definição moralista" (Palazzoli et ai., 1978, 51-53). Assim, o modelo
conjunto (tanto ao nível dos indivíduos como das relações do sistema). sistémico acabou por--r--e~lizar um movimento contra o qual inicial-
. Nesse sentido, toma-se importante analisar o comportamento indivi- mente se rebelou. Embora tendo possibilitado que o indivíduo deixas-

l dual no contex.t.o em que o mesmo ocorre, passando o foco. de análise


a ser necessaria1nente ecossistérnico. V
l
Afitn>ar que a f~í,li~ •é ;im todo. µão µ()s pode, no entanto,. fazer
se de ser visto como a causa e a explicação do seu problema, acabou
por permitir que se imputasse à família a responsabilidade explicativa
do(s) disfuncionamento(s) observado(s). Como adiante (re)explicitare-
esquecer que existem indivíduos. Esse foi o reducionismo da prirneirj mos, o equilíbrio homeostático do sistema assi~ _o exigia numa formu-
cibernética que n;ificou a noção de família-sistema, acabando. por coµ- lação que deixava os sujeitos e o próprio sistema presos de um jogo de
ferir-lhe uma existência material substituti_va do próprio indivíduo. forças, sem autonomia nem individualidade próprias. A ideia de auto-
Dessa forma a ideia de circularidade foi atraiçoada pela preocupação -organização, hoje vista como uma das propriedades do sistema fami-
da descoberta de uma causalidade linear tão própria da nossa cultura. liar, permitiu-lhe recuperar a autonomia e a capacidade de decisão e
Com efeito, o nosso quotidiano está impregnado por urna permanente chamou de novo a atenção para a importância do sistema individual.
busca de porquês, de causas explicativas dos comportamentos realiza- Mas a ratoeira linguística e a cultura judaico-cristã continuam a ser
dos ou dos fenómenos observados, por uma sistemática tentativa de uma poderosa arma que nos atraiçoa o pensamento e nos dificulta o
redução simplificadora da realidade que nos envolve e com a qual acesso à circularidade e à complexidade.
interagimos. Já Palazzoli falava do poderoso e inevitável condiciona- .De acordo com a propriedade da equifinalidade, um mesmo objec- E11uifi11alhlllde

mento linguístico que nos aprisiona, i.lizendo que "a linguagem é, com tivo pode ser atingido a partir de condições iniciais diferentes ou
efeito, linear enquanto que a realidade viva é circular". Citando Shands através de caminhos diferentes. Dito de outra forma, a condições ini-
ciais idênticas podem corresponder resultados diferentes e vice-versa,
dado que as interacções familiares, e a sua evolução ao longo do ciclo
'-
6
A este assunto dedicaremos o próximo capítulo.
vital, são fundamentais para o processo que se organiza em tomo de
(_ (_ - ~ ~

46 ~)i: 47
(Des )Equilíbrios familiares -,~'. Família como sistema

uma finalidade 27 • Em termos práticos, esta propriedade leva-nos a rela- acontece a um dos elementos de uma família (p.e. o pré-adolescente
tivizar a noção de risco e a dar particular realçe à noção de resiliência, que, após ter controlado os seus esfincteres, voltou a fazer xi-xi na
individual e familiar. Com efeito, o facto de sabermos que, p.e., 0 . carna) é necessário termos uma visão circular29 das interacções, i.é,
alcoolismo de um dos progenitores está, entre outros aspectos, fre- · cada um dos comportamentos tem que ser equacionado no jogo com-
quentemente associado a situações de negligência e violência em plexo de implicações, acções e retroacções que o liga aos restantes (no
relação ao filhos e ao cônjuge, a situações de dificuldade/insucesso e, caso acima referido o rapaz não é enurético por ter qualquer problema
por vezes, absentismo escolar dos filhos, a dificuldades económicas da de natureza urinária30 , por ter ingerido líquidos ao jantar3 1 ou por ser
família e a situações de desemprego ou emprego precário do al- descuidado; naquele caso, o xi-xi foi um comportamento "eleito"32 pela
coólico, não significa que, em todas as famílias com P.I. alcoólico, esta família para todos comunicarem a necessidade que tinham da presença
seja a evolução observada. A propriedade da equifinalidade ajuda-nos, e do cuidado dos restantes elementos, numa etapa do ciclo vital que
pois, a compreender expressões que usan1os vulgarmente no nosso supunha a aquisição de uma maior autonomia individual por parte de
q11otidiano - "nem sei como é que eles aguentam; noutra família28 já cada um deles e n1una família em que a comunicação se fazia, prefe-
alguém tinha 'pirado': primeiro foi a morte inesperada do pai, depois rencialmente, de forma triangulada"). A esta recursividade de
os problemas das dívidas e a perda da casa, a seguir a ida para outra retroacções se chamou anel de feed-back.
cidade e o refazer de toda uma vida ... e eles estão sempre bem hu- Habitualmente distinguem-se dois tipos de retroacção: a negativa
morados, alegres, disponíveis ... os miúdos estudam bem, a comuni- e a positiva34 •
cação circula facilmente, amigos é o que mais têm ... é uma família que A retroacção negativa constitui um mecanismo de regulação que
parece que tem mel!" ou, pelo contrário, "uão sei o que se passou com permite, de forma auto-correctiva, manter o sistema estável; desta
os Silva: parecia correr tudo tão bem ... de um momento para o outro a forma, ela corrige os efeitos dos factores, internos ou externos ao sis-
filha engravidou, a mãe alcoolizou-se e o casal desfez-se"; "já no caso tema, que poderiam modificar o seu equilíbrio. O exemplo clássico
dos Costa, quando a filha apareceu grávida, tudo correu de forma dife- deste tipo de retroacção é, como vimos, o do funcionamento do ter-
rente: inicialmente as coisas balançaram um bocado mas depois todos
se entenderam, a Rita trabalha e estuda ao mesmo tempo, a mãe fica-
-lhe com a bebé e o pai ajuda-lhe a cobrir as despesas ... até casa ela
conseguiu arranjar. .. é um Tl mas é o suficiente para ela e para a i Por contraponto à causalidade linear, designou-se esta por_çausalidade circular.
9

miúda". 111
Este é, aliás, um elemento necessário à realização do diagnóstico diferencial.
11
"º"º"°''" A propriedade da retroacção diz-nos que o comportamento de um Embora essa seja, muito frequentemente, uma razão invocada pelas famílias
elemento não é suficiente para explicar o comportamento de um outro que, por isso mesmo, tentam que a criança reduza, ao máximo, o consumo de líquidos
ao jantar ou a partir do fim da tarde.
elemento e vice-versa. Assim, para podermos compreender o que
n Falamos, naturalmente, de um movimento conscientemente não voluntário.
33
A existência de uma triangulação rígida entre os pais e o filho fazia com que
27 Toma-se, pois, evidente que o princípio da equifinalidade enfatiza a importân- este últitno se definisse como "árbitro" da casa e não desejasse crescer para além dos
cia da estrutura do sistema em detrimento da sua génese. "A evolução dos sistemas faz 15 anos de idade.
14
com que as suas características actuais dependam mais da estrutura actual da inte- Ilya Prigogine introduziu a noção de retroacção evolutiva que, completando as
racção do que do seu estado inicial passado" (Marc e Picard, 1984, 27). Por essa razão teorias da retroacção negativa e positiva, procura explicar os mecanisn1os da mudança
a análise sistémica privilegiou a análise sincrónica, do aqui e agora da interacção, em descontínua: "em certas condições, as flutuações do sistema familiar, amplificadas
detrimento do ponto de vista diacrónico. pe!a intervenção terapêutica, dão origem a modificações importantes das interacções
2 " Supõe-se uma, em que idênticas crises acidentais tivessem acontecido. familiares" (Benoit et a!., 1988, 452).

...._ .•.,_;,,__
48 49
(Des )Equilíbrios familiares família como sistema

móstato. É importante realçar, no entanto, que estabilidade não é na gestão da informação recebida: conceptualizada como sistema auto- i
sinónimo de imobilidade. Com efeito, os movimentos auto-correctivos worganizado, a família passa a ser vista como autónoma na regulação ./
implicam sempre uma certa mudança, de pequena amplitude, que não de todo este processo. Mais concretamente, o sistema familiar é enten-!
introduz alterações qualitativas no sistema. Adiante desenvolveremos dido como informacionalmente aber(o e organizacionalmente fechado,
esta ideia a propósito da noção de mudança de 1ª ordem. 0 USe]a;,--õ ·sTS-tém·a -c-r:r~--as suas próprias -det~fffiinaçõ~s e as suàs
A retroacção positiva introduz, no funcionamento do sistema, a próprias finalidãdésírifogrando-asiiifürmiiÇõés que recebe. ... .· .
noção de mudança qualitativa, possibilitando-lhe o crescimento e a ~O ·erivo não é, então, feito ao nível da chegada da informação,
criatividade, i.é, permitindo-lhe atingir um nível superior de comple- externa ou interna ao próprio sistema, mas o que acontece é que ele é
xidade. Está, pois, inegavelmente associada à mudança de 2ª ordem. capaz de, autónoma e espontaneamente, modificar a sua estrutura, de
Contrariamente ao que uma leitura menos atenta poderia inferir, forma a criar as condições necessárias à sua sobrevivência, ou de per-
não existe uma correlação directa entre um ou 011tro tipo de retroacção manecer idêntico.
e o seu valor. Por outras palavras, a retroacção positiva não é melhor Aplicadas à família, as noções de organização e de estrutura arti-
do que a negativa ou vice-versa. É a utilização que o sistema familiar culam-se, então, da seguinte forma:
delas faz que as qualifica como úteis ou inúteis para os objectivos e - A organização reporta-se ao conjunto de relações que constituem
necessidades da família. Como adiaute veremos há alturas em que a o edificio familiar nos seus componentes básicos. Para utilizarmos
família, para manter a sua coerência e a sua própria sobrevivência, tem urna metáfora arquitectónica diremos que a organização engloba os
que realizar mudanças de 1ªordem e momentos em que tem que desen- alicerces (família de origem e família extensa), os andares (família
volver mudanças de 2ª ordem. nuclear e seus sub-sistemas) e o telhado (finalidades da família
nuclear), assim como o conjunto de relações estabelecidas entre estes
A família, enquanto sistema, é, já o dissemos, um todo. Mas ela é, vários componentes e cujo cálculo foi necessário para estabelecer o
também já o afirmámos, parte de outros sistemas, i.é, de contextos tamanho do edificio, o tipo de materiais a utilizar na sua construção e
mais vastos com os quais co~evolui, tais como a comunidade ou a a orientação da casa (história familiar, mitos familiares, segredos
sociedade. Dadas as trocas que estabelece com o exterior, a família é familiares). O espaço envolvente (ruas de acesso, parques de esta-
um sistema aberto: dele recebe um conjunto de influências ao mesmo cionamento, espaços verdes, mercearia, etc.) fala-nos já das relações
tempo que o intluencia. Na sua evolução, porém, o sistema familiar vai que a organização familiar tem com outros sistemas.
regulando esta abertura ao exterior, ora fechando-se ora abrindo-se, i.e, -A estrutura é o conjunto de relações que se estabelecem em cada
realizando movimentos centrípetos e centrífugos de acordo com as etapa da vida da família e que lhe vão conferindo configurações par-
suas necessidades e as suas características 35 • ticulares" sem nunca lhe modificar a identidade básica. Na referida
Auto. Quando o sistema familiar era visto como auto-regulado metáfora, a estrutura reflecte-se na cor da pintura exterior e interior da
-organi:tação
(cibernética de primeira ordem), ele dependia totalmente do tipo de casa, na arrumação das salas e dos quartos, na ocupação que é feita dos
retroacção recebida: assim, o seu grau de abertura ou fecho depende- mesmos, nos elementos decorativos, etc. Mesmo que a vinha virgem
ria da informação recebida, quer do exterior quer do interior do próprio
sistema, e o processo perdia em dinamismo para ganhar em mecani-
6
cismo. A prática clínica, porém, veio mostrar a autonomia do sistema > Como poderemos ver no capítulo 2, estas configurações são desenvolvidas a
partir da entrada de novos elementos (p.e., de uma criança que nasce) e da saída de
outros (p.e., de um filho que sai ou de um progenitor que se vai embora), assim corno
Js No capítulo seguinte desenvolveremos, com mais pormenor, este aspecto. da transformação do jogo de alianças e de coligações existentes no sistema.
i
-::L_
-~-~~!- (_ (__-...._.__ l_____.--.,J \ __ ~,-- \_-~-_,,.,.\____ '------~ .,.._,,.,""\- , ____.._ ___ \ __ "'r---M--- , _,,,..., ___., ~- ~,---~' •,,.~- ----"!I'-·---'-" ,_____ -- ""'-:,_.- --~·-«1 ------------- ___...,,._......,_, -~....----i _/ .,. __ --'----) ~·~-' ~-_-'----_j ·-----L

50 ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~-
51
(Des )Equilíbrios familiares Família como sistema

lhe passe a cobrir as paredes e q11e a trepadeira lhe empreste novas Dissemos já que no interior da família existem totalidades mais Principio
cores, que as madeiras tenham sido pintadas de novo ou que os pais pequenas - os s11b-sistemas - elas próprias partes do todo familiar. É na ""1ºgrnmátko
tenham mudado de quarto para criar nm espaço de escritório, que o medida em que cada unidade sistémica é, simultaneamente, parte e
mobiliário do quarto dos filhos tenha sido alterado, que os sofás te- todo que Minuchin (1979, cit. in Relvas, 1996b, 11) a define como
nham sido trocados e que as canalizações tenham sido substituídas, a holão: vindo do grego, halos significa todo enquanto que o sufixo ão
casa continua basicamente a mesma, só mais ajustada ao tempo pre- sugere uma partícula ou parte. Cada holão é, ao mesmo tempo, um
sente e às crises (naturais) com que se foi deparando. Mesmo que a todo e uma parte "não mais um do que o outro, sem que um rejeite ou
casa se confronte com problemas inesperados (crise acidental) (p.e., a entre em conflito com o outro". Assim, o indivíduo é, por um lado,
mudança da porta da entrada, o fecho das janelas do rés-do-chão sul e uma parte da família e da comunidade a que pertence, mas, por outro
a abertura de duas novas janelas no lado noroeste, dada a abertura de lado, nele habita e reconhece-se essa mesma família e essa mesma
uma nova rua no terreno verde adjacente), ela continua a permanecer comunidade. Estamos perante o que Morin (1992, 100-101) designa
idêntica a si própria. por princípio hologramático. "Esta ideia aparentemente paradoxal
Pensamos ter assim clarificado a diferença entre organização e imobiliza o espírito linear. Mas, na lógica recursiva, sabemos muito
estrutura familiares, bem como o sentido da expressão de que a família bem que o que adquirimos como conhecimento das partes reaparece no
é um sistema que muda a sua estrutura mantendo a sua organização todo., O que conhecemos sobre as qualidades emergentes do todo, todo
face às situações de crise (natural ou acidental). V que não existe sem organização, reaparece nas partes. Assim podemos
É importante compreender que ao ser autónomo o sistema fami- enriquecer o conhecimento das partes pelo todo e do todo pelas partes,
liar não despreza a relação que tem relativamente aos restantes sis- num mesmo movimento produtor de conhecimentos. A ideia holo-
temas. Tal como acontece com cada sujeito particular: para sermos gramática está, pois, ligada à ideia recursiva". As implicações práticas
independentes temos que ser dependentes, mais concretamente temos desta concepção são extraordinárias. Com efeito, podemos trabalhar
que vincular-nos. Como diz Morin (1992, 89): "A noção de autonomia sistemicamente apenas com uma pessoa e fazer terapia familiar apenas
humana é complexa pois ela depende de condições culturais e sociais. com um dos seus elementos, tendo como objectivo ajudar o próprio a
Para sermos nós próprios é necessário que aprendamos uma língua, compreender o que de si está no todo e o que do todo está em si bem
uma cultura, um saber e é necessário que essa cultura seja variada para como pensar com ele de que forma é que esse circuito de interacções
que possamos fazer uma escolha no stock das ideias existentes e para lhe permite, ou não, desenvolver-se de forma gratificante e nutriente.
que possamos reflectir de forma autónoma. Esta autonomia alimenta-
-se, pois, de dependência". E acrescenta (idem, 31-32) que "( ... ) a in-
teligibilidade do sistema deve ser encontrada, não apenas no próprio
sistema mas também na sua relação com o meio ambiente, sendo que
esta relação não é uma simples dependência mas é constitutiva do
[próprio] sistema".
Em síntese, podemos dizer que a diferença entre um sistema a11to-
·organizado e um sistema auto-regulado funda-se, fundamentalmente,
na capacidade de decisão do sistema e não tanto na sua abertura à
informação .

.......
j
·..~
:,-,,;

2
Estrutura da família

As interacções que se desenvolvem entre os vários elementos de Padrões


transaccionais
uma família organizam-se em sequências repetitivas de trocas verbais
e não verbais que se vão construindo no dia-a-dia familiar, como resul-
tado de adaptações recíprocas, implícitas e explícitas, entre os seus ele-
mentos. Estas sequências, que Minuchin ( 1979) designa por padrões
transaccionais, regulam não só as trocas afectivas, cognitivas e com-
portamentais dos diferentes membros como lhes especificam papéis
particulares.
Dois sistemas de forças revelam-se importantes para a organiza-
ção e manutenção destes padrões transaccionais: o primeiro com-
preende as regras universais de organização da família (p.e., a hierar-
quia de poder e a autoridade pais-filhos, a complementaridade entre
marido e mulher); o segundo diz respeito às expectativas específicas
de cada sistema familiar cuja origem se perde em anos de negociações
explícitas e implícitas, muitas vezes já esquecidas.

Todos os sábados os Silva almoçavam fora, aproveitando a tarde


para passear. Esse era o dia da família. Ao domingo a mãe entregava-se
às lides domésticas, enquanto o pai ia ter·com os amigos. Era tão habi-
tual ser assim que o casal Silva já tinha esquecido que essa fora uma das
combinações pré-matrimonais. Os filhos, em idade escolar, nem sabiam
que essa era uma convenção. A regra clarificou-se quando algumas festas
de anos dos amigos das crianças, ao realizarem-se ao sábado, confron-
taram a organização que esta família fazia do fim-de-semana.
'"-.. ~!

54
'----- -t.'---'--;'"l, _ _ _,_,_-.:.-,.• \ __ "'-·"-"'-- ----"---~---' ~-~"--
- ---".,,-;.- __;

55
(Des)Equilíbrios familiares Família como sistema

Estrutura É este modelo de relações, definido na e pela família, que A pouco e pouco-foi-se sentindo mais confiante e capaz de decidir. No
Minuchin (1979, 67-69) designa por estrutura: mais propriamente emprego começou a tornar algumas iniciativas e a experimentar um incó-
define-a como "a rede invisível de necessidades funcionais que orga- modo crescente com o papel de simples executante. O chefe não percebia
niza o modo como os membros da família interagem". Enquanto cons- -o que se-passava com João, anteriormente-tão pacato e trabalhador. Agora
tructo teórico, a estrutura da família corresponde, então, à imagem que começava a confrontá-lo em algumas das suas decisões. Não é que não
podemos ter do funcionamento deste grupo tendo em conta os se- tivesse razão mas o chefe era ele!
guintes parâmetros: "quem, com quem, para fazer o quê, como, quan-
do e onde?" No sub-sistema conjugal", composto por marido e mulher, a com- Conjugal

plementaridade e a adaptação recíproca são aspectos importantes do


Numa família em que a mãe diz a um dos .filhos "tu não és pai do teu seu funcionamento. Uma boa gestão da simetria permitirá, a cada ele-
irmão; se ele faz asneiras eu ralharei com ele", mento, manter a sua zona de individualidade. Uma das funções deste
temos clarificado um sub-sistema executivo M
sub-sistema é o desenvolvimento de limites ou fronteiras que protejam
crianças
e um sub-sistema fraternal. 0 casal da intrusão de outros elementos (tais como as famílias de
origem ou os filhos) de modo a proporcionar-lhe a satisfação das suas
Noutra ·familia, se a mãe diz "sempre.que e11 não estou é a vossa necessidades psicológicas. Desta forma, constitui uma plataforma de
innã que toma conta de vós", vemos existir uma criança
MCP suporte para o casal lidar com o stress intra e extra familiar. O sub-sis-
parentificada que partilha o sub-sistema executivo
outras crianças tema conjugal é ainda vital para o crescimento dos filhos, servindo-
enquanto o sub-sistema fraternal engloba
as outras crianças. -lhes de modelo relacional para o estabelecimento de futuras relações
de intimidade.
O sub-sistema parental, habitualmente constituído pelos mesmos Parental

Suh-;istemas Afirmámos, anteriormente, que os diferentes componentes do sis- adultos mas agora com funções executivas, visa a educação e pro-
tema familiar organizam-se em unidades sistémico-relacionais deno- tecção das gerações mais novas. É a partir das interacções pais-filhos
minadas sub-sistemas. Nl1ma família podemos encontrar, fundamen- que as crianças aprendem o sentido da autoridade, a forma de negociar
talmente, quatro. e de lidar com o conflito no contexto de uma relação vertical. É tam-
\mliviúual O sub-sistema individual é composto pelo indivíduo que, para bém no contexto desta interacção que se desenvolve o sentido de filia-
além do seu estatuto e função familiares, tem, também, funções e ção e de pertença familiar.
papéis noutros sistemas. Esta dupla pertença cria-lhe um dinamismo O sub-sistema parental pode variar na sua composição. Por vezes
que se repercute, naturalmente, no seu próprio desenvolvimento e na inclui um avô ou uma avó, ou ambos, outras vezes uma tia, um padri-
forma como ele está em cada um desses contextos. nho ou mesmo um irmão mais velho. Os pais podem até não fazer
parte desta estrutura. O que interessa saber é quem desempenha as
João era um homem-tímido, apagado, temeroso; mais disposto a que funções e as tarefas que lhe são inerentes.
tomassem conta dele~ "Gostaria de . ser diferente: destemido, com ·iniciati-
va e -capacidade -de-liderança.. Mas não era! Felizmente, no emprego,
tivera sempre.um chefe à altura, capaz de lhe dizer o que.devia fazer. João
era um primoroso e honesto executante. Casou tarde: curiosamente com -1
7
Uma análise mais detalhada das funções de cada sub-sistema e da forma como
uma mulher insegura e muito dependente,- de quem teve que tomar conta. as suas interacções evoluem ao longo de todo o ciclo de vida da família é apresentada
no capítulo seguinte.

~c-L_
56 57
(Des)Equilíbrios familiares família como sistema

Frntema! O sub-sistema fraternal, constituído pelos irmãos, representa, fun- deles, da hierarquia de poder e do sistema de alianças e coligações teci-
damentalmente, nrn lugar de socialização e de experimentação de do, podemos construir urna (ou mais) hipótese(s) estrutural(ais) sobre
papéis face ao mundo extra-familiar, primeiro em relação à escola e 0 referido sistema. As cartas ou mapas estruturais não são mais do que
depois em relação ao grupo de amigos e ao mundo do trabalho. É neste representações gráficas dessa(s) rnesma(s) hipótese(s). Na medida em
sub-sistema que as crianças desenvolvem as suas capacidades rela- que nos permitem aceder a um conjunto de informações relativas às
cionais com o gn1po de iguais, experimentando o apoio mútuo, a com- relações actuais existentes entre os membros do sistema, são dinâmi-
petição, o conflito e a negociação nas brincadeiras solidárias e nas cos e temporários, como se fossem zooms que o observador faz da
''guerras". estrutura que analisa. Mas como o observador é, também, um elemen-
to participante da observação realizada, estes mapas exprimem os ele-
Fronteiras O facto de os sub-sistemas terem, como acabámos de descrever, mentos que, naquele momento, foram significativos para si e que a
ou limites
funções diferentes mas estreitamente relacionadas, de as mesmas pes- família evidenciou no quadro em que estava inserida. Pode o leitor
soas poderem pertencer, simultaneamente, a diferentes sub-sistemas e ficar com a ideia de que os mapas são, então, construções demasiado
de a estrutura familiar variar, de forma adaptativa, ao longo do ciclo de subjectivas e aleatórias da realidade que pretendem enquadrar. Não
vida da família, tudo isto toma necessariamente vital a definição clara será tanto assim já que a construção da(s) hipótese(s) estrutural(ais)
de limites ou fronteiras". Metaforicamente considerados como "linhas faz-se com base nas redundâncias encontradas. E, em qualquer dos
divisórias", os limites permitem regular a passagem de informação casos, a observação e intervenção familiares resultam sempre de cons-
entre a família e o meio, assim como entre os diversos sub-sistemas. truções conjuntas realizadas pelos técnicos e pelas famílias.
Enquanto regras que definem "quem participa no sub-sistema e como Para a construção destes mapas é importante atender à expressão
o faz", os limites visam proteger a diferenciação do sistema e dos seus verbal e analógica das interacções familiares, expressas no setting de
membros. Com efeito, o desenvolvimento das competências interpes- observação, bem como às informações comunicadas sobre interacções
soais adquiridas nos sub-sistemas depende do grau em que cada sub- vividas ou desejadas. Existe um conjunto de símbolos que se utilizam
-sistema mantém a s11a autono·mia, protegendo-se da ingerência dos habitualmente para simplificar esta representação da dinâmica familiar
restantes. (Benoit et ai., 1998, 45-47; Minuchin, 1979, 70).
Minuchin (1979) distingue três tipos de limites: os claros (que
delimitam o espaço e as fünções de cada membro ou sub-sistema, per- M·indica mãe, P indica pai. Rl corresponde ao filho mais velho, Ra2
mitindo, contudo, a troca de influências entre os mesmos), os difusos refere-se à segunda filha. RIO também pode significar rapaz de dez anos
(marcados por uma enorme permeabilidade que faz perigar a diferen- e Ra8·indicar uma rapariga de oito anos.-CP assinala a:·criança parentifi-
cada. Eº refere-se a. esposo e Eª a esposa.
ciação dos sub-sistemas) e os rígidos (que dificultam a comunicação e
a compreensão recíprocas).
A linha continua sinaliza fronteiras rígidas entre
os sub-sistemas. Identifica uma barreira quase
Mapas Partindo da identificação dos indivíduos e sub-sistemas de um sis- intransponível no que toca à comunicação entre
familiares
tema familiar, do tipo de fünções e de limites existentes entre cada um os diferentes membros da família.

A linha descontínrui indica uma delimitação clara


entre os diferentes sub-sistemas, permitindo a co-
municação de afectos, problemas, etc.
is Sendo equivalentes estas duas designações utilizá-las-emos indistintamente.
-~:~~IJ ·~ \~~;:

58
~.;,,,:$!·

-
(Des )Equilíbrios familiares
~· ~
_
,.,._..~
__ ___..

'---~

59
Família como sistema

Com fronteiras difusas entre o sub-sistema conjugal -~~ ...............~~.


O-pontilhado indica a existência de limites fluidos e o-sub-sistema-parental, os adultos desviam M-ff--/P
e de pouca demarcação entre os sub-sistemas. o conflito para _a criança que ~ca, então, triangulada. "-..,R
-Revela um· sobreenvolvirnento relacional intra-familiar.

Um conflito entre indivíduos, ou no interior de --11--


uma díade, é representado por uma linha NVVVVVV-. No mapa seguinte, o conflito intra-familiar 'M /VVv',/\ P

interrompida ou-quebrada. é agido, pelo filho, no exterior. '2,_ R r1'1'

A chaveta identifica a existência de uma coligação


/\
de dois elementos contra um terceiro. } Neste sistema familiar, estabelecem-se fronteiras rígidas
entre o filho· mais velho e o sub-sistema parental M P
Uma seta junto de .um dos elementos, a apontar e entre aquele e o sub-sistema fraternal. I
Rn R;~-R7.~;

para fora-do mapa, indica que· esse rriembro está I Entre os restantes sub-sistemas os limites são claros.
desviado ou ausente do sub-sistema a que pertence.

Duas linhas paralelas colocadas entre dois A partir da diferenciação e permeabilidade dos limites, as famílias Tipologia

indivíduos sinaliza uma relação forte. estrutural


podem ser escalonadas num continuum que vai de um pólo emara-
nhado (fronteiras difusas) a um pólo desmembrado (fronteiras rígidas)
Três linhas paralelas colocadas entre dois
(Minuchin, 1979).
indivíduos assinala uma implicação excessiva
ou uma relação fusional.
Família emaranhada Família desmembrada
Uma seta orientada para um elemento -----------------
ou sub-sistema assinala o desvio do conflito. I~imites difusos Limites claros Limites rígidos

As famílias emaranhadas seriam famílias que, dominadas por


movimentos centrípetos e pelo mito da unidade familiar, se fecham Fanoili~'
.:maranhadas
sobre si mesmas, desenvolvendo o seu próprio micro-cosmos. Assim,
Vejamos, então, alguns exemplos: promovem e alimentam um exagerado nível de intercâmbios e de preo-
cupações entre os diferentes elementos, reduzindo as distâncias inter-
Nesta família as fronteiras são claras e os adultos pessoais e misturando as fronteiras entre gerações, sub-sistemas e indi-
detêm o poder executivo. M P
Na fratria respeita-se a ordem de nascimento. Rl R2 R3 ---------- víduos. Os papéis familiares são rígidos e um dos pais é, frequente-
mente, colocado numa posição one-down. Num acentuar deste movi-
Proximidade afectiva e distância indispensável
parecem equilibrar-se, filiando-se cada elemento
mento interno, estabelecem fronteiras rígidas com o exterior. A indife-
ao mesmo tempo que se lhe possibilita a autonomização. renciação do sistema intrn-familiar pode restringir as suas capacidades
de adaptação, tomando extremamente stressantes todas as solicitações
60 61
(Des )Equilíbrios familiares parnília como sistema

de autonomia que são, aliás, vistas como faltas de lealdade para com u Nesta família, as fronteiras entre os sub-sistemas são extremamente
sistema familiar. O sofrimento de um dos membros tem uma reper- ;:Jdifusas. Há momentos em· que a mãe detém o poder executivo M
cussão imediata no comportamento dos restantes, observando-se uma Ra2 R:.1
invasão maciça das fronteiras pelas dificuldades que ecoam em todos ·:_;-há muitos períodos em que os três elementos estão todos
os sub-sistemas. Dadas as dificuldades vivenciadas ao nível do proces- '--~:·-aO·mesmo nívef,.profundamente enredados, M:Ra2: Ral

so de separação-individuação, esta configuração familiar encontra-se há alturas em que Filipa é parentificada. MR,2
.... ·R;.;···
extremamente associada a sintomas de natureza psicossomática.

As famílias desmembradas, pelo contrário, seriam aquelas em que f'amílias


d~s1n~mb1adas

, '/-;;:
__
se estabelecem fronteiras excessivamente rígidas no seu interior e
Mafalda tinha 13 anos e repetia o 7° ano de escolaridade. Filipa, coffi. e! difusas com o exterior, numa profusão de movimentos centrífugos. Os
12 anos, frequentava o mesmo ano e a mesma tunna. Mais responsável, .---~'(­ intercâmbios comunicacionais entre os sub-sistemas ton1am-se dificeis
era muitas vezes encarregada de tomar conta da irmã, vigiando-lhe aj --.::i e as funções de protecção da família estão diminuídas. Os membros
tendência p_ara gastos excessivos de detergentes, ou outros· prodtitOS--·_ ;~j destas famílias funcionam de forma individualista, num registo que
domésticos, e regrando-a no consumo de doces. Ana; a mãe, queixava-se---t~_ não é de verdadeira autonomia mas antes de cut-off emocional: preco-
das inúmeras brigas que as duas tinham. Eram disputas sem grande,_:2;-: cemente expulsa para a vida social, a nova geração não foí adequada-
importância, daquelas que os irmãos costrunam ter. O que as tomava insu- mente socializada. Os papéis parentais são instáveis, apesar da sua
portáveis era o seu carácter recorreúte, a permanente solicitação da mãe , aparente rigidez. A agreSsividade e os comportamentos anti-sociais
como elemento mediador e o eco que, naturalmente,_ tinham nela. Ana~ ·._J evidenciam estas rejeições e a entrada precoce e conflitual dos jovens
Filipa e' Mafalda eram muito unidas. Ficaram- ainda mais depois da mori~ j
na vida social. Muitas vezes, um dos filhos fixa a atenção dos pais e
do pai. Sem família_ por perto, com algumas dificuldades económicasj5 ~ _
dos interventores sociais. Estes sistemas familiares toleram uma
particularmente depois da morte do marido, Ana ocupava todo o tempo: <~1 a grande diversidade de variações individuais nos seus membros e o
trabalhar: como empregada doméstiCa, durante_ a semana, e como cozi~-- 5~:t
nheira ao fim-de-semana. As filhas ajudavam-na nesta tarefa. Filipa e 4 sofrimento de um deles dificilmente ultrapassa as fronteiras, muito
Mafalda tinham poucas amigas-e quase só saíam de casa para ir à escola~- _ '.::.! rígidas, que separam os diferentes elementos: habitualmente, só em
A casa, milito pequena, tradUzia~ na-ocupação feita do espaço, a extrema_:'.:- níveis muito elevados de sintomatologia é que procuram ajuda.
ligação que existia ·entre esta mulher e as suas duas filhas:_ rotativamente;<-
uma das filhas dormia com a mãe, não sendo possível que cada uma.dela$ ,;--!. ~ Carlos estava a chegar aos vinte anos. Matrículado no 1Oº ano
tivesse a sua cama; guarda-roupa só havia um_ para as três. Verdadeira_.-.-:;; voltara- a reprovar por faltas. Dormia até às três da tarde e chegava a casa
metáfora desta família era a gestão que era feita de grande parte da roupa~--~--{ quase de manhã. Muito agressivo com a mãe, nas palavras e nos com-
sobretudo das malhas- e de algumas-saias: sem dono definido, cada uma-?-'1- portamentos, estava sempre a exigir-lhe dinheiro (para droga, supunha a
dessas peças era da pessoa que, nessa- manhã, dela primeiro se apoderava·-~; senhora). Pontualmente coligava-se com o pai (desempregado e alcoóli-
o que, naturalmente, potenciava mais algumas zangas e aborrecimentos;·.':- co) para atacar a mãe. Quando ambos se punham a fumar e a dizer-lhe que
Quando se perguntou a Filipa como se imaginava quando adqlta, disse-::._:-_'.- os-deixasse-em paz ela não os suportava. Estava farta de ter que, sozinha,
-nos que se via médica, vivendo-perto da mãe que tomaria conta da sua .J-. ganhar para o sustento-da casa. Já pedira à psiquiatra do hospital q11e, à
criança. Mafalda imaginava-se solteira, vivendo e trabalhando com a mãe._,_,~; força, internasse o marido para nova desintoxicação. O Carlos tinha saído
numa pastelaria que com ela teria montado. As suas vidas sociais conti-:-./,:J-- melhor de um internamento psiquiátrico. Durante cerca de 15 dias mos-
nuavam, como hoje, quase reduzidas a zero. -~:.\! trou-se mais afável, cooperante e falador. Rapidamente, porém, voltou ao
,- ,-

····~ ru w m w ro ·fj~ w ~· 111 L~t'" ~ m . ··i,jj Uj ·ru··· i:h tu t~·· l~t . ~'~
fil
(Des )Equilíbrios familiares
t
. ·'i\'
63 "'"
~F'.:'.am'-;íl;:-ia~c=o=m=o~si=s=te=m=a=-----·-----------------

comportamento-hàbitual. Num dia em que se aborreceu com a mãe e com :}f__;_ signifique disfuncionalidade; há famílias com uma tradição de grande
o pai pegou fogo.ao-quarto- e espatifou a carrinha· que a mãe -utilizava para-/+< ligação emocional mas que revelam uma adequada capacidade de
fazer o seu trabalho de feirante. A-filha.mais velha, mãe solteira antes dos-:· desenvolvimento de indivíduos autónomos; uma família, com filhos
vinte.anos, abandonara a-casa dos pais e, desde então,-tinha tido uma série adolescentes, que está imigrada será, muito provavelmente, mais
de empregos precários. Achava que o pai- e o irmão eram casos -perdidos_-:,>
emaranhada do que uma outra que permanece na sua comunidade ori-
e que a-mãe devia abandoná-los e viver sozinha. ginal.
Na família nuclear, actualmente constituída pela mãe,
Sendo extremamente simples e clara, esta tipologia estrutural de
pelo__ pai e pelo-Carlos, é claramente a mãe Minuchin revela-se útil por diversos motivos. Por um lado, permite
que-detém o poder executivo. M utilizar uma linguagem comum na compreensão e classificação dos di-
·O pai está colocado ao-nível do filho ~PIR ferentes sistemas familiares. Por outras palavras, possibilita, aos técni-
e as fronteiras são rígidas entre todos os elementos. cos, o entendimento mútuo e a certeza de que falam mna mesma lin-
guagem. Por outro lado, e pelo facto de basear-se na estrutura familiar,
Por vezes, pai-e filho permite-nos visualizar e compreender a posição e o funcionamento dos
coligam-se contra a-mãe. ~}M diferentes sub-sistemas desde o primeiro contacto com a família. A
possibilidade de representação gráfica dessa mesma estrutura (através
dos mapas familiares) constitui um elemento de avaliação da própria
Apesar de definir estes funcionamentos extremos e de associar- evolução do sistema em apreço. Finalmente, ao chamar a atenção para
-lhes certo tipo de sintomas, Minuchin (1979) salientou os seguintes a necessária evolução estrutural da família, ao longo do ciclo vital,
aspectos: alerta-nos para o aspecto dinâmico desta avaliação.
a) não existe uma diferença qualitativa entre famílias funcionais e A principal limitação desta tipologia consiste no perigo de reifi-
famílias disfuncionais; todas as famílias se situam num continuum cação dos extremos como entidades próprias e distintas e da sua assi-
pontuado pelos pólos acabados de descrever; milação à disfuncionalidade familiar. Perigos estes para os quais o pró-
b) é possível encontrar, numa família funcional, periodos de maior prio autor nos alerta, tal como já anteriormente referimos.
emaranhamento (p.e., no período da formação do casal ou da etapa
com filhos pequenos) ou de maior desmembramento (p.e., na ado-
lescência ou na saída dos filhos de casa), adaptados à etapa do ciclo
vital em que a família se encontra;
c) numa mesma família podem existir diferentes tipos de limites
entre os vários sub-sistemas ou elementos (p.e., pode observar-se uma
relação mais ou menos enredada entre uma mãe e uma criança e um
pai ausente e com limites rigidos com a mãe);
d) é fundamental, na apreciação valorativa do grau de emaranha-
mento ou de desmembramento de uma família, situá-la no contexto
cultural de que faz parte assim como na sua história familiar: p.e., as
famílias da Europa meridional são habitualmente mais emaranhadas
enquanto as do norte da Europa são mais desmembradas, sem que isso
--···--------------------------

~-----------------­ - - - - -
Comunicação na família

De acordo com Jackson (1981, cit_ in Gameiro, 1992, 192-193), a


família "é um sistema regido por regras: os seus membros comportam-
-se entre eles de uma forma repetitiva e organizada e este tipo de estru-
turação dos comportamentos pode ser isolado como um princípio
director da vida familiar".
Se quisennos conbecer as interacções familiares e se pretender-
mos compreender a forma corno as mesmas se estruturam e con-
tribuem para o desenvolvimento familiar e individual torna-se, então,
fundamental identificar o padrão que representa a repetição ou
redundância das mensagens trocadas; e não tanto o conteúdo das
referidas interacções. Por outras palavras, é a estrutura dos processos
de comunicação que importa conhecer, enquanto conjunto de regras
implícitas e tacitamente respeitadas por todos os elementos do sistema,
já que ela constitui a 1natriz de base dessas mesmas interacções.

Os aspectos comunicacionais do sistema fainiliar foram essencial- comu11icaçã..,

mente estudados pela escola de Palo Altow Considerando a comuni-

jÇ Para além do grupo de Palo Alto (coordenado por Gregory Bateson) diversos
investigadores de várias áreas do saber (desde a Antropologia à Linguística, passando
pela Sociologia e pela Etnologia), espalhados por vários pontos do continente ameri-
cano, procuraram formular urna teoria geral da comunicação que fosse além do "ino-
deio telegráfico" de Shannon e da sua ideia de comunicação como um acto verbàl,
consciente e voluntário. Trocando informação e discutindo os resultados das suas
investigações, mesmo antes de estas serem publicadas, estes estudiosos constituíram
aquilo que se designou por Colégio Invisível (Bateson et ai., 1981 ).
CIÍJ,
. ,-"' /"'' ,/--

lk.f
--- ---,,_--
w ·..L.
m . •
PÜr ·~ LJ ·,;111,J,; 1.... ·~·
l~lt~ ·"a..; ta>· ~J *'~-~ li.r;l ,,_-~- k,;JI '4~1.;;;i í ...;ll '"i.hí.14i." ···. kailó

66 · - - - - - - - - - - - - '1;;f« 67
~F~run~í;;;li:a-:c:o:m;::o;::s;::1.
s:;;te;::m;::ra_________ ·------·-------
(Des )Equilíbrios familiares

.;;
cação como um processo social que integra míiltiplos modos de ·com- forma como esse significado é produzido e compreendido) e a prag-
portamento (tais como a palavra, o gesto, a mímica, o olhar), as men- mática (qne se ocupa dos efeitos da comunicação no comportamento).
sagens só têm sentido quando compreendidas no contexto em que É, obviamente, desta última que vamos ocupar-nos.
ocorrem (espaço inter-individual). Contrariamente à ideia de Shannon,
a escola de Palo Alto entende que o sujeito está não tanto no início e 7 >A dimensão pragmática da comunicação focaliza a sua atenção na
Pragmática d~
comunicação
no fim da comunicação (modelo do telégrafo) mas participa nela, "relação que une emissor e receptor enquanto relação mediatizada pela humana

criando, com os outros e com o próprio contexto, essa comunica- comunicação" (Marc e Picard, 1984, 40). Dessa forma, não isola a
ção (modelo da orquestra). Retoma-se, assim, o sentido original da ·relação mas estuda-a no ambiente em qne ela se desenvolve, i.é, no
palavra latina comunicare que significa pôr em comum, estar em contexto em que se produz. Como já anteriormente dissemos, mas não
/-.-, relação. será demais repetir, "A comunicação humana é constituída por sinais
De_acord()comvvatzlawick, Beavin e Jackson(J<:)93,46},a in- verbais, corporais e comportamentais. Ora, se observarmos do 'exte-
teracçãopode ser definida como uma ''série de mensagens trocadas rior' uma interacção entre duas ou mais pessoas, podemos notar que
entre P.e§soas" e a comunicação refere-se a todo e qualquer comporta- certas sequências se repetem e que os mesmos comportamentos se
mento (verbal, não verbal e para verbal"): "todo o comportamento implicam mutuamente. ""Éstas repetições são designadas como
"('
numa ~i~aç_ão ihtCtàcCiÜÜal _tem valor de mensagem , _ist_o_ é,_ é cornu- --/.
41
redundâncias e a sua análise permite estabelecer as leis de comporta-
nicação; ( ... ) [por isso] por muito que o indivíduo se esforce é:!he/' mento e elaborar os embriões de 'sistemas' de comunicação" (idem,
impossível não comunicar" (idem, 45). Desta forma, não podemos 41). É importante sublinhar que este tipo de análise supõe sempre a
dizer que a comunicação só acontece quando é intencional, consciente clarificação do contexto em que a comllilÍcação ocorre já que o mesmo
ou bem sucedida, i.é, quat1do ocorre compreensão mútua. Todo o com- é um elerI?-epto cº:ç__sti_t_µirit,ç _ dessa mesma comuni~_a_,ç_ã,ç_.__ _
portamento, incluindo o silêncio, constitui 11ma comunicação, mesmo _ / Partindo do postulado de que todo o comportamento é comuni-
quando não é desejado ou consciente. A__c:ornl!nicaç1ío f1111cional cação e de que é impossível não comunicar pois é impossível alguém
define-se pela sua capacidade de unir, de ligar, de pôr em relação os não se comportar, Watzlawi~ck e seus colaboradores ..identificirram
parceiros comunicacionais e a comunicação disfuncional, ou patológi~ cinco regras básicas da comunicação funcional, habitualmente conhe-
e.~'-- _é aqu.ela que afasta os parceiros ou cria entre eles um écran de cidas CO~o os cinco ª-~~-~IJ:laS da. prag_mática da comunicaç~_o humana.
incompreensão e ressentimento.
- De acordo com o 1º axioma - de que "é irnpossível não comu- J." axioma

A comunicação humana pode ser estudada segundo três dimen- nicar" - tudo aquilo que dissermos ou fizermos, consciente ou incons-
sões: a sintaxe (que tem como objectivo a transmissão das informações cientemente, intencionalmente ou não, constitui uma comunicação.
e que se debruça, entre outros aspectos, sobre os problemas da codifi- Dizer, então, que o "problema daquela família é que eles não comuni-
cação, os canais de transmissão e a recepção da mensagem), a semân- cam" 011 que "não conseguimos comunicar" significa, fundamental-
tica (que se preocupa com o sentido/significado da mensagem e com a mente, que a comunicação existente não ~cional, i.é, não permite
ligar os indivíduos mas apenas os afasta: Por outras palavras, nestes
411 A comunicação não verbal é constituída pelos gestos e pela mímica e a como~ casos, quanto mais se comunica mais se desenvolvem sentimentos
nícação para-verbal engloba vocalizações não digitalizadas, tais como suspiros, gru- negativos entre os parceiros comunicacionais que, dessa forma, se
nhidos, etc. compreendem cada vez menos e se afastam cada vez mais. ~
41 De acordo com Watzlawick, Beavin e Jackson (1993, 46), mensagem é uma

unidade comunicacional isolada.


68 69
(Des )Equihbrios familiares Família como sistema

oistorsues Apesar do que acabámos de dizer, todos sabemos que há situações cação. Provavelmente, durante o tempo restante, os parceiros vigiar-
em que não queremos participar na comunicação proposta. -se-ão, wn tentando recomeçar e o outro tentando não ser novamente
solicitado.
João entra no avião que o vai levar a Bruxelas. Sabe que tem duas
A rejeição que João acaba por fazer tem a virtude de ser clara.
horas- de descanso, em que nem o telefone nem- o. telemóvel tocam, em Repeí~'ii"

que ninguém chega com papéis para assinar. No cais de embarque não viu· pode ser desagradável, pode gerar embaraço mas não deixa dúvidas. A
ninguém conhecido o que lhe deu a satisfação de nem sequer ter vizinha levantou-se e procurou um novo interlocutor.
"fazer conversa" durante a viagem. É até-possível que ponha- algum Uma outra forma de negar o compromisso co1nunicacional é a for- Formay·üo

em dia. Chegado a Bruxelas as- negociações- que vai estabelecer exigem· mação do sintoma: ao adormecer João comunicou qualquer coisa do do.1imum,_,

dele uma atenção e disponibilidade totais e daí a sua satisfação por este tipo: "não me importaria de falar consigo mas algo mais forte do que
"interregno comunicacional". Instalados os passageiros, o avião faz-se eu, e de que eu não sou responsável (o meu sono), impede-me". A vizi-
pista e levanta voo: Terminados os avisos sonoros, João co1neça a insta;;. nha não aceitou esta negação, não "'vil1" o sintoma e continuou a comu-
lar-se no seu "sossego e ibernação" quando a vizinha do-lado "mete con- ··(: nicar da mesma forma. João podia tê-lo amplificado até que a vizinha
versa". Para não ser- mal_ educado nem excessivamente desagradável~. 0 "visse" e o seleccionasse como uma comunicação que aceitaria e que
João vai respondendo monossilabicamente, ou com pequenos "hum, ... integraria no desenvolvimento da sua comuuicação. Ou podia ter
amm, ... hum"; às interpelações e ao débito verbal da- sua parceira
desenvolvido outro sintoma que se articulasse melhor com aquela
viagem. Ao fim de dez minutos está furioso com ela, que o obriga a par-
interacção. Esta é, sem dúvida, urna forma muito comum de distorção
ticipar numa conversa que não lhe interessa, e com ele, que não sabe
como sair da situação. Fecha os olhos e passa mesmo pelo sono. Mas do primeiro axioma. Pela sua manifestação comportamental, pela
vizinha, que nem dá conta do seu adormecimento ou que acha que dimensão involuntária de que habitualmente se reveste e pelo incómo-
espectáculo da luz que se coa entre as nuvens é demasiado belo para do ou sofrimento que causa, o sintoma conduz frequentemente à soli-
ignorado, chama-o, desperta-o e continua a conversa. Sentindo que nem citação de ajuda e abre a porta à reorganização da comunicação no sen-
o sono o salvou, João ganha coragem e diz-lhe: "desculpe, mas na reali~ tido de a tomar mais fuucional.
dade não quero conversar, quero é descansar". A vizinha fica ligeiramenté. Uma outra forma de evitar o compromisso comuuieacional con- De.1,11w!ifi1,;";;J11
amuada mas cala-se. Passado uns minutos levanta-se e vai' sentar-se· ao siste na desqualificação da comuuicação. Através da incoerência do
de uma outra passageira que parece aceitar com agrado a sua conversa; discurso, das mudanças bruscas de assuuto, da utilização de declara-
ções contraditórias ou de interpretações erróneas, da realização de
interpretações literais de metáforas ou de interpretações metafüricas de
comentários literais, do uso de um estilo obscuro, de maneirismos da
Aceilw;iio Este exemplo permite-nos compreender que, não deixando de fala ou de frases incompletas, o parceiro que pretende não comunicar
comunicar, temos várias formas de tentar evitar o compromisso que a· pode fazê-lo de um modo que invalida a sua própria comuuicação e a
comunicação solicita. A aceitação (passiva) que João começa por fazer, do outro. Como diz Watzlawick, Beavin e Jackson (1993, 71), estas
tentando não se envolver na comunicação, habitualmente não resulta. comunicações constituem uma "arte subtil de nada dizer dizendo algu-
Se o parceiro está mesmo interessado em comunicar, ignora o desin- ma coisa".
teresse que os monossílabos e a postura de enfado ou desinteresse ,.,.
transmitem e continua a falar. Em parceiros mais sensíveis e menos ( Todos sabemos que a comunicação é mais do que uma mera troca 2." axioma
empenhados naquela comunicação, este tipo de comportamento pode D de informação (conteúdo), pois, enquanto ingrediente da interacção,
'
'~ ser interpretado como uma forma, pouco clara, de terminar a comuni- l ela obriga neeessariaménte à definição do tipo de relação que une os
~
«"';_(

lb 1:0- .··~ib ~rÜ w ili w ~6 .~k


l.d -l.IU'
~l~-td
'').,i;
··~. i,.i:.k ··(b1 -· \O· td w b:J t..b w
70 71
(Des)Equilíbrios familiares família como sistema

interlocutores. De acordo com o 2º axioma, "toda a comunicação tem Decorre do que acabámos de dizer que a comunicação serve,
dois níveis, conteúdo e relação 42, sendo que o segundo classifica o então, para confirmar a definição que cada nm faz da relação e de si
primeiro e é, por isso, uma metacomunicação". Dito de outro modo, próprio. "Isto é como me vejo a mim próprio": se os outros respondem
toda a comunicação, transmite, por um lado, uma informação sobre os algo do tipo - "Estás certo" - confinnam aqnela definição e contribuem
factos, as opiniões, os sentimentos, as experiências de quem comuni- para o desenvolvimento e para a estabilidade dos sujeitos envolvidos
ca/ Mas, por outro lado, ela exprime também, directa ou indirecta- na relação.
rnente, qualquer coisa sobre os int~locutores e, dessa forma, constitui- No entanto, as distorsões comunicacionais são também possíveis Oistor•/ies
-se como urna metacomunicação. A metacomunicação é, então, uma a este nível, podendo ocorrer: a) uma confusão, quando os parceiros
comunicação sobre a comunicação: podemos metacomunicar sobre o não fazem mais a distinção entre conteúdo e relação, on b) uma
conteúdo on sobre a relação. Em muitas comunicações o conteúdo é rejeição on c) uma desconfirmação, quando existe uma incompatibili-
anódino ou secundário e a primeira função da mensagem situa-se ao dade entre os parceiros no que diz respeito à fonna como eles definem
nível da relação. Este nível pode exprimir-se de muitas maneiras: umas a sua relação e a sua imagem do Eu.
vezes fazemos isso de forma verbal e explícita ("és meu amigo, deves No caso da confusão, os parceiros discutem conteúdos mas, na Conf~:,il,1

fazer-me isto"); mas na maior parte das vezes é a linguagem analógica realidade, o que pretendem é definir a relação ou, mais propriamente,
ou o contexto que o clarificam (na frase anterior, a afirmação "tn és o qne cada parceiro procura é ser ele a ter a última palavra. Continuar
meu amigo" pode traduzir-se por um sorriso, um gesto on um olhar, a discutir conteúdos, embora seja o mais frequente, não permite aos
pelo qne apenas se diz "deves fazer-me isto"; se é o patrão que diz, no parceiros resolver o problema.
contexto de trabalho, "fazes-me isto?", é óbvio que essa pergunta se
torna uma ordem).
Nos sistemas contínuos de interacção, como é o caso da família, Carlos e :Sofia·tinham iniciado uma·· terapia de casal para "verem se
vimos qne há regras que definem a relação de forma relativamente ainda era possível salvar- o seu:casamento". Uma_.das muitas ·acusações
0

estável. Os rituais sociais (tais como as saudações, as congratulações, que mutuamellte-se· faziam dizia respeito à gestão dos dinheiros e.à ·rmali-
as cartas, os presentes, etc.) são disso um claro exemplo, pois servem -zação da casa em que .habitavam: .Sofia achava -que .Podiam pedir um
para reassegurar os parceiros de que a sua relação não mudou e de que :empréstimo e acabar rapidamente a casa para-viverem mais confortavel-
eles continuam a estar de acordo com a definição qne dela fizeram. No :mente; ·Carlos·-entendia que não deviam dar dinheiro a.ganhar ao-banco
(ou ao Estado) e que era preferível ir fazendo as obras que faltavam à
entanto, uma mensagem pode pôr em causa esta definição: imagi-
.medida que iam tendo dinheiro disponível. Todas as tentativas.de:equa-
nemos que dois amigos se encontram e que um não responde à
cionar esta questão estavam_votadas ao fracasso pois o que Carlos e ·Sofia
saudação do outro. A mensagem metacomunicativa (p.e. "passa-se 'indirectamente discutiam era a questão de saber qual .deles _podia tomar
alguma coisa entre nós?") tem como objectivo verificar a interpretação decisões respeitantes ao_próprio casal e à família: A escitlada- simétrica em
feita sobre o comportamento ocorrido e clarificar o nível relacional do que.tinham entrado resultava da impossibilidade de·_gerirem uma simetria
comportamento do parceiro comnnicacional. É nesse sentido que se , funcional, equilibrada pela sua articulação com períodos· de .complemen-
diz que a metacomunicação constitui urna condição sine qua non da taridade oscilante.
comunicação bem sucedida ou da comunicação funcional.

No caso da rejeição (traduzida por uma afirmação do tipo "Estás Rejeiçân


n Bateson chamou índice ao primeiro nível (i.é, ao conteúdo) e ordem ao segun-
do nível (i.é, à relação).
errado") torna-se necessário redefinir a relação. Mas, apesar disso, a
72 73
(Des )Equilíbrios familiares família como sistema

re;e1çao pode ser construtiva já que é clara a comunicação da não Criada pelo linguísta Benjamin Lee Whorf e retomada por
aceitação de um conteúdo que pode, por isso mesmo, ser substituído. Gregory Bateson, a expressão "pontuação da sequência dos factos" (ou
acontecimentos) designa duas coisas: ,____________
Algum tempo mais tarde Sofia diz a Carlos que não suporta mais a) Por um lado, refere-se ao modo como os parceiros decompõem
ele seja sempre tão imaturo, que esteja sempre à espera que seja ela a sua comunicação numa sequência de acontecimentos. Frequen-
decidir e acrescenta que gostava que ele também aceitUsse as suas fraque- temente, esta pontuação é cliferente de UlJl para outrointerlocutor
zas e os seus medos e que congregasse as suas forças para tomar conta cada _um C()_n_~idera -~- __s_e1:l__ com,p~:rtªi~1_e:_µt~"c_olnO--uma-resPOSta- a;~-~~­
si próprio e para a ajudar nos seus momentos de indecisão ou porta111e11to. do outro, ignorando a circularidade do próprio processo
Desta forma, Sofia recusa a definição que- Càrlüs faz da relação e de
comunicacional. Tal é a situação do marido que entra em casa e se isola
próprio (como homem que precisa de uma "mãe" que cuide dele),
para não ouvir as recriminações da mulher. Esta, por seu turno, diz que
mesmo tempo que abre as portas para que ele desenvolva uma imagem'
mais valorizada dele próprio (capaz de congregar as-suas forças) e para-· as suas recriminações são motivadas pelo silêncio do marido e pelo seu
que a relação de ambos se transforme (tomandü-se mais complementar comportamento de isolamento. O fenómeno da profecia que se auto-
poderá vir a aceitar mais facilmente as áreas de simetria). -cumpre radica exactamente neste tipo de atribuição. Pensando que a
mulher o vai recriminar, o marido, 1nal entra em casa, isola-se e
De,1n111firm<1(,iJ<, Diferente é a situação criada pela desconfirmação, traduzida por defende-se por trás de tun jornal que supostamente lê. A mulher
uma afirmação do tipo "'Não existes'~: neste caso não é apenas o con- comenta, zangada: "eu já sabia que não me ias ligar nenhuma; só tens
teúdo mas é a própria existência do Eu do sujeito que é negada. olhos para esse maldito jornal".
b) Por outro lado, designa o ponto de vista que cada parceiro tem
Todas as refeições, quando Rosa perguntava ao marido o que é-que sobre o seu comportamento e sobre o do seu parceiro. Desta forma, um
ele achava da comida, Rui dizia-lhe, invariavelmente, que estava tudo mesmo comportamento pode ser conotado ou interpretaclg_de_forma
muito bom. Mesmo quando os pratos tinham sido menos bem consegui- diferente, o que pode conduzir a ambiguidades ou conflitos. É o caso,
dos, Rosa começava' a ter a impressão de que aquilo que fazia era com- p.e., de uma mãe que se queixa de que tem que ±ázersernpre-de media-
pletamente irrelevante para o marido e já se perguntava se ele tinha, ou - dora entre o filho e o marido; "caso contrário eles não conseguem
não, necessidade dela. Sentia-se cada vez mais negada como pessoa. falar". Por seu turno, o pai queixa-se de que a mulher se interpõe entre
ele e o filho pois "ela não suporta que nós nos falemos na sua ausên-
cia e sem a sua interferência". V
3.'' uxioma Nas suas comunicações, o desacordo entre os parceiros, situe-se A discrepância na pontuação deve-se,-então, ao facto de os indiví- Oislon;iin
ele ao nível do ~cc:il!t"lÍclºJ .da relaç;ãg ou de. ambos, resulta sempre de duos suporem que têm a mesma informação, quando de facto não têm,
um desacordo na forma como os mesmos pontuam as sequências de ou ao facto de considerark que os outros devem extrair as mesmas Di.1·crep<i11C'i<1
acontecimentos/Por muito lata que seja a nossa análise, dada a circu- conclusões que o próprid. Na base desta última distorção está a con- nu pon111w.Jlu

laridade da cornw1icação, nunca a conseguiremos abarcar na sua tota- vicção de que só existe uma única realidade, reminescência do tempo
lidade/Por isso a pontuamos, marcando-lhe um início e um fim. Esta em que o Eu não se distinguia do Objecto .. Como facílmenff·se com-

l
pontuação organiza os acontecünentos e por isso é vital para as in- preenderá, só pela metacomunicação a pontuação discordante poderá
teracções em curso. De acordo com o 3º axioma, "a natureza de uma ser ultrapassada, já que o problema repousa sobre o nível da relação.
1
relação está na contingência da pontuação das sequências comunica- Tentar resolver uma diferente pontuação partindo apenas do nível do
cionais entre os comunicantes". i../ conteúdo é uma operação que está votada ao fracasso.

1
1w •-i.11 t0<w w w w 1ü tÜ! [d- .JÜ ~ l-1.l··· u r;d-- (àj vik lii.l -.J...l! l.Ai• - t:ilili ~---;;

"'-""'
-

74 .75
c------
(Des)Equilíbrios familiares '"'t f amília como sistema
---:'.:'(-
·'O{

[J-
Embora a rnetacornunicação constitua nrn instrumento fundarnen- ~; Raúl gostava muito da Carla e decidiu dar-lhe a conhecer os seus
tal para o desenvolvimento de uma comunicação funcional, o recurso:-;;';!_ sentimentos .pois ·pretendia começar a -namorar com ela. Durante dias
à mesma pode estar dificultado ou impossibilitado por diversas razões. ;f; :preparou o discurso que-lhe ia fazer. Burilou-o até ao último pormenor:
Há famílias que têm corno regra, explícita ou implícita, que as dis- ':, cuidou das pausas que iria fazer, das palavras que iria usar. No dia mar-
cordâncias devem ser evitadas a todo e qualquer preço pois elas podem i cado_ foi ter com a Carla- e- começou o discurso. No frm ambos .tiveram
conduzir ao conflito. Completa esta regra a ideia de que quanto mais J uma sensação estranha: Raúl achou que não tinha conseguido dizer a
se conversa mais se aumenta o perigo do desentendimento. Há outras · caria que-a amava e esta ficou sem saber se RaÍll era sincero ou estava a
· gozar com ela. Depois _de algum silêncio e de muito embaraço, Raúl
famílias que consideram que os sentimentos e as emoções são algo tão
esqueceu o discurso preparado e, com a voz um pouco trémula e os olhos
íntimo ou tão evidenciador das vulnerabilidades pessoais que criam a
· 'brilhantes, disse à Carla: "eu gosto muito -de ti e ·queria namorar contigo;
regra de nunca falar sobre eles. O medo de que a relação possa
quari.do não te vejo.sinto a tua falta, preciso -d~ sentir-o teu.cheiro e a tua
posta em causa pelo facto de comunicar-se sobre a sua definição faz respiração; não sei-o que é que tu sentes por mim, tenho medo de que me
com que não se metacomunique sobre ela e se reduza a comunicação digas que não~ mas eu preciso e quero estar-mais contigo". Tímidamente
ao nível do conteúdo. Há casos em que a existência de assuntos tabu tocou-a, como a reforçar o que-acabava-.de-dizer...
dificulta igualmente todo o comportamento rnetacornunicativo. Depois ficou-à espera, receoso da reacção da Carla-mas com a sen-
sação de que, para além da sua boca, o seu _coração tinha falado. O mesmo
4." axioma Ao comunicarmos utilizamos dois tipos de códigos: um é objecti- _·experienciou Carla que -lhe disse que não sabia ainda bem _o que ·sentia
VC),cerebral, lógico, analítico e coustitui .a linguagem eia_ cÍência, d.a mas que gostava de começar a ·namorar, até para poder avaliar os seus
explicaç1[o, eia interpretaçã.o; o outro é afectivo e imagético, uti!izafi- próprios sentimentos.
guras, metáforas, símbolos (Marc e Picard, 1984}. Istornesrno nos diz
o 4º axioma ao postular que "os seres humanos comunicam digital e
analogicamente". O primeiro código submete-se às leis da sintaxe e da Este pequeno relato mostra-nos, fundamentalmente, duas coisas:
semântica e serve-se de signos arbitrários.· O segundo exprime-se normalmente ternos necessidade de recorrer aos dois tipos de lin-
recorrendo à simbolização de tal forma que o significante tem urna guagem e, habitualmente, utilizamos a linguagem digital para comu-
relação analógica com o significado.· Se alguém cuja língua desco- nicar informação (nível do conteúdo) e a linguagem analógica para
nhecemos nos pergunta as_ h_oras fle_c_ert_o ~ão- consegi.iiffiüs cüiripteeii~" clarificar o nível da relação.
c!eto q\Jeçlit.;.rnas senos olhainterrogativamrnteao mesmo ternpà que Dado que à linguagem analógica falta urna boa parte dos elemen- Dislon;ào

aponta e bate no.pµl,;gs:squerdo rapidamente perceb.ern(2S o que dese- tos sintáxicos da linguagem digital, a sua tradução supõe que se jun-
ja e lhe respondemos utilizando os dedos das mãos. Este segundo tem elementos ao material recolhido no sentido de o interpretar. Cada Erni.t
de tradução
código socorre-se, então, de sinais que têm uma relação imediatamente um de nós associará aspectos que resultam da forma como vemos a
evidente_cgrno q_ue pretendemos significar:IA_linguagern digital (!º relação e da experiência que temos dos contextos relacionais em que
código) é tl1flitlPIS:Citi'1_1llliS é 111eJ1()S capaz de1e_kar perpassar os sen- nos desenvolvemos. Como facilmente se compreenderá a tradução da
_
timentos, -ª~ eip__oções, ~s _nl:'_a~cf!S -SUbtiS dfls PróPflãS mensagens. A comunicação analógica em digital pode comportar erros de tradução
linguagem analógica (2º códfg;) -dcixa--mais espaço à interpretação que potenciam o disfuncionamento da comunicação.
pessoal e é menos precisa, embora seja muito rica do ponto de vista
afectivo-emocional. t.,,,/" De acordo com o 5' axioma "todas as permutas cornunicacionais 5." axioma

ou são simétricas ou complementares, conforme se baseiam na igual- J


·~

76 71
(Des )Equilíbrios familiares Família corno siste1na

;~'.![

dade ou na diferença". Na interacção simétrica os indivíduos tendem a j apenas o comportamento evidenciado. Assim, uma transacção será
reflectir o comportamento um do outro, minimizando as suas dife" i simétrica se a segunda mensagem é similar à primeira e é complemen-
renças e amplificando as semelhanças comunicacionais. Tomemos . :'.j tar se a segunda mensagem é diferente da primeira e lhe responde. A
como exemplo dois jogadores de damas ou de xadrez: numa interacção ·. :i análise das transacções pennite definir três tipos de posições: superior
claramente simétrica, ambos vão utilizar estratégias que lhes permitam cf.J, inferior(~) e simétrica ( s )".
ganhar e anular ou diminuir as possibilidades de progressão bem suce- :;
<lida do seu parceiro. No momento em que um dos parceiros utilize , Luís pede à mulher que lhe corrija um relatório que tem que entre-
uma estratégia que complemente a jogada do rival, a posição relativa ! gar no serviço: tem algumas dúvidas relativrunente à correcção formal do
de ambos modifica-se e o jogo finaliza rapidamente com o sucesso de' :.f texto e acha que a mulher lhe pode fazer uma revisão segura(~ ). Esta faz
um ou de outro.\Na interacção comple1Ilep._lar, o comportamento de um (~) e, depois, mostra ao marido as correcções propostas. Este aceita-as
(~), à.excepção de mna em que acha que o sentido fica alterado pela cor-
sujeito complemertfao do outro, maximizando-se, então, as diferenças'
existentes entre ambos. Protótipo de uma i~t~r~~?ã~cotnpleJJ1entar é~- ;
-, r~cção (1). Conversam sobre isso e a mulher concorda (~}com a pers-
•pectiva do marido ( f. ).
relação mãe-bebé ou a relação professor-aluno: as competências doS.( · ,, No dia seguinte o marido diz que tem que ir trabalhar no Sábado pois
parceiros articulam-se de fonna a que ambos se entreajudem no s~~ti: ;[ tem imenso serviço acumulado. A mulher responde que também ela tem
do de ultrapassarem as suas insuficiências e de potenciarem as suás:." , -:-que realizar um trabalho nesse Sábado e não pode ficar todo o dia- sozi-
competências. Na mteracção complementar, ambos os parceiros sãoi .nha com o filho pois ele está sempre a interrompê-la ( S-S ).
solidários na definição das suas relações e as posições, de nm e de'
outro, definem-se reciprocamente. As relações saudáveis caracterizam-se pela presença dos dois
Na comunicação complementar podemos distinguir duas po- modelos de interacção (simétrica e complementar): a sua alternância,
sições: a one-upe a one-down. Na primeira, o indivíduo dirige e_detém. no mesmo domínio, mas em tempos distintos, ou em áreas diferentes,
a responsabilidade ela interacção; na segunda o sujeito ajusta-se ao é uma condição necessária ao desenvolvimento de comunicações fun-
comportamento do outro e responde à sua iniciativa. No entanto, é cionais. A relação de casal é disso um claro exemplo".
como já dissemos, na complementaridade funcional as posições não A patologia comunicacional pode surgir por distorção de cada um Disto1<;ões
são impostas mas são reciprocamente definidas, caracterizando-se a destes modelos. A rigidificação da relação simétrica conduz à escalada
funcionalidade comunicacional pela oscilação das posições comple- simétrica, em que cada um dos parceiros quer não só mostrar-se igual E.w:u/ada
mentares. Para voltannos aos exemplos anteriores: na relação profes- ao outro como tem para com ele o mesmo comportamento que ele teve sim~1rwu

sor-aluno o professor tem geralmente uma posição one-up (por exem- para consigo. A competição desenfreada e a rivalidade passam a ser as
plo quando está a explicar uma matéria, quando define a metodologia notas dominantes deste modelo de interacção ("Sais à noite para ires
de ensino e de avaliação); mas há momentos em que pode ser o aluno ter com os teus amigos e eu não trato dos teus cães"). Na complemen- ('1m>pfrmen.
a assumir essa posição (quando, p.e., traz novas informações sobre o taridade rígida a fixação imutável das posições conduz a relações do luridadH rígida

assunto em estudo, que o professor desconhece, ou, quando comple-


menta aquilo que o professor disse com infonnações ainda não intro-
Num mesmo modelo há uma sequência lógiCa de comportamentos (p.e., ~ ~ ,
0
duzidas na comunicação mas que são pertinentes para o desenvolvi'
menta da mesma). l ~ ;S-S, S-S), o que nos permite prever o(s) comportamento(s) seguinte(s) a partir
da observação das sequências comwlicacionais. Se aquela sequência se rompe (p.e.,
- / A classificação de uma relação como simétrica ou complementar
~~ , ~ S), surge conflito, ruptura ou questionamento da interacção.
supõe que se tome como unidade de análise a própria interacção e não 44
Abordaremos mais detalhadamente este a<>sunto no ponto 1 do capítulo 2.
'ui ···~ ld w w W' w lU IÚld lD u,;r Lb [d ··iQ utl tu 1.U IU w í.JJ ti• 1.tl
78 - - - - - - - - - - - - - - 11 _c7c;;9_ _ _ _- c - · - - - - - - -----
(Des )Equilíbrios familiares ~~t Família como sistema
:]
tipo: opressor-oprimido, competente-incompetente, vitimador-vítima, A injunção paradoxal pode ser definida corno "uma ordem que Injunção
etc. Como se compreende, este tipo de interacção não permite o desen~ contém em si própria urna contradição tal que aquele a quem ela se pora<loxal

volvimento de relações maturativas para ambos os parceiros. Dado que dirige não lhe pode responder de forma satisfatória" (Marc e Picard,
na escalada simétrica predomina a rejeição do Eu do outro e na com- J984, 63). "Sê espóntâneo" ou "Deves amar-me" são afirmações claras
plementaridade rígida predomina a desconfirmação, a patologia da ·· de uma injunção paradoxal. O paradoxo advém do facto de que se
interacção complementar é mais corrosiva do que a da interacção exige simetria no quadro de urna relação que é definida corno comple-
45
simétrica mesmo que esta seja, por vezes, n1ais espectacular . mentar.
Os ingredientes fundamentais da irtjunção são, então, os seguintes:
Comunicação
A comunicação paradoxal constitui urna outra forma de comuni- a) existe um forte relação complementar entre os parceiros;
paradoxal cação patológica e é responsável pela criação de situações fortemente b) no quadro dessa relação é dada urna ordem que deve ser obe-
perturbadoras da interacção intra e inter-sistémica. A mensagem para- decida mas que também deve ser desobedecida para que seja obedeci-
doxal pode definir-se corno "urna mensagem cuja estrutura comporta da48 (com efeito, não pode ser-se espontâneo por ordem de outrém):
urna tal contradição que comunica, ao mesmo tempo, dois conteúdos c) a pessoa que está na posição one-down é incapaz de sair do
incompatíveis" (Marc e Picarei, 1984, 62). Embora existam três tipos quadro de relação e de resolver o paradoxo metacornunicando.
de paradoxos" - paradoxos lógico-matemáticos (antinomias), defmi-
ções paradoxais (antinomias semânticas) e paradoxos pragmáticos - é Injunções paradoxais múltiplas, discordantes ao nível digital e
destes últimos que nos iremos ocupar dada a focalização que vimos analógico, criam situações de double-bind às quais os parceiros difi-
fazendo neste estudo da comunicação no seio do sistema familiar. cilmente escapam, dado que elas alimentam-se recursivamente 49 e
Os paradoxos pragmáticos são aqueles que têm uma influência no exigem a presença de um terceiro para que se introduza a possibilidade
comportamento do sujeito". Podem subdividir-se em duas categorias: de rnetacomunicação, única forma possível de quebrar o círculo vi-
a injunção paradoxal e a previsão paradoxal. cioso que o double-bind criou. Muitas vezes esta metacomunicação só
é possível pela utilização de um double-bind terapêutico.

45 Exemplificativo deste tipo de interacção simétrica é o filme - A guerra dos

Rases, de Denny de Vito: iniciando-se com um contexto de interacção simétrica


4
(leilão), a relação entre Barbara e Oliver Rose é sempre marcada pela simetria. A esca· " Desta forma, a injunção paradoxal difere da injunção contraditória. Nesta últi-

lada acentua-se com a perspectiva de divórcio e eleva-se a um ponto em que só a morte ma há duas alternativas mutuamente exclusivas rna.<> a escolha de uma delas é possí-
de ambos a pode fazer cessar. vel: o resultado pode não ser dos mais agradáveis mas a saída é possível optando-se
"" Para um conhecimento mais detalhado deste assunto recomendamos a leitura por uma alternativa e não realizando a outra (p.e. não posso guardar o bolo e comê-lo
de Watzlawick, Beavin e Jackson (1993). ao mesmo tempo: ou o como ou o guardo). Na injunção paradoxal há uma falência da
47 Os efeitos do paradoxo na interacção humana foram estudados por Bateson, própria escolha já que a afirmação supõe em si mesma uma contradição. Para uma
Jackson, Haley e Weakland que, em 1956, publicaram o famoso artigo Toward a theo- análise mais completa desta temática aconselhamos a leitura de Watzlawick, Beavin e
(F of schizophrenia: nele se clarifica a fOrma como as situações de double-bind per· Jackson (1993, 168-208).
~ Como afirmam Watzlawick, Beavin e Jackson (1993, 193) "( ... )o duplo vincu-
9
manente permitem o desenvolvimento de um compo1iamento diagnosticado como
esquizofrénico. Desta forma, a esquizofrenia passa a ser vista como "um padrão lo não pode ser, na natureza da comunicação humana, um fenómeno unidireccionaL Se
específico de comunicação" e não como "uma doença misteriosa da mente do indiví· (... ) uma dupla vinculação produz um comportamento paradoxal, então esse compor-
duo" (Watzlawick, Beavin e Jackson, 1993, 194). tamento, por seu turno, gera um duplo vínculo para quem o estabeleceu".
'rth
;,-·

80
(Des)Equilíbrios familiares
yr~---,--~--
:_:;_:;:f;
e
família como sistema
'f
-~"
-B
Sofia e Carlos são um casal onde a paradoxalidade e a provocação '' ~ com a sua explicação, ele achava que, numa estrutura igualitária, o
são cada vez mais. pennanentes. A título de exemplo diremos que Sofia,•' "I: médico podia, tal como ele, "salvar" os bifes de forma que os mesmos
insiste em- fazer surpresas ao- marido, sabendo de· antemão que ele não<~)
não ficassem queimados. O médico, por seu turno, não tomou qualquer
reage_-bem às situaçõeS_ imprevistas .. Carlos insiste- em-não tomar decisõés.:_,_1
iniciativa com medo que o doente pensasse que ele o achava incapaz
mesmo:sabendo-que, dessa forma,. Sofia terá de_ tomá-las por ele; poste-._:,'
rionnente fica extremamente._ ofendido e _acusa _a esp_osª de. ser impulSiVa._,;,
de fazer o seu trabalho. E, desta forma, os bifos queimaram-se!
e autoritária.
Carlos- herdou. como._ modelo familiar a ideia de que, num casal, o A previsão paradoxal consiste em fazer uma previsão que não
Previsão
homem é :que manda- e sustenta a família e Sofia foi educada: para obede- pode realizar-se mas que abre uma brecha na interacção, ameaçando o µaiudox.al

cer ao marido e cuidar do lar. Desde sempre Sofia ganhou mais do que o próprio desenvolvimento da relação (Marc e Picard, 1984, 66).
marido e acabou por=ser ela a tomar _as decisões familiares mais impor---,,-_,_
tantes. O marido desquálifica-a profundamente, _nomeadamente na área _ Um casal· solicitou ajuda psiquiátrica dados os ciúmes da esposa e a
doméstica onde Sofia foi particularmente educada para ser boa. ,ff ' _vida intolerável que ambos estavam a viver. O senhor era um homem aus-
A. simetrla do. caSal rigidificou.:se,. dando· início a uma.· escalada, dis~ ''f '.tero. e. moralista: orgulhava-se de nunca. ter dado motivos para que. duvi-
farçada. Com as. cores: de.uma pseudo-complementarid'ade~·:Carlos nãO- sé..~( . <lassem da· sua-palavra. Proveniente de um nível sócio-cultural.diferente,
decide,. acabando por ser desqualificado pela esposa, e Sofia decide~fl -a- mulher 'áceitou ui:na posição de complementaridade one-down,
demais, sendo bumilhada e criticada pelo maridoc Este é um jogo sem fim•· excepção féita para o seguinte aspecto; não queria renunciàr ao seu hábito
que se auto-alimenta,. criando· um. círculo. vicioso claro. de tomar um aperitivo antes dO jantar. Sendo completamente abstémio, o
De. forma a quebrar__ este círculo, os terapeutas propõem a. seguinte_:.~~ marido não aceitou tal comportamento- e ameaç_ou· a-esposa de arranjar
tarefa metafõrica. Três . vezes _por semana (segunda.S:, .. quartas e sextas), _ o ;:;:1. outra 1nulher se ela-não deixasse o seu-vício. Ao frm de alguns meses de
casar deve jogar um jogo. de·cartas que conhece, mantendo todas as regr~:_f!J múltiplas. discussões,_· o _marido decidiu deixar a- esposa ter o· seu vício
que o-mesmo possui e acrescentando"." lhe uma regra nova: Sofia tudo fará·<~'. -dado que não tinha conseguido mudar o seu comportamento e não queria
para ganhár mas no final ac_usará o marido, dizendo que só ganhou porque:;~'. ~-mais aborrecimentos. Nessa altura a-senhora começou a.ter ciúmes: como
ele fez tudo para perder; Carlos fará tudo para perder mas no final acusará?' · sábia que o marido era extremamente austero e digno de confiança con-
a esposa dizendo que só perdeu porque ela fez tudo para ganhar. ,cluiu que ele tinha começado a ter. uma relação extra-conjugaL O marido
'·tinha ficado preso da sua própria ratoeira: para- a mulher acrCditar na sua
.·fidelidade conjugal tinha que aceitar a sua falta de carácter; para crer
_nesta.tinha-que acreditar na· sua infidelidade conjugal!
É importante referir que a injunção paradoxal não tem necessaria-
mente que ser traduzida por um comportamento verbal. Marc e Picard
(1984) relatam uma situação de um piquenique realizado num hospital
psiquiátrico que tinha como norma evitar toda e qualquer relação de
.,j poder da equipa de saúde relativamente aos doentes. Com esta regra o
j' hospital procurava criar a ideia de que o doente era um indivíduo nor-

l
•j
l
mal e responsável. No referido piquenique, em que a cada pessoa tinha
sido confiada uma tarefa particular, um dos doentes, que devia grelhar
'l bifes, deixou queimar os bocados de carne enquanto falava com um
dos médicos que se tinha aproximado e metido conversa. De acordo

t
<'iii ··lU· u··· 10 tu· w. w ··iu i;ü·· lU lÜ!. t.Ê tl.Íl!I ~j >jbg td i~ .h. l.d rh t..JI.

4
~~~~~~~~~~·~~~~~~~~~~~~~~

Mecanismos de funcionamento da família

A compreensão dos mecanismos de funcionamento do sistema


familiar sofreu uma importante evolução, a que já fomos aludindo, e
que agora procuraremos sistematizar.
Numa primeira fase, mais concretamente durante o período de
influência da cibernética de primeira ordem, a família era encarada
como um sistema aberto, auto-regulado por mecanismos de retroacção.
Esta seria positiva ou negativa consoante a informação reintroduzida
no sistema amplificasse ou diminuísse a acção em curso.
O feed-back negativo foi, então, entendido como sinónimo de llomwstase
e morfui;!énese
homeostase", na medida em que possibilitava a regulação e o controlo
da energia e, dessa forma, visava a manutenção do sistema num esta-
do estável. Nesta acepção de homeostasia toda a mudança era consi-

;u Proveniente do grego [hontois, que significa semelhante, e stasis, que significa


permanecer quieto], o termo homeostase foi introduzido na fisiologia em 1932, por
Cannon, para explicar a constância relativa de certas dimensões fisiológicas. Ashby
(1952) aplicou o conceito aos sistemas cibernéticos falando de morfostase para descre-
ver os sistemas que são capazes de compensar certas mudanças do ambiente manten-
do uma relativa estabilidade nas suas próprias estruturas. Spiegel (1954) parece ter
sido a primeira pessoa a utilizar o termo homesostase para caracterizar a relação médi-
co-doente como um sistema transaccional. Jackson (1954) foi o primeiro a aplicar este
conceito aos sistemas familiares, usando-o fundamentalmente para descrever sistemas
caracterizados por uma excessiva rigidez (in Simon, Stierlin e Wynne, 1997, 188-189).
84
·!' · ···
··-··:-;-~--;:e:-----------------· '.J~' .;';:85:=;;;:--;:;~-::;:;;=:::------------------
(Des )Equilíbrios familiares ~l Família como sístema
f(

~
derada como um erro que era necessário corrigir e suster. A família, l
funcionamento e impediam a ocorrência de qualquer modificaçãÜ,
como qualquer outro sistema aberto, reagiria às perturbações, de mesmo daquela que parecia necessária ao alcance de novo equilíbrio.
origem interna ou externa, pondo em marcha uma série de mecanismos
reguladores q1te a conduziriam ao seu estado inicial, de modo a asse- Com efeito, é importante não esquecer que o sistema familiar tem Sintoma~
gurar a sua identidade e permanência ao longo do tempo. Por outras que tolerar, e até favorecer, certas transformações que lhe são ine- bom~o;istasc

palavras, activaria os seus mecanismos homeostáticos. rentes, tais como o nascimento das crianças, o seu crescimento, o seu
O conceito de homeostasia familiar foi introduzido por D. acesso à separação e à autonomia, o envelhecimento dos pais, etc,
Jackson, um dos homens de Palo Alto que, em 1954, apresentou uma assim como outras que acidentalmente podem surgir. Nas famílias sin-
comunicação intitulada The question offamily homeostasis. Nesse seu tomáticas a combinação complexa de retroacções positivas e negati-
trabalho conceptualizou, em termos de funcionamento homeostático, a vas, que caracteriza a flexibilidade do funcionamento dos sistemas,
seguinte evidência clínica: em famílias com doentes psiquiátricos parecia dar lugar à rigidificação das retroacções negativas, aparecendo
acontecia, com alguma frequência, que quando o doente melhorava o sintoma como o garante da manutenção de um funcionamento que já
algum ou alguns dos seus familiares apresentavam determinada sin- se mostrava impossível de manter. Daí a paradoxalidade do sintoma
tomatologia (depressão, perturbações psicossomáticas, etc). Para visto como pedido de mudança para a não mudança.
Jackson, estes comportamentos, assim como a própria doença do Neste contexto conceptual, o técnico, nomeadamente o terapeuta
paciente, funcionavam como mecanismos homeostáticos que visavam familiar, procurava conhecer as retroacções positivas que o sistema
manter o equilíbrio familiar. Assim entendida, a homeostase permitia familiar tentava ignorar, i.é, as mudanças estruturais que a família
compreender a família como uma totalidade, sem separação artificial tinha que implementar mas que recusava fazer, e, aliando-se mais à
entre o indivíduo e os que o rodeiam. A noção de totalidade era preser- homeostase do sistema51 ou desafiando mais a sua estrutura52 , intro-
vada e a ideia de causalidade circular ganhava consistência. duzia novo feed-back positivo no sistema familiar, conduzindo-o e
Concebida como um mecanismo que se opõe à mudança, a ho- protegendo-o nas mudanças a implementar para que, tão breve quanto
meostase pode, então, em situações em que um sistema tem que possível, a família pudesse atingir um novo nível de estabilidade (ou
enfrentar modificações internas e/ou externas importantes, prejudicar de homeostase).
as suas capacidades adaptativas. Por outras palavras, há momentos ou
períodos na vida de um sistema em que, perante a existência de re·
troacção positiva, ele tem que obrigatoriamente implementar movi·
mentos de morfogénese, i.é, movirne11tos que o conduzem no sentido
da transformação. Como adiante veremos, toda a mudança provoca
stress dada a dimensão de desconhecido que à mesma se associa. 51
Instalada a crise parecia possível que, face ao receio de desagregação Como já anteriormente dissemos, os modelos estratégicos de terapia familiar
realçam, habitualmente, a importância de aceder ao sistema familiar sem desafiar
ou de transformação desconhecida e não previamente controlada, siste·
claramente a sua·homeostase. A escola de Milão (Palazzoli et ai., 1978) propõe mesmo
mas familiares menos flexíveis contrapusessem, ao feed-back positivo a utilização da conotação positiva e do contra-paradoxo terapêutico com esse objecti-
recebido, uma inequívoca activação dos seus rnecanis1nos homeos~ vo.
táticos. Foi nesse sentido que passou a falar-se de homeostase rígida ou ,i A escola estrutural, de S. Minuchin (Minuchin, 1979; Minuchin e Fishman,

de rigidificação homeostática para descrever os sistemas que, à seme· 1988), postula, após um período de acomodação ao sistema familiar que visa a criação
lhança dos descritos por Jackson, intensificavam a permanência do seu do sistema terapêutico, que o terapeuta desafie a estrutura do sistema mediante uma
série de operações de reestnituração.
rru
,,.
\il· Ili'
86
lU lU l.Ui

(Des )Equilíbrios familiares


[Ü! ln lll lU LWIL

~
ldr Lb ''
ld LOl.J!!i lJÜI!

87.'am-íl.,.1a_c_o_m_o_s"1s-te_m_a___
."f'
l~..J i:§li ta•.' ·..ü t..... '(fjjà.1 t.w:·!JJ

,-,
''oi_:
..
ti
Filipe tinha_ to anos e frequentava o 5º ano de escolaridade. Era bom - - --:f ;._.,.terapêutico foi experimentando formas de equacionar o problema que
aluno e a -preocupação dos -pais centrava-se na sua -enurese nocturna__ _ 1 'Pllrecia básico para a família e que era ·agravado pela etapa do ciclo vital
primária. Raúltinha um ano mais, frequentava o 6º ano de escolaridade e"_;--- cr: fi _:que se aproximava a oll1os .vistos~ a da adolescência dos filhos. Após um
as preocupações que dava_.aos pais diziam respeito a um rendimento esco- · processo -de dez meses ·a família parecia capaz de_ continuar sozinha o seu
lar inferior às suas --capacidades. No entanto tinha média de quatro numa dcsenvolvimentó. -Os sintomas, nomeadamente a enurese do Filipe, há
escala .de zero a cinco. muito tinham desaparecido. Um follow-up de dois ru1os -confirmou a
Tendo pedido uma -consultà para -O fi1ho mais ·novo, devido à _-su~};V r; :-evolução registada no fim da terapia.
enurese e ao seu "nervosismo'-', os pais viram reenéi_uadrado o_seu.peilid(/:i}'
de terapia individuar Iluma proposta de terapia familiar com o objecti~/~{: 1
de "ajudar uma família tão unida· e tão preocupada· a lidar mais.facilmente·-'-'
Nâ" sua obra, Pragmática da comunicação humana, Watzlawick,
com ~s-dificuldades :do dia.~ dia e- corri os movimentos. de crescimento,
autonomia e .índividualidà.de que -Raúl -e Filipe .solicitavam e _de-.que os-·-;,_ Beavin e Jackson (1993, 131-133) consideram que o conceito de
pais também tinham ·necessidade". A família parecia mais amedrontadâ1:;~ homeostase, dada a sua assimilação à ideia de retroacção negativa, se
por esta:necessidade-de -cresciniento dado o -poderoso-mito familiar qué·:~ revela inadequado por duas razões: por um lado, não explica a apren-
carregava - "o de que ·uma- família para ser feliz tem que estar sempre.._ dizagem e o crescimento que ocorre1n na família e, por outro lado, é
unida", com o seu-corolário de que l<cada um deve sacrificar o seu beni;.';.:;_. ,-_ utilizado, simultaneamente, em dois sentidos distintos - ora como um
-_estar pessoal ao-bem-estar de-todos;,, __ e·.dadas as experiências negativaS;f;i' fim (um estado de estabilidade perante a mudança) ora como meio
vivenciadas pelos progenitores.em-momentos de afastamento familiar - (mecanismo de retroacção negativa que actua para reduzir os efeitos da
de.não acatamento da vontade parental. mudança). Como alternativa os autores recorrem ao conceito de "cali-
Curiosamente, ap_ós a aceitação da proposta de reenquadramento bração" que procura dar conta de "uma certa estabilidade fundamental
não tendo_ revelado, iia primeira consulta familiar, a·enurese do Filipe, da variação" e que corresponde às regras dentro das quais o sistema
sistema faniiliar envolve, pela ·mão da mãe, -os terapeutas num_ podei:~so
fumiliar costuma ftmcionar. A "calibração" de um sistema pode mudar
segredo: o da impossibilidade de falar· desse sintoma pela ansiedade que',:
e a essa mudança o autores chamam "função escalonada". Desta
o mesmo .criava no seu portador. Entendido, então, este comportamentd\'_\::
forma, o sistema familiar pode permanecer muito estável, sendo o
como uma -resistência do sistema familiar à mudança, -os terapetit8.~f:~f
dividiram as- suas intervenções de forma .a introduzir, simultaneamente, desvio face às regras do sistema compensado pelo aparecimento de um
uma retroacção-negativa-e outra positiv~ retroacções que lhes pem1itis- comportamento que não modifica as suas regras de funcionamento
sem sair da situação de double-bind criado .no sistema .terapêutico- e qu_~;::r (p.e., um sintoma, uma sanção), mas pode também mudar, devido a
se-consubstanciava·.no facto de-família e terapeutas estarem juntos par.a'.;,~ uma amplificação de determinados desvios que conduzam o sistema a
tratar de um problema de que não podia falar-se. O terapeuta aliado dá:,., um novo estado, caracterizado por novas regras (função escalonada).
homeostase começo-U a sessão dizendo que: "quero avisar toda a gente.d<:\'.::,, A clínica mostrava, efectivamente, que a família realiza perma-
que não pode falar-se aqui de um problema grave desta família que .é o< nentes mudanças e ajustamentos, qualitativa e quantitativamente dife-
prüblema da enurese do Filipe; se o fizermos podemos correr sérios rentes, pelo que a ideia de estabilidade e permanência, como objecti-
riscos, faZão _pela qual ·penso que devemos -continuar -a ignorar -eSs'á:.-;.<, vos últimos do sistema, revelou-se pouco ajustada ao funcionamento
questão". o terapeuta aliado da morfogénese contrapô$ que: "não m~:J_ familiar .
parece que seja assim tão problemático. -Há nesta 'família dois peritos e_in:';;;'-
Estabilidade e mudança passam, então, a ser encaradas como duas Ei.Juilfürio
superar a enurese, o Raúl e o -próprio pai, que muito nos poderão ensinar
sobre o que fazer, como fazer e como sentir. Por essa razão.peço a -anibos faces da mesma moeda. Na família, a mudança é permanente e a ideia boni~ostáticu

que nos falem dessas suas experiências". A sessão continuou e o sistem~·-.. de que a períodos de transformação (morfogénese) sucedem-se perio-
...,..

88 89
(Des )Equilíbrios familiares família como sistema

dos de estabilidade absoluta (morfostase) é definitivamente ultrapassa- e originam uma nova estrutura. São, pois, mudanças que, na família, se
da. Como dizAusloos (1996, 34), "Não soubemos ver que homeostase tornam inevitáveis na passagem das diferentes etapas do ciclo vital ou
não se reduz à não transformação mas, pelo contrário, representa uma no enfrentar de crises acidentais.
flutuação constante entre manutenções necessárias e mudanças perma- À semelhança do que já dissemos a propósito da retroacção, não
nentes ( ... ). E chamámos demasiadas vezes resistência das famílias existe uma correspondência linear entre o tipo de mudança e o seu
àquilo que não era senão a incapacidade dos terapeutas para verem 0 valor. Com efeito, há situações em que um sistema familiar tem que
seu potencial evolutivo". Dessa forma, Ausloos (1981) considera que implementar apenas mudanças de 1ª ordem pelo que desenvolver
o equilíbrio homeostático seria o resultado da tensão entre estas duas mudanças de 2ª ordem só o conduziria à sua degradação. Pelo con-
forças e faz uma distinção entre homeostase de manutenção e homeos~ trário, outras situações existem em que a família tem que realizar
tase de mudança, consoante predomina uma ou outra dessas tendên- mudanças de 2ª ordem para garantir a s11a evolução e sobrevivência.
cias. Nesse caso, realizar apenas mudanças de 1ª ordem é ineficaz e o sis-
tema arrisca-se a desagregar-se. As situações sintomáticas inscrevem-
Estavam então criadas as condições para o aparecimento de novas -se frequentemente nesta conjuntura: realizando mudanças de tipo 1,
formulações. Reflectindo sobre a articulação entre permanência e quando necessitava de mudanças de tipo 2, a família muda para con-
mudança, Watzlawick, Weakland e Fish (1975) vão abordar esta tinuar na mesma. O terapeuta, se quiser ajudá-la, tem que oferecer-lhe
questão a partir da teoria dos grupos e da teoria dos tipos lógicos de informação que lhe permita amplificar as suas flutuações e, dessa
Whitehead e Russel. A primeira oferece-lhes o modelo que lhes per· forma, operar uma transformação estrutural.
mite compreender a mudança produzida no interior dos sistemas sem
que os mesmos se transformem e a segunda possibilita-lhes o entendi- Dissemos propositadamente uma transformação estrutural, e não a Auto-

mento da mudança que modifica o próprio sistema. No primeiro caso transformação estrutural desejada, na medida em que, como nos expli- -o~g;aniw.ção
e mudança
a mudança ocorrida é de 1ª ordem e no segundo caso a mudança é de ca Prigogine (1996,1999), o sentido da mudança não pode ser previa-
2" ordem. mente definido. Partindo dos seus estudos sobre a termodinâmica do
Mutlança 1
A mudança 1 é de natureza quantitativa, i.é, é uma mudança que não-equilíbrio, Prigogine mostrou que o equilíbrio das estruturas dis-
afecta algumas relações entre os elementos do sistema mas que, dado sipativas (i.é, dos sistemas abertos que produzem entropia mas que se
os mecanismos de feed-back negativo, vai procurar reduzir o desvio, auto-organizam) não é estático mas sim dinâmico, estando constante-
tendendo para o equilíbrio e mantendo estáveis as regras básicas e a mente exposto a flutuações internas ou externas. A família, enquanto
estrutura do sistema. Na família, as mudanças de 1" ordem dizem ,Sistema auto-organizado, está, então, sujeita a flutuações permanentes
respeito às adaptações que quotidianamente a mesma realiza para que, ao atingirem determinada amplitude, a conduzem a um ponto
responder a acontecimentos banais, tais como mudanças de horário . crítico (ponto de bifurcação) para lá do qual ocorre uma mudança de
escolar ou profissional, alterações pontuais de divisão de tarefas, ...estado cuja direcção é, a priori, imprevisível. A reestruturação do sis-
doenças breves, visitas inesperadas de familiares ou amigos, que vêm )ema é inevitável ainda que previamente desconhecida na sua configu-
passar uns dias ou tomar uma refeição, ou acontecimentos do género. ração". A mudança é descontínua e entendida como uma ruptura
Mmlança 2
A mudança 2 é de natureza qualitativa e, por isso mesmo, implica
ii Corno metáfora deste processo de mudança pensemos no que acontece a um
alterações ineq11ívocas nas regras básicas e na estrutura do sistema. É
-:):opo de vidro que cai e bate numa superficie dura: pode estalar, pode partir-se ao meio
uma mudança descontínua, em que os desvios ou flutuações do sis-
':-§_u pode estilhaçar-se em diferentes bocados. Mais importante do que a força e o sen-
tema, por acção dos mecanismos de feed-back positivo, são ampliadas _-:-·tido da queda será, então, a própria estrutura do material de que é feito o copo.
.-/'"

w ~ l.U w w w w w 00 w LU LIÍ-·W - w Lbl 11.il• ~ ·d.ti w ili w --tlmi k:oíli


90
(Des )Equilíbrios familiares
·~li
:;;
é-910---,------,....----
Fa:míha como sistema
!i
,-:'l
·1
processual imprevisível e irreversível. Diferenças aparentemente pe-
1
! para além das leis gerais, a certas regras intrínsecas, a elas não
quenas podem, então, provocar resultados qualitativamente diferentes, · J redutíveis, e a certas particularidades que Elka!m ( 1990) designou de
i.é, uma pequena variação num dos parâmetros do sistema pode cons- ·l singularidades. E como não é possível saber quais as flutuações do sis-
tituir, num determinado momento, uma perturbação crítica suficiente ' tema que devem ser ampliadas para se obter a mudança, Elka!m con-
para que o mesmo se re-arranje de forma totaÍmente nova. Para que a sidera que o terapeuta tem que estar atento não só a essas regras gerais
mudança ocorra o que é importante é o acumular de dissonâncias que mas muito particularmente às suas regras intrínsecas e às singulari-
forcem o sistema, no seu todo, a uma situação extrema, i.é, a um esta~ dades, procurando fazer acoplagens, a vários níveis, entre as singulari-
do de crise. . dades do sistema familiar e as do terapeuta. Da amplificação dessas
De acordo com esta perspectiva, podemos então dizer que a :l acoplagens se decidirá a mudança e a nova evolução do sistema fami-
família vive num equilíbrio dinâmico dotado de margens de funciona- liar.
mento estáveis que, quando ultrapassadas, deixam de conter as flu~ No mesmo sentido se pronuncia Deli (1982) com o seu conceito
tuações do sistema originando mudanças irreversíveis das quais de coerência, i.é, de interdependência através da qual todos os aspec-
emerge um novo padrão organizativo. tos de um sistema se complementam em termos de funcionamento.
Para este autor, o sistema familiar muda e transforma-se porque con-
Du modelo Desta forma, com os contributos de Ilya Prigogine e da sua tém em si mesmo essa capacidade e não porque o meio envolvente lhe
homeostoitico
ao moddu
equipa, o modelo sistémico abandonou o caminho que traçara quando provoca uma mudança. De uma forma lapidar Deli afirma que o
evolutivo influenciado pela teoria geral dos sistemas (TGS). Aplicada essencial- "Homem propõe mas a organização do sistema dispõe". Desta forma,
mente aos sistemas abertos em equilíbrio, ou próximo do equilíbrio, a com o seu conceito de coerência, aproxima-se da noção de auto-orga-
TGS preocupava-se mais com a constância dos sistemas do que com a nização de Maturana e Varela. Para Dell o sistema não está separado
sua mudança, insistindo nas leis gerais e não dando muita importância do seu meio, antes formando com ele outro sistema: assim sendo, os
à história do sistema. Como diz Elka!m (1990, 14): "Se na prática a te- inputs do meio são internos ao funcionamento deste novo sistema pelo
rapia familiar se inscrevia num processo de mudança e se dirigia a se~ que não é o meio que muda o sistema mas é o sistema/meio que tem
res únicos e singulares, a sua teoria, pelo contrário, aplicava-se essen..: flutuações próprias do domínio da sua coerência organizada. As impli-
cialmente à estabilidade e dava conta, sobretudo, de leis gerais válidas cações práticas desta conceptualização são claras: "( ... ) se o obser-
para todos os sistemas abertos". A partir de Prigogine a evolução de vador considerar um paciente em terapia em termos da sua coerência
um sistema deixa de estar ligada a uma lei geral para passar a estar às particular ele não considerará que o paciente está a resistir à mudança
propriedades intrínsecas desse sistema, de acordo com a natureza das mas antes que está a ser simplesmente ele próprio" (Dell, 1982, 29).
interacções existentes entre os seus elementos. Também a partir de Nem o terapeuta nem o indivíduo, ou a família, podem então controlar
então se reintroduz a dimensão temporal, reabilitando a história do o que vai acontecer. O resultado da mudança dependerá do sentido da
próprio sistema: existe uma "flecha do tempo" (Prigogine, in Onnis, coerência que a mesma tenha para o sistema familiar e da informação
1991, 9-10) que indica a direcção evolutiva do sistema e determina a que recursivamente nele circula. Desta forma Dell fala-nos da co-
E

sua irreversibilidade. A reintrodução, no sistema, da dimensão ·evolução das coerências, do indivíduo e dos sistemas mais amplos a
~ diacrónica do tempo não só lbe restitui a sua história como faz recu- que pertence, que se faz de forma complementar, considerando que
f! perar o valor do passado, de um passado que não é a causa do presente para conseguir despertar os comportamentos dos membros da família
i
~
mas que está no presente e com ele continua vivendo tendo em vistao i
futuro. Desta forma o sistema reafirma-se como único, obedecendo, ,!
que mudam o sistema o terapeuta tem que usar comportamentos dife-
rentes dos que já são utilizados dentro do sistema. A coerência com-
~
m
,'i
j
.
~

92
(Des )Equilíbrios familiares r
.
• ~~it
'-~
----~-

l
<-í;-
.

5
portamental de cada membro do sistema especifica, então, quais as
iutervenções que poderão vir a desencadear os comportamentos que
1 Stress e crise familiar
transformarão o sistema: "A coerência comportamental do indivíduo é f
a fechadura e as intervenções do terapeuta são as chaves( ... ) é sempre -t
a fechadura que determina qual a chave que servirá" (idem, 35).

Como temos já evidenciado, toda a família está sujeita a dois tipos Pressão interna/
pressão e..:terna
de pressão: a interna e a externa. Enquanto que a primeira resulta das
mudanças inerentes ao desenvolvimento dos seus membros e dos seus
sub-sistemas, a pressão externa está relacionada com as exigências de
adaptação dos mesmos às instituições sociais que sobre eles têm
influência.
Qualquer uma das situações vai solicitar, ao sistema familiar, uma
transformação dos seus padrões transaccionais, de forma a que o
próprio sistema evolua sem fazer perigar a sua identidade e con-
tiuuidade.

Procurando tipificar as fontes de stress a que o sistema familiar Fontes


de stre.~s
pode estar sujeito, Minuchin (1979) considera quatro situações: con-
tacto de um membro da família com uma fonte de stress extra-fami-
-f
liar, contacto de toda a família com uma fonte de stress extra-familiar,
t
stress relativo aos períodos de transição do ciclo vital da família e
stress provocado por problemas particulares.
Relativamente à primeira fonte, contacto de um elemento da
t
f família com uma situação de stress extra-familiar, torna-se importante
!)'
r referir que uma das funções da família é exactamente o suporte dos
seus elementos relativamente a pressões externas. Quando um membro
da família se encontra numa situação de stress os restantes elementos
também sentem essa pressão. Surge, então, a necessidade de accionar
1
!
,;1if-rti~~-t.d ~
ti; id·· w !Jti ··i.Ll ui) ··Lít.l ~- lk.i ·~:~
.· .· .··. · .•.' ·•.
~···~
··tJ J,., w iJ,.,, \,;J ij_,,; ",il .. U.c4' ~~· l,_,J;

(Des)Equilíbrios familiares t·1 F


-:J
'l
mudanças no sentido de melhor lidar com o(s) problema(s) criado(s). sistema, dificultando a sua evolução, sobretudo quando o mesmo não
Imaginemos o caso de um marido que, stressado pelo seu trabalho (que tem a criatividade de encontrar novas respostas para os problemas com
está na eminência de perder se não realizar com sucesso um detenni- _ que se debate. As inadaptações em situação de imigração ou de pós-
nado concurso), chega a casa e critica a mulher. Esta pode inicialmente pguerra são disso um exem.plo claro 54 •
afastar-se para, posteriormente, o apoiar. Mas pode também contra- O stress oriundo da transição de um para outro período do ciclo
-atacar, entrando os cônjuges numa escalada a que uma posterior meta- vital é inegável ainda que esperado e normativo. O nascimento de uma
comunicação põe fim, facilitando o aparecimento de um apoio mútuo. criança, a adolescência dos filhos, a morte de um progenitor idoso são
Nestes casos, o stress extra-familiar do marido repercutiu-se no sub- i acontecimentos que obrigam, naturalmente, à negociação de novas
-sistema conjugal e foi atenuado pelas transacções que o marido teve regras familiares. No próximo capítulo teremos a oportunidade de nos
com a mulher. No caso de os cônjuges continuarem a "sua escalada de debruçarmos detalhadamente sobre esta questão.
disputa e de não fazerem as pazes, o stress extra-familiar provoca um Finalmente, o stress advindo de problemas particulares, não nor-
stress não resolvido no interior da família, mais propriamente no seio , mativos, diz respeito àqueles acontecimentos inesperados mas que
do sub-sistema conjugal. Pode ainda acontecer que o casal desloque o \ podem a~ectar fortemente a organização estrutural de um sistema
. seu conflito, despoletado pelo mesmo stress extra-familiar, para o 1 familiar. E o caso do nascimento de uma criança deficiente, do apare-
J.lc filho, protegendo dessa forma o sub-sistema conjugal mas criando uma .. cimento de uma doença crónica ou prolongada, de uma adopção num
trangressão intergeracional nada adequada para o funcionamento do ! casal infértil ou num casal com filhos, etc. Como facilmente se com-
sistema familiar. Idêntica transgressão ocorre nas situações em que _a ' preende, a família tem que reorganizar os seus padrões transaccionais
mãe se coliga com o filho para fazer face ao ataque de um marido , para poder responder funcionalmente ao stress provocado por estas
stressado por uma situação extra-familiar. Nestas últimas situações a i situações.
, . fronteira do sub-sistema conjugal toma-se difusa e o alinhamento gera- f
iK c1ona
. 1 perturb a-se. 1f Decorre do exposto que, na vida de um sistema familiar, podem
Uma situação de depressão económica, em que vários elementos ! ocorrer crises naturais e crises acidentais. As primeiras, obviamente
da família (e até da comunidade em que a mesma se insere) ficam no ' esperadas e previsíveis, estão associadas às diferentes etapas do seu
desemprego ou vêem as suas economias fortemente ameaçadas, de , ciclo vital. Por isso dizem-se também normativas. As segundas ocor-
mudança de residência provocada por uma reorganização do tecido •I rem inesperadamente e por isso assumem, normalmente, um carácter
urbano que recoloca a família num espaço onde ela não tem referên- t mais dramático. Estão claramente nesta situação todas as crises oriun-
cias pessoais, de imigração para um país desconhecido ou de reorgani- ; das das restantes fontes de stress anteriormente enunciadas.
zação social após um período de guerra são exemplos claros de con- ·. !
tacto de toda a família com uma fonte de stress extra-familiar. Pode 1 É geralmente assumido que toda a mudança causa stress, inde-
acontecer que a família consiga encontrar formas de apoiar-se mutua~ J pendentemente da carga positiva ou negativa de que se faz acompa-
mente, tendo, naturalmente, que operar algumas mudanças nos seus J
padrões habituais de funcionamento. Por exemplo, na situação de ·i
depressão económica pode criar um negócio (tal como a confecção de .l 54
Situações deste tipo estão magnificamente descritas na literatura. Pensemos, a
alimentos por parte de alguns elementos que outros vendem ao ! ~título de mero exemplo, em Ashley, por um lado, e em Scarlett O'I-Iara e Rhet Buttler,
;_por outro lado, do romance E tudo o vento levou: enquanto o primeiro rememora,
domicílio) para fazer face à diminuição dos rendimentos ·familiares. J
Mas pode igualmente acontecer que este stress extra-familiar afunde.o ;f -saudosarnente, o passado, os segundos encontram novas formas de desenvolvimento
-_.individual.
1'

2iL1:,
r-
96 97
f;mília como sistema
(Des)Equilíbrios familiares

Avaria e crise
nhar. Com efeito, não é pelo facto de a mudança ser mais ou menos ·::;;da- ideia da falta de combustível no motor. Parecia-lhe, pelo som que
desejada, de o novo estado ser mais ou menos agradável, que Touvia quando "dava à chave", que o "danado" não chegava à frente, ao
escapamos ao stress ou que lhe cciímos na teia. ,--motor. Abriu o capot e espreitou. Espreitou e não viu nada. Começou,
A crise surge, então, porque o sistema sente-se ameaçado pela >,:-~ntão, a puxar uns fios, para susto de Ana que, não- percebendo nada de

imprevisibilidade que a mudança comporta. Apesar de poder sentir, de ','.mecânica e não tendo qualquer apetência por máquinas, temia ficar com
_(-:á-:auto-caravana ainda mais parada. A certa altura, João encontrou uma
forma mais ou menos intensa, essa necessidade de transformação, de
'-_'-:Po_rca desatarraxada que;_ por isso mesmo, não deixava o combustível
alteração do seu padrão habitual de funcionamento, o sistema teme o -,-,_chegar em condições. Apertou-a e a avaria desapareceu. Meteram-se no
desconhecido e, por isso mesmo, tem tendência a ancorar-se no padrão carro e foram almoçar, antes que nova avaria os apanhasse desprevenidos.
de relações que conhece, i.é, que desenvolveu até então e a bloquear a Como a viagem era longa e a "máquina" já não era nova houve mais algu-
amplificação das flutuações que lhe permitirá a transformação. Em mas histórias mas todas se resolveram dessa forma: substituindo uma
grego, crise (krisis] significa momento decisivo e, na realidade, é isso peça, corrigindo uma ligação ... nmna palavra, reparando a avaria.
que ela representa. Já Minuchin (1979) o explicitou claramente quan"
do disse que a crise era, simultaneamente, ocasião (de crescimento, de Dois dias antes do início desta viagem, que culminaria com a ida de
evolução) e risco (de impasse, de disfuncionamento). ,.- Ana a uma reunião científica- onde deveria apresentar llllla investigação
O sistema pode pois, e não será demais repeti-lo, optar por uma de :·que vinha-realizando, o casal foi chamado,. de urgência, à-casa-de terias
duas hipóteses: ou foge à mudança, ameaçando a sua evolução e, em da grande família. Contrariada com este contratempo que a impedia de
última análise, o seu equilíbrio e a sua própria vida, ou transforma-se, ,, dar os últimos retoques no trabalho e aflita sem saber o que tinha a mãe,
.__ Ana lá foi com o João. No dia anterior, ao jantar, a senhora comera baca-
correndo o risco de crescer sem saber exactamente como. Na forma
--_: lhau. Tinha ido deitar-se um pouco mal-disposta, nervosa sem saber com
como se coloca, face à crise, o sistema familiar (e aliás os sistemas que -,:-:quê: se com a filha, que a deixara com os irmãos para ir passear (que ela
com ele se relacionam, nomeadamente os técnicos que dele podem vir ''~bem sabia que a reunião era.só um pretexto para a enganar); se com ela,
a ocupar-se) tem que compreender que aquilo que a crise solicita e '·-"<1ue estava a ser mazinha, ou se com o bacalhau, que não lhe caíra muito
exige é, com efeito, a transformação do modelo relacional existente '.-bem. Nessa manhã sentia-se muito afrontada, muito tonta e quando-se
(ao nível da sua estrutura, das suas regras de funcionamento) e não ':"''levantou, para ir arranjar-se, não conseguiu andar. Gritou; muito assusta-
apenas a reparação de mn ou outro aspecto menos satisfatório. ,__ da,_ e apareceu o Raúl que ficou-tão assustado como a mãe e não con-
,~:~eguiu melhor. As pernas recusavam-se a.andar. Chamou- o Ivo que, com
João e Ana tinham· partido para uma grande viagem. A certa altura, '' c:'arinho mas determinação, lhe disse que- as pernas andariam se ela cola-
no pico do calor e com a fome a apertar, a '"máquina" começou a a:frouXar;; ,,\ ,_ _,;bprasse. Muito lentamente chegou à casa de banho e conseguiu arranjar-
a afrouxar, não respondendo positivamente às aceleradelas do João. Foi_,_.:; _;J;·:~se; _depois tomou o pequeno almoço. Entretanto, Raul telefonou à irmã.
uma questão de segundos ... até que parou. João e Ana estavam em plena-~,:_il - ;:~-};i_uando Ana chegou a mãe estava mais calma, menos enjoada, mas con-
via rápida e era Domihgo de manhã. Primeiro sentiram o susto de fic,a!: . :·::· ,·;·tinuava sem conseguir andar. Ou melhor;_ fazia-o a muito custo.
com a "máquina" parada no meio da estrada: felizmente João teve SangUC':''.'. :-,;_Chamaram o innão médico que não encontrou nada que justificasse
frio e tempo suficientes para orientá-la para a berma antes dela quedar-s·e·:_:'~ X;~1 s:emelhante situação. À noite Ana voltou para casa sem que a mãe pare-
de todo. Depois sentiram o desespero de ficar parados, a braços com uma···:: :/Tcesse melhor. Como o quadro não se alterava Fernando trouxe-a para uma
avaria- desconhecida-, com muita fome e muito calor. Ana pensou: ser~--:·,.­ ~~:~:c_línica onde iniciou toda uma série de exames. Ana partiu. Rotati-
falta de gasolina? De todas as vezes que ficara com o seu carro nas mãóS-,'.; ,,,·:-yám_ente, os- irmãos ficavam com a mãe. Os exames foram concl'usivos:
era- isso que lhe tinha acontecido. Mas desta- vez não era: a "máquina'-'-::>1 {J_::_Dada, do ponto de vista neuro-fisiológico, justificava a dificuldade que a
tinha ainda muito gasóleo para conslllllir. No entanto Jo_ão não desdenhútl-~{~ t~f~enhora tinha em mover-se. Passado uns dias, Ivo encheu-se de coragem
··11\tf ""-Ltt -'m .. ííf -ru - ru. w !.d Wi 1d tb 1-••--~ -Ll. - w tU tü ~ - iJ} l.d ili !d ·t,b ttJ
98 .• ~
-, · ~ ·1· famiha e
(Des )Eqmhbnos ,am1 rn1es !
l trar um novo estádio de equilíbrio, o que, como já dissemos, lhe provo-
e disse à -mãe: "a mãe vem agora comigo, uma semana para minha casá/~ 1
pois tenho o quintal numa misérif;l-; o Sr. Augusto deixou de -ir e preciso:)~­ ca stress. "O aspecto essencial [neste processo] é a peida de controlo
que me-ensine a tratar das plantas-e das-árvores; além.disso a Olga quer,;;_~­ sobre a sua história. Os sistemas humanos autentificam-se pela esta-
fazer compotas, -mannelada e pickles e -precisa da sua supervisão':\-.~'.;; bilidade e pela previsão existente no corrjunto das relações significati-
vas ... Criar um sistema equivale, então, a estabelecer conjuntamente, a
Partiram· os três, como o .combinado. Ao funde quinze dias a D. -Mariá/
tegressou a-casa, aguardando que Ana-e João chegassem. :Em casa do IVo'-··: \ 'co~criar', um modelo de relações" (Caillé, cit. in Carndessus, Boajean
tinha-andado tudo numa fona .e-a senhora· sentia-se-recuar uns largos anos-_:-t e Spector 1995, 30). Vimos, já, como as famílias negociam quoti-
antes, quando -.ela era ·.mais nova -.e decidia -a sua vida. Nas semanas·-- dianamente este modelo, habitualmente de forma inconsciente.
seguintes, mãe e filha-tentaram.aprender a ter-uma nova relação: m_ellos_'~i'. Apoiando-se na permanência o sistema não se confronta com o medo
dependente, -com a mãe: a tentar aceitar que já não podia tomar conta _{l~_:/;.· e com a intranquilidade da mudança mas condiciona a sua evolução.
toda a sua vida.e com-a-filha.a tentar perceber em que áreas é que a-mãê-'_< De que forma é que uma família, ou uma instituição, perde, então, o
podia-ser mais autónoma-e em que_ aspectos tinha ·ela de intervir. Com.· d?,
seu sentido-de-humor, João pensou: o melhor é ajudá-las-e não·me p_ôt.d~'.i-'
controlo da sua história? Questionando-se sobre um modelo de
relações previamente coerente, mas hoje em dia inadaptado, o sistema
fora pois-nesta "máquina", que somos nós, não basta atarraxar uma porcal'i'.;-
não suspende a sua história mas perde o seu controlo.
Os problemas desta família não acabaram aqui, naturalmente. Mas Temporariamente, o sistema deixa de sentir-se funcional porque os
seus membros deixam de encontrar nele "a realidade e a previsibili-
em casa da Ana havia um novo equilíbrio e estavam todos mais
dade que são a pedra angular da pertença sistémica". Mas se não se
preparados para viver aquela etapa do ciclo vital". Nesse sentido, a
desintegra e aparece um novo estado estável, "produz-se a co-criação
família crescera e atingira um novo nível de complexificação porque
de um novo modelo de relação" que expressa uma nova realidade
fora capaz de correr o risco de mudar. reconhecida por todos (idem, 30).
Destes exemplos podemos concluir que avaria e crise são não só
É importante realçar que a crise é sempre resolvida no presente. No
conceitos diferentes como reenviam para prncessos qualitativamente
entanto, para o fazer, o sistema tem que equacionar, simultaneamente, ele-
distintos. mentos do passado e do futuro: a sua coerência exige, com efeito, essa
Nos sistemas mecânicos, por mais sofisticados que sejam, a avaria
continuidade entre a estrutura passada e a que se encontra em vias de ela-
paralisa o seu funcionamento, ou toma-o ineficaz. No dizer de Caillé
boração. Como diz Caillé (1987), a dificuldade da transformação iequeri-
(1987), a avaria conduz à suspensão temporária da história da
da pela crise reside no facto de que a nova fase da histó1ia familiai é, por
máquina. A resolução do problema passa necessariamente pela substi-
um lado, "a continuação previsível de uma história programada anterior-
tuição da peça avariada ou do mecanismo afectado mas o seu fun-
mente" e é, por outro lado, "\una história que entra em conflito consigo
cionamento tem que permanecer igual ao que em antes daquela ocor-
própria e com a bifurcação imprevisível do futuro".
rência. Se a avaria não for reparada a história da máquina pára defmi-
tívamente. Na sua teoria da crise, Lindemann (1944, cit. in Simon, Stieilin e Emergência
A crise do sistema humano é muito dife1ente. A família nunca e crise
Wynne, 1997, 94) distingue entre emergência e crise. Enquanto que a
pára: a sua história prossegue e o sistema tem que, mudando, reencon-
cdse exige, como acabámos de ver, uma transfonnação dos padrões de
relação, i.é., da estrutura do próprio sistema, as situações de emergên-
11
A este propósito veja-se o ponto 5 do capítulo seguinte: família com filhos cia podem resolver-se no quadro do funcionamento habitual, mesmo
adultos. Ana e João não tinham filhos. Estavam na meia-idade e tinham, desde há __·que, como é natural, venham a operar-se pequenos ajustamentos.
algum tempo, a D. Maria a seu cargo.
100 101
~ília como sistema
(Des )Equilíbrios familiares

Diremos então que a crise só pode resolver-se com urna mudança de 2• Os apelos telefónicos constituem, no quadro acabado de descre-
ordem enquanto que a emergência ultrapassa-se com mudanças de !" ver, um recurso frequentemente utilizado pelas famílias, ou por um dos
ordem. Isto não significa que a emergência seja menos stressante para seus elementos. Face ao impacto do comportamento apresentado pelo
a família. Dado o carácter repentino e inesperado do seu aparecimento pJ., e como forma de tornear a crise, um elemento da família contacta
e a necessidade de rápido alívio (Pittrnan, 1991), as pessoas ficam, fre- 0 serviço (ou o técnico que o costuma atender) pedindo uma acção rá-
quentemente, bloqueadas, o que lhes dificulta a resolução da situação. pida. Cria, então, uma urgência57 • A avaliação contextual é, nestes
Por isso recorrem, muitas vezes, a urna ajuda externa (médicos, casos, muitas vezes dificil e as respostas dadas são, basicamente,
bombeiros, polícia, vizinhos, parentes, etc.). potenciais. É importante evitar as manobras de triangulação que o sis-
Crise e emergência criam, no entanto, problemas de natureza qua- tema familiar procura nesse momento realizar, nomeadamente pela
litativa diferente. Muitas pessoas aterrorizam-se perante a necessidade mão de quem telefona. A escuta neutra, com resposta diferida no
de mudança e querem impedi-la, pelo que experimentam o estado de tempo, ou o esforço de manutenção do contrato terapêutico podem
crise corno emergência, pedindo a alguém que ponha fim ao processo parar um processo apressado. Em qualquer situação, deve ter-se em
de mudança. Só que assim afastam a oportunidade de crescimento e conta a natureza das informações transmitidas, o grau de implicação
evolução. É importante; neste processo, que o meio, nomeadamente os familiar no processo em curso e o tipo de relação criada no âmbito do
técnicos, ajudem o sistema familiar a enfrentar a crise e a desenvolver sistema terapêutico.
as mudanças necessárias. É óbvio que os técnicos não podem dizer à
família o que deve,fazer mas podem ajudá-la a amplificar as suas flu- João e Maria eram um casal à beira da separação. Separação que
Maria não desejava e muito temia· e que João, por. cansaço relativamente
tuações de tal forma que a mudança se tome irreversível e surja um
a.tuna. interacção muito pouco gratificante, desejava: cada vez mais. O
novo padrão relacional 56 • -.. ,_casal tinha uma filha pequena que sofria de asma e de mais algumas per-
.- :':'., Ü!-~bações de natureza pSicossornática. No meio de um processo de terapia
56 Sublinhando este aspecto, Pittman (1991, 367) refere que, se"( ...) o terapeuta ,. "de. casal em que cada um dos cônjuges procurava incessantemente coli-
conspira com a família para evitar essa mudança no seu desenvolvimento, corre o peri- gar-se com as terapeutas, João telefonou, muito aflito_, dizendo que a
go de transfonnar-se em cuidador e, por conseguinte, de sufocar o desenvolvimento pCquena·Ana tinha vomitado no jardim infantil e que se encontrava muito
familiar". Os cuidadores (parentes, amigos, terapeutas, instituições de assistência
social) procuram ajudar a família a enfrentar a crise prestando-lhe determinados
serviços que a protegem das mudanças. À medida que o tempo passa a família fica
mais dependente, o cuidador perde o interesse ou a paciência e a relação desequilibra-
-se. A crise do cuidador surge, então, quando este deixa de estar disponível para apoiar ,-pela ocorrência das situações que provocaram a crise e dado que recebem, habitual-
a família na situação de crise ou muda o rumo da sua intervenção e procura transfor- mente, muita ajuda exterior a crise é superada e os profissionais de saúde mental são
mar a família em vez de apenas a proteger. Em síntese, o cuidador cumpre funções que raramente chamados a intervir. Só quando a causa do stress é confusa e a crise não está
as próprias famílias não realizam, privando-as de desenvolver as suas competências e bem definida é que a família tem dificuldade em responder. A crise de desenvolvi-
criando uma dependência mutuamente sufocante. Na sua conceptualização da crise - menta é previsível e está ligada ao ciclo vital. Como vimos, há famílias que a enca-
Pittman distingue mais três tipos de crise. Na crise por acontecimento inesperado, o , ram como uma oportunidade de crescimento e outras que lhe respondem com
stress precipitante é real, manifesto, imprevisível e provém de forças exteriores ao mudanças de 1ªordem, procurando, a todo o custo, evitá-la. As crises estruturais resul-
indivíduo e ao sistema familiar (é o caso, p.e., de um incêndio grave, de uma guerra, "<0,'iam da própria organização estrutural da família.,Nesse sentido, o stress provém da
de uma doença, de um acidente, de um empobrecimento ou enriquecimento repenti- '0::estrutura da família e a sua inflexibilidade torna problemática toda e qualquer
nos). Talvez porque a crise derive de forças externas ela é, apesar da sua habitual ,-,, ffiudança, independentemente da situação desencadeante e da etapa do ciclo vital em
espectacularidade ou dramatismo, geralmente bem resolvida pelas famílias que se q_ue a família se encontra.
51
adaptam facilmente. Provavelmente porque as famílias sentem pouca responsabilidade Urgência e emergência são tennos considerados, aqui, como equivalentes.
··"""w'
!·: .---- 'u.u
li!-~ m··--w ur w w w w w •!1.Q w w 1.U '(h- -· f.i'.I - w w 1.J;. ~li

102 )03
família como sistema
(Des )Equilíbrios familiares

risco de passagem ao acto por parte de um membro da família ou do


agitáda-porque a·mãe lhe-tinha dito que ele não vOltaria·a estar com elaS:-:~,
Mais do que este episódio e. o não saber se devia deixar ·a· filha ir ao _paS:.,:·-~i
:P.I.). Para que o telefonema se constitua como um espaço terapêutico,
seio programado, João __que_ria pedir, uma ·vez mais, que as terapeutas vis_.,ji~'. e não como uma ratoeira para o terapeuta e para o próprio processo, é
sem-a criança e a.ajudassem pois ele achava que ela estava a ser muüo-:~~, importante ter alguns cuidados, ser também aí terapêutico e imaginati-
perturbada por toda a vida do casal. Este era também um ponto de-/ vo. Entre as técnicas normalmente utilizadas pelas equipas sistémicas
divergência entre João e Maria: -aquele achava que Ana ·devia ser acom::;.:) podemos enunciar três:
panhada:psicologiCamente e Maria entendia que a menina estava_·bem:·-·e;-;;:~ I - horários de atendimento telefónico previamente definidos;
que só precisava que o ,pai tr_atasse mais .dela. As terapeutas tinham j~~---~~: 2 - cuidadosa recolha da informação por um terceiro neutro; pos-
esclftrecido" que só se ocupariam dessa questão depois de finalizar o ·cofl:.::'·\;-' teriormente, já num segundo tempo, será dada uma resposta e o assun-
trato que tinham feito ::Parà a terapia-de casal. Dessa forma, -uma ·das _teTáii':"' to será retomado na sessão seguinte;
peutaS-que atendeu o telefonema ouviu João, deixando-o esbater a suá-: 3 - conotação positiva generalizada da informação veiculada.
enorme ansiedade, e foi~lhe devolvendo as-questões _colocadas no sen_tid_~·:F:'. Nas instituições utilizam-se, habitualmente, as duas primeiras téc-
de-perrnitir~1he compreender o que, no:seú discurso, dizia·respeito-à SU.ti:e:'."~
nicas, enquanto na prática privada é mais frequente a terceira.
relação com a filha e o que se reportava à sua relação com Maria. No fim:>
do telefonema João disse: "já compreendi, eu até sou capaz de responder:::·
às questões da Ana e de decidir-o que acho que devo fazer.( e-acho que. ela_:;:: Apesar de teoricamente a sua diferença ser clara, por vezes toma-
pode ir ao ,passeio do Jardim); não posso deixar que eu e -a .Maria: ·a· -se difícil distinguir entre crise e emergência já que uma situação ini-
envolvamos nas nossas lutas e das nossas questões falare~os na próxima,_- cial de urgência pode vir a trai1sformar-se numa crise.
sessão".
Susana ainda não tinha três anos.- Apesar da sua magreza e palidez
Claúdia telefonou, em extrema urgência: o filho tinha.saído de casifii \'.'.},';era-uma menina medicamente considerada_saudáveI.-Os olhos grandes e
no dia anterior, à tardinha, não tinha voltado -à noite e às duas da tarde_..dc):;- .-____éscuros iluminavam-lhe todo o rosto e a "falta-de-cores" era atribuída.à
dia seguinte ainda não. tinha aparecido nem dado notícias. Tendo ligado - "herança". do tom macilento da mãe. Até então tinha tido_.apenas algtunas
para casa de um.amigo soube que esse rapaz também não estava em cas_a. "Viroses" e uma ou outra gastrenterite. Um dia apareceu com febre rela-
Desta forma, e sem qualquer outro tipo de investigação, Cláudia. tinha tivamente alta. Passaram os três dias da espera habitual e a febre não bai-
tomado urna deciSão: ia -ao tribunal--de família e -menores .pedir que. a:'.:, xava. 'Mas também não parecia haver nada mais de eiTado. 'Era mais urna
custódia do Pedro, que tinha agora 15 anos, fosse entregue ao_pai p_ois__ela -"virose". Medicamente vigiada passou outro dia. Nessa altura começou a
já não aguentava mais o filho. A terapeuta que atendeu o telefonema e qué:!f queixar-se de dores nas pen1as e, de-repente, deixou de andar.· Conduzida
estava a seguir este processo procurou distinguir .as duas questões 'le-Vari::·y 'ao-hospital ·ficou internada para observações. Estava instalada a emergên-
tadas por Cláudia: a "fuga" do filho e a regulação do poder paternal. No cia.. Aflitos, sem conseguirem saber grande coisa dos médicos, assustados
fun do telefonema, =Cláudia tinha equacionado ·três hipóteses relativa- com-muitas outras situações que o hospital ·apresentava, os pais-mobi-
mente ao paradeiro do filho e ·elencadá .as suas possibilidades de actua- lizaram -amigos e familiares que lhes pudessem acalmar a ansiedade e
ção. Em relação à regulação do poder paternal considerou que, apesar das · trazer notícias. A quantidade de exames e análises realizadas só aumenta-
dificuldades .que- sentia que -ia-ter, precisava-de-discutir essa questão 'cofu'-'i Va-a tensão. A mãe ficou com a criança no hospital e o pai regressou ao
o ex-marido antes de tomar qualquer outra iniciativa. emprego. Mais tarde o diagnóstico surgiu, implacável: era uma leucemia.
E-a crise começou a instalar-se. Face à_ possibilidade-de morte e à angús-
O telefone é, com efeito, bem conhecido das equipas sistémicas e tia da perda, a mãe reforçou uma relação já bastante fusional e o pai
das famílias em situação de urgência (nomeadamente em situações de fechóu-se, protegendo~se, por-vezes, num afastamento mais fisico do que
104
(Des )Equilíbrios familiares _Família como sistema

emocional e num aumento de trabalho. Todos, mãe, pai e Susana, con- Pensamos ter clarificado que, apesar do seu potencial ansiógeno,
tribuíram para a instalação deste-padrão que, não-sendo totalmente novo, a crise não é má. Diríamos que ela é a porta de entrada da mudança.
ir-se-ia mostrando progressivamente·_ menos viável- para o desenvolvi-
Para muitos terapeutas o momento da crise constitui uma fase privile-
mento do- sistema.. Com o tempo e. os tratamentos bem sucedidos,
giada de iniciar um processo terapêutico. Por isso alguns induzem-na
prognóstico tomou;...se francamente favorável. Mas, naturalmente,
família continuava temerosa. Surgiu uma.nova gravidez. Embora já ante'~-;·;~­ mesmo (pela amplificação do sintoma ou pela sua prescrição) enquan-
riormente equacionada e posteriormente adiada dado- os acontecimentóS to que outros só iniciam o processo terapêutico em situação de crise 58•
relatados,. a nova criança surgiu,. também,. como um outro recurso. tera- Subjacente a esta postura está a ideia de que, pelo necessário rearran-
pêutico para Susana caso-esta viesse a necessitar de. um transplante .. _O_s jo das relações familiares que impõe à família, a crise permite que as
anos passaram, Susana cresceu e o medo foi passando. A mãe empregÜ'u~:-~ mudanças se instalem de forma mais profunda e mais eficiente.
-se e o pai recentrou-se num. sistema que foi evoluindo numa- clai-3.'t''1 Considerando a crise como a manifestação de um problema que fü,,;,
tendência centrípeta. Anos mais tarde foi confrontado com nova :cr:iSe)::;:-: implica todas as pessoas emocionalmente importantes para o P.I., o sis- ~:1:;;~:
agora de natureza conjugal: tema familiar oferece-se corno um recurso importante para a sua re-
solução. A terapia familiar da crise é, então, uma estratégia de inter-
venção que tem corno objectivo evitar a hospitalização, apoiando a
Crise Na resolução da crise, é extremamente importante o grau de f]e, família e ajudando-a a ultrapassar o problema que motivou o contacto
e sintoma
xibilidade com que o sistema familiar a enfrenta. Como vimos, a crise com o hospital ou o serviço. Insistindo na responsabilidade de cada
põe em questão o equilíbrio alcançado pelo sistema. Quando este é pessoa relativamente às suas próprias acções, este tipo de intervenção
rompido ou questionado, pela introdução de novos dados, internos ou dá apoio emocional a cada uma delas (podendo prescrever medicação
externos, o sistema tem que operar as transformações necessárias à sua a wn ou a todos os membros da família com o objectivo de diminuir a
nova adaptação ou, se quisermos, ao seu novo equilíbrio. Sistemas rí- tensão e de aliviar os sintomas). A alguns dos membros da família são
gidos, i.é, sistemas com regras de funcionamento demasiado estritas; prescritas tarefas específicas destinadas a introduzir novas estratégias
frenam a referida capacidade adaptativa e dificultam a evolução. É as- . de resolução de problemas no seio do sistema familiar. Há programas
sim que, em certas famílias, algumas passagens do ciclo vital, mais · que funcionam 24 horas sobre 24 horas, respondendo via telefone.
propriamente de urna para outra etapa do referido ciclo, são vividas ·:;:·,Outros intervêm, apenas, nas situações de crise aguda, assegurando à
como ameaça catastrófica. Nestes casos a família mostra urna grande .. família a sua disponibilidade de atendimento em situações füturas de
dificuldade em co-evoluir no processo iniciado pela mudança e trans- . crise. Alguns programas de intervenção em crises familiares têm
forma a crise numa avaria que se materializa num sintoma. O pedido ..' procurado identificar, antecipar e prevenir situações recorrentes de
que o acompanha é claramente paradoxal: "curem-no para que fique .s.tress, reduzir a sintomatologia do P.I., dirniuuir a necessidade de rein-
corno dantes, para que possamos voltar a ser a família que éramos". A :ternamento e melhorar o processo familiar de resolução do problema
transformação da crise em avaria visa, então, evitar a resolução efecti- ·•(Goldstein e Kopeikin, 1981, in Simon, Stierlin e Wynne, 1997, 391).
va da crise, privando o sistema das suas capacidades criativas. ~·sem
menosprezar o sintoma apresentado, o trabalho do terapeuta sistémico
consistirá em procurar a crise escondida por trás da avaria. Esta é uma :~"·'
tarefa árdua quando o sistema inclui - para além da família - os vizin- Jij Neste quadro, certos terapeutas desenvolveram o que designaram por terapia

hos e o sistema hospitalar" (Camdessus, Bonjean e Spector, 1995, 32). familiar da crise. Estas intervenções, feitas em situação de urgência, têm, no entanto,
um objectivo de transformação: por isso exigem um reenquadramento prévio do pedi-
(Everstine e Everstíne, 1983, in Benoit et al., 1988, 94).
"'.Ui. ru cu til w w w ru·· w w ·:iu w 10 wr w · · ru ··10 w ~, ID . ru·
106
(Des)Equilíbrios familiares

t CAPÍTULO 2
Muitas famílias, dissemo-lo já, conseguem ultrapassar criativa-
mente as crises naturais que o seu próprio desenvolvimento comporta. Desenvolvimento familiar
É de ambos, i.é, do ciclo vital da família e das crises associadas à pas-
sage1n de uma para outra etapa desse mesmo ciclo que vamos ocupar-
-nos no próximo capítulo.
Toda a vida humana comporta wn princípio, um meio e um fim. E
é também, sempre, um processo interactivo, em que se cruzam pes-
soas, objectos, situações, nos seus variados movimentos de vida e
evolução.
O desenvolvimento individual, até pelo seu concretismo, impôs-
-se-nos de h~ muito. É impossível desconhecer que não nascemos a
andar. Mas também todos sabemos que, em condições normais,
alcançamos mna enorme mobilidade motora que nos acompanha
durante grande parte da vida até que, um dia, de uma forma ou de
outra, voltamos a precisar de quem nos ajude a conduzir os nossos pas-
sos59. O mesmo diríamos quanto à alimentação: nascemos incompe-
tentes para nos alimentarmos sozinhos; podemos chegar a ser mestres
da cozinha e do comer; acabamos, algumas vezes, a ser nutridos pela
mão de outrem. Na conversa verbal, codificada, fazemos também um
percurso notável, tão surpreendente que parece magia: como é que a
partir de lalações atingimos conversas que traduzem pensamentos e
que geram novas conversas e novos pensamentos? Com efeito, em cir-
cunstâncias normais 60 , transformamo-nos, em todos os domínios da
nossa unidade bio-psico-social, num movimento espiral, ±eito de pro-
gressos e retrocessos, seguidos de novos avanços, em constante inte-
racção com o meio circundante. Diversos modelos têm teorizado este

59
Com efeito, já a esfinge questionava quem era o ser que, primeiro, andava a
quatro, depois, a duas e, finalrnente, a três.
w Exceptuam-se, obviamente, todas as situações em que crises acidentais e pro-

blemas particulares n1odificam a evolução esperada.


bi.1 çih 1.0·· ··!Li lia iU ~ ~ ua• [d ~ ~- ·i.L;j t~ ~ ,i;_1ii ~ w!fo ~ d;'.J i..:,jj

110 J 11
(Des )Equilíbrios familiares ~nvolvimento familiar

desenvolvimento individual, pontuando-o em etapas diferenciadas, nas das suas diferentes etapas, tem sido feita tomando como referência a
suas características e nas suas funções. família nuclear tradicional, composta por pai, mãe e filhos, e a idade e
Apesar da afirmação da interdependência entre desenvolvimento evolução do filho mais velho. As transformações a que temos vindo a
individual e meio, o significado da interacção foi, durante longos anos ,assistir, no que toca à constituição e composição da família 63 , levam-
basicamente entendido num esquema de causalidade linear, em que ~ -nos a equacionar a necessidade de se realizarem novas investigações
segundo influenciava o primeiro. Assim, e até pela sua falta de visibi- e novas sistematizações do(s) percurso(s) desenvolvimental(ais) da(s)
lidade", o desenvolvimento da família, entendida corno um todo, nem família(s). No entanto, e no entretanto, continuamos a considerar útil,
sempre foi considerado. E quando o foi correu-se o risco de ele tudo para quem pretende conhecer e intervir com a(s) família(s), tomar
dominar, esquecendo-se a importância do registo individual e da ver- como guia orientador deste desenvolvimento a proposta que Relvas
dadeira interdependência de ambas as evoluções. Como diz Bateson (1996b), à semelhança de outros autores, nos faz das diferentes etapas
(1987), a interacção é cumulativa e indivíduo(s) e família co-evoluem do ciclo vital da família: formação do casal; família com filhos
no seu processo de formação e desenvolvimento. É nesta dimensão que pequenos; família com filhos na 7scola; família com filhos adoles-
podemos encontrar o verdadeiro interesse e riqueza da conceptualiza- centes; família com filhos adultos.
ção do desenvolvimento familiar. Simultaneamente uno e diverso; Antes de iniciarmos nrna análise mais detalhada de cada urna
construção criativa de cada um e de todos os indivíduos, ao mesmo dessas etapas consideramos indispensável tecer mais algumas consi-
tempo. derações.
Ciclo vítal Assim, e "em síntese, o desenvolvimento familiar reporta-se à A primeira é tanto mais pertinente quanto vamos reportar-nos ao
mudança da família enquanto grupo, bem corno às mudanças nos seus ciclo vital da família nuclear. Apesar desta focalização, e da necessi-
membros individuais ( ... ) [e J o carácter desenvolvimentista desta abor- dade de separação e autonomia da família nuclear relativamente à
dagem reside especificamente na identificação de urna sequência pre- família extensa, todos conhecemos as naturais interdependências que
visível de transformações na organização familiar, em função de tare- se estabelecem entre as diferentes gerações. Como afirmam Asen e
fas bem definidas; a essa sequência dá-se o nome de ciclo vital e essas Tomson (1997, 53), "o termo 'ciclo' implica a 'roda' da vida familiar
tarefas caracterizam as suas etapas" (Relvas, 1996b, 16). que gira de modo interminável,' ligando as diferentes gerações". Dado
A marcação das diferentes etapas do ciclo vital tem variado con- o alargamento da esperança de vida, é hoje relativamente comum
soante os autores 62 , ainda que sejam relativamente consensuais os encontrarmos famílias com três e até quatro gerações. Assim, não
seguintes critérios de diferenciação: aparecimento de novos elementos podemos esquecer que os ciclos de vida de cada urna destas famílias se
e, mais propriamente, de novos sub-sistemas; tarefas de desenvolvi- entrelaçam e se repercutem uns nos outros, com todas as potenciali-
mento a realizar e, consequentemente, mudanças funcionais e estrutu- dades e vicissitudes que tal facto comporta. Estamos, actualrnente,
rais a operar; saída de elementos do núcleo familiar. É, desde já, 63
Com efeito, são cada vez mais frequentes as famílias reconstituídas, nomeada-
importante realçar que a conceptualização do ciclo vital da família, e n1ente as recasadas, onde é notório o entrecruzamento de diferentes ciclos de vida indi-
vidua! e familiar. A este aspecto aludiremos mais detalhadamente na parte final deste
61 Na realidade, e contrariamente ao desenvolvimento individual, a tradução com- capítulo. Nas fan1Ílias monoparentais, a falta de um dos elementos do sub-sistema
portamental do desenvolvimento familiar não é facilmente visível, a não ser pelas parental pode, de forma consistente, transformar a articulação das funções dos dife-
repercussões que tem nos seus elementos, o que, naturalmente, complexifica o seu rentes elementos e sub-sistemas, reflectindo-se na definição da hierarquia de poder e
entendimento e pode justificar o seu esquecimento. introduzindo perturbações no próprio cumprimento das tarefas familiares. Como vere-
62 Para um conhecimento mais aprofw1dado desta temática aconselhamos a leitu- mos mais tarde, também as famílías adoptivas, as de homossexuais e as comW1itárias
ra de Relvas (1996b, 16-25). apresentam singularidades que podem reflectir-se neste percurso desenvolvimentaL
112 113
~-
(Des)Equilíbrios familiares Desenvolvimento familiar

numa época marcada por uma forte cultura de individualismo e É provável que o lejtor, neste momento, se questione sobre o inte-
autonomia que toma difícil o equacionar das diversas necessidades de resse e a validade desta conceptualização do desenvolvimento familiar,
dependência64 relacional que todos temos uns dos outros. Nesse senti-_ uma vez que acabou de ser confrontado com algumas das suas limi-
do, o alargamento do espectro geracional se, por um lado, pode tações. I:<:m nossa opinião, o conhecimento das várias etapas do ciclo
enriquecer o tecido relacional das novas gerações e aumentar as suas vital da família, no equacionar das funções e tarefas dos diferentes sub-
próprias experiências de vida e os seus conhecimentos, dando também. -sistemas bem como da hierarquia de poder e dos modelos de comuni-
um apoio às gerações intermédias", por outro lado, pode comportar cação, permite dar-nos uma visão das suas características, potenciali-
novas fontes de stress pela necessidade de se (re)equacionarem, a cada dades e vicissitudes que, enquanto mero referencial, se toma útil na
nova crise, as inudanças a realizar pelos diferentes elementos e núcleos análise que pretendemos fazer de uma qualquer família, eventualmente
familiares 66 • da nossa própria. O risco que não podemos correr é o de normalizar
O segundo aspecto que queremos sublinhar tem a ver com os essa tipificação e desconhecer a singularidade de cada sistema, pois,
riscos que uma leitura linear do ciclo vital pode comportar. Com efeito; nesse caso, estaremos provavelmente a criar uma outra entidade que
a fronteira entre as várias etapas não é rígida o que significa que as. pouco tem a ver com a família com quem pretendemos interagir.
tarefas desenvolvimentais de cada uma não cessam no exacto momen- Pensemos metaforicamente para melhor compreendermos o que se
to em que se inicia a seguinte. Assim como, frequentemente, vão sendo pretende dizer. Todos sabemos que misturando algumas cores básicas
preparadas na etapa anterior. Por outro lado, há faruílias em que a dis- alcançamos outras compostas. Assim, azul e amarelo dá verde; ver-
crepância etária na fratria é muito grande o que, naturalmente, obriga melho e aruarelo dá laranja; azul e vermelho dá roxo; preto e branco dá
a família a realizar, simultanearuente, tarefas desenvolvimentais dife- cinza; branco e vermelho dá rosa; etc. Temos uma tipificação, uma
rentes61. grelha de cores. Agora experimentemos realizar cada uma destas mis-
ttrras em papéis diferentes, quer em textura quer em cor. Ou então com
cores básicas de tonalidade ligeiramente diferente. O resultado não vai
ser, de modo nenhum, igual. Ainda que continuemos a alcançar o
M Como é óbvio, não falrunos de uma dependência patológit.;a face ao outro mas verde, o laranja, o roxo, o cinza e o rosa. O mesmo acontece co1n as
antes da necessidade de vinculação que todo o ser humano ten1 e que, como se sabe, famílias. Nunca se é pai, mãe, fílho(a), irmão(ã), avó(ô), etc., da
permite o conforto e a segurança necessários à sua sobrevivência e desenvolvimento.
65 Como adiante referiremos, a geração intermédia é também designada como
mesma maneira, em cada uma das etapas, em diferentes famílias. Mas
"geração sanduíche".
é útil, para todos aqueles que trabalharu com famílias, ter uma ideia do
6ó Sobre este assunto confrontar Alarcão (1996). que é ser pai, mãe, irmão(ã), avó( ô), etc., de um adolescente de 15 anos
67 Esta é a razão pela qual autores, como Toman (1987), que estudaram a influên--
ou de mna criança de 6 auos. Por isso, aqui fica o convite para que o
cia da posição na fratria no desenvolvimento individual dos seus membros (ao nível leitor continue a percorrer as restantes folhas deste capítulo.
de características tais como a personalidade, a inteligência, as relações sociais, as
escolhas profissionais),_ consideram que um dos critérios de definição da posição fra-
ternal é exactamente o número de anos que separam os irmãos. Quando seis anos ou-
mais separam dois irmãos a fratria já se considera dividida em duas. Assim, p.e., na
seguinte fratria, António, 18 anos, Miguel, 16 anos, Maria, 14 anos, Clara, 4 anos,-
José, 1 ano, Toman considera que Maria é a irmã mais nova de dois irmãos e Clara a
mais velha de um irmão. Em termos do ciclo vital da família vemos coexistirem tare-
fas desenvolvimentais bem diferenciadas já que a família tem que lidar, simultanea-
mente, com filhos adolescentes e filhos pequenos.
e

lJilj li:mi uai··· ··~ t.Ot· ikl "


Ul.11 ~ ~- L.Ji {= I@ .l:.iJ,··· cbi ~ ~À ~ li..c& ,j.., 1.4 'l~~ t.AI.

1
A formação do casal

Casar68 é uma ideia que, pelo menos na nossa cultura, acalentamos


quase desde o berço. É certo que já passaram os tempos em que os
casamentos se negociavam sobre a alcofa do bebé. Mas nem por isso
os adultos vão deixando de pensar e verbalizar esse desejo, obviamente
diferido no tempo, e com ele vão ajudando a criança a modelar essa
ideia. Quantas vezes ouvimos pais, tios, avós, primos, amigos, colegas
ou simples conhecidos dizerem, olhando para duas crianças ou sim-
plesmente pensando nelas: "ainda pode ser que se casem!", "gostava
tanto que eles se casassem!", "faziam um lido par!"; "ainda vamos ser
compadres!". Noutros momentos, a referência ao par é menos perso-
nalizada mas nem por isso menos real: "quando fores grande e te
casares ... depois vais ter um bebé'', " ... depois vais dar-me netos",
" ... depois vais ter a tua casa, a tua mulher (marido), os teus filhos". As
próprias histórias que contamos às crianças, feitas à imagem dos nos-
sos comportamentos e/ou dos nossos desejos, começam ou acabam,
geralmente, com um casamento. Muitos dos brinquedos que lhes

6
~ Geralmente, na nossa cultura, ainda pensamos o casamento como decorrente de
um acto oficial, civil e/ou religioso. No entanto, neste texto, tomaremos como equi-
valente os casamentos legais e as uniões de facto, na medida em que em ambos existe
uma ligação afectiva entre duas pessoas que, vivendo sob o mesmo tecto, prosseguem
um projecto comum de vida familiar.
:~<'

116 117
(Des )Equilíbrios familiares ~ivimento familiar

damos já se organizam em pares. Tem algnrn jeito dar mn leão sem importante é que estes mecanismos não sejam exageradamente utiliza-
mna leoa? Os coelhinhos, os patinhos e mais um sem número de dos. Sobretudo a negação, o evitamento e a triangulação. E que se faça
bicharada, muitas vezes, já se vendem ligados! Toda a Barbie espera 0 algum treino de metacomunicação". Sabendo que não há receitas,
seu Ken ... E já reparámos, todos nós, no brilho dos olhos de mna crian- arriscávarno-nos a afirmar que esta talvez possa ser a única preparação
ça que vê, ao vivo ou na televisão, as cenas de um casamento? No seu possível para o casamento. O seu sucesso depende mais, em nossa
entusiasmo? opinião, do próprio processo que se desenvolve do que dos pré-reque-
Qual será a razão de toda esta emoção, de todo este culto que sitos que se possam amealhar.
atinge as mais diferentes idades, classes sociais, raças, credos? A
promessa, sempre sonhada, de amor, em primeiro lugar. Mas também Quando nos casamos damos origem a um novo siste1na, a nossa
de atenção, de sentimento de pertença, de partilha, de gratificação se- nova família, formando um sub-sistema particular, o conjugal. A sua
xual, de filhos. Eventualmente, de posição social e de bens materiais. importância advém de várias razões que passaremos a explicitar.
Ele é, desde logo, o esteio da relação que se estabelece entre os
Namoro Durante o namoro, constroem-se muitos planos e muitos sonhos; f cônjuges e, por isso mesmo, tem de ser alimentado ao longo da sua
iludem-se ou esquecem-se as divergências e os aspectos menos ama- vida. O início da vida conjugal prolonga, por um período mais ou
dos; ou fortalece-se a ideia omnipotente de que, depois do casamento, :. menos longo72 , o amor e a atracção sexual que juntaram os namorados.
com a convivência e muito amor, o outro transformar-se-á de acordo 1
com os nossos desejos e as nossas necessidades. Durante este período \•. tos, há dois anos, durante a semana. No fim-de-semana regressavam, cada qual, à sua
organizamos as nossas vidas para estar o máximo de tempo juntos, família de origem. Todos sabiam o que se passava mas todos fingiam que a Carla e o
Luís eram apenas namorados. E, na realidade, talvez só fossem namorados. A viver na
pois essa é a prioridade. Tempo que nunca nos chega e que nos deixa Í
mesma casa. Curiosamente, a Carla e o Luís não se apresentavam como casal; apenas
a sensação, às vezes a ilusão, de que depois do casamento é que vai ser i como n_amorados, mesrno perante aqueles a quem tinham contado toda a sua história
bom. Durante o namoro sentimos que o outro nos considera a pessoa e muitos dos seus segredos. Era1n, um para o outro, a PMI; imaginavam que, depois
mais importante (PMI), corno nós também o fazemos, e por isso é fácil do casamento (legal), tudo ia mudar, que cada um faria o outro mudar os aspectos
esquecer que ela( ele) tem família, amigos, responsabilidades, trabalho, menos apreciados e que, agora, eram postos de lado, afastados, porque depois ia ser
interesses especiais e outros compromissos. O tempo de namoro é diferente.
11
Poderíamos dizer que a metacomunicação está para a relação como o código
geralmente mágico e, por isso, presta-se a várias ilusões a maior das postal está para o correio: «é meio caminho andado".
quais é pensannos que conhecemos bem o nosso parceiro. É curioso n Todos sabemos que, em algumas situações, a ilusão de que falámos, a propósi-
como são infindáveis os tempos de conversa ... mas raros os da meta- to do tempo de namoro, quando confrontada com uma (outra) realidade muito dii'e-
comunicação. O que se compreende se pensarmos na habilidade com rente, provoca abalos tão profundos que podem conduzir, de imediato, à ruptura afec-
que iludimos, ou ultrapassamos, as divergências relativas às nossas tiva e efectiva do novo casal. Noutras situações o casamento prolonga-se, ainda que o
sub-sistema conjugal nunca chegue verdadeiramente a formar-se. Nesse sentido,
decisões. Mas o tempo de namoro é geralmente curto" e talvez não
podemos dizer que, de alguma forma, o processo abortou à nascença ainda que, em
possa ser vivido de forma muito diferente 70 • Diríamos que o que é mais certos casos, possa levar toda uma vida a desaparecer. Falamos, obviamente, dos
chamados casamentos de fachada que, por razões de natureza social (parece mal!),
69
E quando se prolonga cria uma interacção que os próprios parceiros têm difi- familiar (o que diriam os meus/nossos pais?; qu'ando vierem os filhos isto melhora..
culdade em definir. e [mais tarde] agora vamos esperar que eles cresçam!) e individual (não posso imagi-
ü É curioso pensarmos que nas situações de facto não assumidas, social e/ou nar-me sozinho(a)) se perpetuam ao longo dos anos. Independentemente destas situa-
7

familiarmente, a relação entre os parceiros é muito semelhante à de namoro, tal como ções extremas, o modelo relacional do namoro tem que transformar-se para dar lugar
a acabámos de caracterizar. Lembramos, a este propósito, a Carla e o Luís. Viviamjun- à vida conjugal. E isso pode levar mais ou menos tempo.
ÜJ CLl.I w·· ru w ·ro w·w w i.ül til li] lti! lil1 w üUl• •1ü i&ll• w r:..11 lal!
118 119
(Des)Equilíbrios familiares ------- pesenvolvin1ento familiar

No entanto, há um novo sub-sistema a formar e isso implica o desen~ Neste último caso, a dependência, nomeadamente em relação a
volvimento de novas funções e a realização de alg1unas tarefas básicas. urn ou a ambos os progenitores, aprisiona os vários elementos e pode
Para criar uma identidade própria e uma base segura, necessária ao seu criar, no jovem, o desejo e a necessidade de fugir, a todo e qualquer
crescimento, o sub-sistema conjugal tem que, num movimento cen~ preço. O casamento parece ser, neste contexto, uma boa alternativa74 :
trípeto, permitir, ao cônjuges, articular a sua individualidade e a sua permite a fuga, oferece urna companhia com quem se dividem esforços
totalidade o que, naturalmente, obriga também a uma diferenciação do e dificuldades e comporta o amor e o afecto de que estes cônjuges
mesmo relativamente a outros sistemas, nomeadamente em relação às parecem estar sempre sedentos. De forma um pouco mais perversa, o
respectivas famílias de origem. Qualquer um destes processos não é casamento pode ser encarado como um instrumento de manipulação
fácil ainda q·ue o resultado dos rnesrnos possa ser, e é-o muitas vezes, das famílias de origem, permitindo alcançar um confronto antes ina-
muito gratificante. tingível, uma vingança alimentada durante anos de frustração.
Há certos casos em que a autono1nia parece mais presente mas em
Individualidade Ao casarmos levamos na bagagem muito mais do que habitual- que, na realidade, ela é apenas aparente. Nestas situações a ligação
e coojugalidadc
mente pensamos. Transportamos heranças familiares e aquisições nos- emocional às familias de origem, e particularmente ao(s) progeni-
sas, numa melodia mais ou menos harmónica. Do contacto com os tor(es), é desdenhada pelo medo de ser afirmada".
nossos pais e das vivências que com eles tivemos, assim como das Em qualquer Uin destes casos, como facilmente compreendere-
inferências que tirámos acerca das suas próprias vidas (conjugal, mos, a interiorização dos modelos familiares de conjugalidade não se
familiar e individual), cada um de nós constrói um modelo de vida pes- fez, nem se fará'", por (re)construção individual mas apenas por
soal (afectiva, profissional e social), conjugal e familiar que, no casa- colagem ou duplicação negativa". Previsivelmente, a construção do
mento, mais concretamente na criação e no desenvolvimento do sub- modelo conjugal do novo par fica largamente dificultada pois, em últi-
-sistema conjugal, vai ter que ser confrontado e negociado com o do ma análise, a negociação é feita, de forma pouco consciente, entre
nosso parceiro. Ton1a-se claro que quanto mais diferenciado e
autónomo este modelo estiver do dos nossos pais mais probabilidades
teremos de nos apropriarmos integrahnente dele e de, num registo de 74
Referimo-nos, obviatnente, à perspectiva inicial do jovem. Em termos comu-
auto-co11fiança, o negociarmos com o do nosso cônjuge, criando, en~ nicacionais, esta solução tem, contudo, grandes riscos pois é fácil, neste contexto, sur-
gir uma coligação: inicialmente os dois cônjuges aliam-se contra a família de origem,
tão, um terceiro modelo que será o da nossa conjugalidade real, e já
ou contra parte dela; mais tarde, a coligação pode alterar-se e surgir uma aliança entre
não fantasmática 73 , e o da nossa nova família. Infelizmente, há situa- o cônjuge que pretendeu separar-se e a sua família de origem contra o outro cônjuge.
ções em que a diferenciação e a autono1nia em relação à família de 75
Esta situação resulta do receio que o sujeito tem de ser rejeitado na manifes-
origem são uma mera aparência ou não existem mesmo. tação das sua<; necessidades de dependência ou de vir a ficar delas demasiado depen-
dente. Obviamente que, nestes casos, o que correu mal foi o processo de vinculação
familiar. Bowcn (1984) designa este tipo de corte emocional, que o sujeito faz relati-
vamente à sua família de origem, particularmente aos progenitores ou seus substitutos,
n Por conjugalidade fantasmática entendemos a ideia que cada um de nós faz do por cut-ojJ, ou rejeição emotiva, e evidencia a pseudo-independência subjacente a todo
que é ser cônjuge e do que é ser casal, ideia edificada com base nos modelos da nossa o processo.
infância e da nossa adolescência, construídos na interacção que estabelecemos, desde !· A não ser que o _casal metacomunique profundamente sobre esta problemática,
7

logo, com os nossos pais e, mais tarde, com os nossos pares. Apesar de pensarmos que num contexto que, na maior parte das vezes, será terapêutico (p.e. em terapia de casal).
esta é a influência mais determinante, é óbvio que os valores, as atitudes e os com- 77
Com esta designação pretendemos significar que o jovem organiza um mode-
portan1entos de outros adultos significativos e da própria cultura em que estamos lo de conjugalidade apenas pela negativa, tentando ser o oposto daquilo que os seus
inseridos não podem ser esquecidos neste processo de construção. pais (ou cônjuges de referência) foram.
120 121
(Des)Equilíbrios familiares I:}e;nvolvimento familiar

modelos cujos autores só indirectamente participam. Estamos perante ~<fortaleceu-se uma ligação fusional que aS ligou toda a vida numa rede
casamentos minados! Quanto mais conhecedor o casal estiver do mapa cOmplexa de dependência, obrigações, ressentimentos e -culpas. Ligação
das ininas e quanto maior for o seu treino e a sua perícia de desmi- ,.,._tão-ftisional que sobreviveu a tudo: à sua própria consciência e crítica, às
nagem maiores serão as possibilidades de sobrevivência. Num registo - observações e- ajudas de familiares e amigoS, a uma cUiiíssima ligação
que não tem que ser feito de simples contra-ataques e que, por isso - ,__,.:té-rapêutica· que, antes que pudesse introduzir mudanças, foi. cortada. e
mesmo, pode chegar a alcançar uma certa diferenciação e autonomia ,,,,_ qµase anulada. Sílvia c_asou-se tarde e não. teve- filhos; A gestão da nova
e, com elas, uma relativa qualidade. Caso contrário, as armadilhas que · ::·-'díàde não foi fácil pois estava sempre triangulada. Desde logo; Carlos
se colocam ao novo casal multiplicam-se e podem levá-lo à dissolução. _-'. ..S.entiu que a aliança entre mãe e filha era muito grande. Ressentiu-se e
' 1

De entre essas armadilhas, as mais perigosas são as lealdades invi- ~-~:"co!neçou a lutar para ficar com Sílvia. Inicialmente não combateu direc-
, tainente a sogra. Mas depois, perante o peso da aliança, que muitas vezes
síveis" e as coligações negadas. No primeiro caso, o casal pode ficar
'--se transformou em verdadeira coligação, carlos tentou fugír à triangu-
prisioneiro da lealdade de um dos seus elementos à respectiva família
-'-:':')ação e, e1n verdadeira escalada-_ simétrica, começou a desqualificar a
de origem, lealdade essa tanto mais complexa quanto é, muitas vezes, ·':· s_ogra e, depois, a descorrfirrná-la, na sua relação directa com ela e na sua
ocultada. Dessa forma, o outro cônjuge desconhece o conjunto de dívic -, _ielação com. Sílvia. Esta ficou terrivelmente emparedada: a culpa segre-
das e obrigações intergeracionais que afectam o seu parceiro e, conse~ -dava-lhe que nãiJ deixasse a mãe; o ressentimento dizia-lhe-o contrário e
quentemente, se repercutem no próprio casal. A culpa e o ressentimen- Oferecia-lhe o marido, ainda disposto a ficar com ela. _Mas com- culpa e
to são, neste caso, ingredientes marcantes das várias relações, impedin- ressentimento não se vive bem!- Quando muito, sobrevive-se. Finalmente
do que cada uma delas possa ser vivida em toda a sua amplitude. Como chegou um aliado estupendo: um trabalho de muita, muita, responsabili-
entre ambas se estabelece uma relação recursiva, observa-se que o dade. Na família de origem.de Sílvia era ao trabalho que se devia a maior
ataque a uma delas conduz à amplificação da outra e assim sucessiva- lealdade de todas, nem que para isso tivessem que saCrificar-se algumas
mente. Até que o casamento morra ou se torne moribundo ou que, relações e alguns prazeres. Tinha sido sempre por essa via que Sílvia
embora mais raramente, seja a relação intergeracional a colapsar79 • tinha coiiseguido alguma liberdade. condicional. Naquele- momento- em
que os conhecemos, Carlos estava mais tranquilo pois,_ se não tinl1a Sílvia
Como alternativa, resta a metacomunicação e o re-alinhamento rela-
por completo, já não tinha que lutar tanto com a sogra, com a culpa e com
cional. E, com eles, a fuga à ratoeira. A propósito das lealdades fami-
o ressentimento de 'ambas. Além disso, era com ele que Sílvia partilhava
liares lembramo-nos sempre do casal .Matos. o trabalho! Sílvia, aparentemente,- estava mais satisfeita. Tinha- 3.diado a
culpa e o ressentimento. O peso da aliança tin11a sido ocultado e enchido
Sílvia de uma outra forma. Estava imensamente gorda. Pela Sílvia, pelo
Sílvia era_ a mais nova de uma loilga fratria de-irmãos. Fora muito:"' Carlos, pela mãe da Sílvia e por todos aqueles que carregam lealdades
desejada e herdara o nome da sua única irmã, que- morrera com doiS_::-i excessivas, mais ou menos ocultas, esperemos que a capacidade criativa
meses de idade, assim como a árdi.Ia tarefa de sobreviver a tudo e a todos~ dos sistemas os leve a encontrar saídas mais inteligentes e construtivas.
E, naturalmente, de cuidar dos pais, particularmente da mãe. Entre ambas

No caso das coligações negadas, o processo tem algumas seme-


7
Este conceito de lealdade fanüliar e de lealdade invisível é particularmente
x lhanças e ultrapassa igualmente a barreira geracional, provocando
desenvolvido por Ivan Boszormenyi-Nagy. Para um conhecimento mais detalhado imiscuições inter-familiares que revelam a fragilidade das fronteiras
desta temática recomendamos a leitura de Boszormenyi-Nagy e Spark (1973). ou limites existentes entre o sub-sistema conjugal e as respectivas
n É importante salientar que, noutra etapa do ciclo vital, quando já existem fi-
famílias de origem. Na coligação negada existe uma aliança, geral-
lhos, podem ser eles os herdeiros e os executores destas lealdades.
UJ w. ;w- - ~~... tu w w w w ......,.
~~{-"-.~ -(~.... ...
"'.li
iJ.P lb Ul m ib U.il· 1.lll 001 ru w w·· ru w
123
122 Õesenvolvünento familiar
(Des)Equilíbrios familiares

mente oculta, entre duas pessoas contra uma terceira de tal forma que mento e da viagem/estadia de núpcias 80 e, depois, com a tolerância face
um dos membros desenvolve activaruente comportamentos de falsa a uma" menor presença do novo casal nos referidos espaços. À medida
aliança com um segundo enquanto que, na realidade, protege aquele que se vai formando, ganhando identidade e segurança, o casal começa
contra quem estaria implicitamente coligado. Mais do que a comple- a abrir-se progressivamente ao exterior: aceita partilhar, mais frequente
xidade desta teia relacional, impressiona-nos o potencial mortífero e mais prolongadaruente, o almoço ou o jantar da grande faruília,
destas relações. Nunca nos esqueceremos, a este propósito, de uma regressa ao convívio dos amigos antigos, ou de outros novos que,
entretanto, arraaja, está mais disponível para férias conjuntas, aceita
família que atendemos há uns anos atrás.
tomar conta de sobrinhos ou primos pequenos, ouve mais outras
AD .. Maria pediu-nos ajuda para o ·seu filho, de 24.anos, casado e opiniões, etc., embora, não o esqueçamos, o primeiro grande marco do
c_~m- uma filha-de __ pouco maiS de-. um ano. O Pedro era -tOxicodepende:rlte;::_; movimento de abertura da nova família ao exterior seja, como adiante
e,juntamente com a mulher e.a-filha, oscilava entre· as estadias feitas-:ria_.:- veremos, o nascimento do primeiro filho.
casa paterria e aquelas em que ocupáva_o seu próprio lar. AD. Mária pa.re~:
eia ter um compromisso claIO com a ·sua norá, -Com vista.ao -i:ratamento-dO·.-; Todo o casal faz-se de três elementos: eu, tu e nós. Cada um deles Eu, tu e 11ós
filho e à potenciação da vida do casal. À medida que o processo fÔL tem uma identidade e uma vida próprias e nem o casal nem os cônjuges
evoluindo tornou-se visívél que-a coligãção .qlie parecia estabelecer_·C~il~--~~~ podem esquecer-se de que autonomia, partilha e negociação são, se
tra o filho era apenas uma forma de proteger a sua dependência e, coni • não palavras mágicas, pelo menos instrumentos fundamentais de arti-
ela, a Telação ·afectivari:lente_ :incestuosa.que seri:lpre tinham mantido.· _ :Q·--·.
. culação. O eu e o tu correspondem a cada um dos sujeitos: aos seus
próprio processo terapêutico tornoú-se-uma ameaça e a D. Maria àb8.nd0~:''
desejos, às suas necessidades, aos seus valores, às suas atitud_es, às
nou-o, levando, consigo, todos os "outros. Algum tempo mais tarde soube-_,
mos que--o Pedro estava sozinho em casa da mãe. A mulher tinha-regrC_s·:.::--.
0 suas expectativas, aos seus comportamentos, às suas aprendizagens,
numa palavra, às suas características fisicas, cognitivas, emocionais e
sado a casa dos pais,- com a filha de anibos.
morais. O nós engloba o par e diz, desde logo, respeito ao projecto e
ao processo de casal. Mas, como ninguém nasce de geração espon-
Temo-nos ocupado, até aqui, das dificuldades maiores que o sub- tânea, o nós representa, também, o casal que cada um dos respectivos
Diferenciaçofo
do casul -sistema conjugal pode encontrar na construção do seu modelo de con- progenitores foi e, além disso, as histórias que a família criou e desen-
jugalidade, particularmente quando um dos cônjuges, ou ambos, não
reorganizaram, de forma madura, as suas relações com a faruília de
origem nem reconstruíraru os modelos oferecidos pelos seus pais.
F elizn1ente, para todos nós, a construção do casal é, muitas vezes, um sn O Estado, a família e os amigos contribuem monetariamente, de forma directa
processo cheio de potencialidades, mesmo que, e isso acontece sem- ou indirecta, para que esta viagem/estadia seja uma realidade. Mesmo quando ela, por
pre, tenha que ser cuidadosa e carinhosaruente desenvolvido. diversas razões, não acontece, cria-se um espaço e um tempo diferentes para que o
Dissemos, anteriormente, q11e a formação do sub-siste1na conjugal casal possa usufruir de uma intimidade que lhe é necessária ao seu estabelecimento.
supõe um movimento centrípeto, de fecho relativaruente a outros sis- Curiosamente, quando há dificuldades, por parte do casal ou dos seus envolventes, de
aceitar este movimento de fecho, as '-'inva<>Ões" ou as triangulações surgem e a díade
temas envolventes, tais como a família de origem e a família extensa,
pode "não entrar com o pé direito" no casamento. Já todos ouvimos falar das "sogras"
os amigos, os colegas de trabalho e de lazer, o próprio trabalho. Com _que entram no quarto do casal para dar um recado urgente ou para, simplesmente, per-
efeito, a sociedade dá um tempo de moratória para a edificação do guntarem se está tudo bem. Ou dos casais, amigos e/ou familiares, que casarn no
novo sistema. Desde logo com a institucionalização da licença de casa- mesmo dia e partilham a viagem de núpcias dizendo que assim é muito mais divertido.
125
124 Desenvolvimento familiar
(Des)Equilíbrios familiares

Nem sempre a complementaridade cornunicacional assume esta


volveu sobre a conjugalidade"'. Além disso, como as famílias não oscilação funcional. Por vezes, os cônjuges cristalizam as suas po-
vagueiam no espaço nem estão isoladas no mundo, o nós envolve, tam-82 > sições criando um modelo de conjugalidade que se define pela equação
bém, a ideia que a comunidade e a sociedade envolventes adoptam • dominador/dominado"'.
Toma-se, pois, visível a necessidade que os cônjuges têm de construir Em alguns casos, o elemento dominado construiu a sua identidade
um nós pessoal, fruto de múltiplas iníluências mas com fronteiras : com base num modelo de vinculação insegura, ansiosa, e a relação de
claras relativamente a cada mna delas e aos sistemas de onde emanam, permanente dependência face ao par prolonga o estilo relacional que já
É, então, neste processo, que partilha e negociação se tornam funda- tinha na família de origem ou que, por razões defensivas"', não pôde aí
mentais. Em termos relacionais, a complementaridade torna-se o mo- explicitar. Nestas situações, satisfeita a necessidade de dependência, o
Crnnpkmenta·
ridade delo comunicacional por excelência, numa articulação oscilante das
sujeito sente-se geralmente confortável na sua posição, desde que, ao
posições one-up e one-down. Conhecendo e assumindo as diferenças nível do seu Eu, seja mantida uma zona de liberdade"'. Para o elemen-
existentes entre os cônjuges, o casal transforma-as numa vantagem em to dominador a posição é, durante algum tempo, confortável, sobretu-
vez de convertê-las num impedimento. do se ele se sente gratificado como prestador de cuidados e como
detentor de poder. No entanto, mais cedo ou mais tarde, as suas
Miguel .e. Ana-tinham uma clara· e flexível divisão de· tarefast arti;··''.'
próprias necessidades de dependência far-se-ão sentir e é provável que,
culadas em função dlls suas áreas de competência. Na cozinha Ana era~;
boa doceira e Miguel excedia-a nos salgados. Por isso, no dia- a dia,_ el~\i:~ de forma directa ou indirecta86 , ele reclame, do cônjuge, um apoio, difi-
acabava por ocupar-se mais das refeições, enquanto ela se agarrava___ a(<:;,~ ----·---
ferro, à.vassoura e ao pano d~ pó. Um dia, Ana, _que já.yinha sofrendo d.C'.-_-".-
~i O elemento dominado é frequentemente conhecido por vítima, sendo certo que
problemas respiratórios há algum tempo, descobriu que era-alérgica ao p~
e teve que reduzir_ ao mínimo· as limpezas .. Miguel ocupou-se delas e,
como o tempo faltava, ensinou a Ana alguns dos seus segredos culinários,
Foi tão bom professor e ela tão boa aluna que.as refeições, lá em casa,
continuaram atei a mesma qµalidade. Algum tempo depois, Miguel fetó;;,,, '{5
l dessa vitimização retirará alguns ganhos e algum poder, tanto maiores quanto mais
activamente reforçar a sua posição e, complementarmente, definir como dominante a
do seu parceiro. É nesta base comunicacional que funcionam os ca<;ais em que, p.e.,
. um dos elementos é alcoólico ou em que um dos elementos é violento.
· ~" Com efeito, pode aconlecer que a expressão das necessidades de dependência
mou- os estudos que interrompera no· 12º ano e entrou ·pará a de uma pessoa seja de tal forma punida na família de origem que ela se vê obrigada a
Universidade. Ana, mais habituada a lidar com esse meio, auxiliou-o bas'-~·-S-T' .'-_;reprimi-las, podendo sublimá-las (p.e. prestando ela própria apoio emocional a outros
tante, tanto na gestão do tempo e na organização do- método de estudo , ou escolhendo uma profissão em que tenha activamente que se ocupar de pessoas ou
como na organização de trabalhos- que Miguel tinha que fazer. fatntlias claramente necessitadas de apoio médico, psicológico e/ou social) ou adiá-las
para outro período da sua vida (solicitando-as, p.e., ao cônjuge e/ou à família deste).
g:1 Pensamos que, quando esta zona de liberdade não é permitida, o elemento

81
Esta dimensão transgeracional da conjugalidade é bem visível em expressões dependente, com o passar do tempo, pode vir a sentir algu1na asfixia. Se a sua posição
do tipo "na nossa família nunca houve divórcios", "na nossa família os casais sempre one-down se rnantém, de forma consistente e em todos os don1ínios da sua vida fami-
discutiram muito mas sempre se entenderam", "na nossa família os filhos estão sem- ': liar, e até profissional, é possível que nele se instale uma certa revolta que, quando mal
pre em primeiro lugar, depois é que vem o casal", "na nossa família quem manda são '.~gerida, potenciará, provavelmente, novos disfuncionamentos comunicacionais (p.e.
as mulheres, os homens só servem para fazer filhos". :.'através de comunicações paradoxais) e novas insatisfações (em boa parte resultantes
Mi Como ainda há pouco tempo dizia uma terapeuta familiar nossa amiga, a
um auto-conceito que se vai progressivamente empobrecendo).
propósito de uma conversa sobre a liberalização do casamento de homossexuais, gn lndirectamente essa dependência pode ser solicitada pelo aparecimento de um
"quando os meus filhos forem grandes a sua atitude face a esta problemática será com- qualquer sintoma (p.e. um problema de saúde), pela afirmação do envelhecimento e de
pletamente diferente da da minha mãe". Com efeito, os papéis do homem e da mulher, --\--',algumas das suas tradicionais características (esquecimento, menor agilidade, perda da
no casal, resultam de uma interacção recursiva dos discursos individuais, familiares e .,,,üeficácia de alguns sentidos), etc.
sociais.
-'ur-'lii lU lll fu ~=i ru ·1=• ta 1;; lÜ / ..
w··· llw ru tüi ·tia~ I.Q'l .tal
~ til! lill.
126 127
(Des)Equilíbrios familiares Desenvolvimento familiar

cil de prestar já que o casal não treinou a oscilação da complementari- comunicação. É natural que, num casal, apareça o desejo mútuo de
dade. Na relação de casal, como aliás em qualquer relação diádica, é
usufruir de um espaço e de llln tempo pessoais, dedicados ao exercício
importante não esquecer que cada pessoa deve valer por si mesma de algo de que cada um sente que tem necessidade ou gosto em fazer:
com as suas potencialidades e as suas dificuldades, pois, como di~ ler, passear_. conversar, ver televisão, estudar, dormir, ou, simples-
Satir (1997), ninguém consegue carregar muito tempo com o peso da mente, não fazer nada. Mas para que ambos possam ter esta mesma
outra sem que ambas fiquem inválidas. oportunidade é necessário que sejam igualmente complementares,
Noutros casos, a equação dominador/dominado permite' actualizar auxiliando-se e apoiando-se mutuamente. Como é fundamental, tam-
os papéis de vitimador e vítima que os sujeitos foram aprendendo, ao bém, que possam metacomunicar, isto é, comunicar sobre a sua comu-
longo da sua vida, em diferentes contextos (familiar, escolar, profis- nicação ou, se quisermos, comentar a informação que estão trans-
sional, social). A violência" que pode surgir nalguns destes casais con- mitindo.
firma e promove o estilo comunicacional que conhecem, pelo que
ambos os parceiros contribuem para a sua manutenção, mesmo quan-
A metacomunicação, na vida do casal, é algo extremamente
do a vítima assume o discurso, manifesto, de uma enorme infelicidade. importante: diríamos mesmo que é um elemento necessário à cons-
Meta<:oinunka\iío

Com efeito, é importante não esquecermos que o poder da vítima é trução e evolução do processo de casal, na medida em que ela possi-
muito grande e, normalmente, é aquele que ela sabe ter. Razão pela bilita, aos cônjuges, esclarecerem-se, negociarem, ultrapassarem con-
qual dele não quer desfazer-se". flitos, ligarem-se. Durante o namoro, dissemo-lo já, a díade esforça-se
Simetria Poderá, neste momento, parecer ao leitor que a comunicação fun- por potenciar os seus aspectos positivos e gratificantes, ignorando ou
cional do/no casal decorre da existência de uma complementaridade negando as partes menos amadas de cada parceiro e, até, dos seus
oscilante na relação. Na realidade não é bem assim. Se ela é necessária envolventes. Na maior parte das vezes, treina pouco a metacomuni-
não é, no entanto, suficiente. A simetria comunicacional tem também cação pensando que o amor é suficiente para fazê-lo. Com o casamen-
que existir no casal, aliás à semelhança do que se passa em qualquer to, muitas díades pensam que esse amor, confirmado num projecto
outro registo de comunicação. Procurando amplificar as semelbanças individual, familiar e socialmente assumido, é suficiente para que a
entre os comunicantes, a simetria permite, a cada um, o exercício da vida de casal se desenrole automaticamente. É curioso este engano,
sua própria individualidade e o treino da competição, consigo próprio porque todos sabemos que, para sobreviver, o amor tem que ser ali-
e com o outro. Por isso sentimos a simetria como um importante ali- mentado. Normalmente, os conflitos não resolvidos, as negociações
mento para o eu e para o tu do casal. No entanto, e é fundamental interrompidas e falhadas, as divergências sistemáticas de opinião, a
nunca o esquecermos, a funcionalidade da comunicação passa pela descoberta das características menos positivas do outro, os silêncios
necessária articulação e alternância destes dois modelos. Quando ela embaraçosos, as alianças e coligações inter-sistémicas, mais ou menos
não existe corre-se o risco de reificar u1n deles, surgindo a escalada negadas, tudo isto associado à tensão erosiva do quotidiano (em que
simétrica ou a complementaridade rígida, e de, assim, perturbar a muitas vezes se chocam interesses individuais, familiares, profissio-
nais e sociais contraditórios ou dificilmente compatíveis) são ameaças
s7 Ao falannos de violência reporta1no-nos a situações de agressão fisica e/ou ver- claras que só a metacomunicação, porque se situa num nível lógico
bal bem como a casos de desconfirmação sistemática e de negligência face às neces· diferente da comunicação, pode ajudar a resolver. A metacomunicação
sidades bio-psico-sociais básicas do sujeito.
R3 Para além do aspecto de aprendizagem a que já fizemos referência, é impor-
é, ainda, importante na medida em que nos conduz a uma clarificação
tante não ignorarmos a possível componente sado-masoquista existente no exercício e congruência comunicacionais que são, como vimos, ingredientes
desta interacção. fundamentais da relação.
128 129
(Des)Equilíbrios familiares Desenvolvimento familiar

Mitos Com alguma frequência, o processo de construção e desenvolvi- Célia tinha como mito que "marido e mulher serão sempre, aconteça
conjugais
mento do casal vê-se armadilhado por certos mitos. Uns são forte- 0 - queacontecer, os melhores amigos". Por isso tinha combinado com
mente sustentados por heranças familiares, outros por ofertas sociais Filipe que dor1niriam sempre voltados um para o outro, mesmo que, por
ainda que, em todos eles, haja uma reescrita pessoal que lhes dará u~ qualquer razão, se tivessem aborrecido. Durante vinte anos assim aconte-
cunho singular. Amor e casamento podem, então, estar fortemente ce-U. Ambos sentiam que quando esta regra fosse violada já não havia
conotados com perda de individualidade (física, cognitiva e afectiva), amor. Filipe considerava que "se a mulher o amava devia fazer tudo o que
num registo que, muitas vezes, apela claramente à fusionalidade, e ele queria". Ao fim de vinte anos ela sentia-se prisioneira. Se não comesse
a comida que ele cozinhava e de que ela não gostava isso era sinal de que
com omnipotência e ausência de conflito. "Se me amas não farás nada
já não o amava! Se não aceitasse prescindir do jardim em favor da horta,
sem mim". "Se me amas farás o que te digo". ''Se me amas dar-me-ás
bocado de terra que o marido primorosa e carinhosamente tratava,
o que eu quero". "Se me amas advinharás o que eu quero ou o que eu mostrava-lhe que não o amava. Ao fim de vinte anos, Célia e Filipe não
sinto". "Marido e mulher devem fazer tudo juntos". "Com amor mu- conseguiam separar-se mas também já se odiavam mais do que se
dá-la(o)-ei para a(o) tomar melhor". "Marido e mulher devem ser os amavam. Se um não fizesse o que o outro queria mostrava-lhe que o não
melhores amigos". Estes são alguns desses mitos, ou crenças, que po- amava; se o fizesse mostrava a si próprio que não se amava. Tinham fica-
dem agrilhoar os cônjuges, deixando-os presos de double-binds que do, ambos, prisioneiros de si próprios e do outro.
tomam a comunicação disfuncional.
Ao finalizar este breve percurso pela primeira etapa do ciclo vital
da família, gostaríamos de sublinhar, uma vez mais, a sua importância
Sara. e André tinham, como mito, a ideia de que "se se amassem de. - para o desenvolvimento da vida conjugal e da vida familiar. Como
verdade saberiam- sempre o que b outro 'desejaria". Um dia, já no con~ pudemos ver, inicia-se aqui, com a formação do sub-sistema conjugal,
texto de uma terapia de casal, e na sequência de um momento de tensão,,,._ um processo que será o esteio da vida do casal. Daí a exigência posta
André disse a Sara que _o que mais desejava era. que ela deixasse de lh~--.,­ na clarificação das suas fronteiras com outros sistemas (p.e. família de
servir as malditas caras de bacalhau. Sara, quando recuperou da surpresa;:>·-
origem, grupo de amigos), na definição do modelo conjugal (articu-
comentou: "eu também odeio caras de bacalhau mas estava convencidâ·'·-·
lação dos modelos individuais) e no desenvolvimento de uma comuni-
de que gostavas e por isso as fazia, tentando mostrar que também: me· cação funcional (articulação da simetria e da complementaridade,
agradavam". A1nbos explicaram aO terapeuta que, quando casaram, Saiâ'::·
perguntou ao marido o que gostava mais de comer para poder fazer- os:--' - importância da metacomunicação ). Mas a constituição e vida do sub-
pratos que mais lhe agradassem. André respondeu-lhe que gostava:de.:· -sistema conjugal são igualmente importantes a outros dois níveis:
qualquer coisa que ela fizesse e, então, Sara começou a tentar adivinhar como modelo de identidade sexual e conjugal para os filhos" e como
que André mais apreciava. Um dia, em casa da sogra, Sara julgou perce- < parceiro do sub-sistema parental. A esse dedicaremos agora a nossa
ber que o marido gostava de caras de bacalhau e por isso começou a fazê;.;:r atenção.
-las. Embora o marido comesse cada vez menos, Sara não podia imaginar
o que se passava. Com todo o amor tinha descoberto um dos seus pratos _ __
preferidos! André também não podia dizer nada pois admitir que a mu~-- _-
lher llão adivinhava as suas preferências signíficava que ela o amava.., ~· Reforçando esta ideia, V. Satir (1997, l57)·refere que os pais são os arquitec-
1

menos. Desta forma, Sara e André foram acumulando pequenos afastá- ._. tos do Eu sexual e romântico dos filhos e acrescenta que "é urna pena que os filhos não
mentas que agora se convertiam numa grande zanga. tenham conhecido os seus pais quando estes eran1 jovens: quando eram amorosos, se
cortejavam e se mostravam mutuamente amáveis. Quando as crianças já têm idade
suficiente para observar, o romance parece ter desaparecido ou ter-se ocultado".
A"Ú,f-C~ \ili• ,' r..1
(
··~ \jl: lloi riW- \biai . . rilíf h1â\ p;i -
-J;.Ut ldt ·lbf tú lM UUf ri11, lri -~ bi'I

2
Família com filhos pequenos

A segunda etapa do ciclo vital da famílía é marcada pelo nasci-


mento do primeiro filho. Com ele surge não só um novo sub-sistema
(parental) mas, também, novas funções, novas tarefas e um conjunto
de reorganizações relacionais, intra e inter-familiares bem como inter-
-sistémicas. Não podemos esquecer que é nesta altura que os pais
sobem de geração, passando a ter responsabilidades e experiências que
anteriormente pertenciam aos seus próprios país. Estes, por sua vez,
adquirem, igualmente, um novo estatuto e um novo papel.
Embora o tempo de gravidez já o prenuncie, é com o nascimento Cvnjugalidudc
e parentalidadc
do bebé real que vai começar a operar-se o ajustamento do sub-sistema
conjugal qne a parentalidade e as crianças exigem. Todos sabemos,
mas não é inútil sublinhar, que a conjugalidade não pode ser anulada,
nem mesmo ocultada, pela parentalidade; tem que ser com ela articu-
lada. Mas também sabemos que a parentalidade é, a todos os títulos,
um parceiro muito exigente. Conjugalidade e parentalidade têm, cada
uma delas, o seu ciclo de vida, desenvolvendo-se num espaço e num
tempo próprios ainda que permanentemente inter-actuantes. Vimos
como o tempo do casal se inicia na etapa.anterior e nela marca, habi-
tualmente, as coordenadas do seu crescimento futuro. Realçámos a
necessidade que ele tem de um espaço próprio, distinto dos espaços
individuais, familiares e sociais dos cônjuges. A dimensão temporal da
conjugalidade tem duas particularidades que importa realçar. Se, por
132 133
(Des )Equilíbrios familiares ~-v-o~lv-i~JU-e_n.ct-o~~~am--ci~li-ar~ .. ~~~~~~~~-~~~~~~~~~~-

um lado, se deseja e espera que a conjugalidade se prolongue para


Uma das primeiras dificuldades que o sub-sistema conjugal tem
além do tempo activo da parentalidade", por outro lado, o tempo con-
que enfrentar, a partir desta etapa, é, então, a articulação espácio-tem-
jugal é muito vulnerável e pode ser anulado ou interrompido, tem-
poral de ii.Jnções diferentes protagonizadas pelos mesmos adultos: na
porária ou definitivamente, por decisão de um ou de ambos os côn-
primeira etapa do ciclo vital os cônjuges têm que, fundamentalmente,
juges91. Pelo contrário, é-se pai ou mãe para toda a vida e não há von-
criar e alimentar o nós do casal e o eu de cada um deles; na segunda
tade pessoal que possa anular essa filiação". Um segundo aspecto
etapa, para além da manutenção destas funções, os adultos têm que
mostra-nos que, apesar de toda a tentativa de clarificação de fronteiras,
fazer crescer os filhos, socializando-os e possibilitando-lhes a cons-
o tempo conjugal é, durante os primeiros vinte anos de cada filho", fre-
trução de uma identidade própria que lhes permitirá alcançar níveis
quentemente intersectado pela parentalidade. Nesse sentido, o espaço crescentes de autonomia.
de intimidade que a conjugalidade cria e exige é, muitas vezes, atra-
Outra dificuldade diz respeito à configuração da nova trama rela-
vessado (real ou imaginariamente) por outras relações familiares que 0
cional. No par conjugal a focalização é feita na díade e a triangulação
perturbam e lhe podem dificultar a existência. A coexistência dos sub-
surge como forma de resolução (funcional ou disfuncional, no caso da
-sistemas, conjugal e parental, pode ser rica mas não é fácil. Caberá a
triangulação rígida) das tensões diádicas. Com o nascimento do
cada díade conjugal e parental ter a criatividade suficiente para não
primeiro filho a configuração triangular passa a estar presente e os
reificar' as vicissitudes com que possam confrontar-se.
vários elementos têm que aprender a viver relações diádicas e triádicas
sem fazer da triangulação uma nota permanente. Esta convivência
diádica e triádica complexifica-se, em nosso entender, por várias
?u Com a expressão "tempo activo da parentalidade" queremos significar o perío-
razões que procuraremos explicitar.
do de tempo, relativamente longo, em que os pais têm de exercer, de forma notória, os
seus papéis parentais. Quando os filhos saem de casa, para iniciar um novo ciclo fami- A díade surge, na vida do ser humano, como a unidade relacional º" ""'"
liar, os pais, mantendo o seu estatuto parental, alteratn claramente o exercício dessa
fundamental à sua sobrevivência, tisica e, sobretudo, psíquica94 • A à triade
parentalidade. Como adiante veremos, as relações pais-filhos desenvolvem-se no con-
texto da horizontalidade própria das relações existentes entre adultos e os filhos solici-
qualidade do vínculo é, durante os primeiros meses de vida, clara-
tam-nos cada vez menos, permitindo-llies usufruir de mais tempo e de mais espaço mente fusional" o que, naturalmente, afasta desta díade qualquer ter-
para a vivêncía da conjugalidade e da indívidualidade. ceiro. Na realidade, a intensidade e a exclusividade desta primeira
91
Apesar das dificuldades que qualquer processo de divórcio comporta, tanto relação" é tal que não só outros elementos ficam dela afastados como,
maiores quanto a decisão não é assumida e/ou desejada por arnbos os cônjuges, é pos-
sível finalizar uma relação conjugal. Quando há filhos, porque os cônjuges são tam-
bém pais e não podem ou querem demitir-se desse vínculo, as dificuldades relacionais 9

' Para maior conhecimento desta temática aconselhamos o leitor a consultar bi-
aumentam. A capacidade de clarificação de fronteiras entre estes dois sub-sistemas
, b!iografia sobre vinculação e desenvolvimento humano. A título de exemplo, e dada a
(por parte dos adultos e das crianças envolvidas) é fundamental para que a família
qualídade de aulor pioneiro deste tipo de investigação e teorização, aconselhamos
possa enfrentar positivamente esta crise acidental. consulta da obra de Bowlby.
9
' Embora possa haver pais e mães que, por diversas razões, se demitam do seu
95
<' M. Mah!er ( 1967), a partir de protocolos de observação de díades mãe-bebé e
papel parental é impossível afirmar a não filiação. O que se pode, e isso é algo diver-
: __ dos seus estudos sobre a psicose infantíl, apresentou _uma teoria do desenvolvimento
so, é afinnar a existência de diferentes figuras de vinculação. Esta é, sem dúvida, uma
realidade com que as famílias reconstituídas terão que contar.
~:-,psico-afectivo normal, dos zero aos três anos de idade, em que distingue três fases fun-
damentais; autismo normal (0-1 ºmês), simbiose normal (2º-9º/12º mês) e separação-
~ 3 É óbvio que esta quantificação temporal varia de família para família e, até, de -individuação (9º/12º- 24º mês).
filho para filho. Com ela pretendemos apena.<; referir o período de vida e1n que o exer-
cício da parentalidade se assume de forma rnais notória. % D. Wínnicott (1969, 168-174), em vários textos sobre a relação precoce,
~:>nomeadamente sobre o primeiro ano de vida, refere que a figura materna tem que, ini-
w ~- \ii ~ w ·w líil' {jj;J
k;,, __ ,
1Ui liiJ·· i•tt· ~.ir ·····tifi1 IM~
h-<i
J·· t.ut .~.
LQJ:·· fü iii~ 7~ ti.U.
134 J35
(Des)Equilíbrios familiares Desenvolvimento familiar

com bastante frequência, sobretudo nos primeiros tempos, outras pode ressentir-se e é relativamente frequente que o elemento masculi-
díades podem ficar afectadas. Muitas vezes, já no fim da gravidez, a no se sinta preterido 1º1 • Este é, pois, um momento de críse para o
unidade mãe-criança sobrepõe-se a outras relações, nomeadamente à processo de casal. Como toda a crise, também esta pode ser ocasião
conjugal. Mas é, sem dúvida, depois do nascimento que a díade mãe- de crescimento (de amadurecimento e consolidação do casal, na sua
-bebé ocupa um tempo e um espaço que alcançam territórios de outras tripla dimensão do eu, tu e nós) ou risco de perturbação da vida con-
díades. Na maior parte das vezes, o quarto do casal, espaço real e/ou jugal cujo epílogo será posteriormente escrito, num futuro mais ou
fantasmaticamente imbuído de privacidade, intimidade e sexualidade, menos breve 1º2 • Na resolução desta crise, parece-nos importante não
passa a ser, por um período mais ou menos longo", partilhado com um só a qualidade da construção conjugal anterior como a qualidade do
ser exigente que desconhece as horas do relógio dos pais e que, com- afecto conjugal presente, a relação entre a díade conjugal e a díade
pletamente centrado nele próprio, os solicita, sobretudo à mãe'", a parental'°" e a forma como esta última aceita a relação triádica. Com
qualquer hora do dia e da noite, em função das suas necessidades. Na efeíto, não é apenas o bebé que, após um período de simbiose normal,
sala, na cozinha, no carro, na rua, um pouco por todo o lado, a vida do tem que aceitar um terceíro, abrindo-se a novas relações. São também
casal reduz-se do ponto de vista quantitativo ainda que o mesmo não os pais que têm que aprender a relacionar-se diadicamente na pre-
tenha que acontecer no plano qualitativo. No entanto, dado que os sença de um terceiro. As característícas da criança vão ter, aqui, um
adultos são os mesmos, que a ligação mãe-bebé é muito forte, que a papel importante: se for alegre, simpática, saudável, facil no dormir, no
vida sexual se transforma99 e que novos ritmos se impõemrnº, o casal comer, no estar com os outros, nomeadamente com os pais, a tarefa
destes e11contra-se bem mais facilítada e a vida a três desenvolver-se-

cialmente, adaptar-se a 1 OOo/o às necessidades do bebé. Acrescenta que, para realizar


essa função, a referida figura "sofre" do que qualifica de "preocupação maternal nem transformá-las num conjunto de petiscos), transforma a ocupação dos tempos
primária" e que descreve como "um estado de hipersensibilidade - quase uma doença" livres dós adultos (muitos dos cinemas, dos teatros, dos concertos, das leituras de jor-
que, normativamente, e durante algum tempo, a torna unicamente preocupada com a nais e de livros ficam adiados para tempos mais favoráveis).
1 1
sua criança. º É neste contexto, em que um dos elementos do casal está emocionahnente
97 O tempo de permanência do bebé no quarto dos pais é algo que varia muito de n1uito ligado à criança e o outro se sente excluído, que podem surgir, por parte deste
família para família: ern função dos desejos, necessidades e medos dos pais e do casal, último, envolvimentos exteriores (novos amigos, relação extra-conjugal, hobbies, etc.)
das características do bebé, das condições habitacionais, etc. Algumas vezes, sobretu- que são, posteriormente, sentidos como traições ou ameaças ao par conjugal, even-
do quando o espaçan1ento da fratria é n1uito curto, é o bebé seguinte que desaloja o tualmente também ao par parental, e como elementos de exclusão do adulto anterior-
anterior, não deixando, no entanto, devoluto o referido espaço. Outras vezes, já a crian- mente ligado à criança. Este processo, como facilmente se compreenderá, para além
ça é crescida e ainda a partilha se faz. de encerrar um forte potencial de disfuncionalidade comunicacional no interior da
'
18
Quando falamos da mãe referimo-nos, naturalmente, à figura materna, ou seja, família nuclear, com possíveis ligações à família de origern, em nada facilita a articu-
à pessoa que desempenha o papel e a função maternal. Por simplificação, e porque lação diádica e triádica de que estamos a falar. Com efeito, só reforça a fusão diádica
habitualmente essa figura é a mãe, continuaremos a utilizar essa designação. ou as situação de cut-off emocional (Bowen, 1984).
99 Como Relvas (1996b, 79) refere "O aparecimento de uma criança traz consigo ioi Ainda que, em diversas famílias, a existência de filhos adie os projectos de se-

um decréscin10 na intinüdade e satisfação conjugal ern tennos globais e específicos, paração e divórcio sabemos que, por vezes, as novas funções parentais e a complexi-
como por exen1plo a nível das relações sexuais e do tempo e atenção mutuamente ficação relacional a que vimos fazendo referência.são, também, um motivo de pertur-
disponível entre os membros do casal". bação da vida conjugal e de afastan1ento, sobretudo num tempo, como o actual, em que
1m' Todos sabemos como a existência de um bebé e, mais tarde, de uma criança há uma procura impaciente de prazer e bem-estar, uma baixa tolerância à frustração e
impõe novos horários que não podetn ser desrespeitados ou demasiado flexibilizados ao sofrimento e um agudo sentimento do direito à individualidade.
(p.e. no que respeita à alimentação ou ao sono), obriga ao cumprimento quotidiano de wi Referimo-nos, obviamente, à qualidade das fronteiras existentes entre estes

regras alimentares (a sopa passa a ser uma obrigação, não se podem saltar refeições dois sub-sistemas.
137
~':e:nv:o:l~v:im=~e=n=to~fam==-~il~iar:::-~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
136
(Des)Equilíbrios familiares

-á, pensamos, com mais ganhos do que custos. O papel da mãe será cidade de diferir, no tempo, a satisfação das necessidades, sejam elas
igualmente fundamental embora nem sempre fácil. Preparada para a biológicas, cognitivas ou afectivas. Um outro apoio importante, do
simbiose, no plano físico, psíquico e social w4 , a mãe tem que a desen- qual a díade parental não deve privar-se, até para facilitar a vida à
volver ao mesmo tempo que tem que ir criando as raízes da futura se- díade conjugal, é aquele que pode ser oferecido pela família de origem
paração-individuação e do estabelecimento de novas díades, a primeira e/ou família extensa, pelos amigos, colegas de trabalho, vizinhos,
das quais será a do pai-criança. Este balanceamento entre vinculação e etc. 106 • Tão importante como a sua existência é a diversificação desta
separação, dependência e autonomia, relacionamento diádico e triádi- rede social: não só porque amplifica as potencialidades do apoio e não
co, é uma das tarefas mais importantes do desenvolvimento humano, satura nem esvazia os seus protagonistas como porque corre menos
familiar e individual; mas é, também, uma das mais dificeis. riscos de introduzir novas díades que, pela sua permanência, possa1n
Algumas das transformações sócio-familiares operadas neste vir a constituir-se como alvos de triangulação de díades em tensão.
século, sobretudo a partir da 2ª guerra mundial, consubstanciadas no Esta é uma situação que pode ocorrer, com alguma frequência, no con-
reforço da família nuclear, na igualização dos direitos e deveres dos texto de tríades transgeracionais que se organizam em tomo da nova
dois sexos e no incremento do trabalho da mulher fora de casa, asso- criança.
ciadas aos resultados das investigações realizadas, nas últimas dé-
Dulce e Rui casaram e ficaram a viver em casa dos· pais deste. Já
cadas, sobre a relação precoce, têm contribuído para que a presença do
:. tinha nascido o-João· quando foram morar com os pais de Dulce. A avó
pai se faça o mais cedo possível. Este começa a estar mais presente nas paterna, que entretanto enviuvara, tinha problemas de saúde e não podia
consultas de obstetrícia, na sala de partos, nas idas ao pediatra, no -:·· tomar conta do menino. Quando conhecemos esta família já o João anda-
jardim-infantil, na escola. Em casa, começa a participar mais na , va no 5°ano de escolaridade e Miguel, seu irmão mais novo, tinha entra-
mudança das fraldas, no banho do bebé, na rotina dos biberões ou das ,. _do para? lº ano da escola primária. Nessa altura ambas as cri-anças se
papas, no brincar e no deitar, nos estudos. Mas nem sempre é fácil para mostravam sintomáticas. Jbão tinha crises noctumas de falta de ar e
o pai: mesmo que o deseje muito, por vezes, a criança não o escolhe -Miguel apresentava uma enurese secundária à entrada na escola primária,
ou afirma claramente que prefere a mãe, ainda que esta tenha aberto a algumas dificuldades de aprendizagem e comportamentos de auto e he-
porta à entrada do pai. Também não fácil para a mãe: muitas vezes
sente-se dividida entre duas vinculações que, temporariamente, podem fantasiar por ele, o que supõe uma presença física quase constante. À medida que vai
tomar-se concorrentes - a materna e a conjugal. Nestes momentos, a crescendo Qá em pleno decurso da fase de simbiose normal) toma-se necessário não
metacomunicação ao nível da díade conjugal e da díade parental toma- só o progressivo afastamento fisico desta figura como a ocorrência de frustração, i.é,
-se fundamental, até para que ambas possam socorrer-se de um instru- de ausência de satisfação imediata da necessidade, para que o bebé possa ir aprenden-
do a diferir, no tempo, essa mesma satisfação. Desta forma ele poderá vir a aceder à
mento de que os adultos dispõem e em relação ao qual as crianças
capacidade de representação, tão necessária à vida humana. Em todo este processo há
estão ainda em lenta aprendizagem 105 • Falamos, obviamente, da capa- ainda uma outra condição fundamental: a figura de vinculação deve estar suficiente-
mente disponível e ser adequadamente responsiva (Bowlby, 1958, 1969, 1995) para
criar o sentimento de segurança necessário ao desenvolvimento da capacidade de ante-
104 Relembramos, a este propósito, o conceito winicotiano de "preocupação
cipação e, consequentemente, de espera. Para o aprofundamento desta temática acon-
maternal primária" e a moratória que, através da licença de parto, a sociedade dá, à
selhamos a leitura de W. Bion (1963, 1965).
nova mãe, para desenvolver normalmente a díade simbiótica. 10
~ O apoio que a rede social pessoal pode dar ao sujeito e, naturalmente, ao sis-
iu~ Como sabemos, no início da vida, o bebé necessita de un1a satisfação imedia
4

;-::- tema em que ele está inserido é algo que está suficientemente documentado e que, nos
ta das suas necessidades. Já anteriormente referimos a necessidade de adaptação a
:::·.:nossos dias, aparece, cada vez mais, como um recurso indispensável e a promover
1OOo/o da mãe ao seu bebé (Winnicott, 1969). Diríamos mesmo que, nesse período pre~
(Alarcão, l 998b).
coce do seu desenvolvimento, ele precisa que a figura de vinculação o adivinhe, possa
w <w
l111C,---, ..,,- -(-- -:--~----

uu· t~• ~· w ili ·~ l~imi !i.il l-'i íiill (~iíl ~- tü w Wl . li.li w .i~i. wr
138 - - - !39
(Des)Equilíbrios familiares ~nvolvirncnto familiar

1 mentaridade comunicacional correm riscos de disfuncionamento dada


tera-agressão (nomeadamente em relação ao pai). Pelas entrevistas que·• ·l
1
tivemos com a família pudemos perceber que se tratava de uma família":.;,-- a tensão a que ficam submetidos os diversos elementos. Metafori-
emaranhada, com dificuldades intergeracionais de separação. Dado que<
l
l camente, podemos dizer que a beleza e a qualidade da relação entre
ambos os pais trabalhavam ·e estavam ausentes de casa durante 1l::12i:/--~ ·estes vários elementos, sub-sistemas e sistemas se assemelha à de um
horas (das 7 .às 18-19 horas), João e Miguel ficavam entregues aos cuida, . bailado: se as díades e as tríades se articularem sem triangulações dis-
1
dos dos avós. Aliás sempre fora assim. Dulce tinha uma grande dívida-de':}_ funcionais teremos um importante e gracioso corpo de baile onde, a
gratidão para com os-seus pa'.is. No entanto, muitas vezes, sentia-se cuí~-~--­
1
seu tempo e sem atropelos, podem alternar diversos pas de deux.
pada por estar tão pouco tempo com os filhos e não gostava muito-da ed-U:'--_;"
Na gestão das relações triangulares, a dimensão e a resolução da
cação que os avós lhes davam. -O seu pai sofria_ de arteriosclerose- acen_:""'-·
tuada e, por vezes, ·tomava-se muito agressivo -com toda a famíli~i:_:.; tensão ou do conflito dependerá, então, do sentimento do elemento
nomeadamente com-os netos de quem tinha alguns ciúmes. A avó ora era'5 que, temporariamente'º', fique excluído. Corno diz Satir (1997, 201), o
muito rígida.ora era muito permissiva. Verificavam-se, frequentemellt~·; terceiro elemento tem a possibilidade de interromper a relação dos ou-
coligações· neste-triângulo relacional. Em certos momentos a avó e ·os-'" tros dois, de afastar-se dela ou de apoiá-la enquanto observador inte-
netos coligavam-se contra a-mãe. Esta ia ter com Rui mas este preferl::1/~ ressado. Como é compreensível, a sua decisão é importante para o fun-
virar-as-costas e deixar -correr. Não queria conflitos com os sogros -neffi ·:-_ cionamento do triângulo e das três díades que ele engloba (mãe-crian-
com a mulher. Algwnas vezes-em que a apoiara acabara por verificar qúe/ ça, pai-criança, mãe-pai). Para lidar funcionalmente com um triângu-
ela, logo a seguir, se aliava aos filhos contra ele. Já tinham definido que{. lo, i.é, para tomá-lo suportável é importante:
à sua frente, tomariam sempre-a mesma· posição educativa e que, .rélàti~ =~ a) perceber que ninguém pode dar a mesma atenção a dois indíví-
vamente às regras que definissem, não seriam permissivos. Ruí lembra~ duos ao mesmo tempo;
va, no entanto, todas as situações em que tinha deixado de ver futebol _na b) poder, quando se é o elemento excluído, manifestar verbal-
TV _pois, -contrariamente -ao previsto, a 'mãe autorizava os filhos:-'~:,,~­
mente o dilema que se vive para que sobre ele possa rnetacornunícar-
mudarem de canal_para verem-os desenhos animados. -Noutros rnomentOS-_;· -se;
a mãe-coligava-se .com os -filhos contra os· avós. Estes eram, no entantó~''.­
muito _ténues-dado .o peso-da dívida sentida. Apesar de todas as interfi~~:'::; e) poder demonstrar, com actos, que ficar excluído não é motivo
rências a díade conjugal, cheia de potencialidades, estava disponível para,· de ira, dor ou vergonha.
a mudança. A díade parental, quando pôde perceber que podia autono, . Por outras palavras, é fundamental que qualquer urna das díades
mizar~se sem -traição, transformou-se e assumiu o poder executivo qúe· sinta que tem espaço e tempo para se expandir e que nenhum dos ele-
-tinha delegado. Os .filhos ficaram--mais libertos para vivencÍarem relações:; mentos da tríade, particularmente o excluído, se sinta inseguro na
verticais-no seio da sua:família nuclear e abandonarem as triangulações-~:~ relação e com baixa auto-estima pessoal.
perversas em que ·anteriormente estavam envolvidos. ·
Retornando a análise das relações da família nuclear com a família Aberturn
Nesta articulação de díades e tríades, é importante salientar que de origem de cada um dos cônjuges, nomeadamente com os avós, ao exterior

não é apenas a família a única a estar envolvida. Numa época corno a podemos afirmar que essa é uma temática que esta nova etapa equa-
nossa, em que a actividade e a progressão profissionais assumem uma
enortne relevância para o equilíbrio financeiro da família e para a satis-
1
fação pessoal dos seus adultos, a chegada do primeiro filho vai ecoar, É importante sublinhar que estamos a falar de situações temporárias, marcadas
<11

também, nas díades profissionais e, por ricochete, na díade parental e, por uma flexibilidade relacional que se consubstancia na alternância das configu-
até, conj11gal. Estes serão momentos em que a simetria e a comple- rações. Quando o triângulo se rigidifica a comunicação disfunciona-se, dadas as coli-
gações existentes e a situação de double-bind do elemento triangulado.
140 141
e----· .
(Des )Equilíbrios familiares Desenvolvimento familiar

ciona a dois níveis: no plano das relações concretas e no plano dos levam à creche/amas ou ao jardim infantil. Mesmo quando a relação
modelos educativos. Contrariando o movimento centrípeto da etapa não é diária, o contacto e o apoio dos avós é, geralment~, o mais ofe-
anterior, a chegada do ·novo elemento inicia, progressivamente, um recido e o mais solicitado"'. É um apoio cheio de potencialidades e
movimento centrífugo 1ºª que não mais parará e que atingirá urna forte riscos. As primeiras estão consubstanciadas em dois aspectos fuuda-
expressão na etapa da família com filhos adolescentes. Socialmente mentais: por um lado, na ajuda que os avós podem dar ao sub-sistema
esta abertnra familiar ao exterior é muitas vezes ritualizada na cerimó'. parental, aliviando-o temporariamente de algumas das suas respon-
nia de apresentação do bebé. A pré-cerimónia faz-se ainda na mater- sabilidades e tomando-o mais flexível e criativo porque menos satura-
nidadew9 e nos primeiros dias de chegada a casa 11 º e a cerimónia pro~ do e tenso'"; por outro lado, na oferta de um leque de possibilidades
priamente dita fica marcada para o dia do baptizado 111 • Posteriormente, educativas e de experiências socializadoras que amplificam as ofereci-
serão as festas de anos a pontuar estes encontros. Sobretudo as das pela família nuclear, assim it1directamente auxiliada no cumpri-
primeiras, quando a abertura se faz fundamentalmente em relação ao mento das suas duas tarefas. A interna, de produção de iudivíduos
sistema familiar e não tanto a outros sistemas sociais. Outras datas do autónomos, e a externa, de socialização e de adaptação dos mesmos à
calendário anual, como as férias grandes, o Natal, o Carnaval, a Páscoa cultura circundante. Os riscos advêm, principalmente, de possíveis
surgem agora, aos adultos, corno momentos de encontro familiar, tão usurpações de poder, de choque de modelos educativos e do desloca-
ou mais solicitados quanto se vai alargando o número de crianças. mento, para esta área, de outras possíveis dificuldades relacionais. Por
Com efeito, a partir de certa altura, são elas próprias que activamente isso, é indispensável que entre o sub-sistema parental e o sub-sistema
solicitam esta abertnra. dos avós existam fronteiras claras, que os primeiros não se privem ne1n
O papel Ao nível das relações concretas, o contacto com os avós é, por demitam das suas funções executivas e que os segundos não queiram
dus avós
vezes, quotidiano: ou porque são os avós que tomam couta do(s) nelas interferir. É também vital que este alargamento geracional não
neto(s) enquanto os pais vão trabalhar, ou porque são eles que o(s) produza triângulos perversos. O que imediatamente nos remeteria para
a existência de dificuldades de vinculação-separação ao nível das duas
gerações de adultos, agora reactualizadas na vivência da mesma pro-
10 ~ Importa sublinhar que em certos casos, de maior tensão entre a família nuclear
blemática com a geração mais nova.
e a(s) família(s) de origem, o nascimento de uma criança é o único elemento que per-
mite o re-iniciar relacional que o casamento tinha cortado ou suspendido. As com-
petências do bebé, a este nível, são extraordinárias. Com efeito, é difícil que um bebé O exercício da função parental, por parte dos pais, conduz-nos, Organiza~ào da

não desperte um movimento, quase impulsivo, de aproximação. Por outro lado, o bebé, imediatamente, para a definição do modelo educativo. Tal como o afir- purcntali<húe

sobretudo quando é o prirneiro, cria novos papéis e novas funções, na famllia extensa,
que são importantes para a (re)configuração relacional no seio dos diferentes sistemas
111
familiares. Habitualmente as pessoas gostam de ser avós, tios, primos ... É importante não esquecermos que este apoio dos avós deve ser voluntário.
11 ~'Frequentemente, os quartos enchem-se de tal forma que as instituições têm que
Ivluitas vezes ele tem que ser solicitado, o que não significa, no entanto, que os avós
regrar as entradas. Assiste-se, então, a um vai-e-vem de visitas que, rnesmo cansando estejam menos disponfveis. Outras tantas vezes deve surgir espontaneamente, por ini-
a n1ãe e o bebé e correndo o risco de saber a pouco ao visitante, não deixa de ser, geral- ciativa dos avós, para que os pais não síntam que estão a sobrecarregar os seus
mente, sentido com alegria e prazer. próprios pais nem que estão a livrar-se dos filhos. De novo, este equilíbrio entre soli-
" Muitas vezes, nestes dias, a mãe tem a sensação de que entre mamadas,
11
citação e oferta inostra-nos a importância da clarificação de fronteiras inter e intra-sub-
mudanças de fralda, banho e visitas o tempo se escoa completamente, não deixando -sistémicas e da necessidade de uma elevada auto-estima e auto-confiança individual.
11
quase espaço para tratar, até, de outros aspectos domésticos. " lndirectamente, o sub-sistema conjugal pode, também, usufruir de maior
111
Quando, por convicções morais, não existe baptizado é frequente as famílias espaço e tempo o que será precioso para o reforço da satisfação de uma díade que é
encontrarem um espaço social análogo de apresentação do seu novo elemento. fundamental para a própria sobrevivência do núcleo familiar.
···-ui ·. .lll w· to w w ru tü w ···w·· ru ···w 1ui lU tu w w ,-itr UJ:i uur i'íi! ·.·
142
(Des )Equilíbrios familiares - !43
Desenvolvimento fàmiliar

mámos a propósito do modelo conjugal, também este resulta de uma reorganiza dois modelos parentais, o 1natemal e o paternal, aprendidos
construção progressiva, feita por ensaios e erros'". Como afirma Satir e triangulados na infância. O que significa que os novos pais se con-
(1997), ser pai ou mãe não é fácil e ambos têm que aprender a sê-lo na frontam com "quatro definições de parentalidade que se articulam
escola mais dificil de todas: a Escola Para Fazer Pessoas. Nesta esco- segundo o jogo de espelhos seguinte: 'eis como eu me vejo enquanto
la os pais são os professores, os directores, o conselho escolar, os auxi- pai, se tu fores a mãe que eu desejo que sejas; eis como eu vejo que tu
liares de acção educativa, os alunos. E são apenas duas pessoas. Para me vês como pai, a partir dos comportamentos de mãe que tu me
além disso, nesta escola não existe consenso geral sobre o curriculum, mostras!' e reciprocamente" (Benoit et al., 1988, 369). Na construção
são os pais que têm que construí-lo. Esta escola não tem férias, dias de do novo modelo de parentalidade vão ter, então, que articular-se estas
descanso 11 5, sindicatos, aumentos de salário. Está em funcionamento quatro representações. A tarefa estará tanto mais facilitada, pensamos,
365 dias por ano, pelo menos nos primeiros cerca de vinte anos de cada quanto a interiorização da parentalidade original 117 nos remeta para re-
filho'". Além disso, tem uma administração bicéfala, o que não facili- presentações satisfatórias e definidas pela positiva. Pelo contrário, se a
ta a acção. Educar os filhos é "o trabalho mais díficil, complicado, experiência filial da parentalidade não foi positiva é possível que o
angustiante e esgotante do mundo. Para conseguir ter êxito é ne- novo pai/mãe procure ser, com o seu filho( a), o pai/mãe que não teve
cessário dispor de toda a paciência, senso comum, compromisso, sen- mas que tanto desejou. No entanto, o que conhece é o que sente que
tido de humor, tacto, amor, sabedoria, consciência e conhecimento que vivenciou e, preso dessas emoções, pode vir, irónica e dramaticamente,
[os pais] tenham à sua disposição" (idem, 221-222). No entanto, e ape- a repeti-las ou pode agir, apenas, em negativo. Em nenhum dos casos
sar desta complexidade, ser pai ou mãe também pode ser a experiência terá a tarefa facilitada como em nenhum deles se sentirá gratificado.
mais satisfatória da vida, sobretudo quando se ouve dizer "mamã és Ao nível do par parental esta situação dificulta a negociação e a cons-
formidável, obrigado" ... trução do novo modelo já que há parceiros comunicacionais que estão
Para a nova família, cada um dos pais traz, consigo, o modelo de permanentemente omnipresentes e são rejeitados e bens herdados que
parentalidade que construiu na sua família de origem. Este condensa e não se desejam. A tarefa do outro elemento do par parental também
não está facilitada dada a paradoxalidade desta situação: a de ter que
co-erigir um edificio sobre alicerces rejeitados mas não desaparecidos.
114
Apesar de cada um dos filhos ser diferente, o que potencia a vivência da diver-
Tal como o salitre nas casas, que está sempre pronto a aparecer, com
sidade, é vul~ar ouvirmos os pais dizerem: "se voltasse atrás não faria da mesma
maneira", ou "se soubesse o que sei hoje nunca teria feito assim" ou, ainda, "com o as mais diversas configurações, coligado com os mais diversos mate-
nosso segundo filho já não fizemos as asneiras do primeiro; este ensinou-nos muito, riais e sempre disposto a fazer estragos, também esta parentalidade
foi a nossa cobaia". Subjacente a qualquer uma destas expressões está a ideia de que negativa 11 H é omnipresente e n1uito poderosa. Em termos cornunica-
educadores e educandos interagem recursivamente num processo que se vai cons- cionais, este par vai, provavelmente, conversar sobre conteúdos/infor-
truindo ao longo do tempo e que integra experiências presentes e passadas, assim mações sem poder chegar a acordo pois, na realidade, o que discute são
como projectos de futuro.
115
Daí a importância do apoio social de que anteriormente falámos e que pode ser
aspectos da relação. O acesso à metacomunicação problematiza-se
proporcionado por familiares, amigos, vizinhos, colegas de trabalho ou agentes insti-
117
tucionalizados. Por uma questão de simplificação, designamos por parenta!idade original o
"' Apesar de ser cada vez mais frequente, nos nossos dias, o prolongamento da
1
modelo de parentalidade que o sujeito constnüu na sua família de orige1n.
11
estadia dos filhos na dependência dos pais é verdade que a pressão educativa diária se ~ Por parentalidade negativa entende1nos a definição/representação que um
transforma com a aquisição do estatuto de jovem adulto, por parte do filho, o que fre- sujeito faz da parentalidade por oposição a um modelo que conhece mas que quer
quentemente coincide com a entrada no ensino superior, mais concretamente após a rejeitar. À semelhança, aliás, dos negativos, em fotografia, em que aquilo que se vê é
frequência do primeiro ou dos dois primeiros anos, ou com a entrada na vida activa. o contrário do que pretende visualizar-se.
144 145
(Des )Equilíbrios familiares Desenvolvimento familiar

pela dificuldade que há em comunicar sobre comunicações simulta- para sinalizar, não tanto a crise, mas o impasse em que ela caiu. Ou,
neamente presentes e ausentes. É por isso que, em situações seme- melhor dito, para solicitar a ajuda de que o sistema necessita para,
lhantes, a triangulação rígida com o filho( a) ou as coligações inter- auto-organizativamente, continuar o seu processo de crescimento.
geracio11ais aparecem com muita frequência. Nesse sentido, não illteressa que a família, os amigos, os técnicos, a
A construção da parentalidade não é, no entanto, apenas dificulta- própria comunidade procure1n os responsáveis, os causadores do pro-
da pelo tipo de situação que acabámos de referir. Uma excessiva sime• blema. Ironicamente podíamos dizer que, nesse "tribunal", todos pode-
tria comunicacional do par parental, porventura enraízada em idêntica riam ser réus, ou juízes, ou advogados, o que inviabilizaria o próprio
simetria, mais ou menos assumida, do par conjugal ou em dificuldades 'julgamento". No plano pragmático, o que é necessário é perceber
de assunção dos papéis parentais, pode, igualmente, perturbar este difí- como é que as pessoas podem m11tuamente ajudar-se a crescer e a viver
cil mas aliciante processo que é aprender a ser pai e mãe. Curio- mais felizes, auto-confiantes, seguras e solidárias.
samente, a língua portuguesa confronta-nos com a complexidade do A etapa que estamos a analisar revela-se como um importante ca- SHb·~i;tema
processo de que vimos falando. Parentalidade é uma palavra que não dinho para o sub-sistema parental e para o sub-sistema filial. Para a parental

existe no nosso dicionário. Pai, em português, apenas se reporta ao ele- criação do sentimento de pertença familiar é necessário, como já
mento masculino que tem um laço de filiação biológica ou adoptiva vimos, que ambos os pais filiem verdadeiramente os seus filhos, i.é,
com a criança. Ao elemento feminino que está nas mesmas condições lhes possibilitem a construção de um modelo interno de vinculação
chama-se mãe. Esta dupla designação retrata, simultaneamente, a difi- que lhes dê segurança para que, sentindo-se amados, possam partir à
culdade de construção de um projecto e de um processo comum que descoberta do mundo, de novas relações e de novos conhecimentos
não podendo deixar de ser o nós parental também não pode anular o eu (Bowlby, 1969, 1995; Howe, 1997). Mas para que os pais possam
e o tu de cada um dos pais'". Até porque, efectivamente, a função realizar esta tarefa é importante que, também eles, possam ter sido ver-
materna e a função paterna são diferentes apesar da sua necessária dadeiramente filiados pelos seus pais e deles se possam ter afectiva-
complementaridade e da sua relação com uma definição conjunta de mente separado (Bowen, 1984). Por outro lado, o sentimento de
parentalidade. Quando há ausência do nós parental e, em seu lugar, o pertença só será efectivo se este processo de vinculação-separação for
eu e o tu parentais se transformam, cada um deles, num nós, a parenta- duplo, i.é, realizado no interior da família nuclear e na sua articulação
lidade cinde-se e a triangulação rígida torna-se inevitável. Em casos de com as famílias de origem. O que novamente nos sublinha a abertura
ausência, demissão ou erradicação, para a periferia, de uma das figuras da família nuclear ao exterior, neste caso às famílias de origem, e a
parentais é muito frequente observarmos a parentificação de um dos necessidade do estabelecimento de fronteiras claras entre os vários sis-
filhos. temas e sub-sistemas em relação. O desenvolvimento de uma auto-esti-
Em todas as situações em que o sub-sistema parental tem dificul- ma elevada assim como de uma capacidade para ser solidário supõem
12
dades em nascer e crescer é frequente que um qualquer sintoma ºsurja que, desde tenra idade, o sujeito se tenha sentido amado, diferenciado
e reforçado nos seus movimentos de construção de uma identidade
positiva. Para isso, é importante que os pais, para além do que já ante-
119 Empregamos as designações nós, eu e tu em analogia com a utilização que riormente referimos, não invistam os filhos corno seus prolongamen-
delas fizemos quando falámos do casal. tos narcísicos, contaminando-os ou asfixialldo-os com projecções dos
12u Geralmente a manifestação sintomática faz-se ao nível do sub-sistema fiHaL

No entanto, pode acontecer que seja tun dos progenitores a ser o portador do sintoma.
Situações há em que encontramos vários elementos sintomáticos numa mesma família. ciclo vital, quando o sistema bloqueia, de forma significativa, a sua capacidade de
Pode ainda acontecer que este tipo de sinalização não surja nesta mas noutra etapa do mudança.
c}bf e~ w-- '-~oo ~ ..éL.
w .......... "
~ i
··.Üuf. w " w u
w· ·.tiOi· ··· ~M
lwJ
~-
1!.JIU. iou· '•
~,..,..
-Jõ,- ·uu·
1 i;l
.• - úlJ ..:..;..
146 147
(Des)Equilíbrios familiares Desenvolvimento familiar

seus desejos e necessidades não satisfeitas ou com projecções das suas ~rigem da mãe do Carlos os filhos mais autónomos morreram ou adoece-
partes menos boas que, assim, ficarn evacuadas. iàm gravemente).
A mãe do Carlos era uma umulher de armas''., a quem toda a família
devia muito. No momento em que nos pediu ajuda estava cansada de tra-
Conhecemos Carlos quando ele era adolesCente e a mãe se queixava zer toda a gente às costas embora também não quisesse-libertar-se desse
do seu elevadíssimo absentismo escolar, diríamos mesmo, do seu abari~ :. peso. Ela própria queria colo mas temia ficar ainda _mais dependente.
dono escolar. Preocupava-a, ainda, o seu mau comportamento .e a -s~_ Sentia o pai a envelhecer e tinha medo de ficar "órfã". Como não queria
agressividade bem como as más companhias. De manhã Carlos dormia;,à _ voltar a ficar prisioneira procurava uma-protecção em que pudesse ser ela
tarde- e_ à noite andava com mn grupo de adolescentes mais velhos, ·C~~'­ 0 -elemento activo. Carlos precisava dela. Sempre tinha sido assim e, ape-
nhecidos pela prática de co1nportamentos anti-sociais e pelo abandono aa!-- sar--de todas as ajudas técnicas que tinha tido, Carlos não es'tava a ser
escolaridade obrigatória. Carlos não respeitava os horários familiar~~-~-·:-'._ capaz de passar pela adolescência sem perturbações. Mas Marta, assim se
nem as regras parentais. A mãe sentia-se permanentemente agredida-pelo' _ éhamava a mãe de Carlos, era mna mulher muito inteligente e sensível-.
filho, tanto a nível verbal, ·pelas coisas que ele lhe dizia, como a níveL Sentia que, desta forma, podia agrilhoar Carlos como ela própria o fora
comportamental, pelas partidas que lhe fazia ou pela maneira como -reã~-; .pelo seu pai. Marta sabia que run amor parental muito grande dava vida
gia aos seus castigos, impondo indirectamente à mãe restrições compor:.:>' inas também podia matar. Assim, no seu Carlos que era também .ela
tamentais que a deixavam perdida (p.e. escondia-lhe o porta-moedas;' própria, ·Marta depositava a rebeldia, a provocação, a diferença a que
deixando-a sem o passe de autocarro e sem dinheiro; escondia-lhe o café\ sempre aspirara e que tivera de abafar. Mas, dado·o mito familiar de que
sabendo que a mãe sentia absoluta necessidade de tomá-lo). O relato dos;- .~· --independência era morte, física ou psíquica, Marta queria salvar Carlos
comportamentos sintomáticos apresentados por Carlos e alguns dadOS ·'procurando que ele fosse crunpridor e acatasse as regras familiares. Neste
anamnésticos surgidos na primeira entrevista, juntamente com a sua pos_~ jogo de impossíveis, e numa família onde todos, genuinamente, se
tura face à aprendizagem e à escolaridade obrigatória, levm1taram algti~.L-· .;· _amavam muito, o dilema perpetuava-se, até com ajuda exterior: o pai não
mas suspeitas d"e uma estrutura mental em vias de forte descompensaçã9~,,/~ conseguia ter um horário certo de trabalho pois o patrão só o tiriha a ele
No entanto, algumas redundâncias da interacção familiar,-nomeadarrieí-iie'-' como homem de confiança o que o obrigava a estar sempre disponível;
da relação entre a mãe e o ·Carlos, mostraram-nos que o registo _provo..: Carlos ·brincava com o· fogo,. num equilibrismo quase 'Ímpossível entre
catório era muito grande pelo que tentámos construir uma outra história dependência e autonomia; a mãe procurava prevenir algo que também
em que a família pudesse continuar a crescer, ·liberta das lealdades traris:. :~:-. .-.-_tinha que criar; o outro filho procurava ir crescendo sem.magoar ninguém
geracionais e dos múltiplos movimentos projectivos que entre os -vários-'V \-·.nem ferir-se a si próprio. Naquela altura, os Santos eram un1a família
membros se tecia1n. onde-o amor e a dedicação de todos era muito grande mas onde, por .se
Filha de uma fratria relativamente numerosa, a mãe de Carlos vivera -'-·emprestarem demasiado uns aos outros, a tranquilidade e a felicidade não
toda a sua vida entre o medo de desiludir o seu próprio pai, de quem ainda-:~ reinava.
muito dependia, e a vontade de o contrariar, manifestando, assim, a.sua->
independência e a sua individualidade. Ambos os pais de Carlos perten-.
ciam a famílias emaranhadas onde a separação e a autonomia eram senti~,. Enquanto sub-sistema parental, os pais têm que ser arquitectos de Relações
das como traições. Em alguns momentos da vida desta nova fa1nília dois tipos de relação. Com os filhos têm qne, simultaneamente, apren- verticais e
horizontais
nuclear acontecimentos surgiram que confirmaram os receios e os mito_s
der e ensinar relações verticais. Dessa forma serão os líderes de uma
dos pais de Carlos (p.e. quando o pai de Carlos, para não abandonar:'a
relação de poder, firme mas não autocrático, marcado, nesta etapa, por
família, teve que afastar-se da sua própria família de origem a sua mãe.·
adoeceu gravemente tendo, mais tarde, vindo a falecer; na família de_,:.; uma forte posição de complementaridade one-up. Este será um poder
que, embora vá admitindo, ao longo da vida, níveis cada vez mais

148 (! 49 ---;-c----c-c:--c:-c---
.~OeSefivolvimentofamiliar -------------------
(Des)Equilíbrios familiares ,-;'_<

amplos e complexos de negociação, não poderá inverter-se nem estará ' circular funcionalmente entre os diversos poderes, interagindo de
acessível a pedidos de demissão'". Mais ainda, supõe um acordo acti- cforma específica com cada um deles.
varnente partilhado para que se torne funcional e construtivo o seu
exercício bicéfalo 122 • Entre os pais e com outros sistemas familiares e -~-f:;['_ ,_ --Mimi tinha-pouco mais de um ano. Adorava ir para a cozinha tirar os
,_ ~~:~h6s. de dentro dos armários, iniciando um concerto estridente- que lhe
sociais as relações serão horizontais e, por isso mesmo, mais simétri-
'fifdava um prazer supremo. A mãe- achava que essa actividade era esti-
cas. O grande desafio que ao sub-sistema parental se coloca, neste con-
--;_t:-_:-~Ulante e gratificante para a_ bebé e _deixava-_a. fazer o que ela queria. A
texto, parece-nos ser o de ter que co-evoluir com diversos poderes que, iJ1_"aV-ó, quando asSi_stira pela primeira vez a_o espectáculo, ficara- irnpres-
embora necessários, não podem, em algum momento, dispensá-lo do '/islonada. Falara mais tarde com a filha mostrando-lhe que não só algnns
papel executivo que assume no interior da família. Como explicitare- '.~-jiéhos eram demasiado pesados como" era pouco educativó não criar ne-
mos na etapa seguinte, a propósito da articulação entre a família e a ,. ;l::''nhum tipo de regra ou contenção. Mimi, na cozinha-da- mãe, passou a
escola, a arte deste processo parece estar na assunção da diversidade ·;fd)rincar com um-armário e meia dúzia de testos e panelas. Em- casa da avó
qualitativa de cada um destes poderes assim corno da dimensão exe- ·0~Miri:li sabia que não podia ir para a cozínha desarrumar armários. Mesmo
cutiva que cada um comporta no seu contexto específico. Uma vez ~-quando lá.ia-com- a-mãe continha-se e não provocava ninguém. O seu
mais, a auto-estima de cada um dos (sub )sistemas, a sua segurança e a ::::Prazer em casa da .vóvó- era mexer ·numa grande-taça de vidro que tinha
aceitação da complementaridade serão elementos importantes para a ; pedrinhas lá dentro. Quando lhes tocava até parecia que elas cantavam!
co-habitação desses diferentes poderes. Se as fronteiras forem claras, e <::;;Embora a mãe e-a avó tivessem ideias diferentes, Mimi tinha aprendido a
se o respeito pela diferença for urna regra, as próprias crianças saberão -respeitá-las e ganhara dois prazeres diferentes. As duas senhoras tro-
cavam ideias,_ ajustavam-se e contitiuavam defmindo o que, em cada uma
,,, das- suas casas, era permitido e proibido.

111 É importante acentuar que os pais não podem, de forma alguma, deixar de

exercer a sua autoridade parental, com regras bem definidas, assentes em valores
Com o nascimento de mais urna criança a trama relacional de que Sub·sist~mn
frnternal
claros e veiculadas por uma comunicação funcional. Como não podem, na maioria das vimos falando cornplexifica-se: o número de díades e tríades aumenta;
situações, abandonar a sua posição de complementaridade one-up, ainda que, à medi- podem surgir novas alianças, coligações ·e triangulações. Os papéis
da que os filhos vão crescendo, se multipliquem as vezes em que estes se revelam tão familiares são basicamente os mesmos mas, na realidade, não se con-
ou mais competentes do que os pais. Na relação com o sub-sistema parental, o sub-sis- segue ser pai e mãe da mesma forma com diferentes filhos. Corno tam-
tema filial faz uma aprendizagem extremamente importante para a vida: experimenta
bém nunca se é filho da mesma forma qualquer que seja a família con-
como se pode lidar com um poder desigual. Assim, a amizade, a cooperação, o
entendimento entre pais e filhos não podem ser entendidos como sinónimos de siderada. Isto mostra-nos que a relação tem urna dimensão recursiva
relações horizontais. Essas experimentam-se na fratria. Isto é fundamental para que ,;. que não pode ser negada nem esquecida. Por outras palavras, em todos
pais e filhos possam ajudar-se numa aprendizagem que, sendo fundamental, não é .· 'ros tempos e espaços da vida familiar não há nenhum elemento que ape-
muito fácil: a do exercício de mn poder democrático, claro, flexível e tecido no nas influencie ou seja influenciado pelo(s) parceiro(s) com quem está
respeito pelos direítos e pelas diferenças individuais. Em síntese, os pais têm que, relação directa. Os que observam ou os que estão ausentes nem por
enquanto sub-sistema executivo, exercer a autoridade, ensinar a liderança e clarificar
deixam de ser menos importantes para o desenvolvimento do jogo
a delimitação de fronteiras inter e intra sub-sistémicas.
122 Com efeito, todos sabemos como é vulnerável à triangulação o exercício do
relacional.
poder parental. As crianças são exímias, desde tenra idade, em explorar as diferenças Concomitantemente ao aparecimento de um segundo filho nasce
e as divergências parentais o que pode potenciar o desenvolvimento de coligações que outro sub-sistema que se revela igualmente muito importante. Esta-
ameaçam a eficácia do sub-sistema parental e o próprio crescimento individual e naturalrnente, a falar do sub-sistema fraternal, espaço e tempo de
familiar.
\,J:..· e w •.,i.. U ··..».. "'1.J·•. -,
~
~-

~··
H
U;t ~
, 1/-_,
l.U 00 w ~

íJlj w··· ·GJ k.!~ ua ~ ·~


ru
152
(Des)Equilíbrios familiares

seus próprios problemas e conflitos. Para os pais, esse balanceamento


3
entre presença e ausência não é fácil de fazer. Não há manual de ins- Família com filhos na escola
truções e as aprendizagens têm que ser feitas, por todos, à medida que
a família se vai desenvolvendo e as questões vão surgindo.
Deduz-se, do que acabámos de dizer, que a gestão de relações ver-
ticais constitui algo de fundamental ua relação pais-filhos. Tinhamo-lo
já anteriormente afirmado mas não será demais repeti-lo. A evolução
da família, ao longo do seu ciclo vital, emprestará coloridos diversos a
toda esta teia transaccional. Será, então, altura de procurarmos saber 0
que se passa na etapa seguinte.

Mesmo para as crianças que frequentaram a creche e/ou o jardim Encontro de


dois s;stemas
infantil, a entrada na escola primária representa algo de significativa-
mente diferente 128 , tanto na vivência interna da família quanto no esta-
belecimento das suas relações com os outros sistemas, nomeadamente
com o escolar. Por essa razão consideramos esta como uma etapa dife-
renciada da anterior. Tentemos compreender em que aspectos isso
acontece e de que forma é que a crise que a acompanha se pode trans-
formar em ocasião de crescimento ou em risco de impasse e bloquea-
mento do desenvolvimento familiar e individual.

iw Apesar de poder ser útil que, no final da etapa anterior, o sistema pré~escolar

comece a preparar a criança e os pais para as novas exigências que a frequência esco-
lar itnpõe, tanto ao nível do comportamento como das aprendizagens, parece-nos fun-
damental que a antecipação não seja exagerada para que cada momento possa ser vivi-
do na sua própria especificidade. Há, actualmente, unia tendência para prevenir a falta
de tempo antecipando-o. Procura-se, num mundo altamente competitivo e programa-
do, pré-preparar tudo, dotando as situações e as pessoas do maior número de recursos
disponíveis e conhecidos. Ternos a sensação de que, contrariamente a estas intenções,
só conseguimos aumentar o sentimento de exiguidade temporal e de que diminuímos
uma aprendizagem fundamental (o aprender a aprender) e uma capacidade vital (o
poder reter infürrnação para conexionar aprendizagens e saberes), tão rápido e tão pro-
fuso é o acesso à informação. Num mundo interligado pela Internet, é suficiente um
simples n1ovimento de teclas para fazer aparecer e desaparecer a infom1ação desejada!
150 !51
(Des )Equilíbrios familiares ])eSenvolvimento familiar

aprendizagem e de treino de relações horizontais, i.é, de relações entre suas competências e das suas possibilidades. Com base nelas assim se
iguais. Em termos de socialização, esta é, sem dúvida, uma experiên- lhes atribuem papéis diferenciados"". A posição na fratria é, obvia-
cia relevante já que é nesse sub-sistema que se vivenciam e modelam mente, um outro elemento a considerar. Ainda o segundo irmão não
emoções e sentimentos de solidariedade e de competição entre pessoas nasceu e já se diz à criança "depois vais ter que portar-te bem para
que estão ao mesmo nível, que têm o mesmo tipo de poder. No inte- dares o exemplo ao mano"; depois do nascimento, o mais velho passa
rior da família, o sub-sistema fraternal constitui um importante esteio frequentemente a ouvir "vá, empresta ao mano que ele é mais pequeni-
para o desenvolvimento de cumplicidades, companheirismos e apoios no e ainda não entende ... ". O filho mais novo, a partir de certa altura,
de que os filhos têm necessidade, na sua relação com os pais e com eles começa a perceber que só em ocasiões muito especiais é que pode ter
próprios. A própria criação do sub-sistema fraternal facilita a gestão roupa nova pois o(s) irmão(s) consegue(m) sempre a habilidade de a
das triangulações relacionais que, uma vez aumentadas, podem mais roupa deixar de lhe(s) servir antes de estar velha. O estatuto e os papéis
facilmente flexibilizar-se'". Obedecer ou contrariar os pais pode ser dos vários elementos da fratria vão ser importantes na gestão do poder
mais fücil com o apoio do(s) irmão(s). A sua presença pode constituir que cada um nela assume e embora haja irmãos mais ou menos
um espaço intermédio importante para a aprendizagem da separação e poderosos é importante acentuar que as alianças, as coligações e as
da construção da autonomia, não só por parte dos filhos como também negociações são feitas entre elementos que têm, entre si, relações ho-
dos pais 124 • Como veremos mais tarde, sobretudo na adolescência, ter rizontais. Para que essa aprendizagem seja efectiva toma-se funda-
alguém que tem o mesmo estatuto que nós, que passa pelo mesmo tipo mental que os paiS não se envolvam demasiado na gestão das relações
de experiências, aventuras, gostos, receios, dificuldades, pode ser uma fraternais, pois, nesse caso, serão facilmente chamados a triangulá-las
experiência de inestimável valor 125 • nas situações de tensão ou de conflito, abrindo as portas para alianças
A forma co1no se organiza a fratria, no que diz respeito às relações e coligações transgeracionais que em nada facilitam a comunicação e
de poder, às funções de cada um dos seus elementos e, naturalmente, o funcionamento dos sub-sistemas parental, conjugal e fraternal. É
ao tipo de comunicação dominante, é largamente influenciada pelas claro que quando as crianças são muito novinhas os pais têm que ter uma
expectativas que a família (os pais, os avós, os tios, os irmãos) têm intervenção mais acentuada junto do sub-sistema fraternal, ajudando-o a
acerca das características individuais de cada umas das crianças, das experienciar situações de cooperação, solidariedade, competição e re-
solução de conflitos. À medida que vão crescendo os pais têm que se ir
1• 1 Situações há em que, apesar de uma fratria mais ou menos numerosa, a família afastando"' para que elas possam aprender a resolver, entre pares, os
se estrutura com base numa triangulação rígida, feita, apenas, com um dos filhos. Estas
são, no entanto, situações em que a família bloqueia a sua capacidade de criar novas rn,É com base neste jogo interactivo que, numa família, pode definir-se, p.e., que
comunicações/relações, necessárias à continuação do seu pleno desenvolvimento. o estatuto de filho mais velho, de primogénito, passa para o segundo filho já que o
12 ' Com efeito, pode ser mais fácil, para os pais, autonomizar os seus filhos saben-
primeiro é uma rapariga. Noutra família, pelo contrário, a orientação da fratria pode
do que eles não estão sozinhos nesse processo e que podem en(.;ontrar, na fratria, recur- ser confiada à segunda filha, já que o primeiro é um rapaz e as raparigas são aí con-
sos para fàzer face a eventuais dificuldades e ansiedades. sideradas como mais responsáveis. Noutra família, de duas filhas, o poder, na fratria,
115
É importante acentuar que o valor suportativo da fratria não implica a ausên- pode ser atribuído à segunda pelo facto de ser essa a mais calma, a mais responsável,
cia ou anulação de afectos menos positivos entre os irmãos. A sua vivência pode ser, a mais cordata.
121
até, muito positiva desde que os mesn1os (e a própria família) possam sobre eles meta- Neste afastamento os pais têm, basicamente, que aprender a estar atentos e
comunicar. Obviamente que há fratrias em que esta dimensão suportativa pode estar disponíveis mas fora de cena. E os filhos têm que perceber que, enquanto irmãos, as
ausente. Nesses casos, no entanto, será impo1iante compreender o seu valor no con- peças são deles, sobretudo nas histórias e nas representações. Quando muito, os pais
texto global da família (nuclear e extensa) e, até, dos metacontextos (p.e. a escola, a podem ajudar nos cenários e podem funcionar como directores gerais do teatro mas
própria comunidade) em que está inserida. não como encenadores da represent:'lção.
-·•J1.· ·. ··UJ ·iiJ. u..i.·· ·.A.. t'/'' ...
iLJ ·.L L..j····· ~' L..ir l~ LU
"
wc1ii UiJI tu 11!11 Uú â.U iii lü i:íii
154~~~~~--~~~~~ !55
(Des )Equilíbrios familiares Desenvolvimento familiar

Para a criança 129 , a entrada na escola primaria traz consigo a junto de encontros, tece-se 132 num contexto muito particular sobrede-
promessa de uma mudança de estatuto e de uma aproximação ao mun- terminado por dois aspectos essenciais: a partilha de objectivos e
do e ao poder dos adultos, particularmente traduzido no saber. Com- funções idênticas, por um lado, e a mútua avaliação, por outro lado.
porta, naturalmente, uma promessa de autonomia que, pelo menos em Com efeito, tanto a família como a escola têm a obrigação de educar a
parte, compensa os temores que a separação pode encerrar. criança, i.é, de ajudá-la a desenv·olver-se na sua tripla dimensão bio 133 -
Para a família, a entrada na escola primária constitui o primeiro psico134-social135. No entanto, o estatuto, os papéis e os objectivos espe-
grande teste 130 ao cumprimento da sua função externa e, através dela,
da sua função interna. No âmbito da primeira, a socialização e a ada-
IJ} É i1nportante sublinhar a dirnensão processual desta relação: o seu sucesso
ptação da criança à cultura são avaliadas pelas competências que a depende da forma como a co1nunicação se desenvolve. E para esse processo con-
mesma revela para conviver com os outros, sejam eles adultos (pro- tribuem não só os pais e os professores do aluno mas, também, o próprio aluno e, de
fessores, auxiliares) ou crianças (colegas), e pelas suas aprendizagens, forma indirecta, os seus colegas, os outros alunos da escola, os outros professores, os
progressivamente traduzidas nos resultados escolares. Na medida em funcionários, o sistema escolar, os pais dos outros alunos, o psicólogo, o assistente
que a capacidade e a disponibilidade para aprender e para estar bem no social, etc., i.é, todas as pessoas que estejam em relação. Para um aprofundamento
desta temática, nomeadamente para saber como pode conhecer-se esta trama relacional
meio de outros não familiares supõem que a criança tenha atingido um (desenho das relações), recomendamos a leitura de Evéquoz (1987).
certo nível de autonomia e individualidade, a função interna da família n-' Se é certo que a família tem a obrigação de alimentar adequadamente a criança
é, também, necessariamente avaliada. e de zelar pela sua saúde, levando-a regularmente à consulta de pediatria, cwnprindo
A relação entre estes dois sistemas, a família e a escola, tem tanto o progran1a de vacinação, proporcionando-lhe exercício físico que facilite o seu desen-
de inevitável como de constrnído. Por outras palavras, ambos os sis- volvimento motor, etc., a escola entendeu ter que complementar esta função da família
exactamente nas mesmas áreas: assim surge o suplemento alimentar, as triagens médi-
temas estão impossibilitados de se furtarem ao encontro mas, para que
cas, nomeadainente a confirmação do cumprimento do regime de vacinação, as aulas
ele não se converta em desencontro, têm que, cuidadosamente, desen- de educação física e desporto.
volver uma ligação que potencie o crescimento da criança e que, natu- 13
"E1nbora a dimensão afectiva do desenvolvimento seja habitualmente confiada
ralmente, os gratifique e lhes dê prazer 13 i. Esse encontro, ou esse con- à família, a escola sente que tem e quer ter algo a realizar nesse don1ínio. Na realidade,
os professores são igualmente figuras de vinculação e de identificação para a criança
e tên1 a particularidade de, por terem com ela uma relação mais liniitada no tempo,
129 Num outro local tivemos a opo1tunidade de desenvolver um pouco n1ais o si- menos exclusiva e mais mediatizada pelo saber, poderem desenvolver comunicações
gnificado que a entrada na escola primária tem para a criança (Relvas e Alarcão, 1989), emocionalmente menos tensas e mais saudavelmente trianguladas. Os outros adultos
1J 11 Embora no jardiln infantil possa fazer-se alguma avaliação destas funções da escola e as outras crianças podem ter idêntica função. O desenvolvimento intelec-
familiares, a tolerância avaliativa é, geralmente, muito grande, dada não só a idade da tual, pelo contrário, é tradicionalmente mais confiado à escola: através da aprendiza-
criança como a convicção de que a família está, ainda, em pleno ensino dessas com- gem a escola dota a criança de conhecimentos que lhe vão ser necessários à construção
petências. do seu próprio saber; ensinando-a a aprender a aprender, a escola facilita-lhe o desen-
1J 1 Parece-nos importante acentuar que o desenvolvimento de relações funcionais volvirnento do próprio processo de pensamento. Sabemos, no entanto, que as raízes da
entre a família e a escola não passa apenas pela afirmação da sua relevância para o capacidade de pensar re1nontam a períodos precoces do desenvolvimento e se ins-
sucesso educativo do aluno. Se a escola, basicamente através dos seus professores, e crevern, como já tivemos oportunidade de referir, no desenvolvimento da primeira
os pais do aluno não retirarem prazer dessa relação, não se sentirem nela mutuamente relação diádica e na sua abertura ao terceiro diferenciador. Por outro lado, a forma
confirmados, não virem a sua auto-estima reforçada, não se envolverem em alguns como a família investe o conhecimento e a escolarização são aspectos impo1tantes
objectivos e, de preferência, em algumas tarefas comuns, essa comunicação ou essa para a relação que a escola estabelece com o aluno neste domínio do saber. Finalmente,
relação é sentida como inútil. Mas como não pode deixar de existir Gá que é impos- ao nível do desenvolvimento moral, é clara a atribuição do papel principal à família: é
sível não comunicar) disfunciona-se, com inevitáveis repercussões en1 todos os par- no seu seio que a criança aprende um conjunto de normas e de valores morais que
ceiros: escola, pais, aluno/filho. modelam o seu comportamento. No entanto, a escola não pode demitir-se desta função
~

156 157
(Des )Equilíbrios familiares '"j)eSenvolvimento familiar

cíficos da família e da escola não são iguais e é por isso que as relações dos sistemas integrar auto-organizativamente os Jeed-backs recebidos.
entre ambas têm tanto de simétrico como de complementar. É também É claro que o que acabámos de afirmar supõe que se verifique o se-
essa a razão da sua rnútua avaliação. guinte: respeito pela individualidade e pelas competências de cada um
dos parceiros comunicacionais; desejo de cooperação por parte de
Rclaçõ~s Na família e na escolan 6 há dois sistemas executivos claros, onde todos; clarificação de fronteiras intra e inter sub-sistémicas; metaco-
verticais e
bor~tmlais as relações são verticais: os pais, na primeira, e os professores, na rnunicação sobre as dificuldades e/ou as divergências sentidas 138 • Uma
segunda. A eles compete impor limites, entre sub-sistemas e entre indi- auto-estima e uma auto-segurança elevadas por parte de cada um dos
víduos, definir regras, que criam e claríficam papéis, e exercer a parceiros constituem aspectos potenciadores da rede comunicacional
pilotagem do sistema (Evéquoz, 1990), i.é, assumir uma posição de de que estamos a falar.
complementaridade one-up. Podemos dizer que a simetria funcional Na família e na escola há, também, sub-sistemas onde as relações
destes dois sistemas se alcança pela assunção da sua complementari- são horizontais e onde, como já anteriormente afirmámos, se aprende
dade o que, naturalmente, possibilita a existência de acções autónomas a cooperação, a solidariedade, a competição e a rivalidade. São eles a
desenvolvidas numa base de cooperação"'. Deste modo, a hetero-ava- fratria e o grupo de pares. Quando a rivalidade e a solidariedade cami-
liação poderá ter uma função auto-reguladora já que permite a cada um nham a par a competição toma-se saudável e eruiquecedora. A existên-
cia de cooperação entre pares, facilitada pelos próprios adultos 139 , per-
pois o desenvolvimento, como a pessoa, é uno e só por razões didácticas o estamos a mite evitar a escalada simétrica, que toda a competição desenfreada
espartilhar. Nesse sentido, a escola tem que, no seu contexto, contribuir para que a encerra, e, no exercício de uma complementaridade oscilante, garante
criança continue a construir o seu edificio de valores e de normas/regras de vida. Por a viabilidade de uma simetria funcional. Uma vez mais sublinhamos a
tudo isto, é notória a complen1entaridade do papel educativo da família e da escola. importância das relações verticais para o desenho e desenvolvimento
ui Se a família é considerada como o primeiro espaço de socialização da criança,
das relações horizontais entre pares. Com efeito, a relação que o pro-
é claro que a escola se oferece, a este nível, como um campo cheio de potencialidades.
IJb A escola, como grande sistema que é, comporta uma enorme complexidade
fessor tem com cada um dos alunos e com a tunna em geral influencia
relacional. Não sendo nosso propósito fazer, neste contexto, uma análise exaustiva do o modo como os pares se organizam e comunicam entre si. Recursi-
sistema escola e das sua.<; relações intra e inter-sistémícas, iremos focalizar a nossa vamente, o modelo de comunicação grupal interfere na gestão das
atenção no grupo turma, ele próprio constituído por diferentes sub-sistemas (o profes- comunicações verticais desenvolvidas na turma 140 •
sor, os alurios, os colegas) em grande parte análogos aos sub-sistemas da família (os
pais, os filhos, os irmãos). Assim, sempre que nos referirmos à escola estamos a repor-
tar-nos, principalmente, à turma.
137 A título de exemplo, pensemos na questão dos trabalhos de casa. Mais do que

simples vigilantes, os pais podem ajudar os filhos na execução dos trabalhos de casa,
13
percebendo os pontos fortes e os pontos fracos das suas aprendizagens. De acordo com s Como facilmente se compreenderá, a ausência de tfonteiras claras e a falta de
os princípios pedagógicos utilizados pelo professor, o que supõe o conhecimento e o metacomunicação contribuirão para o aparecimento de coligações, nomeadamente de
entendimento de ambos, os pais podem, em casa, oferecer espaços alternativos de ensi- coligações negadas e de coligações inter-sistémicas, e de triangulações rígidas.
1 9
no que, exactamente pela sua diversidade, se constituem como uma mais valia para .i Na escola, o trabalho de grupo é geralmente muito apreciado pelas crianças

todos os intervenientes e para o próprio conhecimento. Com efeito, quando uma apren- que, assim, partilham saberes e se entre-ajudam na pesquisa. Para que o mesmo corra
dizagem não se faz não é dando mais do mesmo que consegue alcançar-se uma respos- bem é ainda importante que o adulto clarifique as regras de trabalho e que amplifique
ta diferente. :tviuitas vezes, é necessário recuar até áreas firmadas de conhecimento, as potencialidades que o mesmo encerra ao nível da complementaridade sem, contu-
enveredar por alamedas vizinhas para, finalmente, chegar à praça que se procurava. No do, retirar espaço à simetria comunicacionaL
4
domínio do conhecimento, as vias estão sempre interligadas; o truque está em ser ! º Para um conhecimento mais detalhado desta problemática recomendamos a

capaz de descobrir e implementar as conexões mais significativas. leitura de Evéquoz (1990), Curonici e McCulloch (1994), Barreiros (1996),
·"'ui \U lU lU w w w lR.ii lÜ lU i.0· ~~f,;ib ld ·Li.i ud lbl ,.,a IW ..i.t. lJ. x.Ü. kfil

158 .--·
(Des )Equilíbrios familiares
-------------- ·. .•·. l. ; 1 ~~}-_
~~~envolvimento familiar ··-·--

A separação e a autonomização constituem importantes tarefas


A D. Graciete tinha, nesse ano, o primeiro ano de escolaridade~<
para a família nesta etapa do seu ciclo vital. Com efeito, há um con-
Sempre se tinha irritado com _as "criancices" dos meninos -mais novos
junto de alterações que a famHia tem que operar, desde simples ajustes
mas, agora, estes pareciam -mais infantis do que nunca. Ainda se fossem
todos como a Clarinha ou a Marta, meninas pacatas, atentas, estudiosas e_ até mudanças mais significativas, mas que vão, todas elas, no sentido
trabalhadoras. O André era um horror: com um sorriso gozão -afivelado de uma cada vez maior difere11ciação intra-sistémica e de uma cada vez
nos lábios, sempre distraído, precisava permanentemente de ajuda para mais acentuada abertura ao exterior.
fazer qualquer coisa. A sua mãe era um pesadelo: .estava sempre a dize"~:--­ Com a entrada na escola há todo um conjunto de horários, de pais
à professora o que é que- ela devia ou não fazer para conseguir· bons resú:l:- e filhos, por vezes de irmãos, que se altera, desde as horas de levantar
tados do André. Proibira-a de lhe bater embora lhe tivesse contado quê, até às horas de deitar, passando pelos tempos de refeição, estudo e
em casa, só conseguia que o filho trabalhasse à força de .pancada. A Zé- lazer. Na casa, há, por vezes, re-arra11jos espaciais a fazer, para que
também era um tormento: sempre distraída, sempre na-·lua, parecia·-qué possa encontrar-se um local de estudo mais adequado e compatível
nada do que se passava na sala-lhe interessava. A D. Graciete não S:e-cofi:..: com as novas solicitações do filho/aluno e com as necessidades do
tinha nem lhes perdoava as faltas. Noutros tempos ter-lhes-ia posto umaS resto da família. Em certas situações pode haver mesmo reajustes
orelhas de burro na cabeça: hoje ficava-se pelos comentários. No recreio;
económicos e/ou laborais a operar. No exercício do papel parental há
o André e a Zé ficavam isolados. Na-turma eram rejeitados para todo.e.:
que decidir quem estuda com a criança, em que matérias e como o vai
qualquer trabalho de grupo. Justificavam-se os colegas dizendo que a Zé
fazia tudo à bruta e que lhes tirava as coisas deles. -O André não ajudava fazer, quem se articula com a escola, quem se ocupa das actividades
a fazer-nada,.rindo-se permanentemente. Um-dia.o psicólogo da escola circum-escolares.
fez uma intervenção com a turma, ou seja, com os meninos todos e com: Na gestão das relações entre pais e filhos, acompanhando e
a professora. Metacomimicaram sobre as suas dificuldades e sobre os reforçando o moviinento de diferenciação intra-sistémica em curso,
seus sentimentos e exercitaram a pilotagem-da professora e a cooperaçãO ocorrem algumas modificações que importa realçar. Os pais, conti-
entre os pares. A Zé· mudou radicalmente. Ninguém a reconhecia: fite.:-" nuando a proteger os filhos, a oferecer-se como continentes para as
ressada, atenta, era agora muito do agrado dos seus colegas e da profes.:.·-· suas angústias e corno auxiliares na transformação das suas dificul-
sora. Com o André as coisas tinham também melhorado: no fim do:ano a_-_ dades, têm que lhes ir dando cada vez mais autonomia ao mesmo
D. Graciete dava-lhe mna-ínformação claramente positiva. Ela próprÜi'Se· tempo que lhes vão impondo, também, um conjunto cada vez mais
sentia mais confiante e segura. complexo de regras e normas de actuação. A negociação, como
instrumento de flexibilização das posições assumidas, oferece-se
Tal corno a fratria, na família, também o grupo de pares, na esco- como um importante recurso nesse processo de separação e autono-
Scparaçlio-
-autonoml11 la, se revela fundamental para a criança pelo apoio que lhe pode dar na
sua relação com os adultos bem corno no equacionar das dificuldades
que os movimentos de separação e de autonomização lhe estão a tais, as crianças vão dando ao grupo de pares uma relevância cada vez maior. A este
141 propósito, é interessante observar a diferença de comportamento entre crianças que
provocar •
chegam à escola directamente vindas da família e aquelas que, durante alguns anos,
frequentaram o jardim infantil. Como é curioso notar, sobretudo ao nível da família, a
ciumeira e, por vezes, a tirania que os colegas da criança despertam nos pais: "só fazes
HI É verdade que o grupo de pares tem, a este nível, uma influência ainda maior
aquilo que os teus amigos gostam ... nunca mais quiseste jogar conügo!", diz um pai a
na adolescência e, consequentemente, em níveis de ensino subsequentes à escola
um filho; "não pode1nos ir a tua casa... não nem jantar nem lanchar... temos que levar
primária. Para as crianças pequenas muito do apoio e da segurança são habitualmente
o João e os amigos ao cinema e depois vão todos jantar a casa do Miguel", dizem uns
veiculados pelo adulto (nomeadamente pelo professor). Progressivamente, à medida
pais a um amigo que os convida para sua casa!
que vão adquirindo mais autonomia e mais experiência na gestão de relações horizon-
~

160 !61
~envolvimento familiar
(Des)Equilíbrios familiares

mização. Os filhos, mais diferenciados, mais competentes e mais sofa não conseguia obter progresso algum e o Rui transitaria de ·ano sem
responsáveis manifestam um respeito cada vez maior pelos pais -os conhecimentos mínimos.
mesmo quando, aparentemente, apenas o contestam. '
O acesso, por parte da criança, a novas fontes de conhecimento Há casos em que as dificuldades escolares da criança, sejam com-
(professor, colegas, livros ou outro material didáctico) e a novos portamentais ou de aprendizagem, têm um significado diferente e nos
saberes (escolares e não escolares), assim como a novos modelos rela- conduzem claramente ao jogo comunicacional que se estabelece entre
cionais (conhecidos no seio da escola e na relação com as famílias dos ela, a família e a escola.
colegas), permite-lhe, mediante comparação com o que já conhece 1 Neste triângulo relacional, a criança tem um estatuto de dupla Triângulm
rc!acimmis
progredir nesse processo de diferenciação que a conduzirá, mais tarde pertença já que é, simultaneamente, filha e aluna. Agente duplo, como
à aquisição de uma identidade própria e à necessária autonomizaçã~ lhe chamam Montandon e Perrenoud (1987), torna-se, neste processo
face aos seus modelos de identificação. Neste processo, como comunicacional, mensageira e mensagem. Ao situar-se no vértice do
pudemos verificar, a criança não caminha sozinha. O movimento que, triângulo, ela desempenha um papel de destaque na relação e todo o
em espelho, os pais identicamente realizam revela-se fundamental. seu comportamento é uma comunicação que faz parte de um Sistema
Nesse sentido, podemos dizer que não só a criança se vai separando e Alargado de Comunicação'" onde se inclui o grande universo escolar
autonomizando dos seus pais como estes o vão fazendo em relação a . e o sistema familiar. O seu estatuto de elemento vaí-e-vem 143 dá-lhe
ela. A posição da fratria não é, neste contexto, irrelevante. Com efeito, alguns privilégios (sobretudo o de poder reconstruir'" algumas das
os irmãos podem ajudar-se, em maior ou menor grau, neste caminhar mensagens que transporta ou veicula) mas também lhe cria algumas
que, paradoxalmente, gera muita alegria e muito temor. dificuldades. Com efeito, e como já anteriormente referimos, a escola
e a família estão em permanente comunicação e vigilância, exercendo
Representando a escola um importante contexto de crescimento, e um controlo e uma avaliação recíprocas que nem sempre são muito
Comunicação
escola-familia o saber um inequívoco instrumento para o alcançar, podemos perceber funcionais. Por vezes ocorrem desqualificações e desconfirmações na
a razão pela qual a escola se torna um poderoso revelador das dificul- comunicação escola-família que tornam a criança prisioneira de um
dades familiares de separação e autonomização. conflito de lealdades'" do qual ela procura, frequentemente sem suces-
so, ver-se livre. Tendo sido triangulada por uma díade em conflito, a
Rui tinha ido para o jardim infantil aos três anos. A adaptação fora· criança tenta não tomar u1na posição definitiva, que a aproxime mais
dificil e, dado o choro e os vómitos, a mãe decidira mantê-lo-em- casa~':: de um ou do outro lado do triângulo, e, muitas vezes, o sintoma
Achara sempre que a educadora fora a responsável pelas dificuldades do.,
miúdo já que, no- ano seguinte, com uma nova. educadora,. as coisas _co_r"." -
142
reram bem. No entanto, não se empregou, como anteriormente imaginara;·_º - - Esta natureza multidimensional da comunicação foi claramente estudada pelo
pois o Ruí- podia ter problemas e assim a mãe estava mais disponíve_L- - :- Grupo de Milão, coordenado por Palazzoli (Palazzoli et al., 1984).
] É neste sentido que a criança é também designada como go-between na comu-
14
Quando o Rui entrou para a escola o tormento começou. Todos os dias;-à -
,: nicação escola-famílía.
noite, o-Rui perguntava à mãe se, no dia seguinte, tinha escola e quem.:é·::::-_:
que o levava. De manhã, o Rui saía de casa lacrimejante e chegava à esco_,--_~,
144
O tom de voz corn que uma criança transmite, aos pais, o recado da professo-
pode conduzir a uma modificação do seu coúteúdo, tomando-o mais favorável à
la a chorar. No intervalo, e no fim das aulas, se a mãe não-estava lá, à; sua-- própria criança. O desfasamento temporal entre a emissão de uma mensagem (pelos
espera, o Rui entrava em perfeito desespero. Na escola chegaram a·ass~·?",­ e a sua retransmissão (pela criança) pode provocar um alteração na percepção
tar-se e sugeriram à mãe que levasse o Rui ao médico. Em casa, com_Jt_::,·_ parte do professor) do seu conteúdo.
mãe, o Rui ainda conseguia aprender qualquer coisa. Na escola, a profe-s~~-.'' 1
" Evéquoz (1987) apelida-a mesmo de refém.
1
1
itili w
!:' .
w w w·w w (ij jjj iú lU w tu mi tu rii• Í.ii 'ii ÀÍ Ui~ íiiii ill
162 J63
(Des)Equilíbrios familiares ~ivimento familiar

aparece como a única mensagem capaz de poder vir a libertá-la. O sin- Numa etapa já marcada por uma clara abertura ao exterior e por
toma escolar tem, então, este significado de sinal de alerta, de pedido um movimento de autonomia e separação que não pode ser ignorado,
de ajuda'". Só raramente corresponde a uma verdadeira incapacidade 0 sub-sistema parental vê-se confrontado com a necessidade de, não
para a aprendizagem 147 • perdendo a s11a dimensão executiva, co-habitar com outro sistema
Cumplenrnn\a· Decorre do que acabámos de dizer que a situação ideal seria a de executivo (autoridade escolar consubstanciada na figura do professor)
ridade/simctria
uma cooperação entre a escola e a família, possibilitada por e possibi- cujo poder é frequentemente invocado pela criança. A confrontação
litadora de uma comunicação funcional entre todos os comunicantes. com a diversidade e a negociação, bem como a desmultiplicação das
No entanto, esta cooperação e esta comunicação são dificultadas por situações de triangulação 150 , constituem características desta etapa que,
duas ordens de razão. Por um lado, a família tem uma posição one- como veremos, se amplificam na etapa seguinte.
-down relativamente à escola. O sistema sócio-político determina que l
a escolarização é obrigatória, define unilateralmente os conteúdos da
aprendizagem, o seu timing e o seu sistema de avaliação. E mesmo j
quando, como agora, prevê uma maior participação da família esta
continua numa posição claramente inferior até porque a escola não
quer abdicar desse poder que tem. Por outro lado, o código"" da esco-
la é, muitas vezes, bastante distinto do código da família o que toma
diflcil a comunicação. Por outras palavras, a complementaridade que a
escola solicita à família é, habitualmente, uma complementaridade
rígida, em que esta toma a posição one-down e aquela a posição one-
-up. A simetria ftmcional é rara e o registo classificatório que perpassa
toda a aprendizagem desencadeia uma sobrepreocupação avaliativa
que abre, com alguma facilidade, as portas à escalada simétrica ou à
desqualificação e/ou desconfirmação dos comunicantes. Mais rara-
mente, surgem situações de clara rejeição comunicacional 149 •

Hn A este propósito, veja-se Alarcão (1998a).


147 Excluem-se, naturalmente, as situações de deficiência assim como os casos de

psicose grave em que o uso excessivo da clivagem, da projecção e de outros mecanis- realizarem, invocam razões do tipo: "é preferível não dizer nada pois pode tomar o
mos de defesa primitivos dificultam, ou impedem mesmo, o desenvolvimento da miúdo de ponta e depois ainda é pior", "deixá-los lá ficar na deles ... não estou para me
capacidade de pensar. Para um conhecimento mais aprofundado desta temática chatear... O ministério só ine paga para ensinar!"
1511
recomendamos a leitura de Bion (1963, 1965). De entre as várias triangulações possíveis nesta etapa referiremos apenas três:
148
Por código, Evéquoz (1987/88, 355-356) designa o conjunto de regras, "fixas, o triângulo relacional pais-criança-professor no qual a criança se confronta com duas
invariáveis e sem valor moral de bem ou de tnal", que a escola possui e que vão in- autoridades que nem sempre coincidem; o triângulo relacional irmãos-criança-ami-
fluenciar a sua estrutura e o seu funcionamento. Tal como na fa1nília, estas regras per- gos/colegas que, diversificando as hipóteses de relação horizontal, introduz, também,
miten1 assegurar a coesão e a estabilidade dos elementos em interacção. novas regras e novas lealdades; finalmente, o triângulo relacional família-criança-ou-
14 ~ Como sabemos, estas situações de rejeição da comunicação, porque são claras, tras famílias que, no confronto com modelos alternativos, pode dificultar ou enrique-
permitem runa redefinição da comunicação. No entanto, no âmbito da comunicação cer o funcionamento estrutural de cada família, nomeadamente na articulação entfe o
tamília-escola ela'> são fortetnente temidas por um e por outro sistema que, para a não sub-sistemri parental e o sub-sistema filial.
4
1
Família com filhos adolescentes

\
\

1
Queridos pais,
Não sei se algum· dia vos darei a conhecer esta carta mas, neste mo-
mento, preciso de conversar convosco, e comigo, como sinto que todos
?·-_nós nunca temos coragem de o fazer. Talvez a culpa seja minha que· me
fecho- em copas ... mas também vocês só me questionam quando eu estou
-prestes a desfazer-me em lágrimas. Será que é tão dificil~ assim, perceber
quando devem falar comigo?... Merda! Não é assim que quero começar.
_Talvez até acabe por deitar esta- carta no cesto dos papéis, ou na lareira.
Aí ainda terá- alguma utilidade!
N·o-outro dia sentia-me uma-vencedora: achava que podia enfrentar
--o mundo sem· qualquer ajuda, I-Ioje sinto-me de rastos: sou tão estúpida
quando penso assím! Realmente sou pouco inteligente mas adorava ter a
vossa-inteligência e a vossa capacidade de trabalho. Já sei.que me ides
:dizer que não é assim, que me ides demonstrar. que sempre consegui tàzer
o que queria, etc; ... mas eu conheço-me bem e-aos-meus próprios limites.
Bi;rta não_ sou, realmente, mas falta-me bastante para ser inteligente. Feia,
sou: estas horrendas borbulhas-não me deixam em paz. Já sei que tenho
. que esperar que desapareçam ... já sei que se as espremer _nunca mais vou
ficar com a cara direita! Mas bolas! Agora é que eu precisava de estar
bonitinha, Ninguém me liga! Só me procuram para tirar dúvidas, para me
·pedir Os meus cadernos. Será que ninguém se lembra que eu também
,,'.:Jenho coração? ... -E vocês~ pais, por que é que não dizem nada? Eujá sou
;rtgrande mas ainda preciso de carinho. Preciso que me digam que acredi-
~~'.tani em mim, que gostam de mim, que me digam como e o que é que eu
~ .u l: l• . li. L.!: _1.L_" L-.A:'. .... lJl.,111'@:~·
. - ;';:;, 1-...,jir- --\~Í ~)ih
r ~ .,
--t.:A,i ('iillJI '!._~-~·1 t.a ~ ~--:J \_aàJ ·l~;J
166
(Des)Equilíbrios familiares Desenvolvünento familiar

"'
hei-de fazer. Está bem, já sei que muitas vezes sou arisca e que vos digo _:boa e má, em preta e branca. A clivagem é, com efeito, um mecanismo
que não gosto dessas mariquices. Que vos digo que não preciso que me-- " de defesa relativamente eficaz neste processo de tranquilização que o
digam o que devo fazer. Mas não percebem que isso é só balela? Às vezes:_ adolescente tem que operar face às múltiplas incertezas e angústias
também estou com os azeites, já sei! Vá, não vainos começar com os ser.: - ";· decorrentes das transformações bio-fisiológicas que a puberdade inicia
mões; o que mais detesto é que me estejam sempre a atirar à cara os .erros
{~' e.das transformações relacionais que a adolescência comporta. É ainda
do passado. Vocês também fazem sempre ludo bem? Claro! Já me esque- ·
eia que são uns super-heróis! Desculpem, foi o·meu rnau_génio. Não eift
.5;. eficaz na transformação do pensamento complexo em unidades mais
nada isto que vos queria dizer. -Queria pedir-vos que não pensem que já e~: simples e, consequentemente, mais compreensíveis. Importa sublinhar
não gosto de vós só porque gosto de outras pessoas e porque, por vezes'; •€' que o adolescente não recorre sistematicamente a este registo defensi-
me sinto melhor fora de casa. Sei lá onde é que me sinto bem ... às vezeS - ~;:~ vo. Fá-lo, apenas, e1n situações de maior tensão psíquica, para que
em lado ncnhumt Dai-'me espaço ... mas não me fecheis a porta ... Quantas '-':'._._possa continuar o movimento progressivo que o conduzírá à aquisição
vezes estou na cama à espera de vos sentir entrar... bom, já agora, só mais · ··. da autonomia e da identidade, tarefas básicas deste período do desen-
urna coisinha: batam sempre antes de entrar! Que confusão na minha , volvimento 151 •
cabeça... nem sei se era isto que queria escrever. Gosto muito de vós mas, Muito se tem escrito sobre a adolescência e sobre os adolescentes.
às vezes, apetece-me fugir. Tem-se realçado a dimensão tumultuosa da sua existência, as suas fre-
Beijos da vossa filha. Ana. quentes variações de humor, a sua depressão normal, a sua tendência
o agir, as suas quebras escolares, as suas somatizações, a sua
incrível energia, a sua generosidade, as suas dúvidas, os seus radica-
Adolescência Esta podia ser uma das muitas conversas imaginárias que os ado- lismos, as suas provocações, a sua insegurança, o seu auto-convenci-
lescentes constroem e que raramente dão a conhecer aos pais. Depois mento, o seu desejo de independência, a sua necessidade de dependên-
sofrem por eles nunca as terem ouvido, quer dizer, adivinhado. Sofrem cia, a sua atracção pelo risco, a sua paradoxalidade.
sozinhos, ou com os amigos, num coro de infortúnio que uma boa É impossível pensar esta etapa do ciclo vital da família sem a con-
música, uma boa caminhada, uma boa festa ou, apenas, um novo dia l ·.. ceber como um período de grandes mudanças em que todos se tomam,
podem fazer esquecer. Isto não significa que àquele sofrimento se deva de alguma forma, uma novidade para os restantes. Pais e filhos, por
atribuir menos importância. Ele foi real, sério e, por isso mesmo, pre- vezes irmãos, têm, em muitos casos, uma queixa comum: não se com-
cisa de ser contido e transformado pelo adolescente, com a ajuda dos preendem e já não sabem o que mais podem fazer para levar o outro a
pais e dos outros que lhe são significativos. É importante que os adul- aceitar a sua ideia ou o seu ponto de vista; não sabem, também, quan-
tos respeitem os sentimentos, os valores, as atitudes e os comporta- do devem estar e dar apoio ou quando podem deixar o outro entregue
mentos dos adolescentes. Como respeitam os dos adultos: nem mais si próprio. Esta é, pode dizer-se, a etapa mais longa e mais difícil do
nem menos. E que o faça1n sinceramente e com coerência. Os adoles- ciclo vital, na medida em que exige um permanente equilíbrio entre as
centes são muito sensíveis à verdade e à coerência. A braços com o , exigências do sistema familiar e as aspirações de cada membro da
processo de abstracção e num acesso progressivo ao pensamento com- ' família.
plexo, o adolescente tem, da realidade, uma visão absoluta. Com toda
a energia que o caracteriza, defende intransigentemente essa sua ver-
dade que, tal como a entende, é apenas A Verdade. Face à crise identi- "
1

Não sendo este o espaço para nos alongam1os sobre o significado e os con-
ficatória e às angústias que a acompanham, utiliza mecanismos de tornos do desenvolvimento individual remetemos o leitor para uma obra portuguesa
defesa que lhe permitem, entre outras coisas, dividir a realidade em 'i~- ,(Fleming, 1993), relativamente recente, que sintetiza diversos contributos e que apre-
senta uma investigação pessoal interessante.
168 J69
(Des)Equilíbrios familiares í)e'Senvolvimento familiar

A adolescência é habitualmente vista corno uma aventura e, como rnentos que querem separar-se e, por vezes, no confronto com a
diz Satir ( 1997), toda a família precisa de imagens positivas, de mais rnanutenção de laços que se quer transformar. Estamos, é essa a nossa
amor do que temor, para poder equacioná-la com sucesso. O adoles- convicção pessoal, numa época de paradoxos que nos agrilhoam e q·ue
cente luta, e muito, para alcançar a sua autonomia e a sua identidade. 1 x nos tomam produtores de novos paradoxos. Só assim compreendemos
A sociedade concede-lhe uma moratória 152 para o fazer. Moratória que) a distância que, muitas vezes, separa o entendimento, inteligente, que
nos dias de hoje, se alarga cada vez mais, dificultando-lhe, a si e à sua temos das situações em que estamos envolvidos e a capacidade de
família, a tarefa de se emancipar. Há já bastante tempo que se perde- .. intervenção e de modificação que revelamos. Afinnámos já, noutro
ram os rituais de passagem para a idade adulta e hoje, com o pro- '': momento deste capítulo, que a nossa época e a nossa cultura têm
longamento dos estudos, os problemas de emprego, as dificuldades (sobre)exaltado o individualismo e a necessidade de felicidade indi-
económicas e habitacionais e o adiar da idade de casamento e de aces- ,,, vidual, por um lado, têm (sobre)valorizado a dimensão cognitiva e
so à parentalidade, os jovens vão prolongando a sua permanência na social do sucesso e da felicidade, por outro lado, e têm reduzido ao
família nuclear'". As "famílias canguru", como já alguém lhes cha- máximo a rede de apoio social individual'", por outro lado ainda.
mou, introduzem uma nova dificuldade neste processo de separação- Assim, o estabelecimento de vínculos é, por vezes, ameaçado por uma
-autonomização, já que o mesmo tem que ser feito na presença dos ele- falta de disponibilidade e de responsividade adequadas. Esta desade-
quação pode amplificar-se pela sua própria consciência, e pela culpa-
bilidade daí decorrente, já que esta é também uma época de ampla
152
De acordo com Erikson (1972), esta moratória psicossocial mais não é do que divulgação da importância das relações afectivas (nomeadamente da
um período de espera, de livre experimentação de papéis, que é concedido ao adoles- vinculação) no desenvolvimento do ser humano. Talvez se procure,
cente enquanto este não se encontra pronto para satisfazer os compromissos adultos.
153
Importa sublinhar que mesmo nas situações em que o adolescente/jovem adul-
.então, responder a tudo isto pelo prolongamento temporal de relações
to se separa da família para estudar essa é, frequentemente, uma pseudo-separação. No que, contudo, têm de ser já diferentes. Talvez o adulto procure, mais
contexto da nossa actividade docente temos observado a forma con10 o jovem aluno e tarde, insistentemente e numa posição excessivamente auto-referen-
a sua família organizam a semana e o fim-de-semana em função da gestão de um afas- cial, uma felicidade relacional que, por vezes, não respeita o desen-
tamento que se pretende reduzir ao máximo e que, por isso mesmo, impede, muitas volvimento saudável das vinculações existentes. Estamos, obviamente,
vezes, uma vivência plena do encontro e da separação. Durante a semana, uns e ou-
a falar da elevada taxa de divórcios e de recasamentos a que hoje se
tros vivem na expectativa do fim-de-se1nana. Os pais ne1n sempre se reorganizam pois
sentem que a configuração familiar é ainda a mesma e, assim, esperam ansiosamente · assiste. O divórcio e o recasamento não são, em si mesmos, bons nem
que chegue a sexta-feira à noite (ou a quinta feira, pois há cursos que conseguem ante- maus. Podem ser uma ou outra coisa, para as diversas famílias impli-
cipar o fim-de-semana!). Os filhos, sobretudo nos primeiros tempos, nem sempre cadas e para os seus elementos, em função do modo como ocorrerem
aproveitam a semana e as novas oportunidades relacionais, pois contam as horas que das oportunidades de desenvolvimento relacional saudável que cria-
faltam para voltar a casa. A quinta-feira à tarde e a sexta-feira são dias em que as salas
de aula se enchem de sacos, onde se transporta toda a roupa que a mãe irá lavar e os
taperware que trarão nova comida. Ao fim-de-semana a mãe passa horas a tratar destes
154
assuntos. Sábado de manhã é para dormir, domingo para vir embora. Há ainda que ver É interessante, a este propósito, recordarmos a definição que Sluzki (1996, 42)
os amigos que ficaram e estudar qualquer coisa. E no domingo de manhã já se começa nos dá de rede social pessoal:"( ... ) [é] a soma de todas as relações que um indivíduo
a pensar no novo fim-de-semana ... Outras situações há, completamente diferentes, em percebe como significativas ou que define como diferenciadas da massa anónima da
que a separação também não é totalmente conseguida pois faz-se à custa de um cut-off sociedade. Esta rede corresponde ao nicho interpessoal da pessoa, e contribui substan-
relacional que pode comprometer o futuro escolar e profissional do jovem e as relações _cia!mente para o seu próprio reconhecimento como indivíduo e para a sua auto-
familiares. Inscrevem-se neste caso muitos dos insucessos e dos abandonos escolares ~imagem". Desta forma compreendemos o significado negativo da redução a que fize-
registados ao nível do ensino superior. mos referência.
.Í .i··--...r·-_lULULU
..(-~~--c_- ~-- ~-- ~-- ~
w
·jlllllj..

· l.U LO lU .lb
Ili lU l.d . lilt ta ··[b tü·· l1d t4Jl !iJ r:.... w
170 171
(Des )Equilíbrios familiares o;-envolvimento familiar

rem. O que mais i1os toca, e por isso o nosso pensamento operou este têm de ser perfeitos'" apesar de todos os defeitos que os filhos lhes
desvio, é a extensão e a diversidade da patologia da separação que hoje apontam. E se os pais não são isso tudo a desilusão pode ser muito
encontramos na clínica, por um lado, e as dificuldades que as pessoas grande, a falta ~e segurança enorme e a provocação''" pode converter-
e as famílias revelam nas tentativas que fazem para a ultrapassar, por -se em guerra. E neste contexto que Satir (1997, 333) afirma: "convi-
outro 155 • do sempre os pais a reconhecerem as suas incapacidades e limitações,
Apesar da necessidade de imagens positivas, de que acima falá- fazendo com que esse reconhecimento seja um símbolo de sinceridade
mos, há pais que, mesmo antes de chegarem à adolescência dos filhos e, consequentemente, de elevada auto-estima. Desta forma, pais e fi-
têm um conjunto de fantasias negativas onde a toxicodependênci~ lhos podem converter-se numa equipa e trabalhar juntos na prosse-
assmne hoje um papel preponderante. Colateralmente, surgem receios cução dos seus interesses". E acrescenta "[procuro] que os pais apren-
de violência, de alcoolismo, de falta de um projecto de vida. A inquie- dam a considerar-se como o laboratório dos recursos dos seus filhos''
tude perpassa, então, ambas as gerações. Para resolver os seus medos (idem, 331 ). Nesta relação, pais-filhos adolescentes, revela-se então
alguns pais tentam controlar o mais possível os filhos, enchendo-os d~ fundamental que os pais digam aos filhos o que neles lhes agrada, não
proibições relativamente ao que não podem fazer ou às relações que referindo apenas os aspectos negativos, e que ambos possam metaco-
não podem ter. A maior parte das vezes são mal sucedidos e a contes- municar sobre as suas dificuldades e os seus medos. A nossa
tação assume um formato mais ou menos directo. A cornu11icação corre sociedade, ao sobrevalorizar o sucesso e ao penalizar os fracassos, ao
sérios riscos de disfuncionamento e a separação e a autonomia afecti- enfantizar a necessidade de felicidade e ao querer evitar a dor, não
vas não são verdadeiramente alcançadas. Outros, pelo contrário, tor- facilita, no entanto, aqueles movimentos e deixa pais e filhos encerra-
nam-se demasiadamente condescendentes com medo que os filhos, por dos nmn novo double-bínd: para metacomunicarem sobre as dificul-
oposição, se tornem ainda mais contestatários. Esta estratégia é, no dades e os medos têm que admitir as falhas e a dor daí decorre11te; não
entanto, muito perigosa por dois motivos fundamentais. Por mn lado, o fazendo correm o risco de disfuncionar a sua relação 159 •
porque os adolescentes precisam de regras claras, precisas e coerentes;,
151
consequentemente, necessitam de um sistema executivo forte ainda' Para os filhos, naturalmente. Não esqueçamos que a afirmação da perfeição
que flexível. Têm de ser os pais, na realidade, a assumir esse papel e pais, nomeadan1ente em relação aos outros, confere ao adolescente uma segurança
essas funções, com persistência, com amor 156 , co1n segurança e com euma auto-estima de que ele não pode privar-se. Por isso, con1 muita frequência, o
adolescente tem um discurso altamente crítico em relação ao pais, feito no interior da
flexibilidade. Por outro lado, porque os adolescentes detectam, muito
família e junto de alguns dos seus amigos, ao mesmo tempo que não consente que o
facilmente, os fingimentos e os não ditos. Sobretudo os dos pais, que mesmo s~ja emitido, por ele próprio ou por outros, junto de desconhecidos, de fami-
liares mais afastados ou de amigos n1enos íntimos.
15
K Não esqueçamos que, na maior parte das vezes, os comportamentos adoles-

centes têm uma dimensão de ensaio. Assim, as provocações são, geralmente, experi-
'~ 5 A este propósito, a toxicodependência é um bom exemplo e a ela nos referire- mentações que o adolescente faz, a si próprio e ao meio, para poder definir o futuro
mos mais tarde no capítulo 3. das suas relações e dos seus comportamentos. Em situações de frustração recorrente a
i:;ó É importante sublinhar que para que este afecto seja gerador de conforto e de -e,_provocação perde, largamente, a sua dimensão experimental para ganhar, sobretudo,
segurança ele tem que associar-se a comportamentos responsivos por parte dos pro- um valor de ataque, de agressão.
15
genitores, i.é, a comportamentos que respondam às necessidades do adolescente. " Em termos de senso comum esta é a situação habitualmente designada como

Nesse sentido, o pai ou a 1nãe não devem defmir o seu comportamento em função do falta de comunicação. Muitas campanhas televisivas de prevenção da toxicode-
medo que têm de que o adolescente deixe de gostar (tanto) deles mas sim em função '~J:;:-pendência veicularam exactamente essa imagem de um filho adolescente que, indo
do que sentem que lhe é necessário. E que muitas vezes é exactarnente o contrário do falar com o pai, bate num vidro transparente que, partindo-se, arrasta consigo um esti-
seu pedido manifesto. lhaçar da família.
T

172 173
(Des )Equilíbrios familiares Desenvolvimento fu.miliar

Separação- A gestão da relação pais-fihos, nesta etapa do ciclo vital, constitui No domínio dos afectos, a experimentação da separação e a con-
. autonomia
um desafio para todos. Acentuámos já a necessidade de que os pais se quista da autonomia são igualmente importantes. Embora nem sempre
mantenham corno sistema executivo da família. Realçámos a fáceis para os filhos, para os pais e até para os irmãos. Os pares desem-
importância da manutenção de relações verticais entre pais e filhos. No penham, a este propósito, um papel relevante, mesmo quando a sua
entanto, sublinhámos, também, a necessidade de que a amplitude dessa presença gera tensões emocionais na família. Uma vez mais importa
verticalidade se reduza, de que a negociação se amplifique e de que se acentuar que o problema não está na crise que surge mas sim na forma
flexibilizem, com coerência, as regras familiares. Tudo isto supõe que, como ela é resolvida.
no plano cornunicacional, a complementaridade das posições one-up e
one-clown se tome mais oscilante entre pais e filhos e que a simetria O grupo de pares oferece ao adolescente um suporte importante na Grupo
relacional seja mais facilitada, nomeadamente em termos intelectuais. contenção de muitas das suas angústias, na experimentação de diver- cle pa,.cs
Dissemos, anteriormente, que a separação e a autonomia constituem sos papéis, na vivência de certos afectos e no desenvolvimento de ati-
tarefas básicas desta etapa, tanto para o adolescente quanto para os tudes, valores e ideias, num processo de reorganização recursiva entre
seus pais. 0 que o adolescente experimentou no passado, vive no presente e dese-
No plano comportamental, estes dois sub-sistemas, e naturalmente ja no futUro. Os pares são iguais, com dúvidas, energias, certezas,
os seus elementos, passarão a estar menos tempo juntos e a realizar um desafios, medos, angústias e desejos qualitativamente idênticos. Por
menor número de actividades e de tarefas em conjunto'"°. O adoles- isso o adolescente sente-se "em casa'', mais confortável perante o co-
cente necessita, no seu dia-a-dia, cada vez menos dos pais. Mas não é nhecimento de que o outro é corno ele, sente corno ele, tem os mesmos
apenas no plano comportamental que a separação se vai fazendo e que problemas que ele tem. No entanto, o crescimento maturativo faz-se no
a autonomia se vai conquistando. Muito pode ensaiar-se, a estes níveis, confronto da diferença. Por isso é importante que o próprio grupo de
no plano cognitivo: escutando as opiniões dos filhos, incentivando-os pares seja diferenciado ou heterogéneo'". Por outras palavras, o ado-
a desenvolver ideias originais, facilitando-lhes a busca de informação lescente deve integrar diversos sub-grupos, com objectivos e práticas
e o treino do debate, valorizando os seus pontos de vista e aceitando- relativamente distintas, para poder amplificar as suas próprias expe-
os corno parceiros intelectuais, os pais ajudam os filhos a diferencia- riências. É igualmente relevante que o adolescente alargue o seu espec-
rem-se e a tomarem-se adultos. Uns e outros podem, desta fonna, , tro relacional a outros adultos, mais ou menos significativos, mais ou
autonomizar-se mais facilm'ente 'e com menos custos emocionais. O ~(menos familiares. A expansão relacional e a abertura ao exterior são
treino da complementaridade oscilante e, mesmo, da simetria vão-se pois, nesta etapa, tarefas fundamentais.
fazendo num domínio emocionalmente menos comprometido do que o
comportamental e onde o deslocamento e a sublimação emprestam Neste confronto com os pares, os pais sentem-se, com alguma fre- Relação
outros recursos à relação_ quência, preteridos. Durante muitos anos, a própria literatura científi- pais-filho(s)

ca o afirmou até que análises mais complexas do tecido relacional do


160
Estes são, aliás, aspectos de queixa e oposição frequentes entre pais e filhos. adolescente e dos seus contextos de vida vieram mostrar que pares e
Os primeiros lamentam que os filhos já não queiram sair com eles, para passear,
almoçar, ir ao cinema ou ao futebol; zangam-se, ainda, por eles não cooperarem nas
161
tarefas domésticas familiares (pôr/levantar a mesa, fazer a carna, ir às compras, etc} A importância da heterogeneidade grupal no desenvolvimento do adolescente,
Os segundos enfadam-se com as solicitações de companhia dos pais e opõem-se aos por um lado, e a relação entre grupos homogéneos e perturbação do desenvolvin1ento
seus pedidos de cooperação, muitas vezes mais do que o necessário, só para irem afir~ , psico~afectivo, por outro lado, têm sido afirmadas por diversos autores. Para um co-
mando a sua necessidade de diferenciação. nhecimento mais aprofundado desta temática recomendamos a leitura de Paixão ( 1991 ).
~:....lif,.;tii-"~ ""'tü· -···oo w w w w··· oo llj w l:d· ··tu -~ <fi· . [,.j
""'
llÜI· [;.,11 ·J.i.
174:_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ 175
Desenvolvimento familiar - -- -----
(Des)Equilíbrios familiares

pais, e até outros adultos, estão identicamente presentes e são igual- novos, com quem tê1n que interagir de outra forma mas que, no con-
mente importantes para o seu desenvolvimento. Os tempos e os espa- fronto com o(a) irrnão(ã) mais velho(a), lhes dificultam esta articu-
ços dessas relações são, obviamente, diferentes assim como o é a per- lação de funções, melhor dito, de estilos diferentes. As relações frater-
cepção subjectiva da sua importância. Há uma aprendizagem que pais nais vão ter aqui, como podemos perceber, um papel que não é
e filhos têm que saber fazer na adolescência, para que ambos possam despiciendo: os irmãos podem ser basicamente solidários, respeitando
ajudar-se a crescer e a serem felizes. Os pais passam a ser figuras de a sua própria hierarquia e apoiando-se na sua relação com outros sub-
vinculação na reserva 162 , o que não lhes retira importância mas modifi- -sistemas (parental, grupo de pares, p.e.) ou podem ser fundamental-
ca a qualidade da relação. Nesta transform~ção os pais têm que renun- mente rivais, agindo as alianças e as coligações que lhes sejam mais
ciar a algumas gratificações que retiram, habitualmente, do seu papel favoráveis. Uma outra dificuldade pode resultar da qualidade do
de prestadores de cuidados: sentem-se menos solicitados e, portanto, processo de separação-autonomia que cada um dos progenitores viven-
menos úteis, passam a controlar menos os comportamentos, os pensa- ciou, na sua adolescência, com os seus pais e que, agora, reorganiza na
mentos e os afectos dos seus filhos, sentem-se menos obedecidos e relação com o(s) seu(s) filho(s)'". Finalmente, as dificuldades que o
perdem alguma autoridade, sentem-se mais sozinhos e não sabem o casal pode vivenciar no seu processo de reorganização e as vicissitudes
que fazer do tempo que lhes resta. Nesta transformação os pais têm, que cada um dos progenitores pode experimentar no alargamento dos
sobretudo, que reaprender a ser pais de filhos que se vão transforman- seus investimentos constituem factores de complexificação e pertur-
do em adultos. Novamente não há escolas para esta aprendizagem e os bação da tarefa parental que temos vindo a analisar.
curricula das aprendizagens anteriores já não servem. Se os pais, por Nesta reaprendizagem relacional entre pais e filhos, a forma como
receio, timidez ou falta de estimulação, se agarram ao que já conhecem o adolescente reavalia e reestrutura a sua relação com os pais é tam-
correm o risco de apenas realizarem mudanças de 1" ordem e, com bém muito importante e um dos riscos que deve evitar é o da clivagem
elas, de bloquearem a sua própria criatividade e o desenvolvimento entre as relações que estabelece com os pais e as relações que esta-
do(s) seu(s) filho(s) e da sua família. Quatro situações podem dificul- belece com os outros, nomeadamente com o grupo de pares. Se aceitar
tar o trabalho aos pais. Por um lado, o adolescente pode ser pouco claro que também precisa dos pais, o adolescente tem, assim o entendemos,
nas suas solicitações de dependência e de autonomia ou, pior ainda, muito mais hipóteses de tomar-se autónomo e de alcançar a sua ver-
pode ser mesmo paradoxal. Por necessidade de experimentação/provo- dadeira identidade. Como diz Satir (1997), o adolescente teve êxito no
164 seu processo maturativo quando sabe ser dependente, independente e
cação163, por desejo mais ou menos inconsciente de agressão ou como
resultado do modelo de comunicação familiar. Por outro lado, os pais interdependente, quando demonstra uma elevada auto-estima e quando
podem ter outros filhos ainda não adolescentes, ou pelo menos mais é capaz de ser congruente.

Todos sabemos que um dos temas quentes desta etapa e desta Poder
1" 1De acordo com Weiss (1982, cit. in Soares, 1996, 48), os pais, enquanto fi- relação pais-adolescente é a gestão do poder: os pais temem perdê-lo e ewnílilu

guras de vinculação na reserva, funcionam como recursos disponíveis para o adoles-


os filhos querem alcançá-lo. A ideia de quem vai perder e de quem vai
cente quando este é confrontado com situações de dificuldade ou stress.
t&J É importante não esquecer o valor maturativo e, consequentemente, normati-
ganhar passa a minar muitos dos encontro.s e a desenhar muitos dos
vo da provocação adolescente. É por um processo de ensaios e erros que o adolescente desencontros. Com alguma frequência, o chamado conflito de gera-
se vai experimentando, na relação consigo próprio e na relação com os outros.
iM A agressão do adolescente pode inscrever-se no contexto da relação diádicaem

IM Para um aprofundamento desta problemática aconselhamos a leitura de


causa (adolescente-pais) mas pode, também, visar uma trama ;elacional mais vasta,
onde as coligações tansgeracionais ganham expressão. Alarcão (l 986).
176 177
(Des)Equilíbrios familiares ~olvimento familiar

ções amplifica-se em virtude desta luta. É importante, a este propósi-


to, esclarecermos o que se entende por poder. Corno diz Relvas sobre a relação. Regra número quatro: não depender de relações exclu-
sivas. Regra número cinco: ser criativo 167•
(l 996b, 170), "na perspectiva das relações familiares, o poder pode ser
definido corno 'a influência relativa de cada membro da família na Estreitamente associada à questão do poder está a problemática do
prossecução duma actividade'. Deve ser avaliado sobretudo a nível de conflito. Nenhuma destas regras visa eliminá-lo. Apenas criar
processo e não tanto a nível do seu resultado, considerando cada situa- condições para que o mesmo possa ser ultrapassado. Com efeito, o
ção em termos de hierarquia e funcionalidade; tem que ser correla- conflito faz parte da existência humana e tem subjacente duas
cionado com a adaptabilidade do sistema e varia no tempo e no questões: divergência de posições e desejo de dominar. A divergência
espaço". Nesta acepção, pais e adolescente podem ter poder, numa é salutar na medida em que, no confronto da diferença, os elementos
articulação de complementaridades a que já anteriormente aludimos. o podem conquistar novos saberes, novas posições, novas relações. A
divergência está, pois, estreitainente relacionada com o crescimento e
que o adolescente não pode é ter o poder dos pais nem estes podem
reclamar o poder daquele. E isto é importante na gestão de alguma
r com o desenvolvimento. Supõe, apenas, que o desejo de domínio não
bloqueie o seu potencial positivo. Por outras palavras, a resolução da
simetria comunicacional a que vamos assistindo nesta etapa e a que
divergência não pode fazer-se pela anulação de uma das partes, pela
também já fizemos referência. Mais concretamente, o poder do ado-
sua desqualificação ou mesmo pela sua desconfirmação. É aqui que se
lescente consubstancia-se, basicamente, na possibilidade da livre
abrem as portas para a negociação, o que supõe uma metacomw1icação
experimentação de papéis, do uso da provocação e do risco, da afir-
sobre a relação. A etapa da família com filhos adolescentes é clara-
mação de novas competências (comportamentais, cognitivas e rela-
mente reveladora do que acabamos de afirmar. "Na diferença, no
cionais) e da detenção de urna clara posição negocial'"· O poder dos
desacordo de opiniões e nas diferentes visões do mundo, vai-se cons-
pais radica na imposição de limites para o exercício do poder do ado-
truindo a autonomia e identidade dos adolescentes. Sem esse con-
lescente. Por isso a sua posição relacional é, fundamentalmente, de
traponto, sem a presença de linhas e normas firmes estes não o podem
complementaridade one-up, mesmo quando aceitam, em circunstân-
fazer com segurança, já que é a definição de limites imposta pela
cias determinadas, uma posição one-down. O poder dos pais não é,
própria família que lhes permite a primeira avaliação da justeza e cor-
convenhamos, um poder fácil. Por isso, sobretudo em situações de ten-
recção das suas próprias convicções, para depois partir com elas para
são, eles podem socorrer-se da afirmação de um poder tão arbitrário
o exterior (onde também necessitam de outras fontes de suporte como,
como o de que "é assim porqt1e eu mando" ou o de que "cresce e
por exemplo, o grupo de iguais). Não havendo dentro da família com
aparece; não sabes nada da vida para estares a dar palpites". Mas esta
u··que se confrontar não haveria conflito, mas também não haveria pos-
é uma má estratégia, pouco adulta e pouco inteligente.
sibilidade de crescimento saudável porque, ou os adultos ou os adoles-
Neste jogo de poderes será que, também nós, podíamos criar algu-
centes ou ambos, entrariam no jogo do 'corno se'. Isto é o que aliás
mas regras? Arriscamos. Regra número um: não ter medo de perder o
acontece nos sistemas em que a ameaça sentida face à mudança é
amor do outro. Regra número dois: saber ser flexível sem perder a
demasiado forte e, por isso, em vez da flexibilização relacional e da
cara, o que supõe ser coerente e não ter urna estratégia básica de infle-
xibilidade. Regra número três: metacornunicar sobre as dificuldades e 167

É numa lógica de criatividade e de afi11nação de uma estratégia de ganhar-


-ganhar que Satir (1997, 334) relata a seguinté conversa entre um pai e um filho:
Jovem: É quarta-feira e estou sem dinheiro! Pai: Isso também me costumava suceder
'
66
É importante acentuar que, a este nível, o que mais diferencia o adolescente da
criança é a amplitude e a frequência com que pode utilizar esta<; áreas de poder, por é muito desagradável. Não receberei mais dinheiro até que me paguem o ordenado
um lado, e a extensão da aceitação que () adulto delas faz, por outro. vejamos como é que podes obter aquilo que desejas e talvez assim possamos
aorenrlf'_r a organizar melhor os teus gastos.
-hl w w w ld . liJ w- ta W lU - .n·· ···llJli w li!Jl t:J M
179
178 ~envolvimento familiar
(Des )Equilíbrios familiares

0 adolescente 170 • Nas famílias claramente desmembradas, em que os


aceitação e gestão do conflito, surge a tentativa da sua anulação pela limites com o exterior são difusos, a socialização do adolescente pode
via da rigidez, expressa quer na permissividade absoluta quer na igualmente não estar muito bem sucedida mas agora por razões dife-
repressão extrema" (Relvas, 1996b, 167). rentes. Precocemente socializado, o adolescente não foi, pela família,
dotado de um modelo de adaptação à vida social e à cultura exterior.
Dissemos anteriormente que é nesta etapa que a família alcança .Pouco nutrido por ela, o adolescente age o seu abandono na vida social
Abertun1
ao exterinr lUlla maior abertura ao exterior. Nes&.e.. seu movimento revela-se fun- e com ela procura triangular a tensão que mantém com a família mas
damental a forma como vem cumprindo as funções interna e externa. que não pode equacionar no seu interior. A abertura ao grupo de iguais
Com efeito, famílias muito emaranhadas apresentam uma fronteira faz-se, neste caso, de forma imediata ainda que esses pares tenham
rígida em relação ao exterior o que compromete o referido movimen- uma particularidade: constituem-se, habitualmente, como grupos
to e a socialização dos seus membros. A ligação do adolescente ao .homogéneos que, por isso mesmo, são pouco nutrientes para o adoles-
grupo de pares, p.e., é sentida como uma traição e, por isso, é blo- cente em termos maturativos e socializadores. Podemos, então, con-
queada'" ou, mais raramente, conseguida à custa de um cÚt-off emo- cluir que em ambos os casos a família é pouco efectiva no cumpri-
cional em relação aos pais e à própria família"'". Na relação com a mento da sua função externa ainda que, no que diz respeito à abertura
comunidade pode ser valorizado o espaço escolar, não tanto como ao exterior, estejamos perante situações de sinal contrário.
alargamento da experiência relacional mas apenas como simples Sintetizando, diremos que na forma como a família se abre ao
espaço de aprendizagem escolar. O sucesso é, então, fortemente .,·.o, exterior revela-se o modo como cumpriu e cumpre as suas funções. Por
investido pelos pais e pelo próprio adolescente que vive com uma outras palavras, podemos afirmar que o valor nutritivo desta abertura
única preocupação: tirar as melhores notas. Nesse sentido a relação do ao exterior depende largamente do alimento de que internamente a
adolescente com a escola é pouco nutriente para esta última: ela sente família dispõe e da interdependência que entre ambas as funções se
que tem ali um aluno esforçado, mais ou menos inteligente, que se pode estabelecer. Nesta etapa do ciclo vital o grupo de pares assume,
serve dela para alcançar o seu sucesso pessoal e que se fica por aí. O como tivemos oportunidade de referir, um papel de destaque. Tendo já
envolvimento emocional do adolescente e da sua família com o sis- equacionado o valor destas novas relações, para o adolescente e para a
tema escolar é reduzido e mediatizado, apenas, pelas suas necessidades sua família, gostávamos apenas de acentuar que, mesmo nos casos em
de sucesso. Na relação com a comunidade pode ainda acontecer que gue a ligação aos pares parece menos potenciadora do desenvolvimen-
seja investido algum espaço que partilhe dos mesmos valores e das to do adolescente (como é o caso dos grupos homogéneos), não será
mesmas práticas da família e que não ofereça o perigo de afastar dela por um movimento centrípeto que a família deve optar. Como pen-
samos ter deixado claro, o alargamento do espectro relacional, o con-
fronto com diferentes valores, normas e comportamentos, a co-
l!K< O "isolamento social" do adolescente é, geralmente, racionalizado e apresen-
~evolução com novos co11textos são aspectos fundamentais para uma
tado como um indicador da sua responsabilidade: "está tão preocupado com os estu-
dos que não sai com os colegas, não perde tempo a brincar, passear ou namorar". Por família que quer continuar a crescer e que quer contribuir para a
vezes, o aparecimento de uma qualquer manifestação sintomática pode ser entendida .autonomia dos seus elementos, permitindo-lhes a construção da sua
como um pedido de mudança que permita, ao adolescente e à sua família, a organiza- própria identidade num referencial de pertença ao grupo familiar. Com
ção de um outro modelo relacional.
19
~ É neste contexto que surgem, por vezes, situações de gravidez e/ou de casa-
mento precoce, muitas vezes feitos contra a vontade dos pais, ou casos de abandono ' É frequente, nestes casos, que toda ou quase toda a família frequente o mesmo
171

da casa paterna que, independentemente da sua configuração concreta, visam o corte espaço (p.e., grupo religioso, grupo folclórico, espaço desportivo).
da ligação emocional aos pais e à família.
~ r'

'
1180 !81
(Des )Equilíbrios familiares Desenvolvimento familiar

174
efeito, o movimento centrífugo que marca esta etapa não é propriedade novos saberes • Complexo pelo facto de que, como parceiro, não é
do adolescente, ainda que ele o solicite frequentemente e num claro escolhido mas imposto, dada a obrigatoriedade da frequência escolar.
registo comportamental 111 • Mas, e voltando à ideia anterior, toda a A complementaridade e simetria educativas de que falámos na etapa
família tem que claramente promover esta abertura, dando con- anterior fazem de novo sentir-se, podendo criar disfuncionamentos
tinuidade a um movimento que já se iniciou na segunda etapa e se comunicacionais semelhantes. O adolescente, no seu duplo papel de

Relação escola-
amplificou na terceira.

A escola constituí, neste contexto, um parceiro importante e com-


i
1
aluno e filho, continua a ser, simultaneamente, mensageiro e men-
sagem. Dada a sua maior autonomia e a complexificação do seu desen-
volvimento cognitivo, o adolescente torna-se um elemento mais cons-
-adolescente- 1
plexo. Importante pela diversidade relacional que comporta"', pelo
-família
acesso que possibilita a novos contactos m e pela disponibilização de
' cientemente activo na produção e transmissão/(re )produção das men-
sagens. O alargameoto da sua rede relacional constitui um factor de
potenciação dos triângulos relacionais em que fica envolvido, aumen-
tando, assim, a possibilidade de alianças e de coligações. Desta forma,
ni Não nos podemos esquecer de que o adolescente está em plena fase de expe-
o triângulo comunicacional adolescente-família-escola inscreve-se
rimentação, no decurso da qual vai operando as suas próprias escolhas, pelo que neces-
sita quase sempre desta tradução comportamental. numa rede ainda mais alargada de comunicações que pode potenciar os
ino contacto com outros adultos (professores e funcionários), detentores de ou- disfuncionamentos a que acima fizemos referência. O implacável sen-
tras experiências de vida, possuidores de uma autoridade diferente da dos pais (media- timento de justiça e de verdade do adolescente, por um lado, e o regis-
da pelo saber escolar e/ou pela necessidade de cumprimento de normas vitais para a to provocatório de muitos dos seus comportamentos, por outro, podem
sobrevivência da própria comunidade escolar) e fà.cilitadores de relações afectivas criar tensões na relação do adolescente com a escola e/ou com a
emocionalmente menos carregadas (porque mais limitadas no tempo e mais facilmente
sujeitas à escolha do próprio) constitui uma oportunidade importantíssima para o ado-
lescente neste seu movimento de reorganização vinculativa, de separação e de presença, desde que a flexibilidade e a capacidade de mudança sejam tónicas suas; b)
definição de uma identidade própria. Com os mesmos objectivos o adolescente alarga os sistemas familiares vêem alargada a sua rede de suporte social o que, nos nossos
o campo das suas relações horizontais, conferindo ao grupo de pares uma importância dias, se revela de extrema importância; c) os diferentes sistemas familiares podem
mais acentuada do que na etapa anterior. Ele próprio está mais capaz de discutir de oferecer-se como contextos conhecidos e protegidos para ensaios de separação, dos
igual para igual e por isso já não necessita tanto da mediatização do adulto na sua adolescentes e dos adultos.
17
relação com os pares. Por outro lado, o movimento de separação e autonomia que faz ~ Realçámos já, noutro momento, a importância que o saber pode ter no desen-
em relação à família não se consubstancia apenas na relação com os pais mas envolve, volvimento de uma matriz de diferenciação e de autonomização. Parece-nos impor-
igualmente, a relação com a fratria. Assim, também esta sente, por vezes, uma certa tante que a escola não perca este seu potencial. Mas para isso é fimdamental que se
competição e rivalidade face à relação que o adolescente vive com o grupo de iguais. respeite a existência de uma conexão entre os novos e os velhOs saberes, pelo que não
Mas, tal como os pais, também a fratria funcionará sempre como grupo de relações apenas os filhos mas também os pais deviam ser implicados n1ais activamente nesse
horizontais na reserva. O contacto com os adultos da escola pode ser, igualmente, processo. Estamos conscientes de que este objectivo é dificil de atingir nos nossos
muito importante para os pais: com eles podem metaco1nunicar sobre as suas dificulK dias, em que todos temos pouco tempo para trocar os nossos saberes, em que a espe-
dades e sobre as suas alegrias, com eles podem co~construir novas leituras sobre o ado- cialização do conhecimento criou fronteiras artificiais entre o saber, em que a dificul-
lescente e sobre si próprios, o que pode facilitar a reorganização familiar de novas dade de acesso ao nível superior de ensino transforma a aprendizagem num processo
histórias. Obviamente que isto supõe a existência de uma comunicação funcional entre de competição pela nota e não tanto pelo conhecimento e em que o alargamento da
todos e de códigos que, não sendo iguais, têm fortes pontos de contacto e de comple- escolaridade multiplicou, em muito, o número de alunos e professores, transformando
mentaridade. as escolas em grandes sistemas, pouco sensíveis e/ou disponíveis para o trabalho das
173
Sobretudo através dos colegas da escola, o adolescente e a sua família têm singularidades. Num Sistema Alargado de Comunicação, como é a escola, poden1
acesso a novos sistemas familiares. O potencial desta interacção radica em vários desenvolver-se importantes disfuncionamentos comunicacionais que só dificultam a
aspectos: a) o contacto com a diferença pode trazer maior criatividade aos sistemas em concretização daquele objectivo.
r'bd ·····J.:i; í. .iJ ·.···(Q ,~··w ~ lJ..:j .:L, LJ ·&;., w lb ~·· ·ü.J J.i; w 00 [;,,jl til# ~.il
rr,-
182
(Des)Equilíbrios familiares

família que encontram naquela triangulação diversas formas de reso. '~'--'-\-'.processar-se,


de ~orn:a efectiva, e~bora num r:gisto. cada vez menos
lução. Dada a sua maior autonomia a família pode ter urna relação Urtpositivo e mais dtscreto 175 • A crise que entao se instala pode ser,
menos sistemática com a escola e esta pode, também, dispensá-la mais ii\ como sempre, equacionada de duas formas.
em favor da relação privilegiada que tem com o adolescente. Em situa. Quando a crise é resolvida criativamente o casal tem que alimen-
ções de tensão as dificuldades podem ser potenciadas pela falta de tar, de forma significativa, a dimensão individual de cada um dos côn-
comunicações regulares e pela ausência de um treino metacomunicati- juges ao mesmo tempo que não pode descurar o nós conjugal.
vo entre as várias partes ... A título de parêntesis, gostaríamos de su- Habitualmente, este é um período de grande produtividade e ama-
blinhar que não será irrelevante o número de vezes que, ao longo deste -durecimento profissional: os cônjuges devem permitir-se, a si próprios
parágrafo, utilizámos o verbo poder. Com efeito, e apesar de tudo 0 e um ao outro, um desempenho profissional que os gratifique e que,
que acabámos de afirmar, a comunicação neste triângulo relacional - nessa medida, constitua urna mais valia para a reforma. É importante,
pode ser funcional e a multiplicidade dos triángulos relacionais pode no entanto, que alarguem os seus iI1vestimentos pessoais a outras áreas
constituir-se como um factor de facilitação comunicacional. Desde que de actividade e de relação para poderem no futuro, mais concretamente
a mesma seja clara, se respeitem as áreas de competência de cada um na idade da reforma, dispor de um maior número de opções para a
dos parceiros envolvidos e os mesmos visem a sua ligação e não o seu reorganização que terão então que operar. Por outro lado, esta diversi-
afastamento (possibilitado pela rejeição, desqualificação e/ou descon- ficação pode funcionar, em nosso entender, como uma forma de _pre-
firmação ). Novamente ressalta a ideia de que o valor da crise está na venir possíveis escaladas simétricas que em nada facilitarão a tarefa de
forma como ela é resolvida e não na própria crise. ·reorganização do nós conjugal. Este, por seu lado, tem que ser também
nutrido, ainda que, de forma algo paradoxal, muito do seu alimento
Não podemos terminar a análise desta etapa do ciclo vital sem resulte, neste período, de urna boa "alimentação individual". Discu-
fazer referência a duas outras tarefas familiares: a recentração na vida timos já, aquando da análise da primeira etapa do ciclo vital, a retroa-
conjugal e profissional por parte da díade adulta e o início do seu apoio limentação entre individualidade e conjugalidade e mostrámos a sua
à geração mais velha. inequívoca interdependência. Diríamos que, a partir desta etapa, assis-
Rcurg:rni-t.açiio Dissemos já que o alargamento relacional do adolescente e a sua timos à amplificação deste processo.
cunjugal
progressiva experimentação e conquista de autonomia se reflectem na Quando a crise se converte em impasse e bloqueia o próprio
gestão das relações pais-filho(a). Gostaríamos de sublinhar, agora, as desenvolvimento do casal este pode encontrar duas saídas possíveis:
implicações de tal movimento ao nível da díade conjugal. É óbvio que ou triangula ou morre. Neste último caso, o casal pode dissolver-se
esta passa a ter um tempo e um espaço de expressão pelos quais ansiou mesmo"' ou pode perpetuar-se numa co-habitação pouco ou nada gra-
muitas vezes, no passado, mas que agora nem sempre sabe como tificante para ambos os cônjuges"'. Nas situações de triangulação a
preencher. A díade tem que (re)aprender a criar novos interesses, novos
compromissos, novas simetrias e complementaridades que deixam de 175
Não esqueçamos que a qualidade que melhor define os pais na adolescência dos
ter a função parental como um dos elementos de triangulação. E isso _filhos é o serem figuras de vinculação na reserva.
não é fácil por duas razões fundamentais: por um lado, porque durante 11
1> É, com efeito, possível encontrar separações e/ou divórcios em casais aparente-

muitos anos a função parental teve que sobrepor-se, em situações de mente funcionais. Durante muitos anos o casal funcionou nun1 registo de triangulação
conflito espacio-temporal, à função conjugal e isso criou regras e com a díade parental e agora, face à necessidade de reorganização e de implementação
hábitos relacionais que agora têm que ser transformados; por outro de mudança de 2ª ordem, colapsa.
177
É, normalmente, por uma forte dependência relacional e por um medo de ace-
lado, porque, nesta etapa, a função parental tem que continuar a
der à mudança que os cônjuges se rnantêm unidos quando, na realidade, já não há casal.
184
(Des)Equilíbrios familiares

5
mesma pode fazer-se com os filhos 11 8, com um dos elementos da
própria díade conjugal'" ou com a geração mais idosa'". Em qualquer Família com filhos adultos
um dos casos não só se perturba o ciclo vital do casal como pode
entravar-se o próprio desenvolvimento familiar e individual.

Apoio à
O apoio à geração mais idosa pode, como vimos, surgir num con-
geração idosa texto de triangulação. Mas, na maior parte das situações, não é com
essa função que o vemos aparecer. Em muitas famílias há uma coin-
cidência temporal entre a adolescência dos filhos e o apoio aos avós.
Pode acontecer que um deles, ou ambos, adoeça(m) ou fique(m) fisi-
camente limitado(s): nessa altura, os seus filhos têm que ocupar-se
deles, trazendo-os para a sua própria casa ou apoiando"OS na sua
residência. Estas situações podem ser vividas pelo(s) filho(s) adoles-
cente( s) como uma partilha insuportável de atenção e afecto, gerando-
-se, então, entre as duas gerações extremas, sentimentos de rivalidade O facto de, na classificação que adaptámos, esta ser a última etapa
e competição. Podem, pelo contrário, surgir situações de cooperação e do ciclo vital da família podia levar-nos a pensar que o sistema fami-
conivência, traduzidas em alianças mais ou menos funcionais. Em liar seria fundamentalmente confrontado com a perda e se caracteri-
qualquer um dos casos há uma reorganização familiar que se impõe e zaria por um menor movimento de abertura. Sobretudo por contraste
a posição do sub-sistema parental não é, de forma alguma, cómoda: com a etapa anterior. Tal ideia não deixa de estar subjacente a outras
entre duas lealdades, confrontada com o envelhecimento, e eventual- designações que podemos encontrar na literatura, para o início desta
mente com a morte, dos próprios pais, a díade parental tem que exercer mesma etapa, tais como: fase de contracção da família, fase de lança-
uma função protectora e de prestação de cuidados a duas gerações mento dos filhos ou etapa do ninho vazio. No entanto, este é, sem dúvi-
"quase" adultas que lhes exigem independência mas que também da, wn período de grande movimentação familiar, marcado por múlti-
necessitam de dependência. A díade conjugal tem, nestas circunstân- plas saídas e entradas no sistema e por transformações relacionais
cias, que mostrar algum equilibrismo e uma boa dose de criatividade. importantes. "Na maior parte dos esquemas classificativos( ... ), obser- Multigera-
donalidade
Até para poder preparar-se para a etapa seguinte. va-se que os autores consideram este período dividido em dois ou até
três estádios. Isto parece perfeitamente válido e coerente na medida em
que se podem identificar diferentes tarefas desenvolvimentais para
cada wn. A opção deste período como uma só etapa fica a dever-se
basicamente ao que nos parece ser a sua característica fundamental,
178 Habitualmente é um dos filhos que se apresenta como sintoma, prolongando,
marcadamente intergeracional. É importante conseguir uma visão o
assim, o papel de protecção e prestação de cuidados da díade parental.
mais englobante possível dos movimentos relacionais que neste
179 Neste caso é um dos cônjuges que se assume, então, como sintoma. Muitas

situações de depressão e muitas manifestações psicossomáticas não têm, com efeito, .momento da vida familiar interligam as várias gerações. Note-se então,
outro significado. para além da relação com as gerações mais idosas, também a pro-
1g' 1 As preocupações com a geração mais idosa, ou com um dos seus elementos, e 1ática do jovem adulto será abordada como uma das questões com
a prestação de cuidados a ela dispensados podem desviar as dificuldades que a diade quais a família vai ter que lidar" (Relvas, 1996b, 187-188).
conjugal possa experimentar neste seu processo de reorganização.
"---111....-:
\__ \_ - Íio-~-~-..._______ .,___ -'--
-.---- ~li<--~<-
~· LU IJil W· w GJ CIU Hil ru 10 w' , ~w
Ln w i..b w l.h w t:,,. t.t3· lli
186
(Des)Equilíbrios familiares

Naquele ano de 1995 tudo parecia ter começado a correr mal-_em ,:-%';:déIDasiado e de José voltar a-partir com elas e com mais alguém,- o receio
casa da família Castro. Doenças, divórcios, mortes ... Teentradas, saídas ... ,:},i);i_:J·!;:quotídiano de perder a mãe e o pavor de ficar só. O casamento de Lúcía
mas comecemos a contar a história desde o princípio. ·;,~\;ft~.'D.ão estava bem e aquela filha estava cada vez mais calada e distante. Com
Maria era casada e tinha três filhos: Clara, de 35 anos, José, de34 <!?-!'.:-~;~1Cíara era a ansiedade do costume: face ao fantasma da dependência emo-
anos, e·Lúcia, de 29 anos. José era o preferido de.Maria: embora.nunca - '..:M~:.cional ambas esgrimiam as annas do cut-off emocional; de vez em quan-
o reconhecesse, tinha· com ele uma relação .muito próxima, dependente -- dava1n-se uns minutos de trégua e entregavam-se uma à outra; mas
mesmo. José fora o primeiro a casar. Tinha duas filhas, uma de_ 5 e outra i·:J\,.IO!:u recomeçava a terrível luta. José regressara mais maduro e ela sentia
de 2 anos. Seguira-se-lhe Clara, alguns anos depois, e, [malmente, Lúcià.- em parte, o perdera ...
Maria reviu-se no casamento desta última: tratou de tudo, do_ princípio ao Maria tinha, pensamos, a grande tarefa de preparar-se para as perdas
fim, e sentia que esse casamento ia .dar certo. Tinha sido bonito demais de· transformar as relações muito verticais que continuava a manter com
para que .não tivesse mna continuidade feliz. Além disso Maria preciSaVa ,«~fOs·filhos. Mas essa era a sua grande dificuldade. Afectivamente não tinha
dessa convicção. Em relação ao casamento de ·Clara ~inhà ffiedo: e·ra ('l~r~-_segurança
<./:V.. .
necessária para poder ter relações de adulto para adulto com
.
impressionante como andava _sempre em sobressalto com esta filha. \;;:-~;';.aqueles· de quem tanto gostava. Por isso estava _um ·pouco perdida, sem
Desde pequenina que era assim. Ambas se queriam demais mas llunca ,:$iJ;isaber o que fazer da sua vida. Tudo tinha parecido mais fácil quando era
conseguiam gratificar-se o suficiente. -o casamento de José-não estava ~,,_.~i'.mais nova e tinha .de ocupar-se de novas vidas que precisavam dela para
bem, oscilando entre-situações de divórcio eminente-e períodos em que
parecia que o mesmo iria sobreviver toda a vida. Por isso Maria se.sentia
tão feliz com o casamento de Lúcia. Além disso, este era . aquele ·que_: se O caso que acabámos de descrever ilustra, claramente, a dimensão
parecia com o que sempre desejara ter e que projectara em todos.os.casa- intergeracional de que esta etapa se reveste. Retrata, ainda, de forma
mentos da família. Mas só Lúcia lhe dera essa alegria. "'·.inequívoca, a ocorrência simultânea de várias situações de stress que
No início de 1995 Maria tinha os filhos "anumados", a vida.ecó' '1;t:::,atravessam as diversas gerações e que, mercê dessa coü1cidência, se
nomicamente composta, o marido envelhecido e a mãe .a precisar._de. '~'.mlimentam recursivamente, amplificando a sua dimensão crítica e
atenção e alguns cuidados. Ela própria estava cansada e, sobretudo, com. '{i.podendo dificultar a sua resolução. Uma vez mais acentuamos, porém,
vontade de fazer outras coisas na vida. Por isso decidiu arruinai- o _antigO
': . que se a crise for criativamente resolvida ela constitui uma excelente
emprego e preparar-se.para uma vida nova. Apesar de ser .muito rápidà
:,·oportunidade para que a(s) família(s) alcance(m) um nível qualitativa-
nas suas .acções, Maria estava ainda a organizar-se ·quando se-viu·con~\­
frontada com o divórcio ·de José, a doença e a morte ·da nora; Para Luís_': -:;:,,;;mente superior de funcionamento.
tudo-foi -um .choque: o divórcio do filho, a-doença da.nora, a projecçãO ·,;e; Com o alargamento da esperança de vida passou a ser relativa-
massiva de -uma agressividade mortífera por ·parte destá e· .dos seuS:,, ''·•:mente frequente a coexistência de três e até de quatro gerações. É com
próprios.pais,-o vai-e-vem das netas. No início de 1996, José regtesSava,: .--_.(,:.jjmuita alegria que vários bisavós vêem 11ascer e crescer Uin certo
a casa-dos pais com.as filhas atrás. 'Mas Luís tinha envelhecido .muito;_· ·'~':jriúmero de bisnetos. Eles renovam-lhes a vontade de viver, sobretudo
estava doente· e. perturbava-se com esta reentrada. Era necessário renego~ { :;i~i;·9uando entre ambos se cria uma forte corrente de afecto. A estes ser-
ciar tudo: horários, -espaços, tempos livres, investimentos -afecti-Vos. Maria_:'.·: . .'.;'.'.\·lhes-á, decerto, grato recordar, anos mais tarde, essas figuras que, com
sentia-se muito div_idida entre- o marido, as .netas, o filho, as. filhas, _a ínãe:-~ ;CÍ~uma enorme disponibilidade de tempo, llJes puderam encher as horas
e ela própria. Luís precisava-muito dela mas nãü lhe dava a gratificação de'" ·,t!'~e histórias e de brincadeiras que, por serem antigas e diferentes, ti-
que necessitava e, sobretudo, confrontava-a com· o pavor da· perda. As ::&;rµiam também mais magia. Avós e país sentem-se mais acompanhados,
netas eram· um amOr: exigiam muito desta avó/mãe mas daviim:..Uie:ntuiU(_:~
.~~~ntre os novos que lhes dão continuidade e os antigos que lhes deram
ternura. O mais dificil para Maria era gerir os ciúmes do Luís erri:reli:iç~Q;,;:~
ao afecto e ao tempo que ela dava às crianças, o medo de se lhes'en,tregaf,·'.~::
;yiilv1da.
..,.-----,,

188
(Des)Equilíbrios familiares pesenvolvímento familiar

'::'J~l0'
A família nuclear, cujo percurso ternos vindo a acompanhar -'W>envelhecimento, numa articulação permanente entre independência -e
Co1npkxidade
intergerncionat prepara-se para se transformar ern família de origem. Dela saem filho; dependência, prírneiro corn as gerações mais idosas e, depois, consigo
e filhas que partem para, frequentemente, trazerem novos elementos. própria. Tentemos analisar, sinteticamente, cada uma delas, realçando
São as noras, os genros, as suas próprias famílias, os netos, os com- os seus aspectos fundamentais.
padres e as comadres. São, tarnbérn, novos papéis e novas relaçõe;.
Atrás de si, a nova família nuclear passa a ter duas famílias de origem,
por vezes ainda completas, outras vezes já reduzidas a um só membro. >i:; Vimos já, quando analisámos a etapa anterior, como a saída dos Saíd;i dos

Urn pouco mais atrás ficam as famílias de origem da que está prestes ''filhos de casa está hoje adiada: a pretexto do prolongamento dos estu- filhos de casa

a passar a ser de origem também e que, por facilidade de apresentação, 0'dos, das dificuldades de emprego e/ou das questões habitacionais, dos
passaremos a designar, agora, corno nossa. Corn o passar dos anos kproblernas económicos, da necessidade de uma maior rnaturídade para
corn a perda de algumas capacidades, com o eventual desaparecimen'. •.. 0 casamento e para a parentalidade, os filhos vão prolongando a sua
to de urn dos cônjuges ou corn o possível aparecimento de uma situa- ()'estadia ern casa dos pais, por vezes corn algumas experiências de afas-
ção de doença, os elementos daquelas famílias de origem podem pas. .•,. tamento impostas por novos estudos, por experiências laborais pro-
sar a entrar, tarnbérn, na nossa família. Algum tempo depois saem de }'visórias ou por mudanças de local de emprego. Durante este período,
novo, temporária (por hospitalização, p.e.) ou definitivamente (por o\•ijlais e filhos têrn algumas novas questões para gerir. Permanecendo ern
morte). Esta frequente entrada e saída de elementos no sistema levou ·':'..'casa dos pais, os filhos têrn que cumprir algumas regras que os pais
a que autores corno Duvall (1954, cit. in Relvas, 1996b, 191) "[quali- têm que continuar a impor (p.e. horário das refeições, arrumação do
ficassem] este período corno os 'anos acordeão' da vida da família". 'Aquarto, das roupas e de outros objectos pessoais). No entanto, dado o
O casal da nossa família nuclear, aquele que, na meia idade, vê os >·/'seu estatuto adulto nem os pais se sentem bern a impor essas regras
filhos partir e os pais chegar, tern, então, urna situação espacial e rela- .'~Jlem os filhos a aceitá-las. Pelo menos, de forma sistemática. Par-
cional que lhe confere urn estatuto particular, claramente traduzido ;,ttilhando a casa com os pais nurn período ern que já ganham, coloca-se,
pela metáfora da "geração sanduíche" ou da designação de geração .;::aos filhos e aos pais, a questão de definir qual o contributo monetário
intermédia. Posição dificil a desta díade: não pode esquecer que é sub- ,~:1e uns e de outros. Esta é, sern dúvida, urna questão delicada para a
-sistema conjugal rnas também não pode ignorar que é formada por ····tr1aioria das pessoas. Quando os filhos ainda estão rnateríalrnente de-
dois indivíduos que necessitam, cada urn à sua maneira, de bastante ·~'JÍiendentes dos pais o incómodo é geralmente dos primeiros, que se sen-
autonomia; não pode deixar de assumir-se corno sub-sistema parental :ii1tertt limitados na gestão financeira de urn capital que não é seu assim
mas, agora, de filhos adultos o que lhe confere contornos muito par- f(Çomo no exercício de urn poder aquisitivo que ainda não têrn rnas que
ticulares; não pode perder de vista que também é sub-sistema filial mas í'.is~rttem que deviam ter. Finalmente, urna outra área nem sempre pací-
numa relação progressivamente invertida corn urn sub-sistema parental iq;~ca é a da partilha dos tempos livres e a da possibilidade de levar para
que tern necessidade de afirmar, simultaneamente, a sua dependência e (i',~~a (dos pais) os amigos, os colegas ou a( o) namorada( o) que a ela
a sua independência. i1§riam livre acesso se a casa fosse do próprio. Nestas condições, facili-
Geração adulta entre gerações adultas, esta díade tern, então, que {~;tàr a saída dos filhos de casa passa, ern nosso entender, por promover
realizar três tarefas fundamentais: a) facilitar a saída dos filhos de casa, ;~~sua individualidade e autonomia nurn ·contexto de respeito mútuo,
permitindo-lhes uma construção autónoma das suas próprias vidas; b) ,:.;%'.~Hde a área comportamental é, talvez, a mais comprometida, e portan-
renegociar a relação de casal nurn contexto de reavaliação do casa· - -i_!~"_Süjeita a negociação, mas onde as dimensões intelectual e afectiva
rnento, de balanço profissional e individual; e) aprender a lidar com o !'-tÍ{;t~J'.'.
1t~':J!~;;i

:s?i~~;r,
.----
·~
r--. /''· ,.,., ,.---
- lli-
__ ,._
-w-
_,-- ·--- ,d·- -----

ilJ ·a:ü· w ·JJ.. Ld "'


dJf lJ ·&i. -°"". .·i!.:.tí
L '~ . ,
llÜi· Uo;.t .:ü· M &;.· t.;lll . <li •• w
191
190
- ---- í)e;envolvimento familiar
(Des )Equilíbrios familiares

Na saída dos filhos de casa, é, pois, importante que a família


se oferecem como um largo campo para a prática da nova ordem rela-
facilite dois movimentos algo contraditórios: a saída e a reentrada.
cional. Compreende-se que um bom afastamento potencia uma boa reentrada
A família deve, pois, começar a facilitar a saída dos seus filhos de
até porque, dessa forma, a saída representa a transformação da relação
casa antes mesmo da sua efectivação. Por isso esta tarefa começa a ser
que o desenvolvimento individual e familiar aguardam. Por .outro lado,
preparada na etapa anterior e tem como grande aliado a capacidade de a disponibilidade dos que ficam para a recepção dos novos parentes'"'
uns e outros poderem elaborar, de forma construtiva, o processo de será muito maior, já que a separação não ocorreu em virtude de um
separação e de autonomia bem como a afirmação de uma identidade qualquer corte emocional. Nesta etapa, os filhos precisam que o pais
própria. Tivemos também oportunidade de referir que, para além dos continuem a ser figuras de vinculação na reserva: disponíveis para
pais e do próprio, a fratria tem, em termos familiares, um papel impor- apoiar, confortar e, eventualmente, aconselhar em situações de dificul-
tante na facilitação ou na dificultação de todo este processo. Sem sa-
dade ou de stress. E os pais precisam de sentir que os filhos assim os
crifícios pessoais 181 , ela pode, com efeito, assumir-se como um terceiro
consideram para, dessa forma, poderem reorganizar a sua função
na relação pais-filho(a) "de saída", facilitando, pelas alternativas que
parental. A maior dificuldade, para ambos, é encontrar um equilíbrio
coloca, a gestão relacional daquela díade. Por outras palavras, a fratria mutuamente satisfatório entre as aproxímações e os afastamentos, as
pode, ou não, ajudar os pais a identificarem e a compreenderem o que solicitações (directas ou indirectas) de apoio e conselhos e a recusa dos
é que esse( a) filho( a) necessita ou deseja, a conhecer e a integrar a(o)
mesmos, o aconchego emocional e a necessidade de independência
namorada(o) e, futuramente, a nora/o genro e as respectivas famílias . afectiva. Estas questões não são novas: talvez sejam, até, uma das
de origem, a criar espaço e tempo para a reorganização conjugal e
grandes constantes da vida humana e, particularmente, da vida fami-
individual'" que esta etapa vai solicitar. Paralelamente, a fratria pode, liar qualquer que seja a sua configuração. O que é novo é o registo da
ou não, auxiliar o irmão(ã) a conseguir um equilíbrio, nada fácil, entre
horizontalidade relacional em que pais e filhos agora se movem e a
a alegria e o desejo de liberdade e de autonomia, o medo da separação, durabilidade e importância dos novos laços afectivos. Em síntese, pen-
as angústias decorrentes das múltiplas transformações relacionais e
samos poder dizer que os pais têm que estar atentos mas não vigilantes,
dos diversos sentimentos de lealdade'"'. disponíveis para ouvir e aconselhar (ou sugerir pistas de resolução da
situação) mas capazes de aceitar que outras soluções tenham sido
R
1 1
Em famílias com maiores dificuldades evolutivas, a fratría, ou, mais fre- adaptadas, mesmo quando lhes parece que foi o cônjuge do( a) seu(sua)
quentemente, um dos seus elementos, pode, através do aparecimento de um sintoma, ,,filho(a), ou a sua família de origem, a determinar essa opção. Têm que
solicitar o exercício de um papel parental activo e, dessa forma, travar o desenvolvi- .ser capazes de aceitar que novas díades e tríades afectivas se organi-
mento fanüliar, embora permitindo a saída do irmão(ã). Frequentemente o futuro re~
vela que esta não foi mais do que uma pseudo-saída.
A fratria pode, a este nível, revelar-se muito efectiva, incentivando os pais a
181 Mas-tambérn pode começar aqui uma pequena grande guerra. A fratria pode criar uma
terem mais projectos a dois e oferecendo-se, por vezes, como uma alternativa para idas _-,,--nova regra. O Natal é para a família e na Páscoa a nova geração vai procurar energia
ao cinema, ao teatro, à praia ou, simplesmente, ao café, num recriar de interesses, -:;::.'-nas.tépidas águas mediterrânicas ou na alvura de neves tardias.
necessidades e hábitos que o exercício de um pa)~l parental activo ocultou. :. m Ao nível da recepção dos novos parentes ~ claro que o genro/cunhado ou a
IHJ Há, por vezes, comportarnentos do quotidiano que parecem irrelevantes mas
\'nora/cunhada ocupam um lugar de destaque. Mas é importante não esquecer os seus
que, quando questionados, podem gerar uma enonne tensão. É na sua resolução que a ;:[>páis-e, até, os irmãos, sobrinhos e outros faniiliares significativos. Em termos comu-
fratria pode dar uma boa ajuda. "Onde vais passar a Páscoa? A casa dela?", interroga, ;.jLnicacionais a rede alarga-se a todas estas figuras e em situações de tensão e de confli-
em tom de meia censura e desgosto, a mãe. "E porque não?", reponde o filho, mais ,:,f:~-;~ diversas triangulações podem ser activadas. Delas não estão isentas muitas destas
agastado com o tom do que com o conteúdo da pergunta. Ambos podem ter a segu· y~iii_]>essoas e, indirectamenle, é provável que estejam até todas envolvidas.
rança afectiva necessária para encontrar uma resposta inteligente para esta questão. ,·yJ;>?

,:i~:-
1--,.,,

f;'

!93
192 ~nvolvimento familiar
(Des)Equilíbrios familiares

proporcionada pelo amor actual e pelas perspectivas de futuro,


zararn, uma das quais 185 tem um valor de intimidade muito próximo
constituem o outro lado do tripé deste processo reorganizativo.
daquele que, no passado, caracterizava a díade pais-filho(a). Têm
O casamento chegou, ou está a aproximar-se, das bodas de prata.
sobretudo, que saber esperar e poder transformar para que possam con'.
vinte e cinco anos de um ciclo de vida conjugal, pontuado, ele
tinuar a ser pais de filhos adultos e, futuramente, avós dos filhos dos
por diferentes etapas e crises 188 • Esta será uma delas, em que,
seus filhos e/ou das suas filhas'". Os filhos têm que, sobretudo, ser cla-
ros, saber criar urna fronteira funcional entre a sua nova família vezes deixaram a sua casa aos filhos. É curioso atendermos aos possíveis significados
nuclear e as respectivas famílias de origem, e têm que ser bons arqui- simbólicos desta troca. Na auto-caravana, o espaço de intimidade do casal é enorme e
tectos para que, na ampliação do seu edificio relacional, possam trans- é tão facilmente partilhado por terceiros (nomeadamente por terceiros familiares).
formar a complexidade em oportunidade de desenvolvimento e não em outro lado, a liberdade individual do casal alarga-se substancialmente: hoje pode
risco de bloqueio. Neste caminho ninguém está sozinho e, conse- estar aqui, amanhã acolá. A diversidade do quotidiano fica, consequentemente, aumen-
Em termos familiares, a propriedade foi legada à nova geração, que passará a ter
quentemente, os processos são recursivos. A pontuação que fizemos de dar continuidade à família, e as relações de proximidade e de afastamen~
das tarefas dos pais e dos filhos tem a ver com a posição de comple- ficam reguladas por quatro rodinhas que tanto permitern estar a cinco metros como
mentaridade one-up que, segundo pensamos, em determinados a milhares de quilómetros de distância. Pode pensar-se que advogamos esta como uma
momentos, cada um vai tomar em relação aos outros. ,:,.·hOa.solução para contextuar espacial e relacionalmente esta etapa. Nem por isso, ape-
de acharmos que a auto-caravana é uma boa forma de passar férias e ou1Tos tem-
Analisando agora urna outra grande tarefa desta etapa, somos le- pos livres. A sua grande limitação está, no plano simbólico, ao nível da individualidade
Reorga1fr.iaçiio de cada um dos elementos do casal. Metaforicarnente podemos dizer que ela pode ali-
do casal vados a focalizar a nossa atenção no casal. O tal da meia idade que ;.. mentar bem o nós do casal mas que oferece limitações e riscos ao nível do tu e do eu.
constitui a "geração sanduíche". Já por diversas vezes afirmámos que, '!.\::,; ias De acordo com DeFrank-Lynch (1986) o ciclo vital do casal divide-se em três
com a transfonnação do papel parental detido pela mesma díade _,'}:··:·etapas. 1) No estádio de fusão, que corresponde sensivelmente aos primeiros dez anos
(enquanto sub-sistema parental), o casal passa a dispor de mais tempo , >;{:de. vida do casal, o sistema conjugal fecha-se ao exterior para criar o nós conjugal. A
e de mais espaço. A aproximação da reforma, mesmo quando ainda fal- ',<;.:principal tarefa consiste, pois, na fusão de dois indivíduos distintos num só sistema.
',;'.;;:Pii.5sados os primeiros três anos de vida conjugal há uma intimidade crescente mas a
tam alguns anos para a sua efectivação, constitui um outro elemento de ~,%',;estabilidade não está ainda alcançada. As áreas de convergência reduzem-se, a comu-
ponderação na reorganização espacio-ternporal do novo-velho casal"'. ~~1. nicação perturba-se e surgem dúvidas sobre a adequação da escolha do parceiro. A
Finalmente, a idade e a qualidade do casamento, bem como a satis- {{.'·parentalidade e a carreira profissional triangulam alguns dos conflitos e algumas das
;-~~::dificuldades. Pelos sete anos de casamento a fusão instala-se definitivamente: clarifi-
:.:_,·;éarn-se as áreas de simetria e de cotnplementaridade, as questões de poder e as estraté-
is>Falamos, naturalmente, da díade conjugal. ·::·.:·gias de resolução de conflitos. 2) A segunda etapa, centrada no eu e no tu do casal,
Quando a fratria é composta por filhos de ambos os sexos, é importante que os
186
pais não façam uma diferenciação muito grande, em termos de aproxi1nação e disponi-
f\. !Ilarca um forte regresso ao investimento na individualidade e na autonomia de cada
;_3;Jun dos parceiros. Surgem inún1eras dúvidas sobre o interesse e a validade das renlm-
bilidade afectiva, entre os filhos das filhas e os filhos dos filhos. É óbvio que este é um
:'.~;:,~ias que, no plano individual, se fizeram e aparece, por vezes com muita intensidade,
processo interactivo, criado pela co-evolução de pais, filhos, sogros e netos, o que .'~~r,0.desejo de separação. Nesta etapa, a tarefa do casal consiste, fundamentalmente, em
toma impossível a afirmação de relações de causalidade linear. A nossa intenção é,
:'~:~fiar um sub-sistema formado por duas metades bem definidas ainda que articuladas.
apenas, sublinhar a importância da luta contra a profecia (que geralmente se auto·
~{O~. filhos, mais crescidos e mais autónomos, podem já não ser tão facilmente triangu-
-cumpre) de que "as mães sentem os filhos das filhas como mais seus do que os filhos , ' ~os. A crise pode encontrar uma de quatro saídas: pode resolver-se criativamente,
das noras". :ovando-se a relação pela reorganização de um nós conjugal que aceite zonas de
A este propósito gostávamos de realçar que, na perspectivação de uma maior
187 1
rte individualidade; pode continuar o casal a triangular com os filhos nem que isso
disponibilidade de tempo para viajar e da necessidade de um menor espaço físico para be o seu crescimento pessoal e o desenvolvimento familiar; podem anular-se as
viver Gá que não há filhos para criar e os netos terão a sua própria casa), alguns casaiS; ':vidualidades contidas no casal o que, de alguma forma, o mata também; pode o
por esse mundo fora, venderam as suas casas e compraram uma auto-caravana. Por
Ut\lÍ
!:'·
'1l1 ld lb fu lt.r: d,)' M ru Ld ci;.b
-1\;'lb
w ih" w w tb· w r:b· td & ...
UIJI. w
194 ~1; 195
(Des)Equilíbrios familiares '(f' Desenvolvimento familiar

de novo, o casal tem que cuidar do nós, do eu e do tu. Por outras fas parentais. Não negamos a possibilidade de que algumas vivências
palavras, tem que, na continuidade de um processo em curso, criar as '~·'-··.depressivas possam marcar o início desta etapa: a mudança, a trans-
condições necessárias ao seu desenvolvimento. Como sempre, isso ·•· fonnação e a te-avaliação relacionais a que vimos aludindo podem
obrigará à realização de um conjunto de mudanças de 1" e de 2" ordem. · gerar algum sentimento de perda e de desconforto decorrente do con-
Habitualmente, a paixão do namoro e dos primeiros tempos de casa- fronto entre o desejado e o alcançado. Mas parece-nos mais interes-
mento deu lugar a um amor mais calmo mas, também, mais maduro sante e útil colocar a ênfase no potencial transformador destas mesmas
feito de respeito mútuo, de negociação, de necessidade e satisfaçã~ modificações. O nós do casal pode encontrar novas formas de comple-
recíprocas, de metacomunicação 189 • Ou, então, deu lugar à habituação, mentaridade e novas campos de expressão da solidariedade e da inti-
à inércia ou à simples necessidade de manutenção. Em qualquer um midade conjugais. A negociação pode estar mais facilitada pelos anos
dos casos há transformações a operar e o risco de ruptura pode surgir, , ,_,.de experiência conjugal e pela menor necessidade de uma excessiva
ainda que o mesmo seja maior nas situações em que o balanço conju- ·- afirmação da simetria comunicacional no interior do casal 192 •
gal é negativo ou em que a insatisfação individual é muito grande"º. É
frequente afirmar-se que esta é, para o casal, uma etapa de liberdade' 91 e Raule Josefina tinham casado as duas filhas. Sentiam-se mais tran-
de depressão dada a saída dos filhos de casa e a reconversão das tare- com um:dos genros;. o outro ·escapava-lhes ao seu conhecimento e
co1npreensão e por -isso estavam um pouco apreensivos. A casa ficara
mais vazia e silenciosa desde que ambas partiram. Havia horas em que se
casal dissolver-se pela consumação da separação/divórcio. 3) Cerca de vinte anos pas-
sentiam ·um pouco tristes e. perdidos. ·Ambos aguardavam, com muita
sados, no estádio da empatia, o nós do casal desenvolve-se, cada vez mais, na articu-
lação de duas individualidades psiquicamente independentes que fazem da metaco-
esperança, os netos que havia1n de chegar. Josefina, solicitada por uma
municação a estratégia privilegiada de resolução dos conflitos e das dificuldades. profissão de que gostava muito, envolveu-se nela com mais afinco, agora
Desta forma, os filhos ficam livres para partir. Ultrapassadas as várias crises, a esta- que a família parecia precisar menos de si. Inicialmente não reparou que
bilidade não é, ainda, uma característica desta etapa pois novas crises vão surgir com -,. Raul sofria com· isso. Precocemente reformado, este entretinha as· suas
o aparecimento dos netos, o surgir da reforma, o envelhecimento e a morte de um dos ·i_::.)ongas horas com diversos hobbies mas, mesmo assim, acabava por
cônjuges. ;;: s0brar-1he tempo. Josefina esfalfava-se entre o emprego e ·a casa: à hora
189 Esta é tão ou mais necessária quanto a díade conjugal vê, ao longo dos tem- .. de almoço vinha, numa corrida, arranjar a comida .para poder partilhar a
pos, diminuir o conjunto das suas interacções digitalizadas em favor de um aumento , \·refeição com ·Raul. A saúde deste começou a não andar multo bem: enve-
da comunicação analógica. ,. ,uieceu rapidamente e o médico de família disse que não sabia o que mais
• 9u Con10 se compreende, estas são as situações de maior risco para a efectivação
podia fazer para travar um acentuado processo de arteriosclerose. Um dia
de uma ruptura que, na realidade, já se deu mas que ainda não tinha sido claramente
assumida. A emancipação feminina, vivida em diversos domínios, tem feito com que,
contrariamente ao que acontecia há algumas décadas atrás, seja frequenten1ente a mu-
lher a solicitar a separação nestas circunstâncias. solução para a pessoa que, tendo limitado francamente a sua vida à educação dos fi-
191 É importante sublinhar que em certas famílias, em que o(s) filho(s) está(ão) a lhos e às tarefas domésticas, tem dificuldade em reconverter este estatuto e estes
triangular a relação conjugal, as dificuldades de reorganização individual ou, ainda, as papéis e cm alargar o seu horizonte relacional. Finalmente, a preocupação com o(s)
relações da geração intermédia com a dos avós, esta liberdade é sentida como uma füho(s) pode também justificar o não cuidar dos avós, diminuindo a culpabilidade que
forte ameaça pelo que é frequente aparecer uma manifestação sintomática, no(s) tal atitude comporta.
191
filho(s) ou nos pais, que confirma a necessidade de manutenção das configurações Quando confirmados, cada um dos cônjuges, na sua individualidade, a sime-
relacionais anteriores. É frequente observarmos, na clínica, que a preocupação com um tria relacional perde, em nosso entender, a sua dimensão mais competitiva que marcou
filho ilude as tensões conjugais e as ameaças de separação. Ou permite um entendi- períodos anteriores da relação conjugal. Diríamos que se trata de uma simetria calma
mento e uma aliança de outra fonna difíceis de obter. A manutenção da função pro- que nutre o próprio nós conjugal porque também enriquece a complementaridade rela-
tectora e de prestação de cuidados que o estatuto parental confere pode ser a melhor cional.
!lT.

196 197
pesenvolvirnento familiar
(Des )Equilíbrios familiares

Josefina adoeceu. Durante um certo tempo teve que parar de trabalhar e-_,._', e isso passa, necessariamente, pela preservação da parte individual do
mesmo em casa, passou a estar em absoluto repouso. Nessa altura-Raui,-,., casal e pela existência de uma rede social de apoio significativa.
descobriu- competências até aí desconhecidas: era um 6ptimo- cozinheiro_:/ podemos dizer que estes são comportamentos que o casal deve ter ao
e dava-lhe imenso prazer ir às compras. e encher a casa- do que _era:--' longo de todo o seu ciclo vital. É correcto mas também é verdade que,
necessário.· Quando- Josefma recuperou e voltou ao trabalho-.deixou,:- etapa, se assiste a urna retracção das relações socíais e dos inves-
grande parte das tarefas domésticas entregues ao marido. Tinham ambos tilnentos profissionais e pessoais que, ainda que indirectamente, pode
descoberto. que assim-, tinham mais tempo, Raul· sentia-se mais- útil. e_ ._, constituir um risco para a concretização dos propósitos acima
Josefina menos _cansada. Sentiam-se, também, mais próximos. N,o tfáh~~~ __ enunciados.
lho Josefina abrandou o ritmo e passados alguns anos reformou-se .._D~s'' -
meses depois, Raut remoçou. O próprio médico se espantou· cÜm_ ~ ~lt~~~-­
A reforma, que acontece mais cedo ou mais tarde nesta etapa, é, Reforma
rações, Dava prazer vê-los: tinham tempo para conversar, passear e,-.- aÍé,
sem sombra de dúvida, uma fonte de stress. O que não quer dizer que
brincar. Tomaram-se mais peritos na resolução das pequenas dificrildadeS-'
seja sinónimo de negatividade'". A antecipação a que actualmente se
e tensões do. dia a__.dia. Na rua, os vizinhos cümentavam que _mais _pafe.:.
·ciam um· _casal-de _namorados. Quando fizeram obras em casa os mesmos vai assistindo e o reinvestimento da energia e das capacidades pessoais
vizinhos . voltaram a· sublinhar a alegria e a-força. que Sentiam ao ·ver-UqUe_~c­ i;:m áreas altemativas 194 podem constituir uma forma interessante de o
le casal que, _agora já com bastante idade, funcionava como-se tivesse toda-_, sujeito se reorganizar individualmente, no seu processo de envelheci-
uma· vida, à. sua frente, para viver. Raul e Josefina mantiveram sempre· mento, e de o casal se reequacionar nesta etapa final do seu ciclo vital.
alguns amigos e algumas actividades próprias de cada um: isso dava-lhés Parece-nos, no entanto, que neste reinvestimento laboral o sujeito não
uma-.sensação de _liberdade que; à.medida que-envelheciam; sentiam devia repetir o tipo de funcionamento que teve durante o período de
sendo cada vez mais--fundamentaL
1 1
~ É verdade que, em muitos casos, a reforma é depressivamente vivida pelo
Nesta reorganização do sub-sistema conjugal há, com efeito. um sujeito. Sobretudo quand() ela é acompanhada de uma efectiva perda de capacidades
aspecto que nos parece fundamental: que o nós do casal não só não (fisicas e/ou intelectuais) ou quando a pessoa não vislumbra maneira de transformar,
abafe o eu e o tu de cada um dos cônjuges como estimule o seu desen- de forma gratificante, as funções que perdeu, Aí os dias custam a passar e o afecto de
volvimento e reforce as redes sociais de apoio do casal e de cada um base é a depressão pela perda sofrida. Sabe-se que quanto mais gratificada a pessoa se
dos cônjuges. Isto parece-nos particularmente importante por duas sentiu na sua profissão mais facilidade tem de aceitar a refOrma e de encontrar novos
investimentos. Diríamos que tem, interiorizado, ttm bom objecto interno que a ali-
razões. De uma já falámos aquando da análise de primeira etapa do
menta. Nas outras situações, em que há como que wna identificação adesiva entre
ciclo vital da família: numa díade com uma tal intensidade relacioual, identidade pessoal, identidade profissional e emprego, a perda do mesmo gera terríveis
como é o casal, toma-se impossível retirar gratificação da comple- angústias, muitas vezes mobilizadoras do instinto de morte. No sentido de prevenir
mentaridade sem simetria comunicacional. A outra está estreitamente este quadro têm surgido, nos ,últimos anos, diversos programas de preparação para a
ligada com um aspecto para o qual o casal de meia idade se tem que ir reforma. No sentido de fazer o luto pela profissão que se deixou e pelo estatuto a ela
paulatinamente preparando e que se prende com a futura perda do côn- associado Satir (1997, 358) sugere que o sujeito possa fazer uma certa ritualização
dessa passagem através da realização de festas de despedida em relação ao passado e
juge. Ainda que a esperança de vida das mulheres seja habitualmente boas-vindas face ao futuro. Ao proceder desta forma, para além da elaboração do
maior, ninguém sabe, na realidade, quem vai morrer primeiro. Também luto que a ritualização permite, o sujeito tem, aindá, a possibilidade de alargar e/ou de
será pouco provável que ambos desapareçam ao mesmo tempo, ainda confinnar a sua rede social de apoio.
194
que esse possa ser o desejo de muitos casais. Nesse sentido, é impor- É neste contexto que se fala, cada vez mais, de um trabalho de voluntariado já
tante que qualquer um deles se prepare para poder sobreviver ao outro marcado por objectivos caritativos mas por possibilidades de co-construção de um
:nvolvimento que beneficie todas as partes.
-"-, "--.<- (
·~· ih w-- - --:-----•.ru_- -------,--
-,.~-----:«--,
~. ·. ill --_ ----
w 'l'~li" w w .

lia. t.j ·tb ··{bi ui.ir ;..;
··t.b ~ úclíl iJlü i·ii . UÍJt w
198 l,; 199
(Des)Equilíbrios familiares -'~f Desenvolvimento familiar
'>

exercício da sua profissão. Com efeito, não deve tratar-se de uma ,-_-,_·--.--ternpo, autonomia-dependência e poder - em relação à vivência do en-
segunda profissão' 95 nem deve constituir uma estratégia de negação da ••.. velhecímento e à relação interpessoal que se estabelece entre a gera-
existência da própria reforma. Se assim acontecer pensamos que 0 nós ção mais velha e a geração intermédia.
do casal pode sofrer alguma perturbação, no seu processo de reorgani. De uma forma geral, podemos dizer que o tempo é, na velhice,
zação, nomeadamente se esse reinvestimento se fizer apenas por parte profundamente paradoxal e que a pessoa idosa tem que aprender a lidar
de um dos cônjuges. Em termos do eu do casal, a maior ou menor sa. com um sentimento duplo: por um lado, tem muito mais tempo do que
tisfação dependerá da gratificação narcísica alcançada. No entanto, é no passado e pode mesmo chegar a nem saber bem como ocupá-lo; por
importante não esquecer que pode estar-se, apenas, a adiar uma vivên~ outro lado, há coisas que sente que já não vale a pena fazer porque não
eia de reforma que, por isso mesmo, ficará futuramente dificultada. irá ter tempo de completá-las ou de lhes ver os frutos. Curiosamente, a
geração intermédia pode tomar-se invejosa da geração idosa, já que
Envelhecimento Em toda esta etapa do ciclo vital da família há uma importante esta tem um bem que é duplamente precioso para aquela: com efeito,
tarefa a realizar: a da aprendizagem do envelhecimento e, conse- muitas vezes sobra-lhe tempo de lazer e, outras vezes, pode não chegar
quentemente, a de uma nova regulação do processo de autonomia. a utilizar todo o tempo que tem para realizar as suas obrigações. A
·dependência. Na família nuclear, a geração intermédia faz esta apren- - gestão do tempo pode converter-se, mesmo, numa fonte de tensão 196
dizagem em dois planos: na relação com as famílias de origem e no entre as du').s gerações, queixando-se a mais idosa do pouco tempo que
confronto consigo própria. a segunda lhe dedica e lamentando-se a intermédia do pouco tempo
A idade é um conceito mental e, por isso, a representação que cada que tem para poder realizar todas as suas obrigações e devoções. É
um dela tem e a forma como organiza as suas vivências constituem óbvio que as duas gerações podem entreajudar-se: a primeira apoian-
aspectos fundamentais na percepção do envelhecimento. Há sinais fisi- do a segunda na realização de algumas tarefas e alcançando, assim,
cos, cognitivos e afectivos que lhe estão tradicionalmente associados. uma gratificação suplementar decorrente do sentimento de utilidade e
No entanto, nem sempre as rugas, os cabelos brancos, a falta de elasti- a segunda ajudando a preencher o tempo da primeira, numa alimen-
cidade da pele, os esquecimentos, a diminuição da audição e da visão, tação relacional que lhe é fundamental para a sua qualidade de vida
as confusões, as dores dos ossos, o peso do corpo e os diversos acha- · (Alarcão, 1996).
ques pontuam da mesma forma esse envelhecimento. Por isso, A qualidade do vínculo relacional que as duas gerações vão tecen- ln versão
podemos ouvir dizer a pessoas com a mesma idade: "não sinto os anos do revela-se também fundamental para a articulação dos outros dois da hieiarquia
geradonal
que tenho ... eles ainda não me pesam" ou, pelo contrário, "estou velho aspectos a que acima fizemos referência. O envelhecimento da geração
sem lá ter chegado ... já não me sinto com forças para viver a vida". ··mais idosa faz-se naturalmente acompanhar de um aumento da sua
Em pessoas bastante idosas escutamos, com alguma frequência, o . dependência. De uma forma directa ou índirecta"', os pais da família
seguinte: "já vivi tudo o que tinha a viver, já não quero conhecer mais
nada nem quero ser obrigada a ver aquilo de que não gosto; agora está
l'I(, É importante sublinhar que subjacente a este aspecto relacional está não só
na altura de dar a vez aos outros". Na análise destas frases somos toca- uma questão de conteúdo comwücacional (o tempo) mas também uma questão de
dos por quatro palavras - peso, força, escolha, passagem (de teste- rélação (quem define o que o outro deve e pode ou.não fazer).
191
munho) - que, em nosso entender, encerram três ideias fundamentais - Por vezes a geração mais idosa partilha a residência com os filhos, outras
.vezes continua a morar em sua própria casa. Mas, mesmo nesta situação, os filhos
poden1 assumir a responsabilidade de ocupar-se dos seus pais, entremeando as visitas
195 Com o mesmo tipo de horários, obrigações, férias, competitividade, etc. telefonemas regulares: num e noutro caso podem ter que supervisioná-los ou au-
-:~;:é;'.Xiliá-los em diversos aspectos tais como compras várias, saúde e finanças.
~

200
(Des)Equilíbrios familiares

nuclear passam a ocupar-se mais dos seus próprios pais, n1una inver~ a que acima fizemos referência. Pode, ainda, ser urna forma de ga_ran-
são da complementaridade cornunicacional que vai conferir àqueles tir a sua própria tranquilidade'°" ou uma maneira de regular "as contas
urna posição one-up. Para a extensão desta inversão e, aliás, da própria do passado"w 1•
complementaridade concorrem o grau de dependência física, cognitiva A gestão desta problemática relacional, que tem por pano de fundo
e/ou emocional da geração mais idosa e o modelo relacion~l'" que pais a dinâmica dependência-autonomia e a questão do poder, é muito
e filhos foram co-construindo ao longo das suas vidas. E importante importante para a geração intermédia, tanto no que diz respeito à sua
que, entre ambas as gerações, não se perca a simetria comunicacional relação com a geração mais idosa como consigo própria. Com efeito,
e que a geração intermédia possa respeitar e, tanto quanto possível quando aquela partir é importante que esta sinta que ajudou os seus
incrementar as áreas de autonomia da geração mais idosa. Isto aumen~ pais a envelhecerem e a morrerem bem. Essa será urna memória nutri-
tará a auto-estima destes últimos e evitará o perigo da escalada simétri- ente que os auxiliará a equacionar a sua própria velhice individual. A
ca entre as duas gerações. Com efeito, a questão do poder, na relação, aprendizagem deste papel é, ainda, fundamental, para a geração inter-
coloca-se, neste período, de forma tão on mais aguda quanto a geração média a outros dois níveis: na gestão da relação que se estabelece entre
mais idosa se sente despossuída da sua autonomia e da sua capacidade os cônjuges e da relação que os pais vão ter com os filhos, seus futu-
de decisão. A manutenção da autonomia por parte dos mais velhos é ros cuidadores. A roda da vida não pára e as gerações e as famílias vão-
um aspecto que levanta, no entanto, inúmeras questões e dúvidas aos -se alternando no cumprimento das suas tarefas básicas. É isso que
mais novos. De novo sentimos que a metacomunicação e a clareza da pode tomar a vida familiar muito bela e a enche de desafios: uns mais
relação são os maiores aliados para a resolução das possíveis tensões fáceis e outros mais difíceis.
assim como para a edificação de um quotidiano que pode ser assalta-
do por inúmeras dúvidas, medos e angústias. Na recursividade rela-
cional que entre as duas gerações se instala é curioso observar que, por
vezes, a manifestação clara de dependência que a geração mais idosa
assume traduz a sua maneira de pedir e/ou garantir o afecto e a pre-
sença da geração intermédia'". Por parte desta, como já referimos, pode
significar a recuperação da função pareutal perdida e/ou simplesmente
traduzir a sua forma de entender a inversão da complementaridade

198 É importante não esquecer que a geração intermédia teve que reconverter, há

bem pouco tempo, a sua função parental, tomando-a menos saturada da dimensão de
prestação de cuidados de que durante muito anos se revestiu. Neste contexto, pode
acontecer que este tipo de funções seja actualizado na relação com a geração mais
idosa. Sobretudo se ela se mostrar mais dependente fisica, cognitiva e/ou afectiva-
mente. wo Pode ser mais tranquilizante ter lUl1 pai ou uma mãe idosos em casa e acom-
199 A este nível, o aparecimento de sintomas, muitas vezes de natureza psicos- panhar o seu quotidiano do que sabê-los sozinhos: o medo de que caiam e se rnagoem
somática, é extremamente esclarecedor do seu valor comunicacionaL Camdessus, ou de que adoeçam e não possam ser imediatamerite socorridos pode criar uma enorme
Bonjean e Spector (1995) alertam-nos para o facto de certas dinâmicas familiares angústia e preocupação nos filhos.
poderem perpetuar certos estados de doença, conseguindo alterar-se o quadro médico wi Não podemos esquecer que a forma como pais e filhos regulam, no presente,
não tanto pela manipulação da própria doença mas pelo desenvolvimento de algumas processo de dependência-autonomia tem muito a ver corn a forma como o mesmo
intervenções familiares. foi equacionado em etapas anteriores do seu desenvolvimento.
~w-w-···ru····w or w w w w·r 00 Ih w ·tãii w w w '" ·-dk w

6~~~~~~~~~~~~~~~~
Variações em torno do ciclo vital

Afirmámos no início deste capítulo que o processo de desenvolvi-


mento familiar de que temos vindo a falar, e que se denomina ciclo
vital, pode sofrer alterações em configurações familiares distintas
daquelas que permitiram a sua conceptualização.
Tem crescido, nos últimos anos, o número de famílias reconstituí-
das, de famílias monoparentais, de famílias de colocação"' e de
famílias adoptivas. Noutras latitudes que não tanto a nossa, as famílias
de homossexuais e as famílias comunitárias começam a constituir uma
realidade que já não passa despercebida nem pode ser escamoteada.
Entrados já no novo milénio, face ao alucinante ritmo de transfor-
mações que a nossa sociedade tem conhecido e à constatação de um

iu Embora as famílias de colocação tenham hoje urn reconhecimento institu-


2

cional e constituam um recurso transitório para situações de crianças ou idosos negli-


genciados, maltratados, vítimas de violência, ou ainda para crianças vítimas de abusos
sexuais, o parco conhecimento que delas temos, nomeadamente nos aspectos que
agora nos propomos estudar, leva-nos a não as equacionarmos. Sentimos, no entanto,
que este é um domínio em que é necessário um esforço de investigação, atendendo,
nomeadamente, ao pedido paradoxal que se faz a estas famílias e que consiste em dar
afecto e apoio "a prazo". Embora haja situações qHe se prolongam no tempo, a colo-
cação é, por definição, transitória. Iiabitualmente, o elemento colocado chega ao sis-
tema familiar em situação de fragilidade afectiva e, eventualmente, fisica. O movi-
mento vinculativo toma-se, por isso, importante mas tem que ser configurado num
cenário temporalmente limitado e nmn registo alternativo que, pensamos, nem todas
as famílias estão preparadas ou dispostas a realizar.
204 205
(Des)Equilíbrios familiares I)e';nvolvimento familiar

padrão de mobilidade física, cognitiva e afectiva incomparável a qual-


quer outro período histórico, a grande fantasia que ainda reina entre os Tecidas estas considerações procuraremos, então, equacionar os
humanos é a de que a família nuclear tradicional tem os dias contados. aspectos em que a diversidade da organização fan1iliar pode trazer
variações ao modelo de ciclo vital que apresentámos.
Curiosamente ela continua a constituir o modelo de organização fami-
liar privilegiado por esses mesmos humanos e as "novas formas de
fatnília" 2 º3 seguem-lhe, em muitos aspectos, os passos.
Afirmar, então, que o ciclo vital destas outras configurações é dis-
tinto do da família nuclear tradicional parece-nos questionável. Mas, é
preciso sublinhá-lo, não há ainda tempo suficiente para que o estudo
do que se passa nessas outras famílias possa conduzir-nos à análise das
suas redundâncias e, posteriormente, à comparação com o ciclo vital
que hoje conhecemos. Diferente é a afinnação, que partilhamos
inteiramente, de que o ciclo vital tem, nessas configurações familiares,
algumas particularidades que ultrapassam as singularidades que cada
família lhe pode conferir. Cremos, também, que o que acabámos de
dizer é tão verdadeiro quando comparadas estas "novas formas de
família" com a família nuclear como quando a mesma comparação se
tece entre cada uma delas. Por outras palavras, consideramos neces-
sário equacionar, então, as particularidades desenvolvimentais das
famílias reconstituídas, das familias monoparentais, das famílias adop-
tivas, das famílias de homossexuais e das famílias comunitárias. E é
possível que daqui a uns anos estejamos a falar de outros desenhos
familiares uma vez que é a própria O .M.S. (1994) que nos diz que "o destas famílias não está ainda estudado, embora se saiba que as mudanças desen-
conceito de família não pode ser limitado a laços de sangue, casamen- - volvimentais e as crises estão particularmente ligadas às evoluções e transformações
to, parceria sexual ou adopção. Qualquer grupo cujas ligações sejam profissionais e pessoais dos dois adultos. Embora alguns autoi-es considerern que os
baseadas na confiança, suporte mútuo e um destino comum, deve ser casais sem filhos podem ter mais dificuldades (decorrentes da expectativa social de
encarado como farnília" 2º4 • que toda a mulher casada venha a ter filhos), os estudos sobre satisfação coajugal têm
evidenciado respostas mais elevadas nestes casais do que naqueles que têm filhos
(Bischoff, 1969, Renne, 1970, in Birren et ai., 1981, 293). De uma fünna geral, estes
zni Por "novas formas de família" entendemos um conjunto diversificado de con· referem ter mais liberdade e mais recursos financeiros; participam mais fre-
figurações familiares distintas da famüia nuclear tradicional e da família de três ge· quentemente em movimentos sociais. Quando chegam à meia idade os casais sem fi-
1
rações. Embora muitas dessas experiências familiares, se não mesmo todas, tenham lhos têm, habitualn1ente, uma relação mais afectuosa e mais próxima: não havendo
surgido já no passado, e num passado por vezes até longínquo, a sua existência como crianças é possível dar mais atenção ao cônjuge e o casa! toma-se mutuamente mais
configuração familiar social e legalmente aceite é relativamente recente. Gameiro _suportativo, nomeadamente em aspectos profissionais. De acordo com Cavan (1973,
(1999) designa por novas formas de família apenas a família reconstituída. inBirren et ai., 1981, 295), estes casais são menos Convencionais e mais abertos a ino-
20
• Uma situação que vai ocorrendo com uma frequência crescente é a de casais
vações. Uma desvantagem frequentemente referida é a solidão em que fica um dos
sem filhos. Por simples opção ou por dificuldades de concepção e/ou concretização da cônjuges quando o outro morre: sem filhos que o possam apoiar nas suas várias neces-
gravidez, há casais que não têm filhos biológicos nem pretendem adoptar. O ciclo vital sidades, este adulto terá que procurar apoio na sua rede social (Troll, 1971, in Birren
et al, !981, 296).
-- ,,-
lli' --w
,-·-
w w w w
,--

w w w
("'"

~·-. dJ·· w w w "


·uu ··JLJ. ··4" ·:iU J,m· "
.:MJo L-J
207
~nvolvimento familiar

6.1 ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~ necessariamente aquele. Daí, muitas vezes, a sua infelicidade206 • Mas,
Famílias reconstituídas se os adultos deixarem e os filhos quiserem, é possível continuar a ter
os dois pais mesmo que só se viva com um deles e, possivelmente, com
um padrasto ou uma madrasta. O que é importante é que os filhos pos-
sam fazer o luto pela família passada: caso contrário, eles vão criar
grandes dificuldades à nova estrutura, fazendo tudo para que as coisas
corram mal2º 7 •
Nos casos de morte, a perda é definitiva ainda que, habitual-
mente2º8, ninguém tenha decidido que assün acontecesse e, portanto, o
resultado não pudesse ser diferente. Sendo distinto, o luto é, no entan-
to, idêntica a importância da sua resolução para a qualidade das novas
relações. Com efeito, um luto bem resolvido permite, a quem fica,
guardar a memória de quem não está sem ficar prisioneiro de urna leal-
dade cerceante.
Aquilo que, desde logo, é específico nas famílias reconstituídas é Nas situações em que nunca houve cônjuge (como é o caso das
o facto de, na actual configuração, existirem pessoas que, num passa- mães solteiras), o luto a fazer diz fundamentalmente respeito à relação
do mais ou menos próximo, tiveram outras famílias (nucleares, enten-
da-se), em parte agora reunidas neste novo sistema. Assim, podemos
205
encontrar uma mulher com filhos que se casa com um homem sem 200
Apesar do divórcio ser uma decisão dos adultos ele traz consequências emo-
filhos, ou vice-versa, e uma mulher com filhos que se casa com um
cionais para os filhos (Gorizález e Triana, 1998, 382-392). Isto não quer dizer que os
homem com filhos. Na nova família podem surgir mais crianças, filhas filhos de pais separados sejam, no futuro, adultos mais infelizes, mais problemáticos
de ambos, criando uma fratria composta pelos "meus, os teus e os nos~ ou n1enos capazes. Quer apenas significar que os adultos devem estar atentos ao sinais
de tristeza e de sofrimento dos filhos para os ajudarem a ultrapassar a crise. Para um
sos".
Se, nos nossos dias, as famílias reconstituídas se originam, fundaM conhecimento mais detalhado destes aspectos recomenda-se a leitura de Gameiro
(1999, 26-29).
mentalmente, a partir de situações de divórcio, no passado, elas eram 2111
É por esta razão que Gameiro (1999) fala da importância da preparação emo-
mais frequentes na sequência de uma viuvez. Em qualquer dos casos, cional dos filhos para a constituição da nova família: as mudanças que naturalmente
há um luto que tem que ser realizado - pelo progenitor desaparecido - vão ocorrer (tais como, a casa, o quarto, eventualmente a escola, os locais de encontro
há uma aceitação que tem que ser feita - relativamente aos elementos com os amigos, os espaços de lazer) devem ser equacionadas e preparadas com os fi-
que entram de novo - e há uma construção nova que tem que ser edifi- lhos e discutidas com o progenitor ausente. Informar os filhos com antecedência e dar-
cada - a dos padrões transaccionais e das regras do novo sistema. -lhes algum tempo para eles gerire1n as alterações é, então, um aspecto relevante para
a criação de un1 sentimento de segurança que o divórcio dos pais e a ·constituição da
Dependerá muito das famílias e dos elementos que as compõem o facto
nova família ameaçaram. Na altura da separação as crianças vivem, frequentemente,
de um luto ser mais ou menos difícil do que o outro. Na situação de -'.ii un1a sensação de abandono (traduzida no medo de_pão ver mais o progenitor que saiu)
separação e divórcio, os filhos têm que aceitar urna decisão dos adul- - que se atenua com o passar do tempo e a evolução da própria separação dos pais. O
tos, em que não podem intervir mas cujo resultado não tinha que ser que é mais importante é que estes permitam que os filhos preservem uma imagem po-
sitiva de ambos os pais e que possam tranquilizar-se relativamente à disponibilidade e
acessibilidade de cada uma dessas figuras.
in 5 Relembramos que assumimos como equivalentes, no contexto deste trabalho, 2118
Exceptuam-se, obviamente, as situações de homicídio.
as situações de casamento formal e de co-habitação.
~

208 209
~nvolvllnento familiar
(Des)Equilíbrios familiares

mãe-filho( a) que, sobretudo nos casos em que a criança é única, se re- a negociar as suas diferenças sob o olhar atento dele próprio, dos "fi-
vela muitas vezes demasiado fusional' •
09 lhos", das "famílias de origem"211 e, muitas vezes, do olhar indirecto
do(s) ex-parcciro(s). Nas situações de monoparentalidade por ausência
Em todas estas situações, o que de mais significativo nos parece de casamento existe uma idealização em muito semelhante à que
acontecer, do ponto de vista do desenvolvimento familiar, é: 1) a clara acabámos de descrever já que a situação anterior é, geralmente, inde-
coexistência de diferentes etapas do ciclo vital que não podem ser fun- sejada e o casamento actual aparece como uma oportunidade que não
didas nem ultrapassadas mas que têm que ser vividas num registo de pode falhar. Em qualquer uma destas situações, o possível sentimento
complementaridade e 2) a necessidade de criar novas regras e tecer do segundo cônjuge, de que tem que ser melhor do que o primeiro,
novos padrões transaccionais, sem negar o passado mas percebendo agrilhoa-o e dificulta o estabelecimento de uma relação que se edifique
por si própria e não apenas por oposição à anterior. Nas famílias re-
que o presente é outro.
constituídas por viuvez a memória do passado é geralmente muito pre-
Vimos que, habitualmente, uma família começa com a formação sentificada e mediada por uma enorme idealização, o que não torna as
C1mjugaiiúaúe
e parentaliúade do casal. Nestas famílias, o casal tem que formar-se na presença dos coisas fáceis para o novo cônjuge. Tudo isto nos mostra a importância
filhos e, muitas vezes, de um sub-sistema fraternal especial. que tem, para este novo casal, a confirmação da sua relação (e de cada
Diríamos, então, que o novo sub-sistema conjugal, em permanente um dos parceiros nessa relação) e a metacomunicação sobre a mesma,
interacção com o sub-sistema parental, tem quatro tipo de dificul- quer nos seus aspectos mais positivos e gratificantes quer nas dificul-
dades sentidas.
dades adicionais:
a) Quando alguém finaliza uma relação e parte para outra idealiza, b) Dado que, a maior parte das vezes, os "filhos" dos cônjuges
naturalmente, a nova situação, considerando que agora tudo vai dar agora reunidos estão já em idade escolar, ou até na adolescência, a
certo. Assim, ilude, muitas vezes, a diferença com medo do conflito, família tem que abrir-se ao exterior enquanto que o casal necessita de
interpretando a mais pequena divergência como uma ameaça para o centrar-se sobre si próprio. É relativamente frequente que os adultos do
casal e para a família. Dada a presença dos "filhos"''°, o casal pode ini- casal se sintam muito solicitados na sua função parental e, desejosos
bir-se de viver e de metacomunicar sobre as diferenças, com receio de de que também aí tudo corra na perfeição, se esqueçam de que uma das
que eles as tomem como sinal de nova separação, eventualmente sen- regras básicas é manter o espaço conjugal preservado. Se na gestão das
tida como nova ameaça ou como possibilidade de retomo ao agregado · relações inter sub-sistémicas o sistema for solicitado por alinhamentos
familiar anterior (sobretudo se o outro progenitor ainda está sozinho e lransgeracionais (evidentes na aliança da mãe com os seus filhos e do
se o luto pela família de outrora não foi adequadamente resolvido). pai com os dele), o casal perde espaço e pode correr mesmo o risco de
Como diz Gameiro (1999, 59): "Não se trata apenas da idealização na- não chegar a constituir-se.
tural da fase inicial de qualquer relação humana, mas sim de uma certa c) Um dos desafios que o novo casal, aliás como a nova família,
denegação da complexidade destas famílias e da capacidade de maturi- tem que enfrentar é a construção de novos padrões de relação e de
dade emocional que elas exigem". Este casal tem, então, que aprender novas regras de fimcionamento familiar. No entanto, cada elemento

:m Nestas famílias de origem engloba-se, frecjuentemente, a família de origem do

209 Veja-se, a este propósito, a descrição que Minuchin e Fishman (1988, 59-60} ex-côajuge, sempre presente pela afinidade que tem com os netos ou pelo vínculo que
mantén1 com a ex-nora ou o ex-genro. A sua atenção seiectiva às divergências e ten-
fazem da família pas de deux.
zw Iremos utilizar as aspas para significar que este sub-sistema integra não ape- sões do novo casal depende muito da sua posição face ao divórcio e ao recasamento
em causa.
nas os filhos biológicos mas também os do novo cônjuge.
• -- - -
·· w · w
'"11(.~--J ,--- ../
dJ Uü 'ili 00 lh' w·· w · 1'1!· ru (jj to f.b ··'ls.11 li.d i..iiJ·
211
210 Desenvolvimento familiar
(Des )Equilíbrios familiares

traz consigo memórias que inevitavelmente compara com as vivências


d) Na gestão do modelo de parentalidade, o novo par parental tem,
actuais. No passado, nem tudo foi mau, como uo presente nem tudo é então, que integrar não apenas os modelos da infância mas também o
bom. Mas esta dialéctica que faz parte da vida é geralmente esquecida modelo que anteriormente co-construiu com o seu parceiro e que os
e cada elemento pode sobrevalorizar o negativo actual assim como seus filhos conhecem"'. Por um lado, porque as mudanças são vividas
envenenar o presente com comparações que ameaçam a construção das de forma crítica e, por outro lado, porque os filhos podem querer man-
novas relações. Para além desta memória cada elemento construiu, no
ter a sua lealdade para com o progenitor ausente ou desaparecido, é
sistema anterior, códigos comunicacionais que têm que ser renegocia-
possível que os mesmos dificultem a tarefa do sub-sistema parental de
dos no presente. Por exemplo, se no primeiro casamento o marido era
gerir essa parentalidade. E, então, importante que o padrasto e a
criticado pela mulher por estar sempre a trabalhar, no segundo casa- madrasta compreendam que o tempo é o seu melhor aliado e que todas
mento pode não entender que as referências da esposa ao seu trabalho as mudanças requerem um tempo que, por vezes, parece muito dilata-
são um sinal de admiração e não de crítica. Se qualquer casal tem que do. Como diz Gameiro (1999, 62-63): "Um dos mitos mais frequentes
fazer esta construção, este novo casal tem que ir afinando a sua lin- ·é o do amor instantâneo.( ... ) Esse amor, se algum dia existir, é fruto de
guagem conjugal ao mesmo tempo que tem que realizar a mesma ope- uma longa relação, construída lentamente. O padrasto/madrasta que
ração ao nível da linguagem parental. E aí as dificuldades podem ser começa a viver com os seus enteados deve resistir à tentação de ter, ini-
ainda maiores. Com efeito, o equilíbrio entre códigos antigos e novos cialmente, um papel activo face a eles. ( ... )Nesta fase inicial, o papel
tem que ser cuidadosamente negociado para que o passado não ameace parental deve ser desenvolvido através da figura parental biológica [e
o presente, por um lado, mas para que os filhos não sintam uma rup- o padrasto/madrasta deve estar preparado( a)] para ser um precioso( a)
tura demasiado abrupta, por outro. A este nível, a posição do(s) pro- auxiliar, sem interferir directamente na relação educativa. Com o
genitor(es) ausente(s) é extremamente importante, já que, pelos seus tempo, e em função da idade dos enteados e da posição dos pais
comentários, ele(s) pode(m) dificultar aos filhos a renovação desses biológicos, o seu papel pode vir a tomar-se mais activo".
mesmos códigos e a negociação de novas regras. Quantas vezes ouvi-
Ao nível dos filhos podemos encontrar três tipos básicos de difi-
mos dizer - "Ai agora já não há horas de ir para a cama? É quando os
meninos querem?" - embora apenas se tenha verificado a instauração culdades acrescidas:
de mn novo horário mais compatível com os novos ritmos familiares e a) Como já anteriormente referimos, a gestão da lealdade relativa Lealdades
filiais
perfeitamente adequado à idade das crianças. A triangulação dos filhos ao progenitor presente e à nova família, por um lado, e ao progenitor
constitui, para muitos progenitores desavindos, urna tentação que, no ausente ou desaparecido, por outro lado, constitui uma tarefa árdua
entanto, não é mais do que lll11ª profunda annadilha que cerceia o para os "filhos" destas famílias. Novamente o tempo ajudará a que
desenvolvimento individual e familiar dos diversos protagonistas. Nas cada um encontre o seu lugar e seja capaz de tecer novas relações
famílias reconstituídas por viuvez, a lealdade para com o elemento nutrientes. Quando tal não acontece e a crise é transformada em
desaparecido e a idealização do seu papel parental podem constituir a é muito frequente encontrar-se um alinhamento vertical entre
base que aquela negociação encontra para realizar-se, o que em nada pais e filhos biológicos on, sobretudo nas situações em que apenas um
facilita o movimento reelaborativo de que falamos. Nas famílias dos elementos do novo casal tem ou está com os filhos, uma coligação
monoparentais de que aqni falamos a dificuldade encontrada a este
nível radica, fundamentalmente, na existência de um forte relação ver- iii É nesse sentido que Bridgman fala de um "sistema de tripla parentalidade" (in
tical entre a criança e o seu progenitor, situação a que já anteriormente _Benoit et ai., 1988, 204-206).
1
' J Veja-se, a este propósito, o ponto 5 do capítulo anterior.
aludimos.
213
212 í)e;envolvimento familiar
(Des)Equilíbrios familiares

!idade não desejada despertaram e desenvolveram, a nova família con-


contra o adulto sem filhos. As famílias de origem podem desempenhar fronta-se com um processo de desenvolvimento genericamente seme-
aqui um importante papel, seja de suporte à nova família seja de stress. lhante àquele que anteriormente descrevemos. A coexistência de várias
b) Neste contexto, é fácil compreender que a negociação, nomea-
Poder etapas do ciclo vital (à semelhança.do que acontece, aliás, em famílias
e conflito damente quando a reconstituição se dá durante a adolescência dos "fi- em que as idades dos filhos são muito distintas), a possibilidade de
lhos", é particularmente dificil. É frequente acontecer urna confusão
comparação do quotidiano com uma experiência real anterior e o fan-
dos dois níveis da comunicação - conteúdo e relação - que 14em nada tasma da repetição da experiência de separação'" constituem, em
facilita o desenvolvimento de uma comunicação funcional2 • Dessa nosso entender, a essência das singularidades que estas famílias apre-
forma, muitas vezes não se discute nem negoceia reahnente a hora de sentam, relativamente às famílias nucleares tradicionais, quando con-
entrada em casa ou a quantidade de participação nos trabalhos domés-
sideramos o seu ciclo de desenvolvimento. Apesar da vulnerabilidade
ticos mas aquilo que está em jogo é saber quem pode mandar em que estas famílias podem apresentar (decorrente dos aspectos ante-
quem. Por isso ouvimos tantas vezes dizer: "Tu não mandas em mim
riormente enunciados e que evidenciam a complexidade das suas
... nem és meu pai!" A este nível, a posição ,do progenitor biológico é
interacções) e dos factores de risco a que podem estar sujeitas (princi-
extremamente importante, devendo, como já anteriormente referimos, palmente advindos da crise acidental experienciada, de um luto even-
o padrasto/madrasta ter uma posição de Eu-auxiliar. tualmente não realizado e das possíveis tensões e expectactivas inter-
c) Ao nível do sub-sistema "fraternal" as relações horizontais
Fralria -sistémicas), as famílias reconstituídas podem oferecer-se como um
podem estar dificultadas pelas alianças e coligações de que anterior- importante espaço de crescimento individual e familiar.
mente falámos. Com efeito, se os filhos se aliam ao progenitor biológi-
co a cooperação e a solidariedade fraternais ficam ameaçadas e a riva-
lidade, aí naturalmente vivida, ganha um colorido intergeracional que muitas vezes, o mito do "padrasto/madrasta malvado". Consequentemente podem
habitualmente não tem. É evidente que estas dificuldades não têm ne- gerar-se alianças e coligações que criam sub-sistemas verticalmente definidos, em
função da afinidade biológica existente entre os seus elementos. A resolução da crise
cessariamente que ocorrer e o sub-sistema "fraternal" pode, nestas
instalada obriga à rejeição das fantasias iniciais e à aceitação dos sentimentos de
famílias, desempenhar um papel muito importante na facilitação das decepção, perda e exclusão, bem como ao investimento das potencialidades das novas
transfo·rmações requeridas. Para isso, é necessário que as crianças e os relações. b) No estádio intermédio (de mobilização e acção), os membros da família
adolescentes encontrem afinidades e que os adnltos, internos e exter- confrontam as suas diversas necessidades e procuram negociar acordos e regras que
nos ao novo sistema familiar, não os utilizem como veículo de comu- sejam satisfàtórios para todos. A maior flexibilidade que esta nova fase comporta per-
mite a criação de novos n1odelos de relação, em articulação criativa com as experiên-
nicação nem como elemento de triangulação. cias do passado. As fronteiras biológicas tendem a esbater-se. c) No estádio final (de
contacto e resolução), a nova família experiencia-se como uma unidade. Esta evolução
Em síntese, ultrapassado o período de tensão"' decorrente das pode levar cerca de quatro-cinco anos a realizar-se. A idade das crianças (sendo que a
emoções e dos afectos que a separação/divórcio/viuvez/monoparenta- adolescência dos filhos parece ser o período mais complicado para a reconstituição), o
sexo (em que são as meninas que manifestam maiores dificuldades de adaptação) e a
estrutura da nova família (em que a existência de filhos de ambos os cônjuges dificul-
214
Os aspectos comunicacionais foram abordados no ponto 3 do capítulo ante· ta o processo de integração e aumenta a ameaça de nova separação) constituem va-
riáveis importantes para a evolução das famílias r~constituídas. O nascimento de uma
rior. ~ Papemow (1993, in González e Tríana, 1998, 393-394) considera que as
11 nova criança, quando o casal edificou uma relação sólida, constitui um elemento po-
famílias reconstituídas passam por três grandes tàses: a) O estádio inicial é marcado sitivo para a integração da nova família.
pela idealização da nova situação, visível na ideia do amor instantâneo entre enteados 6
ii O risco de ruptura em tàmílias reconstituídas é maior quando comparadas com
e padrasto/madrasta ou na crença de que a nova família é igual à primeira tuiião mas famílias nucleares intactas (Gameiro, 1999, 49).
sem os seus erros; os filhos alimentam a ideia da reconciliação dos pais biológicos e,
r ló=<a.i.J til 'W w ·w úr
.,_.;
UUi w w w w lhl w Uw w w 'WI w ufa uJ
215
~nvolvimento familiar

6.2. ou de que mn dos filhos, seja investido nmna dimensão de "par conju-
Familias monoparentais gal", o que, obviamente, perturba o sen desenvolvimento individual,
nomeadamente ao nível afectivo (eventualmente psico-sexual) e/ou
cognitivo. O aparecimento de mn sintoma na criança (tal como uma
enurese nocturna associada ou não a uma encoprese, urna dificuldade
escolar mais ou menos homogénea, uma agressividade agida no con-
texto extra-familiar, etc.) pode constituir o sinal de alerta para que o
próprio progenitor reequacione as suas dificuldades e o seu comporta-
mento219.

Ao nível do sub-sistema parental as dificuldades têm sido funda- ''"'"'"'id""'


mentalmente equacionadas em termos da impossibilidade de partilhar
tarefas e de recorrer ao suporte que a complementaridade de papéis
empresta à tarefa educativa que os pais assumem face aos filhos 220 • A
Como sabemos, designam-se como monoparentais as famílias forte ligação que se estabelece entre o progenitor e o(s) filho(s) e a
onde a geração dos pais está apenas representada por mn único ele- enorme centração que aquele faz no seu papel educativo (como forma
mento. Isto pode acontecer porqne um dos progenitores abandona a de suprir a ausência do outro progenitor e dada a ausência da dimen-
217
casa e o que fica não volta a casar-se, ou porque a mãe solteira fica são conjugal no contexto familiar) fazem com qne os movimentos de
com o(s) filho(s) ou adopta uma criança"'. separação sejam mais dificilmente encarados, podendo a família estru-
turar-se de forma claramente emaranhada. Nas situações em que a
As dificuldades decorrentes da falta deste adulto têm sido essen- família se reduz à díade mãe-filho(a) o funcionamento familiar pode
Cnnjugalidatfo
cialmente equacionadas a três níveis. Desde logo no plano conjugal: na assumir a configuração que Minuchin e Fishman (1988) apelidaram de r""'"'"'"'''
ausência de um dos cônjuges, a vivência da conjugalidade transforma· pas de deux. As situações de parentificação são também frequentes nas
-se e o sub-sistema conjugal perde-se ou não chega mesmo a constituir-
-se. Assim, as potencialidades de que o mesmo se reveste para a vida
i 1 ~Lembramo-nos,a este propósito, de uma criança enurética e encoprética que,
familiar - espaço de distensão e suporte emocional para a resolução de
a certa altura, começou a atacar as plantas da mãe com o seu "xi-xi venenoso". No
certos problemas intra e extra-familiares, de articulação da comuni· decurso do processo de terapia familiar, a mãe reconheceu que, apesar da falta que sen-
cação simétrica e complementar e de um sentimento de individuali- tia deste seu "pequenino homem'', tinha que deixar de dormir com ele e aguentar o frio
dade e de pertença, de modelação das relações heterossexuais dos fi· e a solidão de uma cama vazia, assim como tinha que permitir-lhe ter outras relações
lhos - ficam perturbadas. Pode haver mesmo o perigo de que o filho, (nomeadrunente com o pai que, entretanto, já tinha outra família) e criar ela própria
outras amizades e outros pólos de atracção. Anos mais tarde, quando encontrán1os
casualmente esta senhora, ela disse-nos algo do tipo: "aquela altura em que tomei
consciência do que estava a fazer e em que ganhei' coragem para fazer diferente foi
217 Apesar de também podermos encontrar situações em que é o pai que fica com
muito dura mas foi, também, muito importante. Hoje sinto que se o não tivesse feito
o filho, são, sem dúvida, muito mais numerosos os casos em que é a mãe solteira ou
podíamo-nos ter 'perdido' ambos: eu e o Ivo".
separada que fica com a(s) criança(s). Essa a razão pela qual nos referiremos ao pro-
zw Bronfenbrenner (1967, in Birren et ai., 1981, 290) refere que, sobretudo nas
genitor que fica com a criança como sendo a mãe. classes sociais mais baixas, as mães rejeitam n1ais os filhos rapazes do que as filhas
n~ As famílias de adopçâo levantam questões específicas pelo que as abordare-
dado que estas não só as ajudam mais como exigem menos despesas.
mos no ponto seguinte.
217
216 ~volvímento familiar
(Des)Equilíbrios familiares

aumento do número de famílias monoparentais tem constituído um


famílias monoparentais, dado que um dos filhos, geralmente o(a) mais
factor importante para a modificação do sentimento de vergonha e de
velho( a), assume o papel do progenitor ausente, com inevitáveis reper-
estigmatização por vezes sentidos por estas crianças. No entanto, con-
cussões ao nível do funcionamento do sub-sistema fraternal, do exer-
vém sublinhar que a sociedade, e particularmente a escola, faz certas
cício da autoridade familiar (aspecto executivo do sub-sistema
marcações e tem certos rítuais que podem contribuir para o aumento
parental) e do próprio desenvolvimento individual do filho parentifi-
daquele sentimento: falamos, naturalmente, da comemoração do dia do
cado221. pai (ou da mãe) ou da solicitação da presença de ambos os pais nas fes-
tas ou nas rem1iões escolares. No que respeita à segunda questão,
O outro aspecto que é frequentemente assinalado como consti-
J)\ficullladcs afigura-se-nos como fulcral a atitude e o comportamento de ambos os
identificatórias tuindo uma dificuldade para o desenvolvimento individual dos filhos e
progenitores: é importante que o que está fisicamente ausente encontre
para o cumprimento de uma dimensão da função interna da família diz
formas de apoiar o(s) filho(s) e de mostrar-lhe(s) a sua disponibilidade
respeito à problemática identificatória. Na ausência de um progenitor,
e ínteresse, assim como é vital qlte o progenitor presente não boicote
o filho do mesmo sexo terá mais dificuldade em edificar a sua identi-
aquela "presença" nem veicule uma imagem negativa ou rejeitante do
dade dada a falta de um modelo de identificação"'. A vulnerabilidade
seu ex-parceiro. Por outras palavras, é fundamental que ambos os pais
que este factor de risco cria depende, em larga medida, dos factores de
cooperem como pais, não triangulando os filhos como forma de
protecção existentes ou mobilizáveis. A este nível desempenham par-
'resolver as suas questões, fracassos, temores ou frustrações de adul-
ticular importância as atitudes que o progenitor presente exprime face
tos213.
ao progenitor ausente (positivas ou negativas), as expectativas que
aquele desenvolve relativamente ao comportamento e à identidade dos
Em síntese, podemos dizer que, para além das dificuldades que
respectivos filhos e as oportunidades que cria para que os mesmos pos-
estas famílias podem sentir e a que acabámos de fazer referência, o seu
sam interagir e identificar-se com elementos do sexo do progenitor
desenvolvimento regista algumas diferenças relativamente ao ciclo vi-
ausente. tal das famílias nucleares tradicionais.
Para além desta questão identificatória, a ausência de um dos pais
Em muitos casos, a primeira etapa - formação do casal - não chega Furmaçãu
pode ser vivida pela criança como um sinal de diferença relativamente do casal
a ser vivenciada, já que, na ausência do parceiro, o sub-sistema conju-
aos restantes colegas ou como uma falha que nada, nem ninguém,
gal não pode ser criado. Nas situações de separação/divórcio ou viu-
parece ser capaz de colmatar. Relativamente ao primeiro aspecto, o
vez, ele constituiu-se mas presentemente não existe. Para além das
implicações que a mágoa subsequente comporta, muitas vezes traduzi-
das pela idealização do elemento ausente ou pela raiva e imagem ne-
n 1Não são raras as situações em que este filho não se casa para poder cuidar do
seu progenitor e/ou permitir aos seus irmãos que concluam a sua formação académica
e se insiram na vida activa; como não são raras as situações em que os níveis académi~
co e profissional deste filho são inferiores àqueles que as suas capacidades penniti~
in Nas situações em que o progenitor ausente deixou de manter contactos, ou

rejeitou a criança e respectiva família, é importante que esta não veicule urna imagem
riam mas correspondem às opções familiares decorrentes da sua parentificação.
-,- negativa daquele mas que também não negue o seu comportamento-, possibilitando que
Também é verdade que esta lhe permitiu um estatuto familiar (adulto e parental) que
a criança se vá confrontando com a realidade e deSenvolva uma resiliência individual
nenhum outro irmão teve e que, decerto, troux.e à família e a ele próprio ganhos
de permitir-lhe enfrentar positivamente esse abandono. Neste sentido, é útil que
seclU1dários que é importante não esquecer. -' iuamilia (nomeadamente o progenitor presente) alargue o espectro relacional da crian-
n llá autores que consideram que o impacto da falta do progenitor do mesmo
1 metacomunique, sempre que necessário, sobre os sentimentos da criança a pro-
sexo no desenvolvimento psico-sexual das crianças é maior quando a mesma ocorre
dao;; vivências familiares da monoparentalidade.
antes dos cinco anos (in·Birren et al., 1981, 296).
~ifA~i.d~á~- ,,,,/' -
(.U lil lU lU lU -ta-s Lô 1
r ld li ri! ••l.iJI
l.d til !Jll tu !.Q !Si l"i
218 219
(Des)Equilíbrios familiares I)e;nvolvimento familiar

gativa face ao mesmo, a ausência do sub-sistema conjugal reflectir-se- avós, continuação da co-habitação, reforma precoce, manutenção da
-á nas etapas seguintes e tornará diferente a forma como será equa- forte ligação afectiva e intrusão na nova vida familiar dos filhos).
cionado o último período.
f<'amilia com Nas etapas seguintes - família com filhos pequenos e família com De acordo com o que dissemos, as famílias 1nonoparentais têm um
filhos pequem><
e na escola filhos na escola - as maiores diferenças decorrem, fundamentalmente ciclo de vida com particularidades que importaria estudar mais apro-
das dificuldades que o sub-sistema parental pode enfrentar (sobrecarg~ [UndadamentC224, 11omeadamente nos vários vectores da monoparenta-
relativamente às funções a cumprir, dificuldade em criar um sistema !idade (progenitores solteiros, viúvos e separados/divorciados). Dado
executivo claro, coerente, firme e democrático, ausência de articulação que o desejo de felicidade e satisfação individual se sobrepõe, hoje em
com o sub-sistema conjugal), dos eventuais problemas identificatórios dia, a qualquer outro valor familiar, as situações de monoparentalidade
vividos pelas crianças e da possível alteração das experiências frater- podem prolongar-se ou interromper-se de acordo com as necessidades
nais decorrentes da parentificação de uma ou mais crianças. A expecta- e os desejos do adulto presente. Nesse sentido, podem ocorrer situa-
tiva social de que estas famílias têm mais dificuldades e sofrem mais ções de ""monoparentalidade intermitente" 225 que interessaria estudar
vicissitudes no seu processo de desenvolvimento constitui um elemen- em termos das suas implicações no desenvolvimento familiar.
to importante no sistema de comunicação inter-sistémico e intra-fami-
liar, sobretudo se pensarmos que estes são períodos de maior abertura
ao exterior e que a terceira etapa comporta uma avaliação indirecta do
sistema familiar no que diz respeito ao cumprimento das suas funções.
Família Na quarta etapa - família com filhos adolescentes - para além dos
com filhos
adolcsccnl~s
aspectos anteriormente referidos coloca-se com bastante acuidade a
questão da separação. Como já dissemos, o possível desenvolvimento
de relações fusionais ou de uma forte implicação afectiva existente
entre os elementos destas famílias origina dificuldades acrescidas à
construção de selves diferenciados e de projectos individuais. Dessa
forma, o próprio processo negocial, tão característico desta etapa, pode
comp lexificar-se, o mesmo ocorrendo com a transformação do sub-sis-
tema parental necessária à preparação da etapa seguinte.
Fumílfa com Aquando da saída dos filhos de casa o progenitor tem que reorga-
filhos adultos
nizar, sozinho, a sua vida familiar e profissional. Se não tem que expe-
rienciar as vicissitudes da reorganização do sub-sistema conjugal, tem
que reposicionar-se face aos filhos, ao trabalho e aos seus próprios 22

pais. A crise que naturalmente se instala pode constituir uma ver- Nas situações de monoparentalidade por separação/divórcio, i.é, nas chamadas
'

pós-divórcio" ou de "custódia única" (Carter e McGoldrick e col., 1995),


dadeira ocasião de mudança (de alargamento das relações sociais, de ser importante equacionar, para além do ciclo vital da família monoparental, o
novo investimento profissional, de escolha de um parceiro sexual) ou de vida das relações que o(s) filho(s) tem(têm) com o progenitor que não per-
de risco de perpetuação de um funcionamento que entrava o próprio ·:':maneceu na família e que, entretanto, pode ter constituído uma nova família.
desenvolvimento familiar e individual (aparecimento de um sintoma m As farnílias flutuantes (Minuchin e Fishman, 1988, 63) constituem um claro
no progenitor, no(s) filho( s) ou na família alargada, nomeadamente nos desta situação. Nas famílias multiproblemáticas podemos encontrar também
de "monoparentalidade intermitente".
J
1esenvolvimento familiar

6.3.
'âuarecer. Geralmente, concede-se um, dois anos para estabilizar a sua
Famílias adoptivas Depois, começa a tentar engravidar: ao fim de cerca de mais dois
perante a ausência de gravidez, começam as investigações. Face
resultados desta avaliação o casal prolonga as suas tentativas na-
'" Mais (nas situações em que não é declarada a infertilidade) ou inicia
série de tratamentos/intervenções cirúrgicas com vista à obtenção
de um filho biológico. É um longo percurso de sofrimento fisico e psi-
cológico que se inicia, que pode abalar a vida conjugal (umas vezes, a
dor sentida pode inibir a metacomunicação sobre esta questão e, por
generalização, sobre outras situações de tensão ou de diferente pontua-
ção da comunicação; outras vezes a dor e a frustração são agidas em
acusações que em nada ajudàm o casal a ultrapassar esta crise) e tomar
problemáticas as relações com as famílias de origem (ou porque esse
As famílias adoptivas caracterizam-se hoje, na sua maioria226, pelo assunto não é comunicado à família, tornando-se mais ou menos tabu,
facto de acolherem no seu seio crianças e adolescentes que não têm ou porque o apoio dessa família 11ão é efectivo ou, ainda, porque a sua
laços de sangue com aqueles pais, mas que lhe estão ligados por laços desilusão se toma também muito grande). Assim se passam mais
Da csterifü.hule afectivos e legais. O casal, ou pelo menos um dos seus membros, re- alguns anos em que, mediante as evoluções registadas, o casal pode ter
it decisão
de adorçiiu velou-se infértil ou com dificuldades de levar a bom termo uma que equacionar a necessidade de fazer o luto por um filho e por uma
gravidez biológica e, por isso, acabou por tomar a decisão de adaptar família biológicas, de fazer o luto por uma capacidade de concepção.
uma criança. É na sequência de todo este processo que surgirá a decisão de adop-
Habitualmente, o casal inicia o seu ciclo de vida na convicção de tar"': nessa altura o casal contacta com os serviços de adopção, mani-
que, passado algum tempo, a mulher vai engravidar e os filhos vão

227
n 6 No passado, houve muitas situações em que famílias com filhos biológicos Lois Hoffinan e Jean Manis (in Birren et ai., 1981, 294) realizaram urna inves-
adoptaram crianças que tinham ficado órfãs ou que tinham sido rnaltratadas ou aban~ tigação com o objectivo de identificar o tipo de satisfação psicológica que os casais
danadas pelos seus pais. Aconteceu, também, serem adoptadas crianças cujos pais não atribuem ao facto de terem filhos. Os aspectos mais frequente1nente referidos foram:
tinham condições económicas para as fazer crescer, dado o seu relativo nível de "amor e afecto", "sentimento de ser uma família", "estimulação e divertimento'',
pobreza e o elevado número de filhos. Frequentemente, esta situação de adopção não "expansão do self', "sentimento de continuidade". Desta forma, o casal infértil procu-
era legalizada e a relação e o vínculo com a família biológica eram mantidos. Hoje há ra, na adopção, a possibilidade de obter esse tipo de gratificações que lhe foram bio-
cada vez mais tendência para distinguir as situações de colocação das situações de logicamente negadas. O processo de tomada de decisão de adopção é longo e passa por
adopção, ainda que muitos casos de colocação se prolonguem no tempo, criando, três fases (Rosenberg, 1992): 1) reconhecimento e aceitação da incapacidade de conce-
muitas vezes, expectativas de adopção que nunca chegam a concretizar-se. O que é ber um filho biológico; 2) aceitação do facto de ser-se pai/rnãe de uma criança com a
hoje rnenos habitual é vermos coexistir filhos biológicos e adoptivos, a menos que o qual não se tem um vínculo biológico; 3) definição do tipo de criança a adaptar. A
casal, depois da adopção, venha a ter filhos biológicos (situações de infertilidade psi- primeira fase é acornpanhada por um elevado nível de stress associado ao reconheci-
cológica). Na sua grande maioria, as famílias adoptivas limitam-se a um filho: mesmo mento da infertilidade e à inevitável diminuição da: auto-estima do casal e, particular-
quando o casal põe inicialmente a hipótese de adoptar mais do que uma criança, as mente, do membro infértil. É possível que este elemento se questione sobre o facto de
dificuldades do processo e a ansiedade que viveram, nomeadamente até ao decretar da saber se, para o cônjuge, é mais importante u1n filho ou este casamento. A satisfação
adopção, constituem uma situação de stress que não querem repetir. Por outro lado, o com o relacionamento sexual pode ser afectada dado que toda a relação sexual con-
padrão do filho único é cada vez mais frequente nas famílias actuais. fronta o casal com a sua incapacidade procriativa. Por outro lado, dada a confusão entre
,... w ~
l:UW ~) ãi ·ú,J w •i1 ld ww
Úl ~\'j)- Ul. ···.ciJ. ·. . ~·· 'W Ui
Jbõ..
UlJi 00
223
222 o;;-envolvimento familiar
(Des )Equilíbrios familiares

De acordo com Rosenberg (1992), a família adoptiva nasce com a


festa a sua intenção de adoptar u1na criança e ao fim de seis meses228
chegada da criança e nela podem distinguir-se as seguintes etapas:
depois de ser avaliado nas dimensões legal, sócio-económica e psi'.
nascimento da família e início da parentalidade, família com crianças
cológica, obtém um parecer técnico (positivo ou negativo) sobre a sua
em idade pré-escolar, família com filhos em idade escolar, família com
condição de adaptante. A entrega de uma criança pode levar mais ou
filhos adolescentes, família com filhos adultos e família na fase tardia.
menos anos 229 pelo que, na maior parte das vezes, o casal tem cerca de
Como podemos ver, os dois primeiros períodos correspondem à se-
dez-doze anos de casamento quando a criança surge. gimda etapa do ciclo vital que apresentámos (família com filhos
Não será demais repetir que a dor causada pela descoberta da
pequenos) e os dois períodos finais à ultima etapa por nós considerada
infertilidade é muito grande: ataca a auto-estima do sujeito, que muitas
para o desenvolvimento da família nuclear tradicional (família com fi-
vezes se sente incompleto e falhado, reactiva mecanismos primários de
lhos adultos).
inveja (particularmente da mulher relativamente a outras mulheres
grávidas) e obriga à reorganização dos vividos edipianos (nomeada-
Na primeira etapa - nascimento da família e parentalidade - o V<Jrmação
mente da culpabilidade sentida pelo desejo infantil de ter um filho do da familia
objectivo principal é o estabelecimento do vínculo afectivo com a
progenitor do sexo oposto e do subsequente medo da castração agora
criança e as funções a desenvolver são idênticas às que referimos quan-
actualizado pela impossibilidade de procriar)"°. Por tudo isto, a rea-
do nos debruçámos sobre a questão da edificação e desenvolvimento
lização dos lutos de que falámos é fundamental para que o casal possa
da parentalidade na família nuclear tradicional. As maiores diferenças
investir a criança a adaptar, filiá-la e resolver criativamente todas as
decorrem do sentimento de avaliação extra-familiar (muito presente no
crises211 que a família vai ter que enfrentar. período de pré-adopção"'), da recorrência de questões e interrogações

capacidade de procriar e competência parental, os cônjuges questionam-se, muitas passagem de uma para a outra etapa desse mesmo ciclo). Palácios (1998, 368-369), no
vezes, sobre a sua real capacidade para serem pais. Na segunda fase a questão básica sentido de avaliar o risco de problemas a que as famílias adoptivas estão sujeitas,
relaciona-se com a continuidade genealógica da família, quebrada pela inexistência de
propõe um modelo que distingue 4 grupos de famílias em função do risco dos pais
um filho biológico e não garantida por um filho onde não corre o mesmo sangue. Como
(expectativas inadequadas, pouca capacidade para lidar com o conflito e a tensão, ati-
podemos compreender, a qualidade dos vínculos relacionais que irão criar-se serão um
tudes pouco comunicativas e pouca expressão de afecto, escassez de apoios sociais e
elemento fundamental para o equacionar desta problen1ática. Nesse sentido, a aceitação
profissionais) e dos factores de risco dos filhos (elevada idade de adopção, institu-
da adopção e a inscrição familiar da criança adaptada por parte da família de origem e cionalização prolongada, história prévia de conflitos graves e presença de problemas
da família alargada constituem aspectos n1uito importantes para que o casal possa fazer
sérios de cornportamento): a) famílias co1n n1uito pouco risco de problemas (actuaJ e,
o luto por um parentalidade biológica. A posição da comunidade envolvente constitui,
previsivelmente, no futuro); b) famílias com risco moderado de problemas (pais de
também, um elemento relevante para a forma como o casal equaciona e resolve esta
risco elevado e filhos de risco ba:ixo), en1 que os pais ainda não abordaram a revelação
crise acidental. e parecem ter algu1nas dificuldades na imposição de normas e de disciplina; c) fan1ílias
nK Embora esse seja o período actualmente estipulado pela lei portuguesa, é muito
de risco n1oderado de problemas (filhos de risco elevado e pais de risco baixo), em que
frequente que o mesmo se dílate. os pais parecem ter desenvolvido expectativas inadequadas face aos filhos que apre-
wJ Neste momento, ern Portugal, há diversos serviços em que o tempo médio
sentani problemas comportamentais in1portantes; como factor protector surge o forte
ronda os três anos, sobretudo nas situações em que o casal pretende adaptar uma crian-
investimento afectivo destes pais; d) famílias de riSco elevado de problen1as, constituí-
ça muito pequena (até cerca de um ano de idade). -+-~'-_das por crianças adaptadas numa idade mais avançada, com histórias prévias de confli-
iw Para um conhecimento r:pais detalhado destas questões recomendamos a leitu-
to e institucionalização prolongada ou com necessidades educativas especiais e por pais
-ra de Soulé e Noel (1985). con1 menos recursos pessoais e sociais e menor investimento afectivo dos filhos.
É importante não esquecer que uma família adoptiva está sujeita, pelo menos, 232
211 É importante não esquecer que ao fim de um ano, após a entrega da criança, o
a duas fontes de stress diferentes (Minuchin, 1979): ao stress provocado par uma situa-
organisrno responsável pelo processo de adopção tem que elaborar um relatório sobre
ção particular (a adopção) e ao stress relativo ao ciclo vital (em que a crise ocorre na
225
224 ·Desenvolvimento familiar
(Des)Equilíbrios familiares

Uma das dificuldades que estes pais podem sentir diz respeito ao
relativas às problemáticas da infertilidade e da filiação psicológica e desenvolvimento de uma autoridade e disciplinas claras: por medo de
das dúvidas quanto ao património hereditário da criança e das suas não ter o afecto da criança, por pena relativamente ao seu sofrimento
implicações no desenvolvimento individual e no desenvolvimento das passado, por receio de ser demasiado agressivo na imposição de certas
relações familiares (dúvidas tanto mais importantes quanto a criança frustrações, ou por gratidão pela atribuição de uma criança, os pais
imaginária se distinga da criança real). Nas situações em que a criança pedem adaptar um estilo educativo permissivo ou ambivalente.
adaptada é mais velhinha, o estabelecimento desta vinculação é mais
dificil na medida em que as relações iniciais são marcadas por uma Na segunda etapa - família com crianças em idade pré-escolar (3-5 Família com
maior ambivalência e dado que está já estabelecido um modelo inter- anos) - assistimos ao desenvolvimento e reforço da relação anterior- niançlls e111
idade pre-
no de vinculação insegura: embora a criança esteja habitualmente dis- mente estabelecida. A forma como a etapa anterior foi vivida e como -escolar
posta a aceitar esta relação e o afecto dos novos pais, o medo de ser foram ultrapassadas as dificuldades então experienciadas será impor-
novamente abandonada dita inúmeros comportamentos de provocação tante para o modo como este período decorrerá. Entre as tarefas especí-
que não têm outro objectivo senão o de reassegurar-se da disponibili- ficas destas famílias encontramos o início do processo de revelação
dade e do amor dos mesmosm. Os pais adoptivos têm também, muitas (Palácios, 1998). A partir da curiosidade sexual da criança, do contac-
vezes, receio de não conseguir '"moldar a criança às suas próprias ca- to com mulheres grávidas e do possível desejo da criança de ter um
racterísticas ou de não se adaptarem eles à criança", o que facilita o de- irmão, os pais (mais frequentemente as mães) começam a dizer à crian-
senvolvimento de relações mais ambivalentes. ça que "ela nasceu de outra barriga mas que é filha deles pelo coração".
Uma das maiores vulnerabilidades que a família pode sentir, nesta
Nesta fase, a criança ainda não compreende bem a diferença entre ser
etapa, diz respeito ao aparecimento de comportamentos (tais como filha adoptiva ou biológica pois, para ela, todas as pessoas que vivem
rejeição de certos alimentos, perturbações do ritmo de sono, choro juntas fazem parte da mesma família. Aceita que "pode ter nascido de
fácil, irritação, etc.) que são interpretados corno sintomas de inadap- outra barriga" e ser filha daqueles pais: geralmente não faz muitas per-
tação ao novo espaço familiar (o que questiona os pais em termos das guntas nem põe questões muito dificeis. Sobretudo, não sente necessi-
suas competências parentais) ou como herança de um património dade de questionar os pais adoptivos sobre as suas origens e, habitual-
genético que pautará o desenvolvimento da criança por perturbações mente, não os contesta como pais. Nesta etapa os pais sentem necessi-
mais ou menos acentuadas (o que pode colocar-lhes dúvidas sobre um dade de que o meio aceite a criança, pelo que testam as suas relações
possível desenvolvimento psicopatológico ). Ambas as situações com a família alargada e os amigos. Este é um período em que, pen-
podem minar o estabelecimento da vinculação de que anteriormente samos, os pais adoptivos beneficiariam do contacto com outros pais
falámos e é nesse sentido que o apoio exterior (familiar, social ou téc-
(adoptivos e não adoptivos) para trocarem com eles experiências,
nico) pode ser muito importante nesta fase. medos, ansiedades e alegrias234 •

as qualidades dos pais adoptivos e sobre a forma como decorreu esse período. É com À semelhança do que acontece com as outras famílias, a terceira Famma com
filhos na escob
base neste relatório que o juiz confirma, ou não, a situação de adopção e a legaliza. Só _etapa - família com filhos em idade escolar - é marcada por um alarga-
a partir dessa altura é que aquela criança passa a ser definitivamente filha daquela

família.> Se os pais contiverem a sua agressividade e as suas partes más neles projec- 4
23 nNão havendo escolas para pais, seria interessante que na comunidade houvesse
tadas, se transformarem os seus medos e as suas dúvidas, a criança reassegura-se re- mais ou menos fo1malizados em que este tipo de troca de experiências e de
lativamente ao seu amor e desenvolve a confiança necessária ao seu desenvolvimento pudesse ocorrer.
psico-afectivo.
r--. <'"
-Atd18c·lh ··· ·l'il··· ···w · · ru ··w
:"--- --~-.{----.,_..---_ ,----:'----~{----'.

00 w··· w Ui lis tu ij;:j w w UI w ÚJl w w w


227
226 Desenvolvimento familiar
(Des )Equilíbrios familiares

pais adoptivos (através, p.e., de comportamentos agressivos ou de de-


mento do mundo social da criança e, naturalmente, por uma abertura
safio à sua autoridade) como forma de testar .º seu afecto inequívoco e
do sistema familiar ao exterior. É o primeiro período de teste efectivo
incondicional.
à função externa da família. Nas famílias adoptivas, a expectativa re-
lativamente à capacidade de aprendizagem das crianças é geralmente
A quarta etapa - família com filhos adolescentes - constitui, decer- Jiamília
grande, sobretudo nos casos em que nos seus antecedentes familiares com filho:>s
to, um dos mais difíceis períodos do desenvolvimento individual do
se encontram possíveis factorcs de risco, tais como alcoolismo do(s) adolescentes
adaptado e do desenvolvimento deste sistema familiar. Se habitual-
progenitor(es), deficiência dos mesmos, baixo nível sócio-cultural
mente este é um período de claro ensaio e negociação da autonomia e
problemas psiquiátricos, etc. Nestas situações os pais adoptivos temeU:
da separação do adolescente e dos seus pais, tais tarefas complexifi-
que as capacidades intelectuais da criánça possam estar comprometi-
cam-se nestas famílias pelo medo do abandono e pelo receio que estes
das e que tal facto se manifeste em dificuldades específicas de apren-
sentem de que o adolescente, finalmente, opte pelos seus pais e pela
dizagem ou mesmo numa situação de insucesso escolar. A revelação,
sua família biológica ou os castigue pelo facto de eles, pela adopção, o
se ainda não foi feita, toma-se uma exigência, até para prevenir que tal
terem privado do contacto com essa parte da sua história. As dúvidas
notícia seja veiculada por elementos exteriores à família. Compreen-
identitárias que normalmente assaltam o adolescente estão, neste caso,
dendo a diferença entre nascimento e adopção e começando a entender
amplificadas: muitas vezes, o desejo do adolescente de querer co-
o conceito de concepção, a criança fica mais capaz de integrar, cogni·
nhecer a sua família biológica, as suas raízes geográficas, as histórias
tivamente, o que significa ser adaptada. Começa a perceber que tem
do passado não significa que ele queira deixar a família adoptiva mas
dois grupos de parentes e que teve uma outra história antes de juntar-
apenas que quer unir as várias partes da sua história para poder con-
-se a esta família. O romance familiar, normativo neste período de
tinuar a tarefa de construir a sua identidade"'. Neste período de pro-
desenvolvimento, complexifica-se para estas crianças e para estes pais:
fuuda insegurança e grande transformação, é importante que pais e fi-
efectivamente, e não apenas na fantasia, esta criança tem outros pais e
lhos adoptivos tenham uma confiança mútua, se sintam afectivamente
outra família. Como forma de defender-se do sentimento de abandono
gratificados e demonstrem flexibilidade de forma a poderem superar
por parte dos pais biológicos e como forma de lutar contra zangas e
as crises que necessariamente ocorrerão. Neste sentido, esta é uma fase
afectos agressivos experienciados face aos pais adoptivos, a criança
em que as famílias adoptivas podem necessitar novamente de apoio
idealiza os pais naturais, considerando-os perfeitos, bonitos, ricos, im-
familiar e social (eventualmente técnico): o poder metacomunicar
portantes, famosos ... Em situações extremas pode mesmo imaginar
sobre os seus medos, sobre as suas ai1gústias, o poder partir à procura
que os pais adoptivos a roubaram. Como podemos compreender, a
de novos encontros com o passado são tarefas dolorosas que despertam
ressonância do romance familiar da infãncia é totalmente diferente
muita ambivalência em ambos os pólos desta díade (pais-adolescente)
para os pais adoptivos que se sentem questionados pela criança no seu
mas que são necessárias para que o seu desenvolvimento possa con-
afecto e na sua gratidão. Desta forma, podem surgir complicações no
tinuar a processar-se satisfatoriamente.
desenvolvimento das relações pais-criança. Para esta, o medo de que a
Sendo a adolescência um período em que o grupo de pares desem-
adopção tenha constituído uma retaliação pelo seu comportamento
penha um enorme papel, o adolescente adaptado pode inibir-se de bus-
anterior (sobretudo no caso das crianças que foram adaptadas mais tar·
diamente) pode levá-la a inibir uma agressividade saudável e
necessária à competição relacional que perpassa o nosso quotidiano 2 5
J É neste contexto que alguns adolescentes procuram descobrir parecenças físi-

(motivando, p.e., situações de apatia, de dependência emocional, de cas ou temperamentais com os seus pais biológicos ou que algumas adolescentes
fracasso escolar) ou, paradoxalmente, a desafiar permanentemente os querem saber a idade de menarca da mãe biológica (Rosenberg, 1992).
T"

228
~c;--~-:---;:--c;7~'~~~~~~~~~--~~~~ 229
(Des )Equilíbrios familiares Desenvolvimento familiar

car esse apoio dada a diferença que encontrará quando se compara com
os seus colegas. A fratria poderia desempenhar então um papel pre- que perderam "a sua criança" para um ''parente de sangue" e deixam
ponderante: no entanto, e como já tivemos oportunidade de referir, um reavivar velhos sentimentos de dor e sofrimento (Rosenberg, 1992).
largo número de famílias adoptivas tem apenas um filho e mesmo que Dessa forma dificultam a evolução dos dois sistemas familiares,
haja irmãos de sangue não só nem sempre se conhece o seu paradeiro podendo originar-se situações de cut-ojf emocional (em que o filho
como a sua procura coloca questões análogas àquelas que já enunciá- adoptivo parte com a sua nova família) ou de complexo enredamento
mos a propósito do desejo de conhecer os pais naturais. (mantido por situações sintomáticas que tornam necessário, embora
Face a estas múltiplas questões, o adolescente pode tomar uma de ambivalente, o sobre-envolvimento e a sobre-preocupação dos dife-
rentes elementos).
três opções: a metaco-municação sobre as suas dúvidas e o seu sofri-
mento (com os pais adoptivos, com outros familiares ou com outras
pessoas da sua rede social) seria a opção mais desejável e satisfatória A última etapa - família na fase tardia - vê surgir o envelhecimen-
Familia"ª
mas nem sempre é a mais seguida; a provocação e a projecção da tc dos pais adoptivos, a sua reforma, a progressiva perda de autonomia, fase tardi:i

agressividade sentida é um recurso frequente que se reificará ou será as doenças e, finalmente, a perda do cõnjuge e a aproximação da morte
ultrapassado em função da resposta do meio e da evolução das angús- do outro cônjuge. Geralmente, nesta etapa, os pais adoptivos aceitam
tias e dos medos do adolescente; os vividos depressivos ou a apatia as circunstâncias da adopção com tranquilidade e reconhecem a exis-
constituem uma outra saída, habitualmente mais problemática. A tência de uma hereditariedade psicológica o que os tranquiliza relati-
aparente ausência de problemas, dúvidas ou angústias deve constituir vamente à continuidade da família e à perpetuação da sua memória.
um sinal de alerta pois este processo é naturalmente complexo e Para os adoptados, a morte dos pais adoptivos pode constituir uma
doloroso e esta pseudo-calma mais não é do que negação de tais difi- experiência particularmente difícil pois pode ser sentida como um no-
culdades. vo abandono ou como uma retaliação face a anteriores agressões.

Familia com Na quinta etapa - família com filhos adultos-, a saída de casa não Deste breve percurso pelo ciclo vital das famílias adoptivas pen-
filhos ailultos
é fácil pois pode ser sentida como um abandono ou como uma rejeição samos ter deixado clarificados os aspectos em que o mesmo se dis-
embora, na grande maioria das vezes, tal situação só reforce os víncu- tingue do ciclo vital da família nuclear tradicional. Naturalmente que
los afectivos e os laços familiares. O jovem adulto pode intensificar a em muitos aspectos os seus' desenvolvimentos se aproximam, nomea-
investigação sobre as suas origens, para melhor integrar todas as suas damente no que diz respeito às tarefas básicas que a família prossegue
"heranças" e configurar a sua identidade, ou pode abandoná-las, sobre- em cada uma das etapas considerada,. Por isso Palácios ( 1998) afirma
tudo nas situações em que se sente mais rejeitado. Ao criar a sua que estas são famílias simultaneamente diferentes e semelhantes às
demais.
própria família, casando e tendo filhos, muitos adoptados experien-
ciam, pela primeira vez, o estabelecimento de um vínculo sanguíneo
com alguém, o que lhes permite uma enorme gratificação emocional.
Os pais adoptivos que integraram satisfatoriamente a sua infertilidade
e as especificidades da família adoptiva sentem idêntica felicidade e
aceitam bem o seu novo estatuto de avós, ao mesmo tempo que reor~
ganizam o seu papel de pais e de adultos de uma "geração intermédia".
Os outros, que não conseguiram resolver aqueles problemas, sentem
···~··· clÍi ill iii···· ··~· LJ ,d;-. lwi ~
·&iiiJI ....
ÜJ<.. .
i.JUl ~- 11;;~ ~ w •ih w
ª"" w ru htl

6.4.
Familias de homossexuais Um dos aspectos que tem sido considerado como mais pro- Oificuhladcs
blemático nestas famílias diz respeito ao desenvolvimento da identi- id1<11tificatórias

dade sexual das crianças e à falta de um modelo heterossexual do de-


senvolvimento das relações interpessoais. À semelhança do que acon-
tece nas famílias monoparentais, tem-se considerado que num casal de
lésbicas os rapazes não têm fácil acesso a um modelo de identificação
masculina, tal como num casal gay são as raparigas que sentem essa
falta. Contrariamente às expectativas geradas, não tem sido encontra-
da evidência de confusão na identidade sexual dos filhos de casais
homossexuais. Os mesmos estudos também não encontraram dife-
renças na popularidade social destas crianças (avaliada no contexto do
grupo de pares) nem na adaptação social das mesmas (Golumbok,
Spencer e Rutter, 1983; Gren, 1982; Kirkpatrick et ai., 1981; Patterson,
Não fora o casal ser composto por dois elementos do mesmo sexo 1994; Green et ai., 1986, in Long, 1996).
e consideraríamos esta como uma família nuclear. Apesar da existên- Embora sem fundamentação empírica nem experiência clínica,
cia de diversos estereótipos que apontam para o facto de estas famílias consideramos esta questão identificatória como mais complexa e pen-
serem menos efectivas no cumprimento das suas funções e, conse- samos que esta pode ser, realmente, uma área problemática destas
quentemente, menos capazes de educar adequadamente as crianças famílias e, particularmente, dos seus filhos, sobretudo em sociedades,
existe, hoje, alguma investigação que tem demonstrado que as famílias como a nossa, que se revelam ainda pouco receptivas a este tipo de
de homossexuais não diferem significativamente das famílias heteros- organização familiar. Nas situações em que as experiências relacionais
sexuais quando comparadas em detenninados parâmetros. e os modelos alternativos de identificação ficarem essencialmente li-
'""""l'd•dc Harris e Turner (1985/86, in Long, 1996) evidenciaram que ser mitados a grupos homogéneos (constituídos por outras famílias de
homossexual é compatível com o desenvolvimento de uma efectiva homossexuais), as crianças, quando confrontadas com grupos he-
parentalidade. Com efeito, Miller, Jacobsen e Brigner (1981, in Long, terogéneos (em contextos como o escolar, p.e.), poderão ser marcadas
1996) verificaram, na sua investigação, que as mães lésbicas davam por comportamentos de rejeição ou de aceitação ambivalente o que, de
respostas mais centradas nas suas crianças do que as mães heterosse- um modo ou de outro, pode conduzir ao desenvolvimento de senti-
xuais. Kirkpatrick, Smith e Roy (1981, in Long, 1996), por seu turno, mentos de exclusão. Mercê daquela homogeneidade, a dimensão pro-
não encontraram diferenças entre as mães homossexuais e as mães he- tectora das experiências heterogéneas perde-se aumentando uma vul-
terossexuais quando comparadas nos seus interesses matemaisi nos nerabilidade que, noutras circunstâncias, poderá ser ultrapassada.
seus estilos de vida e nas suas práticas educativas. Zacks, Green e Apesar de ter sido considerado que as crianças dos casais homos-
Marrow (1988), avaliando o funcionamento de famílias homossexuais sexuais eram mais susceptíveis de ser sexualmente mais inolestadas
e heterossexuais através do modelo circumplexo de Olson, verificaram pelos seus pais, Riveria (1987) e Finkelhor (1986) (in Long, 1996) ve-
que as primeiras apresentavam níveis significativamente mais eleva- rificaram que este tipo de mau trato não está relacionado com a orien-
dos de coesão e de adaptabilidade, o que tem sido explicado como tação sexual dos adultos, acentuando, assim, as possibilidades de
resultado da necessidade das famílias de homossexuais se defenderem desenvolvimento psicossexual adequado das mesmas.
das posições sociais de crítica ou segregação.
·····w··. w -
··~·!""'. ·w liJ w w •'tMJ t~ ·'[L1 itJi ~1 ii!JI liii íh' ·~·
l.MLJB [:J ~~·

232
(Des)Equilíbrios familiares
6.5.
Contrariamente à ideia de que, no casal homossexual, um dos ele- Famílias comunitárias
mentos desempenharia o papel masculino e o outro o papel feminino
Peplau (1991, in Long, 1996) verificou que os papéis desempenhado~
pelos dois elementos têm mais a ver com as competências e interesses
de cada um dos parceiros do que com uma divisão sexual dos mesmos.
Com efeito, Blumstein e Schwartz, 1983, McWhirter e Mattison, 1984
Peplau e Amaro, 1982 (in Long, 1996), também verificaram que
0 ~
homossexuais rejeitam os papéis tradicionais masculino-feminino
como modelo de relação conjugal.
De acordo com a investigação actualmente disponível, parece que
o maior risco para estas famílias está na atitude segregadora da Por definição, a unidade nuclear dilui-se nas famílias comu-
sociedade heterossexual. O facto de estas serem famílias claramente nitárias. O bem-estar comunitário, as necessidades e os deveres comu-
minoritárias mas onde a opção sexual não foi imposta, e onde a satis- nitários impõem-se como valores prioritários, independentemente da
fação conjugal é geralmente grande, parece constituir-se como um fac- filosofia de cada comunidade. Muitas destas experiências surgiram
tor importante para a compensação e transformação de qualquer vul- como tentativa de reencontrar o apoio passado das famílias alargadas,
nerabilidade familiar. Conscientes das possíveis dificuldades das de ultrapassar o individualismo que atinge as famílias nncleares e de
crianças estes casais homossexuais parecem oferecer-lhes uma diver- fugir ao stress da vida urbana.
sidade de experiências que, à semelhança do que já dissemos a pro- A predominância de relações horizontais faz com que, nas Sobredctermi"
pósito das famílias monoparentais, se constituem como um importante famílias comunitárias, o grande sub-sistema seja o "fraternal": a soli- nação do ídeal
"'"'mnitário
factor protector. Como já anteriormente afirmámos, esta não nos dariedade é incentivada em detrimento da competição e a complemen-
parece ser, por enquanto, uma realidade facilmente possível na nossa taridade relacional é posta ao serviço da comunidade e não tanto dos
sociedade indivíduos. A vivência conjugal pode revestir múltiplas formas, desde
O número relativamente reduzido destas famílias e a falta de
as situações em que as relações sexuais são proibidas até às situações
investigação mais alargada levam-nos, pois, a considerar necessário de sexo livre (Constantine e Constantine, 1971 ). O sub-sistema pa-
um maior estudo do seu ciclo de vida para que possam equacionar-se
rental é diluído em várias figuras e o modelo educativo não é o dos pais
com alguma segurança as semelhanças e as diferenças relativas ao
biológicos mas sim o da comunidade. Como facilmente se compreen-
ciclo vital da família nuclear tradicional. derá, a marcação de diferentes etapas de desenvolvimento segue uma
lógica completamente diferente daquela que enunciámos quando cla-
rificamos os critérios de definição do ciclo vital da família nuclear.

De acordo com Birren et ai. (\981, 297-298) podemos distinguir Diferentes


expcríêncías
cinco tipos de experiências co1nUI1itárias: as comunidades religiosas, cumuoitária5
as comunidades utópicas, as comunidades planeadas, os kibbutz
israelitas e as comunas.
m-----."· •:'oo--- ---"_-
."'· -..----. ·t11 --
lü "IÜ LU •Li,jj
iiiJ· lài'J ~JI w
234 235
'lh w -tâ1 w··· ··t;j
w
(Des )Equilíbrios familiares Desenvolvimento f[trniliar

Nas comunidades religiosas as relações interpessoais e as atitudes


relativas às estruturas familiares são sobredeterminadas pelos princí- nada se assemelham à família nuclear: provavelmente elas constituirão
um dos desafios da investigação do século XXI.
pios religiosos que as enformam.
As comunidades utópicas são modeladas por princípios filosófi-
cos sobre os estilos ideais de vida. De acordo com um desses princí- E é também como um desafio ao nosso próprio conhecimento e
pios, considera-se que as crianças seriam melhor socializadas em fun- compreensão dos sistemas familiares que escrevemos o próximo capí-
ção de valores comunitários do que em função de valores familiares. tulo, equacionando a fonna como entendemos, hoje, as manifestações
Desta forma, as mesmas são educadas pela comunidade, embora visi- sintomáticas, particularmente aquelas que, pensamos, constituirão os
tem frequentemente os pais. casos com que mais seremos solicitados a confrontar-nos, enquanto
As comunidades planeadas estão organizadas de forma mais vaga técnicos, no próximo século. A solidão familiar e individual é, assim o
e servem para integrar sujeitos de diferentes níveis sócio-económicos, consideramos, um risco importante e previsível neste século XXI: a
para quebrar barreiras intergeracionais ou para satisfazer necessidades toxicodependência, a delinquência, a violência e os problemas múlti-
humanas de indivíduos em declínio tisico. plos são sintomas que se vêem amplificados pelas dificuldades comu-
Os kibbutz israelitas visam preparar as crianças para, desde muito nicacionais e vinculativas com que os dias actuais e os dias futuros
parecem desafiar-nos.
cedo, cooperarem e trabalharem em grupo. Desta forma, as crianças
não aceitam a competitividade como uma norma sociahnente desejá-
vel e antipatizam com os que se notabilizam. Nos kibbutz o grupo de
pares toma o lugar do sub-sistema fraternal e o primeiro encarregado
da criança desempenha um papel essencialmente maternal.
As comunas são constituídas por grupos pequenos de pessoas que
desejam experimentar uma alternativa à organização familiar,
nomeadamente no respeitante à divisão das responsabilidades fami-
liares. Muitos dos seus elementos rejeitam a vida citadina: instalada
em meio rural, a comuna procura ser auto-suficiente. A educação das
crianças é feita de acordo com os princípios da comuna e a responsa-
bilidade da mesma é entregue aos vários elementos, à semelhança do
que acontecia nas famílias alargadas.

Actualmente, nas grandes cidades, surgem outros agrupamentos


comunitários que, face à adversidade, desenvolvem alguma solidarie-
dade e suporte emocional: falamos naturahnente dos sem-abrigo, dos
meninos de rua, etc.
O ciclo de vida destas experiências comunitárias, formal ou infor-
malmente estabelecidas, é, no entanto, algo que ainda desconhecemos.
Sem dúvida que, sobretudo estas últimas, são situações que pouco ou
:.IJ~~·~M-••·•~•---w-:;.~ i-. it-- ~· 1.. ~ --~ -4J, ~11
~
-1.Q w U1I. w -ih w l..b w-

Este é, sem sombra de dúvida, um dos capítulos mais difíceis de


escrever. Ao mesmo tempo, oferece-se-nos como um campo de enor-
me aprendizagem e de reflexão para todos os que queremos, ou temos,
que trabalhar com famílias. Mas é, aí mesmo, que reside a dificuldade.
Como escrever sobre famílias sintomáticas sem cair na tentação de ti-
pificá-las, de reificar as suas dificuldades e os seus impasses, de con-
frontá-las com as outras, as não sintomáticas, estabelecendo uma cli-
vagem que mesmo a defesa de um continuum entre "normal" e
"patológico" não deixa de operar?

Com o aparecimento da terapia familiar, e do modelo teórico que V11lor


do sintoma
lhe estava subjacente, os clínicos pensavam ter ultrapassado a dificul- e cibernéticas
dade. Colocando a ênfase no "aqui e agora" da relação e no conceito
de "caixa negra", a procura da dimensão etiológica do sintoma deixa
de fazer sentido e a filosofia do modelo médico'" dá lugar à procura
pragmática da função do sintoma. Visto como uma mensagem, o sin-
toma passa a informar-nos sobre o funcionamento do sistema em que
o sujeito se Insere-e sobre a sua.função no equilíbrio (homeostático)
desse mesmo sistema. Três níveis dê ·co1npreensão do sintoma passam,
a ser equacionados 237 : o nível semântico (o que é que o sintoma

iir, De acordo com a qual~ para conseguir a cura, há que identificar a(s) causa(s)
;~::da:doença ou da perturbação.
237
Consoante os modelos e escolas de terapia familiar, bem como em função do
-1 ~il:estilo particular de cada terapeuta, a ênfase é colocada numa ou noutra destas questões,
C~1ainda que tal não signifique a anulação dos restantes níveis de análise. P.e., o modelo
jj~éstratégico sublinha a dimensão pragn1ática do sintoma enquanto a escola estrutural
o nível sintáctico; ao modelo transgeracional interessa, fundan1entalmente, a
do nível semântico.
241
240 (Des)Equilíbrios familiares
(Des )Equilíbrios familiares

(definida em termos funcionais"') entre dois grandes tipos de família:


mostra?), o nível sintáctíco (mostra-o a quem e segundo que regras) e as funcionais e as disfuncionais"'. No entanto, a generalidade dos
o nível pragmático (com que resultado?) (Ausloos, 1996). Este reen- autores afirma não só a existência de um contínuum entre ambos os
quadramento das dificuldades do sujeito sintomático obriga-nos a uma pólos (realçando, assim, o facto de serem os mesmos mecanismos que
leitura ecossistémica da(s) dificuldade(s) apresentada(s), o que natu- explicam as duas polaridades) como partilha da ideia de Lynn Hoffinan
ralmente conduz à sua despatologização"". O diagnóstico psicopa- (1971, cit. in Nichols e Schwartz, 1998) de que as famílias "normais"
tológico individual deixa de fazer sentido e abre-se caminho à avalia- se tomam periodicamente desequilibradas durante os pontos de tran-
39
ção relacionaF • sição do ciclo vital. Nenhuma família passa--por estas mudanças de
Enquanto primeiro e mais significativo espaço relacional do indi-
forma_Jotalmente harmoniosa e todas experienciam stress: a crise sub-
víduo, a família é eleita como contexto de leitura do valor do sintoma sequente Pode, como já anteriormente explicitámos244, converter-se em
e como contexto de mudança. Assim, a intervenção redirecciona-se '
ocasião (de transformação e crescimento) ou em risco (de bloqueio e
tanto nos seus objectivos (da ideia de cura passa-se à noção de
mudança), como no seu alvo (do indivíduo passa-se para a família), Sob influência da cibernética de primeira ordem, teóricos e clíni-
como na sua metodologia (da análise linear passa-se à circularidade e cos consideram que as famílias funcionais não ficam presas em ciclos
da terapia individual passa-se à entrevista conjunta)"º. de resistência à mudança, antes se envolvendo em retroacções positi-
Em perfeita coerência com o modelo, a perspectiva sistémica não v~s ~~;;,~i;(a -à sua modificação. Pelo contrário, das famílias disfun-
desenvolveu uma nosografia familiar e procurou, mesmo, banir a ideia
de patologia ao adaptar a designação de disfuncionamento familiar"'.
É óbvio que subjacente a tal expressão está a ideia de diferenciação 242
Três parâmetros de análise parecem, a este nível, ganhar algurn consenso: a
·, hierarquia estrutural, a comunicação e a etapa do ciclo vital.
i J Nos anos sessenta, Connie Hansen (1981), integrada no projecto Methodology
4
'.-':

:)5 for .studying family interaction que visava comparar vários grupos de famílias, viveu
n O indivíduo deixa de ser visto como doente para passar a ser compreendido ·;};~;;._com três famílias "normais" (durante uma semana em casa de cada uma delas). Apesar
8
como paciente identificado (P.I.). i.é, como portador de um mal-estar, de um sofri- (Lde·serem assim inicialmente classificadas, Connie considerou, após um contacto mais/,
mento ou de um disfuncionamcnto familiar. .:;.,:.1_~··directo, que correspondiam a três níveis diferentes de funcionalidade (um nlais eleva-ri/
n A própria palavra diagnóstico, pelas suas conotações com o modelo médico e
9 ··'fÍdo, outro intermédio e outro claramente disfuncionaI). Todas as famílias tinham filhos
consequente perigo de classificação nosográfica, deixa de ser usada, preferindo-se a :.IJ'adolescentes e em idade escolar. Das suas numerosas observações, destaca-se que: nas
expressão avaliação. \~~famílias funcionais o ritmo de vida é mais relaxado; as crianças estão ben1 umas com
i•n Neste quadro, a psicoterapia individual deixa de fazer sentido e a entrevista
;~fas outras e entreajudam-se; os pais orientam o crescimento dos filhos (oferecem-se
familiar conjunta passa a ser vista como urna necessidade. Nos primeiros tempos da _:;~:_como.bons modelos para o que estão a tentar ensinar) mas não se responsabilizam
terapia familiar, ainda que com algwnas excepções, exigia-se, habitualmente, a pre- j_~._t~eOte pelo seu crescimento já que assumem-ã. premissa de que o desenvolvimen-
sença de todos os elementos da família nas sessões (particularmente os do agregado ;)o trunbém se faz espontaneamente; têm expectativas positivas sobre os seus filhos e
familiar), podendo as mesmas não se realizar na falta de algum dos seus elementos. ·,;~sobre os estürços que eles fazem para realizar as suas tarefas; os pais têm um estilo
Posteriormente esta regra flexibilizou-se e as ausências foram analisadas enquanto ''//:educativo democrático (são menos autoritários e usam mais persuasão e humor), não
resistências da família ou erros do processo e trabalhadas no decurso da própria inter- -<t?Se.sentindo culpados por impor regras (claras) e dizer que não às crianças; as crianças
venção (Palazzoli et ai., 1978). Hoje é possível fazer uma terapia familiar com um .~f~ntem-se bem tratadas pelos pais, que as ouvem: partilham algum tempo de brin-
único elemento presente e a regra é, basicamente. a da disponibilidade do(s) c!iente(s) _.:5{Cadeira e estão genuinamente interessados nelas. As situações de conflito (conjugal,
e do terapeuta para a realizarem. ;':~.:H!l!:ental ou ambos) não resolvido e as situações de triangulação rígida da criança são
"' É assim que, p.e., não se fala de família alcoólica, esquizofrênica, toxicode-
J\~ntadas como estando presentes nas famílias distl1ncionais.
pendente, delinquente, mas de família(s) com P.I. alcoólico, esquizofrénico, toxicode- .~Y~:~- 2H Vidé ponto 5 do capítulo L
,1.,,,
pendente, delinquente. ;,: ·'f····i','.
''",·
-:iÍJ- -,~-~w ili hl til ·w til w ·@ ili -~ ~ w d.a w & hi.j ÜJJ idl
W,t
242 Wilii-~(D~e=s~)ETi,;;qu;;1;;.l;;íb;;n::;·
243 o::;s:--fi;:;a;;m;;i;;h;;.a;;r;;es;;·- - - - - - - - - - - - - - - - - - -
(Des)Equilíbrios familiares

~i911ajs diz-se que permaneçem par;}li§fill.as"', utilizando o P.I. para pante, com uma história familiar pessoal249 , com uffi saber construído
evitar a mudança e perpetuar o seu funcionamento. Ao mesmo tempo na aprendizagem pessoal da teoria e prática sistémicas250 , com um con-
que se sublinha um aspecto importante do funcionamento familiar . a junto de ideias, afectos, crenças e valores que desenvolve em estreita
sua flexibilidad_e - acentua-se uma dimensão auto:r~gl!Jªdora par.a 0 articulação 251 com os elementos com quem interage (família, co-tera-
~i:Sfrni.\LÍ)llll_iíiar que, dessa forma, fica sujeito às regras da equilibraÇ[;~ peuta, observadores, supervisor). Desta forma, a história de cada
·homeostática. Mas esse foi o primeiro tempo da terapia familiar e da encontro é sempre singular: é a história daquela família, daquele(s) te-
cibernética de primeira ordem, a era em que "o sistema criava o pro- rapeuta(s), daquele tempo e daquele lugar.
blema""'. Com habilidade e profissionalismo, pensava-se, as famílias Um outro contributo da cibernética de segunda ordem foi a afir-
,J'
disfuncionais podiam ser rectificadas de fora para dentro. mação da capacidade auto-organizativa dos sistemas, da sua dimensão
Dentro desta lógica auto-correctiva, em que a disfuncionalidade se organizacionalmente fechada e informacionalmente aberta. Como já
explica pelo próprio dinamismo do sistema, é natural que procure com- antei;iormentereferi;nos, a aceitação desta ideia produz uma revolução
preender-se a relação entre o aparecimento do sintoma e o tipo de fim- ná'l!laneira
""·--""~--"''-
-·----
de <:star
--~----
elll. terap!a"l. A utilidade do terapeuta está, então,
....:_.,_;.,_,.. --------·-- -----
,. .

cionamento da família. Embora a tónica não seja colocada no estudo 249


Dada a importância desta dimensão, é útil que o terapeuta familiar/interventor
da patogénese, este tipo de investigação acabou por permitir falar de sistémico, em contexto de supervisão, equacione aspectos da sua história familiar e pes-
famílias patogénicas"', i.é, de famílias que, em virtude do seu fim. soal que possam interaisir menos positivamente com as histórias e as pessoas com quem
cionamento, tornam possível o aparecimento e a manutenção do sin- esteja ou venha a trabalhar. Nesse sentido, compreendemos o processo de supervisão
toma. As famílias passaram a sentir-se culpadas e os terapeutas em como algo que se prolonga no tempo, susceptível de poder ser feito, também, na equipa
stress, face a diversos insucessos terapêuticos. Felizmente a crise con- de trabalho, ainda que a existência de espaços formalizados de supervisão, realizados
por supervisores estranhos à própria equipe, tenha toda a oportunidade.
verteu-se em ocasião de crescimento e os terapeutas familiares pude- isn Nesse sentido, é importante que o terapeuta familiar/interventor sistémico co-
ram sair do reducionismo sistémico em que tinham caído, retomando nheça, de forma aprofundada e tanto quanto possível vivencial, as diferentes escolas de
a ideia original de circularidade da informação e de importància do terapia familiar e os outros modelos de intervenção sistémica. Como dizem Nichols e
contexto de que eles, afinal, também faziam parte. Schwartz (1998, 398), "As teorias podem distorcer as percepções mas também trazem
Com efeito, e esse foi um dos contributos da cibernética de segun- ordem ao caos.( ...) permitem organizar [as] nossas observações e proporcionar sentido
ao que as famílias estão fazendo. Em vez de ver uma 'confusão exuberante e ruidosa'
da ordern248 , o terapeuta passa a ser visto como um observador partici-
começamos a ver padrões de interacção". Fazer da teoria um modelo normativo apri-
siona a família e o interventor; mas não ter modelo é trabalhar sem direcção nem con~
24 ~ Na medida em que a mudança não é tratada como oportunidade de cresci- vieção. O que não é bom, nem para a família nem para o interventor".
mento mas apenas como ameaça, o sistema reage com retroacções negativas, rigidifi- 251
É importante não esquecermos que no processo de consulta se cria um novo sis-
cando, como se dizia então, a sua homesostase. tema que, como todos os sistemas, é algo mais do que a soma das suas partes, sendo
246 Para um esclarecimento mais completo deste assunto recomendamos a leitura estas constituídas pelos sub-sistemas família (ele próprio formado por outros sub-sis-
de Almeida Costa (1994, 89-122). 'temas), co-terapeutas, observadores e, caso exista, supervisor. Desta forma, a descrição
247 A toxicodependência é, por diversos autores (Ganger e Shugart, 1966; que o(s) terapeuta(s) faz(en1) da família está em estreita ligação com as histórias que o
Rosenberg, 1971, in Fleming, 1995; Stanton et al., 1978), considerada como uma novo sistema porporcionou. Por outras palavras, aquilo que o terapeuta sente e descreve
"doença familiogénica. Para o desenvolvimento da esquizofrenia diversos autores ·resulta da intersecção entre a sua história pessoal' e o sistema onde emerge esse senti-
(Ilaley, 1959, Lidz, 1965, Reiss, Mishler e Waxler, 1975, Singer, Wynne e Toohey, mento sendo que a isso Elkalm ( 1990) chama auto-referência. "O sentido e a função
1978, in Benoit et ai., 1988, 461-465; Bowen, 1984; Palazzoli et ai., 1978), na linha desse vivido transformam-se em instrumentos de análise e de intervenção ao seviço do
da investigação realizada em Palo Alto (Bateson et ai., 1956), apontam a existência de próprio sistema terapêutico" (idem, 16).
252
um conjunto particular de interacções patológicas. Sintomática desta transformação é a própria expressão que utilizámos: ante-
208 Vidé Introdução. riom1ente teríamos dito "na maneira de fazer terapia".
......
244 ·ves)Equilíbrios familiares
(Des)Equilíbrios familiares

·eomo já diversas vezes assinalámos, a tentação das primeiras décadas


na capacidade de ele próprio se permitir criar várias leituras acerca do
a sistémica.
que a família conta para que ela, dessa forma, possa ir descobrindo Na.vida.de uma família há, como tivemos oportunidade de referir Sele<:çiío-
aspectos que não conhecia e re-descobrindo outros a uma nova luz. ·ó cªpítulo anterior, períodos de tensão, de dificuldade, de conflito, a
-ump!íaçiio

Numa palavra, para que ela possa ir co-criando outros emedos, menos de períodos de relativa tranquilidade e satisfação. Desta forma as
sofridos mas viáveis no contexto da sua própria organização. ·eiãÇões vão-se alimentando, os elementos crescendo e a família vai-
Sintetizando, diríamos que enquanto que nos modelos sistémicos
se desenvolvendo. Entre os múltiplos comportamentos que cons-
enformados pela cibernética de primeira ordem o sistema familiar está ituem toda esta trama relacional pode acontecer que, "ao acaso ou em
preso entre duas forças - uma que tende para a mudança e outra que ção de determinantes internos e externos, um comportamento, entre
tende a preservar o equilíbrio interno - e o sintoma cumpre a função de a infinidade de comportamentos, [produza] certos resultados que
proteger esse equilíbrio, evitando o perigo que podia representar uma · o [produziriaJ habitualmente ou que não teria produzido se o sistema
mudança, nas leituras possibilitadas pela cibernética de segunda ordem
o estivesse afastado do equilíbrio. Este comportamento, produzido
o sintoma deixa de ser perspectivado como sinal de disfuncionalidade
r. um membro do sistema, vai ser seleccionado, privilegiado pelos
para ser encarado como factor que "empurra" a família para um novo tros membros do sistema. E, seguidamente, vai repetir-se, vai ser
estado. De acordo com Prigogine, o sintoma representa um momento
1pliado, em parte por continuação das respostas que ocasiona, em
de extrema instabilidade. do sistema, um ponto de bifurcação a pãrtir
'~parte porque toma um sentido particular para o seu portador e para os
do qual diferentes direcções podem ser tomadas permitindo ao siStetna ~foutros membros do sistema" (Ausloos, 1996, 134-135). Este mecanis-
evoluir para níveis mais complexos de organização (Onnis, ··199í). É
:~.iJio que Ausloos designa por "processo de selecção~ampliação" é
nesse sentido que Hoffi;nanJ 1981) considera que o aparecimento de
~r~l{lssencialmente marcado por retroacções positivas que conduzem ao
novos sintomas, no decurso da intervenção, não significa que a mesma
i~~0.úmento do comportamento seleccionado que assim se vem a tornar
esteja a ser pouco eficaz; bem pelo contrário, sem crise as frun!Jias difi- /i/Jf:, ,.
. · cilmente alcançam uma mudança estrutural. ~ ;}1\s.mtomat1co.

jf~k N~.»t.e proceSS() d.<:§eJ,:g:ãsi:.ampliação, podem desempenhflt_lJl!l


:jhpel importante a história pessoal do paciente identificado e/ou as
A questão da formação do sintoma e do processo de designação do
Forn1ação
paciente identificado é, sem sombra de dúvida, uma questão complexa
~~~ç:õésdÕsisteiua em. @e gX!, ,se insere: ~om efeito, há expecta-
do siotomll :·~.~vas, medos, rece10s, angustias, hab1tos, trad1çoes que podem facilitar
para a própria sistémica. Por isso, e mesmo correndo o risco de parcial-
:J~'selecção aleatória de um comportamento que, depois, se tomará sin-
mente nos repetirmos, vamos voltar a reequacioná-la, dirigindo especi-
;~tomático. O facto de, no momento da consulta, constatarmos que o sin-
ficamente a nossa atenção para o processo de formação e desenvolvi-
~J9ma desempenha um função e tem um valor no sistema considerado
mento sintomáticos. .!'~o significa que foi essa função que o criou. Inicialmente ele seria um
A primeira tentação que corremos, neste processo explicativo, é
'1,!~tre muitos comportamentos. A sua selecção é que o fará entrar no
considerar que o sintoma vem preencher uma detegninada funç~o
i,mogo relacional do sistema. Como diz Ausloos (idem, 137-138):
familiar, neçessária à sua própria sobrevivência. ErÍquarÍtomensagem,
m~:Quando um comportamento sintomático substitui uma função Cristali.ração-
e]!; trãnsfom:;'ã-se num sinal de disfuncionamento que urge identificar '_''0{1--- ,
-pato!ogiwçãu
;:~_?_µieça
a entrar nas modalidades organizacionais do sistema e a par-
e corrigir para, ultrapassada a necessidade interna que lhe deu origem,
f9,ipar na economia pessoal do sujeito que se torna assim paciente-
ele próprio poder desaparecer. Desta forma, a cada tipo de problema ou
~,i~entificado. Passamos a um segundo estádio que denomino de pro-
disfunção familiar corresponderia um sintoma particular. Esta foi,
1,sso de 'cristalização-patologização'. De facto, num dado momento,
;1·~···.
f
; '
'}:
'':~
i'..JC'I)CJIL:m'1C•11 li' -:i:; - - ,_
~00 - '"- -- w- llU bü ~ l.Jü· ·LiJ! ~
246
Lij
~''" ID -~ li.li !.ili t:.Jli ~ ta 1:.1 13 w
247
(Des)Equilíbrios familiares (Des)Equilíbrios familiares

o comportamento seleccionado e ampliado cristaliza-se, começa a


tomar-se um hábito e a fazer parte da vida do sujeito, a ser o meio pelo A observação de diversas situações sintomáticas tem-nos feito
qual o identificam no sistema. ( ... ) Portanto, não ·são os mecanismos compreeender que não há tipos particulares de famílias que correspon-
homeostáticos do sistema que seleccionaram o sintoma e o paciente- dam a sintomas específicos. O que encontramos são alguns mecanis-
-identificado mas um comportamento aleatório do sujeito que foi mos básicos do funcionamento familiar e individua] que, quando per-
ampliado e seleccionado ao ponto de se tomar parte integrante do fun- turbados, viciados ou desviados do seu sentido, abrem a porta a per-
cionamento homeostático". Nnma lógica de cibernética de _seg_unda turbações diversas. ParaAusloos (1996, 141) "o que faz com que, para
ordem vemos, então, que o sintoma não comporta um valor intrínseco um ou mais membros da família, a saída seja a toxicodependência, a
fundamental e que o mais importante são os discursos que-a-seu depressão, a anorexia, a psicose, as alterações do comportamento, etc.,
propósito podem ser criados. Desde logo pelo terapeuta que, com"t>ase depende bem mais do contexto e dos acontecimentos, e provavehnente
nos seus modelos e na sua história pessoal, pensa quais são as funções do terreno biológico, do que da dinâmica própria da família. Por con-
que são problemáticas para a família em análise e, consequentemente texto entendo aqui o estatuto social, o meio cultural, o ambiente ime-
interpreta o sintoma como sinal de perturbação de uma ou mai; 1 diato, as influências do meio escolar ou profissional, etc. Por aconte-
funções necessárias à sobrevivência familiar. Depois pela fiunília que cimento entendo os tempos fortes da vida familiar (nascimentos, fale-
tem como tarefa coordenar finalidades familiares com finalidades indi- cimentos, emigração, mudança de casa, ruptura, desemprego, falência,
viduais, por vezes incompatíveis no momento de aparecimento do sin- acidente, etc.), os percursos individuais de cada um dos membros, o
lugar na fratria, a influência do grupo de amigos, etc.".
toma ou no momento em que o sistema bloqueou o seu próprio proces-
so de desenvolvimento. A tarefa que se coloca ao sistema terapêutico"'
é, então, a de poder identificar o que causa mal-estar e sofrimento à É neste sentido que a leitura do sistema familiar à luz de dois eixos
família e co-construir um processo de interacção que leve .ao.alcanc_e básicos - o eixo sincrónico ou do espaço e o eixo diacrónico ou do tem- Ei:i.:os de leitura
do sistema

de um novo equilíbrio. Por outras palavras, o que é fundamental é cria; · po - se nos afigura importante pela articulação que faz de dois vectores familiar

um quadro em que possa activarcse o funcionamento_ f<traj_li!!Lill!~.le fundamentais do desenvolvimento do referido sistema (F ontaine, in
Benoit et ai., 1988, 209-214).
encontrava temporariamente bloqueado para que a famíliaJJossa 11ti:
lizar as suas competências de modo a surgir o imprevisíveL __ Q eixo sü1crónico reporta-nos ao espaço familiar, ao espaço rela-
É importante acentuarmos que este processo de sel~~ção-amplia­ cional da família. Neste espaço de âmbito relacional jogam-se, perma- Eixo sincróuico
~ ~
$, nentemente, OS Il!cOVimentos de_ individua]iz'1\'ãO de:soeializ<içli,S'dos _
~~
ção-cristalização não é apenas feito pela família mas pode sê-lo igual-
mente por outros sistemas com os quais o P.I. e a família interagem de - diferentes elementos que constituem a família. o__ eix.o sincrónico nla-
forma mais ou menos directa. É nesse sentido que em situações como :ljinifesta-se, assim, na estrutura da família, nas relações entreos seus ele-
. l'f•mentos, na distribuição do poder e na organização hierárquica, nas for-
a_ delinquência ou as famílias multiproblemáticas, p.e., o papel dos
·i: illãs decomunicação que escolheram para interagir, nas alianças que
serviços se toma fundamental e tem que s~-equacionado no contexto
.!~~efocem com outros elementos e na forma como estão definidos. os
Q.<:~'.IXS'.f~Jac_Í?ga1
de um equilíbrio inter-sistémico que importa compreender e sobre o
qual nos debruçaremos mais adiante. •l.\'-limites entre sub-sistemas e entre indivíduos"'.
. _, pois, ao terreno onde se desenvolvem e perpetuam os
lv•padrões transaccionais característicos da família. A forma como se é

zsJ Relembremos que o sistema terapêutico é constituído pelos terapeutas e pela


família 254

Uma análise mais detalhada destes conceitos foi feita no ponto 2 do capítulo 1.
248 249
""""C"=--c:-::---c--c;-~-:--~~~~
(Des)Equilíbrios familiares (Des )Equilíbrios familiares

mãe (mais protectora, mais distante, mais autoritária, mais compa- 255

nheira, mais confidente, etc.) difere de indivíduo para indivíduo e de como vimos , uma ruptura processual e exige uma reestruturação
relacional.
família para família. O mesmo acontece relativamente ao papel de pai,
de filho, de avô ou de avó. Todos estes papéis familiares são assumi-
dos diferenciadamente consoante o indivíduo, a estrutura familiar e Entre os mecanismos :fundamentais de que acima falámos, respon-
.'\lecauisuios
sáveis pelas possibilidades de desenvolvimento ou de bloqueio fami-
outros factores contextuais. intergernciom
liar, o processo de autonomia e separação, os segredos familiares e a básicos
Pudemos ver, quando falámos do seu desenvolvimento, que o sis-
gestão do controlo relacional parecem assumir nm lugar de destaque.
j: tema familiar vai experimentando movimentos de abertura e fecho
A flexibilidade e a auto-estima individuais e _familiares assumem-se
face ao meio exterior consoante as necessidades dos seus indivíduos e
a etapa do ciclo vital em que a família se encontra. Se no casal recém- como um pano de fundo que, recursivamente, alimenta aqueles proces-
sos e é por eles alimentado.
-formado domina um movimento de fecho, para que o mesmo possa
criar as suas regras e modelo de funcionamento, na família com filhos Com efeito, a flexibilid.ade é, em todos os sectores da vida pessoal
e familiar, um garante e um indicador de saúde e de funcionalidade.
na escola há um movimento de abertura do sistema familiar à comu-
Pelo contrário, a rigidez dificulta o próprio evoluir, ao abrir as portas
nidade, à escola e ao grupo de amigos da criança, necessário à boa inte-
para que toda a crise seja transfürmada em risco de bloqueio e, conse-
gração deste elemento na esfera social. Como é óbvio, esta aproxi-
quentemente, aumente o sofrimento e o mal-estar daqueles que
mação de um elemento ao meio extra-familiar arrasta movimentos
envolve. No próprio desenvolvimento do processo de intervenção, téc-
semelhantes nos restantes elementos da família.
nicos e família têm que.ter flexibilidade de forma a poderem abrir-se
Eixo Jía~róni~o O ~ixo_dfocróni~ci é definido como o eixo do tempo familiar. É um
às perturbações necessárias à acoplagem terapêutica e, naturalmente,
tempo- eminentem~nte histórico, pontuado pelos acontecimentos do
às mudanças necessárias, se bem que aleatórias e imprevisíveis.
quotidiano, pelas etapas do desenvolvimento e pela história das ge-
A auto-estima constitui nm elemento igualmente significativo
rações. Desta forma, assumem-se corno elementos importantes os
para o desenvolvimento pessoal e inter-pessoal: todos sabemos que
mitos, as lealdades, as dívidas, os legados e as delegações familiares,
uma auto-estima elevada constitui um importante nutriente para o
assim como acontecimentos relevantes da existência tais como aci-
sujeito que, sentindo-se amado pelos outros, consegue gostar de si e ter
dentes, doenças graves, etc. No eixo diacrónico articulam-se, perma-
a confiança básica necessária ao seu crescimento e à exploração do
nentemente, movimentos de evolução e de conservação do sistema
··mundo que o rodeia. Como teremos oportunidade de referir, uma auto-
familiar, respectivamente possibilitados por mudanças de 2ª ordem e
por mudanças de 1ª ordem.
~estima baixa está geralmente associada a situações de grave sofri-
mento individual e familiar, potenciando quotidianos familiares difí-
Entre os dois eixos existe uma permanente interacção que articu-
ceis, bem visíveis nos casos de violência familiar ou nas famílias mul-
la os diferentes contextos relacionais da vida da família com o seu tiproblemáticas.
próprio desenvolvimento e com a continuidade transgeracional. À
medida que o tempo vai passando as relações familiares vão-se orga-
A autonomia ea individualidade são, como já diversas vezes afir-
nizando diferentemente: o jovem casal que criou o seu modelo de'
interacção (eixo sincrónico) vai ter que abrir-se a um novo estatuto e a
n,t~l)los,
vafores privilegiados pela nossa sociedade actual. Sabemos Au1,mo1uia,
-'i~paraç5u

claramente que a autonomia conquista-se a partir da vivência de


novas funções quando nasce o primeiro filho (eixo diacrónico). Nesta
boa dependência relacional: como diz Winnicott (in Ferrari,
articulação espaço-tempo, a crise surge como uma flutuação mais
ampla na mudança contínua que traduz a vida do sistema. Introduz, 5
i $ Vidé ponto 5 do capítulo 1.
,,,~,--,,,~---,, /--

·~ ····~···... M liJ··. (~ 6} --&: ~· ·~ ~. l~ n:_)ff


1
~-~;
.,
(_;_,dj
t--~: t::'.iii !;;;{~: ·1.=. t.:2· -t.:::11 - ~J:i1r-
250 251
(Des)Equilíbrios familiares / -- (Des)Equilíbrios familiares -

1990), a dependência total em que, inicialmente, vive a díade mãe-


-bebé é necessária ao saudável desenvolvimento deste último; com 0 . rnento do sistema familiar e que diz respeito à gestão do controlo rela-
correr dos meses esta ligação fusional vai dando lugar ao aparecimen- cional. Numa sociedade que durante séculos viveu sob o primado do
to progressivo de uma dependência parcial, correlativa da autonomia absolutismo e, depois, do autoritarismo e en1 que as experiências de
que aquele bebé, mais tarde criança, depois adolescente e, finalmente democracia nem sempre têm sido muito consistentes} a questão do
adulto, vai conquistá:ndo. Este acesso à separação e_ à aut9n91}l_i_a é, se~ .controlo, da definição e imposição de regras relacionais claras e da sua
dúvida, intrinsecamente relacional, pelo que facilmente co~preen­ · negociação não é fácil. O medo de ser demasiado autoritário, de privar
demos que toda a dependência é, verdadeiramente, uma co-dependên- o outro de uma liberdade que lhe é fundamenta] e de, por isso mesmo,
0
cia e toda a separação se tece num contexto co-evolutivo. Ditô.de outra "tral!matizar'', por um lado, e a certeza de que há regras que têm de
forma, numa família, a dependência é de todos relativmnl'.111:~os, ser impostas desde cedo para prevenir futuros abusos, por outro lado,
mesmo quando ela parece apenas apanágio de um eleme!l_to ou de uma-., fazem com que os sujeitos e as famílias balancem, muitas vezes, numa
díade. Paralelamente, a separação implica movimentos ·a:;;;ep-;;;;ção' ambiguidade que é resolvida por um excesso de permissividade ou por
dos vários elementos entre si, mesmo quando somente alguns deles um excesso de controlo ou, pior ainda, por uma enorme incoerência
parecem reclamá-la ou dela necessitar. Toda esta movimentação exige educativa. A problemática da co-dependência e as vicissitudes desse
re-arranjos estruturais nem sempre vivenciados de forma tranquila e processo constituem dificuldades adicionais que, de novo, facilitam o
processo de selecção-ampliação-cristalização de um comportamento
criativa pela família: como já tivemos oportunidade de referir, é nestas
ocasiões que a crise se transforma em risco e o sistema bloqueia o seu que se toma sihtoma. Como diz Ausloos (1996, 145): "A ruptura con-
desenvolvimento. Num mundo em que a disponibilidade temporal é duz igualmente a uma passagem brutal de uma situação onde se é con-
cada vez mais diminuta, em que o investimento profissional é cada vez trolado pelo funcionamento ciânico, por regras familiares, pela soli-
dariedade, a uma situação de anomia, isto é, de ausência de leis, de
mais solicitado e exigente e em que o conhecimento da importãncia da
regras, de controlo, nas quais as regras do meio vêm subsÍituir-se às
vinculação é generalizado, as famílias vêem-se frequentemente presas
de um double-bind'" que facilita o processo de selecção-ampliação e r~gfas do clã. Pode-se dizer que o al9oolismo e a toxicomania são
àõenças do controlo, de um excesso de controlo no funcionamento
cristalização de comportamentos que, a partir daí, alimentam jogos de
ciânico da criança, de uma aparente ausência de controlo no funciona-
excessiva dependência mútua e põem em risco não só a vida de alguns
n1ento adulto solitário. Na Ce>cdependência, há sempre uma doença do
dos seus elementos como do próprio sistema familiar na sua totalidade.
CQ.J1trÕlo, com um excesso de controlo em certos domínios e uma insu-
A toxicodependência ou a violência familiar são apenas dois exemplos
ficiência de controlo noutros. Não é portanto surpreendente que se
que analisaremos seguidamente.
encontrem, nas famílias de um alcoólico ou de um toxicómano, outros
membros da família que apresentam igualmente uma patologia do con-
trolo co~o a anorexia, que é o excesso, ou a obesidade, que é a falta".
C011trolo Em estreita articulação com o processo que acabámos de referir
é~ ~ma
re!aci"oa!
está um outro mecanismo igualmente fundamental para o desenvolvi-
fdclffi(]iiência situação em que as· incoerências do controlo,
,_, Double-bind traduzido em algo do tipo: "preciso de dar mais atenção à família,
6
à!iãaas a questões de CD-dependência, bloqueiam a capacidade auto-
·Curativa e auto-organizativa dos sistemas . familiares: "o adolescente
nomeadamente aos filhos, mas se a dou 'perco o comboio' do meu emprego e se o
perder isso ameaça a minha estabilidade emocional e/ou económica e, então, ainda
. . delinquente é um adolescente que saiu pela janela e que não pôde levar
terei menos disponibilidade para a família; mas se não dou essa atenção culpar-me-ei bagagens; é, portanto, importante que ele possa voltar para casa,
toda a vida por não lhes ter potenciado LUUa relação vital para o seu crescimento e serei \agarre as bagagens e saia pela porta" (idem, 144).
rejeitado(a) por eles e pela sociedade que me qualifica de mau pai ou má mãe".
252
(Des )Equilíbrios familiares

1
Segredos Abordando, fmalmente, a questão do segredo familiar diríamos
que em todas as famílias há sempre um qualquer segredo e que isso Família com P.I. toxicodependente
não constitui, necessariamente, uma ameaça à integridade e desen-
volvimento familiares. É a natureza e a estagnação relacional que os
segredos produzem que determina o seu valor disfüncional. O grande
risco do segredo, e o seu valor desequilibrador, está na injunção para-
doxal de que muitas vezes se acompanham e que poderíamos traduzir
do seguinte modo: "é proibido saber e é proibido esquecer". O para-
doxo paraliza a mentalização e o acting pode constituir a única saída.
Reportando-se a uma investigação conduzida por Levant, Ausloos
(1996, 142) refere que "72% das famílias de heroinómanos tinham
segredos transgeracionais e 58% segredos intrageracionais". E acres-
centa, relativamente à delinquência, que os segredos são um meio
propício ao seu desenvolvimento: "Um acting-out é uma forma de re-
presentar ou de encenar (to act) no exterior (out) o que não pode ser O consumo de drogas tem acompanhado o homem em todas as
dito ou comunicado no interior da família". É neste contexto, portan- civilizações. Com elas ele tem procurado "um outro estado mental"
to, que a família tem que aceitar falar dos seus segredos para deles (Benoit, 1997), uma estimulação dos processos imaginativos que lhe
poder libertar-se ... permita criar as ilusões de que sente que tem necessidade ou que lhe
possibilite a aventura de tentar descobrir o que está para além do co-
A vida da família é, então, uma co-construção de equilíbrios pre- nhecido, Ou, ainda, que lhe facilite a foga, mesmo que mágica e tem-
sentes, passados e projectados, pontuados por desequilíbrios que (íiõràl, de vivências que lhe provocam dor, sofrimento, incómodo ou
podem oferecer-se como propostas viáveis para a sua organização, per- \..._fill!\ÚStia. Hoje em dia o que mais nos preocupa é a massificação do
mitindo proceder aos respectivos re-arranjos estruturais, ou como :,fenómeno, a precocidade do consumo, a elevada taxa de morbilidade e
ameaças a essa mesma organização, bloqueando o seu crescimento e \de mortalidade que o acompanham, a dimensão macro-económica e
coarctando a sua necessária complexificação. É desse processo que ire- . ·consumista"' do mesmo e a falta de controlo de um processo que, por
mos falar nas quatro situações que escolhemos para analisar: famI1ia
com P.I. toxicodependente, família com P.I. delinquente:--família com
I •!isso mesmo, parece não conhecer regras nem fronteiras. Na ausência
>··de outros ritos iniciáticos, o consumo de drogas aparece, cada vez
1 • mais, como forma de iniciação e de aceitação grupal, por vezes tam-
P.I. violento e violência familiar e família multiproblemática.
l '· bém como tentativa de (pseudo )afirmação de uma contra-atitude, de
1.. um contra-valor e de uma contra-relação familiares, outras vezes como
. resultado de uma incapacidade de dizer não. Em sujeitos mais velhos,

~
7

É importante não esquecer que a dimensão consumista está em estreita articu-


com a metáfora pós-moderna que, contrariamente à da era rnodema, já não é a
produção mas a do consumo. Como afirma Linares (1997, 25), "a rnetáfora do con-
inspira as grandes perturbações pós-modernas: as toxicodependências e a
l ·f~iinci.foxia e a bulimia".
N-",.•
')(J.b•tJ< .... .:t""'bJ'.·~··J.t.-. . LiJ Ü>J w w w w w 00 w 00 -w i.:tl.' w w· i.ru uJ
255
254 \ , (Des)Equilíbrios familiares
(Des)Equilíbrios familiares

25 Antes de procedermos a uma revisão da literatura e de reelaborar-


em que o consumo se inicia já depois de passados os vinte anos s, 0 mos as nossas pró_prias formulações, consideramos importante clari-
comportamento aditivo parece ter uma função de obscurecimento da ficar, uma vez mais, que toda a tentativa de sistematização realizada
crise vivida e de anestesia da dor psíquica dela decorrente. Numa neste domínio não nos autoriza a falar de um perfil do toxicodepen-
história aparentemente sem dificuldades ou vulnerabilidades significa- dente ou da família com P.I. toxicodependente. Como adiante veremos,
tivas, o sujeito parece ter conseguido equilibrar o seu percurso indi- podemos, apenas, identificar um conjunto de redundâncias que, em
vidual, familiar e social até que um dia bloqueia a sua capacidade auto- função das suas articulações e das singularidades do(s) sistema(s) em
-organizativa bem como a dos contextos em que se insere. Na essên- análise, nos podem auxiliar na tentativa de compreensão do sofrimen-
cia, o significado individual da toxicodependência poderá não ser sig- to presente e das possibilidades de perturbação neeessárias à mudança
nificativamente diferente nas várias idades em que a mesma se instala. do(s) referido(s) sistema(s). Por outras palavras, as regularidades
No entanto, os processos de selecção e de perpetuação do comporta- encontradas não nos podem fazer esquecer que a capacidade auto-
mento sintomático parecem ser diferentes, exigindo posturas e confi- -organizativa do sistema pode configurar diversamente, em cada sis-
gurações terapêuticas diversas. tema e em tempos diferentes do mesmo sistema, o feed-back prove-
No estudo da toxicodependência, consoante o modelo teórico dos
niente do seu interior ou do exterior, i.é, resultante das suas próprias
clínicos/investigadores259 , a tónica tem sido, essencialmente, posta: 1) características, das vulnerabilidades e dos factores· de risco a que pode
no indivíduo toxicodependente, nomeadamente na sua dimensão intra- estar sujeito.
-psíquica, alargando-se, muitas vezes, o estudo às relações que o Se não cairmos no risco de querer simplificar o complexo,
mesmo mantém com as figuras significativas (particularmente os pais podemos, assim o pensamos, retirar vantagens do conhecimento dos
e os pares), ou 2) no sistema familiar considerado no seu todo, com par- estudos a que genericamente vamos aludir. Por isso, convidamos o
ticular incidência no estudo da família nuclear ou na investigação trans- leitor a acompanhar-nos nessa revisão.
geracional. A perspectiva integradora, que hoje motiva muitos dos
clínicos, mobiliza-nos no sentido de compreendermos, simultanea- Na relação com o toxicodependente 261 experienciamos, muitas
mente, o que se passa no sistema família(s) e no sistema indivíduo(s)'"".
vezes, uma ambivalência de sentimentos que oscilam entre a empatia
e o desejo de ajuda, por um lado, e a irritação e o desânimo, por outro

Encontramos, nestes casos, uma quase ausência de história de consumos estas parecem-nos ser lentes que não podemos ignorar; nas restantes situações ana-
258
prévios. Eventualmente, o sujeito consumiu esporadicamente, na sua adolescência, lisadas, com PJ. delinquente, violento e famílias multiproblemáticas, a dimensão inter-
drogasi> leves. _-sistémica dos sintomas e das intervenções leva-nos a privilegiar as lentes sistémicas.
9
Entre a literatura existente podemos encontrar, por um lado, os trabalhos que Finalmente, porque muito do saber acumulado nesta área é transponível para outras
resultam da experiência clínica dos seus autores ou aqueles em que a pesquisa é con- situações sintomáticas. Com efeito, há mecanismos que são básicos, independente-
duzida num setting terapêutico e com objectivos clínicos e, por outro lado, as investi- dos sintomas seleccionados e amplificados pelo seu portador e pelo seu meio.
gações empíricas realizadas com amostras mais ou n1enos expressivas e recolhidas, i
61
A grande 1naioria da população toxicodependente é do sexo masculíno, razão
essencialmente, em meio escolar- qual nos referiremos genericamente ao PJ. masculino. Por outro lado, e apesar de
260 Contrariamente às restantes situações analisadas, daremos algum realce à
ns clínicos considerarem a necessidade de se equacionar a "toxicodependência no
análise da compreensão psicanalítica do toxicodependente por três razões fundamen- f,.m; .... ;no", pelo sentimento de que há alguma singularidade nas relações entre a P.L e
tais. Desde logo porque ela faz parte da história da nossa própria formação e prática "!--' e a P.L e o pai, a verdade é que muitos estudos não confirmam a existência de
clínica, constituindo, assim, um background que perpassa permanentemente a nossa :!~i diferenças significativas entre os dois sexos (Harbin e Maziar, 1975). Este é, no entan-
reflexão. Em seguida porque muitos dos contextos de intervenção clínica, na toxico- um domínio em que urge mais alguma investigação.
dependência, passam pela relação individual com o toxicodependente e, dessa fonna,
256
(Des)Equilíbrios familiares

lado. A negatividade dos afectos é habitualmente despoletada pela A perda de um dos progenitores, por morte ou separação, é uma Pcn.la(s),
morte e lmo(s)
culdade que o toxicodependente tem .em, ultrapassado um período ·in1... :tatação frequente em diversas investigações (entre outros, Amaral
. .
c1al de namoro 262 , aceitar o estabelecimento de :ima relação vinculatí~ • s, 1980, Coleman, Kaplan e Downing, 1986, Fleming, 1995,
va (simultaneamente _geradora de protecção/ace1tação e de frustração/ bin e Maziar, 1975, Stanton, 1977, 1979). Na clínica, temos obser-
/exploração) e pelo tipo de defesas que utiliza para manter a superfi- do 0 valor causal que o toxicodependente, ou os seus familiares,
cialidade relacional que lhe dá a ilusão de independência. Este registo ,hlbuem a este facto, associando-o a aspectos tais como: dificuldades
defensivo cons11bstancia-se, muito frequentemente, na-. interrupção exercício do papel parental por parte do progenitor "sobrevivente";
temporária ou definitiva, do processo terapêutico, no jogo da indefini'. :;~rturbação do processo identificatório, nomeadamente quando o
ção da relação (marcado pela desconfirmação da afirmação anterior) ·eito é do mesmo sexo do progenitor "desaparecido"; perpetuação de
no esgrimir, mais ou menos permanente, da arrogância e do desprez~ luto patológico, de dimensão individual ou até familiar. Esta
pelas relações interpessoais, na negação dos afectos, positivos ou ne- tribuição é, por vezes, tão poderosa que bloqueia a abordagem de ou-
gativos. Todas estas defesas protegem-no, qual carapaça, da sua pró- .:os temas bem como a capacidade de mobilização das potencialidades
pria fragilidade psicológica, iludida, a seus olhos, por uma forte tonali- de mudança do(s) sistema(s) envolvido(s). O próprio técnico pode
dade narcísica que faz dele "o maior, capaz de controlar todas as situa- deixar-se aprisionar pelo valor explicativo deste acontecimento
ções, inclusivamente as do próprio consumo" e que o "cega face à sua .!traumático, dificultando assim o processo de desconstrução de uma
própria psicopatologia" (Fleming, 1995). ~::·;ealidade que, não deixando de ser real, não se revela como potencia-
':) dora da mudança pretendida.
' _,,,_
O olhar intra-psíquico tem, sobretudo, compreendido a referida ~;i_;;i.' .
fragilidade psíquica à luz de déficites relacionais mais ou menos pre- --~~:::-- A morte é, com efeito, um tema frequentemente recorrente na
coces (relativos às figuras principais de vinculação, materna e pater• ·.:f história de vida do toxicodependente, quer pela via da sua ocorrência
na), pontuados por histórias de significativas perdas reais ou ima- ~!:reaF" quer pela dimensão do desejo que perpassa o próprio vivido
ginárias, de indisponibilidades identificatórias ou de contaminações
transgeracionais263 •
t:("apreciação e aprovação irrealista do seu valor e da sua importância porque a sua falsa
:.'.,· 'ãuto-estin1a tem de ser mantida à custa do alimento narcísico. Poderíamos dizer que
M,iReferimo-nos, naturalmente, ao início do processo terapêutico. }:_·_~-estas crianças não correram riscos passivos, no sentido em que não foram exposta':l aos
263É in1portante salientar que, por vezes, a anamnese do toxicodependente mostra- \~;';.factores de risco habitualmente descritos na literatura( ... ). A derrocada surge normal-
-se aparentemente U1npa de factores vulnerabilizantes e é o próprio cliente que afmna: .:..> mente associada a perturbações do comportamento ou a comportamentos aditivos e
"Tive uma infância felíz. Os meus pais, os meus avós, davam-me tudo o que desejava ;\_muitas vezes na sequência de um pequeno nada( ... ) Um profundo vazio, o sentimen-
e sem ter que pedir... sempre fui muito mimado e admirado, não percebo como é que ,: to de desvalorização ou de indignidade inunda então o self .. e a raiva e o desespero
isto agora me pode acontecer a mim!" (Fleming, 1995, 20). Podemos compreender que \,:;preenchem a sensação de vazio: alguém ou o mundo cometeu wna profllnda injustiça
este "escudo de protecção gerado à volta da criança se, por um lado, evita os perigos ';--para com ele que tem de ser rapidamente reparada! Procuram novos objectos ideais
da realidade externa também pode asfixiar ou criar um meio artificial onde a criança restaurem a harmonia interna, construída na grandiosidade infantil e que se encon-
não aprende, pela experiência, a lidar com situações de perigo ou conflito. A super- despedaçada. Neste contexto, o encontro e a descoberta dos efeitos poderosos e
-apreciação gera um escudo narcísico que não favorece o desenvolvimento dum narci- '-~:'filágicos do tóxico podem satisfazer de imediato o desequilíbrio e reparar o dano nar-
sismo normal. .. " (idem, 20). Sistematicamente "elogiadas e admiradas, mesmo quando císico" (idem, 21).
cometiam faltas graves, estas crianças, a quem o espelho do olhar do outro sempre ,..,.. É frequente encontrarmos, na história de vida de muitos toxicodependentes,
devolveu uma imagem de ser grandioso, desenvolveram uma auto-admiração acrítica significativas não só ao nível da família nuclear (pais, irmãos) como ao nível
que se transforma numa fonte exclusiva de auto-estirna. Vivem na dependência duma fan1ília alargada (avós, tios, etc.). Angel e colaboradores (1982, 54) referem ter
\ . •). l\d~ :~a; li.d:/ ··d:.·• LaJ "
·U;r w Ü:ll bÜ Lb w ld lÜ w w üj·· w UlJ lu dl
258
(Dcs )Equilíbrios familiares

familiar. Stanton (1977) refere que o desejo de morte se observa em manifestação, explícita ou implícita, de um comportamento paradoxal
muitas destas famílias e considera a morte do toxicodependente como que poderíamos traduzir da seguinte forma: "estamos (família) aqui
um fenómeno suicidário de base familiar. A sua morte é, então, vista para te ajudar" ou "estou aqui (P.I.) para resolver o meu problema e
como nobre, constituindo-se corno um sacrifício purificador em que 0 não vos magoar mais" mas "não podemos (todos) fazer nada dife-
toxicodependente se revela um solícito participante. Também rente"; "estamos aqui todos (família e P.I.) para que nos ajude (tera-
Sternschuss-Angel e colaboradores (1982, 42) referem esta dimensão penta) mas nós somos os únicos a definir as regras".
sacrificial do toxicodependente que, enquanto "culpado auto-consenti-
do" expia, para além da sua, a culpa familiar. Sublinhando a dimensão N'a compreensão da realidade intra-psíquica do toxicodependente, Perturbações

transgeracional do problema que é delegado no P.l. e que faz dele um o modelo psicanalítico tem também acentuado, como já referimos, a irlentificatória~
bode expiatório auto-consentido, os autores afirmam que "a perspecti- importãncia das perturbações identificatórias, fundamentalmente asso-
va transgeracional da delegação é determinada, em muitos toxicode- ciadas à ausência/demissão de um dos progenitores, ao sobreenvolvi-
pendentes, pela delegação de uma propensão crónica para a auto- mento e superprotecção do outro progenitor e/ou à patologia de um ou
-destruição que se desenvolveu durante várias gerações e que se revela de ambos"'. Autores como Amaral Dias (1980) e Bergeret (1980) su-
actualrnente de forma radical" (idem, 40). Coleman e colaboradores blinharam a importância do déficite de internalização da imago pater-
(1986), comparando três amostras (de heroinómanos, de doentes na267, muitas vezes acompanhado por uma relação fusional-conflitual
psiquiátricos e de estudantes sem patologia), verificaram que os toxi- com a figura materna2611 e inscrito num quadro educativo e relacional
codependentes tinham urna maior orientação para a morte e eram mais
suicidários, ao mesmo tempo que também tinham tido um maior
iM A maior frequência de dependência química ao nível das várias gerações
número de experiências, precoces e bizarras, de morte. (nomeadamente do álcool entre os homens) e de unia propensão para outros "compor-
Na relação do toxicodependente, e da sua família, com a morte há tamentos aditivos" (tais como jogos de azar ou dependência face à televisão) são
uma dimensão auto e hetero-agressiva e uma vertente de jogo e de aspectos referidos por Stanton (1979). l)e acordo com Sternschuss-Angel, Angel e
desafio negado que nos toca e, muitas vezes, nos fere: o risco de morte Geberowicz (1982), n1uitos progenitores apresentam problemas psicopatológicos:
é real mas é iludido, muitas vezes negado por uma cegueira familiar estados depressivos, com ou sem tentativas de suicídio, alcoolis1110, toxicodependên-
cia, neuroses graves. Alguns dos progenitores evidenciam perturbações somáticas se-
confrangedora ou equacionado num registo de delegação da gestão da
veras. Os autores falam, mesmo, de uma sintomatologia suicidária na família alarga-
vida (inter)pessoal ao próprio destino"'. Sentimos esta agressividade na da, de um excessivo consun10 de psicotropos nos pais e de um comportamento de
automedicação. Na fratria surgem, frequentemente, comportamentos de maior ou
observado uma nítida correlação entre a morte dos avós, a depressão dos pais e a to- menor consumo, delinquência, suicídio e perturbações do comportamento alimentar.
xicodependência dos jovens. Por vezes, a sítuação de morte ainda não é real mas há, "''Bergeret (1980), afirma que a ausência de uma imagem paterna identificatória
por parte de alguns familiares, comportamentos que colocam seriamente em risco a pode resultar da ausência física do pai ou da carência (ou excesso) da autoridade pater-
própria vida e que têm muito da dimensão ordálica que acompanha o comportamento nal, sendo o pai vivenciado como agressor.
" É frequente observar-se, na clínica, que um dos progenitores está mais inten-
26
do toxicodependente. Reilly (1975, cit. in Flerning, 1995, 57) afirma que os pais dos
toxicodependentes sofreram, nas suas famílias de origem, importantes perdas emo- samente envolvido com o toxicodependente, enquanto o outro é mais punitivo, dis-
cionais (por morte, divórcio, fuga ou por rejeição parental, negligência, hostilidade ou tante ou ausente. Como afirmrun Stanton (1979) e Wellish, Gay e McEntee (1970), o
doença): muitas vezes, "os sentimentos e conflitos associados à perda (não) foram total progenítor mais envolvido é, geralmente, o do sexo oposto ao PJ., embora Alexander
e adequadamente resolvidos e( ...) as crianças são ( ... )tratadas como 'novas edições' e Dibb (in Stanton. 1979) tenham verificado que, por vezes, nas classes médias, pode
dos país perdidos e por essa razão parentificadas". ser o progenitor do mesmo sexo, configurando um quadro de relações fantasmatica-
265 É neste sentido que diversos autores falam de um "fantasma ordálico" que mente incestuosas para as quais Sternschuss-Angel, Angel e Geberowicz (1982, 43-
perpassa a vida do toxicodependente e da sua família. 44) também chamararn a atenção. Num quadro de forte esbatimento das fronteiras
261
260 (Des)Equilíbrios familiares
(Des)Equüíbrios familiares

dente"' e a ausência de suporte familiar para os movimentos de res-


particular. Este quadro é, fundamentalmente, marcado pela inconsis- ponsabilização adulta do P.I. m.
tência relacional, tecida com as cores da indulgência, da desqualifica-
ção, do evitamento, da dependência e, por vezes, da rigidez. As dificuldades de separação-individuaçãom constituem uma das Separa~ão­
-imlh·iúm1çiiv
características mais evidenciadas por clínicos e investigadores 274 e uma
Ao nível da disciplina, diversos estudos'" (Jurich et ai., 1985, cit.
Inconsistência das dimensões claramente referenciadas nas leituras intra-psíquica275 e
in Fleming, 1995; Alexander e Dibb, 1975) têm evidenciado uma
disciplinar
inter-sistémica, mesmo que a focalização não seja, naturalmente, a
extrema indulgência e inconsistência parental para com o toxicómano.
Oscilando27º, muitas vezes, entre um estilo laissez-faire e um estilo
271
autoritário, estes pais revelam muitas dificuldades em definir regras Na referida investigação, os autores verificaram que ambos os pais percep-
cionavam o toxicodependente como falhando em valores convencionais.
educativas claras, embora possam definir limites rígidos para certos
ni Numa outra investigação, Alexander e Dibb (1977), comparando oito famílias
comportamentos. Quando esta alternância se opera pela adopção de com PJ. toxicodependente e oito famílias sem droga, observaram que, nas primeiras,
posturas diferenciadas por parte de cada um dos progenitores a pertur- os filhos mantinham relações muito próximas com os pais. Sintetizando as diferenças
bação é muito maior, originando triângulos relacionais disfuncionais, encontradas, os autores referem que: 1) os pais dos toxicodependeiltes expressavam,
marcados, muitas vezes, por fortes coligações. Na sequência da sua acerca do filho, um baixo auto-conceito, considerando-o como muito diferente de si
próprios; questionados, os toxicodependentes também tinham, acerca de si próprios,
investigação, Alexander e Dibb (1975) sublinharam, eutão, a "inca-
um baixo auto-conceito; 2) os pais das famílias com droga, e os próprios adolescentes,
pacidade parental" para controlar o comportamento do toxicodepen- consideravam que o maior deteito dos toxicodependentes era a passividade e a de-
pendência; 3) as mães dos toxicodependentes descreviam-se como menos agradáveis
e mais passivas; 4) nas familias com P.I. toxicodependente, quando comparadas com
as famílias controlo, havia urna maior discrepância entre as percepções de pais e filho.
intergeracionais, de diversas transgressões familiares e de ausência da componente Como conclusão, os autores afirmam que os resultados validaram a observação clíni~
sexual no vivido corporal do toxicodependente, a toxicodependência pode surgir ca de que a auto-percepção das famílias com PJ. toxicodependente perpetua a toxi-
"como evitamento de um desejo incestuoso. Com efeito, toda uma série de relações codependência, pelo facto de minar a auto-estima do toxicodependente, e que, por isso
que poderiam parecer incestuosas é desviada, do seu objectivo erótico, para a droga". mesmo, é importante que a intervenção terapêutica se faça no sentido de potenciar o
Como aftrmam Harbin e Maziar (1975), no seu artigo de revisão da literatura
reenquadramento das percepções familiares.
existente sobre toxicodependentes e suas famílias, o padrão familiar mais consistente- 1
n Para a teorização do processo de separação-individuação muito contribuíram
mente encontrado é o da mãe superprotectora e indulgente e o do pai emocionalmente os trabalhos de Mahler (1967) e Blos (1967). A este propósito veja-se Alarcão (1986).
distante ou ausente. Contudo, os autores sublinham que este padrão não é patog- i
14
Apesar disso é importante salientar que também esta não é uma característica
nomónico das famílias com P.I. toxicodependente, já que o mesmo pode ser igual- patognomónica das famílias com P.I. toxicodependente. Como vimos, no início deste
mente observado em famílias com outras queixas sintoniáticas, tais como, homosse- capítulo, o processo de separação-individuação constitui um eixo fundamental de
xualidade, fobia escolar, esquizofrenia. evolução (ou de paragem) na vida do(s) indivíduo(s).
N Estes estudos inscrevem-se, tal como os que anteriormente referimos acerca da
21 ?}j Neste caso a tónica é, fundamentalmente, colocada na perpetuação da ligação

morte, numa perspectiva de cQmpreensão sistémica das relações familiares das simbiótica entre um dos progenitores (geralmente a mãe) e o toxicodependente. À
famílias com PJ. toxicodependente. Para além dos aspectos mais relacionados com o fusionalidade associa-se, geralmente, o conflito, já que a sünbiose é paradoxalmente
exercício do poder e autoridade parental, Jurich et a!. (1985, cit. in Fleming, 1995) sentida por ambos como asfixiante e insuficiente. No seu estudo, Attardo (cit. in
sublinham que, nestas famílias, pais e filhos tendem a, face a situações de stress, fazer Fleming, 1995, 63), avaliando "retrospectivamente a 'propensão para a relação sim-
um evitamento da responsabilidade, refugiando-se no consumo de álcool/drogas ou na biótica' em mães de toxicómanos, de esquizofrénicos e de adolescentes normais, em
doença física/mental. diferentes estádios de desenvolvimento dos seus filhos,( ... ) verificou que, enquanto as
Há famílias onde apenas um dos estilos educativos é predominante: o laissez-
270 'necessidades simbióticas' das mães dos adolescentes normais diminuíam progressi-
-faire ou o autoritário. Raramente se encontra "um estilo democrático que comprometa vamente, as dos -outros dois grupos mantinham-se significativamente maiores.
pais e filhos na definição e controlo das regras" (Fleming, 1995, 60).
··d.J,<'"·-----. --íi1...
---" --M

iil' w ru w··· lu lli iiír W w 00 w w iiJ w· tin iif


263
262 (Des )Equilíbrios familiares
(Des)Equilíbrios familiares

No contexto relacional descrito, caracterizado pelo sobre.envolvi·


mesma. Mas em ambas a droga é entendida como uma pseudo·sepa. mento, pela sobrepreocupação e pelo medo da perda, é natural que os
ração: num contexto de fortes dificuldades de separação individual e elementos da família vivenciem a separação e a autonomização como
familiar", o comportamento aditivo reforça a dependência do P.I. face um falta de lealdade e um ataque à união familiar. Nestas famílias, a
aos progenitores"' mas dá ao toxicodependente a ilusão de autonomia rede multipessoal de lealdades bloqueia o próprio desenvolvimento
e de independência, pela imposição de um comportamento e de um familiar e individual em virtude da existência de lealdades cindidas
tipo de vida rejeitado pelos pais, demais família e até pela sociedade. (p.e. entre o que o P.L deve à mãe, ou aos progenitores, e à família
Sob o efeito da droga, ou do vivido toxicodependente, o sujeito con· alargada) e de lealdades invisíveis (que impedem o acesso ao conhe·
segue agredir os pais, expressar os seus sentimentos negativos, sem cimento do conjunto de dívidas e de obrigações que estruturam as li·
ferir o sentimento de lealdade ou temer a rejeição, já que o seu com. gações transgeracionais). Não é, pois, de estranhar a selecção do com·
portamento é, por todos (pais, P.L, amigos, técnicos), imputado ao tó· portamento toxicodepente como justificação para movimentos que,
xico (Stanton, 1979, Stanton e Todd, 1982). sem ela, incomodariam mais o sistema familiar.
Na gestão destas dificuldades de separação, os pais e o toxicode·)
pendente tendem a organizar um padrão de afastamentos e retornos,
Relativamente à idade compreendida entre os 11 e os 16 anos, eram as mães dos to- inscrito numa teia de vinculações inseguras, a que não é alheio o com-
xicodependentes as que mantinham com os filhos os laços mais simbióticos". No portamento dos irmãos e de outros familiares. Com efeito, este padrão
mesmo sentido têm ido outras investigações (Stanton, 1979, Weidman, 1983). de vinculação insegura não se confina, geralmente, às duas gerações
(' Um dos contributos do modelo sistémico, ao considerar a família como um sis-
27 em análise: pais e toxicodependente. Como afirmam Coleman, Kaplan
tema e ao conceptualizar o seu desenvolvin1ento como um todo (cf. capítulo 2), foi
mostrar que não é apenas o elemento filial que tem que separar-se e autonomizar-se; e Downing (1986), observa·se uma transmissão geracional de compo«
idêntica tarefa têm os seus pais e irmãos (quando os há). Afinal trata-se de um proces- tamentos e relações que nos permite compreender o "encadeamento
so co-evolutivo e, como em qualquer corpo de baile, ninguém dança sozinho mesmo relacional" (Stierlin e Ravenscroft, 1972) que muitas vezes se observa
quando parece estar a fazer um solo. entre as várias gerações. Este não é um mecanismo repetitivo, subor-
Não podemos esquecer que a toxicodependência se associa, de forma signi~
277 dinado às leis da hereditariedade, mas é uma co·construção de relações
ficativa, a uma deterioração de diferentes vertentes do quotidiano do sujeito.
Geralmente com forte insucesso ou abandono escolar, o toxicodependente tem difi-
que, por vezes, maximiza as possibilidades de saturação dos arranjos
culdade em ingressar no mundo activo; quando consegue fazê-lo, os empregos são, relacionais conhecidos. É nesse sentido que a intervenção terapêutica
muitas vezes, precários, mal pagos e rotineiros o que, u1nq vez mais, fere a auto-esti- deve potenciar o encontro de novas histórias individuais e familiares.
ma do sujeito que, não raramente, acaba, de forma n1ais activa ou n1ais passiva, por Entre esses outros familiares, sem dúvida que os avós assume1n um
desempregar-se. Outras vezes o trabalho é arranjado pelos pais (ou amigos) e, nova- de destaque. Como diz Ausloos (1996, 148): "Esquecemo·nos
mente num movimento de pseudo-separação, o sujeito larga-o para ser autónorno.
demasiadas vezes de ter em conta os avós nos problemas dos adoles·
Outras vezes ainda, o equilíbrio familiar passa, como adiante veremos, pela
manutenção do toxicodependente em casa ou, pelo menos, pela sua total dependêncía centes. De facto esses avós são capazes tanto do melhor como do pior.
económica dos pais que são, então, os primeiros a racionalizar a situação profissional (... ) O pior pode vir do facto de eles não terem suportado as veleidades
dos filhos. A redução do quotidiano à procura e consumo da droga aumenta o isola- de independência dos seus filhos e que tentem compensá·las ligando·
mento sócio-profissional e repercute-se negativamente no plano afectivo, económico ·se aos seus netos numa dependência ainda mais forte. ( ... ) a regra da
e, até, cognitivo. Sentindo-se mais dependente, o toxicodependente sai para consumir; dependência, e mais precisamente da interdependência na dependên-
sentindo-o fugir, os pais vão buscá-lo e, não raramente, reforçam-lhe a dependência,
assumindo a compra das doses, partilhando as ressacas e ajudando-o a injectar-se. O
cia, pode ser verificada nas famílias de heroinómanos". Como sabe-
círculo fecha-se cada vez mais, alimentando-se recursivamente, até que a "sorte", ou mos, a importância desta terceira geração (anterior) no desenvolvi·
o real desejo de construir uma nova história, dite outro caminho.
·--------------~
265.~~~~~~~~~~·~~~·
264 (i)eajEquilíbrios familiares
(Des)Equilíbrios familiares

O emaranhamento familiar de que falamos não se traduz neces-


menta das modalidades relacionais da família nuclear foi claramente sariamente numa escultura de aglutinação ou numa presença física
expressa por Bowen ( 19 84), nomeadamente a propósito do seu con- centrípeta da totalidade dos elementos da família. É até muito fre-
ceito de "sistema emotivo familiar nuclear": presos das ligações às quente, como já anteriormente' referimos, que um dos elementos se
famílias de origem, os novos pais não conseguem realizar cabalmente
encontre remetido para a periferia do sistema familiar: geralmente o
a função interna da família que, já o dissemos, se revela fundamental elemento parental menos fusionado com o P.I. (Alexander e Dibb,
para o desenvolvimento de indivíduos autónomos. A constatação clíni- 1975; Schwartzman, 1975; Stanton e Todd, 1982). Do ponto de vista
ca destes factos, associada ao desenvolvimento do modelo sistémico
conduziu os clínicos e investigadores a centrarem a sua atenção na red~ estrutural observa-se, ainda, uma inversão da hierarquia familiar, com
o sub-sistema filial tão ou mais inf111ente do que o sub-sistema parental
relacional familiar, não só no interior da família nuclear mas também (Stanton e Todd, 1982). Nestes casos, o P.I. encontra-se parentificado,
ao nível das relações com a família alargada. assumindo um papel parental, numa clara coligação com um dos pro-
genitores (aquele com quem tem uma relação mais fusional) contra o
Na sequência do que vimos afirmando compreende-se que a
Em11ranltamc11to
outro: os elementos aliados apresentam uma grande semelhança em
família com P.L toxicodependente se apresente, emocio.nal e rela- tennos comportamentais e a coligação conduz à paralisia e ao afasta-
cionalmente, emaranhada278 • Na maior parte das vezes, o sistema fami- mento do progenitor visado (Madanes, Dukes e Harbin, 1982).
liar é marcado, no seu interior, por uma grande difusão de fronteiras,
seja entre gerações, sub-sistemas, ou indivíduos. A existência de um Estas coligações transgeracionais 21" são secretas ou negadas 28º e Tdnnguhlção
limite rígido entre a família e a comunidade social acentua a agluti- inscrevem-se, frequentemente, num quadro mais lato de alianças e co-
nação interna e traduz o medo de separação vivido pelos seus elemen- ligações e num contexto de triangulação do P.I. face ao conflito conju-
tos (Stanton e Todd, 1979). gal ou ao próprío funcionamento familiar.
Desta última triangulação os técnicos têm uma clara evidência nas
& 'Num estudo realizado com 96 toxicodependentes e seus pais, Friedman, Utada
27 habituais recaídas do toxicodependente após períodos de aparente evo-
e Morrissey (1987) tentaram avaliar, de acordo com o Modelo Circumplexo de Olson,
lução. Noutros casos, associado a uma melhoria da situação do P.I.,
a percepção que as famílias e os técnicos tinham acerca do funcionamento familiar, nas
duas categorias consideradas pelo modelo: coesão e adaptabilidade. Curiosamente, os
ocorre o aparecimento de um novo problema familiar ou de um novo
resultados foram diversos: enquanto as famílias se percepcionavarn como mais sintoma, seja ao nível do par parental seja ao nível da fratria"'.
desmembradas (nível da coesão) e como n1ais rígidas ou abertªmente estruturadas
(nível da adaptabilidade), os técnicos percebiam-nas como mais emaranhadas e como 11
~ Que podem também ser realizadas mediante coligação com um elemento da
mais estruturadas ou caóticas, respectivamente. Convém, no entanto, ressaltar que, ao geração dos avós contra um dos progenitores ou através de coligação com um dos
nível da coesão, as famílias afirmaram a existência de relações superficiais e de difi- progenitores contra um elemento da geração dos avós.
culdades de tomar decisões conjuntas (dimensão comunicacional) o que não é incom- mJ O triângulo relaciona! que está subjacente a este tipo de funcionamento foi de-
patível com o emaranhamento relacional ma.">, antes, traduz o nível conflitual que, fre- _qio-n:oifln por Haley (1981) con10 triângulo perverso. Esta forma de interacção define os
quentemente, se associa ao funcionamento fusional destas famílias. Como explicação relacionais patológicos nas famílias e nas instituições. Três características
para esta discrepância os autores apontaram os seguintes aspectos: 1) diferença das que estar presentes: 1) pelo menos duas das pessoas em causa pertencem a ge-
escalas utilizadas pelos pais e PJ. (FACES II) e pelos técnicos (Clinica! Rating Scale); 1-;:;r_,_rações diferentes; 2) a coligação entre estas duas pessoas exerce-se sobre uma terceira;
2) diferença dos níveis de análise subjacentes à avaliação perceptiva de pais e PJ., por esta coligação é negada ou activamente escondida.
um lado, e de técnicos, por outro lado (enquanto os primeiros se basearam nos com- ,, ni Muitas vezes, quando o toxicodependente está a terminar, com sucesso, um
portamentos manifestos, os segundos fizeram a sua análise com base numa avaliação P~;:programa terapêutico em comunidade, ou em ambulatório, a família é confrontada
clínica das dimensões em estudo; 3) 1naior sensibilidade dos técnicos às inconsistên- uma "nova" toxicodependência: agora de um dos irmãos. É possível que esse ele-
cias dos pais em matéria educativa.
M dJ: w ·(b !.d ··llõJl t:Jllr•' w llit w Lilí w ·ai
267
(Des)Equilíbrios familiares

que a relação conjugal é disfuncional e que o P.I. segura, triangulando,


A triangulação que envolve o par conjugal e o filho toxicodepen- um casal infeliz e em rupturam. Howe (1974) e Reilly (1984) (cit. in
dente tem sido, sem dúvida, uma das mais evidenciadas pelos dife- fleming, 1995) e Stanton (1979) referem claramente que a função da
rentes investigadores282 • Os diversos autores são unânimes em afirmar toxicodependência é proteger o laço marital, sendo os conflitos de
casal evitados pela atenção que é dada ao comportamento incompe-
mento já estivesse a consumir anteriormente de forma relativamente contida, o que lhe tente e doente do filho toxicodependente.
0
permitiu ocultar o comportamento face à família e ao emprego. Com frequência,
A observação desta dinâmica familiar e a leitura do sintoma como
irmão toxicodependente conhece a situação mas guarda relativo segredo e o "novo"
sintoma aparece num momento de reorganização familiar, com uma clara oferta de
elemento equilibrador do funcionamento familiar conduziu diversos
ameaça de recaída para o toxicodependente em tratamento. Há, neste processo, para autores a considerar a toxicodependência como uma "doença fami-
além do jogo de triangulações já referenciado, uma agressão ao nível da fratria que Jiogénica" (Ganger e Shugart, 1966). No mesmo sentido se pronuncia-
irnporta sublinhar e que se inscreve numa deficiente elaboração da inveja primária. ram Rosenberg (1971, cit. in Fleming, 1995), Stanton et ai. (1978). A
Como já referimos, estes sistemas familiares tendem a desenvolver vinculações inse- função homeostática da toxicodependência foi acentuada por autores
guras que não se constituem como uma base segura para o desenvolvimento autónomo
0 como Levine (1985, cit. in Fleming, 1995), Reilly (1975) e Weidman
dos seus elementos. Deficientemente gratifu;ados, eles não podem experienciar
papel construtivo da frustração pelo que estarão eternamente insatisfeitos e invejosos (1983). Na sua evolução, o modelo sistémico não aceita, hoje, este tipo
relativamente às qualidades positivas do objecto relacional. Para se libertarem do sen- de atribuição causal. Tenta compreender, como já anteriormente disse-
timento invejoso atacam o objecto que lhe provoca a inveja (Klein, 1981 ). Tentando mos, a forma como diversas características (nomeadamente as que
investigar o percurso social das famílias com P.1. toxicodependente, nomeadamente no temos vindo a referir) se articulam de forma a "congelar" a história da
que concerne à evolução da fratria, Defrance (1982), encontrou uma diversidade, de
família ou a libertá-la para novas configurações em que a toxicode-
situações que agrupou em duas configurações básicas: 1) a dos irmãos que, de forma
mais ou menos duradoira, tiveratn contacto com a droga e 2) a dos irmãos que se
pendência não constitua o ponto por onde passam todas as relações
tomaram adultos socialmente bem integrados, com o seu trabalho e a sua família. intra e inter-familiares.
Nesta segunda configuração, os irmãos, em situação clínica (terapia familiar), tendem
a reafirmar a sua aliança com um dos progenitores e a censurar o irmão toxicodepen- Na dinâmica das famílias com P.I. toxicodependente, os elemen- r.,..,
dente. Na primeira configuração, os irmãos orientam-se, preferencialmente, para tos do grupo de pares são, frequentemente, invocados como aliados ou
profissões "reparadoras" (p.e. medecina, psicologia, enfermagem, serviço social) ou
como inimigos, mas sempre triangulados num registo de coligação,
para profissões pouco convencionais e onde as exigências de conformismo estão
esbatidas (p.e. profissões artísticas, publicidade). "Entre as famílias que se orientam contra a toxicodependência do P.I., contra os amigos toxicodepen-
para a terapia familiar, esta configuração em que a fratria do toxicodependente atra~ dentes do P.I. ou contra a família do P.I.. Depende de quem os define
vessou períodos difíceis e escolheu este tipo de estudos ou profissões ( ...) parece fre- como amigos ou inimigos e do jogo de alianças que lhes é proposto. É
quente. Os irmãos e as irmãs estão, frequentemente, numa situação menos critica do não esquecermos que os pares são parceiros poderosos
que o P.1., pelo menos no momento em que a toxicodependência deste motiva a con-
sulta: a sua posição é intermediária entre os pais e o [toxicodependente]" (idem, 81~
82). Pela sua própria experiência pessoal (muitas vezes mediada por outras experiên-
cias terapêuticas) podem motivar o toxicodependente para um processo de mudança. :un É frequente observar-se que, face a reais ameaças de divórcio, se agrava a si-
Neste estudo, o autor sublinha que, por vezes, "um dos progenitores adere profunda- •tft:-iuação sintomática do P.L. Outras vezes, é o próprio casal que refere que não pode
mente a opções marginais e encontra no filho toxicodependente a realização ( ... ) das ; ]>divorciar-se dado que tem que cuidar desse filho que não se autonomiza e que parece
suas próprias aspirações" (idem, 79). mais do que nunca, precisa de ambos os pais, juntos. Há, ainda, situações em que
isz Convém, uma vez mais, realçar que ne1n a existência do conflito conjugal nem se separa e se reúne em função da situação do P.I .. Finalmente, nalguns casos,
a função mediadora do P.l. constituem elementos patognomónicos da família com P.l. conflito conjugal é totalmente negado, como o é o próprio sub-sistema conjugal, e
toxicodependente, já que os mesmos observam-se em diferentes situações de disfun- existe a função parental.
cionamento familiar.
268 269
(Des)Equilíbrios familiares (Des )Equilíbrios familiares

neste processo: a nível individual podem reforçar o impasse em que a to, o do desfalque provocado, há muitos a.nos, pelo avô, o das dívidas
crise se transfonnou234 ou podem potenciar a dimensão auto-curativa de jogo, o do suicídio de um familiar, o da esquizofrenia de outro ...
do P.I. e dos sistemas a que se encontra ligado'"; a nível familiar per- Enfim, um qualquer segredo (cujo conteúdo não é muito importante)
mitem, com muita frequência, quando esta dimensão não é trabalhada que alguém não conhece, ou que todos f"mgem não conhecer, constitui
as mudanças de primeira ordem, ao potenciarem o mecanismo da pro~ forte arma de paralisação da história fürniliar e, naturalmente, da
jecção que salvaguarda a manutenção do mito da família ideal'"'. evolução da família. Esta é, assim o pensamos, a razão pela qual estas
famílias tantas vezes nos paralisam, a nós também, com segredos de
Mitos Na forma como a família fixa e amplifica a sua organização em que nos querem fazer fiéis depositários.
fomífüircs
tomo dos consumos desempenham um papel importante a cegueira e
os mitos familiares. Através do mito, a família encontra um discurso unitário que con-
O paradoxo que está subjacente a parte da afirmação que acabá- fere a cada um dos seus elementos papéis rígidos, cuja definição é
mos de produzir não é mais do que o paradoxo destas famílias: apesar mutuamente aceite. De acordo com Ferreira (1963, in Stemschuss-
de todas as evidências exteriores de consumo, os pais (e por vezes os -Angel, Angel e Geberowicz, 1982), os mitos são definidos como para-
irmãos ou outros familiares) não conseguem assumir, em relação a si digmas familiares que servem para manter o status quo da família,
próprios e sobretudo em relação ao sistema familiar, que o filho(a) se entravando, assim, os seus movimentos de crescimento. Os mitos fun-
droga. Por vezes esta cegueira chega a raiar o anedótico e o fantástico, cionam para as famílias corno os mecanismos de defesa para os indi-
como naquela família em que os pais só "tiveram a confirmação de que víduos, actuando como mecanismos protectores e alicerces da con-
o filho se drogava quando o cão apareceu com uma seringa na boca e tinuidade dos vividos familiares. Nas famílias com P.I. toxicodepen-
a foi deixar aos seus pés". Esta cegueira familiar permite ao sistema dente podemos encontrar os seguintes mitos:
conter as suas flutuações dentro de um determinado limiar que não o a) Mito da harmonia familiar, segundo o qual a família é perfeita,
conduz a um ponto de bifurcação. Daí a dificuldade que sentimos em não há desentendimentos nem conflitos a não ser os motivados pelo
perturbá-lo. comportamento toxicodependente. O idílio familiar é, então, quebrado
Em estreita interligação com este comportamento está um outro este comportamento cuja responsabilidade é claramente atribuída
que o toma ainda mais efectivo e que é igualmente importante para o às "más companhias".
movimento de "congelação" de que há pouco falávamos. O segredo é b) Mito da loucura, segundo o qual a loucura ronda a família, fra-
um instrumento que a família esgrime com perícia, tanto no seu seio ando um ou outro membro, nomeadamente o toxicodependente
como na relação com o meio exterior, nomeadamente com o contexto -que assim se revela como urna expressão possível dessa ameaça.
terapêutico. Não é apenas o segredo do consumo: pode ser o da relação c) Mito da marginalidade, evidenciador de um certo fascínio e
extra-conjugal de um dos progenitores, o dos filhos fora do casamen- Compreensão familiar por essa mesma marginalidade. De acordo com
mito, o toxicodependente tem comportamentos que constituem
2 ~"Neste caso é frequente que o toxicodependente restrinja as suas relações com provocação às normas sociais e de que podem encontrar-se para-
os pares a um grupo homogéneo. passados noutros elementos da família.
is:s Pelo contTário, nestas situações, o toxicodependente alarga a sua rede, inte- d) Mito da expiação que, tal como o mito do perdão, confere ao
grando grupos de pares heterogéneos. :odependente a missão de expiar a culpabilidade familiar, para
2!\ 6 0uvimos, então, dizer que o problema são os amigos que conhecem as :fraque-
l ,-'.k'.-ª1t:ru da sua própria.
zas do toxicodependente e as exploram ou que, pelo contrário, se fartaram ou tiveram
receio e o abandonaram.
~·-M= "'ih -~b{ <li)- Ui w w w l:âl w fÔ lü w i.ü ru ···oo iü Lü lil w
271
(Des)Equilíbrios familiares
27-'-º----
(Des)Equilíbrios familiares

Não podemos deixar de pensar que, neste caso, o sintoma tinha


Conhecendo os mitos que estas famílias podem carregar, torna-se uma amplitude que claramente extravasava os muros da família nu-
mais simples compreender a dimensão paralizadora de que se clear para alcançar, também, a família alargada. Se este filão hipotéti-
revestem. Trabalhar com toxicodependentes e com as suas famílias não co nunca chegou a poder ser trabalhado com a tia (não sendo, portan-
é, sem dúvida, uma tarefa fácil. No sentido de permitirmos, ao leitor
uma integração prática de toda esta informação, sugerimos-lhe que no~ to, compreendido claramente o valor que para ela ele assumia), a ver-
dade é que a dimensão transgeracional do valor do sintoma nos pare-
acompanhe na análise da família Sousa. ceu claramente confirmada nas sessões que pudemos ter com a família.
A família Sousa era composta -pelo ptii, Américo, pela mãe, O medo da loucura chegava à família Sousa pelo lado paterno. Um
lJma família
com P. I.
Deolinda, -ambos quarentões e técnicos superiores, e pelos ·filhos. Ilda, a llmão mais-novo de Améri"co289.era esquizofrénico-_e-toda a .suei.vida tinha
toxicode- mais velha, com 23 anos. acabara o seu curso superior e saíra-de casa para mantido uma situaç·ão .de-dependência familiar: .depois da illorte ·dos pais,
penúcntc
trabalhar; Fausto, com 20 anos,. abandonara a escola depois de vários-anos oCorrida 'há alguns· anos, fOi Américo-que se encarregou .do seu-acompa-
repetidos, numead3.mente ao nível do 10° .ano; Amélia, com --15--anos,-_fre- nhamento; inuitas v_ezes dava_menos apoio à sua-piópria_família pelo facto
. quentava, sem problemas,:o 9° ano-de escolaridade.-Fausto .era: o Paélente de .ter. que cuidar deste seu :-irnião _que descompensara ·-n_o :final da- ada-·
identificado: -heroinómano desde ,os 18 :afias, ·'iniciara-se- no mu.Ilcio das Jescência~ -Hoje, -os paiS-·de Fausto'· perguntavam... se, ·frequentemente, .se
drogas com 15 anos. C.ontava já com 3 processos de .desintoxicação e- - nãO .iria:aconte_cer· algo semelhante Com. o seu filhó já que, -desde-a morte
várias tentativas de· intervenção terapêutica individual, un1as no registo cta do avô_ António (matemo), ele ':'inha.asswnindo, pontualmente,.-a.sua-pos-
·psiquiatria geral e _outras no_ da psicoterapia de orien!ação -analítici.=--o e personalidade, .funciohandü, -militas vezes, .Como se--de-uma "dupla
agregado familiar incluía, actualmente,-·a aVó matenlaê]_Ue-passara-a·viVer personalidade"- se tratasse. Não tendo a família, e-muito _particulannente
com a filha após a morte do marido, ocorrida cerca de um ano antes ·de beolinda e ·Américo, feito o luto -pela -morte de António .era, .de novo,-
termos conhecido a .família. F3.ustá..que assumia.Claramente essa.~ificuldade_, vestindo a.roupa.doj;ivô;
O peilido de .marcação de consulta foi feito pela tia ,matema,--:innã
falando como ele, comportando-se como ele,_:para grande.Perturbação da
mais velha, .e única, de·_Deolinda. Nunca podendo estar presente_nas:con- e até dos pais que se.sentiam muito fu.cómodados, ·não.só ,pelo medo
sultas, esta tia tentou,:por diversas ·vezes, interferir no processo. terapêuti~ loucura mas também ._por essa ~pres_ença. Curiosamente, a ··familia, e
co, .através de telefonemas nos quais pretendia revelar elementos do fun- nomeadamente o sub-sistema parental,. entendia que .o-tema ·não deveria
cionamento da família nuclear que não deveriam ser dado_s_a-conhecer.no .ser.abordado rias :sessões pelo ':nervoso" que isso.·poderia provocar em
contexto das sessões. Para: além -deste aspecto, a senl1ora_ tentou aiúda, Perante este, como perante-_todos os .assuntos-em que a família
através de um telefonema,_impedir um movimento de autonomização do r.: ·mostrava.alguma dificuldade em pensar e em"m~tacomunicar,:inst_alava­
P.L, ao solicitar que lhe·fosse ·ctesaconselhada-a-freqUência-de um Curso Ulll éomportamento que ton1ava difícil a entrada _da equipa terapêutica
profissional287 • Através de novo telefonema, avisou a equipa terapêutica e,6 seu ájustamento 290 ao sistemil.·.familiar:_ a família.- afivelava um sorriso
de que o processo terapêutico não teria sucesso se o mesmo-continuasse
288
a prosseguir os objectivos que se vinha propondo •

ig Já no decurso do processo terapêutico Fausto começou a frequentar um curso


7 n9 Américo tinha tido um irmão mais velho que falecera há uns anos. A seguir a
profissional, composto por uma parte curricular que esteve prestes a não conseguir si tinha o irmão de que agora falamos e, depois, uma irmã.
concluir em virtude de ter faltado ao último exame. Mediante justificação médica da 29
º Entendemos este ajustamento no sentido de umfitting entre as experiências, as
falta, pode realizá-lo posteriormente e ficar apto para a frequência do estágio, já pago, ·percepções e os sentimentos dos terapeutas, da farr1ília e de cada um dos seus elemen-
que constituía a segunda parte do referido curso. Para um conhecimento mais aprofundado desta temática recomendamos a leitura
i~~ Este telefonema coincidiu com o nlomento em que Fausto esteve prestes a não Relvas (1996a).
poder passar para o estágio por falta do referido exame.
..
------------~
272 273
(Des)Equilíbrios familiares
(Des)Equílíbrios familiares

persistente, em-perfeita- ausência. de sintonia emocionaLcom a.comuni-


cação digital; e Fausto juntava-lhe uma sonolência e apatia que todos jus- Américo. Deolinda, contudo, não tinha na Profissão uma gratificação
tificavam como consequência da medicação29 L. suficiente para- o- sentimento de perda que a transformação das funções
parentais anunciava; a sua vida-social era escassíssima-e a sua rede social
É, pois, clara a triangulação P.1.-pais-família de origem. Mas havia ~-:pessoal quase_ só composta- por familiares;-. chegados. A vida conjugal,
mais triangulações nesta família. ocultada pelo largo. exercíci9 de uma parentalidade direccionada para
duas gerações (a do~ filhos e a· dos avós) mas que agora se via cada vez
mais dispensada, não encontrava, _nem na simetria nem na complemen"-
Por·razões-· profissionaís, Américo, desde há alguns meSes~ talvez
. taridade comunicacionais, forças para se reorganizar. A distância conju-
mesmo- desde há mais de um: ano-, déslocava"'.'se. regulannente ao-::-eStran-
gá:l, entre Deolinda_ e Américo, era, com efe_ito, -grande: embora não o
geiro_. Esta sua saída, e a Subsequente illversão.do moviuiento-_centrípeto
parecesse. Os Sousa, ass~m como alguns conhecidos seus, consideravam-
que, durante. longos anos, tínhamantido com as suas famílias(de origem;
-se uma "família feliz": unida, estável; onde todos se amavam e aju-
nuclear..e de origem do cônjuge feminino),, era. vivida de forma muito
davam. A droga; q-Ue- "as más companhias" tinham-feito.entrar lá em casa,
ambivalente .. Profissionahnente justificada .era,. por um lado, emocional-
_· era o único senão. As divergências eram apagadàs _i:>or um riso nervoso
mente bem.aceite, pois-possibilitava a _sua autonomização (em·_relaÇ·ãà--à
que,_ com ironia~ ·desviava o- assunto. O conflito quase_ não ·aparecia e
família nuclear e às. famílias de origem) e abria as portas à confirmação
quando o -fazia erá resolvido, sem metacomunicação, pelo pai ou pelo avó
de uma_identidade profissional de sucesso, necessária à sua· auto-estima
matemo, agora falecido. Neste quadro, de saturação da função parental, o
mas que começava a estar ameaçada pelo abrandamento de ritmo que os
··casal Sousa triangulara, rigidamente, com Fausto. A parentificação de
envolvimentos familiares tinham potenciado. Por outro lado, o sobreen-
Ilda, anteriormente_ experimentada, não colheu o interesse da família e
volvimento anterior recriara-elos- de ligação;,i92 que, -recursi-Vamerite;, ali~ não foi reforçada. Amélia e a-família pareciam ter. uma comunicação mais
mentavamesta dupla.exigência de dependência (da família.em relação a
simétrica que lhe permitia, a ela, uma maior- área de autonomia: A com-
Américo e deste em relação· aquela). As lealdades co-constuidas com a
plementaridade conjugal e parental, que anterfonnente parecia jogar-se
família geravam uma-Culpa.que; não sendo reso-lvída, se vía-agída p_or de- 294
com Outros triângulos familiares , centrara-se agora no triângulo Fausto-
legação. No comportamento toxicómano de Fausto,.Américo--_e_·a, sua -Pai-Mãe.
família viam afmnada a necessidade de uma orientação centrípeta-·que.o
actual movimento ceritrífugo293 ameaçava. Ao _nível do casal; o tempo era
também de reorganização. A via profissional parecia um boa saída. para
Pensamos que este caso ilustra, de forma clara, a importância que
tnangulação, nomeadamente a triade rígida, a füsionalidade e as leal-
z91 Ocorrendo à noite, numa sala não excessivamente iluminada, o cenário que en- relacionais, vivenciadas numa dimensão intra e intergeracional,
tão se criava, de uma família que ria para não chorar nem pensar e de um adolescente '' assumem, habitualmente, na família com P.I. toxicodependente. Nesta
que entremeava a conversa com enormes e ruidosos bocejos, remete-nos sempre para
família, a sobrevalorização mítica da fünção de prestação de cuidados,
o ambiente de um carnaval venezino, real e irreal, belo e monstruoso, sedutor e
ameaçador. elemento aglutinador do sistema e como elemento de afirmação
2
nNão esqueçamos que o funcionamento da família de origem de Américo seca-
racterizava por um emaranhamento relacional, com delegação de funções parentais na
sua pessoa. Pelo casamento, Américo entrou numa família semelhante e confirmou a que tinha, naturalmente, que ser articulada com a centripeticidade necessária à
construção de que ser adulto, responsável, era tomar bem conta dos outros. Dessa lutenção de um sentimento de pertença Uma 'história transgeracional de sobreen-
forma eles tomariam também conta de si, confirmando-lhe essa sua identidade. Í '.z'volvimento não facilitava a segurança necessária para que a família abordasse esta
'_}];'_problemática de fonna mais criativa e construtiva.
ni É importante não esquecermos que a família Sousa, dada a etapa do ciclo vital 94

em que se encontrava, requeria uma orientação centrífuga por parte dos seus elemen- -1' ~(1111làozdeDeAmérico.
ÍÜI1na bem mais funcional com o avô matemo, de modo mais rígido com o
lu·· i.:u 00 00 i.Sj w Lili·· w w iii til lü 1.11 ta ID 00 w 00 w w
275
(Des)Equilíbrios familiares (Des)Equilíbrios familiares

de uma identidade adulta, comporta uma dimensão paradoxal pois


reforça, simultaneamente, a dependência e a (pseudo)autonomia. idêntica mas cria, também, a oportunidade de sair do double-bind em
que se encontra - o de mudar para não mudar.
O eixo da dependência-autonomia é, com efeito, claramente joga-
do neste caso. Com 20 anos, Fausto não passara do 1 Oº ano e não tinha Poderá o leitor pensar, depois de ler o que acabámos de escrever,
um projecto profissional. Os pais afadigavam-se, em cada consulta, a que o P.L é urna vítima da sua própria família, salvando-a com o sa-
apresentar sinais da sua infantilidade, afirmando claramente a sua inca- crifício do seu próprio desenvolvimento e, eventualmente, da sua vida.
pacidade para começar a ganhar a vida por falta de responsabilidade. Ao nível do senso comum, no entanto, a família é, frequentemente,
Na sequência da fixação do sintoma (toxicodependência) o pai inverte vista corno a vítima do comportamento transgressor do P.l. Vítima e
o seu movimento centrífugo e a mãe perpetua a sua função maternal vitimador são, então, elos de uma mesma cadeia que só poderá abrir-
ambos encontrando nesta preocupação a possibilidade de não abord.,'. -se e sair do seu círculo vicioso quando urna nova história puder ser
outras dificuldades, tais como a reorganização conjugal, o luto pela escrita por todos, família e indivíduos"', fora de um registo clivado,
morte de António, a reorganização das relações com a(s) família(s) de suportado por coligações diversas, e na ausência da negação das ver-
origem"'. Quando, já no decurso da Terapia Familiar, Fausto acede ao dadeiras dificuldades e impasses familiares'". Pensamos que só então
estágio profissional, deixa de se drogar, dispensa a medicação e o sono · a cooperação familiar se fará no sentido da diferenciação e do cresci-
habitual, a família suspende as consultas, aproveitando um período de mento, numa articulação de finalidades individuais e familiares que
férias. Cerca de dois meses e meio mais tarde soubemos que Fausto lhes permitirá alcançar, a uns e a outros, urna funcionalidade saudável.
tinha regressado à droga e estava em acompanhamento psiquiátrico, Como diria Bowen (1984), é necessário que a massa indiferenciada do
numa clara anulação do movimento de mudança que se vinha operan- se/{ familiar dê lugar a um self familiar onde se inscrevem selves indi-
viduais claramente diferenciados.
do.
Esta é, aliás, outra característica das famílias com P.I. toxicode-
pendente: no abandono de processos terapêuticos em curso e no início 296

de novos projectos de tratamento, a família cria a ilusão de que vai Neste processo de reescrita da históría fanúliar desempenham, também, um
papel que não pode ser descurado os amigos, os simples conhecidos, os técnicos e as
realizar mudanças de segunda ordem mas reifica as mudanças de
instituições. Com efeito, eles podem ajudar a perpetuar a história antiga da família,
primeira ordem, gerando um impasse que suspende o desenvolvimen- reforçando as mudanças de prüneira ordem, ou podem introduzir e ajudar a introduzir
to individual e familiar. Buscando a mudança a família permanece elementos novos que criem uma continuidade diferente, permitindo, assim, a insta-
lação das mudanças de segunda ordem.
2

'n Com efeito, um dos aspectos que é impressionantemente redundante, nos


295
É importante salientar que, na sequência de um afastamento do innão, :fT ··processos terapêuticos que temos realizado com esta'i famílias, é a sua afirmação, após
Américo deixara de desempenhar a função parental que tinha para com ele assumido . uns meses de manutenção da abstinência, de que agora está tudo bem e de que, de
durante muitos anos. Na sequência desse facto a ligação de Américo à sua família de futuro, não vai haver problemas: o (ex)P.I. agradece aos pais, eventualmente a mais
origem era reduzidíssima: os pais e o irmão mais velho tinham morrido; com a irmã alguns familiares, o apoio recebido, pede desculpa pelo sofrimento causado e diz que
os contactos eram escassos. De certa forma, Américo ficara "órfão" de família: feliz· mais vai acontecer; agora "só quer é que o deixem viver por si próprio, com a
mente tinha a da mulher e a sua. No último ano sofrera nova "orfandade" familiar: com claro está, dos pais e da família"; os pais dizen1 que o(a) filho( a) é que sabe o
a morte do sogro cessara grande parte da função parental que assumira em relação a deve fazer e que eles o(a) apoiam en1 tudo o que" ele(a) decidir; acrescentam que
esta família, pois, com a sogra, as coisas eram ditCrentes. Na sequência desta dupla deve frequentar os mesn1os lugares nem os mesmos amigos que tinha dantes e que
perda, Américo ensaiou, de certa forma, um cut-off emocional com a farnília restante continuar a estudar para ser alguém; os pais podem e querem continuar a ~judá­
e partiu para estrangeiro. Nem ele nem a família o aguentaram e Américo regressou, Mesmo confrontados com a paradoxalidade dos discursos reafirmam, generica-
correndo o risco de atrasar o seu percurso profissional. j ,; imente, a ideia de que tudo vai correr bem e preferem não pensar no concreto para mais
,:.facilmente continuarem a iludir as possíveis divergências e as possíveis dificuldades.
276
(Des )Equilíbrios familiares

2
. 1ntcrv~"~.ão Por tudo quanto acabámos de dizer parece óbvio que a Terapia
risicutunpeu{lca Familiar Sistémica se possa oferecer como uma estratégia viável e Família com P.I. delinquente
interessante para estes P.I.s e suas famílias; A sua oportunidade tem
sido, com efeito, diversamente afirmada por diversos autores e em
diversos países (Alexander e Dibb, 1975, Coleman e Davis, 1978,
Schwartzman, 1975). É, no entanto, importante perceber que ela não é
a solução milagrosa nem a panaceia para todas as situações de toxi-
codependência, corno não o é, aliás, nenhuma intervenção terapêutica.
Desta forma, a Terapia Multifamiliar (Kaufinan e Kaufinan, 1982), as
intervenções em rede (Elkaim et ai., 1995) ou as intervenções indivi-
duais podem revelar idênticas potencialidades, parecendo-nos que a
decisão quanto a uma ou outra opção deve surgir, fundamentalmente
no contexto da acoplagem terapêutica realizada entre cliente(s) e tera-'
peuta(s)"".
Se a definição de delinquência, enquanto conjunto detectado de
infracções às leis em vigor (num espaço territorial e num tempo con-
cretos), parece relativamente fácil e consensual, a problemática da
delinquência é bem mais complexa. Com efeito, uma tal definição
deixa imerliatamente de fora todas as situações que não são conheci-
das. Por outro lado, há comportamentos que, embora legalmente
puníveis e classificados como crimes, são socialmente mais ou menos
tolerados consoante os valores que a sociedade perfilha naquele
momento (p.e., o aborto), a extensão dos referidos comportamentos e
a capacidade social de fazer-lhes frente (p.e., certas fraudes fiscais) e a
organização de poder vigente (p.e., regimes democráticos, autoritários
ou caóticos). Finalmente, a heterogeneidade do comportamento delin-
quencial (furtos mais ou menos graves, homicídio, ataques à mão
annada, parricídio, etc.) e da diversidade dos seus autores (idade, sexo,
meio sócio-económico, psicopatologia individual, história familiar,
etc.) faz da delinquência um fenómeno qualitativa e quantitativamente
muito heterogéneo.
--------
<-9X Não constituindo este livro um espaço de reflexão sobre a intervenção terapêu-

tica, dada a necessidade de limitarmos a sua extensão e, consequentemente, os seus Ao pretendermos estudar a família com P.I. delinquente vamos
lklinquênda
objectivos, deixaremos para outra oportunidade uma reflexão mais detalhada sobre tWllocalizar a nossa atenção na delinquência juvenil. E aqui a complexi- juvenil
esta questão, tanto no que diz respeito à família com PJ. toxicodependente como a do problema aumenta pelas próprias características da etapa do
qualquer uma das restantes configurações familiares analisadas. !~;desenvolvimento individual e familiar em jogo. Como já tivemos opor-
111('"•<'·--_-
,.,•t. l"1 Ai.it· Lj<··~
~···· ·~
" H
uiu: ,.
·üuJ àAlr ÜJi uür ··uw all1 w li.li 00 Ul! oo·· t111 w
278 279
(Des)Equilíbrios familiares (Des)Equilíbrios familiares

umidade de referir'", a adolescência é o período de experimentação do comportamento dos pais pelo comportamento delinquencial dos fi-
por excelência, em que a sociedade concede urna moratória ao jovem lhos.
para que ele possa experimentar diversos papéis e relações necessárias
à construção da sua identidade. Na família o tempo é de contestação, Não partilhando desse reducionismo familiar, muitos técnicos sis- Significadus
perplexidade e dúvida, resultantes da necessidade de experimentar a temicamente formados tentaram ultrapassar a ideia da identidade ne-
negociação, de reorganizar a hierarquia de poder e de implementar gativa do adolescente e dos seus pais, geralmente desqualificados no
uma autonomia mais apetecida por uns do que por outros mas muito seu papel parental (nomeadamente o pai, tido como sistematicamente
temida por todos. Desta forma, a adolescência é um espaço e um tempo ausente sem que, 11a maioria das situações, se tentasse encontrá-lo).
de agidos o que torna difícil a delimitação das fronteiras entre os ritos
de passagem e as confrontações normativas dos interditos sociais O sintoma delinquencial foi, então, entendido como podendo ter lvlobil!zação
familiares e até pessoais, por um lado, e o comportamento verdadeira'. uma função familiar, nomeadamente na gestão das relações entre a de renu~us

mente delinquencial, por outro lado. A reiteração do comportamento família e a sociedade: "O delinquente realiza importantes acções em
anti-social, o aumento da sua gravidade e as condições da sµa prática favor da sua família: ele é frequentemente o único que pode mobilizar
são os critérios habitualmente usados para conseguir fazer aquela dis- os recursos terapêuticos e as possibilidades de orientação de qne a
tinção. Mas novamente aqui a realidade não é linear e a avaliação sociedade dispõe e a família necessita" (Stierlin, 1979, cit. in Benoit et
social (e até técnica) está longe de ser neutra. Com efeito, há uma ai., 1988, 107). Recursos que só se tomarão terapêuticos se os técnicos
maior probabilidade de que jovens provenientes de grupos sócio· forem capazes de não ceder à tentação de substituírem a família
-económicos desfavorecidos, habitando na periferia das cidades ou em (nomeadamente os pais e mais concretamente a sua função parental) e
bairros onde predominam sub-culturas, com baixa escolaridade ou de lhe imporem soluções, por melhores que elas pareçam. Se as mes-
situação de absentismo escolar vejam os seus comportamentos mais mas não surgirem de um processo de criatividade autopoiética da
facilmente conotados como delinquenciais do que outros que, embora própria família, as mudanças, por muito adequadas que pareçam ser,
com práticas idênticas, revelam uma outra identidade sócio-familiar. revelam-se inúteis e a busca da acoplagem terapêutica deixa de fazer
Como todos sabemos, isto não significa que a delinquência juvenil não sentido.
ocorra entre jovens de classes sócio-económicas favorecidas, social-
mente bem integradas e com um nível cultural elevado. Significa, ape- Numa outra leitura, o sintoma delinquencial parece poder consti- Cu1,fluCu~ia

nas, que os primeiros jovens estão sujeitos a uma avaliação social mais tuir um ponto de bifurcação para uma família a braços com uma ou de crises

apertada e onde abundam inúmeros preconceitos. mais crises (natural e/ou acidental) não resolvidas, para além daquela
Tendo feito inicialmente algum sucesso explicativo, as teses so· que a nova etapa (da adolescência) comporta. Com efeito, parece haver
ciológicas a que acima aludimos foram progressivamente sendo afas- frequentemente uma confluência de crises, mais ou menos
tadas e a explicação psicopatológica individual começou a ser consis- simultâneas, que fragilizam a capacidade da família de se reorganizar
tentemente mais defendida. Posteriormente, a tese familiar (da família e que amplificam as interacções em torno do comportamento delin-
delictogénica) foi ganhado força, sobretudo numa responsabilização quencial.

Pedro· tinha 15 anos e frequentava o 8º ano -de escolaridade obri-


gatória. O elevado número de faltas e um total desinteresse pela escolari-
n9 Veja-se, a este propósito, o ponto 4 - família com filhos adolescentes - do capí- dade justificavam as suas reprovações anteriores assim como aquela que
tulo 2.
Fff';.- -

280 281
(D;;J:~E~q~u~il~íb~n~-o~s~f~am=:-il"iar~e-s~~~~~~~~~~~~~~~~~~
(Des )Equilíbrios familiares

já estava ditada para o corrente ano. Filho- único de um casal separadà-· ,- casa,. aos. professores do Pedro, aos terapeutas)- e sentia que ninguém-a
desde os seus três anos de idade, Pedro vivia com a sua mãe; Cláudia~­ ajudava, .que ninguém lhe dava,o Pedro de outrora, criança.viva mas _doce.
Ap~sar das múltiplas acusações que fazia ao ex-marido, quer pelo- seu, A fusão emocional que sempre ligara Cláudia e Pedro. tendia, agora, cada
comportamento conjugal passado quer pela sua postura patemalpresente, · vez mais! para a_ instauração de -limites, rígidos, aspecto para o qual -o
sentia-se-_que Cláudia.não tinha completado _o luto por essa relação. Os grupo de pares muito ajudava (dm1do-lhe um.espaço de aconchego emo-
contactos que mantinha actualmente com Daniel eram justificados pelas cional) e. a profecia social potenciava Gá toda.a gente .dizia que -Pedro ia
exigências da-parentalidade e. eram sistematicamente conflitu()sos, '.~como ser um ·verdadeiro delinquente) .. Neste momento Pedro roubava· dinheiro,
no tempo em. que vivíamos sozinhos-. Amei muito aquele-hoinem mas_ ele em casa, e pequenos objectos, no exterior e em grupo, inas a_ polícia já o
desgraçou a minha vida.e agora está a-traumatizar muito o Pedro: diz-que tinha debaixo de olho.Aliás a mãe nem percebia a razão pela qual ela não
vem ter- com-_ele, que o vem buscar-para almoçar e depoi_s não.-apar_ece áctuava: toda a gente sabia que quem riscava os carros, roubava tampões
nem diz nada. E o Pedro, ultimamente, anda_ a ficar como ele: refilão; rião . e· outras peças era o grupo do Pedro. Cláudia ·sentia-que.ninguém fazia
cmnpre o que lhe_ mando- fazer; nãO estuda, não trabalha,- só-quer é boa nada e a deixavam sozinha. Por um lado queria. refazer toda a sua vida,
vida~ Como o pai-que,.mesmo- agora, ·com quarenta anos e uma.nova por outro lado tinha medo ... um medo terrível que a fazia parar e
família; aind-a não ganhou juízo: tudó o que ganha gasta e- a-_maior parte aguardar. Pedia aos terapeutas que.a ajudassem mas:logo afirmava que
das vezes nem paga a pensão de alimentos do Pedroc A mãe dele é que não podia pagar as consultas nem vir às sessões pois não- podia faltar ao
me vai ajudando... assim· como,- muitas vezes, paga os cheques- -que emprego;. pedia- aos terapeutas que ajudassem o- Pedro, ·mas. logo- acres-
Daniel passa e que não têm cobertura". Com urna relllção suspensa, _,,. centava que ele era- incorrigível como o pai. Pedro hesitava- entre· aceitar
Cláudia fez de Pedro u "seu homemn e, muitas vezes, o "homem- da relação terapêutica e correr o risco de perder toda. a gente (o pai, que já
casa". Afastou outras possíveis relações Hcom.medo_que não-fossem-bons tinha dito que ele-não era maluco _para vir às consultas e-que- se soubesse
'pais' para o: Pedro ... e, paramau,.elejá tinha.um". No fundo,.também:_ela que o dinheiro que dava era para isso deixava de dar,_ a mãe,. que- Pedro
própria não queria outra relação .. Crescido-muito_precocemente,_Pedro-era sentia que tinha medo de o ver crescer, e o grupo, cuja.identidade se afir-
um adulto-_menino:· s3.bia_ coisas da.vida que muitos adolescentes .da _sUa mava pela marginalidade). Um dia esteve mais de vinte e. quatro. horas
idade não sonhavarrí mas que o- grupo de rapazes mais velhos com. quem sem regressar a casa e. a mãe quis resolver a questão indo ao_ tribunal de
andava-lhe ensinava; "homem da mãe" oscilava-entre o'_desejo-de-nunca família e menores para pedir a alteração da custódia d0 filho e mandá-lo
a abandonar, de não construir família, e a vontade de encontrar umá_niala ·para o pai. Os terapeutas- conseguiram que ela. entendesse-que isso- não
cheia de dinheiro ou de ganhar na lotaria para "comprar" a sua liberdadê, ·_resolvia a_ crise. Aliás, as múltiplas crises que, tal' como ·as cerejas, se
deixando a· mãe '"rica" _e indo illiciar mna- vida cte "sucesso e: fama", encadeavam umas nas outras: a crise conjugal nunca resol-Vida, a crise d;l
solitária e com um risco controlado-mas efectivo - Pedro desejava muito"; adolescência, a crise da meia idade da mãe, a crise. do emprego (no-qual
nessas alturas;_ ser um- grande-jornalista de reportagens-de- guerra·o-U de se mantinha uma situação de instabilidade que já durava há algum tempo
situaç_ões de catástrofe· natural (tremores: de terra, ciclones,. etc:):_ ou, mas que agora parecia não deixar outra.saída que não fosse o- seu des-
então, gostava de ser um grande empresário com_ sucursais.em vários pon- p_edimento), a crise. da identidade de toda uma família em que todos
tos do mundo. O olhar da mãe, enquanto Pedro falava, era gelidamente estavam sós porque não conseguiam estar juntos e todos estavam enreda-
desqualificante: irritavam-na estes devaneios (em que Pedro-muito_._ se , dos porque não sabiam estar sós. fufelizmente esta acoplagem terapêuti-
assemelhava ao pai que, afinal, nunca tinha passado de operário) quando ca não foi conseguida e, apesar de algumas evoluções iniciais, Pedro,
o filho nem sequer fazia o mínimo para ajUdá-la! Era o terceiro ano ,que C_laúdia e Daniel continuaram a organizar,.se em tomo dos agidos daque-
ia reprovar mas também não queria- trabalhar. Cláudia sentia-se coniple- le.
tamente ultrapassada:.não conseguia fazer-se obedecer e o seu sistema de
regras, que. nunca fora muito claro nem efectiV-o, estava agora caótico.
Pedia a toda -a gente que a ajudasse (às pessoas que viviam, na mésma
·~·····w w bJ ~ ,... ~ ...
lil.llU - w
·d,w
·d»: w üul -oo w w w tiJt 00 ôll üJ
282 283
(Des)Equilibrios familiares (Des )Equilíbrios familiares

Corno vemos, neste caso, o tipo de passagem ao acto está estreita-


Manuela e Jorge iam levar o filho.a Coimbra. Tinha entrado esse ano
mente associado ao sub-sistema formado pelo grupo de pares cuja na Universidade e, uma vez_por mês, a mãe ia limpar a--casa onde António
influência não pode ser desprezada na compreensão do comportamen- estava. Apesar do clima -desagradável dessas viagens, pélas constantes
to delinquencial nem, assim o entendemos, no desenvolvimento da recriminações e conflitos dos paiS, Antóniájá estava habituado. Afmal, lá
intervenção. A utilização do grupo de pares como contexto de inter- em -casa era a mesma- coisa! Um -dia, _Manuela_ virou-se para.António e
venção terapêutica parece-nos, com efeito, poder ser útil caso seja pos- disse-lhe: "afinal não sei para que venho limpar-te a casa; os homens são
sível transformar a sua energia e dimensão continente numa via trans- todos iguais, desarrumados e sujos". António não percebeuJogo onde .a
formadora da crise, em que o grupo deixe de buscar cada vez mais a mãe queria chegar. Em casa, a ínnã era muito ·mais desarrumada .do que
mesma solução (mudança de tipo 1) para abrir-se à verdadeira mu- ele. Mais adiante o pai disse-lhe:· ~-·então como vais de· companhias? Não
dança (mudança de tipo 2). te chegues às miúdas que elas são sempre umas falsas". Pelo olhar furi-
bundo da mãe, António percebeu que_ a conversa era entre os pais! ....
Muitas vezes as crises coexistem todas no mesmo espaço tempo-
ral'ºº (a crise da adolescência, a crise da meia-idade dos pais, a even- De acordo com Ferreira (1997) observa-se, nas famílias com P.I. Dou.b/e~bind
tual crise de desmembramento do casal, a crise decorrente de uma delinquente, uma interacção comunicacional particular que designou cindido

reforma antecipadamente imposta, a crise subsequente à morte de um por doub/e-bind cindido e que consiste no seguinte: dois elementos do
dos avós ou ao aparecimento de uma doença), alimentam-se recursiva- sistema familiar, geralmente o pai e a mãe, emitem duas injunções
mente e vêem no novo problema a ·urgência301 que transforma a crise paradoxais discordantes, pelo que o jovem fica sujeito a mensagens
numa procura de resposta exterior para um problema que também é bipolares sobre o mesmo tema. A sua passagem ao acto, realizada no
exteriormente justificado: "se não fossem as más companhias . ., nada meio exterior, pode constituir uma forn1a de síntese das duas men-
disto acontecia"; "dado que o problema está nas más companhias sagens contraditórias. Ferreira (1997, 83-86) relata um caso em que "à
vocês (técnicos de saúde mental, técnicos de reinserção social, psiquia- ordem dada por um dos pais vem acrescentar-se um comentário do
tras, professores ... todos menos nós) têm que fazer qualquer coisa". outro que a nega, se bem que exprima uma forma de acordo com ela":
Um adolescente de 15 anos, inteligente mas com dificuldades esco-
Cunfnmto Subjacente a todas estas leituras está o facto de que a família lares, apresenta comportamentos tirânicos para com os seus dois
simétrico
necessita de reequacionar a regulação que fez das distâncias rela- irmãos mais novos. De vez em quando pega no carro do avô, às escon-
cionais. Por outras palavras, é importante redefinir as fronteiras entre didas, e leva-o para fora da cidade. A polícia acusa-o de telefonemas
indivíduos e entre gerações, assim como o sistema de alianças e even- obscenos. Numa das sessões familiares o filho pede ao pai que compre
tuais coligações. O confronto simétrico e os conflitos directamente um carro novo. Este, irritado, responde que não e diz claramente que
expressos são frequentes nestas famílias: os pais usam os filhos, nas não quer falar sobre isso. Entretanto, a mãe vai dizendo, em con-
suas guerras, como forma de se agredirem mutuamente. Assim, podem traponto ao discurso do pai: "Bom é um pouco cedo para criar uma lei
tecer comentários às actuações dos filhos, ou fazer-lhes certas ... há excepções ... poderíamos aceitar que conduzisses esse carro novo
advertências, que mais não são do que mensagens dirigidas ao adulto. à sexta-feira, para um encontro ... ou nos fms-de-semana ... excepcio-
nalmente ... para ir dançar". Como vemos,' o jovem é confrontado com
wo Remetemos novamente o leitor para o ponto 4 - família com filhos adoles- duas mensagens incongruentes, emitidas por autoridades igualmente
centes - do capítulo 2. válidas: uma baseia-se na regra outra na excepção, uma na ordem outra
wi No ponto 5 - stress e crise familiar - do capítulo l explicitámos a diferença
compreensão afectiva. O pai e a mãe não só não exprimem clara-
entre urgência e crise.
284 285
(Des)Equilíbrios familiares (Des )Equilíbrios familiares

mente o seu desacordo como parecem confirmar o seu entendimento. que tu. E é aí, convosco, que eu quero viver"_ O autor propõe, então,
O agido do adolescente surge, então, como a possibilidade de sair, ana- que a intervenção se faça em regime de co-terapia, em que um dos te-
logicamente, de nm paradoxo que não pode ser mentalizado e a rapeutas trabalhará ao nível da relação adolescente-família e o outro ao
propósito do qual não é possível metacomnnicar. nível da relação adolescente-instituição. Os dois co-terapeutas devem
É a este nível que o reenquadramento se revela um instrumento transmitir, no contexto das sessões familiares, o double-bind cindido:
útil e necessário. Uma das possibilidades de tomar este reenquadra- um conotando as fugas do jovem como uma forma de apoio à família,
mento mais efectivo é realizar entrevistas colectivas família-sistémi- o outro prescrevendo o cessar das mesmas dado que elas prejudicam o
cas, nomeadamente nas situações em que existe internamento ou colo- desenvolvimento do tratamento institucional. Com estes comentários
cação institucional. Tomando presente o triângulo P.I.-família-institui- Ausloos pretende que seja "verbalizado dentro o que é agido fora''.
ção, estas entrevistas permitem qne toda a comunicação entre a família Como é óbvio, o desenvolvimento desta estratégia exige que a família
e a instituição se faça na presença do P.l."' Possibilitam, ainda, que esteja envolvida no processo e que a instituição respeite as suas com-
novas transacções sejam desenvolvidas entre o P.L e os elementos que petências.
estão em casa. As sessões são centradas no P.I., nas suas dificuldades
e no seu futuro. O confronto directo da crise familiar, imposto pelo Neste agido exterior de uma realidade intra-familiar, a que Dckgaçiío
encontro dos elementos do triângulo (instituição-P.I.-família), constitui acabamos de fazer referência, pesam, com muita frequência, segredos compo1tamcntal

nma forma analógica de prescrição do sintoma que se pretende indu- familiares: Benoit (1997, 124) relata o caso de um jovem, acusado de
tora da metacomunicação, em famílias que revelam algnma dificul- fugir e de roubar motas, que soube, pela primeira vez, no contexto da
dade em fazê-lo e em contextos que são marcados pela imposição do intervenção familiar, que o pai tinha, muitas vezes, "pegado" na mota
acompanhamento terapêutico. Face a estes condicionalismos, esta téc- . do seu pai e que a mãe tinha fugido duas vezes de casa: aos 5 e aos 16
nica procura criar as condições para desenvolver um processo de co- anos. Estes antecedentes familiares, longe de constituírem uma here-
-evolução na construção de "soluções" para o P.I. e sua família (Benoit ditariedade de tipo genético, assumem-se, não raras vezes, como temas
et ai., 1988, 151-154). Ausloos (1983, in Benoit et ai., 1988, 125) que os pais delegam comportamentalmente nos filhos como forma de
propôs a utlização do double-bind cindido terapêutico como forma de os reequacionarem.
trabalhar com jovens delinquentes institucionalizados e suas famílias.
Acontece, frequentemente, que o jovem institucionalizado mantém, Um outro aspecto para o qual Ausloos (1983, in Benoit, 1997) Carnderisticas
neste novo contexto, o mesmo tipo de comportamento que tinha quan- chama a nossa atenção diz respeito ao tempo familiar: o tempo das familiares

do estava no seio da família, nomeadamente fugindo da instituição famílias com P.I. delinquente é um "tempo ocorrencia!", marcado pela
para casa. De acordo com Ausloos, podemos descodificar o sintoma da constante instabilidade, pela permanente mudança e pelo caos organi-
seguinte forma: "Família, não conseguias impedir-me de fugir quando zativo.
estava aí mas, como vês, a instituição não consegue fazer melhor do
Com efeito, nestas famílias, as regras são geralmente inconsis- Regras
terites: pouco claras, versáteis, facilmente mutáveis, elas podem ser ;"consistentes

Ju 2 É importante referir que uma das formas que a família utiliza para comunicar impostas com rigor, em certos momentÓs, para logo serem esquecidas
com a instituição (provavelmente com os terapeutas do PJ.) é a realização de tele- transformada~. Vimos, já, como podem também ser alvo de um
fonemas entre encontros. Quando abordámos a crise familiar (ponto 5 do capítulo l) ;: áoub/e-bind cindido.
pudemos reflectir sobre esta questão. Ainda que o contexto fosse outro, o que então
dissémos parece-nos ser válido também neste contexto.
·-,~ Cl'4 ... ,._jj, l\.i ..i.i. w ..L· '
uu···.. -
Jh L.w ..
...,. -
L!U w 1" d! w d! w m W Ul -· lif
286
(Des)Equilíbrios familiares

Orientação
O sistema familiar caracteriza-se, geralmente, por uma excessiva extensão do sistema e a frequência da monoparentalidade (em que o
ccntrífüga abertura e por uma orientação claramente centrífuga: a metacomuni- progenitor é solteiro ou ficou sozinho na sequência de um divórcio).
cação não parece possível no seu interior e os comportamentos agidos
tomam o lugar da palavra. A sua expressão extra-familiar parece cons- Dado o comportamento delituoso do PJ., é frequente que a justiça Intervençãt>

tituir a agressão possível numa família geralmente muito fragilizada do esteja envolvida e que o trabalho de psicólogos, assistentes sociais, ou
ponto de vista vincular. Lidando mal com a proximidade relacional, de outros profissionais, seja imposto pelo sistema judicial. É, pois, impor-
que, paradoxalmente, muito necessitam, os elementos da família criam tante, ao nível da intervenção, que exista um real envolvimento e coor-
as condições para uma "expulsão precoce" para fora do núcleo fami- denação entre estes três sistemas, justiça-família-interventores, desde
liar (Stierlin e Ravenscroft, 1972). E se a "expulsão" defende os ele- logo para não repetir um mecanismo de funcionamento semelhante ao
mentos contra a asfixia da relação, o acto delinquencial vai obrigar à da própria família'°' e, por outro lado, pary aumentar o potencial inter-
reaproximação. Neste encontro, o elemento que chega não é uma ventivo e transformador de cada um destes sistemas, evitando, o mais
·~vítima ou um doente mas sim um herói, um herói do desvio" (Benoit, possível, o risco da rotulação que o sistema judicial sempre impõe. Se
1997). em todos os sistemas familiares é importante não esquecermos as com-
petências familiares e reforçarmos a auto-estima do próprio sistema e
A inconstância das transacções e as mudanças incessantes fazem de cada um dos seus elementos, também aqui este aspecto é funda-
Tempo
ocorrencial destas umas famílias com um ritmo alucinante: "a informação circula mental para começar a introduzir a lógica da mentalização e frenar a
mas não fica retida, armazenada, memorizada. Os acontecimentos erupção sistemática do agir. Ninguém que gosta pouco de si ou que se
ocorrem em sucessão contínua e constantemente repõem tudo em tem em pouca conta aceita olhar-se ao espelho! ...
causa; o tempo ocorrencial é retalhado, fragmentado, dissecado" Em síntese, é importante que, enquanto técnicos, nos abramos à
(Ausloos, cit. in Benoit, 1997, 125). transdisciplinaridade. "É importante desconfiarmos das simplifi-
Não é de estranhar, então, as características frequentemente apon- cações, cómodas mas redutoras: tal como não houve, nem pode haver,
tadas em diversos estudos realizados: insuficiência dos papéis um modelo explicativo simples, seja ele sócio-económico, sociológico
parentais e dificuldades identificatórias'", delegação da parenta!idade ou psicológico, de compreensão da delinquência também não pode
(em outros elementos da família ou fora dela), fraca delimitação dos haver um modelo puramente sistémico de compreensão deste tipo de
sub-sistemas, coligações e parentificações, inconsistência das regras comportamento, mesmo se esta perspectiva nos permite dar um novo
organizativas do dia-a-dia e caoticidade geral das transacções, carên- passo no sentido de ultrapassar uma teorização parcelar" (Segond, in
cias afectivas e atmosfera marcadamente abandónica, dificuldades de Benoit et ai., 1988, 108). Para além disso, o comportamento delín-
mentalização e agressividade agida e triangulada com o exterior. Do ,quencial aparece frequentemente associado a outros sintomas e
ponto de vista da composição familiar, tem-se afirmado a relativa inscrito em sisten1as familiares com mais algumas outras característi-
cas. Ter em conta a complexidade dos fenómenos é, então, uma
exigência, embora seja, tan1bém, um tre1nendo desafio.
303 A literatura psicanalítica insistiu bastante na importância da ausência, demis-

são ou incongruência da figura paterna e sobre a dimensão funcional de uma mãe com
pouco afecto. 'Neste contexto foi desenvolvida a ideia da necessidade de construção de
uma identidade negativa, como resposta às projecções parentais e ao respectivo
reforço dos comportamentos desviantes, ou como alternativa a uma ausência de iden-
tidade (Alarcão, 1986, 27-28). J{M A que fizemos referência quando falámos do double-bind cindido.
3
Família com P.I. violento e violência familiar

Raquel é uma pré-adolescente que-veio pela primeira vez à consulta


juntamente com a mãe e com o pai. As dificuldades sentidas pela família
dizem respeito ao comportamento de Raquel: "falta às aulas, reprova em
diversas disciplinas, anda com más companhias e está permanentemente
-a pedir dinheiro à mãe, agredindo-a fisicamente se esta se recusa a dar-
-lho".
Investigando a história da evolução- do sintoma ficámos a saber que
os pais de Raquel estão divorciados há vários anos: foi uma- separação
dificil e muito conflituosa; ainda hoje· decorre em tribunal wn processo
relativo à partilha de bens. Nos anos subsequentes ao divórcio mãe e filha
ficaram a viver na casa de familia mas há.dois anos tiVeram- que vendê-
-la. Nessa altura mudaram de-cidade e· passaram-a viver num TI. Para
,-iilém da mudança de casa e de terra, Raquel.'perdeu o quarto e a cama.
Com efeito, desde então; mãe e filha partilham o mesmo leito e Francisca,
assim se chama a mãe de Raquel, acha que os problemas da filha tiveram
aí o seu início, desenvolvendo-se, depois, em progressão geométrica.
As cenas de violência entre Raquel e Francisca são frequentes, inten-
sas e muíto "feias": nas suas- desinteligências, Raquel bate na mãe e
"_Francisca contra-ataca ofendendo a filha através dos- muitos nomes que
lhe chama. Uma usa a força do corpo e, desfere golpes que pisam e
magoam um outro corpo; a outra é- mais subtil e contra-ataca usando o fio
aguçado de uma língua que magoa mas não deixa marcas corporais. Aos
seus próprios olhos, e aos dos vizinhos, a díade define-se como comple-
mentar na violência, sendo Raquel o ofensor (posição one-up) e Francisca
w
,._,
·1-Tbf td .1',j "r
UUí ...~ ..Jlj, w ~
J!;,i· ·L.Jii··· .... w ,Jigj w ··íki .:.D w ii.- w. l(Jb bi
290 291
(Des)Equilíbrios familiares (Des )Equilíbrios familiares

a vítima (posição one-down). No entanto, e como em todas as díades vio- diz que também não pode ficar com Cla dado que, de mo1nento, não tem
lentas, o comportamento complementar de ambas é essencial à manu- condições logísticas para a ter. Raquel sente-se perdida entre dois adultos
tenção da violência. Ao_intervir para parar as brigas, a vizinhança confir- que parece que ·não ·a querem mas que a sua Violência une. Os ataques -e
ma o papel de vítima assumido pela mãe: não consegUindo impor o seu contra"-ataques de cada um constituem ·uma linguagem que todos co-
papel parental, Francisca tem que ser «salva" pelo meio o que reforça, nhecem, .que os -liga -mas que também lhes -garante uma distância que 'lhes
igualmente, o estatuto de ofensor activo de Raquel. dá a-ilusão de -independência e de capaCidade auto-afirmativa.
Já no passado Francisca fora vítima da violência do seu_próprio pai.
Nessa altura a sua mãe fechou-se num silêncio que a magoou. Anos mais
tarde ainda pensou recorrer ao tribunal para se vingar do pai mas acabou
por não o fazer. O caso que acabámos de descrever mostra-nos que é impossível Violência,
Hoje em dia, e em virtude das dificuldades que tem com a filha compreender a violência sem pensar na questão da dependência rela- de1>endêocia

Francisca apelou -para a justiça, usando o trib1mal como ·elemento d~


e vinculação
cional ou interpessoal. Bowlby (1986, in Mihanovich, 1997, 91), "diz
triangúlação de um conflito que não consegue resolver de outra forma: que a violência encobre sempre uma grande dependência face ao outro,
numa das vezes em que a briga com Raquel foi muito dura, Francisca já que [eu] dependo daquele que tem o poder de certificar-me quem
recorreu ao tribunal de menores para fazer queixa da filha. A sua -situação
sou. Neste paradoxo de depender daqueles a quem supostamente sub-
fmanceira, que já não era fácil,- é hoje caótica poís.Raquel tem feitO diver-
metemos talvez se esconda a intensa raiva do ser violento". Com
sas dívidas que Francisca'tem posteriormente que pagar. Sente-se perma-
nentemente "à beira .de um ataque de nervos" e, por isso, tem :usado e efeito, o vitimador está submetido a uma forte dependência confir-
matória da voz da vítima que o ratifica ua sua identidade. Por outro
abusado dos psicotropos.
Na sessão, o comportamento de Raquel oscila entre, por um lado, a lado, a vítima não pode sair do sistema já que procura incansavelmente
distância face aos pais_ e o desprezo pelo comportamento mutuamente a palavra do vitimador para que este lhe responda à sua questão de
ofensivo de ambos e, por outro lado, a zanga que manifesta relativamente saber "quem sou eu se deixo de ser para ti aquele que creio e necessi-
a um ou a outro dos progenitores sempre que cada um define :o que·.ela to ser?".
deve fazer e isso está em contradição com os seus próprios desejos ou Decorre do que acabámos de dizer que a problemática da vincu-
propósitos. Sempre que os pais se ofendem e se atacam um -ao Outro, lação e da dependência são, então, fundamentais no desenvolvimento
Raquel assume uma postura.arrogante e desqualifica os terapeutas dizen- das histórias de violência. É frequente observar-se que, nas anamneses
do que "não vê qual o motivo das sessões nem o modo como algtiém pode de pais ou de filhos violentos, há outros pais e filhos activamente vio-
ajudá-los". Quando o pai se aproxima dela e a recrimina por ela ser vio-
lentos, sendo aqueles espectadores mais ou menos passivos ou alvos
lenta para com a mãe, Raquel fica zangada e diz que não compreende -a
influência que o pai tem, agora, na sua vida. Como também não entende dessa mesma violência. E quando os genogramas se alargam podemos
a razão pela qual a mãe se preocupa tanto com a atenção que o-pai -lhe dá facilmente encontrar situações semelhantes que parecem fazer deste
nem aceita que a mãe .Jhe telefone para fazer queixinhas. Francisca-diz um processo de certa forma "hereditário". Mas, na realidade, aquilo
que nunca mais quer viver com João mas hoje chama-o várias·vezes-.para que se herda é uma dúvida básica quanto ao ser-se amado (pela(s) figu-
resolver os problemas que Raquel lhe cria. João acha que a ex-mulher é a ra(s) de vinculação principal e posteriormente pelas restantes) e um
única culpada pelos problemas da filha pois nunca soube como impor sentimento de falha básica que uma vida inteira não chega para col-
regras. Considera que consigo Raquel não tem o mesmo tipo de compor· matar, a par de uma auto-estima muito diminuta que não alimenta um
tamento. E este toma-se um tema de novos conflitos parentais ... sujeito afectivamente já tão esfomeado. Num processo paradoxal, este
A perpetuação dos comportamentos agressivos por parte de Raquel indivíduo, que se sente fraco, mal-amado e vítima da "injustiça dos
leva Francisca a dizer que não tem condições para viver com a filha. João
292~~~~~~~~~~~--~~~~~·
293
(Des )Equilíbrios familiares (Des)Equilíbrios familiares

homens" 30 5, vai dominar as suas inseguranças submetendo outros mais do e a vergonha por esta violência distendem provisoriamente a inten-
fracos ao seu poder, vai vingar-se e aliviar a raiva que sente enchendo sidade das relações; mas, rapidamente, a solidão, os sentimentos de
os outros dos seus afectos negativos e vai tentar criar uma identidade abandono, o desejo de ligação ... numa palavra, a lealdade indefectível
que lhe permita, afinal, saber quem é e o que pode fazer. face ao nó familiar vai novamente ligar toda a gente ... e o ciclo infer-
É habitual, já o dissemos noutras passagens deste livro, que uma nal está prestes a começar" (idem, 157).
vinculação insegura reforce a dependência relacional: a incompleta De acordo com este funcionamento, o segredo (i.é, o não falar,
gratificação amorosa e a dúvida básica quanto à acessibilidade e interna e externamente, sobre a violência que ocorre no seio da
disponibilidade do outro significativo dificultam o equacionar da família) é fundamental pois reforça as alianças intra-familiares e a de-
ausência e colocam sérios entraves à construção da capacidade de estar pendência relacional. Nesse sentido, a intervenção externa é, muitas
só. É nisto que radica a paradoxalidade da capacidade de se ser inde- vezes, mal aceite, sentida como intrusiva, e desencadeadora de um
pendente e autónomo: só se consegue sê-lo quando se pôde ser, movimento de reforço daqueles mecanismos familiares.
primeiro, completamente dependente e, depois, se foi autorizado a um
afastamento progressivo, sem receios nem retaliações mútuas 306 • Caso Na família com P.I.(s) violento(s) é importante distinguir duas
contrário, perpetua-se uma dependência insatisfatória que, por isso situações: aquela em que a violência é realizada fora do espaço fami-
mesmo, se ataca permanentemente mas da qual o sujeito nunca se li- liar e que recai sobre alguém que a ele não pertence e a outra em que
berta. a violência é intra-familiar. É possível que as duas situações possam
De acordo com Goldbeter-Merinfeld (1996), as famílias onde há co-existir numa mesma família, protagonizadas por elementos dife-
violência caracterizam-se, frequentemente, pela existência de dificul- rentes e geralmente expressas em momentos distintos. Na literatura são
dades em estabelecer e em gerir as distâncias óptimas entre os seus relatadas diversas situações em que adolescentes ou crianças têm com-
membros. Estes são particulannente sensíveis à rejeição e ao aban- portamentos violentos, nomeadamente no espaço escolar, comporta-
dono. "Tudo se passa como se, no seio de uma família em que a coesão mentos esses que, pela sua repetição e/ou gravidade, conduzem à sua
é consolidada pela manutenção de uma proximidade excessiva entre sinalização (umas vezes para evitar a expulsão outras vezes para a fun-
cada um dos membros, o espaço pessoal não se alcançasse a não ser damentar) e ao pedido de intervenção (individual ou familiar). A ela-
com a ajuda de comportamentos violentos que provocam o recuo e o boração da história clínica ou o decurso do próprio processo terapêuti-
afastamento de cada um em relação aos outros: a culpabilidade, o me- co revelam, na grande maioria das vezes, que esses sujeitos assistiram
a cenas de violência conjugal ou foram eles próprios (ou alguém da
' Neste mesn10 sentido se pronuncia Minuchin (in Goldbeter-Merinfeld, 1996,
05
fratria) alvos de violência parental, tenha ela revestido a forma de
158), considerando que a violência é um produto de várias gerações de privação e de abuso fisico ou sexual. Esses acontecimentos constituem um assunto
falta de poder. "O violento vê-se frequentemente como fraco e só face àqueles que o
atormentam; a repressão social tem frequentemente como efeito aumentar-lhe a expe-
tabu na família e o processo terapêutico só avança verdadeiramente
riência subjectiva de vítima, criando o risco de aumentar a probabiliadade de compor- quando a violência intra-familiar pode ser falada e pensada. Nestas si-
tamentos violentos posteriores". Por esta razão, a intervenção que se pretende te- tuações, o comportamento violento do P.I. pode constituir um ponto de
rapêutica tem que aumentar a auto-estima do sujeito violento, permitindo-lhe ir ga- bifurcação para a família'"' que, amplificando as suas flutuações com a
nhando uma definição mais positiva de si próprio e alguma certeza e confiança nas ajuda do terapeuta, pode iniciar um percilrso de mudança que lhe per-
suas competências, de modo a que, dessa forma, ele possa sentir-se dotado de wn
poder que lhe advém de si próprio e não da relação com a vítima.
Jltú Consulte-se, a este propósito, a obra de Bowlby, sobre a vinculação, e a de
io' Tenha-se em atenção o que, a propósito da mudança, se disse no ponto 4 do
Mahler, sobre a separação-individuação. !.
-.ilJ{ .," •'. -
..-1;,1 W
- e
l;i;r w w bJ dJJ w ·~ w w í..h W- ub ~' d.! w ~A.li
··~·
ljJJ ·~ Ílc'EÜ
295
294 (Des) Equilíbrios farniliar~s
(Des)Equilíbrios familiares

mita construir novas relações menos violentas. Na maior parte das institucionalizadas 308 e as famílias em risco controladas (Pluymaekers,
vezes, este processo é difícil dado que a família tende a manter as flu- 1996). Face ao mito da segurança total, ao dramatismo de muitas situa-
tuações em limites toleráveis que não a conduzem ao referido ponto de ções e à pressão da opinião pública, a sociedade transformou a crise
bifurcação. Frequentemente, família e terapeuta vão caminhando de em urgência e procurou, de forma linear, resolver a questão. Surgiu,
bifurcação em bifurcação até atingir uma mudança que seja satisfatória assim, a obrigação da denúncia (podendo o delator proteger-se no
anonimato) e a cruzada do diagnóstico das situações que, posterior-
para ambos. mente, nem sempre eram acompanhadas adequadamente. Em certos
O fenómeno da violência e do mau trato no seio da família não são casos criaram-se situações perfeitamente aberrantes: o estado de
Da necc•sidatle
ao abW><l da novos embora só desde há algumas décadas tenham começado a ser Washington votou, em 1990, uma lei segw1do a qual um delinquente
denúncia
considerados como um grave problema social. Com efeito, a violência sexual podia, depois de ter cumprido a sua pena, serre-encarcerado por
familiar começou a ser assim considerada na década de sessenta, tempo ilimitado, desde que uma comissão de habitantes considerasse
quando alguns autores descreveram o "síndrome da criança batida" que o mesmo continuava a constituir um perigo; também nos EUA,
(Kempe et ai., 1962, in Mulhern, 1996). Anteriormente, nos anos do uma associação de terapeutas familiares tornou obrigatória a verifi-
pós-guerra, o mau trato infantil era compreendido no contexto do
abandono a que inúmeras crianças tinham ficado expostas. As medidas Jut O problema da colocação/institucionalização destas crianças levanta sérias
de protecção então criadas visaram apenas esse vector, deixando ocul- questões que tên1 que ser adequadamente ponderadas. Se é certo que un1a criança ou
um adolescente não podem ser sujeitos nem mantidos numa situação de violência
tas e esquecidas as outras dimensões do mau trato. A denúncia feita por (qualquer que seja a forma que ela reveste), a verdade é que a sua institucionalização
algumas vítimas e o aumento progressivo, na comunicação social, de pode constituir unia nova forma de violência para o referido sujeito e para a sua
notícias de crianças maltratadas permitiram criar mna consciência família. Neste domínio temos, inequivocamente, n1uitas mais dúvidas do que certezas:
pública sobre este problema. O movimento feminista, dos anos seten- a única coisa que sabemos verdadeiramente é que as questões são complexas, não
ta, focalizou a discussão na violência contra as m1ilheres e, progressi- podem ser tratadas linearmente e o envolvimento activo e coordenado de todos
(frunília e instituições envolvidas) é fundamental. Além disso, e con10 já anteriormente
vamente, outras situações foram sendo desvendadas publicamente - o
referimos, há que ter o cuidado de não só não atacar a auto-estima dos elementos
abuso sexual de crianças e as diversas formas de violência e mau trato envolvidos no con1porta1nento violento, nomeadamente a do vitimador, como de com-
em relação aos idosos. preender que na família há diversas pessoas em sofrimento. todas precisando de ajuda.
Apesar da importância desta consciência pública, o movimento de Se a atitude do técnico não pode deixar de ser a de reprovação do acto, a sua flexibi-
trazer para a cena pública uma realidade essencialmente intra-familiar lidade tem que o deixar compreender aquilo que muitas vítimas dizem ou sentem: que,
originou alguns mecanismos perversos que não podem ser esquecidos apesar da revolta e do sofrimento, a falha dos pais não os transforma nuns "não-pais".
É nesse sentido que a protecção forçada (pela via da institucionalização e da colo-
nem escamoteados. O movimento do Child Abuse, nos Estados Uni- cação) pode constituir outra violência. Para além deste aspecto, e mesmo quando estas
dos, despoletou uma onda de denúncias de abusos de crianças que nem medidas são a única fom1a de resolver temporariamente a situação, há que pensar
sempre eram verdadeiras. Mas o mais grave é qne, na década de 80, como ajudar os pais a criar as condições para que a fan1ília possa reunir~se de novo e
um inquérito i1acional verificou que era duas a seis vezes mais prová- há que pensar também, sobretudo nas situações de colocação, que tipo de envolvi-
vel que um família inocente fosse considerada culpada do que o con- mento afectivo e de vínculos é que se está a pedir ~s pessoas que criem. Pensamos que
trário. Para além deste aspecto, a emoção colectiva mobilizada em as colocações têm que inscrever-se necessariamente num contexto de colaboração que
ligue as várias pessoas numa lógica de "e .. e" e não numa lógica de "ou .. ou", de
torno do conhecimento das situações de violência familiar, sobretudo mudo a permitir que o suporte da colocação se estenda para além da situação de urgên-
de abuso e mau trato de crianças pelos familiares que as deviam pro- cia e de forma a evitar o aparecimento da clivagem relacional e do stress dela decor-
teger, levou a que muitas destas crianças fossem preventivamente rente.
296 297
(Des )Equilíbrios familiares (Des )Equilíbrios familiares

cação positiva da ausência de sevícias sexuais na família independen- técnicos envolvidos que esperam que algum deles tome uma qualquer
temente do motivo de consulta. iniciativa.
A erradicação do mau trato infantil tem-se inscrito, pois, numa Como já dissemos, o problema da violência intra-familiar levanta
lógica linear segundo a qual a violência é reduzida à sua qualificação questões complexas aos técnicos, até pela ressonância que a mesma
penal (Pluymaekers, 1996): se for interdita e reprimida basta identi- tem em cada um de nós. A maior parte das situações, por mnito ténues
ficá-la e denunciá-la. Dessa forma, pensa-se, protegem-se as vítimas e que sejam, são dramáticas e há que intervir no sentido de ajudar a
punem-se os culpados. Ora, o problema é bem mais complexo. A família a ultrapassar a situação e de ajudar cada um dos seus elemen-
denúncia obrigatória, para além de poder originar denúncias opor- tos a resolver os seus problemas. A vontade de erradicar o mau trato
tunistas, cria o risco de al1mentar a lei do silêncio familiar. Com receio não pode conduzir à diabolização do agressor mas é óbvio que algo de
da justiça, a família não falará de situações que podem comprometê-la diferente (mudança de 2ª ordem) tem que ser feito. Como diz Pluy-
nem de comportamentos que, num contexto de confiança, podia aceitar maekers (1996, 134): "É normal que experimentemos repugnância ou
abordar (p.e. um progenitor que bate constantemente numa criança mesmo agressividade face a certas situações; o importante é, talvez,
sempre que a mesma o contraria; um progenitor que não cuida ade- utilizá-las como ressonâncias possíveis (Elkalm, 1989), interrogando-
quadamente de um bebé com medo de lhe tocar e de ser muito violen- -nos sobre a função singular que podem ter as nossas emoções no que
to, sobretudo se não percebe a razão do seu choro e este se mantém por se passa entre nós e nos parceiros com que nos confrontamos. Dar um
muito tempo) e equacionar no sentido da sua transformação 3°' (Cirillo e lugar ao sintoma é uma das formas de trabalhar, em profundidade, esta
Di Blasio, 1997). Por outro lado, o "segredo partilhado" entre dife- problemática. Suprimir a febre nunca curou ninguém". A protecção da
rentes profissionais (Maisondieu, 1994, in Pluymaekers, 1996, 127), vítima tem que ser, então, um projecto colectivo que responsabilize a
que procuram lutar conjuntame11te contra estas situações de violência, família, a comunidade (que muitas vezes se quer assumir apenas como
leva-os a trocar, sem reservas, impressões, suspeitas, explicações que, entidade sinalizadora, considerando que cumpre, com a denúncia, o
muitas vezes, em nada ajudam à resolução da situação e apenas criam seu papel) e as instituições envolvidas. É por essa razão que as inter-
novas realidades que podem mesmo prejudicar a resolução dos proble- venções em rede fazem cada vez mais sentido.
mas"º. Outras vezes esta partilha conduz à desresponsabilização dos
Antes de prosseguirmos no sentido de continuar a tentar com- Comportamento
agressívo
preender os possíveis significados da violência familiar parece-nos e violento
Por vezes ouve-se dizer, a um pai, a uma mãe (ou mesmo a uma criança): "não
J()</

disse nada com medo que me tirassem o miúdo ( .. que me mandassem para o colé-
importante realizar alguma clarificação conceptual
gio)".
O comportamento agressivo, que tem sempre uma origem (o
Jll) Recordamos, a este propósito, uma situação há tempos trazida a supervisão. agressor) e um destino (o agredido), necessita, para assim ser conside-
Por solicitação do tribunal de família e menores estava a realizar-se o estudo psicos- rado, de ter intencionalidade, isto é, o agressor tem que ter a intenção
social de uma família com vista à regulação do poder paternal de duas crianças que, de provocar um danorn. De acordo com a sua direccionalidade, o com-
anos antes, tinham sido retiradas aos pais (por negligência) e entregues aos avós.
Tendo aqueles solicitado a custódia das crianças, o tribunal pediu que fossem
averiguadas as condições de ambos os agregados familiares. Os pais foram estudados No entanto, ao começar a abordar a questão com os avós, estes, negando peremptoria-
por uma equipa da sua área de residência e os avós por outra, dado habitarem noutro mente, acrescentaram que assin1 já não queriam âs crianças e que as devolveriam aos
concelho. Tendo sabido que os pais suspeitavam que o avô abusava sexualmente de pais no mesmo dia. Com efeito, a sua porta cerrou-se e as crianças tiveratn que ficar
uma das crianças, a primeira equipa contactou com a segunda para a informar desse em "terra de ninguém", à espera que o tribunal decidisse o que ia fazer.
facto, acrescentando que "ela decidiria se valia a pena investigar mas era melhor ter Jii Por dano entende-se qualquer tipo e grau de ataque à integridade do outro.

cuidado, não fosse o futuro trazer a confirmação desses boatos". Assim fez a segunda. Assim ele pode ser físico, psicológico, económico, etc.
... - . ( -·'"- J
ti.:!.t•• l\j ~j w w ivtl 11i1 Wdí l~ .
d'IJI w tu JJJ lld dJ;· w Ül..lí lit'J ú'tll .Ui
298 299
(Des )Equilíbrios familiares (Des )Equilíbrios familiares

portamento agressivo pode constituir uma auto-agressão ou urna he- Claro que não é o conflito que, em si mesmo, gera violência: muitas
tero-agressão. Para a sua compreensão é importante conhecer os signi- vezes é a negação da sua inevitabilidade que é responsável por ela.
ficados que cada indivíduo atribui ao seu comportamento e ao com- O poder e o género são dois elementos importantes da organiza-
portamento dos outros, bem como o sistema de crenças, mitos, pre- ção estrutural da família e a sua consideração parece inegável quando
conceitos familiares e culturais312 • pretende compreender-se a violência familiar. A estrutura de poder é
A violência constitui sempre urna forma de exercício de poder, geralmente vertical e definida em função do género"' e da idade'".
mediante o uso da força (física, psicológica, económica, política), pelo Neste tipo de estrutura enfatizam-se mais as obrigações do que os di-
que define inevitavelmente papéis complementares: assim surge o viti- reitos e a autonomia dos mais fracos pode ser cerceada. Na avaliação
mador e a vítima. O recurso à força constitui-se como um método pos- do potencial de violência, numa família, Corsi (1995) considera que é
sível de resolução de conflitos interpessoais procurando o vitimador importante atender aos seguintes aspectos: 1) grau de verticalidade da
que a vítima faça o que ele pretende, que concorde com ele ou, pura e estrutura familiar, 2) grau de rigidez das hierarquias, 3) crenças em
simplesmente, que se anule e lhe reforce a sua posição/identidade. No tomo da obediência e do respeito, 4) crenças em tomo da disciplina e
entanto, e contrariamente ao comportamento agressivo, o comporta- do castigo, 5) grau de adesão a estereótipos de género, 6) grau de
mento violento i1ão tem a intenção de fazer mal à outra pessoa, ainda autonomia relativa dos membros.
que habitualmente isso aconteça"'. O objectivo final do comportamen-
to violento é submeter o outro mediante o uso da força. De acordo com A violência familiar compreende todas as formas de abuso cróni-
317
Corsi (1995, 24), "no âmbito das relações interpessoais, o comporta- co , temporário ou permanente, que ocorrem nas relações intra-fami-
mento violento é sinónimo de abuso de poder, na medida em que ele é liares: o mau trato infantil, a violência conjugal e o mau trato de idosos
utilizado para provocar dano a outra pessoa. Por isso, o vínculo carac- (quadro !). De acordo com as estatísticas, o adulto masculino é o
terizado pelo exercício de violência, de uma pessoa em relação a outra,
denomina-se relação de abuso". _ (1988, ín Corsi, 1995, 27), identificaram 11 factores que podem aumentar o potencial
risco de violência dentro_ de uma família: 1) duração da união fainiliar, 2) tipo de
Viulência Apesar da família ser idealmente vista como um local de realiza- actividades e interesses, 3) intensidade dos vínculos interpessoais, 4) conflitos de
iufra-familiar
ção afectiva, de compreensão recíproca e de segurança, diversos estu- actividades, i.é, diferenças de opinião nas decisões que afectam todos os rnembros da
dos empíricos revelam que, pelas suas características de intimidade, família, 5) direito culturalmente adquirido de interferir nos valores, comportarnentos e
atitudes dos outros mernbros da família, 6) diferenças de idade e sexo, 7) papéis
privacidade e crescente isolamento, ela está a tomar-se, cada vez mais, atribuídos, en1 função da idade e do sexo, 8) carácter privado do meio familiar, 9)
como urna sistema que tende a ser conflituoso (Corsi, 1995, 26)"'. pertença involuntária a determinada família, 1O) stress atribuído ao ciclo vital, às
mudanças sócio-económicas e outras, 11) conhecimento íntimo da vida de cada um
dos elementos da família, seus pontos frágeis, medos e preferências. Todos estes fac-
111 As agressões feitas a negros ou a homossexuais, p.e., inscrevem-se num sis-
tores podem incrementar a vulnerabilidade da família, transformando o conflito (que
tema de crenças que inclui os preconceitos racistas e sexistas como premissa básica. lhe é naturalmente inerente) em factor de risco de violência.
315
313 Isto explica-nos o facto de, muitas vezes, ouvirmos wn pai ou uma mãe vio-
Na nossa cultura, o sexo masculino continua a ser dominante.
lentos dizerem "mas eu não lhe queria fazer mal, só queria que ele me entendesse (i.é, Jlb Essa a razão pela qual podemos ouvir afirmações do tipo "os filhos devem

me obedecesse)", "não fui eu que lhe fiz isso". Quando um jovem ameaça alguém para obedecer aos mais velhos (aos pais)", "o pai é quem in1põe as regras da casa", "a mu-
lhe extorquir dinheiro até pode chegar a matar a pessoa mas o seu objectivo é con~ -lher deve seguir o marido".
317
seguir dominar o outro e obter o dinheiro. Relembramos que por relação de abuso se entende a interacção que, num con-
31 ~ De acordo com Goldbeter-Merinfeld (1996), 75º/o dos casos de violência são texto de desequilíbrio de poder, inclui comportamentos de uma das partes que, por
intra-familiares. Investigações de natureza social, realizadas por Gelles e Strauss acção ou omissão, provocam dano fisico ou psicológico à outra parte (Corsi, 1995, 30).
301
(Des)Equilíbrios familiares

familiar mais violento (em qualquer uma das formas de violência) e as Analisando sumariamente cada uma das formas de violência
318 familiar, diriamos que:
mulheres e as crianças são as vítimas mais frequentes •
1 - O mau trato infantil cobre toda e qualquer acção ou omissão Mau trato
Formas de violência Tipo de abuso infami!
(dos pais ou substitutos), não acidental, que impeça ou ponha em peri-
go a segurança dos menores"' e a satisfação das suas necessidades fisi-
Abuso físico
cas e psicológicas básicas. Existe uma enorme heterogeneidade de
Farmas activas
Abuso emocional
tipos de mau trato infantil que agruparemos em dois grandes grupos -
Abuso sexual abuso e abandono - eles próprios sub-divididos em diferentes sub-
-tipos. Convém desde já acentuar que o mau trato pode não só assumir
Mau trato
Abandono fisico diversas formas e graus de gravidade como, na maioria das vezes, co-
infantil Formas passivas
Abandono emocional -exi"stem e interactuam os seus diversos tipos e sub-tipos310 • Há mesmo
autores que consideram que o abuso e/ou o abandono emocional estão
Crianças testemunhas de violência
sempre subjacentes a toda e qualquer forma de mau trato, mesmo
quando a tónica é posta numa outra das suas configurações (Palacios
et ai., 1998)"' .
Mau trato da mulher Abuso físico
Abuso emocional
31
~
São menores todos os sujeitos com menos de 18 anos.
Abuso sexual
120
Palacios et ai. (1998, 404) referem que 30% a 50% das crianças maltratadas
Outras formas de abuso
Violência sofrem mais do que um tipo de n1au trato, sendo as associações mais frequentes: a) o
conjugal Violência cruzada abandono/negligência e o abuso emocional seguidos da b) tríade abandono/negligên-
cia-mau trato fisico-mau trato emocional. A incidência global do mau trato parece de-
Mau trato do homem crescer a partir da puberdade dada a maior capacidade dos jovens para se defenderem
dos seus "agressores".
Jn Palacios et ai. ( I 998, 401-402) apresentam uma tipificação diferente da que
Mau trato físico adoptámos, até porque englobam categorias de mau trato infantil não exclusivamente
Formas activas familiar. Embora, na sua essência, as duas categorizações sejam relativamente sobre-
Mau trato emocional
Mau trato poníveis, aqueles autores consideram mais algumas situações de mau trato que nos
Abuso financeiro
de idosos parece interessante referir: a) o mau trato pré-natal engloba as situações e o estilo de
vida da grávida que, podendo ser evitadas, são mantidas e prejudicam o desenvolvi-
Formas passivas Abandono físico mento do feto (p.e., consumo de drogas, abuso do álcool); b) na mendicidade a criança
Abandono emocional é levada (ou ela própria toma essa iniciativa), de forma esporádica ou continuada, a
mendigar; c) na corrupção os adultos promovem comportamentos anti-sociais por
parte da criança, estin1ulando-a, p.e., a apropriar-se indevidamente de objectos ou di-
~dro 1 - FÜfmas_ de violência
nheiro, a ter compo1tamentos agressivos face a terceiros, a participar em situações de
L~ Adaptado de Corsi, l 995, 33
tráfico (e eventualmepte de consumo) de droga e a ter contactos sexuais com outras
crianças ou adultos; d) na exploração laboral a criança é obrigada, de forma sistemáti-
ca, a realizar trabalho que devia ser realizado pelos adultos e que lhes traz, a estes,
JI~ De acordo com Corsi (1995) 50º/o das famílias conhece ou já conheceu alguma
{;~(;_benefícios económicos e interfere nas actividades escolares e nas necessidades sociais
forma de violência familiar. Os homens representam apenas 2o/o das vítimas de abuso.
_.;,. (;J -~-ll7'0! " .u.J " LW ••
~)# l.J .
'li,J.:ll...ii u t.J ~
L;â. 011 ~~il ··•Gj w
···~o'. ".-~~-- (J. ~.it-
""""' 303
302 (Des)Equilíbrios familiares
(Des )Equi!íbr10s familiares

No abandono fisico, o mau trato é passivo: temporária ou perma-


No abuso físico, o dano fisico ou doença pode variar desde a sim- nentemente a criança não é atendida nas suas necessidades fisicas (ali-
ples contusão até à lesão mortal"' e pode constituir um incidente rela- mentação, higiene, saúde, protecção e vigilância face ao perigo,
tivamente isolado ou uma situação crónica. No abuso sexual"' inclui- habitação) por parte de qualquer nm dos elementos da família. O aban-
-se qualquer tipo de contacto sexual do adulto com a criança tido com dono emocional engloba a falta de resposta às necessidades de afecto
o objectivo de provocar excitação e/ou gratificação sexual ao primeiro. da criança (tais como, contacto corporal, carícias, responsividade face
Pode, portanto, ir desde a exibição até à violação. No abuso emocional, às suas necessidades mesmo quando não são expressas, transformação
o adulto, de forma permanente, hostiliza verbalmente a criança do seu sofrimento ou dos seus afectos negativos). As crianças que pre-
(através de insultos, desqualificações, criticas ou ameaças de aban- senciam cenas crónicas de violência entre os pais apresentam pertur-
dono) e bloqueia constantemente as suas iniciativas (podendo mesmo bações muito semelhantes àquelas que foram vítimas de abuso.
fechá-la ou prendê-la)"'. Pensando nas consequências que estes maus tratos comportan1, c·,imcqU<'nciu,1·

Palacios et ai. (1998) organizam-nas em duas áreas fundamentais: a


da criança; e) o mau trato institucional cobre as situações inStitucionais em que, de
forma activa ou passiva, não se respeitam os direitos básicos de protecção, de cuidado física e a psicológica. "As consequências psicológicas relacionam-se
com as dificuldades que as crianças maltratadas têm na resolução de
e de estimulação desenvolvimental da criança.
-'
22
São sinais de abuso físico os hen1atomas e contusões inexplicáveis, um certo diferentes tarefas evolutivas necessárias a um desenvolvimento
número de cicatrizes, marcas de queimaduras, fracturas inexplicáveis, mordeduras de saudável" (idem, 414) e, naturalmente, dependem largamente da idade
adulto, asfixia ou afogamento. em que o mau trato ocorre.
Em 9üo/o dos casos o abusador é masculino e em 80% das situações é uma pes-
Em termos sócio-e1nocionais, estas crianças apresentam, com
soa conhecida da criança. Uma em quatro meninas e um em oito meninos pode ser se~
123

xualmente abusado até aos 16 anos (Corsi, 1995, 41). No abuso sexual intra-farniiiar muita frequência, um padrão de vinculação desorganizado/desorienta-
o abusador pode ser o pai, o padrasto, o irmão mais velho, o tio, o avô ou outro fami- do, em que o medo e a desconfiança face aos outros e a auto-desva-
liar. No abuso extra-familiar o abusador pode ser um vizinho, um professor, um profis- lorização vão marcar o desenvolvimento das relações inter-pessoais.
sional. Uma forma particular de abuso é o incesto (acto sexual entre familiares de Quando o mau trato acontece muito precocemente, especialmente o
sangue). Geralmente iniciado na puberdade, a situação de incesto pode prolongar-se
mau trato fisico, as crianças são não só menos capazes de reconhecer
por vários anos. Quanto mais próxima for a relação entre o adulto e a criança maior
será a perturbação psicológica. Constituem sinais de abuso sexual, na criança ou no
as expressões emocionais dos outros como manifestam um excesso de
adolescente: o choro fácil sem razão aparente, a'i mudanças bruscas no comportan1en- .expressões negativas. "Com efeito, a falta de capacidade empática
to escolar, o chegar cedo à escola e o atrasar o regresso a casa, o absentisn10 escolar, mostrada pelas crianças que foram maltratadas fisicamente pode ser a
o comportamento agressivo ou destnrtivo, a depressão crónica ou o retraimento, a explicação para a forma inadequada como reagem face às expressões
posse de conhecimentos sexuais e comportamentos inapropriados para a idade, o com- de angústia ou mal-estar de outras crianças. Não só não as consolam
portamento excessivamente submisso, a irritação, dor ou lesão na zona genital e o
como respondem com ira e, inclusivamente, com agressão à sua angús-
medo do contacto físico. Dado que, a maior parte das vezes, a criança ou o adolescente
não contam nada por medo ou imposição do adulto abusador, quando revelam a situa- tia. ( .. .) O retraimento social e os comportamentos de evitamento face
ção de abuso é necessário acreditar neles.
·a outras crianças são freque11tes entre as vítimas de negligência e maus
n• Embora difícil de identificar e de provar, este tipa de abuso pode ter graves
consequências ao nível do desenvolvimento psico-afeetivo da criança. Alguns indi- ou relativas à escola, ao desporto ou a qualquer outra actividade. Dessa forma pensan1
cadores de abuso emocional são: extrema falta de auto-confiança, exagerada necessi- que os provocam no sentido de eles darem o seu melhor e que lhes criam uma resistên-
dade de ganhar ou sobressair, excessivos pedidos de atenção, muita agressividade ou cia capaz de opor-se a qualquer adversidade. Oulras vezes fazem-no de fonna mais
passividade face às outras crianças. Os pais podem provocar um sofrimento emocional passiva, não gratificando afectivamentc os filhos nem lhes dando umfeed-back posi-
crónico nos filhos, sem perceberem que estão a ta.zê-lo, quando os criticam, enver- tivo acerca do seu comportamento.
gonham, desqualificam, insultam ou castigat11 relativamente a situações passadas na
304 305
(Des)Equilíbrios familiares (Des)Equilíbrios familiares

tratos físicos, provavehnente por generalização, aos pares, dos mode- xual são ainda referidas a insatisfação, a culpabilidade e a ansiedade
los de relação que se formaram nas suas desgraçadas relações com os sexuais, o evitamento, a baixa auto-estima e a auto-culpabilização se-
adultos" (idem, 415). As crianças maltratadas fisicamente apresentam xuais, o evitamento de contactos sexuais ou, pelo contrário, os com-
um maior número de comportamentos agressivos e têm um estatuto portamentos promíscuos (Palacios et ai., 1998, 416).
sociométrico muito baixo. O impacto sócio-emocional do abuso se-
xual evidencia-se na ansiedade, pesadelos, sentimentos de culpa, baixa 2 - A violência conjugal engloba todas as situações de abuso que Violência
auto-estima, sintomas depressivos, perturbações da identidade sexual e ocorrem, de forma cíclica e com intensidade crescente, entre os côn- conju1pl

comportamentos sexuais inapropriados para a idade que estas crianças juges"°. O abuso fisico pode começar com um pequeno toque fisico e
apresentam geralmente, ainda que, é importante sublinhá-lo, a sua continuar com empurrões, bofetadas, patadas, torceduras. Pode provo-
extensão e gravidade dependam de um conjunto de factores tais como car aborto, lesões internas, desfigurações e chegar ao homicídio. No
o tipo de abuso sofrido (as consequências serão tão mais graves quan- abuso emocional incluem-se insultos, gritos, críticas permanentes, des-
to mais traumático e violento for o abuso sofrido), a sua frequência valorização, ameaças que podem levar à instalação de um quadro de-
(um maior número de vezes e uma maior duração temporal terão con- pressivo e ao suicídio. O abuso sexual inclui todos os actos sexuais
sequências mais nefastas) e a relação entre a vítima e o agressor (os realizados contra a vontade do parceiro, inclui11do a violação. Para
efeitos são tão mais negativos quanto maior for a relação emocional existir violência recíproca cruzada (verbal e/ou fisica) é necessário
entre ambos). observar-se uma simetria dos ataques e paridade de força física e psi-
Ao nível cognitivo e escolar, as repercussões do mau trato também cológica entre o homem e a mulher.
são significativas, sobretudo nas situações de abuso e abandono fisico. Na compreensão da dinâmica da violência conjugal é importante
Os problemas de comportamento escolar, o absentismo, a indisciplina, considerar dois factores: o seu carácter cíclico e a sua intensidade cres-
a hiperactividade e a falta de atenção são os sintomas mais frequente- cente.
mente referidos e que se associam a um baixo rendimento académico. O ciclo da violência comporta três fases: a) na "fase da acumu-
Para tal situação contribuem, ainda, o fraco desenvolvimento linguís- lação da tensão" há pequenos episódios de confronto entre os cônjuges
tico (linguagem pobre, redundante e com poucos conteúdos abstrac- que provocam um acumular da ansiedade e da hostilidade; b) na "fase
tos ), resultante da escassez e da pobreza das interacções verbais entre do episódio agudo" a tensão acumulada dá lugar à explosão da violêu-
pais e filhos, e as limitações do conhecimento social. Nas situações de cia (de gravidade variável, esta pode ir desde um empurrão até ao
abuso sexual, as dificuldades e o insucesso escolar são facilmente homicídio); 3) na "fase de lua de mel'', o arrependimento leva ao pedi-
compreensíveis se pensarmos no ataque que estas crianças fazem ao do de desculpas e à promessa de que a situação não vai repetir-se. Com
pensamento para se defenderem da situação traumática experienciada. o tempo recomeçam os episódios de acumulação da tensão e retoma-
A longo prazo, as consequências mais assinaladas na literatura são -se o ciclo.
o comportamento agressivo e delinquente do adolescente, o consumo Relativamente ao crescendo da intensidade da violência conjugal,
de álcool e de drogas, as fugas de casa, as tentativas de suicídio e ou- esta começa frequentemente por uma agressão psicológica: o agressor
tros comportamentos auto-agressivos325 , assim corno os sintomas là'.'Y ridiculariza, não presta atenção, ignora, ri-se, corrige publicamente a
depressivos, psicossomáticos e ansiosos. Nas situações de abuso se- sua vítima que começa a ter medo de falar ou de fazer qualquer coisa,

326
J 25 Estes são particularmente importantes nas situações de mau trato físico e de De acordo com Corsi (1995, 34), cru 2% dos casos o abuso é contra o ho1nem,
abuso sexual, sobretudo quando ambas as situações ocorrem na mesma criança. _em 75o/o dos casos é contra a mulher e nos 23% restantes a violência é recíproca.
'.''"'' '.···- :-~
•[' .... ,
::--lilo.U _L ·.. (""j '_j(,. Lll w --a..b LlJ t!v.U... ~· lU .~ ··l>.1 -.L w Ilia w -11 :r-. üJ
--&.._~

306 307
(Des)Equilíbrios familiares (Des )Equilíbrios familiares

co1n receio das críticas, e a sentir-se deprimida e fraca. Num segundo física. Falamos, naturalmente, da rnicroviolência (Loketek, 1990, in
momento, surge a violência verbal (gritos, insultos, culpabilizações, Glasserman, 1997) do discurso desqualificador que anula o outro não
ameaças de agressão fisica, de homicídio ou suicídio) que cria um apenas no seu discnrso verbal on no comportamento manifesto mas, e
clima de medo ccillstante. Nesta altura a vítima, sentindo-se muito sobretudo, na sua própria essência, i.é., na sua qualidade de ser exis-
debilitada, emocionalmente desequilibrada e deprimida, consulta um tente. Neste contexto, a violência física pode, então, surgir como forma
psiquiatra e começa a tomar psicotropos. Finalmente surge a violência de relação preferida à indiferença desconfírmadora. Não esqueçamos
física no meio da qual podem surgir as exigências de carácter sexual e que os degladiadores podem esquivar-se ou ferir-se mas não podem
a violação. ignorar-se.

Embora possam ser diversos os factores desencadeadores e/ou Retornando a tentativa de compreensão do significado da violên- Signific•u..h>s
da violência
potenciadores da violência conjugal, a microviolência da desqualifi- cia familiar vemos que o modelo sistémico defende, hoje, nma leitura intra-familiar
cação e a traição conjugal constituem aspectos que não podemos que ultrapasse o reducionisrno que a cibernética de prímeira ordem
deixar de realçar. Ao primeiro referir-nos-emos um pouco mais adian- criou, ao permitir que se falasse de famílias maltratantes e ao procurar
te. A respeito da traição conjugal gostaríamos de acentuar que o poten- tipificá-las. Com efeito, para além de sublinhar, sistematicamente, que
cial de violência que este tipo de comportamento encerra está estreita- o conhecimento de redundâncias não pode fazer esquecer a importân-
mente relacionado corn o facto de ele negar, abrupta e claramente, o cia das singularidades familiares, a sistémica insiste na importância de
lugar que queríamos ocupar (junto do outro, naturalmente), a parcela equacionarmos o problema no contexto total, significativo, das rela-
de nós próprios que queríamos ser. A traição não só não nos deixa com ções geradas em tomo desse mesmo problema"'. Assim, é importante
nm referente actual da nossa identidade (somos a mulher (o marido), que o técnico que trabalha com casos de violência familiar utilize
a(o) outra( o), a( o) futura( o) ex-) como nos deixa sem história porque várias lentes, faça circular diferente informação (Ausloos, 1996 ), de
nega urna identidade em que acreditávamos e qne agora nos é subtraí- modo a criar um multiversus (Varela, 1989) no qual a família e a comu-
da (a de que éramos o cônjuge eleito para sempre). nidade, afastadas do seu equilíbrio, possam co-construir novas
histórias que não sejam histórias de novas violências nem histórias de
3 - O mau trato de idosos engloba todas as acções e omissões de não-violência. Sejam, apenas, histórias ... de famílias e de comunidades
Mau lratu
de !doso> qualquer membro da família que provoqnern nm dano fisico ou psi- que podem crescer desde que se transformem.
cológico ao idoso: agressões fisicas_, desrespeito, descuido na alimen-
tação, habitação ou cuidados médicos, abuso verbal, emocional e Historicamente, os primeiros modelos explicativos da violência EH.>lu~iio
históri~a
financeiro, falta de atenção, intimidação, a1neaças, etc. familiar pnserarn a tónica no funcionamento psicopatológico do ele-
mento maltratante. Nomeadamente no caso do mau trato infantil, este
Ao nível da violência familiar, e apesar de a ela já nos termos comportamento contra-natura do sub-sistema parental, ou de um dos
Microv·wlência
d• referido a propósito do abuso emocional e, sobretudo, da violência seus elementos, foi inicialmente compreendido no contexto da psico-
desqualificaçâ\1
conjugal, há nm tipo de violência que qneríamos snblinhar e que pode patologia individual do adulto maltratante . .No entanto, a investigação
aparecer independentemente da idade e do vínculo legal existente na não veio encontrar perturbações psicopatológicas específicas nos pais
díade. Por ser menos aparatosa é mais facilmente esquecida ou mesmo
ignorada. No entanto, é extremamente insidiosa e muito mais maléfica 27
J Como já anteriormente referimos, considera-se actualmente que é o sintoma
e pode, ela própria, potenciar fortemente o aparecimento de violência que cria o sistema e não este que o faz surgir.
308 309
(Des )Equilíbrios familiares (Des)Eqüilíbrios familiares

maltratantes"" e chamou a atenção para o facto de que este tipo de Antes, porém, consideramos útil apresentar uma leitura da vio-
explicação punha de lado aspectos sociais e contextuais que parecia lência familiar em que a focalização é feita no interior do sistema
importante considerar (Gelles, 1973, Spinetta e Rigler, 1972, Wolfe, famíliar. Fazêmo-lo não tanto com a intenção de encontrar a expli-
1985, in Palacios et aí., 1998, 406). cação fami-liar para o problema da violência familiar mas no intuito de
Surge, então, um segundo modelo, claramente sociológico, que provocar o leitor, levando-o a problematizar as suas próprias ideias e a
enfatíza o papel da adversidade das condições de vida da família vio- partir para urna leitura complexa dos modelos ecológicos que, em
lenta e maltratante: foca, especificamente, os factores de natureza nosso entender, só serão úteis se não forem entendidos numa perspec-
económica e social que envolvem as situações de pobreza, de dificul- tiva li-near de influência dos seus múltiplos níveis. Pelo contrário, eles
dades ou de degradação da habitação, de stress económico, de isola- de-verão ser equacionados no sentido de percebermos como é que as
mento social e de desemprego e associa-lhes aspectos tais como a di-ferentes vulnerabilidades e resiliências sistémicas (individuais e
mobilidade social, o conflito conjugal e a falta de sistemas de apoio. grupais) amplificam desenvolvimentos saturados, em que apenas exis-
Apesar de encontrarmos mnitos destes aspectos associados à violência tem mudanças de 1ª ordem, ou desenvolvimentos criativos, em que
familiar e, nomeadamente, ao mau trato infantíl, "é discutível que a mudanças de 2' ordem permitem às famílias mudar sem perderem a
[sua] etiologia( ... ) possa reduzir-se a uma análise de corte sociológi- organização que lhes confere existência.
co" (Palacios et aí., 1998, 406). Baseando-se na ideia de jogo familiar, desenvolvida por Palazzoli
Posteriormente, a explicação encontrada centra-se nas caracterís- e sens colaboradores (1988), Cirillo e Di Blasio (1992, in Dnret e
ticas individuais da vítima. No caso da criança maltratada é invocado Lefêbre, 1996) identificaram algumas redundâncias que organizaram
o papel desencadeador da vulnerabilidade da criança e, desta forma, em duas categorias:
são considerados como factores de risco: a prematuridade, o baixo a) Na primeira, o progenitor maltratante é sobretudo negligente, lu~apaeidwie
peso ao nascer, as complicações peri-natais, a deficiência sensorial, não cumprindo a sua tarefa de cuidar, proteger e criar os seus filhos parental como
mensagem
mental ou motora, mn temperamento difícil, as dificuldades de apren- (geralmente crianças ainda pequenas). A este comportamento e a esta
dizagem, os atrasos no desenvolvimento da linguagem e a escassa interacção os autores chamaram "incapacidade parental corno rnen-
competência social (Palacios et ai., 1998, 406). . sagern": através deste comportamento negligente o progenitor procura
No entanto, nenhum destes modelos pôde, por si só, integrar a censurar algum membro da família que se desinteressou dele (cônjuge,
complexidade destes fenómenos que se passam, muito frequente- avó(ô) da criança, filho mais velho). É o caso, p.e., da mãe que mal-
mente, dentro de casa mas que se potenciam em espirais dinâmicas de trata a filha (negligenciando-a) para punir a sua própria mãe que ela
inf1uências intra e inter-sistémicas. É com esse objectivo que vão sur- sente que também a negligenciou quando criança. Não cuidando da sua
gir os modelos ecológicos que adiante referiremos. filba, a mãe espera que a avó se ocupe da neta e assim repare a sua falta
anterior. Contudo, e como realçam Cirillo e Di Blasio, esta é urna
manobra perdedora já que, qualquer que seja a evolução, a mãe da
criança nunca vai ser realmente gratificada. Com efeito: 1) ou a avó se
recusa a assumir este papel e a mãe sentir-se-á frustrada e experiencia-
rá rancor face à criança por ela não ter sido capaz de lhe devolver o
Jill É importante esclarecer que o que nestas investigações é posto em causa é o
afecto da sua mãe, ou 2) a avó aceita esta segunda oportunidade de
aspecto etiológico da perturbação mental no desencadear do mau trato e não o facto de
certos indivíduos violentos poderem, também, apresentar uma perturbação psicopa~
realizar-se como mãe mas preferirá afastar a sua filha, que personifica
tológica clara.
!"",

;~
,,,--
·. ilL , •~
,,--- ',,---

~""71
-
1,
-

~
" '-l~J -.. ,,,"."'_t(-1
w ''i,l;J- w ·th.1~ w -l~< g~ ~ Lia· -~ l~~~ U;J -,. . lLci.J á:J ...,. -
i!1J ""''-
~
""""'
~ fUU,

310 311
(Des )Equilíbrios familiares (Des )Equilíbrios familiares

o seu insucesso, consagrando-se inteiramente à nova criança. Neste a) Na primeira etapa, denominada "conflito de casal", existe uma
caso a mãe sente perder o amor de ambas, da sua mãe e da sua filha 3n. oposição constante e sistemática entre os cônjuges. Perpassada por um
Coliga<,;ãu contra b) Na segunda, há um contexto de conflito conjugal e a criança conflito aparentemente sem saída, a relação conjugal é marcada por
o agressor
(geralmente com mais de 2 anos) alia-se a um dos progenitores (aque- rupturas mais ou menos breves e por contínuas ameaças de separação
le que pensa ser a vítima) contra o outro. Nestas situações a criança é que alternam com sucessivas reco11ciliações. Para a manutenção do
maltratada física e/ou emocionalmente e reforça, pelo seu comporta- conflito desempenha um papel importante a expectativa que cada côn-
mento provocador, os mecanismos associados ao desencadear da vio- juge tem sobre a sua capacidade de poder modificar o outro e levá-lo
lência. Uma variação muito frequente deste jogo encontra-se nas situa- a render-se à sua perspectiva e decisão. Desta forma, os cônjuges man-
ções de separação/divórcio parental em que a criança torna a defesa do têm-se em papéis distintos: um de dominador aparentemente activo e
progenitor ausente. Nesta configuração, a criru1ça, sendo vítima da vio- o outro de vítima aparentemente passiva (embora na maior parte das
fência de um ou até de ambos os pais, mantém activamente, pelo seu vezes ele seja um provocador passivo). Nesta fase a criança é, geral-
comportamento, o jogo que sustenta essa mesma violência. Nestes mente, um mero espectador embora mostre o seu desagrado através de
casos, a(s) criança(s) triangulada(s) é(são) alvo de triangulações mais reacções esporádicas de ansiedade e de irritabilidade.
ou menos intensas enquanto que o resto da fratria, quando existe, fica b) Na segunda etapa, designada corno "inclinação dos filhos", pe-
relativamente preservada. Muitas vezes, as instituições que acolhem rante a perpetuação do conflito, os filhos são levados a tomar partido
crianças maltratadas perpetuam este jogo relacional, entrando no sis- por um ou por outro progenitor. Não compreendendo o carácter circu-
tema de alianças e de coligações existentes, e potenciam a manutenção lar da relação existente no casal, a criança alia-se ao progenitor que
de comportamentos desorganizadores por parte dessas mesmas crian- considera como mais fraco e como vítima. Com três-quatro anos, a
ças, ao mesmo tempo que não se constituem como uma diferença que criança, sentindo o sofrime11to da vítima, alia-se a ela, procurando con-
permitirá ,criar uma transformação. solá-la. Este adulto, que muitas vezes experimentou um papel seme-
lhante na sua fa1nília de origem, procura o apoio da criança, o seu con-
f'o., 1d,mwncnlo Tentando clarificar a posição da criança no desenrolar deste solo e o seu alívio, confia-lhe as suas desilusões conjugais, expressa-
da CTian~·"
na1:0/ii;111·ül! processo de mau !ratono, Cirillo e Di Blasio (1997) consideram que a -lhe a sua insatisfação relativamente ao cônjuge e espera dela uma
mesma percorre quatro etapas fundamentais: relação de cumplicidade. Desta forma, a coligação transgeracional
instala-se. Se o conflito conjugal se resolver a coligação deixa de fazer
329 Recordamos, a este propósito, o caso de uma toxicodependente que, no decur- sentido e a criança pode ser libertada. Nas outras situaçôes o filho é
so de uma gravidez, iniciou u1n processo de tratamento. A entrega que fez da criança mantido numa posição triangular e utilizado pelos pais para regular os
aos cuidados matemos da avó foi por nós entendida no contexto da procura de seus conflitos conjugais e as suas mneaças de separação ou as suas se-
reparação de que acima falámos. A avó, iniciahnente ambivalente, aceitou finalmente parações reais.
cuidar da neta mas exigiu que ela lhe fosse totaln1ente entregue, remetendo a filha para
c) Na terceira etapa, denominada "coligação activa do filho", a
o processo terapêutico que estava a realizar e insistindo para que a n1esma fosse inter-
nada numa comunidade terapêutica. Durante os períodos em que esteve com a filha a criança, que se aliou a um dos progenitores, começa a desenvolver urna
rnãe era claramente negligente. Quando a avó se apoderou totalmente da criança a mãe hostilidade activa contra o outro. Deixando de ser um mero espectador,
abandonou o tratrunento e recaiu num comportan1ento de consumo massivo. ela expressa abertamente o seu medo, a sua raiva, o seu rancor, a sua
JJQ A tipificação apresentada reporta-se a situações de violência física dado que a
hostilidade para com o progenitor contra o qual está coligada, poden-
pouca consistência numérica de casos de negligência e abuso sexual impede os autores do associar comportamentos de oposição e rebelião tais como negar-se
de generalizar as suas observações a estes dois tipos de mau trato (Cirillo e Di Blasio,
a comer, a deitar-se, a fazer os deveres, etc. Neste processo, a criança
1997, 110)
312 313
(Des)Equilíbrios familiares (Des )Equilíbrios faruiliares

é muitas veze.s instigada pela vítima a expressar a sua raiva e agres- (1997) associam o seu comportamento violento à vivência de senti-
sividade face ao progenitor que considera como vencedor e dominante mentos de abandono, vivência tornada insuportável e não mentalizá-
(vitimador). Se o conflito se prolonga, a criança perpetua, de forma vel dadas as dificuldades de elaboração da separação por interiorização
estável, o seu comportamento agressivo intra-familiar que, progressi- de um modelo de vinculação inseguro. "Se utilizarmos( ... ) o conceito
vamente, pode ser alargado a espaços extra-familiaresJ 31 • de jogo familiar, podemos observar a forma como o progenitor que
d) Na quarta etapa, apelidada de "instrumentalização das respostas maltrata reage com raiva, ansiedade e hostilidade, não só em virtude
da criança", o jogo familiar complexifica-se já que a criança assume a das suas experiências passadas, mas também porque percebe que está
posição de "instigador activo do mau trato". A raiva e a agressividade excluído da coligação que se estabeleceu entre o companheiro e o seu
da criança são interpretadas como sinais de rebelião e de desobediên- próprio filho. Esta é uma percepção confusa e indefinida dada a
cia e os castigos endurecem de forma notória. Os país passam a usar própria natureza da coligação intergeracional que, como vimos, não
estes comportamentos como instrumentos de acusação recíproca e 0 pode ser claramente declarada. O que ele percebe provém apenas de
conflito conjugal desemboca num conflito parental em que um dos sinais indirectos analógicos, isto é, de sinais conectados com o com-
progenitores se torna demasiado permissivo e ou outro excessivamente portamento do filho. E são justamente a hostilidade, a rebelião e a
autoritário. A comunicação só aparentemente é complementar já que, agressividade do filho dirigidas abertamente contra o progenitor, que o
na realidade, é a escalada simétrica que domina a comunicação exis- companheiro nada faz para mitigar, que constituem o sinal de rejeição,
tente entre ambos os progenitores: cada um procura mostrar que é o de separação e de perda( .. .) [por parte daquele] que se sente violenta-
melhor e fá-lo à custa da desqualificação do parceiro. Nesta altura, a mente excluído [em virtude da aliança estabelecida com o outro pro-
criança sente-se traída, desconfirmada por ambos os pais que a genitor]" (Cirillo e Di Blasio ,1997, 118-119).
investem como um simples joguete das suas lutas diádicas. Revolta-se,
então, contra ambos, dirigindo-lhes a sua raiva e a sua agressividade e Resulta desta análise a compreensão de que as vítimas e os viti- Sistema
vincl1bli\·ü de
converte-se, simultaneamente, em vítima e instigador332 • Desta forma, madores nunca estão sozinhos, pelo que a mudança requer uma modi- heteru·c<mfirn1ação
fecha-se um novo ciclo de violência que, recursivamente, se auto-ali- ficação do sistema vincular em que estão imersos (Loketek, 1997): no
menta. desenvolvimento da violência há sempre um jogo circular em que um
Descentrando-se da posição ocupada pela criança para compreen- comportamento provoca outro. Como afirma o autor: "'Um membro
der o que se passa com o progenitor maltratante, Cirillo e Di Blasio que perdeu ou está ameaçado de perder um 'objecto' confirmador, que
lhe devolve um aspecto valorado da sua identidade, deambula em
i 31 Com efeito, num primeiro tempo, a criança circunscreve o seu comportamen- busca de um permanente jogo de ilusões. Num desses jogos alguém
to agressivo ao espaço familiar, mostrando, em contextos extra-familiares, uma pro- ameaça retirar-se e aparece a violência corno reveladora da impotência
gressiva irritabilidade, ansiedade e distracção. negociadora e como fracasso em alcançar aquilo que, pelo próprio
131 É por esta razão que Cirillo e Di Blasio (1997) consideram que se as relações
paradoxo da violência, nunca poderá alcançar-se: que 'o outro
familiares assumem a configuração desta quarta etapa a terapia familiar, por si só, não
é suficiente para modificar as respostas emocionais e comportamentais da criança.
entregue o que eu quero, espontaneamente. ( ... )A nossa experiência é
Nestes casos é necessário intervir simultaneamente em diversas áreas da sua vida que, previamente ao acto violento, aparece no sub-sistema uma situa-
(escola, grupo de pares, outras relações familiares) e oferecer-lhe um espaço psicote- ção de pedido, vivido como exigência, que impede qualquer negocia-
rapêutico individual. Dado que neste percurso todos os elementos da família estão ção e não existe ninguém, na família, qtte tenha interesse em aliviar
igualmente prisioneiros de um jogo disfuncional, que não lhes permite deixar de jogar essa ligação patológica; pelo contrário, existem os que designaremos
um papel activo, as intervenções clínicas individuais tornam-se, por si só, parciais e
de instigadores ou cúmplices e que se vêem beneficiados pela violên-
ineficazes.
"'~ ""~-e-~ ~.~ -~~I ,.,,J ~

-L'tiJil Lf;,JM l~iJJ t.:J Ui.li !:':li tá ~ [;.i.1 l!.~ "" 1 '
iii.aJI
314 315
(Des)Equilíbrios familiares (Des )Equilíbrios familiares

eia desse sub-sistema" (idem, 232). Na leitura da violência é, então, ausência de tensões económicas e atitudes contra a violência, por parte
extremamente importante atender ao triângulo vitimador-vítima-insti- dos pais) diminuem, respectivan1ente, as situações de crise transitória
gador333. (como, p.e., o desemprego, a morte de um familiar, a dificuldade em
encontrar qnem tome conta das crianças) e as situações de vulnerabi-
Mo<ldo Num modelo claramente ecológico, Corsi (1995) propõe 0
ecológico
seguinte esquema de leitura da violência familiar (quadro 2): a reali- MACROSISTEMA Crenças e valores culturais
dade que se constrói e se desenvolve no microsisterna tem não só a ver p.e. nun1a sociedade patriarcal o poder é conji?rido
ao honiem
com as características dos elementos que o compõem e com a totali-
Concepção acerca do poder e da obediência,
dade que ele forma mas é também influenciada pelas características do p.e. o homem é mais.forte e deve resolver os confli-
exosistema e do macrosistema. Ao nível do exosistema, há factores de tos e, se necessário, usar a força; a mulher é mais
risco que podem amplificar o comportamento violento ainda que, por fraca, doce. subrnissa e obediente
si sós, não sejam st1ficientes para o desencadear. EXOSISTEMA
Na mesma linha, Palacios et ai. (1998, 407-408) referem-se ao Legitimação institucional da violência
modelo ecológico de Belsky ( 1980) que, distinguindo-se um pouco do p.e. as instituições reproduzem o modelo de
anterior, foca, no entanto, os mesmos aspectos fundamentais. poder vertical e autoritário e corifirmam o mode-
lo patriarcal
Genericamente, o modelo considera que quando os níveis de stress
(provenientes de mudanças ao nível do microsistema, do exosistema Modelos violentos nos meios de comunicação
ou do macrosistema) ultrapassam os recursos pessoais e familiares Vitimização secundária
disponíveis o equilíbrio conseguido perde-se e o conflito e a violência p.e. decorrente da culpabilização da "vítima"por
podem ocorrer. parte daqueles a quem recorre para pedir auxílio
Cicchetti e Rizley (1981, in Palacios et ai., 1998) consideram,
MICROSISTEMA
também, que o mau trato infantil ocorre quando os padrões de risco se
Factores de risco:
sobrepõem ou anulam qualquer influência protectora. No seu modelo História pessoal (violência na família de origem)
Aprendizagem de resolução violenta de conflitos
* Stress económico
fazem ainda intervir a dimensão temporal, distinguindo as situações * Desemprego
Autoritarismo nas relações familiares
transitórias e as situações crónicas. A existência de amortecedores tem- Baixa auto-estima * Isolamento social
porários (tais como a superação de um período difícil para a criança, a Isolamento * Alcoolismo
obtenção de emprego ou de ajuda para tomar conta das crianças) ou
permanentes (nomeadamente a existência de um bom nível de saúde e Carência de legislação adequada
um temperamento fácil, por parte da criança, ou de recordações infan-
Escassez de apoio institucional para as vítimas
tis agradâveis, bom nível de auto-estima, flexibilidade nas reacções,
/ Impunidade dos perpetradores

Por esta razão, Loketek (1997) considera que a intervenção terapêutica tem
313
Atitudes face ao uso da força como forma de resolver conflitos
L._.___
1 L_
que: 1) implicar todos os elementos em relação, 2) pôr em palavras os actos de cada
um, 3) o terapeuta tem que manter uma capacidade negociadora (pelo que nw1ca se Conceito de papéis fanüliares, direitos e responsabilidades
pode deixar colocar num contexto judicial), 4) é importante explorar a violência em
todos os sub-sistemas, 5) não se alcançará a mudança se se tratar só a vítima ou só o Quadro 2 - Modelo ecológico de leitura da violência familiar
vitimador. L__~~~~~~~~ A<lapt<ulo de Corsi. 1995, 53
V'

316
(Des)Equilíbrios familiares

4
~-~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

lidade permanente (tais como a existência de uma doença crónica, de Família multiproblemática ou muitiassistida
atraso mental ou de baixa tolerância à frustração, por parte da criança,
a existência de dificuldades conjugais, de problemas económicos ou a
valoração p0sitiva do castigo físico, por parte dos pais).
Numa linha semelhante, Szwarstein ( 1997) considera importante,
na análise da violência, considerar três níveis: o contexto sócio-cultu-
ral, o contexto ideológico e o contexto da relação intra e interpessoal
(este último considerado tanto na sua configuração actual como na sua
inscrição histórica).
O contexto sócio-cultural, ou local, pode potenciar a aprendiza-
gem de modelos relacionais agressivos e violentos (é o caso, p.e., das
ditaduras políticas ou das ditaduras económicas). O contexto ideológi-
co pode alimentar a violência dado o double-bind criado por men-
sagens contraditórias, tais como o princípio igualitário dos sexos e a Contrariamente ao que acontece em muitas outras situações sin-
ideologia patriarcal (em que o homem é considerado como superior à tomáticas, a família multiproblemática não se define pela presença de
mulher e em que, por isso, tem mais poder), a educação para todos e um sintoma preciso mas, antes, por uma forma de estar e de relacionar-
as restrições indirectas de acesso a determinados níveis de ensino. A -se, bem como pela existência de uma série de problemas que afectam
este nível, a saída possível para o double-bind pode ser a violência ou um número indeterminado de elementos, em margens qualitativa e
a loucura. quantitativamente muito amplas. Nestas famílias não há um P.I. multi-
No contexto intra ou inter-individual, a violência (verbal ou fisi- problemático como nas outras há um P.l. psicótico, ou anoréxico ou
ca) surge, como já anteriormente analisámos, em momentos em que os delinquente, ou toxicodependente. Há, antes, numerosas figuras pro-
interlocutores da relação precisam de ser confirmados nos seus papéis. blemáticas que podem sobrepor-se e alternar-se. Como diz Linares
São momentos de escalada em que a negociação a nível verbal não é (1997, 38) "os sintomas individuais( ... ) jogam um papel secundário
possível: a palavra do outro não é credível e surge, então, o acto vio- face ao sintoma familiar( ... ) que é a tendência para a desorganização
lento (Szwarstein, 1997, 134). e para o eaos""'. Dada a diversidade de problemas apresentados e de
pessoas atingidas, estas famílias são normalmente assistidas por uma
1otervenção Tudo isto são esquemas, leituras possíveis que cada um integrará corte de serviços, num equilíbrio inter-sistémico que tem que ser con-
em função das suas ressonâncias. A sistémica alerta-nos para a siderado para que os próprios comportamentos e relações evidenciadas
importância de .não esquecermos que a complexidade dos siste1nas ganhem sentido. Dada a importância dessa multiassistência no desen-
abertos, como é o caso da família, resulta da sua autonomia e da sua volvimento das famílias multiproblemáticas estas são também muitas
auto-organização. Nesse sentido, o que é mais importante, do ponto de vezes assim chamadas.
vista da intervenção, é percebermos que acoplagem podemos fazer
com uma família em que o comportamento de algum ou de vários dos 334
Apesar de, por vezes, nessas outras famílias cõm P.L claramente identificado
seus elementos exige uma clara transformação. Todas estas teorias também poder haver outros elementos sintomáticos, ou de o próprio PJ. poder evi-
denciar diversas dificuldades, e de em todas elas se verificarem problemas ao nível do
devem servir, então, para amplificar a nossa criatividade e flexibili-
desempenho de funções (nomeàdamente parentais), de delimitação de fronteiras, de
dade. organização estrutural e de instabilidade psicossocial dos seus elementos, a utilização
··~··.· ···~ ISJ• ·1.~~1 .""""'
'. ~. ll,,J w w i.~ 4J "
\~ ~
"".-•
\- t~.i " • 1.
W1Jl ~Ai tt:ill L,J) ln.U
~

'"'J'
318 319
(Des)Equilíbrios fruniliares (Des)Equilíbrios familiares

Raízes A designação de família mnltiproblemática surge no final dos anos da) a miséria resultava de uma desorganização crónica dos seus ele-
históricas
50, primeiro no âmbito do trabalho social (Scott, 1959) e só depois no mentos mais significativos. Inicialmente semelhantes aos restantes,
da saúde mental (Mazer, 1972) (in Linares, 1997, 24). A designação estes sistemas respondiam, muitas vezes, de forma surpreendente à
agrupava famílias de baixo nível sócio-económico, geralmente no li- ajuda terapêutica. Nestes casos, a valori;;oação das yotei;tcialidades -~
miar da pobreza, socialmente marginalizadas e com problemas graves intrínsecas de cada membro e da fàllillia no seú
conjunto tomava-se
de alcoolismo, toxicodependência, delinquência, maus tratos e aban- mais fácil dado que havia uma menor descontinuidade entre as expe-
dono das criru1ças. Posteriormente os autores verificaram que estas rleriCias, a linguagem, os valores e a cultura da família e dos técni-
. famílias se caracterizavam menos por uma situação de Pobreza êõs/cultura dominante .
extrema do que por uma enorme dificuldade em administrar os ;;us
' recursos económicos, alternando, assim, entre fases de relativ~ bem Nos anos sessenta-setenta, focalizando a sua atenção na organiza-
estar e fases de claras dificuldades. ção estrutural do grupo familiar e nas modalidades relacionais esta-
No trabalho que realizaram com famílias multiproblemáticas de belecidas com o meio circundante, diversos autores definiram as
Palermo, Cancrini, Gregorio e N ocerino ( 1997) verificaram que em famílias multiproblemáticas da seguinte forma (Cancrini, Gregorio e
todos os casos havia uma clara privação económica e cultur_al. A carên- Nocerino, 1997, 48-49):
cia de meios eco11ómicos e de competências sociais amplificava todos - "Famílias isoladas" (Powell e Monahan, 1969), evidenciando,
os problemas que surgiam e reduzia as capacidades de resposta eficaz. assim, o seu isolamento, fisico e emocional, relativamente à família
A atitude substitutiva dos profissionais em nada favorecia o desen- extensa e ao contexto social. Corno consequência, estas famílias não
volvimento daquelas competências, antes aumentava a postura de de- possuem qualquer tipo de apoio extra-familiar, nomeadamente nas
legação e de desresponsabilização assim como diminuía uma auto-esti- fases mais críticas do seu percurso familiar. Este isolamento é inde-
ma já reduzida. O conhecimento da história familiar mostrou que em pendente do estrato social.
muitos casos havia situações de recente emigração, de instituciona- - "Famílias excluídas" (Thiemy, 1976), sublinhando a separação
lizações prolongadas ou de pertença a outras famílias mullipro- entre estas famílias e o contexto parental, institucional e social que
blemáticas. Uma análise mais atenta das famílias estudadas permitiu também ocorre nas classes sociais médio-altas.
verificar que naquelas que, durante algum tempo, tinham feito parte de - "Famílias sub-organizadas" (Aponte, 1976, 1981), clarificando
classes sociais mais integradas (cerca de um terço da amostra estuda- as suas características disfuncionais no plano estrutural, devidas a
graves lacunas ou carências no desempenho dos papéis parentais.
da expressão multiproblemática para um tipo particular de fan1Ílias, que são estas que - "Famílias "associais" (Vailand, 1962), evidenciando, sobretudo,
agora analisamos, deve-se, de acordo com Cancrini, Gregorio e Nocerino (1997, 49- os problemas de comportamento anti-social.
-50), à observação clínica de uma diferença fundatnental existente entre duas modali-
- "Famílias desorganizadas" (Minuchin e col., 1967), realçando as
dades básicas de famílias: a) aquelas em o equilíbrio emocional da família, entendida
como um todo, e dos seus membros, considerados individualmente, se alimenta recur- seguü1tes perturbações comrmicac_ionais - intercâmbio muito limitado
sivamente em torno do comportamento sintomático e b) aquelas em que o comporta- das informações entre os membros da família e experiência cognitiva
mento sintomático funciona como um elemento de dificuldade e de desagregação tanto e emocional tendencialmente indiferenciada entre cada membro; uso
para o comportamento dos outros membros do sistema corno para ele próprio, consi- Prevalente dos canais para-verbais; maio; ressonância ao nível rela-
derado na sua globalidade. São estas últimas que correspondem às famílias multi-
cional do que ao nível informacional das mensagens; caos comunica-
problemáticas. De acordo com Benoit (1997, 133) esta reacção de aniquilamento, em
pessoas que estão desprovidas de \iÍUCJJ..!.9_:?._s_uf1cientemente.nutri_e.ntes, é urna resposta
cional que evidencia e reforça a desordem relacional e a desorganiza-
etológica corrente e inerente ao desmembramento caótico destas famílias.
ção estrutural.
320 321
(Des)Equilíbrios familiares (Des)Equilíbrios familiares

É óbvio que em todas estas caracterizações se toma como padrão estáveis no tempo e suficientemente graves para exigir uma inter-
o funcionamento familiar de que demos conta no capítulo anterior venção externa.
quando abordámos o ciclo de vida da família. Como na altura disse'. 2-Grave insuficiência na assunção, por parte dos pais, das
mos, ele continua a ser o 1nais desejado pela maioria das pessoas, que actividades funcionais e afectivas necessárias ao adequado desenrolar
o toma como referência, tendo o técnico que acautelar-se no sentido de da vida familiar.
não reificar a sua configuração mais frequente nem esquecer as com- 3-Reforço recíproco entre o primeiro e o segundo aspectos.
petências próprias de cada família. 4-Labilidade das fronteiras, própria de um sistema caracteriza-
De acordo com Linares (1997, 26); "As famílias multíproblemáti- do pela presença de profissionais e de outras figuras externas que subs-
cas são( ... ) um dos emblemas da pós-modernidade e isso não apenas tituem parcialmente os elementos incapazes.
pela sua estreita ligação às toxicodependências. Geralmente pouco 5-Estruturação de uma relação de dependência crónica da
produtivas, a sua relação com o consumo é ambígua e quase pitoresca: fà1nília face aos serviços externos e vice-versa, criando as condições
em casa pode faltar o necessário ao nível da comida ou da roupa e, ape- para o desenvolvimento de um equilíbrio inter-sistémico.
sar disso, encontrar-se repetido um electrodoméstico último modelo. O 6-Desenvolvimento de comportamentos sintomáticos carac-
que estas famílias consomem de forma desenfreada são serviços so- terísticos, tais como a toxicodependência de tipo D (sociopática)m.
-------·---
--~---·----·----~-~

ciais, até ao ponto de existir uma relação privilegiada entre ambas as


instâncias o que faz com que, frequentemente, seja muito dificil JJ;- Cancrini et ai. (1988), a partir do estudo dos padrões de organização e comu-

desligá-las uma da outra. A estrutura familiar também é característica, nicação familiares, da observação e descrição do comportamento dos toxicodepen-
dentes, da avaliação psicodinâmica dos seus problemas e da avaliação do efeito das
ocorrendo significativas rupturas e reconstituições que criam genogra-
estratégias terapêuticas utilizadas, propõem uma tipologia da toxicodependência em
mas desorganizados e barrocos nos quais os papéis tradicionais (na que distinguem quatro classes: traumática (traumatic drug addiction), proveniente da
tradição da família moderna) se modificam e reformulam". Acrescenta neurose actual (drug addictionjTom actual neuroses), de transição (transitional drug
(idem, 40-41) que "regra geral, a ideologia familiar situa-se no campo addictíon) e sociopática (sociopathic drug addiction).
da marginalidade [evidenciando] desconfiança e receio face ao poder Na toxicodependência trau1nática, os sujeitos não apresentam problemas até à
estabelecido e vaga solidariedade para com os seus homólogos mar- ocorrência do traurna (n1orte de u1n membro da fa1nília, separação dos pais, etc.), ocor-
rendo, a partir dele, wn corte abrupto con1 o padrão de vida normal e passando a heroí-
ginais, umas vezes puramente teórica outras capaz de actos heróicos de na a ocupar um lugar central até pela protecção que dá ao sujeito contra o seu estado
ajuda e apoio, a que podem seguir-se estrondosos abandonos e de pânico. Auto-destrutivo e teatral, o toxicodependente associa, com frequência,
traições. Desafio à moral estabelecida e respeito ocasional a códigos álcool e barbitúricos à heroína correndo o risco de sobredosagem. A desaprovação
alternativos [são também frequentes]". social e os comportamentos destrutivos causados pela droga ou pela abstinência são
frequentemente usados para mascarar a culpa causada pelo trauma. A relação terapêu-
tica tem que ser desenvolvida com cuidado, usando, a curto e longo prazo, um substi-
Chegado a este momento, é natural que o leitor se questione no
Definição
tuto da droga.(:,. vcrb_ali_?4Ç,i;íQ _ pa d()r __ d:ve c_onstit_uir___ o___ fulcro da__t~r_api~, P.9-S,_sando-se
opcntcioual sentido de saber como é possível operacionalizar este conceito de rapidamente da drog·a-p~a a pe_;~Oà. A'teiapii.illdi~id~al pareCe ·pfefefíVel e, 'a'p~sà:r do
família multiproblemática. s'êü"êRráC.tei-dfam--átiCO,' a recuperação pode ser total se não houver perturbações físi-
Cancrini, Gregorio e Nocerino (1997, 52-53) propõem-nos seis cas causadas pela droga.
Na toxicodependência proveniente da neurose actual a estrutura familiar encon-
critérios:
1-Presença simultânea de dois ou mais elementos do mesmo trada foi a seguinte: forte envolvimento de u1n dos pais (geralmente o do sexo opos-
to), papel periférico do outro progenitor, presença de run triângulo perverso, :fronteiras
sistema familiar com comportamentos problemáticos estruturados,
difusas no interior da família, polarização da fratria (definindo o P.L como mau e os
irmãos como bons). As mensagens comunicacionais são contraditórias, violentas e
u •..iS,.! [,,,_:i - l!l
- ~,.J -
' •l
Ll<J<i l~Jl ~,JH L.ll -~

4.ill \J41~
~
-l.i.UJjj
~~ l:&•. J ..7 •.
ii-..u í~ !Llitlli Í4&11 íi.mill
322
323
(Des)Equilíbrios familiares
(Des )Equilíbrios familiares

Dissemo-lo já anteriormente, mas é importante não esquecer,


sobretudo com estas famílias, que elas também têm recursos e com- Apesar de a parentalidade estar geralmente perturbada nas Recursus/
petências que importa utilizar e activai. famílias multiproblernáticas e de associar-se a uma coajugalidade fre- competências

quentemente conflitual, a labilidade afectiva que as caracteriza e a


com rápida escalada dos conflitos. Geralmente deprimido, o toxicodependente oscila
intensidade da desarmonia e do conflito que as marcam permitem criar
entre a culpa e a intolerâncía face aos que lhe são significativos (pais, terapeutas). A vivências menos monolíticas, do que as características de outras
terapia familiar, ou pelo menos o trabalho com os pais, revela-se fundamental. Por famílias aparentemente menos problemáticas, e introduzir fissuras
vezes, é necessário um período de internamento numa comunidade. O trabalho indi- pelas quais se desenvolvem alguns mecanismos protectores e transfor-
vidual também se tem revelado útil, desde que completado com o apoio aos pais. o madores das insuficiências da função parental. É o caso, p.e., de urna
comportamento sintomático tem que ser atacado desde o início. Os autores referem
mulher que, após um longo período em que em que esteve ilocalizá-
uma certa semelhança entre estas famílias e as dos delinquentes ou as que apresentam
problemas moderados de comportamento. vel, regressa a casa para cuidar dos filhos na altura em que o marido é
Na toxicodependência de transição os componentes psicóticos e neuróticos inte- preso por tráfico de drogas. Ou de um homem que diminui o seu con-
ragem de modo complexo, criando uma configuração clínica cuja evolução é seme- sumo de álcool e cuida dos seus filhos, apoiando-se na família de
lhante à da psicose maníaco-depressiva. O contexto fan1iliar tem semelhanças com 0 origem, quando a mulher foge de casa com outro homem.
dos P.I. anoréxicos, no uso de mensagens paradoxais e incongruentes (esforço para não Por outro lado, o ecossistema destas famílias (i.é, a família alarga-
definir as relações), no uso da toxicodependência para resolver problemas de liderança
(papel de auto-sacrifício do PJ.), na polaridade da fratria em irmãos sucedidos/irmãos
da, os vizinhos, os conhecidos, os amigos, as instituições, os grupos de
tfacassados e no uso da toxicodependência como evitamento do fracasso do processo voluntários), estimulado pela espectacularidade dos seus problemas e
de separação-autonomização. Clinicamente este tipo de toxicodependência mostra as das suas dificuldades, também desenvolve mecanismos compen-
seguintes características: repetição de estados maníacos (em que o toxicodependente satórios que podem constituir um importante recurso para a inter-
nega qualquer sofrimento e diz viver em lua de mel com a heroína) e de estados venção, desde que não sejam aproveitados para diminuir as competên-
depressivos (em que a droga é tomada compulsivamente para manter um estado de
cias da família mas antes para alargá-las e implementá-las.
entorpecimento), dificuldade em relacionar a evolução da toxicodependência com
acontecimentos específicos da vida do sujeito (muitas vezes o consumo começa quan- Corno diz Linares (1997, 3 7), estas famílias "melhor que quais-
do tudo parece estar a correr bem), risco de suicídio e de recaída (por vezes sob a quer outras, ilustram o paradoxo de que as mais deterioradas condições
forma de alcoolisrno) naqueles que foran1 considerados curados. Para além do contro- de vida podem, quase simultaneamente, ter efeitos destrutivos ou
lo dos sintomas e do forte investimento numa relação terapêutica, a terapia familiar e inócuos para quem a elas está submetido".
a comunidade terapêutica parecem ser as estratégias mais eficazes.
A toxicodependência sociopática é frequente nos jovens que agem os seus con~
flitos psíquicos. Nos casos menos severos as fan1ílias são semelhantes às descritas na
segunda categoria. Nos casos tnais graves as famílias são desmembradas e os vários
A família Sá é composta_-por-Rui, -o pai, Amélia, -a mãe, -e Carl~ José
elementos parecen1 girar em órbitas isoladas, sem qualquer interdependência. Estes e Elsa,.-os filhos. Os pais têm-pouco -mais-de trinta e-:cinco anos- e os fi-
toxicodependentes tiveram, muitas veze.<>, uma in:f'ancia de grande institucionalização. lhos-têm, .respectivamente, 15, ]2 e ·9 anos. Hoje :a família-vive nwna
Outras vezes pertencem a famílias multiproblemáticas. Na infância fugiram à escola e habitação.-social, num bairro social'inserido na-periferia de uma cidade de
deram muitos problemas. Na adolescência integram uma sub-cultura delinquente. A tamanho médio. Anteriormente os ·Sá-viviain num '._barracão, situado pró-
sua vida orienta-se para a delinquência. Vivem largos períodos em instituição (hospi- .xi.mo- da zona. em que agora habitam.
tal psiquiátrico, prisão). Geralmente, subestimam os efeitos da droga e são politoxi- A· família· é chamada ao tribunal de famílià e:menores porque o José
codependentes. A terapia convencional é geralmente mal sucedida e uma combinação foi apanhado por um-policia quando, na-companhia de· outro menor, rea-
de encontros terapêuticos e de espaços de auto-ajuda parece mais eficaz. Numa fase lizava pequenos furtos ameaçando as. pessoas que roúbava.
muito avançada da toxicodependência a comunidade terapêutica pode ser um instru-
Os Sá -são uma ·família carenciada, ·com muito poucos recursos
mento particularmente útil.
económicos e deficiente inserção social ·no bairro em que habitam. São
324 325
(Des )Equilíbrios familiares (Des )Equilíbrios familiares

apoiados por uma IPSS336 , no âmbito de um projecto de luta contra a tém sempre a mesma rotina: primeiro faz os trabalhos de casa e depois-vai
pobreza; que lhes dá apoio monetário (em troca do trabalho da mãe), brincar, geralmente sozinha.
social (tratando da escolarização e da alimentação das crianças} e. médi- Já-depois do regresso do marido; Amélia submeteu-se a um progra-
co. O- pai é- serralheiro mas não tem trabalho nem- rendimento fixo. A ma de desintoxicação e deixou a prostituição. Foi nessa altura que
Carla frequenta o-7º ano de escolaridade obrigatória, o José o 3° ano e a começou a trabalhar na IPSS, em troca de uma remuneração -um pouco
Elsa,. que continua institucionalizada, o 4° ano. José tem um elevado inferior ao ordenado mínimo nacional._ 0---marido,_ a- partir dessa- altur~
absentismo escolar, tendo o pai que o obrigar a levantar-se para ir às deixou de_ ter trabalho- certo. Nos dias- em.que não tem nada que fazer vai
aulas. para-o bairro onde nasceu e onde mora a sua família-de origem- e fica no
Nos p_rimeiros anos- de casados Rui e Amélia tinham empregos café a jogar com os amigos. Há uns meses que iniciou uma relação que,
modestos mas estáveis. _Já viviam no barracão quando nasceu a Carla. segundo Amélia, mantém apenas para lhe fazer-- ciúmes.
Durante a gravidez do José a senhora contraiu febre tifóide.-0 parto foi José já mudou duas vezes de estabelecimento de ensino em virtude
prematuro e o gémeo de José nasceu morto. José, após ter estado algum do seu comportamento muito agressivo em relação aos colegas.
tempo na incubadora, sobreviveu mas foi sempre uma criança franzina, Actualmente diz sentir-se melhor nesta escola mas falta sempre que pode.
com problemas de-saúde (tem ataques epiléticos sendo, por isso, acom- A relação dos filhos com o pai oscila entre a indiferença e o medo de
panhado num estabelecimento hospitalar) e com um atraso sistemático serem por ele castigados. Há momentos em que Rui e José manifestam
em todas as aquisições. Em virtude dos problemas de fala é acompanhado um maior envolvimento emocional, mostrando, analogicamente, ternura
por uma terapeuta especializada. Mantém uma enurese primária e tem um e cumplicidade. A mãe é mantida 1nais afastada por todos e há alturas em
acentuado insucesso escolar. que o pai e os filhos mais velhos se coligam contra ela. Ao mesmo tempo
Alguns anos após o casamento, Amélia começou a prostituir-se que querem esquecer o tempo em que a mãe se embebedava e se prosti-
assumidamente na rua, com o conhecimento do marido que a incentivava tuía os filhos chamam-lhe nomes e acusam-na de- ser responsável pelas
ii-isso. Nessa altura, e ''dadas as más companhias"JJ 7 , Amélia -começou à dificuldades da família. Há alguns meses, Amélia fez- uma tentativa de
beber sendo batida pelo marido quando chegava bêbada a casa. O casal suicídio com comprimidos. Na sequência de faltas não justificadas ao tra-
discutia muito e José recorda um episódio em que teve que chamar a.polí- balho a IPSS informou-a de que tinha que abandonar o programa: "sem
cia pois o pai tinha batido na mãe e esta estava a sangrar. Passado algum dinheiro' e. não querendo voltar à prostituição, achei que o melhor, para
tempo Rui foi trabalhar para uma zona muito distante, o que o impedia de mim e para eles, era morrer''. Duas Semanas depois recuperou o emprego.
vir a casa. Nessa altura Amélia arranjou um "chulo" a quem dava dinhei- A família está, neste momento, to_talmente dependCnte da ajuda insti-
ro em troca de protecção. Quando o marido descobriu regressou a casa e tucional. Do ponto de vista estrutural observa-se que- não há uma hierar-
Amélia .pôs fim àquela relação. Dois anos após o nascimento de Elsa, e quia de poder definida, estando a função executiva do sub-sistema
dada esta situação de alcOolismo e prostituição da mãe e ausência do pai, parental -delegada nos técnicos que se ocupam dos filhos (nomeadamente
as crianças foram institucionalizadas tendo aí permanecido durante cinco a assistente social da IPSS, a monitora do ATLn 8 que o José frequenta, a
anos. Quando a família foi instalada na habitação social Carla e José.vie- assistente social, da área de residência da família- e os profissionais da
ram viver com os pais, apenas comendb na referida instituição e frequen- instituição em que Elsa está internada). o-pai tem.momentos em que se
tando um estabelecimento ~scolar próximo. Elsa, que tinha iniciado já a mostra controlador e quer impor regras- mas a maior parte do tempo é
escolaridade primária, preferiu ficar institucionalizada, dado que gostava muito permissivo. As fronteiras entre os diferentes sub-sistemas e indiví-
muito da professora, vindo a casa aos fins de semana. Quando chega man- duos são difusas, embora se evidencie uma tendência para a sua rigidifi-
cação. Carla e a mãe têm, neste momento, uma relação claramente con-

JJ& Isto é, uma instituição paiticular de solidariedade social.


3 7
i Colocaremos entre aspas as afirmações da família. 338
Isto é, espaço de actividade de tempos livres.
c.i>:.1
~~ •·'"-
'""""' !• l
~ LJ ..
l.bJ
~

llLUl! l;,;l ..
l~ i.i;J w ~ ··i;;:J ·-~·1· •. d. ,.::r ~ :• ;• ..
......,,.,, w ·"' " ... Q.jj
ª'"" ~ ~
""""'
326 327
(Des )Equilíbrios familiares (Des )Equilíbrios familiares

flitual: oS-pais desconhecem a. sua situação escolar actual ·e.a mãe teme mente contribui para a diminuição progressiva da competência dos
que·. ela --esteja .grávida :pois: já a apanhou várias.:vezes nó quarto com o membros do sistema familiar (Cancrini, Gregorio e Nocerino, 1997).
namorado. :carla,_perante as.suas fracas tentativas· de imposição de algu-
mas regras, responde--à-mãe. que-ela_fez pior:--no _seu ·caso; se tiver-uma A miséria e a precaridade ern que vivem a maioria destas famílias Espaço
criança,- ao--menos sabe quem é-o pai. é um espelho fiel da desorganização relacional e da amálgama emo-
Neste momento, há cinco instituições (lPSS, ATL, internato, equipa
cional em que vivem os seus elementos. O estado de abandono e a pre-
de. família e -menores e ,hospital) .e .nove técnicos (asSistente social -da
caridade das habitações são constantes. As casas onde vivem parecem
IPSS,_assistente social do CRSS 339 , psiCóloga da.escola:do José, mollito-
ra do ATL, pedopsiquiatra do hospital, psicóloga e assistente social do tri- espaços sem valor relacional, privados de intimidade ou de qualquer
bunal de família e menores, professora .do internato e terapeuta da fala) outro tipo de reserva, por onde as pessoas passam, entram e saem a
- que se.ocupam.desta familia que tein, como.dissemos,-.cinco-elementos. qualquer hora e em qualquer situação. A porta de casa está geralmente
aberta e os espaços fisicos deficientemente delimitados. A realidade
Fu11donamento Procurando debruçar-nos mais detalhadamente sobre o desen- fisica converte-se numa metáfora da realidade afectiva e cognitiva
fammar
volvimento destes sistemas familiares vemos ocorrer algumas destas famílias: os diferentes elementos não têm urn espaço seu, um
redundâncias que importa assinalar. Os comportamentos sintomáticos domínio de maior intimidade onde possam construir uma identidade
surgem, geralmente, logo nas primeiras etapas do ciclo vital, ou seja, diferenciada. Muitas vezes vivem todos na mesma divisão da casa, se
na etapa da formação do casal e na etapa dos filhos pequenos. Muito preciso for dormem todos juntos, pais, filhos, primos e avós. Desta
lábil mas pouco flexível, o sistema familiar parece ter dificuldade em forma é frequente ocorrerem situações de promiscuidade entre ele-
transformar as crises em oportunidades de transformação e crescimen- mentos da mesma família, de natureza mais ou menos incestuosa341 ,
to, antes as considerando como emergências e convertendo-as em que não são por eles valorizados enquanto tal. A altura em que a porta
avarias340 • Bloqueando, a família, a passagem à etapa seguinte os com- se fecha é, desta forma, um momento importante do processo terapêu-
tico.
portamentos sintomáticos potenciam a desorganização e a desagre-
gação do núcleo familiar, criando urna situação genericamente carac-
terizada por: Economicamente subsistem com os subsídios que lhe são atribuí- E<;onomia

- urna insatisfutória realização das tarefas familiares, tanto no que dos e com as ajudas institucionais que lhe são prestadas. O produto de
diz respeito a aspectos mais organizativos (suporte económico, casa, actividades ilegais é, também, urna fonte de subsistência importante e
educação, saúde, protecção dos filhos e dos elementos mais vul- nunca correctamente conhecida pelos técnicos. São notórias as suas
neráveis) corno a aspectos mais relacionais (gestão de tensões, nutrição dificuldades em gerir o dinheiro e em definir prioridades para os gas-
emocional dos filhos mais pequenos, resposta às exigências de intimi-
dade e de estabilidade afectiva dos membros do sistema); 41
A este propósito, Cancrini, Gregorio e Nocerino (1997, 56) tecem um comen-
J
- urna busca intensa de pessoas externas que possam desenvolver tário que nos parece importante realçar. "O tema do incesto surge naturalmente no sen-
essas funções e cuja presença, assim tornada tão essencial, rapida- timento e na fantasia dos profissionais quando existe wna proximidade excessiva entre
adultos e crianças. Nas famílias com que temos contactado, contudo,( ... ) a impressão
que temos é a de que a descontinuidade cultural entre os profissionais e os membros
da família extensa joga um papel de notável importância na amplificação de notícias
11
~
Isto é, Centro Regional de Segurança Social. redutíveis, noutros lugares, a interpretações menos dramáticas. O que não quer obvia-
A diferença entre crise e avaria e entre crise e emergência foi analisada no
340
mente dizer que o incesto não se verifique em algumas situações caracteriz.adas por
ponto 5 do capítulo 1. uma patologia mais grave dos adultos".
328 329
(Des)Equilíbrios familiares (Des )Equilíbrios familiares

tos: em casa faltam, frequentemente, produtos de primeira necessidade Nas famílias multiproblemáticas, o número de filhos pode ser r;11ios

embora existam inúmeros objectos inúteis, caros e pouco utilizados maior ou menor mas, independentemente do seu quantitativo, são eles
mas intensamente desejados. Os homens gastam mais frequentemente que, normalmente, constituem o motivo dos pedidos de intervenção,
o dinheiro para satisfazer necessidades pessoais enquanto que as mu- geralmente feitos por terceiros. Todos sabemos que não é por sua ini-
lheres o gastam mais com objectivos familiares. ciativa que estas famílias chegam aos diversos senriços que delas se
ocupam. Na maior parte das vezes são as escolas que, dado o seu forte
fempo O tempo, nestes sistemas fa1niliares, nomeadamente nos caracte- absentismo, insucesso escolar e problemas graves de comportamento,
rizados pela centralidade das figuras femininas e pela posição periféri- solicitam a intervenção dos serviços de saúde mental ou mesmo do tri-
ca, agressiva e inconsistente dos elementos masculinos, não tem o sen- bunal de menores/serviços de reinserção social. Outras vezes são os
tido que lhe damos habitualmente, não sendo a pontualidade um serviços de acção social que, confrontados com as dificuldades de ha-
apanágio dos seus elementos. O ser agora ou daqui a quatro dias que, bitação, os problemas económicos e a negligência ou mau trato das
p.e., a fa1nília vem à entrevista é, para eles, a mesma coisa342 • O ca- crianças, iniciam o contacto com outras instituições e procedem ao seu
lendário e o relógio não são, com efeito, percebidos como parte impor- encaminhamento. Diríamos que qualquer instituição pode constituir o
tante e significativa da organização temporal. A família não tem ponto de partida, criando-se, progressivamente, uma rede de serviços
horários definidos nem comuns: os seus membros levantam-se ou que coexistem na ajuda que pretendem dar mas que raramente co-evo-
deitam-se a qualquer hora, não comem juntos à refeição e, por vezes, luem no processo de transformação e crescimento destas famílias, elas
nem existe refeição. próprias mais espectadoras do que actoras. Eventualmente prota-
gonistas de um papel que não estava no guião escrito pelos técnicos.
Lei e riornrns Uma outra área em que estas famílias se distanciam da cultura e Na intervenção institucional não há, na maior parte das vezes, um tra-
~ociais
dos valores dominantes diz respeito à sua relação com a lei e com as balho de reflexão conjunta sobre os problemas a resolver nem sobre as
normas sociais. É frequente que, por dificuldades económicas para dificuldades a equacionar. Consequentemente, o reenquadramento,
realizar a boda ou por simples descuido, a união conjugal se realize mesmo quando é feito, não atende à globalidade nem à complexidade
sem nunca ser legalizada. Dada a sua clara indiferença perante o reco- das situações nem dos participantes, nos quais se englobam, natural-
nhecimento legal das situações e das relações, é possível que a rea- mente, as instituições e os técnicos. Por isso os interventores sistémi-
lização do mesmo se prolongue sine die. As separações também não se cos defendem a realização de encontros inter-institucionais para
legalizam, as viúvas dificilmente realizam um segundo matrimónio e a aumentar a eficácia da intervenção de cada instituição e de cada técni-
legalização dos filhos nascidos fora do matrimónio é, para estas co e para "reduzir o número aberrante de acções discordantes e de téc-
famílias, uma questão menor. O conjunto de pessoas que vive dentro nicos envolvidos"'. Estes [encontros] poderiam reproduzir, com efeito,
da mesma casa pode, então, não coincidir com a família legalmente por contaminação, a imagem analógica de urna família alargada"
reconhecida o que, não raras vezes, levanta problemas que não são (Benoit et ai., 1988, 202). É neste contexto que a intervenção sis-témi-
simples, do ponto de vista emocional e conceptual, para profissionais ca propõe o desenvolvimento da ü1tervenção em rede, nomeadamente
que estão habituados a todo um outro sistema de valores, no qual em rede secundária.
muitas destas situações têm claramente outro significado.

J J. Tan1bém a alteração da periodicidade ou do local dos atendimentos bem como


4

43
da pessoa que os faz são aspectos que estas famílias não valorizam e que, como sabe- J Como vimos no caso descrito, para uma família de cinco elementos tinham
mos, fazern parte dos elementos invariantes de muitos procesos terapêuticos. sido mobilizados nove técnicos e cinco instituições.
r /"' /

f! :~r -1..t..1 .

.' ····~
, . .
k'-Ji; w -~ 1,:~J·· ,::~ l;;.J ~

l_,_~A t:..11 i....::11 w .,


~..11 l;.;;J! i,:;Jr '~n
i"'1! ~lf t.Jl . ';,,:rr ,.<;i,,4,J., 1-
330 331
(Des)Equilíbrios familiares (Des)Equilíbrios familiares

Retomando a análise do funcionamento das famílias multipro- criança face ao meio e falta de normalização, i.é, de conhecimento e
blemáticas, nomeadamente no que se passa ao nível dos seus sub-sis- integração das normas culturais, potenciando, assim, uma posição
temas e da sua estrutura relacional, procuraremos identificar, seguida- de conflito com esse mesmo meio. Muitas vezes, os impulsos libi-
mente, algumas das características mais frequentes destes sistemas dinais e os impulsos agressivos destes pais fluem livremente em
familiares. relação aos fi-lhos, sem o controlo das funções protectoras, possi-
bilitando, assim, situações de maus tratos físicos que se inscrevem,
Conjugalidade Ao nível da coajugalidade a desarmonia é frequente e resulta, frequentemente, num contexto de abandono e falta de cuidados.
habitualmente, da dificuldade que os cônjuges têm seja de estabelecer "Com efeito, se a nutrição emocional está deslocada pela utilização
relações equilibradas e igualitárias (simetria relacional) seja de desen- instrumental, no vínculo parental, e a relação conjugal subjacente é
volver relações complementares que permitam obter do outro aquilo conflituosa e frustante, não é de estranhar que as crianças sejam
que é necessário para que o próprio se complete. Muitas vezes as sexualmente utilizadas" (idem, 35) ou tratadas em função das neces-
escolhas fazem-se de forma complementar, procurando cada côajuge, sidades dos pais.
no outro, aquilo que sente que lhe falta. Contudo, o projecto de com- É importante salientar que o "álbum de família" destas pessoas
plementaridade "nasce morto por erro de cálculo( ... ) e os cônjuges uti- está saturado de histórias de más nutrições emocionais, muitas vezes
lizam-se mutuamente e consentem, de certo modo, nessa utilização acentuadas pelas instituições que com elas lidam, e que se alimen-
embora sejam incapazes de dar-se afecto e reconhecimento" (Linares, tam recursivamente do circuito relacional que acima identificámos:
1997, 33). Neste contexto, as relações são sexualmente muito mediati- dificuldade no cumprimento das funções familiares - busca de aju-
zadas e ficam presas de emoções que quase só conhecem os extremos, das externas - rápida diminuição das competências ainda identifi-
i.é, a paixão e o ódio. cadas. Fechado o círculo, o circuito alimenta-se retroactivamente até
qne uma informação diferente o faça desequilibrar, amplificando as
Parenlalidadc Ao nível da parentalidade, vemos que quer a função vinculativa suas flutuações até um ponto de bifurcação. Esta terá que ser, sem
e sub-sistema
parnn!al quer a função socializadora dos pais estão perturbadas'"'. Desta forma, dúvida, a função dos técnicos, função dificultada pelo dramatismo
as crianças, com falhas ao nível da segurança básica, interiorizam da maioria das situações e pela necessidade (auto-sentida e hetero-
modelos inseguros de vinculação que lhes dificultam a verdadeira -solicitada) de suprir as falhas.
autonomização e a tranquila exploração do meio (função interna da
família). Ao nível da função externa, as crianças são deficientemente Ao nível do sub-sistema fraternal é curioso constatar que a lite- Sub-sistema

socializadas'" o que se repercute a dois níveis: falta de protecção da ratura não se debruça sobre ele, como se o mesmo não se tivesse cons- fra!emal

tituído. Vimos que nestas famílias pode haver um número maior ou


menor de filhos, muitas vezes provenientes de ligações diferentes,
' " Como consequência, "o tipo de psicopatologia individual que mais frequente-
4
umas mais "legalizadas" do que outras, Mas as fronteiras inter-indi-
mente se encontra( ... ) é a de tipo sócio ou psicopático (Cancrini, La Rosa, 1991). As
viduais, sendo habitualmente rígidas, parecem não facilitar a delimi-
perturbações neuróticas são mais raras e as perturbações psicótícas encontram-se blo-
queadas ou complicadas pela presença de dificuldades do desenvolvimento intelec-
tação de sub-sistemas, neste caso do fratern~l. Por outro lado, a coope-
tual. As dificuldades de adaptação escolar são frequentes e graves, assim como os ração, a solidariedade e a negociação horizontal, aspectos importantes
con1portarnentos delinquenciais, as toxicomanias e o alcoolismo" (Cancrini, Gregorio do funcionamento da fratria, não parecem fazer parte da mitologia
e Nocerino, 1997, 53-54). destas famílias, E a rivalidade é, fundamentalmente, jogada com o
345
Não esqueçamos que os valores e os códigos da cultura dominante são geral- exterior. Além disso, a perturbação das fLmções parentais leva a que,
mente diferentes dos destas famílias.
332 333
(Des )Equilíbrios familiares (Des )Equilíbrios familiares

por um lado, as crianças sejam piriiampicamente parentificadas3 46 e a apresentaremos wna caracterização sumária: o pai periférico, o casal
que, por outro lado, as fratrias sejam frequentemente desmembradas instável, a mulher sozinha e a família petrificada.
aquando da institucionalização ou da colocação, mais ou menos pro-
visória, das mesmas em difere?tes instituições ou famílias. Assim, 0 A primeira configuração, do pai periférico, já descrita por Pai periférico
sub-sistema fraternal dilui-se. E importante realçar, tal como já ante- Minuchin et ai. (1991 ), é, sem dúvida, a mais frequente. Com Lun
riormente fizemos quando abordámos as competências destas famílias, baixo uível de instrução, geralmente desempregado ou sub-ocupado,
que uma crise pode fazer com que o sub-sistema fraternal se evidencie este pai tem, desde o início, um papel secundário nestas famílias, tanto
e se desenvolva. É o caso, p.e., de uns irmãos que se unem quando os do ponto de vista afectivo como económico. Geralmente a braços com
pais desaparecem e eles ficam mais ou menos entregues a si próprios. a justiça, instituição que conhece desde muito novo, é frequentemente
obrigado a longas ausências de casa, o que o leva a ter uma relação
PoJer Nas famílias multiproblemáticas, a questão do poder e do seu precária com os filhos cujo número vai aumentando sem que os pais
exercício dentro do próprio sistema não obedece a uma hierarquia nem pareçam incomodados com isso.
é, na maior parte das vezes, assumida pelo sub-sistema parental. Com O conhecimento da situação, a partir das descrições feitas pela
efeito, deparamo-nos, geralmente, com unia desorganização grave ao mãe TI<? momento em que contacta com os serviços 347 , leva os profis-
nível do seu exercício e da sua distribuição. Não bá regras estabeleci- sionais (mais do que a própria família) a considerá-lo facilmente como
das: agora podem mandar os filhos, depois os pais, passado algum violento, alcoólico, infieP 48 e incapaz de ocupar-se da sua família. No
tempo a mãe, mais tarde a criança de quatro anos ... Como já anterior- entanto, quando os técnicos conseguem implicá-lo na intervenção
mente referimos, é frequente observar-se uma delegação, e até mesmo ficam positivamente surpreendidos com a sua cooperação. A condição
uma denegação, das funções de coordenação e estabelecimento da periférica deste pai pode decorrer do seu sentimento de vergonha pelo
autoridade e controlo do sistema familiar por pmte dos pais. O poder é facto de a sua família ser obrigada a recorrer a um serviço, afastando-
algo que apenas é exercido pontualmente, não obedece a um sistema -se, assim, dos profissionais que o confrontarão com as carê11cias da
de regras ou princípios claros nem congruentes. Esta falta de regras e família.
de definição clara dos papéis familiares, em conjunto com os déficites A mãe é uma figura centraP 49 mas caótica. Acusa e defende, simul-
de socialização que já anteriormente referimos e num contexto em que taneamente, o marido e nunca leva as suas denúncias para alé1n de cer-
o nível pragmático domina sobre o nível cognitivo, pode conduzir ao tos limites. No seu discurso vitimiza-se frequentemente, já que é ela
aparecimento de frequentes passagens ao acto. sozinha que tem que fazer tudo: cuidar dos filhos, da casa, garantir o
sustento de todos, por vezes ocupar-se de familiares dependentes e
C11nfig11..-açiic.
Partindo do seu trabalho com famílias multiproblemáticas,
redundant~s
Cancrini, Gregorio e Nocerino (1997), puderam observar que, para 347
além destes aspectos globais a que temos vindo a fazer referência, era É i1nportante salientar que o pai não aparece geralmente na(s) instituição(ões)
que se ocupa(m) da família, pelo menos inicialmente.
possível distinguir algumas configurações diferenciadas nestes sis- 14
~ Apesar da sua situação periférica e das suas longas ausências, o casal mantém-
temas familiares. Assim identificaram quatro tipos básicos de que -se relativamente estável, sem verdadeiras separações ou mudanças de cônjuge. Nas
famílias de cor dos ghettos americanos (Minuchin-et ai., 1991), contudo, a instabili-
dade do casal era acentuada, encontrando-se frequentemente o que Minuchin designou
por famílias flutuantes (Minuchin e Fishman, 1988, 63).
49
J r> Com efeito, não se observa um padrão consistente de parentificação mas antes
4
J Muitas vezes é ela que afasta o marido do contacto com os técnicos e com os
a ocorrência de momentos em que às crianças são solicitadas funções parentais. serviços.
u ·····l.hi h.'..
~ ·~·
" '. u IC.ii i..:~ e,.; L·"i
~,...., 1:.J t.'.~ -l"
~aj
í •p.

' "'""
it:Jir ...
'1..... ~-:Jl
- , .. ,, -
~~Ai ~=~ XJ!'!A·.·-·~
..._·'1_

334 335
(Des)Equilíbrios familiares (De-s7
)E~--qu~i~líb;:-cri~o-s~fam,.---~il~iar~es~~~~~~~~~~~~~~~~~~-

resolver os problemas que os diferentes elementos criam. Quando con- mais estável. O processo de desorganização familiar subsequente aca-
frontada com a ausência do marido e com o seu papel parental e con- ba por chamar a atenção do tribunal de menores. O trabalho a realizar
jugal "deficitário", esta mulher diz-se vítima da vizinhança, dos fami- nestes casos é dificil pois há que ajudar estas mães sem substituí-las,
liares, dos amigos ou das instituições que não '"conhecem o marido e 0 respeitando a sua margem de autonomia350 •
perseguem", aumentando assim o seu afastamento e o sofrimento dela.
Todo este discurso de protecção do marido muda violentamente se ele A família petrificada corresponde às situações em que uma situa- Familia
sai de casa para ir viver definitivamente com outra mulher: nessa altura ção traumática imprevista (p.e. a morte de um filho, a intervenção vio- pclrjftca<la

a difamação é frequente. lenta do tribunal a propósito de uma denúncia pouco documentada)


conduz a uma modificação brusca dos níveis de funcionamento do sis-
casai instável A segunda configuração, do casal instável, reporta-se a casamen- tema familíar. Com os seus elementos petrificados pelos acontecimen-
tos de curta duração, em que os cônjuges são muito novos (eventual-
mente ainda adolescentes) e não chegam a ter tempo de construir uma
150
família autónoma (em termos habitacionais e económicos). Na história Mais do que encontrar famílias de colocação para estas crianças seria interes-
de um ou de ambos os cônjuges encontram-se, frequentemente, situa- sante potenciar o apoio de urna família a este núcleo familiar em vias de desagregação.
Algumas experiências têm sido tentadas, no sentido de pedir a uma família que
ções de inadaptação escolar, toxicodependência e outros problemas de empregue a mãe (como empregada doméstica, p.e.) ou lhe dê alojainento e alimen-
comportamento. O casal mantém uma relação conflituosa e confusa até tação (em troca de serviços dornésticos realizados em horário extra-laboral) e, ao
que um dia um dos elementos desaparece. Nessa altura, a família mesn10 tempo, aloje e alitnente os seus filhos e os oriente na sua actividade escolar
nuclear apoia-se na família extensa, geralmente centrada na figura da e/ou pré-profissional. Para além do apoio económico assim potenciado pretende-se,
avó. Mesmo que o progenitor regresse ou que o outro refaça a sua vida com este tipo de "solução", criar wn espaço continente que, ao constituir-se como fac-
tor protector, possa ampliar a resiliência deste núcleo familiar e a resiliência indivi-
com outra pessoa é dificil que a família nuclear volte a reorganizar-se
dual de cada um dos seus elementos. As maiores dificuldades com que estas experiên-
como tal. Muitas vezes estes casos chegam ao conhecimento dos cias se confrontam parecem-nos ser de quatro tipos: 1) articulação de códigos e de
serviços pela necessidade de regular a custódia das crianças, dis- experiências de vida geralmente muito diferentes (entre o núcleo familiar e a família
putadas entre os avós e um, ou ambos, os progenitores. Embora nem de "acolhimento"); 2) falta de clarificação de lllI1 modelo de parentalidade (que muitas
sempre assim aconteça, muitas vezes a questão é posta de tal forma vezes se cinde entre a figura do progenitor e a figura da família de "acolhimento"); 3)
que parece que o progenitor regressado não é visto como capaz de falta de definição clara do sistema executivo/sub-sistema parental (frequentemente
partilhado pelo progenitor e pelos adultos da família de "acolhimento"); 4) dificuldade
retomar as suas responsabilidades parentais, por um lado, e a ajuda dos
de gestão das relações verticais, entre adultos e crianças (é importante não esquecer
avós cessa à porta de sua casa, não sendo estes capazes de constituir- que o progenitor acolhido é empregado ou está numa situação de "favor"), e das
-se como fonte de suporte complementar, por outro lado. relações horizontais, entre adultos ou entre crianças (as do núcleo familiar considera-
do e as da família de "acolhimento").
Mulher sozinha Na terceira configuração, a mulher, proveniente de um nível Outro tipo de experiências podia ser tentado em apartamentos e trabalhos prote-
gidos: desta forma, o núcleo familiar poderia ter mais espaço para "crescer sozinho",
sócio-cultural modesto, decide criar sozinha o filho ou os filhos prove-
tomando-se mais facilmente autónomo. A dificuldade destas experiências reside, na
nientes de várias relações que nunca se estabilizaram. Estas mulheres maior parte das vezes, no facto de que os agidos destas famílias são muito grandes,
são gerahnente jovens, têm uma longa história de institucionalização e comprometendo, pela provocação que geralmente encerram, os esforços criativos que
organizaram a sua vida em tomo de uma prostituição pobre ou de ou- vão sendo tentados. A não aceitação dos pedidos ou propostas de delegação, por urn
tras actividades marginais ou subalternas. O vínculo com as crianças lado, e o reforço da auto-estima destas famílias, por outro lado, parecem constituir a
não é suficientemente forte para motivá-las a ter uma vida diferente e grande arma dos técnicos, embora, sem "manual de instruções", a sua utilização se re-
vele frequentemente complexa e dificil.
336
(Des)Equilíbrios familiares

tos, inicia~se o caminho da desorganização e da intervenção descoor-


denada dos serviços. Geralmente estas famílias têm um nível sócio- Nota final
-cultmal menos débil e o papel substitutivo dos serviços só aumenta o
caos e a confusão com que a família se debate. É, então, importante
criar um espaço de escuta para a elaboração do luto que a família tem
que realizar e que foi despoletado pela situação traumática.

intervenção É possível que, chegado aqui, o leitor se sinta invadido por senti-
mentos contraditórios: impotência, vontade de intervir e recolocar tudo
no sítio, desânimo, desafio, pena, choque, medo, rejeição, soli-
dariedade ... Tudo isto estas famílias despertam. Mas talvez o que as
torne mais específicas, quando comparadas com outras, seja a Co-evolução, autonomia, auto-organização, imprevisibilídade, en-
ressonância emocional que a diferença de valores, de conceitos, de lin- tropia, acoplagem, recursividade, competência e criatividade sistémi-
guagens, de mitos, de ideais, de experiências de vida desperta em nós. cas são conceitos que se revelam fundamentais para o trabalho sistémi-
E provavelmente nelas. O sucesso da intervenção radica num "novo co actual. Eles encerram a essência do pensamento sistémico e confe-
ovo de Colombo'', ou seja, a complexidade da intervenção não está rem a cada sistema lrrna capacidade auto-curativa que não pode ser es-
tanto no aparato das técnicas a utilizar ou das estratégias a montar mas quecida nem escarnoteda.
antes na dificuldade de descobrirmos como as podemos ajudar a tirar O terapeuta/interventor fica, então, com uma responsabilidade
outras fotografias e a criar outros álbuns de família, sem ter que deitar acrescida, dado que ajudar uma família não significa mais encontrar a
fora ou queimar os velhos. solução adequada mas criar, no contexto do novo sistema formado,
i.é, do sistema terapêutico, as condições necessárias à ocorrência das
perturbações que potenciarão a mudança. Isto será possível pela rea-
lização de múltiplos e contínuos reenquadramentos que não se suce-
dem mais numa lógica de auto-regulação mas que são feitos por sis-
temas auto-organizados. O que significa que a sua utilidade é definida
pela pertinência da informação introduzida, i.é, pela viabilidade que a
mesma comporta para uma inequívoca mudança estrutural do sistema,
feita no respeito pela manutenção da sua organização.
Se nesta perspectiva o terapeuta/interventor tem que abdicar de
quaisquer resquícios de omnipotência terapêutica, a sua importância
não deixa de ser menor. Toma-se é mais complexa e necessariamente
mais criativa. A dimensão auto-referencial que a ideia de recursividade
também comporta obriga a um permanente trabalho do self por parte
do terapeuta/interventor. Neste processo ele tem que ter referenciais
teóricos claros e te1n que rnetacomunicar sobre as suas ideias, os seus
valores, os seus comportamentos e os seus sentimentos.
l::J ~I
t_ :~1-­
~;;i ~i &.•.Jil ~«.4
1 1
~_,..., i.LU L;,J
-~
~

t:....i l~J C..i


,,
\-.,! t..J 4_.:~ t..J Ji;:,J! w :t,,,,.._J,ll
.• ; .
"•:Ll!r<tJi:

338
(Des)Equilíbrios familiares

Num período em que vou sendo cada vez mais solicitada para tra- Glossário
balhar com famílias com problemáticas idênticas às aqui abordadas,
este livro serviu-me também como uma metacomunicação. Talvez por
isso me tenha sido tão dificil pôr-lhe um ponto final.
Ao leitor espero que sirva como pretexto para novas construções ...

Acoplagem
Ajustamento interactivo entre dois sistemas (ou sub-sistemas) com vis-
ta ao desenvolvimento de objectivos entretanto definidos como
comuns. Assim definida, a acoplagem terapêutica revela-se fundamen-
tal para o desenvolvimento de qualquer processo terapêutico. O desen-
volvimento dos sistemas acoplados é co-evolutivo e o crescimento po-
tenciado leva os sistemas a atingir mn maior nível de complexidade.

Aliança
Ligação forte entre duas ou mais pessoas que partilham os mesmos
objectivos ou interesses de modo a adaptar as mesmas atitudes ou os
mesmos comportamentos. Na família, quando a aliança se forma con-
tra alguém, nomeadamente quando ela ultrapassa a barreira intergera-
cional, formam-se habitualmente triângulos perversos que perturbam a
sua hierarquia funcional.

Auto-organização (Sistemas auto-organizados)


Capacidade que o sistema tem de promover alterações na sua estrutu-
ra, de forma espontânea ou por modificaÇão das condições do meio
externo, com vista à manutenção e estabilidade da sua organização.
Este movimento potencia a probabilidade de sobrevivência do sistema
e o aumento da sua complexidade funcional e organizacional.
340 341
(Des )Equilíbrios familiares Glossário

Autopoiése Cibernética
Conceito introduzido por Maturana e Varela para descrever a capaci- Ciência que estuda os mecanismos de controlo e regulação da infor-
dade dos sistemas vivos para gerarem os seus próprios componentes. mação e comunicação nos sistemas.
De uma forma recursiva, o sistema é produto do seu funcionamento. A cibernética de 1ªordem corresponde ao primeiro grande perío-
do de desenvolvimento da cibernética que considera que o sistema
Auto-regulação (Sistemas auto-regulados) observado (a família) é visto como separado do observador (o te-
Capacidade que o sistema tem de evoluir e de modificar-se em função rapeuta) e que coloca fundamentalmente a tónica na compreensão
de mecanismos de feed-back provenientes do seu meio externo ou dos mecanismos de estabilidade dos sistemas. Posteriormente, a
interno. cibernética desloca a sua atenção para o estudo dos processos de
mudança e evolução.
Bode expiatório A cibernética de 2ª ordem corresponde ao período em que a
Elemento da família que funciona como recipiente activo de um con- cibernética leva a cabo uma profunda reflexão sobre os seus fun-
junto de afectos negativos sentidos e vividos por todos os componentes damentos e teorias e introduz o papel do observador na construção
do sistema familiar. Desta forma, responsabiliza-se por estes afectos e da realidade observada, postulando que não há sistema observado
transporta-os, sacrificando-se e expiando uma "falta" que é de toda a e sistema observador mas sistemas observantes. A cibernética de
família nuclear ou, eventualmente, de gerações mais remotas. 2ª ordem preocupa-se em compreender os processos de auto-orga-
nização, autono1nia e individualidade dos sistemas.
Cartas (ou mapas) familiares
Representação gráfica da estrutura e funcionamento familiares actuais Ciclo vital
que permite uma gestalt das fronteiras entre indivíduos, sub-sistemas Conceito que descreve o conjunto de etapas que uma unidade familiar
e gerações, da gestão do poder e do alinhamento relacional do sistema atravessa desde a sua constituição até ao seu desaparecimento, especi-
familiar (alianças, coligações e triangulações). ficando as suas principais caracteristicas, tarefas, dificuldades e poten-
cialidades.
Causalidade circular (Circularidade)
Expressão que traduz a ideia de que os acontecimentos se relacionam Co-evolução
por anéis de interacção e se influenciam mutuamente, de forma com- Conceito introduzido por Bateson para caracterizar todos os processos
plexa, sendo que cada um é simultaneamente causa e efeito do outro. de interacção, repetitivos e cumulativos, implicados nos mecanismos
Ideia oposta à de causalidade linear. de crescimento, criatividade e mudança no sistema. A co-evolução re-
fere-se, então, à relação entre elementos que se influenciam mutua-
Causalidade linear mente e evoluem numa interacção recíproca e cumulativa.
Expressão que traduz a ideia de uma cadeia causal de fenómenos em
que a uma causa A corresponde um efeito B. Desta forma, este mode- Coligação
lo explica cada comportamento em função de tuna causa específica. Propriedade fundamental dos triângulos relacionais que consiste na
aliança de duas pessoas contra uma terceira.
A coligação negada acontece quando a aliança entre dois ele-
mentos é ocultada e negada.
~~....:: ~:"I

342 -
1. ~.· ...~· lí. ·.o

(Des)Equilíbrios familiares
......,
P' A i..::., ' ··,
i._, ~_.J
.~ ..1
lk..- lí.,,.,,J ~:J
343
!
~~

Glossário
,,
w ii,,,;,J (;,j w [J liJ ,,,
' .1
'S<JW, ~d ' 'l
~,I}

Comunicação dos intervenientes se baseia no princípio da igualdade ou da não


Processo que liga os comunicantes e que significa "pôr algo em aceitação da diferença. Os comportamentos dos indivíduos funcionam
comum", No estudo dos aspectos pragmáticos da comunicação em espelho, na tentativa de anulação da diferença.
humana, Watzlawick e colaboradores evidenciaram a inevitabilidade A escalada simétrica é uma forma de distorção do modelo acima
da comunicação, definindo que é "impossível não comunicar". descrito em que a ínteracção é caracterizada pela competição
A comunicação humana pode assumir duas formas: desenfreada entre os intervenientes da comunicação. Os compor-
A comunicação analógica refere-se, genericamente, à dimensão tamentos sucedem-se irreflectidamente na tentativa de responder
não verbal das mensagens. Envolve a linguagem gestual, a expres- em espelho ao comportamento do outro. A desigualdade é insu-
são facial e corporal. Diz fundamentalmente respeito à dimensão portável, sendo intolerável para ambos a possibilidade de ficar a
relacional da comunicação. perder ou em posição inferior. Neste caso, a interacção simétrica
A comunicação digital utiliza um código sintáctico e semântico toma-se demasiado rígida e deturpada no seu princípio interacti-
claro e definido. Expressa-se através das palavras escritas ou ver- vo.
bais e engloba fundamentalmente a dimensão de conteúdo da
mensagem trocada entre os comunicantes. Conjugalidade
Ambas as formas são importantes na c01mmicação, completando- Modelo de funcionamento relacional que serve de base à construção da
-se e esclarecendo-se mutuamente. díade conjugal e que se oferece como um espaço de apoio ao desen-
volvimento do sistema familiar. Assume-se que este modelo de fim-
Comunicação complementar (Complementaridade) cionamento do casal resulta da integração do modelo de conjugalidade
Corresponde a um modelo de interacção descrito por Bateson, Na sua construído na família de origem e considera-se que o mesmo sofre,
base encontramos a ideia de que os comunicantes assumem posições naturalmente, diversas alterações ao longo da evolução do sistema
interactivas baseadas na diferença, pelo que os comportamentos dos familiar.
indivíduos se completam e Hencaixam" um no outro. Assim define-se,
respectivamente, uma posição one down (posição inferior na qual o Conotação positiva
indivíduo ajusta o seu comportamento ao do parceiro e responde à sua Qualificação positiva dos comportamentos e regras familiares que se-
iniciativa) e uma posição one up (posição na qual o indivíduo dirige e riam considerados sintomáticos ou patológicos. Esta estratégia tem
detém a responsabilidade da interacção relativamente ao seu parceiro). como finalidade reenquadrar os referidos comportamentos ou regras
Na complementaridade rígida as posições one-up e one-down famíliares nmna lógica circular, sem os definir como negativos nem
fixam-se rigidamente definindo díades opostas cuja relação se propor a sua mudança imediata, De acordo com Palazzoli e a escola de
mantém estável. Milão, a conotação positiva consolida o acesso do terapeuta ao sistema
familiar e delimita o contexto como terapêutiCo.
Comunicação patológica
Interacção que não cumpre co1n a função da comunicação, i.é, que não Contexto
permite a ligação entre os comunicantes. Meio no qual os comportamentos e as mensagens trocadas acontecem
e têm significado. Só é possível perceber os acontecimentos quando os
Comunicação simétrica (Simetria) colocamos no meio em que estes acontecem pelo que é o contexto que
Modelo de interacção descrito por Bateson em que o comportamento dá inteligibilidade à comunicação. Para Bateson, o contexto é o con-
'I~f;l\ :'.'.:,".l,,__,,~ _y

344 345
(Des)Equilíbrios familiares Glossário

junto formado pelo organismo em análise e pelo seu meio, de tal forma Desconfirmação
que a evolução de um e de outro é sempre uma co-evolução. Sabendo que toda a comunicação tem dois níveis, conteúdo e relação,
a desconfirmação oferece-se como uma forma de negação do Outro na
Continente (Função continente) relação.
De acordo com Bion, este conceito descreve a função pela qual uma
"figura de vinculação" (geralmente a mãe ou o terapeuta na relação te- Deslocamento
rapêutica) aceita os conteúdos projectados pelo seu parceiro relacional Processo segundo o qual se desloca o interesse e intensidade de urna
e lhos devolve depois de transformados. Dada a dimensão agressiva e representação de carácter ansiógeno para outros objectos ou represen-
destrutiva dos conteúdos geralmente projectados esta transformação é tações menos intensas, ligadas à primeira imagem ou representação
fundamental para a sua posterior mentalização. por urna cadeia associativa.

Criança imaginária Desqualificação


Construção que o sujeito, nomeadamente o progenitor, faz acerca da Forma de tentar não comunicar mostrando ao Outro que o conteúdo da
criança que vai ter e que engloba, naturalmente, aspectos de natureza sua comunicação não interessa.
fisica (p.e. sexo, cor dos olhos ou do cabelo, estatura, etc.) e psicoló-
gica (p.e. temperamento, humor, inteligência, personalidade). Nesta Díade
construção entram aspectos conscientes, decorrentes do desejo do su- Sistema relacional composto por dois elementos.
jeito relativamente à pessoa da criança, e aspectos ligados à criança
fantasmática (fantasia infantil decorrente do desejo de ter um filho do Double-bind
progenitor do sexo oposto). Situação comunicacional em que, simultaneamente, são emitidas men-
sagens contraditórias que deixam o seu receptor na impossibilidade de
Crise responder a qualquer uma delas satisfatoriamente.
Corresponde a uma situação em que está perturbada a adaptação e o No double-bind terapêutico (contra-paradoxo terapêutico), pe-
equilíbrio interno ou externo de um sistema ou de um indivíduo. rante o funcionamento paradoxal da família, o terapeuta, ao inter-
Na família, a noção de crise corresponde a um período de tensão agir com este sistema, fica, também ele, emedado nas situações de
ou conflito que pode surgir periodicamente e associado ao ciclo double-bind. A forma que tem de colocar-se numa postura meta-
vital da família - crise normativa - ou inesperadamente - crise -funcional é interagir com a família segundo as suas regras. Assim
acidental - como resultado de uma série de acontecimentos sendo, face aos paradoxos da família perante os quais, numa ló-
imprevisíveis. gica usual, não teria qualquer resposta satisfatória, o terapeuta
responde com um contra-paradoxo que é terapêutico na medida
Cut o.ff(emocional) em que desmonta o primeiro e torna evidentes as incongruências
De acordo com Bowen, este é um processo de ruptura brusca entre ele- da interacção familiar.
mentos de uma mesma família, sem que se tenha processado a dife- No double-bind cindido, o sujeito é alvo de mensagens bipolares
renciação ou autonomização entre os elementos envolvidos. A ruptura (injunções paradoxais discordantes) sobre o mesmo assunto, emi-
pode ser, apenas, afectiva ou, também, materializada no espaço e no tidas por figuras igualmente significativas no plano emocional.
tempo. Sendo dificil ao elemento alvo deste double-bind metacomwlicar
:~1 r 'jj . ~.
~~Jl :-k-J,
~1·
-~,_ ~-..iJ -,..,,J-~ .........,., b.c~4'1 ~,-oJil v,_,.,.u.1 ·•...~-~
'~ (;>.._;,,JA ~-_;

346 347
(Des)Equilíbrios familiares Glossário

sobre o paradoxo, ele tenderá a agir, muito frequentemente no Estruturas dissipativas


exterior, os seus afectos e emoções. Conceito introduzido por Ilya Prigogine no sentido de explicar, nos sis-
temas afastados do equilíbrio, o aparecimento, por amplificação das
Ecossistema flutuações a que o mesmo pode ser submetido, de uma nova estrutura
Meio complexo, vasto e dinâmico no qual os sistemas se inserem, do auto-organizada.
qual fazem parte e com o qual interagem reciprocamente numa lógica
circular e multideterminada. A abordagem ecossistémica exige que a Eu-auxiliar
realidade seja entendida numa perspectiva sistémica, holista e globa- Função que o outro preenche relativamente ao Eu no sentido de apoiar
lizante. o sujeito nas áreas de funcionamento sentidas como mais problemáti-
cas.
Emergência (Urgência)
Pressão exercida sobre a família por um acontecimento perturbador e Evitamento
inesperado que exige da sua parte mudanças puramente correctivas Processo psíquico defensivo que envolve uma acção de fuga peraute
com vista à resolução da situação. uma situação real ou sünbólica ou perante sentimentos, ideias ou
experiências que o sujeito prevê como dolorosas.
Entropia/Neguentropia
A entropia é uma medida aproximada do grau de desorganização ou Exosistema
desordem dos sistemas. Refere-se à ausência de um modelo na estru- De acordo com Bronfenbrenner, o exosistema é o sistema social no
turação do sistema. Por isso, um aumento da informação implica uma qual a fa1nília está inserida. Desta forma, inclui a comunidade mais
redução da entropia e faz evoluir os sistemas para níveis de maior próxima, nomeadamente as instituições mediadoras entre o nível cul-
complexidade. tural e o nível individual (escola, igreja, meios de comunicação, con-
A neguentropia é uma medida aproximada do grau de organização dos textos laborais, instituições recreativas, organismos judiciais ou de
sistemas fechados. Refere-se a um modelo de estruturação do sistema segurauça).
fechado.
Factores de protecção
Equifinalidade Atributos individuais ou ambientais que servem de amortecedores
Propriedade segundo a qual o fuucionamento dos sistemas vivos obe- entre o sujeito e a situação stressante. São factores familiares protec-
dece ao princípio de que um mesmo fim pode ser alcançado a partir de tores: o afecto, o suporte emocional, a existência de limites claros, a
condições iniciais diferentes e de que condições iniciais semelhantes coesão, a flexibilidade, a comunicação aberta, a competência de reso-
podem desencadear fins diferentes. São, pois, os padrões de interacção lução de problemas e o sistema de crenças positivas.
familiar e a sua evolução ao longo do ciclo vital que se revelam deter-
minautes nos processos desenvolvidos em torno de uma finalidade. Faetores de risco
Factores que, se presentes, aumentam a possibilidade de o sujeito
Estrutura (do sistema) desenvolver um problema emocional ou comportamental.
Corresponde à totalidade das relações dinâmicas estabelecidas entre os
elementos do sistema de acordo com regras específicas.
348
(Des )Equilíbrios familiares
349·-:-c~~~~~~~~~~~~~-~~~~~~
Glossário

Família emaranhada/desmembrada potenciar a protecção dos seus elementos e a criação e desenvolvi-


Segundo a tipologia estrntural de S. Minuchin existem dois pólos de mento de uma identidade diferenciada e autónoma relativamente ao
funcionamento familiar definidos mediante o tipo de limites estabele- grupo total, no respeito pelos sentimentos de pertença de cada elemen-
cidos entre os diferentes indivíduos e sub-sistemas: limites difusos e li- to ao todo familiar.
mites rígidos. Nas famílias emaranhadas existe um sobreenvolvi-
mento e uma implicação excessiva por parte de todos os elementos que Hierarquia sistémica
têm entre si fronteiras difusas. Nas famílias desmembradas, pelo con- Conceito segundo o qual cada elemento possui um lugar e uma hierar-
trário, predominam as fronteiras rígidas e um funcionamento excessi- quia definida dentro do sistema mais vasto em que se insere. Dessa
vamente individual, a par de uma orientação centrífuga. forma, os elementos do sistema integram sub-totalidades autónomas
que se relacionam no sentido horizontal e vertical, ora como totalidade
Família extensa ora como parte.
Conjunto dos ascendentes, descendentes e colaterais do grnpo familiar
nuclear. Hipótese estrutural
Leitura ou esquema compreensivo que o terapeuta realiza relativa-
Família nuclear mente à estrutura da família. Na construção desta hipótese devem con-
Conjunto dos elementos que, vivendo sob o mesmo tecto, estão unidos siderar-se os diferentes elementos, sub-sistemas e gerações, o tipo de
por laços biológicos e afectivos e que realizam actividades em comum, limites estabelecidos entre eles e o seu posicionamento hierárquico na
tais como, refeições, férias, ocupação de tempos livres, etc. estrutura familiar.

Família de origem Hipótese sistémica


Grupo familiar original de cada um dos cônjuges. Segundo Palazzoli, a hipótese sistémica é uma suposição acerca do
funcionamento da família, aceite como base para uma investigação
Feed-back (ver retroacção) ulterior. Constitui um esquema compreensivo da realidade familiar que
permite, apenas, orientar o posicionamento do terapeuta e a evolução
Finalidade do sistema do sistema terapêutico. Nesse sentido, não tem valor de verdade nem
Conceito segundo o qual os sistemas se desenvolvem no sentido do de falsidade.
cumprimento de alguns objectivos. São estes objectivos que conferem
sentido e orientação ao funcionamento do sistema. Homeostase
Estado interno constante atingido através dos mecanismos de regu-
Função externa lação do sistema (equilíbrio entre os movimentos de morfostase e mor-
Função desempenhada pela família no sentido de desenvolver, nos fogénese ).
seus elementos, as condições e as aptidões necessárias a uma boa inte-
gração social e cultural. Idealização
Processo psíquico através do qual as qualidades e valor de determina-
Função interna do objecto ou pessoa são elevadas à perfeição.
Função desempenhada pela família no sentido de proporcionar e
h ·---'· ... ~"d .
~--'
"' ·w·-'
'• .. ~- w ...,.:-....._. ~,;]·
""~ L..:i 4.-~Al>i L;,.l V-~- r...J \io;:;;:,;ii ld \.l.;;J~ bJ '\l.·:l'.'4i í;,J ··1.,7,;J-;i
,.
'!i;:j',Ji"
350 351
(Des)Equilíbrios familiares Glossário

Identificação reinvestir a sua energia nwna nova pessoa ou situação. Este processo
Processo psicológico segundo o qual o indivíduo, a partir de uma ca- pode den1orar 1 a 2 anos e pressupõe urna série de fases diferenciadas.
racterística, de um sentimento ou de um atributo de outrérn desenvolve
um processo de transformação em si mesmo indo ao encontro das ca- Macrosistema
racterísticas do objecto de identificação. Para Bronfenbrenner o rnacrosisterna constitui o contexto mais alarga-
A identificação adesiva corresponde a urna reprodução massiva e do que remete para as formas de organização social, sistemas de
não distanciada das características do objecto de identificação. crenças e estilos de vida presentes numa cultura ou sub-cultura.

Instinto/Pulsão de morte Meio de sistema


Força intensa que exige a dissolução do Eu e se opõe à vida. Contra- De acordo com Hall e F agen, para um dado sistema, o meio é o con-
riamente à pulsão de vida, que conduz à busca da relação objectal e junto de todos os objectos cuja modificação dos seus atributos afecta o
do amor do objecto, a pulsão de morte visa a aniquilação da necessi- sistema e de todos os objectos cujos atributos são modificados pelo
dade, da sua percepção ou do Eu que a percebe. comportamento do sistema.

Lealdade Metacomunicação
Sentimento de solidariedade e compromisso que unifica as necessi- Comportamento ou acto de comunicar sobre a comunicação. Na esfera
dades, expectativas, pensamentos e sentimentos de uma unidade social da interacção pessoal a rnetacornnnicação tem como finalidade assi-
ou de vários elementos. No sistema familiar, a lealdade reporta-se aos nalar, especificar e pontuar o contexto de interacção. Este contexto
"laços invisíveis e inquebráveis que ligam os elementos da família". determina corno devem ser interpretados os comportamentos rela-
Na lealdade invisível o sujeito não tem conhecimento do conjun- cionais. Todas as formas de comunicação podem utilizar-se corno
to de dívidas e obrigações que estruturam as ligações transgera- meios de metacomunicação.
c1ona1s.
Microsistema
Limites De acordo com Bronfenbrenner, o microsistema é o contexto imediato
Fronteiras ou barreiras que permitem a demarcação dos diferentes sub- do indivíduo, concretizado nas suas relações 1naís próximas que assim
-sistemas familiares. Têm corno função distinguir o meio interior/exte- constituem a sua rede vincular primária. Desta fonna a família é vista
rior, proteger e diferenciar os diferentes sub-sistemas. Permitem a corno a estrutura básica do microsisterna.
ocorrência de intercâmbios entre os indivíduos e sub-sistemas. S. Mí-
nuchin distingue três tipos: claros, difusos e rígidos. Mitos familiares
Conjunto de crenças partilhadas por todos os elementos da família que
Luto (processo de) serve para criar, manter e justificar numerosos modelos interaccionais.
Descrito por Freud em "Luto e Melancolia", o processo de luto é visto De acordo com A. Ferreira, a família entende o conteúdo dos mitos
corno urna reacção à perda de um ente querido ou de um objecto equi- corno verdades inquestionáveis pelo que oS mesmos servem para man-
valente. Neste processo estão envolvidos sentimentos depressivos que ter o status quo e a horneostase familiar. De certa forma, os mitos
tendem a ser resolvidos pelo próprio indivíduo que, dessa forma, pode familiares estão para a família corno os mecanismos de defesa estão
352 353
(Des)Equilíbrios familiares Glossário

para o indivíduo. Nesse sentido são, também, mecanismos de pro- Mudança de 2ª ordem
tecção. Mudanças que implicam alterações qualitativas no sistema familiar.
São transformações irreversíveis que têm como finalidade promover
Modelo de identificação novas formas de funcionamento do sistema, mais adequadas às exigên-
Pessoa que pelas suas características e pela relação que estabelece com cias do mesmo e do meio.
o Outro se lhe oferece como elemento de identificação.
Negação
Moratória Obliteração de uma percepção através de um mecanismo defensivo
Período de espera, de livre experimentação de papéis que é concedido que consiste na tentativa que o indivíduo faz de se defender de senti-
ao sujeito enquanto ele não está pronto para satisfazer os compromis- mentos e pensamentos dolorosos negando que estes lhe pertencem.
sos inerentes ao seu novo estatuto ou papel. Pode ser, ainda, um processo pelo qual o indivíduo nega a importância
de objectos (reais ou não) dos quais depende vitalmente.
Morfogénese
Mecanismo pelo qual ocorrem, num sistema, transformações por re- Objecto
troacção positiva que conduzem ao aparecimento de novas estruturas. De acordo com a teoria psicanalítica, o Objecto refere-se ao alvo que
a pulsão procura para obter satisfação. Pode tratar-se de um objecto
Morfostase parcial ou total, fantasmático ou real. O objecto é o Outro com quem
Mecanismo pelo qual se corrigem ou atenuam as flutuações do siste- estabelecemos uma relação.
ma por retroacção negativa.
Paciente Identificado
Movimento centrípeto/ Movimento centrífugo Elemento da família que se apresenta, ou é apresentado, como o por-
Conceitos introduzidos por Helm Stierlin para descrever duas conste- tador de determinado sintoma que levou o sistema a procurar ajuda.
lações familiares básicas em função da direcção das forças que pre-
dominam no sistema: forças dirigidas para o interior ou forças de .. Parentalidade
coesão e forças dirigidas para o exterior ou de expulsão. Modelo de funcionamento que pressupõe o desempenho das funções
Neste sentido, pode dizer-se que o movimento centrípeto corres- executivas, como protecção, educação, integração na cultura familiar
ponde ao conjunto de forças familiares orientadas para dentro - etc., relativamente às gerações mais novas. Estas fimções não são ne-
forças de coesão - enquanto que o movimento centrífugo corres- cessariamente desempenhadas pelos pais biológicos, podendo, efecti-
ponde ao conjunto de forças orientadas para fora do sistema - vamente, estar a cargo de 9utros familiares ou pessoas que não sejam
forças de expulsão. da família ... É de salientar que o modelo de parentalidade resulta sem-
pre da reelaboração dos modelos de parentalidade construídos na(s)
Mudança de 1ª ordem família(s) de origem e vai sendo reestruturado em função do estádio de
Alterações processadas num sistema familiar com características pura- evolução familiar e dos seus contextos vivenciais.
mente correctivas e que, por isso mesmo, garantem que o funciona-
mento do sistema familiar permaneça constante. Nesse sentido, con- Parentificação
correm para manter o status quo da família. Consiste na atribuição de funções inerentes ao sub-sistema parental a
J.
·(i
~ '···i&Ji ··~ .&.\·.··~..
~
)4~l: •·t '"i/k"-,{
~.•t
,,.. • f;.
"-~Jif -~~ ~j;· l~ lal} (maJi w, b;J t"'..IJ ~J l:z,'.k -~;;aJ1l (ô:Jlr ---b11 iJiJJ
"""""' 355
354
(Des)Equilíbrios familiares Glossário

um ou mais elementos do sub-sistema filial. O filho parentificado quadrantes principais: família, escola/profissão, amizade, comunidade
assume funções e poderes que cabem aos pais pelo que a parentifi- (vizinhança e instituições). Pelas suas funções a rede social pode de-
cação implica a inversão de papéis e está relacionada com uma pertur- sempenhar um importante papel de suporte. i/
bação das fronteiras intergeracionais.
Redundâucia
Pontuação Repetição de determinados comportamentos, feitos ou fenómenos
Refere-se à estruturação e organização que os comunicantes fazem re- comunicacionais que, quando analisada, permite identificar as regras
lativamente a uma sequência contínua de mensagens e comportamen- da interacção humana.
tos. A forma como se pontua um processo de comunicação define o
significado da mesma, assim como a forma de avaliar o comporta- Reenquadramento
mento de cada um dos comunicantes. Técnica terapêutica que se baseia na construção de significados e
A pontuação discordante resulta do facto de os parceiros pos- leituras alternativas para os problemas, ideias ou crenças das pessoas.
suírem informações diferentes ou pontos de vista divergentes.
Resiliência
Pragmática da comunicação humana Capacidade dos indivíduos e das famílias que lhes permite fazer face,
Estudo dos efeitos pragmáticos da comunicação humana nos compor- espontaneamente, às dificuldades com que se deparam. O conceito de
tamentos e vice-versa. resiliência liga vulnerabilidade e poder regenerativo dado que envolve
a capacidade do sistema para minimizar o impacto disruptivo de uma
Profecias situação stressante, através de tentativas feitas no sentido de influen-
Pensamentos, esperanças, predições que, pelo simples facto de serem ciar as solicitações e desenvolver recursos para fazer-lhes frente.
enunciadas, têm como consequência provocar a realização do que
havia sido pensado, esperado ou previsto. Retro acção
Processo pelo qual, numa cadeia causal, um elemento age sobre uma
Projecção etapa anterior do processo modificando-lhe o curso ou estrutura. A
Processo pelo qual o indivíduo expulsa de si qualidades, sentimentos retroacção é, então, um mecanismo de ligação dos elementos do sis-
ou desejos que recusa como seus e que localiza no Outro. Trata-se de tema (que não é somativo nem unilateral - modelo de causalidade cir-
um mecanismo de defesa de natureza arcaica. cular).
A retroacção negativa refere-se aos mecanismos que permitem
Recursividade ao sistema auto-corrigir-se de modo a manter a sua estabilidade.
Mecanismo de influência recíproca e complexa entre elementos do sis- A retroacção positiva diz respeito aos mecanismos que permitem
tema. ao sistema desorganizar-se e promover mudanças.

Rede Social Romance familiar


Conjunto de relações interpessoais e sociais diferenciadas da massa Fantasia universal, einbora nem sempre consciente, particularmente
anónima social e estabelecidas por determinado indivíduo. Os elemen- típica e fundamental na adolescência. Genericamente, pode definir-se
tos que compõem a rede social pessoal são organizados em quatro como um conjunto de fantasmas através dos quais o indivíduo modifi-
-(;--
~-
1
1 356 357
- ---
(Des)Equilíbrios familiares Glossário

1
ca, imaginariamente, os laços e relações que tem com os seus pais. Sistemas observantes
Estas fantasias teriam, segundo Freud, origem no complexo de Édipo. Conceito associado à cibernética de 2ª ordem segundo o qual não exis-
tem sistemas que observam (terapeutas) e sistemas observados
Ruído (famílias); os sistemas estão em interacção permanente, em observação
Termo genenco que designa todos os erros de transmissão de uma mútua e influenciam-se reciprocamente ao longo da interacção.
mensagem. Habitualmente, o ruído é considerado uma interferência a
eliminar. No entanto, numa perspectiva sistémica, passa a ser encara- Sistema terapêutico
do como uma retroacção que deve ser considerada na interacção fami- Sistema composto pelos terapeutas e pela família no âmbito de um
liar. processo psicoterapêutico.

Self Sublimação
Ainda que por vezes assimilado ao Eu, na perspectiva kleiniana o se/f Freud recorre à ideia de sublimação como um processo explicativo
diz respeito à totalidade da personalidade do indivíduo. Representa o de actividades humanas criativas e culturais, sem relação aparente
sujeito nas suas próprias fantasias, descritas a partir de um ponto de com a sexualidade mas que aí encontrariam a sua origem. Diz-se que
vista subjectivo. a pulsão é sublimada ua medida em que é conduzida para um novo
alvo, não sexual, usualmente associado a objectos socialmente va-
Singularidades do sistema lorizados.
Regras intrínsecas ou particulares de um dado sistema familiar que o
diferenciam dos demais. Estas singularidades podem tomar a forma de Teoria Geral dos Sistemas
metáforas ou traduzir-se, essencialmente, pela linguagem analógica. Vasto domínio do saber que procura compreender e explicar os sis-
temas no que diz respeito aos seos processos de funcionamento, di-
Sistema mensões tecnológicas, organizacionais, estruturais, etc. De acordo com
Conjunto de elementos ou unidades em interacção constante e recípro- von Bertalanffy o objectivo da T.GS. "é formular princípios válidos
ca, ordenados segundo determinadas regras e formando um todo orga- para todos os sistemas, retirando daí as respectivas consequências".
nizado.
Sub-sistemas são unidades mais pequenas que integram o sistema Terapia Familiar
e têm as mesmas propriedades que este possui. Processo psicoterapêutico realizado com o sistema familiar que, habi-
O supra-sistema é tuna unidade sistémica mais vasta que englo- tualmente, se baseia na entrevista interpessoal conjunta. Actualmente,
ba sistemas e sub-sistemas interligados entre si numa relação ver- no contexto das terapias de 2' ordem, considera-se possível realizar
tical. uma terapia familiar apenas com um dos elementos do sistema fami-
liar.
Sistemas autopoiéticos
São denominados autopoiéticos aqueles sistemas em que a sua organi- Totalidade
zação permanece idêntica como resultado do seu próprio funciona- Propriedade dos sistemas segundo a qual a totalidade do sistema não é
mento. igual à soma das suas diferentes partes. O sistema não se comporta
como um agregado de elementos somados uns aos outros mas consti-
~-- •-.-~
,/ ií ,,, •. l
t(~
. h '\ /:.'.;;_'. il::c..<.i ~~ bil -.io-,,k:t Jl.o.d fil....-~- -~~-)4 k~;-- -l::~ -lr;;....o,,r ~""'-;M '"""'--4:1 ~no7~ ~"*'"'
(.,,;.] '\(_.,..;'$> i<Fil
358 359
(Des )Equilíbrios familiares Glossário

tui um todo coerente e indivisível. A modificação de um dos elemen- lhe proporciona um sentiinento de segurança necessar10 ao desen-
tos do sistema corresponderá a uma modificação de todos os outros e volvimento da actividade de exploração do mundo envolvente. De
da relação entre eles, ou seja do próprio sistema. acordo com as características desta relação vinculativa a criança ü1te-
riorizará um modelo particular de vinculação, relativamente estável
Triângulo durante toda a vida. De acordo com a investigação realizada dis-
Configuração interaccional composta por três elementos que se consti- tinguem-se três grandes modelos de vinculação:
tui corno o menor dos sistemas de relação interpessoal estável. A vinculação segura caracteriza-se pela procura activa de proxi-
Segundo alguns autores, o triângulo constitui a base de qualquer sis- midade e interacção e pela aceitação e afirmação da necessidade
tema emocional na família. de uma relação vinculativa.
O triângulo perverso refere-se às situações em que a triangulação A vinculação insegura define-se genericamente por uma ligação
envolve três pessoas, duas das quais pertencem a níveis hierár- ou um laço ténue onde estão envolvidos sentimentos de proximi-
quicos diferentes e que estão coligadas contra a terceira. Como se dade e segurança pouco fortes e inseguros. No tipo inseguro-evi-
compreende, a aliança toma a forma de uma transgressão inter- tante, o elemento vinculado despreza a figura de vinculação e
geracional. O triângulo perverso surge como expansão de um con- evita o contacto com a mesma. No tipo inseguro-ambivalente, o
flito entre dois elemehtos para um terceiro. Uma das formas de elemento vinc11lado mostra-se ambivalente, procurando, simulta-
desviar esse conflito pode ser o aparecimento de um sintoma com- neamente, a proximidade e o afastamento.
portamental no terceiro elemento. A ligação de um dos elementos Um último tipo, designado como desorganizado/desorientado,
do conflito com o indivíduo triangulado é ocultada e/ou negada foi encontrado entre amostras de risco: o comportamento do ele-
por ambos. mento vinculado caracteriza-se por comportamentos contraditó-
O triângulo rígido corresponde a uma configuração relacional de rios, expressões de confusão, desorganização e desorientação, etc.
três elementos onde o indivíduo triangulado é utilizado pela díade
de forma rígida, no sentido de desviar o conflito existente. Se- Vulnerabilidade
gundo Minuchin, esta expressão traduz uma estrutura familiar na A vulnerabilidade individual ou familiar pode definir-se como o con-
qual os limites entre o sub-sistema parental e filial são difusos e os junto de sensibilidades e de fraquezas, patentes ou latentes, imediatas
limites em torno desta tríade se tomam inadequadamente rígidos. ou diferidas, que marcam a capacidade do sujeito ou da família para
resistir às contrariedades do meio.
Vinculação
Relação privilegiada com uma figura particular que confere segurança
e protecção através dos cuidados que a mesma proporciona. Esta re-
lação é interactiva, desenvolvendo-se uma relação complementar entre
os dois parceiros: um que solicita cuidados e atenções que lhe garan-
tam a satisfação das snas necessidades de segurança e protecção e
outro qne tem que ser responsivo, i.é, ser capaz de compreender e
responder adequadamente às solicitações recebidas através da pres-
tação de cuidados. Se a figura de vinculação realizar regularmente este
papel, a figura vinculada pode desenvolver uma confiança básica que
Bibliografia

ALARCÃO, M. (1986). Para uma abordagem dos processos de sepa-


ração no adolescente. Trabalho de síntese apresentado à Faculdade de
Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra
para acesso à categoria de Assistente de Investigação.
ALARCÃO, M.; RELVAS, A. P. (1992). A família e a escola. Caesura, 1,
Julho-Dezembro, 51-60.
ALARCÃO, M. (1996). Re-criando vínculos: redes de suporte e relações
inter-geracionais. Interacções, 4, Julho-Dezembro, 41-49.
ALARCÃO, M. (1998a). A leitura do sistema como estratégia de avalia-
ção e de intervenção face ao sintoma escolar. ln Vários, Ensaios em
homenagem a Joaquim Ferreira Gomes. Coimbra, Núcleo de Análise
e Intervenção Educàcional da Faculdade de Psicologia e de Ciências
da Educação da Universidade de Coimbra, 113-119.
ALARCÃO, M. (l 998b ). Família e redes sociais: malha a malha se tece a
teia. lnteracções, 7, Janeiro-Jmlho, 93-102.
ALEXANDER, B. K.; DIBB, G. S. (1975). Opiate addicts and their pa-
rents. Family Process, 14, 4, Printed froin The Family Process CD-
-ROM.
ALEXANDER, B. K.; DIBB, G. S. (1977). Interpersonal perception in
addict families. Family Process,' 16, 1, Printed from The Family
Process CD-ROM.
ALMEIDA COSTA, J. M. (1994). A realidade construída. ln J. Gameiro.
Quem sai aos seus... Porto, Edições Afrontamento.
AMARAL DIAS, C. (1980). A influência relativa dos Jactores psicológi-
cos e sociais no evolutivo toxicómano. Dissertação de Doutoramento
l .,_,_
l -· "l ~:J !i,..·_,!(-i
"""·- f..l
·L,,.! ...._ ~-·
\_ ;,:_t il;. -""" .,.., "'-"' L .. J ,, ,j ~ . .,,,J ,_._ fL ... ,".J -4. !k" L,._ ,Jt
-t
362- - - - - - - 363
(Des )Equilíbrios familiares Bibliografia

apresentada à Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da BERGERET, J. (1980). Le toxicomane et ses environnements. Paris, PUF.
Uuiversidade de Coimbra. BERTALANFFY, L von (1972). Théorie général des systemes. Paris,
AMARAL DIAS, C. (1995). (A) Re-pensar, co/ectânea psicanalítica. Dunod. Edição original, 1968.
Porto, Edições Afrontamento. BION, W. (1963). Elements ofpsychoanalysis. London, W. Weinemaun.
AMERJKANER, M. et ai. (1994). Family interaction and individual psy- BION, W. (1965). Transformations. Change from learning to growth.
chological health. Journal of Counseling and Development, 72, 6, London, W. Heinemaun.
614-623. BIRREN, J. E. et ai. (1981). Developmental psychology: a life-span
ANDERSON, H.; GOOLISHIAN, H. (1991). Los sistemas humanos approach. Boston, Houghton MifDin.
como sistemas língüisticos: implicaciones para la teoria clínica y la BISHOP, J.; PATTERSON, P. (1992). Lignes direc1rices sur l'évaluation et
terapia familiar. Revista de Psicoterapia, II, 6-7, 41-71. Ia gestion de la violence familiale. L 'Association des Psychiatres du
ANDOLFI, M. (1981). A terapia familiar. Lisboa, Editorial Vega. Canada, lignes directrices. Retrieved August 5, 1998 frorn lhe Word
ANGEL, P.; COUTURE, F.; STERNSCHUSS-ANGEL, S. (1982). Le Wide Web :http ://cpa.medical.org/cpa/french_ docs/public/papers /f-Id4.
toxicomane et ses grands-parents. Cahiers Critiques de Thérapie htmL
Familia/e et de Pratiques de Réseaux, 6, 53-58. BLOS, P. (1967). The second individuation process of adolescence.
ASEN, K.; TOMSON, P. (1997). Jntervenciónfamiliar, guiaprácticapara Psychoanalytic Study ofthe Child, 22, 162-186.
los profesionales de la salud. Barcelona, Paidós. BOSCOLO, L; BERTRANDO, P. (1996). Los tiempos dei tiempo, una
AUSLOOS, G (1981). Systemes, homéostase, équilibration. Thérapie nu eva perspectiva para la consulta y la terapia sistén1icas. Barcelona,
Familia/e, 2, 3, 187-203. Paidós. Edição origiual, 1993.
AUSLOOS, G (1996). A competência das familias, tempo, caos, proces- BOSZORMENYI-NAGY, L; SPARK, G (1973). !nvisib/e loyalties: reci-
so. Lisboa, CLIMEPSI Editores. procity in interge11erational fanzily therapy. New Yok, Harper & Row.
BARREIROS, J. (1996). A turma como grupo e sistema de interacção: BOWEN, M. (1984). La différenciation du soi, les triangles et les sys-
unia abordage1n sisténzica da con1unicação na turnza. Porto, Porto temes émotif.; farniliaux. Paris, ESF. Edição original, 1978.
Editora. BOWLBY, J. (1958). A natureza da ligação da criança com a mãe. ln L
BATESON, G et ai. (1956). Vers une théorie de la schizophrénie. ln G Soczka (org.) (1976). As ligações infantis. Amadora, Livraria
Bateson (1980). Vers une écologie de/ 'esprit. Paris, Seuil, t. II. Bertrand, 105-153.
BATESON, G (1987). Natureza e espírito. Lisboa, Publicações Dom BOWLBY, J. (1969). Attachment and loss: vol. !. Attachment. New York,
Quixote. Edição original 1979. Basic Books.
BATESON, G (1989). Metadiálogos. Lisboa, Gradiva. Edição original, BOWLBY, J. (1973). Attachment and loss: vol. II Separation: anxiety
1972. and anger. New York, Basic Books.
BATESON, G et ai. (1981). La nouvelle communication. Paris, SeuiL BOWLBY, J. (1980). Attachrnent and loss: vol. III. Loss, sadness and
BENOIT, J. C. (1984). Les théories systémiques et la thérapeutique insti- depression. New York, Basic Books.
tutionnelle. Paris, Masson. BOWLBY, J. (1995). Una base segura, aplicaciones clínicas de una
BENOIT, J. C.; ROUME, D. (1986). La désaliénation systémique, les teoria dei apego. 2 ed., Barceloua, Paidós. Edição original, 1988.
entretiens collectift Jamiliaux en institution. Paris, ESF. BRAY, J. H. (1995). Family assessment: current issues in evaluatiug fami-
BENOIT, J. C. et ai. (1988). Dictionnaire clinique des thérapiesfami/iales lies. Family Relations, 44, 4, 469-487.
systémiques. Paris, ESF. BRJDGMAN, F. (1989). Les systemes familiaux à parenté multiple.
BENOIT, J. C. (1997). Tratamento das perturbações familiares. Lisboa, Thérapie Familia/e, 10, 51-62.
CLIMEPSI Editores. Edição original, 1995. BRONFENBRENNER, U. (1987). La ecologia dei desarrollo humano.
Barcelona, Paidós. Edição original, 1979.
364 365
(Des)Equilíbrios familiares Bibliografia

BRUNEAU, J. (1996). Protéger l'enfant sans être hors de la !oi?. Cahiers CORSl, J. (1995). Violenciafamiliar, una mirada interdisciplinaria sobre
Critiques de Thérapie Familia/e et de Pratiques de Réseaux, 17, 87- un grave problema social. 2 ed., Buenos Aires, Paidós. Edição origi-
95. nal, 1994.
BURKETT, L. P. (1991). Parenting behaviors of women who were se- COSTA, M. T. (1999). Intervenção psicológica em contexto escolar, um
xually abused as children in their families of origin. Family Process, processo co-evolutivo. Dissertação de Mestrado apresentada à
30, 4, Printed from The Farnily Process CD-ROM. Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade
CAILLÉ, P. (1987). L'intervenant, le systeme et la crise. Thérapie de Coimbra.
Familia/e, 4, 359-370. CURON!Cl, Ch.; McCULLOCH, P. (1994). Approche systémique et
CAMDESSUS, B.; BONJEAN, M.; SPECTOR, R. (1995). Crisis fami- école: utilisation des ressources de l'école pour résoudre les difficultés
liares y ancianidad. Barcelona, Paidós. Edição original, 1989. scolaires. Thérapie Familia/e, 15, 1, 49-62.
CANCRINI, L. et ai. ( 1988). Juvenil e drug addiction: a typology of he- DECHAMPS, M.; HELLAS, M. (1996). Le choix de dire ou !e choix de
roin addicts and their families. Family Process, 27, 3, Printed from taire. Le dilemme du joumaliste. Cahiers Critiques de Thérapie
The Family Process CD-ROM. Familia/e et de Pratiques de Réseaux, 17, 45-53.
CANCRINI, L.; GREGORIO, F.; NOCERINO, S. (1997). Las familias DEFAYS, C.; PLUYMAEKERS, J. (1996). Médiatisation de la maltrai-
multiproblemáticas. Jn M. Coletti, J. L. Linares (comp.). La interven- tance: un champ d'interaction. Cahiers Critiques de Thérapie
ción sistémica en los servicíos sociales ante la familia multipro- Fainiliale et de Pratiques de Réseaux, 17, 55-63.
blemática, la experiencia de Ciutat Vella. Barcelona, Paidós. DEFRANCE, J. (1982). La trajectoire des families de toxicomanes.
CAPLOW, T. (1984). Deux contre un. Paris, ESF. Edição original, 1968. Cahiers Critiques de Thérapie F amiliale et de Pratiques de Reseaux,
CARTER, B.; McGOLDRICK, M. e cal. (1995).As mudanças no ciclo de 6, 79-86.
vida familiar: uma estrutura para a terapia familiar. 2 ed., Porto DeFRANK-LYNCH, B. (1986). Thérapie familia/e structurale: manuel
Alegre, Artes Médicas. Edição original, 1989. des principes et des éléments de base. Paris, ESF. Edição original,
CIRILLO, S.; Di BLASIO, P. (1997). Ninas maltratados, diagnóstico y 1985.
terapia familiar. 2 ed., Barcelona, Paidós. Edição original, 1989. DELL, P. F. (1982). Beyond homeostasis: toward a concept of coherence.
COLAPINTO, J. (1995). Dilution of family process in social services: Family Process, 21, 1, 21-41.
implications for treatment of neglected families. Family Process, 34, DROEVEN, J. M. (comp.) (1997). Más aliá de pactos y traiciones, cons-
1, Printed from The Farnily Process CD-ROM. truyendo el diálogo terapéutico. Buenos Aires, Paidós.
COLEMAN, S.; DAVIS, D. I. (1978). Family therapy and drug abuse: a DROEVEN, J. M.; NAJMANOVICH, D. (1997). De la cibernética a la
national snrvey. Family Process, 17, l, Printed from The Farnily complejidad: el devenir de la reflexión. ln J. M. Droeven ( comp.). Más
Process CD-ROM. aliá de pactos y traiciones, construyendo el diálogo terapéutico.
COLEMAN, S. B.; KAPLAN. J. D.; DOWNING, R. W. (1986). Life cycle Buenos Aires, Paidós.
and loss - lhe spiritual vacuum of heroin. Family Process, 25, I, DURET, !.; LEFEBVRE, A. (1996). De l'élaboration fantasmatique de
Printed from The Family Process CD-ROM. l'enfant maltraité aux jeux qui sous-tendent la maltraitance. Cahiers
COLETTI, M.; LINARES, J. L. (1997). La intervención sistémica en los Critiques de Thérapie Familia/e et de Pratiques de Réseaux, 17, 167-
servicios sociales ante la familia multiproblemática, la ex:periencia de 177.
Ciutat Vella. Barcelona, Paidós. ELKAlM, M. (1979). Agencements, pratiques de réseaux. Cahiers
CONSTANTINE, L.; CONSTANTINE, J. M. (1971). Group and multila- Critiques de Thérapie Familia/e et de Pratiques de Reseaux, 1, 63.
teral marriage: definitional notes, glossary and annotated bibliogra- ELKAlM, M. (1985a). From general laws to singularities. Family
phy. Family Process, !O, 2, Printed from The Family Process CD- Process, 24, 2, Printed from The Farnily Process CD-ROM.
-ROM.
r.>.Ç~',,~--
.....,,'1
/'"

-~ ..~
'y-'-,_
~ t~ -t~ i:g';J -~ ~;; ~ \ .·i:= .iJ i.'..,:ál iw..i l'~~
.' 'l.w.Jií ~µJ
~

-i~:ii 'l,,;,,J -(;~ b.J -'i~~ ~;;;_;i

366 367
(Des)Equilíbrios familiares Bibliografia

ELKAIM, M. ( 1985b). Formations et pratiques en thérapie familia/e. FLEMING, M. (1993). Adolescência e autonomia, o desenvolvimento psi-
Paris, ESF. cológico e a relação com os pais. Porto, Edições Afrontamento.
ELKAIM, M. (1990). Se você me ama, não me ame, abordagem sistémi- FLEMING; M. (1995). Fàmilia e toxicodependência. Porto. Edições
ca em psicoterapia familiar e conjugal. Campinas, Papiros Editora. Afrontamento.
Edição original, 1989. FOERSTER, H. von (1996). Las semillas de la cibernetica: obras escogi-
ELKAIM, M. et ai. (1995). Las practicas de la terapia de red. 2 ed., das. 2 ed, Barcelona, Gedisa.
Barcelona, Gedisa. Edição original, 1987. FONTA!NE, P. (1985). Familles saines. Thérapie Familia/e, 6, 267-282.
ERIKSON, E. (1972). Identidade, juventude e crise. Rio de Janeiro, FONTAINE, P. (1992). Le temps et les families sous-prolétaires. Thérapie
Zabar. Edição original, 1963. Familia/e, 13, 297-326.
EVÉQUOZ, G. (1987). Le contexte scolaire et ses otages: vers une FONTAINE, P. (1993). Recherche "et/et", cheminement vers une vue
approche systémique des difficultés scolaires. 2 ed., Paris, ESF. Edição binoculaire. Thérapie Familia/e, 14, 107-122.
original, 1984. FRIEDMEN, A.; UTADA, A.; MORRISSEY, M. (1987). Families of ado-
EVÉQUOZ, G. (1987/88). Analyse systémique des interactions école- lescent drug abusers are "rigid": are the families either "disengaged"
·famille: proposition d'un cadre théorique. Bulletin de Psychologie, or "enmeshed" or both?. Family Process, 26, 1, Printed from The
tome XLI, n" 384, 355-363. Family Process CD-ROM.
EVÉQUOZ, G. (1990). Y a-t-il un pilote dans la classe? Le probleme de GAMEIRO, J. (1992). Voando sobre a psiquiatria. Análise epistemológi-
la hiérarchie dans un systeme artificiei. Thérapie Familia/e, 4, 407- ca da psiquiatria contemporánea. Porto, Edições Afrontamento.
423. GAMEIRO, J. (1999). Os meus, os teus e os nossos: novas formas de
FALICOV, C. J. (comp.) (1991). Transiciones de la familia: continuidad família. 3 ed., Lisboa, Terramar. Edição original, 1998.
y cambio en el ciclo de vida. Buenos Aires. Amorrortu Editores. GANGER, R.; SHUGART, G. (1966). The heroin addict's pseudoas-
Edição original, 1988. sertive behavior and family dynamics. Social Casework, 57, 643-649.
FALICOV, C. J. (1995). Training to think culturally: a multidimensional GLASSERMAN, M. R. (1997). Estímulo para pensar la violencia fami-
comparative framework. Family Process, 34, 4, Printed from The liar: un diálogo violento en sesión y la violencia en el sistema. Jn J. M.
Family Process CD-ROM. Droeven ( comp.). Más alia de pactos y traiciones: construyendo el
FEIXAS, G. (1991). De! individuo ai sistema: la perspectiva constructivista diálogo terapéutico. Buenos Aires, Paidós.
corno marco integrador. Revista de Psicoterapia, II, 6-7, 91-120. GOLDBETER-MERINFELD, E. (1996). Responsabilité et maltraitance.
FERNÁNDEZ, M.; ORTIZ, I. (1998). Mitos maritales. ln J. A. Ríos Cahiers Critiques de Thérapie F amiliale et de Pratiques de Réseaux,
( coord.). La familia: realidad y mito. Madrid, Editorial Centro de 17, 155-165.
Estudos Ramón Areces, S.A .. GONZÁLEZ, M. M.; TRIANA, B. (1998). Divorcio, monoparentalidad y
FERRARI, P. (1990). Dépendence et indépendence, une approche psy- nnevos emparejamientos. ln M. Rodrigo, J. Palacios (coords.).
chopathologique et psychanalytique. Neuropsychiatrique de l'En- Família y desarrollo humano. Madrid, Alianza Editorial.
fance, 38, 4-5, 180-185. GOUTAI., M. (1985). Dufantasme au systeme, scenes de.familie en épis-
FERREIRA, A. J. (1997). Double-lien et délinquance. ln J. C. Benoit. ten1ologie psychanalytique et systémique. Paris, ESF.
Changements systémiques en thérapie familia/e. 5 ed., Paris, ESF. HALEY, J. (1981). Pour une théorie des systemes pathologiques. ln P.
Edição original, 1980. Artigo original, 1960. Watzlawick, J. H. Weakland. Sur l 'interaction. Paris, Le Seuil. Edição
FISCH, R.; WEAKLAND, J. H.; SEGAL, L (1994). La láctica dei cam- original, 1977.
bio: como abreviar la terapia. Barcelona, Editorial Herder. Edição HALEY, J. (1994). Terapia no convencional: las técnicas psiquiátricas de
original, 1982. Milton H. Erickson. 5 ed., Buenos Aires, Arnorrortu Editores. Edição
original, 1973.

),;
368 369
(Des )Equilíbrios familiares Bibliografia

HANSEN, C. (1981). Living in with normal families. Family Process, 20, KLEIN, M. (1981). Envie et gratitude et autres essais. Paris, Gallimard.
I, Printed from The Family Process CD-ROM. Edição original, 1968.
HARBIN, H.; MADDEN, D. (1983). Assaultive adolescents: family deci- LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. (1981). Vocabulaire de la psycha-
sion-making parameters. Family Process, 22, 1, Printed from The na(vse. 7 ed., Paris, PUF. Edição original, 1967.
Family Process CD-ROM. LINARES, J. L. (1997). Modelo sistémico y familia multiproblemática. ln
HARBIN, H.; MAZIAR, H. M. (1975). The families of drug abusers: a M. Coletti, J. L. Linares (comp.). La intervención sistémica en los ser-
literature review. Family Process, 14, 3, Printed from The Family vicios sociales ante la fan1ilia multiproblemática, la experiencia de
Process CD-ROM. Ciutat Vel/a. Barcelona, Paidós.
HARDY, G. .(1996). Familles rnaltraitantes! ! !. Cahiers Critiques de LOKETEK, A. (1997). Los circnitos de la violencia familiar: un enfoque
Thérapie Familia/e et de Pratiques de Réseaux, 17, 109-117. Sistémico. ln J. M. Droeven (comp.). Más aliá de pactos y traiciones:
HARDY, G.; DEFAYS, Ch.; GERREKENS, H. (1996). La conjuration des constru_vendo e! diálogo terapéutico. Buenos Aires, Paidós.
bienveillants!. Cahiers Critiques de Thérapie Familia/e et de LONG; J. K. (1996). Commentaries: homosexuality: training issues.
Pratiques de Réseaux, 17, 139-145. Working with lesbians, gays and bisexuais: addressing heterosexism
HAWLEY, D. R.; DeHAAN, L. (1996). Toward a definition of family in supervision. Family Process, 35, 3, Printed from The Family
resilience: integrating life-span and family perspectives. Family Process CD-ROM.
Process, 35, 3, Printed from The Family Process CD-ROM. LYSACK, M. (1998). L'emploi de la thérapie "du récit" aupres des ado-
HAYEZ, J. Y. (1992). Prise en charge de l'abuseur, aprés abus sexuel sur !escents incarcerés et de leur famille. Retrived August 5, 1998 from
mineur d'âge: un point de vue systémique. Thérapie Familia/e, 13, 4, the Word Wide Web: http://www.csc-scc.bc.ca/crd/forum/e0/2/
363-375. /f0/2i.htm.
HINSHELWOOD, R. D. (1992). Dicionário do pensamento kleiniano. MACHOTKA, P.; PITTMAN, F.; FLOMENHAF1~ K. (1967). Incestas a
Porto Alegre, Artes Médicas. Edição original, 1991. family affair. Family Process, 6, l, Printed from The Family Process
HIRSCH, R. (1961 ). Group therapy with parents of adolescents drug CD-ROM.
addicts. Psychiatric Quarterly, 35, 702-71 O. MADANES, C.; DUKES, J.; HARBIN, H. (1982). Liens familiaux des
HOFFMAN, L. (1981). Foundations of jàmily therapy: a conceptual heroinomanes. Cahiers Critiques de Thérapie Familia/e et de
frameworkjàr systems change. New York, Basic Books. Pratiques de Reseaux, 6, 87-100.
HOFFMAN, L. (1990). Constructing realities: an art of lenses. Family MAHLER, M. (1967). La symbiose humaine et les vicissitudes de l'indi-
Process, 19, 1, Printed from The Family Process CD-ROM. viduation. ln P. H. Bium (1981). Dix ans de psychana/yse en
HOWE, D. (1997). La teoría dei vínculo afectivo para la práctica dei tra- Amérique, Anthologie du Journal of American Psychoana/ytic
bajo social. Barcelona, Paidós. Edição original, 1995. Association, Paris, PUF.
JACKSON, D. (1965). The study of the family. Family Process, 4, 1, MARC, E.; PICARD, D. (1984). L 'école de Palo Alto. Paris, Retz.
Printed from The Family Process CD-ROM. MASSON, O. ( 1988). Mandats judiciaires et thérapies en pédopsychiatrie.
KAUFMAN, E.; KAUFMAN, P. (eds) (1979). Family therapy of drug Thérapie Familia/e, 9, 283-300.
and alcohol abuse. New York, Gardner Press. McGOLDRICK, M.; CARTER, E. (1982). The family life cycle. ln F.
KAUFMAN, E.; KAUFMAN, P. (1982). La thérapie familiale multiple Wash (ed.). Norma/family processes. New York, Tbe Guilford Press.
utilisée avec des toxicomanes. Cahiers Critiques de Thérapie McGOLDRICK, M.; GERSON, R. (1987). Genogramas en la evaluacion
Familia/e et de Pratiques de Réseaux, 6, 109-119. familiar. Buenos Aires, Gedisa. Edição original, 1985.
KLAGSBRUN, M.; DAVIS, D. L (1977). Substance abuse and family McNAMEE, S.; GERGEN, K. J. (1996). La terapia como construcción
interaction. Family Process, 16, 2, Printed from The Family Process social. Barcelona, Paidós. Edição original, 1995.
CD-ROM.
c:::h ~·· ~] ~·· ~
t'•.---1
lldê G1 ~1-· ~ i e
~j
., ,·e e:!
~
··,...: :r
~
l'•,li·1 &.>r l~~t l•>l l•i! ··' l•.il Li:;].. G,:,;J \i,.;J •GJ '(~j)-
~

370 371
(Des)Equilíbrios familiares Bibliografia

MIHANOVICH, M. (1997). Pisando los umbrales dei siglo XXI. ln J. M. PALACIOS, J. et ai. (1998). Malos tratos a los nifios en la familia. ln M.
Droeven (comp.). Más aliá de pactos y traiciones: construyendo el Rodrigo, J. Palacios (coords.). Família y desarrollo humano. Madrid,
diálogo terapéutico. Buenos Aires, Paidós. Alianza Editorial.
MINUCHIN, S. (1979). Families en thérapie. Paris, J. P. Delarge. Edição PALAZZOLI, M. et al. (1978). Paradoxe et contre-paradoxe. Paris, ESF.
original, 1974. Edição original, 1975.
MINUCHIN, S.; FISHMAN, C. H. (1988). Tecnicas de terapia familiar. PALAZZOLI, M. et ai. (1984). Dans les coulisses de l'organisation,
Barcelona, Paidos. Eclição original, 198 L stratégie et tactique. Paris, ESF.
MINUCHIN, S. et ai. (1991). Caleidoscopio familiar: imágenes de vio- PALAZZOLI, M. et ai. (1987). Le magicien sans magie, ou comment
lencia y curación. Barcelona, Paidós. Edição original, 1967. changer la condition paradoxale du psychoogue dans l 'école. 3 ed.,
MONTANDON, C.; PERRENOUD, P. (1987). Entre parents et Paris, ESF. Edição original, 1976.
enseignants: un dialogue impossible?. Beme, Ed. Peter Lang. PALAZZOLI, M. et ai. (1988). Les jeux psychotiques dans la familie.
MORIN, E. (1992). Introduction à la pensée complexe. 4 ed., Paris, ESF. Paris, ESF.
Edição original, 1990. PENAUD, J. J. (1996). Droits,justice et responsabilité. Cahiers Critiques
MULHERN, S. (1996). La socio-pathologie de la dénonciation. Cahiers de Thérapie Familiale et de Pratiques de Réseaux, 17, 73-85.
Critiques de Thérapie Familiale et de Pratiques de Réseaux, 17, 13- PITTMAN, F. S. (1991). Crisis familiares previsibles e imprevisibles. ln
33. C. J. Falicov (comp.). Transiciones de la familia: continuidad y cam-
MULHERN, S. (1996). !.'inceste: histoire d'en rire. Cahiers Critiques de bio en el ciclo de vida. Buenos Aires, Amorrortu Editores. Edição
Théarapie Familiale et de Pratiques de Réseaux, 17, 97- 107. original, 1988.
NARDONE, G.; WATZLAWICK, P. (1995). El arte dei cambio. PLUYMAEKERS, J. (1996). L'approche systémique confrontée au défi et
Barcelona, Editorial Herder. Edição original, 1990. aux dénis de la maltraitance. Cahiers Critiques de Thérapie Familia/e
NICHOLS, M. P.; SCHWARTZ, R.C. (1998). Terapiafàmiliar, conceitos et de Pratiques de Réseaux, 17, 119-137.
e métodos. Porto Alegre, Artes Médicas. Edição original, 1995. POLA!NO-LORENTE, A.; CANO, P. M. (1998). Eva/uacion psicologica
OMS (1994). World AIDS Day Newsletter, 1. y psicopatologica de la familia. Navarra, Ediciones R!ALP.
ONNIS, L. (1991). La renovacion epistemologica actual de la psicotera- PRIGOGINE, !. (1996). O fim das certezas. Lisboa, Gradiva. Edição ori-
pia sistemica: repercusiones en la teoria y en la practica. Revista de ginal, 1996.
Psicoterapia, II, 6-7, 5-15. PRIGOGINE, !. (1999). Ressonances et domaines du savoir. ln M. Elka!m
OREGON, E. ( 1998). Prévention du comportement antisocial chez les (dir.). La thérapiefamiliale en changement. Paris, Les Empêcheurs de
enfants défavorisés. Centre international pour la prévention de la Penser en Ronde.
criminalité. Retrived August 5, 1998 from the Word Wide Web: PRIGOGINE, !.; GUATTARI, F.; ELKAIM, M. (s/d). Documents-
http ://www. crime-preven ti on-intl. org/français/cequi pre/ soutenir/ -Ouvertures. Débat de Ilya Prigogine et ses collaborateurs et Felix
I enfants/3 9 .htm. Guattari et Mony ElkaYm. Cahiers Critiques de Thérapie F amiliale et
PAIXÃO, R. (1991). O conceito de homogeneidade e heterogeneidade de Pratiques de Réseaux, 3, 7-1 7.
nos grupos de iguais adolescentes. Dissertação de Doutoramento REILLY, C. M. (1975). Family factors in the etiology and treatmau of
apresentada à Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da youthful drug abuse. Family Therapy, 2, 2, 149-171.
Universidade de Coimbra. RELVAS, A. P.; ALARCÃO, M. (1989). A entrada na escola primária: síg-
PALACIOS, J. (1998). Famílias adoptivas. ln M. Rodrigo, J. Palacios nificado(s) para a criança e sua fan1ília. Revista Portuguesa de
(coords.). Família y desarrollo humano. Madrid, Alianza Editorial. Educação, 2 (1), 99-106.
RELVAS, A. P. (1996a). A co-construção da hipótese sistémica em terapia
familiar. Análise Psicológica, 4 (XIV), 563-579.
372·~~~~~~~~~~~~--~~~~~ 37.~3~~~~~~~~~~~~~~·~~~~~~~
(Des )Equilíbrios familiares Bibliografia

RELVAS, A. P. (1996b). O ciclo vital da familia, perspectiva sistémica. STANTON, M. D. (1977). The addict as savior: heroin, death and the fa-
Porto, Edições Afrontamento. rnily. Family Process, 16, 2, Printed frorn The Family Process CD-
RODRIGO, M.; PALACIOS, J. (coords.) (1998). Família y desarrollo ROM.
humano. Madrid, Alianza Editorial. STANTON, M. D. et ai. (! 978). Heroin addiction as a family phenorne-
ROSENBERG, E. (1992). The adoption li/e cycle. New York, The Free non: a new conceptual model. American Journal ofDrug and Alcohol
Press. Abuse, 5, 2, 125-150.
ROSNAY, J. (1977). O macroscópio, para uma visão global. Lisboa, STANTON, M. D. (1979). Family treatment approaches to drug abuse
Arcádia. Edição original, 197 5. problems: a review. Family Process, 18, 3, Printed from The Family
SÁNCHEZ, F. L. (1995). Prevención de los abusos sexuales de menores Process CD-ROM.
y educación sexual. Salamanca, Amarú Ediciones. STANTON, M. D.; TODD, T. C. (1979). Structural farnily therapy with
SAMPAIO, D.; GAMEIRO, J. (1985). Terapia familiar. Porto, Edições drug and addicts. ln E. Kaufinann, P. Kaufinann (eds.), Family thera-
Afrontamento. py of drug and alcohol abuse. New York, Gardner Press.
SATIR, V. (1997). Nuevas relaciones humanas en el nucleo familiar. 8 STANTON, M. D.; TODD, T. C. (1982). Thefamily therapy ofdrug abuse
ed., México, Pax Mexico. Edição original, 1988. and addiction. New York, Guilford Press.
SCHWARTZMAN, J. (1975). The addict, abstinence, and the family. STEJNGLASS, P. (1979). Family therapy with alcoholics: a review. ln
American Journal ofPsychiatry, 132, 154-157. Kaufinan, E.; Kaufrnan, P. (eds.). Family therapy of drug and alcohol
SEABRA DINIS, J. (1997). Este meu filho que não tive: a adopção e os abuse. New York, Gardner Press.
seus problemas. 2 ed., Porto, Edições Afrontamento. Edição original, STERNSCHUSS-ANGEL, S.; ANGEL, P.; GEBEROWICZ (1982). Le
1993. toxicomane, son produit et sa famille. Cahiers Critiques de Thérapie
SEGAL, H. (1975). Introdução à obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro, Familia/e et de Pratiques de Reseaux, 6, 35-45.
Imago Editora. Edição original, 1964. STIERLlN, H.; RAVENSCROFT, K. (1972). Varities of adolescent' se-
SEGON, P. (1983). Approche systémique etjustíce de mineurs. Thérapie paration conllits. Britain Journal of Medicine Psychology, 45, 299-313.
Familia/e, 4, 193-200. SZWARSTEIN, J. (1997). Diagnóstico e indicación en una familia com
SIMON, F.; STIERLlN, H.; WYNNE, L. (1997). Vocabulario de terapia un mie1nbro sintomático. Acerca de un caso de violencia familiar. ln
familiar. 2 ed., Barcelona, Gedisa. Edição original, 1984. J. M. Droeven (comp.). Más alia de pactos y traiciones: construyen-
SKJNNER, R.; CLEESE, J. (1990). Famílias e como (sobre)viver com do e! diálogo terapéutico. Buenos Aires, Paidós.
elas. Porto, Edições Afrontamento. Edição original, 1983. TOLSDORF, C.C. (1976). Social networks, support and coping: an
SLUZKI, C. (1996). La red social: frontera de la practica sistemica. exploratory study. Family Process, 15, 4, Printed from The Family
Barcelona, Gedisa. Process CD-ROM.
SMITH, J. (1997). The realities of adoption. New York, Madison Books. TOMAN, W. (1987). Constellations fraternelles et structures familia/es.
SOARES,!. (1996). Representação da vinculação na idade adulta e na Paris, ESF. Edição original, 1976.
adolescência, estudo intergeracional: mãe-filho(a). Braga, Universi- TR1ANA, B.; RODR1GO, M. J. (1998). Familias com miembros adictos
dade do Minho, Instituto de Educação e Psicologia. a las drogas y ai alcohol. ln M. Rodrigo, J. Palacios (coords.). Familia
SOULÉ, M.; NOEL, J. (1985). L'adoption. ln S. Lebovici, R. Diatkine, M. y desarrollo humano. Madrid, Alianza Editorial.
Soulé (eds.). Traité de psychiatrie de/ 'enfant et de l 'adolescent. Paris, TULKENS, F. (1996). Thérapie, droit et médias: des lieux et des mots.
PUF. C'ahiers Critiques de Thérapie Familia/e et de Pratiques de Réseaux,
SPECK, R.; ATTNEAVE, C. (1990). Redes familiares. 2 ed., Buenos 17,65-71.
Aires, Arnorrortu Editores. Edição original, 1973. UGAZZIO, V. (1991). E! modelo terapeutico sistemico: una perspectiva
constructivista. Revista de Psicoterapia, li, 6-7, 17-40.
?
%'
._-- _..;;:'

374
. ., . --· - ---~-
' ~
"'
,, -:--..- ;;
" " ... -- . w M '
"' . ;

(Des)Equilíbrios familiares

VAN GIJSEGHEM, H. (1996). Les abus sexuels. Du secret au dévoile-


ment et du dévoilement à la réparation. Cahiers Critiques de Thérapie
FamilialeetdePratiquesdeRéseaux, 17, 147-153.
VARELA, F. (1989). Reflections on the circu!ation of concepts between a
biology of cognition and systemic family therapy. Family Process, 28,
1, 15-24.
VRANCKEN, D. (1996). Quand la maltraitance à !'encontre des enfants
interpelle la société .... Cahiers Critiques de Thérapie Familia/e et de
Pratiques de Réseaux, 17, 35-43.
WALSH, F. (1996). The concept offamily resilience: crisis and challenge.
Family Process, 35, 3, Printed from The Family Process CD-ROM.
WATZLAWICK, P.; BEAVIN, J.; JACKSON, D. (1993). Pragmática da
comunicação humana: um estudo dos padrões, patologias e parado-
xos da interacção. 9 ed., São Paulo, Editora Cultrix. Edição original,
r
1967.
WATZLAWICK, P.; WEAKLAND, J.; FISCH, R. (1975). Changements,
paradoxes et psychothérapie. Paris, SeuiL
WEIDMAN, A. (1983). Adolescence substance abuse: family dynamics.
Family Therapy, X, 1, 47-55.
WEITZMAN, J. (1985). Engaging the severely dysfunctional fami!y in
treatrnent. F'amily Process, 24, 4, Printed from The Family Process
CD-ROM.
WELLISH, D. K.; GAY, G. R.; McENTEE, R. (1970). The easy rider syn-
drome: a partem of hetero and homosexual relationships in a heroin
addict population. Family Process, 9, 4, Printed from Thc Family
Process CD-ROM.
WINNICOTT, D. (1969). De la pédiatrie à la psychanalyse. Paris, pbp.
WYNNE, L. C.; McDANIEL, S. H.; WEBER, T. T. (comps.) (1986).
Esta obra foi produzida por profissionais, utilizando as técnicas que julgamos rnais actuais
Systen1s consultation: a nettJ perspective .for family therapy. New e adequadas, mas não está isenta de erros. Se detectar alguma falha neste exemplar,
York, Guilford Press.
por favor contacte~nos para que a possamos corrigir numa próxima edição
ZACKS, E.; GREEN, R. J.; MARROW, J. (1988). Cornparing lesbian and ou, se necessário, para substituí-lo.
heterosexual couples on the circumplex model: an inicial investiga-
tion. Family Process, 27, 4, Printed frorn The Farnily Process CD- e-mail: editora@quarteto.pt
ROM. telefone: +351 239 483 783
fax: +351 239 482 026

~
QUARTETO

Você também pode gostar

pFad - Phonifier reborn

Pfad - The Proxy pFad of © 2024 Garber Painting. All rights reserved.

Note: This service is not intended for secure transactions such as banking, social media, email, or purchasing. Use at your own risk. We assume no liability whatsoever for broken pages.


Alternative Proxies:

Alternative Proxy

pFad Proxy

pFad v3 Proxy

pFad v4 Proxy