A Nova Civilização Do III Milenio
A Nova Civilização Do III Milenio
A Nova Civilização Do III Milenio
ÍNDICE
Prefácio
A Verdadeira Civilização
O Involuído e a Propriedade
Tipos Biológicos e Métodos de Aquisição
Erros e Ascensões Humanos
As Grandes Unidades Coletivas
A Lei da Honestidade e do Mérito
Rumo a Novo Mundo
Entendimento, Reconstrução, Progresso
Das Trevas à Luz
O Problema do Mal
A Economia do Evoluído
Pobreza e Riqueza
Problemas Últimos
Conseqüências e Aplicações
O Tipo Biológico do Futuro
Visão (Primeiro Tempo)
Visão (Segundo Tempo)
Comentários e Previsões
O Sermão da Montanha
O Pensamento Social de Cristo
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
PREFÁCIO
Embora o presente volume também possa ter significado autônomo e ser lido
como tal, vem aqui apresentado como comentário sobre A Grande Síntese. Este não
é livro que se possa retocar, corrigir, cujo texto se possa ampliar, enxertando-lhe
digressões, conceitos novos. Nasceu de um jato, em dado momento histórico, com
determinada função social e espiritual, através de particular estado psicológico de
intuição. Condicionado por esses elementos especiais e irreproduzíveis, conservou-
se inalterável, como se vazado em bronze, inviolável e firme, qual rochedo que
desafia as tempestades dos séculos. A primeira, por ele prevista e esperada, de-
sencadeou-se de súbito, quase como resposta da História ao grito de alerta lançado
ao mundo e para confirmar a previsão de seu renovamento. Só hoje, nos fins desta
guerra mundial, se pode começar a entender a verdadeira significação de A Grande
Síntese: ser o livro da nova ordem do mundo, isto é, o código da nova civilização do
III milênio. Livro assim, de essência inspirada e racional apenas quanto à forma, não
pode, portanto, ser refeito ou modificado, pois é de substância completa, arquitetura
equilibrada e estrutura definitiva. Isto posto, impossível voltar de novo a ele, que é
pura intuição e síntese, senão com outra psicologia e doutro ponto de vista,
preponderantemente analítico e racional, embora muitas vezes a inspiração volte a
guiar e iluminar o texto assim analisado, desenvolvido, completado, aprofundado
naqueles pontos em que, nessa obra não era possível, e ao mesmo tempo lógico,
demorar-se. (Foi dito no capítulo LXXXVI de A Grande Síntese: "A natureza deste
livro sintético não me permite descer a particularidades")
O momento histórico está adequado a este comentário. Quem escreve deve
saber que alguns conceitos só em determinados momentos podem ser
compreendidos pela psicologia coletiva; é inútil enunciá-los antes do tempo porque,
pelo menos, os leitores contemporâneos não podem entendê-los. Pois já chegou
grande parte da destruição prevista; a dor atingiu os ânimos; a pobreza,
conseqüência da guerra, privando-nos de tantas coisas humanas, convida-nos e
leva-nos compreender a riqueza das coisas do espírito; a ruína do mundo de nossos
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
A VERDADEIRA CIVILIZAÇÃO
nosso destino humano, de obter resposta que esgote todos os porquês e todos os
problemas que nos dizem respeito, e de comportarmo-nos, desse modo, com pleno
conhecimento da conseqüência das nossas ações. Loucura continuar a atirar assim
ao acaso e a embater-se continuamente contra reações que estupidamente
desejamos e nos açoitam até sair sangue. Chegou a hora de compreender o
delicado mecanismo dos fenômenos e de civilizarmo-nos, não de brincadeira como
até agora se fez; não mais na superfície apenas, mas em profundidade também; não
só na forma, mas na substância; tanto nos meios como no fim; na matéria e no
espírito.
Completou-se o ciclo de destruição anunciado por Grandes Mensagens e A
Grande Síntese. A divina Lei deixou atuarem livremente as forças negativas do mal,
que desempenharam a tarefa. Entramos na fase construtiva, a vida colhe seus
valores positivos e, nos ânimos batidos pela dor, os reconstrutores encontram o
terreno preparado para o trabalho. O espírito, que através de tanta destruição se li-
bertou de muitas das incrustações e escórias da matéria, pode finalmente dizer,
depois de superado o profundo desmoronamento da onda descendente do
materialismo: eu sou, esta é minha vez, posso criar. E a vida, que parecia prostrada
e morta, torna a soltar mais forte e mais para o alto, seu eterno grito de juventude.
Isso é o que, irresistivelmente, a lei de Deus quer agora. As forças do mal tiveram o
seu dia. Mas Deus disse: basta. Em todo lugar, ato, fenômeno do universo estão
presentes Seu pensamento e Sua vontade. A História está pronta; os tempos,
maduros. Quer dizer: no ritmo da sinfonia dos acontecimentos humanos, no conca-
tenamento de causas e efeitos, no desenvolvimento da fatal evolução do mundo, o
caminho do tempo está próximo dessa maturidade e a vida não pode recusar-se a
percorrer e concluir essa evolução.
Aqui como em A Grande Síntese, se afirma para construir, não se polemiza nem
se ataca para destruir. Afirmando as eternas leis biológicas iguais para todos,
aderindo à divina verdade no Alto, inviolável, a que ninguém escapa e é forçoso
obedecer, estamos acima das divisões humanas. Não falamos de filosofia pessoal e
arbitrária, mas objetiva e pessoal, ditada não por simples homem, mas pela voz dos
fenômenos. Essa voz é verdadeira para todos os vivos, quer creiam nela quer não,
quer a confessem ou a neguem, quer a sigam ou contra ela se rebelem. Deriva de
principio diretor, guia de todas as coisas, exprime o pensamento de Deus. Inútil
negá-lo. Esse pensamento existe. Se às vezes alguém nega a Deus é porque Deus
existe e de Sua existência não existe prova maior do que essa negação. Não se
pode conceber e negar o que não existe. A negação se relaciona apenas com a
posição de nosso pensamento que, seja qual for a verdade, pode oscilar desde o
extremo positivo da afirmação até ao extremo oposto: a negação. A Grande Síntese
analisou esse pensamento divino, isto é, o plano construtivo do universo; a ela
remetemos o leitor desejoso de conhecer essa análise. Ai se diz derivarem as
conclusões de caráter moral e social de premissas tão fortes que se torna impossível
removê-las. Aquele livro é, de fato, demonstração que impõe essas conclusões
como obrigatórias para todos os seres racionais. Porém, com respeito ao "quadro
geral", não nos permitiu demorar em particularidades, exemplificando,. ma-
terializando o conceito no realismo da vida prática. Vamos agora transportar para o
plano humano da ação essa massa de conceitos, transformar em concreto impulso
construtivo a luminosidade desse imponderável, isto é, vamos transformar o princípio
em ação, mas ação que as premissas cósmicas iluminem, sustentem e justifiquem.
Trata-se de dar forma bem mais próxima e tangível, mais particular, porém mais real
(porque mais aderente à hora histórica), mais humana, atual e prática, aos princípios
universais de um tratado universal. Trata-se de aplicar, dentre as mil e uma ver-
dades humanas relativas, entre as forças que operam nossa ascensão individual e
coletiva, trazer até aos homens cá na terra, para atuar sobre ela, a eterna verdade
de Deus. Trata-se de mostrar nos fatos o funcionamento ainda ignorado daquelas
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
II
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
O INVOLUÍDO E A PROPRIEDADE
na base, à luta para obter meios de vida, garantir-lhe a posse, proteger-se e à família
e os filhos. Desse modo nascem os problemas do capital e do trabalho, da
propriedade, da família e dos institutos jurídicos fundamentais. Se a substância do
Direito não muda através dos séculos, devemo-lo ao fato de ela exprimir eternas leis
biológicas. O progresso aperfeiçoa as relações, completa-as nas particularidades,
melhora-as na substância, fazendo-as progredir, cada vez mais, em direção à
justiça; mas a raiz não muda. O Direito só pode ser entendido, se o referirmos a sua
substância biológica. Tem sentido apenas como ato de coordenação que, cada vez
mais harmonicamente, exprime essa substância. Muitas vezes, pois, ao contrário, na
base do direito público e privado se colocam abstrações metafísicas, axiomas
arbitrários, premissas não enquadradas na fenomenologia universal e não
justificadas pela realidade dos fatos. As verdadeiras premissas dos fenômenos
sociais, enquanto fenômeno da vida são biológicas e não filosóficas, metafísicas,
políticas.
e defensiva da lei possa ser evitada, de modo a não produzir-lhe dano. Tal tipo deve
ser muito comum pois a lei e o costume humano foram constrangidos a partir da
presunção de má-fé, até prova em contrário. Não tem senso de propriedade senão
da própria e só o temor de uma punição o induz ao respeito alheio. E a ameaça
defensiva pode tornar-se até mesmo educativa, enquanto este pouco a pouco
aprende, através dos séculos, mais elevadas formas de vida. E, paralelamente, a
defesa da propriedade pode assim tornar-se cada vez menos férrea, brutal, material
e cada vez mais pacífica, simbólica e imaterial. Essa defesa será cada vez menos
feita por muros, por grades, por armas, por sanções materiais e cada vez mais
reduzida a simples sinal indicador, a reações menos violentas, a sanções puramente
morais; mas embora a defesa se desmaterialize, isto é, tenda à própria anulação no
entendimento pacífico, é sempre o temor da pena que inibe esse tipo biológico e
isso o revela como involuído. Mas, involuído que talvez já tenha o pressentimento de
formas sociais mais elevadas, nas quais não domina já a usurpação e a força, mas o
direito e a justiça. Tem o senso da superioridade do sistema bem diverso do
evoluído e nesse sistema procura mimetizar-se para melhor esconder-se,
justificando-se. Por isso eles gostam tanto de recobrir-se com o manto da justiça e
eternizar-se no poder, para fazerem da autoridade, que é dever e missão, base de
direitos e arma de ataque e defesa. Como o assalta a preocupação de justificar-se
com encenação de legalidade! Com que cuidado procurava o Sinédrio dar forma
legal de juízo à supressão de Cristo; com que trabalho procuravam os assassinos de
Luiz XVI aparecer como juizes e não como assassinos comuns! E que satisfação
para os homens poder, em todas as revoltas, roubar e matar legalmente, isto é, se-
guramente, sem temor de sanções punitivas, único obstáculo para eles, e fazê-lo
como autoridade alta e tranqüila e não mais com a incerteza e o perigo de ladrões! E
se a coisa dá certo o resultado da força e do furto assim se estabiliza e se regulariza
depois sob o manto de legalidade humana que, como se crê, basta para tornar justo
o injusto. Pobre autoridade e pobre propriedade! Que triste gênese, que posição ao
nível do involuído e que grande caminho para purgar e resgatar aquele pecado
original! Mas, apenas em qualquer convulsão social o exercício da sanção jurídica
diminui de intensidade, já vemos o involuído, mal possa fazê-lo sem perigo, tirar a
máscara e revelar-se o que é, dando-se abertamente ao furto, a forma primitiva de
aquisição da posse, forma própria do involuído. Esse é caminho mais breve do que o
trabalho, forma própria do evoluído, que o revela e presume estado orgânico coletivo
ignorado na fase inferior do outro. Todavia, embora seguro da impunidade, o
involuído, em, defesa, para justificar-se perante a própria consciência e a
consciência alheia e a si mesmo dar, ao menos a ilusão de ter as mãos limpas,
gosta sempre de assumir posição de justiceiro como agressor do rico e protetor do
pobre; enfim, de camuflar-se de evoluído para fazer mais bela figura e não passar,
coisa que mais o desagrada, pelo ladrão que ele percebe ser; e, afinal, para melhor
servir-se, mais cômoda e seguramente, no banquete - seu supremo objetivo, assim
vestido de juiz. Por mais astuto, porém, que o involuído possa revelar-se diante de
tudo isso, todos compreendem que realidade se esconde debaixo da mentira, re-
veladora de toda a miséria moral do primitivo. Inútil camuflar-se. Roubando, não se
pratica o bem; não tem valor a esmola que se faz com as coisas alheias. Embora se
disfarce, o ladrão bem sabe que, enquanto ladrão, não está, não pode estar do lado
da justiça. Mesmo que o rico tenha sido ladrão, não é lícito roubar, nem mesmo aos
ladrões. É inútil que o ladrão procure tornar justo seu furto, acusando de furto quem
roubou antes dele. É vã sua desesperada tentativa; belo e bom pretexto para
enriquecer comodamente; simples astúcia que pretende dar a entender se possa
roubar honestamente. O involuído chega até à astúcia, mas não pode subir mais,
isto é, até à honestidade. O método que ele escolheu, embora camuflado, o revela,
em flagrante, tal qual é: involuído, primitivo, ignorante. Não conhece as
conseqüências e ilude-se. Esses justiceiros fingidos, que pululam, apenas a ordem
social enfraqueça a reação defensiva, não sabem que, embora tenham conseguido,
por meio da astúcia, fraudar a lei humana e apareçam cobertos pelo belo manto da
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justiça, deverão todavia, por lei biológica, mais cedo ou mais tarde, pagar com os
próprios bens.
Poder-se-ia, porém, virar a medalha e ver a injustiça, oposta, vinda desta vez da
parte da classe dominante, que se revela disposta apenas a defender-se a si
mesma. É verdade: quem rouba é sempre ladrão; mas, também, muitas vezes é
pobre a quem a lei biológica grita: você tem direito à vida. Esse direito de todos, até
mesmo dos deserdados, é espécie de justiça, seja embora na forma primitiva do
involuído. O evoluído não recorre a ela, nunca, por nenhuma razão, mesmo à custa
da própria morte. Mas o involuído que, falto de outros recursos, deve, todavia, viver,
pode ser constrangido a recorrer. O esmagamento do pobre, sua expulsão da ordem
dos vencedores, ordem imposta para vantagem exclusiva destes, lhe justificam a
revolta. E, então, a vida social reduz-se a luta de igual para igual, entre igualmente
injustos, entre igualmente involuídos.
A rebelião do oprimido, por sua vez, justifica a posição defensiva e opressiva
dos ricos dirigentes. Decaídas as aparentes distinções humanas, restam a qualidade
comum de involuídos, única distinção interessante, e a característica de injustiça,
inerente a seu sistema, que os iguala na mesma culpa e nas mesmas
conseqüências. A vida social é, assim, na realidade, corrente de injustiças, de
afrontas e reações; todos têm e, ao mesmo tempo, não têm razão; todos são
credores e devedores, com a resultante estável, em que todos se reencontram, de
invariável regime de incerteza e de ódio. O tipo biológico evoluído compreendeu, ele
somente, a utilidade de diferente sistema de agir, de justiça ordenada;
compreendeu, acima de tudo, que isso não se pode inaugurar com a injustiça do
lado, exatamente, da parte que reclama justiça apenas para si mesma, mas tão-só
com a justiça praticada, antes de tudo, por si própria em relação aos demais, sem
nada pedir-lhes à injustiça. Só com tal sistema pode resolver-se o problema. Mas o
involuído compreende apenas o sistema primeiro e este não basta para resolver o
problema. Contudo, é de lógica elementar a compreensão de que a estabilidade só
se obtém com o equilíbrio. Ao invés, o involuído prefere acreditar que se possa obtê-
lo com o esmagamento e o engano. Absurdo. Mas, se compreendesse, não seria
involuído; apenas chega a compreender, muda de sistema e se toma evoluído. No
entanto, hoje de involuídos se formam as massas humanas, que não imaginam
serem O poder obtido pela violência e a propriedade obtida pelo furto é apenas
ilusão e traição e, por isso, prejudicam e não ajudam a quem lhes adquiriu a posse;
não imaginam que isso, por inviolável lei da natureza, é verdade igual para todos,
como é de justiça. O homem comum, crendo-se árbitro de tudo, nem suspeita
mover-se em meio a organismo complexo e perfeito, de forças muito mais inte-
ligentes e poderosas que ele; se, sabiamente, soubesse mover-se de acordo com
elas, obteria a felicidade; movendo-se, ao invés, loucamente, em choque, obtém
apenas perdas e dores.
Subiremos neste volume, pouco a pouco, até às mais altas formas de vida do
evoluído. Mas, na base da humanidade, o involuído, em número predominante, se
acha presente; a observação do fenômeno social não nos oferece de importante
senão o espetáculo da sua psicologia. Nossa humanidade é primitiva. riquíssima de
energia. mas pobre de sabedoria; extremamente dinâmica e extremamente igno-
rante. É fato conhecido. O homem é o que é e está bem onde está. As dores que o
gravam lhe são proporcionais à sensibilidade e à ignorância. As provas que encontra
e deve superar são as da sua classe, do seu nível evolutivo, adaptadas a suas
capacidades. Para sermos práticos e compreensíveis devemos permanecer ainda
nessa atmosfera, com o objetivo preciso, porém, de levar-lhe a luz que lhe falta.
Insistamos, pois, no fenômeno basilar da propriedade, iluminando-lhe, porém, o
conceito. O conceito jurídico e moral não basta. Nesse campo, estamos cheios de
ilusões. O lado imponderável, que afinal pesa tanto ao ponto de revelar-se e
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
O ditado popular "O crime não compensa" já observou que o ganho por mal não
frutifica, não nos causa gozo, acaba em ruína, traz mais dano que vantagem. Há,
pois, além do elemento jurídico, algum outro, decisivo, invisível, mas de força capaz
de desconjuntar os resultados a que a estrutura jurídica se esforça por chegar. Pode
existir, pois, propriedade que, embora jurídica e formalmente justa não o seja, de
fato, em substância. Então, essa diversa estrutura íntima anula a forma; e a
imperfeição da primeira anula a perfeição da segunda. É necessário, para perdurar,
que a propriedade seja sã, íntegra, justa e inteiramente honesta, da cabeça aos pés,
em todos os momentos, até mesmo nas origens, nas raízes. De outra forma, por
mais que se cubra de justiça formal, é edifício construído na areia. Existe im-
ponderável lei interior, que tão pouco se leva em conta; lei de funcionamento
automático; lei a que, por ser interior, ninguém escapa, sempre presente, inerente às
próprias coisas. O tipo involuído, dominante não compreende esse fato elementar,
isto é, que o furto, embora nobilitado na forma, não pode, de fato, apoderar-se de
nada e, se o faz, não mantém, o que, para ele mesmo, é o mais importante. Ora, se
quisermos subir para formas de vida que, a sério, se possam chamar civilização, é
necessário que o tipo comum compreenda não ser a propriedade somente
fenômeno biológico natural e indestrutível, comum até mesmo para os animais, que
bem o conhecem, mas fenômeno determinado também por outros elementos além
dos comumente levados em conta; e, entre todos eles, ter a primazia o mais
insuspeitado e descurado: o mérito. É da lei: se existe mérito a propriedade perdura
e rende se não existe, dura pouco e não rende. A Lei é justa e impõe que cada ato
nosso nos renda de acordo com o que de salutar nele introduzimos de bem ou de
mal, proporcionalmente, isto é: tanto gozo quanto a porcentagem de honestidade e
de nosso valor intrínseco em nosso ato contido; e tanto veneno quanto de mentira e
de traição lhe injetamos. Chegou a hora de o homem compreender: é perigoso
manipular as forças do mal porque, embora dirigidas contra os outros, recaem sobre
quem as maneja; a mentira é perigosa porque gera o erro em quem a diz. A astúcia,
a força, consideradas como armas úteis, tornam-se prejudiciais porque
automaticamente se voltam contra quem as emprega.
Poder-se-ia contudo objetar: não faltam exemplos de ladrões que conservam e
gozam as suas riquezas. Para responder é preciso dar o significado correto da
palavra mérito. Sem dúvida o furto é a forma original de aquisição de bens. Em
sociedade ainda não civilizada o problema é tirar do mundo externo tudo o que nos
serve, seja qual for o meio. Não se fazem, pois, distinções nos métodos de aqui-
sição; é indiferente atingir o objetivo com o furto ou com o trabalho. Estes, em fase
caótica de formação então se confundem. Todo meio é bom desde que atinja o
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
objetivo: viver. Em mundo assim não surgiu ainda a idéia do respeito à propriedade
alheia, idéia que é produto de longa elaboração social na convivência. Se com o
progresso a coexistência dos impulsos leva pouco a pouco a seu coordenamento, o
homem todavia aprende a executar o esforço de aquisição e, aplicando nele
múltiplas atividades, forma os instintos que a convivência disciplinará em formas
mais evoluídas e pacificas transformando-os em atitudes de produção, em
qualidades técnicas, em hábito de trabalho. A fase primitiva de formação é, em seu
tempo e lugar, necessária, embora em sociedade civilizada revele o involuído. De
fato, é através do furto que se formam as capacidades porque estimula a inteligência
e a atividade. Se em fase primitiva as leis da vida premiam, o ladrão com a posse,
isso mostra que ao nível dos selvagens o sistema pode ser justo e servir a
determinada função. Começa-se assim, por este modo, a formar no indivíduo essas
qualidades que mais tarde constituirão o mérito, isto é, o trabalho, habilidade, pri-
meiros dos elementos constitutivos do direito de posse e, de fato, adaptados a
manter os bens nas mãos do possuidor protegendo-lhes e mantendo-lhes a posse.
O processo evolutivo que parte do furto vai em direção ao instinto e à capacidade de
fazer, representativos do método de aquisição em plano mais evoluído. A
propriedade não deriva de momento único, mas é formação contínua: é economia de
caminho. Não basta conquistá-la; é preciso saber mantê-la. Pode acontecer então
ter o desonesto, que conquista a propriedade através do furto, adquirido aquelas
qualidades de operosidade e de habilidade que lhe formam a base e lhe permitem a
conservação em sociedade civilizada. Sendo sadio e equilibrado, isto é,
correspondente ao mérito, este segundo momento do processo pode, segundo o seu
valor, sanar e equilibrar o primeiro. Assim, produtos da injustiça podem transformar-
se gradativamente em produtos de justiça; e desse modo se explica por que se
mantêm eles de pé, quer dizer, como alguns ladrões possam gozar em paz riquezas
roubadas. Nestes casos, o pecado original da aquisição ilícita vai pouco a pouco
sendo absolvido e neutralizado por aquela dose de trabalho e habilidade que o
sujeito possui e desenvolve. Essas qualidades ele as conquistou com suas
canseiras; constituem-lhe, pois, o mérito, o direito; representam a porcentagem de
justiça com que pode compensar a injustiça. Não podemos parar no momento
apenas de aquisição da propriedade, pois nas trocas e na administração ela se
reconstitui a cada momento. Pode até acontecer o caso oposto: a honestidade, na
aquisição, ser depois corrompida por dose tão grande de preguiça e de inaptidão,
isto é, de demérito que fique neutralizada em sentido oposto e se chegue à perda de
propriedade honestamente adquirida; isso também é justo. Assim, a posição do justo
pode passar a ser a do injusto; e a do injusto, a do justo. Como na fase mais baixa o
objetivo era roubar para viver, hoje o objetivo é produzir, e a lei do mérito tende a
atribuir a propriedade a quem melhor saiba trabalhá-la e fazê-la dar frutos para o
bem de todos. Esta higienização retificadora pode funcionar mais ou menos, mas a
propriedade permanece sempre na dependência da lei do mérito, isto é, em estrita
relação com a porcentagem de mérito contida no fenômeno, porque essa
porcentagem é que lhe estabelece o grau de justiça e de equilíbrio. Simples caso de
relação. Pode-se assim prolongar a vida de posse viciosa até ao caso-limite do
resgate que se verifica quando todo o débito originário esteja pago com trabalho e
rendimento sociais, como, de outro lado, se pode perder posse justamente
conquistada, usando-a, injustamente. Todo caso depende dos elementos cons-
titutivos particulares e por isso se desenvolve diversamente. Mas o princípio
segundo o qual se desenvolve é único e imutável: o da justiça e do mérito.
Muda assim o conceito da vida a partir da mais elementar base da sociedade: a
propriedade. Se toda aquisição de bens pode conter dada porcentagem de furto, é
em proporção a essa porcentagem que a propriedade será corrompida e, portanto,
levada à destruição. A propriedade gerada pelo furto nasce enferma de íntimo
desequilíbrio e não pode tornar-se sadia e resistente senão gradativamente se
livrando dessa moléstia; isto significa ser ela constituída por sistema de forças em
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
III
meios. E o homem que procura usurpar esta justa posição que não corresponde a
seu mérito, é, com seus métodos de usurpação, o construtor da injustiça social.
Bastaria seguir a natural lei de Deus para que espontaneamente reinasse a justiça
econômica e houvesse o necessário para todos e por si mesmo se verificasse o
equilíbrio entre capacidade, mérito, direito e gozo, equilíbrio que a lei quer e o
homem com tanta fadiga procura violar.
Tudo quanto dissemos em relação à disciplina jurídica da propriedade e à
posse dos bens não é senão aspecto do dinamismo fenomênico e dos equilíbrios de
que ele se compõe e se sustenta. Pode dar-se a tudo isso sentido mais universal.
Poderemos então dizer que a cada plano de evolução corresponde grau respectivo
de realização da justiça e nada mais. Quem age no nível das leis animais e lhe
segue os métodos poderá obter posse, poder, domínio, vitória, como prêmio da sua
fadiga, mas o prêmio será efêmero porque a estabilidade é característica de planos
de vida mais evoluídos e harmônicos. Poderá servir-se da força e da astúcia, mas
espere também ilusão e engano. O sistema da vida não contém, naquele nível,
maior grau de justiça que esse. O homem não peça nem espere mais. Não fale mais
de justiça verdadeira quem vive no reino da força; e não a espere também. A
verdadeira justiça, que ele procura em vão, pertence a plano de vida mais alto e dele
fica excluído quem venceu à custa dos métodos do mundo animal. Que ele se
contente de dominar, vingar-se, esmagar. Isto lhe exaure o direito porque já recebeu
mercê. Apenas se enfraqueça, não invoque a bondade e a justiça, mas considere-se
inexoravelmente vencido. Só o evoluído seguidor do evangelho se ri desse alternado
jogo de desequilíbrios, entre vencedor e vencido, rico e pobre, patrão e servo. Mas
só ele tem o direito de liberar-se porque só ele desfez a miragem necessária para
induzir o involuído egoísta a afrontar fadigas e provas que doutro modo jamais seria
induzido a suportar.
Os homens são desiguais; não pertencem ao mesmo grau evolutivo. Se os bens
para manutenção da vida são-lhe indistintamente necessários, o modo por que os
homens os procuram lhes exprimem a evolução, isto é, assume o papel de índice
revelador da natureza humana. Aprofundemos a classificação dos tipos humanos
com base no real valor biológico, de acordo com a real natureza do indivíduo; em fa-
ce dessa natureza, como já dissemos, as distinções sociais têm valor todo fictício.
Escalonemos, assim, os vários tipos humanos conforme os métodos de aquisição
dos bens. Três podem ser esses métodos: furto, trabalho, justiça, próprios de três
tipos biológicos que sobem do involuído ao evoluído, isto é, o selvagem, o
administrador, o espiritualista. Constituem três raças de homens, correspondentes
às três leis da vida: fome, amor, evolução. (Cf. História de um Homem - Cap. XXIII
e A Grande Síntese - cap. LXXVIII).
O primitivo escolhe, como meio de aquisição dos bens, o furto, ainda freqüente
neste mundo que chamam civilizado. O raciocínio é este: "Por que hei de cansar-me,
procurando, com o suor do trabalho, ganhar o necessário, se posso facilmente
conseguir tudo, roubando meu vizinho?" Nesse nível, a ignorância das reações das
forças da Lei é completa; inconcebível, o princípio do coordenamento coletivo;
atingem o máximo a inconsciência do indivíduo e sua falta de preparação para
formas de vida superadoras de animalidade. Psicologia desagregadora, caótica,
anárquica. Manifesta-se desregrado e sem controle o instinto de subtrair para si
mesmo tudo quanto satisfaça necessidades e desejos. O progresso é que, cada vez
mais, ordena as coisas, visto que a evolução significa subida ao encontro de Deus e
aplicação sempre maior de Sua Lei. De fato, apenas a humanidade retrocede, em
crises de revoluções ou guerras, e a superestrutura jurídica desaba, a vida involui e,
então, se reativa esse método do primitivo. E a disciplina jurídica, representada pelo
instituto da propriedade, vacila e retorna ao furto, fase precedente mais involuída, de
que a sociedade conseguiu emergir. No trabalho de construir e manter-se no alto, as
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
3
Direito romano
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
passa, não por vias interiores, de persuasão, mas por vias exteriores, mais ou
menos coativas; consegue, por isso, resultados formais, e não substanciais, porque,
se os sistemas não são sentidos, sua atuação não é integral.
Para obter essa atuação,. que deve ser estado espontâneo e de convicção, seria
necessário aplicar o sistema ao tipo evoluído ainda inexistente em grande. massa,
de que é ilusão presumir-se a existência; para a formação desse tipo, todavia, esses
sistemas podem contribuir, através da prática educativa e formadora de novos
hábitos e instintos.
IV
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Infinitamente
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
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Deusa grega da Vingança e da Justiça distributiva, que reprovava todo excesso. (N da E.)
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
instrumento. Isso porque, na vida, nenhum passo é inútil, nada se desperdiça e tudo
tende organicamente para determinado objetivo. Só assim o progresso técnico não
terá sido inútil e o homem poderá alcançar, como espera, o domínio não só
mecânico e material, mas inteligente e completo do planeta. Para dominar, a sério, é
necessário princípio de ordem, central e diretivo, que não pode estar senão no
espírito. Só ele pode conferir caráter de organicidade ao conhecimento científico e à
potência técnica. A característica fundamental da nova civilização será a afirmação
de ordem. Partindo do conhecimento da Lei e da consciência da ordem divina em
todas as coisas, chegar-se-á a nova e mais completa harmonização entre os atos da
vida e seus princípios; e daí a novo superamento da dor e à aproximação da
felicidade. Assim eliminadas e disciplinadas interiormente, as formas de vida
individuais e sociais se transformarão e a existência assumirá novo significado.
Carecerão de sentido amanhã as atuais distinções. O verdadeiro chefe de todas as
revoluções e de todos os poderes é a Lei de Deus; manobra os líderes que podem
mandar apenas enquanto obedientes às leis do progresso e à vontade de Deus.
Tendo em vista os objetivos da evolução humana, a Lei estabelece as posições e
distribui as funções; humilha os grandes e exalta os humildes aos postos de
comando; depois, liquida todos com justiça ou, seja: com honras, se cumpriram a
missão; como refugo da vida, em caso contrário. Interessa é a ascensão de todos;
dela somos, ao mesmo tempo, escravos e senhores. Embora quase todos queiram,
com egoístico isolacionismo, que as coisas girem em torno de si mesmos, qualquer
ação nossa é função coletiva; e toda vida, missão.
A luta moderna se trava, como sempre, entre o velho e o novo. O primeiro se
aconchega entre as gigantescas construções do passado, mas tem contra si as leis
da vida. Não nos ensinaram elas todo o dia o superamento do passado? Todo dia
não vemos, apenas em homenagem ao progresso da vida, os moços substituírem os
velhos em suas posições? Isso acontece entre as plantas e os animais, como entre
os homens. Não se pode resistir a essa vontade de renovação. A vida não pode
existir senão na forma de ascensão ou como meio para caminhar, cada vez mais,
em direção do divino centro do universo. Trata-se de imponderáveis; poderemos
negá-los e até mesmo rirmo-nos deles; mas arrastam-nos e seguimo-los. A vida
pertence a quem sobe e não a quem pára ou desce; o futuro está sempre mais em
cima. A vida faz-se de construção, embora deva atravessar a destruição. O universo
é função imensa e perfeita, dirigida pelo pensamento de Deus, movida por forças
titânicas e imponderáveis, sempre e em toda a parte presentes e ativas. Tudo está
regulado, previsto, tudo nele se resolve em ascensão.
A nova criação biológica de nossos dias é, pois, exatamente esse novo indivíduo
coletivo, com milhões de cérebros procurando coordenar o seu pensamento
segundo correntes de consciência, indivíduo que nessas correntes busca formar
personalidade própria e unitária, diferente da dos indivíduos componentes. A psique
individual pode assim agir segundo dois diferentes pontos de vista: o do indivíduo
como indivíduo; o do indivíduo como célula social; no primeiro caso tem funções e
objetivos individuais; no segundo, coletivos. Trata-se de duas posições diversas:
entre elas podem nascer contradições; e o indivíduo, como célula social fará, com
finalidade social, o que jamais faria como indivíduo apenas. Pode, desse modo, sob
a forma de delinqüência, exercer funções de justiceiro. Mas se, no seu conjunto, o
indivíduo coletivo tende a adquirir consciência unitária, própria e distinta da dos
indivíduos componentes, nas peculiaridades e na estrutura interior tende à
especialização das funções. As grandes unidades coletivas são gigantescos
organismos sociais, colossais, monstruosos indivíduos biológicos de que o homem é
célula; as classes sociais, tecidos; as classes dirigentes, cérebro; as massas, corpo.
Estas unidades possuem sistema nervoso, órgãos de sensibilidade e coordenadores
de funções. Nelas o indivíduo exerce as atividades mais de acordo com suas
capacidades peculiares. O involuído se encarrega de desempenhar as funções mais
baixas: agressão, guerra, destruição; o evoluído desempenha funções intelectuais e
de direção. Eis como o tipo biológico mais elevado se enquadra no novo organismo
coletivo. Entre os dois extremos os administradores se distribuem segundo suas
qualidades específicas. Assim, os três tipos humanos, vistos no capítulo III,
encontram lugar e fazem sua tarefa. O indivíduo coletivo, no entanto, está se
formando ainda; não se definiu bem, até agora, o critério distintivo das funções; há,
por isso, entre as partes, a luta e a incerteza próprias do período de formação.
Existe, sem dúvida, semelhança com o organismo biológico, mas organismo em-
brionário e experimental, como no período paleontológico. Percebe-se, como no
corpo humano, o princípio de especialização, o coordenamento das qualidades
individuais, mas no estado de tentativa. Do ponto de vista biológico, torna-se muito
importante a observação do esforço feito hoje pela vida para coordenar suas
conquistas individualistas e, no plano humano, disciplinar as suas forças. Neste
período histórico chega a parecer que o esforço seletivo, de natureza também
separatista, ceda o passo ao esforço orgânico e social, de natureza coordenadora. A
primeira tendência se movia em direção individualista, para produzir poucos
exemplares do tipo eleito; no entanto, a segunda caminha em direção coletivista a
fim de que produza muitos exemplares do tipo medíocre e os valorize pelo número e
não individualmente, transformando-os em grande organismo coletivo. Levamos em
consideração neste livro ambas as formas de expansão vital evolutiva; necessitamos
das duas para completar o fenômeno da ascensão e da construção. Veremos, enfim,
como os altos níveis evolutivos não podem ser atingidos pelas massas numerosas,
mas medíocres; e como os poucos eleitos que os conquistaram tendem, - uma vez
cumprida sua função e alcançado o rendimento das qualidades por eles adquiridas, -
a separar-se da humanidade terrestre. Tornava-se necessário, porém, completar o
exame do fenômeno evolutivo, observando-se também o aspecto coletivo; mas com-
pletar; começando da base, baixa, mas extensa, da pirâmide social, onde se
encontra a grande maioria que, embora de modo diferente do evoluído, procura
ativamente a própria construção biológica.
Existem, pois, duas correntes de atividade evolutiva, dois trabalhos intensos: a
primeira conclui na formação do super-homem, que se separa e afasta da
humanidade, cujas formas de vida, para ele baixas e insuportáveis, seu grau evo-
lutivo não tolera mais; a segunda não considera a exceção, por mais rara, mas a
regra geral, embora medíocre; opera sobre primitivos e deserdados, para realizar
com eles tão importante conquista como a outra. A vida não abandona ninguém; e a
cada qual, de acordo com sua natureza, oferece atividade adequada e confia tarefa.
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
Este prefere subir sozinho até aos mais elevados cimos; aquele sabe viver e
trabalhar apenas no meio da massa e em função dela. Ambos os trabalhos, porém,
merecem respeito e importam para o progresso; ambos contêm a incerteza da
tentativa e o risco do inexplorado; representam esforço criador, o trabalho da gênese
biológica. Estes dois pontos resumem a dupla fórmula vital do futuro, no duplo
aspecto individual e social.
Observemos o novo indivíduo biológico coletivo. Como todas as primeiras formações
embrionárias da vida, agita-se desordenadamente, procurando configurar-se mais
estavelmente; sente confusamente; move-se, desarticulado e incerto, como todas as
construções biológicas recentes. Trata-se, na verdade, de novo e imenso corpo vivo,
de corpo social com as características, as leis, os instintos, as moléstias e as
defesas da vida orgânica e psíquica. O paralelo entre organismo individual e
organismo social, se confirma nossa concepção biológica do fenômeno social,
esclarece-o também, visto como reencontramos nele as leis reguladoras do
organismo do indivíduo. Essa relação nos permite compreender o funcionamento da
unidade coletiva e advinhar-lhe o futuro, utilizando-nos dos mesmos princípios já
encontrados no caso individual. Poderemos, assim, compreender melhor a lei
reguladora dos acontecimentos históricos; considerando-os como fenômenos de
biologia social, poder-se-á fazer, à luz da patologia social, a diagnose das crises
coletivas, e estudar, de acordo com a fisiologia coletiva (ou dos corpos múltiplos), o
funcionamento do novo grande organismo. Dos conceitos próprios da Anatomia
poder-se-ão aplicar-lhes os de: atrofia, hipertrofia, circulação e metabolismo, centros
cerebrais e nervosos e correntes de consciência, gênese, crescimento, maturidade,
senilidade, morte e hereditariedade, ciclos vitais, transformismo evolutivo Como a
propósito do indivíduo, poderemos, a respeito da unidade social, falar em
personalidade, destino, responsabilidade, missão.
Essas comparações são lícitas e lógicas, pois o universo é dirigido por uma só
Lei, quer dizer, por legislação única, sempre onipresente. O fenômeno social, como
o fisiológico; segue a mesma lei universal expressa pela trajetória típica dos
movimentos fenomênicos e pela lei da unidade coletiva. (Cf. A Grande Síntese -
cap. XXVI e XXVII). Na matéria, na vida como no espírito, as formas desde as atô-
micas até as siderais tendem para a unidade ou, seja, para o reagrupamento e a
reorganização em sistemas, em associações cada vez mais vastas e complexas.
Toda unidade já representa em si mesma a resultante da organização de unidades
menores. O próprio universo é por excelência unitário e orgânico; é de alto a baixo
edifício único. Desse modo, é fenômeno social, não somente biológico, mas também
conexo e logicamente entrosado no fenômeno cósmico; representa momento da Lei,
processo de mecânica universal. Não podemos considerá-lo isolado, fora do
complexo da vida, dos métodos e da finalidade da Natureza. Assim, encontramos o
fenômeno social, histórico e político orientados e em sintonia com o mesmo ritmo da
lei reguladora de todos os fenômenos. Em toda parte ambos têm o mesmo esquema
fundamental, redutível a princípio único. Torna-se evidente que: a Natureza age de
acordo com esquemas simples e constantes; suas formações se fazem em modelos,
embora não mecanicamente, em série; seus desenvolvimentos obedecem a um
plano e isso os prende sempre a um princípio diretor central. Retomaremos em
melhores condições, mais adiante, tal conceito. A criação tende para a uniformidade
e a repetição dos modelos. Todas as formas, assim, possuem base comum a
irmaná-las em parentela que mostra derivarem do mesmo e único princípio. Não se
copiam, mas se reclamam mutuamente de todos os pontos do universo e de todos
os planos evolutivos. Por isso na formação e funcionamento das grandes unidades
sociais vemos a reprodução dos fenômenos e o retorno das leis por nós observados
nas unidades minerais, vegetais, animais, desde o átomo até às estrelas.
Isso posto, de modo algum podemos crer que o fenômeno histórico se
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
ameaça está em que a igualdade chegue à podre indolência dos servos e à criação
de rebanhos passíveis se serem dominados. Infelizmente o senso de
responsabilidade tende a decair na razão direta do número. O apoio recíproco
encoraja a inconsciência e por motivo de confiança recíproca enfraquece o
autocontrole; é convite à ação cega que, quando isolada, é mais ponderada. O
número, principalmente aos fracos, dá ilusão de poder, de segurança e também de
impunidade. O número constitui a grande defesa e a única força das nulidades;
estas sabem disso e nele se refugiam. O coletivismo pode ser desfrutado por elas e
significar-lhes a exaltação. Na massa, em que vale a quantidade e não a qualidade,
o inferior se valoriza e o superior se desvaloriza. O número nivela, tira dos melhores
e dá aos piores. Como os primeiros constituem a minoria, todo agrupamento implica
em piora mais ou menos pronunciada. Os primeiros descem até aos segundos;
estes não sobem até aqueles. Assim, toda coletividade vale sempre muito menos
que a soma7 dos indivíduos componentes. " Senatores boni viri, senatus autem
mala bestia ". E isso também porque o apoio recíproco diminui o esforço individual
e, portanto, o rendimento coletivo. Desse modo, por causa dessa instintiva confiança
de ovelha e da cessão de controle, as forças individuais de qualquer agrupamento
humano se anulam ao invés de se somarem. Basta isolar o indivíduo, para dar-lhe
de novo o senso de responsabilidade. Desfeita a miragem, cai logo em si. Nesses
casos o homem se revela animal gregário. Mas, se deve ser enquadrado e
disciplinado, deve também ser deixado sozinho e livre diante dos problemas da vida,
para que aprenda a resolvê-los por si mesmo. Torna-se necessário que a evolução
como coletividade não signifique supressão do esforço, tão de boa-vontade
abandonado, para evoluir individualmente, porque nesse caso a evolução trairia seu
objetivo, a ascensão. De fato, entravando o progresso individual, perturba até
mesmo o princípio dele resultante.
Eis o segundo perigo, capaz de causar o naufrágio da nova civilização do
espírito, impedindo-lhe atingir as suas metas: o bem-estar a segurança, o
refinamento, se significam civilização, constituem o primeiro passo do
enfraquecimento e da decadência. Para não apodrecer a vida deve exercitar-se
continuamente na luta porque é da lei que a vida não seja fim de si mesma, mas
instrumento de conquista. Ai do homem se, atingido o bem-estar material, se
contenta e pára em plena estrada da conquista, sem avançar mais, em direção ao
altiplano do espírito. A ascensão material, para não degenerar deve ser apenas o
meio para apresentar-se em novos horizontes intelectuais e espirituais, conseguir
realizações mais elevadas, sob novas formas de luta, a fim de que a evolução
continue. Só assim se poderá dar futuro à vida. A História já nos mostra como se
manifesta a decadência tão logo o homem se detém no progresso obtido, como nas
comodidades diminui a intensidade do trabalho evolutivo, e como a todo período de
sofrimento segue período de ascensão. O alto padrão de vida pode adormecer as
limitadas potências criadoras do espírito, que deve ser malhado e polido como os
metais para manter-se brilhante. Para os indignos a vida pára e quem pára morre.
Não se entenda o novo período como resultado de que se deva tirar gozo, mas
como novo tormento de criação. Só se a lei de luta e seleção for levada para o plano
mais alto, a vida não será traída e essa civilização terá conseguido seu objetivo. Só
assim não será inútil e não tombará esperdiçando os frutos de passado tão longo.
As civilizações deste tipo tendem a desagregar-se na efeminação, no refinamento,
na inércia, como as do tipo oposto tendem a naufragar na violência e na destruição.
Tão logo a civilização do espírito perde a substância e se torna forma brilhante, sem
nenhum conteúdo mais, desperta ameaçador o fermento viril e masculinizante;
desperta e sobe dos planos inferiores para jogar fora a estrutura que se tornou inútil.
E isso lhe assinala o fim.
7
Os senadores são boas pessoas; o senado, entretanto é uma fera.
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
VI
Nos primeiros capítulos deste livro, pela verificação de fatos, partimos do que o
homem hoje é, e isso deixando apenas entrever o que deveria e poderia ser.
Começamos agora a percorrer a longa estrada da ascensão. Levar-nos-á a
vertiginosas alturas. E a grande massa humana, de que até mesmo no aspecto
coletivo apreendemos os movimentos, irá diminuindo de tamanho até ficarem
somente poucos casos excelsos, florescência de excepcional beleza e supremo
esforço da raça. O problema coletivo só se concebe na base da evolução humana. A
vida não sabe atingir os pontos culminantes senão sob forma individualista. Todavia,
as próprias construções sociais não podem elevar-se sem adequado material
humano, cuja formação constitui problema individual. Sem novo homem, mais sábio
e consciente do que o involuído hoje em maioria, os sistemas coletivos que nos dias
de hoje tentamos tornar atuantes não podem atingir os objetivos que prefixam para
si mesmos. Mesmo para resolver a questão social torna-se necessário, pois, co-
meçar pelo caso individual, visto como os dois fenômenos, individual e coletivo, se
entrosam e amadurecem paralelamente. O engenheiro poderá fazer projetos
maravilhosos, mas se não dispuser de bom material os edifícios por ele construídos
desabarão. Tal entrosamento de fatos nos impele do aspecto coletivo ao
individualista, da visão de conjunto à de suas particularidades. Se os cimos
constituem exceção e não interessam às massas, os primeiros passos das
ascensões humanas são problema vital também para elas e outras construções
coletivas com elas relacionadas. Para, também sob esse aspecto, construir o
progresso. torna-se necessário começar pela construção do indivíduo, pelo
renovamento da forma mental dominante, a do involuído. Sem o estabelecimento
dessa premissa os atuais sistemas de enquadramento coletivo ou se reduzem a
mentira ou não passam de utopia.
Comecemos então a observar o que o homem deve e pode ser, precisando cada
vez mais o como e o porquê. Comecemos a demolir racionalmente a psicologia do
involuído para substitui-la pela de tipo biológico mais evoluído: a demonstrar como
de fato a vida é bem diferente daquilo que geralmente se pensa; a destrinçar a
meada das falsas aparências a fim de chegarmos a compreender o engano das
ilusões psíquicas que tantas vezes vitimam o homem. Só se a observação incidir-
lhes, além das aparências dos fenômenos, na intima estrutura de organismo de
forças em ação, poderemos atingir seriamente e sem desilusão o objetivo instintivo e
justo da vida: a felicidade. Como todos os jogos têm regras próprias, cada
dinamismo, técnicas, e cada fenômeno, leis, então, neste caso também, se
compreende a necessidade de disciplina reguladora e diretriz da atividade humana,
se quisermos vê-la atingir o fim a que tende. Todos compreendem que para se
tornarem possíveis o melhoramento e a renovação sociais se necessita de tornar
comum o tipo humano excepcional em nossos dias, no qual predominam as
características de honestidade. Trata-se de revolução biológica, por esta razão: o
princípio separatista do egoísmo agressivo para seleção do mais forte é substituído
pelo elevado princípio coordenador e harmônico do enquadramento do indivíduo no
funcionamento orgânico da humanidade. O involuído não sabe decidir-se a essa
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
transformação que implica o abandono das armas de ataque e defesa, pois teme
ficar desarmado, sem proteção, e, pensa ele, isso significa seu fim inevitável. Se
olharmos bem o íntimo das coisas, veremos que só o desconhecedor das leis da
vida pode crê-lo e quem pratica o Evangelho não é pessoa iludida, enganando-se ao
seguir utopias, mas homem que descobriu outras leis mais profundas, mais sólidas e
perfeitas e utiliza na própria defesa, princípio protetor completamente diverso. Como
vêem, o indivíduo assim não renuncia precisamente às próprias defesas e, como
pode parecer, não se abandona à mercê de todos os assaltos. Ao contrário, obtém
outra segurança bem diferente, pois movimenta mecanismo de forças muito mais
perfeito e resistente que a violência ou astúcia do involuído, mecanismo não
compreendido por este, na ignorância inerente a seu grau.
Atualmente, a honestidade é considerada pelo involuído, muitas vezes, como
debilidade, peso moral que embaraça a luta, posição de inferioridade, forma antivital
de inconsciência, desequilíbrio, moléstia do espírito. Essa a perspectiva das coisas,
do ponto de vista em que o involuído se coloca. Mas o ponto de vista pode mudar e
então, obtemos perspectiva completamente diversa. Isso parece impossível até o
momento da efetiva mudança do ponto de vista. Mas quando tal acontece, a
perspectiva muda automaticamente. Como a retidão, a inocência e a obediência à
Lei podem constituir instrumento de defesa melhor que a força, o egoísmo e a
astúcia? Simplesmente absurdo, dirá o involuído. Não. É absurdo apenas para quem
não possui o sentido orgânico da vida. E esta organicidade da vida é qualidade
essencial sua, estado universal e acessível a todos, em qualquer tempo e lugar,
porque depende da própria maturidade e não da compreensão alheia e do grau de
organização social. Essa organicidade acha-se pronta a receber no seio todo
indivíduo que saiba pensar e agir organicamente, não como arbítrio individual, mas
como função coordenada no funcionamento universal. O indivíduo, ao contrário,
pensa e age desorganizadamente. Crê ser forte e dominador; no entanto, não passa
de caótico e destruidor. Seu egoísmo, que acredita ser-lhe necessário, é o princípio
de sua desagregação; seu hábito de impor-se, para ele meio de poder, não passa de
excitante de reações dolorosas da Lei; o imediatismo da vantagem obtida nos
resultados próximos é apenas a imprevisão do dano que inevitavelmente os
resultados longínquos lhe trarão. Observado à luz da mais profunda realidade das
coisas, o involuído não nos aparece como apanhador de conquistas e de alegria,
mas semeador de erros e dores, míope enredado nas particularidades das coisas
próximas e ignorante das que, embora afastadas, também lhe dizem respeito, louco
que em organismo harmônico, equilibrado e perfeito se debate na falta de
compreensão, chocando-se com forças que, para ele invisíveis, o ferem de morte. O
mundo dirigido pela bondade e pelo amor estaria pronto para acolhê-lo em
atmosfera de felicidade, se o involuído soubesse comportar-se como Deus quer, em
harmonia e cooperação. Pelo contrário, não compreende coisa alguma de tamanha
bondade e beleza e agita-se em atmosfera de revolta e destruição, para acabar
encarcerando-se em férrea gaiola de dolorosas sanções. Então, ainda se debate,
debate-se cada vez mais e os nós vão-se apertando; aí, rebela-se mais ainda,
maldiz, vai de vingança em vingança e, assim, agrava sempre mais sua
autocondenação.
Inútil estar sempre cogitando novos sistemas sociais, enquanto não se puder
dispor de outro tipo humano como material construtivo. Com esse homem anti-social
e caótico não se pode pretender sólida construção coletiva. Para tanto, esse material
deve ser cimentado pela fé e manter-se no espírito de cooperação, na disciplina
material e moral e, acima de tudo, na retidão interior. Em face desse princípio
fundamental de ordem, torna-se secundária, quase sem importância, a forma do
sistema social, segundo o qual os homens tanto se separam e tanto se batem. Não é
a estrutura do sistema o que importa e decide, mas haver entendido a lógica e a
vantagem, até mesmo individual, da honestidade, esse novo e mais orgânico
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
força pelo do merecimento. Não apelamos aqui para a bondade e para idealismos
superiores. Seria pedir muito. Trata-se apenas de sermos raciocinadores inteligentes
para compreender o que é verdadeiramente útil. Um pouco de inteligência e reflexão
bastariam para mudar não só os fundamentos da vida individual e social, mas
também tanta dor em bem-estar.
Como funciona, pois, essa lei do merecimento? Como podemos ter-lhe tão
profunda fé a ponto de, até mesmo na defesa e na luta pela vida, fazê-la substituir a
lei da força? Se tudo isso é incrível para o involuído, torna-se verdade e real tão logo
escape à rede de reações que ele pôs em. jogo e agora o envolve. O involuído julga
absurdo e inoperante tudo quanto, simplesmente, está fora de seu campo de
compreensão e de atividade. Basta mudar-lhe a posição evolutiva para que também
se lhe muda a técnica da vida. Quando, por evolução, se passa do plano da força, lei
do involuído, ao da justiça, lei do evoluído, o sistema do merecimento substitui
automaticamente o da violência e astúcia. Já agora não precisamos mais de armas,
mas de qualidade, não encontramos mais extorsões e constrangimentos, mas
equilíbrios. Então, a melhor defesa consiste na consciência tranqüila. Isso é lógico
no regime harmônico de Lei feita de ordem. O problema todo se resume em sermos
adiantados o suficiente para ver e compreender, em possuirmos a inteligência e a
sensibilidade necessárias para manipular forças tão sutis. Eis porque fogem à psique
grosseira do involuído. Trata-se de princípio protetor de qualidade, grau e potência
diferentes do normal e cujo funcionamento não se pode verificar senão como forma
de vida própria de plano biológico mais elevado. Para o evoluído que aí vive o
verdadeiro sistema defensivo não consiste em acumular obstáculos protetores, mas
em não merecer o golpe. A luta seletiva é substituída, agora, pela consciência da
Lei, pelo princípio de ordem e de harmonia, em que não se trata de aprender a
defender-se, como fortes, mas a merecer, como justos. O involuído nada sabe disso
tudo, não sente esses equilíbrios, não vê esses jogos de forças, é material e mate-
rialista, tem no sangue instintos de revolta e, com esse modo de ser e de sentir,
constrói seu próprio mundo inferior. Crê só no corpo; fora dele não concebe a vida;
crê que com a morte dele tudo acaba, apenas porque, além da morte, sem meios
físicos sensórios, não é capaz de conservar-se consciente como o evoluído, para
quem a morte não significa interrupção da vida. Em última análise, em que posição
de fraqueza vem a encontrar-se o homem que aplica a lei de seleção do mais forte!
Julga-se merecedor da vida e não passa de retardatário no caminho da evolução!
Quando recebe golpes, ingenuamente o involuído não os absorve e os dilui para
eliminar de sua vida essa força, mas devolve-os e assim se liga sempre mais aos
impulsos da reação que, conforme a lei de equilíbrio, o golpearão tanto mais quanto
mais energicamente ele houver golpeado. O segredo da defesa hábil está, pelo
contrário, na libertação; e só é livre quem conseguiu não merecer a reação. A esse
ponto chegaremos se não nos revoltarmos, mas conseguirmos assimilar os impulsos
contrários, absorvendo-lhes o valor corretivo. O involuído, de método desequilibrado,
transforma todas as coisas em prejudiciais para si mesmo; o homem evoluído
converte em vantagem pessoal o próprio mal. Sabe que todo erro deve ser pago,
aceita por isso a reação como meio de reconquista do equilíbrio, não se revolta para
não aumentar sua dívida. A diferença consiste em ver as causas remotas, e não
apenas as imediatas, do golpe que nos atinge. Assim, para o evoluído toda
adversidade se converte em campo de treino, em escola de progresso ascensional.
O sistema de revolta do involuído que, violentando-lhe os equilíbrios, pretende
sobrepor-se à Lei, aumenta-lhe a dívida em lugar de solvê-la, aumenta-lhe o
desequilíbrio e a desordem ou, seja, a dor. Ao contrário, o evoluído paga, liquida o
débito, melhora de situação, readquire o equilíbrio e se harmoniza, alivia e elimina a
dor. O erro consiste no modo de equacionar o problema. O evoluído compreendeu a
lógica da vida e o significado dos acontecimentos, percebe a justiça existente na
vontade que a dirige e, por isso, a conveniência de segui-la e não a de sobrepor-se-
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lhe; de fato, a paciência esclarecida pode criar mais do que a cega violência.
Compreender a Lei e seguir a vontade de Deus constituem o caminho mais
acertado.
O homem é livre, mas a Lei, inalterável. Livre para atrair sobre si todas as dores
que quiser, não pode, porém, impedir o funcionamento da Lei. Livre para confundir li-
berdade e arbítrio, nele acreditar e julgar-se senhor absoluto, nem por isso pode
impedir que liberdade, nesse regime de ordem, implique responsabilidade, quer
dizer, sanção punitiva do erro. O involuído, assim como luta contra todas as pessoas
e coisas, também luta contra a Lei, quase considerando-a obstáculo à própria
expansão. Nela, ao invés, o evoluído, coordenado, não encontra inimigo, mas
amigo, auxiliar, protetor. Sua força não lhe reside no egoísmo, mas em Deus. Tudo
depende da posição em que o homem prefere colocar-se. Chegamos assim a este
ponto: o inerme, que segue o Evangelho e perdoa, pode vencer, materialmente de-
sarmado, em melhores condições que o involuído, forte e armado até aos dentes.
Parece utopia, subversão, milagre o que não passa de lógica entranhada no
desenvolvimento das forças da Lei, imponderáveis e no entanto mais potentes do
que o pesado armamento das defesas humanas. Tudo isso confere outro valor e
significado à conhecida lei biológica da luta para seleção do mais forte, reduzindo-
lhe a importância a limites bem estreitos. Outra lei se lhe contrapõe e anula. Ei-la:
"Quem com ferro fere com ferro será ferido".
Quando se compreende o universo como construção orgânica, compreende-se
também ser mais lógico o equilíbrio do justo manter-se nele mais estavelmente que
o esforço do rebelde. Tratando-se de organismo, aí prevalece logicamente a posição
espontânea e harmônica em detrimento da irregular e contrafeita. No conjunto o
universo apresenta-se como perfeito e completo mecanismo, ordenado e harmônico.
Nas exceções e casos particulares residem as perturbações, previstas, porém, e
compensadas, enquadradas na ordem. Para homens inconscientes e, todavia, livres,
o ambiente humano representa um desses campos de desordem a título expe-
rimental. A terra constitui-se por isso inferno dos evoluídos e, talvez, em paraíso dos
involuídos adequados a esse ambiente. A opinião emitida a respeito deste mundo
nos revela o tipo biológico a que pertence o opinante. Só a raça vale e justifica
distinções. O homem, se quer alcançar determinado objetivo, compreende a
necessidade de coordenar as fases da ação necessária e, assim, reconhece a
ordem presente em todas as coisas; percebe, até mesmo no furto, no delito e na
guerra, o rendimento utilitário da disciplina, do método e da estratégia, pois tudo isso
pertence a seu plano. O que dissemos nos períodos imediatamente anteriores
explica por que o homem, por imaturidade, não chega jamais, também no campo
moral e nas diretrizes da própria vida, a sentir a falta e a utilidade dessa ordem. A
ignorância e a inconsciência de plano mais alto explica-lhe a ação desordenada,
baseada em violações e, por isso, em reações continuas; mostra como o involuído
pode crer na obtenção de resultado no campo do imponderável, sem
coordenamento de ações, sem subordinação funcional, sem necessidade de seguir
a Lei, sem harmonizar-se na organicidade universal Exatamente a natureza de
involuído é que estabelece o funcionamento de lei de força em lugar de lei de justiça.
A baixeza do ambiente terrestre resulta precisamente das qualidades do tipo
biológico que o habita e, cada vez mais satisfeito consigo mesmo, se julga ente
superior. E, até mesmo, culto e erudito; mas o entendimento não depende de estudo
e erudição. Trata-se de maturação biológica natural e inaplicável ao exterior, como
acontece com tantos produtos de nossa civilização. O que induz o homem de hoje a
engano é a miopia psíquica e o imediatismo do resultado; a psicologia do jogo
amarrado e a ignorância dos fenômenos de longa duração; a suposição de que de
tudo quanto fica distante nada se pode aprender com segurança; a própria mentali-
dade caótica que apenas não desorienta e desarticula a fé por nós depositada no
que já nos caiu sob as mãos. Sobra-lhe apenas uma vida defeituosa e truncada,
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
qualidade. No fim do cap. II e no princípio do cap. III deste livro vimos, ao contrário,
como a Lei influi para corrigir o abuso no sentido da qualidade dos bens, isto é,
como permite que apenas a propriedade justa se mantenha. O primeiro e o segundo
casos constituem aplicação da lei do merecimento.
Vimos, pois, como a Lei tende ao triunfo dos valores reais e à derrota dos
valores fictícios que o homem desejaria impor. O involuído por ignorância prefere
pôr-se em luta contra a Lei; o evoluído, porque possui conhecimento, prefere pôr-se
em harmonia com ela. Vimos como, não obstante a resistência do primeiro, em
última análise impera a lei do merecimento, embora não a compreendam e não a si-
gam. O involuído, rebelando-se, não torce a Lei, mas inflige dano a si mesmo.
Aprenderá, à custa do sofrimento. Não há outro caminho. Cada qual, porém, tem a
liberdade de ordenar o campo de forças do próprio destino e, na própria vida,
obedecer à justiça, embora em meio à injustiça do mundo, tem a liberdade, enfim, de
em pleno inferno construir dentro de si mesmo o paraíso. Ainda neste caso a lei do
merecimento muda o conceito da vida. As causas encontram-se dentro de nós
mesmos e não fora. Quando chegamos a compreendê-lo, aí nos tornamos livres.
Enquanto aceitamos as coisas como provenientes de fora seremos seus escravos e
tremeremos diante da vontade alheia ao invés de tremermos perante nossa própria
consciência. Para quem compreendeu, os valores normais se subvertem. O que nos
golpeia não provém do arbítrio alheio mas do que somos, fazemos ou merecemos.
No sistema orgânico do universo é absurdo, e impossível o desenvolvimento de
forças dos destinos, os momentos decisivos, as provas importantes, o prazer e a
dor, a vida e a morte ficarem a mercê do acaso ou da vontade de outro homem
completamente ignaro. A lógica e a justiça impõem que tudo quanto nos diga
respeito dependa somente de nossa vontade e seja decidido por nós apenas. Doutro
modo, não poderia haver responsabilidade e a reação da Lei golpearia inocentes. É
absurdo que o arbítrio alheio possa exercer tanto poder sobre nós, a liberdade
humana impor injustiças à Lei e implantar a desordem no universo. Então, o patrão
não seria Deus, mas o homem. Não! Tudo não passa de instrumento, o mal é
contido e guiado, torna-se meio de atingir as finalidades do bem. Coisa tão grave
como pesos de chumbo, tão importante como experimentação instrutiva e prova
redentora, a dor não é força livre para aplicar-se ao acaso, mas força enquadrada no
organismo universal. Essa dor só nos pode atingir, se a merecemos. Poderá
produzir-se desordem particular e momentânea, mas em linhas gerais reina a lei de
justiça. Diz o provérbio: "Quem não deve não teme". Merecemos tudo quanto nos
acontece por "acaso"
Ao invés, o involuído acredita na lei do mais forte e na seleção à base de força.
O evoluído por sua parte ouve a lei justa da honestidade e do merecimento. O
sistema do primeiro, de conquista através de imposição, reduz-se ao contraímento
de dividas e à miséria. Face aos equilíbrios da Lei, isso constitui erro que se deve
pagar e, se domina o mundo, o transforma em lugar de sofrimento. Aqui em baixo
todos procuram fora as causas que residem em si mesmos. Pertencem-nos. O
problema consiste em saber fazê-las funcionar e não em saber evitar-lhes os efeitos.
A causa é livre; o efeito, fatal. Posta em movimento a causa, a Lei se apodera dela,
o impulso deixa de ser livre e não nos pertence mais. Nem força nem astúcia
podem-nos livrar da obrigação de suportar os efeitos. Se semeamos o mal, colhe-
mos o mal; se semeamos o bem, colhemos o bem. Mais adiante desenvolveremos
esses conceitos (cap. XXIV e XXV). É justo que, em última análise, apenas a nós
mesmos possamos fazer bem ou mal. Terminado, nosso ato torna-se inexorável
desenvolvimento de forças. O destino é livre na fase inicial da formação, da
determinação das correntes e do início da trajetória; fatal, porém, na fase de
desenvolvimento das correntes e, especialmente, na fase final de eleito e conclusão
da trajetória. Eis a justiça histórica. Geralmente consideramos o destino apenas
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
VII
Tudo quanto foi exposto pode ser incrível; no entanto, é natural, lógico e
simples. Logo depois de curta reflexão desapaixonada surge novo mundo, até ali
aparentemente impossível. No entanto, é apenas fora do comum, afastado dos
caminhos habituais, para lá da fase atual de evolução humana. Quando o atingimos,
o mundo atual fica-nos parecendo tão espantosamente cretino que não sabemos se
havemos de rir ou de chorar; neste mundo cremos poder eliminar o inimigo,
matando-o; criar correntes de pensamento, com propaganda, ou eliminá-las,
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
sufocando-as no silêncio; não pagar o mal que fazemos. Mas o inimigo constitui vida
indestrutível, pois os mortos continuam vivos, ressurgem e podem tornar-se
instrumento de justiça contra o assassino; as correntes de pensamento são livres, a
opressão as reforça e o engano ensina-lhes novas astúcias; podemos praticar o mal;
porém, somos depois obrigados a pessoalmente repara-lo.
Este livro é o roteiro desse novo mundo, o hino dedicado ao novo tipo biológico
nele reinante e inicia o culto de novo ideal de vida. Esse tipo pode ao mundo de hoje
parecer super-homem e até mesmo poderíamos assim chamá-lo. mas super-homem
bem diferente do de Nietzsche. A concepção materialista que lhe serve de ponto de
partida poderia dar-nos apenas a exaltação do primitivo, a glorificação da violência
ou, seja, da ignorância, pois quem só acredita na força demonstra nada haver
entendido do funcionamento universal. Super-homem desse tipo não passa de
involuído posto no vértice de hierarquia de involuídos, rei selvagem de mundo
selvagem, prepotente em meio a outros tantos prepotentes. O novo imperativo não
se cifra em enganar e dominar, mas em civilizar-se. Isso tudo pode parecer utopia,
mas, guardando a devida proporção, no passado a evolução soube transformar em
realidade utopias maiores; por isso essa utopia nos fascina e atrai. De tudo isso, que
tem significado vital, possibilidade de realização e representa impulso biológico,
emana radiação mágica, que nos prende com exato senso de vibração reverencial.
O instinto da vida se manifesta em nós antes da razão calculista.
A luta moderna se trava entre o tipo biológico hoje em maioria e a lei de
evolução. O primeiro parece que pretende fazer tudo quanto possa para impedir a
realização desse novo mundo; a segunda tudo põe em condições de torná-lo
realidade. Trata-se de dois sistemas opostos; um, ilusório e falaz; o outro, lógico e
seguro. Com o método atualmente em voga, somos obrigados a reconhecer que o
homem, apesar das conquistas e vitórias, não alcançou a felicidade e se agita como
presa de insatisfação contínua. E como acima dissemos em relação ao indivíduo,
também a coletividade não procura dentro de si mesma, mas fora, as causas de
seus males. As causas, porém, residem no método. É fácil entrar no mundo novo; as
portas acham-se abertas de par em par Mas o homem não quer entrar. A posição
em que se encontra o impede. A Lei, sábia e boa, desejaria exatamente o contrário,
quer dizer, o bem; mas a Lei tem de respeitar a vontade humana. O homem prefere
viver em estado de tensão, de recíproca desconfiança e, por isso, de contração, a
viver em estado de calma, de confiança e, em conseqüência, de expansão. Os bens
da terra bastam demais paia todos. A psicologia da insaciabilidade, generalizando-
se, em plena abundância nos torna miseráveis. A avidez de lucro subtrai dos bens a
função de instrumento útil à vida, transformando-os em instrumento de especulação,
acumulando-os apenas para que apodreçam, sacrificando a vida à potência
econômica. Assim se determinam as desproporções que justificam a revolta das
classes pobres contra as dos capitalistas, impedindo-as de gozar dos bens
acumulados. O efeito atinge de novo a causa; não podemos gozar o que não é fruto
da justiça, mas do abuso; toda posição de desequilíbrio se destina à queda. Para
que serve empregar meios ilícitos e usurpar, se mais tarde a Lei nos constrange ao
pagamento? E, de fato, não faz o homem outra coisa senão pagar. O método atual
de busca da felicidade representa verdadeira falência. Não se deve culpar a Lei,
mas o sistema escolhido pelo homem. A Lei paga na mesma moeda, devolve-nos o
que lhe oferecemos. A causa de nossas misérias reside em nós mesmos. O
egoísmo conduz a dispersões imensas, como, aliás, todo separatismo. Não
considerar o próximo como irmão, mas rival, e não ter-lhe os bens na conta de
capital comum a conservar-se e, sim, na de objeto de conquista, leva à destruição
nociva a todos. O homem, empregando-a mal, reduz a riqueza, em principio benéfica
para a vida e tão útil ao progresso, a instrumento criminoso e manchado em que o
evoluído com desprezo se recusa. a tocar. Que sensação de bem-estar compensaria
a fadiga até mesmo da primeira aproximação evangélica!
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
tudo tem objetivo útil, a ser atingido mais cedo ou mais tarde, onde tudo acontece
em função da chegada à meta, não passa de loucura acreditar que fato nuclear,
como a dor, possa existir sem objetivo, e, onde tudo serve para alguma coisa, exata-
mente aquilo que mais nos caustica e acabrunha não sirva para coisa alguma. Mas o
homem de nossos dias não concebe o universo organicamente, como lei e ordem,
mas caoticamente, como arbitrariedade e desordem. Se não se compreendem em
primeiro lugar as finalidades da vida e a lógica de todas as suas funções, é natural
que desse modo não possamos resolver o problema da dor. O próprio homem,
pondo-se na posição de quem nada compreende de tudo quanto lhe acontece em
torno, nada pode resolver e, tudo ignorando, só pode cometer erros. Para, vivendo
em determinado sistema, conseguirmos atingir certo objetivo, torna-se preciso
primeiro conhecê-lo e, assim, conduzirmo-nos de acordo com as normas que o
regem, sem pensar em violentá-las e torcê-las. É natural, então, que o sistema reaja
e não se atinja o objetivo.
Embora mudemos continuamente a perspectiva, percorrendo os vários pontos
da periferia, a própria estrutura do universo nos orienta e sempre faz retornar ao
mesmo conceito fundamental ou, seja, ao pensamento central ao redor de que tudo
gira e pode chamar-se: Deus, Lei, Ordem Não podemos impedir que todos os
conceitos desta obra gravitem em redor desse ponto, pois essa é a estrutura do
universo e nosso pensamento deve amoldar-se a essa estrutura e constituir-lhe a
expressão exata. Desse modo, pode parecer que estamos a repetir sempre a
mesma coisa; mas o universo é que é sempre o mesmo. Podem mudar o ponto de
vista da periferia e a forma do relativo; não o podem, porém, a realidade do centro e
a substância do absoluto. No mesmo modo em que se construiu o universo, através
de caminhos infinitos, de qualquer ponto de que partamos terminamos por atingir
sempre o mesmo centro. A criação apresenta-se variada e, quanto à forma, é
mesmo, contudo, em substância permanece invariável. De modo que não fazemos
nada mais senão fotografar a realidade, quando somos obrigados a repetir do
princípio ao fim, sob infinitos aspectos, o mesmo conceito de sempre: Deus, Lei,
Ordem, Esse é o estado das coisas e não podemos mudá-lo. O princípio permanece
sempre o mesmo; não podemos fazer outra coisa senão retornar sempre a ele.
O problema da dor também nos reconduz ao mesmo princípio, nosso ponto de
partida e de chegada, em redor de que devemos girar sempre, isto é: o universo
constitui sistema, organismo, funcionamento lógico. Se não respeitarmos as normas
e não percorrermos os caminhos desse sistema, não poderemos resolver o
problema da dor. O ateu pode descrer da existência de qualquer regra; o pessimista,
julgar que domina o mal e a desordem; o epicurista, acreditar possível rirmo-nos de
tudo; e o violento, pensar ser possível impor-se a todos. Mas a Lei continua cada
momento a exprimir sua natureza, que é ordem, sua vontade de continuar sendo
ordem, sua necessidade de sempre maior atuação da ordem em todo ser e em todos
os momentos. Quando não se respeita a absoluta e fundamental exigência de
ordem, a dor aparece, fato cuja gravidade indica como, proporcionalmente, se
mostra importante o princípio a que se propõe defender. No sistema, a dor tem o
papel de campainha que nos adverte do erro, corrige o desvio e impõe a correção,
exatamente como acontece no sistema nervoso do organismo humano, feito à
semelhança do organismo universal. O homem pode pensar e fazer o que quiser;
mas o sistema não tolera em absoluto alteração dos seus equilíbrios e, se os violam,
defende-se, volta-se contra o violador e obriga-o a reconstitui-los à própria custa. A
dor corre por conta do violador; quem errou paga com o que lhe pertence,
pessoalmente. Trata-se de equilíbrio de forças cujos impulsos poderiam ser
calculados exatamente, em qualidade e quantidade, no modo como se relacionam
em causa e efeito, ação e reação. Essa reação reequilibradora é fatal, a Lei não
admite perturbações; se acontece violação, pois o homem é livre, o efeito não pode
recair sobre a Lei, mas sobre o homem. A este se permite fazer experiências à
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
própria custa e aprender por tentativas; não se lhe permite, porém, alterar o
funcionamento do universo. Essa reação reconstrutora de equilíbrios por parte das
forças da Lei pode parecer-nos ato de justiça por parte de Deus ou, então, punição
da culpa; aos primitivos, no entanto, pode parecer vingança. À dor não é, então,
fracasso ou derrota, mas o meio providencial de reparação e prova na arena das
experimentações humanas. Constituindo-se compensação expiatória e escola,
assume o papel de retorno à ordem e método aquisitivo de qualidade, isto é, meio
de auto-elaboração ou, melhor ainda, fator de evolução. Assim, a dor se transforma;
não é mais, como na conceituação vulgar, obstáculo à felicidade; não é mais
maldição ou vingança de Deus, mas bênção e ajuda; não é mais vergonhosa
posição de inferioridade, mas nobre instrumento de redenção. Apenas se
compreende a lógica do sistema diretor do universo, logo aparecem a absoluta
justiça e a imensa bondade de Deus.
Todas as vezes que neste livro qualificamos o involuído como ignaro e primitivo
não o fizemos em sinal de desprezo, de condenação ou de imputar-lhe culpa. O que
queremos é apenas expor o mecanismo do universo e as conseqüências advindas,
para cada qual, de sua conduta. O involuído está, biologicamente, exatamente onde
devia, adequando-se, como selvagem em planeta selvagem, a dureza de suas
provas à de sua sensibilidade. Todavia, os que compreendem como realmente a
vida funciona não podem deixar de adverti-lo, somente no interesse dele, para fazê-
lo compreender como executa mal suas tarefas; de indicar-lhe, se lhe convém, me-
lhor modo de fazê-las, mostrando-lhe como é estulto alguém pretender construir com
as próprias mãos a sua infelicidade e como é possível corrigir a própria dor e
transformá-la em prazer. O bom e sábio sistema do universo contém a solução do
problema. O sistema é feito de ordem; a dor é conseqüência de desordem. A dor,
logicamente, cessa com a desordem de que deriva e o método para eliminá-la
consiste na harmonização, quer dizer, no retorno ao seio de Deus através da
evolução. A estrutura do sistema implica a cessação da dor, à medida que
caminhamos para a ordem. Reconstruamos, então, a ordem destruída e teremos
eliminado a dor, eliminando-lhe as causas. A evolução consiste exatamente em
dispor mais harmonicamente as forças que somos e as que manejamos,. isto é, da
desordem passar para ordem relativamente mais completa. Relação entre dor e
felicidade significa relação entre dissonância e harmonia. O inferno é estado caótico
de revolta (desordem satânica); o paraíso, estado orgânico de paz (ordem divina). A
sabedoria do sistema consiste exatamente em que a dor é força auto-dominadora
por natureza, isto é, quando se manifesta tende a gastar-se e inverter-se. Como
forma de dor, essa força caminha para o próprio aniquilamento e auto-destruição;
mas, como força, não se destrói e quer renascer em posição invertida ou, seja, como
felicidade. Noutros termos, evoluímos por meio da fadiga do reordenamento,
passamos do inferno ao paraíso através da própria dor.
Assim a dor nos aparece em toda a sua importância de reconstrutora da vida; na
sua verdadeira função de reequilibradora, como compensação expiatória; na de
educadora, como assimilação de experiência e formação de consciência; na sua
função de reordenadora da desordem, como reabsorção do mal; enfim, como fator
de evolução e instrumento de felicidade. A dor, devido à natureza equilibrada do sis-
tema, é força que, manifestando-se, se consome, se esgota e se transforma em
força contrária. Constitui-se ao mesmo tempo em estimulante de atividade, em
adestradora e instrutora, isto é, em criadora de qualidade que lentamente melhora,
se fortifica e enriquece. Enfim, é grande harmonizadora, que leva o ser rebelde e
caótico a funcionar organicamente de acordo com o pensamento e a vontade de
Deus. Também nesse campo o mundo não está, em absoluto, no caminho certo.
Não eliminamos a dor por meio de sistemas exteriores, sobrepostos, coatores,
distributivos, mas apenas através da compreensão e prática da Lei. O homem se irri-
ta contra os efeitos, mas continua a semear as causas. Torna-se inútil querer
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
desordem realmente representa perda; toda vitória injusta não passa de derrota. A
felicidade é equilíbrio. A dor aparece tão logo saímos da harmonia. O sistema de
forças se distorce e o fenômeno se degrada assim que abandonamos a medida do
justo. Todo pecado por falta ou por excesso significa erro a ser pago. De fato, tanto
os povos como os homens mais ricos são os mais infelizes. Dadas a estrutura do
sistema universal e a conduta humana hoje em voga, que felicidade podemos en-
contrar na terra?
VIII
dos cálculos da economia humana; estamos nas raízes mesmas da vida, absortos
em maravilhosos contatos com a eternidade, em vibrações intensas bem longe da
terra, somos convivas do banquete das harmonias divinas, elevados à condição de
servos de Deus, isto é, de colaboradores de Sua Lei, protegidos pelas forças de Sua
justiça. Em alguns momentos o inferno terrestre parece bem longe; a dor, desfeita; a
redenção, realizada e a libertação, completa Por momentos parece haver-se tornado
real o sonho de felicidade que o mundo persegue em vão. Quem souber ler nas
entrelinhas terá neste livro, por trás da lógica dos argumentos, a sensação de
sublimidade e de êxtase, isto é, a sensação das divinas harmonias do universo
inteiro, a que estamos a cada passo tentando levar o leitor. Este livro em meio à
desordem terrestre pretende ser afirmação de ordem; em meio às dores humanas,
foco irradiador de alegria verdadeira porque pura; corrente de vibrações
reconstrutoras de bem-estar no sentido mais resolutivo; impulso que, embora
mínimo, como dique protetor se contraponha aos rios de dor que o homem de
sentimentos caóticos estupidamente despeja sobre si mesmo. Dá-se pressa em
condenar, pensando que se distingue dos inferiores e os liquida, classificando-os
como involuídos! Para que, senão para civilizar-se estariam na terra os mais
adiantados? A fase de involução é de cegueira e sofrimento, representa estado
inferior que causa e merece imensa piedade. Este livro constitui convite, dirigido a
quem não o tenha conseguido ainda, a passar do estado de involuído ao de
evoluído; explica a dificuldade e o método dessa passagem; se por este lado resolve
racionalmente tantos problemas e diz o que é a vida, doutro lado é convite à
felicidade. Explicação e convite. Nada mais. A justiça da Lei exige que toda alegria
seja merecida e, por isso, conseguida à custa do esforço de cada um.
Baseando-nos nos conceitos até aqui expostos, olhemos em redor do mundo de
nossos tempos, observemos e apliquemos o que acontece. Essa observação não é
movida por interesse algum, não deseja atingir nenhum objetivo terrestre e parte de
ponto de vista situado acima do plano humano. E, pois, imparcial. Apenas se propõe
a expor o funcionamento da Lei, igual para todos, mostrar as conseqüências lógicas
que dos erros decorrem para quem os pratica. Isso tudo, aliás, sem partidarismo e
sem censura também. Trata-se de simples verificação dos estados de fato
determinados livremente pelo homem e pelas conseqüências impostas pela férrea
logicidade da Lei. Seria presunção julgar. Apenas Deus conhece as capacidades, as
medidas e as responsabilidades de cada consciência. Para julgar tornar-se-ia
necessário ser inocente e superior. Quem o é na terra? Julgamento pode emanar
apenas de quem está acima de todos e é isento de culpa; isso faz presumir
superioridade existente apenas em Deus. e na Sua Lei, sempre justa seja qual for o
nível evolutivo. Todo ser está sempre no lugar certo e tem sempre o que merece,
conforme o que é e faz. A qualificação de involuído não significa condenação. Ele
também está no lugar certo, no ambiente apropriado, sujeito a golpes adequados e
tem o que merece.
Observemos, pois. O homem com sua conduta demonstra não conhecer os
princípios que regem e regulam o funcionamento orgânico do universo; comporta-se
como se a Lei não existisse, transgride-a, e, sem compreendê-la, sofre-lhe as
reações. Nossa humanidade é jovem ou, seja, primitiva, riquíssima de energia e
muito pobre de sabedoria. Essa humanidade precisa de caminhar muito ainda e de
sofrer, antes que aprenda a conhecer a Lei e a portar-se de acordo com ela. De vez
em quando algum evoluído aparece na terra, como expiação ou para dar
cumprimento a missão; cumprida porém, a tarefa, apressa-se a retomar o convívio
da gente de sua raça. Todos os seres se colocam no lugar certo. Geralmente, ao
homem não basta desconhecer a Lei e fugir-lhe; mas faz até o impossível para
revoltar-se contra ela e muda-la, aproveitando para isso da inviolável liberdade de to-
do ser. Mas o resultado da partida acaba por ser-lhe desfavorável, porque a Lei
reage. A terra naturalmente não passa de lugar de dor, não percebida apenas pela
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
insensibilidade dos que há pouco tempo chegaram de mundos mais baixos. Então,
naturalmente também é lugar de desordem, violência, rebelião e ferocidade. Só o
evoluído percebe o inferno que este mundo é. Mas ele também está colocado no
lugar certo, pois se se encontra cá embaixo é porque merece tal pena. Resta-lhe
apenas isso: a expiação e a fuga. Se veio ao mundo para cumprir missão, deve fazê-
lo. Os homens deste mundo são de raças muito diferentes. A grande maioria
encontra-se no ambiente adequado a seu grau de evolução; é justo e lógico
encontrar-se a maioria em ambiente adequado e só a minoria achar-se em lugar que
não lhe convém. A minoria, embora notável, mais evoluída, aqui se encontra em
caráter de expiação; raríssimos exemplares de raças superiores vêm para cumprir
missão. Os destinos, as provas, as alegrias, as dores, os gostos e os modos de
apreciar as coisas são, pois, muito diferentes, de acordo com a natureza de cada
qual. Todos nós exercemos função. Prova duríssima coloca os superiores ao lado de
inferiores ferozes como demônios; os inferiores são postos ao lado dos superiores
para que com eles aprendam a compreender a vida. Embora diferentes, todos
colaboram e mutuamente se aperfeiçoam. Porque todos são desiguais, as opiniões
variam tanto; contudo, a harmonia se estabelece pela compensação dos contrários
mais do que pela semelhança. A realidade da vida é completamente diferente da
que aparece exteriormente ao homem comum; e seus verdadeiros problemas, bem
diferentes daqueles de que habitualmente falamos.
Nesse ambiente naturalmente o que domina é a exaltação da força ou exaltação
da involução, isto é, do tipo biológico humano ainda próximo da animalidade. O que
revela o evoluído é método de vida completamente diferente, fundado, ao invés, no
equilíbrio da justiça; mas o evoluído hoje constitui minoria que, em silêncio e
mergulhada na dor, espera sua oportunidade de vida ativa no mundo. O estudo dos
grandes ciclos históricos nos indica como a fase da animalidade, depois que atingiu
o apogeu, esteja agora se encerrando na autodestruição, seu termo final, inserida no
desenvolvimento lógico do sistema da revolta, do materialismo científico. Desse
modo se esgotará o ciclo da atual pseudocivilização do involuído e começará o ciclo
da nova civilização do evoluído. Quem olhar em torno de si e tiver capacidade de
entender, observa o desmoronamento deste mundo e admira a perfeição da Lei que,
no tempo certo, executa o que é útil e necessário. A vida, feita de renovamento,
necessita dessas destruições. A pseudo-civilizaçáo da matéria, fechada no ritmo do
tempo que se prepara para encerrar-lhe o ciclo, apressa-se novamente a lançar seus
últimos impulsos. Seu dinamismo persegue-a, seu desequilíbrio íntimo atormenta-a;
toda a estrutura do sistema de princípios que a regem, a natureza das forças que a
põem em movimento, representam concatenação lógica que não pode desenvolver-
se senão à custa de aceleramento progressivo e contínuo sem terminar em total
aniquilamento. O bólido foi posto em movimento e agora deve percorrer a trajetória
que lhe foi determinada desde a abertura do ciclo.
Se olharmos em redor de nós vemos em todas as coisas dominar o desequilíbrio
As vitórias são cada vez mais instáveis; as afirmações, levianas; tudo está
confundido num turbilhão de loucura; a riqueza e o poder têm algo de raiva e
desespero; todo bem é inseguro e dá-nos, mais do que alegria, o terror de vermo-
nos despojados dele. Perdeu-se o senso da harmonia, da calma, da segurança e,
por isso, da felicidade. A técnica, mais do que para criar e proteger, serve à morte e
à destruição. As manifestações espirituais agonizam. A arte apresenta apenas
expressões de bestialidade. Os cantares das mulheres são uivos de fêmea e estão a
serviço da atração sexual. Os cânticos dos homens são gritos de revolta e servem
ao roubo e à destruição. As maravilhosas descobertas modernas, quando não se
constituem instrumento mortífero, concorrem muitas vezes para a multiplicação
dessas expressões bestiais. As descobertas químicas reduzem-se quase sempre a,
na agricultura, violentar os ciclos naturais; na medicina, a forçar as defesas
orgânicas e impor-lhes efeito imediato, que, ao invés de ser salutar como se pensa,
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
por sua vez vive e triunfa, contribuindo para a vida, e tem razão ou está errado,
conforme a função que desempenha. Estamos em fase de declínio evolutivo para
liquidar civilização e, em período assim de destruição renovadora, exalta-se modelo
humano que amanhã será com repugnância considerado ínfimo. Amanhã, em fase
de ascensão evolutiva para construir civilização, será exaltado modelo oposto, agora
incompreendido e perseguido; liquidar-se-á o tipo biológico hoje em voga e em plena
atividade.
Até o involuído desempenha, pois, função social e, no que diz respeito aos
equilíbrios da vida, está colocado no lugar que lhe compete. E deve também ter sua
oportunidade. Ele naturalmente defende, como qualquer defenderia, os princípios do
próprio plano, onde se sente forte e por isso está sempre com a razão. Como
acontece com todos, irrita-o a afirmação das verdades de outros planos, porque aí
se sente fraco e, em conseqüência, nunca tem razão. Por instinto vital e porque a
compreende melhor, todos sustentam a verdade do próprio nível e do próprio tipo
biológico. Afirmamos o que somos, o que melhor compreendemos, o lugar onde
melhor vivemos e vencemos. O próprio involuído quer afirmar-se e escolhe sua
arma: a força. Sente-se fraco no plano da justiça, arma escolhida pelo evoluído que
apenas aí se sente forte. O primeiro, portanto, naturalmente repele essa defesa que
não o defende, essa arma que não lhe dá razão; antepõe-lhe a força, que ele
defende porque a compreende mais, porque é o método de seu nível evolutivo e o
único meio a oferecer-lhe possibilidade de estar com a razão, embora
momentaneamente. Foge, por isso, dos caminho da ordem e da Lei e prefere os da
revolta, mais trabalhosos e inseguros Em presença da justiça compreende muito
bem que está enterrado de dívidas e não pode valer-se da lei que apenas lhe aplica
sanções dolorosas. Onde o evoluído goza de crédito, o involuído está até ao
pescoço de dívidas; onde o primeiro encontra ajuda, o segundo acha apenas
desvantagem e condenação. Então, renega Deus e a Sua Lei E renega-os
exatamente porque percebe que existem e lhe dirigem exprobrações. Rebela-se,
portanto, e como defesa lhe resta apenas a força. Este é o seu ponto de vista. O
evoluído ama a Deus e à Sua Lei, que lhe garantem alegria e proteção. Sua
economia não se baseia, como para o involuído, na força e no furto, mas na Divina
Providência, que, se não se exerce em favor do outro, funciona plenamente em
relação a ele que preenche as condições necessárias à verificação do fenômeno.
Todos confirmam e exaltam o que são e possuem; e negam o que não são e não
têm.
A época atual representa a vitória do involuído, isto é, da força, da rebelião, da
desordem. Mas ele também, embora rebelde, não passa em última análise de servo
da Lei. Em face de seu método negativo de revolta, seu desenvolvimento e suas
vitórias acabaram em destruição, quer dizer, em sofrimento e humilhação de que
nascem o entendimento e a ascensão. O destruidor é, pois, instrumento da
reconstrução; suas negativas, esgotada sua função e aniquilado seu autor, se
transformam em afirmações; a desordem do rebelde acaba em ordem mais elevada;
a dor conclui pela evolução. O ciclo traz em si mesmo a sua lei, as forças
canalizadas dentro de si são todas reunidas em corrente de acordo com ritmo fatal,
que obriga o desenvolvimento da fase a findar na dor que ilumina, purifica e redime.
De tanto caminhar, nossa época progrediu de modo tal que atingiu a fase útil e
construtiva: a da dor. Ela fará refletir muitíssimo. É a única estrada da compreensão.
E só o havê-lo compreendido nos poderá permitir a construção a sério, com solidez,
para ascendermos cada vez mais.
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
IX
constitui a potência mais fraca da vida. Quem dela se socorre não sabe quão é o
pensamento, que poder tem a disciplina na organicidade. Apenas um olhar lançado
no futuro, para que o pressintamos, nos enche de estupor. Geralmente, essas
espíadelas no futuro reduzem-se a previsões fantásticas à Wells, limitando-se o
escritor ao desenvolvimento dos motivos já em nossos dias atuantes, à perspectiva
ampliada do atual estado de coisas. Ninguém fala de novos motivos, aqueles que de
acordo com a lógica da evolução se introduzirão na vida. E o futuro reside exa-
tamente neles. Exagera-se, ao invés, o progresso mecânico, colocado em primeiro
plano; quanto à ciência da matéria, prossegue-se até à hipertrofia, sem suspeitar-se
devam os equilíbrios da Lei, ao contrário, agir em direção oposta e compensadora,
provendo o mais necessário: a sabedoria diretriz, que reordene, guie e portanto
valorize as conquistas já realizadas. Não compreendemos ainda que os princípios
atualmente em vigor, para não acabarem no aniquilamento, são corrigidos e não
persistem; e, se não lhes adicionamos princípios complementares, não representam
vantagem, mas dano. Essas previsões estão, pois, no caminho errado. Caímos no
erro de acreditar que a evolução seja unilateral e retilínea e não deva o futuro passar
de multiplicação, de continuação ampliada do presente. Por força da lei de equilíbrio,
o caminho percorrido por determinado século não pode ser exatamente o
prosseguimento puro e simples do seguido pelo século precedente. Cada época tem
objetivo próprio, com que, para de todos os lados equilibrar o desenvolvimento,
tende exatamente a compensar o da época anterior. Por isso, toda atividade é
levada a transformar-se, ou invertendo-se na sua complementar oposta ou
completando-se em formas ainda não desenvolvidas. Continuar a conceber o
progresso apenas como exterior e mecânico significa incompreensão do progresso,
pois ele seria apenas o prosseguimento de trabalho unilateral, a continuidade de
civilização que esgotou sua tarefa, não tem mais razão de existir e deve, pois, ceder
o passo a nova civilização de tipo completamente diferente. As novas ascensões,
fixadas e superadas as vitórias da técnica, deverão apossar-se do campo das
qualidades humanas. Há muitos outros germes à espera, hoje invisíveis, que se
conservam latentes, escondidos nos intervalos dos grandes ritmos da história.
Nossos atuais problemas constituem fase de transição e preparação de muitos
outros problemas, completamente diferentes. Superar-se-ão a luta de classe e a
competição entre o capital, e o trabalho, resolver-se-ão tantas incompreensões e
tanta ignorância; a organicidade exterior e coacta deverá transformar-se em
organicidade íntima e estabelecida por livre convencimento. A evolução, que hoje
plasma a forma; deverá penetrar cada vez mais na substância e renová-la cada vez
mais intimamente. Há na vida muitos outros germes que esperam em silêncio, nela
colocados muito a propósito, para germinarem e crescerem, visto ser essa a
finalidade de todos eles. Após compreender-se a lógica do processo, tudo isso se
torna evidente.
A fé por nós depositada no ressurgimento espiritual do mundo se baseia em
profunda visão das coisas, que estende os braços até aos confins do espaço e do
tempo. É impossível que o homem de hoje, dominando sempre mais as forças da
Natureza, não chegue a aprender algo, embora através de hecatombes e,
manipulando cientificamente a vida, não se lhe mostre a imensa realidade
subjacente. A estrutura evolutiva do universo e o ritmo progressivo da Lei
evidenciam a impossibilidade disso. Como negar a solene afirmação da vida, que
apesar de todos os obstáculos, anuncia eterno triunfo? Os desenvolvimentos são
fatais; viver é progredir; toda trajetória, lógica. As verdades das maiorias modernas
não passam de momentâneas correntes psíquicas e nada provam. O mundo guia-se
pelo ritmo dos ciclos históricos, pelo peso dos imponderáveis. O homem não dirige a
história, segue-a. A Lei a todos arrasta, confiando a cada um função especial. Na
organicidade do sistema diretor existe sabedoria que de seja o progresso e nos
salva malgrado nosso. Os grandes homens detentores do poder, expoentes da
história, desaparecem; mudam os nomes das coisas e as atitudes populares; e, em
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
direção aos objetivos propostos pela vida, a sabedoria prossegue no seu caminho,
independente e imperturbável, sob muitas formas diferentes. A mesma verdade
continua a desenvolver-se, atuando sob as aparências mais opostas da verdade,
mas superficiais e momentâneas. A visão das grandes coisas de Deus escapa a
quem olha de muito perto as pequenas coisas humanas. Como se fosse cântico
ansioso e aflito, nosso pensamento vagou pelo universo, percorreu-o buscando sem
cessar e saciado se deteve na fé por ele depositada na ascensão, em que percebe
haver encontrado o verdadeiro sentido e o fim supremo da vida.
Qual o sistema de vida do novo tipo biológico evoluído? Que posição toma na
terra, especialmente em face das necessidades materiais, eixo da vida dos demais?
Sua regra pode resumir-se no preceito evangélico: "Buscai o reino do espírito e tudo
o mais vos será dado por acréscimo". Conquistado o poder maior, consistente no
domínio do espírito, torna-se lógica a conquista do poder menor, que é o domínio da
matéria. Não estamos tratando de admirável utopia, mas de fato suscetível de
verificação. Quem já aplicou essa norma, sabe-a verdadeira. Encontrado o reino do
espírito, o resto nos é dado espontaneamente por acréscimo. Como quem pode o
mais pode o menos, possuir o plano do espírito significa dominar os planos inferiores
e as forças que o regem, significa tornar-se espontaneamente, sem necessidade do
emprego de força, senhor de tudo quanto aí exista. Quem o conseguiu naturalmente
possui dentro de si mesmo o senso da medida justa e não abusa. Tudo isso mostra
conseguirmos maior vitória obedecendo à Lei do que revoltando-nos. Os atuais
assim chamados donos da riqueza na realidade não passam de seus escravos. O
evoluído não aprendeu a servi-la, mas a servir-se dela, a considerá-la meio e não o
objetivo da vida, a construir seus tesouros com valores superiores aos econômicos e
materiais, a amar coisas muito mais belas do que as da terra. Não prostitui o espírito
em presença do mundo e se mantém senhor das forças da vida. Seu domínio atinge
a raiz dos acontecimentos e a essência das coisas; é mais potente porque mais
profundo. O encontro do reino do espírito transformou-lhe a vida em esplêndido e
imenso acontecimento, isto é, no funcionamento de força indestrutível na
organicidade universal. Como, por causa do equilíbrio interior, é antes de mais nada
dono de si mesmo, constitui-se senhor e não escravo das coisas, que para ele
assumem outro valor e diferente significado por serem vistas de ponto de vista mais
elevado.
Maneira tão nova de conceber a vida representa verdadeira revolução biológica
no mundo moderno. Os dois tipos, involuído e evoluído, personificam a velha forma
e a nova, que devem respectivamente morrer e nascer. Trava-se luta entre esses
dois tipos de vida. Cada um deles tem suas próprias armas. O involuído usa força ou
astúcia; o evoluído, bondade e perdão. O primeiro é violento, mas cego; o segundo,
pacífico, mas de ótima visão. O primeiro suporta, o segundo domina o imponderável.
Estão frente a frente, em posição de recíproca e relativa inferioridade e
superioridade. Mas tudo se reequilibra porque o evoluído, se possui mais poderes,
tem também mais deveres. Eis a grande guerra em que vencerá o homem
desarmado e de que nascerá a nova civilização. O evoluído sabe, porém, que as
recíprocas posições de inferioridade e superioridade não são absolutas, mas
relativas, que a maior quantidade de meios correspondem maiores obrigações, que
essas posições não são definitivas, mas transitórias. Todo tipo biológico, se não
passa de involuído quando comparado a evoluído que o supera, é por sua vez tipo
evoluído, se confrontado com outro mais involuído que ele; e todo evoluído, se
supera o involuído, não passa, a seu turno, de involuído, se o cotejarmos com tipo
mais evoluído. Cada um, seja qual for o nível em que se encontre, sempre tem
superior e inferior. Por isso, nenhuma posição nos dá direito de ensoberbecer-nos
por causa de superioridade absoluta e nenhuma nos dá motivo de humilhação por
inferioridade absoluta. Todos temos superior de quem aprendermos e a quem
prestarmos conta; e, também, inferior a quem devemos estender fraternalmente as
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
mãos. E o evoluído sabe não dispor de maior conhecimento e poder senão para
execução de maior trabalho. Não é só isso, porém. No decurso da evolução, todas
essas posições mudam continuamente e está em nossas mãos fazê-las mudarem.
Para todos nós, o estado de involução representa o passado; para todos os homens
de boa vontade, o estado de evolução significa o futuro. Desse modo, o evoluído de
hoje foi ontem o inferior involuído, que amanhã poderá ser o superior evoluído. Essa
é a hierarquia dos seres, que ao longo dela se movem de acordo com o
merecimento e a boa vontade.
A luta entre involuído e evoluído é fatal. Todo ser personifica determinada força
e representa determinado elemento da luta; ninguém pode, na posição de neutro,
fugir da luta, pois a vida consiste na ascensão através da luta. Vida é movimento, é
vir-a-ser; a estase mata-a. E esse vir-a-ser tem de significar ascensão. Esse
movimento não pode deixar de dirigir-se para cima. Resolve-se na morte a vida que
não progride para o alto. Construir ou morrer, avançar ou extinguir-se. Quem pára
perde a vida. se não evolui, morre; o retardatário morre na proporção do próprio
retardamento; quem chega tarde se arruina; quem se recusa se destrói. Progredir
cansa muito; todo aquele, porém, que retrocede caminha em direção do inferno;
enquanto isso, quem progride caminha rumo ao paraíso. A Lei nos comprime de
todos os lados para que nos decidamos ao trabalho fatigante de avançar em direção
do paraíso e tudo retorne ao seio de Deus, de que se afastara. A vida não tem e não
pode ter outro significado.
O PROBLEMA DO MAL
com o caráter de força, senão contra si mesmo e em favor de seu contrário, isto é,
em campo positivo e a favor do bem. Eis que o princípio anticriador, o anti-Deus, por
si mesmo se destrói, se trai e se torna servo de Deus, princípio-criador. O mal não
funciona apenas como obstáculo que serve para adestramento no campo das
provas, como catalisador nas reações, desse modo ajudando a evolução, mas é
também a principal fonte dessa dor que é exatamente causa de reequilíbrio,
instrumento de redenção para o mal e de evolução a caminho do bem, isto é, a
devoradora força do mal e a força construtiva do bem. Então, o escravo torna-se útil
colaborador; o que parecia elemento destrutivo é, na realidade, instrumento que
serve para construir, é condição de progresso vertical e de realização do bem; é ami-
go, ao invés de inimigo. Assim se explica a necessidade desse agente determinador
de provas, a utilidade das perseguições, a significação do atentado destrutivo por
parte do involuído. Assim se explica como o progresso se nutre dessas resistências,
ao invés de permanecer bloqueado por elas, pois se transformam, enfim, em
impulsos favoráveis. Assim se compreende porque o Evangelho nos aconselha a
que não façamos frente ao mal. Em universo perfeito, onde tudo possui significação
própria, se o mal existe deve ter objetivo, rendimento certo, exercer função. Nos
equilíbrios da Lei até o mal se torna útil. Já vimos que construção orgânica é a
Criação. Qualquer coisa posta fora de lugar, ou sem razão de ser, ou sem função,
constitui enorme absurdo. Quem não compreende pode clamar contra os erros e os
defeitos; quem o compreende vê, por isso, como tudo está em seu lugar certo,
admira a perfeição com que todas as coisas, o mal e o bem, operam em harmonia
com a Lei, a favor do bem.
O bem possuí, pois, grande aliado, o mal, cujas forças trabalham contra si
mesmas e a favor do bem. De modo que, em resumo, os impulsos do mal se
adicionam aos do bem e, então, sob as aparências de desordem e rebelião, tudo é
ordem e obediência a Deus. Quando penetramos além da superfície das coisas e
observamos mais profundamente, surge uma realidade diferente e
maravilhosamente perfeita. Ficamos atônitos, então, em face da inesperada
sabedoria da Lei. As resistências se transformam em impulsos construtivos, as
dificuldades estimulam e os ignaros impulsos do mal gentilmente se prestam, à custa
do próprio dano, a trabalhar pela vitória do princípio contrário. O mal é enquadra do
a serviço do bem. Satanás goza de liberdade até o ponto que Deus quer e está
prostrado e amarrado a Seus pés. Escolha o homem a posição destrutiva ou
construtiva, funções da resistência ou do impulso na ascensão, tudo se resolve em
aplainar a estrada da evolução e se resume em obediência à Lei. O estridor infernal
da desordem é indisciplinado apenas no seu campo e interiormente; mas para além
dos limites estabelecidos, tudo se enquadra no concerto das harmonias divinas.
Assim, nas mãos de Deus, o próprio Satanás destrutivo se transforma em construtor,
embora sem sabê-lo e querê-lo; de tanto negar e mentir, acaba por fazer o contrário
daquilo que pensa estar fazendo; de tanto enganar, acaba sendo enganado. Judas
desejava ganhar e matou-se; pensava trair e torna-se instrumento da Paixão de
Cristo, colaborador da redenção, negativo, mas útil. Todos os ataques do mal,
também nesse caso, permanecem subordinados ao bem, tudo coopera na vitória de
Cristo. Isso nos mostra podermos ser derrotados mil vezes; o que decide a vitória
final é estarmos do lado da verdade. Nisso se resume a história do mundo. Em
última análise, Satanás não existe senão para involuntária e inconsciente missão
benéfica, fora da qual lhe resta apenas autodestruir-se. Cumprida a missão, aniquila-
se. A essência da destruição do mal conserva-se latente dentro dele e é imposta
inexoravelmente pela natureza mesma do organismo de forças de que ele se
constituí. O mal carrega consigo o germe da própria destruição, posto nele para que
tal aconteça. Representa o impulso central do sistema, que o levara fatalmente à
pulverização final. No universo, tal como está construído, é absurdo que o mal
finalmente vença e o bem seja derrotado. Vemos, ao invés, que tudo se move em
direção evolutiva, isto é, rumo à perfeição. A única razão que mantém vivo o mal é
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
defende-se com o merecimento. O segundo tem a seu favor apenas a força. Por
isso, é mais débil e inseguro. O método do evoluído, contudo, lhe parece forma de
debilidade e vileza, quando o evoluído é, isso sim, indivíduo consciente. Mas na
atuação dos dois métodos há esta grande diferença o primeiro importa na
necessidade de sermos honestos.
XI
A ECONOMIA DO EVOLUÍDO
Eis o problema que nos propomos: como procede ele para receber de graça o
necessário, como se se tratasse de benefício concedido para mais da mercê devida?
Do ponto de vista humano sua posição é bem precária, dir-se-ia mesmo
desesperada. Trata-se de indivíduo que, segundo o Sermão da Montanha, dá a
quem pede e, se acaso é roubado, não só se abstém de protestar como até mesmo
não impede que o roubem ainda mais. Pois bem. O indivíduo que, ao invés de cuidar
de si, cuida das remotas coisas do espírito e não se preocupa com os problemas
imediatos e angustiosos da vida real, implicitamente os resolve, saibamos lá por que
meios ignorados dos demais. E não é só; parece destinado a cair e, não só não cai,
como recebe por acréscimo, espontaneamente, coisas que os outros, muitas vezes
inutilmente, gastam a vida para conseguir. Como poderia o evoluído fugir à dura lei,
conhecida tão bem por todos nós, segundo a qual nada se obtém sem esforço?
Essa posição privilegiada é apenas momento da libertação a que a evolução nos
conduzirá. Eis uma das principais vantagens da ascensão. O evoluído superou
nossas lutas e fadigas; as suas se destinam à execução de tarefas mais nobres. Por
sua mesma natureza, ele não trabalha mais em nosso plano material, mas trabalha
no plano espiritual, mais elevado. Os problemas materiais estão para ele, isto é, no
sistema de forças de sua personalidade e seu destino, automática e definitivamente
resolvidos, embora não o estejam para nós. O centro de seu ser coloca-se mais no
alto; sua experiência, diferente e dirigida a outras conquistas, está completa em
nosso plano material, atingiu seu objetivo; as qualidades, em cuja conquista nos
cansamos tanto, foram conseguidas por ele; no plano, em que para nós ainda há
trabalho em prol de reequilíbrio e reordenamento, para ele há equilíbrio e ordem
agindo espontaneamente. De acordo com o principio do merecimento, a Lei dá
gratuitamente ao evoluído o que ele merece e obriga o involuído a conquistar com
muito esforço o que ele ainda não merece. Tudo isso é lógico justo e corresponde
aos equilíbrios da Lei. A inteligência e a atividade primam entre as qualidades que o
evoluído procura conquistar à custa dos esforços já despendidos (merecimento) e
chega por isso a possuir na forma espontânea de necessidade e instinto; é
naturalmente dinâmico, irresistivelmente inteligente e laborioso. Portanto, a lumi-
nosidade e o dinamismo próprios do espírito se projetam, como conseqüência, até
mesmo no plano da vida material. Sua inteligência lhe permite dar ainda maior
rendimento à sua necessidade espontânea de atividade e torná-la, por isso, ainda
mais produtiva, em qualquer direção, seja moral ou até mesmo, implicitamente,
econômica. Já dissemos que quem pode o mais pode o menos: o espírito, embora o
involuído não veja nem compreenda tal coisa, é dominador de tudo, para além da
matéria. O trabalho, tão ingrato e cansativo para o involuído, que a ele se decide
com relutância, na esperança de compensação (economia moderna do do ut des8)
e com os olhos postos em aproveitá-lo o mais possível, até o ponto de transformá-lo
em mentira apenas para justificar o furto (sua forma ideal de aquisição), o trabalho,
dizíamos, para o evoluído é, no entanto, necessidade vital como a exuberância física
da juventude, é instinto que, dirigido pela inteligência, dá resultados dobrados.
Não basta, porém. Para o evoluído o trabalho não significa condenação; muito
pelo contrário, caracteriza-se como função que se entrosa no grande concerto das
atividades de todos os seres do universo, como missão valorizadora da vida. E
valoriza porque, até mesmo nos casos mais dolorosos, transforma-a em precioso
dom, em campo de luta para aquisição de novas qualidades que, adquiridas,
enriquecerão para sempre a própria personalidade, constituindo-lhe o poder e a
sabedoria . Assim iluminado por significação tão profunda e valorizado por
finalidades tão elevadas, ligado não a rendimento momentâneo, mas a resultados
indestrutíveis, o trabalho não é suportado nem como desgraça de deserdados,
segundo nos ensinou o materialismo moderno, nem com inveja dos que dele estão
8
Dou para que dês. (N. da E)
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
isentos. Ao contrário; é abraçado com interesse e amor, como dom de Deus que
assim nos permite fazer experiências, aprender e progredir. não é considerado
posição de inferioridade, mas grande honra, a de tornar-nos colaboradores no
funcionamento orgânico do universo, isto é, operários de Deus. É natural que a
concepção do evoluído renove completamente, em cada caso, e também neste, o
sentido da vida. Assim o trabalho se nobilita, é animado por alegre impulso,
enriquece-se com resultados e finalidades inesperados, e de posição de revolta e
escravidão se transforma em posição de domínio e amor. Trata-se de trabalho bem
diferente do trabalho arrogante, rixento, que hoje se faz e que luta contra o capital
apenas por inveja. Quanto a psicologia moderna se afasta da verdadeira concepção
do trabalho! Ora, é natural que quem conseguiu alcançar essa concepção, e segue o
método de vida conseqüente, veja também como os frutos desse método lhe afluem
às mãos, com a mesma espontaneidade do trabalho realizado. E isso tudo por
acréscimo, porque o objetivo e o prêmio desse trabalho são bem outros, de valor
eterno, imensamente mais importantes. E tudo isso se obtém abençoando a vida, e
não amaldiçoando-a! Assim se explica de que maneira o homem, antes de mais
nada preocupado com as coisas espirituais longínquas, resolva implicitamente até
mesmo os problemas imediatos e angustiosos da vida real, e de que modo esse
homem não falha, embora não se interesse por eles. Recebe como conseqüência
secundária, e não mais como resultado único e como prêmio, tudo quanto para os
outros constitui o único objetivo que, quando não atingido, é como se tudo tivesse
fracassado. Assim é que se pode aplicar o Sermão da Montanha, dando a quem
pede, sem reclamar o que nos é tirado, entregando a túnica a quem nos tira o
manto. O universo é exuberante de poder e de riqueza! Nossa involução é que nos
empobrece, porque, por causa dela e proporcionalmente a ela, nos exclui do grande
banquete! Quanto mais progredimos tanto mais participamos dele e, por isso,
enriquecemos. Nossa involução constitui verdadeira prisão. Progredindo, o evoluído
se libertou e, por lei da natureza, é muito mais rico.
A honestidade é uma das formas com que a inteligência dá maior rendimento ao
trabalho do evoluído. A honestidade, aliás, não passa de conseqüência da
inteligência. Somente o sistema da justiça se mostra equilibrado e produz resultados
consistentes. Esse sistema consegue economizar os naturalíssimos atritos da luta,
que absorvem tão grande parte da atividade humana, sobrecarregando-a de fadiga
inútil. Desse modo poupam-se as numerosas e naturais desilusões de todos os
sistemas desequilibrados. Quanta fadiga inútil se poupa e como o próprio trabalho
rende mais! Quanto as atividades interiormente pacificas e ordenadas não produzem
mais que as litigiosas e desordenadas! O evoluído, posto, como poderia parecer, na
posição de maior desvantagem porque até mesmo no campo econômico aceitou o
princípio de não-reação, acaba por não possuir inimigos e desse modo fica aliviado
do trabalho do ataque e da defesa que tanto acabrunha o mundo. Além disso, é
natural que o evoluído, tendo conquistado a sabedoria, evite as falhas a que a
ignorância leva e não trabalhe para a conquista de resultados efêmeros, mas
apenas das posições que, por serem justas, isto é, equilibradas, são as únicas
verdadeiramente resistentes e sedimentadas. Tudo isso mostra a grande influência
do espírito até mesmo na vida prática; mostra não ser o fator moral, no campo da
economia; precisamente o elemento insignificante que parece ser; mostra,
finalmente, de que maneira muito dos defeitos e insucessos de nossa economia são
devidos exatamente ao fato de desprezarmos esse fator imponderável.
Mas tudo isso não esgota o assunto. O dinamismo espontâneo ou o instinto de
operosidade e o maior rendimento, forçados pela inteligência e a honestidade, não
bastam para assegurar, em cada caso, estarmos providos quanto às necessidades
materiais. Quem, para servir o espírito, é constrangido a menosprezar as coisas
terrenas, sente não apenas a necessidade de consegui-las mais facilmente, com
menor fadiga e por acréscimo, mas também a de sempre consegui-las com absoluta
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
segurança. No cap. III deste livro classificamos os tipos humanos, desde o involuído
até o evoluído, em selvagem, administrador, espiritual, de acordo com o método de
aquisição por eles seguido: furto, trabalho, justiça. Se o mundo fosse de evoluídos,
já se teria alcançado a justiça social e, em conseqüência, a garantia de provisões
materiais. A solução, que agora devemos propor-nos, não deve ser essa de
realização que depende do futuro. O caso agora é bem diferente. O evoluído
constitui exceção, o homem evangélico vive, desarmado, em meio a indivíduos
armados até os dentes, e deve desinteressar-se da própria pessoa, embora, em
meio da mais feroz avidez. Então, que forças vitais o defendem e impedem a
destruição de seu produto mais perfeito? Respondemos: a Divina Providência. Trata-
se, na verdade, de imponderável que, por isso, escapa à sensibilidade grosseira do
involuído. Por esse motivo é muito raro o mundo notá-la, mesmo porque se trata de
força real, inteligente, que funciona segundo lei própria, de fenômeno sempre pronto
a verificar-se, desde que se apresentem reunidos os elementos determinantes. E
também isso é lógico.
Observemos, então, o funcionamento desse estranho fenômeno que resolve o
problema aparentemente insolúvel, dando ao homem desarmado a palma da vitória,
dando ao homem, na aparência mais falto de segurança, aquela segurança de que
todas as coisas humanas carecem. Tudo isso pode parecer excepcional e milagroso;
no entanto, para a Lei é lógico e espontâneo. Constitui, sem dúvida, total subversão
dos métodos humanos em voga, inconcebível para a psicologia dominante. Mas
essa psicologia está encerrada num círculo de ilusões, que exatamente a sabedoria
do evoluído tem a incumbência de desfazer e a evolução, de transformar. Este
argumento já foi aflorado muito de leve em A Grande Síntese, cap. LXXXVII: "A
Divina Providência". Mais tarde o desenvolvi no cap. XIII, sob o mesmo título, de
História de um Homem. Para lembrá-lo ao leitor, vamos resumi-lo agora.
O fenômeno, sem dúvida alguma, existe, é susceptível de experimentação e
influi até mesmo no campo dos efeitos utilitários, se o mecanismo das forças
resultantes é posto em ação no momento exato. Torna-se necessário, pois, antes de
mais nada, compreender a lei do fenômeno e expor as condições necessárias para
que ele se verifique. É lógico que tal não pode suceder com o método humano
desordenado e rebelde ou, seja, se não se verificarem os requisitos indispensáveis.
O universo é organismo de forças que obedecem apenas a mãos habilidosas e
sábias, e, cobrindo-se de trevas, se recusam a obedecer a mãos inábeis e rebeldes.
Necessário se torna, pois, haver compreendido a Lei e ter-se conformado com sua
vontade; quer dizer, é preciso haver neste caso compreendido a lei do fenômeno
para estar seguro de que, se for aplicada, fatalmente se verifica.
Quais são essas condições? Ei-las:
) Merecer a ajuda;
) Haver, antes de mais nada, esgotado as possibilidades das suas próprias forças;
) Estar, de acordo com suas condições, em estado de necessidade absoluta;
) Pedir o necessário e nada mais;
) Pedir humildemente, com submissão e fé.
Quando essas condições se realizam, a Divina Providência está em condições
de funcionar a favor de todos. Do contrário, o fenômeno não pode verificar-se. Desse
modo, não se pode falar em providência com relação aos malvados, preguiçosos,
ricos, cobiçosos, incrédulos, soberbos Manifesta-se ela e trabalha em favor dos
bons, trabalhadores, necessitados, morigerados, crentes humildes e de boa fé. Esta
é, pois, a primeira condição: merecer. Em alguns momentos da vida é necessário
sermos deixados sozinhos diante do obstáculo, para que aprendamos a superar as
dificuldades com o emprego apenas de nossos meios. Quando não merecemos
ajuda ou ela nos seria prejudicial, a providência que nos furtasse à prova necessária
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
a nosso próprio bem não seria ajuda, mas apenas traição. Nesse caso a ajuda, que
não falha, consiste em dosar a prova e diluir o esforço necessário, na proporção de
nossas possibilidades. Na prática, o que se pretende é transformar a Providência em
instrumento de nossas comodidades e desejos, ajuda desnecessária que nos
poupasse à fadiga de progredir.
Vamos ao segundo ponto. Quando quisermos pôr a Providência a serviço de
nossa preguiça, é justo que a Lei nesse caso se recuse a atender-nos ao apelo.
Deus, sem dúvida alguma pai amoroso, não é, porém, nosso escravo. Sua Provi-
dência jamais nos ajudará, se antes não houvermos feito tudo quanto estava em
nossas forças para aprendermos a lição. A Lei jamais sacrificará nossa felicidade
final em favor da efêmera vantagem do momento.
A necessidade absoluta constitui a terceira condição. Não se pode avaliá-la de
modo absoluto, igual para todos, porque depende do caso, do momento, da pessoa,
porque as necessidades individuais são diferentes e relativas, exatamente como as
fontes de que dispomos para satisfazê-las. Se, porém, a avaliação e a natureza da
ajuda são relativas, é certo que a Providência não nos provê do supérfluo, mas do
necessário, e isso para fazer-nos viver e não para cairmos na pândega. A lei do
mínimo esforço, a parcimônia, a proporção entre o esforço e o rendimento, tudo
participa de sábia economia da natureza, toda feita de equilíbrio e justiça. E ela, nem
avarenta nem pródiga, mas apenas parcimoniosa, concede criteriosa e
moderadamente quanto seja necessário para proteção e garantia da vida, da
continuação necessária à evolução, que é o seu objetivo. Se a Providência
prodigalizasse o supérfluo, ao invés de encorajar a vida, levá-la-ia ao ócio, que
conduz ao aniquilamento.
É preciso, pois, pedir com moderação e esperar apenas o que for justo. Nisso
consiste a quarta condição. Pedir o necessário para viver com simplicidade, a fim de
que o instrumento do corpo possa fazer o trabalho pedido pelo espírito e
indispensável para as finalidades da vida. Se, subvertendo a Lei, as colocarmos na
matéria e nos prazeres baixos, é natural que a Lei se afaste de nós e não nos ajude.
Para obtermos a ajuda, torna-se necessário não pretendermos mais do que temos
direito de pedir e havermos, antes de mais nada, aprendido a regra da temperança.
Não nos esqueçamos de que a Providência não passa de manifestação da justiça e
da bondade da Lei e de que nesse fenômeno tem plena vigência o princípio da
justiça e da bondade e não o da força, que nesse caso é inútil, nada consegue
senão sufocar o fenômeno.
É preciso, finalmente, pedir com submissão e fé. Estamos tocando no quinto
ponto. Devemos adquirir consciência da ordem divina e, ao invés de procurar torcê-
la conforme nossas conveniências do momento, devemos procurar pormo-nos de
acordo com ela. Em lugar de pretender mostrar a Deus o de que necessitamos e
como podemos ser providos, devemos colocar-nos, face às Suas diretrizes, na
posição de dependentes, de cegos ignorantes que esperam orientação, de filhos
obedientes e quem mais pode e mais ama. Devemos, pois, também crer e confiar,
isto é, ter através da prece a sensação dessa realidade estupenda ou, seja, a de que
não estamos abandonados e sós, mas existe nos céus o Pai, velando por nós e
provendo-nos do necessário.
Podemos perguntar-nos, agora: Quando é que, na prática, se perfazem essas
cinco condições? E por que maravilharmo-nos de que o fenômeno não se verifique?
Natural é que todo fenômeno possua regras especiais e absurda é a pretensão de
jogar sem conhecer as regras do jogo. Explica-se desse modo como em muitos
casos a Providência falha e não se manifesta. Não obstante, funcionava muito bem
nas mãos dos santos, que nela confiavam cegamente. Muitas vezes queremos
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colocar-nos no lugar da Lei. Então, se não logramos êxito, retorcemos o erro, que é
nosso apenas, e atribuímo-lo ao sistema, pondo em Deus a culpa da injustiça.
Primeiro, fechamos as portas para a Providência, impedindo-lhe a ação, e em
seguida lhe negamos a existência. Mas onde existe maior perfeição e bondade do
que no método que nos garante o necessário, garante porque nos é destinado e
nega apenas o que nos pode ser prejudicial? Somos acalentados por ordem justa
que nos quer bem e protege a vida. Dessa ordem benéfica e protetora participa a
Divina Providência. Trata-se de forças inteligentes e amorosas, prontas a socorrer-
nos, sempre à nossa disposição; basta apenas que saibamos manejar-lhe o
mecanismo. É lógico que esse antecedente se torna necessário em sistema
orgânico. Trata-se de forças exatas, enquadradas, automáticas como as leis físicas,
onipresentes, incorporadas nas leis da vida e, por isso, sempre prontas, necessária
e automaticamente, a funcionar, tão logo se verifiquem as condições de seu fun-
cionamento. Propiciar essas condições é espontânea ação nossa, independente da
conduta dos nossos semelhantes, das condições sociais dos tempos, dos sistemas
de justiça distributiva em voga. A Lei de Deus não esperou, para proteger a vida, o
advento da justiça social nem as modernas formas de previdência individual e
coletiva, mas, apesar disso tudo, deu ao homem liberdade de escolher a forma de
garantir-se contra a necessidade, forma que é independente de toda autoridade
humana, é justa e absolutamente segura.
Poder-se-á objetar que muitas e difíceis condições devem concorrer para tão
magro resultado. Respondemos: a Divina Providência não é seguro compulsório;
qualquer pessoa pode recusá-la sempre. Mas, então, é necessário colocar-se no
plano da incerteza, para sonhar mil e uma coisas, arriscar-se a nada conseguir e a
sofrer as desilusões normais da vida Não vivemos para gozar, mas para lutar e
progredir. Os desequilíbrios custam caro. Mas, dir-se-á, queremos riqueza. Pois
bem. Torna-se necessário, então, sentir o terror de vir a perdê-la, que é o tormento
dos ricos, e sofrer as respectivas ânsias e preocupações. Isso faz parte do sistema.
É natural que, quanto mais se sobe, os equilíbrios se tornem mais instáveis e as
posições menos seguras, isto é, que a segurança seja inversamente proporcional à
riqueza. Mas o involuído sente necessidade de experiências e por isso tenta a sorte
até mesmo no campo econômico; não precisa, pois, de segurança, mas de miragens
que o induzam a lutar e a sofrer nesse campo. No entanto, a Divina Providência se
funciona como método quase exclusivo do evoluído, método com que a Lei provê
apenas o necessário, e com absoluta segurança, ao homem espiritual que não pode
mais preocupar-se dos problemas materiais, já esgotados e superados por ele.
Eis a economia do evoluído, o modo com que resolve o problema das
necessidades materiais, eis como lhe é possível aplicar o método evangélico de não-
reação e aquela economia em pura perda, aparentemente desastrosa. Eis como
aqueles que se ocupam das coisas espirituais podem receber tudo o mais por
acréscimo. Estamos naturalmente num mundo diferente do mundo humano, em face
doutra psicologia, doutros métodos e princípios. Há outra objeção, porem. Do ponto
de vista humano, o evoluído, que se preocupa com as coisas espirituais, parece
indivíduo inútil, improdutivo, parasita que vive à custa dos outros, que trabalham
para ele. Onde está a justiça? A esmola é injusta apenas quando extorquida por
ociosos. Temos visto, porém, como o dinamismo e a operosidade são as qualidades
mais notáveis do evoluído. Em geral, ele trabalha demais, pois soma as fadigas do
espírito às necessárias para satisfação das necessidades materiais, ao invés de
substituir uma por outra. Logo, o próprio funcionamento da Divina Providência nos
mostra como as necessidades do evoluído são limitadas e modestos os pedidos que
faz. Que é que seus gestos significam, se os compararmos com os desperdícios
imensos impostos pela justiça, pelas guerras, pela cobiça e pelo espírito de
destruição do involuído? Finalmente, mesmo se o evoluído permanecesse ocioso, no
que diz respeito à matéria, e se ocupasse apenas de trabalhos espirituais, não dá,
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
só por isso, contribuição à vida? Para progredir, a vida não requer apenas atividades
economicamente lucrativas. O evoluído, desse modo, não é parasita; exerce função
e cumpre missão; assim, muitas vezes dá muito mais do que recebe. Não seria
preferível falar em desfrutamento do gênio e do santo por parte da sociedade? A Lei
não pode praticar injustiça, utilizando para isso da Providência. Serve-se, então, dos
dominadores da terra como de instrumentos seus e obriga-os a fornecer ao evoluído
o mínimo indispensável, de que ele se vale apenas para cumprir sua função social,
sem dúvida necessária. Mas quando se exerce determinada função, adquire-se,
perante a justiça divina, direito aos meios para poder continuar a cumpri-la. Assim,
todos são chamados a contribuir e a trabalhar para os objetivos da vida. Nos dias de
hoje, o evoluído constitui exceção e não há de, por certo, pesar na economia social.
Quando, porém, tornar-se maioria, então o advento da justiça social será fato
consumado, o homem terá adquirido consciência da Lei, e nova concepção da or-
dem dará a todo ser humano, naturalmente, a garantia do necessário.
XII
POBREZA E RIQUEZA
1
Deusa grega da Vingança e da Justiça distributiva, que reprovava todo excesso. (N. da E.)
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
baixas da vida e, assim, ela satura-se de mal. Tanto basta para torná-la detestável.
Trata-se de sensibilidade espiritual, isto é, depende do Deus que adoramos no
degrau mais alto da própria escala de valores. Quem venera as coisas do espírito
não pode suportar mais nada que por qualquer motivo as ofenda.
Por esses motivos o evoluído prefere a sua economia à do involuído, mais em
voga. Levamos em consideração neste livro os dois casos extremos, entre os quais
se coloca o caso intermediário do administrador e organizador honesto, que da
riqueza usa e não abusa, e não a transforma em mal, mas em bem. Esse tipo,
porém, ainda não é tão numeroso que possa ditar lei e tomar as rédeas da economia
humana que, no conjunto, é aquela acima descrita. Essa é a revolta pacífica do
evoluído, de acordo com o método evangélico da não-reação. Despreza quanto
pode a riqueza, embora compreenda e admire aqueles que, imbuídos do espírito de
pobreza e de honestidade, a empregam para o bem e não a possuem para
vantagem e desfrutamento egoísticos, mas para cumprimento de função social ou
missão. O evoluído muitas vezes até mesmo se mistura com eles, mas toca na
riqueza apenas por sentimento de dever, como peso que se carrega por amor de
objetivos mais altos e com absoluto desprendimento e desinteresse. Essa atitude é
tudo quanto precisamente o distingue dos demais. Enquanto estes, geralmente,
procuram avidamente a riqueza como fim em si mesma, o evoluído não a busca e,
se acontece possuí-la, a transforma em meio e a emprega em finalidades mais altas.
A terra e seus bens não se lhe apresentam sob a forma positiva de atração, mas sob
a forma negativa de repulsão; para si, o mundo não é mais lugar de conquista e de
alegria, mas de dor e trabalho missionário. Tudo quanto não se refere ao espírito
não lhe interessa, porque vive em função do espírito e não em função da matéria. E
para o evoluído representa vitória aquela mesma pobreza que causa medo ao
involuído e se lhe apresenta como derrota. A seus olhos essa pobreza assume
significado afirmativo e criador, sensação triunfal de alforria e poder, torna-se escola
de dominação, campo de exercícios heróicos. O espírito nutre-se dessas anulações
na matéria; isso é lógico quando se trata de processo de aniquilamento. Por isso
podemos assim balizar a sucessão desses momentos: "empobrecer, sofrer, refletir;
compreender, reconstruir, progredir". Assim os equilíbrios da Lei corrigem os
excessos humanos na vitória da matéria, invertendo as posições com a derrota
material, de que nasce a vitória no espírito. Este, na pobreza dos meios terrenos,
enriquece. O evoluído percebe esse fenômeno, adquire esse senso de
enriquecimento e não liga mais à imagem da pobreza a sensação de derrota, mas
de conquista, nem a de mal-estar, mas a de bem-estar. O Evangelho baseia-se na
lógica dessas inversões, que parece desapiedada e terrível, mas que é, na verdade,
simples e natural. Se, considerando-se o que o homem tem sido até hoje, toda
posse mais ou menos impõe a necessidade da guerra, torna-se evidente não poder
possuir coisa alguma quem, de acordo com o Evangelho, proclama o amor ao
próximo. Essa é a lógica do sistema, que de modo algum podemos negar. E o
próprio Evangelho nos mostra, na pobreza, as conclusões derivadas dessas suas
premissas. Entre Cristo e o mundo não há possibilidade de acordos. Os dois
sistemas são opostos e reciprocamente incompatíveis. Ou um ou outro. O espírito (o
evoluído) está colocado num extremo da vida humana; o mundo (involuído), no
outro. O primeiro quer vencer o segundo. Recusa qualquer coisa em comum, nada
aceita em comum, quer e deve ser pobre. Mas essa pobreza não é miséria, mas
rebelião dos ricos de espírito contra a miséria moral dos outros, pelo menos
enquanto e até onde a riqueza não for guiada pela sabedoria. O verdadeiro amor
evangélico não pode permanecer egoisticamente rico enquanto houver miséria.
Quem não compreendeu e escolheu essa pobreza não pode ser verdadeiro
sacerdote do espírito.
Disso tudo se pode concluir também que o problema da riqueza não é apenas,
como hoje se crê, distributivo, nem se o entendermos desse modo, deixa intactas
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
todas as cobiças humanas, que são as verdadeiras raízes do dano; nem se resolve
no plano econômico, em que hoje se coloca, e sim no plano psicológico e moral. Não
basta o advento da justiça social pela qual tanto lutamos em nossos dias. Torna-se
necessário construir também o homem. Á solução consiste em conquistar a
consciência que nos leve a fazer bom uso da riqueza, transformando-a de mal, a que
se reduziu, em bem. Enquanto não chegar esse dia, o evoluído poderá dizer: não
aceito, não me interessa, recuso o bem que vocês envenenaram. Repilo a forma de
luta que vocês adotaram e nos degrada. Para o evoluído a pobreza franciscana, ao
invés de utópica, representa dura conseqüência da conduta humana. não é atitude
negativa, mas atitude de vigilante espera; não é definitiva, mas transitória e será
superada quando, como todas as fases, sua função estiver esgotada e a evolução
torná-la desnecessária. Então, a riqueza, restituída à sua pureza, se tornará
aceitável exatamente como aquilo que exatamente é, quer dizer, como dádiva de
Deus.
Tudo isso pode causar espanto ao homem do nosso mundo, que não percebe o
valor das coisas do espírito com, a mesma intensidade com que a sente o evoluído.
Para este último, porém, a vida assume significado bem diferente. Sente, sem
sombra de dúvida, o perfume da pobreza a impregnar todas as coisas em que toca.
Percebe a beleza moral dessa pobreza, simples, honesta, laboriosa, confiante e
tranqüila, não dessa pobreza colérica e envenenada do mau, mas dessa agradecida
pobreza do justo. Em suas mãos ela espiritualiza-se e aureola-se de bondade e fé,
que a transformam em instrumento de ascensão. Desse modo a pobreza quase se
santifica e chama para junto de si a presença de Deus. Então, quem perdeu tudo
percebe que, de fato, ganhou tudo e o paraíso desce até si. E como quanto mais se
dá mais se recebe, a pobreza torna-se, então, meio de enriquecimento; do mesmo
modo, nas mãos do involuído a riqueza pode tornar-se meio de empobrecimento. E
agora, aquela que para o mundo significa miséria, podo tornar-se beatitude, como o
era para São Francisco. Não nos podemos doutro modo explicar-lhe a psicologia.
Poder-se-ia objetar que é censurável deixar de lado a administração da riqueza, que
no entanto, como produtora de bens, tanto poderia frutificar. Não. Cada um em seu
lugar A esse trabalho já se destinam os honestos administradores da terra (o homem
do 2º tipo) e esse trabalho lhes toca. Têm a função de reordenar o ambiente
terrestre e exatamente por isso é que são organizadores de coisas humanas. O
paraíso na terra constitui-lhes a meta e procuram laboriosamente prepará-lo. Mas o
evoluído (o homem do 3º tipo) deve desempenhar função mais alta: dar a esse
trabalho a orientação necessária. É precursor que intui, dá as grandes diretrizes do
espírito e indica-lhe objetivos sobre-humanos. Os olhos dos primeiros são analíticos
e míopes, aptos a verem as coisas próximas da terra; os dos últimos são sintéticos,
enxergam longe e podem ver as longínquas coisas celestes O objetivo final dos
primeiros está na terra e aqui o alcançarão, transformando-a de inferno em paraíso.
O objetivo final dos últimos está co1ocado no céu e o conquistarão, afastando-se da
terra para caminhar em direção a humanidades mais evoluídas, a pessoas de sua
raça.
Tudo isso pode causar estranheza ao homem de nosso mundo. Mas este último
é o termo derradeiro, o caso máximo. Trata-se de homem que compreendeu e vê o
funcionamento da economia da natureza, sabe que a vida é protegida e a Lei de
Deus o segue passo a passo para salvá-lo; sabe que a defesa não é confiada a ele,
mas àquela Lei todo-poderosa. Sabe que ela é boa e perfeita. Adquirida a
consciência de estado de fato tão maravilhoso, de sua vida desaparece toda
sensação de temor, que envenena as efêmeras vitórias humanas da força Ele sabe
que será provido, pois a Divina Providência é apenas um momento de todo o
sistema de economia do universo, em que toda vida, em razão do que ela custa, não
pode ser desperdiçada, mas deve ser utilizada em favor de finalidade adequada.
Sabe que lhe basta enquadrar-se no grande organismo, obedecer à Lei,
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
desempenhar dentro dele a própria função, fazer sua a vontade de Deus, para viver
em paz e em segurança. Quem o observa só por fora, julga-o pobre e se engana,
porque se o visse por dentro, haveria de compreender que é imensamente rico; rico
porque não possui mais os bens na periferia tempestuosa, sob forma caduca, mal
protegidos pelas garantias humanas, mas os possui no centro, em substância,
seguros, lá onde eles com justiça emanam do poder de Deus.
Quando chegamos a esse plano, divina beleza ilumina e aquece interiormente
até o ato mais humilde da vida. Tudo se torna, então, meio para comunicação com
Deus; tudo quanto obtemos nos vem de Suas mãos, até a esmola mais insignificante
assume as proporções de presente principesco feito pelo Senhor, presente que nos
fala d'Ele; qualquer ação nossa não se motiva em nossa vontade, e sim na de Deus
O homem desse modo se sente circundado de luz e ouve o universo responder aos
próprios anseios. Grandíssima experiência. Tudo quanto lhe chega às mãos vem por
meio de caminhos tão elevados que se transforma completamente, assume o valor
de presente divino. Então, até um pedacinho de pão assume o aspecto de prodígio,
adquire o sabor das grandes coisas da eternidade e do espírito, se torna excelente
porque o amor de Deus o tempera com a paz de espírito paradisíaca. Todas as
coisas parecem desmaterializar-se em significados profundos e o mundo transfor-
mar-se em paraíso. Poder-se-á sorrir amargamente, levando tudo isso à conta de
poesia e sonho. Não. Esse é o espírito do Evangelho; não poderemos compreender
esse espírito, se não houvermos também entendido tudo isso. É milagrosa essa
transformação a que ninguém poderá chegar sem que primeiro a si mesmo se
transforme; e, no entanto, trata-se de felicidade que muitos seres superiores
conseguiram.
Tudo isso, porém, não é apenas supremamente belo, vitória da estética moral,
mas também afirmação de poder espiritual. Atrás de toda aquisição, conseguida pelo
sistema em voga, está a força ou a astúcia, muitas vezes a própria avidez e o dano
do que foi vencido, e por isso a destruição e o ódio. assim também, por trás de toda
aquisição conseguida por esse outro sistema está a honestidade, a bondade, a
justiça e, por isso, paz e amor. Atrás de qualquer aquisição aparece a figura de Deus
e palpita a Lei protetora que amorosamente aumenta as dádivas da vida. Das alturas
celestes Deus desce até nós e torna-se nosso companheiro e ajuda-nos em nossas
necessidades. Manifesta-se, então, presente e ativo em tudo quanto está dentro e
fora de nós. Sua Lei nos fala e trabalha por nós. O infinito desce à nossa re-
latividade, que desse modo adquire sentido de eternidade e de absoluto. Toda a
nossa vida, como conseqüência, se eleva e aumenta de poder. Torna-se ação
humilde em que ressoa o pensamento de Deus e se cumpre a Sua vontade. Essa
vida humilde, transformando-se de rebeldia em função, se harmoniza no
funcionamento orgânico do universo; nele essa vida não é mais a ação isolada de
rebelde, mas fato relacionado com dinamismo esgotado, com o qual se comunica,
dando e recebendo. Nossa vida pode atingir, então, as imensas fontes de energia e
de sabedoria que outra coisa não querem senão entregar-se. Apenas nos tornemos
dignos delas, Deus nos aumenta de súbito o poder, de cuja conquista o verdadeiro
caminho é o merecimento. Isso de acordo com a lei de justiça e como parte da
economia da natureza que quer a todo valor renda, quando tiver sido
verdadeiramente conquistado. Não há poder humano que iguale esse poder. Eis a
grande defesa do evoluído que se reduz à pobreza e abandona as armas de ataque
e defesa: ter Deus consigo. Então se torna imenso. Nossa respiração reproduz a do
universo, com a qual se confunde. Que importa, pois, que por fora sejamos pobres,
se por dentro somos ricos? Quanto mais pobres são esses que, ricos por fora, por
dentro nada possuem! Quando somos vazios, permanecemos insatisfeitos em meio
a seja qual for a riqueza; quando, porém, estamos plenos da graça divina, em meio à
miséria mais completa nos sentimos abastados e satisfeitos. Eis a perfeita alegria
franciscana, concedida apenas aos ricos de espírito.
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
Esse conceito e essa posição da vida finalmente nos aparece sob o aspecto
utilitário. Desse modo, a vida adquire alcance imenso, que toca as fronteiras da
eternidade, torna-se interminável sucessão de conquistas, de felicidade crescente,
de contínua ascensão em resposta ao chamamento divino. Mas, querendo limitar a
vantagem às necessidades materiais, eis a Divina Providência pronta a ajudar,
desde que haja merecimento e necessidade. São essas as duas condições
fundamentais de seu funcionamento. O evoluído, que compreendeu a lei do
fenômeno, não lhe deposita confiança inutilmente, porque tudo obtém com
segurança. Sabe que, em face do merecimento e da necessidade, o homem faz jus
ao auxílio, ato da justiça divina com que o justo pode e deve contar. Por isso, obtém
por direito e por justiça e não a título de esmola imerecida. Por isso não é a pobreza,
mas apenas a baixeza, que arranca do homem a dignidade de filho do Pai. A
generosidade da Providência, mesmo assumindo a forma de esmola, sempre
constitui comunhão da alma com Deus e, por meio dela, o benfeitor humano eleva-
se ao papel honroso de instrumento de Deus.
Em nossos dias torna-se muito difícil fazer com que compreendam o sentido sutil
dessas vantagens imateriais. No entanto, até mesmo em relação aos efeitos da
estabilidade e duração, da segurança e gozo pacífico, não é indiferente que as
nossas aquisições sejam ou não dádiva de Deus e os nossos bens se elevem na
força ou na injustiça, estejam saturados de ódio ou de amor. Se impregnarmos a
riqueza com as forças do mal, estará como vimos relativamente ao mal, fatalmente
condenada. A grande revolução consiste em substituir a revolta pela obediência à
Lei, a desordem pela ordem, o desequilíbrio pelo equilíbrio, os choques estúpidos e
dolorosos pela harmonia e pela lógica. Essas afirmações espirituais são comuns à
vida prática, em que repercutem. A solução dos males que atormentam nosso
mundo não vamos, é lógico, encontrá-la no retorno aos esquemas do passado,
impotentes para solucioná-los, conforme bastantes vezes verificamos
experimentalmente. Torna-se necessário basearmo-nos em princípios diferentes,
que se encontram nos antípodas dos precedentes e fazê-los aterrar com métodos
totalmente diferentes dos atuais. Nisso consiste a nova civilização do espírito. Trata-
se de adquirir consciência da Lei, para em seguida enquadrar-se nela e agir de
acordo com ela. Trata-se de incorporar em nós mesmos o senso da Lei. Não basta
explicá-la; é necessário que nos coloquemos em condições de senti-la. A razão é
formação primária, exterior, de superfície e não satisfaz. A consciência é formação
mais profunda, interior, que não faz cálculos, mas intui e sente. Essa consciência
adquire-se com a dor. De outro modo não se pode construir, em sistema de
liberdade e experimentação, isto é, de possibilidade de erro e, por isso, de dor. Não
basta explicar e compreender racionalmente. A custa de muito trabalho é que
conseguimos nossa própria maturação, porque nada se obtém senão através do
sofrimento. Só assim o homem pode passar da fase de involuído à de evoluído, da
posição de inconsciente à de consciente. Então, compreende que a vida tem
elevadíssimos objetivos e ele, exatamente pelo fato de que existe para atingi-los,
tem direito à vida. Compreende, agora, aquilo que hoje, confiando em si mesmo,
demonstra nem sequer imaginar, isto é, que, por força da própria estrutura
teleológica de todo o sistema do universo, sua vida deve ser necessariamente pro-
tegida.
XIII
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
PROBLEMAS ÚLTIMOS
9
Se queres ser perfeito, vai e vende todas as coisas. (N. da E.)
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
homem, isto é, em não agir contra a Lei, mas em conformidade com ela. Isso
significa trabalhar do lado do bem, afirmativo e construtivo, e não do lado do mal,
negativo e destruidor. Viver em harmonia com Deus significa construir a si mesmo e
à própria felicidade. Viver em desarmonia com Deus e revoltado contra Ele: significa
autodestruir-se e criar a própria dor. De acordo com a Lei de dualidade, cujo estudo
aprofundaremos no fim deste volume, o universo é bipolar, cortado e reunido nessas
duas partes opostas, inversas e complementares. As correntes de força que o
constituem são de dois tipos de natureza contrária. Trata-se de dois dinamismos
opostos, que, se aparentemente se excluem, na verdade se somam, e, se parecem
entrechocar-se, na realidade colaboram. O homem pode escolher a corrente
positiva, ascensional, que progride em direção ao bem e à alegria, ou a corrente
negativa, descendente, que retrocede para o mal e a dor. Por mais que o homem se
projete para fora de si mesmo, de fato sempre trabalha em proveito próprio. Se ele
desencadear as forças do mal, embora crendo fazê-lo contra outros, desencadeá-
las-á em sua própria direção, contra si mesmo Então, com as próprias mãos
construirá triste destino para si, maculará o próprio ser, envenenará cada vez mais a
própria vida; e, perseguido por seu passado, lhe será cada vez mais difícil parar e
finalmente se precipitará no abismo da autodestruição. Assim, o malvado, que
preferiu regredir, por si mesmo se liquida no tormento do inferno. Agora não estamos
mais falando, como fizemos, do involuído como primitivo ainda não desenvolvido,
inferior apenas no que diz respeito à sua natural posição na escala evolutiva e não
porque a maldade o tivesse degradado; estamos falando é de quem se tornou in-
voluído porque espontaneamente regrediu e por isso é muito mais culpado; estamos
falando do homem que não é mais besta, mas deseja continuar sendo besta. Quer
dizer, trata-se do caso, muito mais raro, do malvado típico. Este se separou e cada
vez mais se afasta das fontes da vida, de Deus e, como não pode sobreviver sem
Deus, definha e morre. Morte verdadeira, morte desesperada. Contudo, isso é
lógico. Se o homem é livre o suficiente para construir o próprio destino, todavia não
pode nem é livre ao ponto de tornar-se capaz de destruir a Lei, de tornar-se árbitro
da vontade de Deus. Se pode escolher, e até mesmo escolhe, o caminho do mal,
isso é assunto particular seu e não pode impedir a atuação da Lei que ele não pode
dominar. As conseqüências de seu modo de agir somente recairão sobre si mesmo,
enquanto ele, no fundo, continuará sempre a obedecer aos princípios vitais e a servir
o bem. Apenas para si mesmo pode semear desordem, alimentar o mal; apenas pa-
ra a Lei pode ele trabalhar em sentido destrutivo. O mal não possui o poder de
destruir o bem, mas apenas o de destruir a si mesmo. É absurdo que a negação se
afirme, vencendo; portanto, também é absurdo que se conceda ao malvado o
afirmar-se vencendo o bem, e não apenas o demolir-se a si mesmo. Quando no
harmônico dinamismo universal se forma esse turbilhão de impulsos desordenados,
então as forças vitais, disciplinadas e compactas, cercam e isolam o campo de
forças que lhes é contrário e não descansam enquanto não o eliminam, enquanto o
campo rebelde não é por elas pacificado ou aniquilado. Ao passo que, para quem
está em seu interior, o sistema é protetor, assume caráter ofensivo para quem dele
foi expulso. Como acontece no organismo físico, antes de mais nada as forças
defensivas tendem a eliminar a falha por meio da reação e a curar o mal com o
remédio da dor. Se isso não for possível, não ajudam mais, ausentam-se dessa
forma de vida e, indiferentes ou inimigas, abandonam o ser ao aniquilamento. No
que diz respeito ao rebelde, a reação da Lei é negativa e consiste em afastá-lo das
fontes da vida. A transgressão produz a contração automática das forças do sistema
e dele expulsa o rebelde. Assim, repudiado pela vida, torna-se ele abandonado fora-
da-lei, a quem nada mais resta senão desagregar-se e morrer. Deus nega-se aos
malvados que o negam e, crendo negar a Deus, se negam a si mesmos.
Pelo contrário, quem se lançou e fundiu na corrente oposta será
temporariamente atormentado pelo mal, mas o caminho por ele escolhido o leva
natural e fatalmente em direção à felicidade; enquanto isso, o malvado poderá ser
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
feliz por algum tempo, mas seu caminho desemboca natural e fatalmente na dor. As
duas posições são inversas. Para o bom, a dor constitui a exceção transitória, a
alegria é a meta e a regra geral. Para o malvado, a alegria significa exceção
transitória e a dor representa a meta e a regra geral. O justo, embora à custa de
fadigas, constrói para si feliz destino; embora sofrendo, eleva-se rumo ao bem,
constrói no seio de Deus. Está preso às fontes da vida e, quanto mais progride, mais
se lhes avizinha, nelas se nutre e assim vive de modo cada vez mais intenso. Como
as forças do sistema fecham as portas e expulsam o rebelde, assim também as
abrem para quem colabora com elas; admitem-no em seu seio, confiam-lhe funções
e poderes, põem-lhe à disposição os seus próprios tesouros e cumulam-no de bens.
O primeiro é abandonado; o segundo, nutrido; o primeiro é expulso; o segundo,
admitido naquela comunhão, chamada Divina Providência, em que se encontram as
fontes da vida e a economia da natureza. Tudo isso até que ele vença o mal, a dor,
a morte. Assim, enquanto o malvado se precipita na autodestruição, o bom ascende
para a imortalidade. Então, o homem se anula, mas em outro abismo; o anulamento
se verifica da mesma forma, porém em sentido inverso, isto é, não mais como morte,
mas como vida, não por autodestruição, mas por fusão na divindade. Os dois
anulamentos se verificam nos dois extremos opostos do ser, nos antípodas do
binômio do universo. Assim, todas as forças do mal serão autodestruídas e todas as
forças do bem haverão retornado a Deus. Todos terão atingido a meta que
desejaram e. os impulsos, livremente desencadeados pelos seres, terão concluído a
sua trajetória. E, uma vez que os princípios estabelecidos por Deus produziram
efeito, o imenso oceano do dinamismo universal repousará tranqüilo, até que, com
novo desequilíbrio gerador (como a luta entre o bem e o mal), depois da fase de
repouso e paz, isto é, de dinamismo em repouso ou latente (o mal absorvido pelo
bem), até que o motor-não-movido inicie nova fase de atividade e luta, quer dizer, de
dinamismo atual.
Todo o universo gravita em redor de Deus e aos poucos acabamos por nos
fundir n'Ele, se escolhemos o caminho da ascensão. Por outro lado, se escolhemos
o caminho que desce, apenas podemos acabar na destruição, porque nos afas-
tamos de Deus, única fonte de vida. O homem que involui despedaça os vínculos
vitais que o ligam ao divino; o homem que evolui os estreita e reforça. Este caminha
em direção da luz, aquele se precipita nas trevas; o primeiro aproxima-se do centro
do sistema de forças, que é também o centro do poder e da vida; o segundo afasta-
se do centro para a periferia, onde há exaustão e morte. Um se dirige para o
conhecimento; o outro, para a ignorância. A ascensão significa construção de
consciência; a queda destruição de consciência. A consciência conduz à ordem, à
adesão à Lei; a inconsciência conduz à desordem, isto é, à rebelião. O livre arbítrio
representa a fase da formação da consciência e, portanto, fase de transição, que
existe para ser superada apenas se atinja o objetivo. Ou o mal se transforma em
bem ou se destrói. Assim, a liberdade ou finalmente adere e obedece à Lei ou o
rebelde acaba sendo eliminado por autodestruição, tão logo termina a experiência
que lhe motivou a concessão, porque necessária à livre formação de consciência.
Em suma: há unicamente um senhor, Deus - o bem; e, não obstante a liberdade, só
se torna possível seguir este caminho, o que vai a Ele, caminho que é também o da
felicidade. A liberdade humana, relativa e limitada, não pode, pois, ultrapassar os
limites impostos ao homem para seu próprio bem; instrumento formador de
consciência, a liberdade deve agir nesse sentido ao invés de desmandar-se em
atitudes de inconscientes e desordenar a ordem das coisas. Essa liberdade
enquadra-se e canaliza-se de tal modo que ou caminha em direção a seu objetivo ou
se destrói. Quem regride para a inconsciência perde a faculdade de compreender e
perde, ao mesmo tempo, a liberdade Quem progride em direção à consciência
também a perde, porém como fusão na vontade da Lei.
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
XIV
CONSEQÜÊNCIAS E APLICAÇÕES
ascende tende sempre mais a substituir sua vontade isolacionista pela divina
vontade universal; quem regride é levado cada vez mais a substituir a divina vontade
universal por sua vontade isolacionista. O primeiro cresce sempre mais e se
agiganta; o segundo se comprime em si mesmo, diminui e se asfixia. Mas em ambos
os casos o estado de livre arbítrio tende a anular-se, ou no determinismo do sistema
do espírito, pela fusão consciente na vontade de Deus, ou no determinismo do
sistema da matéria, pela obediência inconsciente do cego à vontade da Lei.
Antes de passar a outros argumentos, vejamos alguns corolários do capítulo
precedente. A civilização materialista atual entra de novo no sistema de forças da
matéria. Seu termo final, implícito no sistema, é a autodestruição. Tamanho
progresso econômico e material deverá, pois, acabar fatalmente na autodestruição,
como aliás está acabando. As verdades que a ciência descobre são certas, pois não
passam de verdades da lei. Errada é, isto sim, a direção seguida pela ciência nas
pesquisas; errado, o método utilitário com que a ciência as aplica. O pecado capital
dessa ciência consiste em dirigir-se à matéria ao invés de ao espírito, em querer
substituir Deus pelo eu, em pôr-se na posição de presumida independência da Lei e
de revolta contra ela. Trata-se, pois, de progresso às avessas, progresso que nega
e, por isso, negativo. Depois de tudo quanto dissemos, as conseqüências tornam-se
evidentes. Esses sistemas de forças nos tolhem completamente. O homem acredita
realizar grandes conquistas porque desvenda segredos da natureza e em seguida
sabe desfrutá-los. A posição da ordem fica nesse caso subvertida. O homem
acredita que desse modo acumula poderes e se torna senhor da vida. Não. Trata-se
de poderes de rebelde; apenas podem levar à autodestruição. O homem, hoje tão
orgulhoso de si mesmo, com essa ciência sem sabedoria não passa realmente de
elemento expulso do sistema de forças da Lei, de isolado, de abandonado por Deus,
de indivíduo posto fora das fontes vitais. Seu grande edifício lhe cairá em cima, não
porque deixe de ser grande e belo, mas apenas por causa da direção errada em que
o construíram. A lei, destruirá a ciência rebelde que a negou e a civilização criada
por essa ciência. Esse é o termo fatal do mundo de hoje. Por isso, nova e verdadeira
civilização somente das ruínas dele poderá nascer, depois dele ser destruído, não
podendo ter por fundamento senão princípios completamente diferentes. Assim, a
nova civilização do 3º milênio poderá apenas ser a civilização do espírito.
Ainda podemos compreender algo mais. A Lei reage contra quem a transgride,
expulsando-o de seu sistema de forças (aliás grandemente protegido para quem
nele se refugia) e o transforma em abandonado por Deus. Assim, o homem
permanece fora, isolado, à mercê das forças opostas ou, seja, do mal. Eis por que o
erro e a culpa, significativos de desordem contra Lei e, por isso, de expulsão e
abandono, causam dor, significativa de regressão. Nas páginas precedentes
pudemos observar como e por que a Lei reage, isto é, a forma e o motivo dessa
reação de que antes não se podia explicar a relação com a dor. A Lei, quando
alguém a transgride, expulsa da sua ordem e da sua ajuda o transgressor; nega-lhe
tudo, o conhecimento e o poder, a proteção e o alimento. Essa a razão por que todo
golpe contra a Lei constitui golpe que o rebelde inflige a si mesmo, autopunição, dor
por ele sofrida. Eis por que encontramos a dor no caminho da involução, caminho de
rebeldes. Eis por que desordem, rebelião, inconsciência, erro, culpa, dor e queda se
relacionam. O universo é criação contínua e se mantém apenas em virtude dessa
criação. Ela deriva de dinamismo central, inserto na intimidade das coisas,
profundamente ligado ao universo e a Deus, em que se situam as fontes da vida.
Tudo isso dá nascimento a sistema de forças tendentes a reconstruir continuamente.
Quem é posto fora desse sistema porque se rebelou contra ele, ou não é mais
alimentado por essas forças criadoras ou ainda recebe pequena quantidade de
alimento, isso quando não se rebelou completamente e proporcionalmente à sua
obediência residual. A verdade, porém, é que por esse caminho o rebelde caminha
para a morte. Eis por que o rebelde está automaticamente condenado à
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
autodestruição e com suas próprias mãos se colocou fora da vida. Deus, a Lei, a
Ordem significam vida; Satanás, a rebelião, a desordem significam morte. Desse
modo esgotamos a análise do problema do bem e do mal, levando-o até à sua
conclusão. Assim, observamos racionalmente, de um lado as terríveis e automáticas
conseqüências a cujo encontro vai quem escolhe o caminho que se afasta de Deus
e, doutro lado, como a verdadeira felicidade se torna possível e nossa herança
natural e de que modo essa felicidade apenas pode residir na consciente e ativa
obediência à Lei. Tudo se reduz a adquirir a consciência dessa Lei e a superar a
ignorância, tudo se reduz a compreender coisa tão simples e lógica, no entanto, ou,
seja, que Deus apenas pode querer, e quer mesmo, nosso bem. Se o homem não
fizer tão simples descoberta, todas as maravilhosas descobertas científicas hão de
submergir na destruição. O grande mal, que nos engana e trai, consiste nessa
ignorância, a iludir-nos com miragens, mostrando-nos a felicidade na revolta,
exatamente onde não está nem pode estar. Em que se cifra o maior desejo do
homem, senão na sua felicidade? Qual o maior desejo de Deus, senão a felicidade
do homem? Só a ignorância humana a respeito do pensamento de Deus pode tornar
divergentes duas vontades que tendem ao mesmo objetivo. Se lutam, é exatamente
porque desejam ansiosamente abraçar-se e unir-se. Por isso vivemos na
experimentação e na dor. De fato, através de provas e mais provas, se adquire essa
consciência em que consiste a única solução do problema.
Apliquemos ao atual momento histórico tudo quanto dissemos. Nossa civilização
materialista, se considerarmos os princípios que lhe deram origem e lhe dirigem o
desenvolvimento, sofre agora o inexorável processo final de autodestruição. Significa
tentativa de instaurar o reinado humano da matéria, sem e contra o reinado do
espírito; de substituir Deus pelo eu; de estabelecer ordem humana, em que só o ho-
mem dá ordens, em lugar da ordem divina, em que, não o homem, mas apenas a Lei
dirige. Foi ato de revolta e agora vão-lhe sendo eliminados os resultados. Nessa fase
a nota dominante é a destruição causada pela guerra, com que a técnica, primeira
conquista da civilização, destrói a própria civilização. Isso é lógico e fatal. Hoje Deus
abandonou o homem ao destino que ele quis preparar para si mesmo. Deus lhe diz:
"Você pensou que sabia agir e quis agir sozinho. Agora você vai fazer isso até o fim.
Você é livre, mas responsável. Faça experiência. Você há de compreender à sua
custa". Hoje o homem está perdido e abandonado no meio de cataclismos mundiais,
em pleno oceano de forças incompreensíveis para ele e sem a capacidade de
conduzir-se deste ou daquele modo. O poder que possui serve-lhe apenas para feri-
lo. Parte da negação e da dúvida e chega à inconsciência e à destruição. A dor
constitui a primeira conseqüência do sistema que se move em sentido involutivo,
afastando-se das fontes vitais. Essa dor, que acreditávamos saber dominar, acabou
sendo o verdadeiro resultado atingido; e a felicidade (tão seguros estávamos de
consegui-la!) transformou-se em miragem. A subversão do sistema produz
resultados contrários. Hoje as forças da Lei devolvem ao homem os golpes que dele
receberam. A dor, porém, não significa vingança de Deus, mas apenas reação
salvadora, dirigida pelo intento de reconduzir o homem à estrada que há de levá-lo à
felicidade. Como não compreendeu e não seguiu espontaneamente o caminho certo
e gozou da liberdade de experimentar o caminho errado, agora o prendem e o obri-
gam a palmilhá-lo à viva força. A dor constitui espécie de violência indireta contra
sua liberdade; o determinismo da Lei, absolutamente desejoso do bem, é que pelo
bem do homem executa essa violência. E tentativa honesta de salvamento com que,
estamos vendo, antes de ausentar-se. completamente, abandonando o rebelde à
autodestruição, as forças do sistema continuam presentes, mas sob forma negativa,
e procuram, exatamente como dissemos, com a reação sanar a falha e curar o mal
pelo emprego do remédio da dor. Assim, aquilo que à luz da psicologia corrente
parece derrota e falimento constitui o mais útil trabalho realizado neste ciclo
histórico, pois representa a obra de arrependimento, de retificação, de nascimento
de consciência e sabedoria, obra saneadora dos erros cometidos. Dor
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
Este livro foi escrito em meio dessa tempestade, nessa atmosfera apocalíptica,
nessa hora trágica em que o mundo desmorona e se recompõe. Não poderia nascer
senão nesse terreno e nesse momento. Enquanto o pensamento se inflama, a alma
geme; os próximos bombardeios põem vibrações no ar, as cidades se reduzem a
escombros, a civilização vacila, a propriedade torna-se insegura vivem somente na
saudade a segurança do lar e a vida civilizada. A morte passa e torna a passar por
perto, sem deter-se ainda. Deus desce até perto de nós e nos fala É o momento
sublime e terrível das grandes maturações. Cada vez mais o mal se encarniça e se
torna cego em orgia de ferocidade; e cada vez menos sabe o que faz; e o bem,
tranqüilo e tenaz, enquadra a desordem e, como sabe o que faz, espera e modifica
os resultados. As destruições da guerra são a força que o mal momentaneamente
aplica a serviço do bem. A Lei conclama os inferiores a funcionarem como
instrumento de dor. Mas a dor tem capacidade criadora e a sua atual presença entre
nós, e em proporção assim tão grande, prova a iminência e a amplitude da
transformação do mundo e constitui o precedente necessário para gerar nova
civilização. Nas mãos da Lei tudo isso se reduz a severa verificação e, em seguida,
a extraordinária progressão da vida rumo a futuro melhor. Contra todos os
negadores, o espírito, para explodir, faz pressão de dentro para fora. O mal pode
suicidar-se; não pode, porém, destruir o eterno e divino impulso criador. Nossa hora
exige renúncia, liberação e desenvolvimento. Ascensão, através da dor.
Deus tira os bens das mãos de quem os conquistou e não sabe usá-los, tanto
assim que de seu emprego só lhe resultam danos e nenhuma vantagem. E concede-
os novamente apenas quando houver aprendido a utilizá-los. O homem, então, deve
reconquistá-los com ânimo novo, de modo a transformar o dano em vantagem.
Assim, a pobreza sucede à riqueza. É lógico, e até mesmo constitui benefício quem
faz mau uso de determinado meio adorando-o como se fosse um fim, perdê-lo e ser
reconduzido à ascensão, único e verdadeiro objetivo da posse. É também lógico e
justo que apenas os dignos possam dispor dos bens e só os amadurecidos possam
mandar e dirigir. Quem a Deus antepõe os ídolos acaba sendo expulso da vida.
Todavia, quem está com a Lei está com a vida. Pois bem. Aproxima-se a hora da
transformação do mundo. O super-homem pode nascer apenas de lutas e dores
assim titânicas. Será a transformação do herói da matéria, do super-homem
nietzscheano. Mostrar-se-á valoroso na prática do bem, na capacidade de dar, de
amar, ao invés de mostrar-se endurecido no mal, na agressão, no ódio. A bestial
virilidade do homem, no plano físico asfixiante da guerra, se refinará e aumentará de
poder na virilidade mais apurada do homem no plano espiritual. A luta não se travará
mais por causa da seleção animal do mais forte, seleção em que ainda alguém crê,
mas em favor da seleção do mais justo e consciente; as guerras e as vitórias serão
diferentes, baseadas em princípios diferentes e conduzidas também com métodos
diferentes. As batalhas do homem futuro serão bem diversas. Esse homem será o
soldado da paz que substituirá a guerra do ódio pela guerra do amor, muito mais
difícil e profícua. Que consciência, organicidade e poder espiritual deverá ele possuir
para saber vencer sem ódio, e sem armas, perdoando e dando! Espiritualmente
falando, nossa sociedade assemelha-se a campo inculto, a bosque intrincado e
selvagem. Torna-se necessário transformá-lo em plantação racional e de rendimento
intensivo. Precisamos de em todo o campo em que existe o caos introduzir a ordem
e fazê-la substituir a desordem; isso, porém, com métodos diferentes dos de
domínio, nos quais todas as diversificada tendências humanas se igualam. É preciso
fazer que os outros compreendam e sintam, por livre convencimento e paixão. Para
todos nós a dor atual constitui grande escola de maturidade. Manifestam-se
sistemas substanciais, e não sistemas formais; agimos mais por vias internas e
espontâneas do que por vias coativas e externamente enquadradas. Não adianta
mudar nomes e programas. Importa, isso sim, o senso da vida e a motivação di-
retora; importa operar na substância e fazer o homem. A consciência coletiva não
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
passa de frase sonora, mas sob ela se esconde quase sempre apenas a
inconsciência coletiva. O tufão limpou o terreno. Vamos, agora, ará-lo, semear, tra-
tar, fazê-lo produzir. O ódio destrói. O amor deve reconstruir. Essa é a linha de
desenvolvimento de nossa época Primeiro, a paixão; depois, a ressurreição. O
involuído esgotou sua missão. Agora chegou a vez do evoluído. Os amadurecidos
são chamados para o trabalho e, mais do que nunca, agora sua vida se transforma
em missão. Esgotaram-se as vãs tentativas dos experimentos materiais e verificou-
se que os expedientes atuais não resolvem o problema. Nada mais lógico; pois, que
agora, a título de reação e compensação, e por meio de expedientes de tipo oposto
se inicie outra qualidade de experimento, o do espírito.
Apenas começamos a caminhar rumo ao bem e à sua realização na terra,
assalta-nos o pensamento de que talvez se trate de utopia. Isso naturalmente
acontece porque nos afastamos da dura realidade da terra e sabemos consistir o
objetivo da evolução justamente nesse afastamento. Vimos que o mal pode constituir
grande obstáculo, terrível resistência e, no entanto, o bem é o verdadeiro e definitivo
senhor. A realidade quotidiana do mal desmente a aparente utopia do bem;
esconde, como véu, a verdade mais profunda, esconde-a dos violentos e até mesmo
dos astutos; não a esconde, porém, dos justos. A estrada é longa; mas a ascensão,
fatal; e o mal não prevalecerá. Nem a insipiência, nem a traição, nem o erro, nem o
abuso, nada pode deter a maré montante do progresso. No sistema se prevê que
toda queda e todo mal tem remédio. As multidões são certamente ignorantes e
cegas e sujeitas àquilo a que pode reduzir-se qualquer governo inepto, isto é, a
serem esmagadas pela força e exploradas pela astúcia. Mas os povos se iludem
quando crêem que a orientação necessária possa ser-lhes dada pela liberdade dos
chefes, ao invés de provir de consciência coletiva; e esta os povos podem conquistar
apenas à custa do próprio esforço e através de duras provações. Os povos, como os
indivíduos, devem aprender por si mesmos, por meio de seus erros e dores. Toda
nova experiência política apenas serve para passarmos cada vez mais de estado de
inconsciência a estado de consciência coletiva Todavia, no fundo da atual
inconsciência se percebe o sentido da vida e obscuro instinto que, embora
confusamente, indica às massas o caminho certo e lhes confere a capacidade de
responder às vozes da verdade; mas isto, se forem verdadeiramente sinceras; e o
evoluído, que vive cumprindo missão na terra, mesmo à custa do próprio sacrifício
souber gritar bem alto essa verdade. A iniciativa da ascensão pode ser sua apenas.
Todos os valores humanos vão sendo continuamente explorados e subvertidos em
favor de vantagens pessoais. A custa do próprio sacrifício deve o evoluído repô-los
no lugar certo, restituir ao homem tudo quanto lhe roubaram, opor-se, com o poder
do vidente, à força bruta e, com a honestidade, lutar contra a exploração.
Mas o futuro não depende apenas dos homens de boa vontade. Preparam-no as
leis da vida. A História é escrita por elas e não pelos líderes que aparecem em cena,
e que constituem meros instrumentos de quem mais sabe e muitas vezes mais
obedecem do que comandam; apenas desobedecem ou se tornam inúteis, a Lei
liquida-os, retirando-lhes a função a eles confiada. Os homens tão-somente
exprimem forças da vida, que se dirigem a objetivos muitas vezes incompreensíveis
para eles. Quando soar a hora da plenitude dos tempos, os amadurecidos ouvirão
dentro de si os apelos da vida, se sentirão galvanizados e fortalecidos e hão de ver
que o imponderável os impele à ação. Assim, a Lei, apelando para o íntimo de cada
um deles, chama um por um os instrumentos da ascensão, os desperta e os põe em
função. Chega a vez dos involuídos destruidores, convocados nas horas negras da
violência, e chega também a vez dos evoluídos construtores, chamados nas horas
luminosas do sacrifício. Estes e aqueles imperceptivelmente se atraem e, quando
sopra o vento que os maneja, se confundem, cada qual com seus iguais, para somar
esforços. Vimos e continuamos a ver a hora dos primeiros, que deverá contudo es-
gotar-se. Para refazer o equilíbrio da vida, vai chegar a oportunidade dos evoluídos.
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
XV
transmitir, acostumado como está a vibrar apenas sob as formas mais grosseiras da
matéria. Sua vida prende-se estreitamente ao corpo e o involuído, para sem ele não
permanecer morto, busca-o de novo por ocasião de novo nascimento físico, como
única forma de vida. Ao contrário, o espírito, esclarecido pela evolução, superou os
meios sensoriais e lhes despreza a pobreza; tornaram-se-lhe mais os meios de seu
aprisionamento que de sua manifestação; são agora insuficientes para saciá-lo;
quando morre, perde-os sem amargura e não os procura de novo por ocasião de
novo nascimento físico em nosso mundo. Quem se tornou mais sensível,
espiritualmente falando, dá naturalmente muito menor valor ao mundo sensorial.
Também como estrutura biológica o evoluído difere do involuído, e não apenas do
ponto de vista moral e social. O involuído representa centelha espiritual ainda mal
acesa, envolta por densos véus, encerrada em envoltórios de trevas e, por isso,
centelha ainda fraca e rudimentar perdida na enorme casa do corpo. O evoluído, ao
contrário, representa centelha de incêndio, que queima os véus e funde os
envoltórios da forma; por isso, é poderosa e complexa unidade espiritual angustiada
na casa do corpo. Da vida físico-sensorial o primeiro receberá, assim, alegre senso
de expansão e o segundo, senso de dolorosa compressão; e onde este há de sentir-
se vivo e flamante, o outro olhará emudecido e sem capacidade de compreender. A
vida é totalmente diversa, embora a forma externamente visível seja a mesma e nela
muitas vezes se baseiem os juízos humanos e as leis sociais. A vida pode ser. para
quem vale menos muito mais cômoda e bela do que para quem vale mais.
Hipertrofia espiritual e excessivo desenvolvimento interior podem significar
incompatibilidade com o ambiente e impossibilidade de adaptar-se-lhe. Então, o
criador ultradinâmico parece maluco aos olhos dos estúpidos dorminhocos; é claro:
quem fica dormindo se mostra muito mais equilibrado do que quem caminha ou voa.
Assim, para os que jazem tranqüilos na inércia, o evoluído talvez pareça explosivo e
perigoso; quem enxerga longe perturba os pequeninos cálculos aproximados e
seguros, é aventureiro e revolucionário, incomoda e ameaça. O involuído condena-o
e combate-o, mas sem ele, sem essa centelha animadora, permaneceria pobre e
débil; sua segurança, se de um lado é tranqüila, de outro lado é anti-criadora, é o
sono dos mortos. A evolução, que espiritualiza, também dinamiza; assim como
caminha em direção à vida e a conquista cada vez mais, assim também caminha
rumo à potência.
A inquieta agitação de nosso tempo, embora desordenada e confusa, apresenta-
se sempre como manifestação de dinamismo, que pode derivar tão-somente da
pressão interna do espírito. Individual e coletivamente, o divino principio quer
plasmar-se em novo homem e novo mundo, numa forma que mais se adapte a outra
manifestação sua, mais elevada. Estamos ainda na fase caótica da tentativa, dos
resultados provisórios e incompletos, da experimentação enganosa; mas o
dinamismo provém sempre de impulso interior, é sintoma revelador. Na desordem
das organizações apressadas sente-se hoje o orgasmo precursor. O involuído
começa a acordar estremunhado. E ação inicial descomposta, mas de massas,
pouco profunda, porém muito extensa. Por isso, damos hoje tanta importância a
quantidade expressa pelo número. O certo é que o mundo hoje não está dormindo e
na vida nenhuma agitação é vã. Quando está saciada, vemo-la em repouso; e
quando tudo está calmo, nada se cria. Quando, de acordo com seu grau evolutivo, o
ser se aproximou o mais possível da divindade, não se agita mais e seu dinamismo
fica em suspenso, pois seu funcionamento não tem mais razão de ser. Mas, em
conformidade com o ritmo da Lei, apenas se retome o ciclo ascensional e nova
maturação o acompanhe, isto é, o espírito mais desenvolvido exerça pressão de
dentro para fora, então, para superá-los ele começa a chocar-se contra os
antiquados limites. Assim, a evolução embora contínua, se manifesta por
transformações periódicas em que se concentra a expressão de longas e lentas
maturações subterrâneas. A vida deve e quer obedecer e, se não pode ou falha,
chora na dor de não poder ou na desilusão de não ter sabido ascender; chora a
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
traição que praticou contra a Lei e paga com a própria ruína. A música de Mozart,
exprime a harmonia e o equilíbrio que seu plano por isso de paz tranqüila e saciada.
A música de Beethoven nos fala das tempestades e dos titânicos esforços criadores
daqueles tempos. A música de nossos dias desarmônica e desequilibrada, exprime o
desmoronamento deste mundo e um dinamismo levado à máxima exasperação, em
busca de novo mundo que estamos esperando e ainda não sabemos encontrar.
Todo estado de plenitude é calmo e todo estado de vácuo, insatisfeito e agitado. O
evoluído tem estases em que as forças se equilibram e repousam. Trata-se de fase
de maturidade da combinação dessas forças em sistema. Mas, apenas a alcança, o
impulso interior da vida continua a movimentar essas forças, tentando combinações
mais elevadas e complexas. Daí resulta novo desequilíbrio a ser reequilibrado, nova
lacuna a preencher e assim por diante. Os períodos de saciedade satisfeita
representam objetivo atingido e os de desequilíbrio insatisfeito significam objetivo a
ser atingido. Os primeiros já chegaram e agora repousam, os demais acabam de
partir e estão correndo ainda. Os primeiros se constituem de espíritos demolidores,
críticos, inovadores. Representam a felicidade em que se resume e beatifica
ignorância de sermos felizes. Porém, tão logo começam o desequilíbrio. e o
desacordo, a luta e a dor aparecem; então, analisa-se a felicidade, que, analisada,
desaparece. Ela, porém, torna-se consciência e base construtiva de felicidade mais
completa. Como esta nasce da dor, como a ciência se originou do sofrimento, assim
a grandeza e a força nascem da fragilidade e da fraqueza. Nossa época mostra-se
inquieta, analista, dolorosa; possui, sob forma destrutiva e em sentido negativo, tudo
quanto, sob forma construtiva e em sentido positivo, deverá conquistar mais tarde.
Com esses poucos traços esboçamos vários aspectos do futuro tipo biológico e
enquadramos, no fenômeno evolutivo universal, nossa época e sua criação
biológica. Desse modo desenvolvemos alguns conceitos de A Grande Síntese. A ti-
tulo de referência, reportamo-nos aos principais. Cap. XLIII: "A maturação dessa
super-humanidade constituirá a maior criação biológica de vossa evolução, pois
representa passagem para lei de vida superior..." — Cap. LII: "Tudo que nasce deve
renascer cada vez mais profundamente". — Cap. LXXV: "Eu lhes disse que vocês
estão em grande curva da vida do mundo; a Lei, que a maturou durante dois mi-
lênios, hoje nos impõe essa revolução biológica. Os fatos, que sabem fazer-se ouvir
por todos, hão de obrigar vocês também. Trata-se de movimentos mundiais de
massas e de espíritos, de povos e de conceitos, movimentos profundos a que
ninguém escapará. Mas, antes de os fatos falarem e de se desencadearem as forças
mais baixas da vida, deveria falar o pensamento, dever-se-ia avisar a fim de que
quem pudesse entender entendesse". — Cap. LXVI: "A lei do progresso impõe a
continua dilatação do espírito. A evolução se dirige irresistivelmente ao
superconsciente, ao supersensível". Idem: "Desde que cresce cada vez mais o
campo que dominamos no âmbito do consciente, desloca-se progressivamente o
limite sensorial, o sobre-humano torna-se humano; o superconsciente, consciente; e
concebível o inconcebível... o meio material se aperfeiçoa e se torna tão sutil que
atinge as raias da desmaterialização... “ — Idem: "O homem desse modo cada vez
mais se afasta da forma animal, através de contínua desmaterialização de funções
que leva a progressiva desmaterialização de órgãos. A vida humana se concentra
cada vez mais na função psíquica diretora..." — Cap. LXII: "Evolução biológica para
nós significa evolução psíquica...". "~ absurdo conceber as formas como fim de si
mesmas, evoluindo sem objetivo, sem continuidade, justamente onde as precede
eterno transformismo...". — Cap. LI: "Observem como nossa entrada no mundo
biológico se processa justamente por via das formas dinâmicas. Com a eletricidade,
situada no vértice dessas forças, não chegamos apenas à forma, mas ao princípio
mesmo da vida, ao motor genético das formas... Tocamos... não a evolução dos
órgãos, mas a própria evolução do Eu, que as adiciona e plasma para si, como
instrumento da própria ascensão". — Cap. LXIII: "Vejam como tudo quanto existe se
origina de princípio que não age sempre de fora para dentro, mas de dentro para
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
Ascender é ser feliz. Treme o grande ritmo do tempo, suspenso em solene espera. O
homem novo vai nascer. A vida quer falar-nos de Deus cada dia mais claramente,
pois ela é Sua glorificação.
XVI
Todo capítulo deste livro, como todo capitulo da vida, é quadro diante do qual
paramos contemplativos. Esses quadros, que estamos desenvolvendo, se poderiam
também chamar contemplações. No último deles o universo apareceu-nos como
floração de vidas. Seu transformismo evolutivo é desenvolvimento contínuo em que
parece reproduzir-se em dimensões gigantescas a técnica expansionista da
semente, a lei de desenvolvimento do indivíduo, o mecanismo da maturação da vida,
como se no ciclo vital de toda criatura se repetisse em ponto pequeno o mesmo
esquema do ciclo vital do universo, máximo organismo coletivo. De fato, até mesmo
os universos nascem, crescem, envelhecem e morrem, para como todo ser vivo
renascer e morrer de novo. Também eles passam por alegre juventude e cansada
velhice, nascem de um germe e, ao morrer, deixam seus despojos mortos. Todos os
fenômenos parecem desenvolver-se de acordo com um só esquema, cuja aplicação
gasta todas as coisas, consome toda força, encerra todo ciclo, exaure e extingue
toda vida.
Mas agora voltemos as vistas para outra contemplação, de índole diferente.
Para que, depois da tensão conceitual prolongada até agora, o leitor descanse
alguns momentos; para satisfazer outras exigências espirituais, diferentes das inte-
lectivas e racionais, e também outras da fantasia e da paixão; para, finalmente,
expor os mesmos problemas, não mais sob forma racional e abstrata como até
agora, mas dramatizados em cena bem sintética, relatemos a visão que, em meio de
emoções turbilhonantes e na profundidade de ensurdecedor silêncio, tivemos em
luminosa manhã de maio. Aqui a reproduzimos com objetividade cinematográfica, tal
qual, emergindo das profundidades da consciência, se nos revelou, na roupagem
teatral com que o pensamento abstrato se concretizou no sonho, se ao menos em
substância não lhe podemos chamar intuição ou pressentimento profético. Os
fenômenos de visão interior examinamo-los no cap. XXVI, deste volume, a respeito
da vida dupla. Vamos por algum tempo mudar a forma mental, a fim de podermos
falar à inteligência e ao coração e alimentar também essa outra qualidade da alma
humana. Todo tipo de leitor encontrará neste livro a linguagem que se lhe adapte. O
tipo racional, mais capaz de pensar do que de chorar e amar, poderá escolher os
capítulos racionais. No vasto complexo humano, além das ressonâncias do intelecto
há outras, todavia, pelas quais podemos comunicar-nos. E todo leitor reage,
segundo personalíssima capacidade de vibração, quando sente, tocarem na sua
corda sensível, e isso mais por mera sintonia do que por atividade do raciocínio. Do
contrário, mostra-se surdo não sendo tangido, permanece imóvel, não sabe
responder e toda demonstração se mostra inútil. Que coisa é a convicção, além de
espontânea e uníssona vibração? Essa vibração pode nascer mais facilmente de
persuasão e da paixão pessoal do que do frio raciocínio. A convicção não é
processo lógico, mas estado vibratório; não nasce, por isso, do raciocínio, mas da
radiação psíquica; não resulta de argumentação cerrada, mas de acordo vibratório
por sintonia do pensamento. O processo não deve ser coagido, mas espontâneo.
Pelo contrário, nada, como a presença da vontade que tenda a impô-las, afasta
tanto assim a compreensão e a convicção; e nada nos persuade e arrasta com tanta
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
força como a existência, naquele que fala, de sentida e sincera convicção. Daí se
depreende quanto o velho sistema da coação lógica se revela absurdo e ilusório, se
com ele pretendermos resolver o problema da convicção das consciências. Esse
método coativo mais ou menos se origina da luta, constitui a transferência, para o
plano psicológico, do sistema do involuído, diante de quem a força significa vitória.
Mas o pensamento está bem mais acima e seu valor escapa-lhe. Assim, o desejo de
proselitismo, ao invés de atrair, costuma repelir, pois provoca desconfiança; o desejo
de conquista excita resistência. Por isso, quando argumentarmos, convém limitarmo-
nos sempre a expor, sem jamais pretender forçar a persuasão, simples ato de
adesão espontânea. sendo assim, toda atitude que lembre a força e a imposição
tende a resultados absolutamente negativos. Não é a astúcia raciocinadora, nem a
chicana sutil, nem o desejo de fazer prosélitos, que me fornece substância ao
pensamento e me anima a palavra, mas a flama da fé e a profundeza, a evidência, a
intensidade da própria visão. A guisa de disco fonográfico, as palavras registram-lhe
escrupulosamente a radiação e assim a reproduzem ao leitor. A palavra falada ou
escrita não passa de vibração fonética ou graficamente expressa, vibração dirigida à
formação de outras vibrações. Se ela, embora brilhantemente vestida, é
substancialmente falsa, apenas poderá gerar vibrações falsas. Por isso, o silogismo
e a retórica constituem elementos negativos para o pensamento e traição contra o
espírito.
Relatemos a visão, mas antes aqui ficam duas observações: 1) Este volume,
como está mais bem especificado no cap. XXII "Tempestade", foi iniciado e
continuado até este ponto na primavera de 1944. Essa visão eu a tive na manhã de
12 de maio de 1944. sexta-feira, isto é, 33 dias após a manhã de Páscoa,
coincidência percebida só mais tarde. Essa visão registrei-a imediatamente por
escrito e vou reproduzi-la agora sem modificação alguma. É a pura verdade. 2) A
visão pode assumir vários significados, superficiais ou profundos, conforme a
capacidade de compreensão do leitor. Nela existe, afora o sentido superficial, de
mera narração, o sentido espiritual, mais potente, simbólico, que à índole mais ou
menos madura do leitor cabe saber discernir. Ou, mais claramente, o relato da visão
podemos lê-lo conforme três níveis, três planos, correspondentes aos três planos
evolutivos de nosso universo, quer dizer: matéria, energia e espirito. Em outras
palavras: podemos "vê-la" como forma, na aparência exterior com que surge em
cena, na periferia, como fato material, enfim; ou, então, "senti-la" como dinamismo
motor dessa forma e dessa sucessão de cenas, mais internamente, como vibração
animadora do fato material; e, finalmente, "intui-la" como princípio espiritual que do
centro dirige os movimentos desse dinamismo e, reunindo-os na mesma trajetória,
os guia de acordo com pensamento e finalidade bem determinados. Essa
penetração progressiva, encaminhada da superfície à parte mais profunda e da
periferia ao centro, exemplifica o modo por que, de conformidade com sua estrutura,
podemos compreender o universo. Eis a visão que eu tive.
Na basílica de São Pedro em Roma, templo máximo da Cristandade, imensa
multidão se reunira junto ao túmulo de seu fundador, o primeiro entre os apóstolos.
Ninguém saberia dizer que pressentimento levara tanta gente a assistir a ritual por si
mesmo tão comum. O instinto das massas, reconheçamo-lo, percebe a aproximação
das horas apocalípticas da vida; fazia alguns dias que havia qualquer coisa no ar,
angustiando as almas. Seria, talvez, a sensação confusa da extraordinária gravidade
da hora; ou, quem sabe, a espera de novos acontecimentos, de algo decisivo na-
quela conjuntura histórica; ou, então, maus pressentimentos, que nenhum fato
concreto poderia justificar racionalmente. Disso tudo nascera em tantas pessoas a
necessidade de se aproximarem, de se encontrarem de novo, de se reunirem e de
novo travarem conhecimento; e isso precisamente naquele templo, cujo poder de
atração parecia dever-se à sua ligação com o estado apocalíptico das coisas.
Naquele momento a basílica assumia particular significado, talvez mesmo único
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
XVII
e a vida até mesmo neles queria viver. Tantos males e tantas dores haviam eles
semeado, lançando-os contra tanta gente, que agora se voltavam contra eles
mesmos, agredindo-os e sufocando-os Por isso, naqueles ânimos a reação se
estava elaborando. Ao mesmo tempo, o imponderável exercia pressão no sentido
dessa mudança. O homem do cortejo ouvia esse tempestuoso choque de forças,
essa trágica maturação de almas. Tinha a impressão nítida de que o fenômeno
estava quase atingindo seu ponto crítico e, dentro de uma fração de segundo, esse
sistema de forças estaria decomposto; percebia que para lá desse ponto crítico, o
fenômeno assumiria nova forma, isto é, o dinamismo se inverteria e as forças
componentes se aplicariam em direção oposta. Essa precipitação de equilíbrios era
iminente. Num átimo se desencadeariam as conseqüências exteriores e materiais.
O fenômeno já estava maturado. E eis que de repente o imponderável pareceu
explodir e a luz se fez nas almas dos inimigos. A corrente construtiva da vida e do
bem reconquistara a superioridade sobre a corrente destrutiva da morte e do mal.
Aqueles homens não puderam resistir por mais tempo e renderam-se ao cansaço de
seu mau modo de agir, sentiram nojo de si mesmos, compreenderam a inutilidade do
homicídio, a estupidez em que o ódio se transforma, se considerarmos os objetivos
da vida e a alegria de existir e amar. Compreenderam, então, havê-los iludido e
traído o mal em que haviam acreditado; terem sido vítimas de miragem; e que o mal
muito mais depressa envenena quem o pratica do que a pessoa que o recebe; aí,
perceberam como a vida por eles escolhida era a vida de demônios e só seria muito
mais bela na proporção em que a paz substituísse a. guerra, o ódio se
transformasse em amor e o mal em bem. Aquele singular cortejo, a desfilar-lhes
diante dos olhos, lhes falava desse outro mundo mais belo, em que agora até eles
mesmos se esforçavam por entrar, e, também, do tipo de conduta, mais civilizado,
de que se sentiam expulsos. Comparavam-se com os fiéis, que, desarmados, mas
possuídos de coragem inaudita, afrontavam a morte, em paz, rezando; comparavam
sua férrea disciplina militar com a disciplina livre e consciente daqueles homens
convictos; e procuravam saber qual a força capaz de, sem armas, mantê-los assim.
unidos. Teriam podido exterminá-los. Então, por que não faziam funcionar as
máquinas de guerra? Por que a inusitada estratégia daqueles homens inermes
triunfava e a força armada se tornava inoperante? Alguma coisa os paralisava. Que
era? Onde estava e em que consistia esse imponderável a bloqueá-los assim?
Sentiam-se enojados de si mesmos e das máquinas; indefinível descontentamento
os impelia a odiá-las e a odiar, não os homens inermes e pacíficos que confessavam
aquele Deus de todos, tanto de vítimas como de agressores, mas os petrechos de
guerra e os inventores dessa maldita técnica de destruição e da morte. Não mais se
sentiam convencidos da força que não vence pelo livre convencimento, mas
oprimindo e sujeitando, ao observarem o espetáculo de seres livres, mantidos
espontaneamente em estreita união por força totalmente diferente. Os homens de
armas e os homens do espírito representavam duas experiências humanas opostas;
e os primeiros percebiam, face a face com os últimos, que iriam precipitar-se no
mais trágico e absurdo fracasso. No entanto, mesmo sem armas, que coisas
grandiosas não se poderiam fazer apenas com o poder da fé e do amor! Aquela
mesma praça, onde se encontravam, servia de exemplo. Os dois sistemas opostos
de conduta humana ali estavam em plena ação e se defrontavam,
desafiadoramente. Esse não passava de simples episódio da grande luta entre o
bem e o mal. Este sentia, em presença do bem, a intima contradição que o
inferiorizava.
"Por que atirar contra homens inermes? Com que fim?" Os homens de armas
diziam de si para consigo: "Não são mais corajosos do que nós? Não seríamos
covardes, se os matássemos? Não temos a mesma coragem que eles nem somos
capazes de fazer o que fazem. são, pois, mais fortes. Contudo, que força é, pois,
essa sua que lhes permite não dar atenção à nossa, ao ponto de enfrentar-nos,
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
massa confusa, agora reconstituída de acordo com nova ordem e unidade mais
vasta; esse triunfo final do anjo sobre a besta e do espírito sobre as armas
embotadas da matéria; tudo isso constitui o último lampejo da luz em que, em
gloriosa apoteose, esplende esta visão. No esplendor desse último lampejo, a visão
deteve-se, imóvel, pequena fração de segundo. Depois, como cometa que riscou o
firmamento, a luz se apagou lentamente e desapareceu, deixando atrás de si lumi-
nosa esteira.
XVIII
COMENTÁRIOS E PREVISÕES
XIX
O SERMÃO DA MONTANHA
Certo dia Cristo sentiu a necessidade de expor com exatidão seu pensamento
aos apóstolos e às turbas, mostrando-lhes completamente a sua doutrina, que até
àquele momento apenas vagamente poderia penetrar-lhes na mente. Então, Cristo
expôs a síntese de seu programa no Sermão da Montanha. Não podemos fazer
outra coisa senão citar aqui, a propósito, a bela página da "Vida de Jesus Cristo" de
Ricciotti (seguimento 318):
“Empregando terminologia musical, o Sermão da Montanha pode comparar-se a
majestosa sinfonia que, desde o primeiro compasso e com o ataque simultâneo de
todos os instrumentos, exponha com rigorosa clareza os temas fundamentais: e são
os temas mais inesperados, mais inauditos deste mundo, totalmente diferentes de
qualquer outro tema jamais executado por outras orquestras; no entanto,
apresentam-se como se fossem os temas mais espontâneos e mais naturais para
ouvido bem educado. E, realmente, até à época do Sermão da Montanha, todas as
orquestras dos filhos do homem, embora com variações de outro gênero, haviam
anunciado em uníssono que para o homem a beatitude consiste na felicidade, a
saciedade depende da saturação, o prazer é efeito da satisfação, a honra é produto
da estima; pelo contrário, e desde o primeiro compasso, o Sermão demonstra que
para o homem a beatitude consiste na infelicidade; a saciedade, na fome; o prazer,
na insatisfação; a honra, na desestima, mas tudo isso tendo em vista o prêmio
futuro. Quem houve a sinfonia fica sem cor à exposição desses temas: mas a
orquestra, prosseguindo imperturbável, volta aos temas fundamentais, separa-os,
decompõe-nos, tece variações em torno deles: em seguida repete no clangor dos
instrumentos metálicos outros temas timidamente expostos pelos instrumentos de
corda, corrige-os, modifica-os, torna-os sublimes, levando-os a alturas vertiginosas:
ao contrário; faz desaparecerem num fragor de sons algumas velhas ressonâncias,
ecos de longínquas orquestras, excluindo-as da sinfonia; depois, funde tudo numa
onda de sons, que, subindo muito acima da humanidade real, atinge uma humani-
dade não-humana e se derrama sobre ela e sobre um mundo imaterial e divino”.
"Os antigos estóicos chamavam paradoxo o enunciado contrário à opinião
corrente: nesse sentido o Sermão da Montanha é o mais amplo e mais radical
paradoxo jamais dito. Nenhum discurso proferido na terra foi mais perturbador ou,
melhor, mais revolucionário do que este: o que antes todos chamavam branco já
nem recebe o nome de pardo ou escuro, mas exatamente o de preto, enquanto o
preto agora se chama alvo; o antigo bem passa para a categoria de mal e o antigo
mal para a de bem; onde antigamente o vértice se erguia altaneiro agora está
colocada a base; onde a base se alicerçava coloca-se agora o vértice. Em face da
revolução implícita no Sermão da Montanha, as maiores revoluções operadas pelo
homem na terra parecem infantis guerras de brinquedo..."
Como o mesmo autor diz mais adiante, "o Sermão da Montanha não quer
apresentar-se como contraposição destrutiva, mas aperfeiçoadora, da lei mosaica".
Efetivamente, Cristo não viera "abolir, mas cumprir". Essa continuação do passado,
prossigamos, confirma tudo quanto dissemos antes, isto é, que a verdade é una e
por isso não podemos renová-la, mas apenas aperfeiçoar e completar-lhe a
expressão. Mas acrescentávamos ter sido Cristo o primeiro iniciador da grande
revolução, no sentido de que quem aperfeiçoa e executa, se é um continuador em
relação ao passado em que se apoia e se eleva, é sempre um iniciador, quanto ao
novo trajeto evolutivo que nele se inicia. Cristo é marco miliário do eterno progresso
da vida, pedra-de-toque do pensamento humano, é, na história da civilização, o
"pomo de discórdia" em torno do qual, sob a forma de ódio ou de amor, para exaltar
ou destruir, se concentram os esforços antagônicos do gênero humano. Para
explicar esses fenômenos não basta a distinção simplista em "tipos" que a ciência
estabelece segundo as três psicopatias dominantes: sadismo, masoquismo e
fetichismo. Os dois primeiros, isto é, os sádicos e os masoquistas, são os violentos e
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
vinganças), pois o hábito da violência lhe era necessário para impor-se e ter
eficácia. O progresso obriga essas duras necessidades a se civilizarem e a isso che-
gamos apenas a maturidade, uma vez atingida, possa permiti-lo sem prejuízo para o
homem, isto é, quando este se civilizou ao ponto de a força não precisar mais
obrigá-lo ao cumprimento da própria Lei. Só então pode a Lei abrir-nos os braços e o
Deus da vingança tornar-se o Deus do amor. Isso aconteceu primeiro com Cristo e
se repete agora. A Lei, achando-se praticamente na necessidade de enfrentar a luta,
teve de tomar necessariamente formas adaptadas a esse grau de desenvolvimento,
formas que, todavia, depois se foram tornando cada vez menos adequadas a graus
mais elevados e atingidos pela consciência humana. Em face desse
desenvolvimento, essas formas da Lei, para seres psiquicamente mais adiantados,
acabava transformando-se em escola de astúcia para evitar-lhes as insídias, em
velado ensino da arte de fugir-lhes. A Lei então, deixava pois de constituir auxilio
para a vida e se tornava uma prisão a evitar, mais um inimigo contra quem devíamos
aprender a lutar. Essa Lei, quando posta em prática, se absorvia na luta humana,
reduzida a instrumento desta; assim, acabava sendo modificada. Isso significava
inverter-se-lhe a função lógica, reduzindo-a a recrudescimento da luta pela vida, já
de si dura. Porém, apenas em determinada fase de maturação se compreende que
nos tornamos cruéis em nome de Deus, muitos males se cometeram por causa do
bem e muitos crimes se praticaram em nome da verdade. Compreende-se, então,
que no passado, sob o pretexto de aplicação da justiça, o povo assistia a exemplos
de vingança e, assim, iludido pelo exemplo, se familiarizava com o espetáculo do ato
sanguinário e educava-se. Compreende-se como a lei de seleção do mais forte diz
respeito a um plano biológico inferior de que nos é lícito. sair e como não constitui a
única nem a última expressão das leis da vida. E, além disso: quando estas apenas
sabem manifestar-se sob a forma do primitivo equilíbrio-justiça da lei de Talião e da
força, então no indivíduo débil fazem desabrochar o astuto, o traidor, o cínico, isto é,
o maligno em que a força se sub-roga. Está soando a hora de a Lei vir ao nosso
encontro, dotada de maior bondade; de fato, a vida pertence a todos e o princípio da
seleção do mais forte refere-se a fases evolutivas inferiores e está destinado a ser
superado. Cada um de nós representa uma força e, em ordenamento social mais
consciente, até mesmo uma utilidade. Ninguém, pois, deve ser esmagado,
suprimido, eliminado, mas compreendido e valorizado. Eis-nos em pleno conceito
cristão. Eis o conteúdo da Boa-Nova de Cristo. Porém, essa nova distribuição de
bondade, liberdade e felicidade só será feita na Terra, se o permitir consciência mais
desenvolvida, porque justamente essa consciência é que lhes traça o limite e
estabelece a proporção.
Quando Cristo viveu e morreu há dois mil anos, o mundo, preso a problemas
imediatos e presa de espetáculos de grandeza, de vício e de sangue, o mundo nem
de leve imaginou a revolução apocalíptica que, em longínqua e obscura província
romana, se iniciava em silêncio. Ninguém imaginou que, na ocasião, de fato na terra
nascia novo reino e novo princípio começava a firmar-se. Isso mostra como os
caminhos de Deus gostam de esconder-se nas formas de desenvolvimento normal
(nas parábolas, a palavra de Deus cai e se desenvolve de modo natural como uma
semente); como esses caminhos evitam a todo custo o caráter maravilhoso e
excepcional que, em tais casos, desejado por nossa. fantasia, constituiriam a
violação mais gritante dos equilíbrios e harmonias de que se compõe a Lei. Os
contemporâneos, deixando-se como sempre estar à superfície, naturalmente nada
perceberam do movimento profundo, percebido apenas pelos videntes. Parece
existir aí conexão, habitual na História, entre poder humano e embotamento espi-
ritual. Os expoentes intelectuais daquela época manifestam a incompreensão mais
completa. Coisa, de resto muito natural, pois viviam ao lado oposto da vida, no pólo-
matéria, enquanto o fenômeno se processava no pólo-espírito. Para o mundo
daquela época, a vida e os atos de Cristo se desenvolvem nas trevas e na
indiferença e, quando acontece serem vistos, são mal compreendidos. Até mesmo o
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
de energias, único meio capaz de sustentá-lo; mas, por mais esforços que faça, a lei
de equilíbrio o assedia e se lhe contrapõe para reconduzi-lo à posição exata, em
correspondência com sua real função biológica. Já falamos disso tudo à propósito da
lei do merecimento, a que retornaremos mais tarde, examinando-a de ângulo
individualista relacionado com o próprio destino. Essas considerações escaparam a
muitos líderes e fundadores de impérios. Na realidade, desempenharam eles função
bem diferentes da imaginada grandeza. Muitas vezes a História atinge objetivos bem
diferentes dos objetivos aparentes, que o homem se propõe e constituem simples
meio de induzi-lo à ação. Esgotada a função e atingido o objetivo, grandes e
pequenos atores são rapidamente liquidados.
Nesses simples princípios evangélicos reside a única solução honesta dos
problemas sociais. A vida humana em sociedade é campo de forças em ebulição,
em contínua rivalidade e luta. A insolubilidade de tantas posições nos induz a
observar atentamente essas diretrizes tão disparatadas. Nas relações sociais as
forças individuais mutuamente se reconhecem, se odeiam, se amam, ligadas pela
interdependência dos vasos comunicantes, pela relação entre o "dar" e o "haver".
Assim se formam equilíbrios provisórios em contínua evolução. Eles se desenvolvem
de acordo com determinada medida (passo), que permite se alojem, nos interstícios
do tempo, os aproveitadores, os parasitas do equilíbrio, os ladrões de felicidade
usurpada, pois não foi nem merecida nem ganha. Os míopes egoístas apressam-se
a gozar e morrem. Mas as forças, por eles postas em jogo, não morrem. E as
gerações que morrem deixam às gerações que nascem e estas devem aceitar, com
o nascimento, uma série de desequilíbrios ao longo dos séculos e dos milênios. No
destino coletivo acontece com os povos o mesmo que, no destino individual, sucede
aos indivíduos, isto é, nossas obras nos acompanham a toda parte. São
desequilíbrios econômicos, sociais, morais, políticos, psíquicos, orgânicos. As novas
gerações ou se reequilibram pagando, ou somente os mantém, suportando-os, ou
aumentam-nos, arruinando ou deixando ruína. São ódios, desajustamentos, dores;
por toda parte vácuos a preencher, equilíbrios a recompor. Nossos amados. filhos
pagarão por aquilo que desnecessariamente gozamos, ou gozarão das forças por
nós acumuladas. Quem aceita determinada posição deve suportar-lhe a
responsabilidade. Os recém-nascidos são continuadores. Ai de nós, se já fomos
impelidos no caminho da regressão. Então, o caminho, fácil por natureza, para a
volta nos exige esforço tanto maior quanto mais nele já tivermos avançado; e quanto
mais o declive aumenta e se torna perigoso, mais difícil é sabermos. voltar atrás e
recompormo-nos. Não há, então, solução possível e o homem, na realidade, não
soube resolver essas posições senão à custa de sua ruína final.
XX
baste disfarçar a força com as vestes da justiça para obter aqueles resultados
definitivos que ela por natureza não pode dar. Assim, os homens mudam, más os
erros continuam.
Apenas a equidade pode oferecer solução estável e conclusiva, com a adoção
de um sistema de equilíbrios e não por meio de novas usurpações com que, em
nosso proveito, acreditamos corrigir as anteriores. Isso não é justiça, mas egoísmo.
E quando a verdadeira justiça não se faz presente, as mesmas razões que hoje nos
autorizam a, no domínio e bem-estar, substituir os seus detentores, vão amanhã
autorizar que outros nos substituam e assim por diante. Forma-se então a muito
conhecida e resistente cadeia de ações e reações intermináveis. Se queremos
chegar a alguma conclusão, essa equidade não deve ser apenas aparente, mas
substancial, nem estar somente nas formas, mas também nas almas. Noutras
palavras: torna-se necessário introduzir também no mundo econômico o conceito do
equilíbrio, da ordem e da harmonia, fundamental em qualquer campo de forças e,
por isso, inclusive no da riqueza, que não passa de caso particular. De acordo com
ele, do mesmo modo que o ódio só termina se lhe contrapusermos o amor, e a
ofensa se lhe opusermos o perdão, e a violência, se lhe antepusermos a paciência,
assim também o desajustamento e a luta não findam senão contrapondo-lhes a
verdadeira equidade e justiça.
Cristo não diz aos pobres: rebelai-vos. O sistema é radicalmente diferente do
sistema do mundo. Todavia, a este, que não compreende coisa alguma senão à luz
crepuscular da vitória-derrota, ele dá a entender que não vê no pobre um derrotado.
Se não diz: "rebelai-vos", muito menos: "sofrei passivamente". Diz, pelo contrário:
"Vós, vítimas da injustiça, tolerai, tende paciência". Por que isso? ~ o que nos
perguntamos. Como sempre, a filosofia de Cristo se completa num mundo ultra-
terreno, na íntima realidade das coisas em que se completa e justifica toda
aparência percebida por nós. A razão, diz-nos Ele, reside em que a injustiça que vos
oprime é apenas humana e, por isso, temporária presa tão-somente a esta vida na
Terra, não passa de pequena injustiça secundária, incapaz de violar, como de fato
não viola, a bem maior justiça divina, a que transforma o oprimido em credor. Ficai,
pois, tranqüilos, se ainda hoje sofreis, injustamente como pode parecer-vos. Deus é
justo e a injustiça do momento será compensada, reequilibrada; vosso direito é
verdadeiramente justo, vossa consciência não se engana e será ouvida. O sistema
do universo é perfeito, lógico, equilibrado, absolutamente estável. Mas o tipo normal,
isto é, o involuído não sabe enxergar tão longe e leva essas promessas em
brincadeira. Culpa de sua miopia.
A nova afirmação irrompe gritante no início do Sermão da Montanha,
enunciando-lhe de um só golpe os temas fundamentais. Em suas antíteses se
percebe a inversão das posições, o jogo das forças opostas, o dualismo do binômio
de que esses argumentos constituem os extremos e servem ao equilíbrio das forças.
Eis o texto (Lucas, Cap. 6):
“..... Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus.
“.... Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, porque sereis fartos. Bem-
aventurados vós, que agora chorais, porque haveis de rir.
....................................................................
................
“....Mas ai de vós, ricos! Porque já tendes a vossa consolação.
"... Ai de vós, que estais fartos! porque tereis fome. Ai de vós que agora rides,
porque lamentareis e chorareis".
O problema resolve-se através das beatitudes. Quer dizer: os pobres, os
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
XXI
das forças contrárias é idêntico hoje em dia e o mundo se encontra nas mesmas
condições: as duas concepções estão nitidamente em luta. Observemos a estrutura
da concepção social romana, para em seguida verificar como o Cristianismo,
desarmado desfecharia o assalto às bases mesmas dos princípios que regiam toda
a estrutura do império e, justamente por ser, fase biológica mais evoluída, o poderia
pacificamente superar e vencer. O choque se dá, essencialmente, entre força e
justiça, entre duas diferentes estratégias, que não combatem no mesmo plano e com
as mesmas armas e falam línguas mutuamente incompreensíveis. Cristo e Roma
estão face a face. Simbolizam dois sistemas, vivos ainda hoje, ainda hoje face a face
o problema continua atual. O estudo do dinamismo íntimo, já explicado, dos dois
mundos representados respectivamente por Cristo e Roma, nos demonstrará sob
forma. racional o significado íntimo desse choque.
O império romano representava a máxima realização da força, plenamente
triunfante. O direito romano é, sem dúvida, poderosa criação de gênio coordenador,
admirável monumento de disciplina e organização; porém, permanece sempre ao
nível da força. Na violência mergulham as raízes do direito que, ao invés de quebrá-
la, condenando-a, intervém para discipliná-la. É sem dúvida um passo à frente,.
indispensável primeira tentativa no sentido de domesticá-las e reabsorvê-las; mas o
princípio, tão distante do evangélico, é baixo, biologicamente adequado ao tipo
involuído cuja inferioridade já examinamos. O direito romano não se rebela contra
esse princípio, mas o aceita e, contentando-se com dignificá-lo, intervém para
aprovar, tornar válido e legalizar o fato consumado. Da maturação evolutiva daque-
les tempos não se poderia exigir mais. O Império nada mais era senão o método
mais aguerrido, orgânico e legítimo de dominação. Mas se fez tudo quanto a
evolução biológica do tipo majoritário permitia. Por isso, permanece de pé, embora
em sentido relativo ao momento histórico, a indiscutível grandeza do Império e a
função social de suas criações jurídicas. Os romanos, sem dúvida, introduziram
ordem na força, que, assim, de impulso desagregador, se viu constrangida a tornar-
se instrumento de construção social. Comparado com a indisciplinada violência do
selvagem, esse fato constituiu sem dúvida grande progresso. As províncias
anexadas foram, decerto, exploradas, esmagadas, submetidas a servidão e a
pagamento de tributos com que se alimentava o tesouro de Roma; mas foram,
também, incorporadas ao grande organismo, governadas e, por isso, impregnadas
do conceito, para elas superior, de organicidade central que Roma lhes transmitia. A
grandeza imperial desabou, fora de dúvida, como mão de ferro sobre o mundo
daqueles dias; não havia, porém, outro modo de civilizá-lo. Por isso, tudo estava
biologicamente proporcionado, correspondendo às necessidades da época.
Contudo, o vício originário de que resultava toda a estrutura do sistema,
embora justificado e até mesmo enobrecido, constituía permanente acusação
movida à Romanidade, comparado com os métodos mais evoluídos enunciados pelo
Evangelho. O fato de Roma, máxima potência jurídica, ter sido a mãe do Direito,
jamais pôde impedir que suas raízes se embebessem no espírito de dominação e
nas violentas conquistas da guerra. A mancha era mais tarde considerar-se plena e
legítima a propriedade filha do furto, obtida apenas com o emprego da força. Esse
reconhecimento oficial do direito do mais forte, essa adesão incondicional a esse
principio moralmente inferior revelam o baixo nível espiritual daquele povo e
constituem acusação contra ele. Acusação de egoísmo que, num mundo de
civilização mais adiantada, não lhe daria o direito de tornar-se nação senhora das
gentes. A força transformada em justiça, eis as bases do Império Romano. O estudo
que fizemos do valor da força do dinamismo dos fenômenos sociais nos mostra as
razões da queda daquele Império e de sua substituição pelo Cristianismo. Isto é,
mostra-nos que a violência gera contra seu autor reações inimigas e destrutivas e,
como o Cristianismo representava princípio mais elevado, tinha o direito de viver no
lugar do antigo princípio, sepultado nas próprias ruínas por ele buscadas e cujas
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
respondes? Vê quantas coisas testificam contra ti. Mas Jesus nada mais respondeu,
de maneira que Pilatos se maravilhava". (Marcos 15: 4-5). Não podia conceber o
método de Cristo e seus objetivos sobre-humanos. Para ele, era absurda a
psicologia do martírio. Cristo respondeu-lhe apenas para dizer-lhe que em verdade
era rei e para colocar no devido lugar a autoridade deste mundo, traçando-lhe os
limites exatos. Pilatos diz-lhe: "Não me falas a mim? Não sabes tu que tenho poder
para te crucificar e tenho poder para te soltar? Respondeu Jesus: Nenhum poder
terias contra mim, se de cima te não fosse dado". (João, 19:10-11). Assim, outro
poder se manifesta por detrás e acima do poder humano, transformando o árbitro
vencedor em simples instrumento nas mãos de Deus.
Poderão objetar que Pilatos não era, certamente, tipo exemplar de magistrado
romano e, por isso, não representava a romanidade toda. Porém, não se trata aqui
apenas do caso de um homem que por baixeza traia um sistema perfeito; trata-se,
isso sim, de sistema que põe a nu os seus pontos fracos, pois não corresponde aos
objetivos da vida e do progresso, quando o confiam a um homem qualquer e o
fazem defrontar problemas mais elevados e, no entanto, fundamentais para a
sociedade humana. Quantas vezes, quem sabe, Pilatos não teria ouvido em Roma
as vazias e tediosas discussões de gregos filosofantes, estabelecidas com propósito
exclusivamente pecuniário, habituando-se desse modo à idéia de que não se
chegava à conclusão alguma, discutindo-se a respeito da verdade, conceito que em
seu espírito deveria ter adquirido o sentido negativo de vacuidade e de mentira. Mas
esse ceticismo, incapaz de levar a sério qualquer filosofia ou teoria, não era a forma
mental de Pilatos apenas. Em sua psicologia aflora a do século, de que ele não era
senão um expoente. Pela boca de Pilatos falam os tempos já incapazes de acreditar
seja lá no que for, fala o materialismo de Roma, que os alimentava e representava. E
como a Roma imperial não dispunha dos elementos necessários para saber
compreender e levar Cristo a sério, assim também Pilatos não o compreendeu nem
o levou a sério isto é, não se mostrou capaz de fazer nem mais nem me nos do que
seu mundo sabia fazer; de um lado, Cristo; de outro, um mundo repleto de
incompetentes. Em Pilatos encontravam eco Roma e o seu tempo. Ele era filho e
produto de ambos, como o efeito que, ligado à causa, não pode deixar de exprimi-lo
e representá-lo. Não apenas substancial, mas até mesmo oficialmente, Pilatos era,
como magistrado, o representante do povo e do pensamento de Roma, da
autoridade imperial que, de fato, não o desaprovou e, assim, lhe subscreveu o ato.
Concordou com ele; logo, tornou-se co-autora. A desonra do Gólgota não constituiu,
pois, apenas erro e culpa do homem, mas também erro e culpa do sistema que
fizera o homem assim, e o obrigava a comportar-se desse modo. O erro continuou,
de fato, por séculos e séculos e sempre com novos mártires, exatamente porque
esse sistema não era capaz de entender senão a autodefesa; encerrado no próprio
egoísmo, não sabia elevar-se a visões de conjunto tão vastas ao ponto de
abrangerem a evolução do mundo.
Para lutar é necessário ter afinidade e compreensão, ter algo em comum que
una e divida. Cristo e Pilatos representam dois mundos diferentes. Estranhos um ao
outro, senhores de dois campos diversos, encontram-se por acaso, sem se haverem
procurado; cada qual raciocina com todo rigor lógico, mas o raciocínio de um e de
outro são reciprocamente absurdos. Cristo compreende perfeitamente ao outro e por
isso cala. Mas, ao contrário, a forma não compreende a substância, a força não
compreende a justiça, mostra-se cega, apenas capaz de golpear e, assim mesmo,
de golpear às cegas, sem compreensão, dando-se a espetáculo tão escandaloso
que demolirá sutilmente, durante séculos e séculos, o principio de autoridade
baseado na força. O poder humano condena e assim, em virtude de poder mais alto,
atrai sobre si a condenação do mundo. A força, quando não guiada pelo espírito,
comete enganos e fracassa; e a justiça mais perfeita do espírito triunfará apesar da
injustiça humana. A batalha, sintetizada naquele primeiro encontro de Cristo e
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
12
Eis o homem. (N. da E.)
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
XXII
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
TEMPESTADE
Essa rápida sucessão de conceitos, até agora expostos; por alto, aconteceu em
hora trágica para o mundo e move-se sobre o fundo apocalíptico da maior
tempestade jamais conhecida pela História. Este livro, que é sofrimento, não poderia
nascer senão em meio à grande dor de que suporta o peso e sintetiza o esforço.
Iniciei o escrito em fins de março de 1944 e continuei-o ininterruptamente até o capi-
tulo precedente, terminado nos começos de junho, quando a guerra, progredindo na
Itália em direção ao norte, atingiu e ultrapassou Roma. Logo depois aconteceu na
França o desembarque do Atlântico. A primeira parte do volume escrevi-a, pois, nos
fins daquele inverno pleno de expectativa em que o "front" italiano permaneceu
estacionário em Cassino, e, não tendo o desembarque das Nações Unidas em Anzio
atingido proporções decisivas, em toda parte se esperava algum grande
acontecimento resolutivo. No início deste capítulo o grande incêndio europeu
reacende-se furioso e o terrível rolo compressor da guerra põe-se em movimento
também na Itália, para avançar em direção ao Norte através das províncias do
Centro, semeando também nestas o extermínio. Este manuscrito, bem assim a sua
continuação, nele implícita, foram salvos graças apenas a milagre insistente e
prolongado, isto é, por uma combinação de impulsos. e movimentos de tal modo
inteligentes e dotados de previsão, tão decididamente guiados e com tal tenacidade
mantidos na mesma direção que justificava a presunção de por detrás delas estarem
presentes um conceito e uma vontade diretivos e excluía a hipótese do acaso. A
continuação do pensamento deste volume, neste ponto, é retomada nos fins de
1944, na devastada região umbro-toscana, depois de passado o ciclone da guerra,
isto é, depois de período de esforço físico e tensão nervosa verdadeiramente
excepcionais. Mas o espirito, sempre vigilante, tudo observara, julgara,. registrara.
Narremos agora alguns episódios da guerra, não por motivo de sua gravidade e
importância exterior, que muitos terão experimentado de modo bem diferente, mas
por causa do sentido interior com que foram vividos e pelo significado universal que
podem assumir, vistos assim em profundidade. Analisando, assim, esses casos
humildes, até no seu sentido mais oculto, colocamo-nos diante dos grandes pro-
blemas da vida; aprofundando o olhar até às raízes mesmas da realidade, damo-nos
conta da gênese dos acontecimentos. O pequeno fato individual, de superfície,
adquire assim ressonâncias universais. Veremos, então, aflorar no fato exterior
aquela misteriosa realidade do imponderável que se esconde profundamente; esse
fato, mais do que em sua aparência concreta, mostrar-se-nos-á no funcionamento
dos princípios que o regem, das forças que o movimentam, isto é, na sua mais
verdadeira realidade interior, aquela que, em todo acontecimento, quase sempre nos
escapa à observação. Assim, observando profundamente, o longínquo e fugitivo
imponderável é trazido aos primeiros planos como figura central e, arrebatado às
suas misteriosas profundidades, obrigado a revelar-se, mostrando o mecanismo da
orientação interior impressa nos fatos exteriores. Veremos, desse modo, o Deus
recôndito, que se esconde de nós no superconcebível, aproximar-se em plena luz,
vivo, presente na ação. Os episódios reduzem-se aqui à sua essência de
desenvolvimento de forças cósmicas dominadas pela vontade da Lei e pela
inteligência de seus princípios. Deus resplandece no fundo desses contrastes
violentos. O bem e o mal se defrontam, eterna substância das coisas.
Era de madrugada, esplêndida madrugada de junho. Por um atalho que subia ao
longo de uma torrente apertada entre os montes, um homem fugia: do homem, da
cidade, da civilização destruidora. Já no limite do esforço que suas forças de pobre
sexagenário lhe permitiam, carregava o indispensável, apanhado às pressas ao
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
turbilhonava solene e imenso o ritmo das leis da vida, inteligentes, poderosas, ativas.
Aquele homem solitário estava imerso nessa divina atmosfera, aquele homem
aparentemente abandonado estava próximo de Deus, e, portanto, menos solitário e
menos abandonado que tantos poderosos ídolos das multidões. O imponderável não
lhe voltava as costas, como aos outros, mas lhe abria os braços. Ao lado daquele
homem estavam o seu passado, suas obras, pois nossas obras nos seguem e a
substância da Lei de Deus, ao invés de força é antes de mais nada justiça, e não o
contrário, como acontece no baixo mundo humano. Na hora fatal em que ruía o
edifício social e seus valores se subvertiam, sua defesa residia agora exatamente
em sua nulidade humana, por ele tão prezada. Em primeiro lugar, porque a nulidade,
escapa mais facilmente às tempestades, não lhes oferecendo superfície de resistên-
cia e, em segundo, porque, como toda pobreza, significa principio de inocência,
crédito perante a lei de equilíbrio, direito em relação à justiça divina. Ele procurara
defender-se por meio da própria inocência, que encontrara em si mesmo, e não a
poder de astúcia, de meios materiais ou de ajuda humana. Esta lhe parecera ajuda
mais poderosa que todos os auxílios humanos. Procurara a força em Deus e na
consciência a resposta E, em silêncio, gritara a sua inocência ao universo. Grito
vindo do fundo da alma, trágico e profundo, que não pode mentir. E o universo,
dirigido por Deus, isto é, pela justiça, não pudera deixar de responder, porque do
contrário, negaria a si mesmo. Invocara a ajuda das forças ativas no seu plano
espiritual, e geralmente, no plano material terreno, paralisadas e afastadas pela mal
empregada liberdade humana. Sentiu-se, então, fortalecido, levantou a cabeça e de
olhar tranqüilo encarou o futuro. Ele estava no lugar que o dever lhe apontava. Isso
bastava. Essa verificação infundiu-lhe na consciência sensação de paz e o inundou
internamente de nova energia. O horizonte escuro tornou-se límpido e permitiu-lhe
enxergar claramente. A guerra, furacão humano, não o atingia. Essa dor participava
do destino dos outros, não do seu. Aquelas armas não podiam matá-lo.
Compreendeu, então, o sentido das palavras da voz: "Fuja; mas, para onde quer que
você vá, estará sempre em segurança". A Lei de Deus quer que nossas penas
sejam filhas de nossos crimes e não da má vontade e prepotência alheias e que
nosso destino apenas possa ser construído por nós e só por nós. A grandeza e a
justiça dessa Lei naquele trágico momento atingiram o homem com evidência tão
viva que seu terror se transformou em confiança e em oração; em meio à dura
provação, caiu de joelhos e agradeceu ao Pai que está nos céus, tão pronto a amar-
nos e ajudar-nos, se nossa vontade espontaneamente lho permitir.
Pondo-nos de face à realidade mais crua da vida, pudemos observar, em
momento crítico, a transformação evangélica dos valores da terra em valores do céu
e atingimos o resultado prático ou, mais precisamente, utilitário da invulnerabilidade
e salvação, através do superamento da dor. Esse modo de proceder pode ser
incompreensível para o tipo humano normal de nossos dias que, quase sempre
espiritualmente involuído, põe em jogo outras leis e outras forças e não sabe
compreender aquelas que vemos aqui em plena ação. Torna-se necessária, pois,
esta condição: a inocência; apenas ela permite visão clara, apenas quem a possui
pode invocá-la perante Deus. Não se trata, por certo, de inocência universal, e
absoluta, que nenhum homem, enquanto homem, pode possuir. Se a houvesse
alcançado, já estaria bem longe deste lugar de sofrimento. Trata-se, isso sim, de
inocência particular, relativa a determinadas culpas e às provações correspondentes.
Mais do que isso as inocências humanas não podem ser, embora mais ou menos
extensas. Um é inocente em relação a um fato; outro é inocente em relação a outro
fato; a mesma coisa se diga relativamente à culpa. Por isso, são os destinos tão
diferentes e todos se cumprem inexoravelmente. O destino daquele homem não
continha reações de violência e de sangue; estava, pois, imune desse lado em que
os outros eram vulneráveis; não precisava, por isso, de sofrer as provações a que
Os outros seriam submetidos. Estava, ao contrário, exposto a provas espirituais de
lenta maceração e desmaterialização, que os demais nem sequer podiam imaginar,
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
por olho, e dente por dente. Eu vos digo, porém, que não resistais ao mal; mas, se
qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; e ao que quiser
pleitear contigo, e tirar-te o vestido, larga-lhe também a capa;..." O mal sabe iludir-
nos com suas miragens de grandeza e, assim, desafoga a sua raiva, e quem acredi-
ta na força e a emprega se torna instrumento da lei e se liga inteiramente à
destruição, inclusive à própria. E, então, personifica o princípio destrutivo. O bem
afirma e cria, e quem a ele se liga é obrigado à construção, inclusive à própria. Hoje,
os construtores não podem senão esperar que a tempestade do mal se acalme e se
canse. Isso é brutal, egoísta, desapiedado; mas, acima de tudo, é estúpido. Trata-se
de força agitada e frenética, porque desequilibrada, de força cega e absurda, cujo
desenvolvimento termina na loucura, no desespero, inclusive na própria loucura e no
próprio desespero. Eis o clímax do método da força. Quão longe estamos das
características do bem, que é equilibrado, calmo, confiante, esclarecido! Ninguém
pode destruir essas leis e impedir que sua manifestação lhes revele a substância
Assim, a guerra avançava como gigantesco rolo compressor, trazendo morte e
ruína, às cegas, ao acaso, até para civis inermes, crianças inocentes, mulheres
inofensivas, doentes, velhos. E a loucura destruía com exatidão científica, método
racional, lógica fria e sistemática, para obter o maior rendimento em morte e ruína, à
custa de esforço mínimo, como acontece na fabricação das máquinas em série, na
matança de reses. Mas essa ciranda é um vórtice que não se mantém senão a custa
de massa e de velocidade, isto é, acelerando continuamente sua fúria macabra,
escancarando cada vez mais as fauces e envolvendo em suas espirais número
sempre crescente de vítimas. Tem avidez delas, atrai-as, prende-as e assim se
alimenta e se robustece. Ai de quem pôs em movimento o "maelstrom" e se lhe
confiou. Quem foi o apanhado por ele não lhe escapa mais. No fundo, o que há é
desespero para todos, vencedores e vencidos. Estamos vivendo a última
conseqüência da filosofia nietzschiana. Seu super-homem ideal arranca a máscara e
mostra seu verdadeiro rosto de fera. Nietzsche morreu louco. Loucura, naufrágio
final do espírito, satânica ruína de rebeldes à Lei, conclusão fatal inserida no sistema
e que diz respeito a quem quer que o siga. Eis os resultados de ciência utilitária,
amoral, de ciência sem consciência: as invenções do gênio prostituídas ao interesse
e envenenadas ao ponto de se tornarem instrumento de morte. A primeira aplicação
notável da conquista do ar foi o massacre da Europa. Não seria ótimo que os
cientistas não comunicassem mais, a semelhante mundo, os resultados de suas
descobertas?
De tarde, enquanto a infernal voz de Satanás dominava a planície, na miserável
casa de colono, rezavam. É sublime falar com Deus, é reconfortante senti-lo bem
perto, principalmente nas horas terríveis. Rezavam com simplicidade e fé, na velha
cozinha do colono, enfumaçada, pequena, pobre. Rezavam, irmanados na mesma
miséria, o camponês e o intelectual, o pobre e o rico, o rústico, morto de fadiga, e o
homem fino, abatido e mal vestido. As grandes idéias da vida e da morte, do ódio e
do amor da família e dos filhos, do dever do sacrifício, estavam ao alcance da
compreensão de todos, formavam essa estrutura da vida, instintiva e essencial,
comum a todos. A prece sabia falar ao coração de todos. Em sua fé milenária a raça,
já longamente experimentada nas desventuras, reencontrava sua força. A visão das
excelsas coisas do céu, de um mundo melhor no além, confortava a miséria do
momento. Nas asas da prece aqueles desventurados se sentiam transportados da
dor à paz do coração e à confiança na ajuda de Deus, e não ao brilhante e científico
desespero do mundo. Em meio daquela pobreza fraterna se sentia vagar suave
esplendor; era a figura de Cristo que estendia sobre todos as mãos protetoras, se
inclinava sobre toda dor para aliviá-la e na soleira da porta da pobre cabana se
erguia poderoso, desafiando a tempestade.
Assim ia o tempo correndo, entre forçados ócios empregados em meditação,
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
O homem esperou, mas ninguém se preocupou mais com ele. A morte passara
bem perto de si e não o quisera. Deus passara bem junto dele. Atirou-se sobre o
enxergão e adormeceu como o fazia toda noite, tranqüilo e agradecendo, hu-
mildemente, ao Pai que está nos céus e desejara continuasse a trabalheira toda de
sua vida.
XXIII
VINGANÇA OU PERDÃO
parte obedientes, para atingir bem-estar de que nos pomos a gozar, ignorando-lhe
as conseqüências. Esse domínio também poderá servir para causar-nos a morte
cientificamente, em larga escala, porém não nos torna mais adiantados. Isso não
pode chamar-se civilização. De mudanças profundas de orientação, que interessem
à motivação da atividade humana, nem se fala. Hoje em dia a vida se apresenta
feroz e desapiedada como nos tempos pré-históricos. Não estar armado de pedras
lascadas mas de metralhadoras, não estrangular o seu semelhante com as mãos, é
sim com os Bancos, representa apenas progresso formal, substancialmente fictício.
Civilização que deixa intactos os instintos bestiais do homem e, além disso, lhe
oferece meios mais poderosos de satisfazê-los, não merece o nome da civilização.
Hoje, ao invés de havermos progredido, descemos a tal ponto que perdemos o
sentido do que seja civilização e mudamos o significado dessa e de outras palavras
sublimes. A verdadeira civilização está mais dentro do que fora de nós; é mais um
poder das qualidades da personalidade que um poder originado nos meios
exteriores e no domínio material. é progresso no espírito, implica em mudança do
comportamento humano em profundidade e não apenas em superfície. Em meio
dessa nossa barbárie, os raríssimos sábios caminham em silêncio, beneficiando e
perdoando. O mundo ri-se deles. Mas neles apenas reside o futuro do mundo, o
único futuro sem sangue.
As ações e as relações humanas podem ser estudadas como jogo de forças e,
assim, descobrir-lhe-emos as leis. Aí esta o miolo da questão. Acreditamos que a lei
do perdão significa pôr-se em situação de fraqueza e que o sistema de vingança e
aniquilamento significa posição de forca. Não compreendemos como na realidade se
dá o contrário, isto é, como o perdão nos liberta da reação e a vingança nos liga ao
inimigo. Quando dois indivíduos estão em paz entre si, representam sistema de
forças em equilíbrio. Mas, apenas um dos dois tenta superar o outro, procurando
invadir e dominar, não só o legítimo campo de sua liberdade como o campo dos
demais, esse sistema de forças não se mantém mais na posição natural e estável de
justiça, mas se transforma em sistema desequilibrado que tende espontaneamente a
voltar à primitiva posição de equilíbrio. Temos, agora, de um lado rarefação e vácuo
e de outro concentração e pressão; de um lado derrota e danos, de outro vitória e
vantagens. Tudo poderia processar-se de acordo com a vontade do homem, que
gostaria estivessem a seu favor essas mudanças, se não existisse uma vontade
superior, a dirigir e equilibrar, a vontade da Lei que guia todos os fenômenos de
acordo com equânime princípio de justiça. O fato é que essa lei existe e um princípio
impõe o equilíbrio, Acontece então, automática e irresistivelmente, que de um lado a
atração exercida pelo vácuo e de outro a força de pressão tendem a estabelecer
esse movimento de reação chamado vingança; esse movimento, se possui um fundo
de justiça, pois tende a reequilibrar o sistema, lança-o em novo desequilíbrio
constituído pela posição inversa, de que nasce nova reação, a contra-vingança e
assim por diante. Estabelece-se, desse modo, cadeia de vinganças, interminável
porque através delas o desequilíbrio se mantém, permanece sempre a provocação
originária que não tem remédio. Assim, acontece que quando dois indivíduos pela
prática de algum abuso se ligam a tal sistema de forças, este não sabe mais como
resolver-se e os indivíduos permanecem, mesmo através de seus descendentes,
indefinidamente emaranhados. Assim, até a consumação dos séculos, o fratricida
Caim revive no homem.
Continuemos a observar. Por um lado, a concentração constitui riqueza,
superabundância de bem-estar, euforia biológica causadora de engorda enervante,
que desabitua da luta, diminui as capacidades, aniquila as defesas. De outro lado, a
rarefação é pobreza, incômodo, tormento originador de excitamento que anima ao
combate, apura as capacidades, prepara e apresta o ataque. De um lado, pois, a
pressão tende naturalmente a diminuir; dentro a tensão tende a aumentar. Assim, as
duas forcas do sistema, já ligadas tendem a combinar-se de novo, mas em posição
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
inversa. E assim por diante. Tais são as vicissitudes de toda luta, de dois homens,
famílias, facções ou povos. Existe, pois, enxertada no próprio sistema, uma
tendência a compensar, corrigir e eliminar os abusos iniciais. Essa tendência à
inversão das posições exprime tendência ainda mais profunda, isto é, a que leva ao
restabelecimento do equilíbrio rompido. Ela se deve à presença de uma terceira
vontade, que nada tem de comum com as verdades particularistas e relativas dos
dois contendores, isto é, a vontade imparcial e justa da Lei, cuja tendência constante
consiste em corrigir e reabsorver o erro humano.
Perguntamo-nos, agora: como se torna possível reequilibrar esse binário que,
tendo perdido o equilíbrio, não sabe recompô-lo? O maior sonho do lutador consiste
na vitória e conseqüente aniquilamento do inimigo. Na verdade, porém, não passa
de ilusão, pois o inimigo que representa uma força, é substancialmente um
imponderável, e participa de um organismo universal em que como já dissemos,
nada se pode destruir e onde se torna impossível abrir-se o vácuo de sua destruição;
representando, pelo contrário, tendência a preenchê-lo, irresistível vontade de
compensação. O homem não pode de modo nenhum neutralizar essa tendência,
paralisar essa vontade superior. Possui apenas este recurso: a sua força, a que,
para vencer, se agarra de unhas e dentes. Mas a manutenção de artificial estado de
equilíbrio, como o de seu domínio sobre o próximo, requer esforço contínuo, que se
resolve, já o dissemos, em desgaste e, mais tarde, em inevitável cansaço. Desse
modo, além de pelas razões precedentemente expostas, também por esta o sistema
tende a inverter-se. A lei fundamental de justiça tende incansável e tenazmente à
compensação e exerce insistente pressão nesse sentido, e apenas encontrará paz
quando completamente corrigido o precedente desequilíbrio. Impossível, pois,
resistir indefinidamente; de fato, para conservar de pé um sistema desequilibrado,
seria necessário ampará-lo continuamente por meio de incessante dispêndio de
energia De um lado, temos o princípio-lei, que é vontade inteligente armada de
energia, calma, paciente, mas constante e inexaurível. De outro lado, o homem
armado de energia violenta, mas inconstante e pouco duradoura, colocado perante
lei de vontade diferente da sua e que não se deixa violar senão temporária e
excepcionalmente e à custa de esforço persistente e cansativo. O indivíduo poderá
resistir e, até mesmo, resistir vencendo por alguns momentos, mas cedo ou tarde
chegará o momento de se inverterem as posições. Portanto, é fatal, como de fato se
verifica, que cedo ou tarde o sistema se decomponha e o vencedor passe à
condição de vencido e ao contrário. No reino da força, vitória significa vitória. Mas,
perante lei equânime, imparcial, desejosa de que todos vivam, vitória significa débito
do vencedor para com o vencido, débito a ser pago de qualquer modo um dia.
Então, que adianta vencer? Se não nos contentamos com resultados efêmeros nem
damos crédito à ilusão, não é verdade que vitória e derrota representam o mesmo
fenômeno? Trata-se de posições instáveis, solapadas pelo tempo, de vantagens
momentâneas, trabalhosas e arrancadas violentamente aos naturais e inexoráveis
equilíbrios da Lei. E assim, em última análise, a vitória não passa de prelúdio da
derrota e a derrota significa o prelúdio da vitória.
Se, pois, a vitória não resolve definitivamente o problema, visto como de fato
não reequilibra o sistema das duas forças, se posição de estabilidade apenas pode
ser garantida por espontâneo equilíbrio dos dois impulsos opostos, a que devemos
recorrer, então? O sistema humano da vingança não atinge o objetivo previsto. Sem
dúvida. Não se trata aqui de agravar, mas de reabsorver o desequilíbrio originário e
isso apenas pode ser conseguido pelo perdão. Vimos que a primeira usurpação
causara um primeiro desajustamento, que o sistema ativo-reativo em cadeia das
vinganças não consegue eliminar. Para consegui-lo, torna-se necessário um ato
igual e contrário, porque só um ato assim pode neutralizar o primeiro. É preciso,
portanto, movimentar-se em sentido contrário; e só o perdão pode fazê-lo.
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
Dirão, agora: para que serve essa luta e, se constitui erro, porque as leis da vida
a permitem? Serve para aprendermos o modo de não cometer mais erros e
percorrermos o caminho da vingança a fim de aprendermos a lei do perdão. O
homem necessita aprender; por isso, Deus deixou-o livre. Não se trata, pois de
liberdade desenfreada e louca, mas de liberdade limitada e protegida. A lei cede no
limite do necessário ao aprendizado do homem. Deixa-o errar e, depois, sofrer as
dolorosas conseqüências do erro. Age, porém, paternalmente; de fato, ao mesmo
tempo que parece abandoná-lo, a lei se mostra sabiamente previdente, próvida e
protetora e, por meio de lenta, mas constante e tenaz pressão, se compromete
antecipadamente a recolocar tudo em seu devido lugar; e, na realidade, vemos que,
apesar de todas as desordens humanas, a Lei alcança esse objetivo. Desse modo,
todo erro contém em si o germe de sua correção, a imperfeição se reduz a motivo de
perfectibilidade contínua. O mundo constituí, assim, perene injustiça, que representa
poderosíssima aspiração à justiça; a vida é desequilíbrio constantemente à procura
de equilíbrio; é vingança avidamente desejosa de alcançar a fase superior de per-
dão; é ânsia de ódio que não sossegará enquanto não reencontrar o amor. A Lei
existe, sem dúvida, porque nossa consciência sabe exatamente como as coisas
deveriam., ser, perfeitas, embora não o sejam ainda, embora um abismo de
dificuldades as impeçam de o serem. De fato, o mundo apresenta-se como oceano
de desequilíbrios e por essa razão sofre, exatamente porque não consegue atingir o
estado de equilíbrio, único, conforme o mundo mesmo percebe, em que encontraria
a paz. Torna-se evidente que apenas o reequilíbrio poderá dar-nos a felicidade, mas
esse reequilíbrio está bem longe de nós. O sofrimento do mundo não se deve a
erros recentes, e sim milenários, a pavoroso amontoado de erros, acumulados
através dos séculos, difícil de eliminar e impossível de reabsorver assim de um
golpe. Hoje tudo está impregnado de erros; o ar, saturado de mentira; o mal que
semeamos se transformou em nossa atmosfera. É preciso pôr-se a caminhar, lenta e
tenazmente, pelo áspero caminho da regeneração. Os resultados do abuso não
podem ser corrigidos senão movendo-nos em direção contrária, subindo de novo
pelo caminho que havíamos descido. Na prática, o simples caso de duas forças
contrárias, há pouco examinado, complica-se num interminável entrelaçamento de
desequilíbrios, que nos submete ao jugo de nosso destino de indivíduos e de povos,
pobres autocondenados, exatamente como por ignorância ou má-vontade
queremos. Quanto mais perseverarmos no caminho da força e da vingança tanto
mais pioraremos nossas condições, agravando o desequilíbrio. A única saída é esta:
o caminho do perdão, o caminho do amor, o caminho do Evangelho. Quando
encontrarmos um homem que emprega a violência e se vinga, diremos: este é um
involuído que está começando o longo aprendizado da vida. Quando virmos um
homem que repele a violência e perdoa, diremos: este é um evoluído que já viveu
bastante e aprendeu a lição da vida. A tendência da evolução consiste em substituir
a vontade ignara, egoísta, desagregante e usurpadora do indivíduo pela vontade
consciente, altruísta, orgânica e pacífica do homem da lei.
Eis em que consiste e para que serve o civilizar-se. Não se trata apenas de
idealismo ou de sentimento ou de bondade. Trata-se de atingir a fase do homem que
já compreendeu. Este diz: "Perdôo-te, ó inimigo, porque só assim me livro do mal
que quiseste lançar sobre mim. Não; conheço a Lei e não faço como muitos iludidos
que caem na armadilha. Sei que sou livre. Não aceito ligar-me a ti por laços de ódio
ou de vingança; não aceito, porque sou livre, o mal que quiseste infligir-me. Perdôo-
te. Esse mal te pertence; tu o geraste, não eu. Perdoando-te, deixo-o recair sobre ti,
não sobre mim. Se eu caísse na corriqueira ilusão do mais forte e reagisse,
ofendendo-te também, e te causasse um mal que em mim se gerara contra ti, tornar-
me-ia devedor e não mais credor teu e terias o direito de reter-me como escravo en-
quanto eu não te pagasse meu débito, de acordo com a divina lei de justiça. Com o
meu perdão, tu continuas nessa triste posição, tu, pobre iludido que te ries de mim
porque pensas ter-me vencido. Muitos preferem comprometer-se cada vez, disputam
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corrida em direção ao aumento da dívida. Quanto a mim, prefiro libertar-me por meio
do perdão. Liga-te, isso sim, com quem responder aos teus ataques. Eu por meio do
perdão me liberto. Nada podes contra mim. sem que eu o queira. Não tens o poder
de infligir-me a dor que quiseres. Isso depende apenas de mim e de minhas culpas.
E se eu tiver de sofrê-la, não a aceito de ti, que ignoras o porquê das coisas e ages
como cego; aceito-a apenas das mãos de Deus, a titulo de expiação merecida, de
salutar purificação e, por isso, de benefício para minha redenção. Não és mais do
que instrumento inconsciente guiado pela Lei. ser ignorante do que faz, merecedor
de piedade e por quem devo orar. És pobre irmão ainda ignaro, que devo esclarecer
e ajudar, irmão que está ferindo a sua própria vida e ligando-se, sem sabê-lo, a nova
dor, porque, acreditando golpear-me, está golpeando a si mesmo. Irmão! Devo
socorrer-te no perigo por que estás passando. Mais tarde, depois de
espontaneamente teres querido ligar-te, por mais que eu sofra e te perdoe, nada
poderei fazer por ti contra as conseqüências fatais de tua conduta; assim, deverás
pagar inexoravelmente e na proporção de teu erro. Tu, não eu, rompeste o
equilíbrio. Tu, não eu, deverás, penando, reconstruí-lo. A redenção é demorada,
complexa e se processa átomo por átomo. Meu perdão me interessa mais do que a
ti. Cairás debaixo da força que tu mesmo libertaste. Ai de ti, se venceres. Tanto mais
pagarás quanto mais injustamente houveres vencido. Acreditas trabalhar fora de ti,
em mim, e, no entanto, trabalhas dentro de ti mesmo, em ti, para teu benefício. Tudo
quanto fizeres recairá sobre ti, porque tu o fizeste; não recairá sobre mim, senão na
proporção em que eu o houver feito".
A terra é morada infernal, de débito e de expiação, lugar em que os homens
gostam de endividar-se até o pescoço, vivendo debaixo de chuva de fogo aceso por
suas próprias mãos Todavia, como a Lei de Deus se mantém justa e boa! Somos
livres, mas responsáveis. E, quando lhe compreendemos o significado, que poder
regenerador o sofrimento adquire! Todos nós temos de responder apenas por
nossas ações e não, também, pelas ações alheias; cabe-nos responsabilidade pelo
esforço feito, não pelos resultados obtidos. A força máxima consiste em ser
inocente. O ponto vulnerável à dor é apontado pela própria culpabilidade, quer dizer,
não é a dor em si mesma que o determina, mas a própria debilidade, que oferece o
peito aos golpes da lei de justiça. Tudo quanto fazemos perdura e quem deve não
encontra salvação. Logo, nós mesmos criamos nossa vulnerabilidade,
espontaneamente, por meio de nossas próprias ações. de acordo com nossa
vontade mesma. A casa interior do culpado é indefesa, tem as portas escancaradas.
Por qualquer lado a dor pode entrar nela. Cabe culpa às portas abertas e a quem as
abriu. Então, as forças do nosso destino atraem as investidas dos malvados, que
nas mãos de Deus se transformaram em instrumentos de justiça, embora, con-
siderados em si mesmos, sejam injustos e incapazes de compreendê-lo. Os meios
punitivos estão à solta, o mal conseguiu libertar-se das algemas e pode, porque
Deus o permite, agir com plena liberdade. Na Lei, o mal é escravo do bem, tem
limites que não pode ultrapassar senão a serviço do bem. Esses instrumentos não
são constrangidos, mas utilizados. São, por isso, responsáveis na medida de sua
compreensão e liberdade de agir e nessa medida, quando lhes couber a vez, hão de
pagar pelo que fizerem. Mas, se sou inocente, que podem eles perante mim senão
oferecer-me novas oportunidades de expiação e ascese? Meu inimigo pode atirar-
me às costas todo mal que quiser; apenas o que eu merecer me atingirá. Não
responderei por ele, mas por mim. E, se não respondo às ofensas, toda a culpa
recairá apenas sobre o ofensor. A medida de nossa dor no-la dá nossa culpabili-
dade. Fato importante como o desenvolvimento de nosso destino, fato grave como o
peso de nossa dor não pode ficar à mercê da vontade de um estranho, que muitas
vezes nada sabe a nosso respeito. Sem nosso consentimento, não obstante os
permanentes contatos humanos, entre destino e destino não se podem efetuar
trocas de valores ou de forças. Nós é que fazemos nosso destino; este não passa de
campo de forças cerrado e protegido, em cujo centro está o eu, dirigindo e
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controlando tudo. Um estranho poderá introduzir nesse campo apenas as forças que
quisermos. As responsabilidades são graves; as sanções, inexoráveis. Nada mais
justo do que liberdade completa e responsabilidades bem definidas. Nada mais justo
do que cada um responsabilizar-se apenas por aquilo que livremente fez.
Já vimos alhures, a propósito da lei do merecimento e da Divina Providência,
quem na luta pela vida defenderá ao homem que confiou sua defesa à Lei, às mãos
de Deus. Não acreditem vá esse homem, segundo muita gente pensa, deixar de ser
vingado. Renunciando a fazer justiça pelas próprias mãos, ele se confia a juiz muito
mais poderoso; quem perdoa entrega o culpado à Lei de Deus que, invisível e
paciente, é também inflexível e inviolável e muito mais temível do que as sanções
humanas. Os resultados do jogo da força, embora efêmeros, iludem porque são
imediatos. Esse jogo não se realiza a longo prazo. Com o andar do tempo o justo se
revela o mais forte e é quem vence por último. Há, sem dúvida, conveniência
imediata na exploração imediata das posições cuja honestidade lhes conquistou
confiança. Quanto mais a retidão de uma verdade ou de uma instituição lhe houver
conquistado a estima pública, tanto maior atração exerce sobre homens
inescrupulosos que procuram apropriar-se dela em busca de vantagens pessoais.
Quem mais fama tem de. honesto esse é o ladrão. Mas a posição é instável e não se
mantém. Cedo ou tarde tudo desaba. Para civilizar-se a sério o homem do futuro
teria apenas de fazer este pequeno esforço de inteligência: compreender a
vantagem utilitária de ser honesto, vantagem considerada apenas do ponto de vista
do egoísmo (nem pretendemos mais do que isso); compreender que tudo quanto
podemos obter, empregando a astúcia ou a violência, não passa de adiantamento,
que mais tarde devemos devolver, e pagando muito caro; pretender fraudar lei
invisível e onipresente é ilusão própria de ignorantes; entender que o mais forte não
é o prepotente, mas o mais justo e que o caminho do sucesso verdadeiro,
permanente e durável não é o dos arrivismos tão admirados e seguidos, mas o do
próprio dever. Evoluindo, o homem atravessou, na arte de conquistar os bens
necessários à vida, a fase representada pelo método da força e, em seguida, a fase
do método de astúcia. Agora, se não quiser, com grande desvantagem para si, con-
tinuar na situação de involuído, deverá entrar na fase representada pelo método da
honestidade. Sem essa premissa, todos os sistemas coletivos que buscam justiça
social mais completa contêm apenas ilusão, mentira e pretexto para injustiças cada
vez maiores. Sem esse fundamental progresso individual, é inútil acreditar em
qualquer tentativa de progresso coletivo.
XXIV
pura, fator sem dúvida estranho à luta (se a tomarmos na acepção vulgar), luta em
que a honestidade não serve de ajuda, mas de estorvo. O mundo de hoje confunde
arbítrio com liberdade e, quando clama pela liberdade, intimamente deseja o arbítrio,
o abuso a licença; nem compreende como, exista ou não autoridade humana,
estamos, isso sim, permanentemente enquadrados nas invisíveis leis da vida; nem
como a autoridade, o poder e a hierarquia dessas leis jamais diminuem. O mundo de
hoje, infelizmente involuído ainda, não compreende como essa desordenada
agitação chamada liberdade não atinja o objetivo previsto por quem a ela se entrega,
isto é. libertar-se de encargos e sanções; não compreende como, através dessas
sanções, a Lei cada vez mais fortemente o repele, fazendo-o mais tarde sofrer tanto
mais amargamente quão mais loucamente tentou rebelar-se. A história é essa.
Quem compreendeu as leis da vida, sabe que a retidão constitui elemento
fundamental do sucesso verdadeiro e duradouro e que a desordem e o arbítrio
podem conquistar-nos apenas escravidão e dor porque, dada a estrutura de nosso
universo, só esta liberdade se torna possível: a liberdade segundo a lei. A liberdade
em desacordo com a lei é impossível.
Observemo-lhe o mecanismo. As forças, que no passado foram postas em
movimento por nossas ações, uma vez em jogo representam vontade, autônoma,
impulso que por inércia tende, automaticamente, a continuar movendo-se e a levar-
nos para a frente, segundo a direção inicial. Se, a princípio, movimentamos nossas
obras, agora elas é que nos movimentam, arrastam-nos para onde ontem queríamos
e não para onde queremos hoje. O passado não morre, mas revive sempre no
presente. As nossas obras nos acompanham por toda parte. Em face dessa
estrutura orgânica da vida (relação de causa e efeito a longo prazo), por força da
qual o presente se preparou no passado e o futuro se prepara no presente, a
filosofia do "carpe diem" é manifestação de inconsciência. A liberdade, que
imaginamos sempre virgem e completa, é assim apenas na fase inicial de nossas
ações. Não pode ela permanecer indefinidamente no terreno neutro da escolha, mas
fixa-se, condensa-se no determinismo representativo do encadeamento, por
continuação, ao impulso que, uma vez dado, constitui um impulso em nosso destino;
esse impulso liga a liberdade às conseqüências do impulso cuja continuação já se
torna impossível impedir, salvo novo impulso corretivo contrário. Assim, as obras que
fizemos espontaneamente tornam-se vivas e, como se fossem animadas de vontade
própria, são ativas e, na qualidade de criaturas nossas, agem por nós. Nossa
personalidade é fenômeno contínuo, em que os momentos sucessivos de seu futuro
se ligam estreitamente e cujas forças, por nós suscitadas, se determinam e se põem
em ação e, em seguida, não podem ser anuladas enquanto não se desenvolverem e
esgotarem completamente. Essas forças formam nossa força, tanto em qualidade
como em quantidade; desse modo, o passado e o presente participam de nós.
Representam essas forças a definição de nós mesmos, a coisa consumada difícil de
mudar e vivem em nosso destino sob a forma de fato, fato de modo algum absoluto,
mas, ao contrário, sempre susceptível de retoques e modificações, no incessante
movimento da vida. Mas, vamos vivendo; e o novo fato que cada dia nos acontece,
se não o vinculamos já, é livre e, vivendo, ligamo-lo por meio de nossas ações.
Assim vivemos, vinculando nossa liberdade a isto ou àquilo, enquanto o impulso
não se esgota e a trajetória não desaparece. Mas, desenovelando-se, o fio da vida
sempre traz consigo nova liberdade virgem, que sucessivamente andamos
vinculando e cristalizando no determinismo, enquanto não a abandonamos no
passado assim cristalizada, depois de haver completado o ciclo experimental. A
liberdade é interior, está no íntimo da personalidade, no reino das motivações e daí
a atividade se dirige para a periferia e se expande no mundo exterior da
manifestação, que constitui o reino do determinismo. Assim, vincular-se ao
determinismo, ou extinguir-se nele, corresponde as características dos dois mundos,
interior e exterior, que as forças motoras dos nossos atos percorrem, nascendo no
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
efeito. Em seu movimento evolutivo através do tempo, todo fenômeno oscila entre
estes dois extremos de um dualismo que não se isola numa forma impenetrável
(princípio-fim), mas se articula continuamente, no termo final, com novo termo inicial
e assim se prolonga até o infinito.
Portanto, se por lei de causalidade tudo é filho do passado, a vida nos mostra
então çomo jogo amplo e complexo de. prolongada preparação, a vitória é
determinada por dinamismos acumulados que afloram de um depósito interior,
repleto ou vazio, rico de provisões boas ou más, úteis ou venenosas, o misterioso
depósito da alma que passa despercebido ao involuído. As posições terrenas são
aparentes e enganam. Assim, o pigmeu pode, quanto à substância, ser um gigante e
o gigante ser um pigmeu. Eis a força invisível de tantos inermes, a grandeza
recôndita de tantos humildes. A posição humana exterior é fictícia. A casa interior
pode ser habitada por amigos ou inimigos, pelo bem ou pelo mal, por anjos ou
demônios. Eis a arma moral do evoluído: as boas obras, o cumprimento do dever.
Isso o isentará das sanções e o inocentará das culpas. Nosso passado já está feito.
Ele traçou a trajetória de nossa vida. Do mesmo modo que longa evolução biológica
construiu nosso atual tipo biológico que, tal como é, resiste a toda deformação rá-
pida e a toda mudança, assim também, depois de longa caminhada, se formou e
definiu nossa constituição moral, reservatório de instintos alojados no subconsciente
e radicados em passado remoto. A forma não é definitiva, mas definida, pois o
transformismo continua e processa-se e nada pode jamais considerar-se imutável.
Permanece sempre aberta a porta da expiação e da correção, porque a liberdade,
embora presa às conseqüências do passado, se mantém inviolada e inviolável,
sempre capaz de dar novos impulsos ao destino e, através de novos esforços,
corrigir-lhes, a seu bel-prazer, a trajetória. O futuro é sempre livre, se lhe tiramos o
peso do passado que nos inibe.
A característica principal desse mecanismo de forças consiste na possibilidade
de isolarmos nosso destino do destino alheio. Ao lado de cada um de nós falam e
agem nossas próprias obras e não as obras alheias. Cada qual pode semear no seu
terreno o que quiser; e ninguém pode semear por nós. A semeadura é livre, mas a
colheita é obrigatória. Portanto, livres, mas responsáveis. Absoluta independência
quanto a semear o bem ou o mal; absoluta obrigatoriedade de colher o fruto da
semente que se lançou ao solo. Por isso, o sábio procura, em causas profundas e
remotas, as raízes de sua situação atual e prepara, com grande antecedência, o seu
futuro. Não tem importância que os outros ignorem essas leis. Quem erra paga na
mesma moeda e pagando aprende. Mas a maravilhosa justiça da lei divina consiste
em cada um de nós permanecer livre e, seja qual for o ambiente em que viva, poder,
à sua vontade, perder-se ou salvar-se. A beleza de tudo isso consiste no fato de que
essa liberdade permanece sempre garantida e o indivíduo independente, senhor
absoluto, sempre, do próprio destino, senhor de, em qualquer tempo e lugar,
construi-lo a seu modo. Assim, num mundo em que o ignorante involuído através de
seus sistemas, impera e triunfa, ninguém pode impedir ao evoluído, que não é
ignorante, de escolher seu caminho, segui-lo, e colher frutos copiosos. Conforme a
ação praticada, assim a Lei dá a cada um a resposta adequada e funciona ao
mesmo tempo, mas de modo diferente, em planos e formas diversos. Desse modo, a
liberdade fundamental do indivíduo é a tal ponto respeitada, sem lesar o princípio de
responsabilidade, que ele pode sempre separar seu destino do destino alheio, pode
conservar completa autonomia de trajetória em meio do mais complexo
entrelaçamento de forças, pode atingir os objetivos que quiser, goza da liberdade de
perder-se em meio à salvação geral ou de salvar-se em meio da perdição universal.
O resultado é garantido, quer o do bem, quer o do mal. O justo pode, portanto,
avançar com seu binário, mesmo se for colocado num mundo de demônios. Perante
Deus o que vale é o seu passado, suas obras, seu merecimento. A Lei responde no
mesmo tom em que a chamarmos e é rica ao ponto de possuir qualquer tom. Ao
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
justo se torna, assim, possível apelar não mais para a força ou a astúcia, sistemas
de luta por ele superados, mas para a justiça divina e dela receber a resposta
adequada, isolada em meio a vasto oceano de respostas diferentes; é-lhe possível
receber tratamento de bondade e de salvação em meio de cataclisma universal.
Assim, o evoluído pode caminhar de acordo com destino todo seu, independente do
de seus semelhantes, independente até mesmo da sua própria humanidade.
Enquanto os demais, considerados os seus métodos de luta, se destroem
mutuamente, arrastados pelo turbilhão da força, pelo ódio recíproco ligados à própria
destruição, o evoluído, isento das culpas do mundo, poderá seguir um destino todo
seu, de alegria e de paz. As forças do imponderável terão formado em torno dele
uma camada protetora, uma defesa salvadora, que o tornará invulnerável, porque
inocente, em meio dos mais graves perigos que arrastam os outros.
Deixemos aos juristas o estudo das vias da justiça humana. Preferimos aqui nos
ocupar do estudo da justiça divina, onde reside a gênese das adversidades que nos
golpeiam. Que importa o instrumento que no-las inflige, se ele mesmo muitas vezes
lhes ignora as causas? O importante é possuir a chave do mistério e resolver o
problema de saber evitar o dano. O sistema da justiça divina é sumamente
respeitador da liberdade individual, menos quanto a ser inflexível no campo das
responsabilidades. Mas a liberdade inicial é inviolável. De acordo com a Lei, a base
do fenômeno social é o individualismo, o fenômeno coletivo representa, pelo
contrário, um agregado, um organismo de individualismos que, embora se combinem
tendo em vista destino global mais vasto, permanecem separados e inconfundíveis.
A necessidade de o indivíduo assumir determinada atitude em relação à sociedade
não lhe tolhe, de fato, a autonomia mais completa. Por essa razão cada um de nós
pode revelar-se e afirmar-se de acordo com a sua própria natureza. O rebanho tem
plena liberdade de andar cegamente à deriva, à mercê dos seus elementares
impulsos animais; o sábio, pode, se quiser, estabelecer-se no deserto e aí realizar
sua vida independente Trata-se de independência interior e nela as construções
humanas exteriores exercem influência relativa. Desse modo, entre indivíduo e
massa podem abrir-se hiatos abissais que não se preenchem; e a evolução pode
impelir o solitário hiper-evoluído e vidente para fora da órbita dos destinos normais
ao ponto de fazê-lo transpor as fronteiras da raça humana e entrar no domínio de
humanidades evolutivamente superiores à nossa. Esse tipo de ascensão é
biologicamente possível. Que faz agora esse indivíduo? Já perfez o ciclo das provas
terrestres que os demais estão apenas iniciando, já conquistou a sabedoria pela
qual os outros ainda vivem, lutam, sofrem. A terra naturalmente não é mais o seu
reino. Acabado o seu trabalho de expiação ou missão e cumpridos todos os seus
deveres para com os seus irmãos menores, nada mais lhe resta senão partir. A terra
não o interessa mais; aos outros, porém, interessa. Na terra ele se sente
estrangeiro, e o é mesmo, e como tal é tratado. A vida humana, para ele agora
inaceitável, expulsa-o de seu seio.
Já noutros trabalhos insistimos e jamais cansaremos de insistir nos deveres do
irmão mais velho para com os irmãos mais novos; a toda superioridade são
inerentes pesadas obrigações, fadigas que não assoberbam os inferiores, deveres
que se cifram em obras, renúncia e exemplo. Tarefas pesadas pesam na vida do
evoluído; ele o sabe e afronta o sacrifício. E, por força da lei de fraternidade, o
involuído é admitido a usufruí-lo gratuitamente, é admitido a desfrutar de graça o
sacrifício do mártir, que ele próprio muitas vezes é o primeiro a agredir e a sacrificar.
Isso não deixa de ser justo. Essa lei de fraternidade participa da estrutura do
universo, como conseqüência de sua organicidade e hierarquia e da unidade do
todo. É, pois, fundamental e inextinguível. Mas a própria lei de justiça limita essa
doação fraterna que ameaça transformar-se na destruição das mais importantes
conquistas da vida, representadas pelo tipo biológico do evoluído A natureza protege
os seus valores e estes, mais do que todos, devem ser protegidos por serem os
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
mais custosos e preciosos. As vias do evoluído são diferentes das vias da maioria, a
trajetória de seu destino projeta-se francamente para fora da órbita das experiências
terrestres normais, as distâncias se acentuam, as formas mentais não se compre-
endem mais. O evoluído torna-se um bólido que, lançado no espaço, emigra do
plano humano. O evoluído iniciou espontaneamente essa ascensão, que agora o
envolve e arrasta. A estrutura desse jogo de forças leva-o agora ao ponto crítico que
consiste nessa célula já madura destacar-se da massa imatura da humanidade.
Considerados a constituição e o funcionamento desse dinamismo, em dado momen-
to ninguém pode impedir a inexorável, a fatal separação dos destinos e dos
trabalhos. Então, tendo cumprido a tarefa, o evoluído vira as costas para o mundo e
vai embora, abandonando-o às suas próprias forças, para que ele, à custa do
próprio esforço, como é justo, e não do alheio, continue o caminho da própria
evolução. O individualismo, que constitui o substrato da organização social e a
dirige, recobra a supremacia. A justiça divina exige e impõe a reafirmação dos
direitos do solitário incompreendido e espezinhado. Então, o material biológico
elaborado e complexo se destaca do material primitivo e rústico. Tendo-se tornado
diferente, nos instintos e na raça, deseja ardentemente reencontrar indivíduos de
seu tipo, inencontráveis na terra, suspira por mais elevadas e adequadas formas de
vida. Deixa de lado todas as questões do mundo; não o interessam mais. Não se
incomoda mais com os problemas das pessoas que o habitam. não lhe dizem mais
respeito. Os problemas mais torturantes, pelos quais a humanidade tanto sofre e
luta, os sistemas sociais, econômicos, políticos, não mais lhe atingem o frágil
invólucro corpóreo prestes a ser por ele abandonado. Então, se ainda quisermos
seguir o indivíduo selecionado nessas ascensões biológicas, absolutamente excep-
cionais, extra-série e extra-massa, deveremos virar as costas para o mundo e
aventurar-nos em terreno que o leitor comum achará irreal e desinteressante, em
terreno que penetra no imponderável e no inconcebível. Chega-se desse modo, fora
da órbita humana, a uma atmosfera rarefeita, de natureza diferente, em que se
tornam atuais as atitudes remotas. Tudo quanto nos preocupou até agora
permanece lá embaixo, nos pântanos da terra. A força de lutar, sofrer e ascender, o
evoluído penetrou em nova forma de vida, que aos olhos dos demais surge como
remoto e inatingível sonho. Para que pudéssemos continuar, depois de esgotado o
exame dos problemas terrestres, precisaríamos de levar o leitor muito além do que
lhe é possível conceber em relação aos problemas do céu.
O evoluído está sozinho. Gênio, herói ou santo, o super-homem, por mais
humilde e humilhado que seja, tem consciência de sua verdadeira natureza de
indivíduo maduro e do natural desequilíbrio que o leva a destacar-se da terra. Os
inferiores ignaros gostariam de rebaixar-lhe o nível até eles, por força dos mal
compreendidos princípios de igualdade. Poder-se-á humilhá-lo; mas fazê-lo
retroceder, jamais. As classificações e os enquadramentos humanos não criam
valores intrínsecos e, por isso, não podem mudá-los. Nem a vida nem a ascensão
podem ser detidas. Poder-se-á rechaçá-lo e, até mesmo, matá-lo; porém, não se
poderá destruí-lo. Nenhuma força pode mudar-lhe a natureza nem impedi-lo de
continuar sendo o melhor. Em determinado ponto as amarras do mundo, dolorosas
amarras, se rompem. Ele não tem mais o que dizer, dar ou fazer. O céu espera-o.
Há muito tempo ele, embora devesse servir e sofrer preso ao mundo, pelo peso
específico se distinguia da massa, incapaz de compactuar com a maioria e de
integrar-se no rebanho. Finalmente, tudo chega ao fim, toda obrigação se esgota, o
sacrifício se consuma: consumatum est. Com essa apoteose no terreno do super-
humano fecharemos este livro.
Ao lado de seu modo especial de conceber a vida, exatamente a dor constitui
uma das notas características do evoluído. Por que razão o super-homem é
condenado a sofrer mais do que o homem comum? Exatamente por motivos ine-
rentes à sua posição. Se as verificações precedentes tendem a reafirmar os direitos
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
superado, experiência que lhe abre as portas para a expansão da vida em outros
mundos mais adiantados, únicos em que doravante lhe é possível viver. Essa dor
representa o meio de romper grilhões já por demais pesados e preparar futuro
melhor. No céu o evoluído encontra alegria, a que o involuído procura e encontra na
terra. A festa da vida está sempre no amanhã, nesse futuro melhor que, pelo menos
relativamente, está na posição por nós ocupada. O involuído amaldiçoa e teme a
dor. O evoluído, porém, ama-a e abençoa. O involuído tem a dor na conta de
destrutiva, o evoluído considera-a construtiva. Tudo depende do sujeito. O sábio,
que viveu e, portanto, sabe, não incide mais nas ilusões humanas e recebe a dor,
utilizando-a na função criadora; ri-se dos primitivos e de suas alegrias, que não lhes
deixam na consciência senão saciedade, cinzas do cansaço e náusea.
Eis aí várias causas da dor do evoluído. Se muitas vezes sua vida é trágica, a
dor transforma-o em altar de oferendas em que se consuma o holocausto supremo.
E, enquanto os primitivos se debatem entre a morte e a dor, o evoluído representa
ardente chama de sacrifício a Deus. No incêndio, ele se consome feliz, pois sabe
que, depois desta vida, vida muito mais sublime o espera.
XXV
superiores que, embora para os deste mundo se afigurem sonhos, tão longe estão
de nossa vida, no entanto a iluminam, mostrando-nos a ordem perfeita reinante aqui
embaixo também, não porém na superfície, onde, em caótica desordem, tudo nos
parece fora do lugar exato. Ao lado da vida exterior, que tantos vivem, existe outra,
interior, mas igualmente real e poderosa Se a primeira se mostra mesquinha,
podemos, ajudados pela segunda, torná-la intimamente grande. Embora não
possamos mudar as condições de nossa existência, nossa conduta será capaz de
enobrecê-la e, até mesmo, podemos com nossa flama interior tornar luminoso o ato
mais simples e comum. O maravilhoso e o sublime podem a cada passo nascer
dentro de nós, nas circunstâncias mais humildes. A própria vida de Cristo
entreteceu-se exteriormente de pequenos episódios, comuns e vazios de sentido, se
considerados em si mesmos, e determinados pela miséria espiritual de todos
quantos o circundavam. E, todavia, sua vida continuou sendo sublime. Nossa vida é
exatamente igual ao que somos. O ambiente e as circunstâncias influem apenas na
vida dos débeis, que não as dominam e, além disso se deixam dominar por elas. Em
face da miséria espiritual de tantas coisas mais importantes da vida passam
despercebidas. Aí onde os indivíduos maduros vêem e fremem de entusiasmo, os
outros passam despercebidos de tudo, correndo no encalço de futilidades. Apenas
quando possuímos grande alma e nos anima grande paixão nos pomos no mesmo
nível dos grandes acontecimentos da vida; aí, compreendemo-lhe o valor,
respondemos às vozes sublimes que vêm das profundezas do universo ilimitado,
onde cada qual vê e aprende conforme a própria acuidade visual. Assim, as
verdades correspondem às vistas, às capacidades, à evolução, variam desde as
mais grosseiras e materiais até às mais refinadas e espirituais. Onde um sussurra e
chora porque percebe a mão de Deus, aí mesmo outro sorri e despreza porque não
percebe, não compreende coisa alguma. Todos se abalançam a julgar; quem, no
entanto, acredita estar julgando as coisas, acusa e julga a si mesmo. O caos de
opiniões é ordenamento, equilíbrio, desordem que se harmoniza de novo num plano
mais elevado onde encontra possibilidade de acordo. Há quem ouça e há os surdos
também. Todos nós apenas podemos viver em nosso nível, de acordo com o que
somos. A alma, a vida interior é que dá ao homem a medida das coisas. O eu
assemelha-se a um vaso que não pode conter nada além de sua capacidade.
Fiquemos tranqüilos. O sublime não contagia. Os grandes pensamentos, as grandes
paixões, as grandes ações permanecem solitários. O mundo está sempre pronto a
compreender e aplaudir o que se encontra no seu nível. O melhor não pode afirmar-
se senão lentamente e à custa de martírio que não chega a interessar o mundo. Diz
Schuré no Sonho de Minha Vida: "É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma
agulha do que uma idéia nova penetrar no cérebro dos homens". E Máximo Gorki
acrescenta: "Quem nasceu para andar de rastros não pode conhecer a alegria do
vôo". Pior ainda nos faria pensar em face dos 14 heróicos pregoeiros da verdade, o
rifão popular: "Vulgus vult decipi, ergo decipiatur "
Em geral, o mundo interior fica entregue aos poetas, artistas, místicos, isto e, à
classe considerada mais ou menos inútil pelos homens práticos. Desse mundo, no
entanto, emanam a força propulsora do progresso e a única luz que nos ilumina e
atenua a miséria da vida quotidiana, embora materialmente muito rica. O evoluído
foge para esse mundo mais adiantado e aí se reencontra. Mundo espiritual, aí existe
a única liberdade que não se chama abuso e torna possível distender-se a tensão
das férreas necessidades da vida material. Nesta o elemento moral é menosprezado
e apenas palidamente aparece nos últimos planos; nesse novo mundo, ao contrário,
guinda-se aos primeiros planos, como fator fundamental. Trata-se de dois mundos
inversos e complementares em que nossa existência se divide e se completa, de
acordo com a grande lei de dualidade. Até agora os contrapusemos como duas
14
O povo quer ser iludido; logo, seja iludido. (N, da E.)
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
15
Sentido elevado. (N. da E.)
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
chamada evolução, que faz a vida humana progredir do tipo animal, vegetativo,
espiritualmente involuído, sensual, sensório, físico, em ondas longas, para o tipo
super-humano, psíquico, evoluído, sensitivo, espiritual, em ondas curtas. Em suma:
transforme-se de besta em super-homem. Se essa elaboração íntima conduz a vida
humana a um ritmo que vai das ondas longas às curtas, leva-a também a caminhar
do dia para a noite, afasta-a da luz e do calor de um sol poente, desmaterializa-a por
força de maturação íntima, do mesmo modo que, na desintegração atômica, a
matéria se transforma em energia; a vida humana extingue-se como forma física, a
fim de, em outros ambientes, ressuscitar sob nova forma espiritual.
Estamos discutindo estes problemas e, ao mesmo tempo, aplicando a lei acima
exposta. De fato, também a idéia constitui um binômio de forças (isto é, inversas e
complementares); e, por isso, como todo debate representa uma oscilação entre os
dois extremos opostos do mesmo conceito, conduz àquela íntima auto-elaboração
que é a maturação do pensamento, isto é, sua evolução. O leitor pode encontrar por
si mesmo muitas outras aplicações dos princípios aqui expostos. Mesmo a
radiestesia se baseia em dois tipos de movimentos pendulares inversos e
correspondentes ao bem e ao mal, isto é, capazes de, seja qual for o objeto, revelar-
lhe as radiações favoráveis ou nocivas. Se o movimento é circular, pode ser no
sentido horário (sentido do movimento dos ponteiros do relógio) e no sentido anti-
horário; se é retilíneo, falamos em sentido longitudinal e sentido transversal.
A tudo isso se poderia objetar que o princípio de causalidade não basta para
explicar a fase superior de evolução que, representando estado mais complexo,
significaria "mais" obtido de "menos", isto é, efeito superior à causa. A objeção se
justificaria, se o funcionamento do universo dependesse apenas de relação causal.
Não se concebe, aliás, desproporção entre causa e efeito nem desenvolvimento
maior do que o conteúdo do germe poderia dar. Na realidade, porém, o fenômeno
não se desenvolve como as aparências nos fazem supor. O funcionamento do
universo não pára, mas, além de orgânico, e contínuo, é evolutivo, quer dizer, é in-
términa florada de vida; a mecânica, representada pelo princípio de causalidade,
constitui apenas o processo de elaboração dessa florescência. Em resumo: na
evolução, mais do que simples relação entre antecedente e conseqüente, verifica-se
o desenvolvimento de algo latente na intimidade do ser e a sua manifestação no
mundo exterior. Os dois momentos, causa e efeito, não surgem, portanto, ligados
por uma relação de igualdade, porque no centro, na causa no germe das coisas, se
concentra o invisível poder do pensamento de Deus, poder que se expande e
desenvolve na manifestação exterior, por nós mais claramente perceptível. Todavia,
se observarmos mais atentamente, verificamos a existência dessa relação de
igualdade entre causa e efeito, não na forma, mas apenas na substância. Os nossos
sentidos, porém, só percebem a relação formal. A igualdade foge, pois, à apreciação
dos sentidos. Se existe na substância, onde o equilíbrio tem de ser perfeito, não
existe na forma, que é tudo quanto o homem percebe e, efetivamente, dá a sen-
sação de disparidade entre causa e efeito.
XXVI
Hoje, sem dúvida, vivemos como se fôssemos vulcão ativo e a música atual
constitui apenas um momento da psicologia de nossa época que, em qualquer ramo
de atividade, se apresenta como desesperada tentativa para encontrar valores
novos. Atualmente, ao invés de próximos, estamos muito afastados da
sistematização e da alegria da harmonização; estamos hoje em pleno período de
retrocesso e destruição que nos lembra o descrito no Cap. XXII - "Tempestade",
deste volume. Esse estilo musical pode ser tolerado apenas como fase preparatória
e de transição. O futuro da música não reside na desarmonia, mas na complexidade
e profundeza. Ao contrário! Se não voltarmos a percorrer esse caminho, o único
aberto à evolução musical, também do ponto de vista musical afundaremos na
barbárie. Essa liberdade exagerada de ritmos significa ruína da ordem, decadência e
destruição. Depois dos grandes clássicos não houve mais boa música. Não temos,
freqüentemente, senão cerebralismo, e lucubração, artifício intelectual sem inspira-
ção alguma, virtuosismo técnico, isto é, paródias, sucedâneos, degeneração. Talvez
estejamos agora na parte mais baixa da onda, na noite escura que precede a
aurora. Assim cremos e esperamos. Ouvido acostumado às velhas arquiteturas
musicais, que, embora mais simples, alcançaram alto grau de equilíbrio, suporta com
dificuldade, sem dúvida, essa espasmódica e caótica mudança de fase dos ritmos e
o choque dessa dolorosa ruína estética. E o espírito, para aderir e aceitar, espera
que tudo se reordene nos novos equilíbrios. Não somente a música, mas a arte em
geral, corre perigo. E, infelizmente, isso não acontece apenas com a arte. Esses
desequilíbrios significam a intromissão de novas forças; mas, se não soubermos
dominá-las, arriscamo-nos ao esfacelamento completo. Saberemos, sob o fardo
dessa riqueza nova, subirmos em direção ao objetivo final da vida e da arte, que é a
harmonização? As revoluções devem saber resolver-se em novos ordenamentos; e
exatamente para conquistá-los é que elas surgem. Apenas isso pode justificá-las.
Tudo quanto hoje fazemos está condicionado, depende de que se conquiste esse
domínio da ordem sobre a desordem e a violência revolucionária se enquadre, a
tentativa dê resultado, a inspiração retorne e o espírito nos sintonize de novo com os
grandes ritmos da vida. Nossos antepassados, mais simples do que nós, haviam-no
alcançado; somos mais ricos e complexos, mas devemos saber ganhar a luta e
realizar o imenso trabalho de progredir e consegui-lo também.
está sempre nas raízes da gênese. e da evolução. Para onde quer que nos
voltemos, sempre os dois termos opostos, que se atraem e se repelem, que se
amam e se odeiam. Duas vidas, a interior e a exterior; dois tipos humanos, o
involuído e o evoluído; dois ritmos, um longo e lento, outro breve e rápido. No
começo deste capítulo falamos ligeiramente das diferentes vias sensoriais por onde
os ritmos do ambiente penetram na personalidade humana. Mais uma vez dois
termos, dois mundos, o íntimo e o exterior, o eu e o universo. Qual dos dois o maior?
Ninguém pode negar que, assim como o mundo exterior, o mundo interior seja
imenso, infinito abismo. Os dois impulsos se chocam e se combinam e daí nasce a
vida. Luta criadora. O universo irradia e exerce pressão para, através dos sentidos,
penetrar no eu. O eu recebe, experimenta, adapta-se, assimila; irradia, reage para,
por sua vez, penetrar e, assim, domina e plasma o ambiente à sua imagem e
semelhança. Dupla irradiação, portanto, do mundo exterior para o interior e ao
contrário. A lei de dualidade, a coexistência dos dois mundos e sua atividade, enfim,
essa dupla irradiação. deles faz-nos pensar na existência de partes inversas e com-
plementares das vias sensoriais já referidas, de canais de saída que lhe
correspondam e fiquem em sentido contrário ao dos canais de entrada; faz-nos
pensar, também, na possibilidade de inversão das vias sensórias que passem a per-
correr o caminho sensorial também do interior para o exterior. Até agora vimos o
movimento dessas irradiações apenas em uma direção, do exterior para o interior. É
lógico. que, por necessidade de equilíbrio, deva também existir o movimento em
sentido contrário. Paralelamente, a natureza material dos canais de entrada deveria,
nos de saída, assumir forma espiritual. A sinfonia dos ritmos complica-se.
Examinemos o problema, agora. Veremos, então, novos aspectos do funcionamento
da lei de dualidade. Isso diz respeito inclusive à arte que, através da inspiração, vai
até às fontes íntimas para vivificar-se.
Beethoven era completamente surdo quando escreveu a Nona Sinfonia. Morreu
com 57 anos (1827) e com 29 começou a ficar surdo.. No entanto, a impossibilidade
de ouvir não interrompeu a produção genial; parece, mesmo, haver cooperado para
sublimá-la, tanto assim que seus trabalhos vão mostrando-se mais inspirados à
proporção que a surdez aumenta. Contudo, tinha ele de ouvi-las. Se não, como po-
deria concebê-las, valorá-las, trabalhá-las? Beethoven as ouvia, embora simples
sensações, com a mesma nitidez e exatidão que a percepção exterior permite. Sua
percepção era, pois, diferente, mas de igual poder, canalizada por outras vias, as
vias interiores. A atividade do musicista, que era a maior possível exatamente no
campo de ação do órgão deficiente, mostra-se independente dele. A concepção, é
claro, vinha inspirada de dentro de sua personalidade. Mas, como é que essa
concepção se transformava em percepção e, através da sensação, conseguia o
controle? Este caso faz-nos pensar no daquele homem que, para degustar qualquer
prato, apenas se limitava a ler um tratado de culinária. Podem as vibrações que
excitam os órgãos dos sentidos provirem de dentro e não de fora? Parece que os
próprios sentidos podem ser impressionados por dois lados (dualismo), isto é, por
vibrações vindas de fora e por vibrações oriundas de dentro; e mais ainda: que o
fato de não funcionar o órgão externo de modo algum isola a consciência do
indivíduo, mas antes pelo contrário o estimula a compensar-se, buscando outros
meios de comunicação. Parece, outrossim, que nessa troca, o sentido ganhe em
refinamento tudo quanto perde em objetivismo e materialidade e, finalmente, que as
vibrações podem usar vias imateriais de comunicação. Embora continuem sendo do
tipo correspondente aos vários sentidos, assumem elas forma bem mais sutil,
espiritualizam-se e, concomitantemente, a produção do gênio se sublima e
espiritualiza. Além do mais, parece que a compressão ocasionada pelo fechamento
das janelas dos sentidos, abertas do lado físico para fora, aumente correspondente
capacidade receptiva, por motivo da abertura de janelas sensórias do lado psíquico
para dentro. Já observamos esse fenômeno de compensação na dor como
instrumento de evolução, no enfraquecimento físico agindo como elemento de
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
está suspenso entre os dois mundos, dá-se nas vibrações a transformação própria
da passagem de um mundo material para um mundo imaterial. Depois que o cérebro
é ultrapassado, a telegrafia-com-fio se transforma em telegrafia-sem-fio; a vibração,
como. acontece na transmissão radiofônica, liberta-se do suporte de seu condutor e,
apoiando-se apenas no éter, torna-se livre, radiante. De modo que o cérebro se
relaciona com duas formas de vida, a material e a espiritual; a primeira o atinge
através de vibrações canalizadas pela rede do sistema nervoso; com a segunda ele
se comunica por meio de radiações em liberdade no espaço. O cérebro não é, por-
tanto, apenas a central nervosa em que se coletam, em síntese, as correntes
elétricas do organismo físico, mas é também estação transmissora, parecida com
estação de rádio ou de televisão. Eis como o cérebro se liga ao termo final de todo o
percurso, o espírito. Só agora está completo o caminho que vai do objeto exterior ao
eu cognoscente. Aqui estão os vários pontos do trajeto completo; objeto exterior,
cristalino, retina, nervo óptico, cérebro, espírito. A proporção que progride, a corrente
dinâmica sofre várias transformações até atingir o cérebro para poder continuar
progredindo, já agora no reino espiritual, desmaterializa-se, adquire forma radiante,
isto é, a forma característica do espírito, pois, para que possamos comunicar-nos
com os outros, temos de falar a mesma linguagem. Qualquer um pode facilmente
imaginar e fazer o gráfico representativo desse percurso.
Assim é que, por esse caminho e através dessas transformações, a percepção
sensória pode chegar ao espírito. A verdadeira visão não se realiza, portanto, no
cérebro, mero diafragma intermediário e transformador de energia, mas acima dele,
do outro lado do binômio vital. De fato, a síntese óptica final é muito mais do que
simples registro cerebral. Enquanto no particular existe a forma receptiva da vida, no
outro lado, no da matéria, do organismo físico e dos seus vários órgãos, inclusive o
cérebro, o estágio final é processo sintético, unitário, é juízo, confronto, coordenação
e reação. O cérebro apenas registra e, desempenhando o papel de secretário ou
escrivão, se encarrega da conservação mnemônica. Só no espírito, a que o cérebro
é órgão subordinado, é que se realiza esse trabalho complexíssimo e laborioso, se
movem as forças imateriais, inteligentes e conscientes, que tudo sabem, querem e
dirigem. O cérebro está para o espírito assim como o olho está para o cérebro. Só o
espírito diz: eu. O cérebro não pode dizê-lo porque não passa de um órgão. Através
dos condutores elétricos do organismo, dá-se, certamente, a confluência de suas
correntes dinâmicas, sua concentração na periferia capilar, em contato com as
células, e a mistura dessas correntes todas. Mas a síntese totalitária depende do
ego e não do órgão. Há muitos órgãos e funções, mas o eu é único; não é instru-
mento guiado, mas centro que guia. Apenas ele é consciente; todo o trajeto
precedente não passa de inconscientes movimentos automáticos. No espírito, a
vibração, que se tornou radiante, atingiu o termo final, depois de, para atingi-lo,
haver passado por vários graus de transformação, através de vários órgãos
especializados, de capacidades e funções diferentes; e depois, também, de haver
percorrido o caminho de que um trecho está num mundo e outro trecho está no
outro, embora os órgãos se relacionem estreitamente e as fases sejam contíguas e
sucessivas, de modo a formar um caminho desembaraçado e contínuo de um
extremo a outro. Com isso, a primeira metade do trajeto foi percorrido e o período de
ida está completo e acabado. Nada mais nos resta senão examinar a segunda
metade do circuito, isto é, o período de volta, a parte inversa e complementar em
que a primeira se completa e cuja existência é indicada e imposta pela universal lei
de dualidade. Portanto, observemos agora como a corrente se move em sentido
contrário, desse modo completando o ciclo.
Gerador de vibrações não o é somente o mundo exterior, mas também o mundo
interior. O mundo imponderável da personalidade é muito mais vasto e rico que o
dos fenômenos tangíveis. Não o vemos, muito embora lhe saibamos da existência.
Representamo-lo por imagens que no-lo revelam no campo das sensações e nos
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
16
Sustenta-se por si mesma. (N. da E.)
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
aplicação dos princípios já expostos; são estas afirmações nada mais nada menos
que resultado experimental.
Cada uma das duas vias, consideradas de per si, representa a metade da dupla
vida total. A verdadeira vida completa é binômio bipolar e bifronte. Eis nova
aplicação da universal lei de dualidade. E até mesmo neste caso o binômio se
equilibra em dois termos inversos e complementares. Observemos mais ainda.
Temos espírito e corpo, o imponderável e a matéria, consciência e fenômeno, o eu e
o ambiente, a vida interior e a exterior, contemplativa e ativa, a percepção espiritual
e a percepção fisiológica, a impressão subjetiva proveniente do mundo interior e a
impressão objetiva proveniente do mundo exterior. O primeiro termo eletricamente
positivo; o segundo, negativo; o primeiro é em ondas curtas; o segundo, em ondas
longas; um é de alta; o outro, de baixa freqüência; e, na passagem de um a outro
extremo e ao contrário, deve dar-se mudança de sinal, de comprimento de onda e de
freqüência (muito mais notável que a simples normalização das imagens ópticas).
Entramos ao nascer, no segundo tipo de vida e dele saímos ao morrer; ao morrer,
entramos no primeiro e dele saímos ao nascer. A própria lógica da arquitetura do
universo impõe esses equilíbrios todos. A verdadeira vida, completa e íntegra, oscila
continuamente de um a outro de seus pólos. Só assim, percorrendo alternativamente
uma e outra metade, o ser incompleto pode viver a vida integral. O tipo comum está
na terra do lado que parece vida, mas é morte, se visto do lado oposto. Para os do
além, ele parece indivíduo entorpecido, à mercê da ilusão dos sentidos. O evoluído
não sabe viver apenas a vida dos vivos, mas vive também a vida dos mortos. De um
lado é dia; do outro, noite; de um lado, luz; do outro, trevas. Tudo conforme, é claro,
com a posição em que nos encontramos. Na terra, para os vivos a via direta e
normal da percepção é a fisiológica; a inversa e excepcional é a via espiritual. Para
os mortos ou, melhor, para os vivos de além-túmulo, a via direta e normal da per-
cepção é a espiritual; a via inversa e excepcional é a via fisiológica. Entre as duas
formas de sensibilidade existe a mesma relação que entre vigília e sono; a primeira
caracteriza-se por percepção límpida e exata; a segunda oferece-nos percepção
vaga, sonambúlica. Quando o estado ativo se manifesta num lado da vida, as
qualidades do lado oposto permanecem latentes, em estado de espera e em
repouso Assim, funcionando cada uma por sua vez desenvolvem-se graças a essa
atividade alternada, enquanto a outra parte, a antítese do binômio, permanece por
sua vez à espera. Essa oscilação entre atividade e repouso, entre ausência e
presença, entre vida e morte, constituí o ritmo do fenômeno vida, em relação a cujos
ritmos se fazem as harmonias universais. O fenômeno vida não pode constituir
exceção dessa lei de simetria, de justiça compensadora. Em nosso universo, tal
como está construído, não passa de absurda qualquer posição de desequilíbrio, não
compensada pelo correspondente impulso contrário. Uma única exceção faria
desabar todo o edifício.
A percepção inversa, espiritual, pode dar-nos idéia do tipo de sensações
dominantes do além-túmulo. Além disso, se aparecem também neste mundo e,
portanto, existem como fato objetivo e experimental (clarividência, inspiração, visões,
profecia), é-nos lícito perguntar para que servem, tendo em vista as finalidades
biológicas, as qualidades super-normais. E não nos esqueçamos de que, na
natureza, todas as coisas existentes, pelo simples fato de existirem devem ter
objetivo determinado. Trata-se de qualidades que esperam sua vez de entrar em
atividade; estão adormecidas agora, mas viverão na outra vida, que chamamos
morte. Por isso, enquanto a sensação terrena resulta da vibração específica de uma
série de células enfileiradas à maneira de canais condutores, no além-túmulo a
sensação é causada por um estado vibratório sutil (de ondas curtas e alta
freqüência), que, todavia, abrange todo ser imaterial. Teremos sensações de grande
extensão e alcance, se comparadas com as sensações limitadas, mas precisas, da
vida terrena; no entanto, para nós que estamos chumbados às vias limitadas dos
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
XXVII
criação artística não passava de revelação. Isso nos mostra como grande parte de
nós mesmos opera fora do campo da consciência lúcida, onde se manifestam
apenas os resultados de numerosos processos de elaboração e maturação. Nesses
casos como influem pouco nossa vontade e nosso esforço! Nossos conceitos podem
ficar adormecidos dentro de nós, bem recalcados e invisíveis nos planos mais
profundos da consciência. Não obstante, desenvolvem-se e se aperfeiçoam, como
se, aí nessas profundidades, reencontrassem a ordem divina, e se fortalecessem
graças à retomada de contato com a essência e as origens das coisas. Mais cedo ou
mais tarde, porém, uma vibração afim os desperta e por sintonia (as outras
vibrações não o conseguem) os faz reaparecerem, como um relâmpago, no campo
da consciência. Percebe-se facilmente que se trata de criação pura e simples;
constitui conquista de espírito, que exulta por desse modo aproximar-se de Deus. A
meditação prepara o fenômeno, coloca a matéria-prima no abismo do espírito,
propõe o problema e lança a interrogação. Silêncio. A mente debate-se no
redemoinho do pensamento, não consegue escapar-lhe, logo se cansa e esquece.
Mas pôs em liberdade uma força que continuará agindo. Onde? Como? Esquecemo-
la, chegamos quase a ignorá-la. E eis que de repente ressurge, transformada,
fortalecida, luminosa. E antes se nos mostrava obscura e cansada! A alma, então,
grita, como Arquimedes pelas ruas de Siracusa: "Eureka, eureka". Quem viveu o
fenômeno inspiração sabe que a concepção mais profunda corresponde a uma
posição psiquicamente inerte, de desatenção passiva, de distração relativamente ao
assunto ou, mais exatamente, num estado de inexistência do pensamento ativo
normal; sabe que, quanto mais rápido e percuciente for do ponto de vista sensorial,
quanto mais, em relação à vontade, tende para a pesquisa e a observação, tanto
mais esse pensamento serve de obstáculo à intuição. Sabe também, por
experiência, que toda atividade reflexa de atenção e controle, toda tentativa cons-
ciente no sentido de passar do estado passivo de contemplação ao estado ativo de
apreensão (recordação, controle, raciocínio, escrita etc.), destrói a miragem e faz as
idéias se desvanecerem.
Isso tudo nos mostra esta grande verdade: a criação inspirada constitui
fenômeno de colaboração entre o homem e Deus, isto é, a construção, como se
poderia crer, não resulta apenas da vontade e da ação, mas também no
cumprimento da Lei, na obediência a Deus, a quem devemos entregar-nos sem
reservas. Mostra-nos também que a finalidade criadora se atinge ativa e
passivamente, não só se impondo às sábias forcas vitais, mas também deixando-se
arrastar por elas. A sabedoria egípcia resumiu num aforisma esse conceito: "o
arqueiro atira ao alvo, esticando e soltando o arco; o nadador chega à praia,
nadando e ao mesmo tempo deixando-se levar pelas ondas". Em conseqüência da
lei universal de dualidade, também esse fenômeno resulta do equilíbrio de duas
partes inversas e complementares. Portanto, queremos e fazemos tudo quanto for
necessário; somos, porém, tão ignorantes, limitados e imperfeitos que necessitamos
de ser guiados por uma sabedoria que nos supra a ignorância e por uma força capaz
de trabalhar onde a nossa não o consiga mais. E além de nossas possibilidades está
a Lei que satura a corrente das coisas com o pensamento de Deus e plena de
natural sabedoria. Assim, parte de nossa melhor atividade pode consistir em
obedecer à vontade de Deus. Assim, depois que fizemos nossa parte do trabalho,
nossa obrigação cessa e convém abandonarmo-nos à Providência. Por isso o
mundo consegue, em caótico estado de inconsciência, falar sobre assuntos de que
não entende absolutamente nada. Do ponto de vista racional isso se chama
inconsciência, pois o homem não prepara e, além do mais, ignora o seu futuro. Mas,
do ponto de vista da intuição, no instinto em que a Lei se faz ouvir, essa atitude
representa, em essência, maravilhosa fé na sua sabedoria e na proteção divina. E a
vida, que se sabe protegida, vai progredindo. Apenas desse modo se justifica o fato
de querermos continuar a viver e a reproduzir-nos para irmos ao encontro de futuro
pleno de espantosas incógnitas, embora saibamos que a vida nos oferece apenas
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
canseira e dor.
A intuição constitui fenômeno espiritual e, por isso, revela e cria. A razão, ao
contrário, é função cerebral e, pois, mais do que à concepção de grandes idéias
reveladoras, orientadoras e sintéticas, se destina às pequenas idéias da vida
terrestre, práticas e analíticas. Algumas aplicações. A ciência moderna tem
desvantagem em ignorar a vida do espírito e não dispensar-lhe cuidado algum. Esta
ciência, porém, é filha de fase materialista do pensamento humano, quer dizer,
racional, em antítese com a fase intuitiva; limita-se, em conseqüência, ao lado
terrestre, prático, utilitário e material da vida. Pelo menos, enquanto essa fase não
for superada, a ciência moderna não pode conhecer-lhe senão a referida parte.
Enquanto isso, permanece na zona constituída de experimentos, análises, afastada
da que se constitui de intuições e sínteses. Isso a torna incompleta, mutilada pela
orientação, pela visão de conjunto necessárias para dirigir as pesquisas e chegar a
uma conclusão. De fato, a ciência moderna tem finalidades utilitárias e não sabe pô-
las de lado. Essa unilateralidade representa lacuna e defeito graves. Mas também a
síntese é necessária, mas a síntese não se consegue senão através da intuição, isto
é, trabalhando no pólo oposto ao em que trabalha a ciência ou, seja, no pólo
espiritual. Ativa ao lado material, a ciência acumula conhecimentos, porém não
fecunda. Falta-lhe a centelha do espírito. É necessário, sem dúvida, acumular
conhecimentos materiais; mas é necessário também, como acontece no binômio
sexual, que mais tarde o outro termo intervenha e os fecunde. Se isso não se der,
coisa alguma pode nascer. Quem afirma ser verdadeiro apenas o que possa ser
demonstrado experimentalmente não exprime senão parte da verdade e ignora a
outra metade, que afirma serem fruto de inspiração, fruto mais do espírito que
experimental, de laboratório, todas aquelas verdades fautoras do progresso
científico. Como conseqüência das observações até aqui feitas assinalamos, para o
bem da ciência, o perigo constituído pela exasperação analítica de nossos dias,
limitados a acumular experiências ao invés de se estenderem à descoberta de
relações remotas, o perigo da especialização divergente devida ao predomínio
desse método analítico. Se não ocorrer mudança de direção, que inteligentemente
nos impulsione para direção convergente e conclusiva, esse caminho nos conduzirá
à pulverização da consciência. Membros não nos faltam; o que nos falta é cabeça.
Os fatos acumularam-se demais; falta-lhes o senso unitário da coordenação. Há
cento e poucos anos Augusto Comte escrevia em seu curso de Filosofia Positiva,
anunciando o advento do período atual: "O presente período é a idade de
especialização, graças a universal preponderância do particular sobre o espírito de
conjunto". A observação muito minuciosa nos tornou míopes. G. B. Shaw chega a
dizer: "Ninguém pode ser puro especialista sem ser perfeito idiota, no mais rigoroso
sentido do termo". Leonardi na introdução de seu livro A Unidade da Natureza
(1933), acrescenta: "Seria necessária uma classe de cientistas que, sem entregar-se
inteiramente à cultura especializada, se ocupasse unicamente da determinação do
espírito das diversas ciências, descobrindo-lhes o nexo, a fim de determinar-lhes os
princípios comuns". Henri Poincaré, no seu livro A Hipótese e a Ciência, afirma que
"também as ciências, inclusive as mais exatas, necessitam de certa inspiração e
devem seus progressos ao fatigante trabalho das faculdades subconscientes". Em
seguida acrescenta: "É quase infinito o número de fenômenos; por isso, não pode-
mos submetê-los todos a experiências". "A menos que não se queira conseguir
simples acumulação de fatos... pois a experimentação nos dá apenas certo número
de pontos isolados, torna-se necessário ligá-los". Não basta, portanto, que a
observação registre e a experiência controle; não caminhamos de modo algum
senão à luz da intuição. Esta, naturalmente, deve submeter-se ao controle da
experimentação, que, sozinha, jamais abandona os atalhos experimentais para
percorrer a estrada real do conhecimento. Ao lado das pequeninas experiências
particulares, espalhadas pelo infinito mundo fenomênico, é necessária também a
experiência unitária do ego, único a quem se torna possível aproximar-se do pensa-
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
XI); "Tudo deve reentrar na Divindade" (Cap. LXIII); "Não temais diminuir-lhe a
grandeza, dizendo que Deus é também o universo físico" (idem). Esses conceitos
vamos aprofundá-los e esclarecê-los mais no próximo volume: Problemas do Futuro.
Voltemos ao problema da personalidade humana. Já dissemos resultar a
evolução biológica de evolução dupla e inversa, a material, terrena, e a espiritual,
ultra-terrena; ela realiza-se através de duas experiências opostas, isto é, de vida
ativa e de vida contemplativa. Quem realiza esse trabalho? E como se divide ele? O
espírito, de sinal positivo, masculino, dinamiza e dirige a evolução. Preside às
experiências da vida. Emprega-as para elaborar-se e, por conseguinte, elaborar
também o seu corpo, aperfeiçoá-lo, desmaterializá-lo. O espírito evolui em direção a
planos cada vez mais elevados, arrastando-se atrás de seu veículo material, quer
dizer, utiliza corpos cada vez mais sutis, adaptados à sua fase evolutiva e a formas
relativas de vida. Compreende-se que, para poder fazer experiências, o espírito
sempre necessita de um corpo, na função de outro extremo do binômio; para isso,
não importa esteja o corpo desmaterializado ao ponto de parecer incorpóreo. Ele
sempre constitui veículo adequado, quanto à finura e à sensibilidade, ao grau de
evolução atingido pelo indivíduo, que, graças ao seu peso especifico, se equilibra,
escolhendo um ambiente onde as provas sejam proporcionadas às qualidades
adquiridas por ele.
O organismo corpóreo, de ondas longas e baixa freqüência, segue, portanto, o
espírito que caminha para a evolução, isto é, aproxima-se, morrendo e ao mesmo
tempo renascendo, do extremo oposto, de ondas curtas e alta freqüência,
transformando sua vibração em vibrações deste último tipo; em uma palavra:
espiritualiza-se. A corrente de vibrações, que sobem das múltiplas experiências
sensoriais e convergem para a síntese espiritual, fornece as forças a elaborar; ao
mesmo tempo, porém, uma corrente paralela desce do espirito ao organismo,
invade-o com tipos de energia cada vez mais bem elaborada, quer dizer, de ondas
cada vez mais curtas e freqüência cada vez mais alta; desse modo, lentamente o
potencial de toda a personalidade se eleva de um extremo a outro, inclusive na parte
física. Dessa oscilação de atividade, conexão e repercussão de forças deriva a
evolução. Embora a evolução se opere graças ao princípio ativo, o negativo também
colabora; não fora ele, e faltaria ao primeiro a matéria a ser plasmada, a substância
com que construir. Observamos nesse caso a mesma divisão de trabalho existente
entre homem e mulher. O organismo físico coleta e acumula; o espírito dinâmico
elabora e progride. O primeiro engorda, preguiçoso e vegetativo, e se sacia apenas
satisfaz os instintos de conservação e de reprodução; o segundo gasta a vida
vegetativa na consecução de fins mais elevados, bate-se e atormenta-se na ânsia
de evoluir. Esse é o duplo aspecto da vida.
No entanto, esse dualismo espírito-matéria não basta para esgotar o problema
da personalidade. Não é a única bipolaridade da vida essa antítese entre periferia e
centro, entre as correntes de ascese e descensão pelas quais se distribui, entre os
dois termos, o positivo e o negativo, a atividade evolutiva. A esta bipolaridade, que
poderíamos figurar como bipolaridade vertical em que, do ponto de vista evolutivo, a
matéria está em baixo e o espírito em cima, imaginaríamos superposta uma
bipolaridade horizontal em que o princípio biológico positivo, derivado do núcleo do
espermatozóide paterno, e o princípio biológico negativo, derivado da célula-ovo
materna, se situam à direita e à esquerda da bipolaridade vertical. A consciência
humana, portanto, é o ponto de convergência da orquestra de vibrações
provenientes dessas quatro grandes vias determinadas pelo cruzamento dos dois
binômios. Disso é que somos constituídos, somos filhos e parentes, isto é, desse
conjunto orgânico de forças e correntes, quer dizer, de algo muito mais complexo e
extenso que a carne dos nossos pais, por mais que essa carne tenha vivido e traga
inscrita em si mesma a sua história. A personalidade humana abrange os dois
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
dominar pacificamente, sem resistência, todo o campo da ação, pois a parte oposta
o abandonou inteiramente e nenhum controle exerce mais sobre ele. A decisão,
assim, torna-se fácil, simples, automática, retilínea, sem lutas, oscilações e dúvidas.
São poucas as forças empenhadas na luta; por isso, encontra-se rapidamente a
solução. Parece até rapidez o que, no entanto, não passa de simplicidade e pobreza
de meios. Outros, ao contrário, aparecem tarde e, apesar disso, são ricos e
complexos; neles o desequilíbrio não se resolveu pela pacificação estática e
continua alimentando a contradição. Neles as duas personalidades, ambas
prepotentes, concorrem contemporaneamente em todos os atos, levando-lhes tal ri-
queza de forças propulsoras e contraditórias que as divisões se tornam muito mais
laboriosas. Daí deriva completa gradação de manifestações volitivas e de
capacidade decisória, gradação que varia desde a ação imediata até à irresolução,
da ausência de controle observável no impulsivo até o controle tão rigoroso ao ponto
de paralisar a ação (Hamlet), da ação desorientada até à orientação inativa, isto é,
a reflexão paralisante. Tudo isso depende das características dos dois elementos:
paterno e materno. Não se fundem ou se fundem mal, se muito dissemelhantes do
ponto de vista biológico. Desse fato resultam todas as anormalidades descritas na
fenomenologia psiquiátrica; as conformações mentais em que se predominam a
dissonância e a instabilidade; o desequilíbrio dinamizante, mas perigoso, que, se
controlado e reconduzido a ordem superior, pode constituir o gênio e, se.
abandonado a si mesmo, se desfará na loucura Geralmente, porém, os dois
estímulos, paterno e materno, acabam por harmonizar-se Se a diferença for
demasiado grande, nascerá um caráter mais ou menos estável e equilibrado,
verdadeiro mosaico de tendências. Se pensarmos em como, na reprodução, os
elementos determinantes podem grupar-se em combinações infinitas,
compreenderemos que inexaurível quantidade de tipos pode a natureza produzir. Na
realidade, não existe o tipo normal, isto é, o tipo médio perfeito e absolutamente
equilibrado. Portanto, não existe o completamente anormal, o tipo patológico
absoluto. A vida a cada passo nos oferece exemplos de compensação! Quem não
vence hoje amanhã talvez vença! Ao contrário, novidades, coisas originais,
personalidade brilhante podem nascer desses desequilíbrios, se soubermos dominá-
los, coordená-los e discipliná-los, desequilíbrios que, assim, se tornam qualidade
preciosa, capaz, só ela, de oferecer contribuição inédita ao pensamento e ao
progresso. A natureza, embora pareça proceder. por tentativas, sabe errar e corrigir-
se; de qualquer modo sempre nos compensa do que nos manda; deixa-nos cair para
ensinar-nos a levantar-nos; expõe-nos aos assaltos, mas guia-nos à vitória e, por
ela, à aquisição de novas qualidades, ao enriquecimento do nosso patrimônio de
capacidade e defesa Todos os golpes recebidos são registrados no livro da vida,
onde tudo fica escrito, de modo a poder ser lido em qualquer tempo. A moléstia
tende a imunizar-nos, o erro a instruir-nos, a queda a reequilibrar-nos, a fraqueza a
fortalecer-nos Tudo acaba sendo utilizado e transmitido e a vida imortal, desse
modo, enriquece e acumula grande acervo de complexas heranças, através de
prolongadíssimas experiências milenares que o nosso organismo incorpora e possui
como riqueza oriunda da imensa sabedoria biológica, que, aliás, cada um de nós
carrega consigo, sem sequer imaginá-lo. Desse modo, na batalha entre as duas
forças contrárias, a natureza surge como grande harmonizadora, demonstra ser
potência benfazeja, sábia, previdente e protetora, que transforma os desequilíbrios
em elementos dinâmicos e criadores, as dissonâncias em harmonias, o dinamismo
contraditório em personalidade original e potente.
Essas observações são válidas apenas no campo estritamente biológico; não
bastam para resolver o problema da responsabilidade moral e esgotar o da
hereditariedade. A personalidade humana também resulta de outras forças e de
outras posições. Já analisamos a luta no interior do binômio horizontal; não
observamos ainda a que se trava na intimidade do binômio vertical, com que a
primeira se harmoniza. Acima dessas incompatibilidades biológicas se situa o mundo
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
XXVIII
cabeça no caminho da evolução. Tudo isto ainda não é suficiente. Como e onde se
localizam as sedes destas diversas funções? Onde são depositadas, elaboradas,
captadas as respectivas anotações? Ligamo-nos aqui aos conceitos dos últimos
capítulos. A sede do subconsciente, seus paralelos e atividades está na estrutura
celular, nos tecidos, na carne da raça, zona de animalidades, de instintos, de
memória biológica. As experiências primordiais e fundamentais da vida, fixaram-se
em automatismos nestas profundas e antigas estratificações biológicas, comuns ao
homem e ao animal. Freqüentemente, para o homem, este é o seu passado, a zona
mais profunda, situada no extremo da evolução. A sede do consciente está no sis-
tema celular escolhido, selecionado, no ápice da evolução animal, aperfeiçoada até
às portas do espírito, com funções psíquicas: o sistema nervo-cerebral, zona
humana, da razão, zona dos mais recentes feitos biológicos ainda não fixados em
automatismos, ainda em processo de formação, fase central da evolução do ego,
fase de elaboração e livre escolha. Obedece-se a instintos inconscientes da carne,
mas raciocina-se com o cérebro. Freqüentemente este é o presente do homem. A
sede do superconsciente está além da parte material, sensitiva, do organismo físico,
situada no imponderável, no espírito. Vimos no cap. XXVI (“A Música – A Vida
Dupla), deste volume, suas relações com o sistema cerebral e que aqui a vibração,
separando-se de seu nervo transmissor torna-se radiante, livre, de ondas curtas e
alta freqüência Estas qualidades ainda não conseguidas no plano inferior, permitem
ao superconsciente a transmissão telepática, a captação noúrica, a visão sintética da
verdade, isto é, o uso natural e normal do método intuitivo, próprio do supercons-
ciente. Tudo isto representa a zona super-humana, o mundo do evoluído, o reino do
espírito, a fase mais elevada da vida humana, que o homem laboriosamente vai
conquistando, formando sua estrutura espiritual, fase situada acima de nossa
evolução humana. Para a maioria, isto é futuro, exceção Raciocina-se com o
cérebro, mas unicamente o espírito é capaz de intuição.
Para o homem comum a zona lúcida, a fase atual, é a cerebral. Normalmente
esta é a sede consciente do ego. Este se estende pelas duas outras zonas,
inconscientemente porém. O ego cerebral e consciente acha-se no centro da
personalidade, entre seus dois extremos contíguos, o subconsciente e o
superconsciente; está em contato, em comunicação recíproca, beneficiando-se pelo
instinto e intuição, relativamente ao seu desenvolvimento e potência. Todas as
correntes da personalidade trifásica, de qualquer plano em que estejam,
reencontram-se no ego cerebral, central, consciente, unindo-se no campo da
consciência às duas zonas laterais extremas, fazendo convergir para aí as próprias
aquisições por que são representadas. Conhecemos suas vozes, distinguimos três
fontes e três correntes: a voz do instinto, a voz da razão e a voz da consciência. A
primeira e a última vêm de longe, são produtos-sínteses; a segunda é presente,
atual, analítica.
A razão apreende, controla, discute. Torna-se, às vezes, campo de batalha
entre as diversas correntes, quando divergem entre si ou da razão e se revela difícil
a harmonização. Nasce, então, a interferência das vibrações e a luta se estabelece
entre os vários impulsos. São por demais conhecidas essas tempestades íntimas.
Porém, especialmente no evoluído, de superconsciente mais desenvolvido, se
desencadeia com mais violência a guerra entre o superconsciente e o sub-
consciente, entre o passado e o futuro e ao contrário, entre espírito e matéria; entre
os dois extremos da evolução que se batem pela posse da consciência, como
campo de realizações.
O subconsciente contém o patrimônio adquirido, coletivo, as reservas da raça,
o decálogo da vida animal, inscrito na carne e no sangue. A célula conhece-o muito
bem, graças à repetição milenar que ratificou as experiências originárias. Esse é o
alicerce do edifício biológico, o ponto de partida da evolução humana. A célula, na
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orientação a que obedecem seus íntimos movimentos atômicos traz inscrita a sua
longa experiência; e, por inércia, não deixa esgotarem-se os impulsos recebidos do
ambiente e agora transformados em conhecimento por si mesma adquirido. E desse
modo continua a emitir correntes de ordem, aviso, consentimento, proibição. A razão
apreende, procura tomar consciência e quase sempre, embora não compreenda,
obedece a essa sabedoria mais profunda, porque a reconhece verdadeira e também
porque, embora sepultada nas profundezas da célula e nas trevas do subconsciente,
essa memória biológica continua participando do seu ego. O subconsciente, que re-
gistrou tudo e se recorda de tudo, está sempre por detrás de nós para guiar-nos,
executa, por nós, automaticamente, inúmeras atividades e resolve, em nosso lugar,
grande quantidade de problemas, sem perturbar nem agravar o consciente. Simples
divisão de trabalho. Representando o patrimônio comum e a sabedoria da vida, o
subconsciente diz respeito à hereditariedade fisiológica com que se transmite. A
célula constitui-lhe, de fato, a sede e o canal de transmissão. O subconsciente
contém o capital hereditário que mais do que ao indivíduo enquanto indivíduo.
pertence à vida. É riqueza que recebemos ao nascer, como bagagem necessária
para percorrermos o pedaço de caminho representado por uma existência. O
patrimônio individual, diferenciado, que não se transmite por hereditariedade
fisiológica celular, mas, como vimos, por hereditariedade espiritual, está situado no
espírito. Vivendo como corpo, acumulamos o primeiro desses patrimônios e, vivendo
como espírito, o segundo. Mas bem poucos possuem esse patrimônio individual; a
maior parte da humanidade encontra-se ainda nos alicerces de sua construção
espiritual, que no atual estado evolutivo, não pode ser o resultado de esforço
coletivo, e sim individual. O superconsciente é produto pessoal diferenciado e, por
isso, não obedece à hereditariedade comum que se processa através dos caminhos
da carne.
Podemos, agora, concluir a exposição do problema da hereditariedade, de que
já cuidamos no final do capitulo anterior. A vida é bipolar e, por isso, uma
hereditariedade adequada garante a continuidade de cada um de seus dois
extremos: a fisiológica responsabiliza-se pela transmissão do subconsciente; a
espiritual pela transmissão do patrimônio do superconsciente. Portanto, duas vias,
dois canais abertos, um material e outro imaterial, ambos adaptados à transmissão
dos resultados das experiências de dois organismos diversos, as do corpo e as do
espírito. (Cf. as palavras de Cristo a Nicodemos: “O que se gerou da carne é carne;
o que nasce do espírito é espírito": João, 3:6) Do subconsciente e do
superconsciente, os dois diferentes patrimônios, acumulados no passado que
vivemos em ambas as formas, e que, nos dois campos herdamos de nós mesmos,
emergem no consciente, oferecendo-lhe suas úteis produções. A carne adquiriu
experiência própria e repete-a. O espírito adquiriu a sua e ofereceu-a. A criança
desenvolve-se plasmada por ambas as forças, cujo desencadeamento ela mesma
preparou, cresce debaixo dessa dupla orientação, e influência, útil e necessária em
ambas as formas. Trata-se de simples restituição, é propriedade nossa que nos volta
às mãos e nos diz respeito, porque esses dois patrimônios, na medida em que
existem, nós os conseguimos com nosso trabalho. Cada um dos dois transmite a si
mesmo e, em seguida, age como força, mas operando cada qual no seu próprio
campo; cada um constitui impulso que, por força da lei de causalidade, se liga ao
próprio passado de que constitui conseqüência e continuação e se imprime no eu
atual, plasmando-lhe o corpo e o espírito. Esse impulso representa a incorporação já
acabada, a zona já formada, e por isso fatal, de nosso livre destino (cf. cap. XXIV:
"Nosso Livre Destino", deste volume). E como a memória biológica reconstitui o
organismo físico, repetindo a história celular, continuada agora através da
hereditariedade biológica, assim também o espírito reconstrói a personalidade moral,
repetindo-lhe a história, agora continuada através da hereditariedade espiritual. O
espírito, amparando-se nos instintos do subconsciente delegados à vida animal,
plasma a criança, compondo-lhe a personalidade e, quase sem que ele o perceba,
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17
Sem limites (N. da E.)
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
expressão da oposição dos termos, deseja e procura aquilo mesmo que é o objeto
de seu combate, aparentemente para destruí-lo, mas na verdade para apoderar-se
dele, devorá-lo, assimilá-lo, tornando-o parte de si mesmo. Por esta única razão
combate, primeiro para que seu adversário, igualmente incompleto e desejoso de
completar-se, não o devore, não o assimile; depois porque ele próprio sendo
imperfeito é sequioso de aperfeiçoar-se no outro. Eis o que é a vida: o estrugir de
uma batalha que é unicamente desejo de amor.
A luta pela vida nasce do dualismo, unilateralidade e privação, havendo sempre
atrás do amor o ódio, e atrás do ódio, o amor. Embora cada ser egoisticamente se
incline a isolar-se do todo, contínua fazendo parte do todo, e por mais que deseje
dominar para impor-se aos outros, na verdade não passa de um pobre que procura
completar-se. Reaparece então uma bipolaridade inversa: conquanto o egoísmo seja
indispensável à vida do indivíduo, sem altruísmo não pode haver nem fecundidade,
nem geração. O primeiro, que parece conservar e acumular, torna-se um fator de
separação e destruição; o segundo, que parece dissipar, constrói e une. Todas as
possíveis atitudes da vida humana acham-se compreendidas no binômio egoísmo-
altruísmo, composto de dois termos contrários que se completam. E todo esforço
está compreendido num sistema de equilíbrios que o tornam possível somente
dentro dos limites impostos pela Lei e sem possibilidade de causar desordens ao
funcionamento universal. Assim, a luta se transforma em elemento de fecundidade e
construção; não é, como pode parecer, caos e destruição, mas fator regulado dê
evolução. Há compensação e equilíbrio: o eu luta para se assegurar contra tudo e
contra todos, mas por lei tem necessidade de outros para unificar-se com a
totalidade. Todo elemento está, por Lei, unido ao seu oposto de tal modo que
altruísmo e egoísmo, atração e repulsão, impulsos contraditórios, se
contrabalançam, se equilibram perfeitamente.
Tudo nasce corroído interiormente por essa autocontradição que cada ser traz
em seu íntimo e em seu exterior. Porém, ao mesmo tempo, em si tem o remédio
necessário. A própria contradição que supõe extermínio, subentende a construção,
tornando-se princípio evolutivo de rejuvenescimento. Portanto não se pode dizer
imperfeita uma natureza que traz no íntimo de sua imperfeição tanta beleza, a Lei
que, apesar das aparências de desordens e desalinho é a própria substância da
ordem e disciplina. É verdade que a natureza é falha, insegura em suas tentativas,
sempre cega em frente ao desconhecido, porém, assim como tende a cair e pecar,
como é grande seu poder de restauração, e que riqueza de possibilidades! Que
variedade de doenças, mas que abundância de remédios! Continuamente
perseguida, furtivamente ameaçada a cada passo, a vida prossegue ininterrupta,
triunfando de todas as negações. Também aqui, a realidade é bipolar: exteriormente
imperfeita, é em seu íntimo, realmente perfeita; corruptível e transitória na forma, é
substancialmente incorruptível e eterna. Enquanto tudo ao seu redor se deteriora e
acaba, seu interior é uma fonte inexaurível de fecundidade e rejuvenescimento. Em
meio à instabilidade do futuro nas formas-efeito, permanece intacta a estabilidade do
imutável no princípio-causa. Daí nasce a beleza e a necessidade do movimento.
Tudo roda em contínua erosão sem que nada se destrua, tudo é tomado de assalto
mas a vida continua ilesa. Do movimento, nasce a grande ilusão, a periferia
complexa, mutável, fugidia. Porém só na periferia. Desçamos um pouco abaixo da
superfície revolta do oceano e encontraremos a calma. A verdade simples,
inalterável, divinamente tranqüila está no centro. Embaraço, instabilidade, incerteza,
barulho, desordem, luta, sofrimento, tudo aumenta à proporção que nos distancia-
mos do centro Quanto mais perto, tanto maior estabilidade, segurança, harmonia,
ordem, paz, contentamento. O difícil e múltiplo desorientam, mas no centro se
dissolvem em um princípio fácil e unitário onde a direção é evidente. As almas que,
afastando-se da vida exterior da matéria e dos sentidos, sabem interiormente
aproximar-se de Deus, conhecem por experiência a verdade destas afirmações. O
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
primitivo que vive superficialmente não vê senão desordens, mas quem vai ao fundo
da substância encontra a ordem perfeita. Sendo portanto diverso o poder de visão,
quem só vê desordem e caos, é negativo e materialista; quem encontra ordem e
harmonia é positivo e espiritualista. Para quem olha de fora, como a análise racional
e experimental, o universo é um dédalo inextricável de contradições, precipitação
cega para a autodestruição, sabedoria incerta e falha, dissipação incontida,
construção desconexa, onde as partes não se adaptam, incompleta, corroída pela
maldade, pelo cansaço, pela dor, pela morte. Porém tanta imperfeição e
corruptibilidade é apenas externa, aparente. Um olhar mais profundo, como a
síntese intuitiva, descobre um universo que funciona perfeitamente como
desenvolvimento lógico, potência construtiva, sabedoria e segurança de ação, cone-
xão de partes, capacidade de compensação e reparação, enfim, um organismo
completo, incorruptível, inexaurível. Somente se soubermos chegar ao centro, isto
pode tornar-se evidente. Somente agora pode ser compreendida a oração de A
Grande Síntese (cap. LXVII: "A Prece do Viandante"): "Nada posso pedir-te,
Senhor, porque na tua Criação tudo é perfeito e justo, até meu sofrimento e minha
momentânea imperfeição..." Portanto, o que se procura é18a própria adesão à
vontade de Deus. A fórmula 19 "pulsate et aperietur vobis" , pertence ao plano
humano; o "fiat voluntas tua" , ao super-humano. De fato, Cristo, no Getsêmani,
usou esta última. É esta a diferença da oração do involuído e do evoluído.
Se o involuído sofre sem compreender sua dor e sua função, o evoluído, de
superconsciente culto, compreende-as perfeitamente. Exalta-se na luta entre
consciente e superconsciente, como na elaboração criadora. Sente-se dividido entre
dois extremos, perseguido pelo desejo insaciável de se completar. Os dois extremos
de seu ser estão em mundos opostos, o espírito de um lado, o corpo de outro,
querendo cada qual dominar tudo sozinho, desencontrando-se no consciente. Que
brilho intenso provoca esta batalha! A pátria terrena impõe-se por suas
necessidades práticas, mas do íntimo chama com voz possante a longínqua voz do
céu. Há olhos insensíveis, mudos, vazios, sem alma, inertes e silenciosos. Há olhos
cheios de tempestades, onde se vê lutarem as forças do espírito, onde se sente a
atmosfera vibrante dos grandes esforços construtivos, olhos abertos também para
outro lado da vida, revelando-nos sua complexidade, falando de coisas misteriosas e
longínquas, ultrapassando os limites, enxergando até no abismo do universo interior
de onde emergem, resplandecendo da luz que dele emana. Falam-nos de outros
mundos que viram, trazendo-nos recordações em seus olhares, esses olhos que
choraram e pediram, deixando transparecer neste mundo a imagem neles impressa
da divindade. Se soubermos entendê-los teremos o testemunho da outra realidade
distante que foge aos sentidos e não se manifesta neste mundo.
Fragmentou-se a personalidade, porém não se quebrou por completo. Foi
lançada na discórdia, mas pode se reconstituir na harmonia. Perdeu sua plenitude,
está condenada a viver à custa de ininterruptas substituições, ligada às vicissitudes
da vida e da morte que a impelem além ou aquém do limite; contudo, sua ascensão
é lei fatal; fatalidade de culpa, fatalidade de evolução, inevitável e necessária
conquista de felicidade. Se a dor e o esforço são impostos, do mesmo modo seus
preciosos frutos. Olhando-se o exterior fica-se pessimista, procurando o íntimo das
coisas, a única conclusão possível é o otimismo. A injustiça é aparente, a justiça
real. Se a vida é penosa, também a lei de Deus, continuamente se esforça para
eliminar as más inclinações, para libertar a luz das sombras, o bem do mal, a alegria
da dor, procurando transformar o Getsêmani em glorificação. Através de infinitas
oscilações entre um e outro pólo de sua existência, o eu renasce, cicatrizando a
18
Batei e abrirse-vos-á. (N. da E.)
19
Seja feita a tua vontade. (N. da E.)
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
grande ferida da separação. Um dia, elevados sempre mais para o Alto, compre-
enderemos como era necessária a prisão do espírito no corpo, como este irmão
menor era instrumento de perfeição, como era inevitável o impacto da matéria
inimiga para se fortificar a resistência, instruir-se com a experiência e reconstruir
através de provas e dificuldades. Compreenderemos então quanta sabedoria se
originou da prisão no tormento da contradição íntima, algemados a um inimigo,
rodeados por um ambiente de assaltos e negações. Compreenderemos a utilidade
de nos unirmos ao inimigo, completamente imersos na luta incessante, universal e
inevitável, destruidora, mas reconstrutiva.
XXIX
emersão escolhida entre as mais conspícuas e espirituais, embora não seja nem a
única nem tenha apenas esta forma.
Todos obedecem aos impulsos expansionistas do eu. A expansão constitui a
primeira e mais evidente expressão vital. Este é o esquema do ser: manifestar-se
por meio de individuações sintéticas, resultantes de concentração de forças no eu,
mas subordinadas a inverso período de descentralização, por força do qual a
personalidade humana se manifesta como sistema expansionista. Desse modo, o
binômio se completa e os impulsos se equilibram. Mas, para a maioria, essa
expansão se dá horizontalmente, em superfície, e verticalmente, em altura, se se
trata de emersão biológica. A expansão do tipo normal dirige-se à posse, que, por
reciprocidade, significa sujeição; a expansão do super-normal se dirige para a
liberação e isso quer dizer domínio. O normal, inexperto, vítima da ilusão, tenta
dominar, mas acaba sendo dominado, procura libertar-se e acaba agrilhoando-se.
Conhece apenas a expansão terrena e, por isso, mostra-se avidíssimo, como hoje
acontece, de munir-se de energia, necessária para aumentar seu raio de ação em
superfície e sua capacidade de ação em profundidade, de modo a que a afirmação
de si mesmo atinja a matéria o mais extensa e profundamente possível. Mas, desse
modo, não toma conhecimento da expansão vertical, que lhe escapa à percepção e
com ela a conquista do volume, quer dizer, de uma dimensão superior. As duas
atitudes em face da vida correspondem a duas posições e a duas concepções
totalmente diversas. O primeiro tipo revela-se muito pequeno, espiritualmente
falando, para que. não possa alojar-se comodamente na pequenina casa do corpo.
Sua única ambição consiste em ampliá-la, de modo a construir para si mesmo prisão
cada vez mais bela e vasta e a anexar-lhe todas aquelas dependências do corpo
chamadas posse, riquezas, honras, poder. O evoluído revela-se muito desenvolvido
espiritualmente para que não se sinta sufocar no ambiente terrestre. Prova a
sensação que sentiria um animal transformado em planta. Com efeito, a vida física,
se a compararmos com a ilimitada liberdade de movimentos do espírito, poderá
parecer, a quem já a experimentou, como a imobilidade da árvore comparada com a
agilidade dos animais. O evoluído, prestes a sair da crisálida terrena, e que já
saboreou a vida em dimensões super-espaciais e super-temporais, sente de fato os
grilhões do corpo e do limite imposto, nas dimensões exatas, ao plano evolutivo da
matéria. Sente a angústia da vida terrena, tolera-a como expiação ou missão, não
espontaneamente, mas por dever; seu íntimo impulso expansionista, porém, segue
rumo vertical, não tem em vista a ampliação e o enfraquecimento da prisão, mas
liberta-se dela. Não há outro sistema sério para resolver as dores da vida. Descobriu
os truques da ilusão e não se deixa mais iludir. Já sabe que os domínios humanos,
na realidade, não passam de servidão e, por isso, não se dispõe a consegui-los
mais; reconhece serem eles necessários para os primitivos, como meio de
experimentação, compreende-lhes a função nesse plano; não pode, porém, aceitá-
lo, pois executa trabalho completamente diferente. É justo que, de acordo com sua
capacidade, cada um maneje na vida os instrumentos a que mais se adapte. Quem
sabe, porém, dá a cada um deles o valor que merecer. Assim, o evoluído recusa
uma fingida extensão de domínio, que para ele se resolve em mentira, pois em
substância é, isso sim, aumento de escravidão; assim, repele as miragens que o
ligam aos grilhões da posse, torna-se o mais possível independente de tudo e de
todos e volta as costas a todas as conhecidas lisonjas da vida. Não faz questão de
superioridade, mas de maturidade. Cada um de nós exerce a função exata no seu
plano, e está no lugar certo. Mas também está na lei de justiça e equilíbrio que todos
os que aprenderam a desempenhar funções mais elevadas devem ir exercê-las
onde isso se torne possível, quer dizer, em outros mundos, mais adiantados e mais
adequados. A natureza, econômica como é, conhece muito bem e, por isso, não
desperdiça os seus valores; o funcionamento orgânico do universo e a grande
marcha evolutiva não podem parar; a ascese, depois de realizada intimamente,
imp5e inexoráveis mudanças, inclusive à forma. O ciclo deve continuar na fase
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20
Senhor, abrirás meus lábios. (N. da E.)
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
flama que viste estava Deus, falando-me sob aquela mesma aparência com que
outrora falara a Moisés....... Mas, toma cuidado, não andes espionando-me por aí e
volta para a tua cela, com a bênção de Deus e toma bem conta de mim: pois dentro
de poucos dias Deus fará tão grandes e maravilhosas obras neste mesmo monte
que todos ficarão maravilhados; e fará, também, algumas coisas novas, que Ele
nunca fez em proveito de criatura alguma deste mundo.... Daquele momento e
daquele ponto em diante, São Francisco começou a libar e a sentir mais
abundantemente o dulçor da divina contemplação e das visitas divinas. Entre elas,
uma, logo depois, preparatória da impressão dos Estigmas. Foi assim. Na véspera
da festa da Cruz de setembro, estava São Francisco em oração na sua cela, quando
o anjo do Senhor lhe apareceu e lhe disse da parte de Deus: Vim confortar-te e
recomendar-te que te prepares e te disponhas, humildemente, e com toda a
paciência, para receber o que Deus quer fazer em ti. São Francisco respondeu:
Estou preparado para suportar com paciência tudo quanto meu senhor queira fazer
em mim; e dito isto, o anjo partiu. No dia seguinte, isto é, no dia da Cruz, São
Francisco, por ocasião das matinas, de madrugada, se pôs a orar diante da porta da
cela, com o rosto voltado para o Nascente; orou, e permanecendo por muito tempo
em oração, começou a contemplar devotamente a Paixão de Cristo e sua infinita ca-
ridade; tanto cresciam nele o fervor e a devoção que, por amor e compaixão, todo
ele se transformava em Jesus. Estando assim inflamado nessa contemplação, nessa
manhã mesmo viu descer do céu um serafim com seis resplendentes e flamejantes
asas e, voando velozmente, aproximou-se de São Francisco ao ponto de este poder
discernir e ver perfeitamente haver nele a imagem dum homem Crucificado; (....)
Estando imerso nessa admiração, foi-lhe revelado pela aparição que a Divina
Providência lhe proporcionava aquela visão a fim de que compreendesse dever
transformar-se, não por martírio corporal, mas incendendo-se mentalmente, em
imagem perfeita de Cristo crucificado. Durante essa aparição admirável, todo o
Monte Alverne parecia arder em chamas esplêndidas, que, como o sol, iluminava os
montes e os vales dos arredores; os pastores, que velavam por ali, vendo o monte
em chamas e tantas luzes em torno, ficaram com muito medo, isso de acordo com o
que mais tarde eles mesmos contaram aos frades, dizendo-lhes até que as chamas
permaneceram sobre o Monte Alverne pelo espaço de uma hora. Assim também,
diante da claridade dessa luz, que resplendia nas janelas das estalagens da região,
alguns muladeiros se levantaram na Romagna, crendo haver surgido o sol material,
e carregaram seus animais: e, tendo-se posto a caminho, viram a referida luz
apagar-se e aparecer o sol material. Na aparição serafínica, Cristo manifestou-se e
disse a São Francisco algo secreto e sublime, que São Francisco jamais quis revelar
a pessoa alguma... Depois de grande espaço de tempo e de colóquio particular, a
admirável visão desfez-se, deixando o coração de São Francisco abrasado em vivo
fogo de amor divino: e deixou-lhe na carne maravilhosa imagem e estigmas da
Paixão de Cristo. Nos pés e nas mãos de São Francisco começaram a surgir os
horrendos sinais dos pregos, exatamente como a visão lhe mostrara no corpo de
Jesus crucificado, que lhe aparecera sob a forma de serafim; e, assim como as
mãos e os pés do serafim apareciam com as marcas dos cravos, também as de São
Francisco tinha impressa, nas mãos, nos pés e no lado, a imagem e semelhança de
Cristo crucificado. Embora se empenhasse em esconder os gloriosos Estigmas, tão
nitidamente impressos em sua carne, a necessidade obrigou-o a escolher frei Leão,
o mais simples e puro dos frades, ao qual tudo revelou, deixando-o ver e tocar
aquelas santas chagas e enfaixá-las em trapos para mitigar-lhes a dor e receber o
sangue que delas saía. Finalmente, tendo São Francisco terminado a quaresma de
São Miguel Arcanjo, se dispôs por divina revelação a voltar para Santa Maria dos
Anjos, como, juntamente com frei Leão, lhe era conveniente voltar. Assim partiu e
desceu o santo monte".
Isto nos contam as “Fioretti”, deixando os acontecimentos envoltos numa
atmosfera de lenda e sonho. Que há de objetivo e real nesta narração? O fenômeno
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exterior, não penetra na intimidade das coisas. Para ver-lhe a intimidade, torna-se
necessário, sem dúvida, olhar de dentro de si mesmo para o interior das coisas.
Assim, a historieta se limita à verificação dos efeitos, cujas causas3 refugiando-se no
miraculoso, lhe escapam inteiramente. Frei Leão é o único que percebe alguma
coisa. Vimos, pois, o fenômeno verificar-se no grau permitido pela potência
espiritual, pelo desenvolvimento, pela maturidade evolutiva e pela intima
sensibilização do sujeito. Tudo dependeu apenas dos seus poderes de percepção
nesse campo. Desse modo, a visão só têm os indivíduos maduros; e, portanto, fato
estritamente pessoal. Para que outros a percebam torna-se necessário que estejam
nas mesmas condições de sintonização e recepção. Apenas proporcionalmente às
suas capacidades espirituais é que podem sentir ou parte do fenômeno, como frei
Leão, ou coisíssima alguma, como acontece na maioria dos casos. Isso é muito
natural, tratando-se, como se trata, de, por meio das vias interiores, registrar formas
imateriais que não encontram símile nas formas materiais do mundo exterior. Para
perceber as formas materiais faz-se necessário possuir, e em bom estado de fun-
cionamento, os correspondentes órgãos sensoriais; nada mais natural, portanto, que
para perceber a realidade espiritual devamos possuir, e absolutamente livres, as vias
interiores que nos põem em comunicação com o lado oposto, com o imponderável.
O que pertence ao espírito não podemos percebê-lo senão com recursos espirituais,
isto é, com processos diametralmente opostos aos nossos processos sensoriais co-
muns. A projeção da realidade interior (projeção ótica, acústica, tátil, etc.) fica
limitada ao sujeito exclusivamente. Quando, porém, produz modificações no estado
da matéria, o fenômeno torna-se domínio comum, principalmente se a alteração se
revela permanente. Para os demais não resta senão o caminho da fé ou da prova,
representado por esse último resultado atingido no seu plano material. Rela-
tivamente a isso, observemos que não se trata de materializações ectoplasmáticas,
isto é, de novas formações em sentido mediúnico, mas de percepções e projeções
do imaterial por vias internas e de transformações operadas na matéria já existente.
Os fenômenos sempre se aproveitam da via de menor resistência, que, no caso do
evoluído, é exatamente a via interior.
A simpatia levou-nos a escolher S. Francisco, entre tantos outros, como tipo de
evoluído, para determo-nos apenas nesse setor particular das formas evolutivas.
Mas sempre se trata, sem dúvida, de ponto culminante, de homem que atinge a fase
super-humana e, no momento crítico, faz chegar ao nosso mundo, por seu
intermédio, reflexos do mundo superior a que ele pertence e que, embora sob tantas
formas diversas, representa o futuro da humanidade.
XXX
21
Escrevi este capítulo em S. Sepulcro (Arezzo), em frente do Monte Alverne.
(N. do A.)
A Nova Civilização do Terceiro Milênio Pietro Ubaldi
Quem ja subiu até ao alto do Monte Alverne em Casentino e visitou a capela dos
Estigmas terá lido a inscrição central:22 "Signati, Domini, hic servum Tuum
Franciscum, Signis Redemptionis nostrae" . Esse é o lugar em que Cristo apareceu
a Francisco e este recebeu os estigmas. Para baixo, a rocha abre-se num abismo;
subindo em direção do pico e da floresta, encontra-se logo a gruta de frei Leão, o
único companheiro do Santo, o único ser humano que, embora contrariando
proibição expressa, se aproximou dele e o observou naquele instante supremo. Por
isso, entre tantos frades, é escolhido para curar as chagas dos estigmas. O grande
acontecimento deu-se em 1224, na madrugada de 14 de setembro, festa da
exaltação da Cruz. Em 30 de setembro Francisco deixou o Alverne para sempre.
Acompanhado de frei Leão, "carneirinho de Deus", desceu montado num burro até
S. Sepulcro, onde parou num leprosário e por esse caminho voltou para Porciúncula,
onde morreu dois anos depois, em 4 de outubro de 1226 ("De Cristo recebeu o últi-
mo selo, que seus membros dois anos carregaram"). Frei Leão, que celebrou missa,
foi amigo e confessor de Francisco, confidente e testemunha de numerosos
acontecimentos espirituais íntimos, viu e tocou os estigmas e "costumava tirar os
pensos de pano tintos de sangue para colocar novos”. Em 1224, na época. destes
acontecimentos, ele e o Santo ainda eram moços. Frei Leão teve, mais tarde, tempo
de recordar e meditar, pois morreu Beato em Assis, em 14 de novembro de 1271,
isto é, 45 anos mais tarde. Foi em Alverne que o Santo escreveu para ele a Bênção,
na segunda quinzena de setembro de 1224, logo depois de recebidos os estigmas.
Escreveu-a com a mão trespassada e sangrenta:
... "Que o Senhor te abençoe, frei Leão". No autógrafo o nome de Leão está
dividido pelo Tau ou cruz, sigla de Francisco e essa palavra está dividida bem no
meio para indicar, na fusão dos dois nomes, a estreita união das duas almas. Mais
tarde, frei Leão de próprio punho acrescentou, em letras vermelhas bem pequenas:
"Beatus Franciscus scripsit manu sua istam benedictionem mihi frati Leoni".24 A
Bênção esta escrita numa folha de papel pequena. Frei Leão, enquanto vivo, sempre
a trouxe consigo.
Relativamente à manifestação exterior e sensorial, nada se pode acrescentar à
belíssima história dos Fioretti. Que acontece, porém, no interior dela, na intimidade
do fenômeno? Frei Leão tenta acostar-se a essa outra realidade, penetrando-a por
meio dos sentidos e da fé. E volta a ver a flama e a ouvir a voz que vem de dentro
dela; não consegue, porém, entender nem uma palavra. Sua percepção interior não
consegue mais do que isso. Mas intui o resto e fica de lado, reverentemente. Então,
o amigo Francisco, que entendeu tudo, conta mais tarde tudo quanto Leão não pôde
ouvir. Só o amor e a fé podiam induzi-lo a isso. Porque de repente Francisco se
torna reservado e procura disfarçar, por humildade, reverência, temor e por causa de
pudor de que sempre se reveste o sublime. Nesses momentos, sentimos
necessidade de estar sozinhos com Deus. Então, ordena de novo a frei Leão que
22
Assinalai, Senhor, este teu servo Francisco, com os sinais da nossa redenção.
23
Deus te abençoe e te guarde:
Mostre a ti sua face e compadeça-se de ti
Incline para ti seu rosto e te dê paz:
O Senhor te abençoe Frei Leão.
24
O Beato Francisco escreveu com sua própria mão esta benção para mim, Frei Leão.
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não ande espionando e pede-lhe que tome cuidado com ele, pois sabe o incêndio
espiritual que vai lavrar-lhe no corpo. Francisco percebe a aproximação do Incêndio.
Já o envolvem línguas de fogo, que saem do incêndio, antecipando-o e preparando-
o. E Francisco ouve dentro de si um anjo de Deus, advertindo-o do que está para
acontecer. No dia seguinte é a festa da Cruz de setembro. E agora a história dos
Fioretti não e mais tão minuciosa e se torna vertiginosa, levando-nos de um golpe ao
momento em que, naquela madrugada, o fenômeno se processou de modo a ser
percebido até mesmo pelo homem normal. E nada mais nos diz. Que aconteceu
durante aquela noite, no extremo oposto do fenômeno, no seu lado espiritual? Quais
os derradeiros estágios que o tornaram possível? O fenômeno já vinha
amadurecendo lentamente durante toda a vida do Santo, desde que começou a
ouvir "vozes" em S. Damiano; a maturação se acelera intensamente no Monte
Alverne durante os dias precedentes e, embora atingisse o clímax pouco antes da
alvorada, o fenômeno tinha-se processado com intensidade durante a noite, nos
seus claros-escuros e contrastes de forças. Acompanhamos até ao ponto maior da
curva o ciclo de sua maturação.
Observemos. Francisco está na rocha dos estigmas. Frei Leão está um pouco
afastado, mais para cima, em sua cela. Embora não possa ver muito bem no meio
daquelas pedras e galhos de árvore, tão perto está que pode ouvir tudo. Permanece
acordado, procurando ver, mas, por obediência, não ousa aproximar-se. Procura
ouvir o menor ruído porque, se não deve andar observando, tem de, no entanto,
proteger o Santo. "Tome bem conta de mim, porque dentro de poucos dias Deus
fará grandes maravilhas neste monte..." Tinha-lhe sido, pois, confiada a guarda do
amigo. Discreto, afastado, como demonstração de respeito, e, ao mesmo tempo,
próximo, por força do amor, estava pronto para, se necessário, acudir em seu
socorro. Ambos estavam esperando que, a qualquer momento, acontecesse algo de
extraordinário. Francisco estava mais embaixo, mais afastado do Monte e mais
isolado da terra, em cima da rocha vertical dos estigmas, guardado de perto pelo
afeto do amigo, que até nesse momento supremo lhe servia de ajuda e proteção. A
cela de Leão estava um pouco mais acima da Rocha onde Francisco orava.
Mergulhado no profundo silêncio do céu e da terra, imerso na infinita paz da noite,
Leão esperava. Não se ouvia o menor ruído. As tempestades do espírito não encon-
tram eco na matéria. Porém, fervorosa prece abrasava-lhe a alma. Que insuportável
desejo de aproximar-se, de compreender, de imitar! Que atração e que temor! A
espiritualidade de Francisco causava-lhe medo; naquele momento e naquele lugar,
causavam-lhe vertigem a misteriosa proximidade de Deus, o contato com o infinito, a
sensação do sublime. E o amigo estava quase a precipitar-se naquele abismo de
potência e de mistério, que o fazia tremer. Estava de espírito suspenso, presa de
afetuosa angústia pela sorte do Santo, temia pela vida do querido "pai", que,
refugiando-se no desconhecido e desaparecendo na vertigem dos céus, para ele se
tornava inatingível. Tinha medo do sublime, mas temia por ele, que poderia queimar-
se inteiramente no divino incêndio. Examina-se interiormente e fica triste por não
poder segui-lo e, incapaz de progredir para o alto, ser obrigado a permanecer no
sopé da montanha da santidade, a ficar sozinho na terra, em meio à própria miséria.
E chora com pena de si mesmo. Mas, logo em seguida, se esquece de si e pensa no
amigo, pensa na sua grande missão daquele instante e quer continuar vivendo
apenas para executá-la. E transborda de alegria por seu triunfo no mundo divino.
Mas esse mundo divino, de que o amigo se apodera, com seu peso, magnitude e
poder, volta mais uma vez a esmagá-lo, a esmagar o pobre frei Leão, que se
amedronta ainda mais. E se amedronta principalmente por causa de seu amado
amigo, sobre quem recai todo o peso do infinito, daquela imensidade esmagadora
em que a alma se perde. Por isso, escuta, reza, alegra-se, extravia-se, crê e espera.
Pequena tempestade, reflexo da terrível tempestade que se apodera do Santo. Além
disso, Leão ignora. Tomado de medo, admira de longe a para ele inatingível
santidade do amigo; intui, porém não compreende tão incomuns colóquios com
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Deus. Não podemos, portanto, ver a substância do fenômeno através dos olhos de
frei Leão, ainda fechados naquele momento. Apenas mais tarde, depois da morte do
Santo, é que vão abrir-se, contemplando os divinos crepúsculos de Assis, através da
saudade que sentia por Francisco e defendendo-lhe as idéias, amando-o e
chorando-o. Aí então é que, meditando sobre o que ouvira da boca do amigo, se
maturará até ao ponto de compreendê-lo perfeitamente. Para nós, porém, a
compreensão do fenômeno ainda permanece na sombra.
Francisco contemplara demoradamente, na véspera, o suave crepúsculo. E,
sem dúvida, verdadeira véspera de batalha havia sido a jornada anterior, pois, na
vida tudo é luta, sobretudo a conquista espiritual. A noite precedente fora consumida
no fogo devorador da oração, porque o paroxismo do amor realmente é voraz.
Francisco sentia que estava para chegar ao zênite de sua vida, ao momento crítico
da última separação da terra. Quem sempre foi a aplicação viva do Evangelho, está
maduro para se desligar de qualquer forma terrena de vida. Mas para ai chegar,
quanto caminho! Antes de ousar lançar olhares a um futuro maravilhoso, ele
hesitava recordando o passado. Nas primeiras horas da noite, antes de afrontar sua
ressurreição na divindade, representava-se diante de seu passado humano, cheio
de fadigas e sofrimentos. Quanto caminho de S. Damiano ao Monte Alverne!
Revivendo todas estas coisas, enorme cansaço parecia esmagá-lo, sua vida física
agonizava e agonizando chorava sua destruição, oprimindo-o com seu pranto. Seu
corpo ainda jovem, embora subjugado, sofria derradeira tentação: a tristeza de não
ter vivido para si, de não poder mais viver. Expulsa do espírito, tornava-se mais sutil:
a inutilidade do sacrifício. "Senhor, não me compreenderão! Não me
compreenderão, como não nos compreenderam!" As forças do mal assaltaram-no
então no ponto mais alto e precioso de sua vida: sua missão de santo. Talvez um
assobio sinistro soou a seus ouvidos: "é inútil teu amor, tua paixão. Cumular-te-ão
de louvores, mas a traição não tardará". E Francisco, como Jesus no Getsêmani
certamente chorou pela incompreensão, reformas, traições, e adaptações que ha-
viam de tentar sua obra, para reduzi-la a nada. Seu ânimo foi tomado de profunda
tristeza e mortal abatimento como se lhe pusessem uma mordaça, sucumbindo
momentaneamente. Junto à agonia física, a agonia espiritual. Nas primeiras horas
da noite deve ter travado tremenda luta contra as trevas e o mal.
Em tais fenômenos há ritmo de períodos característicos e fases opostas em
equilíbrio. Como aconteceu a Cristo, antes de seu martírio físico no Gólgota, houve
na noite precedente, o martírio moral do Getsêmani; assim, com Francisco antes de
sua crucificação pelos estigmas,. houve, certamente, uma crucificação de dor no
espírito. Sintonia lógica entre fenômenos semelhantes. A tentação noturna é a con-
traparte, a primeira metade, negativa, do fenômeno, em oposição a seu segundo
momento, positivo, o triunfo do espírito. O mal, a negação, tiveram seu turno como
condição e preparação da afirmação e do bem. Francisco, portanto, para chegar à
união com Cristo, devia naturalmente reviver-lhe as dores morais do Getsêmani
antes de reviver-lhe o sofrimento físico da crucificação. Foi permitido ao mal que
vencesse por momentos. O contraste entre as forças involuídas da matéria e as
outras forças do espírito tornava-se cada vez mais violento na fase final da luta.
Antes de definitivamente triunfar na luz foi desferido o assalto mais forte das trevas.
Antes de conseguir sua perfeita sintonização com as supremas harmonias do divino,
antes de poder unir-se a Deus na harmonia de um íntimo acordo de todas as
criaturas e forças irmãs, Francisco certamente teve que atravessar na escuridão da
noite a tempestade de ruídos e dissonâncias, desencadeada pelo choque caótico de
forças involuídas, desarmônicas, ainda não disciplinadas na ordem superior. Em
Alverne, não era novidade para o Santo se as forças do mal destruíssem o Monte,
fazendo precipitar suas pedras. As primeiras horas da noite, as mais tristes e
profundas, eram as mais próprias para semelhantes assaltos: mas, às primeiras
horas da manhã a vitória já era certa.
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imensidão da noite desapareceram os horizontes. A terra não era mais terra. Do alto
do Alverne parecia infinda vastidão, sem limites como o céu, e com ele tão idêntico,
que era uma única e indivisível imensidade O céu e a terra eram então a imagem do
infinito. No alto, na vertigem do azul, abriam-se os misteriosos abismos das estrelas,
espaços sem limites, onde os olhos e a mente se perdem. Deus é ainda mais
profundo e distante mesmo estando tão perto; a alma o encontra quando está para
se perder. A visão dos céus se mostra a nossos olhos como a visão de Deus: parece
cair no nada e aí encontramos tudo.
Francisco, de pé sobre a rocha, de braços abertos, contemplava. Deixava-se
acompanhar e guiar pela voz de todas as criaturas irmãs para o Criador comum. A
maré imensa das radiações de todas as coisas parecia elevar-se como ele para
Deus, harmonizando-se em uma orquestração cada vez mais doce e espiritual. Cada
ser era uma nota falando-lhe de Deus. Tudo falava à sua alma sensível, e ele tudo
ouvia e compreendia. A vibração mais profunda vinha da terra e subia como um
trovão pelas rochas ásperas do monte. A relva emitia uma nota mais cheia, mais
vizinha da vida, majestosa, severa. Os pássaros, os insetos, os outros animais
adormecidos, as ervas, ressonavam ao redor numa respiração tranqüila. Mais ao
longe, na interminável descida, nos montes, nos vales e planuras, as forças da vida
repousavam em paz. Em paz as criaturas abandonavam-se confiantes nos braços
da sabedoria e providência da Lei de Deus. A tempestade do mundo, onde o homem
se amedronta e se consome, estava longe, lá em baixo, nas cidades agitadas e
cansadas. Sua voz não chegava ao pico, nem perturbava aquela paz divina. Mais
longe ainda se perdia o ribombar seco da voz cavernosa do mal. Também ele, como
toda criatura de acordo com sua natureza no equilíbrio entre as forças do universo,
também ele estava em seu lugar, para confirmar, não para violar a ordem divina. O
mal lá em baixo revolvia-se num mar de trevas. Do alto, do ilimitado resplandecer
das estrelas chovia sobre a terra uma luz indecisa. Era uma radiação difusa e
penetrante, tremor agudíssimo do éter acariciando os seres, por toda parte,
transmitindo seu ritmo a toda criatura; vibrando de alta freqüência, quase espiritual,
trinado agudíssimo, igual, sutil. Paz: cantavam as estrelas, obedecendo à ordem
divina. Esta a orquestração do universo que acompanhava o desenrolar-se do fe-
nômeno. Viva em cada nota, feita de conceitos, de forças, de formas, feita do
pensamento e poder de Deus que tudo movimenta e vivifica. Sobre esse fundo de
tão imensa sinfonia vibrava a alma do Santo, respondendo às notas graves das
criaturas irmãs que com ele cantavam em coro. Por sua vez, elas respondiam numa
única música que em síntese dizia: Deus. Assim, bem de longe, através da criação,
teve começo o colóquio entre Francisco e o Criador.
Era o último dia da lunação; ia surgir a lua nova, que portanto nesse momento
não aparecia no firmamento25. A noite navegava triunfante para o momento de sua
mais intensa espiritualidade. A música universal seguia em diversas alturas a
espiritualização da hora e a tensão cada vez mais crescente da alma de Francisco,
num crescendo de harmonia e perfeição. Vibrações e acordes sucediam-se em pia-
nos sempre mais elevados, cada vez mais claros e puros. Ele, o mais perfeito dos
seres, o mais nobre, o mais vizinho a Deus, confortado pelo amor que espalhava e
que agora lhe era restituído, rodeado pela natureza ajoelhada em veneração,
entoava, seguido por toda a orquestra, seu mais sublime canto. Parecia guiar a
marcha ascensional da vida. E tudo em perfeita harmonia progredia, em ritmo cada
vez mais vivo e poderoso, para a aurora, o incêndio. Ao mesmo tempo que o ritmo
aumentava de potencial, a respiração tornava-se ofegante, suspensa de enorme
tensão, temendo um choque. Parecia que a terra se inflava e se erguia para seguir o
25
Tal fato foi depois confirmado por resposta do Observatório Astronômico de Capodimonte (Nápoles). (N. do
A.)
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Santo em seu arrojo divino, que parecia querer arrastar consigo todos os seres para
Deus, ou abraçar em seus braços abertos, todas as criaturas irmãs, incendiando-as
em sua divina paixão de subir. Estas pareciam querer unir-se ao arauto da vida, seu
mensageiro perante Deus, e impeli-lo a subir ainda mais alto, até o trono do Eterno,
para levar até aí suas vozes e para que lá o Santo recebesse o último selo de sua
missão. A vida parecia atirar-se alegremente à subida para matar sua sede de
sublime. O fenômeno já havia começado e devia cumprir-se até o fim. Cada minuto
acelera-lhe o ritmo. Francisco tem atrás de si o acordo universal das forças que o
estimulam, e diante de si Deus que o atrai. Não pode mais voltar. Não é mais dono
da situação. Deve aceitá-la humildemente de Deus. Cairá inevitavelmente no
incêndio que se alastrará pelo monte.
A história dos Fioretti, como o Evangelho, não podia ser inventada. Os dois
livros pressupõe e fazem sentir na simplicidade de sua história, um profundo
conhecimento dos fatos espirituais, que não podem ser improvisados nem
inventados pela alma do povo. O narrador dos Fioretti fica na ingênua simplicidade
fora do fenômeno, limitando-se a contar os fatos exteriores. No entanto este modo
de ver tão material, coincide com sua substância espiritual, com a profunda realidade
do fenômeno. Ora, a experiência comum das coisas terrestres não é suficiente para
fornecer-lhe elementos de semelhante história que não parece, mas deixa
transparecer tanta sabedoria. O modo como é estabelecido e se desenvolve o
fenômeno, a moldura que tão bem o cerca, a hora, o lugar, o homem, o comum, o
prodigioso, o material e o espiritual, tudo está perfeitamente equilibrado e com os
meios mais simples, com a espontaneidade das almas virgens, nos dá
imediatamente o sentido da verdade. Francisco está suspenso no vértice de uma
rocha entre a terra e o céu, ao mesmo tempo só e acompanhado por todos os seres,
com a alma aberta a todas as vibrações do universo, diante de Deus que em alta
voz, através de todas as criaturas, lhe diz: presente. Deus lhe fala por tudo que
existe, pela organização funcional do universo, pelas harmonias da vida, pela alegria
e pela dor, fala-lhe no fundo da alma, por toda a parte e sempre presente. Temos
necessidade não só de um Deus que é causa transcendental e longínqua, mas
sobretudo deste Deus atual, imanente e presente. Doutra forma ficaremos órfãos e
sós, sem esperança de ver algum dia o que seja do rosto de Deus. Ele existe e é
preciso senti-lo no meio de nós. Não é, nem pode ser, um pai inatingível, por si
mesmo triunfante nos céus, colocado numa distância insuperável. Assim é para
quem raciocina friamente, o que nos aproximaria muito pouco de Deus. Francisco o
alcançou porque começou por olhar na terra seus reflexos, servindo-se deles para
subir até Deus pelos caminhos íntimos da fé; porque para chegar ao Criador, passou
por todas as suas manifestações nas criaturas. Alcançou-O porque seguiu mais os
caminhos do coração que os da inteligência, e preferiu a imolação e o amor ao
raciocínio.
Eis que se aproxima o momento supremo. Francisco começa a rezar, voltado
para o oriente. Sua querida Assis, também está desse lado, onde logo o primeiro
pressentimento vago da aurora começava a delinear o horizonte. A noite atingia sua
hora mais espiritual, hora de sonhos alados de luzes diáfanas e irreais, hora
profunda de mistério e silêncio. Eis Francisco diante do fim supremo: Deus. Quantas
etapas para aí chegar, quantas pequenas tentativas de sintonização em sua vida!
Aproximações parciais foram concedidas a S. Damião, em Greccio, na ilha de
Trasimeno, em Porciúncula, na lagoa de Veneza, e em tantos outros lugares de
solidão e beleza. Tinha sido preparado por assaltos e contatos progressivos até a
perfeita sintonização com Deus. O invólucro físico de sua alma se sutilizava
gradativamente pela penitência, seu ser tornou-se mais sensível, e por sua vez
preparado pelo jejum, pela oração, pela solidão e pelo sacrifício. Eis que as forças
do universo rodam diante de Francisco. Subiu a tal ponto que as vê convergir para
um único centro, e é capaz de ouvir a música paradisíaca de sua harmonia. É a
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CONCLUSÃO
O fecho deste livro representa novo trecho de caminho percorrido, mais uma
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e de dor, vai para sempre embora deste mundo. Este fim constitui o objetivo dos que
têm longo caminho a percorrer e representa conforto para quem está ansioso por
atingi-lo.
"Coragem!" Dizemos a quem sofre. Não superestimeis as liberdades e os
programas humanos; libertai-vos individual e definitivamente. O caminho da
libertação existe, sim. A condenação não é eterna. Vós mesmos podeis empregar,
em vosso próprio benefício, as leis da vida e transformar-vos, evoluindo. O caminho
livre, a única fuga possível do inferno terrestre consiste precisamente na evolução.
Não há outro. Na verdade esse caminho subentende sofrimento e esforço,
mortificação, purificação e imaterialização; é árduo e difícil, mas o único seguro e
positivo. A evolução coletiva, em massa, é demasiado lenta para os de mais boa
vontade e muito morosa para os mais adiantados. Quem quer conclui-la depressa
deve abandonar a corrente e agir sozinho. Esse caminho é a redenção ensinada por
Cristo. Por isso Ele disse:
cavar novos sulcos nas almas, em diferente clima histórico, com nova maturação de
ambiente interior e exterior, de destino individual e universal. Estamos presos aos
limites, algemados pelas dimensões desse nosso mundo; só nos resta caminhar no
tempo. Amanhã! Este novo trabalho é concedido a todos, como semente jogada nos
campos, para que esse futuro seja mais completo, mais elevado, mais feliz para
todos.
GUBBIO, 6ª feira Santa, 1945.
CONCLUSÃO
(Da II Trilogia)
PIETRO UBALDI
GUBBIO, Páscoa de 1945