O Vale Do Vento Gelido 02 Rios de Prata Biblioteca Elfica
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O Vale Do Vento Gelido 02 Rios de Prata Biblioteca Elfica
Os Reinos Esquecidos
Trilogia O Vale do Vento Gélido
Volume II
RIOS DE PRATA
PRÓLOGO
LIVRO UM
BUSCAS
Rezo para que nunca se acabem os dragões do mundo. Digo isso com
toda a sinceridade, embora tenha tomado parte na morte de uma das grandes
serpentes. Pois o dragão é o inimigo quintessencial, o maior dos adversários, o
epítome inconquistável da devastação. O dragão, acima de todas as outras
criaturas — mesmo dos demônios e diabos —, evoca imagens de esplendor
sombrio, da grande fera enrodilhada e adormecida sobre o maior dos tesouros.
São o teste supremo do herói e o medo supremo da criança. São mais velhos que
os elfos e mais afeitos à terra que os anões. Os grandes dragões representam a
besta sobrenatural, o elemento fundamental da besta, aquela parte mais
sombria de nossa imaginação.
Os magos não lhes conhecem as origens, apesar de acreditarem que um
grande mago, um deus dos magos, deve ter desempenhado algum papel na
criação dessas feras. Os elfos, com suas longas fábulas que explicam a criação
de cada aspecto do mundo, têm muitas histórias antigas sobre as origens dos
dragões, mas admitem, reservadamente, que não fazem realmente a menor
idéia de como os dragões vieram a existir.
Minha própria crença é, de longe, a mais simples e, contudo, a mais
complicada. Acredito que os dragões apareceram no mundo imediatamente após
a criação da primeira raça pensante. Não dou crédito a nenhum deus ou mago
por essa criação, e sim a mais básica imaginação — urdida a partir de medos
invisíveis — desses primeiros mortais racionais.
Criamos os dragões como criamos os deuses, porque precisamos deles;
porque, em algum lugar no fundo de nossos corações, reconhecemos que um
mundo sem dragões é um mundo no qual não vale a pena viver.
Há tantas pessoas na terra que querem uma resposta, uma resposta
definitiva; para tudo na vida e mesmo para tudo o que possa haver depois da
vida. Estudam e testam, e porque esses poucos encontram as respostas para
algumas perguntas simples, supõem que deve haver respostas para todas as
perguntas. Como era o mundo antes de existirem as pessoas? Será que nada
existia a não ser trevas antes do sol e das estrelas? Será que existia alguma
coisa? O que éramos nós, cada um de nós, antes de nascermos? E o que — o
mais importante de tudo — seremos após morrermos?
Por compaixão, espero que esses questionadores nunca encontrem o que
procuram.
Um autoproclamado profeta se apresentou em Dez-Burgos negando a
possibilidade de uma pós-vida, alegando que as pessoas que morreram e foram
ressuscitadas pelos clérigos na verdade jamais haviam morrido e que suas
alegações sobre experiências além-túmulo eram um truque elaborado de seus
próprios corações, um ardil para facilitar o caminho em direção ao nada. Pois
isso é tudo o que havia, dizia ele, um vazio, um nada.
Jamais em minha vida ouvi falar de alguém que implorasse tão
desesperadamente para que provassem que ele estava errado.
Pois o que nos restará se não sobrar nenhum mistério? Que esperança
poderemos encontrar se soubermos todas as respostas?
O que é isso dentro de nós, então, que quer negar tão desesperadamente
a magia e desvendar o mistério? Medo, eu presumo, baseado nas muitas
incertezas da vida e na incerteza maior ainda da morte. Ponha esses medos de
lado, digo eu, e viva livre deles, pois, se dermos apenas um passo para trás e
observarmos a verdade do mundo, descobriremos que, de fato, há magia ao
nosso redor, inexplicável por meio de números e fórmulas. O que é, se não
mágica, a paixão evocada pelo discurso arrebatador do comandante antes da
batalha desesperada? O que é, se não mágica, a paz que uma criança encontra
nos braços da mãe? O que é o amor, se não mágica?
Não, eu não gostaria de viver num mundo sem dragões, assim como não
gostaria de viver num mundo sem magia, pois esse é um mundo sem mistério e
um mundo sem fé.
E esse, temo eu, seria o truque mais cruel de todos para qualquer ser
consciente e racional.
Ele trazia o manto fechado e bem junto ao corpo, apesar da pouca luz
que entrava pelas janelas acortinadas, pois essa era sua existência,
dissimulada e solitária. A trilha do assassino.
Enquanto outras pessoas se ocupavam das próprias vidas, deleitando-se
nos prazeres da luz do sol e na bem-vinda visibilidade de seus vizinhos,
Artemis Entreri ficava nas sombras, as órbitas dilatadas de seus olhos
focalizadas na senda estreita que devia tomar para completar sua mais recente
missão.
Ele era de fato um profissional, talvez o melhor em todo o território dos
reinos em seu ofício atroz, e quando farejava o rastro da presa, a vítima jamais
escapava. Portanto, o assassino não se incomodou com a casa vazia que
encontrou em Brin Shander, a cidade principal dos dez povoados nos ermos
do Vale do Vento Gélido. Entreri suspeitara que o halfling havia fugido de Dez-
Burgos. Mas não importava; se aquele fosse realmente o mesmo halfling que
ele vinha seguindo desde Calimporto, mais de mil e quinhentos quilômetros ao
sul, o progresso que fizera superava suas expectativas. Seu alvo não tinha
mais do que duas semanas de vantagem e o rastro estaria bem fresco.
Entreri percorreu a casa calma e silenciosamente, procurando pistas
sobre a vida que o halfling ali levara e que lhe dariam a vantagem quando do
confronto inevitável. A desordem o saudou em cada sala: o halfling partira às
pressas, provavelmente ciente de que o assassino estava fechando o cerco.
Entreri considerou aquilo um bom sinal, aumentando ainda mais suas
suspeitas de que esse halfling, Régis, era o mesmo Régis que servira ao Paxá
Pûk, anos atrás, na distante cidade do sul.
O assassino sorriu maldosamente ao pensar que o halfling sabia que
estava sendo acossado, o que aumentava o desafio da caçada, pois Entreri
media sua perícia de caçador contra a habilidade de se esconder da futura
vítima. Mas Entreri sabia que o resultado final era previsível, pois as pessoas
assustadas invariavelmente cometiam um erro fatal.
O assassino encontrou o que procurava numa gaveta de escrivaninha
no quarto principal. Fugindo às pressas, Régis negligenciara as precauções
para ocultar sua verdadeira identidade. Entreri segurou o pequeno anel diante
de seus olhos brilhantes, estudando a inscrição que claramente identificava
Régis como um membro da guilda de ladrões do Paxá Pûk em Calimporto.
Entreri cerrou o punho em volta do sinete e um sorriso maldoso se espalhou
por seu rosto.
— Encontrei você, ladrãozinho — ele riu para o vazio da sala. — Seu
destino está selado. Não há para onde fugir!
A mudança abrupta em sua expressão revelou seu estado de prontidão
assim que o som de uma chave na porta da frente do palacete ecoou pelo
corredor da grande escadaria. Deixou cair o anel em sua escarcela e
esgueirou-se, silencioso como a morte, até as sombras dos pilares superiores
do pesado corrimão da escada.
As grandes portas duplas se abriram e entraram um homem e uma
moça, vindos do pórtico, à frente de dois anões. Entreri conhecia o homem:
Cássio, o representante de Brin Shander. Ali fora sua casa outrora, mas ele
havia renunciado a ela vários meses antes em favor de Régis, depois das ações
heróicas do halfling na batalha da vila contra o mago maligno, Akar Kessell, e
seus sequazes goblins.
Entreri também vira a outra humana antes, embora ainda não tivesse
descoberto a ligação entre ela e Régis. Mulheres bonitas eram uma raridade
naquela colônia remota, e a moça era, de fato, a exceção. Brilhantes cachos
castanho-avermelhados dançavam alegremente em torno de seus ombros; a
luz intensa dos olhos azul-escuros era capaz de aprisionar irremediavelmente
qualquer homem em suas profundezas.
O nome dela, o assassino descobrira, era Cattiebrie. Ela vivia com os
anões no vale ao norte da cidade, mais especificamente com o líder do clã,
Bruenor, que a adotara como sua própria filha uns doze anos antes, quando
um ataque-surpresa dos goblins a deixara órfã.
Aquele encontro poderia se mostrar valioso, refletiu Entreri. Junto aos
postes do corrimão, prestou atenção para ouvir a discussão lá embaixo.
— Só faz uma semana que ele foi embora! — argumentava Cattiebrie.
— Uma semana sem notícias — devolveu Cássio, obviamente
contrariado. — E minha linda casa vazia e desprotegida. Ora, a porta da frente
estava destrancada quando passei por aqui alguns dias atrás!
— 'Cê deu a casa pro Régis — Cattiebrie lembrou o homem.
— Emprestei! — vociferou Cássio, embora, na verdade, a casa tivesse
sido de fato um presente. O representante logo se arrependera de entregar a
Régis a chave daquele palácio, a habitação mais grandiosa ao norte de
Mirabar. Em retrospectiva, Cássio compreendeu que fora arrebatado pelo
ardor da espantosa vitória sobre os goblins e desconfiava que Régis havia
intensificado um pouco mais as emoções, usando os supostos poderes
hipnóticos do pingente de rubi. Como outros que haviam sido tapeados pelo
persuasivo halfling, Cássio chegara a um panorama muito diferente dos
acontecimentos, um panorama que pintava Régis desfavoravelmente.
— Não importa que nome 'cê dê a isso — cedeu Cattiebrie —, ‘cê
não devia se afobar tanto prá concluir que Régis abandonou a casa.
O rosto do representante ficou vermelho de fúria.
— Tudo fora ainda hoje! — exigiu ele. — Você tem a minha lista.
Quero todos os pertences do halfling fora de minha casa! Tudo o que restar
quando eu voltar amanhã há de se tornar meu por direito adquirido! E vou
avisando: haverá pesadas compensações se qualquer parte da minha
propriedade estiver faltando ou tiver sido danificada! — Ele girou sobre os
calcanhares e saiu tempestuosamente portas afora.
— 'Tá bem irritado esse aí! — riu Arnês Mallot, um dos anões. —
Nunca vi ninguém como Régis prá perder a lealdade dos amigos e ganhar o
ódio dos velhos companheiros.
Cattiebrie assentiu, concordando com a observação de Arnês. Ela sabia
que Régis brincava com encantos mágicos e imaginou que os relacionamentos
paradoxais do halfling com os que o cercavam fossem um infeliz efeito
colateral de sua própria leviandade.
— Cê acha que ele foi com Drizzt e Bruenor? — perguntou Arnês. Lá
em cima, Entreri mudou de posição, ansioso.
— Sem dúvida — respondeu Cattiebrie. — Pediram o inverno inteiro
prá ele se juntar à busca pelo Salão de Mitral e, com certeza, o fato de Wulfgar
estar indo junto só fez aumentar a pressão.
— Então, o nanico 'tá a meio caminho de Luskan, se não mais longe
— raciocinou Arnês. — E Cássio tem razão em querer a casa de volta.
— Então, vamos começar a empacotar — disse Cattiebrie. — Cássio
já tem coisas demais sem precisar juntar também os bens de Régis ao seu
tesouro.
Entreri se recostou ao corrimão. O nome do Salão de Mitral lhe era
desconhecido, mas ele conhecia bem o caminho para Luskan. Sorriu
novamente, imaginando se conseguiria alcançá-los antes que eles chegassem à
cidade portuária.
Primeiro, porém, sabia que ainda poderia haver alguma informação
valiosa a ser obtida ali. Cattiebrie e os anões se puseram a reunir os pertences
do halfling e, à medida que passavam de uma sala a outra, a sombra negra de
Artemis Entreri, silenciosa como a morte, pairava sobre eles. Jamais
suspeitaram de sua presença, jamais teriam adivinhado que a ondulação
suave nas cortinas era mais do que uma corrente de ar entrando pelas frestas
da janela, ou que a sombra atrás da cadeira era desproporcionalmente longa.
Ele conseguiu ficar perto o bastante para ouvir quase toda a conversa, e
Cattiebrie e os anões falaram de pouca coisa além dos quatro aventureiros e
da viagem até o Salão de Mitral. Mas os esforços de Entreri de pouco lhe
valeram. Já sabia dos afamados companheiros do halfling; todos em Dez-
Burgos falavam deles com freqüência: de Drizzt Do'Urden, o elfo drow
renegado, que abandonara sua gente de pele escura nas entranhas dos Reinos
e vagava pelas fronteiras de Dez-Burgos como um guardião solitário contra as
intromissões dos ermos do Vale do Vento Gélido; de Bruenor Martelo de
Batalha, o líder valente do clã de anões que vivia no vale perto do Sepulcro de
Kelvin; e, principalmente, de Wulfgar, o poderoso bárbaro capturado e criado
por Bruenor até a idade adulta, que havia retornado com as tribos selvagens
do vale para defender Dez-Burgos contra o exército de goblins e depois dera
início a uma trégua entre todos os povos do Vale do Vento Gélido. Uma
barganha que salvara — e prometera enriquecer — as vidas de todos os
envolvidos.
— Parece que você se cercou de aliados formidáveis, halfling —
refletiu Entreri, recostando-se ao espaldar de uma grande cadeira enquanto
Cattiebrie e os anões passavam a uma sala contígua. — Serão de pouca ajuda.
Você é meu!
Cattiebrie e os anões trabalharam durante quase uma hora, enchendo
dois sacos grandes, principalmente com roupas. Cattiebrie estava estarrecida
com a quantidade de bens que Régis havia reunido desde seu suposto ato de
heroísmo contra Kessell e os goblins — presentes, em sua maioria, de
cidadãos agradecidos. Bem ciente do amor do halfling pelo conforto, ela não
conseguia entender o que dera nele para fugir pela estrada atrás dos demais.
Mas o que realmente a espantava era o fato de Régis não ter contratado
carregadores para levar consigo ao menos alguns de seus pertences. E quanto
mais tesouros ela descobria ao percorrer o palácio, mais a incomodava todo
aquele cenário de pressa e ímpeto. Não era nada típico de Régis. Tinha de
haver algum outro fator, algum elemento perdido, que ela ainda não havia
considerado.
— Bem, a gente já tem mais do que pode carregar, e é a maior parte
das coisas de qualquer maneira! — declarou Arnês, levando um dos sacos ao
ombro robusto. — Quer saber, deixa o resto pro Cássio separar!
— Não vou dar a Cássio o prazer de reivindicar nenhuma dessas
coisas — retorquiu Cattiebrie. — Pode ser que a gente ainda encontre outros
objetos de valor por aí. Vocês dois, levem os sacos de volta prós nossos
quartos na estalagem. Vou terminar o trabalho por aqui.
— Ah, 'cê 'tá sendo boazinha com esse Cássio — resmungou Arnês.
— Bruenor acertou quando disse que ele era um homem que gosta demais de
contar o que é seu!
— Seja justo, Arnês Mallot — retorquiu Cattiebrie, apesar de o
sorriso de concordância desmentir a aspereza de seu tom de voz. — Cássio
serviu bem às vilas na guerra e tem sido um bom líder para o povo de Brin
Shander. 'Cê sabe tão bem quanto eu que Régis tem o dom de deixar os gatos
com os pêlos eriçados!
Arnês deu uma risadinha, concordando.
— Apesar de todos os jeitinhos que o nanico tem prá conseguir o que
quer, ele deixou uma ou duas fileiras de vítimas irritadas! — Ele bateu no
ombro do outro anão, e os dois se dirigiram à porta principal.
— Não se atrase, menina — gritou Arnês para Cattiebrie. — Vamos
voltar pras minas. Amanhã, no máximo!
— 'Cê reclama demais, Arnês Mallot — disse Cattiebrie, rindo.
Entreri considerou a última troca de palavras e mais uma vez um
sorriso se espalhou pelo seu rosto. Ele conhecia bem o rastro dos encantos
mágicos. As "vítimas irritadas" que Arnês mencionara descreviam exatamente
as pessoas que o Paxá Pûk havia tapeado em Calimporto. Pessoas encantadas
pelo pingente de rubi.
As portas duplas se fecharam com um estrondo. Cattiebrie ficou sozinha
no palacete — ou assim ela pensou.
Ela ainda refletia sobre o atípico desaparecimento de Régis. Suas
suspeitas persistentes de que algo estava errado, de que faltava uma peça do
quebra-cabeça, começaram a alimentar dentro dela a sensação de que algo
também estava errado ali na casa.
Repentinamente, Cattiebrie passou a notar cada ruído e cada sombra ao
seu redor. O "tic-tac" de um relógio de pêndulo. O frufru das cortinas. O ruído
de um camundongo correndo por dentro das paredes de madeira.
Seus olhos dardejaram de volta às cortinas, ainda tremendo
ligeiramente devido ao último movimento. Poderia ter sido uma corrente de ar
através de uma fresta na janela, mas a mulher alerta desconfiava de outra
coisa. Agachando-se, num reflexo, e tentando alcançar o punhal em seu
quadril, ela se lançou em direção à porta aberta ao lado das cortinas.
Entreri movera-se rapidamente. Desconfiando que ainda havia mais a
aprender com Cattiebrie, e nada disposto a deixar passar a oportunidade
oferecida pela saída dos anões, ele havia se esgueirado até a posição mais
favorável para um ataque e agora esperava pacientemente no topo do estreito
poleiro oferecido pela porta aberta, equilibrado ali com a mesma facilidade
com que um gato caminha sobre o peitoril da janela. Atentou para a
aproximação da moça, o punhal a girar casualmente em sua mão.
Cattiebrie sentiu o perigo assim que alcançou a porta e viu a forma
escura caindo ao seu lado. Mas, por mais rápidas que fossem suas reações,
seu próprio punhal não deixara nem a metade da bainha antes que os dedos
delgados de uma mão fria tivessem se fechado sobre sua boca, reprimindo um
grito, e a lâmina afiada de um punhal ajaezado houvesse marcado uma linha
fina em sua garganta.
Estava atordoada e estarrecida. Nunca vira um homem se mover tão
rápido, e a precisão mortífera do ataque de Entreri a amedrontou. Uma súbita
tensão nos músculos dele mostrou que, se ela persistisse em sacar a arma,
estaria morta muito antes de poder usá-la. Largando o cabo do punhal, ela
não fez nenhum outro gesto de resistência.
A força do assassino também a surpreendeu quando ele a ergueu
facilmente até uma cadeira. Era um homem pequeno, esguio como um elfo,
mal e mal da mesma altura que ela, mas cada músculo de sua compleição
compacta se achava na melhor forma para o combate. Sua própria presença
exsudava uma aura de força e uma confiança inabalável. Isso também
amedrontava Cattiebrie porque não se tratava da arrogância estouvada de um
jovem exuberante, mas do ar sereno de superioridade de alguém que
presenciara mil batalhas e nunca fora derrotado.
Os olhos de Cattiebrie jamais se desviaram do rosto de Entreri enquanto
ele rapidamente a amarrava à cadeira. Os traços angulosos, os malares
notáveis e o queixo pronunciado eram apenas acentuados pelo corte reto de
seu cabelo negro e lustroso. A sombra de barba a lhe escurecer o rosto dava a
impressão que, não importando quantas vezes ele se barbeasse, jamais
desapareceria. Longe de ser desmazelado, porém, tudo a respeito daquele
homem denotava controle. Cattiebrie poderia até mesmo tê-lo considerado
bonito, não fossem os olhos.
O cinza daqueles olhos não tinha brilho. Sem vida, destituídos de
qualquer sinal de compaixão ou humanidade, caracterizavam aquele homem
como um instrumento de morte e nada mais.
— O que 'cê quer de mim? — perguntou Cattiebrie, assim que reuniu
a coragem para tanto.
Entreri respondeu com um tapa pungente no rosto.
— O pingente de rubi! — exigiu ele, de repente. — O halfling ainda
tem o pingente de rubi?
Cattiebrie lutou para reprimir as lágrimas que lhe marejavam os olhos.
Estava desorientada e surpresa e não conseguiu responder imediatamente à
pergunta do homem.
O punhal ajaezado cintilou diante de seus olhos e lentamente traçou a
circunferência de seu rosto.
— Não tenho muito tempo — declarou Entreri categoricamente —
Você vai me dizer o que preciso saber. Quanto mais demorar a responder,
mais dor sentirá.
Suas palavras foram calmas e pronunciadas com honestidade.
Cattiebrie, transformada numa mulher forte sob a tutela de Bruenor,
flagrou-se amedrontada. Ela enfrentara e derrotara goblins antes, até mesmo
um horrível troll certa vez, mas esse assassino imperturbável a aterrorizava.
Ela tentou responder, mas o tremor do queixo não deixava as palavras se
formarem.
O punhal cintilou novamente.
— No pescoço de Régis! — foi o grito agudo de Cattiebrie, uma
lágrima a traçar uma linha solitária pelas suas faces.
Entreri assentiu e sorriu de leve.
— Ele está com o elfo negro, o anão e o bárbaro. — disse,
corriqueiramente. — E estão na estrada para Luskan. E de lá para um lugar
chamado Salão de Mitral. Fale-me sobre o Salão de Mitral, minha cara
menina. — Ele raspou a lâmina em sua própria face e o fio aguçado removeu
um pequeno trecho de barba. — Onde fica?
Cattiebrie se deu conta que sua incapacidade de responder
provavelmente seria seu fim.
— E... eu não sei — ela balbuciou audaciosamente, readquirindo
certo grau da disciplina que Bruenor lhe ensinara, apesar de seus olhos
jamais abandonarem o brilho da lâmina letal.
— Pena — respondeu Entreri. — Um rostinho tão bonito...
— Por favor — disse Cattiebrie com toda a calma possível diante
do punhal que se movia em sua direção. — Ninguém sabe! Nem
mesmo Bruenor! Encontrar o lugar é a missão dele.
A lâmina se deteve subitamente e Entreri virou a cabeça para o lado, os
olhos apertados e todos os músculos tensos, em estado de alerta.
Cattiebrie não ouvira o giro da maçaneta da porta, mas a voz grave de
Arnês Mallot ecoando pelo corredor explicou as ações do assassino:
— Hã, cadê você, menina?
Cattiebrie tentou berrar "Fujam!" — e que se danasse a própria vida —,
mas o golpe rápido de Entreri com as costas da mão a atordoou e expeliu a
palavra como um grunhido indecifrável.
A cabeça a pender de um lado a outro, ela apenas conseguiu focalizar a
visão quando Arnês e Grollo, os machados nas mãos, irromperam sala
adentro. Entreri estava preparado para recebê-los, o punhal ajaezado numa
das mãos e um sabre na outra.
Por um instante, Cattiebrie se encheu de entusiasmo. Os anões de Dez-
Burgos eram um batalhão ferrenho de guerreiros empedernidos e, entre os
membros do clã, a perícia de Arnês só perdia para a de Bruenor.
Então, ela se lembrou de quem eles enfrentariam e, apesar da aparente
vantagem dos anões, suas esperanças foram varridas por uma onda de
conclusões irrefutáveis. Ela testemunhara a indistinção dos movimentos do
assassino, a precisão extraordinária de suas cutiladas.
A revulsão a brotar em sua garganta, ela sequer foi capaz de emitir um
aviso ofegante para que os anões fugissem.
Mesmo se conhecessem a profundidade do horror no homem diante
deles, Arnês e Grollo não teriam se esquivado da luta. A fúria cega o guerreiro
anão para qualquer consideração por sua segurança pessoal e, quando
aqueles dois viram sua amada Cattiebrie amarrada à cadeira, a investida
contra Entreri veio por instinto.
Estimulados por uma fúria desenfreada, seus primeiros ataques
vociferaram com toda a força. Por outro lado, Entreri começou vagarosamente,
encontrando seu ritmo e permitindo que a pura fluidez de seus movimentos
alimentasse o próprio impulso. Às vezes, ele mal parecia capaz de aparar ou
evitar as pancadas ferozes. Algumas erravam o alvo por pouco, e esses quase
acertos incitavam Arnês e Grollo ainda mais.
Mas, mesmo com seus amigos se impondo no ataque, Cattiebrie
compreendeu que estavam em dificuldades. As mãos de Entreri pareciam
conversar uma com a outra, tão perfeito era o complemento dos movimentos
de ambas à medida que posicionavam o punhal ajaezado e o sabre. Os
movimentos sincrônicos de seus pés mantinham-no totalmente equilibrado ao
longo da escaramuça. Era uma dança de esquivas, paradas e contragolpes.
Era uma dança de morte.
Cattiebrie vira aquilo antes, os métodos que denunciavam o melhor
espadachim de todo o Vale do Vento Gélido. A comparação com Drizzt
Do'Urden era inevitável; a graça e os movimentos de ambos eram tão
semelhantes e cada parte de seus corpos funcionava em perfeita harmonia.
Mas eles continuavam consideravelmente diferentes, uma polaridade de
princípios morais que alterava sutilmente a aura da dança.
O ranger drow em batalha era um instrumento de beleza a se
contemplar, um atleta perfeito que se dedicava com fervor incomparável ao
caminho da integridade de que escolhera trilhar. Mas Entreri era meramente
aterrorizante, um assassino desapaixonado que se livrava insensivelmente dos
obstáculos em seu caminho.
O ímpeto inicial do ataque dos anões agora começava a diminuir e tanto
Arnês quanto Grollo traziam estupefação no olhar por ainda não estar o chão
rubro com o sangue do oponente. Mas, enquanto seus ataques perdiam
velocidade, o impulso de Entreri continuava a crescer. Suas armas eram uma
mancha indistinta e cada estocada era seguida por duas outras que faziam os
anões balançar.
Desembaraçados eram seus movimentos. Infindável era sua energia.
Arnês e Grollo mantinham uma postura exclusivamente defensiva, mas,
mesmo com todos os seus esforços dedicados ao bloqueio, todos na sala
sabiam que era apenas uma questão de tempo antes que a lâmina assassina
lhes atravessasse a guarda.
Cattiebrie não viu o golpe fatal, mas enxergou vividamente a linha
brilhante de sangue que apareceu de um lado a outro da garganta de Grollo. O
anão continuou lutando por alguns instantes, alheio à causa de sua
incapacidade de recuperar o fôlego. Então, surpreso, Grollo caiu de joelhos,
levou às mãos à garganta e, gorgolejando, penetrou as trevas da morte.
A fúria incitou Arnês a esquecer a exaustão. Seu machado distribuía
talhos e cutiladas desvairadamente, clamando por vingança.
Entreri brincou com ele, chegando a prosseguir com a charada a ponto
de golpeá-lo na têmpora com a parte chata do sabre.
Ultrajado, ofendido e completamente ciente de que fora superado, Arnês
lançou-se numa última e suicida arremetida, esperando levar o assassino com
ele.
Entreri desviou-se da desesperada investida com um passo para o lado e
uma gargalhada divertida e pôs fim à luta, enterrou o punhal ajaezado no
peito de Arnês e completou com um golpe poderoso do sabre quando o anão
passou cambaleando por ele.
Horrorizada demais para chorar, horrorizada demais para gritar,
Cattiebrie observou incapaz de reagir Entreri retirar o punhal do peito de
Arnês. Certa de sua morte iminente, ela fechou os olhos quando o punhal veio
em sua direção, sentiu o metal, aquecido pelo sangue do anão, rente à sua
garganta.
E, em seguida, o raspar provocador do fio da arma contra sua pele
macia e vulnerável quando Entreri lentamente girou a lâmina na mão.
Torturante. A promessa, a dança da morte.
Então, acabou. Cattiebrie abriu os olhos exatamente quando a pequena
arma voltou à sua bainha no quadril do assassino. Ele se afastara um passo.
— Veja bem — ofereceu ele, como explicação por sua misericórdia —,
eu mato apenas os que se opõem a mim. Talvez, então, três de seus amigos
na estrada para Luskan escapem ao fio da espada. Quero apenas o halfling.
Cattiebrie recusou-se a se render ao terror que ele evocava. Manteve a
voz firme e prometeu, com frieza:
— Você os subestima. Lutarão contra você. Com serena confiança,
Entreri respondeu:
— Então, eles também vão morrer.
Cattiebrie não poderia vencer uma disputa de fibra com o assassino
impassível. Sua única resposta para ele era a rebeldia. Cuspiu nele, sem temer
as conseqüências.
Ele retorquiu com um simples e pungente tapa com as costas da mão.
Os olhos dela se anuviaram com a dor e as lágrimas que brotavam, e
Cattiebrie mergulhou nas trevas. Mas, ao cair inconsciente, ainda escutou
durante alguns segundos a risada fria e cruel, que foi desaparecendo
enquanto o assassino deixava a casa.
Torturante. A promessa da morte.
3. VIDA NOTURNA
4. A CONJURAÇÃO
Um marco de prodigiosa arquitetura era a grande atração do centro da
Cidade das Velas, um estranho edifício que emanava uma poderosa aura
mágica. Diferente de qualquer outra estrutura em todos os Reinos Esquecidos,
a Torre das Hostes Arcanas parecia literalmente uma árvore de pedra,
ostentando cinco torreões altos, sendo o central o maior deles, e os outros
quatro, igualmente altos, a crescer a partir do tronco principal com a graciosa
curvatura de um carvalho. Não se via sinal de alvenaria; era evidente a
qualquer observador instruído que a magia — e não o trabalho físico —
produzira aquela obra-de-arte.
Um Arquimago, Mestre inconteste da Torre das Hostes, residia na torre
central, enquanto as outras quatro abrigavam os magos no topo da linha de
sucessão. Cada uma dessas torres menores, representando os quatro pontos
cardeais, dominava uma face diferente do tronco e seu respectivo mago era
responsável por zelar pela direção que supervisionava e influenciar os
acontecimentos daquele lado. Portanto, o mago a oeste do tronco passava seus
dias olhando para o mar e para os navios de mercadores e piratas que
resistiam aos temporais no porto de Luskan.
Uma conversa no torreão norte teria interessado aos companheiros de
Dez-Burgos naquele dia.
— Fez muito bem, Jierdan — disse Sidnéia, uma feiticeira mais jovem e
de menor importância na Torre das Hostes, apesar de demonstrar potencial
suficiente para conquistar um noviciado com um dos mais poderosos magos
da guilda. Sem ser bonita, Sidnéia pouco se importava com as aparências
físicas, dedicando sua energia à busca inexorável pelo poder. Ela passara a
maior parte dos seus vinte e cinco anos trabalhando em prol de um objetivo —
o título de Maga — e sua determinação e atitude deixavam poucas dúvidas
quanto à sua capacidade de consegui-lo.
Jierdan aceitou o elogio com um aceno sagaz da cabeça, entendendo
perfeitamente a forma condescendente com que este fora oferecido.
— Agi apenas como fui instruído — ele respondeu, sob uma fachada
de humildade, lançando um olhar para o homem de aparência frágil, vestindo
túnicas de um castanho variegado, que fitava o mundo lá fora pela única
janela da sala.
— Por que eles viriam aqui? — murmurou o mago consigo mesmo.
Ele se voltou para os demais, e eles se encolheram instintivamente diante
daquele olhar. Era Dendibar, o Variegado, Mestre do Torreão Norte, e, apesar
de parecer fraco à distância, um exame mais de perto revelava no homem um
poder mais pujante que o de meros músculos protuberantes. E sua merecida
reputação de valorizar a busca pelo conhecimento muito mais que a vida
intimidava muitos que se colocavam diante dele.
— Os viajantes apresentaram algum motivo para vir aqui?
— Nenhum no qual eu acreditasse — replicou Jierdan
tranqüilamente. — O halfling falou de inspecionar a praça do mercado, mas
eu...
— Improvável — interrompeu Dendibar, falando mais consigo mesmo
do que para os demais. — Esses quatro têm mais em mente do que uma mera
expedição mercantil.
Sidnéia pressionou Jierdan, procurando se manter nas boas graças do
Mestre do Torreão Norte.
— Onde estão eles agora? — indagou.
Jierdan não se atreveu a confrontá-la na frente de Dendibar.
— Nas docas... em algum lugar — disse, depois deu de ombros.
— Você não sabe? — sibilou a jovem feiticeira.
— Planejavam se hospedar no Alfanje — retorquiu Jierdan. — Mas a
briga os deixou na rua.
— E você devia tê-los seguido! — ralhou Sidnéia, acossando
implacavelmente o soldado.
— Seria tolice até mesmo para um soldado da cidade percorrer
sozinho os molhes à noite — rebateu Jierdan. — Não importa onde estejam
neste momento. Tenho os portões e o cais sob vigilância. Não podem sair de
Luskan sem que eu saiba!
— Quero que os encontre! — ordenou Sidnéia, mas então Dendibar a
silenciou.
— Deixe a vigilância como está — ele disse a Jierdan. — Eles não
devem partir sem que eu saiba. Está dispensado. Apresente-se novamente
quando tiver algo a relatar.
Jierdan assumiu a posição de sentido e virou-se para partir, lançando,
ao passar, um último olhar feroz para sua rival pelas graças do mago
variegado. Era apenas um soldado, não um aprendiz promissor como Sidnéia,
mas, em Luskan onde a Torre das Hostes Arcanas era a verdadeira força
oculta por trás de todas as estruturas de poder da cidade, um soldado fazia
bem em procurar o favor de um mago. Os capitães da guarda somente
conseguiam suas posições e seus privilégios com o consentimento prévio da
Torre das Hostes.
Não podemos permitir que eles perambulem por aí livremente —
argumentou Sidnéia quando a porta se fechou atrás do soldado que saía.
Não devem causar problemas por enquanto — replicou Dendibar.
— Mesmo se o drow carregar com ele o artefato, levará anos para que
compreenda seu potencial. Paciência, minha amiga, tenho maneiras de
descobrir o que precisamos saber. As peças deste quebra-cabeça vão se
encaixar direitinho muito em breve.
— Aflige-me pensar que tamanho poder esteja tão ao nosso alcance
— suspirou a jovem e impaciente feiticeira. — E nas mãos de um principiante!
— Paciência — repetiu o Mestre do Torreão Norte.
Sidnéia terminou de acender o circuito de velas que demarcava o
perímetro do aposento especial e dirigiu-se lentamente para o braseiro
solitário que se achava em seu tripé de ferro, imediatamente fora do círculo
mágico inscrito no piso. Desapontava-a saber que, assim que o braseiro
também estivesse ardendo, ela seria instruída a sair. Saboreando cada
momento naquela sala raramente franqueada, considerada por muitos a
melhor câmara de conjuração em todas as terras do norte, Sidnéia havia
muitas vezes implorado para continuar de serviço.
Mas Dendibar nunca a deixava ficar, explicando que suas inevitáveis
perguntas acabariam se revelando uma grande distração. E, quando se lidava
com os mundos inferiores, as distrações geralmente se mostravam fatais.
Dendibar sentou-se de pernas cruzadas no interior do círculo mágico,
entoando mantras até entrar num profundo transe meditativo, sem nem
mesmo perceber as ações de Sidnéia, que completava os preparativos. Todos
os seus sentidos se voltavam para o interior, vasculhando o próprio ser para
garantir que estivesse totalmente preparado para aquela tarefa. Ele deixara
apenas uma janela em sua mente aberta para o exterior, uma fração de sua
consciência à espera de uma única deixa: o estalido do ferrolho da pesada
porta sendo recolocado em seu lugar com a saída de Sidnéia.
Suas pálpebras pesadas se abriram de repente, o campo estreito da
visão fixado unicamente nas chamas do braseiro. Aquelas labaredas seriam a
vida do espírito invocado e dariam a ele uma forma tangível enquanto
Dendibar o mantivesse preso no plano material.
— Ey vesus venerais dimin dou — começou a entoar o mago, a
princípio lentamente, depois estabelecendo um ritmo estável.
Arrebatado pela insistente atração da invocação — como se a magia,
assim que tivesse recebido um bruxuleio de vida, conduzisse a si própria à
conclusão do encantamento —, Dendibar passou com desenvoltura pelas
várias modulações e sílabas arcanas, o suor em seu rosto a refletir ansiedade
mais que nervosismo.
O mago variegado se deleitava com as invocações, pois dominava a
vontade de seres muito além do mundo mortal por meio da mera persistência
de seu considerável poder mental. Aquela sala representava o ápice de seus
estudos, a evidência irrefutável dos vastos limites de seus poderes.
Dessa vez, ele tinha como alvo seu informante favorito, um espírito que
verdadeiramente o desprezava, mas não podia recusar seu chamado. Dendibar
chegou ao clímax da invocação, a nomeação.
— Morkai — chamou ele, baixinho.
A chama do braseiro se avivou durante um momento.
— Morkai! — gritou Dendibar, arrancando o espírito de sua prisão
no outro mundo. O braseiro formou uma pequena bola. de fogo, depois se
extinguiu nas trevas, as chamas transmutadas na imagem de um homem de
pé diante de Dendibar.
Arregaçaram-se os lábios finos do mago. Que ironia, pensou ele, que o
homem cujo assassinato ele arranjara acabasse se mostrando sua mais
valiosa fonte de informações.
O espectro de Morkai, o Vermelho, apresentou-se resoluto e orgulhoso,
uma imagem digna do poderoso mago que fora outrora. Ele mesmo havia
criado aquela sala, na época em que servira à Torre das Hostes no papel de
Mestre do Torreão Norte. Mas, então, Dendibar e seus capangas haviam
conspirado contra ele, usando seu aprendiz de confiança para enfiar um
punhal em seu coração e, assim, abrir uma trilha de sucessão para o próprio
Dendibar alcançar a cobiçada posição no torreão.
Esse mesmo ato havia colocado uma segunda — e talvez mais
significativa — cadeia de eventos em ação, pois foi o mesmo aprendiz, Akar
Kessell, que acabou possuindo a Estilha de Cristal, o poderoso artefato que
Dendibar agora acreditava estar nas mãos de Drizzt Do'Urden. As histórias
que haviam chegado de Dez-Burgos sobre a batalha final de Akar Kessell
nomeavam o elfo como o guerreiro que o abatera.
Não havia como Dendibar saber que a Estilha de Cristal agora jazia
enterrada sob centenas de toneladas de gelo e rocha na montanha do Vale do
Vento Gélido, conhecida como Sepulcro de Kelvin, perdida na avalanche que
matara Kessell. Tudo o que sabia da história era que Kessell, o aprendiz
insignificante, havia quase conquistado todo o Vale do Vento Gélido com a
Estilha de Cristal e que Drizzt Do'Urden foi o último a ver Kessell com vida.
Dendibar retorcia as mãos ansiosamente sempre que pensava no poder
que a relíquia traria a um mago mais instruído.
Saudações, Morkai, o Vermelho — riu Dendibar. — Quanta
cortesia aceitar meu convite.
Aceito toda oportunidade de encará-lo, Dendibar, o Assassino —
replicou o espectro. — Para que possa reconhecê-lo quando você navegar
no barco da Morte pelo reino tenebroso. Então estaremos em pé de
igualdade novamente...
Silêncio! — ordenou Dendibar. Embora não admitisse a verdade,
o mago variegado temia imensamente o dia em que teria de enfrentar o
poderoso Morkai mais uma vez. — Eu o trouxe aqui com um propósito — disse
ele ao espectro. — Não tenho tempo para suas ameaças vãs.
— Então, diga-me que serviço devo executar — sibilou o espectro —,
e deixe-me partir. Sua presença me ofende.
Dendibar se enfureceu, mas não deu prosseguimento à discussão. O
tempo agia contra um mago envolvido numa magia de invocação, pois esta o
exauria para manter um espírito no plano material, e cada segundo que
passava o enfraquecia um pouco mais. O maior risco naquele tipo de magia
era o conjurador tentar manter o controle durante muito tempo, até que se
achasse fraco demais para controlar a entidade que havia invocado.
— Uma resposta simples é tudo o que exijo de você hoje, Morkai —
disse Dendibar, escolhendo cuidadosamente cada palavra enquanto
prosseguia. Morkai notou a cautela e desconfiou que Dendibar escondia algo.
— Então, qual é a pergunta? — pressionou o espectro.
Dendibar manteve a cautela, considerando cada palavra antes de
pronunciá-la. Ele não queria que Morkai obtivesse uma dica sequer sobre
suas razões para procurar pelo drow, pois o espectro certamente transmitiria a
informação através dos planos. Muitos seres poderosos — talvez até mesmo o
próprio espírito de Morkai — partiriam em busca de uma relíquia tão poderosa
se fizessem idéia do paradeiro da estilha.
— Quatro viajantes, um deles um elfo drow, chegaram hoje a Luskan
vindos do Vale do Vento Gélido — explicou o mago variegado. — O que
vieram fazer na cidade? Por que estão aqui?
Morkai examinou sua nêmese, tentando descobrir o motivo da pergunta.
— Está aí uma boa pergunta para a guarda de sua cidade — ele
respondeu.
— Sem dúvida os visitantes declararam a que vieram ao entrar pelo
portão.
— Mas foi a você que perguntei! — gritou Dendibar,
subitamente explodindo de fúria. Morkai protelava, e cada segundo que
passava agora cobrava seu preço do mago variegado. A essência de Morkai
perdera pouco poder na morte, e ele lutava teimosamente contra o encanto
aprisionador da magia. Dendibar, com um gesto rápido, abriu um pergaminho
diante dele.
— lenho uma dúzia destes já redigida — avisou ele.
Morkai se encolheu. Compreendeu a natureza da escritura, um rolo de
pergaminho que revelava o nome verdadeiro de seu próprio ser. E uma vez
lido, despojando-o do véu de sigilo conferido pelo nome e desnudando a
privacidade de sua alma, Dendibar invocaria o poder verdadeiro do
pergaminho, usando modulações desafinadas para destorcer o nome de
Morkai e desintegrar a harmonia de seu espírito, supliciando-o, assim, até o
cerne de seu ser.
— Por quanto tempo devo procurar suas respostas? — perguntou
Morkai.
Dendibar sorriu diante da vitória, embora seu desgaste fosse cada
vez maior.
— Duas horas — ele respondeu sem delongas, tendo
cuidadosamente decidido a duração da busca antes da invocação, escolhendo
um limite de tempo que daria a Morkai oportunidade suficiente para encontrar
algumas respostas, mas não o bastante para permitir que o espírito
descobrisse mais do que deveria.
Morkai sorriu, adivinhando os motivos por trás da decisão. Deixou-se
arremessar para trás de repente e sumiu numa nuvem de fumaça, as chamas
que haviam alimentado sua forma agora relegadas ao braseiro para aguardar
seu retorno.
O alívio de Dendibar foi imediato. Apesar de ainda precisar se
concentrar com o intuito de manter o portal para os planos no lugar, a
oposição à sua vontade e o desgaste de seu poder diminuíram
consideravelmente quando o espírito se foi. A força de vontade de Morkai
quase o havia sujeitado durante a audiência, e Dendibar sacudiu a cabeça,
não querendo acreditar que o velho mestre fosse capaz, mesmo morto, de
manifestar-se com tamanha força. Um arrepio percorreu-lhe a espinha ao
considerar se seria sábio tramar contra alguém tão poderoso. Sempre que
invocava Morkai, era lembrado de que o dia do ajuste de contas certamente
chegaria.
Morkai teve pouco trabalho para descobrir algo sobre os quatro
aventureiros. De fato, o espectro já sabia muito sobre eles. Havia se
interessado bastante por Dez-Burgos durante seu reinado como Mestre do
Torreão Norte, e a curiosidade não morrera com seu corpo. Mesmo agora, ele
geralmente dava uma espiada no que acontecia no Vale do Vento Gélido, e
qualquer um que se preocupasse com Dez-Burgos em meses recentes sabia
algo sobre os quatro heróis.
O interesse contínuo de Morkai no mundo que deixara para trás não era
uma característica incomum no mundo espiritual. A morte alterava as
ambições da alma, substituindo o amor pelos ganhos materiais e sociais com a
eterna avidez por conhecimento. Alguns espíritos observavam os Reinos
durante incontáveis séculos, simplesmente para recolher informações e
observar os vivos se ocuparem de suas vidas. Talvez fosse a inveja das
sensações físicas que não podiam mais sentir. Mas, não importava o motivo, a
riqueza de conhecimentos num único espírito geralmente era mais relevante
que as obras reunidas em todas as bibliotecas do Reino combinadas.
Morkai descobriu muita coisa nas duas horas que Dendibar havia lhe
designado. Agora era sua vez de escolher cuidadosamente as palavras. Era
obrigado a satisfazer a solicitação do conjurador, mas tinha a intenção de
responder da maneira mais enigmática e ambígua possível.
Os olhos de Dendibar coruscaram ao ver as chamas do braseiro darem
início à sua dança denunciadora novamente. Já se teriam passado as duas
horas?
perguntou-se, pois seu descanso pareceu muito mais breve e ele
sentiu que não tinha se recuperado inteiramente da primeira audiência com o
espectro. Contudo, não poderia rejeitar a dança das chamas. Aprumou-se e
trouxe os tornozelos para mais junto do corpo, retesando-se e firmando sua
posição meditativa, de pernas cruzadas.
A bola de fogo fez fumaça no auge de seus estertores e Morkai apareceu
diante dele. O espectro se afastou obedientemente, sem fornecer qualquer
informação até que Dendibar pedisse especificamente por ela. A história
completa por trás da visita dos quatro amigos a Luskan continuava imprecisa
para Morkai, mas ele muito descobrira sobre a demanda e mais do que
desejava que Dendibar viesse a saber. Ele ainda não discernira as verdadeiras
intenções por trás das perguntas do mago variegado, mas sentiu com certeza
que não eram boas, não importavam os objetivos de Dendibar.
— Qual é o propósito da visita? — indagou Dendibar, furioso com a
tática evasiva de Morkai.
— Foi você mesmo quem me invocou — respondeu Morkai
astuciosamente. — Sou obrigado a aparecer.
— Sem joguinhos! — rosnou o mago variegado. Ele fitou o espectro,
manuseando o pergaminho de tormento em franca ameaça. Famosos por
responder literalmente, os seres dos outros planos geralmente atarantavam
seus conjuradores, destorcendo o sentido conotativo da exata formulação de
uma pergunta.
Dendibar sorriu em concessão à lógica simples do espectro e esclareceu
a pergunta:
— Qual é o propósito da visita a Luskan dos quatro viajantes do Vale
do Vento Gélido?
Razões variadas — replicou Morkai. — Um deles veio em busca da terra
natal de seu pai, e do pai de seu pai.
— O drow? — perguntou Dendibar, tentando encontrar alguma maneira
de encadear suas suspeitas de que Drizzt planejava retornar ao seu mundo
subterrâneo natal com a Estilha de Cristal. Talvez uma insurreição dos elfos
negros, usando o poder da estilha? — É o drow que busca por sua terra natal?
— Não — respondeu o espectro, contente que Dendibar houvesse se
desviado por uma tangente, protelando a linha de indagação mais específica e
mais perigosa. Os minutos que se passavam logo começariam a dissipar o
domínio de Dendibar sobre o espectro e Morkai esperava poder encontrar uma
maneira de se libertar do mago variegado antes de revelar coisas demais sobre
a companhia de Bruenor. — Drizzt Do'Urden renunciou completamente à sua
terra natal. Ele nunca mais há de retornar às entranhas do mundo e
certamente não com seus mais caros amigos a reboque!
— Então, quem?
— Um dos outros quatro foge de um perigo que deixou para trás —
ofereceu Morkai, deturpando a linha de indagações.
— Quem busca sua terra natal? — indagou Dendibar mais
enfaticamente.
— O anão, Bruenor Martelo de Batalha — replicou Morkai, obrigado
a obedecer. — Ele procura o local de seu nascimento, o Salão de Mitral, e seus
amigos uniram-se à sua demanda. Por que isso o interessa? Os companheiros
não têm ligação com Luskan e não representam uma ameaça à Torre das
Hostes.
— Não o chamei aqui para responder às suas perguntas! — ralhou
Dendibar. — Agora, diga-me quem está fugindo do perigo. E o que é esse
perigo?
— Observe — instruiu o espectro. Com um aceno da mão, Morkai
transmitiu à mente do mago variegado uma imagem, um retrato de um
cavaleiro de manto negro arremetendo impetuosamente pela tundra. O freio do
cavalo estava branco de espuma, mas o cavaleiro forçava o animal a continuar
implacavelmente.
— O halfling foge deste homem — explicou Morkai —, apesar de o
propósito do cavaleiro continuar a ser um mistério para mim. — Contar a
Dendibar até mesmo tão pouco enfurecia o espectro, mas Morkai ainda não
conseguia resistir às ordens de sua nêmese. No entanto, ele sentia os grilhões
da vontade do mago afrouxando-se e desconfiava que a invocação chegava ao
fim.
Dendibar se deteve para considerar as informações.
Nada do que Morkai lhe dissera indicava qualquer ligação direta com a
Estilha de Cristal, mas ao menos ele descobrira que os quatro amigos não
pretendiam permanecer em Luskan por muito tempo. E ele descobrira um
possível aliado, mais uma fonte de informações. O cavaleiro de manto negro
devia ser realmente poderoso para pôr a formidável trupe do halfling em fuga
pela estrada.
Dendibar começava a formular suas próximas manobras quando um
repentino e insistente repelão da teimosa resistência de Morkai rompeu sua
concentração. Furioso, lançou ao espectro um olhar ameaçador e começou a
desenrolar o pergaminho.
Insolente! — ele resmungou e, embora pudesse ter estendido
seu domínio sobre o espectro um pouco mais caso tivesse investido sua
energia numa disputa de vontades, começou a recitar o texto do rolo de
pergaminho.
Morkai se encolheu, apesar de ter conscientemente levado Dendibar a
esse extremo. O espectro aceitava o suplício, pois este sinalizava o fim da
inquisição. E Morkai se considerava feliz por Dendibar não o ter forçado a
revelar os acontecimentos ainda mais distantes de Luskan, no vale logo além
das fronteiras de Dez-Burgos.
À medida que as recitações de Dendibar ressoavam de maneira
dissonante na harmonia de sua alma, Morkai começou a deslocar o ponto
focai de sua concentração ao longo de centenas de quilômetros, de volta à
imagem da caravana mercante que agora se encontrava a um dia de viagem de
Bremen, o mais próximo dos Dez-Burgos, e à imagem da corajosa moça que
havia se juntado aos mercadores. O espectro se consolou em saber que ela
havia, ao menos por enquanto, escapado às investigações do mago variegado.
Não que Morkai fosse altruísta; jamais fora acusado de prodigalidade
nessa característica. Ele simplesmente encontrava imensa satisfação em
atrapalhar como pudesse o tratante que havia arranjado para que ele fosse
assassinado.
Os cachos castanho-avermelhados de Cattiebrie balouçavam em seus
ombros. Ela estava sentada no alto da carroça que seguia à frente da caravana
mercante que partira de Dez-Burgos no dia anterior, com destino a Luskan.
Sem se incomodar com a brisa gelada, ela mantinha os olhos na estrada
adiante, procurando algum sinal de que o assassino por ali passara. Ela havia
transmitido informações sobre Entreri a Cássio, e ele as passaria adiante até
que chegassem aos anões. Cattiebrie se perguntava agora se havia justificativa
para sua partida sorrateira com a caravana mercante antes que o Clã Martelo
de Batalha pudesse organizar a perseguição por conta própria.
Mas somente ela vira o assassino em ação. Sabia muito bem que, se os
anões partissem atrás dele num ataque frontal, a cautela varrida por seu
desejo de vingar Arnês e Grollo, muitos outros do clã morreriam.
Egoisticamente, talvez, Cattiebrie havia decidido que o assassino era
assunto seu. Ele a amedrontara, despojara-a de anos de treinamento e
disciplina e reduzira-a à imagem trêmula de uma criança assustada. Mas ela
era uma jovem mulher agora, não mais uma menina. Precisava responder
pessoalmente aquela humilhação emocional, ou as cicatrizes seguiriam com
ela até o túmulo, assombrando-a, paralisando-a por todo o sempre ao longo da
senda que deveria tomar para descobrir seu verdadeiro potencial na vida.
Ela encontraria seus amigos em Luskan e os alertaria sobre o perigo às
suas costas, e então, juntos, eles dariam conta de Artemis Entreri.
— Vamos indo bem rápido — assegurou-lhe o condutor chefe,
solidário com a pressa da moça.
Cattiebrie não se voltou, os olhos fixos no horizonte plano diante dela.
— Meu coração me diz que não é rápido o bastante — lamentou-se.
O condutor olhou-a, curioso, mas sabia que era melhor não forçar a
questão. Ela havia deixado claro desde o começo que seu assunto era
particular. E, sendo a filha adotiva de Bruenor Martelo de Batalha e, conforme
voz corrente, uma excelente guerreira por mérito próprio, os mercadores
haviam se considerado homens de sorte por tê-la como companhia e
respeitado seu desejo de privacidade. Além disso, como argumentara com
tanta eloqüência um dos condutores durante uma reunião informal antes da
viagem, "só de pensar em olhar pro traseiro de um boi por quase quinhentos
quilômetros faz a idéia de ter essa moça como companhia me parecer muito
boa!”.
Eles haviam até antecipado a data da partida para acomodá-la.
— Não se preocupe, Cattiebrie — tranqüilizou-a o condutor —, a
gente te leva até lá!
Com um balançar da cabeça, Cattiebrie removeu do rosto o cabelo
açoitado pelo vento e olhou para o sol que se punha no horizonte diante dela.
— Mas será que vai dar tempo? — ela perguntou baixinho,
retoricamente, sabendo que o sussurro se perderia no vento assim que
passasse por seus lábios.
4. OS ROCHEDOS
Tudo acontecera apenas num instante, mas a vitória ainda não fora
conquistada Outros seis orcs entraram na refrega, dois deles interromperam a
tentativa de Drizzt de chegar até Régis e Bruenor, três outros correram em
auxílio do companheiro solitário que enfrentava o gigantesco bárbaro. E um
deles rastejando pela mesma trajetória tomada por Régis, aproximou-se do
halfling desavisado.
No mesmo instante em que Régis distinguiu o grito de alerta do drow,
uma clava o atingiu entre as omoplatas, arrancando-lhe o ar dos pulmões e
atirando-o ao solo.
Wulfgar agora era acossado pelos quatro lados e, apesar de sua gabolice
antes da batalha, descobriu que não gostava nada daquela situação.
Concentrou-se em aparar os golpes, esperando que o drow conseguisse chegar
até ele antes que suas defesas sucumbissem.
Ele se encontrava em terrível inferioridade numérica.
Uma espada orc entrou-lhe numa costela, uma outra lhe cortou o braço.
Drizzt sabia que poderia derrotar os dois que agora enfrentava, mas
duvidava que conseguisse fazê-lo a tempo de ajudar seu amigo bárbaro ou o
halfling. E havia ainda reforços no campo.
Régis rolou para se postar bem ao lado de Bruenor, e os gemidos do
anão deixaram claro que a luta terminara para ambos. Então, o orc estava
sobre ele, a clava erguida acima da cabeça e um sorriso maldoso a se espalhar
em sua cara feia. Régis fechou os olhos, sem vontade de assistir à queda do
golpe que o mataria.
Então, ouviu o som do impacto... acima dele.
Assustado, ele abriu os olhos. Uma machadinha se achava encravada no
peito do seu atacante. O orc olhou para a coisa, atordoado. A clava despencou
inofensivamente atrás do orc e ele também caiu de costas, morto.
Régis não entendeu.
— Wulfgar? —perguntou ele, para ninguém.
Uma forma descomunal, quase tão grande quanto a de Wulfgar, saltou
sobre ele e precipitou-se sobre o orc, arrancando ferozmente a machadinha do
peito da criatura. Era humano e vestia as peles de um bárbaro, mas, diferente
das tribos do Vale do Vento Gélido, os cabelos daquele homem eram negros. —
Ah, não — gemeu Régis, lembrando-se de seus próprios alertas para Bruenor
sobre os bárbaros uthgardt. O homem salvara sua vida, mas, conhecendo a
reputação do selvagem, Régis duvidava que uma amizade se formaria a partir
daquele encontro. Ele começou a se sentar, desejando expressar sua sincera
gratidão e dispersar quaisquer idéias hostis que o bárbaro pudesse em relação
a ele. Pensou até mesmo em usar o pingente de rubi para evocar alguns
sentimentos amistosos.
Mas o grandalhão, percebendo o movimento, girou de repente e deu-lhe
um pontapé no rosto.
Régis caiu de costas e tudo ficou escuro.
5. PÔNEIS CELESTES
Bárbaros de cabelos negros, aos gritos, tomados pelo frenesi da batalha,
irromperam no bosque. Drizzt percebeu imediatamente que aqueles guerreiros
corpulentos eram as formas que vira no campo, movendo-se por trás das
fileiras de orcs, mas ele ainda não tinha certeza se eram aliados ou inimigos.
Não importava de que lado estavam, a chegada dos bárbaros infundiu
terror nos orcs remanescentes. Os dois que combatiam Drizzt perderam toda a
vontade de lutar, revelando o desejo de desistir do confronto e fugir com uma
súbita alteração de postura. Drizzt lhes fez a vontade, certo de que não iriam
muito longe de qualquer maneira e sentindo que também seria aconselhável
sumir de vista.
Os orcs fugiram, mas seus perseguidores logo os envolveram em nova
batalha pouco além das árvores. Menos óbvio em sua fuga, Drizzt subiu,
sorrateiro e despercebido, de volta à arvore onde deixara seu arco.
Wulfgar foi incapaz de sublimar com a mesma facilidade sua ânsia de
batalhas. Com dois de seus amigos inconscientes, sua sede pelo sangue dos
orcs era insaciável, e o novo grupo de homens que se juntara à luta clamava
por Tempus — seu próprio deus das batalhas — com um fervor que o jovem
guerreiro não conseguiria ignorar. Distraído pela repentina marcha dos
acontecimentos, o círculo de orcs em volta de Wulfgar se afrouxou por apenas
um instante, e ele golpeou com força.
um orc desviou o olhar, e Garra de Palas lacerou-lhe a cara antes que
seus olhos retornassem à luta. Wulfgar varou a falha no círculo, empurrando
um segundo orc ao passar. Enquanto a criatura cambaleava, tentando se virar
para realinhar a defesa, o poderoso bárbaro a abateu com um só golpe. Os
outros dois se viraram e fugiram, mas Wulfgar seguiu em seus calcanhares.
Arremessou o martelo, arrancou a vida de um deles e saltou sobre o
outro, levando-o ao chão sob seu peso e depois esmagou-o até a morte com
as Próprias mãos.
Ao terminar, depois de ouvir o derradeiro estalido das vértebras do
pescoço, Wulfgar lembrou-se de sua situação e de seus amigos. Ficou de pé
num salto e recuou, de costas para as árvores.
Os bárbaros de cabelos negros guardaram distância, respeitando-lhe a
habilidade, e não havia como Wulfgar ter certeza das intenções deles. Olhou
ao redor, procurando pelos amigos. Régis e Bruenor jaziam lado a lado, perto
de onde os cavalos haviam sido amarrados; não sabia dizer se estavam vivos
ou mortos. Não havia sinal de Drizzt, mas ainda se combatia além da outra
orla do bosque.
Os guerreiros se dispuseram num amplo semicírculo ao redor dele,
bloqueando todas as rotas de fuga. Mas interromperam de repente seu
posicionamento, pois Garra de Palas retornara magicamente às mãos de
Wulfgar.
Ele não seria capaz de vencer tantos assim, mas a idéia não o
intimidava. Morreria lutando, como um verdadeiro guerreiro, e sua morte seria
lembrada. Se os bárbaros de cabelos negros o atacassem, sabia que muitos
não retornariam às respectivas famílias. Fincou os calcanhares no solo e
apertou firmemente o martelo de guerra nas mãos.
— Acabemos logo com isso — ele grunhiu para as trevas.
— Espere! — veio de cima um sussurro baixo, mas imperativo.
Wulfgar imediatamente reconheceu a voz de Drizzt e relaxou as mãos. —
Mantenha sua honra, mas saiba que mais vidas estão em jogo além da sua!
Wulfgar compreendeu então que Régis e Bruenor provavelmente ainda
estavam vivos. Deixou Garra de Palas cair e gritou para os guerreiros:
— Bons olhos os vejam!
Não responderam, mas um deles, quase tão alto e musculoso quanto
Wulfgar, deixou as fileiras e aproximou-se para se colocar diante dele. O
estranho usava o cabelo comprido preso numa única trança que lhe descia
pelo lado do rosto e por sobre o ombro. As faces se achavam pintadas de
branco, à semelhança de asas. A resistência de sua constituição e a disposição
disciplinada de seu rosto refletiam uma vida inteira na imensidão agreste e,
não fosse pela cor negra dos cabelos, Wulfgar o teria julgado um membro das
tribos do Vale do Vento Gélido.
O homem moreno também reconheceu Wulfgar; contudo, mais versado
nas estruturas universais das sociedades do norte, não ficou tão perplexo com
as semelhanças.
— Você é do vale — disse ele numa forma imperfeita da língua geral.
— Além das montanhas, onde sopra o vento frio.
Wulfgar assentiu.
— Sou Wulfgar, filho de Beornegar, da Tribo do Alce. Temos os
mesmos deuses, pois eu também clamo a Tempus por força e coragem.
O homem moreno olhou ao redor, para os orcs abatidos.
— O deus responde ao seu chamado, guerreiro do vale.
O queixo de Wulfgar se ergueu de orgulho.
— Também temos em comum o ódio pelos orcs — continuou ele —,
mas nada sei sobre o seu povo.
— Há de aprender — respondeu o homem moreno.
Ele estendeu a mão e indicou o martelo de guerra. Wulfgar se aprumou,
firme sem a menor intenção de se render, não importavam suas chances de
sobrevivência. O homem moreno olhou de lado, atraindo o olhar de Wulfgar.
Dois guerreiros haviam apanhado Bruenor e Régis e os carregavam nas
costas, enquanto outros haviam já recapturado os cavalos e os traziam pelas
rédeas.
— A arma — exigiu o homem moreno. — Você está em nossas terras
sem nossa permissão, Wulfgar, filho de Beornegar. O preço de tal crime é a
morte. Vai assistir à execução da sentença dos seus amiguinhos?
O Wulfgar mais jovem teria atacado naquele instante e provocado a
perdição de todos eles num arroubo de fúria gloriosa. Mas Wulfgar muito
aprendera com seus novos amigos, particularmente com Drizzt. Ele sabia que
Garra de Palas retornaria ao seu chamado e sabia também que Drizzt não os
abandonaria. Não era hora de lutar.
Ele até mesmo deixou que lhe amarrassem as mãos, um ato de desonra
que nenhum guerreiro da Tribo do Alce jamais permitiria. Mas Wulfgar tinha
fé em Drizzt. Suas mãos seriam liberadas novamente. Então, seria sua a
última palavra.
Quando chegaram ao acampamento dos bárbaros, tanto Régis quanto
Bruenor haviam recobrado a consciência e, amarrados, caminhavam ao lado
de seu amigo bárbaro. O sangue seco formava crostas nos cabelos de Bruenor,
e ele perdera o elmo, mas sua resistência de anão fizera com que sobrevivesse
a mais um confronto mortal.
Galgaram o cimo de uma elevação e chegaram ao perímetro de um
círculo de tendas e fogueiras chamejantes. Ao som dos brados em louvor a
Tempus, a volta do bando de guerra despertou o acampamento e cabeças
decepadas de orcs foram atiradas dentro do círculo para anunciar a gloriosa
chegada dos guerreiros. O fervor no interior do acampamento logo se igualou
ao do bando guerra que chegava, e os três prisioneiros foram os primeiros a
entrar, aos empurrões, para serem saudados por vinte bárbaros aos berros.
— O que é que eles comem? — perguntou Bruenor, mais por sarcasmo
que preocupação.
— Seja lá o que for, é bom alimentá-los, e rápido — respondeu Régis,
conseguindo do guarda atrás dele um tapa na nuca e um aviso para ficar
calado.
Os prisioneiros e os cavalos foram reunidos no centro do
acampamento, e a tribo os cercou numa dança de vitória, chutando cabeças
de orcs e entoando em voz alta, numa língua desconhecida pelos
companheiros, seu louvor a Tempus e a Uthgar — o herói ancestral — pelo
sucesso da noite.
Aquilo continuou durante quase uma hora e, então, acabou de repente,
e todos os rostos no círculo se voltaram para a aba fechada de uma tenda
grande e ornamentada.
O silêncio se prolongou por um instante antes que a aba se abrisse de
repente. Para fora saltou um ancião, esguio como um mastro de tenda,
demonstrando, porém, mais energia do que se esperaria de sua óbvia idade
avançada. O rosto pintado com as mesmas marcas dos guerreiros, só que
mais elaboradas, ele usava sobre um dos olhos um tapa-olho com uma imensa
gema verde costurada nele. Sua túnica era do mais puro branco, as mangas se
revelavam como asas recobertas de penas sempre que ele agitava os braços.
Dançou e rodopiou pelas fileiras de guerreiros, e todos prendiam a respiração
e se encolhiam até que ele tivesse passado.
— Chefe? — sussurrou Bruenor.
— Xamã — corrigiu Wulfgar, melhor conhecedor dos costumes da
vida tribal. O respeito que os guerreiros mostravam àquele homem advinha de
um temor muito além daquele que um inimigo mortal, ou até mesmo um líder,
seria capaz de provocar.
O xamã girou e saltou, pousando bem diante dos três prisioneiros.
Olhou para Bruenor e Régis durante apenas um instante, depois voltou toda a
sua atenção para Wulfgar.
— Sou Valric Olhar Alto — berrou ele, de repente. — Sacerdote dos
seguidores dos Pôneis Celestes! Os filhos de Uthgar!
— Uthgar! — repetiram os guerreiros, batendo suas machadinhas
contra os escudos de madeira.
Wulfgar esperou até que a comoção se extinguisse, depois se
apresentou:
— Sou Wulfgar, filho de Beornegar, da Tribo do Alce.
— E eu sou Bruenor... — começou o anão.
— Silêncio! — berrou-lhe Valric, tremendo de raiva. — Não dou a
mínima para você!
Bruenor fechou a boca e alimentou sonhos que envolviam seu machado
e a cabeça de Valric.
— Não era a nossa intenção lhes fazer mal, nem invadir — começou
Wulfgar, mas Valric ergueu a mão e o interrompeu.
— Seu propósito não me interessa — explicou com calma, mas sua
agitação ressurgiu imediatamente. —Tempus nos entregou vocês, isso é tudo!
Um guerreiro valoroso?
Ele olhou ao redor, para seus próprios homens, e a resposta deles
mostrou impaciência pelo desafio iminente.
_ A quantos você fez jus? — ele perguntou a Wulfgar.
— Sete tombaram diante de mim — respondeu orgulhosamente o
jovem bárbaro.
Valric assentiu, com ar aprovador.
— Alto e forte — comentou ele. — Descubramos se Tempus está ao
seu lado Julguemos se você é digno de correr com os Pôneis Celestes!
Gritos irromperam imediatamente e dois guerreiros se apressaram a
desamarrar Wulfgar. Um terceiro, o líder do bando de guerra que falara a
Wulfgar no arvoredo, lançou ao chão a machadinha e o escudo e adentrou o
círculo com impetuosidade.
Drizzt esperou em sua árvore até que o último membro do bando de
guerra partisse, após desistir da busca pelo cavaleiro da quarta montaria.
Então, o drow se moveu rapidamente e juntou alguns dos objetos
abandonados: o machado do anão e a maça de Régis. Contudo, foi obrigado a
estacar e a se controlar ao encontrar o elmo de Bruenor, manchado de sangue,
a ostentar um novo amassado e um dos chifres, quebrado. Teria seu amigo
sobrevivido?
Ele enfiou o elmo quebrado em sua mochila e escapuliu-se atrás do
grupo, mantendo uma distância cautelosa.
O alívio o inundou ao chegar ao acampamento e avistar seus três
amigos, Bruenor tranqüilo entre Wulfgar e Régis. Satisfeito, Drizzt recolheu
suas emoções e todos os pensamentos referentes ao confronto anterior,
focalizou sua perspicácia na situação diante dele e formulou um plano de
ataque para libertar seus amigos.
O homem moreno ofereceu as palmas abertas a Wulfgar, convidando
sua contraparte loura a segurá-las. Wulfgar jamais vira aquele desafio antes,
mas não era tão diferente das provas de força que sua própria gente praticava.
Seus pés não devem se mexer! — instruiu Valric. — Este é o desafio de
força! Que Tempus nos mostre seu valor!
A fisionomia determinada de Wulfgar não revelava o menor sinal de sua
confiança em poder derrotar qualquer homem numa prova como aquela. Ele
nivelou suas mãos com as do oponente.
O homem agarrou-as furiosamente e rosnou para o imenso forasteiro.
Quase imediatamente, antes que Wulfgar tivesse sequer firmado as mãos ou
posicionado os pés, o xamã gritou para que começassem, e o homem moreno
impeliu as mãos adiante, fazendo com que as costas de Wulfgar se dobrassem
sobre seus pulsos. Os gritos irromperam em cada canto do acampamento; o
homem moreno rugia e empurrava com toda a sua força, mas, passado o
momento da surpresa, Wulfgar reagiu.
Os músculos de ferro no pescoço e nos ombros de Wulfgar se retesaram
subitamente, e seus braços descomunais se avermelharam com o afluxo
forçado de sangue em suas veias. Tempus realmente o abençoara; restava
apenas ao seu pujante oponente ficar embasbacado diante do espetáculo de
sua força. Wulfgar fitou-o diretamente nos olhos e retribuiu o rosnado com um
olhar determinado que profetizava a vitória inevitável. Então, o filho de
Beornegar se jogou para frente, interrompendo o impulso inicial do homem
moreno e forçando as próprias mãos de volta a um ângulo mais normal em
relação a seus pulsos. Readquirida a paridade, Wulfgar percebeu que um
empurrão repentino deixaria seu oponente na mesma desvantagem da qual ele
acabara de escapar. Dali em diante, seria improvável que o homem moreno se
agüentasse por muito tempo.
Mas Wulfgar não estava ansioso para pôr fim à peleja. Ele não queria
humilhar seu oponente — isso apenas criaria um inimigo — e, mais
importante ainda, ele sabia que Drizzt estava por perto. Quanto mais
conseguisse prolongar a peleja — e manter os olhos de cada membro da tribo
fixos nele —, mais tempo Drizzt teria para colocar algum plano em ação.
Os dois homens se agüentaram ali durante vários segundos e Wulfgar
não conseguiu evitar um sorriso quando percebeu a forma escura que se
esgueirava por entre os cavalos, atrás dos guardas fascinados, do outro lado
do acampamento. Não saberia dizer se era ou não sua imaginação, mas
pensou ter visto dois pontos de chama lilás a fitá-los desde as trevas. Mais
alguns segundos, decidiu, apesar de saber que se arriscava por não dar logo
fim ao desafio. O xamã poderia declarar um empate se eles permanecessem
imóveis durante muito tempo.
Mas, então, acabou. As veias e os tendões nos braços de Wulfgar
saltaram e seus ombros se ergueram ainda mais alto.
—Tempus — vociferou, glorificando o deus por ainda mais uma vitória e,
então, com uma repentina e feroz explosão de energia, obrigou o homem
moreno a se ajoelhar. A toda a sua volta, o acampamento se quedou
silencioso. Até mesmo o xamã ficou sem palavras diante daquela exibição.
Dois guardas se moveram hesitantemente para flanquear Wulfgar.
O guerreiro derrotado se levantou e ficou ali, a encarar Wulfgar.
Nenhum sinal de fúria desfigurava seu rosto, apenas a honesta admiração,
pois os Pôneis Celestes eram um povo honrado.
— Nós poderíamos acolhê-lo — disse Valric. — Você derrotou Torlin,
filho de Jerek Caçador do Lobo, Chefe dos Pôneis Celestes. Torlin nunca havia
sido superado antes!
___ E meus amigos? — perguntou Wulfgar.
— Não dou a mínima para eles! — devolveu Valric. — O anão será
libertado numa trilha que leva para fora de nossas terras. Não temos
desavenças com ele ou sua gente, nem desejamos ter qualquer negócio com
eles!
O xamã olhou dissimuladamente para Wulfgar.
— O outro é um fraco — declarou. — Há de servir para marcar seu
ritual de passagem na tribo, seu sacrifício para o cavalo alado.
Wulfgar não respondeu imediatamente. Eles testaram sua força e agora
testavam sua lealdade. Os Pôneis Celestes haviam lhe prestado sua mais alta
honraria ao lhe oferecer um lugar na tribo, mas somente sob a condição de
que ele demonstrasse lealdade sem sombra de dúvida. Wulfgar pensou em seu
próprio povo e no modo como tinham vivido durante tantos séculos na tundra.
Mesmo agora, muitos dos bárbaros do Vale do Vento Gélido teriam aceitado os
termos e matado Régis, pois consideravam a vida de um halfling um pequeno
preço por tamanha honra. Essa era a desilusão da existência de Wulfgar com
sua gente, a faceta do código moral deles que se mostrara inaceitável aos seus
padrões pessoais.
— Não — ele respondeu a Valric, sem pestanejar.
— É um fraco! — argumentou Valric. — Somente os fortes merecem a
vida!
— Não serei eu a decidir o destino dele — respondeu Wulfgar. — E
nem você.
Valric fez sinal para os guardas, e eles imediatamente reataram as mãos
de Wulfgar.
— Uma perda para o nosso povo — Torlin disse a Wulfgar. — Você
teria recebido uma posição de honra entre nós.
Wulfgar não respondeu, sustentando o olhar de Torlin por um longo
momento, partilhando o respeito e também a compreensão mútua de que seus
códigos eram diferentes demais para uma associação como aquela. Numa
impossível fantasia comum, ambos se imaginaram lutando lado a lado,
abatendo orcs às dezenas e inspirando os bardos a compor uma nova lenda.
Era a vez de Drizzt atacar. O drow se detivera ao lado dos cavalos para
ver o resultado da peleja e também para avaliar melhor seus inimigos.
Planejou seu ataque de modo a causar mais efeito que dano, pois desejava
encenar um grande espetáculo a fim de intimidar uma tribo de guerreiros
destemidos tempo suficiente para que seus amigos deixassem o círculo.
Sem dúvida, os bárbaros haviam ouvido falar dos elfos negros. E, sem
duvida, as histórias que tinham ouvido eram apavorantes.
Em silêncio, Drizzt amarrou os dois pôneis atrás dos cavalos, depois
montou os corcéis, um pé no estribo de cada um deles. Erguendo-se entre
ambos, sobranceiro, atirou para trás o capuz do manto. Com o perigoso brilho
em seus olhos cor de lavanda a cintilar furiosamente, ele fez as montarias
dispararem rumo ao interior do círculo, o que dispersou os atordoados
bárbaros mais próximos.
Gritos de raiva se ergueram dos surpresos homens da tribo e o tom dos
brados assumiu um aspecto de terror assim que os bárbaros viram a pele
negra. Torlin e Valric se voltaram para encarar a ameaça que se aproximava,
mas nem mesmo eles sabiam lidar com a personificação de uma lenda.
E Drizzt tinha um truque preparado para eles. Com um aceno de sua
mão negra, chamas púrpuras e frias irromperam da pele de Torlin e Valric, o
que lançou os dois bárbaros supersticiosos num frenesi de pânico. Torlin caiu
de joelhos, agarrando os braços, incrédulo, e o excitável xamã se jogou no
chão e começou a rolar na terra.
Wulfgar aproveitou sua deixa. Um novo afluxo de força em seus braços
arrebentou as correias de couro que lhe prendiam os pulsos. Ele deu
continuidade ao impulso das mãos, brandindo-as para cima, e acertou
diretamente as faces dos dois guardas ao seu lado, atirando-os de costas ao
chão.
Bruenor também compreendeu seu papel. Pisou com todo seu peso no
peito do pé do bárbaro solitário entre ele e Régis e, quando o homem se
abaixou para levar as mãos ao pé dolorido, Bruenor deu-lhe uma cabeçada na
fronte. O homem tombou tão facilmente quanto Sussurro o fizera no Beco do
Rato, em Luskan.
— Ei, também funciona sem o elmo! — admirou-se Bruenor.
— Só se for a cabeça de um anão! — observou Régis enquanto
Wulfgar agarrava a ambos pelos colarinhos e erguia-os com facilidade até as
selas dos pôneis.
Ele também montou imediatamente, ao lado de Drizzt, e os quatro
arremeteram pelo outro lado do acampamento. Tudo acontecera rápido demais
para que os bárbaros preparassem as armas ou dessem forma a algum tipo de
defesa.
Drizzt deu a volta com seu cavalo e posicionou-se atrás dos pôneis para
proteger a retaguarda.
— Corram! — ele gritou para seus amigos, batendo nas ancas das
montarias com a parte chata das cimitarras. Os outros três gritaram vitória
como se a fuga já se houvesse completado, mas Drizzt sabia que aquela havia
sido a parte fácil. A aurora se aproximava, célere, e, naquele terreno irregular
e des conhecido, os bárbaros nativos os alcançariam facilmente.
Os companheiros arremeteram pelo silêncio da madrugada e escolheram
o caminho mais direto e mais fácil para ganhar tanto terreno quanto possível.
Drizzt ainda mantinha um olho na retaguarda, esperando que os
bárbaros bem na cola deles. Mas a comoção no acampamento havia se
extinguido quase imediatamente depois da fuga, e o drow não via sinais
de perseguição.
A ora só se ouvia um único brado, o canto ritmado de Valric numa
língua nenhum dos viajantes compreendia. O pavor no rosto de Wulfgar fez
todos se deterem.
Os poderes de um xamã — explicou o bárbaro.
No acampamento, Valric estava sozinho com Torlin no interior do círculo
formado por sua gente, entoando um cântico e dançando o ritual supremo de
sua posição, invocando o poder do Animal Espiritual de sua tribo. O
aparecimento do elfo drow havia amedrontado completamente o xamã. Ele
interrompeu a perseguição antes que esta tivesse início e correu para sua
tenda em busca do sagrado bornal de couro necessário para o ritual, pois
decidira que o espírito do cavalo alado, o Pégaso, deveria lidar com aqueles
invasores.
Valric escolheu Torlin como receptáculo da forma do espírito, e o filho de
Jerek aguardava a possessão com estóica dignidade, odiando o ato, pois isso o
despojava de sua identidade, mas resignado à absoluta obediência ao xamã.
Entretanto, a partir do momento em que a coisa começou, Valric
compreendeu, em meio à sua agitação, que se havia excedido na urgência da
invocação.
Torlin emitiu um grito estridente e foi ao chão, contorcendo-se de
agonia. Uma nuvem cinzenta o envolveu, os vapores revoltos se combinaram à
sua forma e remodelaram suas feições. Seu rosto inchou e se contorceu e, de
repente, projetou-se para assumir o aspecto da cabeça de um cavalo. Seu
torso também se transmutou em algo inumano. Valric tivera a intenção de
apenas emprestar um pouco das forças do espírito do Pégaso a Torlin, mas a
própria entidade viera e possuíra o homem inteiramente, subjugando-lhe o
corpo à sua própria imagem.
Torlin foi consumido.
Em seu lugar apareceu a forma espectral do cavalo alado. Todos na
tribo caíram de joelhos diante dele, até mesmo Valric, que não conseguia
encarar a imagem do Animal Espiritual. Mas o Pégaso conhecia os
pensamentos do xamã e compreendia as necessidades dos seus filhos. As
narinas do espírito soltaram fumaça, o animal se elevou no ar e partiu em
perseguição aos invasores que fugiam.
s amigos haviam imposto um passo mais confortável, embora ligeiro, às
montarias. livres das amarras, com a aurora rompendo diante deles e
nenhuma perseguição aparente às suas costas, eles tinham se acalmado um
pouco. Bruenor remexia o elmo nas mãos, tentando desamassá-lo o suficiente
para recolocar a coisa em sua cabeça. Até mesmo Wulfgar, tão impressionado
ao ouvir o cântico do xamã pouco antes, começou a relaxar.
Somente Drizzt, sempre cauteloso, não se convenceu tão facilmente de
que haviam escapado. E foi o drow quem primeiro percebeu a aproximação do
perigo.
Nas cidades escuras, os elfos negros geralmente lidavam com seres de
outro mundo e, no decorrer de muitos séculos, essas criaturas engendraram
na raça dos drow uma sensibilidade às suas emanações mágicas. Drizzt deteve
repentinamente o cavalo e fez a volta.
— Que é que 'cê 'tá ouvindo? — perguntou-lhe Bruenor.
— Não ouço nada — respondeu Drizzt, os olhos dardejando em busca
de algum sinal. — Mas há algo lá.
Antes que conseguissem responder, a nuvem cinzenta se precipitou do
céu e se abateu sobre eles. Os cavalos corcovearam e empinaram, tomados de
um pânico incontrolável, e, na confusão, nenhum dos amigos conseguiu
discernir o que acontecia. O Pégaso, então, formou-se bem na frente de Régis e
o halfling sentiu um frio mortal a penetrar-lhe os ossos. Ele gritou e caiu de
sua montaria.
Bruenor, cavalgando ao lado de Régis, investiu intrepidamente contra a
forma espectral. Mas o arco descendente do machado encontrou apenas uma
nuvem de fumaça onde a aparição estivera. Então, tão repentinamente quanto
desaparecera, o espírito retornou, e Bruenor também sentiu o frio gélido de
seu toque. Mais forte que o halfling, ele conseguiu se manter sobre o pônei.
— O que? — ele gritou em vão para Drizzt e Wulfgar.
Garra de Palas passou por ele com um silvo e seguiu em frente até o
alvo. Mas o Pégaso era só fumaça novamente, e o martelo de guerra mágico
passou sem encontrar resistência através da nuvem turbilhonante.
Num instante, o espírito estava de volta, precipitando-se sobre Bruenor.
O pônei do anão rodopiou e foi ao chão num esforço frenético de escapar da
criatura.
— Não vai conseguir atingi-lo! — Drizzt gritou para Wulfgar, que
correu em auxílio do anão. — A criatura não existe totalmente neste plano!
As fortes pernas de Wulfgar controlaram o cavalo apavorado e o bárbaro
golpeou assim que Garra de Palas retornou às suas mãos. Mas, novamente,
encontrou apenas fumaça.
— Então, como? — ele berrou para Drizzt, os olhos dardejando em
busca dos primeiros sinais do espírito a se reformar.
Drizzt vasculhou sua mente em busca das respostas. Régis ainda
estava 'lido e imóvel sobre o campo, e Bruenor, embora não tivesse sido ferido
tão gravemente ao cair do pônei, parecia aturdido e tremia devido ao
frio sobrenatural. Drizzt agarrou-se a um plano desesperado. Sacou de sua
bolsa a estátua de ônix da pantera e chamou por Guenhwyvar.
O espírito retornou e atacou com fúria renovada. Baixou primeiro sobre
Bruenor, envolvendo o anão com suas asas frias.
— Maldito seja daqui até o Abismo! — vociferou Bruenor em
corajosa oposição.
Entrando precipitadamente na luta, Wulfgar perdeu o anão
completamente de vista, exceto pela cabeça do machado que continuava a
irromper inofensivamente através da fumaça.
Então, a montaria do bárbaro estacou, recusando-se, contra todos os
esforços, a se aproximar ainda mais do animal sobrenatural. Wulfgar saltou de
sua sela e investiu, lançando-se diretamente através da nuvem antes que o
espírito conseguisse se reformar, e seu impulso fez com que tanto ele quanto
Bruenor saíssem do outro lado do manto fumarento. Rolaram para longe e
olharam para trás, apenas para descobrir que o espírito havia desaparecido
completamente mais uma vez.
As pálpebras de Bruenor pendiam pesadamente, sua pele apresentava
um lívido tom de azul e, pela primeira vez em sua vida, seu espírito indomável
não tinha peito para lutar. Wulfgar também experimentara o toque gélido ao
atravessar o espírito, mas ele ainda estava disposto a lutar mais um assalto
com a criatura.
— Não podemos lutar contra isto! — disse Bruenor, ofegante e
entre dentes. —Aparece prá atacar, mas some quando é a nossa vez!
Wulfgar chacoalhou a cabeça, desafiador.
Tem de haver uma maneira! — reclamou ele, apesar de obrigado a
admitir que o anão estava certo. — Mas meu martelo não é capaz de destruir
nuvens!
Guenhwyvar apareceu ao lado de seu mestre e colocou-se rente ao solo,
em busca da nêmese que ameaçava o drow. Drizzt compreendeu as intenções
do gato.
Não! — ordenou. — Aqui não. — O drow se lembrou de algo
que Guenhwyvar fizera vários meses antes. Para salvar Régis das pedras que
caíam no desabamento de uma torre, Guenhwyvar levara o halfling numa
jornada -s aos planos da existência. Drizzt agarrou a pelagem espessa da
pantera.
— Leve-me à terra do espírito — instruiu ele. — Para o próprio
plano dele, onde minhas penetrarão fundo seu ser substancial.
O espírito apareceu novamente ao mesmo tempo em que Drizzt e o gato
desapareciam numa outra nuvem.
— Continue golpeando! — Bruenor disse ao seu companheiro. —.
Mantenha a coisa na forma de fumaça prá ela não conseguir te atacar!
— Drizzt e o gato se foram! — gritou Wulfgar.
— Para a terra do espírito — explicou Bruenor.
Drizzt levou um bom tempo para se orientar. Ele adentrara um lugar de
realidades diferentes, uma dimensão onde tudo, até mesmo sua própria pele,
assumia o mesmo tom de cinza, sendo os objetos apenas distinguíveis por
uma delicada e bruxuleante linha negra que lhes servia de contorno. Sua
percepção de profundidade era inútil, pois não havia sombreados e nenhuma
fonte discernível de luz para utilizar como referência. E não achava onde pôr
os pés, nada tangível abaixo dele, nem mesmo conseguia saber que direção era
para cima ou para baixo. Esses conceitos não pareciam fazer sentido ali.
Ele distinguiu os contornos cambiantes do Pégaso quando este saltava
entre os planos, nunca inteiramente num ou noutro lugar. Tentou se
aproximar do animal e descobriu que a propulsão era um ato da mente e o
corpo automaticamente seguia as instruções da vontade. Ele se deteve diante
das linhas cambiantes, a cimitarra mágica erguida para golpear quando o alvo
aparecesse inteiramente.
Então, o contorno do Pégaso se completou, e Drizzt enterrou sua espada
na bruxuleante linha negra que lhe marcava a forma. A linha se transformou,
arqueou-se, e o contorno da cimitarra também estremeceu, pois ali até mesmo
as propriedades da lâmina de aço assumiam uma composição diferente. Mas o
aço se mostrou o mais forte, e a cimitarra retomou seu fio recurvo e perfurou a
linha do espírito. Veio então uma súbita titilação no gris, como se a linha do
espírito estremecesse num arrepio de agonia.
Wulfgar viu a nuvem de fumaça se evolar de repente, quase se
rematerializando na forma do espírito.
— Drizzt! — gritou para Bruenor. — Ele está enfrentando o espírito
em pé de igualdade!
— Prepare-se, então! — Bruenor respondeu ansiosamente, apesar
de saber que seu próprio papel na luta havia terminado. — Pode ser que o
drow traga a coisa de volta prá você por tempo suficiente para um golpe! —
Bruenor abraçou o próprio corpo, tentando arrancar o frio de seus ossos,
e tropeçou na forma imóvel do halfling.
O espírito se voltou contra Drizzt, mas a cimitarra o golpeou novamente.
E Guenhwyvar lançou-se na refrega, as grandes garras do gato a dilacerar o
contorno negro do inimigo. O Pégaso se afastou com um giro sobre as patas
compreendendo que não tinha qualquer vantagem contra inimigos u próprio
plano. Seu único recurso era se retirar para o plano material.
Onde Wulfgar aguardava.
Assim que a nuvem retomou sua forma, Garra de Palas a golpeou.
Wulfgar sentiu um golpe consistente por apenas um instante e compreendeu
que atingira o alvo. Então, a fumaça foi como que soprada para longe.
O espírito voltou para Drizzt e Guenhwyvar, mais uma vez enfrentando
as tocadas e arranhões implacáveis dos dois. Trocou de planos novamente e
Wulfgar desferiu um golpe rápido. Encurralado e sem ter para onde fugir, o
espírito recebia golpes em ambos os planos. Toda vez que se materializava
diante de Drizzt, o drow percebia que seu contorno surgia mais fino e menos
resistente aos seus golpes. E toda vez que a nuvem se rematerializava diante
de Wulfgar, sua densidade diminuía. Os amigos haviam vencido e Drizzt
assistiu satisfeito, à essência do Pégaso livrar-se da forma material e flutuar
para longe através do gris.
Leve-me para casa — o cansado drow instruiu Guenhwyvar.
Um instante depois, ele estava de volta ao campo, ao lado de Bruenor e Régis.
— Ele vai viver — Bruenor declarou categoricamente em resposta
ao olhar interrogativo de Drizzt. — Acho que ele 'tá é desmaiado, não morto.
A uma pequena distância dali, Wulfgar também estava curvado sobre
uma forma, prostrada, deturpada e aprisionada numa transformação a meio
caminho entre homem e animal.
— Torlin, filho de Jerek — explicou Wulfgar. Ele ergueu os olhos para
o acampamento dos bárbaros. — Valric fez isto. O sangue de Torlin suja-lhe as
mãos!
— Opção de Torlin, talvez? — ofereceu Drizzt.
Nunca! — insistiu Wulfgar. — Quando nos enfrentamos no
desafio, meus olhos viram honra. Ele era um guerreiro. Nunca teria permitido
isto! — Ele deu um passo para longe do cadáver, deixando que os restos
mutilados enfatizassem o horror da possessão. Na postura paralisada da
morte, o rosto de Torlin retivera parte dos traços de um homem e parte do
espírito eqüino.
— Ele era filho do chefe deles — explicou Wulfgar. — Não poderia
recusar o pedido do xamã.
— Foi corajoso ao aceitar esse destino — observou Drizzt.
— Filho do chefe deles? — riu Bruenor, desdenhoso. — Parece que a
gente colocou mais inimigos ainda na estrada atrás da sente! Eles vão querer
ajustar as contas.
— E eu também! — proclamou Wulfgar. — Você tem nas mãos o sangue
dele, Valric, Olhar Alto! — ele berrou para a imensidão, os gritos a ecoar pelos
outeiros dos rochedos. Wulfgar olhou para trás, para seus amigos, e a fúria
fervilhava em suas feições ao declarar soturnamente — Hei de vingar a
desonra de Torlin.
Com um aceno da cabeça, Bruenor demonstrou sua aprovação à
dedicação do bárbaro aos próprios princípios.
— Uma nobre missão — concordou Drizzt, estendendo sua espada para
o leste, em direção a Sela Longa, a próxima parada em sua jornada. — Mas
para um outro dia.
6. PUNHAL E CAJADO
LIVRO 2
ALIADOS
Ele quer ir para casa. Quer encontrar um mundo que conheceu outrora.
Não sei se é a promessa de riquezas ou a da simplicidade que agora impele
Bruenor. Ele quer encontrar o Salão de Mitral, livrá-lo de todos os monstros que
possam agora habitar o lugar a fim de reclamá-lo em nome do Clã Martelo de
Batalha.
Superficialmente, esse desejo parece uma coisa razoável, até mesmo
nobre. Todos nós buscamos a aventura e, para aqueles cujas famílias vivem
segundo a tradição da nobreza, o desejo de vingar um agravo e restaurar o
nome e a posição da família não pode ser subestimado.
Nossa estrada para o Salão de Mitral provavelmente não será fácil.
Muitas terras perigosas e incivilizadas jazem entre o Vale do Vento Gélido e a
região bem a leste de Luskan e, sem dúvida, essa estrada promete tornar-se
ainda mais sombria se de fato encontrarmos a entrada para as minas perdidas
dos anões. Mas estou cercado por amigos capazes e poderosos e, assim sendo,
os monstros não me preocupam, não os que conseguimos combater com a
espada. Não, meu único temor em relação a esta jornada que empreendemos
agora se refere a Bruenor Martelo de Batalha. Ele quer ir para casa e existem
muitos bons motivos para tanto. Há apenas um bom motivo para que ele não o
faça e, se esse motivo, a nostalgia, for a fonte de seu desejo, então temo que ele
venha a sofrer uma amarga decepção.
A nostalgia é, talvez, a maior das mentiras que todos nós contamos a nós
mesmos. É o lustro do passado a se adaptar às sensibilidades do presente.
Para alguns, isso traz um certo consolo, um sentido de identidade e origem, mas
outros, acho eu, exageram essas lembranças alteradas e, por causa disso, ficam
paralisados diante da realidade.
Quantas pessoas anelam por aquele "mundo passado, mais simples e
melhor", eu me pergunto, sem jamais reconhecer a verdade de que talvez elas é
que eram mais simples e melhores, e não o mundo ao seu redor?
Como um elfo drow, espero viver vários séculos, mas aquelas primeiras
décadas de vida para um drow, e para um elfo da superfície, não são tão
diferentes, no que se refere ao desenvolvimento emocional, das de um humano,
ou de um halfling, ou de um anão. Eu também recordo esse idealismo e essa
energia dos meus dias de juventude, quando o mundo parecia um lugar
descomplicado, quando o certo e o errado estavam claramente gravados no
caminho diante de cada um dos meus passos. Talvez, de alguma estranha
maneira, devido ao fato de que meus primeiros anos foram tão repletos de
experiências terríveis, tão repletos de um ambiente e de uma experiência que eu
simplesmente não conseguia tolerar, estou em melhor situação agora. Bois, ao
contrário de tantos que conheci na superfície, minha vida tem melhorado
constantemente.
Teria isso contribuído para o meu otimismo, para a minha própria
existência e para mundo inteiro ao meu redor?
Tantas pessoas, particularmente os humanos que passaram o ponto
médio de sua expectativa de vida, continuam a procurar no passado o paraíso,
continuam a alegar que o mundo era um lugar muito melhor quando eram
jovens.
Não acredito nisso. Pode haver ocasiões específicas em que isso seja
verdade — um rei despótico que deixa em seu lugar um monarca piedoso, uma
era de bem-estar que envolve a terra depois de uma peste —, mas acredito,
preciso acreditar, que as pessoas do mundo são um grupo em desenvolvimento,
que a evolução natural das civilizações, apesar de não ser necessariamente
uma sucessão em linha reta, caminha rumo a melhoria do mundo. Pois cada vez
que se encontra um caminho melhor, as pessoas naturalmente gravitam naquela
direção enquanto os experimentos fracassados são abandonados. Tenho ouvido,
por exemplo, as interpretações de Wulfgar sobre a história do seu povo, as
tribos bárbaras do Vale do Vento Gélido, e fico atônito e horrorizado diante da
brutalidade do seu passado, a luta constante de tribo contra tribo, o estupro em
massa das mulheres capturadas e a tortura dos homens aprisionados. Os
homens das tribos do Vale do Vento Gélido são ainda um bando selvagem, sem
dúvida, mas, se dermos crédito às tradições orais, não na mesma medida que
seus predecessores. E isso faz todo o sentido para mim e, assim, tenho
esperança de que a tendência continuará. Talvez, um dia, venha a surgir um
grande líder bárbaro que encontre verdadeiramente o amor de uma mulher, que
encontre uma esposa que arranque dele um certo grau de respeito, praticamente
desconhecido entre os bárbaros. Será que esse líder elevará, de algum modo, a
posição das mulheres entre as tribos?
Se isso acontecer, as tribos bárbaras do Vale do Vento Gélido encontrarão
uma força que simplesmente não compreendem em meio à metade de sua
população. Se isso acontecer, se as mulheres bárbaras sofrerem essa ascensão,
então os homens das tribos nunca, jamais as forçarão de volta aos seus papéis
atuais, que podem ser descritos apenas como escravidão.
E todos eles, homens e mulheres, mudarão para melhor.
Para que a mudança dure entre criaturas racionais, essa mudança deve
ser para melhor. E, desse modo, as civilizações, os povos evoluem para um
melhor entendimento e um lugar melhor.
Para as Matriarcas de Menzoberranzan, assim como no caso de muitas
gerações de famílias despóticas e de ricos proprietários de terras, a mudança
pode ser encarada como uma ameaça clara à sua base de poder e, portanto,
sua resistência parece lógica, até mesmo esperada. Como, então, podemos
encontrar explicação no fato de que tantas, tantas pessoas, até mesmo aquelas
que vivem na miséria, como viveram seus pais e os pais de seus pais, e
gerações e gerações antes deles, encarem a mudança com o mesmo medo e a
mesma repulsa? Por que o mais humilde camponês não desejaria a evolução da
civilização se essa evolução pudesse levar a uma vida melhor para seus filhos?
Isso pareceria lógico, mas, pelo que vejo, não é o caso. Para muitos, se
não para a maioria dos humanos de vida breve que já ultrapassou a idade de
maior vigor e saúde, que já deixou para trás seus melhores dias, aceitar
qualquer mudança não parece algo fácil. Não, tantos se agarram ao passado,
quando o mundo era "mais simples e melhor". Eles se ressentem da mudança
num nível pessoal, como se as melhorias que seus sucessores possam
implementar lançassem uma luz brilhante e reveladora sobre seus próprios
fracassos.
Talvez seja isso. Talvez seja um dos nossos medos mais fundamentais, o
medo, criado pelo orgulho insensato, de que nossos filhos venham a saber mais
do que nós mesmos. Ao mesmo tempo em que tantas pessoas enaltecem as
virtudes de seus filhos, existirá algum medo remoto dentro delas de que esses
filhos venham a enxergar os erros de seus pais?
Não tenho respostas para esse aparente paradoxo, mas, pelo bem de
Bruenor, rezo para que ele procure o Salão de Mitral pelos motivos certos, em
nome da aventura e do desafio, em nome de sua herança e da restauração do
nome de sua família, e não em nome do desejo de transformar o mundo naquilo
que era antes.
A nostalgia é algo necessário, creio eu, e uma maneira de todos nós
encontrarmos paz naquilo que realizamos, ou até mesmo no que não
conseguimos realizar. For outro lado, se a nostalgia precipitar nossas ações
numa tentativa de retornar àquela época lendária e cor-de-rosa, particularmente
no caso de alguém que acredita que sua vida tenha sido um fracasso, então é
algo vazio, condenado a gerar nada além de frustração e uma sensação ainda
maior de fracasso.
Pior ainda, se a nostalgia colocar obstáculos no caminho da evolução,
então se trata de algo realmente limitante.
Drizzt Do'Urden
COMEÇAR DE NOVO
18. SOMBRAS
Então, ele e Cattiebrie se voltaram para Bruenor, para ver se ele tinha
algum conhecimento de tal monstro.
Os olhos arregalados e cheios de terror do anão responderam à pergunta
antes que a formulassem.
— Mais negro que o negror — murmurou Bruenor, pronunciando
nova mente as palavras mais repetidas naquele dia fatídico duzentos anos
atrás. — Meu pai me falou dessa coisa — ele explicou a Wulfgar e Cattiebrie.
— Um dragão filho de um demônio, ele o chamava, a treva mais negra que o
negror.
Não foram os cinzentos que despejaram a gente — a gente teria
combatido eles de frente até o último. O dragão de trevas dizimou e expulsou a
gente dos salões. Não sobrou um em cada dez para enfrentar suas hordas
imundas nos salões menores do outro lado.
Uma corrente de ar quente vinda do buraco lembrou-lhes de que a
passagem provavelmente se ligava aos salões inferiores e ao covil do dragão.
— Vamos embora — sugeriu Cattiebrie — antes que a fera descubra
que a gente 'tá aqui.
Régis, então, gritou lá do outro lado da câmara. Os amigos correram até
ele, sem saber se ele havia tropeçado num tesouro ou no perigo.
Encontraram-no agachado ao lado de uma pilha de pedras, a examinar
uma brecha nos blocos.
Ele segurava uma flecha de haste prateada.
— Eu a encontrei aqui — explicou. — E há algo mais. Um arco, eu
acho.
Wulfgar aproximou a tocha da brecha e todos viram claramente a
forma recurva, que só poderia ser a madeira de um arco longo, e o brilho
prateado de uma corda de arco. Wulfgar agarrou a madeira e puxou de leve,
esperando que ela se partisse em suas mãos sob o enorme peso da pedra.
Mas a coisa resistiu com firmeza, mesmo contra toda a sua força. Ele
passou os olhos pelas pedras, procurando a melhor maneira de soltar a arma.
Régis, enquanto isso, encontrara mais alguma coisa, uma placa dourada
introduzida numa outra rachadura da pilha como se fosse uma cunha. Ele
conseguiu soltá-la e levá-la até a tocha para ler as runas ali entalhadas.
— Taulmaril, o Caçador de Corações — leu ele. — Presente de...
— Anariel, Irmã de Eaerûn — completou Bruenor, sem nem mesmo
olhar para a placa. Acenou com a cabeça em reconhecimento ao olhar
interrogativo de Cattiebrie.
— Libere o arco, garoto — ele disse a Wulfgar. — Por certo que a
gente pode fazer melhor uso dele.
Wulfgar já tinha discernido a estrutura da pilha e começou
imediatamente a remover blocos específicos. Logo, Cattiebrie foi capaz de
soltar o arco longo com uma sacudidela, mas viu algo mais, um pouco além
do recesso em que se achava a arma, e pediu a Wulfgar que continuasse
cavando.
Enquanto o musculoso bárbaro afastava mais pedras, os outros se
maravilhavam com a beleza do arco. Sua madeira sequer fora arranhada pelas
pedras, e o perfeito acabamento do verniz voltou com uma única esfregadela.
Cattiebrie estirou-o facilmente e o ergueu, sentindo-lhe o retesamento estável
e uniforme.
— Experimente-o — sugeriu Régis, passando-lhe a flecha de prata.
Cattiebrie não conseguiu resistir. Ela prendeu a flecha na corda
prateada e voltou a retesá-la, querendo apenas testar-lhe o encaixe, sem
intenção de atirar.
— Uma aljava! — gritou Wulfgar, erguendo a última pedra. — E mais
flechas de prata.
Bruenor apontou a escuridão e acenou com a cabeça. Cattiebrie não
hesitou.
Um veloz rabicho de prata seguiu o projétil sibilante que voejou
escuridão adentro, terminando seu vôo abruptamente com um estalido. Todos
correram a ver, sentindo que algo extraordinário acontecera. Encontraram a
flecha facilmente, pois estava enterrada na parede até as penas!
Ao redor do ponto de entrada, a pedra fora chamuscada e, mesmo
puxando com toda a sua força, Wulfgar não conseguiu mover a flecha o
mínimo que fosse.
— Não se aborreçam — disse Régis, contando as flechas na aljava
que Wulfgar segurava. — Há outras dezenove... outras vinte! — Ele se
afastou, aturdido. Os demais olharam para ele, confusos.
— Eram dezenove — Régis explicou. — Minha contagem estava certa.
Wulfgar, sem compreender, rapidamente contou as flechas.
— Vinte — disse ele.
— Vinte, agora — Régis respondeu. — Mas eram dezenove quando
contei pela primeira vez.
— Então a aljava também é mágica — inferiu Cattiebrie. — Um
presente poderoso, de fato, a Senhora Anariel deu ao clã!
— O que mais encontraríamos nas ruínas deste lugar? — perguntou
Régis, esfregando as mãos.
— Nada mais — Bruenor respondeu rispidamente. — A gente 'tá de
partida e não quero ouvir uma palavra sua!
Régis compreendeu, ao olhar para os outros dois, que ele não
conseguiria apoio contra o anão e, portanto, deu de ombros, impotente, e os
seguiu até a cortina e dali para o corredor.
— A garganta! — declarou Bruenor, colocando-os mais uma vez em
movimento.
— Espere, Bok — sussurrou Sidnéia quando a luz da tocha dos
companheiros voltou a entrar no corredor um pouco à frente deles.
— Ainda não — ela disse, e um sorriso de expectativa se espalhou
por seu rosto riscado de poeira. — Haverá uma oportunidade melhor!
EPÍLOGO
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