Dallas Willard o Espirito Das Disciplinas
Dallas Willard o Espirito Das Disciplinas
Dallas Willard o Espirito Das Disciplinas
Dallas Willard
Editora Danprewan
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 3
1. O SEGREDO DO JUGO SUAVE 8
2. TORNANDO PRÁTICA A TEOLOGIA DAS DISCIPLINAS 17
3. SALVAÇÃO É VIDA 33
4. "POUCO MENOR QUE OS SERES CELESTIAIS" 48
5. A NATUREZA DA VIDA 60
6. VIDA ESPIRITUAL: A REALIZAÇÃO DO CORPO 79
7. A PSICOLOGIA DE PAULO DA REDENÇÃO – O EXEMPLO 98
8. A HISTÓRIA E O SIGNIFICADO DAS DISCIPLINAS 130
9. ALGUMAS DAS PRINCIPAIS DISCIPLINAS PARA A VIDA ESPIRITUAL 155
10. A POBREZA É ESPIRITUAL? 193
11. AS DISCIPLINAS E AS ESTRUTURAS DE PODER DESTE MUNDO 218
EPÍLOGO 248
APÊNDICE I: 251
APÊNDICE II: 254
INTRODUÇÃO
3. SALVAÇÃO É VIDA
O CORPO "HUMILHADO"
Olhando para trás, para nossas discussões até este ponto,
vemos que conectamos a realidade do jugo suave à prática das
disciplinas espirituais. Essas, por sua vez, nos levam ao papel do
corpo na redenção. Embora chamemos as disciplinas de
"espirituais" – e conquanto jamais devam ser consideradas à parte
de uma interação interior constante com Deus e seu Reino de
graça –, elas nunca deixam de exigir atos específicos e disposições
do nosso corpo quando nos engajamos nelas. Nós somos finitos,
limitados em nossos corpos. Assim, as disciplinas não podem ser
realizadas exceto quando nosso corpo e seus membros estão
submissos a Deus, em maneiras precisas e ações bem definidas.
Aqui encontramos o papel positivo do corpo no processo de
redenção, quando escolhemos aqueles usos de nosso corpo que
promovam a vida espiritual. Somente quando apreciamos este
papel, podemos entender a visão do Novo Testamento de que
salvação é "vida"; pois evidentemente vida é algo que vivemos, e
nós vivemos somente nas ações e disposições do nosso corpo.
Esta idéia é totalmente contrária à visão da fé como um ato
interior da mente que assegura somente perdão e não tem
necessariamente uma conexão com o mundo de atividade no qual
a existência humana normal segue seu curso. No entanto, o novo
testamento não reconhece a fé que é pura abstração. A fé do Novo
Testamento é uma força vital distinta que se origina no impacto da
Palavra de Deus sobre a alma, como vemos em Romanos 10.17, e
depois exerce uma influência determinante sobre todos os aspectos
de nossa existência, inclusive o corpo e seu ambiente social e
político.
Esta idéia é a linha de interpretação mais convincente da fé e
da vida na companhia de Cristo, conforme ilustrado no Novo
Testamento. Também é ela que abre a porta para o uso do Novo
Testamento como guia prático da experiência cristã e suas
aspirações. Trata-se de uma forte recomendação, não
compartilhada de fato pela visão da salvação como "mero perdão".
Entretanto, devo admitir que mesmo aqueles que consideram essa
visão convincente podem ter ainda a impressão esmagadora de que
o corpo simplesmente não pode ser mais do que um empecilho
para nossa redenção. Nossa atual experiência com o corpo
humano, especialmente o nosso próprio corpo, pode reforçar a
idéia de que o máximo que podemos esperar é manter uma
distância segura, dirigidos precariamente pela graça de Deus para
evitar que ele nos derrote espiritualmente até que nos livremos
dele.
Afinal, a Bíblia não se refere a um corpo humilhado em
Filipenses 3.21? Também não fala de um corpo terreno e perecível
em I Coríntios 15:48-50? Será que o próprio Cristo, no Evangelho
de Marcos, não indicou que coisas más emanam do corpo para
profanar a humanidade (7.20-23)? O capítulo 3 de Romanos não
caracteriza o corpo como tendo uma garganta semelhante a
sepulcro aberto, língua e lábios cheios de engano e veneno, uma
boca cheia de maldição e amargura e pés que se apressam para
derramar sangue? O corpo não deixa atrás de si um rastro de
destruição e miséria?
É verdade que nossos corpos podem nos esmagar com seus
impulsos e nos aterrorizar com sua vulnerabilidade. O que
podemos contra suas exigências e necessidades de comida, bebida,
segurança, conforto, poder e amor?
Falemos sobre os problemas de Jó. Os eventos que ele teve de
suportar e que o levaram ao desespero espiritual foram todos
eventos físicos – no seu próprio corpo ou sobre seus entes
queridos. Como esta coisa perigosa e vil possivelmente poderia ser
de algum benefício na realização de nosso livramento? A resposta
é: não pode.
Encarando o corpo meramente como um elemento deste
mundo que opõe a Deus, ele certamente não contém em si os
recursos de redenção. Porém devo insistir que ele não foi feito para
ser o que vemos que é em sua alienação de Deus.
A lamentável condição do corpo é uma indicação clara de que
ele não está agora em seu verdadeiro elemento. Nós não
deveríamos julgar as possibilidades dos automóveis olhando
apenas aqueles que se encontram jogados no ferro-velho, ou a
resistência de uma planta olhando apenas aquelas que não
receberam os nutrientes necessários.
O corpo humano foi feito para ser o veículo da personalidade
humana no governo da terra para Deus, por meio do Seu poder.
Afastado dessa função por causa da perda de sua relação com
Deus, o corpo é apanhado no estado inevitável de corrupção no
qual se encontra agora. Para focar nossa visão nas possibilidades
do nosso corpo e da vida espiritual que ele pode experimentar, os
três próximos capítulos foram escritos. Eles se.aplicam a uma
explanação de quem somos e o que a vida espiritual é do ponto de
vista bíblico, (Aqueles que têm menos interesse na base teológica
para .as disciplinas da vida espiritual podem pular esses capítulos,
indo diretamente para o Capítulo 7, retomando depois aos
capítulos 4-6).
ENTRE O PÓ E OS CÉUS
Uma pista inicial para nos conduzir ao entendimento de
nossa natureza pode ser encontrada em nossas aspirações em seu
contraste agudo e óbvio com a nossa natureza física. Os poetas,
bem como os escritores bíblicos, tinham uma vívida consciência
desse contraste. A humanidade aspira à beleza, ao poder, à
pureza, à dignidade, ao conhecimento e ao amor infinito. Mesmo
assim, somos um amontoado de protoplasma ambulante – pedaços
de "encanamento portátil", como disse o poeta Stephen Spender.
Os naturalistas dogmáticos, às vezes sob o pretexto de
"pensamento científico" mais recente, insistem que a criatura
humana é só isso nada mais, nada menos. Platão, de uma forma
audaciosa e irreverente, definiu os seres humanos como bípedes
desprovidos de penas, para serem distinguidos dos pássaros. A
verdade é que nós somos feitos de pó, apesar de aspirarmos ao céu.
Embora o brilho da juventude esconda a verdade durante algum
tempo, todos nós, se vivermos o suficiente, reconheceremos o que
o poeta Yeats afirmou, em "Navegando para Bizâncio", que "um
homem idoso é apenas uma coisa vil, um casaco esfarrapado
pendurado numa bengala...".
Quando Jó estava descontente com a sorte que Deus
permitira cair sobre ele, foi repreendido por Elifaz, o temanita, por
sua presunção: "Se Deus não confia em seus servos, se vê erros em
seus anjos e os acusa, quanto mais nos que moram em casas de
barro, cujos alicerces estão no pó! São mais facilmente esmagados
do que uma traça! Entre o alvorecer e o crepúsculo são
despedaçados" (Jó 4.18,19)
Barro, pó, traça – sim. No entanto, aí surge o outro lado. Que
esplendor"! Shakespeare faz Hamlet exclamar:
5. A NATUREZA DA VIDA
INDIVIDUALIDADE E VIDA
Certa vez, aconselhei uma jovem sensível e inteligente que se
sentia muito infeliz em seu trabalho numa loja de departamentos.
Ela me disse que nos finais de semana, se sentia como sendo
"desenterrada". As suas atividades no trabalho não eram realmente
dela, de modo que se sentia morta ("enterrada") durante a semana,
voltando à vida somente nos fins de semana quando suas
atividades se originavam dela própria.
O que constitui a individualidade e a unicidade que tomam os
seres vivos preciosos? É a sua fonte interior de atividade. Um tijolo
ou uma tábua – pode ser tão bom quanto o outro, porque nenhum
deles tem vida interior. No entanto, tratar uma pessoa como se
fosse descartável não é tratá-la como pessoa, Tal atitude nega a
fonte interior, o poder originador que é a vida humana. Por isso, ela
é considerada como desumanidade.
Algumas pessoas podem de fato tentar abdicar de suas vidas.
Elas abrem mão de sua espontaneidade e buscam a segurança
"conformando-se" com o que está fora delas. No entanto, elas não
escapam realmente da vida ou de sua responsabilidade. Elas
somente conseguem parecer "estáticas", sem vida. Podemos saber
o que esperar delas, mas temos tão pouco deleite nelas quanto elas
têm em si mesmas.
Por que nós adoramos a franqueza e a audácia das crianças
pequenas? A criança encara a vida de uma forma tão direta e sem
hesitação que não permite dúvidas quanto à sua originalidade e,
portanto, sua individualidade.
Esta razão por que nos deleitamos nas brincadeiras de um
cãozinho rolando no chão. São coisas tão gratuitas que só
poderiam, creio, ser evidências de uma vida interior
completamente sem restrições. E nós as amamos por isso.
"A QUEM TEM, MAIS SERÁ DADO"
O crescimento do indivíduo inclui o crescimento interno –
complexidade interna. Quando a vida se revela, ela desenvolve uma
complexidade interna e Um âmbito externo que multiplicam o efeito de
seus poderes inerentes. Ruskin afirma sua opinião sobre a
questão:
VIDA DEFORMADA
Nós, pela manipulação de poderes naturais, do átomo ao
processo social, somos realmente um fenômeno aterrorizante.
Parecemos totalmente fora de controle, correndo como loucos para
o precipício cósmico. Os observadores cândidos rapidamente
chegam à conclusão de que há uma carência básica e abrangente
na vida humana.
A vida de modo geral pode seguir em frente dentro de limites,
mesmo quando algumas de suas necessidades específicas não são
supridas. Uma planta ou animal sem alimento, iluminação ou
espaço apropriado pode levar uma existência enfraquecida e
deformada, mas, ainda assim, continuar viva. A vida humana não
é o que poderia ser, embora ainda esteja aqui e continue seguindo
em frente. A questão, porém, é: o que está faltando à vida humana
para continuar numa condição tão deplorável?
Na hierarquia das habilidades, qualquer ruptura ou mau
funcionamento dos poderes mais elevados deforma e enfraquece os
poderes inferiores. Um animal incapaz de perceber e de se mover
(seus poderes mais elevados) fica comprometido em seus outros
poderes (a capacidade de se alimentar, por exemplo). Desordens de
personalidade no ser humano muitas vezes têm sintomas físicos – de
fato, pessoas que apresentam distúrbios de pensamento ou de
sentimento são deformadas em todos os outros poderes da vida.
"Se os seus olhos forem maus, todo o seu corpo será cheio de
trevas", afirma Mateus 6.23.
Na verdade, há uma vida mais elevada do que o pensamento
ou sentimento natural, para a qual a natureza humana foi feita.
Trata-se da vida espiritual. A ruptura dessa vida mais elevada
destrói nosso pensamento e capacidade de avaliação, corrompendo
assim toda a nossa história e nosso ser. É esta distorção
abrangente e a ruptura da existência humana de cima a baixo que
a Bíblia chama de pecado (não pecados) - a condição geral da
humanidade decaída. Os humanos não estão apenas errados,
estão também distorcidos, fora de foco e da proporção apropriada.
O filósofo Jacob Needleman destaca que "existe um elemento
inato na natureza humana... que pode crescer e se desenvolver por
meio de impressões da verdade recebida no organismo como uma
energia nutritiva especial". Em outras palavras, privada de um
nutriente vital, a planta seca. Privada da verdade e da realidade
espiritual – do relacionamento correto com o Reino de Deus –, a
vida social, psicológica e até física da humanidade entra em
desordem e, no sentido estritamente descritivo de Ruskin, se
corrompe.
O mal que fazemos em nossa atual condição é um reflexo de
uma fraqueza causada pela fome espiritual. Quando Jesus orou na
cruz: "Pai, perdoa-os, porque não sabem o que fazem", não estava
apenas sendo generoso para com os que o matavam; Ele estava
expressando os fatos do caso. Eles realmente não sabiam o que
estavam fazendo. Como Agostinho viu claramente, a condição
louca da humanidade não é, na sua base, um fato expositivo, mas
uma privação. Ela resulta em muitos males positivos, embora a
depravação não seja menos horripilante por emanar de uma de-
ficiência, e as pessoas não sejam menos responsáveis por isso e
pelas conseqüências.
Nesta condição de carência fundamental e desconexão, somos
descritos pelo apóstolo Paulo como estando mortos: "mortos em
transgressões e pecados" (Ef2.1). É uma condição que só pode ser
mudada mediante um novo relacionamento com Deus, quando,
então, nos tornamos "vivos nele". A lâmpada está morta quando
não está conectada à corrente elétrica, embora continue existindo.
No entanto, quando é conectada à rede elétrica, ela irradia luz e
afeta seu ambiente com um poder e substância que estão nela,
mas não são dela.
O QUE É ESPÍRITO?
Se o elemento que falta na presente ordem humana é o
espírito, o que então é espírito? Muito simples: espírito é o poder pessoal
incorpóreo? Em última análise, é Deus, pois Deus é Espírito (Jo
4.24). Eletricidade, magnetismo e gravidade, por contraste, são
poderes não-pessoais incorporados.
A idéia do espírito como um poder desprovido de corpo –
embora capaz de interagir, influenciar e de certa forma até habitar
um corpo – é uma herança comum da raça humana. Baseado
nesta herança, Leonardo Da Vinci (1452-1519) podia, de forma
bem natural, descrever a força associada a objetos físicos como uma
capacidade" espiritual", com base no f.ato de ser invisível e
impalpável. Entretanto, ele omitiu o elemento pessoal no
espiritual. Mas qualquer coisa sem uma existência física é
questionada principalmente na teoria científica. Algumas décadas
depois de Da Vinci, a força da gravidade foi cientificamente
descrita por sir Isaac Newton. No entanto, ela foi considerada como
"oculta" e rejeitada pela maioria dos seus contemporâneos
simplesmente porque foi afirmado que ela operava sem contato físico
e assim permanecia, num aspecto "desincorporado",
independentemente dos corpos que, de qualquer forma, caíam por
sua causa.
Sem dúvida, não é fácil estabelecer uma distinção filosófica
clara entre o físico e o espiritual. E não devemos valorizar muito as
idéias comuns sobre isso. Entretanto, temos de saber que o
conceito bíblico do espiritual é uma esfera ordenada de podei pessoal,
fundamentada em Deus, sendo Ele próprio espírito, e não um
corpo físico localizável.
A cosmovisão bíblica considera o espiritual como uma esfera
fundamental para a existência e o comportamento de toda a
realidade natural ou física (veja especialmente Jo 1.1-14; CI 1.17;
Hb 1.2; 11.3). Trata-se de algo que as pessoas podem participar
engajando-se por meio da tendência ativa da vida chamada de "fé",
conforme vemos em Hebreus 11.3,27. Essa integridade em nossas
mentes é guardada com severidade pelo segundo dos Dez
Mandamentos: "Não farás para ti nenhum ídolo, nenhuma imagem
de qualquer coisa no céu, na terra, ou nas águas debaixo da terra"
(Êx 20.4).
O que é que está faltando em nossa condição deformada? Da
perspectiva bíblica, não pode haver dúvida de que é a relação
apropriada com o Reino espiritual de Deus que está causando a falta de "nutrientes" no sistema humano.
Sem isso, nossa vida fica mutilada, tem seu desenvolvimento atrasado,
fica
enfraquecida e deformada em variados estágios de
desintegração e corrupção.
O PROBLEMA DO MÉTODO
No entanto, o que temos de fazer? Como podemos discernir as
profundidades do ser e lidar com elas? Dependendo do nosso
background religioso, podemos pensar na freqüência regular à
igreja, na fidelidade à prática das obrigações religiosas comumente
reconhecidas, nas "experiências" individuais e sociais, em decisões
e compromissos de vários tipos, como meios de transformação
radical do ser. Tais elementos devem ser usados e não podem ser
desprezados. Entretanto, seu histórico como meios de
transformação de indivíduos na semelhança com Cristo não é
muito impressionante.
O mundo contemporâneo em geral pensaria em alguma forma
de aconselhamento psicológico ou psicoterapia como resposta a
esta questão, em vez de pensar em "disciplinas espirituais". Carl
Jung, por exemplo, escreveu que "o ser pode ser definido como um
fator interior de direção que é diferente da personalidade
consciente e que só pode ser apreendido mediante a investigação
dos sonhos do próprio indivíduo".
Eu não negaria que o conhecimento adquirido a partir da
análise dos sonhos ou outra forma de psicoterapia pode ajudar na
transformação do ser e que em certos casos pode ser até
necessário. Não precisamos aceitar a cosmovisão da psicologia em
nenhuma de suas formas para admitir isso. Os sonhos pertenciam
aos profetas milhares de anos antes do surgimento da
psicoterapia. No entanto, há muitos outros recursos disponíveis
para nós, que podem iluminar diretamente as profundezas da
personalidade total – o objetivo supremo da salvação plena – e
providenciar diretrizes para nossa ação que conduza à
transformação. Entre esses recursos está, é claro a Bíblia, com
seus muitos retratos de vidas em transformação e das atividades
essenciais envolvidas no processo.
Como tais histórias bíblicas podem nos ajudar? Sob uma
leitura realista, crítica madura, feita por aqueles preparados para
ser honestos com suas experiências, a Bíblia é incisiva e desnuda
as profundezas e obscuridades do coração humano. Por isso ela
continua a desempenhar um papel decisivo na história e na
cultura humanas. A Bíblia é apropriada para ser o instrumento
perpétuo do Espírito de Deus para a transformação humana, como
indica o texto de 2 Timóteo 3.16,17.
A Bíblia, porém, também informa que há certas práticas -
solitude, oração, jejum, celebração, dentre outras – que podemos
adotar, em cooperação com a graça, para elevar o nível de nossas
vidas na direção da piedade. Ao longo da mesma linha, há ajuda
disponível nos escritos dos santos e moralistas de todas as épocas,
que são muito sábios em relação aos caminhos ocultos da alma
humana. Quando todos esses recursos são bem empregados, em
especial na igreja espiritualmente avivada, promovem de tal forma
o senso comum que muitas vezes só isso pode funcionar como um
guia imediato e confiável nas questões espirituais.
VERDADEIRA ESPIRITUALIDADE
Uma vez aceito este fato, estamos seguros contra a
idéia de que é possível haver verdadeira
espiritualidade em pessoas separadas de Deus. Temos
de nos guardar também da visão da espiritualidade
como algo "totalmente interior" ou algo mantido
apenas entre o indivíduo e Deus.
Espiritualidade é simplesmente a qualidade holística
da vida humana como deve ser, no centro da qual
está nosso relacionamento com Deus. Francis
Schaeffer diz da verdadeira espiritualidade:
O CORPO INCORRUPTÍYEL
Em suas epístolas, o apóstolo Paulo estabelece as distinções
que já vimos nos primeiros capítulos de Gênesis. Em sua bem
elaborada discussão sobre os estágios finais no processo de
redenção, ele afirma: "Nem toda carne é a mesma: os homens têm
uma espécie de carne, os animais, têm outra, as aves outra, e os
peixes outra" (I Co 15.39).
O apóstolo Paulo faz uma distinção que está profundamente
enraizada na experiência da humanidade com Deus no Antigo e
Novo Testamentos, mas também arraigada na perspectiva
aristotélica ou científica da cultura greco-romana.
Trata-se da distinção entre tipos de corpos: "Há corpos
celestes e há também corpos terrestres" (v. 40). Isto é lugar-comum
na ciência aristotélica. No entanto, recebeu novas e vastas
dimensões de significados para a comunidade cristã pela
transfiguração e as aparições de Cristo depois da sua ressurreição,
tornando, por sua vez, possível certas reinterpretações intrigantes
de eventos notáveis do Antigo Testamento como sendo também
manifestações de Cristo (I Co 10.1-4).
O "ser vivente" humano, "o primeiro Adão", possuía como sua
substância corpórea a mais elevada e mais potente forma de carne.
Portanto, ele era a "quintessência do pó". Sendo a forma mais
elevada de pó, ele era também aquele que prova, na visão de Paulo,
ser capaz da transmigração de uma forma de corpo (o "terrestre")
para outra (o "celeste") – aquele corpo "glorioso" de Jesus depois de
sua ressurreição (Fp 3.21).
Assim, em última análise, é verdade que "carne e sangue não
podem herdar o reino de Deus" (I Co 15.50). Contudo, a pessoa de
carne e sangue pode. Mediante a iniciativa e a direção da palavra
de Deus ( Jo. 6.63), a energia finita de uma pessoa pode ser
associada com Deus de tal forma que progressivamente (e no final
totalmente) ela pode "se revestir de incorruptibilidade" (I Co 15.54;
cf. I Pe 1.4 e Fp. 3.11).
A pessoa de carne e sangue também pode, é claro, restringir
seus pensamentos e ações somente à carne e morrer. Ela pode
firmar seus pensamentos e esperanças unicamente nos poderes
naturais residentes no corpo humano separado de Deus, e então
"colherá corrupção". Há uma escolha a ser feita e uma disciplina a
ser seguida.
SEMEANDO NO ESPÍRITO
O próprio Paulo formula este fato assombroso em passagens
bem conhecidas, como as que seguem:
PAULO, O ENIGMA
O apóstolo Paulo está entre aquelas poucas figuras de
gigantes que moldaram a história do mundo e tornaram a mente e
o espírito humano o que são agora. Mesmo assim, ele é um enigma
para todo aquele que o encara somente da perspectiva moderna.
Isso é verdade também para aqueles que olham para Paulo visando
obter direção na vida espiritual.
A descrição desprezível de Paulo feita por Nietzsche, embora
exagerada, expressa a atitude de muitos pensadores seculares do
mundo atual. Segundo Nietzsche, Paulo era "um dos homens mais
ambiciosos, cuja superstição só se igualava à astúcia; um homem
torturado e digno de pena, uma pessoa extremamente
desagradável tanto para si mesma como para os outros". Deixo por
sua conta decidir se tal afirmação não fala mais sobre Nietzsche do
que sobre Paulo.
Os eruditos cristãos, por outro lado, são incapazes de
concordar sobre se o gênio de Paulo era o de um teólogo
sistemático, organizador eclesiástico, filósofo ético, visionário
místico ou um santo ascético. Talvez seja mais comumente
considerado como um construtor de sistemas de dogmas - que
James S. Stewart chama de "a maior injustiça da História com seu
maior santo".
No entanto, o notável livro de Stewart sobre Paulo, A Man in
Christ [Um Homem em Cristo ], deixa claro que o coração do
apóstolo e de sua mensagem está em uma área – na contínua
apropriação da "presença real" de Cristo dentro da vida
experimental do cristão. O livro de Stewart, embora útil,
compartilha uma omissão básica com todas as principais discus-
sões sobre Paulo nos últimos séculos. Embora Stewart descreva
em sua substância e efeito as experiências de Paulo da vida com
Cristo, seu livro deixa em grande parte encoberto o que significa
seguir Paulo, como este seguiu a Cristo, de acordo com I Coríntios
4.16 e 11.1.
No Capítulo 2, falamos sobre como a Igreja moderna parece
incapaz de aprender dos cristãos do passado, ou na própria Bíblia,
como desenvolver um verdadeiro "crescimento na graça e no
conhecimento do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo". Nós
simplesmente parecemos não enxergar o que de fato era praticado
por Jesus, e por aqueles que o seguiram no Reino de Deus, como
descrito em Lucas 16.16 e Mateus 11.12. De alguma forma,
estamos cegos para a informação que deveria nos guiar. Essa
cegueira peculiar nos leva a rejeitar em nossas vidas o que Jesus e
Paulo de fato fizeram, o que escolheram viver ou experimentar.
"Rejeitar" é um termo forte, mas não é muito preciso. Para
rejeitar algo, o indivíduo deve primeiro considerar ou analisar. No
entanto, nós nem chegamos a considerar os detalhes da vida
cotidiana de Jesus e de Paulo; assim, não nos sentimos desafiados
a aceitá-los ou rejeitá-los. Temos considerado, de certa forma, tais
aspectos da vida de Jesus como irrelevantes para qualquer escolha
que tenhamos de fazer. Por isso, dizemos: "O que tem a ver
conosco o longo período de jejum e solitude de Jesus depois do
batismo? Nós não somos Jesus, não é? E a maneira como Paulo
subjugava o seu corpo pode ter sido necessária para o seu
trabalho, mas eu estou indo muito bem sem fazer isso."
Então, seguir a Jesus – ou seguir o exemplo de Paulo – fica
desprovido de significado prático. Não expressa uma estratégia de
viver nossa existência cotidiana; no máximo, concentra-se apenas
em certos momentos especiais ou artigos de fé. Isso, por sua vez,
torna impossível para nós compartilhar de suas experiências e
consistentemente manter um comportamento como o deles – o
qual, afinal, apoiava-se em suas experiências, e essas experiências
resultavam de como eles organizavam suas vidas. Desde que não
compartilhamos com eles do mesmo comportamento, somos deixa-
dos com muita conversa sobre eles e uma aplicação ocasional de
sua linguagem à nossa experiência. A única maneira de superar
essa nossa alienação da vida deles é tomar as práticas de Jesus e
de Paulo como algo essencial para a nossa vida em Cristo.
O USO DA SOLITUDE
Para ilustrar como as práticas disciplinares eram rotina dos
primeiros cristãos, considere como Jesus e seus primeiros
seguidores faziam amplo uso da solitude. Como veremos no
próximo capítulo, a solitude é a mais radical das disciplinas para a
vida no espírito. Nas instituições penais, o confinamento na
solitária é usado para quebrar a mais forte das vontades. Ele tem
esta capacidade porque exclui as interações com outros, das quais
a personalidade humana decaída depende completamente. A vida
alienada de Deus entra em colapso quando é destituída do suporte
do mundo carregado de pecado. No entanto, a vida em sintonia
com Deus é de fato nutrida pelo tempo despendido sozinho.
João Batista, como muitos dos seus precursores na linhagem
profética, passava muito tempo sozinho nos lugares desertos.
Jesus constantemente buscou a solitude, desde o batismo até o
Getsêmani, quando se separou até daqueles que chamara a velar
com Ele (Mt 26.38-42). A solitude, e somente ela, abre a
possibilidade de um relacionamento radical com Deus que pode
superar todos os eventos externos até a morte e além dela.
O retiro é o laboratório do espírito; solitude interior e
silêncio são duas asas. Todas as grandes obras são
preparadas no deserto, incluindo a redenção do
mundo. Os precursores, os seguidores e o próprio
Mestre, todos obedeceram ou tiveram de obedecer à
mesma lei. Profetas, apóstolos, pregadores, mártires,
pioneiros do conhecimento, artistas inspirados em
todas as artes, homens comuns e o Homem-Deus,
todos pagaram tributo à solidão, à vida de silêncio e à
noite.
SERVINDO A OUTROS
No entanto, sua vida e trabalho também foram caracterizados
por grande abnegação, simplicidade e frugalidade. Durante grande
parte do tempo que passou fundando e desenvolvendo
comunidades cristãs, ele trabalhou para se sustentar. Abriu mão
dos benefícios do ministério apostólico, aos quais tinha pleno
direito, e que eram gozados por outros, como Pedro e os irmãos de
Jesus (I Co 9.5-12).
Na vida de Paulo, enxergamos o paralelo entre o treinamento
físico e o espiritual. O propósito Paulino na forma como tratava seu
corpo é claro. Aqueles que seguiram Paulo como ele seguiu a Cristo
viram o que ele quis dizer quando afirmou "esmurro o meu corpo e
faço dele meu escravo" (I Co 9.27). E também souberam como fazer
como ele neste aspecto.
Considere o testemunho de Paulo quando partiu
definitivamente de Éfeso, local de um dos seus trabalhos mais
significativos e frutíferos: "Vocês sabem como vivi todo o tempo em
que estive com vocês, desde o primeiro dia em que cheguei à
província da Ásia. Servi ao Senhor com toda a humildade e com
lágrimas, sendo severamente provado pelas conspirações dos
judeus... Não cobicei a prata nem o ouro nem as roupas de
ninguém. Vocês mesmos sabem que estas minhas mãos supriram
minhas necessidades e as de meus companheiros. Em tudo o que
fiz, mostrei-lhes que mediante trabalho árduo devemos ajudar os
fracos, lembrando as palavras do próprio Senhor Jesus, que disse:
'Há maior felicidade em dar do que em receber'" (At 20.18,19,33-
35).
Aquele que foi escolhido por Deus para estabelecer a Igreja
entre os gentios escolheu sustentar a si mesmo, e a outros, por
meio do seu próprio labor durante o tempo em que realizava um
ministério de significado elevadíssimo (I Ts 2.8,9; 2 Ts 3.8,9). Paulo
foi genial ao entender que não havia nenhum conflito nesse
procedimento, mas de fato um incremento de poder. Ele conhecia o
segredo do Mestre, que a maior pessoa é aquela que é serva de
todas, e colocou isso em prática como uma questão de princípio
(Mt 20.26,27; I Co 9.19). Ele colocou toda a sua vida a serviço de
todos, como Jesus, e por isso uma tarefa tão grandiosa foi confiada
a ele, e não a outra pessoa.
UM HOMEM "ILUMINADO"
As palavras de David Hume, um escritor e pensador escocês
do século XVIII, exemplificam esta cosmovisão moderna que
fundamenta a versão atual da "boa vida":
O PRINCÍPIO PROTESTANTE
Atualmente, 200 anos depois de Hume, o preconceito é mais
forte ainda. O protestantismo, ou o simples progresso do
Iluminismo, desenvolveu a idéia de que a visão cristã da salvação
refuta qualquer exigência de disciplina para a vida espiritual. O
mundo ocidental em geral, e não apenas os filósofos e eruditos,
agora está firme no conceito contra atividades disciplinares como
parte da vida religiosa.
Qual, perguntamos, poderia ser a base para tal disciplina,
senão a presunção da conquista do perdão mediante méritos da
abnegação e do sofrimento? Afinal, o princípio fundamental do
movimento protestante – a salvação é assegurada pela justificação
por meio da fé, e não das obras mortas – "cortou pela raiz o
monasticismo e a mortificação em geral". É assim que o artigo
sobre "ascetismo" na conhecida Enciclopédia M'Clintock e Strong
sobre religião expressa essa atitude prevalecente na cultura
protestante. De alguma forma, o fato de que "mortificação"
(abnegação ou controle dos impulsos naturais) é o ensino central
do Novo Testamento é convenientemente ignorado.
No nível prático da vida paroquial, esta atitude em relação à
disciplina tem tido um grande efeito também sobre os católicos,
desde que nossa cultura protestante é tão abrangente. O resultado
é nossa quase universal incapacidade de entender o que são as
disciplinas para a vida espiritual. As passagens bíblicas que
exemplificam ou ordenam a "mortificação" têm de ser ignoradas ou
alegorizadas de um jeito ou de outro; seus aspectos práticos são
mudados para satisfazer as inclinações de cada grupo social parti-
cular.
É claro que quase todas as pessoas podem listar alguns tipos
específicos de ações ou práticas que consideram como
"espirituais". Podemos, por exemplo, pensar na pobreza, no
celibato e na obediência a um superior, que fazem parte de várias
ordens dentro da Igreja Católica, conhecidas do público em geral
por meio da literatura e de outras artes. Ou o nosso estudo da
Bíblia pode nos ter levado a pensar no jejum, na esmola ou na
prática regular da oração dentro desta linha. Entretanto, minhas
conversas com muitos cristãos que conheço mostram que essas
práticas são vistas de forma muito mística, quando é sugerido que
podem ser relevantes para suas vidas.
O SURGIMENTO DO MONASTICISMO
Nada na história do mundo ocidental contribuiu mais para a
nossa presente incapacidade de ver um ascetismo sensível e
necessário do que o surgimento do monasticismo como uma forma
de vida cristã.
Devemos reconhecer que grande parte da motivação
monástica era digna de louvor, que muitos grandes cristãos
serviram nas ordens monásticas e fizeram grandes obras. Ninguém
pode deixar de reconhecer continuidade entre a vida de Jesus e
seus primeiros seguidores e a de grandes monges como Antônio e
Benedito. É igualmente verdade, porém, que dentro daquelas
ordens, com o passar dos anos, a disciplina espiritual passou a ser
identificada com excessos confusos, despropositados e até
destrutivos. Esses excessos se manifestaram em atitudes de ódio
contra o corpo e a crença de que perdão ou mérito podiam ser
obtidos por meio dos sofrimentos auto-infligidos ou impostos por
um superior religioso. Hoje tudo isso é universalmente, e
corretamente, condenado. As reações a esses excessos das ordens
monásticas tornaram muito difícil às pessoas considerarem as
disciplinas espirituais como essenciais para o bem-estar espiritual
ou físico.
A ORIGEM DO MONASTICISMO
Como se desenvolveu a idéia da vida nos mosteiros? A
resposta reside na antiga história da Igreja. O impulso do Espírito
e o impacto da perseguição espalharam os primeiros cristãos. Para
onde eles iam, se reuniam e estabeleciam os grupos dos
"chamados" – a ecclesia. Alguns historiadores sugerem que a
oposição sangrenta à nova fé foi suficiente para sustentar o senso
de identidade dos discípulos e separá-los do mundo hostil pelos
primeiros três séculos. Eles jamais esqueciam que eram "cidadãos
do céu" (Fp 3.21), que "estavam no mundo, mas não eram do
mundo" ( Jo 17.16) e que não tinham aqui um lugar definitivo,
sendo" estrangeiros e peregrinos na terra" (Hb 11.13-16).
Entretanto, com a conversão do imperador romano
Constantino à fé cristã e a promulgação do seu Edito de Tolerância
em 311 d.C., o cristianismo foi legalizado e passou a receber apoio
imperial. Possuindo status e segurança, a Igreja e grande parte dos
seus membros começaram a encarar o mundo como compatível
com a profissão de discípulos de Cristo. Logo, porém, um grupo
seleto dentro da comunidade cristã descobriu que a situação era
insuportável. Então indivíduos e grupos pequenos começaram a se
separar para se engajar no que sentiam ser um modo de vida mais
espiritual.
Naquela mesma época, uma síntese do pensamento helenista,
judaico e cristão nos ensinos de Orígenes, Pai da igreja de
Alexandria (morto em 254), começou a exercer ampla influência.
Ele enfaticamente chamava os discípulos de Cristo à perfeição e
união mística com Deus, separados da existência ordinária
mundana:
ASCETISMO CONSUMIDOR
Muitas valiosas contribuições à vida individual, à Igreja e à
civilização foram feitas pelas ordens monásticas desde o quarto
século até os nossos dias. Temos de admitir que, para algumas
pessoas, a vida monástica pode ser um modo válido de discipulado
cristão no presente, como foi no passado. No entanto, não é menos
verdade que, como era de fato praticada com facilidade e
constância ela se distanciava (de maneira óbvia) do tipo de vida do
próprio Jesus e dos seus primeiros seguidores.
Jesus e seus discípulos eram claramente ascetas. Afirmações
tais como "o cristianismo não é uma religião de ascetismo, mas
sim de fé e amor" (extraída do monumental estudo sobre ascetismo
feito por Otto Zockler) simplesmente não compreendem a conexão
entre práticas ascéticas e a habilidade de andar em fé e amor à
maneira de Jesus e seus discípulos. No entanto, embora ascetas
em seu modo de viver, Cristo e seus seguidores não eram monges
em qualquer acepção da palavra. No poder da graça, alimentados
pelas disciplinas, eles não fugiram do mundo como alguns monges
fizeram, mas permaneceram firmes no mundo – guardados do mal
pelo Deus Pai (Jo 17) e levando a outros a palavra da vida (Fp
2.15,16).
Ninguém que tenha considerado com seriedade a vida de
Jesus e dos apóstolos pode imaginá-los envolvidos no estranho
comportamento de um Macário de Alexandria, ou de um Serapião,
ou de um Pacômio: sem comer alimento cozido por sete anos, com
o corpo despido exposto a moscas venenosas, dormindo num
pântano durante seis meses, sem deitar para dormir por 40 ou 50
anos, sem falar uma palavra durante muitos anos, mantendo
orgulhosamente um registro dos anos passados sem ver uma
mulher, carregando fardos pesados onde quer que iam, ou usando
braceletes de ferro e correntes, competindo explicitamente uns
contra os outros pelo título de campeão em austeridade.
Simeão Estilita (309-459 d.C), por exemplo, construiu uma
coluna de dois metros de altura no deserto sírio e viveu no topo
dela durante algum tempo. Logo, porém, envergonhado da pouca
altura da coluna, encontrou uma de 20 metros de altura, com
poucos metros de largura, e uma grade para evitar que caísse
enquanto dormia.
A CONTINUAÇÃO DO ERRO
A substituição da salvação (nova vida em Cristo) por um dos
seus efeitos ou componentes (o perdão dos pecados) dominou o
sistema monástico cristão e a reação contra ele, que ainda vivemos
hoje. Para lidar com o pecado, o sistema monástico tentou evitar o
contato com ele no mundo. Também tentou merecer o perdão
mediante esforços extenuantes de vários tipos. Ele desejava estar
fora do mundo para evitar ser do mundo.
Paulo, muito tempo antes, tinha explicado aos cristãos de
Corinto que não era necessário evitar as pessoas de fora da família
de Deus; segundo ele, "seria necessário sair do mundo" (1 Co
5.10), inferindo claramente que isso não devia ser feito. Jesus orou
não para que seus amigos fossem tirados do mundo (Jo 17.15),
mas que, não sendo do mundo, fossem guardados do mal enquanto
ainda estivessem no mundo.
O monasticismo, na verdade, provou que se poderia estar
"fora do mundo" e ainda assim pertencer a ele. Portanto, seus
excessos, cada vez maiores, foram um testemunho da futilidade de
se contestar esse fato. Melhor ainda, demonstrou que não se pode
sair realmente do mundo antes da morte e que o esforço para fazer
isso prova apenas que a pessoa pertence ao mundo e continua a
operar basicamente sobre princípios e motivações "mundanos".
O protestantismo, impressionado com essas provas, cometeu
o erro de rejeitar simplesmente as disciplinas como essenciais à
nova vida em Cristo. Como resultado, jamais foi capaz de
desenvolver uma visão coerente da participação humana na
salvação que fizesse justiça às diretrizes do Novo Testamento ou
aos fatos da psicologia humana.
ASCETISMO CLÁSSICO
No background lingüístico clássico, não há nada de
absolutamente odioso no corpo, da indulgência à punição ou
autoflagelação, ou à busca de mérito por meio do poder da vontade
e do auto controle (as próprias coisas que agora supomos ser a
essência do ascetismo e da disciplina espiritual).
Ascetismo é apenas uma questão de adaptação de meios
apropriados a um fim obviamente valioso. O asceta é aquele que
entra no treinamento adequado ao seu desenvolvimento até se
tornar um atleta (athlasis) completo, no corpo, na mente e no
espírito. Se um indivíduo deseja falar, correr, esculpir, lutar ou
cantar bem, deve preparar as partes relevantes da mente e do
corpo, exercitando-as. Deve "agüentar a dor" e se empenhar da
forma apropriada. Isso continua sendo verdade quando nos
movemos na vida espiritual e é um tema essencial e permanente
na religião do Antigo e do Novo Testamento.
O uso da lei, por exemplo, é um dos principais elementos do
ascetismo no Antigo Testamento. Em Josué 1.8, lemos: "Não deixe
de falar as palavras deste Livro da Lei e de meditar nelas de dia e
de noite, para que você cumpra fielmente tudo o que nele está
escrito. Só então os seus caminhos prosperarão e você será bem-
sucedido." Podemos notar, novamente, a base física para o
condicionamento espiritual e material da vida. A lei deve estar nos
lábios. As pessoas devem memorizar a lei e pronunciá-la em voz
alta para si mesmas enquanto vivem o dia-a-dia.
O Salmo 119 é uma canção contínua de louvor à vida que
resulta de "esconder a Palavra no coração" (v. 11). O Salmo I
descreve a vida daquele que desvia sua mente dos caminhos do
mundo e que "tem satisfação na lei do Senhor, e nela medita dia e
noite".
O ato de esconder a lei no coração e a constante meditação
nela não são (como todo aquele que faz essas coisas sabe)
separáveis do uso correto do corpo. A parte que o nosso corpo
desempenha nesta experiência está definitivamente sob o nosso
controle, e os efeitos indiretos da experiência com a lei tornam
então aquele que medita "como a árvore plantada à beira de águas
correntes: Dá frutos no tempo certo e suas folhas não murcham.
Tudo o que ele faz prospera!" (Sl 1.3).
Aqui temos uma atividade da mente e do corpo empreendida
com toda a força que temos para fazer nosso corpo cooperar
efetivamente com a ordem divina. Como pastor, mestre e
conselheiro, tenho visto repetidamente a transformação da vida
interior e exterior que procede da simples meditação e
memorização das Escrituras. Pessoalmente, eu jamais lideraria
uma igreja ou um projeto de educação cristã sem incluir um
programa contínuo de memorização de passagens selecionadas da
Bíblia para pessoas de todas as idades.
Os escritores inspirados das palavras citadas acima estavam
apenas registrando certos fatos observáveis da vida espiritual,
fatos que negligenciamos, colocando em risco a nossa própria vida
e a vida daqueles que estão sob o nosso cuidado espiritual.
Embora esses fatos realmente envolvam muito mais do que apenas
habilidades "naturais", eles não são, no entanto, mais misteriosos
do que a memorização de um número de telefone pela sua
repetição em voz alta ou o fato de a ingestão de alimentos
proporcionar uma força que não pode ser conseguida de outra
forma.
O ascetismo corretamente entendido está longe do "místico".
Ele é apenas bom senso em relação à vida em geral e a respeito da
vida espiritual.
O excelente estudo de O. Hardman, Ideals of Asceticism
[Ideais do Ascetismo], sintetiza de forma correta a essência do
ascetismo religioso como a prática voluntária de atividades "para
que a alma seja livre e protegida da corrupção, mediante o
aumento do seu poder pelo desempenho de suas funções
apropriadas de acordo com seu próprio conceito da ordem moral e
espiritual, conseqüentemente alcançando e desfrutando de seu
pleno status". Os mestres que condenam o ascetismo praticado
corretamente no contexto contemporâneo causam mais dano do
que bem, a menos que tenham algum outro método para que seus
alunos se apossem da vida no Reino de Deus.
UM ESCLARECIMENTO FINAL – A VERDADEIRA
NATUREZA DA DISCIPLINA ESPIRITUAL
Deixemos de lado, então, idéias da disciplina espiritual como
meras ações exteriores, ou como a expressão de ódio contra o
próprio ser, ou meios para alcançar méritos por meio do
sofrimento.
Vamos fazer um esclarecimento final da natureza básica das
disciplinas espirituais, relacionando-as à existência humana e ao
ideal da vida espiritual em Deus.
Retomemos à cena bíblica da última noite de Cristo com seus
discípulos no jardim do Getsêmani. Os discípulos estavam cheios
de boas intenções, mas Jesus entendia a condição deles. À luz
desse conhecimento, Jesus aconselhou um curso de ações que os
capacitaria a fazer o que eles sinceramente desejavam fazer.
"Vigiem e orem", disse ele, "para que não caiam em tentação. O
espírito está pronto, mas a carne é fraca" (Mt 25.41).
O claro significado dessa advertência a seus amigos
sonolentos e preocupados era que, pelo engajamento em
determinado tipo de ação – a vigilância combinada com a oração –,
eles seriam capazes de alcançar um nível de responsividade
espiritual e poder em suas vidas que seria impossível sem isso.
Nesse episódio simples (embora profundo), descobrimos a natureza
e o princípio da disciplina espiritual. As disciplinas são atividades
que implantam em nós, em nosso corpo, que é o recipiente de
nossa habilidades (e defeitos!) uma prontidão e uma capacidade de
interagir com Deus e com nosso meio ambiente e forma
espontânea.
Pedro e os outros discípulos não tinham naturalmente a
capacidade de permanecer firmes no confronto com os inimigos de
Cristo. No entanto, se tivessem orado e vigiado, como foram
aconselhados, a habilidade necessária estaria lá quando fosse
preciso. Eles estariam em condições mentais de apegar-se à
assistência do Pai para ficarem tão firmes quanto Jesus. Agora e
sempre, em nossa vida natural ou espiritual, a marca das pessoas
disciplinadas é a capacidade de fazer o que precisa ser feito.
A DISCIPLINA EM QUESTÃO – A PARTE ESSENCIAL DO
CORPO NA ESPIRITUAUDADE
A questão da disciplina, portanto, é como aplicar os atos
disponíveis da vontade de tal forma que o curso apropriado de
ação, que nem sempre pode ser concebido pelo esforço direto não
treinado, possa ser efetuado sempre que necessário.
A preparação para todas as ações da vida, inclusive as ações
espirituais, envolve essencialmente o corpo. A vigilância, por
exemplo, é um comportamento físico. É claro que não é só físico,
mas o ponto que corremos risco de perder de vista em nossa
cultura contemporânea é que também não é puramente
"espiritual" ou "mental", e que aquilo que é puramente mental não
pode transformar o ser.
Um grande engano na prática da religião cristã é a idéia de
que tudo o que realmente conta são os nossos sentimentos, idéias,
crenças e intenções interiores. E este erro sobre a psicologia do ser
humano que, mais do que qualquer outra coisa, divorcia a
salvação da vida, deixando-nos a cabeça cheia de verdades vitais
sobre Deus e um corpo incapaz de vencer o pecado.
No livro já citado de C. S. Lewis, Screwtape tem um
comentário importantíssimo sobre os efeitos do fracasso em se
usar o corpo em nossa religião. Ele aconselha Wormwood a fazer o
homem
AS DISCIPLINAS
Quais são, então, as atividades específicas que podem servir
como disciplinas para a vida espiritual? Quais delas devemos
escolher para nossa estratégia individual de crescimento
espiritual?
Não precisamos apresentar uma lista completa de disciplinas.
Tampouco devemos supor que nossa lista particular será mais
correta do que outras. Pouquíssimas práticas bem conhecidas
teriam o privilégio de figurar em todas as listas. Por outro lado, há
muitas atividades boas que podem não ser consideradas
disciplinas, e ainda outras que serviram através dos tempos como
disciplinas espirituais mas agora estão esquecidas. Por exemplo,
há o peregrínatío, ou o exílio voluntário, introduzido pelo irlandês
São Brenden (nascido em 484), amplamente praticado durante vá-
rios séculos. Já mencionamos várias vezes a "vigília", onde o
indivíduo renuncia ao sono para se concentrar nas questões
espirituais. A manutenção de um diário espiritual continua sendo
uma atividade que serve para alguns indivíduos como uma
disciplina vital, embora talvez não figurasse em muitas listas-
padrão. A guarda do shabbath conforme instituída no Antigo
Testamento pode ser uma disciplina extremamente produtiva. O
labor físico já provou ser uma disciplina espiritual, em especial
para aqueles que estão muito envolvidos na solitude, no jejum, no
estudo e na oração (I Ts 4.11,12).
Uma atividade incomum que pode ser uma disciplina
espiritual efetiva para aqueles que estão acostumados a ter "do
bom e do melhor" nesta vida, é visitar bairros pobres e da periferia
(ir à feira ou supermercado). Isso tem um efeito enorme no nosso
entendimento e comportamento em relação ao nosso próximo –
ricos e pobres – e na nossa compreensão do que significa amar e
cuidar dos nossos semelhantes.
Ao elaborar nossa lista pessoal de disciplinas espirituais,
devemos ter em mente que poucas podem ser consideradas como
absolutamente indispensáveis para a vida espiritual saudável,
embora obviamente algumas sejam mais importantes do que
outras. Praticar uma ampla variedade de atividades que provaram
sua eficiência através dos séculos nos guardará de cometer erros.
E se, posteriormente, percebermos que nossas necessidades
exigem outras atividades, provavelmente seremos direcionados
para elas.
Assim, para nos ajudar nessa escolha tão importante, vamos
listar aquelas atividades que têm amplo e produtivo uso entre os
discípulos de Cristo e nos aproximar delas de forma experimental,
em atitude de oração. A lista a seguir está dividida em disciplinas
de "abstenção" e disciplinas de "engajamento". Discutiremos cada
qual dessas atividades e como elas podem contribuir de modo
significativo no crescimento espiritual.
Disciplinas de abstenção
Solitude
Silêncio
Jejum
Frugalidade
Castidade
Discrição
Sacrifício
Disciplinas de engajamento
Estudo Adoração
Celebração Serviço
Oração
Comunhão
Confissão
Submissão
AS DISCIPLINAS DE ABSTENÇÃO
"...vocês se abstenham dos desejos carnais que
guerreiam contra a alma" (I Pe 2.11).
SOLITUDE
Já vimos o papel que a solitude desempenhou na vida de
nosso Senhor e dos homens que andaram em seu Caminho. Na
solitude, nos abstemos deliberadamente da interação com outras
pessoas, negando a nós mesmos o companheirismo e tudo o que
procede de nossa relação consciente com outros. Nós nos
fechamos; vamos para o mar, para o deserto, para os lugares
ermos, ou para o anonimato das multidões urbanas. Não se trata
apenas de descanso ou refrigério na natureza, embora isso
também contribua para o bem-estar espiritual. Solitude é escolher
estar sozinho e experimentar o isolamento voluntário de outros
seres humanos.
A solitude na verdade nos liberta. Isso explica sua primazia e
prioridade entre as disciplinas. O curso normal das interações
humanas no dia-a-dia nos prende a padrões de sentimentos,
pensamentos e ações gerados num mundo que vive contra Deus. A
solitude permite uma libertação dos comportamentos arraigados
que impedem nossa integração na ordem divina.
É necessário uma quantidade 20 vezes maior de anfetaminas
para matar um rato sozinho do que para matá-los em grupo. Os
cientistas descobriram que um rato que não recebeu anfetamina
estará morto dentro de dez minutos ao ser colocado no meio de um
grupo que tenha recebido a droga. Em grupo, eles explodem como
pipocas ou fogos de artifício. Os homens e mulheres do Ocidente
(em especial) falam muito sobre individualidade. No entanto, nossa
conformidade ao padrão social é tão espantosa quanto a do rato – e
igualmente mortal!
Na solitude, descobrimos a distância psíquica, a perspectiva a
partir da qual podemos ver, à luz da eternidade, as coisas criadas
que nos prendem, preocupam e oprimem.
Thomas Merton escreveu:
SILÊNCIO
No silêncio, desligamos nossa alma dos "sons", sejam eles
ruídos, cânticos ou palavras. O silêncio total é raro, e o que
chamamos de "quieto" significa geralmente um pouco menos de
barulho. Muitas pessoas jamais experimentaram o silêncio, nem se
dão conta de que não sabem sequer o que ele significa. Nossos
lares e locais de trabalho estão repletos de zumbidos, apitos,
murmúrios, tagarelices e sonidos dos vários dispositivos
supostamente idealizados para tornar a vida mais fácil. Tal
barulho nos conforta de uma forma curiosa. De fato, achamos o
silêncio total chocante. Ele deixa a impressão de que nada está
acontecendo. Num mundo frenético como o nosso, nada poderia
ser pior do que isso!
O silêncio vai além da solitude, e sem ele a solitude tem
pouco efeito. Henri Nouwen observa que "o silêncio é a forma de
tornar a solitude uma realidade". Entretanto, o silêncio é
assustador porque ele nos desnuda como nenhuma outra coisa,
confrontando-nos com a realidade crua de nossa vida. Ele nos
lembra a morte, a qual nos cortará deste mundo, deixando apenas
nós e Deus. E o que implica "apenas nós e Deus"? Pense o que
podemos descobrir sobre o vazio interior de nossa vida se temos
sempre de ligar o rádio para ter certeza de que algo está
acontecendo à nossa volta...
A audição, como se costuma dizer, é o último dos nossos
sentidos a morrer. O som sempre irrompe de modo profundo e
importuno em nossa alma. Assim, pelo bem de nossa alma, temos
de buscar momentos em que desligamos nosso rádio, nossa
televisão, o gravador e o telefone. Precisamos interromper os ruídos
da rua. Temos de fazer todos os arranjos necessários para
descobrir quanto conseguimos aquietar nosso mundo.
Silêncio e solitude em geral andam de mãos dadas. Assim
como o silêncio é vital para a verdadeira solitude, assim também a
solitude é necessária para que a disciplina do silêncio seja
completa. Poucas pessoas podem ficar em silêncio na companhia
de outras.
A maioria, no entanto, vive na companhia de outros. Como
podemos praticar tal disciplina? Há algumas maneiras. Por
exemplo, muitas pessoas aprenderam a levantar no meio da noite –
dividindo o sono da noite em duas partes para experimentar o
silêncio. Ao fazer isso, encontram um silêncio rico que ajuda a
oração e o estudo sem interrupção. Entretanto, embora possa
parecer impossível, progresso significativo no silêncio pode ser feito
sem solitude, mesmo dentro da vida familiar. E compartilhar essa
disciplina com aqueles que você ama pode ser exatamente o que
eles precisam.
Como ocorre com todas as disciplinas, devemos abordar a
disciplina do silêncio praticando e orando. Devemos confiar que
seremos levados ao uso correto dela. Trata-se de uma disciplina
poderosa e essencial. Nosso silêncio nos permitirá a concentração
em Deus. E Ele nos transformará. O silêncio nos permitirá ouvir a
voz suave de Deus, cujo único Filho "... não discutirá nem gritará;
ninguém ouvirá sua voz na rua" (Mt 12.19). É este Deus que nos
diz que "na quietude e na confiança está o seu vigor" (Is 30.15).
Temos também de praticar o silêncio de não falar. Em sua
epístola, Tiago diz que aqueles que parecem religiosos mas são
incapazes de refrear a própria língua "enganam a si mesmos e sua
religião não tem valor algum" (Tg 1.26). Tiago afirma que aqueles
que não tropeçam no que dizem são perfeitos, sendo também
"capazes de dominar todo o seu corpo" (3.2).
A prática de não falar pode, no mínimo, nos dar controle
suficiente sobre o que dizemos, a fim de que a nossa língua não aja
"automaticamente". Esta disciplina nos oferece tempo para pesar
nossas palavras e condições de controlar o que dizemos.
Essa prática também nos ajuda a ouvir, observar e prestar
atenção nas pessoas. E raro sermos realmente ouvidos, e a
necessidade de ser ouvido é profunda. Quanta ira na vida das
pessoas não é resultado de não serem ouvidas? Tiago diz: "Sejam
todos prontos para ouvir, tardios para falar e tardios para irar-se"
(1.19). Quando a língua se move rapidamente, em geral o que se
segue é a ira. Dizem que Deus nos deu dois ouvidos e apenas uma
boca, para que possamos ouvir duas vezes mais do que falamos.
Mas até mesmo nessa proporção é possível falar demais.
No testemunho, o papel da fala muitas vezes é
exageradamente enfatizado. Isso soa estranho? O silêncio e,
especialmente, o ouvir de verdade são, muitas vezes, o testemunho
mais eloqüente da fé. Um dos principais problemas na
evangelização não é fazer as pessoas falarem, mas calar aqueles
que por meio de uma fala contínua revelam um coração sem amor,
desprovido de confiança em Deus. Como diz Miguel de Unamuno,
"temos de prestar menos atenção no que as pessoas estão
tentando nos dizer, e mais no que elas nos dizem sem tentar!"
Por que falamos tanto? Damos tanta liberdade à nossa boca
porque nos sentimos interiormente desconfortáveis com o que os
outros pensam de nós. Eberhard Arnold observa: "Pessoas que se
amam podem ficar em silêncio juntas." No entanto, quando
estamos com aqueles com quem nos sentimos menos seguros,
usamos as palavras para "ajustar" nossa aparência e conquistar
aprovação. De outra forma, tememos que nossas virtudes não
recebam a apreciação adequada e nossos defeitos não sejam apro-
priadamente "compreendidos". Quando não falamos, resignamos
aquilo que parecemos (ousaria dizer, aquilo que somos?) a Deus.
Por que nos preocupar com a opinião dos outros a nosso respeito
quando Deus é por nós e Jesus Cristo está à direita do trono
intercedendo em favor dos nossos interesses (Rm 8.31-34). No
entanto, nós nos preocupamos.
Pouquíssimas pessoas vivem uma quietude interior confiante,
embora a maioria deseje isso. Entretanto, essa quietude interior é
uma graça que recebemos quando praticamos "não falar". E
quando nós a temos, podemos ajudar outros em necessidade.
Depois que conhecemos esta confiança, quando outros chegam
para pescar segurança e aprovação, podemos enviá-los para pescar
em águas mais profundas, a fim de que também tenham quietude
interior.
Eis o testemunho de um jovem que entrou na prática da
solitude e do silêncio:
JEJUM
No jejum, nós nos abstemos de alimentos e, não raro,
também de líquidos. Esta disciplina nos ensina muito (e rápido)
sobre nós mesmos. Certamente ela nos humilha, pois prova
quanto nossa paz depende dos prazeres da gastronomia. Também
pode trazer-nos à mente como estamos usando o prazer de comer
para atenuar o desconforto em nosso corpo causado pela falta de
fé e pelas atitudes insensatas: falta de dignidade, trabalho sem
sentido, existência sem propósito, e falta de descanso ou de
exercício. O jejum nos mostra quanto nosso corpo é poderoso e
astuto na busca de seu próprio caminho contra as nossas mais
fortes determinações!
Há muitas formas e níveis de jejum. Os pais do deserto, como
Santo Antônio, muitas vezes passavam longos períodos comendo
apenas pão e água – embora tenhamos de reconhecer que o "pão"
deles era muito mais substancial do que o pão que comemos hoje.
Daniel e seus amigos não quiseram comer das iguarias do rei nem
beber vinho. Eles comeram apenas vegetais e beberam água (Dn
1.12). Em outra ocasião, Daniel "não comeu nada saboroso; carne
e vinho não provou; e não usou nenhuma essência aromática, até
se passarem as três semanas" (10.3). Na época de sua preparação
para enfrentar a tentação e iniciar seu ministério, Jesus jejuou por
mais de um mês (Mt 4).
O jejum confirma nossa total dependência de Deus ao
encontrarmos no Senhor uma fonte de sustento além do alimento.
Assim, aprendemos, pela experiência, que a Palavra de Deus para
nós é uma substância vital. Aprendemos que a vida nos é dada não
só pela comida ("pão"), mas também pelas palavras que procedem
da boca de Deus (Mt 4.4). Aprendemos que também temos uma
comida para comer que o mundo não conhece (Jo 4.32,34).
Portanto, jejuar ao Senhor é também festejar a pessoa de Deus e a
sua vontade.
A poetisa cristã Edna St. Vincent Millay fala sobre a
descoberta do "outro" alimento em seu poema intitulado "Festa":
CASTIDADE
Ao listar uma disciplina que lida especificamente com o
impulso sexual, sentimos falta de uma terminologia apropriada.
Usarei o termo "castidade", embora ele, como a "simplicidade", se
refira ao resultado de uma disciplina sob a graça, e não às
atividades disciplinares em si. Ao exercer a disciplina espiritual da
castidade, nós nos afastamos deliberadamente do engajamento na
dimensão sexual do relacionamento com outros – até mesmo nosso
cônjuge.
A sexualidade é uma das forças mais poderosas e mais sutis
da natureza humana, e o sofrimento ligado diretamente a ela é
muito alto. Os abusos do sexo, fora e dentro do casamento, tornam
imperativo aprender "como possuir nosso vaso em santificação e
honra" (I Ts 4.4).
Uma parte fundamental desse aprendizado consiste de
abstenção de práticas sexuais e de não-rendição a sentimentos e
pensamentos sexuais, aprendendo assim a não ser governado por
eles.
A abstenção temporária dentro do casamento, mediante
consentimento mútuo, também foi aconselhada por Paulo como
um auxílio ao jejum e à oração (I Co 7.5). Em desacordo com o
pensamento predominante no mundo atual, é absolutamente vital
para a saúde de qualquer casamento que a gratificação sexual não
seja colocada como centro. A abstenção voluntária nos ajuda a
apreciar e amar nossos parceiros como pessoas completas, nas
quais a sexualidade é apenas um aspecto. Isso reforça em nós a
prática de estar bem próximo das pessoas, sem embaraços
sexuais.
A castidade tem uma parte importante a desempenhar dentro
do casamento, mas o principal efeito que buscamos por meio dela
é a postura apropriada em face dos atos, sentimentos,
pensamentos e das atitudes sexuais na nossa vida como um todo,
dentro e fora do casamento. A sexualidade não terá permissão de
dominar nossa vida, se vivermos como filhos e filhas de Deus,
como irmãos e irmãs em Jesus Cristo.
Isso não significa que a nossa sexualidade é algo de que
devemos nos afastar. Isso seria impossível. Somos seres sexuais:
"Homem e mulher os criou" (Gn 1.27). Esta passagem crucial
vincula a sexualidade ao fato de termos sido criados à imagem de
Deus. Ela é parte do poder com o qual servimos ao Senhor. Na
sexualidade, o envolvimento pessoal, o conhecer e ser conhecido,
característica da natureza básica de Deus, é providenciado de
forma especial para o ser humano integral. Na união sexual plena,
a pessoa é conhecida em seu corpo todo e conhece a outra pessoa
por meio de todo o seu corpo. A profundidade do envolvimento é
tão grande que não pode haver "sexo casual". Isso é uma
contradição muito bem compreendida pelo apóstolo Paulo, que, por
isso, ensinou que a fornicação é um pecado contra o próprio corpo
(I Co 6.18).
A sexualidade está na essência do nosso ser. Portanto,
castidade não significa não-sexualidade, e qualquer afirmação
desse jaez certamente causará grande malefício. Este é um ponto
muito importante. O sofrimento, em grande parte, que procede da
sexualidade, não vem pela indulgência de pensamentos
impróprios, sentimentos, atitudes e práticas sexuais. Grande parte
procede da abstenção inadequada.
Em nenhum outro aspecto da vida humana, é mais
verdadeiro o provérbio "A esperança que se retarda deixa o coração
doente" (Pv 13.12), e a mente também. Jesus viu claramente que a
abstenção de relações sexuais ainda deixa brecha para grosseiras
impropriedades e distúrbios sexuais alguns dos quais Ele chamou
de "adultério no coração" (Mt 5.28). Jesus sabia que a abstenção
correta era algo que exigia qualificações especiais (Mt 19.11:12).
Paulo seguiu seu Mestre. Ele tinha o mesmo realismo quanto ao
sexo. Por isso ensinou sobre um tipo errado de abstenção quando
escreveu que "é melhor casar-se do que ficar ardendo de desejo" (I
Co 7.9).
Temos de entender que o "arder de desejo" não é uma questão
"interior" trivial, mas algo muito sério em suas implicações. Ele
pode aflorar na vida humana de muitas formas: distorção severa
no pensamento e nas emoções, incapacidade de engajamento em
relações sexuais normais e apropriadas, desgosto e ódio entre
mulheres e homens frustrados, abuso infantil, perversão sexual e
crimes sexuais. A castidade corretamente praticada como parte de
um rico caminhar com Deus pode prevenir enfermidades do
coração e da mente envenenada na vida sexual, na sociedade
moderna.
Dietrich Bonhoeffer faz a seguinte observação: "A essência da
castidade não é a supressão do desejo, mas a total orientação da
vida do indivíduo em direção a um objetivo."
A abstenção saudável na castidade só pode ser suportada
pelo envolvimento amoroso e positivo com membros do sexo
oposto. A alienação abre espaço para a concupiscência nociva.
Esta disciplina deve ser fundamentada na compaixão, em
associação e na disposição de ajudar. Se situação familiar fosse
como deveria ser, um relacionamento íntimo e compassivo entre os
sexos seria o caminho natural de relacionamentos entre mãe e
filho, pai e filha, irmão e irmã. Um estudo recente indica que pais
que cuidam dos filhos, dando banho, alimentando e segurando-os
no colo desde os primeiros dias de vida raramente cometem abuso
sexual com eles. Eles desenvolvem um amor verdadeiro pelos
filhos, e o amor efetivamente evita que causemos mal uns aos
outros. Para praticar a castidade então, devemos, primeiro,
praticar o amor na busca do bem das pessoas do sexo oposto, com
as quais mantemos contato em casa, no trabalho, na escola, na
igreja e na vizinhança. Então seremos livres para praticar a disci-
plina da castidade e extrair apenas resultados positivos dela.
SEGREDO
Na disciplina do segredo – e aqui, novamente, a palavra não é
perfeitamente adequada para nossos propósitos –, nós nos
abstemos de fazer conhecidas nossas boas obras e qualidades.
Faremos tudo para evitar nossa promoção pessoal, desde que não
envolva mentira.
Para aprender a controlar o apetite por fama, aprovação ou a
mera atenção dos outros, precisamos da graça de Deus. No
entanto, quando praticamos esta disciplina, aprendemos a gostar
de ser desconhecidos e até aceitamos ser incompreendidos, sem
perder a paz, a alegria e o propósito. Esta disciplina é importante
como poucas para estabilizar nossa caminhada de fé. Na prática
do "segredo", experimentamos um contínuo relacionamento com
Deus, independente da opinião dos outros. "No abrigo da tua
presença os escondes das intrigas dos homens; na tua habitação o
proteges das línguas acusadoras", afirma o Salmo 31.20.
Tomás de Kempis comenta sobre a "grande tranqüilidade de
coração que vem àqueles que se erguem acima de "louvores e
acusações":
SACRIFÌCIO
Na disciplina do sacrifício, nós nos abstemos da posse ou do
gozo daquilo que é necessário à nossa vida – não, como na
frugalidade, daquilo que é desnecessário ou supérfluo.
Na disciplina do sacrifício, abandonamos a segurança de
suprimento das nossas necessidades. É a auto-entrega total a
Deus. Sacrifício é um passo em direção ao abismo escuro, com fé,
na esperança de que Deus nos sustentará. Abraão conheceu esse
tipo de entrega quando se preparou para sacrificar Isaque. Ele
estava, na verdade, confiando em que Deus iria ressuscitar seu
filho dentre os mortos para cumprir a promessa de linhagem, como
explicado em Hebreus 11.19. A viúva pobre entregou-se ao cuidado
de Deus ao dar uma oferta de sacrifício (Lc 21.2-4). Ela deu mais a
Deus com suas duas moedinhas do que todos os ricos ao seu
redor, que preenchiam seus "cheques" com altas somas dedutíveis
dos impostos.
É estranho que, apesar do sacrifício parecer um serviço, seja
ele uma disciplina. Nossa necessidade de dar é maior do que a de
Deus de receber. O Senhor sempre está bem suprido. No entanto,
o reconhecimento divino do nosso sacrifício é alimento para nossa
fé. A fé cautelosa que jamais corta os apoios aos quais está presa
nunca aprende que, quando não se apóia em nada, pode encontrar
formas estranhas e imprevisíveis de não cair.
Certa vez, quando estudávamos na Universidade de
Wisconsin, minha esposa e eu, depois de pagarmos todas as
contas no início do mês, decidimos dar o dinheiro que sobrou como
uma oferta a determinada pessoa. Não era muito dinheiro, mas
demos assim mesmo. Não dissemos a ninguém. Cerca de uma
semana depois, com grande surpresa, encontramos uma nota de
20 dólares presa ao volante de nosso carro! Com o hambúrguer
custando 39 centavos o quilo, vivemos como príncipes até o mês
seguinte, convencidos de que tínhamos experimentado a provisão
do Rei. Com a disciplina do sacrifício, nós praticamos uma
dimensão diferente da fé e, muitas vezes, nos surpreendemos com
os resultados.
AS DISCIPLINAS DE ENGAJAMENTO
"Levante-se, pegue a sua cama e vá para casa" (Mc
2.11).
ESTUDO
Na disciplina espiritual do estudo, nós nos envolvemos, acima
de tudo, com a Palavra de Deus escrita e falada. Esta é a principal
contrapartida positiva da solitude. Assim como a solitude é a
disciplina primária de abstenção para o início de nossa vida
espiritual, o estudo é a disciplina primária do engajamento.
Nossa experiência inicial com Deus pode ser tão satisfatória a
ponto de negligenciarmos o estudo. No entanto, o relacionamento
com Deus como acontece com qualquer pessoa, logo exige uma
contribuição nossa, que, em grande parte, consiste de estudo.
Calvin Miller observa muito bem: "Místicos sem estudo são apenas
românticos espirituais que desejam relacionamento sem esforço."
Nós já comentamos sobre o uso do estudo bíblico como uma
disciplina, mas nunca é demais voltar a enfatizar este ponto. Eis
aqui o comentário de David Watson sobre os dias antes da cirurgia
para extrair o câncer que no final tirou-lhe vida:
ADORAÇÃO
O estudo sobre Deus, em sua Palavra e outros livros, abre
caminho para as disciplinas da adoração e celebração. Na
adoração, reconhecemos e expressamos, por meio de pensamentos,
palavras, rituais e símbolos, a grandeza, a beleza e a bondade de
Deus. Fazemos isso individualmente e também com o povo de
Deus. Adorar é reconhecer Deus como digno, atribuindo a Ele
grande honra.
Eis aqui um exemplo de adoração: "Tu, Senhor e Deus nosso,
és digno de receber a glória, a honra e o poder, porque criaste
todas as coisas, e por tua vontade elas existem e foram criadas"
(Ap 4.11). Outro exemplo: "Digno é o Cordeiro que foi morto de
receber poder, riqueza, sabedoria, força, honra, glória e louvor...
Àquele que está assentado no trono e ao Cordeiro sejam o louvor, a
honra, a glória e o poder, para todo o sempre!" (Ap 5.12,13).
Quando adoramos desta maneira, dando cuidadosa atenção aos
detalhes das ações de Deus e à sua "dignidade", Aquele a quem
adoramos entra em nossa mente e coração, aumenta nossa fé e
nos fortalece para sermos como Ele é.
Na adoração, o próprio Deus vem ao nosso encontro, e nossos
pensamentos e palavras se voltam para a percepção e experiência
dele. Deus então realmente está presente em nós em grandeza,
beleza e bondade. Isso causa uma mudança imediata e dramática
em nossa vida. Aconteceu com Isaías. Uma vez, durante a
adoração, Isaías viu o Senhor "assentado num trono alto e
exaltado, e a aba de sua veste enchia o templo"; o Senhor estava
cercado pelos serafins que gritavam uns para os outros: "Santo,
Santo, Santo é o Senhor dos Exércitos, a terra inteira está cheia da
sua glória" (6.1-3). Isso já aconteceu com muitas outras pessoas.
De qualquer forma, o encontro divino direto não é essencial
para a verdadeira adoração, a qual também pode ocorrer fora do
contexto da adoração deliberada, como aconteceu com Elias,
Ezequiel e Paulo. Adoração é a nossa parte, apesar de ser
divinamente assistida; portanto, pode ser uma disciplina para a
vida espiritual.
Falando em termos práticos, a adoração cristã é mais
proveitosa quando centralizada em Jesus Cristo e por seu
intermédio chega a Deus. Quando adoramos, enchemos nossa
mente e coração com o assombro do Senhor Jesus – as ações
detalhadas e palavras de sua vida terrena, seu julgamento e morte
na cruz, a realidade de sua ressurreição, ascensão e obra como
intercessor no céu. Aqui, nas palavras de Alberto Magno (morto em
1280), nós "encontramos Deus por meio do próprio Deus; quer
dizer, passamos da Varonilidade para a Divindade, das feridas da
humanidade para as profundezas de sua divindade". Há tanto a
ser feito na adoração que nós jamais terminamos. Quando
adoramos, nossa vida é inundada com a bondade de Deus.
O traficante de escravos convertido, John Newton, compôs
este hino de adoração:
CELEBRAÇÃO
Embora ignorada e mal entendida, a celebração é uma das
mais importantes disciplinas de engajamento. Ela é a
complementação da adoração, pois se baseia na grandeza de Deus
conforme revelada em sua bondade para conosco. Nós nos
engajamos na celebração quando nos alegramos em nós mesmos,
em nossa vida e no nosso mundo, em conjunção com nossa fé e
confiança na grandeza, beleza e bondade de Deus. Nós nos
concentramos em nossa vida e nosso mundo como obras de Deus e
como presentes dele para nós.
Tipicamente, significa que nos reunimos com outras pessoas
que conhecem a Deus, para comer e beber, cantar e dançar, e para
relatar histórias das ações de Deus em nossa vida e na vida do seu
povo. Miriã (Êx 15.20), Débora (Jz 5) e Davi (2 Sm 6.12-16) são
exemplos bíblicos vívidos de celebração, assim como o primeiro
milagre público de Jesus no casamento em Caná (Jo 2) e os
períodos de festas do povo de Israel. A celebração foi mantida pela
Igreja nos seus dias de festas estabelecidos até a era protestante e
continua hoje nas Igrejas Católica Romana e Ortodoxa.
Alegria e deleite santos são o grande antídoto para o
desespero e uma fonte de genuína gratidão que começa nos nossos
pés e irrompe pelo nosso corpo todo, até o alto de nossa cabeça,
arremessando-nos por completo na direção do nosso bom Deus.
O caráter surpreendente, sensual e terreno da celebração, ou
júbilo, em nenhum outro lugar é mais claramente retratado do que
nas instruções de Deuteronômio 14. Ali, o dízimo dos produtos
agrícolas devia ser usado numa festa diante do Senhor, numa
viagem de férias até a grande cidade de Jerusalém. Se os
indivíduos morassem longe demais dessa cidade e não
conseguissem levar até lá seus produtos, estes deviam ser
vendidos e o dinheiro levado a Jerusalém, onde (você está pronto
para ouvir isso?) podiam "comprar" o que quisessem: bois, ovelhas,
vinho ou outra bebida fermentada, ou qualquer outra coisa que
desejassem. Então, juntamente com suas famílias, e os levitas
inclusive, comiam e alegravam-se ali, na presença do Senhor, o
seu Deus (14.26,27). Convém dizer que a "bebida fermentada"
mencionada não era refrigerante! Não obstante, o ponto importante
desse exercício era: "Aprendam a temer sempre o Senhor, o seu
Deus" (14.23).
O livro de Eclesiastes contém admoestações similares. Por
exemplo:
"Assim, descobri que, para o homem, o melhor e o
que mais vale a pena é comer, beber, e desfrutar o
resultado de todo o esforço que se faz debaixo do sol
durante os poucos dias de vida que Deus lhe dá, pois
essa é a sua recompensa. E quando Deus concede
riquezas e bens a alguém e o capacita a desfrutá-los,
a aceitar a sorte e a ser feliz em seu trabalho, isso é
um presente de Deus. Raramente essa pessoa fica
pensando na brevidade de sua vida, porque Deus o
mantém ocupado com a alegria do coração" (Ec 5.18-
20; veja também 2.24 e 3.12-23).
SERVIÇO
Pelo serviço, nós engajamos nossos bens e forças na
promoção ativa do bem dos outros e da causa de Deus no mundo.
Aqui temos de fazer uma importante distinção. Nem todo ato que
pode ser feito como uma disciplina precisa ser feito como uma
disciplina. Muitas vezes, eu serei capaz de servir a outras pessoas
simplesmente como um ato de amor e de justiça, sem considerar
como isso pode melhorar minha habilidade de seguir a Cristo.
Certamente não há nada de errado com isso, e pode até fortalecer
minha vida espiritual. Mas eu posso também servir a outras
pessoas para me afastar da arrogância, do egoísmo, da inveja, do
ressentimento e da cobiça. Neste caso, meu serviço é empreendido
como uma disciplina para a vida espiritual.
Tal disciplina é muito útil àqueles cristãos que se encontram
– como muitos – em posições "inferiores" na sociedade, no trabalho
e na igreja. Só isso pode nos treinar em hábitos de serviço amoroso
aos outros e nos livrar do ressentimento, capacitando-nos a nos
alegrar (pela fé) em nossa posição e trabalho por causa do seu
significado exaltado diante de Deus.
De forma paradoxal, o serviço é a auto-estrada para a
liberdade da escravidão a outras pessoas. Nele, como Paulo
percebeu, deixamos de "agradar aos homens" e de ser "servos dos
olhos", pois estamos agindo em Deus em nossas obras mais
inferiores: "Escravos, obedeçam em tudo a seus senhores terrenos,
não somente para agradá-los quando eles estão observando, mas
com sinceridade de coração, pelo fato de vocês temerem o Senhor.
Tudo o que fizerem, façam de todo o coração, como para o Senhor,
e não para os homens, sabendo que receberão do Senhor a recom-
pensa da herança. É a Cristo, o Senhor, que vocês estão servindo"
(Cl 3.22-24).
Será que este princípio pode ser aplicado por uma mãe de
seis filhos pequenos que tem de deixá-los sozinhos numa
vizinhança perigosa para fazer limpeza em escritórios à noite e
assim poder sustentá-los? É aplicável pelo refugiado da América
Central que empurra seu carrinho de sorvete pelas ruas, tocando o
sino enquanto vai adiante?
Embora o evangelho do Reino de Deus não proporcione a
mínima sombra de justificativa para que os crentes afortunados
não façam tudo o que puderem para ajudar os pobres, se essas
pessoas ouviram e receberam de coração o evangelho, este
princípio, na verdade, deve ser aplicado por eles. Deus só pode
abençoar as pessoas onde elas estão. Somente o ensino claro e o
exemplo, com muita prática na disciplina do serviço, podem nos
fortalecer neste assunto.
No entanto, eu creio que a disciplina do serviço é mais
importante para os cristãos que se encontram em posições de
influência, poder e liderança. Viver como servo enquanto
desempenha papéis socialmente importantes é um dos grandes
desafios que qualquer discípulo pode enfrentar. Isso é mais difícil
porque a igreja não oferece um treinamento especial para pessoas
engajadas nesses papéis e, insensatamente, segue o modelo do
mundo considerando tais pessoas como "formadas". A igreja, às
vezes, até considera as pessoas qualificadas para falar como
autoridades na vida espiritual por causa do sucesso delas no
mundo.
Algumas das coisas mais importantes que Jesus disse se
relacionavam à forma como os líderes tinham de viver:
ORAÇÃO
Oração é comunicação com Deus. É conversar com Ele.
Quando oramos, falamos com Deus, seja em voz alta ou em
pensamento. Para que funcione bem, a oração envolve outras
disciplinas e atividades espirituais:estudo, meditação e adoração.
Muitas vezes, também solitude e jejum.
A vida espiritual seria um empreendimento de baixa voltagem
se a oração fosse principalmente empreendida como uma
disciplina, e não como um meio de colaborar com Deus para
realizar boas coisas e promover os propósitos do seu Reino. Mesmo
assim, a oração pode ser uma disciplina altamente efetiva,
conforme vemos no conselho do Senhor àqueles que estavam com
Ele no Getsêmani: "Vigiem e orem para que não caiam em
tentação".
De fato, os efeitos indiretos da oração em nossa vida são tão
óbvios e tocantes que às vezes são erroneamente tratados como o
único elemento da oração. Mesmo quando o assunto de nossa
oração não é nossa necessidade espiritual e nosso crescimento,
conversar com Deus, ainda assim, tem um efeito amplo de
fortalecimento espiritual de todos os aspectos de nossa
personalidade. A oração verdadeira deixa uma impressão indelével
em nossa mente e uma consciência vívida e permanente de Deus.
O. Hardman descreve muito bem como aquele que está
imerso na oração encara o mundo de políticas absurdas, de luta
por privilégios e segurança, de suspeitas, ingratidão e resistência
ao bem:
COMUNHÃO
Na comunhão, nós nos engajamos nas atividades comuns de
adoração, estudo, oração, celebração e serviço com outros
discípulos. Ela pode envolver grandes grupos ou apenas umas
poucas pessoas. Pessoas unidas podem conter mais de Deus e
sustentar a força de sua presença de modo mais efetivo do que
indivíduos isolados. O fogo de Deus queima mais alto quando a
lenha é empilhada e cada uma sente a chama da outra. Os mem-
bros do corpo devem estar em contato a fim de sustentarem-se uns
aos outros. A redenção cristã não foi projetada para ser algo
solitário, embora cada indivíduo tenha um relacionamento único e
direto com Deus e Ele, e apenas Ele, seja o Senhor e Juiz de cada
um e de todos. No entanto, a Vida exige certa conjunção regular e
profunda com outros que a compartilham. Ela diminui
grandemente quando falta comunhão.
Os diversos dons ou graças do Espírito são distribuídos entre
os membros individuais do corpo de Cristo, a Igreja. A unidade do
corpo – funcionando corretamente – é garantida pela reciprocidade
de necessidades e ministérios. Não há "se" ou "talvez", ou "não faça
se não quiser". É como as coisas de fato funcionam na nova vida.
CONFISSÃO
Confissão é uma disciplina que funciona dentro da
comunhão. Nela, permitimos que pessoas confiáveis conheçam
nossas fraquezas mais profundas e nossas falhas. Isso nutre nossa
fé na provisão de Deus para nossas necessidades por meio do seu
povo, nosso senso de ser amado e nossa humildade diante de
nossos irmãos. Assim permitimos que alguns amigos em Cristo
saibam quem somos na verdade, não retendo nada importante,
mas procurando manter a máxima transparência. Deixamos de
carregar o peso de esconder e fingir, que normalmente absorve
uma quantidade espantosa de energia, e engajamo-nos
mutuamente nas profundezas da alma.
A igreja do Novo Testamento parece ter admitido que, se um
irmão tivesse alguma enfermidade ou estivesse passando por
qualquer aflição, a situação poderia ser motivada por um pecado,
que separava a pessoa do pleno fluir da vida redentora. Assim, a
Epístola de Tiago (5.16) diz: "Confessem os seus pecados uns aos
outros e orem uns pelos outros para serem curados. A oração de
um justo é poderosa e eficaz. "Temos de aceitar o fato de que um
pecado inconfesso é um tipo especial de jugo ou obstrução na
realidade psicológica e física do cristão. A disciplina da confissão e
do perdão remove este jugo.
A confissão também ajuda a evitar o pecado. Provérbios 28.13
diz que "quem esconde os seus pecados não prospera, mas quem
os confessa e os abandona encontra misericórdia". Obviamente,
"confessar" ajuda a "abandonar", pois persistir num pecado dentro
de um círculo íntimo de relacionamentos (sem mencionar a
comunhão no corpo transparente de Cristo) é insuportável. Dizem
que a confissão é boa para a alma mas ruim para a reputação; e
que uma má reputação torna a vida mais difícil em relação às
pessoas mais próximas, isso todos nós sabemos. No entanto,
proximidade e confissão nos forçam a manter uma distância do
mal. Nada oferece melhor suporte para o comportamento correto
do que a verdade aberta.
Abrir a alma para um amigo cristão maduro ou um ministro
qualificado capacita essa pessoa a orar por problemas específicos e
fazer coisas que podem ser úteis à redenção daquele que está
confessando. Somente a confissão torna possível a comunhão
profunda, e a falta dela explica muito da superficialidade
encontrada nas igrejas. O que torna a confissão suportável? A
comunhão. Há uma reciprocidade essencial entre as duas
disciplinas.
Onde há confissão dentro de uma comunidade, a restituição
não pode ser omitida e também serve como uma poderosa
disciplina. É difícil não retificar os erros, uma vez que são
confessados e conhecidos. É evidente que nem todo pecado exige
restituição. Contudo, é inconcebível que eu sinceramente confesse
a meu irmão que roubei sua carteira ou manchei sua reputação e
depois siga alegremente meu caminho sem tentar fazer alguma
coisa em relação ao que foi perdido.
Em geral, nossa integridade inata (uma força dentro de nossa
personalidade) exige restituição. Freqüentemente, não é uma
experiência muito agradável, mas de fato fortalece nossa vontade
de fazer a coisa certa.
A confissão é uma das disciplinas mais poderosas para a vida
espiritual. No entanto, com facilidade, pode haver abusos; e o seu
uso efetivo requer considerável experiência e maturidade, tanto por
parte do indivíduo envolvido como da liderança do grupo – o que
nos leva à última disciplina.
SUBMISSÃO
O mais alto nível de comunhão – que envolve humildade,
completa honestidade, transparência e às vezes confissão e
restituição - é sustentado pela disciplina da submissão.
O livro de Hebreus (13.17) diz: "Obedeçam aos seus líderes e
submetam-se à autoridade deles. Eles cuidam de vocês como quem
deve prestar contas. Obedeçam-lhes, para que o trabalho deles
seja uma alegria e não um peso..." Em I Pedro (5.2,3), os mais
antigos no Caminho são instruídos a pastorear o rebanho de Deus,
não como obrigação nem como dominadores dos que lhes foram
confiados, mas como exemplos para o rebanho. Os mais novos são
instruídos a se submeterem a essa gentil liderança, e todos são
mantidos juntos como uma comunidade em submissão mútua: "No
trato de uns com os outros, cingi-vos todos de humildade, porque
Deus resiste aos soberbos, contudo, aos humildes concede a sua
graça" (1 Pe 5.5, ARA; veja também Ef 5.21).
A ordem na comunidade redimida não é uma questão de
hierarquia férrea na qual almas indispostas são esmagadas. Ao
contrário, ela funciona no poder da verdade e da misericórdia que
habita nas personalidades maduras, sendo a expressão do Reino
que não é deste mundo (Jo 18.36). De outra forma, a Igreja
adotaria o modelo de um governo puramente humano.
Infelizmente, vemos isso acontecendo em tentativas equivocadas de
algumas comunidades cristãs. O Caminho de Jesus não conhece a
submissão fora do contexto da submissão mútua, de todos para
com todos (Ef 5.21; Fp 2.3).
A submissão é um pedido de socorro àqueles reconhecidos
como capazes de ajudar por causa da sua profunda experiência e
semelhança com Cristo – porque realmente são "anciãos" no
Caminho. Na submissão, nós nos engajamos na experiência
daqueles em nosso convívio que são qualificados para orientar
nossos esforços para o crescimento e que, assim, acrescentam o
peso de sua sábia autoridade ao nosso espírito disposto, ajudando-
nos a fazer as coisas que gostaríamos de fazer e a nos guardar
daquilo que não queremos fazer. Eles supervisionam a ordem
piedosa em nossa alma, bem como em nossa comunhão, e no
corpo de Cristo em geral.
No entanto, essas pessoas "sábias", em quem podemos
confiar, não olham para si mesmas como "líderes". O exemplo que
elas dão e ao qual nos submetemos é o de sua própria submissão e
da disposição delas em servir às pessoas. Este é o aspecto da
verdadeira liderança; não é domínio, conforme prevalece na
sociedade secular e em algumas igrejas, onde aqueles que estão no
"controle" não conhecem como é verdadeiramente bendita esta livre
"ordem que se encontra nas beatitudes".
Este é o começo do Reino "cortado sem auxílio de mãos" (Dn
2.34). Esse Reino no tempo oportuno encherá a Terra e
transformará os reinos deste mundo no Reino de nosso Deus e do
seu Cristo!
POBREZA E INJUSTIÇA
Poucas pessoas no mundo são ricas e poderosas. Muitas são
pobres e fracas. Alguns ricos, muitas vezes, lesam ativamente o
próximo, no processo de aquisição ou de manutenção da riqueza.
Outros lesam o próximo permitindo que sofra, em vez de
compartilhar com ele o que têm. Há uma clara desigualdade na
distribuição dos bens necessários à vida, e grande parte dessa
desigualdade é um reflexo da injustiça. Todos nós sabemos muito
bem disso.
Ademais, os ricos persistem em utilizar mal suas riquezas, de
muitas formas. Por exemplo, vivem num luxo imoral e exploram os
mais pobres, ou investem o dinheiro de tal maneira a beneficiar
práticas perniciosas e pessoas perversas. Muitos ricos buscam a
riqueza, confiam nela e servem a ela em prejuízo do corpo, da alma
e dos seus entes queridos.
Os problemas causados pela riqueza e pela pobreza na vida
humana não dizem respeito somente à teologia ou à ética social e
pessoal. Eles chegam até os alicerces da ordem social. Falamos de
"economia" empregando termos técnicos incompreensíveis, mas
são as questões econômicas que abrem a porta para os regimes
mais repressivos e sanguinários, tanto de Direita como de
Esquerda.
Esses regimes oferecem "soluções" que exigem a morte de
milhões de pessoas – cerca de dez milhões nas mãos dos nazistas,
dez milhões na Ucrânia, três milhões no Camboja. No mundo
moderno, os argumentos primários de tais regimes são
principalmente econômicos – justiça econômica ou igualdade é o
alvo declarado. Em algum ponto, porém, as considerações
"econômicas" são transformadas em ruína ou aniquilação de vidas
humanas. As vezes isso se deve ao "bem e à ordem"; outras vezes,
à promoção dos "requerimentos da revolução".
Isso posto, é fácil ver porque muitas pessoas tacham a
riqueza em si como má e a posse de bens materiais como
essencialmente errada. Elas entendem que a riqueza e os ricos
estão contra Deus. Um erudito da estatura de Alastair MacIntyre
fez o seguinte comentário superficial: "O Novo Testamento
claramente vê o rico como destinado às dores do inferno." Padre
Ernesto Cardenal, um sacerdote católico e ministro da Cultura no
governo sandinista da Nicarágua, interpreta as palavras de Cristo
como se Ele estivesse dizendo "que o rico jamais poderá entrar no
Reino de Deus". Creio que essas figuras bem conhecidas estão
apenas dizendo em voz alta o que a maioria das pessoas com
consciência social considera como o ensino cristão.
O ENGANO DA RIQUEZA
É claro que a riqueza é enganadora (Mt 13.22). Na ausência
de uma vida cristã autêntica, a riqueza cria na maioria das
pessoas uma ilusão de segurança e bem-estar que faz com que
confiem em si mesmas, e não em Deus "que de tudo nos provê
ricamente, para a nossa satisfação" (I T m 6. I 7). Aqueles que são
apanhados por essa ilusão certamente se tornarão servos do
dinheiro (de Mamom), e não de Deus (Mt 6.24, ARC). E eles
acharão isso apenas uma questão de bom senso.
Podemos afirmar com segurança que muitas pessoas ricas
realmente confiam e servem a Mamom. Por isso Jesus afirmou:
"Como é difícil aos ricos entrar no Reino de Deus!" (Mc 10.23). Isso
não se deve, porém, apenas ao poder que a riqueza tem de desviar;
mas é causado também pela falha da Igreja em alcançar os ricos
com as boas novas da sua oportunidade de viver sob o governo
Deus.
Em qualquer caso, as desilusões causadas pela posse de bens
materiais não podem ser evitadas por não se ter nada. Não
precisamos possuir as coisas para amá-las, confiar nelas e até
servi-Ias. A porcentagem daqueles que vivem presos aos bens não
é maior entre os ricos do que entre os pobres. Não é o dinheiro ou
o lucro, mas o amor a essas coisas que Paulo menciona como
sendo a raiz de todos os males (I Tm 6.10). E, muitas vezes,
ninguém ama o dinheiro de forma mais intensa e desproporcional
do que aqueles que não o possuem. Temos de ter essas coisas bem
claras em nossa mente quando abordamos o relato sobre o "jovem
rico" nos evangelhos. Esse texto muitas vezes é usado para exaltar
a pobreza (ou pelo menos a idéia de que temos de dar tudo o que
temos) como um requisito do cristianismo "realmente sério".
COLHENDO TEMPESTADE
Muitos dos conselhos e análises do livro de Provérbios
previnem contra a "ira", uma forma fundamental e bem complexa
do mal. "A ira do insensato num instante se conhece" (12.16, ARA),
mas "o homem paciente dá prova de grande entendimento" (14.29).
Medo e ira se misturam para formar a resposta automática geral
do "ser humano normal e decente" a qualquer pessoa ou evento
que ameace sua segurança, status ou satisfação. Uma vez que tal
resposta irrompe, todas as outras tendências para o mal no ser
humano entram em contagem regressiva, prontas para seguir seu
curso se nada for feito para desativá-las ou reprimi-las. Isso,
porém, em geral, não acontece até que o dano seja feito,
estabelecendo novos ciclos de reação de ira. Como costumamos
dizer corretamente, "todo o inferno está solto". É para prevenir este
processo que somos aconselhados a sermos prontos para ouvir,
tardios para falar e tardios para nos irar (Tg 1.19,20). Uma vez que
a palavra com sua carga de ira é liberada, o processo maior de
maldade é colocado em movimento. O pequeno detonador aciona o
projétil ou a bomba. Assim, semeamos vento e colhemos
tempestade (Os 8.7).
O nível dessa "prontidão" mortal para cometer maldade em
todas as suas formas varia de indivíduo para indivíduo, mas é bem
elevado em quase todas as pessoas. Não se trata apenas de uma
possibilidade abstrata, mas de uma tendência genuína,
constantemente em operação. Não é preciso muito, por exemplo,
para que a maioria das pessoas minta ou pegue aquilo que não lhe
pertença; é uma vergonha que seja preciso tão pouco para que se
pense como seria bom se determinada pessoa morresse. Assim, se
em nossa vida não formos protegidos por uma confiança de todo o
coração no cuidado constante e efetivo de Deus por nós, essa
"prontidão" para o mal será constantemente manifesta. Quando
agimos, outras pessoas à nossa volta irão reagir. Aí reagimos a
elas, e assim vai, até que nós e os outros ficamos atordoados pela
consciência dos desastres em espiral.
Diariamente podemos observar essas espirais descendentes
em todos os níveis da vida; das relações internacionais até o
indivíduo trancado em sua pequena cela personalizada de atitudes
erradas e sofrimento. Somente a graça comum de Deus para
conosco, a presença do Espírito Santo no mundo e a Igreja
constituída evitam que nossa vida cotidiana, à beira do vulcão da
prontidão para o mal, seja insuportavelmente pior.
Uma vez que percebemos que as pessoas estão "prontas" para
fazer o mal, nós nos surpreendemos menos por elas
ocasionalmente cometerem maldades grosseiras do que pelo fato
de não fazerem isso com maior freqüência. Ficamos
profundamente gratos porque algo nos refreia, impedindo-nos de
fazer tudo aquilo que temos no coração.
O ANSEIO POR MUDANÇA: METANÓIA
Nós temos de mudar a partir do interior. E é isso que a
maioria das pessoas realmente gostaria. O arrependimento
mediante o qual desejamos que nossa vida e nosso mundo sejam
realmente diferentes – a autêntica metanóia que Cristo preconiza
no Evangelho (Mc 1.15; 6.12) – vem sobre nós quando temos uma
visão da majestade, santidade e bondade de Deus. É uma visão
suficiente para transmitir uma conscientização viva de nossa
terrível capacidade de quebrar a confiança em Deus, ferir as
pessoas e a nós mesmos ao tomarmos as coisas em nossas
próprias mãos. Esta consciência pungente de nossa condição
silencia todos os argumentos e racionalizações. Ao mesmo tempo,
nos impele para Deus, porque reconhecemos que Ele também nos
vê como somos, e, apesar disso, podemos buscar ajuda e refúgio
nele.
Simão Pedro foi um pescador experiente, que conhecia bem
seu trabalho. Certa manhã, depois de usar o barco de Pedro como
púlpito, Jesus desejou pagar pela utilização e aconselhou que
fossem "para onde as águas eram mais fundas e lançassem as
redes para a pesca" (Lc 5.4). Pedro replicou que não havia
cardumes por ali, que haviam tentado durante toda a noite sem
apanhar nada. No entanto, com um "és tu quem estás dizendo",
recolocou as redes no barco e obedeceu. As redes foram lançadas
na água e afundaram, trazendo a seguir uma quantidade tão
grande de peixes que começaram a se romper. Os tripulantes do
barco pediram ajuda aos tripulantes de outro barco, e logo os dois
barcos estavam tão cheios de peixes que corriam o risco de
afundar.
Em determinado momento, uma conscientização tomou a
mente de Pedro. De quem fora a sugestão que ele tratara de forma
tão casual? Ele literalmente se prostrou aos pés de Jesus, dizendo:
"Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um homem pecador" (Lc
5.8). Pedro sentia-se esmagado ao ver quanto Jesus era "diferente".
fundamentalmente, santidade significa diferença ou separação da
esfera ordinária da existência humana, onde acreditamos que
sabemos o que está acontecendo. É a idéia de "algo mais" na
terminologia corrente. Pedro estava dizendo: "Senhor, tu és to-
talmente diferente de mim! Como podes, estar perto de mim?" Este
"algo mais" apresentado em Jesus e seu evangelho deixa claríssimo
que somos algo lamentavelmente "menos". É este senso doloroso
que quebra nosso orgulho e auto confiança e nos faz almejar ser
discípulos.
Quando Isaías "viu o Senhor" enchendo o templo de
majestade, e os serafins proclamando sua santidade e glória (6.1-
3), viu ao mesmo tempo também a si próprio como totalmente
inadequado e excluído: "Sou um homem de lábios impuros e vivo
no meio de um povo de impuros lábios; e os meus olhos viram o
Rei, o Senhor dos Exércitos!" O profeta viu a "extrema malignidade
do pecado" (Rm 7.13) e a condição deplorável dos seus lábios, o
principal veículo do mal na vida humana. Ele foi preparado para
que seus lábios fossem queimados com fogo do altar devido à sua
condição precária (Is 6.7). Isaías compreendeu plenamente por que
a vida humana é como é. Contra o pano de fundo de como é Deus,
ele viu como ele próprio era. E ele foi " queimado" para ser
diferente. Pessoas que se submetem a tal arrependimento podem
facilmente entender a prontidão para o mal em todos nós.
O MAR AGITADO
O que os indivíduos estão prontos a fazer, o que há dentro
deles pronto a irromper, explica parcialmente por que as pessoas
fazem as coisas que fazem. Elas estão programadas para fazer o
que fazem. Há uma "presença real" do mal pouco abaixo da
superfície de toda ação e transação humana. A magnitude do mal
nas obras humanas é um resultado também das estruturas
institucionais ou práticas comuns que emergem na sociedade:
política, artes, negócios, jornalismo, educação, vida intelectual,
governo, relações sexuais e familiares, esportes e entretenimento.
Este é o nosso "sistema". Uma mulher que ganha meio milhão
de dólares por ano em Wall Street é "mais aceita" por seus colegas
se usar cocaína; por isso, ela se submete a essa prática do
ambiente que a cerca, quando este manipula seus desejos (Tg
1.14). Outra mulher avança em sua carreira como atriz, estando
apropriadamente "disponível" para os homens que tomam as
decisões. Um empreiteiro pode lucrar mais comprando materiais
de qualidade inferior e subornando um fiscal "compreensivo". Um
trabalhador é excluído do treinamento em técnicas avançadas
porque é índio. Um professor é influenciado em sua pós-graduação
pela necessidade de ter muitos alunos ou manipula dados para
conseguir concessões, escrever livros e conseguir vantagem sobre
os colegas. Uma jovem negra não pode conseguir notas boas o
bastante para entrar na faculdade porque a escola secundária
onde estuda não recebe ajuda do governo. Um pastor compromete
sua imagem e pregação cedendo às inclinações dos seus ouvintes
"mais importantes", para ter o apoio deles e progredir na sua
carreira.
As estruturas sociais exibidas em tais casos não estão,
estritamente falando, nos indivíduos, mas no mundo onde
vivemos, embora sua existência e poder dependam totalmente da
prontidão que há em nós individualmente. Os males estruturais
são práticas – explicitamente formuladas ou não – aceitas e
aplicadas por outros no contexto de nossas ações.
No entanto, nenhum desses males teria lugar se os Dez
Mandamentos (Êx 20) e os grandes princípios de amor a Deus e ao
próximo (Mt 19.3740) fossem observados. Desnutrição, guerra,
opressão, luta de classes, explosão demográfica, crime, violência e
conflitos familiares deixariam finalmente de ser lugar-comum,
porque os indivíduos não só não cooperariam para o seu
crescimento como tomariam medidas contra eles.
O PROBLEMA PRÁTICO
Do ponto de vista prático, o problema radical concernente às
estruturas de poder deste mundo, dado o nosso próprio medo,
orgulho, cobiça, ganância, inveja e indiferença, é: Como
transformar o caráter humano do seu estado de prontidão para
desprezar a Deus e ferir outras pessoas? Como desenvolver
estruturas de relações humanas na família e na sociedade que não
promovam nem favoreçam o mal? A mudança individual é a
resposta, apesar de muitos acreditarem fortemente que a resposta
está nas mudanças sociais.
Não estou sugerindo que todas as formas de instituição social
são igualmente boas ou ruins, ou negando que devamos lutar
pelos melhores contratos culturais, educacionais, econômicos,
legais, políticos, sociais e religiosos nas questões humanas.
Também não nego que a prontidão para o mal no indivíduo tem
como causa imediata o contexto social no qual a pessoa nasce e se
desenvolve. Disso inferem alguns, como J.J. Rousseau, que o
controle do mal sobre a humanidade pode ser quebrado pela sim-
ples mudança nos contratos sociais e econômicos sob os quais
vivemos.
Certamente, como mostra a História, algum bem pode ser
realizado mediante mudanças desse tipo. No entanto, o fracasso
das mudanças estruturais como uma estratégia total para se lidar
com o mal do coração humano nas dimensões individuais e sociais
é poderosamente demonstrado pelas muitas "revoluções" que
ocorreram nos séculos XIX e XX, nas quais um opressor foi
substituído por outro, no curso de rios de sangue. O dito popular:
"Quanto mais as coisas mudam, mais elas permanecem iguais ao
que sempre foram!" é totalmente apropriado – em face das
revoluções políticas ou sociais e à luz das "soluções" fantasiosas.
O. Hardman destaca que as épocas nas quais os cristãos
praticaram mais intensamente as disciplinas para o Reino de Deus
foram em geral tempos em que as condições sociais foram
grandemente modificadas para melhor. No entanto, ele acrescenta:
O SISTEMA DE JUÍZES
Há um modelo para esta organização social. O padrão da
organização social adequada à natureza humana e à sociedade sob
o governo de Deus foi prefigurado no sistema de "juízes"
introduzido nos primórdios da nação de Israel. Moisés tentou
aconselhar, dirigir e ajudar todo o povo naquilo que cada pessoa
precisasse. Este é o papel muitas vezes assumido pelo governo.
Entretanto, houve (e há) um limite na própria natureza dos re-
lacionamentos humanos para o que uma pessoa pode fazer em
favor da ordem social e das necessidades individuais – mesmo
quando a pessoa está intimamente ligada a Deus.
Assim, Moisés foi aconselhado por seu sábio sogro a "escolher
dentre todo o povo homens capazes, tementes a Deus, dignos de
confiança e inimigos de ganho desonesto" (Êx 18.21). Dentre esses
homens, alguns foram colocados para liderar grupos de mil, outros
foram colocados sobre grupos de cem, outros sobre grupos de
cinqüenta e alguns sobre dez pessoas, para "julgarem" o povo
conforme a necessidade, trazendo. a Moisés somente as questões
extremamente importantes. Moisés tomou "homens sábios, cheios
de entendimento e respeitados", escolhidos dentre as várias tribos
de Israel, e os nomeou para os vários níveis de julgamento.
Eis aqui a descrição da tarefa que Moisés lhes deu: "Atendam
as demandas de seus irmãos e julguem com justiça não só as
questões entre os seus compatriotas mas também entre um
israelita e um estrangeiro. Não sejam parciais no julgamento!
Atendam tanto o pequeno como o grande.Não se deixem intimidar
por ninguém, pois o veredicto pertence a Deus. Tragam-me os
casos mais difíceis, e eu os ouvirei."
A genialidade desse sistema é enorme. Ele maximiza as
possibilidades do indivíduo de responder e assumir
responsabilidades sobre outros indivíduos dentro da comunidade
sob o governo de Deus. O primeiro nível de liderança era
responsável pela supervisão de dez indivíduos. Sem dúvida,
significava dez homens com suas famílias. O segundo nível (juízes
sobre cinqüenta) tratava diretamente apenas sobre cinco
indivíduos (os juízes do primeiro nível) e o terceiro nível tratava
diretamente com dois indivíduos (os juízes do segundo nível). As
possibilidades de conselho, orientação e entendimento efetivo, bem
como o cuidado com as necessidades das pessoas, eram
apropriados à natureza humana – necessidades essas tão
desesperadamente negligenciadas em nossa sociedade moderna!
Há muitas razões para crermos – no contexto da vida no
Antigo Testamento – que este sistema devia ser praticado como a
atitude de vizinhos atenciosos e amorosos que viviam inteiramente
dentro da letra e do espírito dos Dez Mandamentos e em todo
conselho de Deus para o povo israelita. Aqueles que "saíam da
linha" eram trazidos de volta mediante o esforço, a persuasão e o
exemplo do "juiz de dez", que era um vizinho no sentido mais
literal, ou com a cooperação daqueles que estavam acima dele,
caso houvesse necessidade. Necessidades legítimas dos indivíduos
seriam conhecidas e supridas com os recursos da comunidade,
enquanto todos viviam com a consciência da provisão de Deus.
"Julgar" era garantir que a justiça estava sendo feita na
comunidade, que as coisas estavam como deviam estar.
Certamente esse sistema jamais funcionou de forma perfeita –
como acontecia com todo o sistema mosaico de legislação – devido
às falhas dos indivíduos que ocupavam posições de autoridade e
de liderança. Os líderes de Israel, como de todas as nações desde
então, constituíam uma quase ininterrupta série de ilustrações de
como o poder libera a corrupção do coração humano. Isso revela
que não é como diz a bem conhecida afirmação de lorde Acton: "O
poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente",
mas, sim, que o poder torna a corrupção aparente, e o poder
absoluto torna a corrupção absolutamente aparente. Tomás de
Kempis estava certo ao escrever: "A ocasião não faz o homem cair,
mas mostra o que o homem é."
A História aguarda Cristo e cristãos segundo o seu caráter
para que o sistema de juízes possa se tornar uma realidade social
funcional e os reinos deste mundo se tornem o Reino do nosso
Deus e do seu Cristo, como a pedra cortada sem ajuda de mãos
que encherá toda a terra (Dn 2).
Em relação ao nosso mundo de hoje, não precisamos pensar
em termos de correspondência exata, em números, e o arranjo
hierárquico exato estabelecido por Moisés. O ponto essencial,
contudo, não pode ser perdido de vista. As coisas darão certo na
vida e na sociedade humanas somente quando pessoas "capazes,
tementes a Deus, dignas de confiança e inimigas de ganho
desonesto" (Êx 18.21) forem adequadamente distribuídas e
posicionadas para garantir que se faça justiça.
A justiça não pode prevalecer enquanto não houver um
número suficiente de pessoas adequadamente equipadas com o
caráter e o poder de Cristo, distribuídas, como no modelo mosaico,
por toda a sociedade, sob o governo de Deus, para assegurar o
cumprimento, sempre, do que seja bom e certo. Tais pessoas são
"vasos para honra, santificados e idôneos para uso do Senhor, e
preparados para toda boa obra" (2 Tm 2.21). Somente então a
fraternidade, a justiça, o bem-estar e, conseqüentemente, a paz
prevalecerão na terra.
Será que isso é possível?
Não creio que isso seja um mero sonho ou uma ilusão
desesperada. Precisamos entender como as disciplinas se
combinam com a graça na personalidade humana. Há uma forma
de vida que, se adotada, eliminaria todos os problemas sociais e
políticos que sofremos. Esta forma de vida vem para os discípulos
sinceros de Cristo que vivem as disciplinas da vida espiritual,
permitindo que a graça alinhe seus corpos com seus espíritos
redimidos.
DE MOISÉS A JESUS
A ordem instituída por Moisés foi praticada até a instituição
da monarquia em Israel (I Samuel 8). O período dos "Juízes" foi
aquele no qual Israel esteve sem governo, como a palavra é
geralmente entendida, e "cada um fazia o que lhe parecia certo" (Jz
17.6; 21.25). Havia uma hierarquia, visível na forma de "anciãos",
os quais se sentavam em algum lugar público, tal como o portão de
entrada da cidade, para tratar de qualquer assunto que exigisse
atenção (Rt 4.1-12). Em épocas de crise, o "juiz" se tornava um
líder nacional. Esses líderes naturais são os juízes do livro que leva
este mesmo nome, no Antigo Testamento.
Muitas pessoas que lêem hoje que no período dos Juízes
"cada um fazia o que lhe parecia certo", acham que isso implica
desordem ou caos. De fato, pessoas daquela época tomaram
caminhos errados. No entanto, cada um fazer o [seu] melhor é a
condição ideal da humanidade, o que muitas vezes é chamado de
"liberdade", e não quer dizer necessariamente fazer coisas erradas.
No livro de Juízes, fazer o que parecia certo não era recusar-se a
fazer o que era certo aos olhos de Deus, mas se recusar a fazer o
que outra pessoa impusesse como certo. Deus sempre tencionou
que andássemos com Ele de forma pessoal, que tivéssemos prazer
em fazer as coisas certas e, então, fizéssemos o que fosse certo aos
nossos próprios olhos. Para isso fomos feitos, e é isso que constitui
nossa individua1idade: fazer livremente, de coração, o que é certo.
Quando Israel exigiu um rei e um governo estabelecido para
substituir a condição de liberdade sob o governo direto de Deus, o
Senhor disse a Samuel (o último dos juízes no sentido pleno
original): "Não foi a você que rejeitaram; foi a mim que rejeitaram
como rei" (1 Sm 8.7). Quando Deus lhes deu Saul como rei,
Samuel disse: "Vocês agora rejeitaram o Deus que os salva de
todas as suas desgraças e angústias. E disseram: Não! Escolhe um
rei para nós'" (10.19).
Assim como se recusaram a falar diretamente com Deus e
insistiram em que Moisés fizesse isso por eles (Dt 5.24-27), agora
eles se recusavam a permitir que Deus os governasse diretamente
por sua lei e por indivíduos capacitados por Ele para tarefas que a
ocasião exigisse, sem um governo estabelecido com base e poder
próprio.
A teocracia, numa certa medida, foi restaurada mediante a
destruição da monarquia e o tempo do exílio. Então o ensino a
respeito do governo "celestial" de Deus (e.g., Ed 6.10; 7.12,23; Ne
1.5; 2.4; Dn 2:28,44) emerge dos escritos do Antigo Testamento,
preparando o caminho para o anúncio dramático de João Batista e
Jesus: "Arrependam-se, pois o Reino dos céus está próximo" (Mt
3.2; 4.17). Agora, toda a humanidade é convidada a viver em
família, o que é feito possível pelo nosso Pai, no céu, a quem
dirigimos nossas orações.
Quando o evangelho deste reino-família estiver propriamente
presente na vida do povo de Cristo. o final da história humana
como nós a conhecemos ocorrerá (Mt 24.14), pois a humanidade
entrará debaixo da liderança efetiva daqueles que estão no Reino e
que serão os juízes sobre a terra (I Co 6.2).
A VISÃO PROFÉTICA
A visão profética afirma que a Grande Comissão será
cumprida. O profeta Zacarias previu o tempo quando multidões de
pessoas ao redor do mundo exortarão umas às outras a adorar a
Deus e buscar sua bênção: "Naqueles dias, dez homens de todas
as línguas e nações agarrarão firmemente a barra das vestes de
um judeu e dirão: Nós vamos com você porque ouvimos dizer que
Deus está com o seu povo'" (8.23). O "judeu", neste caso,
certamente é o filho de Abraão pela fé (Jo 8.39; Is 63.16; Rm
2.28,29), e não alguém que pertence a certa linhagem genética.
A visão do profeta Jeremias foi que a lei divina será o padrão
natural de comportamento do povo de Deus, escrita em seus
corações, de modo que nenhuma pessoa entre esse povo precisará
ser ensinada por outra a conhecer o Senhor (Jr 33.33,34). Esta
visão será cumprida sob a Nova Aliança no "novo e vivo caminho"
(Hb 8.10,11; 10.17,20), que inclui judeus e todos aqueles que
foram feitos filhos de Abraão pela fé.
O profeta vê o esboço geral dos fatos futuros, não os detalhes.
No entanto, é claro que sempre há detalhes. O que estamos
sugerindo é que os detalhes do Reino vindouro de Cristo consistem
na reorganização da sociedade com base no modelo dos "juízes",
por aqueles com caráter plenamente desenvolvido no poder de
Jesus Cristo, os quais assumem responsabilidade amorosa por seu
vizinho, sob a presença real e pessoal de Cristo na Terra.
NOSSA NECESSIDADE DE IDOLATRAR NOSSOS
GOVERNANTES
Somente tais pessoas podem cumprir os requisitos da
liderança social e política. Este fato, reconhecido por todos, explica
por que os líderes sociais e governamentais são exaltados na
mente daqueles que os seguem. A fantástica, e muitas vezes tola,
falta de realismo das convenções e campanhas políticas é uma
expressão pueril das qualificações pessoais que sabemos que o
governo devia realmente ter para obter sucesso naquilo que se
propõe fazer.
Essa idolatria (a disposição para o auto-engano) em relação
aos nossos líderes não é um requerimento somente para as massas
ingênuas e ignorantes, mas também para os sofisticados e bem
informados. Um livro recente sobre a vida de um presidente norte-
americano mostra como ele usava o Serviço Secreto para esconder
as mulheres que levava à Casa Branca, quando a esposa estava
fora, e como usava seus adoráveis associados para providenciar
uma cobertura respeitável para os encontros externos. O sóbrio
biógrafo que registra os fatos citados afirma que aquele presidente
não poderia ser considerado hipócrita ou desonesto! Podemos nos
perguntar o que essas palavras significam neste caso. Nossos
líderes políticos são tratados como celebridades e idolatrados da
forma que são porque sabemos que precisamos de algumas
pessoas para resolver os problemas da sociedade humana ou, pelo
menos, evitar que piorem.
É claro, porém, que os políticos não são esses homens ou
mulheres de que precisamos. O comentário amargo, mas
totalmente verdadeiro de Bertolt Brecht, é:
EPÍLOGO
APÊNDICE I:
O DISCIPULADO HOJE
Embora? discipulado custasse caro, ele era, naquela época,
muito claro. A maneira de funcionar não é a mesma hoje. Não
podemos estar com Jesus literalmente da mesma maneira que
seus primeiros discípulos. Contudo, as prioridades e intenções (o
coração ou a atitude interior) dos discípulos são as mesmas então,
agora e sempre. No coração de um discípulo, há um desejo e uma
decisão ou intenção estabelecida. Tendo chegado a um
entendimento das implicações e "calculado os custos", o discípulo
de Cristo deseja acima de tudo ser como Ele é. E assim deve ser:
"Basta ao discípulo ser como o seu mestre" (Mt 10.25). E mais:
"Todo aquele que for bem preparado será como o seu mestre" (Lc
6.40).
O desejo de seguir a Cristo, geralmente induzido pela vida e
palavras daqueles que já estão no Caminho, deve ser seguido de
uma decisão: a disposição de ser como Cristo. O discípulo é aquele
que, tencionando se tornar semelhante a Cristo em fé e prática,
reorganiza sistemática e progressivamente sua vida em demanda
desse fim. Por meio dessas ações, mesmo hoje em dia, o indivíduo
se matricula na "escola de Cristo", tornando-se seu aluno ou
discípulo. Esta é a única maneira.
Em contraste, o não-discípulo, esteja dentro ou fora da igreja,
tem coisas mais importantes para fazer ou empreender do que se
tornar como Jesus Cristo. Talvez tenha comprado um terreno, ou
cinco juntas de bois, ou acabado de se casar (Lc 14.19). Tais
desculpas esfarrapadas revelam que algo como reputação, riqueza,
poder, indulgência, sensualidade, ou a mera distração ou torpor
ainda cativam sua lealdade suprema. Se alguém só enxerga
através dessas coisas, não pode conhecer a alternativa. Não sabe
que é possível viver sob o cuidado e o governo de Deus,
trabalhando e vivendo com Ele como Jesus fez, buscando primeiro
o seu reino e a sua Justiça.
Uma mente desordenada, cheia de justificativas, pode
transformar o discipulado num mistério ou pode vê-lo como algo
assustador. No entanto, não há mistério em desejar e tencionar ser
como outro – é algo muito comum. E, se tencionamos ser como
Cristo, isso ficará visível a cada pessoa à nossa volta e a nós
mesmos. As atitudes que definem o discípulo não podem ser
interpretadas hoje como abandonar família e emprego para
acompanhar Jesus em viagens pelo país. Mas o discipulado pode
se tornar concreto quando amamos nossos inimigos, abençoamos
aqueles que nos maldizem, caminhamos a segunda milha com um
opressor – vivendo, em geral, a graciosa transformação interior
pela fé, pela esperança e pelo amor. Tais atos – revelados na
pessoa disciplinada pela graça, paz e alegria manifesta – não
tornam o discipulado menos tangível e chocante hoje do que foi
para aqueles que desertaram no passado. Todavia, qualquer um
que entrar no Caminho pode comprovar e provar que o discipulado
está longe de ser amedrontador.
O PREÇO DO NÃO-DISCIPULADO
Em 1937, Dietrich Bonhoeffer apresentou ao mundo seu livro
O Preço do Discipulado. Era um ataque de mestre contra o
"cristianismo fácil" ou a "graça barata". Mas não deixava de lado –
talvez até incentivasse – a visão do discipulado como um excesso
espiritual caro, disponível somente para aqueles que foram
chamados ou dirigidos. Bonhoeffer estava certo ao destacar que
não se pode ser discípulo de Cristo sem abrir mão de coisas
normalmente buscadas na vida humana e que aquele que paga
pouco no sistema monetário do mundo para confessar o nome de
Cristo tem razão para se preocupar como ficará diante de Deus. No
entanto, mesmo quando só consideramos esta vida, o custo do
não-discipulado é muitíssimo maior do que o preço pago para
andar com Jesus.
O não-discipulado custa a paz interior; deixa de ter uma vida
permeada pelo amor; uma fé que enxerga tudo à luz do governo
supremo de Deus para o bem; uma esperança que fica firme
mesmo nas circunstâncias mais desencorajadoras; e o poder para
fazer o que é certo e enfrentar as forças do mal. O não-discipulado
custa exatamente a vida abundante que Jesus traz (Jo 10.10). O
jugo em forma de cruz de Cristo é afinal um instrumento de
libertação e de poder para aqueles que vivem com Ele e dele apren-
dem a mansidão e humildade de coração que trazem descanso à
alma.
"SIGA-ME. EU ME ENCONTREI!"
Leon Tolstoi afirmou que "toda a vida do homem é uma
contínua contradição do que ele sabe ser sua obrigação. Em cada
departamento da vida, ele age em desafiante oposição às diretrizes
de sua consciência e do senso comum".
Um empresário esperto bolou um adesivo para ser colado no
vidro traseiro do carro, que diz: "Não me siga. Estou perdido." Este
adesivo é amplamente usado, provavelmente porque trata com
humor o fracasso universal citado por Tolstoi. Esse fracasso causa
uma desesperança profunda e ampla e um senso de indignidade
que desafia a nossa missão de sal e luz que mostra às pessoas o
Caminho da Vida. A descrição de Jesus do sal insípido é triste,
mas serve bem para caracterizar como nos sentimos sobre nós
mesmos: "Não servirá para nada, exceto para ser jogado fora e
pisado pelos homens" (Mt 5.13), não servindo nem para o solo nem
para adubo (Lc 14.34).
Um ditado comum expressa esta mesma atitude: "Faça o que
eu mando mas não faça o que eu faço" (mais risos?). Jesus falou
sobre certos líderes religiosos (escribas e fariseus) de sua época:
"Obedeçam-lhes e façam tudo o que eles dizem. Mas não façam o
que eles fazem, pois não praticam o que pregam" (Mt 23.3). Não
era, e não é, uma piada. O que Jesus diria de nós hoje? Será que
não elevamos a atitude dos escribas e fariseus à condição de regra
áurea da vida cristã? Não será este o efeito (intencional ou não) de
tornar o discipulado opcional?
Não estamos falando de perfeição nem de merecer de Deus o
dom da vida. Nossa preocupação é apenas com a maneira como
entramos na vida cristã. Conquanto ninguém mereça a salvação,
todos devem agir como se ela lhes pertencesse. Por meio de que
ações do coração ou de que desejos e intenções temos acesso à
vida em Cristo? O exemplo de Paulo nos instrui. Ele podia afirmar
num único fôlego que "não era perfeito" (Fp 3.12), mas "façam o
que eu faço" (Fp 4.9). Seus deslizes (quaisquer que fossem) eram
deixados para trás enquanto ele prosseguia adiante por meio de
sua intenção de alcançar a Cristo. Ele tinha a intenção de ser
como Cristo (Fp 3.10-14) e era também confiante de obter graça
para sustentar essa intenção. Assim, podia dizer a todos nós:
"Sigam-me! Eu me encontrei!"
FIM