Lei Saraiva (1881) - o Analfabetismo É Um Problema Nacional.

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LEI SARAIVA (1881): O ANALFABETISMO É UM PROBLEMA NACIONAL

Michele de Leão – UFRGS


Agência financiadora: CNPq

Resumo: Este trabalho tem por objetivo identificar e analisar os argumentos invocados pelos liberais em favor
da exclusão dos analfabetos do direito de voto, nos debates travados na Câmara dos Deputados e no Senado, por
ocasião da reforma eleitoral para introdução do voto direto no final do Império, no período de janeiro 1879 a
janeiro de 1881. Em 1878, depois de dez anos de governos conservadores, o Imperador Dom Pedro II convoca os
liberais para realizar reforma eleitoral para introdução do voto direto no Brasil, que, primeiramente e sem
sucesso, no gabinete Sinimbu, é buscada através de reforma da Constituição de 1824. A reforma, então é
concretizada pelo gabinete Saraiva por meio de Lei Ordinária, conhecida como Lei Saraiva - Lei 3.029, de 09 de
janeiro de 1881. É nesse período que se verifica aquilo que se pode chamar de construção do discurso da
incapacidade eleitoral dos analfabetos, resultando, a partir de então, na exclusão dos analfabetos do direito de
voto por mais de um século (até 1985) e na estigmatização, até hoje, dos “portadores” de analfabetismo.

Palavras-chave: Analfabetismo; Estigma; Lei Saraiva; Reforma Eleitoral.

Introdução

Este texto se propõe a identificar e analisar, nos Anais da Câmara dos Deputados e do
Senado, as argumentações que alguns políticos brasileiros fizeram uso no período de janeiro
de 1879 a janeiro de 1881 para defenderem a exclusão dos analfabetos do direito de voto
quando da apresentação dos projetos visando a reforma eleitoral para introdução do voto
direto no Brasil. Desse modo, pretende-se entender quais as razões que levaram o
analfabetismo, em um dado momento da história brasileira, a ser percebido como um
problema político e social.

Contexto histórico da reforma eleitoral

No começo do último quartel do século XIX, o Brasil se apresentava como um país de


economia totalmente agrária, sedimentada em grandes propriedades rurais e apoiada ainda no
trabalho escravo. A maior parte da população permanecia marginalizada, e o governo era
assegurado através de um parlamento onde viviam dois partidos, controlados de cima para
baixo, que participavam de eleições fraudulentas e exclusivistas, como observa Lopez (1994,
p.19): “Como não existia Justiça Eleitoral e os meios de comunicação eram precários e mais
ainda os meios de informação e educação, campeava livremente a fraude, ponto de partida da
corrupção administrativa”.
Nas últimas décadas do Império, esse mecanismo se mostrava cada vez mais intenso,
e a inércia política era total. Esse modelo partidário possuía a clara função de evitar que os
conflitos reais da sociedade aflorassem no nível do Estado. Com o desenvolvimento
econômico no ciclo do café, sobretudo na Província de São Paulo, os grupos urbanos
começaram a clamar por maior participação na vida política do país, pela substituição do
sistema eleitoral indireto pelo direto e pelo fim do voto censitário.
As cobranças em favor de eleições diretas pressionaram o Imperador D. Pedro II, que,
em janeiro de 1878, convoca o liberal Visconde João Lins Vieira Cansansão de Sinimbu
para organizar e dirigir um gabinete, que teria como tarefa singular a realização da reforma
eleitoral, por meio da qual deveria ser introduzido o voto direto no Brasil.
Afastados do poder desde 1868 (ano em que ocorreu uma inversão política onde o
ministério liberal de 3 de agosto foi substituído pelo conservador de 16 de julho), os liberais
retornam, assim, ao poder após uma década de governo conservador.
O Poder Moderador era o responsável por indicar a liderança do Gabinete Ministerial,
que, por sua vez, era incumbido de constituir um ministério. Após, o Gabinete tinha a tarefa
de organizar as eleições para a Câmara os Deputados. Com a fraude nas eleições, prática
corrente durante este período, o partido da situação sempre obtinha a superioridade no
Legislativo. Deste modo, a Câmara era formada de acordo com os interesses do Gabinete
Ministerial. Para manter-se no cargo, o presidente do conselho precisava ter o apoio da
Câmara e do monarca. O Senado vitalício e o Conselho de Estado unicamente funcionavam
como instrumentos de consulta do Imperador.
Durante o Segundo Reinado, o Poder Moderador agia em acordo com os interesses dos
partidos políticos constituídos, fazendo com que se revezassem no poder.

Mesmo assim, dispunha ele de recursos para provocar as substituições de ministérios


ou revezamento dos partidos no poder, e não se mostrou parcimonioso em utilizá-
los. Basta considerar que durante os dez anos que antecederam a ascensão do
gabinete de 16 de julho, se tinham sucedido precisamente dez ministérios
representativos de opiniões políticas divergentes, não raro contrastantes.
(HOLANDA, 1960, p.10)
Como o Imperador dissolvia a Câmara sempre que avaliasse ser apropriado, o Poder
Moderador fortificava desse modo o Executivo, representado pelos ministérios.

O fortalecimento do Executivo levava, em última análise, à centralização político-


administrativa do Império, bem ao gosto dos senhores de terra e de escravos. [...]. A
centralização garantia a própria monarquia. (ALENCAR, RAMALHO; RIBEIRO;
1979 p.149)

Durante o Reinado de D. Pedro II, o Poder Moderador foi o executivo e o Legislativo.


Através desta centralização de poderes no Moderador, a aristocracia agrária garantia a
prevalência de seus interesses tanto na Câmara quanto no Gabinete Ministerial.
É importante destacar que liberais e conservadores não aparentavam discordâncias
ideológicas; somente desejavam conveniências diferentes, visto que tanto os liberais quanto
os conservadores representavam os senhores de terra e de escravos. Deste modo, suas relações
inclinavam-se mais para uma conciliação do que para um embate. Bandecchi (1969, p.219)
afirma que: “Em muitos pontos os conservadores e liberais eram bastante semelhantes,
chegando-se mesmo a dizer que nada se parecia tanto com um liberal como um conservador
no poder”. Na fase áurea do II Império, chegou até a haver um Gabinete de Conciliação dos
dois partidos, chefiado pelo Marquês do Paraná (1853-58). A noção de não haver diferenças
ideológicas e sociais entre os partidos também podia confirmar-se pelas frequentes passagens
de políticos de um campo para outro. Fausto (2002, p.98) destaca que

Conservadores e liberais utilizaram-se dos mesmos recursos para lograr vitórias


eleitorais, concedendo favores aos amigos e empregando a violência com relação
aos indecisos e aos adversários. A divisão entre liberais e conservadores tinha assim
muito de uma disputa entre clientelas opostas em busca das vantagens ou das
migalhas do poder.

Assim, a calmaria no cenário político era assegurada através da alternância dos dois
partidos, que muito se assemelhavam, já que os dois representavam basicamente as elites
agrárias.
Conforme o momento, a presidência do Gabinete Ministerial era entregue ao Partido
Liberal ou ao Partido Conservador. Esta política não poderia ser praticada com a adesão de
um único partido; necessitava do apoio de ambos. Desta forma, se tornava necessário cultivar,
na esfera dos dois partidos, um empenho de afastamento das divisões mais radicais.
Por detrás das aparências liberais do regime, o que na verdade existia era uma
sociedade repressiva e altamente conservadora e preconceituosa, componentes que exerciam
inegável papel censório. Um imperador patriarcal e bonachão mal disfarçava as realidades de
um Estado oligárquico, não-democrático e autoritário. (LOPEZ, 1993, p. 67-68).
Essa realidade social e política se refletia no campo educacional. Ao se estudar a
atenção dispensada à educação no Brasil, é possível observar que as ações nessa área foram
desorganizadas e pouco eficientes desde o Brasil Colônia, quando o quadro educacional era,
então, composto por um ensino elementar e um ensino secundário desarticulados e
assistemáticos, precariamente organizados, em sua maioria, sob a forma de aulas avulsas e
irregulares.
O ensino brasileiro, ao iniciar-se o século XIX, estava reduzido a pouco mais que
nada, em parte como decorrência do desmantelamento do sistema jesuítico (o Marquês de
Pombal , em 1759, extinguiu as escolas jesuíticas de Portugal e de todos os âmbitos de seus
territórios, que foram sucedidas pelas reformas pombalinas, com o principal objetivo de
substituir a escola que convinha aos interesses da fé pela escola favorável aos fins do Estado),
sem que nada parecido fosse preparado em seu lugar.
Quanto ao cenário cultural existente quando da chegada da Família Real, Ferreira (2001,
p.79) destaca que

O Brasil apresentado à Família Real, em 1808, é um país limitado pelas imposições


da metrópole. Sem acesso às mais diversas formas de cultura vivenciadas na Europa,
mantinha-se à margem das manifestações culturais oitocentistas, sobretudo
européias.

A vinda da Família Real (1808) e a Independência (1822) colaboraram para que novas
condições político-econômicas conduzissem ao estabelecimento de uma nova direção no que
se referia ao ensino, orientando a educação brasileira para a formação das elites dirigentes.
Assim, o ensino superior e o secundário passaram a ser privilegiados, em prejuízo do ensino
primário e do técnico-profissional. Deixado ao encargo das províncias, o ensino primário era
pouco difundido. Embora a Constituição Imperial de 11 de dezembro de 1823 determinasse a
garantia da instrução primária gratuita a todos os cidadãos, na prática, tanto nos anos que a
precederam quanto nos anos que a sucederam, pouco se fez pelo ensino popular. Elevar a
quantidade de doutores (médicos e advogados, principalmente) é uma das justificativas
apontadas por Ferreira (2001) para o descaso com o ensino elementar. A autora complementa
que “Na verdade, o governo pretendia formar burocratas capazes de gerenciar e prover os
cargos públicos, resolvendo, dessa maneira, o problema da falta de técnicos e administradores
para as diferentes atividades governamentais.” (FERREIRA, 2001, p.82). Deste modo, ao
longo de todo o século XIX foi muito diminuto o grupo dos cidadãos que tinham acesso a um
diploma.
No período de 1860 a 1890 ações particulares se organizam, e são fundados importantes
colégios, principalmente católicos, até mesmo de jesuítas, que retornam ao Brasil décadas
após sua expulsão. A disposição de instituir escolas religiosas no Brasil do século XIX é uma
contradição a do resto do mundo, cuja laicização se torna cada vez mais frequente. Os
colégios leigos do período são os mais progressistas e renovadores.
No último quartel do século XIX, o positivismo intensifica a luta pela escola pública,
leiga e gratuita, bem como pelo ensino das ciências.
Para Romanelli (2002, p.41) ao longo do Império desenvolveu-se uma educação de tipo
aristocrática, voltada mais para a formação de uma elite do que à educação do povo. A autora
observa ainda que a educação popular estava desassistida e que a educação média era
simplesmente propedêutica, pode-se assim, pensar o quanto a educação foi minimizada, a
ponto de transformar-se em mera ilustração.
Este modelo de educação doméstica escolar, a separação social entre os adultos e as
crianças, a rigidez da autoridade, a carência da participação da mulher, a ampla diferença na
educação dos dois sexos foi favorável para a total preponderância das atividades unicamente
intelectuais sobre as de base manual e mecânica, resultando na produção de uma cultura
antidemocrática, de privilegiados. A tradição colonial, de fundo europeu, não é a única
explicação para o tipo de cultura que se buscava servir, mas está intimamente relacionada à
composição e ao modelo da estrutura social que se estabeleceram por todo o Império. Nessa
sociedade, de economia fundamentada no latifúndio e na escravidão, e à qual, deste modo,
não interessava a educação popular. Esse contraste entre a quase carência de educação
popular e o acréscimo de desenvolvimento de elites tinha de forçosamente constituir, como
constituiu, uma enorme disparidade entre a cultura da classe dirigida, de nível
extraordinariamente baixo, e a da classe dirigente, erguendo sobre uma ampla contingência de
analfabetos uma pequena elite em que figurava homens de cultura aprimorada.
É nesse contexto político-social que se realiza a reforma eleitoral para introdução do
voto direto no Brasil. Reforma iniciada em janeiro de 1878, quando o Imperador D. Pedro II,
pressionado pelas cobranças em favor de eleições diretas, convoca o Visconde João Lins
Vieira Cansansão de Sinimbu para presidir um gabinete liberal, que teria como única tarefa o
cumprimento da reforma eleitoral, por meio da qual deveria ser inserido o voto direto no
Brasil.
O Projeto Sinimbu

Dando entrada na Câmara dos Deputados no dia 13 de fevereiro de 1879 o projeto de


reforma eleitoral elaborado pelo novo governo propõe reforma através de reforma da
Constituição de 1824. O projeto Sinimbu estabelece como condições para o cidadão tornar-se
eleitor: que a renda mínima seja de quatrocentos mil réis (duplicou-se a renda mínima que,
antes, era de duzentos mil réis); e que sejam excluídos do direito de voto todos aqueles que
não saibam ler e escrever, condição esta inexistente na Constituição de 1824.
Na sessão de 30 de janeiro de 1879 na Câmara dos Deputados, quando o projeto ainda
não havia sido apresentado, o Sr. Florêncio Carlos Abreu e Silva, alega que a
responsabilidade de votar é tão grande, que conferir o direito de voto à ignorância e ao
pauperismo (aos analfabetos) seria criar a mais degradada das democracias. Para o deputado,
a lei só consultará as verdadeiras conveniências públicas se “[...] considerar que na instrução e
em uma certa abastança estão em regra representadas a capacidade e a independência precisas
para a escolha dos representantes do país (Apoiados).” (Câmara, Anais, sessão de 27/01/1879,
p. 319).
Cansansão Sinimbu, o chefe do governo, aponta que a condição de saber ler e
escrever é o menos que se pode exigir como sinal de capacidade daquele que irá concorrer
diretamente para a escolha dos representantes da nação (Câmara, Anais, sessão de
28/05/1879, p. 426). O ministro da justiça, Lafayette Rodrigues Pereira, se fixa na ideia de
que, para exercer o voto, é preciso possuir discernimento intelectual, ter capacidade suficiente
para a compreensão e conhecimento dos interesses coletivos do estado e para julgar a aptidão
e o caráter dos candidatos que representarão as suas ideias. O ministro lança dúvida às
estatísticas referentes ao analfabetismo, argumentando que, o governo não pode ficar em
posse da ignorância e da cegueira dos analfabetos só pelo fato de serem maioria: “Mas,
admita-se, senhores, que oito décimos da população do Império se compõe de analfabetos, eu
pergunto-vos? – a ignorância, a cegueira, porque se torna vasta e numerosa, porque se
generaliza, adquire o direito de governar? (Apoiados)”. O ministro prossegue: “Se há no
Império oito décimos de analfabetos, eu vos direi, esses oito décimos devem ser governados
pelos dois décimos que sabem ler e escrever.” (Câmara, Anais, sessão de 29/05/1879, p. 460).
Pode-se perceber que, nas falas dos políticos, o analfabetismo passa a ser reconhecido
como a condição de ignorância, de cegueira, de pauperismo, de falta de inteligência e de
discernimento intelectual e, por isso tudo, de incapacidade política.
Com a aprovação na Câmara dos deputados em 09 de junho de 1879, o Projeto
Sinimbu é enviado ao Senado, onde é examinado por duas comissões, as quais, em seus
pareceres, de 14 de outubro do mesmo ano, finalizam seus trabalhos concluindo que o projeto
deve ser rejeitado por ser inconstitucional. As comissões sustentam que uma reforma, neste
país, não se pode levar a efeito sem a participação do Senado e da Coroa. O Senado deixa
transparecer, de forma implícita, que só admitirá uma constituinte se puder participar nos seus
trabalhos. No entanto, a legislação proibia expressamente a interferência da Coroa e do
Senado nas reformas constitucionais.

O projeto Saraiva

Com a negação do Senado para realização da reforma eleitoral via reforma


constitucional, então, apenas restava, ao novo governo, a reforma por lei ordinária. O
escolhido pelo Imperador para tal tarefa foi o comendador José Antônio Saraiva, que instituiu
um novo ministério em 28 de abril 1880. O deputado Rui Barbosa foi chamado para formular
o projeto da eleição direta, que Saraiva submeteu ao imperador como programa de seu
governo.
O projeto Saraiva é apresentado em sessão extraordinária realizada em 29 de abril de
1880. O chefe do governo diz que em seu projeto não há a exigência de saber ler e escrever,
apenas se exige o necessário para dar regularidade à eleição, como a assinatura. Contando
com o apoio do gabinete Saraiva um projeto substitutivo é apresentado por uma comissão
especial. Nesse projeto substitutivo os analfabetos seguem excluídos de fato do direito de
voto, já que a pessoa habilitada a votar deverá escrever de próprio punho o nome do(s)
candidato(s) escolhido(s) e assinar a ata da eleição.
O Sr. Teodoreto Souto está entre os deputados que concerta com o projeto. Em 19 de
junho de 1880, o deputado defende a exclusão dos analfabetos em nome de certa soma de
conhecimentos, de ilustração, assim como de independência necessária para o exercício do
voto. De acordo com ele, “[...] a lei deve estabelecer garantias plenas para que o analfabeto
não seja eleitor [...].”, uma vez que “[...] a ignorância [o analfabetismo, no caso] é um
obstáculo que cada um pode vencer, através da obrigatoriedade e gratuidade do ensino
primário [...]”. Percebe-se que o deputado Teodoreto Souto concorda com a exclusão dos
analfabetos do direito de voto, por entender que lhes há ausência de discernimento político, o
que, segundo os deputados, só poderia ser obtido instruindo-se.
O deputado Rui Barbosa, que durante todo o processo de reforma se posicionou
fortemente pela exclusão dos analfabetos do direito de voto, em uma de suas falas, ao
defender o projeto Saraiva, alega veemente que este não provocaria uma exclusão de classes:
“Não é, portanto, uma exclusão de classes (apoiados), não é uma criação de castas políticas,
não é uma separação de categorias desirmanadoras entre o povo, o que vamos estabelecer
[...].”. (CÂMARA, ANAIS, Sessão em 21 de Junho de 1880, p.353).
O deputado Aristides César Spínola Zama insere um novo argumento contra o voto
dos analfabetos – o da periculosidade. O deputado faz associação explícita entre
analfabetismo, de um lado, e marginalidade, periculosidade, perturbação dos trabalhos
eleitorais e ameaça à ordem pública, de outro. Expressa que votará favoravelmente ao projeto,
por entender que, afinal, este estabelece a condição de saber ler e escrever: “Digam o que
quiserem: o projeto exige para o exercício do direito de voto a condição de saber ler e
escrever; quem não sabe ler e escrever pode ser qualificado, mas não pode votar”. (Câmara,
Anais, sessão de 23/06/1880, p.428-433).
Aprovado na Câmara em 25 de junho do mesmo ano por imensa maioria de votos, o
projeto Saraiva é levado ao Senado em 1º de julho de 1880.
Durante as discussões desse projeto no Senado, o senador Cristiano Ottoni enfatiza
que, de todas as exclusões previstas no projeto, a que menos repugna é a exclusão dos
analfabetos: “[...] o governo da sociedade pertence à inteligência e não à massa bruta [...]”. O
senador vê na exclusão dos analfabetos outra benefício: “[...] a eliminação dos capangas,
homens que se alugam para fazer desordens nas eleições, quase todos analfabetos [...]”.
(Senado, Anais, 14/10/1880, p.54). Pode-se ver que o senador retoma o argumento do
deputado Zama referido acima. Contrário ao censo pecuniário, o senador diz que aprovaria a
exclusão dos analfabetos, se abolido o referido censo. (Senado, Anais, 29/10/1880, p. 368 e
09/11/1880, p. 97 e 100).
Para o Conde de Baependy, o deixar-se de considerar no alistamento dos eleitores os
cidadãos que não sabem ler e escrever não afronta a Constituição, pois, a proposta do governo
não disse claramente que o analfabeto não pode votar. Concluiu-se isso da imposição de
assinar seu título e deixar recibo feito pelo próprio punho. (Senado, Anais, 12/11/1880, p.
160).
No dia seguinte, o senador Domingos José Nogueira Jaguaribe defende sua opinião de
que a Constituição não impede ou consente que os analfabetos votem. Ele afirma que uma das
teses da Constituição sugere a propagação da instrução primária gratuita e que, nessa
promessa pode-se achar compreendida a necessidade de saber ler e escrever: “[...] Para
civilizar-se ao maior grau possível de perfectibilidade, um dos meios é a instrução, é o
batismo da civilização. O saber ler e escrever é a porta que se abre ao homem civilizado [...].”
Segundo o senador, “[...] as diversas leis pelas quais os analfabetos têm votado, não
estabelecem meio algum de conciliar a ignorância deles com a exequibilidade da coisa [...]”.
(Senado, Anais, sessão de 13/11/1880, p. 178). Aqui, percebe-se, nas palavras do senador
Jaguaribe, a associação existente entre analfabetismo e ignorância.
Saraiva defende o projeto de seu gabinete argumentando que o projeto não exclui a
grande massa dos cidadãos do país: “[...] o que o projeto exclui é a ignorância absoluta, os
homens que não tem meios de viver, e em os quais não se presume a menor inteligência e
independência para a escolha do deputado ou senador.” (Senado, Anais, sessão de
20/12/1880, p. 196). Conforme o chefe do governo, todo e qualquer cidadão, que através de
seu trabalho contraia uma insignificante renda ou qualquer instrução, ingressa no eleitorado.
No entanto, o que se observará mais adiante é de que a consequência causada pela lei será
justamente o inverso – a exclusão maciça do povo.
O projeto substitutivo do gabinete Saraiva, com a explicitação da exclusão dos
analfabetos do direito de voto operada no Senado, obtém sua aprovação, nessa casa, no dia
04/01/1881, transformando-se na Lei 3.029, de 09 de janeiro de 1881, que passou à história
com o nome de Lei Saraiva.

A Lei Saraiva e suas consequências

Conservando o censo da Constituição de 1824, à Lei Saraiva ainda foram acrescidas


duas medidas de implicações excessivamente excludentes: rigidez dos mecanismos de
comprovação da renda; e, a cobrança do saber ler e escrever. Durante o período da reforma
eleitoral, constata-se que, criou-se uma grande contradição ao exigir-se o saber ler e escrever
para o indivíduo ser considerado eleitor em um país onde praticamente não havia escolas para
o povo se alfabetizar.
Para o governo e as elites, até mesmo para a grande maioria dos parlamentares
liberais, aceitar o voto dos analfabetos passou a ser um problema, o que não era até então.
Percebe-se que, na verdade, como fato, o analfabetismo sempre esteve presente durante a
constituição da sociedade brasileira e ainda continua a existir no país. No entanto, o
analfabetismo só se constituiu como problema nacional no final do Império, quando a reforma
eleitoral (Lei Saraiva, 1881) excluiu os analfabetos do direito de participar da vida política no
país. Cabe ressaltar que o analfabetismo despontou como problema unicamente político,
vinculado à questão eleitoral. Não tendo nenhuma relação com a questão pedagógica, visto o
desinteresse pela instrução da população.
O estudo dos discursos que apoiavam a exclusão dos analfabetos do direito de voto
nos dois projetos de reforma eleitoral (projeto Sinimbu e projeto Saraiva) permite verificar
que a condição de analfabetismo adquire novo sentido ao expressar ignorância, cegueira
moral e material, dependência e, por tudo isso, incapacidade eleitoral. Ganhando a conotação,
inclusive, de marginalidade e periculosidade. A propagação de que o analfabeto não possuía
discernimento suficiente e a capacitação para perceber o bem comum é utilizada como
qualidade depreciativa na constituição do discurso da incapacidade eleitoral do analfabeto.
Ao identificar negativamente os analfabetos como ignorantes, cegos, incapazes e
mesmo perigosos e ao exigir o saber ler e escrever para o cidadão ser considerado eleitor, as
elites brasileiras, na sua maior parte latifundiárias e escravistas, não tinham o objetivo de
purificar as urnas, mas sim evitar o alargamento da participação popular.
Excluindo-se do direito de voto as pessoas que não sabem ler e escrever, o
analfabetismo passa a ter um aspecto negativo – uma estigmatização que afasta os analfabetos
da sociedade. É sabido que a maioria do povo brasileiro no momento em que se deu a reforma
eleitoral era composta por analfabetos. Então, o processo de exclusão dos analfabetos do
direito de voto fez-se acompanhar de um processo de estigmatização dos “portadores” da
qualidade de analfabetismo.
Embasada em Norbert Elias e John L. Scotson (2000, p. 23), sustento que a
estigmatização consiste no fato de “[...] um grupo afixar em outro um rótulo de inferioridade
humana e fazê-lo prevalecer em função de uma figuração específica que os dois grupos
formam entre si [...].”. De acordo com os autores, o processo de estigmatização se apoia em
uma relação de poder, do grupo mais poderoso sobre o grupo menos poderoso, de tal modo
que o estigma social atribuído pelo primeiro ao segundo “costuma penetrar na autoimagem
deste último e, com isto, enfraquecê-lo e desarmá-lo [...]”. (2000, p. 24). Para os autores: “Um
grupo só pode estigmatizar outro com eficácia quando está bem instalado em posições de
poder das quais o estigmatizado é excluído”. (2000, p. 23) É nessa disputa de forças que um
grupo se coloca na posição de classificar negativamente o outro, influindo na sua
autoimagem, lançando-o no ostracismo, minorando-o à condição de inferioridade e desonra, à
condição de “indignos de confiança, indisciplinados e desordeiros”. (Ibidem, p. 23-27).
Com a Lei Saraiva, o mecanismo de privar o povo de participar das eleições deixou de
ser unicamente a pobreza (a renda insuficiente ou a dificuldade de comprovação da mesma);
mesmo assim, em 1872 o número de votantes fora superior a um milhão. A reforma eleitoral,
avaliada por muitos uma conquista democrática, não conduziu ao alargamento do eleitorado,
ao contrário, reduziu de 1.114.066 para 145.000 eleitores, representando 1,5% da população
total, ou seja, 1/8 do que era antes. Somente em 1945, o número de eleitores veio a superar o
número de votantes de 1872. (Carvalho, 2004, p. 38-40).
Desde a Lei Saraiva até o facultamento do voto aos analfabetos passou-se mais de um
século (Emenda Constitucional n. 25, de 1985, e a Constituição de 1988). No entanto, do
estigma do analfabetismo, desse os analfabetos não se livraram. A compreensão do
analfabetismo como ignorância, cegueira, dependência, incapacidade e outras interpretações
converteram-se em senso comum que persiste até o tempo presente.

Referências

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sociedade brasileira: 2º grau. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1979.

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http://imagem.camara.gov.br/pesquisa_diario_basica.asp

_____. Senado Federal. Anais. 1879 a 1881. Disponível em:


http://www.senado.gov.br/sf/publicacoes/anais/asp/AP_Apresentacao.asp

CARVALHO, J. M. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 2004.

ELIAS, N.; SCOTSON, J. L. Os estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,


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FAUSTO, Boris. História do Brasil. 13. ed. São Paulo: Ed. da USP, 2008.

FERREIRA, Liliana Soares. Educação & História. 2. ed. Ijui: Ed. Unijui, 2001.

HOLANDA, Sérgio Buarque. História geral da civilização brasileira. O Brasil Monárquico.


II Do império à Repúblia. São Paulo: DIFEL, 1960. V.5

LOPEZ, Luiz Roberto. História do Brasil contemporâneo. 7. ed. Porto Alegre: Mercado
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________. História do Brasil imperial. 6. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.

ROMANELLI, Otaiza de Oliveira. História da Educação no Brasil. 27 ed. Petrópolis, RJ:


Vozes, 2002.

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