PSol Petição Áudio de Tortura Na Ditadura

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 7

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO


RELATOR DA ADPF n.º 320. BRASÍLIA/DF.

PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE – PSOL, autor da presente


ADPF n.º 320, já qualificado, vem diante V.Excia, por advogado, expor e requerer o
quanto segue.

Na última de semana veio a público uma série de áudios das décadas


de 70 e 80 onde generais, almirantes e outros membros do Superior Tribunal Militar,
durante sessões daquele tribunal ocorridas à época, com detalhes do modus operandi
da bárbaras sessões de tortura, revelam o conhecimento do Estado Brasileiro das
inumanas práticas de tortura contra presos políticos1.

O conteúdo dos áudios divulgados corrobora ainda mais o que já é de


sabença geral e internacional: o Estado brasileiro durante mais de 20 anos e durante
o regime ditatorial civil-militar (entre 1964/1985) sequestrou, prendeu e torturou
milhares de pessoas e também desapareceu forçadamente e matou ao menos
algumas centenas de pessoas. E, editando a Lei da Anistia, obsta o processamento,
julgamento e sanção aos agentes estatais envolvidos. E, descumpre a Sentença da
Corte Interamericana de Direitos Humanos, proferida no caso Gomes Lund e outros
v. Brasil.

1
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/audios-do-superior-tribunal-militar-provam-tortura-na-
ditadura.html
https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/04/17/audios-do-superior-tribunal-militar-sobre-tortura-ouca-os-
relatos-e-leia-as-transcricoes.ghtml

1
SCN, Quadra 01, Bloco F nº 79, Edifício America Office Tower, Sala 903 – Brasília DF - 70711-905 - Fone/Fax (61) 3328-2914
www.maimoni.adv.br
A Sentença julgou inaplicável a Lei de Anistia de 1979 aos autores
de graves violações de direitos humanos e ordenou 12 medidas a serem adotadas
pelo Brasil2.

Os áudios estão contextualizados no descumprimento pelo Brasil das


ordens da Sentença e desvelam, uma vez mais, a reiterada ciência das práticas
desumanas e criminosas e o envolvimento direto e consciente (dolo), pela prática
por agentes do Estado brasileiro, de torturas e assassinatos contra seus “opositores
políticos”. Todavia, agora de forma inédita e estarrecedora, diretamente, pela força
das falas reveladoras do conhecimento estatal dos crimes e pela força da flagrância
de tais falas incontestes, advindas diretamente de altos membros militares da

2
1. O Estado Brasileiro deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos
referidos na Sentença, e aplicar as sanções previstas em lei;
2. O Estado deve realizar todos os esforços para determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas e, se for o caso,
identificar e entregar os restos mortais a seus familiares;
3. O Estado deve oferecer o tratamento médico e psicológico ou psiquiátrico que as vítimas requeiram e, se for o
caso, pagar as indenizações correspondentes;
4. O Estado deve realizar as publicações ordenadas na Sentença;
5. O Estado deve realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional a respeito dos fatos
do referido processo;
6. O Estado deve continuar com as ações desenvolvidas em matéria de capacitação, e implementar, em um prazo
razoável, um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos, dirigido a todos os níveis
hierárquicos das Forças Armadas.
7. O Estado deve adotar, em um prazo razoável, as medidas que sejam necessárias para tipificar o delito de
desaparecimento forçado de pessoas em conformidade com os parâmetros interamericanos. Enquanto cumpre
com esta medida, o Estado deve adotar todas aquelas ações que garantam o efetivo julgamento, e se for o caso, a
punição em relação aos fatos constitutivos de desaparecimento forçado através dos mecanismos existentes no
direito interno.
8. O Estado deve continuar desenvolvendo as iniciativas de busca, sistematização e publicação de toda a
informação sobre a Guerrilha do Araguaia, assim como da informação relativa a violações de direitos humanos
ocorridas durante o regime militar, garantindo o acesso à mesma.
9. O Estado deve pagar as quantias fixadas na Sentença, a título de indenização por dano material, por dano
imaterial e por restituição de custas e gastos;
10. O Estado deve realizar uma convocatória, em, ao menos, um jornal de circulação nacional e um da região onde
ocorreram os fatos da “Guerrilha do Araguaia”, ou mediante outra modalidade adequada, para que, por um
período de 24 meses, contado a partir da notificação da Sentença, os familiares das pessoas desaparecidas aportem
prova suficiente que permita ao Estado identificá-los e, conforme o caso, considerá-los vítimas nos termos da Lei
Brasileira nº 9.140/95 e da Sentença.
11. O Estado deve permitir que, por um prazo de seis meses, contado a partir da notificação da Sentença, os
familiares das pessoas nela indicadas possam apresentar-lhe, se assim o desejarem, suas solicitações de
indenização utilizando os critérios e mecanismos estabelecidos no direito interno pela Lei nº 9.140/95;
12. Da mesma forma, o Estado deve permitir que os familiares ou seus representantes legais apresentem ao
Tribunal, em um prazo de seis meses, contado a partir da notificação da Sentença, documentação que comprove
a data de falecimento das pessoas lá indicadas.
2
SCN, Quadra 01, Bloco F nº 79, Edifício America Office Tower, Sala 903 – Brasília DF - 70711-905 - Fone/Fax (61) 3328-2914
www.maimoni.adv.br
estrutura estatal ditatorial, exige uma resposta que combata as ofensas maciças às
normas constitucionais e convencionais e faça cessar o sistemático descaso pelo
Estado responsável.

O envolvimento do Estado brasileiro, já reconhecido pela Corte


Interamericana de Direitos Humanos - CIDH no julgamento do caso objeto da
presente ação, dá-se pelas manifestações vindas à público que reforçam o aspecto
irrefutável das evidências dos resultados das ações do Estado (as mortes, as prisões
ilegais, os desaparecimentos, e, principalmente, no caso, as torturas) e da
participação estatal nessas práticas.

E o Estado ou os agentes criminosos, em flagrante descumprimento


de parte da decisão da CIDH, sequer confessam voluntariamente seus crimes no
período e para eles sequer militaria em favor benefícios da confissão espontânea ou
qualificada3, porque involuntária, intempestiva e obstada pelo Estado por todos os
meios políticos e jurídicos, inclusive os processuais.

E como tem sido a prática estatal, tais áudios, bens públicos e


componentes de arquivo públicos, e que poderiam auxiliar nos esclarecimentos e
conscientização coletiva, vieram à público não espontaneamente, ou por ato do
Estado. Ao revés, o Estado brasileiro colocou inúmeros obstáculos ao acesso e o
que foi possível apenas após périplo judicia e administrativo. Em 2006, o advogado
Fernando Augusto Fernandes solicitou acesso ao conteúdo do áudio, que foi negado
pelo Superior Tribunal Militar. Diante da negativa, em 2006, o advogado foi ao

3
(...) o agente que confessa a autoria, quando já desenvolvidas todas as diligências e existindo fortes indícios, ao
final confirmados, não faz jus à atenuante. Para a incidência desta, é necessária a admissão da autoria, quando esta
ainda não era conhecida (...) A confissão em segunda instância, após a sentença condenatória, não produz efeitos,
uma vez que neste caso não se pode falar em cooperação espontânea quando a versão do acusado já foi repudiada
pela sentença de primeiro grau." (CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 20. ed. São Paulo: Saraiva,
2016. v. 1. p. 494).
No STF: 1. A confissão qualificada não é suficiente para justificar a atenuante prevista no art. 65, III, 'd', do Código
Penal (Precedentes: HC 74.148/GO, Rel. Min. Carlos Velloso, Segunda Turma, DJ de 17/12/1996 e HC 103.172/MT,
Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJe de 24/09/2013). (...) 3. A aplicação da atenuante da confissão espontânea
prevista no art. 65, III, 'd', do Código Penal não incide quando o agente reconhece sua participação no fato, contudo,
alega tese de exclusão da ilicitude." (HC 119.671/SP)
3
SCN, Quadra 01, Bloco F nº 79, Edifício America Office Tower, Sala 903 – Brasília DF - 70711-905 - Fone/Fax (61) 3328-2914
www.maimoni.adv.br
Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou a divulgação do conteúdo, que não
foi realizado pelo Superior Tribunal Militar. Em 2011, o STF determinou o acesso
irrestrito a discos e, somente em 2015, centenas de fitas em rolo foram digitalizadas.

Os conteúdos dos áudios (certo que os vindos à público


representariam apenas uma pequena parte das mencionadas mais de 10 mil horas de
gravações), e a forma dificultosa de sua revelação, fruto de uma disputa judicial de
mais de uma década, substanciam o quanto reconhecido pela CIDH, especialmente a
carência de efeitos jurídicos e os obstáculos que a Lei da Anistia ocasiona para a
investigação e sanção das “graves violações de direitos humanos” e o renitente
descumprimento da Sentença da CIDH.

Tivesse sido cumprida a Sentença da CIDH, especialmente nos itens


1, 4, 5 e 8, os áudios então já conhecidos, cumpririam a função importante perante
vítimas do regime e familiares de vítimas, de esclarecer, elucidar casos ainda
inconclusos e também de, notadamente, trazer a pedagogia coletiva de que torturas
e regimes ditatoriais e de exceção nunca mais devem existir em nosso país.

O cumprimento da Sentença da CIDH, como se tem arguído nesta


ação e em outras, perante este E. STF, proporcionaria a consolidação estável de uma
“memória coletiva na sociedade brasileira, a partir da garantia efetiva do direito à
memória e à verdade” quanto aos fatos acontecidos, tanto durante a Guerrilha do
Araguaia, como de todo o período ditatorial. É medida essencial à coletividade
nacional e internacional em favor de uma sociedade e estado de democrático de
respeito à dignidade da pessoa humana. Sem essas medidas a tortura, o
desaparecimento e a morte continuarão a ser minimizadas e, o que é pior, enaltecidas
publicamente por altas autoridades nacionais.

Nesse ambiente onde os fatos não se estabilizam pela inércia do


Estado, em grande parte ante o não cumprimento da Sentença, as violências aos
direitos humanos continuam e grassam as reiteradas manifestações de altas

4
SCN, Quadra 01, Bloco F nº 79, Edifício America Office Tower, Sala 903 – Brasília DF - 70711-905 - Fone/Fax (61) 3328-2914
www.maimoni.adv.br
autoridades do país, enaltecendo torturadores e os atos de tortura, manifestações
que reverberam na sociedade.

São os casos, v.g., do Vice Presidente da República, que em


entrevista ao jornal alemão Deutsche Welle4 afirma que o coronel Carlos Alberto
Brilhante Ustra “era um homem de honra e um homem que respeitava os direitos
humanos de seus subordinados”, ou, relativamente aos áudios mencionados, que
“Apurar o quê? Os caras já morreram tudo, pô. (sic) Vai trazer os caras do túmulo
de volta?”, declarou, rindo5. O mesmo Ustra, conhecido e confesso torturador foi
igualmente elogiado pelo Presidente da República, o considerando “um herói
nacional”6. Ou, ainda, o escárnio patrocinado pelo deputado federal Eduardo
Bolsonaro7. Esses são apenas alguns exemplos, pois existem muitos outros, desde
líderes políticos a autoridades governamentais.

Conforme denuncia o partido autor à CIDH (vide carta enviada a


CIDH, em anexo), “Tais declarações constituem uma violação flagrante das
resoluções deste Tribunal [CIDH] sobre a necessidade do Estado brasileiro ‘de
conduzir investigação criminal dos fatos do presente caso para esclarecê-los’ e
‘continuar desenvolvendo as iniciativas de busca, sistematização e publicação de
todas as informações sobre a Guerrilha do Araguaia, bem como bem como as
informações relacionadas às violações de direitos humanos ocorridas durante o
regime militar’”, algumas das ordens da Sentença.

Deste modo, a revelação do conteúdo dos áudios faz ainda mais


insustentável a sistemática continuidade da inércia do Estado brasileiro,
caracterizando um periculum in mora para toda a sociedade. Impõe-se o imediato
cumprimento da sentença, porque ampliado a inconstitucionalidade grave e o

4
https://www.dw.com/pt-br/elogio-de-mourão-a-torturador-causa-repúdio/a-55223890
5
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2022/04/18/questionado-sobre-tortura-na-
ditadura-militar-mourao-responde-com-ironia-e-risos.htm
6
https://veja.abril.com.br/politica/bolsonaro-afirma-que-torturador-brilhante-ustra-e-um-heroi-nacional/
7
https://www.poder360.com.br/midia/eduardo-bolsonaro-ironiza-tortura-sofrida-por-miriam-leitao/
5
SCN, Quadra 01, Bloco F nº 79, Edifício America Office Tower, Sala 903 – Brasília DF - 70711-905 - Fone/Fax (61) 3328-2914
www.maimoni.adv.br
descumprimento de preceitos elementares (o disposto nos artigos 1º, III; 4º, I e II e
5º, §§ 1º a 3º da Constituição Federal), bem como um flagrante inconvencionalidade
pelo descumprimento do estatuído no art. 68, 1º da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos, devidamente ratificada pelo Brasil, que estipula que: “Os
Estados-Partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte
[Interamericana de Direitos Humanos] em todo caso em que forem partes”.

O descumprimento da Sentença implica na massiva e forte violação


de direitos fundamentais, alcançando a transgressão à dignidade da pessoa humana,
notadamente por tratar-se de crimes contra a humanidade.

Em tais casos, como vem decidindo este E. STF (v.g. na ADPF 347,
na 760 e no HC 143641), “apenas o Supremo revela-se capaz, ante a situação
descrita, de superar os bloqueios políticos e institucionais que vêm impedindo o
avanço de soluções, o que significa cumprir ao Tribunal o papel de retirar os demais
Poderes da inércia, catalisar os debates e novas políticas públicas, coordenar as
ações e monitorar os resultados”.

E tal atuação deve ser exercida, no caso, onde presentes a


superveniência dos fatos graves, da presença renovada do perigo coletivo na
demora, e da caracterizada necessidade de adoção urgente das medidas da Sentença
da CIDH, essenciais ao equacionamento das gravíssimas e reiteradas violações aos
direitos fundamentais, através da apreciação de tutela cautelar incidental, como
autoriza o art. 5º, §1º da Lei 9.882/99.

Diante do exposto, requer-se liminarmente que o Relator conceda


medida cautelar inaudita altera parte e determine a todos os órgãos do Estado
Brasileiro que deem cumprimento integral aos doze (12) pontos decisórios
constantes da Conclusão da referida Sentença de 24 de novembro de 2010 da Corte

Interamericana de Direitos Humanos, no Caso Gomes Lund e outros v. Brasil


(“Guerrilha do Araguaia”).

6
SCN, Quadra 01, Bloco F nº 79, Edifício America Office Tower, Sala 903 – Brasília DF - 70711-905 - Fone/Fax (61) 3328-2914
www.maimoni.adv.br
Após seja ouvidos o Advogado-Geral da União e o Procurador-Geral
da República.

Alternativamente, na hipótese improvável de entendimento de não


cabimento ou de indeferimento de pedido de tutela cautelar incidental, em face de a
ADPF encontrar-se apta ao julgamento, que seja urgentemente pautada para o
apreciação perante o Plenário deste E. Supremo Tribunal, julgando procedente esta
ação, a fim de evitar ou reparar lesão a vários preceitos fundamentais de nosso
ordenamento jurídico.

Nestes termos, pede deferimento.

Brasília/DF, 19 de Abril de 2022.

ANDRÉ MAIMONI
OAB/DF 29.498

ALBERTO MAIMONI
OAB/DF 21.144

7
SCN, Quadra 01, Bloco F nº 79, Edifício America Office Tower, Sala 903 – Brasília DF - 70711-905 - Fone/Fax (61) 3328-2914
www.maimoni.adv.br

Você também pode gostar

pFad - Phonifier reborn

Pfad - The Proxy pFad of © 2024 Garber Painting. All rights reserved.

Note: This service is not intended for secure transactions such as banking, social media, email, or purchasing. Use at your own risk. We assume no liability whatsoever for broken pages.


Alternative Proxies:

Alternative Proxy

pFad Proxy

pFad v3 Proxy

pFad v4 Proxy