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MODOS DE FAZER

WAYS OF MAKING

COORD.
VÍTOR OLIVEIRA JORGE

1
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Título: Modos de Fazer/Ways of Making

Coordenação: Vítor Oliveira Jorge


Design gráfico: Helena Lobo Design | www.hldesign.pt
Paginação: João Candeias
Imagem da capa: Retrato de mulher com traje minhoto (aspeto parcial). Quadro de Matoso da Fonseca, 1900
(col. particular). Foto VOJ.
Edição: CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória
Via Panorâmica, s/n | 4150‑564 Porto | www.citcem.org | citcem@letras.up.pt
ISBN: 978-989-8970-23-7
DOI: https://doi.org/10.21747/9789898970237/mod
Porto, Maio de 2020

Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito
do projeto UIDB/04059/2020.

2
SUMÁRIO/TABLE OF CONTENTS

PREÂMBULO GERAL 7

CONFERÊNCIA
Of Work and Words: Craft as a Way of Telling 13
Tim Ingold

PARTE I – ETNOGRAFIAS 33

Teias com Saber 35


Teresa Soeiro, Ana Dolores Leal Anileiro

Pelo Som da Arte do Fogo 53


Marisa Pereira Santos

Fazer Leite: sobre Técnicas de Ordenha e a Relação entre Vacas e Criadores na Alta Sabóia (França)
e no Jura Suíço 65
Jeremy Deturche

As Chegas de Bois no Barroso (Norte de Portugal): Saber Fazer um Touro de Combate 87


Cristiano Pereira

Precarização e Trabalho no Corte de Cana no Pontal do Triângulo Mineiro 99


Daniel Féo Castro de Araújo

Descobrindo Sabores, Produzindo Saberes: uma Proposta de Ponto de Memória da Rapadura


para a Comunidade de Campo Alegre de Baixo (MT) 121
Zuleika A. Arruda, Joyce Aquino, Nadir F. B. Bittencourt, Arivan Silva, Paulo Sleutjes

Viola-de-Cocho: o Saber/Fazer que dá Ritmo às Celebrações Mato-Grossenses (Brasil) 135


Letícia M. Tamiozzo, Zuleika A. Arruda, Nadir F. B. Bittencourt, Arivan S. Silva

Cartografia dos Lugares de Resistências dos Modos de Fazer da Rede de Dormir: Redeiras de
Várzea Grande (MT) – Brasil 153
Zuleika A. Arruda, Nadir F. B. Bittencourt, L. L. Souza

Modos de Fazer da «Antropologia Colonial»: a Missão Científica de Mendes Correia à


Guiné Portuguesa (1945-1946) 167
Patrícia Ferraz de Matos

3
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

PARTE II – PESSOAS, CORPOS, SUBJETIVIDADES, REPRESENTAÇÕES, CONFLITOS 181

Cantanhez National Park: how People Perceive Landscapes 183


Gonçalo Salvaterra, Catarina Casanova

Organizações de Base Comunitárias e Direitos à Cidade em Salvador (BA- Brasil):


uma Experiência de Fazer Pesquisa Engajada 197
Maria Gabriela Hita; John Gledhill

Ways of Making a Human Otherwise: after-Ethnography with Migrant Labourers in


Italian Agro-Industrial Enclaves 219
Irene Peano

Como se Faz o Corpo. A Construção da Antropologia: da Antropologia Física à Antropologia


da Saúde 231
Álvaro Campelo

Tecnologias de Si — a Miniatura, o Gigantesco e o Afeto na Representação da Nação 253


Paula Mota Santos

Como se Faz um «Eu». Retornando Sucintamente ao Problema da Constituição do Sujeito


e da Subjetividade 267
Vítor Oliveira Jorge

Biografias Tóxicas em Portugal: Contaminação, Memória e Resistência 285


Sérgio Pedro, Lúcia Fernandes

Scale and Metaphor: the Role of the Body in the Perception of Scale 299
Sara Navarro

PARTE III – ARTES 305

Fazer Coisas (ABC) 307


Miguel Leal

Painting/Making: the Question of Meanings and Values 315


Cristina Lopes

Filmosofia: uma Força Produtora de Sentidos Fílmicos 323


Deise Quintiliano Pereira

Modos de Expressão e Receção Significantes no Cinema 335


Pedro Alves

4
SUMÁRIO/TABLE OF CONTENTS

«Nós não Estamos Algures» (Ernesto de Sousa/Jorge Peixinho): um Exercício de Re-interpretação 347
Ana Teresa Cancela Pires

Residência Artística como Designer no Senegal. Designer Cultural 361


Rita Almeida Filipe

Existências e Invisibilidades — a Questão do Processo no Ensino/Aprendizagem em Arquitetura 373


Mário Mesquita

Vista Alegre, Making and Thinking 387


Rita Almeida Filipe

O Olhar Único do Designer na Observação da Paisagem: o Caso do Arquivo Poético Portuense


399
Olinda Martins, Joana Quental, Alice Semedo

Configurar-Desfigurar-Transfigurar: de Conversas com Versos a Diálogo com a Poesia 415


Ana Isabel Gouveia Boura

PARTE IV – HISTÓRIAS 425

Fazer e Partilhar a Arte Rupestre Atlântica: Evidências de Conectividades Pré-Históricas 427


Joana Valdez-Tullett

Fazer um Povo. A Construção dos Callaici entre a Arqueologia e a História Antiga 453
António Manuel S. P. Silva

Aldeamentos Jesuíticos na América Portuguesa: Controle Espiritual e Temporal (1650-1700) 469


Ana Elisa Arêdes

Modos de Fazer «Santos»: a Escrita de «Vidas» de Varões e Mulheres «Ilustres em Virtude» em


Portugal (Séculos XVII-XVIII) 481
Paula Almeida Mendes

Da Prática da Cirurgia à Pesca da Baleia — Modos de Fazer no Brasil Colonial 497


Monique Palma

PARTE V – PROPOSTAS DE REFLEXÃO 511

Da Semente à Estrela: Variações sobre o Tema da Circularidade 513


Francisco Oneto Nunes

A Ideia de Trabalho Artesanal no Pensamento de Richard Sennett 525


Teresa Vasconcelos Sá

5
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Compartilhar Percursos: Aprendizagem Colaborativa na Prática da Pesquisa 537


Graziele Ramos Schweig

Ways of not Making Anything: a Critical Point of View Considering Singularity 549
Paulo Alexandre e Castro

Responsabilidade Relacional e a Constituição de uma Ética Relacional do Cuidado no


Pensamento Bioético 555
Stella Zita de Azevedo

O «Melhoramento Humano» e a Discussão sobre os Limites do Fazer 571


Marta de Mendonça

As Crises do Fazer no Antropoceno 583


Jorge Leandro Rosa

CONFERÊNCIA
Art and Anthropology for a Sustainable World 603
Tim Ingold

6
PREÂMBULO GERAL

O Colóquio Modos de Fazer/Ways of Making realizou-se na Faculdade de Letras


da Universidade do Porto entre os dias 17 e 19 de outubro de 2018, tendo ainda pros‑
seguido com uma conferência extra do Prof. Tim Ingold (Universidade de Aberdeen,
Escócia) no sábado seguinte, dia 20, pronunciada no Palacete Balsemão, da Câmara
Municipal do Porto. Ambas as conferências são publicadas neste ebook, uma colocada
convencionalmente no início, a outra no fim do mesmo.
Foi uma iniciativa conjunta do CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar
Cultura, Espaço e Memória, uma unidade de I&D sediada na Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, e da SPAE – Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia,
associação cultural e científica com sede no Porto e que comemorou naquele ano o seu
100.º aniversário.
Do programa de trabalhos — conteúdo e motivação desta reunião científica —
­transcrevemos, tal como foi previamente divulgado:

Qual a relação entre fazer, aprender, transmitir, construir, criar, memoria­lizar e


compreender quando essas atividades são colocadas em relação umas com as ­outras,
e todas com a ação humana em geral, imersa no mundo?
Que aprendemos, sobre os «modos de fazer» e a sua repercussão ao nível do
­sujeito individual ou do coletivo social, quando, em vez de os considerarmos estan-
ques, os articulamos uns com os outros?

7
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Estas são questões fundamentais que orientarão o Colóquio Internacional


­«Modos de Fazer».
Na tradição ocidental, «fazer» significa impor uma forma, ou um projeto
­pré-concebido, a uma matéria-prima, considerada inerte. É o que o antropólogo britâ­
nico Tim Ingold, entre outros, designa modelo «hilemórfico». De facto, para Aristó­
teles, todas as coisas resultavam da junção da matéria (hilé) e da forma (morphé).
E é nessa linha de pensamento que ainda hoje maioritariamente nos encontramos.
Mas é possível encarar as coisas de outro modo, e tentar perceber mais de ­perto
como se dá, desde que existimos, a relação do ser humano com os materiais e os
recursos dos ecossistemas que o envolvem. Aprender com quem sabe e, na ­prática,
­observar, ouvir e manusear, experienciar texturas e identificar odores, analisar carac­
terísticas i­ ntrínsecas e antever resultados de interações, torna-se um processo longo de
capaci­tação, de apura­mento dos sentidos e do gesto, de conhecimento dos mate­riais,
das técni­cas e das circuns­tâncias. Desta interação, eventual ou repetida, resultam
­processos de aprendizagem e construção de conhecimento. O uso do ­«saber-fazer»
para «fazer ­saber», em íntima relação com o mundo a que pertencemos, e que
­constantemente nos faz, como nós permanentemente o fazemos, transforma esta
­interação numa cadeia ­reprodutiva de produção e aplicação de conhecimento.
Este Colóquio convoca, assim, todas as áreas disciplinares que possam contri­
buir para uma reflexão sobre esta problemática do fazer, do saber fazer, do lidar
com m ­ ateriais e com recursos disponíveis, atentos às suas especificidades, ao modo
­ativo como intervêm nas nossas formas de agir, de pensar, de gerar e transmitir s­ aber.
­Através de estudos de caso, ou de uma reflexão teórica, procurar-se-ão estimular leitu­
ras trans­disciplinares, capazes de evidenciar, não só as afinidades profundas e­ ntre
áreas académicas, como a sua inter-relação com formas de saber não escolarizado,
pondo em evidência os processos como nós, seres humanos, criamos coisas, criamos
ambientes, criamos mundos, ao mesmo tempo que somos por eles criados.

Recebidas várias dezenas de propostas de comunicação oral ou poster, apreciadas


pela Comissão Científica do Colóquio, foi decidido criar duas sessões simultâneas, sem
prejuízo das sessões plenárias, nomeadamente as que envolveram dois keynote speakers,
Kapil Raj (EHESS, Paris) — que fez a conferência de abertura, e Tim Ingold (já acima
mencionado) — o qual realizou a conferência de encerramento. Por motivos de saúde
infelizmente não foi possível ao Prof. Kapil Raj participar neste ebook com o seu texto
inaugural. O Colóquio integrou ainda uma mesa-redonda, com a participação de ambos
os keynote speakers, a qual foi registada em vídeo que se pode visionar no YouTube no
endereço seguinte: <https://www.youtube.com/watch?v=jmNx18aMnbA&t=1s>.
Trata-se de seis vídeos, o último dos quais se encontra aqui: <https://www.youtube.
com/watch?v=nZBDIWFWbUg&t=7s>.

8
PREÂMBULO GERAL

A mesa-redonda foi moderada pelo presidente da Comissão Científica do Coló­


quio, coadjuvado pelos investigadores Jorge Leandro Rosa, filósofo, membro da
­Comissão Científica, e Paula Mota Santos, antropóloga, tendo ambos participado
­também no C ­ olóquio com uma comunicação.
A apresentação e divulgação do evento foi feita através de uma página web, com o
seguinte endereço: <https://waysofmaking2018.wixsite.com/making2018>.
A Comissão Organizadora foi composta pelos seguintes elementos: ­Direção:
­Maria de Jesus Sanches — Investigadora do CITCEM, professora da FLUP; Ana
Vale — I­nvestigadora do CITCEM, bolseira de Pós-doutoramento da FLUP; Sérgio
­Monteiro-Rodrigues — Investigador do CITCEM, professor da FLUP; Maria Leonor
Soares — ­Investigadora do CITCEM, professora da FLUP; Vasco Sistelo — Bolseiro do
CITCEM — FLUP; José Manuel Varela — Presidente da Mesa da Assembleia Geral da
SPAE, a­ rqueólogo da Câmara Municipal de Matosinhos; Susana Lage de Carvalho —
Tesoureira da Direção da SPAE, mestre em História e Património.
Por seu turno, integraram a Comissão Científica os membros seguintes: Presi‑
dente: Vítor Oliveira Jorge — Presidente da Direção da SPAE, investigador do IHC-­
-FCSH-UNL; Amélia Polónia — Coordenadora Científica do CITCEM, professora da
FLUP; Álvaro Campelo, Vice-presidente da Direção da SPAE, professor da Universidade
Fernando Pessoa; Luís Alberto Alves — Membro da Comissão Diretiva do CITCEM,
professor da FLUP; Teresa Soeiro — Investigadora do CITCEM, professora da FLUP;
João-Heitor Rigaud — Vogal da Direção da SPAE, músico e historiador; Jorge Freitas
Branco — Investigador do CRIA-IUL, professor do ISCTE-IUL; Jorge Leandro Rosa —
Investigador do Instituto de Filosofia da Faculdade de Letras da UP.
Naturalmente, um ebook não espelha a totalidade da riqueza temática e da opor‑
tunidade única que esta iniciativa representou. Cremos que ela honrou a FLUP — a cuja
direção, na pessoa da Prof.ª Doutora Fernanda Ribeiro, aproveitamos para apresentar os
nossos maiores agradecimentos —, e as instituições organizadoras, e que a obra agora
resultante conserva uma parte importante das matérias abordadas, ricas de sugestões na
sua heterogeneidade.
Não tendo a SPAE meios logísticos nem financeiros que lhe permitissem abalan­
çar-se sozinha a uma realização deste género, que se impunha fazer pela ocasião do
seu ­Centenário (aliás complementada por uma exposição retrospetiva da sua atividade
­inaugurada alguns dias após o Colóquio, comissariada por Vítor Oliveira Jorge e Patrícia
Ferraz de Matos), a participação do CITCEM e a colaboração da FLUP foram cruciais
para o êxito da iniciativa.
É em particular de destacar que o Colóquio foi financiado pela FCT, IP — Funda‑
ção para a Ciência e Tecnologia, através do Programa FACC, pela Reitoria da Universi­
dade do Porto, e pelo CITCEM, sendo toda a organização logística e gestão fi ­ nanceira
­realizada pelo CITCEM, agora também editor deste ebook, e que sem o seu staff j­amais

9
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

esta ­iniciativa teria tido lugar. Em variadíssimas tarefas organizativas fundamentais,


­incluindo a criação do site do Colóquio, para além da coordenadora científica do
­CITCEM, Professora Amélia Polónia, a Professora Maria de Jesus Sanches teve um ­papel
fundamental, que é de enaltecer, bem como a Doutora Ana Vale, também investigadora
do mesmo Centro. São também dignos de menção os vários membros do CITCEM ou
da SPAE que, de um modo ou de outro, se empenharam nesta realização, e ­também
estudantes do Mestrado de Arqueologia da FLUP que generosamente prestaram a
sua colaboração.
Finalmente, resta-nos agradecer a todos os participantes, oradores ou não, figu­
rando ou não com os seus textos neste ebook, não esquecendo as dezenas de avaliadores
que nos prestaram a sua ajuda na revisão crítica dos textos.
O resultado estará longe de ser perfeito, mas cremos que a sua publicação, como
dissemos acima, é um contributo rico e útil para pensar a fascinante diversidade do fazer
humano, no duplo sentido de «criar mundos» e de ser por eles «criado», numa dinâmica
espantosa que não pára nunca, dinâmica que nem sempre foi benfazeja para a humani‑
dade como um todo, que é mesmo por vezes hoje em dia bastante preocupante, mas que
também patenteia bem a criatividade e o espírito de colaboração de que o ser humano é
capaz, quando as boas vontades se unem.
E afinal foram essas boas e generosas vontades que permitiram este evento e a obra
que dele agora resulta e que temos o gosto de facultar aos leitores.

Porto, dezembro de 2019


A organização

10
CONFERÊNCIA

11
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

12
OF WORK AND WORDS: CRAFT AS A WAY
OF TELLING*
TIM INGOLD**

Resumo: Este capítulo levanta o problema posto pela noção de conhecimento incorporado, concentrando-­
-se no hábito — o hábito de artesãos, músicos e investigadores. O que nele se expõe tem duas componentes.
A primeira é a de mostrar que os hábitos que permitem aos praticantes de qualquer atividade prosseguir na
realização das suas tarefas não são tácitos nem estão sedimentados no corpo, mas são gerados e postos em
prática em correspondência atenta e cinestésica com os utensílios, os materiais e o ambiente. Essa corres‑
pondência não é silenciosa e parada, mas barulhenta e turbulenta, aberta e viva em relação ao mundo. Para
descrever essa realidade, adotamos a noção de hapticalidade. No âmbito da hapticalidade, o pensamento é a
agitação de uma mente que se move e é movida pelos sons e pelos sentimentos do ambiente. É por isso que
a ação habitual é também ponderada, caracterizada por uma consciência que não é tanto cognitiva ­quanto

* This essay was originally written as the Annual William Fagg Lecture, delivered at the British Museum, London,
on November 2.nd, 2017. I would like to thank the Museum for inviting me to present the lecture, and particularly
­Amber Lincoln and Jago Cooper for reading it out, after I had lost my voice. The research and writing of the essay were
­assisted by the European Research Council Advanced Grant, Knowing From the Inside: Anthropology, Art, Architecture
and ­Design (323677-KFI, 2013-18). I am very grateful to the Council for its support.
** Department of Anthropology, School of Social Science, University of Aberdeen, Aberdeen AB243QY, Scotland, UK.
Email: tim.ingold@abdn.ac.uk.
Tim Ingold is Professor Emeritus of Social Anthropology at the University of Aberdeen, and a Fellow of the British
Academy and the Royal Society of Edinburgh. Following 25 years at the University of Manchester, Ingold moved in
1999 to Aberdeen, where he established the UK’s newest Department of Anthropology. Ingold has carried out ethno‑
graphic fieldwork among Saami and Finnish people in Lapland, and has written on environment, technology and social
organisation in the circumpolar North, the role of animals in human society, issues in human ecology, and evolutionary
theory in anthropology, biology and history. In his more recent work, he has explored the links between environmental
perception and skilled practice. Ingold is currently writing on issues on the interface between anthropology, archaeo­
logy, art and architecture. He is the author of The Perception of the Environment (2000), Lines (2007), Being Alive
(2011), M
­ aking (2013) The Life of Lines (2015), Anthropology and/as Education (2017) and Anthropology: Why it Mat‑
ters (2018). To appear in: A Companion to Contemporary Craft, edited by Namita Wiggers. Oxford: Wiley-Blackwell.

13
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

«concentrative». Isso conduz à segunda parte do que é exposto, e que mostra que as palavras também são
coisas vivas, imersas nas correntes da hapticalidade. Assim, refuta-se a oposição, que se incorporou na
própria constituição da academia, entre verbalização e incorporação. Trabalho e palavras, insistimos nesse
ponto, são animados. Ambos se desdobram no hábito e possibilitam os diversos modos de contar, de dizer.
Palavras-chave: concentração; artesanato; incorporação; explicação; hábito; hapticalidade; silêncio; conhe‑
cimento tácito; contar/dizer; verbalização.

Abstract: This chapter takes issue with the notion of embodied knowledge by focusing on habit — the habit
of craftsmen, artisans, musicians and scholars. The argument has two components. The first is to show
that the habits that enable practitioners to move on in the accomplishment of their tasks are neither tacit
nor ­sedimented in the body but generated and enacted in an attentive and kinaesthetic correspondence
with tools, materials and environment. This correspondence is not silent and still but noisy and turbulent,
open and alive to the world. To describe it, we adopt the notion of hapticality. In the domain of hapti­
cality, thinking is the churn of a mind that stirs and is stirred by the sounds and feelings of the milieu. This
is why h ­ abitual action is also thoughtful, characterised by an awareness that is not so much cognitive as
concentrative. This leads to the second part of the argument, which is to show that words, too, are living
things, immersed in the currents of hapticality. Thus we refute the opposition, built into the constitution of
the academy, between verbalisation and embodiment. Work and words, we insist, are animate. They both
­unfold in habit and afford ways of telling.
Keywords: concentration; craft; embodiment; explication; habit; hapticality; silence; tacit knowledge;
­telling; verbalisation.

PERSONAL KNOWLEDGE AND THE HABITUS


The greater part of what we know, we cannot explain. This is savoir-faire, or know-
how. The philosopher Michael Polanyi1 called it «personal knowledge» — knowledge
that adheres so closely to the person of the practitioner that it cannot be held up to scru‑
tiny or posited as an object of reflection or analysis. Without it, Polanyi argued, nothing
could be practicably accomplished. We could not tie our shoelaces, beat an egg, hold
a pen, or ride a bicycle. But nor, for that matter, could we design a building, solve an
equation, or compose a symphony. In these as in countless other tasks, we «feel our way
forward», as Polanyi put it2, following a trail and relaying it as we go instead of executing
a predetermined and fully articulated programme of explicit rules or representations.
It is not that there are no rules at all. But rather than furnishing the pegs that u­ nderpin
the landscape of action, they more resemble signposts in the landscape itself, which point
us in the direction we need to go. They are what we call rules of thumb, offering guidance
without specification. In practice, they are more ostensive than prescriptive. Once set
upon a course, we rely upon the reservoir of personal knowledge to carry on. To reveal
this repertoire, according to Polanyi, it is necessary to strip away the veneer of articulate
representations, and thereby to «lay bare the inarticulate manifestations of intelligence

1
POLANYI, 1958.
2
POLANYI, 1958, 62.

14
WORK AND WORDS: CRAFT AS A WAY OF TELLING

by which we know things in a purely personal manner». It is to open up «an immense


mental domain, not only of knowledge but of manners, of laws and of the many different
arts by which man knows how to use, comply with, enjoy or live by, without specifiably
knowing their contents»3.
Now here as elsewhere, Polanyi could hardly have been more emphatic that what
his inquiries had disclosed was a realm of mind — a «mental domain» — the existence of
which had been previously unacknowledged, or that until then, had not been a­ ccorded
its due. Yet his discovery was destined to suffer an ignominious fate at the hands of
subsequent social theory which had, albeit belatedly, realised that human beings are
only present in the world because they have, or rather are, their bodies. This realisation
is commonly traced back to an influential essay on «Techniques of the body», penned
by the ethnologist Marcel Mauss in 19344. Drawing attention to the sheer diversity of
­postures and gestures involved in such everyday tasks as walking, carrying loads, e­ ating
and sleeping, Mauss realised that there is more to this than the kind of idiosyncratic
variation that marks one individual from another and that in French would be called
­habitude. It is not just a matter of what you might happen to pick up or, conversely, of
what you might improvise for yourself. Some children, Mauss noted, are more inclined
than others to imitate the behaviour they observe around them, yet both weak and
strong imitators, if they belong to the same society, are similarly educated by example
and correction into forms of bodily comportment deemed proper to their age and status.
To denote these forms, socially imposed rather than individually acquired, attributable
to education rather than imitation, and thus enshrined in a tradition, Mauss co-opted
the Latin term habitus5.
Mauss’s prospectus for a comparative ethnology of techniques of the body was
sketchy at best, and was soon forgotten by the anthropology of the time. With its frag‑
mentary catalogue of apparently miscellaneous customs from around the world, the
­essay was so anachronistic in its formulation, and yet so far ahead of its time in terms of
the questions it opened up, that it largely fell on deaf ears. Thus when some forty years
later, sociologist Pierre Bourdieu6 reintroduced the habitus as the centrepiece of a theory
of practice centred upon the dispositions of the body, few recalled that he was following
the precedent set by Mauss — nor did Bourdieu go out of his way to acknowledge the
fact. Perhaps it was as well that he did not, since he took the term in a quite different
sense. By habitus, Bourdieu means a kind of practical mastery — a capacity to improvise
conduct strategically attuned to the conditions of its production — that is neither picked
up haphazardly, as one might pick up an infection, simply through personal contact,

3
POLANYI, 1958: 65-67.
4
MAUSS, 1973.
5
MAUSS, 1973: 73.
6
BOURDIEU, 1977.

15
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

nor deliberately inculcated through precept and prescription. «Every society», Bourdieu
writes, «provides for structural exercises tending to transmit this or that form of practical
mastery»7. They are exercises in which a body participates not as an instrumental means
for the implementation or expression of a moral tradition but as a productive agent in
its own right. Its postures and gestures, far from merely expressing thoughts and feelings
already imparted through an education into societal values, are in themselves ways of
thinking and feeling, through which these values are continually re-produced.
Now crucially, according to Bourdieu, the principles of mastery that are passed on
by way of these exercises never rise to what he calls «the level of discourse»8. Psycho‑
logically, they remain underground, beyond the reach of consciousness. They cannot be
articulated, or rendered explicit. Ineffable, incommunicable and therefore inimitable by
any conscious effort, these principles are given body, made body, or literally embodied, as
Bourdieu puts it, «by the hidden persuasion of an implicit pedagogy»9. So far as I know,
Bourdieu makes no reference to the work of Polanyi: he may not even have read it. There
are however uncanny parallels between Polanyi’s notion of personal knowledge and the
particular construction that Bourdieu places upon the habitus. The claim Polanyi makes
for personal knowledge, that it cannot be articulated or specified, that it is non-proposi‑
tional and non-declarative, that it is acquired and deployed without conscious awareness
— or, in a word, that it is tacit — but that it subtends and makes possible everything we
think and do, is precisely the claim that Bourdieu makes for the habitus. It is not surpris‑
ing, therefore, that for the generation of social scientists brought up on Bourdieu — and
I am one of them — the temptation is to look back at Polanyi through Bourdieuvian
spectacles, and to jump to the conclusion that by personal or tacit knowledge, he meant
a knowledge whose proper domain is the body. Indeed Polanyi has even been criticised,
in his insistence on the division between tacit and explicit knowledge, for reproducing
a Cartesian dualism of body and mind! In the vocabulary of many analysts, «tacit» and
«embodied» have come to mean the same thing. Yet nothing could have been further
from Polanyi’s intention. For as I have already noted, he was emphatic in his verdict that
personal knowledge inhabits the mind. If there is a division between the explicit and the
tacit, it is between two regions of the mind, not between mind and body.

THE SILENCE OF EXPLICATION


In this chapter I want to take issue with the notion of embodied knowledge, by
f­ocusing on what I shall call habit – the habit of craftsmen, artisans, musicians and
­scholars. My argument has two components. The first is to show that the habits that
enable practitioners to move on in the accomplishment of their tasks are not so much
7
BOURDIEU, 1977: 88.
8
BOURDIEU, 1977: 87.
9
BOURDIEU, 1977: 94.

16
WORK AND WORDS: CRAFT AS A WAY OF TELLING

sedimented in the body as generated and enacted in an attentive and kinaesthetic corres­
pondence with tools, materials and environment. And the second is to insist that this is
as true of working with words as it is of working with non-verbal materials. To reach
the domain of habitual practice, then, does not mean giving up on words, or probing
beneath them. But it does mean giving up on the techniques of intellectual distillation
that allow words to float to the top, and habits to sink to the bottom, of some imaginary
column of consciousness (see Figure 1). And these techniques, I contend, are them‑
selves s­ ustained and reproduced in the practices of the academy. For who, other than
acade­mics, would be so pompous as to exclude from discourse anything that cannot
be ­expressed in ­formal, propositional terms? Who else would dismiss as inarticulate, or
even sub-linguistic, any expressions that do not conform to standards of logical r­ igour?
It is in their minds, and theirs alone, that the myth persists of the silent craftsman,
­apparently struck dumb when challenged to tell of what he does or how he does it. True,
he may not be able to spell it out in explicit detail. But this does not mean he is lost for
words. It is one thing to argue that habits resist explication; quite another that they resist
verbalisation. That the two have become confused owes much to ambiguities inherent in
the notion of the tacit, and it is to these that I turn first of all.

Figure 1.

«Whereof one cannot speak», concluded Ludwig Wittgenstein in the Tracta-


tus Logico-Philosophicus, «thereof one must be silent»10. Taken literally, this austere

10
WITTGENSTEIN, 1922: 90.

17
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

­ ronouncement would consign to an ocean of silence all ways of knowing and doing,
p
all wisdom and experience, save that which can be expressed, linguistically or mathema­
tically, in the form of logically interconnected propositions. Now it was Polanyi’s conten‑
tion, of course, that these expressions amounted to no more than the tip of an iceberg,
the overwhelming mass of which lay submerged beneath the waves (see Figure 2). His
purpose was not to denigrate this submarine dimension but to highlight its contri­bution
to thought and practice. The things of which we cannot speak, he would say, are also
things without which we cannot do. Or as he put it, introducing a set of lectures entitled
The Tacit Dimension, «we can know more than we can tell»11. But why did he choose the
word «tacit» to refer to this untold and untellable residue? The word itself is tantalisingly
vague. Derived from the Latin tacere, «to be silent», it refers in the first place to that
which remains unvoiced. Yet voiced sounds need not be verbal, and verbal utterances
need have no explicit propositional content. What are we to make, for example, of a
song without words? And what of an utterance the force of which illocutionary — such
as a warning, a greeting or a direction? Conversely, of many things that could be stated
­explicitly we may prefer to keep our mouths shut, for reasons of discretion or security.
As philosopher of science Harry Collins explains, in an extended commentary on the
tacit/explicit distinction, whether a matter is voiced or even verbal is not really the issue
for Polanyi. The tacit, for him is not so much the opposite of «explicit» as of «explicable».
It consists of things that cannot, by their very nature, be explicated12.

Figure 2.

11
POLANYI, 1966: 4.
12
COLLINS, 2010: 4.

18
WORK AND WORDS: CRAFT AS A WAY OF TELLING

So what does Polanyi mean by explication? Two terms keep cropping up in his
a­ ccount of what it entails, namely, specification and articulation13. To specify means to
pin things down to fixed coordinates of reference; to articulate means to join them up
into a complete structure. Thus we specify when we plot dots on a graph, enter ­values
in an equation, or type words on a page; we articulate when we join them up: dots with
lines, values with plus or minus signs, words with spaces. As these examples indicate,
explication is not limited to verbal forms; it may also be algebraic or mathematical,
or expressed in the peculiar language of symbolic logic. And it may also occur in the
conven­tions of musical notation, where each note is specified by a dot, and where
the dots are joined into phrases by ligatures. What do the graph, the mathematical equa‑
tion, the written sentence and the scored phrase have in common? They are all absolutely
silent. Where everything is pinned down and joined up, nothing can move. And without
movement there can be no sound. Specification and articulation, while they may be the
keys to logical explication, lock the doors to movement, to sound and to feeling. They
stop it up. This brings us, however, to a rather surprising result. It is that nothing so effec‑
tively silences the world than rendering it in explicit, propositional terms. Indeed it is the
explicit that is tacit, not the reservoir of habit or know-how for which Polanyi reserved
the term. Habit, on the other hand, is turbulent and sometimes noisy. It swirls around
in between the points that explicit knowledge joins up, like waters flowing around and
between the islands of an archipelago14.

Figure 3.

13
See, for example, POLANYI, 1958: 88.
14
INGOLD, 2013: 111, see Figure 3.

19
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

We have been persistently misled, I think, by the analogy of the iceberg, with the
picture it presents of explicit knowledge at the tip and the mass of inexplicable know-
how below. For far from having come to rest, frozen in submarine psycho-corporeal
depths, know-how is restless, fluid and dynamic. Above all, it is not deposited as a ­stable
substrate, housed in lower levels of consciousness, but is fundamentally animate —
­immanent in the sensuousness of a body that is mobile, alive and open to the world.
Such a body, unified not anatomically but in its affective resonances, far from retreating
into silence, dwells in sound. Habits, in short, are not embodied; rather the body — in its
habitation of a world — is ensounded. Consider what happens, for example, when I play
a single note on an open string of my cello. On the score the note is specified by a dot,
crossed by a stave line. There it is, silent, lifeless and inert. But as soon as I begin to play, it
erupts into sound, into life. The notated point becomes a sustained and vibrant line. This
is no simple matter, and to succeed in it my body must be finely balanced and tensed
throughout, with an acute awareness of its immediate environs, while my right arm,
elbow and wrist undergo a controlled movement to ensure that the position where the
bow touches the string, between bridge and fingerboard, remains more or less ­constant.
The sound arises from this complex choreography of highly attentive, mutually attuned
movements. It is not possible to play without also feeling, without continually attending
and responding both to one’s own movements and to those going on in one’s surround‑
ings. Indeed in bowing a note on the cello as in any other task, as even Polanyi acknowl‑
edged15, we «feel our way forward». Yet in the appeal to the tacit this entire ­domain of
feeling is blanked out; silenced and stilled.

TELLING IN THE ZONE OF HAPTICALITY


Tacit, in short, is a misnomer for the dimension of habitual practice. By what better
term, then, should it be known? I would like to borrow a concept from educational theo‑
rist Stefano Harney and literary scholar Fred Moten, namely hapticality. It lies, in their
words, in «a feel for feeling others feeling you»16. In effect, hapticality fills the void of the
tacit. Where the tacit is silent, the haptic is noisy; where the tacit is embodied, the haptic
is animate; where the tacit is sunk into the depths of being, the haptic is open and alive
to others and to the world. With this, we can return to Wittgenstein’s injunction from
the Tractatus. The composer John Cage began his Lecture on Nothing, presented in New
York in 1949, by declaring: «I have nothing to say and I am saying it»17. Behind the
play on words, Cage was being deeply serious. We could read his declaration as a forth‑
right rebuke to the author of the Tractatus. For Cage refuses to be silenced. His words
may have no object, no referent, no matter to convey, yet he has a voice and will speak!
15
POLANYI, 1958: 62.
16
HARNEY & MOTEN, 2013: 98.
17
CAGE, 2011: 109.

20
WORK AND WORDS: CRAFT AS A WAY OF TELLING

And it behoves us to listen. For by speaking we humans make ourselves present in the
world, and by listening we pay attention and respond. Cage wanted to awaken in his
listeners their sense of what he called «response ability»18. Nor need this be limited to
the sphere of human relations. Other kinds of beings, or other phenomena, make their
presence felt in manifold ways, and we should attend to them too. We hear the calls of
birds, the rustling of wind in the trees, the sound of a waterfall, and we can tell much
from them — whether the birds are calm or agitated, whether the wind is gentle or
strong, whether the river is dry or in spate. Neither the birds, nor the trees, nor the water
have anything to say. But there they are, saying it, pronouncing their very existence in
the world.
Does hapticality, then, lie on the far side of speaking, of telling? Only if, with
­Wittgenstein, we limit speaking to logical expression or, with Polanyi, limit telling to
literate articulation. Yet in truth, no words could be spoken, nor could any story be told,
without feeling. Both speaking and telling have another side, a side that — just as in play‑
ing the cello — is enacted in performance, at the moment when connected points give
way to swirling lines. At this stage of my argument I want to focus on telling, and will
return to speaking in due course, when I move on from works to words. Recall that for
Polanyi, we can know more than we can tell. I want to argue, to the contrary, that we can
tell all we know, but only because there is more to telling than articulation19. «To tell» is
one of those ancient verbs that comes to us already densely packed with multiple layers
of meaning. Originally, it was to count or to reckon, as does the teller who tots up the bill,
whose modern representative is the accountant. An account rendered in words rather
than numbers, however, is a narrative, a story. What, then is the difference between the
accountant and the storyteller? One adds up, assembling in rows or columns initially
separate, point-specific entries. This, as we have seen, is the work of articulation. But
the other goes along, finding a way between and through the accountant’s entry points.
Storytellers are wayfarers20. And like all wayfarers, they need to attend to things as they
go, to recognise subtle cues in the environment and to respond to them with judgement
and precision. They need to be able to tell, for example, where animals have been from
their tracks, how the weather is about to change, how the river runs. That is the sense of
telling I invoked a moment ago, in relation to the birds, the wind and the waterfall. And
it is precisely what Cage meant by response ability.
Each of these two latter ways of telling, evinced respectively in storytelling and in
response ability, entails the other. For it is through having their stories told that novices
learn to attend to things, and to what they afford, in the situations of their current prac‑
tice. Contrariwise, it is because of the resulting feel for things — a kind of intimacy that
18
CAGE, 2011: 10.
19
INGOLD, 2013: 111.
20
INGOLD, 2007: 90-92.

21
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

comes from sharing a life together — that experienced practitioners can tell their stories.
The capacity to tell, in these twinned senses, is critical to the practice of any craft, and
it is perhaps the principal criterion by which the master can be distinguished from the
novice. On the one hand, stories allow practitioners to tell of what they know without
specifying it. They carry no information in themselves, no coded messages or represen‑
tations. They rather offer guidance or directions which listeners, finding themselves in a
situation similar to that related in the story, can recognise and follow. On the other hand,
response ability allows practitioners to tune their movements to the ever-varying condi‑
tions of the task as it unfolds. This, and not in the practised ability to execute standard‑
ised movements with greater speed or ergonomic efficiency, is where real skill resides.
In both senses, then, craft is a way of telling. It is a way, however, that abhors explication.
It sets down nothing in advance, nor does it project a future outcome in the present.
What it does do is offer an itinerary, a path to follow, along which one can keep on going.
It is about feeling forward, about anticipation rather than prediction.
In the zone of hapticality, then, telling proceeds not by integration but by differen­
tiation, not by adding or joining up what began as discrete, pre-specified entries in the
book of accounts, but by finding a way through the interstices of a field of practice.
It means joining with others, including the materials with which one works, along with
other people and things in the environment, feeling them as they are feeling you, while
at the same time distinguishing your own line from theirs. In short, haptic telling is a
­process of what I have elsewhere called «interstitial differentiation»21. It is a differentia‑
tion that proceeds along the way, in a cycle of attention and response. In wayfaring, in
playing a musical instrument, in the practice of any craft, decisions have continually to
be made: one decides to veer in this direction or that. But while every decision entails
a cut, this cut goes along the grain of action rather than across it, splitting it like an axe
through timber. This is what skill is about: not imposing form on matter but finding the
grain of things and bending it to an evolving purpose22. It is no accident that the word
«skill» has its roots in the Middle Low German schillen, «to make a difference», and
in the Old Norse skilja, «to divide, separate, distinguish, decide»; nor that it shares an
etymological affinity with the word «shell», a casing that is opened up by splitting or
cleaving along the grain. Every split amounts to what philosopher Erin Manning23 calls
an inflection, not a movement in itself, but a variation in the way movement moves. In
music, for example, a simple two note phrase, which in notation appears as two discrete
dots articulated by a line, emerges in performance as a linear movement that bends at a
point of inflection, where one pitch transitions into the other (see Figure 4). What on the
score is exterior articulation, in performance is interstitial differentiation.
21
INGOLD, 2015: 23.
22
INGOLD, 2011: 211.
23
MANNING, 2016: 118.

22
WORK AND WORDS: CRAFT AS A WAY OF TELLING

Figure 4.

VORTICES OF THINKING AND OF SOUND


All this attention and response, all these decisions, are surely proof that craft practi‑
tioners are thinking. Indeed it has become almost a cliché to say that musicians or crafts
people think with their fingers, with their hands, their wrists, lungs and trunk, indeed
with the whole body. But have you ever wondered why we should think that thinking
should be silent? Or that it should be invisible? Surely, if thinking is not tacit but as ­haptic
as feeling is, if it is not buried in the body but overflows into the environment, if it u
­ nfolds
in the telling, then it can be just as noisy. And we can watch it too. By what c­ urious logic
are we led to suppose that while we can watch the gestures of the potter as they caress
the clay on the wheel, or hear the bowing of the cellist on the strings, the thought of both
cellist and potter remains both invisible and inaudible? This logic is perhaps the legacy of
a Cartesian division between cognition and action that continues to plague much theo‑
rising on these matters. For with this division, every deliberate action must be preceded
by a thought which it serves to execute. Inevitably, then, thought breaks into action,
interrupts it, gets in the way. It can even be said to paralyse action, as in the apocryphal
story of the millipede which, when asked how it managed to co-ordinate the movement
of its thousand legs, never moved again. Yet manifestly, craftspeople are not paralysed
by thought. For they are perfectly capable of thinking, even of reflecting on what they
are doing and of assessing their work, without ever breaking away from performance.
«Reflection», as anthropologist Anna Portisch writes, «is a constitutive aspect of all levels
of practice»24.

24
PORTISCH, 2010: 69.

23
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Portisch pitches her critique against many students of craft practice, myself
i­ ncluded25, who have argued that the frequent need to reflect on progress, or to stop-and-­
-check, is typical of novice practitioners, giving their work a jerky or stop-go character
which gradually disappears with increasing mastery of the craft. In this view, the more
fluent the practitioner, the less reflective the practice. But from her own study of women’s
crafts in Mongolia, Portisch concludes, to the contrary, that reflection and assessment
are integral to the practices of novices and accomplished craftswomen alike. Learning a
craft, she argues, is at every level a process that is both dynamic and responsive, involv‑
ing a continual dialogue with one’s environment26. I am persuaded by her argument,
but I still wonder whether reflection and assessment mean quite the same thing for the
novice as for the old hand. It seems to me that the difference lies in the extent to which
the practitioner has incorporated the tools and materials of her trade, as well as other
salient constituents of the environment, into the dialogue itself. True, the old-hand is as
thoughtful, as meditative and reflective, as the novice, if not more so. But perhaps she
is thinking with things more than she is thinking about them, letting them in as acces‑
sory to her own reflections. Perhaps her thinking is that of a mind that is not confined
within the body but that extends outwards to include tools, materials and surrounding
conditions, or what philosopher of cognition Andy Clark27 calls its «wideware». Could
the measure of enskilment lie in the distal extension of the mind, radiating outwards
from its seat in the body? The answer depends on how we choose to describe the mind.
For Clark, the mind is essentially a computational device that works to produce
­solutions to problems posed by the environment, on the basis of information received.
But this device may include extra-somatic components. A mathematician, for example,
may use pencil and notepad to perform a calculation, and a navigator takes up ruler
and compass to plot a course. Thus pencil and paper in the one case, and ruler and
­compass in the other, are integral to the «extended mind» of mathematician and naviga‑
tor res­pectively. To explain what he means by the extended mind, and by way of analogy,
Clark asks us to consider the prodigious talents of a fish, the bluefin tuna. Why, Clark
asks, can the tuna swim so fast? The answer is that it couples its own bodily energies to
the fluid dynamics of the water through which it swims, setting up eddies and vortices
through the swishing of its tail and fins which themselves exert a propulsive momentum
beyond any muscular force of which the fish alone is capable. Swimming, then, is not
an achievement of the fish alone but of what Clark calls a swimming machine, com‑
prised by «the fish in its proper context: the fish plus the surrounding structures and
vortices that it ­actively creates and then maximally exploits»28. Thus, strictly speaking,

25
INGOLD, 2000: 415.
26
PORTISCH, 2010: 71-73.
27
CLARK, 1998.
28
CLARK, 1998: 272.

24
WORK AND WORDS: CRAFT AS A WAY OF TELLING

it is not the fish that swims, but the fish-in-the-water. And it is just the same, he s­ uggests,
with the mathema­tician and the navigator. If the totality «fish-plus-eddies-plus-vorti‑
ces» c­ omprises a mechanism for swimming, so the totality «mathematician-plus-pen‑
cil-plus-notepad» or «navigator-plus-ruler-plus-compass» comprises a mechanism for
computation. The cognitive machine, in the human case, is extended in just the way that
the swimming machine is for the fish.
Or is it? I am not so sure that swimming can be understood in such mechanical
terms. After all, eddies and vortices cannot exactly be connected up like the wheels,
cranks and pistons of an engine, in such a way as to deliver propulsion as a motor ­effect.
They are energetic movements in themselves, as indeed is the fish. To borrow an expres­
sion from philosopher Stanley Cavell, the fish-in-the-water – like every other living
­being in its proper medium – is a «whirl»29. It is not an object that moves but the emer‑
gent form of a movement. Might the fish, then, offer a better analogy for why the think‑
ing that goes into craft practice cannot be understood in computational terms? Perhaps
we could say of this thinking, too, that it is a churning of the mind, as it stirs up and is
in turn stirred by the sounds and feelings of its milieu. The mind, then, is not so much
a computational device as a vortex in the mix. How else can a player armed only with
a cello make such an immense and variable sound? How can a potter armed only
with a wheel turn clay into the myriad forms of jugs and vessels? How can the scribe,
armed only with a pen, turn parchment into text? Not, surely, because the practitioner’s
brain, body and instrument, joined together, make up a machine, whether for playing,
potting or writing.
The fact is that I do not take up my cello and bow, as I might a notepad and pencil,
or ruler and compass, in order to achieve results that I could not accomplish unaided.
For I am not chained anatomically to the instrument; rather my breath, touch, manual
gesture and spinal posture join in unison with wood, hair and metal. It is the same for
the potter, whose hands join with the clay, in the rotation of the wheel, in such a way as to
give form to the contours of feeling. And it is the same for the scribe, whose every gesture
leaves its mark, by way of the pen, on the writing surface. In every case, the anatomical
unity of practitioner plus instrument gives way to a hapticality of sensory awareness
and vital materials. It is for this reason that I believe we should resist the temptation to
describe mind, body and world as overlapping circles which, in their enlargement, are
inclined to encroach upon or even encompass each other’s domains. The mind is not
«taken into» the body, as conventional appeals to the concept of embodiment tend to
imply, nor does it «take up» the world, as implied by the theory of its extension. The
fish-in-the-water gives us a better picture, in my view, of a whirligig world of spiralling
movements that run into one another: of thinking spiralling into vortices of sound, into

29
CAVELL, 1969: 52.

25
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

rounded vessels of clay, into the oscillations of the scribal letter-line, all of them dynami‑
cally sustained formations in the current of life (see Figure 5).

Figure 5.

THE PRINCIPLE OF HABIT


We have come a long way from Bourdieu, and from his understanding of the
­habitus as a set of dispositions that both generate the mastery of the skilled practitioner,
and are in turn generated by it, all beneath the radar of conscious awareness. For what
we have discovered, on the other side of explicit logical articulation, is not a lack of
awareness but an awareness of a different kind. It is the awareness of feeling others feel‑
ing you — or in a word, it is hapticality. This explains why craftspeople, absorbed into
their tasks, by their own report tend to experience their own presence and movement,
and the presence and movement of the persons and things with whom and with which
they engage, with heightened rather than diminished intensity. Colloquially, the word
we use for this is concentration. By this, we don’t mean the kind of cognitive processing
that ­delivers solutions for implementation. It is not the operation of a joined-up compu‑
tational mechanism, whether inside the head or extending beyond it. Concentration lies
rather in the affective unison of haptic and kinaesthetic awareness with the movement
and vitality of materials. The recognition of this other form of awareness, concentrative
rather than cognitive, haptic rather than explicit, allows us at last to resolve a question
to which the answer has long eluded us. For there is no doubt that many things we
­routinely do involve no concentration at all. We are often scarcely aware we are doing

26
WORK AND WORDS: CRAFT AS A WAY OF TELLING

them. With these operations, the more practised we are at them, the less thought and
­attention they demand of us. They are markedly unresponsive to surrounding condi‑
tions, to the extent that if conditions change they can break down or lead us astray. They
seem virtually automatic. In principle, automatic operations could just as well be done
by machine, and indeed in the history of technology they have often been among the
first to be mechanised. The question is: how are we to distinguish such automatisms
from the practised mastery of a craft?
If no other awareness were possible save that which reflects and reports on prac‑
tice from the outside, which intrudes into it and holds it to account, then we would
risk reducing craft practice to the level of bodily automatism. It would be negatively
characterised by the absence of conscious deliberation. And to an extent, this is precisely
what has happened in social scientific writing on embodiment and the tacit dimension.
You would think, from reading much of this literature, that there is not much ­difference
between touch-typing and performing a Rachmaninov piano concerto. It may be that
the latter is a lot more difficult, and takes a great deal of practice that none but the most
dedicated musician would willingly endure. In both cases, however, we are led to believe
that it is all a matter of leaving the fingers to take care of themselves, freeing the mind
for higher things. But if the pianist is truly thinking with his fingers, if his thought flies
with the sounds of the keys, if he feels the presence of listeners whose ears stretch to
catch every passing sound, and if he and they are truly moved by the experience, then
there is all the difference in the world between his performance and — say — that of a
­player-piano that has been mechanically programmed to reproduce the same piece. And
the difference is simply this: the master-pianist’s performance unfolds along a way of
­telling, the machine performance does not. The pianist, as Cage would put it, has noth‑
ing to tell, but is telling it. All true craft, as I have endeavoured to show, is a way of telling.
The ossification of telling in the language of embodiment, its reduction to a kind of
sediment, has its parallel in the way we tend to speak of habit. It has become common to
treat as habits the things we do unthinkingly, and without consideration. They are often
regarded as the unwanted detritus of ordinary activity, behaviours that have fallen out of
active commerce with the world and become stuck in repetitive patterns that may have
meant something once but no longer have significance today. They do not require to be
learned so much as unlearned. Usually they are judged to be bad. When did you last hear
anyone talking about their «good habits»? But I believe there is more to habit than this,
for it is a word that speaks more affirmatively of custom, of use, of dress, and even of care.
I would like to think of habit, like craft, as a way of telling. And what is most particular to
it is the way the practitioner is inside the action. The difficulty with the concept of habit
has always been to decide where to place the doer30. Are we, so to speak, in front of our

30
See CARLISLE, 2014.

27
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

habits or behind them? Do we make our habits or do our habits make us? The problem
arises so long as we are forced to choose between the active and the passive voice of the
verb, that is, between what we do and what we undergo. But in his reflections on Art as
Experience, philosopher John Dewey argued that we would do better to understand habit
in terms of the relation between the two. Neither in front of what we do nor behind it, we
are in the midst: our doing is also our undergoing, what we do is also done in us. In our
intercourse with the world, Dewey explained, we also inhabit the world31. Or in a word,
we dwell in habit. This, perhaps, is as good a definition as any of what it means to practise
a craft. A way of telling is also a way of dwelling, of inhabiting. Moreover, it is also a way
of using. To use something, after all, is to draw it into your habitual, or usual, pattern of
activity. Both you and it become brothers-in-arms, working together to joint effect. And
conversely, to be used to a thing is to accept it into your life as part of your custom. When
what we use is words, ways of telling become ways of speaking. And this brings me to the
final part of my argument, in which I shift my focus from works to words.

BEYOND VERBALISATION AND EMBODIMENT


For most of us, as we go about our lives, words furnish our principal means of
t­ elling. With them, we invite others to gather round, converse with them, join our own
life-stories with theirs, attend and respond to what they say and do. Enriched by the
­patina of everyday use, ever-varying in texture, they rise up in the gestures of the mouth
and lips in speech, or spill out onto the page in the traces of the writer’s hand. They can be
noisy or quiet, turbulent or serene. Words, spoken or handwritten, echo to the pulse of
things. They are conducive to rumination and enliven the spirit, which responds in kind.
They can caress, startle, enchant, repel. As philosopher Maurice Merleau-Ponty once put
it32, they are so many ways we have of singing the world and its praises. We could say that
words mediate a poetics of habitation. Yet as we look around, it seems that something
has gone seriously wrong in our relations with words. It is as though they have turned
against us, or we against them. We routinely hold them to blame for the suppression of
feeling, or for failing to account for the authenticity of experience. To get to what it really
feels like, we insist, we have to get beneath the words, or behind them. Words, it seems,
are no longer our habit, our custom or our dress. Rather, they have b ­ ecome the means
by which we dress things up, coating them with a gloss that obscures the truth these
things might otherwise tell if left to be themselves. Of course there are still people who
use words to plumb the depths of human feeling. But they have become the purveyors of
a specialist, and for many an arcane, craft. Instead of inhabiting the world poetically, we
have created a little niche in the inhabited world for poets33.
31
DEWEY, 1987: 109; cf. INGOLD, 2018: 21-22.
32
MERLEAU-PONTY, 1962: 187.
33
GELL, 1979: 61.

28
WORK AND WORDS: CRAFT AS A WAY OF TELLING

Perhaps no contemporary community has developed more of an antipathy towards


words than that which principally works with them. I mean the community of scholars,
and above all, those scholars who would regard themselves as academics. Scholars are
people who study; academic scholars, however, think of study in a particular way. For
far from studying with the world, or allowing themselves to be taught by it, they make
­studies of the world, claiming in so doing to have reached heights of intellectual supe­
riority from which things are revealed with a clarity and a definition denied to ordinary
folk. In their discourse, wholly given over to projects of explication, words have been
stripped of their power to move, to affect or to evoke. They are drained of feeling, and
barred from contact with the things of which they speak. Rather like the instruments
of the surgeon, they are kept immaculately clean to prevent any risk of infection. Once
infected, a word should immediately be sterilised, lest it should pollute other things with
it might come into contact. If a word too closely associated with one thing is applied
to another, then the division between them might become blurred, heralding cognitive
dissonance. In the surgery of academic thought, dedicated to the repair of such disso­
nances, it is ­essential that categorical boundaries are maintained, and it is the job of
words to do so: to put things at a distance, to pin them down, to impose a discipline,
and to hold an otherwise unruly world to account. This sovereign perspective requires
of academics that they keep their distance from the matters of their concern, and do not
get their hands dirty by mingling with them. This is what they mean by objectivity, and
words are the means by which they achieve it.
This is why academic words so often sound neutered, their force annulled by a
triple lock of suffixes: -ise, -ate, and -ion. Thus does «use», for example, become «utilisa‑
tion». As I have already mentioned, to use something, and be used to it, is to draw it into
your custom. Not so, however, with utilisation. For to utilise an object is to turn it to one’s
benefit while holding it at a remove. It is to deny any affective involvement, or common
feeling. The same goes for many other weapons of the academics’ armoury. If they never
use anything if not to «utilise»; then nor do they say anything if not to «articulate», mean
anything if not to «signify», tell anything if not to «explicate». The academic does not feel
words welling up in his mouth as he speaks or in his hand as he writes. They do not form
as affectations of the soul, nor do they take shape in the inflections of vocal or manual
gesture. Words for him are objects, to be arranged and rearranged like building blocks,
in different combinations and permutations, to form sentences. In short, the academic
is an articulator of verbal compositions. To articulate, as we have already seen, is to join
things up, not to join with them. That is why the idea of word-processing, anathema
to the writer’s craft, found such a warm reception in the land of academia. If words
are o
­ bjects, to be arranged at will, what could be more natural than serving them to a
­machine for processing? The combination of keyboard, screen and printer — the typical

29
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

apparatus of the academic writer — allows for verbal composition without any sentient
involvement on the part of those who «write» with it.
The appeal to signification, likewise, is a way of holding the world at a distance.
To find what things mean, you only have to work with them. But in a world of signs
we ­never touch anything directly; feeling is interrupted. Signification breaks the link of
­direct perception, just as articulation breaks the link between hand and word. If meaning
is hands-on; signification is hands-off. So it is, too, with explication. It is not enough for
the academic to tell of what he knows. It must be explicated, spelled out in a j­oined-up
sequence. Every such sequence is a sentence. But «sentence» has a double meaning: it is
also a term of incarceration imposed by a judge. As the criminal is sentenced in the court
of law, so words are sentenced in the court of explication34. Here in this court, acade­
mics are both judge and jury, both author and reviewers. Between them, they conspire
to hold all words captive, and to prevent their escape into sentient life. Yet ironically,
the very word «sentence» comes from the same root as «sentience», and has acquired
its current meanings — in the fields of both language and law — from the repression of
feeling. It is a repression, clearly, for which most academics feel a shadow of guilt. Their
tendency, however, is to shift the guilt onto their accessories, onto the words themselves.
For ­having first used words to put things at a distance they then accuse not just their
words but all words of setting up obstacles, of getting in the way of the unmediated rela‑
tion with lived experience for which they yearn. Having thus rendered this experience
wordless, and thus tacit, it is left to sink into the inaccessible depths of the body.
The result is the opposition between verbalisation and embodiment, the one
­allegedly explicit, the other tacit, that so much academic analysis has taken as its starting
point. My objective, to the contrary, has been to restore both words and habits, ways of
speaking and ways of telling, to hapticality. Habits are no more sedimented in the body
than words liberated from it; rather, both words and habits are animate. They are ways
of being alive. Let’s not be afraid, then, to meet the world with words. Other creatures
do it differently, but verbal intercourse has always been our human way, and our entitle‑
ment. Words are human things. But let these be words of greeting, not of confrontation,
of questioning, not of interrogation or interview, of response, not of representation, of
anticipation, not of prediction. This is not to say that we should all become poets or
novelists, let alone that we should seek to emulate philosophers who, when it comes to
their worldly involvements, have signally failed to practice what they preach, and for
whom neither coherence of thought nor clarity of expression has ever been among their
strongest suits. But it does mean that we scholars should work our words as craftspeople
work their materials, in ways that testify, in their inscriptive traces, to the labour of their
production, and that offer these inscriptions as things of beauty in themselves.

34
INGOLD, 2018: 51.

30
WORK AND WORDS: CRAFT AS A WAY OF TELLING

REFERENCES
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WITTGENSTEIN, Ludwig (1922) — Tractatus Logico-Philosophicus. London: Kegan Paul, Trench, Trubner.

31
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

32
PARTE I
ETNOGRAFIAS

Como todo o livro, esta secção caracteriza-se pela hetero­ge­neidade. Reporta-se a c­ ontextos
portugueses, brasileiros, e de uma atuação colonial específica em África. ­Trata da «arte»
da tecelagem, da pirotecnia, da relação do humano com o animal (bois de prestígio e
­«combate», extração robotizada do leite de vaca), da manutenção de d ­ oçaria tradicional,
de um peculiar instru­mento musical de tipo viola e sua produção, da rede de dormir tão
caracteristicamente brasileira, da utilização da fotografia para registo e­ tnográfico de uma
realidade em transformação, e, ainda, da realidade social inquietante das condições de
trabalho de cortadores de cana do açúcar.

33
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

34
TEIAS COM SABER
TERESA SOEIRO*
ANA DOLORES LEAL ANILEIRO**

Resumo: Maria José Rocha, nada e criada em meio rural, no lugar do Preisal (Fonte Arcada, Penafiel), é uma
das derradeiras tecedeiras de panos de linho em tear manual, cuja excelência e dinamismo nos questiona
sobre a resiliência, em novos contextos económico-sociais e sistemas simbólicos, da produção autónoma,
transmissão familiar do saber e capacidade de adaptação, no século XX, de ofícios e modos de fazer de cariz
pré-industrial. Procuramos ainda sumariar o percurso da actividade linheira em Penafiel, desde o auge
no final do Antigo Regime até à obsolescência face à não industrialização e ao domínio do mercado pelo
algodão e fibras sintéticas, consumo que remeteu o tecido de linho manual para a marginalidade/excepcio‑
nalidade do artesanato.
Palavras-chave: tecelagem do linho; tecedeira Maria José Rocha; Fonte Arcada; Penafiel.

Abstract: Maria José Rocha, born and raised in Preisal village (Fonte Arcada, Penafiel), is one of the last
linen cloth weavers using a manual loom. Her excellence and dynamism led us to examine the resilience of
the independent making in new social-economic contexts and symbolic systems, the transmission of know-
how within a family, and the adaptability of the pre-industrial crafts and ways of making in the 20th century.
We also sum up the progress of the flax/linen activity in Penafiel since its peak at the end of the Modern
Age up to its obsolescence in view of the non-industrialization and the market dominance of cotton and
synthetic fibers. The consumption of the latter confined the manual linen cloth to a peripheral/exceptional
use in handicrafts.
Keywords: linen weaving; the weaver Maria José Rocha; Fonte Arcada; Penafiel.

* U. Porto – Faculdade de Letras/CITCEM. Email: msoeiro@letras.up.pt.


** Museu Municipal de Penafiel/CITCEM. Email: ananileiro@gmail.com.

35
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

1. TEIAS
A rotina da aprendizagem do fazer nos ofícios tradicionais marcou muitos indi‑
víduos desde a infância/juventude, para quem o trabalho artesanal foi meio de sobre­
vivência e destino. Contrastam com a excepcionalidade de alguns que sobressaíram
desta formatação no exercício da normalidade pela sua invulgar capacidade de criar,
associando a excelência do fazer à inovação, ao empreendedorismo na organização da
produção e comercialização dos produtos, à motivação para ensinar.

Figura 1.

Ancorámos o trabalho na observação etnográfica do percurso de vida de uma


t­ecedeira de linho, Maria José Rocha, nascida num contexto rural da primeira metade
do século XX, no lugar de Preisal, da freguesia de Fonte Arcada (Penafiel), onde cultivar
e fiar eram tarefas comuns e distintivas de género na casa de lavoura, na qual existia
frequentemente um tear que ocupava os braços dispensáveis da agricultura, gerando
produtos básicos para auto-consumo e venda no mercado local.
Outros agregados familiares, não tendo terra suficiente, viam-se em dificuldade
para criar um grande número de filhos, entregando a enculturação profissional de parte
deles a terceiros, de forma a abrir-lhes melhores perspectivas de sustento no presente e
de aprenderem um ofício para o futuro, colmatando necessidades da comunidade.
A tecelagem do linho1 está, no território alvo, bem documentada desde a Antigui‑
dade pela Arqueologia e foi especificamente regulamentada no final da época Moderna,
com a aprovação pela Câmara, em 1742, do respectivo regimento das tecedeiras, sendo

1
SOEIRO, 2002; ANILEIRO, 2010.

36
TEIAS COM SABER

que tal regulamentação se distingue das impostas em simultâneo (alfaiates, carpinteiros,


ferreiros, sapateiros, etc.), por ser a única pensada no feminino: o juiz do ofício seria
uma mulher, que, como os demais, «levarão por examinarem cada official a cem reis
cada Juiz, e o mesmo se praticará a respeito das tecedeiras»2.
Esta estreita ligação da fiação e tecelagem ao género feminino arrasta consigo uma
grande opacidade em relação às profissionais, já que a maioria das mais acessíveis fontes
documentais com indicação da actividade exercida, por exemplo livros de Ordenanças,
Décima, recenseamentos eleitorais, etc., foi construída em função dos homens e cabeças
de casal, com uma quase invisibilização da mulher.
Outra distinção, interna ao grupo, diz respeito às qualificações, entre aquelas
que apenas sabiam tecer e as mais especializadas, com acréscimo de remuneração por
­urdirem teias; as que o faziam para consumo familiar e por isso mesmo nos registos
paroquiais figuram sob a mais prestigiante classificação de lavradeira ou dona de casa e
as profissionais assumidas.
No nosso caso de estudo, dois séculos, posterior e já liberto das peias corpora­
tivas do Antigo Regime, a tecedeira, profissional, não só sabe urdir todo o tipo de teias
que trabalha como o fez para outras habituadas apenas a tecer, sem o domínio daquela
­técnica. Mas, mais do que a capacitação para preparar o fio, urdir teias e tecer segundo
o cardápio tradicional, o que realça neste percurso singular é o seu profundo entrosa­
mento com o material e a técnica (lembrando as reflexões de Tim Ingold3), a sensibi‑
lidade para analisar a qualidade da matéria-prima, o prazer de pensar a teia a urdir e
empeirar, antecipando, em abstracto, o padrão que vai resultar no tecido, fruto de cada
opção, de cada gesto na distribuição dos fios e sua montagem no tear.
Admirámos também o orgulho na profissão exercida com mestria, a vontade de
ensinar futuras tecedeiras, de explicar aos compradores o bem que estão a adquirir, a
inquietação de transmitir e perpetuar o saber-fazer, que tão útil foi aos nossos traba‑
lhos e ao Museu Municipal de Penafiel, pela imensa disponibilidade e generosidade ao
longo dos anos.

2. LINHAS DE FORÇA DA ATIVIDADE LINHEIRA EM PENAFIEL


Vamos deixar de lado o chamado ciclo do linho, desde a escolha do campo para
a sementeira à elaboração do fio pronto a tecer4. Convém, no entanto, salientar que,
possivelmente pela rigidez dos contratos de aforamento e respectivas rendas, o cultivo
desta planta têxtil foi prática corrente na região de Entre-Sousa-e-Tâmega até meados
do século XX, quando o alógeno algodão já era aí fibra comummente usada, mesmo
dominante no vestuário e atoalhados.
2
AMPNF – A 7: Livro de registo dos acordãos da cidade de Penafiel, 1805.
3
Em particular, INGOLD, 2013.
4
Para todo o processo, veja-se OLIVEIRA et al., 1978.

37
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Figura 2.

Figura 3.

38
TEIAS COM SABER

A esta resiliência corresponde um saber prático bastante difundido dos vários


t­ rabalhos no campo e no tratamento a dar às palhas colhidas para as transformar em fio,
tarefas que envolviam os co-residentes na casa de lavoura, ficando algumas etapas então
preferencialmente a cargo dos homens, como a sementeira, ripagem ou maçagem no
engenho, e muitas outras adstritas ao quotidiano feminino, de que se destacam a fiação
e acabamentos do fio. Momentos havia em que estes trabalhos extravasavam a casa e
se tornavam de entreajuda vicinal, colectivos e festivos5, como a arrinca ou as espade­
ladas, reforçando a solidariedade da comunidade, proximidade mais polissémica entre
os ­jovens em idade de encontrar parceiro.
A fibra de linho de produção doméstica local resultaria do cultivo e transformação
primária realizados pelo agregado, com eventual auxílio dos vizinhos para a espade­
lagem e assedagem. Neste estado, ficava em condições de estar guardada anos, em local
seco e resguardado, até ser continuada a sua transformação.
Dependendo da quantidade de estrigas processadas e da mão-de-obra domés­
tica feminina dispensável da agricultura (permanente ou sazonalmente) que à fiação
se ­pudesse dedicar, e não apenas pegar na roca ao serão, quando vigiava o gado ou no
desempenho de outras actividades que deixavam as mãos livres, a passagem da fibra a fio
poderia ser entregue fora, habitualmente a idosas isoladas, ou mulheres de famílias com
pouca terra/rendimentos, que assim receberiam retribuição por um trabalho que as não
afastava das suas rotinas6. A este fio acrescia, em casas de maior dimensão, o resultante
das rendas dos caseiros e foreiros, em estriga ou já fiado, constituindo-se desta forma a
reserva de matéria-prima para a tecelagem tradicional, um sem-número de meadas e
novelos de qualidade muito díspar, não só por se tratar, naturalmente, de linho, estopa
e tomentos, mas também devido à diferente capacidade técnica e empenho de quem
os aprontou e à exigência do dono. Meadas de bom fiado cozidas no pote com cinzas
quase uma semana e depois fortemente batidas na pedra ao serem lavadas davam como
resultado um fio bem torcido e muito limpo, condição para tecer panos finos de trama
apertada, muito resistentes, características que se foram perdendo na segunda metade
do século XX.

5
OLIVEIRA, 1955.
6
Comparável com a situação em Guimarães: MEIRA & SAMPAIO, 1884: 41-43.

39
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Figura 4.

Figura 5.

40
TEIAS COM SABER

Obtido o fio de linho, passamos ao tema que agora nos interessa, a tecelagem.
­ ambém esta se fazia em contextos diversificados, de que passamos a referir algumas
T
situações exemplares. Em primeiro lugar, muitas casas de lavoura tinham tear onde
se teciam os panos para uso próprio. Mais uma vez, eram as mulheres idosas e as não
­necessárias ao trabalho do campo, ou aquelas que o agregado isentava dos serviços
vulga­res para as preservar e valorizar socialmente, que tinham disponibilidade para tecer
panos, de consumo doméstico e para acumular nas arcas ou, tratando-se das jovens, as
peças do seu bragal, tendo em vista o desejado casamento.
Os excedentes, sobretudo o pano liso em peça, ficavam disponíveis a serem ­levados
à feira para venda a consumidores e intermediários, figura referenciada, desde o século
XVII, na feira de S. Martinho de Penafiel, onde as compras realizadas por estes seriam
suficientemente importantes para motivarem a intervenção do Corregedor da Comarca,
em 1668 e novamente em 1750, uma actuação contra as fraudes que obrigou as tece­
deiras a apresentar os panos com uma vara por dobra, tendo o comprimento que parecia
ao comprador, impossibilitado de estender toda a peça para a medir, e de qualidade
uniforme, pois por vezes aparentava ser linho fino, pela observação do princípio da
peça, mas depois revelava-se grosseiro no interior7. Os intermediários reuniam aquelas
­pequenas produções e com elas incrementavam o seu comércio no mercado nacional e
de exportação, por exemplo com destino a Espanha e ao Brasil8. O numerário recebido
pelos produtores ajudaria a comprar para casa bens em falta, a pagar os impostos, a
­entesourar para necessidades imprevistas9.
Em segundo lugar, tal como para a fiação, a feitura do pano era frequente­mente
­entregue a profissionais — as tecedeiras, que se deslocavam à casa ou trabalhavam
no seu domicílio, por conta de quem tinha fio, recebendo dinheiro ou uma parte da
matéria-prima que, por sua vez, teciam e vendiam. Estamos a falar ainda de mulheres,
­disseminadas no espaço não urbano, uma vez que nos registos paroquiais setecentistas
de Penafiel/Arrifana já sistematizados há apenas uma menção à profissão de tecedeira10,
e no Livro do Arruamento da Vila (1762)11 os três tecelões (1 mestre com o oficial + 1
mestre) trabalhavam seda.

7
AMPNF – A 2031: Livro das sentenças e capítulos das correições do Corregedor da Comarca, 1750, Dezembro, 23;
ALMEIDA, 1830: 45-46.
8
A. L. de Carvalho (1941: 51-65) dá-nos uma imagem do volume e conflituosidade deste trato em Guimarães, no
século XVII. Também em Arrifana/Penafiel esta presença esteve longe de ser pacífica, sobretudo em meados de
setecentos, nas primeiras décadas que se seguiram à separação do termo do Porto. Os negociantes locais viam com
maus olhos a estadia dos seus pares portuenses pelos dez dias da feira, porque se sentiam prejudicados na atividade:
AMPNF – A 6: Livro das vereações da Câmara: 2 de Setembro de 1752; AMPNF – A 9: Livro dos atos de vereação da
Câmara: 3 de Janeiro de 1756; IAN-TT – Desembargo do Paço: Minho, mç 6, doc. 57.
9
Situação próxima ao que se passou na Galiza: CARMONA BADÍA, 1990: 77ss.
10
DUARTE, 1972: 136.
11
BERNARDO, 2012, vol. 2: 189 e 201.

41
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Como recordava, nos finais do século XVIII, Manoel Joze Ferreira Grelho, penafi­
delense transformado em empresário e industrial de estamparia, com fábrica em Setúbal:

Penafiel, centro de importante fabrica do melhor pano de linho he a minha


­patria onde conheci o que he fiar, curar, dobar e tecer, e vi que muitas familias
­daquella terra e das vizinhas, com desenbolço de alguns tostoens para a compra do
linho recebem pelo seu trabalho, depois de posto em pano, muitos mil reis, com que
remedeão as suas precizoens; e aquelle modo de vida he ali tão antigo que ninguem
se lembra do seu principio: todos anciozamente trabalhão pelo seu bem particular, e
geralmente pelo do publico; e aquelle que parece insignificante commercio faz reco-
lher annualmente na Provincia do Minho huma soma consideravel e concorre para a
opulencia da praça da cidade do Porto12.

Na feira de S. Martinho, no início do século XIX, negociavam-se cerca de 16.000


­varas de pano de linho e estopa, no valor de 5.760$000 réis, «cuja quantia fica nas
mãos dos labradores, que vizinhão com Penafiel na distancia de duas até tres legoas»13,
­observou o académico António d’ Almeida, médico do partido desta cidade.
Outro memorialista com casa nobre no concelho, o Visconde de Balsemão, reforça,
na mesma conjuntura, a importância destas transacções:

dos pannos de linho da Lixa e de Penafiel que, pela sua bondade, são procu­
rados de grandes distancias. E terião ainda mais sahida se não fossem alguns delles
de dois linhos, isto he, do mar e da terra, costumando urdir com o do mar e tecer com
o da terra, o que faz que o panno não tenha igual dura e mesmo não seja igual no fio
e mesmo cheio de canelas e cadilhos e ourelas desiguaes14.

A propósito desta observação crítica, da tecelagem ser realizada na área de Penafiel


não só com linho da terra, mas misturando-o com outro que vinha de fora — linho do
mar, importado da Europa do Norte15 e vendido às numerosas tecedeiras (na freg. de
Paço de Sousa, em 1815, eram 10% dos profissionais com ofício registado e há uma carta
de exame feminina) não sabemos se através dos mesmos intermediários que recolhiam
os panos, ponderamos uma terceira possibilidade de organização do trabalho, a de
serem os próprios intermediários a colocar os teares ao domicílio, fornecer o fio e a

12
AHMOP – MR 41: Estamparia.
13
ALMEIDA, 1815: cap. 24 §2.º.
14
MENDES, 1980: 99.
15
Rebêlo da Costa refere, entre os produtos do Báltico importados pelos negociantes do Porto, o linho de fiar, que
atingiu a quantidade de 144.315 quintais em trinta meses, de Julho de 1782 a Dezembro de 1784 (COSTA, 1945:
262). Na primeira metade do século XVIII, são também muitos os barcos que entram na cidade, com declaração de
proveniência Riga, Hamburgo, Amesterdão, Suécia, etc, trazendo linho e estopa, fardos, sendo que vários oriundos
do primeiro porto identificam apenas essa mercadoria (CARDOSO, 2003: 893-908; 953-1096).

42
TEIAS COM SABER

recolher as produções para as negociarem no mercado supra-regional, ou seja, e­ starem


as tecedeiras integradas numa rede de dependência, em putting out system. Não pare­ce
ter sido assim a relação, mas antes tratar-se de um exemplo de pluriactividade
­camponesa16, que cria espaço para a produção artesanal do tecido sendo as próprias
ou a r­ espectiva casa a possuir «os aprestes para o mesmo officio» (1801), a controlar a
produção apresentada para venda e a amealhar os pequenos proveitos, Kaufssystem, bem
estudado para a tecelagem linheira galega17. Um valor substancial ficaria, evidentemente,
para o capital mercantil que conduzia os bens de e para outros círculos.
Esta dinâmica parece prolongar-se, adaptada, para as primeiras décadas de
­oitocentos, embora em 1829 laborasse uma pequena fábrica de tecidos de algodão na
cidade, com um mestre, quatro oficiais e um aprendiz. Escoava nas feiras a sua produção
de cerca de 5.000 varas de tecidos variados. Já o recenseamento eleitoral de 183618 apenas
inscreve quatro homens classificados como tecelões (2 na cidade + 1 em Pinheiro + 1 de
Valpedre). Como antes, a significativa quantidade de linho vendido nas feiras proviria
do trabalho feminino independente, realizado em contexto doméstico rural.
Na segunda metade de Oitocentos, a situação vai alterar-se, uma vez que a indus‑
trialização, com base no algodão, dará preferência não ao território penafidelense, mas
ao Porto e a outras terras, algumas bem próximas como o Vale do Ave19, onde em 1845
se instalara a fiação industrial — Fiação do Rio Vizela (Negrelos, Santo Tirso). Mesmo
assim, segundo o Inquérito Industrial de 1881, no concelho de Penafiel haveria ainda
400 a 500 teares para linho em laboração:

os teares formam officinas que tecem por conta propria vendendo os pannos e
alimentando um commercio ainda relativamente importante, embora decadente.
A producção industrial póde orçar-se em 3 a 4:000 teias ou peças de 19 a 20 metros,
cujo valor médio é de 5$000 teia. A exportação de agora destina-se principalmente ao
Porto e a Lisboa, tendo-se extinguido, não se sabe porque motivos, a exportação que
se fazia para Hespanha até ha 10 ou 15 annos20.

Entre as últimas décadas do século XIX e a primeira metade do seguinte, Penafiel


não reconverteu a sua tradição têxtil para indústria algodoeira, nem sequer acompanhou
as tentativas de mecanização no subsector do linho, como fez Guimarães21, e­ mbora o
contínuo estreitamento do mercado para estes produtos se tornasse irreversível, com

16
DOMÍNGUEZ MARTIN, 1995: 98ss.
17
CARMONA BADÍA, 1990: 94.
18
AMPNF – A 1590 a 1621 Livros de recenseamento… para a eleição de deputados, 1836.
19
ALVES, 1999 e 2002.
20
Relatorio, 1881: 44-45. No recenseamento eleitoral de 1879, os tecelões inscritos eram 23, distribuídos por oito
freguesias, havendo na cidade 4: AMPNF – A 1633 a 1641 Cadernos de recenseamento, 1879.
21
Como anunciado no Relatório da exposição de 1884: MEIRA & SAMPAIO, 1884: 45-54; ALVES, 2002.

43
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

r­aras e limitadas tentativas de reversão em tempo de guerra e pretendida autarcia22.


Comparando duas contabilizações da área dedicada à cultura do linho em Portugal,
­realizadas em 1871 e 1941, verifica-se uma redução drástica no intervalo destas sete
décadas, sendo 15 vezes inferior (6,68%) na segunda data23.
Sem renovação, em Penafiel sobreviveram os velhos teares de produção artesanal
em contexto rural, que ainda chegaram à viragem para o novo milénio. O inquérito
­Artes e Ofícios Tradicionais, efectuado em 1988 por iniciativa do Ministério da Educa‑
ção, arrolou 44 tecedeiras, das quais 26 a trabalhar linho, número significativo, porém,
entretanto, muito reduzido. As resistentes tecem frequentemente fio saído do fundo
das arcas, de que só um olhar experiente e uma mão treinada sabe avaliar a qualidade
e ­estado de preservação. Para complementar esta reserva, levada pelo encomendador
da obra ou, tantas vezes, adquirida pelas tecedeiras a preço avultado, estas recorriam
à ­aquisição de fio de linho industrial da Companhia de Fiação de Torres Novas (fund.
1845), mas também ela encerrou. Poucos são os estabelecimentos, como a Casa Oliveira,
no Arco de Baúlhe, onde hoje as profissionais podem obter as bobines de fio de linho
industrial, que cruzam com o da terra, e nós, consumidores, comprar panos de linho a
metro ou trabalhos de mestras desta arte.

3. MARIA JOSÉ ROCHA, A MESTRIA DO TECER


Também preferimos a designação de mestres ou artistas para os de excelência, não
a de artesãos. Estão na sequência das antigas artes e ofícios mecânicos que, na documen‑
tação escrita, conhecemos melhor nos centros urbanos, onde ficavam sujeitos à organi‑
zação e vigilância das corporações, particularmente actuantes em Portugal durante o
Antigo Regime. Penafiel não foi excepção, logo que se criou a administração municipal,
esta tratou de regulamentar os ofícios, e entre eles o de tecedeira.
Voltamos a este marco para fazer a ponte com o caso de estudo, salientando a
­prevalência dos panos lisos, do mais fino lenço à vulgaríssima estopa grossa, sendo
­pouca a variedade de texturas e padrões. Especifica-se as toalhas de olhos delgados, que
além de decorativas tinham uma especial carga simbólica, pois até ao século XX (ou
XXI?) foram indispensáveis a determinadas benzeduras e para talhar maleitas. Por outro
lado, sublinhamos a circunstância de se pagar à parte o trabalho de urdir fora.

22
Desde o século XIX que o linho foi preterido, para uso quotidiano, face ao algodão industrial, tornando-se numa
actividade condenada à obsolescência (GERALDES, 1913). Sobre a tentativa de fazer ressurgir o têxtil-linho, veja-se
as experiências realizadas no início dos anos 40: GRAÇA, 1943.
23
MARTINS, 1944: 33-34.

44
TEIAS COM SABER

Regimento das Tecedeiras [1742]

As tecedeiras desta Villa e seu termo que fizerem teias de panno de linho fino de marca que passe de
setenta linhois se avira com o dono conforme o fio e coalidade delle que sendo athe setenta linhois 30
levara a tecedeira por vara trinta reis

e sendo de setenta para baixo por vara vinte e sinco reis 25

De pano de lenços a vara a vinte reis 20

Como tambem a estopa fina a vinte reis por vara 20

As toalhas de olhos delgados de estopa por vara a corenta reis 40

e sendo groças a trinta reis 30

A estopa liza groça por vara a quinze reis 15

Averão as tecedeiras de merenda pello travalho de urdir as teias por cada ramo de coatro varas sendo
15
panno de linho quinze reis

e pella estopa des reis por ramo 10 reis24

24

Figura 6.

24
AMPNF – A 4: Livro de registo dos acórdãos e mais coisas pertencentes à Câmara, 1741-1746.

45
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Maria Rocha, a avó materna de Maria José Rocha, nasceu no lugar do Preisal a 17
de Abril de 1873, sendo filha de João da Rocha, lavrador, de Fonte Arcada, e de Joaquina
Ferreira, lavradeira, natural de Cête (Paredes)25. Residiu no Preisal, onde um proprie­tário
da mesma freguesia de Fonte Arcada teria comprado habitação para criarem os ­filhos,
nascidos fora de casamento. Com parcos recursos, era tecedeira de pano liso g­ rosso e
mantas de tiras, o mais básico trabalho do tear, feito em muitas casas para aproveitar a
roupa velha que, passada a tiras, podia ser tecida com fio grosso de estopa ou tomentos,
obtendo-se as coberturas para o leito.
Da geração seguinte sobreviveu Laurinda, nascida a 29 de Março de 1904 e apadri­
nhada pelos tios maternos, Tomás e Laura26. Continuou a morar na casa que fora da
progenitora, cedo falecida (1931/07/08), não casou, viveu sempre do tear, sabia bastante
mais do que ela, trabalhava bem o linho e tinha uma competência pouco vulgar, u ­ rdia e
carregava qualquer tear para os diversos trabalhos. De saúde muito débil por ter s­ ofrido
grave doença quando as duas filhas ainda estavam na infância, apesar das sequelas e
­fortes limitações criou-as com o seu ofício. Uma que detestava o tear, a outra — Maria
José (nasc. 1937/03/03), sonhava com ele, de tal forma que em criança, quando regres­
sava da escola primária e a mãe não estava em casa, gostava de experimentar tecer. A­ inda
sem a altura nem o peso necessários, metia-se no tear, mas precisava de carregar com o
dois pés num só pedal para o fazer baixar, depois colocava sobre ele pedras e trepava às
traves para empurrar a lançadeira e bater o pente, antes de se colocar sobre o outro pedal
e repetir a operação. O resultado inevitável era estragar o trabalho da mãe e sofrer as
consequências. Ela teria de desmanchar tudo para recuperar o fio e seguir a tecelagem.
Mas assim foi interiorizando o saber, para lá das palavras e explicações, a ver fazer, a
experimentar, a adaptar o corpo ao gesto ainda sem ritmo, a afinar a sensibilidade para
fios e texturas.
Completada a escola primária — e Salazar decidiu que três anos era instrução
­suficiente para as meninas —, foi aos onze anos servir numa casa de família no Porto,
que deixou com treze, quando já ganhara estatura. No regresso, a sua prova de fogo, a
ver se perdia o vício do tear, sugeriu-a a irmã: completar uma teia velha de manta de
retalhos urdida a tomentos, o pior fio, que estava constantemente a rebentar. Perseverou
e ­cumpriu, a mãe agradeceu a colaboração e aos catorze anos pô-la a tecer mantas com
teia de algodão, que se faziam bem.
Em períodos de menos pedidos, também teceram peças de entretela no tear do
linho, que seguiam para acabamento em calandra no Porto ou em Avintes. O aspecto
mais difícil e desagradável destas empreitadas residia na preparação do fio com a maté­
ria-prima que chegava pelo comboio, o pêlo de cabra e a crina de cavalo carregados de

25
PT-ADPRT-PRQ-PPNF12-001-0011, fl. 43.
26
PT-ADPRT-PRQ-PPNF12-001-0017, fl. 27.

46
TEIAS COM SABER

cal para desinfectar. A memória da repugnância ficou gravada, mesmo a fiar linho de
casa fá-lo com uma malga de água ao lado, não leva os dedos ou o fio à boca para reco‑
lher a saliva como era uso corrente.
Aquele trabalho rotineiro de tecer mantas, que para muitas tecedeiras foi o único
que repetiram toda a vida, cedo deixou insatisfeita a ânsia de aprender da jovem. Logo
propôs à mãe acabar uma teia de toalhas de linho com aparanchado difícil que há anos
estava no tear grande, já empoeirada. A tecedeira não acreditou, mas à noite, na cama
em que dormiam, lá lhe explicou como se fazia o trabalho. De manhãzinha, levantou-
-se animosa e desceu à loja térrea dos teares para experimentar; conseguiu avançar dois
­quadrados de 8x12 fios e quase nada precisou de corrigir; depois, com a autorização da
progenitora, realizou o que faltava da peça. A partir daí, tecia de tudo, 10-12 horas por dia,
aos quinze trabalhava mais do que a mãe que, embora videira, há muito perdera a saúde.
Teciam para quem lhes levava o fio de linho pronto, só compravam o algodão de urdir,
se fosse o caso. Isto tornou-se mais comum à medida que a reservas de linho se foram
esgotando, mas já estavam habituadas a comprá-lo por causa da urdidura das mantas.
Também com a progenitora aprendeu a urdir, a calcular e preparar o necessário
para carregar o tear tendo em vista determinada obra. Esta era, aliás, uma tarefa em que
a mãe gastava muito tempo e energia, ia a pé a várias casas da freguesia (em Anho Bom,
Barral, Casal, Eiras, Freimonde, Marmoiral, etc.) e a outras bem longe (p.e. Cête, Parada,
Recarei e Sobreira, do concelho de Paredes, ou Fânzeres, de Gondomar), levando na
mão a escada (o restilho), acompanhada por outra mulher que carregava à cabeça a teia
urdida de véspera no Preisal para a irem colocar e começar o pano, porque poucas tece‑
deiras se atreviam a empeirar, qualquer engano inutilizaria ou pelo menos desvalorizava
todo o trabalho. Com a teia instalada e a obra iniciada, o saber tecer resumia-se ao jogo
dos pés nos pedais.
Laurinda ensinou o básico do ofício a muitas jovens que a rogavam, desde que
­tivessem tear em casa e estatura (min. 14-16 anos). Ao fim de umas horas sabiam
­avançar, trocar a canela na lançadeira e reparar um fio partido, mas no futuro seriam
outras ­tantas a quem teria de carregar o tear. Um dia a filha sugeriu-lhe ser bem mais
­interessante se aprendessem a realizar todo o processo, permitindo-se usarem a urdi­
deira no Preisal, pois não dispunham dela nas suas casas, e pedir conselho.
Maria José Rocha casou aos 23 anos e passou para outra pequena casa, próximo
da mãe. Sonhou vir a construir uma nova e cómoda para a família, com loja e montra
­voltada à estrada, e conseguiu-o com muito trabalho e economia, em 2002. Teve onze
filhos, não deixou de trabalhar senão pontualmente, nem perdeu aquela vontade de
transmitir herdada do exemplo materno: todas as filhas sabem tecer, mesmo os rapazes
habituaram-se a executar trabalhos, sobretudo quando adquiriu numa empresa têxtil

47
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

do Vale do Ave uns teares mecânicos com máquina, próprios para o algodão27. Ensinou
muita gente de fora e os organismos estatais pediram-lhe, no início dos anos Oitenta,
para orientar, em casa, um curso profissional com seis formandas.
Nessa década e na seguinte, as de maior procura, chegou a coordenar a produção
de vinte e duas mulheres. Solicitava a umas a preparação da fibra, a outras o fiar e curar as
meadas, ela própria, as filhas e as tecedeiras que formara trabalhavam nos teares e acaba­
mentos, ainda que pudessem desempenhar todas as demais tarefas. Mesmo vizinhas de
idade adiantada, que na já longínqua infância haviam fiado, voltaram a pegar na roca
para somar mais um provento à parca reforma. A fase de preparação do fio ­mostrou-se
decisiva, correspondendo a cerca de 50% do preço final. Fiar 1kg de linho exigia uma
semana com noitadas; quando chegou aos 8.000$00 (±40€), o valor era pouco para o
trabalho da fiandeira, demasiado para a tecedeira vender os ±3m de pano que rendia.
Texturas de aparanchados e tapulhos

27
Um destes teares em ferro fundido, fabricado, como indica a marca, na F[undição] União de Lordelo/de/
Alfredo Cardoso/Porto, integra o acervo do Museu Municipal de Penafiel, com a referência de inventário
MMP-NF/1993/001332.

48
TEIAS COM SABER

Pensamos, porém, que esta tecedeira se distingue verdadeiramente não apenas pela
exímia mestria como executante do ofício de tecer, mas sim pela sensibilidade para os
materiais, que observa e toca até perceber as suas características intrínsecas e os limites
do que melhor pode realizar com tais fios. A capacidade criativa e inteligência dos meios
técnicos permitiram-lhe dirigir a construção e afinar qualquer tear manual, ou mesmo
interpretar os teares mecânicos, como sucedeu quando quis adaptar os de algodão para
trabalharem com fio de linho industrial, replicando a muito maior velocidade/rentabi­
lidade os aparanchados dos manuais, para o que teve de fazer o debuxo da passagem dos
seus empeirados para as tabuinhas do tear mecânico e pô-lo a trabalhar só com quatro
liços, quando o técnico afinador lhe dizia não ser possível.

Figura 7.

A mãe contou-lhe que passara uma tarde, com outra mulher, a olhar para um t­ ecido
já gasto, do difícil aparanchado dito sem direito, até descobrir como o fazer, porque uma
tecedeira mais velha fora soberba, recusara-se a explicar-lho (nem às filhas ensinava, só
aos rapazes!). Tendo uma amostra diante, sabia sempre reproduzir. Maria José da Rocha
foi além. Como a própria diz, atendendo a que dorme mal, passava a noite a imaginar,
desenhava na sua mente as texturas e a composição com que inventava um padrão que
nunca tinha feito ou visto. Despontando a luz do dia, metia-se no tear a experimentar,
tentativa/erro, a pensar com os olhos e os dedos28, até conseguir ultrapassar as dificuldades

28
INGOLD, 2013: 111.

49
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

e corrigir quaisquer imperfeições para chegar ao resultado visualizado na sua mente.


As combinações que já fez são incontáveis e difíceis de inventariar29. Algumas tão subtis
que ao primeiro olhar duvidamos se é um pano tecido ou bordado.
Making parece a palavra-chave para este entrosamento construído com sensibi‑
lidade, observação curiosa e persistente experimentação, saber-fazer sedimentado que
molda o corpo, lhe dá ritmo e inteligência em busca de novos saberes para voltar a fazer,
numa infindável interrogação sobre a especificidade profissional e o mundo.
Nas décadas de 70-90 do século XX, à medida que o pano de linho deixou de ser
necessidade para o quotidiano e passou a significar distinção, prazer de possuir e m
­ esmo
memória, intrinsecamente com valor acrescentado para uma clientela conhecedora e
com disponibilidade económica, a criatividade sob a capa de artesanato pôde ganhar
asas. Mas, visto de onde estamos hoje, esse voo mais parece o de Ícaro. Consideramos,
por isso, ser este um domínio do património cultural imaterial a carecer de registo de
urgência, enquanto existem profissionais e percursos de vida desta intensidade.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, António d’ (1815) — Descripção Histórica e Tipografica da cidade de Penafiel. Parte 3.ª — Histo-
rico-Fizica. Lisboa: ACL – Série Azul, ms. 1774.
(1830) — Descripção Histórica e Topográfica da Cidade de Penafiel. «Memórias da Academia Real de
Ciências de Lisboa», tomo X, 2.ª parte. Lisboa: Academia Real das Ciências.
ALVES, Jorge Fernandes (1999) — Fiar e tecer. Uma perspectiva histórica da indústria têxtil a partir do Vale
do Ave. Vila Nova de Famalicão: Museu da Indústria Têxtil.
(2002) — O Trabalho do Linho. In MENDES, J. A.; FERNANDES, Isabel M., coord. — Património e
Industria no Vale do Ave. Um passado com futuro. Vila Nova de Famalicão: Adrave, p. 292-299.
ANILEIRO, Ana Dolores Leal (2010) — O linho no concelho de Penafiel. Porto: FLUP (diss. mestrado)
­<TESEMESANAANILEIRO000128427.pdf>.
BERNARDO, Maria Helena Parrão (2012) — Do lugar de Arrifana de Sousa à cidade de Penafiel. Urbanismo
e arquitetura (séculos XVI-XVIII). Porto: FLUP (diss. mestrado).
CARDOSO, António Barros (2003) — Baco & Hermes: o Porto e o comércio interno e externo dos vinhos do
Douro (1700-1756). Porto: GEHVID.
CARMONA BADÍA, Joám (1990) — El atraso industrial de Galicia. Auge y liquidación de las manufacturas
textiles (1750-1900). Barcelona: Ariel.
CARVALHO, A. L. de (1941) — Os mesteres de Guimarães, II Estudo histórico e etnográfico do linho. S/l.
COSTA, Agostinho Rebello da (1945) — Descrição topográfica e histórica da cidade do Pôrto. 2.ª ed., Porto:
Livraria Progredior.
DOMÍNGUEZ MARTIN, Rafael (1995) — El campesinato adaptativo: campesinos e mercadores en el norte
de España. Santander: U. Cantabria.
DUARTE, Maria Celeste dos Santos Duarte de Oliveira (1972) — A freguesia de S. Martinho de Arrifana de
Sousa de 1760 a 1784 (Ensaio de demografia histórica). Porto: FLUP (diss. lic.).
GERALDES, Manuel de Melo Nunes (1913) — Monografia sôbre a indústria do linho no distrito de Braga.
Coimbra: Imprensa da Universidade.

29
Um primeiro ensaio em: ANILEIRO, 2010, anexo 5.

50
TEIAS COM SABER

GRAÇA, Luís Quartim, dir. (1943) — O linho em Portugal. Subsídios para o fomento da sua cultura. Lisboa.
23 de abril de 2020.
INGOLD, Tim (2013) — Making. Anthropology, archaeology, art and architecture. Oxford: Routledge.
MARTINS, Flávio (1944) — O linho para fibra. Sua cultura. Porto: ed. da Empresa Fabril do Norte: Direcção
Geral dos Serviços Agrícolas: Serviço Editorial da Repartição de Estudos, Informação e Propaganda,
p. ­33-34.
MEIRA, J. J. de; SAMPAIO, Alberto (1884) — Relatorio da Exposição Industrial de Guimarães em 1884.
Porto.
MENDES, José M. Amado (1980) — Memória sobre a província do Minho pelo 2.ª visconde de Balsemão.
«Revista Portuguesa de História», vol. 18, p. 31-109.
OLIVEIRA, Ernesto Veiga de (1955) — Trabalhos colectivos gratuitos e recíprocos em Portugal e no Brasil.
«Revista de Antropologia», vol. 3, p. 21-43.
OLIVEIRA, Ernesto Veiga de; GALHANO, Fernando; PEREIRA, Benjamim (1978) — Tecnologia tradi­
cional portuguesa. O linho. Lisboa: INIC/CEE.
Relatorio (1881) — Relatorio apresentado ao Exc.º Snr. Governador Civil do Districto do Porto pela
­Sub-comissão encarregada das visitas aos estabelecimentos industriaes. Porto.
SOEIRO, Teresa (2002) — El lino en Penafiel, Norte de Portugal. De la producción doméstica para el mercado
a la desilusión industrial. «Actes de les V Jornades d’Arqueologia Industrial de Catalunya». Barcelona,
p. 341-358.

51
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

52
PELO SOM DA ARTE DO FOGO
MARISA PEREIRA SANTOS*

Resumo: Atualmente a noção de Património Cultural define-se pela seleção crítica dos vários elementos
da cultura — arte, conhecimento, costumes, crenças, formas de saber fazer — que se afirmam quer a nível
material, quer a nível imaterial. De facto, a cultura é um fenómeno universal, que pode surgir em qualquer
lugar e época desde que exista a presença humana.
Assim, a definição abrangente de Património Cultural faz-nos refletir sobre práticas culturais que vão para
além do património edificado e artístico, constatando-se nos últimos anos uma valorização e salva­guarda
das práticas tradicionais do saber-fazer. Estas têm sido perpetuadas de geração em geração através da
­partilha de conhecimento.
A produção pirotécnica foi regida por este pressuposto durante séculos. Os processos de produção de
­foguetes — de um, de dois ou três tiros — ou até mesmo do fogo de artifício foi transmitida de pais para
filhos e de avós para netos.
Neste artigo refletimos sobre a Pirotecnia do ponto de vista imaterial, apoiando-nos na Convenção do
­Património Cultural e Imaterial1. De facto, entendemos que a pirotecnia congrega em si práticas tradi‑
cionais de formas de saber-fazer assim como um carácter de afirmação social e até mesmo apotropaico.
A sonori­dade inerente a estes espetáculos leva-nos a refletir sobre a paisagem sonora portuguesa, tantas
vezes ­pontuada pelo som das explosões nos momentos de festividades reais e religiosas, apresentando-se
como um elemento de afirmação ora social ora divina, dependendo do teor dos festejos. Compreendemos
que se trata de um legado que devemos preservar e transmitir. Ele é congregador do cunho artesanal na sua
­produção e de significados que foi adquirindo ao longo dos séculos.

* CITCEM – Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Email: marisaflup02@gmail.com.


1
Paris, 2003.

53
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Nós protegemos e valorizamos aquilo que conhecemos. Cabe-nos a nós, profissionais do Património,
refletir e transmitir conhecimento, para que a comunidade compreenda, valorize e preserve as práticas e
modos de saber-fazer ligados aos foguetes e ao espetáculo pirotécnico.
Palavras-chave: pirotecnia; património imaterial; fogo de artifício; fogueteiros; saber-fazer.

Abstract: Nowadays the notion of Cultural Heritage is defined by the critical selection of the various
­elements of culture. In fact, culture is a universal phenomenon, which can arise in any place and time as
long as there is human presence.
The definition of Cultural Heritage makes us reflect on cultural practices that go beyond the built and artistic
heritage. In recent years we have seen a valuation and safeguard of traditional practices of know-how. These
have been perpetuated from generation to generation through knowledge sharing. Pyrotechnic p ­ roduction
has been governed by this assumption for centuries. The processes of production of rockets, of one, of two
or three shots or even of the firework was transmitted from generation to generation.
We understand that pyrotechnic production contains a traditional practices of know-how, a ­character
of social and a apotropaic affirmation. The sound inherent in these spectacles leads us to reflect on the
portuguese sound landscape, so often punctuated by the sound of the explosions in the moments of real
and religious festivities. It is an element of social and religious affirmation, depending on the content
of the celebrations.
In this article we reflect on Pyrotechnics from the immaterial point of view, orienting ourselves to the defini‑
tions affirmed in the Convention of Cultural and Intangible Heritage2. We understand that this is a legacy we
must preserve and transmit, which brings together the artisanal stamp in its production and the meanings
it has acquired over the centuries in the civil festivities or religious.
We protect and value what we know. It is up to us, heritage professionals, to reflect and transmit k­ nowledge,
so that the community understands, values and preserves the practices and modes of know-how related to
the rockets and the pyrotechnic spectacle.
Keywords: pyrotechnics; intangible heritage; fireworks; firecrackers; know how to do.

1. CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS
Atualmente a noção de Património Cultural define-se pela seleção crítica dos vários
elementos da cultura — arte, conhecimento, costumes, crenças, formas de saber fazer —
que se afirmam aos níveis material e imaterial. De facto, a cultura é um fenómeno univer­
sal, que pode surgir em qualquer lugar e época desde que exista a presença humana.
Partindo desta noção defendemos que os artigos pirotécnicos fazem parte da
­paisagem cultural e sonora portuguesa. De facto, o ponto 10 da Diretiva 2007/23 CE
do Parlamento Europeu e do Conselho reconhece que a «A utilização de artigos de piro‑
tecnia e, em particular, de fogos-de-artifício, obedece a costumes e tradições culturais
consideravelmente divergentes nos respectivos Estados-Membros».
Ao longo da investigação constatamos a existência de publicações como Arte Eféme-
ra em Portugal (2000), publicado pela Fundação Calouste Gulbenkian e Fogo de A ­ rtifício:
Festa e Celebração 1709-1880 (2002), da Coleção de Estampas da Biblioteca ­Nacional,
que refletem sobre o uso de foguetes e fogo de artifício em contexto c­ omemorativo.

2
Paris, 2003.

54
PELO SOM DA ARTE DO FOGO

Apesar da presença cultural destes bens, constatamos uma carência de publica‑


ções que abordem esta temática do ponto de vista patrimonial. Porém apontamos dois
textos escritos na década de 90 do séc. XX, La Pirotecnia Valenciana (1994), de María
González Hinojo, Aránzazu Pérez Sánchez e Esperanza Pizarro Quintano, e Antologia
do Fogo de Artifício (1996) de Júlio Duarte, que se tornaram aliados importantes para o
nosso estudo. Este partiu da pesquisa e análise de registos bibliográficos, necessária para
a sustentação teórica das práticas de produção, mas também do registo empírico supor‑
tado pela entrevista a Idalina Nunes da Conceição, antiga fogueteira da Oficina David
Correia Alves, localizada em Ovar. A aplicação desta metodologia tem como objetivo
dar a conhecer a génese e os modos de produção de artigos pirotécnicos e em particular
de foguetes.
Neste ponto, entendemos ser importante definirmos alguns conceitos, nomea‑
damente o de artigo pirotécnico, que deve ser entendido como «Qualquer artigo que
­contenha substâncias explosivas ou uma mistura explosiva de substâncias concebidas
para produzir um efeito calorífico, luminoso, sonoro, gasoso ou fumígeno ou uma
combi­nação destes efeitos, devido a reações químicas exotérmicas autossustentadas»3.
Por sua vez, entende-se por foguete um «Artigo pirotécnico contendo uma composição
pirotécnica e/ou componentes pirotécnicos, equipado com uma ou mais varas ou outros
meios de estabilização de voo e concebido para ser propulsionado para o ar»4.
Apesar de ser inegável a materialidade destes bens, defendemos no presente a­ rtigo
a sua perspetiva imaterial. De facto, a Convenção do Património Cultural e Imaterial5 e a
­Declaração de Yamato6 contemplam a interdependência destas duas dimensões numa
aborda­gem integrada para a salvaguarda do Património Cultural. Segundo o Art.º 2 da
­Convenção do Património Cultural e Imaterial entende-se por Património Cultural Imaterial:

(…) as práticas, representações, expressões, conhecimentos e aptidões — bem


como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços culturais que lhes estão ­associados
— que as comunidades, os grupos e, sendo o caso, os indivíduos reconheçam como
fazendo parte integrante do seu património cultural. Esse património cultu­ral imate­
rial, transmitido de geração em geração, é constantemente recriado ­pelas comuni­
dades e grupos em função do seu meio, da sua interacção com a natu­reza e da sua
­história, incutindo-lhes um sentimento de identidade e de continuidade, contri­
buindo, desse modo, para a promoção do respeito pela diversidade cultural e pela
criatividade humana.

3
Norma técnica n.º 1/2018: 2.
4
Ibidem: 3.
5
UNESCO, 2003.
6
UNESCO, 2004.

55
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Ao longo de séculos o processo de fabrico dos artigos pirotécnicos foi uma


­ rática transmitida de geração em geração, de pais para filhos e de avós para netos.
p
Estes ­indivíduos, homens e mulheres, trabalhavam arduamente para que as máquinas
pirotéc­nicas fossem construídas. Estas animavam festividades civis, como entradas
­régias, c­ asamentos ou batizados, avisando a comunidade da ocorrência de um aconte‑
cimento importante, tornando-se assim num elemento de afirmação social e de poder
econó­mico, pois o montante envolvido na compra destes bens era avultado. Também
as ­festividades religiosas eram pontuadas pelo som do fogo e pelas luzes coloridas que
animavam o céu, avisando a comunidade de que o santo festejado na romaria estava a
sair ou a entrar no espaço da igreja ou capela. Estes artigos afirmavam o poder divino
e eram r­evestidos de um carácter apotropaico, pois os sons das explosões associados
ao ­toque dos sinos no momento das procissões afugentavam entidades malignas para
longe. A ­ inda hoje o uso da pirotecnia em festividades religiosas é uma constante.
As explosões no céu contribuem para a construção de uma paisagem sonora que parti‑
culariza a freguesia nos dias de festa em honra de um santo, sendo também um elemento
integrante do próprio ato devocional.
Perante a importância social do uso dos artigos pirotécnicos, face à publicação
de normas e à apresentação constante de candidaturas de bens para inscrição na Lista
do Património Cultural Imaterial da UNESCO, podemos afirmar que nos últimos anos
­temos assistido a uma valorização e progressiva salvaguarda das práticas tradicionais do
saber-fazer, perpetuadas de geração em geração através da partilha de conhecimento.

2. OS PERCURSOS DO FOGO: USOS


É inegável a importância dada ao fogo desde tempos remotos. Segundo os histo‑
riadores gregos Tucidides e Heródoto (séc. V a.C.), era frequente acenderem-se fogos
em honra de Atena, Hefesto e Prometeu7. Contudo, a criação de artigos pirotécnicos
foi mais tardia. Segundo o escritor e historiador Alan St. H. Brock em A história dos
­Fogos-de-Artifícios (1950), o início desta arte deriva de um episódio: quando o salitre ou
nitrato de potássio usado em substituição do sal em algumas regiões da Ásia afastadas
do mar, ter-se-ão incendiado junto de uma lareira8.
Esta crença leva a que acreditemos que a origem da arte pirotécnica se encontra
na China do séc. IX ou na Índia, numa área longe do mar. O impulso para a ­fabricação
de um foguete terá surgido da constatação do efeito de crepitar e cintilar nas brasas
que o nitrato de potássio provocava aquando do ato da confeção alimentar9. Assim, o

7
[S.a.], 2002: 12.
8
DUARTE, 1996: 121.
9
[S.a.], 2002: 11.

56
PELO SOM DA ARTE DO FOGO

­ esenvolvimento da arte da pirotecnia resulta das práticas ancestrais da cultura ­chinesa e


d
da cultura indiana, que desde cedo compreendeu a sua utilização em contextos festivos10.
Apesar da dificuldade de situarmos cronologicamente estes acontecimentos, acre‑
dita-se que terão sido os povos árabes, aquando da ocupação de territórios europeus,
que introduziram o conhecimento pirotécnico, nomeadamente nas regiões de Valência
e Múrcia, tendo proliferado pelos restantes territórios11. Apesar de ter sido publicado
em Veneza, em 1540, o primeiro tratado impresso sobre estes engenhos, intitulado
De la Pirotechnia, de Vannoccio Biringuccio, já nos finais do séc. XII existem registos
de fórmulas de pólvora atribuídas a Nadjen Eddin Hassan Alzammah, e na Europa do
séc. XIV o manuscrito um atribuído ao alquimista Marcus Graecus, com o título de
Liber ignium ad comburendos hostes12.
Com o surgimento e desenvolvimento dos artigos pirotécnicos foram-se c­ riando
verdadeiros espetáculos, associados a celebrações como casamentos, nascimentos,
entra­das e aclamações régias. Tratava-se de:

(…) um espetáculo montado no qual surgiram cenários e figurantes que muitas


vezes encenavam histórias. Este tipo de eventos eram uma norma de afinação do
­poder real, igualado aos deuses antigos pelo poder do fogo. O fogo correspondia a uma
noção dupla, destruidora e criadora. A utilização do fogo em ritos de passagem é uma
realidade ancestral: apagar o fogo antigo iniciar o fogo novo13.

Existem registos do lançamento de fogo de artifício no séc. XV em Roma ­aquando


das festas de eleição do Papa João XXIII (1410); em Florença, na visita de Galaezzo
­Sforza (1471); em Inglaterra, nas festas reais sobre o Tamisa; em Nuremberga e ­França14.
Destacamos ainda a primeira referência conhecida à pirotecnia festiva em território
­nacional encontra-se na descrição das festas do casamento entre o príncipe D. Afonso
com D. Isabel, ocorridas em Évora em 1490, da Crónica de D. João II, de Garcia de
­Resende15. Assim, constatamos que eram as «festividades oficiais as mais registadas para
a posterioridade em gravuras avulsas ou em livros, eficazes instrumentos de promoção
de imagem cultural e política, cuidadosamente encenada, em que a alegoria cristã e o
mito pagão se fundiam para exaltar as virtudes dos celebrados, assim como dos próprios
patrocinadores ou mecenas»16.

10
[S.a.], 2002: 11.
11
GONZÁLEZ HINOJO et al., 1994: 39.
12
[S.a.], 2002: 12.
13
[S.a.], 2002: 18.
14
Ibidem, 13.
15
Ibidem, 16.
16
[S.a.], 2002: 13.

57
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Face à elaboração destes programas acredita-se que esta prática não era incipiente,
uma vez que no séc. XVIII era já de uso generalizado por toda a Europa, território no
qual podemos destacar duas escolas: uma em Nuremberga e outra em Bolonha com a
família Ruggieri17.
No caso português apontamos a legado deixado pelo italiano José Osti, que em
meados do séc. XIX se estabeleceu em Lisboa e criou uma importante fábrica de fogo
de artifício em Alcântara, na qual aplicava os avanços químicos da época, introduzindo
uma inovação de cores e dando um novo impulso à arte pirotécnica portuguesa18.
Entretanto o aperfeiçoamento desta arte em território nacional prosseguiu,
princi­palmente nas regiões do Minho, que ganharam grande importância na produ‑
ção e ­exportação destes engenhos. Cabia a cada pirotécnico a criação de novos efeitos e
­cores, levando à existência de uma grande oferta. Este facto promoveu a diversidade de
­elementos e motivos estéticos que compõem a pirotecnia moderna19.
Compreendemos que a sua evolução técnica levou a que se tornasse numa arte do
espetáculo, que naturalmente seguiu as correntes artísticas das várias épocas. Assim era:

O espetáculo triunfal de cunho renascentista com inclusão de temas mitoló-


gicos e alegóricos permaneceu a matriz até finais do século XVIII; mas, na primeira
­metade do século XVII, mercê da (com)vivência dos conflitos políticos-militares e por
aplicação do primado do trompe-lʻoeil tão caro ao Maneirismo, são frequentes temas
bélicos, com castelos e torres como cenários; a passagem ao Barroco irá proporcionar
ao espetáculo de fogo de artifício atingir o seu clímax teatral, com adereços de cena
de grande aparato e, nos finais do século XVIII, a estética neoclássica repercute-se na
geometrização das formas, com predomínio da simulação da arquitectura palaciana,
com subjugação a um eixo de simetria e a um predomínio das linhas rígidas, em que
o pilar e a pilastra se substituem à coluna e ao colunelo torso20.

Estes espetáculos ficaram eternizados em gravuras como Fogo de artificio realizado


no Tejo por ocasião da visita de Eduardo VII a Portugal de J. R. Christino, que retrata as
­pequenas barcas, que são os pontos de lançamento do fogo de artifício, da fábrica de
Casimiro R. Valente, de Viana do Castelo21.
Seria de esperar que, com o aparecimento da eletricidade no séc. XIX e com a
evolução tecnológica que se seguiu, o efeito de transcendência proporcionado por
­estes espetáculos pudesse ser afetado. Contudo, a realidade é que ainda hoje se ­recorre

17
[S.a.], 2002: 14.
18
DUARTE, 1996: 167.
19
Ibidem, 168.
20
[S.a.], 2002: 14, 15.
21
[S.a.], 2000: 418.

58
PELO SOM DA ARTE DO FOGO

a ­engenhos pirotécnicos nas festividades cívicas e religiosas, dando-lhes um carácter


impo­nente. De facto, ninguém concebe as comemorações do Ano Novo e do São João
no Porto sem fogo de artifício. Todos os anos ao longo das margens do rio juntam-se
milhares de pessoas que esperam pelas doze badaladas para serem maravilhadas pelo
espetáculo pirotécnico.

3. O FOGO: TIPOLOGIAS
Os fogueteiros apontam três tipos base de fogo: o fogo solto, ou seja, os artigos
­pirotécnicos que ardem no ar, como foguetes e girândolas; o fogo preso, que arde no
chão: bichas de rabiar, bomba de Santo António, morteiro; e o aquático, artigos que
ardem na água.
Dentro da tipologia de Fogo Solto destacamos o fogo de paraquedas. Aqui, os
­foguetes são lançados do ar e levam um ou dois paraquedas. Estes inicialmente eram
elaborados através de tecidos aproveitados de guarda-chuvas velhos, que as pessoas
mandavam trocar nas fábricas. Os fogueteiros acorriam a estas fábricas para compra‑
rem o material a baixo custo. Posteriormente esta matéria prima foi substituída por
­plástico, produto que se incendeia com maior facilidade, levando a que necessite de um
­resguardo, chamado de bucha, que o protege da explosão no ar. Trata-se de uma ­rolha de
papel com serrim que é colocada sobre as caixas de cor. Estes foguetes sugerem m ­ otivos
como estrelas quando rebentados22. Destacamos ainda os fogos-de-bengala, que são
­caracterizados pelo efeito de chuva de prata, ouro, estrelinhas e fósforos de cor.
Para a detonação do Fogo Preso são criadas armações de madeira fixas ao solo,
­contendo dobradiças, rolamentos e encaixes de espigão que permitem a criação de
movi­mento gerado pela força centrifuga dos canudos, presos a armações23.
Por sua vez, o Fogo Aquático é constituído por canudos, que não possuem a c­ abeça,
e que são equilibrados por areia e cimento. A carga é composta por caixas de cores,
possuidora de um rastilho que sai pela extremidade oca do canudo. As caixas de
cores são unidas por um fio, atado a traves ou a árvores, denominado por guita de
­estopim ou trinca-fio e que faz com que vários foguetes rebentem ao mesmo tempo24.
A explosão deste tipo de fogo dá-se quando a carga cai na água, criando o efeito de
queda de água25. Destacamos o espetáculo Castillo, repleto de luz e cor e composto por
«las candelas romanas, los cohetes paracaídas y la carcasa de tronco y palmera aparte de
la carcasa japonesa26». Este espetáculo conta com o disparo piromusical, que sincroniza a

22
DUARTE, 1996: 102, 103.
23
Ibidem, 1996: 103.
24
Ibidem: 101.
25
Ibidem: 104.
26
GONZÁLEZ HINOJO et al., 1994: 41.

59
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

detonação com a música reproduzida. No que diz respeito às cores, as mais utilizadas
são: vermelho, verde, azul, amarelo e violeta27.
Devemos referir que até ao primeiro quartel do séc. XIX o fogo de artifício era
­predominantemente branco, rosado, azulado e esverdeado. A partir desta época f­oram
produzidas cores mais intensas e variadas quando o nitrato de potássio (salitre) foi
substituído por clorato de potássio. Contudo, desde a segunda metade do séc. XVIII já
Claude Louis Bertholet tinha descoberto os cloratos e já eram conhecidos os estudos de
Amadée Frézier, Traité des feux d’artifice pour le spectacle28.
Para além destas tipologias, existiam no séc. XX, muitas outras. Segundo ­Idalina
Nunes Conceição Cardoso, antiga fogueteira da Oficina de David Correia Alves, na
­freguesia de Arada, constatamos que:

Até ao S. João fazíamos petardos, bichas, bombas de bater na parede, senhoras


(maiores), foguetes de 1 de 2 e de 3 estalos. Estes eram considerados brinquedos de
crianças. Quando existiam encomendas para as romarias: eu fazia a estalaria para
foguetes de três tiros, nós chamávamos de palrraria; foguetes de carga dupla e fogo
de artificio.

Face a esta complexidade de tipologias, a arte de trabalhar a pólvora era reservada


a artífices especializados, denominados de fogueteiros que aprendiam o ofício nas ofici­
nas com o mestre ou com os familiares, passando assim os conhecimentos de geração
em geração.

4. SABER-FAZER: UM PROCESSO PERIGOSO


O foguete é composto pelo canudo, onde vai a carga para o fazer subir; o involucro,
chamado de cartucho, que contém a mistura explosiva que poderá conter cores e que é
ativado pela mecha, que serve para iniciar a combustão. Podemos dividir a sua produção
em cinco fases: 1) preparação de cartuchos; 2) preparação de composições; 3) prepa‑
ração das mechas; 4) introdução da carga nos cartuchos; 5) trabalho de acabamento29.
O canudo era, inicialmente, feito de cana. Contudo este material natural apresen‑
tava variações de diâmetro, levando à sua deterioração durante o processo de fabrico.
Assim, o canudo passou a ser elaborado em cartão, através de tiras de papel resistente, de
tamanho igual, embebidas em cola e colocadas num tapete rolante elétrico que passa por
três corpos cilíndricos, fazendo-as enrolar ao redor de uma barra de metal30.

27
GONZÁLEZ HINOJO et. al., 1994: 41.
28
[S.a.], 2002: 14.
29
DUARTE, 1996: 236.
30
Ibidem: 95.

60
PELO SOM DA ARTE DO FOGO

Seguidamente o fogueteiro embarra os canudos, colocando-os um a um numa


a­ gulha de pua, também designada de cavilha (prego assente num cepo). O barro utili‑
zado neste processo tem de ser puro, pois uma impureza poderá originar um acidente.
Este material tem como função impedir que a pólvora se aloje em partes indesejadas do
­foguete, sendo prensado com o auxílio de um atacador que marca o nível de matéria-
­-prima a utilizar, e de um maço de madeira ou pelo martelo-pilão. Este utensílio é execu­
tado em madeira pelo próprio artesão, tal como a pua, que serve para bater o barro e
que varia de tamanho adaptando-se às necessidades de execução. Neste processo é ainda
utili­zado um pedaço de couro solto que ajuda a retirar o barro batido da pua, sendo
nesta extremidade que se localiza o ponto de ignição31.
Posteriormente o canudo é meticulosamente cheio com a mistura explosiva,
compri­mida cuidadosamente no espaço, pois caso existam lacunas o foguete poderá
rebentar nas mãos do lançador. Esta mistura de salitre, carvão vegetal e o enxofre32, é
batida num processo mecânico no pio ou no almofariz33.
Depois de executada, a mistura é transferida para a peneira, utensílio que poderá
ter uma rede de tramas distintas. Tal dá origem à pólvora preta, com espessura mais
grossa que faz a carga estourar para todos os lados, e à escorva, pólvora mais fina e que
terá um maior poder de detonação.
Cabe ao fogueteiro o uso de uma craveira, ou calibrador, para medir a quantidade
de pólvora necessária, e do escorvador, instrumento de trabalho do séc. XX. Anterior‑
mente o trabalho era feito à mão com a ajuda de uma cana biselada que servia de colher,
através da qual se recolhia a escorva de um recipiente de alumínio34.
Por sua vez, a cabeça do foguete é criada através de uma tira de papel, envolvida
numa forma de madeira e atada às extremidades do canudo, fazendo-a aderir a toda a
superfície e sendo presa por um piche, ou fio embriado — cordel de sapateiro ­tornado
duro e que adquire a cor preta aquando da passagem pelo breu. Depois de cheia, a
­extremidade aberta, a cabeça do foguete é torcida, terminando assim o recipiente para a
carga, que poderá oscilar entre 100gr e 1kg de matéria explosiva35.

31
Ibidem: 96.
32
No processo de produção surgem diversas matérias primas como: Clorato de Potássio; Carvão vegetal; Nitrato
de barita; Goma crua; Magnésia alva; Limalha de agulha; Bicarbonato de sódio; Alumínio negro; Clorato de barita;
Enxofre; Dextrina branca; Nitrato de estrôncio; Resina; Magnésia em pó; Oxalato de sódio; Antimónio; Nitrato de
sódio; Carbonato de estrôncio; Dextrina amarela; Goma laca; Limalha de magnésio; Verde paris; Fácula de batata;
Alumínio em escamas; Magnésio em flocos; Ácido cálico; Aguarrás; Vários tipos de papel; Limalha de alumínio;
Goma arábica; Aguardente; Canas e ácido pícrico (DUARTE, 1996: 109). Destacamos o facto de materiais como o
alumínio e o magnésio terem sido acrescentados no séc. XIX (Ibidem: 242). Também neste século, granças ao francês
Chertier foi criado o efeito de estralas púrpura no céu, através da introdução do cloreto de potássio e o nitrato de
estrôncio na produção pirotécnica do séc. XIX (GONZÁLEZ HINOJO et al., 1994: 39).
33
Ibidem: 97.
34
Ibidem.
35
Ibidem: 98.

61
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Devemos atentar ainda à cana do foguete, que tem como função guiá-lo na
a­ scensão. Esta pode atingir o tamanho de 1,70 metros. Uma vez que este material é de
origem natural surge a necessidade de torná-lo o mais vertical possível. Assim, o fogue‑
teiro encosta a cana a um ferro ao rubro, endireitando-a36.
Segundo Idalina, o processo produtivo não estava confinado à oficina. Apesar de
todo o risco associado, era comum, na segunda metade do séc. XX, os trabalhadores das
oficinas levarem material para as suas casas. Era no ambiente familiar que as crianças
tomavam contacto com estas práticas.
Atualmente, face ao perigo, existem regras para a manutenção do espaço. A insta­
lação elétrica deve ser totalmente elaborada em aço inoxidável e deve sofre inspeções regu‑
lares. Os trabalhadores são obrigados à limpeza do espaço pelo menos duas vezes por dia,
sendo «Del mismo modo, queda prohibido el uso de calzado de suela de cuero y la intro­
ducción en el recinto de la fábrica de fósforos, mechero, tabaco y bebidas alcohólicas»37.
Existem ainda normas para o lançamento dos foguetes. Segundo a Norma Técnica
n.º 1/2018, atualmente o ato de lançamento tornou-se mecanizado e mais seguro: «Hoje
em dia o espaço de lançamento é composto por uma linha de disparo que se trata do
local onde se encontram os ligadores que compõem o circuito elétrico necessário para o
disparo dos artigos de pirotecnia através de dispositivos de ignição elétricos»38.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Consideramos que este bem patrimonial ultrapassa a sua materialidade. É um
l­egado a preservar e transmitir, que congrega em si significados e usos adquiridos ao
longo dos séculos.
A evolução mecânica dos processos de saber-fazer levou a que práticas ancestrais
se encontrem em perigo iminente. De facto, a Convenção do Património Cultural Imate-
rial39, reconhece que:

Os processos de globalização e de transformação social, a par com as condi-


ções que contribuem para um diálogo renovado entre as comunidades acarretam,
tal como os fenómenos de intolerância, graves ameaças de degradação, de desapare­
cimento e de destruição do património cultural imaterial, em especial, devido à falta
de meios para a sua salvaguarda40.

36
Ibidem: 100.
37
GONZÁLEZ HINOJO et al., 1994: 40.
38
Norma técnica n.º 1/2018: 3.
39
UNESCO, 2003.
40
UNESCO, 2003: 2.

62
PELO SOM DA ARTE DO FOGO

Uma vez que não existe «até ao momento qualquer instrumento multilateral
com carácter vinculativo destinado a salvaguardar o património cultural imaterial»41,
compre­endemos que cabe aos profissionais do Património refletirem e transmitirem
conhecimento para que a comunidade compreenda, valorize e preserve as práticas e
modos de saber-fazer ligados aos foguetes e ao espetáculo pirotécnico. A imaterialidade
da arte da pirotecnia pode ser analisada através de um olhar sobre a sua perspetiva histó­
rica, mas também sobre as técnicas de produção e os seus usos.
Os artigos pirotécnicos são elementos caracterizadores da cultura, da paisagem
e do ambiente sonoro português, apresentando-se como repositórios de técnicas de
­saber-fazer. Compreendemos ser necessária a implementação de ações de sensibilização
e salvaguarda para a promoção de uma consciência patrimonial em redor deste bem.
Cabe-nos a nós, profissionais do Património, refletir e transmitir conhecimento, para
que a comunidade compreenda e valorize estas práticas e modos de produção, que têm
sido alvo de uma progressiva industrialização.

BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Carlos Alberto Ferreira de (1998) — Património: o seu entendimento e a sua gestão. Porto:
­Etnos.
BROCK, Alan St. H. (1950) — A história dos Fogos de Artifícios. [S.l]: George G. Harrap & C.ª Ld.ª
CHOAY, Françoise (1999) — A Alegoria do Património. Lisboa: Edições 70.
DECRETO-LEI N.º 374/1984, 30 de Novembro de 1984 — Diário da República, n.º 278/1984, I.ª Série.
DECRETO-LEI N.º 303/1990, 27 de Setembro de 1990 — Diário da República, n.º 224/1990, I.ª Série.
DECRETO-LEI N.º 139/2002, 17 de Maio de 2002 — Diário da República, n.º 114/2002, I.ª Série.
DUARTE, Júlio (1996) — Antologia do Fogo de Artifício. Vila Nova de Gaia: Afonseiro.
GONZÁLEZ HINOJO, María; PÉREZ SÁNCHEZ, Aránzazu; PIZARRO QUINTANO, Esperanza (1994)
— La Pirotecnia Valenciana. «Narraia: Estudios de artes y costumbres populares», n.º 65-66. Madrid:
Universidad Autónoma de Madrid, pp. 39-42.
LEI Base do Património Cultural Português 107/2001, 8 de Setembro — Diário da República, n.º 209/2001,
I.ª Série – A.
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[S.a.] (2000) — Arte Efémera em Portugal. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 418-420.
(2002) — Fogo de Artifício: Festa e Celebração 1709-1880. Coleção de Estampas da Biblioteca Nacio‑
nal, Lisboa: Biblioteca Nacional.
UNESCO (2003) — Convenção para a salvaguarda do Património Cultural Imaterial, Paris. [Disponível
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(2004) — Declaração de Yamato sobre a abordagem integrada para a salvaguarda do Património
Cultu­ral, Material e Imaterial. Yamato [Disponível em <http://www.matrizpci.dgpc.pt/MatrizPCI.
Web/File/DownLoadFile?idFicheiro=3073>. Acedido a 19.05.2018 (19:00)].

41
UNESCO, 2003: 4.

63
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

VÁZQUEZ MANTECÓN, María del Carmen (2017) — Cohetes de regocijo: Una interpretación de la ­fiesta
mexicana. «Históricas Digital». México: Universidad Nacional Autónoma de México [Disponível
em <www.historicas.unam.mx/publicaciones/publicadigital/libros/cohetes/682.html>. Acedido a
18.05.2018 (15:44)].

64
FAZER LEITE: SOBRE TÉCNICAS DE
ORDENHA E A RELAÇÃO ENTRE VACAS
E CRIADORES NA ALTA SABÓIA (FRANÇA)
E NO JURA SUÍÇO
JEREMY DETURCHE*

Resumo: Nas relações humano/animal a domesticação ocupa um lugar específico. Ela pode ser conside‑
rada sob o ângulo de um duplo fazer: um fazer que converte os animais em objeto da ação, ou seja, que os
transforma, porém com o propósito de controlar suas ações. Este processo Carole Ferret qualifica como
uma manipulação.
Na produção leiteira as ações sobre os animais consistem em criar ou «fazer» animais produtores de leite:
faze-los «fazerem» leite. Baseado em um trabalho de campo ao redor do Lago Lemano, pretendo apro­
fundar o entendimento desse tipo de fazer-fazer a partir de uma análise do que representa para os criadores
a ­síntese do fazer leite: o processo de ordenha.
Entre as diversas técnicas e ações, a ordenha tem um ritmo particular e implica uma relação específica entre
os animais e os criadores. Analisar e descrever as ações envolvidas pode esclarecer sobre os processos de
coevolução ou «assemblage» em jogo e as implicações das escolhas técnicas.
Palavras-chave: domesticação; vacas leiteiras; mediação técnica; antropologia da ação.

Abstract: In human/animal relationship, domestication is of particular significance. It can be considered


from the angle of a double doing, one that transforms the animals into the object of an action, in other
words, that transforms them, but with the purpose of controlling their actions. Carole Ferret characterizes
this process as manipulation.
In dairy production the actions on the animals consist of creating/«making» animals produced milk: to
make them «do» their own milking. Based on a fieldwork around Leman Lack, I intend to deepen the
understanding of that type of «making the other do» starting from the analysis of what represent, for the
breeder, the paradigm of «making» milk: the milking process.

* Professor Adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina (Brasil). Email: jeremy.deturche@gmail.com. Agra‑
deço o IBP – Instituto Brasil Plural por permitir materialmente essa pesquisa e a todos dos grupos de pesquisa
CANOA-UFSC e LACT-UnB pelas discussões proporcionadas. Pesquisa realizada no âmbito da CAPES.

65
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Dairy milking process has a specific rhythm and a relationship between animals and dairy farmer. ­Analysis
and describe the actions involved may enlighten the process of coevolution or assemblage at stake and the
implications of the technical choices.
Keywords: domestication; dairy cows; technical mediation; antropology of action.

Há algumas décadas os animais voltaram a ser uma questão antropológica e social


importante. Às vezes definida como ‘animal turn’, esta retomada de questionamentos
­sobre humanos e animais se desdobra em diversas orientações mais ou menos norma­
tivas: entre o repovoamento das ciências sociais, seguindo os trabalhos de Latour1;
­questões entre filosofia, etologia e antropologia, tal como apontam Despret2 ou Hara‑
way3; ou ainda, os trabalhos desenvolvidos nos animals studies e seus críticos engaja‑
dos dos critical animals studies4. Se procurarmos um ponto de partida, provavelmente
­questões e reflexões sobre os impactos sócio-ecológicos do modo de vida ocidental, e
sobre a maneira como a ação sobre o mundo é concebida no contexto industrial, apare‑
ceriam como fundamentais.
Esses questionamentos nos levam também a pensar ou repensar alguns dos
­conceitos centrais que serviam para qualificar a relação humano/não-humano. Um
­deles, mobilizando muitos esforços de críticas e redefinições, é o conceito de domesti­
cação. As críticas e questionamentos acerca do termo revelam o potencial reflexivo
da «virada ­animal», uma vez que a domesticação está conceitualmente associada à
­chamada Revolução ­Neolítica5 que fundamenta uma narrativa histórica intrínseca ao
mundo ­industrial e ocidental em geral, marcando assim o pontapé inicial da «História»
e mobilizando ­valores como «progresso» e «desenvolvimento»6. Domesticação pode ser
definida como um meio de ação sobre a natureza, o exercício do controle e transfor­
mação dela na d ­ ireção escolhida pelos humanos. Esta perspectiva, apesar de sistemati‑
camente criti­cada, permanece enraizada no imaginário ocidental e pauta as discussões
contempo­râneas sobre domesticação, sugerindo a persistência e necessidade de contra‑
por-se a essa visão hegemônica.
Meu intuito nesse texto não é retratar a história do conceito7, nem oferecer um
­panorama exaustivo das questões em torno de domesticação hoje, mas antes modesta-
mente apresentar alguns argumentos úteis à reflexão que proponho. ­Primeiramente,
deve-se reconhecer que a crítica e decaimento do papel fundador da Civilização dos
­processos neolíticos — dentre os quais a domesticação — ainda que pouco difundido na
1
Ver por exemplo HOUDART & THIERY, 2011.
2
DESPRET, 2014; DESPRET & MEURET, 2016.
3
HARAWAY, 2003; 2008.
4
TWINE & TAYLOR, 2014.
5
BARKER, 2006.
6
INGOLD, 2000a.
7
Outros o fazem — INGOLD, 2000b; CASSIDY, 2007; SWANSON, LIEN & WENN, 2018b.

66
FAZER LEITE: SOBRE TÉCNICAS DE ORDENHA E A RELAÇÃO ENTRE VACAS E CRIADORES
NA ALTA SABÓIA (FRANÇA) E NO JURA SUÍÇO

sociedade ocidental, repercutem no meio acadêmico intensificando o questionamento


do paradigma da linearidade.
A domesticação não é um estado avançado e necessário em uma linha e­ volutiva
histórica única, tampouco um caminho sem volta. Não minimizo aqui as transfor­mações
sócio-técnicas, porém, não devemos pensá-las como consequência unilinear e obriga‑
tória em um processo causal simples. Em termos gerais, domesticação é de fato muito
plural, nem sempre perene ou claramente estabelecida. Ocorreram algumas ­tentativas
sintéticas de classificação dos diversos tipos de domesticação, como a de Rindos8, por
exemplo, mas sem consenso9.
Como segundo ponto, destaco as perspectivas que enfatizam a reflexão sobre os
­animais. Não se trata mais de uma ação sobre o mundo natural, de uma t­ ransformação
dele, mas de um processo ontogênico cujos «receptores» (plantas e animais) são parte
­integrante e ativa do processo transformacional. Com isso, as fronteiras entre o domes­
ticado e o não domesticado se tornam frágeis, turvas e de difícil apreensão. Esse movi­
mento, sintetizado por diversos tipos de coletâneas e trabalhos10, marca uma interpre­
tação e orientação analítica que coloca os animais (e eventualmente plantas, ­embora
nesses casos os animais sejam super-representados) não como receptores de uma
domes­ticação, mas enquanto parte de um processo relacional complexo entre múlti‑
plos agentes. ­Conceitos como coevolução, «human-animal assemblage»11, ­«codomestic
relationship»12, «human-animal joint commitment»13 marcam a autonomia e ­agência
­animal nas relações em questão, se contrapondo a um entendimento centrado em
­conceitos como ­controle, «complet mastery»14, ou mesmo em transformação fisiológica
(como é a definição zootécnica15).
Assim, domesticação não pode ser entendida como um estado, mas como um
­processo relacional, uma ontogênese, onde animais ou plantas não são considerados
­objetos ou meros receptores passivos das ações. Deve-se então repensar as relações
­estabelecidas entre os diversos humanos e os diversos animais a partir de uma definição
ampla, um conceito «guarda-chuva» de domesticação. Deste modo, abrem-se perspec­
tivas etnográficas ricas e finas na «margem da domesticação»16, mostrando toda varie­
dade possível nas relações humano-animal.

8
RINDOS et al., 1980.
9
Consultar INGOLD, 1980 e STEPANOFF et al., 2017, para uma tentativa mais recente e mais aberta de classificação
em um exemplo de domesticação animal no Ártico.
10
SWANSON, LIEN & WENN, 2018a; CASSIDY & MULLIN, 2007, entre outros.
11
LEIN, 2018: 132.
12
FIJN, 2011.
13
STEPANOFF, 2012.
14
SWANSON, LIEN & WENN, 2018b: 9.
15
PORCHER, 2001; DIGARD, 1988.
16
SWANSON, LIEN & WENN, 2018a.

67
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

É também essa aproximação que permite Porcher repensar a relação de criação na


pecuária leiteira na França, por exemplo. Em um dos seus artigos, Porcher e ­Schmitt17
questionam justamente se, no contexto de uma ordenha robotizada, poderíamos dizer
que as vacas participam do trabalho e de que maneira isso aconteceria. Sem entrar nas
definições de trabalho (a diferença entre colaborar com o trabalho ou trabalhar18 ou na
oposição entre o que seria a prática do trabalho humano e a prática do trabalho animal)
elas demostram as consequências da instalação de um robô sobre o comportamento
das vacas a partir do estudo das «condições de trabalho de uma manada de vacas, suas
­relações no trabalho — com seu criador e entre elas — e suas relações com os objetos
­técnicos»19. As autoras apontam para o modo como as vacas se adaptam e reagem às
­conduções impostas tanto pelo humano quanto pelo robô; como elas seguem, a­ ntecipam
ou tentam burlar a condução dos dois.
Se no caso das vacas a questão da domesticação não é a priori problemática, essa
­ênfase relacional e a integração de uma perspectiva animal sobre essa relação tem como
efeito desfazer os limites do próprio conceito, a ponto de abranger uma variedade de
­processos relacionais tão amplos que a própria noção de domesticação perderia seu
­sentido20. Não pretendo aqui responder a esse questionamento, derivado das reflexões
mais amplas sobre domesticação, mas acho importante incorporá-lo a uma análise dos
processos de criação de vacas leiteiras no contexto ocidental (na França e na Suíça em
produções leiteiras relativamente intensivas). Este seria, contudo, parte de um c­ aminho
promissor para a realização de um estudo fino/minucioso das práticas e técnicas
em questão.

RELAÇÃO HUMANO-ANIMAL COMO RELAÇÃO TÉCNICA


Questões abordadas em pesquisas recentes sobre domesticação e a relação huma­
no-animal foram objeto de discussões e debates importantes para a antropologia da
técnica francesa21. O primeiro a traçar um caminho promissor de análise das relações
de domesticação foi, sem dúvida, Haudricourt em seus textos seminais sobre a relação
humano — animal/planta22. A domesticação continuou sendo um tema central para
os tecnólogos, ilustrado pelo número especial da revista l’Homme de 1988, intitulado
Les Animaux: domestication et représentation. Neste, entre as críticas sobre a noção de

17
PORCHER & SCHMITT, 2010.
18
Idem: 256.
19
Idem: 241. (Tradução minha). «[…] conditions de travail d’un troupeau de vaches, leurs relations au travail — avec
leur éleveur et entre elles – et leurs relations aux objets techniques».
20
TSING, 2018.
21
Para um histórico das abordagens desta vertente francesa consultar a Introdução de Schlanger na publicação dos
textos de Mauss sobre técnica (SCHLANGER, 2012) e o número de Antologia da Revista Techniques et Culture
­(GOVOROFF et al., 2010).
22
HAUDRICOURT, 1962, 1964.

68
FAZER LEITE: SOBRE TÉCNICAS DE ORDENHA E A RELAÇÃO ENTRE VACAS E CRIADORES
NA ALTA SABÓIA (FRANÇA) E NO JURA SUÍÇO

­ omesticação de Sigaut23 e as questões levantadas por Haudricourt e Dibie24, encon‑


d
tramos debates similares aos atuais. In fine, ao constatar a variedade inextinguível das
possibilidades relacionais humano-animal, temos ainda interesse metodológico e possi­
bilidades analíticas na categorização de algumas delas com o termo «domesticação»?
Um outro aspecto de interesse da antropologia da técnica sobre a relação humano-­
-animal, ecoa na definição de Sigaut sobre técnica: uma descrição antropológica do que
as pessoas fazem25. Não há técnica ou tecnologia em si, mas sim pessoas que agem e utili‑
zam objetos, instrumentos e outros para realizar uma ação. As técnicas são as descrições
dessas ações. Essa ênfase sobre as práticas, o concreto e o cotidiano — em detrimento
do porquê — visa justamente focar nessa descrição para compreender as ações e o que
é importante nas escolhas feitas, uma vez que existem diversas maneiras para fazer algo.
Essa questão da descrição é o que motiva Ferret a retomar os trabalhos de Haudricourt
e suas intuições para elaborar o que ela chama de «antropologia da ação», na qual os
processos da ação são reveladores e pertinentes para a análise antropológica26.

Para seguir a intuição de Haudricourt e continuar no seu caminho […] seria


­sensato se ater, ao menos em um primeiro momento, à análise das ações concretas, seja
com os objetos naturais ou outrem. Por isso proponho implementar uma antropologia
da ação circunscrevendo o programa da seguinte maneira: (1) limitar-se à aná­lises
de ações concretas e situadas. Não procurar analogias no sentido comum do termo
(compa­rações nativas entre humanos e plantas ou humanos e animais), mas analo­
gias no sentido aristotélico, ou seja, as relações entre relações [rapport de ­rapport]
­(correspondências entre as formas de agir frente a objetos naturais e outrem (2) anali­
sar as formas das ações, ao invés do seus conteúdos, a fim de evitar julgamentos de
valor e facilitar a aplicação de uma mesma grade de leitura aos ­diversos domínios de
atividades humanas. (3) limitar o campo de comparações para e­ vitar grandes genera-
lizações que oponham caricaturalmente Oriente e Ocidente. (4) ­refinar a tipologia da
ação para melhor dar conta da complexidade da realidade27.

23
SIGAUT, 1988: 424.
24
HAUDRICOURT & DIBIE, 1988.
25
SIGAUT, 2002.
26
FERRET, 2012, 2014, 2016.
27
FERRET, 2012: 124. (Tradução minha). Pour suivre l’intuition d’Haudricourt et continuer sur sa lancée […]
il serait judicieux de s’en tenir, au moins dans un premier temps, à l’analyse des actions concretes, que ce soit avec les
objets naturels ou avec autrui. Aussi je propose de mettre en oeuvre une anthropologie de l’action en circonscrivant
le programme de la maniere suivante: 1) se contonner à l’analyse des actions concrètes et situées. Ne pas rechercher
des analogies au sens courant du terme (des comparaisons indigènes entre hommes et plantes ou hommes et bêtes),
mais des analogies au sens aristotélicien, à savoir des rapports de rapports (des correspondances entre des manières
d’agir vis-à-vis des objets naturels et vis-à-vis d’autrui); 2) analyser les formes des actions, plutot que leur contenus,
afin d’éviter les jugements de valeur et faciliter l’application d’une même grille de lecture aux divers domaines des
activités humaines; 3) limiter le champ des comparaisons, pour éviter de grandes généralisations oposant caricature‑
lement Orient et Occident; 4) affiner la typologie de l’action pour mieux rendre compte de la complexité de la réalité.

69
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

É principalmente sobre o quarto ponto que quero insistir, uma vez que ele permi‑
te o desenvolvimento e refinamento da proposta inicial de Haudricourt de classificação
em dois tipos de ação: positiva direta, cujo exemplo central é o pastor mediterrâneo, e a
­indireta negativa, como na cultura dos inhames na Nova-Caledônia. A ideia de ­Ferret
é retomar essa tipologia, porém, tirando-lhe a caracterização dicotômica impositiva e
­complexificando a descrição das ações para dar conta da variedade dos possíveis. A ­autora
mostra que podemos, a partir dessa dicotomia inicial, estabelecer um quadro descri­tivo
fino das diversas ações realizadas por um sujeito. Quadro que nos permite enten­der a
concretude das ações, a qualidade de «rapport de rapport», da mediação técnica.
Para compreender a proposta de Ferret é necessário pontuar alguns entendi­
mentos, como a utilização de «objetos» e «sujeitos». Sua proposição implica compre­
ender ­estes termos enquanto posições gramaticais, uma vez que não se referem ao
­estado dos ­envolvidos mas à posição na ação que se desenrola. A autora insiste também
em uma distinção fundamental na descrição das ações: a distinção entre operação e
manipu­lação28. Para ela a ação sobre outros seres vivos é, na maioria das vezes, manipu‑
lação e não operação. Ou seja, consiste em um fazer-fazer, e não no fazer ou fazer existir:

Ações dirigidas a outros entes vivos não se tratam apenas de «fazer», mas ­muito
frequentemente dizem respeito a «fazer o outro fazer», uma vez que ambas as ­partes
são agentes (sejam eles humanos ou não). Para adotar a linguagem da semiótica,
­essas ações não são operações, mas manipulações29. A distinção entre esses dois des-
critores não é simplesmente uma ­questão da natureza do objeto (vivo ou não), mas
antes diz respeito à transfe­rência de agência de um sujeito a um objeto30.

A partir dessa distinção é possível pensar os processos de domesticação como uma


manipulação técnica, uma ação complexa, não como um binômio sujeito-objeto, mas
uma tríade sujeito-objeto-objetivo. O objetivo podendo ser um objeto («thing») ou um
evento («events»).

Entendo o termo coisa [thing] no sentido mais amplo possível, englobando


­todos os seres/entidades animados e inanimados, em oposição aos eventos [events]
que acontecem ou são causados pelas coisas. Eventos incluem ações, mas não são
­necessariamente intencionais. Quando procuro fazer alguém chorar meu objetivo é

28
Distinção que a autora retoma de Greimas e Courtes (1982 apud FERRET, 2012; 2014; 2016).
29
GREIMAS & COURTÉS, 1882 [1979]: 184-185, 219.
30
FERRET, 2014: 282. (Grifos no original e tradução minha). «Actions direted towards other living things are not
only about ‘doing’, but very commonly about ‘making the other do’, as both parties are agentes (wether or not they
are human). To adopt the language of semiotics, such actions are not operations, but manipulations (Greimas and
Courtès, 1982 [1979]: 184-185, 219). The distinction between these two descriptors is not simply a question of the
object’s nature (living or otherwise), but rather about a transfer of agency from subject to object».

70
FAZER LEITE: SOBRE TÉCNICAS DE ORDENHA E A RELAÇÃO ENTRE VACAS E CRIADORES
NA ALTA SABÓIA (FRANÇA) E NO JURA SUÍÇO

que ele ou ela chore (um evento) e não suas lágrimas (coisas). Em contraposição,
quando alimento um ganso à força, meu objetivo pretendido é o fígado inchado
do ganso (uma coisa) e não sua ingestão de prodigiosas quantidades de grãos (um
­evento). Quando peço um bolo na confeitaria, meu objetivo é o bolo (uma coisa);
mas quando estimulo minha filha a assar um bolo, meu objetivo é entretê-la ou talvez
ensiná-la como fazer um bolo (eventos). Em outras palavras, a ação de um sujeito
tende a um processo ou um resultado. E todas as ações procuram ser eficazes, ainda
que não necessariamente úteis31.

A partir dessas primícias, Ferret constrói um quadro descritivo, ou «framework»,


das ações possíveis e aponta que a domesticação é caracterizada em grande parte por
sequências complexas não de fazer, mas de fazer-fazer, onde estão incluídas as possibili‑
dades de ações próprias dos animais ou das plantas.
Inicialmente, a distinção entre ação direta e indireta é mantida, porém, não mais
atrelada àquela entre positiva e negativa. Neste último binômio é acrescida a noção de
ação contrária, que ocorre, por exemplo, ao excitar e cansar um cavalo a ser domado
afim de torná-lo dócil e calmo.
Sendo assim, a autora continua a identificar tipos de ações, como as ativas, ­passivas
ou intervencionistas (um tipo de ação super-ativa, com objetivos radicais), ou ainda
­endógenas, exógenas ou participativas; internas ou externas; contínuas ou descontí‑
nuas. Não cabe aqui esgotar todos os tipos definidos de ações, concebidos pela autora
­enquanto um «framework» mais do que por sua vocação classificatória32. Contudo, esse
quadro analítico nos proporciona um entendimento das práticas, do fazeres e da relação
de ­domesticação em relação ao funcionamento e aos processos ontogênicos do cotidiano.

FAZER LEITE
Ao iniciar o meu trabalho com os criadores de vacas leiteiras na França, uma das
constantes era a afirmação aparentemente óbvia de que «criar vacas é fazer leite». ­Óbvia
do ponto de vista econômico, quando se fala em produzir leite, e óbvia pela ­própria
­existência de vacas leiterias. Porém, o que exatamente quer dizer essa expressão nas
­diversas ações que são praticadas com esse objetivo? Quais são as escolhas ­mobili­zadas

31
FERRET, 2014: 283. (Grifos no original e tradução minha). I understand the term thing in its widest possible sense,
encompassing all animate and inanimate beings/entities, and contrast with events, which are what happens to, or are
caused by, things. Events include actions, but they are not necessarily intentional. When i aim to make sombody cry,
my goal is that he or she cries (an event) and not his or her tears (things). In contrast, when i force-feed a goose, my
intended goal is the goose’s swollen liver (a thing) and not its ingestion of prodigious quantities of grain (an event).
When i order a cake from the confectioner’s, my goal is the cake (a thing); but when I encourage my daughter to bake
a cake, my goal is to entertain her or perhaps teach her how to bake (events). In other words a subject’s action tends
toward a process or a result. And all actions are intended to be efficacious, though not necessarely useful (SIGAUT,
2002: 158-159).
32
FERRET, 2014, 2016.

71
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

para fazer leite? Que tipo de relação está entre criadores, vacas e técnicas nesse
fazer leite?
A partir da proposta de Ferret pretendo descrever e analisar algumas ações que
compõem esse fazer leite e pensar as escolhas que estão sendo feitas pelos criadores. Na
região onde estou desenvolvendo a minha pesquisa, entre a Suíça e a França, às margens
do Lago Leman, nos Alpes e no Jura, os contextos de criação são complexos e múlti‑
plos: há diversidade de produção de queijo, diferenças nacionais e diferenças geográ­
ficas ­(altos das montanhas ou perto do lago / entre as montanhas do Jura e dos Alpes).
­Diante dessa diversidade, concentrei o meu trabalho no que é considerado pelos criado‑
res de vacas como a essência, o ápice do seu labor: o processo de ordenha e suas diversas
modali­dades. Uma descrição do fazer proporciona a possibilidade de compreender os
objetivos e escolhas feitas, e esclarecer a relação de domesticação que se vai tecendo
nesse contexto.
Nas propriedades rurais, aos arredores do Lago Leman, encontramos três tipos
principais de ordenha que, como veremos, implicam tipos de espaços, estábulos, conten­
ções e ações variadas. O primeiro tipo, a ordenha a partir de um sistema de «garras»
[«griffes»] móveis33, consiste na ordenha em estábulo, onde as vacas permanecem
­presas em um lugar fixo e seus criadores as conectam via o aparelho sugador ao sistema
de canalização.
Para esse tipo de ordenha existe duas possibilidades de coleta do leite: um sistema
de coleta que passará por tubulação fixa até chegar a um tanque de resfriamento, ou o
leite é coletado em balde, acoplado ao sistema de sucção, e no final da ordenha de cada
vaca é despejado no tanque. Esse sistema é consideravelmente leve em termo de infra­
estrutura, além de ser bem incorporado a um estábulo.

33
As «Griffes» designam ali o conjunto das quatro teteiras, o pulsador e dois flexíveis, um para conectar ao sistema de
vácuo e o outro ao sistema de canalização do leite (eventualmente balde-ao-pé). Geralmente os criadores têm várias
dessas que podem manusear em sequência. Trata se de um sistema hybrido entre um ordenha canalizada, onde a
canalização do leite e o sistema da vácuo são fixo, mas o aparelho sugador — «griffes» — móvel, sendo levado de vaca
em vaca pelo criador.

72
FAZER LEITE: SOBRE TÉCNICAS DE ORDENHA E A RELAÇÃO ENTRE VACAS E CRIADORES
NA ALTA SABÓIA (FRANÇA) E NO JURA SUÍÇO

Foto 1. «Griffe» entre duas vacas num estabulo «a l’attache» conectadas ao sistema a vácuo e a canalização de leite.

O segundo tipo de ordenha mecanizada é aquela onde há uma sala exclusiva para
a realização da ordenha, onde é possível encontrar múltiplas variantes: sala com dois
cais paralelos, onde estão dispostas as vacas sendo ordenhadas e um fosso no meio,
onde e­ stão posicionados os criadores — ordenha em linha —, ou ainda um sistema dito
­rotativo («Rotary Parlor»)34.

34
Cada um deles tem diversos tipos: posição das vacas em fileira ou espigo, conexão das teteiras lateral ou por trás,
entre outros.

73
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Foto 2. Sala de ordenha rotativa. Aqui o cais onde ficam as vacas e o cais
onde estão os criadores giram conjuntamente.
Foto do autor.

Essas técnicas requerem um espaço reservado, que compreende a sala de


­ rdenha, uma sala de espera e corredores para ligar o estábulo a elas. As vacas ficam
o
presas s­omente no momento da ordenha. Nesse sistema, assim como nos anteriores,
as teteiras são ­conectadas às vacas pelos criadores, podendo ou não ser desconec­tadas
automa­ticamente quando o fluxo de leite cessa. A ordenha é realizada duas vezes por
dia, em intervalo regular. Esses sistemas correspondem à chamada ordenha meca­
nizada, que se opõe a ordenha manual35. Na ordenha mecanizada as mãos podem
ordenhar breve­mente ­antes de conectar as tetas das vacas ao dispositivo, chama-se «tirar
o primeiro leite/jato».

35
A ordenha manual consiste na extração do leite através do contato direto das mãos que apertam as tetas das vacas,
com movimentos ritmados, para fazer fluir o leite.

74
FAZER LEITE: SOBRE TÉCNICAS DE ORDENHA E A RELAÇÃO ENTRE VACAS E CRIADORES
NA ALTA SABÓIA (FRANÇA) E NO JURA SUÍÇO

O terceiro tipo de ordenha corresponde ao que se chama de ordenha robotizada.


Nesse caso o aparelho sugador é fixo e as teteiras são conectadas aos úberes das vacas
através de um braço robotizado.

Foto 3. Braço do robô de ordenha.


Foto do autor.

Nesse sistema, as vacas devem ir por vontade própria até o robô, estimuladas pela
oferta de ração complementar; também há uma programação que as dará direito, se
for o caso, de ir ao pasto somente após passarem por ele. Nesse caso a ordenha não é
padronizada, mas individualizada, decidida pelo criador e a vaca, com um intervalo
mínimo de seis horas. Dessa maneira, as vacas podem ou devem passar pelo robô de
uma a quatro vezes ao dia.
Em todos os casos a ordenha corresponde ao momento principal elencado pelos
criadores no processo de fazer leite. Fazer leite é ordenhar vacas, independentemente
do sistema de ordenha. Isso não quer dizer que outros aspectos do fazer leite não sejam
importantes e reconhecidos como tal, só não possuem caráter paradigmático36. Assim,
mesmo quando o foco do criador não é a quantidade de leite, isto é, a maximização da
produção, a sua qualidade aparece como o fator determinante e, como dizem: é ele que

36
Entre eles, a alimentação é apontada como fundamental, tanto para quantidade quanto para a qualidade do leite;
a seleção racial e genética é também relevante para os criadores (DETURCHE, 2012, 2017), definindo parte do seu
trabalho, mas em suma o objetivo que é fazer leite é efetivo no momento da ordenha.

75
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

paga o trabalho. Uma boa ordenha é sinônimo de uma boa criação. Por isso, focarei
nas ações e nos fazeres desse momento, como parte de um todo a ser entendido, e cujas
­ramificações ultrapassam o limite do estábulo.
A priori, se partirmos da classificação de Haudricourt, encontraremos aqui a ação
direta positiva, com diversos tipos de ação sobre o animal em contato direto com ele
que, ao que parece, corresponde ao modo pastoralista de conceber a domesticação: feita
­através do controle e da dominação37. Porém, é também nas ações complexas e, sobre­
tudo variadas, das ordenhas manuais, mecanizadas e robotizadas, que escolhas são feitas
e diferenças são percebidas. Seguindo Ferret38, temos aqui diversos tipos de manipu­lação,
isto é, ações que tem como objetivo fazer a vaca fazer leite, ou mais precisamente nesse
momento, deixar o leite ser extraído dela. Ferret aponta que essa manipulação funciona
primeiramente porque as vacas são animais volitivos e tem capacidade de ação. A mani‑
pulação consiste em fazer as vacas liberarem o seu leite. Porém, há de se considerar que
entre as técnicas apontadas nem todas as ações apresentam as mesmas características.
No processo é exercida uma ação direta, ativa, positiva e externa: a contenção dos
animais. Nenhuma das maneiras de ordenhar, inclusive à mão, permite que os animais
estejam livres da contenção. Porém, ao contrário da contenção dos jovens cavalos ­presos
em um poste para se cansarem no momento da doma39, essa ação é direta com o objetivo
de controle, mas indireta e positiva com o objetivo de fazer leite. Não é a contenção em
si que faz o leite ser liberado, mas ela é necessária. Também essa conten­ção toma formas
diferentes nas técnicas utilizadas em função objetos técnicos e das ­ferramentas que a
­mediatizam. Na ordenha mecanizada em sala específica a ação de contenção é descon‑
tínua e presente unicamente para ordenha. No sistema de estábulo dito «à l’attache»40
ou nos robôs, a contenção está também atrelada à nutrição, ainda que de maneiras
­diferentes: é descontínua nos robôs, pois a vaca é liberada após a ordenha, e contínua
«à l’attache». De certa maneira podemos dizer que a ação de contenção e seus apara‑
tos técnicos (da contenção do animal via uma coleira, um sistema de fechamento mais
ou menos rígido no pescoço, a retenção dentro de um boxe metálico, ou contra seus
­companheiros de ordenha, existem inúmeras possibilidades) é mais ou menos concre‑
tizada, nos termos de Simondon41. Por suas características, a contenção em sala pode
ser considerada menos concretizada que a contenção no robô (descontinuada) e menos
ainda na contenção em estábulos fixados, onde ela é contínua e serve a outros propósitos
além da ordenha.

37
HAUDRICOUT, 1962.
38
FERRET, 2012, 2014, 2016.
39
Idem.
40
Essa expressão designa estábulos onde as vacas são presas a um lugar fixo, comum em criação nas montanhas, onde
a neve impossibilita o acesso ao pasto e o frio exterior obriga o criador a proteger os animais. É nesse sistema que
temos a ordenha via as «garras» moveis ou eventualmente via o balde-a-pé.
41
SIMONDON, 2012 [1958].

76
FAZER LEITE: SOBRE TÉCNICAS DE ORDENHA E A RELAÇÃO ENTRE VACAS E CRIADORES
NA ALTA SABÓIA (FRANÇA) E NO JURA SUÍÇO

Cada sistema implica determinadas ações necessárias à ordenha. Em sala de


­ rdenha, primeiramente é necessário conduzir os animais para uma sala de espera e
o
depois fazer com que eles entrem na sala de ordenha (por grupos, no caso da sala com
cais/fosso, e em fluxo contínuo e regular no caso de sistema rotativo). Essa condução
é um momento em que pode ocorrer tensão, quando alguns animais são conduzidos
sem problema e outros podem demonstrar descontentamento ou medo, principalmente
quando se trata das vacas jovens. O encontro criador-vaca nesses locais com finalidade
exclusiva é uma ação complexa e mediada por um espaço particular, com aparelhos
específicos de ordenha e diversos gestos rítmicos circunscritos, com limitação de tempo
e de espaço42. Por conta dessa complexidade não há muito tempo para outro tipo de
atenção aos animais.
Os gestos de conectar as teteiras são os mesmos entre as ordenhas mecanizadas,
variando de criador para criador, de maneira pessoal. Com uma das mãos o criador
segura o aparelho e abre a sucção, e com a outra mão ele conecta uma a uma as teteiras.
Nesse processo a posição do corpo é o diferencial: em uma sala de ordenha os criadores
estão de pé com a cabeça na altura do úbere das vacas e não têm acesso às demais partes
do corpo do animal. Em um estábulo «à l’attache» o criador apoia um dos seus joelhos
no chão ao lado do animal e essa posição lhe permite ter outra visão e a possibilidade de
toques e troca de olhares com as vacas.

Foto 4. Criadora limpando as tetas antes de conectar as teteiras. Notar a mão colocada na barriga da vaca.
Há nessa técnica uma multiplicidade de gestos e falas para se comunicar com a vaca.
Foto do autor.

Lavar as tetas, eventualmente tirar o primeiro leite, colocar as teteiras e aplicar um produto antisséptico e protetor
42

no final da ordenha.

77
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

O contato com os animais nessas duas técnicas de ordenha é, nesse aspecto, bem
diferente. O tempo é também gerido diferentemente, sobretudo em caso de sistema
­rotativo. Em um sistema onde as vacas são presas no estábulo o tempo é controlado
pelo criador, o qual pode impor seu ritmo de acordo com a necessidade da realização
de outros trabalhos. No sistema com uma sala de ordenha o ritmo deve ser mantido e
condicionado em grande parte pelos objetos técnicos, sobretudo no sistema rotativo em
que o andar/movimento é programado e implica a entrada contínua de vacas.
Dentro de um sistema robotizado, os momentos específicos são substituídos por
uma ordenha contínua. Contudo, o princípio de conexão das teteiras continua o mesmo,
só que agora realizado por um braço robotizado. A vaca entra sozinha em um boxe,
atraída pela distribuição de alimentos saborosos, e nesse momento o braço é ­acionado.
Cada vaca é reconhecida pelo robô através de um colar eletrônico, o que permite que
ele r­egistre na sua memória o formato do úbere daquele animal a partir dos dados
­médios coletados nas últimas ordenhas. O registro permite que o mecanismo guiado
por ­captores infravermelhos ou câmera 3D se adapte a cada vaca com maior agilidade.
As teteiras são colocadas uma após a outra, iniciando pelos quartos traseiros do úbere.
O contato entre os criadores e as vacas parece então inteiramente mediado pelo objeto
técnico, controlado à distância via computador ou smartphone. Já referi em outro texto
de ­minha autoria que isso não configura necessariamente um distanciamento ou uma
perda da relação de intimidade com os animais, pois se a ordenha nos outros sistemas
é perpassada pelo contato direto com as vacas, os robôs não o elimina, senão apenas o
desloca para outros momentos e espaços43.
Voltando às propostas de Ferret e focando somente no método de ordenha e do
­fazer leite, o processo de conectar as teteiras aparece em todos os sistemas como uma
ação sempre mecanizada ou equipada, mediada por objetos técnicos mais ou menos
complexos e concretizados44. Trata-se também de uma ação interna, agindo sobre o
animal e mesmo dentro dele ao esvaziar as glândulas mamárias. Ela é também direta,
positiva e contínua, cujo objetivo é a coleta do leite. Descrito assim parece de fato corres‑
ponder a um controle e uma forte dominação do criador sobre as vacas, e se enquadrar
em uma definição restrita de domesticação. Porém, como referi, dentro dos processos
de ordenha há uma série de gestos, de ações que não são aparentemente implicadas nos
gestos de conexão dos aparelhos às tetas das vacas. Ora, se seguirmos Coupaye na sua
análise da cadeia operatória, não poderemos descartá-los como acessórios ou secun­
dários, devendo ser plenamente integrados à descrição45. Falas usadas eventualmente
para acalmar os animais, toques e chamados para que as vacas andem ou levantam-se,
ou ainda o uso do bastão para lidar com situações mais tensas, tem um papel i­ mportante
43
DETURCHE, 2019.
44
Idem.
45
COUPAYE, 2017.

78
FAZER LEITE: SOBRE TÉCNICAS DE ORDENHA E A RELAÇÃO ENTRE VACAS E CRIADORES
NA ALTA SABÓIA (FRANÇA) E NO JURA SUÍÇO

no processo de fazer leite. Sobretudo essas ações fazem eco à constante afirmação dos
criadores de que as vacas dão ou não dão leite, fazem ou não fazem leite, conforme
sua vontade.
As asserções sobre a volição bovina em dar ou fazer leite são questões que perpas­
sam boa parte dos trabalhos genéticos feitos sobre os animais: a produção leiteira e a
facilidade de ordenha (a liberação rápida e um grande fluxo de leite durante a ­ordenha)
são critérios antigos da seleção de vacas leiteiras. Além disso, se os criadores reconhecem
o lado genético e de seleção racial dessas qualidades, não é o suficiente para e­ sgotar a
­expressão «ela não dá o seu leite». Claramente, os criadores fazem referência à ­volição dos
animais através de uma possível retenção do leite. O mesmo se diz sobre a ­possibilidade
de uma vaca se empenhar em produzir leite ou não. Todos estão cientes que existe uma
base genética, porém, sabe-se também que as vacas possuem possibilidades, ou lhe são
atribuídas essas possibilidades, de facilitar ou potencializar o fazer leite. Isso nos conduz
às questões levantadas por Porcher46 e retomadas por Despret47 a respeito do trabalho
das vacas. Para os criadores esse «dar leite» refere-se claramente ao caráter de cada uma
das vacas, a sua personalidade, sua relação com o criador, a percepção do ambiente e
sua condição psicológica. Isso é importante quando se trata de uma jovem vaca que
está passando pelas suas primeiras ordenhas. Havendo uma «mise en condition» para
ela liberar o leite, o criador pode usar palavras de encorajamento, gestos lentos e de
­acariciamento, lançando um aviso antes de tocá-la. Caso esses métodos falhem o criador
pode optar pela utilização de uma injeção de hormônio (citosina) ou ainda métodos
artesanais como, por exemplo, sopro de ar no ânus (em desuso).
Nesse aspecto, os toques, sussurros, gritos ou acariciamentos que acompanham
a ordenha e instituem uma relação específica entre criador e vaca atenta ao caráter das
­vacas, suas preferências e reações, contribuem para individualizar e nutrir as experiên‑
cias do criador. Estes aspectos fazem parte da cadeia operatória da ordenha e constituem
o processo relacional de estabelecimento dos entes.
Retomando o caso específico do ordenhar e a possibilidade de pensar e d ­ escrever
as ações que o compõem, retorno a uma distinção presente no programa de Ferret.
­Regresso ao coração do que orienta a ideia de fazer-fazer, de manipulação: quem está
fazendo a ação, quem está agindo?

Como acabamos de ver, uma ação é descrita como endógena, exógena ou parti-
cipativa em função de um sujeito agir sozinho (endógena), se sua ação é auxiliada ou
substituída por aquela de uma terceira parte (exógena), ou se o objeto em si participa

46
PORCHER & SCHMITT, 2010; PORCHER, 2001, 1997.
47
DESPRET, 2014.

79
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

ativamente da ação (participativa). Em outros termos, esse descritor descreve


quem age48.

Nos processos de ordenha descritos a ação é exógena, mediada por ferramentas


e objetos técnicos. Porém, em termos de fazer leite que, conforme apontado, é o que
sintetiza o trabalho dos criadores, trata-se também de um processo em certa medida
participativo, uma vez que necessita da cooperação das vacas para seu objetivo, qual
seja a produção e liberação do leite. A manipulação de fazer leite aparece como o encon‑
tro nodal de um processo participativo das vacas, independente se elas «trabalham» ou
­simplesmente cooperam com o trabalho, reagindo ao que os criadores fazem, e trans‑
formando os alimentos em leite via um processo biológico (o que aqui inclui a seleção
­genética), e uma ação manipulada pelos humanos que visa a liberação do leite pelas
vacas. É o que defendem os criadores que investem simbólica e concretamente nos está‑
bulos de vacas presas. Isso diz respeito a uma maneira de estar junto dos seus animais, de
criar laços e instituir uma relação afetiva. Momento onde o processo de «assemblage»49
seria mais forte, se fazendo.
Todavia, a situação é diferente em sistema técnico com ordenha em sala de orde‑
nha, onde o tempo e a possibilidade de criar relações específicas com as vacas, baseadas
em falas e toques, é menor. Aliás, esses sistemas são mais desenvolvidos em produção
industrializada, onde a objetificação dos animais e dos trabalhadores é mais forte50. ­Estes
são também os sistemas onde a ordenha é pouco vivenciada pelos criadores, onde é a
mais difícil e estressante, levando atualmente à instalação de muitos robôs para a reali­
zação do trabalho. Mas, como apontado por outros autores, o robô não é o prolonga‑
mento evolutivo linear das salas de ordenha, ele não é o passo a mais para industria­
lização cartesiana51. Salvo talvez quando sua instalação é acoplada ao sistema rotativo
que permite eliminar os trabalhadores52. Mas, em um sistema relativamente pequeno ou
de média escala, o robô é uma modificação importante — uma transformação —, mas
não uma evolução.
Logo, com o robô o momento da ordenha não é mais um momento, não é mais
o ponto focal, o «joint commitment»53 humanos-vacas, apesar de continuar sendo o
momento da produção de leite. Ele necessita que as vacas sejam conduzidas, levadas a

48
FERRET, 2016: 285. (Grifos no original e minha tradução). As we have just seen, an action is described as endo­
genous, exogenous or participative a­ ccording to wether the subject acts alone (endogenous), if his action is abetted
or replaced by that of third party (exogenous), or if the object itself actively participates in the action (participative).
In other words, this descriptor describes who acts.
49
LIEN, 2018.
50
Ver HANSEN, 2013, 2014 para um exemplo em Hokkaido — Japão.
51
DETURCHE, 2019; HOLLOWAY & BEAR, 2017; HOLLOWAY et al., 2012.
52
TIBBETTS, 2019.
53
STEPANOFF, 2012.

80
FAZER LEITE: SOBRE TÉCNICAS DE ORDENHA E A RELAÇÃO ENTRE VACAS E CRIADORES
NA ALTA SABÓIA (FRANÇA) E NO JURA SUÍÇO

participar ativamente, com volição, do processo. Assim, as vacas novas, por exemplo,
devem ser acompanhadas até o dispositivo, guiadas e acalmadas, antes de se apropriar
do robô54.

Foto 5. Gestos e toques para acalmar uma jovem vaca nos seus primeiros momentos no robô.
Acompanhados de palavras para tranquiliza-a.
Foto do autor.

Isso é possível por conta da relação humano/vaca que é tecida em outros momen‑
tos, em horas passadas no meio dos animais, supervisionando e realizando tarefas de
manutenção e de organização. Mais do que guiar e assumir o papel de pastor, tentar criar
as condições necessárias para as vacas se ordenharem sozinhas inclui contatos regulares
e variados com elas. Algumas precisam de um toque, de um lembrete, mas o objetivo é
alcançar uma ordenha fluída e suave, com a participação ativa dos animais.
A ordenha é tanto uma «mise en condition» das vacas para participar do proces‑
so, quanto uma extração/produção de leite. A ideia de manipulação que Ferret aponta
como sendo central no processo de domesticação toma aqui um caráter complexo que
­necessita da participação ativa dos animais. De fato, domesticação se deve às caracterís‑
ticas dos objetos da ação que, no caso dos entes vivos possuem qualidades que permi­
tem tipos de manipulação particulares, o que leva ao conceito provocativo de «ferra­
menta viva»55. Mas o que deve ser ressaltado é justamente o vivo, isto é, o fato de ser uma
­relação que somente existe via a resposta dada pelas vacas.

54
PORCHER & SCHMITT, 2010.
55
PORCHER & SCHMITT, 2010.

81
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

A mediação técnica e as escolhas feitas pelos criadores constituem e orientam a


relação em função do objetivo. A eficácia, todavia, não depende unicamente do controle
exercido, das limitações impostas, e das orientações estabelecidas pelos criadores, mas
se constrói na relação com os animais. Fazer leite não é definido somente como extrair o
leite das vacas, mas um «assemblage» particular que permite aos animais dar e fazer leite.
A técnica proporciona mediação e constitui um meio particular no qual se desenvolvem
habilidades humanas e habilidades animais, o criador devendo proporcionar e guiar
as possibilidades. O processo de domesticação não deve ser resumido a um controle,
nem a uma objetificação dos animais, o que os destitui da condição de agentes. De certa
­maneira o oximoro de ferramentas vivas utilizado por Ferret manifesta essa aparente
irredutibilidade a um termo ou ao outro.
Dentro das escolhas possíveis para os criadores, os sistemas técnicos do ­processo
de domesticação marcam uma orientação e proporcionam a emergência, a consti­
tuição dos atores implicados. Se podemos, por certos aspectos, falar em co-evolução
ou ­co-emergência não podemos perder de vista que são os criadores que determinam o
­objetivo do processo. Assim, são produzidas experiências variadas tanto por parte dos
criadores quanto por parte das vacas. Essas experiências mediadas por técnicas produ‑
zem uma rede relacional densa que influenciará decisões e escolhas futuras. Em uma
análise sobre a instalação de robôs de ordenha entre criadores de vaca da Holanda,
Driessen e Heutinck56 mostram muito bem as implicações que levam a refletir sobre
essa transformação técnica e essa escolha em termos de co-evolução.

Para nosso caso de estudo, essa compreensão co-evolucionária quer d


­ izer que
as características das vacas, dos criadores, e dos robôs dependem de como eles se
­relacionam uns com os outros e com a constituição mais ampla do mundo57.

Os autores demostram como a instalação de um robô transforma profundamente


as habilidades, agências e subjetividades tanto das vacas como dos criadores58. Levando-­
-as a refletir como em um «processo de humano-animal-tecnologia interação»59 é possí­
vel emergir uma ética e uma moral particular. A questão de saber se as vacas querem ser
ordenhadas, e o que elas realmente querem se torna então uma questão não com resposta
absoluta, mas constitui experiências promovidas pelas escolhas técnicas operadas.
Porém, penso que a análise descritiva das ações de ordenha em diversos tipos
de sistemas, com ou sem robô, demostram que dentro das operações de manipulação

56
DRIESSEN & HEUTINCK, 2015.
57
Idem: 5. (Tradução minha). For our case study, this co-evolutionary understanding would mean the characteristics
of cows, farmers, and robots depend on how they relate to each other and to the wider fabric of the world.
58
Idem: 11.
59
Idem: 17.

82
FAZER LEITE: SOBRE TÉCNICAS DE ORDENHA E A RELAÇÃO ENTRE VACAS E CRIADORES
NA ALTA SABÓIA (FRANÇA) E NO JURA SUÍÇO

que concebem a domesticação não é possível afirmar que existe uma direção evolu­tiva.
Como referido, o robô não é o futuro da criação de vacas de um ponto de vista do
­progresso nem do princípio da evolução, mas se insere dentro de um leque de possi‑
bilidades que dependem de uma multiplicidade de fatores. Há inúmeras maneiras de
fazer leite, ­porém, a tensão constante que perpassa os sistemas é originária justa­mente
das experiências relacionais compartilhadas entre objeto técnico, criadores e vacas.
E nesses espaços técnicos, o fazer leite está repleto de habilidades, afetos, toques, ações
e ­reações, aprendizagem e observações compartilhadas e/ou complementares entre
­criadores e v­ acas. Se os criadores apontam a ordenha como o ápice e a síntese dos seus
trabalhos e ações (o que ocorre mesmo entre criadores que instalaram um robô, ainda
que ­passe a designar uma ação mais difusa) não é somente porque se produz leite em
termos ­econômicos, mas também porque há esse «assemblage» que faz leite e um leite
que faz esse «assemblage».

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86
AS CHEGAS DE BOIS NO BARROSO
(NORTE DE PORTUGAL): SABER FAZER UM
TOURO DE COMBATE
CRISTIANO PEREIRA*

Resumo: Na região do Barroso, em Trás-os-Montes, o gado bovino e a raça Barrosã, assumem grande
destaque, quer social quer económico, com as chegas de bois a serem uma das principais práticas asso‑
ciadas a estes animais. Assim, neste texto, é pretendido apresentar respostas a diversas questões, das quais
podem ser destacadas as seguintes: como se seleciona um touro de combate?; como se prepara um touro
para ­combater?; os cuidados, como a alimentação, a ter com estes diferem dos cuidados a ter com os outros
­touros, bois e vacas?; como é a relação entre proprietários e touros?
Palavras-chave: Barroso; gado bovino; chegas de bois; tauromaquia.

Abstract: In the Barroso region, in Trás-os-Montes, bovine cattle and the Barrosã breed are prominent,
both social and economic; with chegas de bois (bullwrestling) being one of the main practices associated
with these animals. Thus, in this text, it is intended to present answers to several questions, of which the
following may be highlighted: how to select a combat bull?; How do you prepare a bull to fight? are the cares
like food to have with them different from the care of other bulls, oxen, and cows? How is the relationship
between owners and bulls?
Keywords: Barroso (North of Portugal); cattle; chegas de bois (bullwrestling); tauromachy.

* Aluno do Programa de Doutoramento FCT em Antropologia: Políticas e Imagens da Cultura e Museologia (com apoio
financeiro da FCT e do FSE); ISCTE-IUL/NOVA-FCSH/CRIA. Email: camgp1991@gmail.com.

87
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

INTRODUÇÃO
Neste texto pretende-se, após algumas notas introdutórias (onde, por exemplo, se
pode ficar a conhecer, de forma breve, a história das chegas de bois), descrever p­ ráticas
associadas àquilo que pode ser definido como o saber fazer presente nas chegas de
bois, de forma a compreender como se podem melhorar as capacidades de combate
(apontadas, não raras vezes, como naturais) de um touro — ou seja, como se faz um
touro de combate. De facto, e sobre a seleção e preparação de animais para práticas
tauromá­quicas, Jean-Baptiste Maudet1 reconhece que a observação da existência de
­diversas raças ­bovinas permite melhorar a compreensão da diversidade de práticas e
jogos tauromá­quicos; sendo que esta variedade de raças se pode associar a técnicas de
seleção, cruzamento e reprodução especializadas com vista à procura dos animais ideais
para parti­cipar nesses mesmos jogos.
Assim, ao longo do texto, é feita referência à forma como os touros de combate,
no caso do Barroso, são selecionados, alimentados, treinados e tratados no dia a dia,
preparados nos dias que antecedem os combates, bem como os cuidados especiais a ter
com estes depois de uma chega, e a toda a relação existente entre estes animais e os seus
proprietários, e em que, por vezes, diferem ou não estes cuidados dos cuidados presta‑
dos a outros touros, bois e vacas.
No que respeita aos métodos utilizados, é fundamental realçar o recurso exclusivo
a métodos qualitativos e associados à pesquisa etnográfica. Destacando-se a observação
direta, realizada em vinte e cinco combates, ocorridos no Barroso, entre 2015 e 2016.
­Foram, ainda, selecionadas entrevistas semiestruturadas, concedidas por seis proprie‑
tários de touros de combate e gado bovino em geral, todos eles habitantes no Barroso.

BARROSO: CARACTERIZAÇÃO, COMUNITARISMO,


BOI DO POVO E GADO BOVINO
O território conhecido como Barroso, ou Planalto Barrosão, situa-se no Norte de
Portugal, no distrito de Vila Real, em Trás-os-Montes, e é constituído, de forma maiori­
tária, por dois concelhos, Boticas e Montalegre. No que respeita à organização social,
este concelho assenta em pequenos, mas concentrados núcleos populacionais — organi­
zação típica de comunidades de montanha. Este território é sobretudo rural, contudo
pode e­ ncontrar-se nele núcleos urbanos de pequena dimensão, como as vilas de Monta­
legre, Salto e Boticas. Economicamente, este território é marcado pela propriedade
mini­fundiária, pela agricultura de montanha, e, mais do que por esta, pela pastorícia e
­pecuária, com a criação de bovídeos, porcos (animal associado à produção de fumeiro,
também ele importante para a economia do Barroso), coelhos, cabras, ovelhas, galinhas
e ­outros ­animais de capoeira. Para a dinamização económica do Barroso é, de igual

1
MAUDET, 2010: 75.

88
AS CHEGAS DE BOIS NO BARROSO (NORTE DE PORTUGAL): SABER FAZER UM TOURO DE COMBATE

forma, ­inegável a importância da aposta no turismo, boa parte das vezes associado ao
patri­mónio cultural e natural da região; também as remessas de emigrantes gozam de
importância quando se fala da economia deste território.
No passado, «imposto pelas condições naturais do meio montanhês, mas ­agravado
pelo esquecimento a que as populações foram condenadas pelos centros de poder»2,
para as populações de Barroso, bem como para outras populações serranas do Norte
de P­ ortugal, o comunitarismo agro-pastoril (também referido como comunalismo ou
coletivismo) «constituiu fatalmente a única saída»3.
Tude M. de Sousa, que se dedicou ao estudo do Gerês e das suas comunidades,
afirma que neste regime os

povoados se integravam para a prática de serviços, reciprocamente prestados


de interesse individual e colectivo, e em que reciprocamente obedeciam a regras e
­preceitos de longe estabelecidos, para uma vida jurídica especial criada por eles, a que
todos religiosamente obedeciam4.

Polanah5 faz referência ao comunitarismo como sendo o conjunto de trabalhos


­coletivos que o povo camponês executa na gestão da sua aldeia e dos bens que lhe estão
adstritos, sendo que os trabalhos comunitários não se destinam a ninguém em parti­
cular; revertem para o património do grupo total, existindo, também, direitos indivi­
duais e familiares sobre objetos e recursos produtivos comuns que se acham regulados,
por forma a garantir o acesso de todos eles, a cada qual em seu momento próprio: o ­forno
do povo; a água da rega; o uso das eiras; o boi do povo. Já o Padre António L ­ ourenço
­Fontes6 indica que a par do forno do povo, o boi do povo era o símbolo do comunita­
rismo em Montalegre. Em grande parte das aldeias da região Barrosã era comum os
habitantes associarem-se para a compra e sustento de pelo menos um touro, que tinha
como funções a reprodução e, por vezes, a participação em chegas de bois.
Assim, é possível observar que uma das práticas constituintes e emblemáticas do
­comunitarismo no Barroso se relaciona de forma direta com o gado bovino — não se
devendo aqui ignorar os rebanhos coletivos e pastados «à vez», designados por v­ ezeira.
De facto, é inegável a importância social e económica que o gado bovino assumiu, e
­assume, no Barroso, onde estes animais eram «objeto de mil cuidados» por serem a
­«fortuna, a força que puxa o carro e o arado, que dá o leite, o dinheiro e até convívio
­familiar», e onde, segundo o protesto de um pároco local, «o Deus era a vaca, era a

2
POLANAH, 1992: 63.
3
Ibidem.
4
SOUSA, 1927: 3.
5
POLANAH, 1989: 41-43.
6
FONTES, 1982: 8.

89
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

ela que se p ­ restava culto»7. Por exemplo, e também sobre a importância do gado de
raça ­Barrosã, uma ­memória de 1813 permite-nos saber que, já nesse período, os «gados
­fazem o ramo mais importante do comércio d’exportação de Barroso: toda a Província
do ­Minho p ­ refere os novilhos de Barroso aos criados em outro qualquer terreno»8.
Quanto ao boi do povo, Fontes9 indica que as localidades de Barroso, segundo
as suas posses, caprichos e número de vacas, podiam ter um, dois, três ou quatro bois
­comuns. Estes animais eram comprados pela população de determinada aldeia ou ­pelos
seus representantes com o dinheiro de todos, e era habitual vender-se o touro mais v­ elho
para a aquisição de um mais novo; caso sobrasse dinheiro, este era posteriormente utili­
zado para comprar alimentos para o novo touro ou para despesas comuns. Também
o esterco deste animal era vendido, e o ganho revertia para o seu sustento. Este autor
­menciona, ainda, os cuidados e formas de sustento a que o boi do povo tinha direito,
comparando este animal a um «grande senhor feudal, mais rico que muitos dos habi‑
tantes das aldeias»10. Assim, ao boi do povo pertenciam boas cortes, bons palheiros e
­celeiros, pastos, lameiros de feno, lamas, terras de centeio, milho, poulas e ao seu ­cuidado
dedicava-se o pastor do boi. Se até às últimas décadas do século XX o boi do povo tinha
direito a várias regalias, tinha também «alguns deveres imprescindíveis: por um lado, a
cobrição; por outro o espetáculo das chegas»11.

BREVE HISTÓRIA DAS CHEGAS DE BOIS: DO BOI DO POVO


ATÉ AOS CAMPEONATOS12
As chegas de bois, por oposição às touradas (marcadas pela existência de códigos
precisos e padrões mais ou menos rígidos), e a par, por exemplo, da vaca das cordas, da
capeia arraiana, da vaca de fogo, podem ser incluídas na tauromaquia popular, que diz
respeito a costumes locais, onde as regras são determinadas pelos participantes13.
Por outro lado, as chegas podem ser incluídas nos combates de animais, sendo
que os combates com touros estão presentes em diversas regiões do mundo e em ­várias
­épocas, especialmente em comunidades rurais onde os bovídeos são animais de ­trabalho
por excelência14.
Segundo Ernesto Veiga de Oliveira, as chegas de bois eram o «espetáculo favorito
de barrosão» e «um acto pleno de significação»15. Apesar de estas serem lutas de dois

7
GUERREIRO, 1981: 87.
8
ALVES, 1985: 22.
9
FONTES, 1992: 81.
10
Ibidem.
11
MORAIS, 2007: 97.
12
Estes dados podem ser consultados com maior profundidade na seguinte dissertação de mestrado: PEREIRA,
2016: 103-139 e 167-174.
13
CAPUCHA, 2013: 168.
14
BISHOP, 1926: 447.
15
OLIVEIRA, 1995: 254.

90
AS CHEGAS DE BOIS NO BARROSO (NORTE DE PORTUGAL): SABER FAZER UM TOURO DE COMBATE

t­ouros entre si, à marrada, extremamente violentas, a luta só se verificava verdadeira­


mente e tinha um sentido empolgante pelo facto de cada touro ser de uma aldeia dife­
rente. Assim, as vitórias e as derrotas eram vividas como atos em que todos os habitantes
de uma aldeia estavam comprometidos. Sintetizando, na opinião deste autor, o boi do
povo era o próprio povo e a chega era a luta de duas aldeias, que aí podiam conhecer a
honra ou a vergonha.
No entanto, a partir da década de 1970, mas sobretudo nos anos 1990, e devido
à capacidade que as populações passaram a ter para adquirir de forma individuali­zada
­determinados bens, o comunitarismo, forma de organização social que Montalegre e
­outras comunidades serranas conheceram durante séculos, entrou em decadência.
Por esta razão e também por culpa da emigração, que levou à diminuição da popu‑
lação do concelho de Montalegre, em particular da população jovem, também o boi
do povo foi, de forma progressiva, desaparecendo; ou melhor, sendo substituído por
touros de ­proprietários privados, e assim, utilizados por estes em tarefas reprodutivas,
mas ­também em chegas de bois. Esta alteração trouxe muitas outras transformações nas
chegas de bois, por exemplo: se antigamente o boi do povo era levado a pé por g­ rande
parte da população da sua aldeia até ao local onde decorria o combate, atual­mente
este trans­porte é feito com recurso a uma carrinha; no passado a vitória de um touro
era celebrada e­ fusivamente por toda uma aldeia, atualmente esses festejos são raros e
­apenas feitos pelo proprietário e alguns familiares e amigos seus; assim, se antigamente
uma vitória numa chega de bois garantia a honra da aldeia, atualmente esta conquista
possui apenas r­ elevância para o prestígio social destes proprietários; antes, as chegas de
bois decorriam em terrenos a igual distância das duas aldeias rivais, mas recentemente
­foram ­construídos propositadamente espaços para a realização de chegas de bois; os
touros derrotados, ao contrário do que acontecia outrora, podem hoje em dia continuar
a ­realizar combates.
Com a passagem do boi do povo para os touros de proprietários privados, importa
ainda salientar que: estes animais começaram a realizar um maior número de chegas de
bois, havendo, em determinados fins-de-semana, chegas de bois em dois ou mais locais
diferentes; foi introduzida a cobrança de bilhetes para se assistir a estas lutas; os proprie‑
tários passaram a ser contratados por organizadores de chegas de bois e a receber, por
vezes, avultadas quantias monetárias por cada chega em que os seus touros participem.
Atualmente, são organizados tanto em Boticas como em Montalegre (aqui pelo
­menos desde 199216), tal como noutros concelhos como Vinhais e Bragança, campeo‑
natos de chegas de bois. A estes estão associados prémios monetários e surgiram com o
intuito de revitalizar as chegas de bois e de apoiar a criação de raças autóctones, como a
raça Barrosã ou a raça Mirandesa.

16
MOURA, 1995: 159.

91
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

AS RAÇAS, SELEÇÃO E PREPARAÇÃO DOS TOUROS DE


CHEGAS DE BOIS17
Relativamente à seleção dos animais com que estes proprietários privados parti­
cipam em chegas, J. C.18 (trinta e quatro anos, trabalhador por conta de outrem e
proprie­tário de gado) começa por dizer que tal não é um processo fácil de explicar: este
­acredita que «só de olhar» para um touro consegue perceber quais as suas capaci­dades,
­enganando-se muito raramente, «já quem não conhece estes animais não o percebe
logo». Segundo este, as características que se devem procurar e valorizar nestes animais
prendem-se com a «forma como estes olham para nós, se fazem caretas ou até se marram
quando nos aproximamos deles», bem como a presença de determinadas características
físicas, por exemplo, principalmente no gado de raça Barrosã, «a presença de uma galha
bem comprida, para poder ficar bem afiada e, assim, picar os outros». J. B. (setenta e
cinco anos, antigo proprietário de gado) salienta que se devem utilizar nas chegas de bois
touros de «boa casta», que durante a luta demonstrem ser «poderosos e aguerridos» e,
ainda mais importante, que sejam de «bom trato» e «mansos» com os proprietários ou
tratadores. N. D. (trinta e nove anos, trabalhador por conta de outrem e proprietário de
gado) comenta que «até à realização da primeira luta é uma incógnita saber se um touro
é, ou não, um bom lutador», pois são vários os fatores que influenciam a prestação de
um animal. Por exemplo, este pode «ter boas características, ou demonstrado antes que
combatia bem, mas se não gostar do transporte pode até nem pegar no dia da chega».
N. D. refere que, de forma a garantir bons touros de combate, vários criadores ­fazem
«cruzamentos de animais ou de raças mais corpulentas com os animais das n ­ ossas raças
autóctones», como de raça Barrosã, Mirandesa ou Arouquesa, procu­rando ­associar, ­assim,
a robustez física à «boa galha», ou outras características idealizadas pelos ­proprietários.
Para N. D. deve-se procurar garantir «animais de boa raça, com ascendentes que tenham
dado provas de serem bons lutadores», e que sejam «cabeçudos, com nasce­douros g­ rossos
e boa galha, que não seja demasiado gancha», bem como «ser mais forte na frente do que
na parte traseira, como um leão ou um javali» e «que seja corpulento».
Quanto à alimentação, N. D. indica que, no seu caso, os touros com que parti‑
cipa em combates comem sobretudo «produtos naturais e da região», alimentos que
­compensa «com ração rica em fibras», e, assim, menos propícia à engorda dos animais.
Porém, como este informa, existem proprietários de touros que apenas alimentam os
seus ­«animais com rações e cereais comprados», e ainda há quem recorra a «suple­
mentos vitamínicos» quando se aproxima uma chega de bois. N. D. considera ainda que
a composição da alimentação destes animais não deve ser alterada nos dias anteriores à

17
Estes dados podem ser consultados com maior profundidade na seguinte dissertação de mestrado: PEREIRA,
2016: 143-156.
18
Proprietário de gado bovino, com o qual participa em chegas de bois, entrevistado, tal como os restantes infor-
mantes, a seguir referidos, entre 2015 e 2016.

92
AS CHEGAS DE BOIS NO BARROSO (NORTE DE PORTUGAL): SABER FAZER UM TOURO DE COMBATE

realização de chegas de bois; no entanto, este confirma que no dia do combate reduz a
quantidade de alimento ou apenas dá aos touros feno, para que estes «não fiquem muito
fartos, ou com os estômagos cheios, o que pode fazer com que se sintam mal quando
se esforçam». Por sua vez, A. T. refere que a alimentação dos touros com os quais parti­
cipa nestes combates é idêntica à do restante gado, ao qual procura «dar de tudo, mas
poucas farinhas, porque engorda mais os animais». Assim, este alimenta os seus animais
­sobretudo com «coisas naturais, como centeio ou feno».
N. D. afirma que, na preparação dos touros para os combates, são de grande
­importância as chegas de treino, isto é, chegas realizadas, regra geral, entre dois ­touros
do mesmo proprietário, que devem ter aproximadamente a mesma idade ou então um
deles ser um animal mais jovem ou com poucas capacidades para combater, ou estar
pouco habituado a fazê-lo, por vezes «adquirido por um preço próximo ao que estes
­animais valem quando vão para abate». Todavia, estas chegas de bois devem ter ­poucos
espectadores e que sejam da confiança do proprietário, pois, caso o touro que se ­pretende
treinar através deste método perca e isso seja do conhecimento geral, este nunca poderá
ser considerado campeão. Da mesma forma, A. T. afirma que quando os seus animais
são ainda jovens, regra geral, a partir dos dois anos ou dois anos e meio, os coloca frente
a frente com touros da mesma idade e, assim, vão treinando e apurando a sua técnica
de combate.
Segundo N. D. é importante a colocação de proteções nos chifres dos animais.
­Estas servem para evitar que os touros, sobretudo quando se encontram estabulados e
caso batam com os chifres em pedras, nas manjedouras, ou outras superfícies, os danifi‑
quem, e, assim, corram o risco de ficarem incapacitados de lutar ou participem de forma
diminuída nos combates. N. D. informa também que os chifres destes animais, quando
permitido, são afiados, normalmente antes do combate, com grosas para madeira ou
para ferro, com lixa e também com vidro. A. T. acrescenta ainda ser importante habituar
os touros a serem transportados na carrinha de transporte de animais, para que no dia
do combate não tenham medo ou se encontrem nervosos; sobre isto, N. D. refere que
esse transporte deve ser feito «de forma suave e o mais lentamente possível, para que o
animal se sinta bem».
J. B. salienta que outro passo fundamental na preparação para a luta de um touro
é «andar fora, ao sol, em terreno duro, para gastar as patas»; H. S. (aproximadamente
trinta e cinco anos, proprietário de gado) confirma que os seus touros de combate «vão
dia sim, dia não com as vacas para o monte, para ganharem preparação». Contudo, este
procedimento não é realizado nos dias antes da chega, para os animais «não lidarem
com as patas pisadas».
J. C. reconhece que é importante preparar estes animais desde tenra idade. Este
afirma que quando um «animal é criado desde pequenino está à vontade, é fácil fazê-lo
subir para cima da carrinha, e deixa afiar os cornos». No entanto, se este for um touro

93
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

comprado em adulto e que nunca tenha combatido, ou não o fizesse de forma regular,
«é mais difícil, tem que ser trabalhado, tem que se passear, tem que se prender, tem que
se amansar». A. T. indica que com um touro que participa em chegas de bois deve ser
apenas o proprietário a lidar, pois «conhecer bem o dono é importante para o animal,
isso ajuda-o muito». Sendo, ainda, opinião deste que «um boi de luta tem que ser quase
tratado como um animal de estimação». Assim, «quando se tem gosto num animal tem
que se perder algum tempo com ele, se não, não vale a pena». J. B. acrescenta que desde
cedo o tratador deve falar com o touro, tendo sempre a preocupação de chamá-lo pelo
seu nome, e também de «meu grande» e «meu valente», e habituá-lo a outras palavras
de incentivo, sempre presentes nas chegas de bois, como: «aguenta aí boi, é boi, vai,
­dá-lhe, não larga, força, agora, bota fora». É ainda importante, particularmente, imedia‑
tamente antes e depois do combate, «fazer festas ao animal, coçá-lo, principalmente nas
partes onde eles não chegam, como a região lombar, a cernelha e na cabeça, atrás dos
­cornos». No entanto H. S., e apesar de considerar estes cuidados importantes, acredita
que o ­«saber lutar é algo que nasce com os animais»; respondendo, quando lhe é pedido
para explicar como prepara os seus touros e o porquê de estes se apresentarem tantas
vezes vencedores, que «isso é só do animal».
Os cuidados com os touros prolongam-se para lá do fim dos combates, J.B. ­refere
que quando os animais saem feridos das chegas de bois devem ser curados com «umas
fricções de vinho tinto aquecido e banha de porco derretida», ou, quando os ferimen‑
tos são mais graves e os cortes mais profundos deve-se recorrer a injeções, e desta
­forma juntamente com «um certo tempo de intervalo e descanso tudo se cura antes da
próxima chega».
A estes cuidados junta-se a atribuição de nomes aos animais de combate. J. C.
­atribuiu ao touro que atualmente usa em chegas de bois o nome Bonito, e a um o ­ utro
touro, que pretende usar futuramente nestes combates, o nome de Cabano — dois ­nomes
não raras vezes ouvidos nos espaços onde decorrem chegas de bois, tendo sido comen‑
tado, durante um combate, que «hoje em dia todos os bois são Cabanos». J. C. justifica
estes nomes com as características físicas e estéticas dos seus animais, que podem ou
não ter influência na forma destes combaterem: o Bonito deve o seu nome à sua beleza,
ou seja, por ser, como fica claro, um animal bonito, pelo menos aquando do seu nasci­
mento, pois, nas palavras de J. C. «hoje até já nem o é»; e o Cabano tem o seu nome expli‑
cado pela forma dos seus chifres, que «tem os nascedouros direitos e depois só na frente
é que se levantam um pouco» — nome atribuído, segundo J. C., «a muitos bois que nesta
região têm os cornos assim». Também os dois bois utilizados por H. S. em chegas de
bois têm estes nomes. P. (trinta e cinco anos, imigrante) afirma que o seu touro, o Rato,
deve esse nome, dado pelo seu primeiro dono, ao seu tamanho, pois «quando era novo
era um animal pequeno». Por sua vez, os touros de A. T. têm, entre outros, os seguintes
nomes: Xerife, Pernas Atadas e Amarelo. Apesar de nomes como Pernas Atadas (nome

94
AS CHEGAS DE BOIS NO BARROSO (NORTE DE PORTUGAL): SABER FAZER UM TOURO DE COMBATE

com o qual J. B., conhecedor das capacidades deste touro, discorda, pois se «há coisa que
ele não tem são as patas atadas») e Amarelo parecerem também eles estarem associados
às características dos animais, A. T. refere que estes são «apenas nomes que uma pessoa
lhes dá, não têm grande significado». Neste sentido, existem vários nomes atribuídos a
touros, como por exemplo, Xau, Zico, Canário, Pinheiro, Burguês, ou Pardal, cujo signi‑
ficado não foi possível decifrar, e, assim sendo, podem ser nomes criados apenas com a
função de individualizar e permitir identificar estes animais.
Existem outros nomes, mais ou menos comuns, associados às características ­físicas
e estéticas dos animais, que são: Negro, Vermelho, Preto, Branco, Gancho ou Côto. ­Outro
proprietário optou, possivelmente, por evidenciar através do nome a inteligência, ou
­provavelmente a astúcia em combate do seu animal, chamando-lhe Esperto. Da ­mesma
forma, recorde-se o Navalhadas, cujo nome evidenciava as suas características de
­combate, pois este «fazia riscos que pareciam navalhadas nos outros bois», como conta
M.A.B. Há ainda quem procure homenagear figuras e personagens conhecidas, geral‑
mente do desporto, chamando Ronaldo ou Mantorras aos seus touros; da política, como
no caso do touro Guterres, ou ainda Zorro. Existem também nomes que nos remetem
para a raça do animal, como o nome, bastante comum, Penato, alusivo aos animais de
raça Penata, outra designação para a raça Maronesa.
Todos estes cuidados demonstram a existência de uma relação de proximidade
entre proprietário, ou tratador, e touros de combate. J. C. afirma inclusivamente que
animal e dono «têm que se conhecer», acrescentando que quando os seus animais vão
para a chega de bois, no «momento de carregá-los no carro percebe-se logo se estes
vão à vontade para turrar ou não, se estão bem ou não». Da mesma forma, «se o dono
­sente o animal, o touro, que é muito inteligente, sente o dono» e, assim, «se estamos com
­vontade de vencer, os animais vão também, à partida, com a mesma vontade». N. D., por
sua vez, fala numa «grande ligação entre o proprietário e o animal», que desde sempre
foram «criados juntos» e, por isso, «mais ninguém do que estes proprietários sabem
como lidar com estes bois».
No entanto, apesar deste tipo de relação, A. T. não esconde que quando «um animal
nunca demonstra prestar nas chegas» lhe ganha «raiva» e «vai para abate» ou é vendido a
criadores de gado que pretendam estes animais para outras funções como, por exemplo,
a procriação. Também J. C. diz que, e apesar de estes animais poderem lutar, regra geral,
até aos doze anos, quando «não são bons a gente tira-os mais cedo, e depois, à partida,
têm que ir para abate». Porém, como visto antes, a derrota, ou até mesmo a existência de
diversas derrotas, não leva sempre a este fim: A. T. salienta que «há animais que podem
perder, mas que fazem boas chegas e mantêm-se» e «eles continuam a lutar, não ficam
com medo, precisam é de repouso». J. C. relata que muitas vezes, antes de optar por
abater um touro derrotado, realiza com este «uma chega com um animal inferior a nível
de peso e capacidade de luta a ver se consegue reagir, ter uma vitória e depois combater

95
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

bem outra vez». Já P., aquando da segunda derrota do seu touro Rato, afirmou que este
«pode ter perdido, mas continua a ser um bom boi», e por isso, sente-se orgu­lhoso do seu
animal, acrescentando que «quando ele morrer vou cortar-lhe a cabeça para m ­ eter na
minha sala, para todos verem», e que quer continuar a fazer combates com ele. ­Contudo,
esta não era a opinião de muitos daqueles que tinham assistido a esta chega de bois, que
o aconselhavam a «vender o boi para morrer, porque agora já não pega mais», opinião
partilhada pelo pai de P., tratador do animal, havendo ainda quem se oferecesse para o
comprar «para fazer umas chegazitas com uns boizitos mais fraquitos».
Quando um animal vence, conquista o Campeonato, ou é referido como c­ ampeão,
torna-se o orgulho dos seus proprietários. H. S. afirma que, para ele, vencer uma chega
de bois «é uma alegria» e ganhar o Campeonato «um orgulho enorme». A. T. r­ econhece
que a conquista do Campeonato ou ter um campeão «que fez dezassete ­chegas sem
­perder é sempre motivo de orgulho», sobretudo porque «assim, o animal ganha nome,
fica ­famoso, conhecido», o que «também chama pessoas para as chegas» — e que ­garante
convites para participar em chegas de bois, quer no concelho, quer fora deste. Para
N. D. «não se consegue exprimir a alegria, o brio, a vaidade, a satisfação de se ter o boi
­campeão, seja de raça Barrosã, cruzado ou de outra raça».
No entanto, também os touros que sempre mostraram boas prestações e se
­sagraram várias vezes vencedores, mas que por culpa da idade, de um chifre partido
durante uma luta, mesmo que nesta tenham obtido uma vitória, ou de outras razões
que os tenham levado a ficar incapacitados de lutar ou a apresentar um decréscimo na
­qualidade das suas prestações e uma redução das vitórias obtidas, são abatidos. A. T.
­refere que esta é uma decisão difícil de tomar; com este concorda J. C., que diz que
­quando isso acontece: «nunca quero ver. Vendo sempre para longe da minha porta,
que é para eu não o ver a ser abatido».

CONCLUSÃO
No caso do Barroso, é impossível dissociar os combates de touros, ou seja, as chegas
de bois, daquela que é, quer atualmente quer antigamente, uma das principais atividades
económicas desta região: a pecuária, sobretudo, a criação de gado bovino. Esta prática,
associada ao comunitarismo e ao boi do povo, permitiu que as comunidades do B ­ arroso
atribuíssem, também, uma forte carga social e simbólica ao seu gado. Sendo prova ­disso
a preocupação em manter a continuidade das chegas de bois, bem como memórias
e ­espaços a si associados, e a realização de diversas medidas de conservação de gado
­bovino de raça Barrosã, como os concursos pecuários. Desta forma, torna-se, ­também,
importante preservar e estudar o saber fazer associado a este tipo de manifestações.
­Aspeto que permite, ainda, compreender quais os atuais traços da relação entre proprie‑
tários e os seus animais de combate, e como evolui esta relação com todas as alterações
que as chegas e o mundo rural conheceram nas últimas décadas, ou para compreender,

96
AS CHEGAS DE BOIS NO BARROSO (NORTE DE PORTUGAL): SABER FAZER UM TOURO DE COMBATE

com uma futura investigação mais aprofundada, como as chegas de bois contribuem
para a salvaguarda, seleção e melhoria de determinadas raças de gado bovino.

BIBLIOGRAFIA
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BAPTISTA, José Dias (2006) — Montalegre. Montalegre: Município de Montalegre.
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FONTES, António Lourenço (1982) — Cultura popular da zona do barroso. «Brigantia: Revista de Cultura»,
n.º 4, vol. II, separata.
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Nacional de Parques, Reservas e Património Paisagístico.
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MOURA, Fernando (1995) — Barroso e as Chegas de Bois. Braga: Editora Correio do Minho.
OLIVEIRA, Ernesto Veiga de (1995) — Festividades Cíclicas em Portugal. Lisboa: Publicações Dom
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PEREIRA, Cristiano (2016) — As Chegas de Bois em Montalegre: Etnografia, Memória e Intervenção Museo-
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POLANAH, Luís (1989) — Função da vizinhança entre os camponeses de Tourém. «Antropologia Portu­
guesa», vol. 7, separata.
(1990) — Espírito do comunitarismo. «Trabalhos de Antropologia e Etnologia», vol. 30, separata.
(1992) — A Propósito do Comunitarismo na Serra do Gerês. Terras de Bouro: Câmara Municipal de
Terras de Bouro.
SOUSA, Tude M. de (1927) — O Gerez: Notas Etnográficas, Arqueológicas e Históricas. Coimbra: Imprensa
da Universidade.

97
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

98
PRECARIZAÇÃO E TRABALHO NO CORTE
DE CANA NO PONTAL DO TRIÂNGULO
MINEIRO
DANIEL FÉO CASTRO DE ARAÚJO*

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar a precarização dos trabalhadores sazonais, contratados
temporariamente pela usina Trialcool, para o corte de cana manual na microrregião de Ituiutaba, MG.
A metodologia utilizada para desenvolver este trabalho se inicia com uma revisão bibliográfica para o
enten­dimento da dinâmica do fenômeno a ser estudado, e, também para construir um referencial teórico.
­Outra etapa da metodologia refere-se ao levantamento de dados de fonte primária, através da realização de
­trabalho de campo cujo objetivo é identificar os sujeitos sociais que por ora figuram esse relatório. Nesse
momento, nos pautamos em entrevistas junto aos trabalhadores migrantes, principalmente, nos finais de
semanas e feriados.
Palavras-chave: migração sazonal; precarização do trabalho; justiça social.

Abstract: This article aims to analyze the precariousness of the seasonal workers, hired by the Trialcool
plant, for manual cane harvesting in the micro region of Ituiutaba, MG. The methodology used to develop
this work begins with a bibliographical review to understand the dynamics of the phenomenon to be studied,
and also to build a theoretical framework. Another step in the methodology refers to the collection of data
from primary source, through field work whose objective is to identify the social subjects that are ­currently
included in this report. At that time, we have the interviews with migrant workers, mainly, weekends
and holidays.
Keywords: seasonal migration; precariousness of work; social justice.

* Doutorando em Geografia pela Universidade de Brasília. Email: daniel.feo@gmail.com.

99
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

INTRODUÇÃO
Para demonstrar as circunstâncias ocorridas, a atual expansão do setor sucro­
energético na microrregião de Ituiutaba, é imprescindível analisar a situação dos traba‑
lhadores. Nesse sentido, faz-se necessário observar as condições dos alojamentos, e de
trabalho aos quais eles são expostos.
Na perspectiva de adensar as reflexões aqui produzidas, faço uso de algumas
­observações de campo realizadas em 2012, quando acompanhei um grupo de trabalha‑
dores sazonais contratados temporariamente pela usina Triálcool.
Desde a contratação dos trabalhadores migrantes, as duas Usinas — a Triálcool e
a Vale do Paranaíba — pertencentes ao grupo João Lyra disponibilizaram aos trabalha‑
dores moradias em alojamentos1. Em 2009 e 2013, havia quatro alojamentos e três se
localizavam nas proximidades do centro da cidade e um no setor sul da cidade. A nossa
inserção de campo aconteceu no «Alojamento Horizonte», antigo prédio da polícia civil
de Ituiutaba, MG. Ali residiam 50 trabalhadores, organizados numa turma2 denominada
de «Turma Alagoas». Na Usina Triálcool, as turmas são denominadas de acordo com o
estado de origem dos trabalhadores migrantes.
De maneira geral, as usinas não aceitam a entrada de estranhos nos alojamentos,
são espaços vigiados, com normas próprias e com um rigoroso controle para entrada
e saída de pessoas estranhas. Em razão das fiscalizações dos órgãos públicos (MPF –
­Ministério Público Federal, MTE – Ministério do Trabalho e Emprego, MPT – Minis‑
tério Público do Trabalho) para combater as práticas ilícitas de condições degradantes
do trabalho nos canaviais, a presença de estranhos não é bem-vinda, por parte da usina.
Compartilhar as condições de vida existentes nos alojamentos pode custar caro, caso seja
detectado condições degradantes, a usina ou o fornecedor podem ser autuados como
infratores por condições de trabalho análogas à escravidão. Isso implica, para a usina,
o pagamento de onerosas multas, e ter o nome da empresa divulgado na temida «Lista
Suja do Trabalho Escravo». Entre as implicações negativas de uma empresa ter o nome
incluído nesta lista é a de não ficar apta a receber financiamentos público-estatais, e
­ainda ter a imagem prejudicada pelo estigma de «empresa escravagista», impedi­mentos
às exportações de açúcar e álcool para os países da Europa e da América do Norte.
Os quatros alojamentos mantidos pelo grupo João Lyra em Ituiutaba são fecha‑
dos para visitas, sendo comum ter uma placa com letras grandes emitindo a mensa‑
gem: «Proibida entrada de estranhos». A justificativa de proteger os trabalhadores dos
«estra­nhos» pode ser lida ainda como uma iniciativa de isolá-los do contato com algo ou
­alguém que venha comunicar e dar visibilidade as suas condições de vida.

1
Alojamento é o local destinado ao repouso dos trabalhadores.
2
Grupo de trabalhadores que operam juntos sob a direção de um chefe.

100
PRECARIZAÇÃO E TRABALHO NO CORTE DE CANA NO PONTAL DO TRIÂNGULO MINEIRO

O nosso primeiro contato com os alojamentos, partiu de um projeto em conjunto


com a Pastoral do migrante3, eu como aluno do curso de Geografia — Daniel Féo Castro
de Araújo; e o professor do curso de história — José Josberto Montenegro. O Projeto
teve como objetivo realizar rodas de conversa para sensibilizar sobre os riscos, conse‑
quências e os impactos na saúde decorrente do trabalho no canavial.
A interação com os trabalhadores foi construída aos poucos, as visitas aos aloja­
mentos aconteciam nos finais de semana. O fato de ter chegado ao alojamento com
um agente da pastoral gerou maior confiança nos trabalhadores. A acolhida gradual
constituída através de apresentação de documentários e filmes, retratavam suas histórias
de vida. Após assistirmos aos documentários ou filmes abríamos uma roda de conversa
para dialogar sobre o assunto. Ao passar dos dias, diminuíam as desconfianças e aumen‑
tavam as possibilidades de diálogos.
Assim, nos organizamos a partir das rodas de conversa e propusemos aos traba­
lhadores maior participação e acompanhamento nas suas rotinas. A maioria dos
trabalhadores não se recusou a participar da pesquisa.
Durante a realização da pesquisa, utilizamos um roteiro de entrevista semiestru‑
turada, o qual possuía perguntas abertas e fechadas, relacionadas com as características
do trabalhador e às peculiaridades do seu trabalho. Além disso, foram realizadas várias
conversas informais com os cortadores de cana, e utilizados instrumentos de registros
como, um diário de campo para anotações, uma filmadora e uma máquina fotográfica.

A PRECARIEDADE DAS CONDIÇÕES ATUAIS DE TRABALHO


NO EITO DA CANA
Fomos para o «Alojamento Horizonte», antigo prédio da polícia civil de Ituiutaba,
onde havia 50 trabalhadores, por volta das quatro e trinta da madrugada quando chega­
mos ao alojamento para acompanhá-los em seu dia de trabalho. O ô ­ nibus da emprei‑
teira é um antigo carro de linha da frota urbana de transporte da cidade e p ­ ossui cerca
de q­ uarenta e cinco lugares. Tem rádio toca fitas e as poltronas não são reves­tidas com
­espuma. O ônibus ainda não havia estacionado, mas alguns trabalhadores já se encon­
travam em frente ao alojamento, ponto de referência para o embarque da turma.
Assim que chegou o ônibus, esperamos todos os trabalhadores adentrarem no
transporte para logo em seguida entrarmos. Verificamos se o ônibus estava completo.
Os primeiros trabalhadores ao embarcarem não se sentiram incomodados, ou ­curiosos

3
Pastoral do Migrante é uma entidade de católicos brasileiros. De acordo com seu site oficial: «A Pastoral do
Migrante é um serviço eclesial voltado para a acolhida, orientação e inserção socio-religiosa dos migrantes sob
a anima­ção das Congregações dos Missionários e Missionárias Escalabrinianos, que atuam no Brasil em estreito
­vínculo com o Setor de Mobilidade Humana da Comissão Episcopal para o Serviço da Caridade, da Justiça e da
Paz, da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e com o Serviço Pastoral dos Migrantes». Disponível na
internet em <http://www.mscs.org.br/Noticias.aspx?id=63>. [Acesso em 17/05/2018].

101
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

com a nossa presença, pois muitos destes sabiam há uma semana que estaríamos
­viajando com os trabalhadores para acompanhá-los em um dia de trabalho.
Em nosso percurso rumo ao talhão4, previa-se a fim de completar o grupo de
­trabalhadores, antes de chegarmos à usina, a passagem por algumas ruas da vila e t­ ambém
pelos bairros Bela Vista e Ipiranga, localizados na área leste do município, ­caminho de
acesso à usina na Br 3655. Bem próximo dali estava a Paróquia São F ­ rancisco de Assis,
pertence à Diocese de Ituiutaba/MG. Ao passarmos em frente a sua ­fachada, podemos
observar o ato de se retirar bonés e chapéus, e de se fazer o sinal da cruz em r­ everência
à Igreja antes da chegada ao talhão. Esta cena nos pareceu ser um ritual de identificação
religiosa e de pedidos, quem sabe, de proteção entre os passageiros. Tão logo isto foi
realizado, os olhares curiosos dos trabalhadores voltavam para nós, ­querendo saber se
compartilhávamos da mesma representação. Em seu percurso, ao tomar a direção da
­rodovia, em uma das avenidas, o ônibus fez uma pequena parada na mercearia para
tomar café, onde todos do ônibus costumam se encontrar. Novo ­grupo de trabalhadores
desceu, e após o café, novamente embarcaram. O volume das falas no coletivo era alto
e o rádio contribuía para esta situação, encontrando-se sintonizado em uma ­frequência
que execu­tava composições sertanejas, sambas e outras variedades ­musicais. Alguns
­vidros do ônibus estavam fechados, mas alguns trabalhadores fumavam despreocupada­
mente. ­Muitos deles faziam as primeiras refeições de modo comunitário dentro do
­ônibus: t­ omava-se café, comiam-se pães e bolachas recém-adquiridas na mercearia l­ ocal
­momento antes.
Após trinta a quarenta minutos, chegamos à usina, mas ninguém desceu do cole­
tivo. Nesta última parada, embarcaram quatro fiscais de campo6 e um fiscal geral7. Antes
de entrarmos propriamente na discussão sobre as representações do risco do corte de

4
Um canavial é dividido em talhões e cada talhão é composto por várias linhas de canas plantadas paralelas. Talhão
é, portanto, a designação dada a uma área cultivada; não tem uma medida específica, tanto pode medir 2 como 20
hectares. O espaçamento entre as linhas, formando as ruas, varia conforme a topografia, a área, o tipo de solo, a
variedade de cana etc., mas em geral, se mantém uniforme em cada talhão. Estas linhas são agrupadas formando os
eitos. Em geral os eitos são compostos por 5 linhas de cana, mas podem existir eitos de 6, 7 ou 8 ruas. A extensão de
cada eito também varia.
5
A BR-365 é uma importante rodovia diagonal federal brasileira que liga as regiões Nordeste – Centro Oeste.
A ­BR-365 liga duas cidades importantes de Minas Gerais: Montes Claros – Uberlândia, além de ligar Uberlândia
a ­BR-364 (divisa de Minas Gerais e Goiás), rumo ao Mato Grosso. A rodovia também faz cruzamento com outras
rodovias importantes como a BR-040 e a BR-354.
6
São subordinados diretos dos encarregados. Tem a função de organizar a turma de cortadores para que o trabalho
seja executado de acordo com as normas técnicas da usina. Tem poder para punir os trabalhadores. Tem responsabi‑
lidade para manter a disciplina nos alojamentos.
7
São o elo entre os proprietários e os trabalhadores. Supervisionam todas as atividades relacionadas ao corte de cana.
Na usina triálcool são cinco funcionários que fazem esta função. São subordinados apenas aos proprietários.

102
PRECARIZAÇÃO E TRABALHO NO CORTE DE CANA NO PONTAL DO TRIÂNGULO MINEIRO

cana8, é necessário descrever o talhão e as condições de trabalho no eito9, ­lançando mão


da literatura acadêmica sobre o tema e de anotações do trabalho de campo.
A tarefa dos cortadores de cana é aparentemente simples: munidos de facões
devida­mente afiados, eles devem cortar a(s) cana(s) com um ou vários golpes dados
na sua base ou «pé», despontá-la, isto é, cortar a sua «ponta» superior e carregá-la com
os braços até um local preestabelecido, formando montes10 ou leiras11, para que, numa
­etapa posterior do processo produtivo, tratores carregadores, as «carregadeiras» ou
«guincheiras», a transportem para os caminhões que irão para as usinas.
A organização do trabalho no corte de cana é extremamente hierarquizada.
Os ­cortadores estão sempre na mira de um agente da usina, numa intrincada rede de
­controle. A tarefa dos ficais no processo de produção, como viemos a verificar depois no
talhão – era o de organizar e controlar, especificamente, o trabalho a ser realizado. Para
Maria Aparecida Moraes Silva no livro Errantes do Fim do Século, o talhão é o espaço que
opera o trabalho na usina.

O talhão representa o talho, a parte no conjunto do canavial, laranjal ou c­ afezal.


Fisicamente é a parte delimitada pelos carregadores em que circulam caminhões,
tratores etc. Além dessas constatações geográficas, o talhão constitui uma espécie de
«departamento de fábrica». O controle da produção, da produtividade da turma do
caminhão é feita em cada talhão, em cada departamento do conjunto da unidade
produtiva. A administração de tarefas, a divisão do trabalho, bem como divisão
­sexual do trabalho, a supervisão, enfim, a organização do trabalho, são planejados e
controlados em cada talhão12.

8
O corte manual da cana-de-açúcar é um processo composto por diversas situações de risco à saúde dos trabalha‑
dores, como altas temperaturas, chuvas, presença de poeiras provenientes da terra, da fuligem da cana e de animais
peçonhentos e há um risco acentuado de ocorrência de acidentes de trabalho em decorrência do manuseio do facão,
instrumento utilizado para o corte da planta, e do uso inadequado de equipamentos de proteção individuais; além
disso, o cortador realiza um conjunto de movimentos corporais que favorecem a adoção de posturas inadequadas e
exigem extremo esforço físico. A realização deste conjunto de movimentos bruscos e repetitivos durante a jornada de
trabalho e o intenso ritmo de trabalho imposto pelos cortadores, gradativamente, pode determinar o desgaste físico
destes indivíduos e o aparecimento de doenças osteomusculares como bursites, tendinites, perda de movimentos em
articulações e membros, lesões e incapacidades, além de sintomas como dores musculares e articulares agudas ou
crônicas em membros, tórax e na coluna vertebral, cansaço, fadiga, cãibras, cefaléia, desidratação, diarreia, oscilações
da pressão arterial e dispneia.
9
O corte da cana se dá em um retângulo com 8,5 metros de largura, equivalente a 5 «ruas» (linhas em que é plantada
a cana) e um comprimento que varia conforme a produtividade do trabalhador. Este retângulo é chamado eito; a
distância medida ao final do dia indica o ganho diário do trabalhador. Os metros lineares de cana, multiplicados pelo
valor da cana pesada na usina, dão o valor da diária a receber.
10
No sistema de montes, os trabalhadores devem carregar a cana cortada até a terceira rua (ou rua do meio) e
depositá-la em montes que devem ficar a uma distância aproximada de 2 metros um do outro.
11
No sistema de leiras, a cana cortada vai sendo depositada também na terceira rua, mas de modo contínuo.
12
SILVA, 1999: 151.

103
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

O dispositivo de controle funciona por meio do par vigilância/punição presente


no trabalho da cana tem uma correspondência direta com os mecanismos disciplinares
de poder analisados pelo filósofo francês Michel Foucault, em sua obra Vigiar e Punir,
quando ele observou um novo modo de condução das condutas dos indivíduos que
­nascia no século XVII na Europa ocidental, de maneira insidiosa, em diversas insti‑
tuições sociais espraiadas numa rede capilar de poder, nas famílias, fábricas, hospitais,
hospícios, escolas, entre outras instituições13. O trabalhador da cana se sente o tempo
todo vigiado por fiscais, sentindo-se assim obrigado a trabalhar mais e melhor. Michel
Foucault14 se refere ao Panóptico de Bentham como um modelo arquitetônico moderno
de vigilância/punição. Idealizado para ser aplicado a várias instituições, trata-se de um
prédio, constituído de células justapostas umas às outras em formato circular, no centro
das quais se situa uma torre de vigilância, da qual apenas um vigilante pode controlar
todas as unidades de encarceramento. Na utopia disciplinar de Benthan, o processo de
disciplinarização dos comportamentos se tornaria tão eficaz e não seria nem mesmo
mais necessário à própria existência material do panóptico, pois já se encontraria intro‑
jetado em cada indivíduo que se autovigia.
Na medida em que entravamos no processo do eito15, foi possível compreender o
­espaço de dominação. A subordinação, ou seja, a supervisão realizada por meios dos
fiscais pode tornar o trabalhador temeroso. Saber se está sendo monitorado indiscutivel‑
mente é uma forma de poder advindo do controle do tempo. «Daí o efeito mais impor­
tante do Panóptico: induzir no detento [no trabalhador] um estado consciente e perma­
nente de visibilidade segurador do funcionamento automático do poder. Fazer a vigilância
ser permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação»16. P ­ ortanto, para
­Foucault, quanto mais separados estiverem os indivíduos maior será a visibilidade sobre
eles. Eliminam-se assim as distrações e as possibilidades de atraso do trabalho.
Nesse sentido Silva também escreve sobre o eito como espaço de dominação:

A Leitura do espaço do canavial fornece, numa primeira impressão, a imagem


de um mar de cana, um todo homogêneo no qual se distribuem os trabalhadores.
Essa visão aparente se desfaz quando se analisa o processo de trabalho como consumo
de força de trabalho. Na medida em que se penetra no interior do laboratório secreto
do eleito, das relações de produção, descortina-se um universo submerso, pilar básico
da estrutura de dominação17.
13
FOUCAULT, 2010: 190.
14
FOUCAULT, 2010: 190.
15
O corte da cana se dá em um retângulo, com 8,5 metros de largura, equivalente a 5 «ruas» (linhas em que é plantada
a cana) e um comprimento que varia conforme a produtividade do trabalhador. Este retângulo é chamado eito; a
distância medida ao final do dia indica o ganhodiário do trabalhador. Osmetros lineares de cana, multiplicados pelo
valor da cana pesada na usina, dão o valor da diária a receber.
16
FOUCAULT, 2010: 190.
17
SILVA, 1999: 151.

104
PRECARIZAÇÃO E TRABALHO NO CORTE DE CANA NO PONTAL DO TRIÂNGULO MINEIRO

Ao refletir sobre o assunto, ainda próximo do ônibus, observávamos os eitos


s­endo distribuídos, mas não ouvíamos nenhum tipo de manifestação contrária, tudo
era ­silêncio. Na foto 1, podemos observar os trabalhadores sentados entorno do ônibus
arrumando as ferramentas de trabalho para colheita do dia.

Foto 1. Trabalhador na Usina Laginha Agroindustrial S/A – Unidade Trialcool.


Autor: ARAÚJO, D. F. C. (2012).

Cada trabalhador vai então receber o seu eito para cortar.


A hora em que ele [o fiscal] está escalando o eito, a gente vai atrás: aqui Maria,
José, João… Ele vai deixando e você vai ficando ali (João).
O fiscal marca o número da pessoa e o número do eito designado. E este ­controle
servirá para saber o quanto cada trabalhador cortou por dia, e determinar o seu
pagamento.
O fiscal fica assim como […] um exemplo, um professor numa sala de aula.
Ele manda lá. Ele dá o eito. Terminou aquele eito, ele dá outro, ele olha pra ver se o
serviço está certo, se você não deixou toco, se você cortou bem as pontas […] (Paulo).
Eles põem muito fiscal na roça. Para cada pessoa, tem dez olhando. Se você
pegasse todo mundo, dava uma turma para cortar cana […] (Jair).
Além do fiscal tem o monitor, o medidor, o gerente.
Primeiro, tem o monitor… é só para ajudar quem não sabe cortar, explicar
como faz, como amola o facão… Ele corta um pouquinho no eito de um, no eito de
outro (Antônio).

105
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

O monitor em geral já foi cortador, um bom cortador. O próximo é o medidor:


O medidor tem que medir a cana que o pessoal corta e olhar os eitos também,
olhar o serviço, se o toco está baixo, se não tem gomo de cana nas pontas (Antônio).
O fiscal geral, o trabalho dele além de fiscalizar, é quem fala: «olha a turma de
fulano de tal vai pegar tal talhão». É ele quem solta o trabalho para as turmas, ele é
o encarregado por parte da usina em distribuir o serviço para as turmas Como diz o
ditado, é o manda-chuva (Jair).

Em uma de nossas observações no talhão, viemos a saber que os eitos eram irregu­
lares nas suas formações, apresentando maiores dificuldades para o corte nos locais
onde se encontram os declives com curvas de nível, quando a cana se encontra caída
ou ­então entrelaçada, mas a recusa ao trabalho era considerada como algo inadmissível.
Por esse motivo, para os eitos de maiores obstáculos, havia a necessidade de organizar o
­trabalho através de uma escala com nomes dos componentes da turma, um instrumento
de ­imposição e controle do trabalho, a fim de garantir a maximização da produção no
corte da cana. Para isso, os fiscais são pagos para exercerem o «olhar» constante sobre
os trabalhadores.

O talhão é o espaço da redução do trabalhador a tempo de trabalho, a ­trabalho


abstrato. Para isso, os mediadores da dominação, como se viu, exercem o «olhar»
constante sobre eles. Os próprios fiscais não possuem parentes na turma para
­poderem «olhá-la» melhor. Esse «olhar» não pode ser generalizado, a ponto de se
perder no hori­zonte do canavial ou se confundir no meio das ruas de cafeeiros e
­laranjeiras. É necessário um «olhar» minucioso, controlando cada gesto, cada ritmo,
cada conduta18.

Os estudos de Michel Foucault descrevem a sociedade disciplinar: «A disci­plina


procede em primeiro lugar à distribuição dos indivíduos no espaço»19. A ­organização
­espacial, horários, escala hierárquica, tudo leva essas instituições à prescrição de compor­
tamentos humanos estabelecidos e homogêneos, assim como descreve Foucault20:

A minúcia dos regulamentos, o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das


mínimas parcelas da vida e do corpo darão, em breve, no quadro da escola, do q­ uartel,
do hospital ou da oficina, um conteúdo laicizado, uma racionalidade econômica ou
técnica a esse cálculo místico do ínfimo e do infinito21.

18
SILVA, 1999: 151.
19
FOUCAULT, 2008: 121.
20
FOUCAULT, 2008: 122.
21
FOUCAULT, 2008: 121.

106
PRECARIZAÇÃO E TRABALHO NO CORTE DE CANA NO PONTAL DO TRIÂNGULO MINEIRO

É importante destacar para Foucault, que o efeito do poder disciplinar é a fabrica‑


ção de corpos dóceis, ou seja, corpos maleáveis e moldáveis conforme as exigências dos
­mecanismos disciplinares, isso significa que, por um lado, o corpo se submete a disci­
plina com o intuito de produzir um ganho de força pelo incremento de sua utilidade
e, por outro lado, perde força pela sua sujeição à obediência política. Como explicita o
autor «[…] se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos
a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada
e uma dominação acentuada»22.
Todo esse controle e poder são alimentados por uma série de punições aos traba‑
lhadores, desde reprimendas e ameaças verbais até a demissão. A carga laboral diante
do desgaste na realização das tarefas e a necessidade de maior dispêndio físico, ao se
manifestar enquanto recusa ao corte da cana, apresentar-se-ia — ao cortador indivi­
dualmente diferenciado no microcosmo do eito — como uma relação conflitiva com
o poder de mando e a insegurança de não poder ser contratado para a próxima ­safra.
Por isso, a necessidade de ser o «número um», não se abstendo do trabalho e não
criando confusão.
Na nossa investigação, um dos fiscais de área, contratado pela usina, ao observar
o corte da cana, contou-nos que a sua tarefa no talhão era medir a quantidade de cana a
ser ­cortada e garantir a execução do serviço. De acordo com Silva23, os fiscais são como
um instrumento de dominação no canavial: «Para isso os mediadores da domi­nação,
exercem o olhar constante sobre eles. É necessário um olhar minucioso contro­lador de
cada gesto, cada ritmo, cada conduta»24.

Eu acho mais cansativo é você estar cortando cana e o fiscal do seu lado […]
Não pode trabalhar direito […] Você não trabalha sossegado. Fica meio inibido. Os
fiscais, eles têm aquele poder de falar e tem horas que eles não tratam a gente nem
como gente: é como cachorro. É [dá um assobio]… assobiando! A maior humilhação
do mundo é o corte de cana (João).

Foi possível observar, o eito destinado a cada cortador era formado por cinco ruas
de cana, e estes trabalhadores chegavam a cortar em média de dois a três eitos em um
dia de trabalho. Na usina, os trabalhadores recebem por produção, isto é, depois da cana
ser medida em metro pelo fiscal de campo, é convertida em tonelada. Quer dizer, teori‑
camente, como admitiu o trabalhador Paulo, quanto mais peso tiver a produção, maior
seria o ganho dos cortadores de cana. Conforme se verifica em seu relato:

22
FOUCAULT, 2008: 119.
23
SILVA, 1999.
24
SILVA, 1999: 152.

107
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Eu acho melhor por produção. A produção torna mais fácil, melhor. Dá para
tirar mais. Depende também do cara, entendeu? […] Assim, quando o cara produz
bastante, quando o cara é bom de cana, o salário é justo para ele, mas quando cara
é ruim (Paulo).

O processo de informatização das planilhas de execução das tarefas e o controle


­sobre o volume da produção dos cortadores de cana a cada dia de trabalho e em cada
eito, bem como a probabilidade e a meta a ser alcançada no final de cada mês permi­
tiram ao usineiro um maior controle da produção em relação à quantidade e a qualidade
da cana, e, consequentemente, maior volume de produção. Foi relatada a necessidade
de subordinar aos «superiores» sob pena de ser demitido ou não mais ser contratado,
conforme se verifica no relato:

O medidor falou que quem não respeitasse ele, na hora que ele fosse medir a
cana, ele roubava de qualquer um e ninguém ficava sabendo […] (Everaldo).
Tinha um eito de 335 metros… o medidor mediu 258 metros, eu desconfiei…
Aí, eu falei para o fiscal. O fiscal falou: «se der menos, vou descontar de você e te dar
uma advertência; se der mais, é seu». Eu fui medir, deu 350 metros. Eu não levei
advertência, porque estava certo… se tivesse faltando eu ia levar advertência […]
(Adair).
Na terça-feira, os tocos ficaram altos… tinha muita pedra e fazia muito dente
no facão… O fiscal geral chegou e falou: «não vou medir cana de ninguém enquanto
não repassar os tocos». A turma até falou que concordava mas se ele medisse a cana
[…] João.
Porque se a gente quer passar fixo a gente não pode reclamar de nada. Porque se
reclamar ele [fiscais] ficam em cima da gente: «Não é desse jeito não. É desse. Se vocês
reclamarem alguma coisa de valentia vocês saem da usina sem direito, sem nada».
E a gente não diz nada (Igor).
Na usina, tem a média de cortar cana; se cortar menos de 8 toneladas, inclusive
no domingo, eles mandam embora (João).

Os trabalhadores parecem estar mais presos à mercê dos interesses dos donos dos
guinchos mecanizados da tecnologia de produção e, principalmente, dos maquinários
no corte de cana, nesta nova e última fase do seu processo de adaptação aos declives
dos talhões. Podemos observar na foto 2, a cana sendo levada pelo maquinário após ser
cortada e medida pelos fiscais.

108
PRECARIZAÇÃO E TRABALHO NO CORTE DE CANA NO PONTAL DO TRIÂNGULO MINEIRO

Foto 2. Usina Laginha Agroindustrial S/A – Unidade Trialcool.


Autor: ARAÚJO, D. F. C. (2012).

O trabalho no corte da cana envolve aprendizado e uma classificação daquele que


o realiza. Está habilitado a fazê-lo corresponde especificamente, no trabalho por produ‑
ção, e um treinamento do corpo perante as condições adversas desta tarefa.
A habilidade com o facão e a resistência frente às posições assumidas pelo ­corpo,
dada às situações dos eitos, permitem não só aos trabalhadores, mas também e princi‑
palmente aos fiscais e outros mediadores no processo de produção, classificar a quali‑
dade do trabalho em relação à quantidade e ao tempo despendido na colheita da cana,
estabelecendo-se, inclusive, disputa pelos melhores cortadores. Quando questionado
­sobre os quesitos necessários para ser contratado, o trabalhador responde: «Precisa
­cortar não sei quantas toneladas de cana aí, o cara tem que ser bom. Bom cortador, né?».
Na análise de Silva:

Isto é conseguido por intermédio da forma de pagamento (por tonelada) e


t­ambém pela concorrência velada que se estabelece entre os trabalhadores, diferen-
ciando-os, hierarquizando-os. Produz-se, assim, a figura do «bom cortador de cana»,
aquele que corta em torno de dez toneladas diárias. Aqueles que estão muito ­abaixo
desta média sentem-se incapazes, envergonhados, inferiorizados. Pelo jogo desta
quantificação, os aparelhos disciplinares hierarquizam, mediante a emulação, os
«bons» e os «maus» indivíduos25.

25
SILVA, 1999: 202.

109
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Traçando um paralelo entre o pensamento de Foucault sobre as prisões e outras


tecnologias disciplinares, é perceptível no ambiente de trabalho, mas, particularmente,
no trabalho do corte da cana, parâmetros e tecnologias percebidos por Foucault para
moldar o «espírito» dos prisioneiros a se fazerem presentes. Para Foucault o indivíduo
sob vigilância produz mais, melhor e quase não comete erros, também não tem distra‑
ções, nem espaço para o ócio. O simples fato de crer que está sendo vigiado é ­suficiente
para seguir as regras e se manter produtivo. «O poder disciplinar é, com efeito, um
­poder, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”; ou sem
dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as ­forças
para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo»26. Assim,
foi p
­ ossível evidenciar essa disputa entre os trabalhadores no final do dia de trabalho.
Quando estávamos retornando para o alojamento, os trabalhadores conversavam entre
si sobre a produção do dia de trabalho e alguns exaltavam seu desempenho no tempo
gasto na colheita da cana.

Minha média é na base de 11, 12 toneladas, por aí, 13 […] Dependendo da


cana […] (Igor).
Minha tonelagem é de nove pra frente […] (Antônio)
Minha tonelagem eu não sei. Sei mais por metragem que é o primeiro ano que
corto cana. Eu comecei com 50, 60, 70… Eu sei que já estava cortando quase 300
metros de cana, que são 1500 metrinhos, no eito de 5 ruas (Adair).

Para esses trabalhadores desempenharem as atividades de cortadores de cana é


­necessário se paramentar com EPI’s (Equipamentos de Proteção Individual), como
­camisetas de manga longa, chapéus, botas com caneleiras, óculos e luvas Além disso,
são obrigados a conviver com o perigo de incêndio, devido ao uso da queima de cana.
Os equipamentos são entregues no início da safra aos trabalhadores e caso seja neces‑
sário à troca, os mesmos arcam com o custo dos EPI’s. Eles são de extrema impor­tância
para a segurança do trabalhador, e evitam acidentes no local de trabalho. Relatos reali­
zados pelos trabalhadores migrantes demonstram um baixo índice de acidentes no
campo, fruto principalmente da normativa NR31227, que estabelece o cumprimento das
obrigações das agroindústrias canavieiras, no sentido de implantar medidas de modo a
garantir a segurança e a saúde do cortador de cana nos canaviais.
Alguns relacionam também estas dores com o uso de luvas de proteção, principal‑
mente, quando começam a cortar cana:

26
FOUCAULT, 2008: 190.
27
Normas que visam regulamentar medidas que visam assegurar a segurança e saúde no trabalho na agricultura,
pecuária, silvicultura, exploração florestal e aquicultura do trabalhador.

110
PRECARIZAÇÃO E TRABALHO NO CORTE DE CANA NO PONTAL DO TRIÂNGULO MINEIRO

Na primeira semana que o cara usa luva dói a mão mesmo, o cara quase não
pode fechar, a luva atrapalha mesmo (Antônio).
Têm muita gente que não acostuma com a luva, porque com a luva a gente tem
que dar um golpe mais duro. Eu mesmo só uso luva na mão que pego a cana. ­Porque
na outra mão não consigo pegar o podão com a luva, parece que meu pulso não
­segura, o podão escapa (Francisco).

Entretanto, a falta de luvas cria uma série de problemas nas mãos: calos, bolhas,
rachaduras. No trabalho de campo, podemos observar muitos indivíduos trabalharem
com a mão arrebentada na base do indicador.

Foi até que enfim, emborrachei o cabo do facão e amenizou um pouco a coisa.
Cortei uma faixa de pneu de bicicleta e enrolei no cabo. Foi quando pareceu que
segurou mais, aí (minha mão) parou de rachar e eu passando um creme (remédio)
direto (Adair).

Contudo, a posição para a realização desta tarefa exige do trabalhador um adestra­


mento do corpo, um aprendizado ao lidar com o facão, bem como o estilo adotado
frente às exigências dos mediadores da produção, pois o corte da cana deve ser execu‑
tado em ambas as extremidades da planta, ou seja, rente ao solo e depois em sua parte
superior. E, dependendo da época, da empresa, apanha-se determinada quantidade de
cana na touceira aplicando um número de golpes, depois cortar o ponteiro de cada peça
para eliminar a ponta da cana e manter garantida a concentração de sacarose a fim de
facilitar o transporte.
Laat28 concluiu que, em média, os cortadores de cana desferem 3.498 golpes de
facão, realizando 3.080 flexões de coluna, cortando em média 12,9 toneladas por dia.
Os batimentos cardíacos chegam a duzentos por minuto. A maior parte dos trabalha‑
dores nessa atividade extrapola a carga cardiovascular limite, ou seja, tem uma grande
sobrecarga na frequência cardíaca. Conforme se pode depreender do relato de um dos
entrevistados: «Aí passa do limite da gente, não pode, já fica ruim já. Ai não come nada,
vomita, dá câimbra. Mas é normal de se ver» ( Paulo).

É quando dá essas cãibras. Coisa ruim moço! Coisa ruim demais […]. O cora-
ção da gente fica voc, voc, voc. O ouvido da gente parece que vai estourar. Ai a gente
tem que parar […]. O coração da gente fica batendo ligeiro: tan, tan, tan. A gente
passa a mão aqui na gente pra vê se melhora. Ai tem que sentar (Francisco).

28
LAAT, 2010.

111
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Os cortadores de cana também ingerem grande quantidade de água, em média,


oito litros em um dia de trabalho ao cortar sete toneladas de cana, com um gasto médio
de 3.518 calorias, caminhando até dez quilômetros29. Desse modo, convivem com dores
cotidianas, como câimbras, vômitos, tonturas e machucados — cortes nas mãos e pés
pelo manuseio do facão. As dores nos braços, decorrentes do esforço contínuo feito para
cortar cana, são comuns entre os cortadores:

Eu sinto dor neste braço (direito) que vai das pontas dos dedos até aqui
­(ombro)… Fica dormente, dói que não tem onde por o braço, tem que levantar da
cama e por o braço pra cima. Se a dor começar a meia noite não durmo mais… Isto
começou quando eu comecei a cortar cana. Foi um presente que ganhei e acho que
vou morrer com ela (Everaldo).

A sobrecarga térmica também age contra a saúde do cortador de cana, podendo


levar as chamadas doenças de calor, como irritabilidade, confusão mental, câimbras,
fadiga e até mesmo morte30. Além disso, a queima da cana, a fuligem e fumaça, que
provocam problemas respiratórios, também representam um aquecimento da terra, e
contribui para a sobrecarga térmica. As vestimentas pesadas impedem o corpo de fazer
a troca de calor para a manutenção do equilíbrio térmico do corpo.

Agora, dor no meu corpo eu tenho demais. Se fosse outra pessoa […] passando
mal pra caramba ficaria aqui. […] Rapaz, é pior ficar no alojamento. Porque se você
não tiver um atestado médico, vão pôr falta pra você. E o que você vai ganhar? Não
vai ganhar nada! Ai tua quinzena vem magra. Tem que ir. Tem que ir de qualquer
jeito. Ou bom ou ruim tem que ir. Se o cara tiver passando muito mal aí o cara vai
assinar lá o papel e fica no busio [ônibus] até a hora de ir embora (Paulo).

Os trabalhadores migrantes sazonais trabalham quarenta horas semanais, geral‑


mente de segunda a sábado e ocasionalmente também aos domingos, por volta de 8
horas diárias com grande esforço físico, a longo prazo, esse trabalho desenvolvido nessa
frequência trará grandes prejuízos à saúde desses trabalhadores que estão ligados ao
corte da cana-de-açúcar.

Dá assim em mim um problema que quando eu deito na cama dói demais…


Aí eu peço a Deus para o dia amanhecer pra eu fica caminhando pra cima e pra
­baixo. Mas a gente tem que aguentar pra consegui uma condição melhor […].

29
VERÇOZA, 2016: 15.
30
BITTENCOURT et al., 2012.

112
PRECARIZAÇÃO E TRABALHO NO CORTE DE CANA NO PONTAL DO TRIÂNGULO MINEIRO

Não dói as costas todo dia não, porque eu tomo uns comprimidos. Aí alivia, né? Mas
quando passa três dias sem tomar, torna a doer […] (Everaldo).

Os cortadores de cana são unânimes em considerar as radiações solares e as chuvas


como principais agentes de desgastes e fadiga no trabalho.

Eu já me cortei no caso de chover e eu continuar cortando cana. Então, o cabo


do facão fica muito liso… A gente está querendo trabalhar para não perder o dia,
escorrega, […] porque tem aquelas valetas, que eles plantam cana do primeiro corte,
o sulco, o barro, a gente escorrega […] (João).

O calor escaldante era amenizado apenas quando ocorriam as rajadas de vento.


Entretanto, desconfiamos, pois este fato não trazia maior conforto aos cortadores, por
seus corpos se encontrarem totalmente cobertos. Na foto 3, podemos observar um
­trabalhador no final da sua jornada de trabalho.

olha, quando o cara corta demais, passa dos limites. Ai começa dar cãibra,
aqueles enjoos pra vomitar. O sol muito quente, começa dar cãibra em toda parte do
corpo, nossa! Forcei muito. [Deu cãibra] aqui [mostra a perna]. E enjoou também.
(Adair).

Foto 3. Trabalhador cortando cana na Usina Laginha Agroindustrial S/A – Unidade Trialcool.
Autor: ARAÚJO, D. F. C. (2012).

113
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Assim, estes cortadores de cana migrantes trabalham de forma intensa, e apesar de


não haver uma cobrança direta por produção, procuram aumentar sua produção diária,
pois assim seus rendimentos serão maiores ao final da safra. O salário é pago mediante a
produção, ou seja, as toneladas cortadas, incentivando a trabalharem «como máquinas»,
devido ao irrisório preço pago pela tonelada de cana cortada. Conforme informações
disponibilizadas pelos trabalhadores, as agroindústrias canavieiras pagam em torno de
R$4,30 por cada tonelada de cana queimada e R$6,30 pela cana crua. Essas empresas
muitas vezes usam de má fé para explorar esses trabalhadores, muito deles não sabem
calcular o valor produzido. Conforme se verifica no seguinte relato:

Eu também acho [melhor] por produção. A produção torna mais fácil, melhor.
Dá para tirar mais. Depende também do cara, entendeu? […] Assim, quando o cara
produz bastante, quando o cara é bom de cana, o salário é justo para ele, mas quando
cara é ruim […] (Jair).

Entretanto a despeito de todas as implicações negativas para os cortadores de


cana, a maioria deles é favorável à continuidade desta forma de remuneração. Muitos
­estudiosos têm se debruçado há décadas sobre o estudo da agroindústria canavieira
viram-se diante deste dilema. Maria Aparecida de Moraes Silva (1999) e José Roberto
Pereira Novaes (2007) são alguns dos exemplos de pesquisadores ao apontarem essa
preferência por parte dos trabalhadores rurais. Nas palavras de Novaes:

No local de origem, são diversas as situações vivenciadas pelos trabalhadores


­ igrantes que se dispõem a viajar para o trabalho nos canaviais paulistas. Mas há
m
um denominador comum entre eles: todos valorizam o trabalho no corte da cana,
onde o ganho é pela produção. Quanto mais se corta, mais se ganha. Assim, os traba­
lhadores nordestinos chegam à região com a disposição de acionar toda sua força
física, toda ­habilidade e resistência para alcançar boa produtividade31.

O salário pago aos cortadores de cana é calculado a partir de sua produtividade,


pode-se dizer, seu ganho, ou seja, o aumento da produção, e a consequente «­ melhoria»,
na sua condição de vida, vão depender justamente de sua capacidade física32. No caso
dos cortadores de cana, pode-se afirmar que o «esforço realizado pelos trabalhadores é
decor­rente do processo de trabalho combinado com a forma de pagamento»33. O paga­
mento por produção garante à empresa a intensificação do trabalho e um aumento das
jornadas de trabalho, e para garantir maiores ganhos os trabalhadores se submetem a
31
NOVAES, 2007: 64.
32
NAVARRO, 2006; ALVES, 2006.
33
ALVES, 2008: 02.

114
PRECARIZAÇÃO E TRABALHO NO CORTE DE CANA NO PONTAL DO TRIÂNGULO MINEIRO

altos níveis de esforço laboral físico. Na usina, o horário de almoço é fixo. Porém, os
­cortadores são unânimes em afirmar, uma vez iniciado o trabalho não é bom parar.

O ideal é não perder tempo mesmo, tem que ser ligeiro mesmo pra cortar, tem
que ser bom… O normal de um cortador é descontar 20 minutos no almoço e mais
10 minutos no café… É, come rapidinho e já pega de novo. E aí vai até uma certa
hora da tarde e aí para, e já pega outra vez em seguida. Praticamente não descansa
nada (Antônio).
Na usina, eles dão soro que fica na mochila, a hora que via dar câimbra, ia lá e
tomava, esperava um pouco, depois continua [no trabalho]. Agora, eles não dão mais
soro. Se a gente quiser sarar, a gente tem que fazer soro caseiro: mistura lá, põe um
pouco de água e açúcar e bebe […] (Francisco).

Além desse primeiro aspecto, não se pode deixar de ressaltar, com o passar do
t­empo, a média diária a ser atingida pelos cortadores de cana aumentou significativa‑
mente. De acordo com a pesquisadora Maria Aparecida de Moraes Silva, na década de
1980, a média exigida era de cinco a oito toneladas de cana cortada por dia; em 1990,
passa para nove toneladas; em 2000, passa para dez; e em 2004, passa para uma quantia
variante de doze até quinze toneladas por dia34. Com isso, é possível perceber a impo­
sição de uma média diária cada vez maior para funcionar como o definidor do ­aumento
da produtividade do trabalho dos cortadores de cana, como já mencionado, é obri­gado
a atingir a meta estipulada para conseguir assegurar seus postos de trabalho. Nesse
­contexto, caracterizado por pressões e cobranças por parte das usinas e por demissões
daqueles que não conseguem atingir a média, a rotatividade dos cortadores torna-se
muito alta.
Segundo os entrevistados, é diretamente relacionada com a produtividade de «sua
turma», composta pelos trabalhadores que fiscaliza. E por conta desse fato os trabalha‑
dores afirmam: os fiscais acabam por exigir mais empenho dos trabalhadores, mesmo
diante de situações nas quais os trabalhadores demonstram cansaço ou se queixam de
dores, como demonstra o relato:

Ele [fiscal] diz: «rapaz, você tá doente? Rapaz, vamo embora trabalhar! Levan-
ta, trabalha». […] E a gente morto fala: «não posso, não posso». E ele: «vai trabalhar,
vai trabalhar». Quando a gente está com esses problemas [de muito cansaço] a gente
vai para o busio [ônibus] por conta da gente (Igor).

34
SILVA & MENEZES 2006: 13.

115
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Conforme Lourenço & Bertani35, a escolha pela força de trabalho migrante


repre­senta vantagens para o capital, já os encargos trabalhistas e sociais se restringem
­apenas ao período da safra; trata-se de uma mão-de-obra mais barata e mais resignada.
A ­distância da família e as adversidades da viagem resultam numa maior subordinação
às imposições do trabalho, a possibilidade de retorno à sua região de origem é baixa,
principalmente pela questão financeira. Alguns são selecionados no local de origem, e
com o fim da safra devem voltar a esses locais, a fim de serem recontratados nas safras
seguintes.
Os trabalhadores comprometem a sua saúde, devido à posição curva necessária
para o corte da cana. Quando voltam para casa os cortadores estão extenuados:

Tem dia da gente chegar no alojamento, não vai nem tomar banho, e nem quer
jantar, já vai dormir. E no outro dia é que levanta mais cansado de manhã cedo
[…] porque tem hora que a gente está trabalhando, nem sente a canseira. Depois de
manhã cedo, a gente vai ver, quando o corpo esfria, como é que a gente está […] está
tudo doendo […] A gente tem que chegar na roça e fazer o corpo acostumar de novo
[…] (João).

Ao final do dia, estavam todos em torno do ônibus esperando para ir para o


­alojamento organizando o material para o dia seguinte. Na foto 4, podemos ver os traba‑
lhadores a espera do chamado dos fiscais.

Foto 4. Trabalhador no final da jornada de trabalho na Usina Laginha Agroindustrial S/A – Unidade. Trialcool.
Autor: ARAÚJO, D. F. C. (2012).

35
LOURENÇO & BERTANI, 2010.

116
PRECARIZAÇÃO E TRABALHO NO CORTE DE CANA NO PONTAL DO TRIÂNGULO MINEIRO

Ao chegarem a seus alojamentos após um extenuante dia de trabalho, cerca de


15 horas e 30 minutos, ainda precisam se dedicar aos afazeres domésticos, como lavar
a roupa, limpar o quarto, ao configurar uma jornada exaustiva, chegando exauridos ao
final do dia.
A alimentação constituída por arroz, feijão, mandioca e pequenos pedaços de
­carne fornecida pela agroindústria canavieira, paga pelos próprios trabalhadores, é
­pobre em nutrientes necessários à sustentação de seu corpo físico, é alvo de críticas por
parte dos trabalhadores. Além de não possuir uma variedade em seu cardápio, a alimen‑
tação fornecida pelas agroindústrias insta­ladas na ­Microrregião de Ituiutaba, é servida
fria e em quantidade insuficiente. Esses trabalhadores complementam sua alimentação
­comprando em ­supermercados das cidades ovos, verduras, alimentos em conserva,
­dentre outros, e ­preparam um reforço alimentar.
Além da preocupante condição de trabalho, vivem alojados em albergues espa­
lhados por vários pontos da cidade, sendo descontado mensalmente o valor do aloja­
mento, onde é clara a inexistência de higiene. Os trabalhadores são colo­cados em
­quartos de tamanho reduzido com pouca ou nenhuma ventilação, com beliches onde
ficam quatro homens, o que leva muitos deles a espalharem colchões em ­outras áreas
mais arejadas do alojamento.
Algumas proibições expressas pela usina demonstram uma tentativa de controlar
o tempo livre dos trabalhadores. É proibido o pernoite de esposas, namoradas ou prosti­
tutas, e até mesmo parentes como visitas. A justificativa das respostas dos encar­regados
da usina para fundamentar essa regra circula em torno da ideia de que o a­ lojamento é
um espaço de descanso. Faz-se o máximo para evitar eventos, pois pode atrapalhar o
­descanso dos trabalhadores. Isso revela uma intenção da usina de controlar o ­tempo livre,
o trabalhador mais descansado terá melhor produtividade no trabalho. A m ­ esma argu‑
mentação serve para a proibição da utilização de televisores nos quartos. No aloja­mento,
existe uma sala com uma televisão, ligada cotidianamente até às 21h, com ­exceção das
quartas-feiras, noite de jogos de futebol, a TV fica ligada até as 23h, se algum traba­lhador
desejar assistir. Após esse horário, o fiscal desliga e todos são convidados a dormir.
Estas duas regras buscam regulamentar o tempo livre dos trabalhadores com a
finalidade de zelar pelo seu descanso e aumentar consequentemente a produtividade, só
é possível se os trabalhadores morarem na propriedade da usina. O segundo elemento
que leva a crer que a usina busca controlar o tempo livre dos trabalhadores, é o fato do
fiscal morar no alojamento e executar as regras prescritas pelo corpo diretor da usina.
O fiscal é responsável pela vigilância do alojamento, encarregado de proibir a hospeda‑
gem de mulheres ou parentes, e garantidor do silêncio durante o período de descanso.
O terceiro elemento evidente de tal iniciativa é o fato de, ao lado de cada alojamento de
trabalha­dores desta usina, se encontram as casas dos encarregados.

117
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Levando em considerações estas condições vivenciadas pelo migrante, Mendonça


contextualiza:

Há um conjunto de situações que denotam formas degradantes de trabalho


(alojamentos precários, falta de equipamentos de segurança, condições de trabalho
insalubres e alimentação inadequada, entre outras) para os trabalhadores safristas e
de forma piorada para os trabalhadores temporários36.

É de extrema relevância desmitificar a ideia do trabalhador utilizado como mão-de-­


-obra nos canaviais ser bem remunerado. A esse respeito, o professor Marcelo M ­ edonça
(2013), destaca em entrevista: «de fato existem cortadores de cana com ­ganhos ­mensais
em torno aí de dois mil reais, o que a mídia retrata como algo estrondoso, como se ­alguém
que ganhe três salários mínimos pudesse viver bem com sua família nesse país».

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste contexto, é reforçada a tese do processo de intensificação da superexploração
e força de trabalho utilizada pelo capital para obter a mais-valia e lucro, pois coloca o
­trabalhador sob uma condição precária de trabalho. Levando-o ao esgotamento prema‑
turo das suas forças físicas, e não lhes garante um salário digno necessário à sua sobre‑
vivência e de seus familiares.
Diante dos desafios próprios do deslocamento para o trabalho, a baixa remune­
ração do setor para o trabalho agrícola no setor e a inserção em uma região com traços
culturais diferentes; a presença destes migrantes revela o poder que o setor possui em
redefinir as condições territoriais dos territórios na produção do setor sucroenergética.
Se firmando nos pequenos municípios do interior de Minas Gerais, os trabalhadores
que migraram para trabalhar em funções agrícolas expressam, desta maneira, a situação
mais importante: a condição de produção que estes municípios da cana desenvolvem
para o setor sucroenergético.
O status do cortador de cana, seja no local de trabalho, seja com a família e a­ migos,
vai depender de seu desempenho ao fim da safra. Cortou-se muito, ganhou d ­ inheiro
suficiente, ganhará respeito, reconhecimento; senão, fica conhecido como «podão
­
de borracha», um fraco. Há um peso simbólico da associação entre desempenho no
­trabalho e a identidade. O pensamento patriarcal mantém sobre o homem a responsa‑
bilidade de manutenção da família. Entretanto, o patriarcado não está restrito ao campo
do ­trabalho, está em todas as esferas das relações sociais. Voltar para o local de origem,
voltar com uma quantia de dinheiro e garantir o conforto da família, significa reafirmar
esse papel. É também essa cobrança motivadora que faz os cortadores se dedicarem até

36
MENDONÇA, 2004: 266.

118
PRECARIZAÇÃO E TRABALHO NO CORTE DE CANA NO PONTAL DO TRIÂNGULO MINEIRO

ao limite do seu corpo, mesmo o resultante se dar em adoecimento físico ou psíquico.


Esse adoecimento repercute sobre as famílias, pois as mulheres passam a desempenhar
outros papéis quando ao retorno de seus esposos sem capacidade laboral ficam sem
desempenhar seu papel na agricultura familiar.

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Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos. São Carlos, Cap. 3.

119
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

120
DESCOBRINDO SABORES, PRODUZINDO
SABERES: UMA PROPOSTA DE PONTO
DE MEMÓRIA DA RAPADURA PARA A
COMUNIDADE DE CAMPO ALEGRE
DE BAIXO (MT)
ZULEIKA ALVES DE ARRUDA*
JOYCE AQUINO**
NADIR. F. B. BITTENCOURT***
ARIVAN SILVA****
PAULO SLEUTJES*****

Resumo: Os ideais deste artigo surgiram a partir de pesquisas realizadas pelos integrantes do p ­ rojeto
­«Cartografias Culturais» do Instituto Federal de Mato Grosso, cujo objetivo é conhecer e cartografar as
­celebrações, saberes e fazeres e patrimônio material da Região Metropolitana do Vale do Rio Cuiabá. D
­ entre
as comunidades inventariadas, encontra-se a de Campo Alegre de Baixo, localizada no município de Nossa
Senhora do Livramento. Esta comunidade produz artesanalmente a rapadura, um doce típico brasileiro,
cuja matéria-prima é a cana-de-açúcar. Esse saber (re)reproduzido de geração para geração sofre atual­
mente entraves decorrentes de imposições do mercado, que vem exigindo a padronização do processo
produtivo de acordo com a legislação vigente, comprometendo a prática tradicional da rapadura. Frente
à problemática enfrentada, o grupo propôs um projeto de criação de um Ponto de Memória da Produção
da Rapadura. Pretende-se com este trabalho propiciar à comunidade uma forma alternativa de geração de
renda sem comprometer a cultura local.
Palavras-chave: ponto de memória; turismo comunitário; sustentabilidade; tradição; patrimônio.

* Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso – Campus Cuiabá/NPGA. Email:
zuleika.arruda@cba.ifmt.edu.br.
** Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso – Campus Cuiabá/NPGA/Curso de Edificações.
Email: joyceearruda@gmail.com.
*** Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso – Campus Cuiabá/NPGA. Email: nadir.bitten‑
court@cba.ifmt.edu.br.
**** Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso – Campus Cuiabá/NPGA. Email: arivan.
silva@cba.ifmt.edu.br.
***** Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso – Campus Cuiabá/Curso de Turismo Bacha‑
relado. Email: paulosleutjes@gmail.com.

121
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Abstract: The idea for this paper emerged from studies accomplished by researchers who take part in the
project called «Cartography of Cultures» at the Federal Institute of Mato Grosso. This project aims to know
and map popular celebrations, festivities and traditional knowledge along Cuiabá river metropolitan area.
Among the communities we have worked with, it is highlighted Campo Alegre de Baixo, in Nossa Senhora
do Livramento. In this community is produced, in a traditional way, the Rapadura, a typical Brazilian candy,
made from sugarcane. This candy is produced in a very traditional way, but the producers have suffered
pressures from government agencies and buyers regarding to fit into modern methods of production. In this
direction, our group of researchers suggested the creation of a Center for Rapadura’s Traditional Produc‑
tion Memory. The idea is to turn spaces they already have into remarkable places to see, in order to attract
­tourism and preserve their memory regarding to the traditional way of producing Rapadura.
Keywords: space of memory; rapadura; sustainability; tradition; heritage.

INTRODUÇÃO
Os ideais deste artigo surgiram a partir de pesquisas realizadas pelos integrantes do
projeto «Cartografias Culturais» do Instituto Federal de Mato Grosso, com o objetivo de
conhecer e cartografar as celebrações, saberes e fazeres e patrimônio material e imaterial
da Região Metropolitana do Vale do Rio Cuiabá. Dentre as comunidades inventariadas
encontra-se a de Campo Alegre de Baixo, localizada no município de Nossa Senhora do
Livramento, Mato Grosso. No mapa a seguir podemos visualizar a localização geográfica
da referida comunidade:

Figura 1. Mapa de localização da Comunidade.


Fonte: Arruda (2018).

A base econômica da comunidade Campo Alegre de Baixo está ancorada na


­ rodução agrícola, notadamente da produção de leite, mandioca, banana, hortaliças,
p
abóbora e cana-de-açúcar, culturas típicas da agricultura familiar e da região. Assim o

122
DESCOBRINDO SABORES, PRODUZINDO SABERES: UMA PROPOSTA DE PONTO DE MEMÓRIA
DA RAPADURA PARA A COMUNIDADE DE CAMPO ALEGRE DE BAIXO (MT)

desenvolvimento econômico e social está pautado na agricultura familiar e na fabricação


de produtos artesanais como rapadura e farinha de mandioca, tendo como premissa o
saber/fazer adquirido e (re)produzido de geração em geração.

Figura 2. Paisagem da comunidade.


Fonte: Arruda (2018).

A produção artesanal da rapadura e de seus derivados, que constitui uma impor‑


tante fonte de renda para a comunidade de Campo Alegre de Baixo, sofre atual­mente
entraves decorrentes de imposições do mercado, que vem exigindo a padronização
do processo produtivo de acordo com a legislação vigente, comprometendo, assim, a
­prática tradicional da rapadura. Torna-se mister ressaltar que a atividade da fabricação
de rapa­dura artesanal na região do Vale do Rio Cuiabá não constitui apenas uma ativi‑
dade econômica, mas uma atividade cultural que preserva a herança social das comu-
nidades tradicionais1.
Além disso, a produção da rapadura nos engenhos vem enfrentando outras proble­
máticas que implicam na reprodução social, em função dos entraves econômicos estabe‑
lecidos pela conjuntura econômica e política atual. Pela falta de perspectiva do retorno
econômico (preço baixo do produto), contrapondo ao tempo disponibilizado para a
produção da rapadura, a geração jovem não tem interesse em dar continuidade ao saber
fazer tradicional, por isso a redução da produção tradicional tem acarretado a escassez
da rapadura no mercado.
Com isso, deparamo-nos com um paradoxo que se configura nessa comunidade:
a preservação do saber/fazer tradicional e a adequação aos modos de produção exigidos
pelo mercado2. Entende-se que uma das maneiras de romper com essa cadeia e com essa
contradição encontra-se na comercialização da rapadura e na relevância da preservação
do saber fazer local, que se configura em alternativas como a implementação do turismo
com base local.
1
ARRUDA et al., 2018.
2
ARRUDA et al., 2018.

123
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

A proposta consiste em fomentar, por meio do turismo comunitário com base na


experiência, o desenvolvimento local pautado na sustentabilidade social, econômica e
cultural, buscando, desta forma, a conservação e a manutenção da atividade produtiva
tradicional, concomitante com a preservação do saber/fazer tradicional da rapadura.
Com isso, uma das alternativas sugeridas neste trabalho para a manutenção desta práxis
resume-se na adequação do local de produção tradicional para recepção de visitantes,
mantendo a originalidade arquitetônica e os equipamentos utilizados, preparando a
­comunidade para receber os turistas, com criação de atrativos, por exemplo, um ponto
de memória da rapadura.
Os procedimentos metodológicos deste trabalho consistem em: revisão biblio‑
gráfica, análise documental, trabalho de campo, realização do inventário turístico e
­diálogos com os agentes locais, de forma a orientá-los na adequação da infraestrutura
para a recepção do turista, a hospitalidade e a construção de um espaço para preservação
da memória da produção da rapadura.

TURISMO RURAL COMUNITÁRIO COMO ESTRATÉGIA DE


DESENVOLVIMENTO LOCAL
A economia capitalista global dominante no mundo contemporâneo tem estimu‑
lado cada vez mais a competitividade econômica conduzindo as empresas e produtores
agrícolas, geralmente os mais capitalizados, a buscarem a eficácia no processo produtivo
por meio da adoção de novas formas de produzir e gerir, capazes de maximizar a sua
condição de competitividade (binômio preço-qualidade) e a maior taxa de retorno sobre
os recursos dos seus investidores.
Entretanto, as pequenas empresas e ou produtores rurais menos capitalizados
­ficam à margem desse processo, sendo obrigados a abandonarem as suas propriedades
ou saberes-fazeres (re)produzidos pelas gerações passadas nas comunidades tradicio‑
nais. Tais saberes-fazeres passam a ser rotulados como arcaicos, obsoletos e inválidos
frente à tendência contemporânea de um mercado globalizado que privilegia a unifor‑
mização e padronização dos produtos. Esse processo acaba por excluir as comunidades
tradicionais do mercado, acentuando a pobreza e perda da identidade cultural.
Concomitante às mudanças que se configuram no cenário rural brasileiro e aos
problemas enfrentados pelos produtores agrícolas, cada vez mais o setor rural atrai os
olhares de novos turistas. A civilização urbana está procurando alternativas que satis­
façam seus desejos de estar em contato com a natureza, onde eles criam um imaginário
da simplicidade. Com essa procura desenfreada ao meio rural, abre-se uma janela de
oportunidades para investir no turismo, e isso traz para o mercado turístico uma novi‑
dade a ser explorada, pois parte dos turistas querem participar ativamente dos trabalhos
agrícolas, vivenciando algo novo, ou até mesmo viver algo que relembre sua infância,

124
DESCOBRINDO SABORES, PRODUZINDO SABERES: UMA PROPOSTA DE PONTO DE MEMÓRIA
DA RAPADURA PARA A COMUNIDADE DE CAMPO ALEGRE DE BAIXO (MT)

através de histórias ou no consumo de alimentos produzidos na propriedade, sentindo


e revivendo o verdadeiro gostinho rural que era experimentado em outros contextos.
Nesse sentido, torna-se imprescindível resguardar a autenticidade e originalidade
do meio rural, para que não se torne um turismo com características urbanas. O t­ urista
que sai dos grandes centros urbanos, na sua maioria, procura uma interação osten­siva
e direta com a natureza. Diante dessa procura, devemos manter a originalidade da vida
rural, procurando envolver pequenas comunidades próximas à propriedade, dando
oportunidades aos moradores da comunidade e arredores, para que transmitam seus
conhecimentos e as suas histórias locais. Desta maneira eles demonstrarão as culturas e
atrações, gerando parcerias, as quais agregam valor ao setor turístico local, bem como
proporcionam a interação social.
Conforme Maldonado3, o turismo de Base Comunitária (TBC) passa a ser uma
alternativa para as comunidades que vivem nos espaços rurais, abrangendo um novo
segmento do mercado, direcionado a pequenos grupos de viajantes que buscam expe­
riências pessoais, originais e enriquecedoras, combinado com vivências culturais autên‑
ticas. Essa tendência contemporânea do mercado do lazer e do ócio procura cada vez
mais ambientes naturais, experiências culturais, englobando o bem-estar familiar e a
fuga do estresse urbano, o que está relacionado com o mercado crescente do turismo
comunitário, no meio rural.
Segundo Carvalho4, a incorporação do turismo de experiência e cultural nas
comu­nidades constitui premissas importantes para o desenvolvimento local e para o
resgate cultural, assim, o processo do desenvolvimento local implica uma visão comum,
articulado às iniciativas de dimensões econômica, social, cultural, política e ambiental.
Ao fazermos essa problematização, estamos certos de que o melhoramento da
­comunidade vai possibilitar o seu desenvolvimento local, de acordo com a vontade das
pessoas que residem naquele espaço, para agregar valores sociais e econômicos. Mello5
pondera que «O desenvolvimento local (DL) é antes de mais nada uma vontade comum
de melhorar o quotidiano, essa vontade é feita de confiança nos recursos próprios e na
capacidade de os combinar de forma racional para a construção de um melhor futuro».
Entretanto, para que essa prática tenha êxito, é essencial que a comunidade queira
compartilhar o conhecimento com o turista-visitante, bem como que ela esteja prepa‑
rada para recebê-lo, propiciando um espaço que tenha, minimamente, conforto para o
bem-estar das pessoas, sem agredir o patrimônio histórico, preservando as caracterís­
ticas típicas do meio rural atendendo aos princípios da hospitalidade e sustentabilidade6.

3
MALDONADO, 2009.
4
CARVALHO, 2013.
5
MELLO, 1998: 5.
6
ARRUDA et al., 2018.

125
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Por esta razão, podemos dizer que no turismo de experiência, a sustentabili­dade


econômica, social e cultural proporcionam o aumento da prática de administração
­familiar consciente, gerando renda e, se o turismo for implantado de forma correta,
­trará maior geração de renda. A interação entre os membros da comunidade, fortalecida
nos aspectos da sustentabilidade e atreladas aos visitantes externos, é o que pode gerar
­ganhos de bem-estar para a população local, assim como proporcionar novas experiên‑
cias ao turista7, configurando-se em uma forma hospitaleira de receber as pessoas.

OS SABORES E SABERES ORIUNDOS DA CANA-DE-AÇÚCAR:


UMA PROPOSTA DE EXPERIÊNCIA TURÍSTICA PARA A
COMUNIDADE
A fabricação da rapadura no Brasil remonta ao período colonial quando as primei­
ras mudas da cana-de-açúcar foram introduzidas, notadamente na porção litorânea
do território brasileiro. Essa região, beneficiada pelo solo de massapê e clima tropical
­úmido, representou o principal polo produtor da cana-de-açúcar e seus derivados:
­açúcar ­mascavo, cachaça, melaço e rapadura. Os primeiros engenhos constituíam a base
para a produção de alimentos destinados, aparentemente, aos escravos, ganhando o
­estigma de comida de pobre8, e, posteriormente, convertendo-se em um dos principais
produtos agrícolas do país, representados pelo açúcar.
No estado de Mato Grosso o ciclo da cana-de-açúcar iniciou-se no século
XVIII, concomitante à mineração do ouro, porém o maior desempenho econômico
­ocorre no final da primeira metade do século XX. Nesse período, as fábricas e enge‑
nhos ­localizavam-se preferencialmente em terras de Serra Acima, região pertencente à
Fregue­sia de Santana de Chapada dos Guimarães e Rio Abaixo, em terras pertencentes
à Freguesia de Santo Antônio de Rio Abaixo e Barão do Melgaço, em Cuiabá, Livra­
mento, Guia e Brotas, que deixaram legados na paisagem e cultura mato-grossense9.
Atualmente, a produção de rapadura em Mato Grosso encontra-se restrita aos
engenhos que se localizam nas comunidades tradicionais próximas às margens do Rio
Cuiabá, nas terras pertencentes aos municípios de Santo Antônio de Leverger, Barão do
Melgaço, Várzea Grande, Cuiabá e nas áreas rurais dos municípios de Nossa Senhora
do Livramento, Poconé, Chapada dos Guimarães e Rosário Oeste.
As comunidades tradicionalmente produtoras da rapadura, localizadas às margens
do rio Cuiabá, reduziram drasticamente tanto no que se refere a sua permanência física
quanto em termos produtivos, ou seja, a sua produção se apresenta em pequena escala
e local. Mesmo com os entraves enfrentados, a produção de rapadura tem sobrevivido
e apresenta características típicas de atividade de base local, buscando um processo de
7
SILVA, 2015.
8
ANDRADE, 2008.
9
ARRUDA et al., 2018.

126
DESCOBRINDO SABORES, PRODUZINDO SABERES: UMA PROPOSTA DE PONTO DE MEMÓRIA
DA RAPADURA PARA A COMUNIDADE DE CAMPO ALEGRE DE BAIXO (MT)

expansão e mudança que possibilite atingir novos mercados de consumo10. Em estudo


realizado, constatou-se que a produção da rapadura que abastece o mercado da Região
Metropolitana do Vale do Rio Cuiabá procede, notadamente, do município de Nossa
Senhora do Livramento, com destaque para a comunidade de Campo Alegre de Baixo.
Constata-se que o espaço das unidades produtivas da rapadura de Campo ­Alegre
de Baixo permanecem similares aos engenhos tradicionais. As fornalhas utilizadas
são feitas de barro, argila, tijolos e com a espuma da garapa extraída após o processo
de ­filtragem. Para o processo de cozimento, os produtores ainda utilizam a lenha e o
­tacho de cobre. Ao realizarem o batimento/resfriamento do melado (caldo), utilizam
o ­cocho, a gamela, a mesa, as formas de madeira para sua moldagem e os instrumentos
que ­auxiliam na produção, como as conchas de cabaça, a panela de alumínio perfurada
e espá­tulas, como podemos visualizar na Figura 3.

Figura 3. Equipamentos utilizados na produção da rapadura.


Fonte: Arruda (2018).

Todo o processo produtivo da rapadura começa pelo corte da cana, o qual é prati­
cado por produtores rurais que pertencem à comunidade de Campo Alegre de ­Baixo,
que participa desde o plantio até a entrega da cana para o fabricante da rapadura,
­incluído o transporte da cana, que é levada por um veículo equipado com uma carreta
até o engenho. A partir da descarga da cana, inicia-se a parte da limpeza e higienização,
para que a matéria-prima esteja pronta para o processo de moagem.

10
PINTO, 2001.

127
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Figura 4. Transporte e moenda da cana-de-açúcar.


Fonte: Sleutjes (2018).

Após executar o processo de limpeza, é ligado o engenho para iniciar a moagem


da cana, que imediatamente escorre para uma peneira para que faça a filtragem e sepa­
re ­alguns ­fragmentos do bagaço da cana. Posteriormente, é realizada a decantação
da ­garapa, para que as impurezas mais pesadas possam ficar no fundo do recipiente.
A fervura do ­caldo é o próximo passo para dar continuidade na produção da rapa­dura.
O produto já bem concentrado é transferido do tacho para um recipiente de m ­ adeira
­denominado c­ ocho para iniciar o processo de batimento/mexedura com duração m ­ édia
de uma hora. N ­ esse processo, o material perde calor e assim inicia o resfriamento.
A massa é batida no c­ ocho de madeira até ficar com um aspecto brilhante. A partir desse
estágio já podemos chamá-la de rapadura, que é retirada do cocho e colocada devida‑
mente nos moldes de madeira, como pode ser observado na Figura 5.

Figura 5. Imagens do processo de produção da rapadura.


Fonte: Arruda (2018).

128
DESCOBRINDO SABORES, PRODUZINDO SABERES: UMA PROPOSTA DE PONTO DE MEMÓRIA
DA RAPADURA PARA A COMUNIDADE DE CAMPO ALEGRE DE BAIXO (MT)

Depois disso, é preciso aguardar que a rapadura resfrie, para adquirir uma consis‑
tência mais dura e, finalmente, ser embalada e armazenada em um local adequado.
Dentre os produtos fabricados na comunidade, podemos citar: rapadura da cana-­
-de-açúcar (simples), rapadura de cana com mamão, rapadura de cana com coco de
babaçu, rapadura de goiaba, rapadura de mandioca, rapadura de abóbora e o tradicional
«chincho», uma rapadura de leite, típica da região.

Figura 6. Tipos de rapaduras produzidas.


Fonte: Arruda & Sleutjes (2018).

A variedade de sabores produzidos, cuja base é a cana-de-açúcar, representa um


saber singular na comunidade e possui uma grande aceitação no mercado consumidor
regional devido ao caráter tradicional produzido.
Além de vivenciar a produção, o turista poderá conhecer os produtos já fabri­cados
através da visita ao ponto de memória, onde os produtos serão expostos para uma ­possível
degustação e comercialização. Assim, o turismo de experiência na c­ omunidade Campo
Alegre de Baixo está atrelado ao projeto do ponto de memória da rapadura, concomi­
tante à proposta de turismo, oferecendo uma nova forma de prestar serviços diferen‑
ciados, proporcionando memoráveis experiências, que geram emoção e engajamento11.
Pautado na concepção «experiencial dos sabores» é que se propôs a implantação
do turismo de experiência na comunidade de Campo Alegre de Baixo, ancorado na
­produção da rapadura em tempo real, na degustação dos seus sabores e no conheci­
mento da história da comunidade. O turista-visitante quer ver e vivenciar o que real‑
mente tem em uma comunidade rural, por isso é importante que o cenário seja preser‑
vado de uma forma que seja o mais original possível, mostrando os hábitos e as práticas
diárias que são comuns nas comunidades.
11
SEBRAE, 2015.

129
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Constatamos que a comunidade possui um patrimônio imensurável, pois a sua


c­ ultura e identidade se manifestam através das habilidades e técnicas adquiridas de seus
ancestrais. E será através deste intercâmbio de conhecimentos entre moradores e visi‑
tantes que iremos demonstrar que os serviços existentes na comunidade viabilizam a
possibilidade da implantação de um produto que possa ser comercializado como uma
experiência turística, proporcionando o desenvolvimento local.
Com esta prerrogativa, que corresponde ao desenvolvimento comunitário,
os ­moradores pretendem fazer a construção de um ponto de memória da rapadura,
apropriando-se de técnicas utilizadas por seus antepassados, as quais irão possibilitar a
­reprodução das antigas moradias, casa de pau a pique, que será construída pela própria
comunidade, sob a orientação da equipe de pesquisa, aproveitando o saber/fazer que a
comunidade tem a oferecer, utilizando os principais materiais, diretamente extraídos da
natureza, como o barro, a madeira e a taquara.

PONTO DE MEMÓRIA COMO SUPORTE PARA A ATIVIDADE


TURÍSTICA E PRESERVAÇÃO DO SABER/FAZER DA
RAPADURA
A concepção de ponto de memória está ancorada nos pressupostos do Programa
Mais Cultura e Cultura Viva, do Ministério da Cultura e da Organização dos Estados
Ibero-americanos (OEI), que propõe fortalecer a memória social e coletiva de comu‑
nidades, a partir do cidadão e de suas origens, histórias e seus valores. Essa iniciativa
parte da compreensão da memória como amálgama das representações identitárias das
diferentes comunidades e dos grupos sociais que não tiveram a oportunidade de narrar
e expor suas próprias histórias, memórias e seus patrimônios nos museus12.
Na comunidade Campo Alegre de Baixo, essas memórias são relacionadas ao
­patrimônio imaterial existente na comunidade Campo Alegre de Baixo, preservados e
repassados por várias gerações, que é a arte de saber fazer a rapadura tradicional da
cana-de-de açúcar e outros sabores. Entende-se que esse saber fazer deve ser resguar‑
dado através do ponto de memória, para que as novas gerações possam vivenciar essas
experiências. Podemos dizer que esse resgate é pertinente, devido à riqueza de detalhes
do saber e fazer da rapadura.
A criação do ponto de memória consiste em salvar o patrimônio imaterial, resga­
tando o passado, com a criação e reestruturação da unidade produtiva da rapadura. Com
isso, podemos englobar as particularidades culturais, como a linguagem e a construção
histórica do espaço físico, o que possibilita a realização do turismo de experiência junto
ao ponto de memória, preservando o saber/fazer tradicional.

12
OEA, 2016.

130
DESCOBRINDO SABORES, PRODUZINDO SABERES: UMA PROPOSTA DE PONTO DE MEMÓRIA
DA RAPADURA PARA A COMUNIDADE DE CAMPO ALEGRE DE BAIXO (MT)

O espaço será construído com o método de taipa de mão ou pau a pique, levando
em conta o saber/fazer da própria comunidade acerca desse tipo de habitação típica da
região rural do Vale do Rio Cuiabá e outrora prevalecente na comunidade. Largamente
utilizada no Brasil rural, essa técnica constitui legado português e consiste em um tipo
de habitação construída com matéria-prima local como a madeira, a taquara, o barro
e o cipó.
A taipa de mão, também chamada de pau a pique ou taipa de sebe, é uma técnica
construtiva que consiste em comprimir a terra em uma estrutura construída de madeira
ou bambu, no formato de uma grade. Para a construção desse quadro (grade) utiliza-se de
madeira ou taquara vertical cravados no chão e os horizontais são encaixados ou amar­
rados nos verticais com cipós e, posteriormente, é feito o «barreamento» das paredes.
O aspecto cultural da comunidade pode ser mantido com a construção do Centro
de Memória da Rapadura, que, além de preservar a cultura, visa conservar a natureza,
já que serão utilizados materiais de menor impacto ambiental, pois os recursos naturais
são limitados e precisam ser utilizados de forma consciente. Os materiais sugeridos para
o projeto da construção do centro de memória constituem também uma alternativa
para os inúmeros impactos decorrentes do uso irracional pela construção civil e a mudan­
ça na utilização dos recursos naturais pode contribuir para um planeta mais saudável.
A figura a seguir demonstra a concepção do projeto do Ponto de Memória:

Figura 7. Projeto arquitetônico do Ponto de Memória da Rapadura.


Autor: Aquino (2018).

Todo o processo de construção do ponto de memória é realizado de maneira


participativa, desde a discussão do projeto construtivo, coleta do acervo doado pelos
membros da comunidade, preparação do acervo que deverá ser exposto e execução do
projeto construtivo que será executado em «Muxirum», termo regional utilizado para a
execução de trabalho coletivo e participativo.

131
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Figura 8. Participação da comunidade no planejamento para a realização do Centro de Memória.


Autor: Arruda (2018).

A ideia principal do Ponto de Memória é expor os instrumentos relativos ao


­processo produtivo tradicional da rapadura, assim como outros objetos e fotos que
­façam parte do cotidiano e memória coletiva da comunidade. Na parte externa serão
expostas as máquinas e outros objetos de maior porte relevantes ao processo produtivo.
Por exemplo, o engenho movido a tração animal, que pertence a um dos moradores
mais antigos, bem como a construção de forno tradicional, que será utilizado para a
produção de bolos regionais que serão comercializados para os visitantes.

Figura 9. Esboço do Centro de Memória da Rapadura.


Autor: Aquino (2018).

132
DESCOBRINDO SABORES, PRODUZINDO SABERES: UMA PROPOSTA DE PONTO DE MEMÓRIA
DA RAPADURA PARA A COMUNIDADE DE CAMPO ALEGRE DE BAIXO (MT)

A coleta dos objetos doados ou cedidos pelos moradores da comunidade deverá


ser feita pelos membros da comunidade e por um responsável do projeto para identi­
ficar, catalogar e, simultaneamente, sistematizar todas as informações acerca dos objetos
em português, espanhol e inglês. Posteriormente, esses objetos devem ser guardados até
que sejam devidamente colocados em seus lugares definitivos assim que o memorial da
rapadura estiver concluído. Serão confeccionados folders informativos sobre a história
da comunidade Campo Alegre de Baixo em português, inglês e espanhol, feitos pelos
próprios moradores da comunidade, sob a orientação do grupo de pesquisa.
Assim, para complementar e seguir a proposta Turística na Comunidade Tradi­
cional de Campo Alegre de Baixo juntamente com a implantação do memorial da rapa‑
dura, pretende-se realizar um planejamento junto à comunidade para a adequação da
infraestrutura local e uma educação/orientação voltada para um atendimento de quali‑
dade, respeitando a cultura e o meio ambiente, pois são primordiais para o desenvolvi‑
mento local, em consonância com as normativas vigentes e correlatas com as políticas
públicas voltadas ao setor do turismo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se que o turismo de experiência em base comunitária, quando bem plane­
jado e assistido junto à comunidade, pode valorizar a cultura e ao mesmo tempo gerar
renda de forma sustentável, bem como resguardar o meio ambiente, com o intuito de
­fomentar o crescimento econômico de forma sustentável, fugindo do modelo tradi­
cional, que, quando mal planejado, gera a degradação do meio ambiente e a dilapidação
da cultura.
Com a implantação do ponto de memória da rapadura e a revitalização do enge­
nho, esperamos introduzir novas ideias sem gerar impacto cultural e ambiental na
comu­nidade de Campo Alegre de Baixo. A revitalização do engenho tem a finalidade de
fomentar o comércio e de resguardar a cultura, através de uma Proposta de Turismo
de Experiência, para manter os jovens na comunidade.
Espera-se que a construção do ponto de memória possa fortalecer as tradições
­locais e os laços de pertencimento, impulsionar o turismo e a economia local e que a
adequação do espaço produtivo às exigências ambientais e da comunidade para a visi­
tação turística contribua para ampliação da geração de renda da comunidade por meio
da venda direta dos produtos e derivados (doces, rapadura, caldo de cana, etc.), artesa‑
natos, bem como para a preservação da memória do saber/fazer local.

133
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

BIBLIOGRAFIA
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sustentabilidade-e-eficiencia-energetica>. [Acessado em 30/11/2018].

134
VIOLA-DE-COCHO: O SABER/FAZER
QUE DÁ RITMO ÀS CELEBRAÇÕES
MATO-GROSSENSES (BRASIL)
LETÍCIA M. TAMIOZZO*
ZULEIKA ALVES DE ARRUDA**
NADIR. F. B. BITTENCOURT***
ARIVAN S. SILVA****

Resumo: A viola-de-cocho (variante da viola regional brasileira) é um instrumento musical essencial nas
manifestações culturais e celebrações tradicionais, notadamente dos municípios pertencentes à Região do
Vale do Rio Cuiabá e Pantanal Mato-grossense, como o Cururu, o Siriri, a Dança de S. Gonçalo, o Boi-à-­
-Serra e outras festas religiosas que acontecem, principalmente na zona rural. Tombado como Patrimônio
Imaterial Brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), esse instrumento
musical é singular em relação à forma e sonoridade por possuir um formato piriforme, de tamanho aproxi‑
mado de 58 cm a 78 cm de comprimento e 10 cm de lateral e composto de cinco ou seis cordas. O presente
trabalho discute a relevância do modo de fazer da viola-de-cocho no que tange ao valor patrimonial, bem
como o seu valor simbólico, o reconhecimento e valorização desses agentes culturais produtores desse saber
para a formação e contribuição de uma identidade cultural.
Palavras-chave: viola-de-cocho; instrumento musical; arte de fazer; manifestação cultural; patrimônio
­imaterial.

Abstract: The viola-de-cocho (variant of the Brazilian regional viola/guitar) is an essential musical
instru­ment in cultural manifestations and traditional celebrations, such as Cururu, Siriri, São Gonçalo
Dance, ­Boi-a-Serra and other religious festivals that take place mainly in the countryside, notably in the
­municipalities belonging to the Region of the Cuiabá River Valley and Pantanal in Mato Grosso state. Listed

* Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso – Campus Cuiabá/Curso de Turismo Bachare­
lado. Email: leh.mainardi@gmail.com.
** Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso – Campus Cuiabá/NPGA. Email: zuleika.arru‑
da@cba.ifmt.edu.br.
*** Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso – Campus Cuiabá/NPGA. Email: nadir.bitten‑
court@cba.ifmt.edu.br.
**** Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso – Campus Cuiabá/NPGA. Email: arivan.
silva@cba.ifmt.edu.br.

135
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

as Brazilian Intangible Heritage by the Institute of National Historic and Artistic Patrimony (IPHAN), this
musical instrument is singular in relation to the form and sonority of having a pear-shape, approximately
58 cm to 78 cm in length and 10 cm depth and composed of five or six strings. The present work aims to
demonstrate the relevance of the viola-de-cocho’s way of making and its heritage value as well as the recogni‑
tion and appreciation of these cultural agents producing this knowledge for the formation and constitution
of a cultural identity.
Keywords: viola-de-cocho; musical instrument; art of making; cultural manifestation; intangible heritage.

INTRODUÇÃO
A viola-de-cocho (variante da viola regional brasileira) é um instrumento ­musical
essencial nas manifestações culturais e celebrações tradicionais e/ou divertimento,
­produzida por mestres artesãos, violeiros e cururueiros, que guardam conhecimentos
específicos do saber/fazer.
Instrumento típico do Pantanal de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, a viola-de-­
-cocho encontra-se como núcleo de difusão e prática desse saber fazer, nos municípios
pertencentes à Região do Vale do Rio Cuiabá e Pantanal mato-grossense. Essas regiões,
pertencentes ao bioma Cerrado e Pantanal, possuem a abundância de matéria-prima
necessária para a produção artesanal desse instrumento. A diversidade da fauna e flora
existentes nesses biomas, assim como o saber das comunidades tradicionais ribeirinhas
e pantaneiras, constituíram o amálgama para a produção de um instrumento musical
singular nesta região.
O termo «viola-de-cocho» está relacionado à técnica de escavação da caixa de
­ressonância da viola em uma peça de madeira inteiriça, a mesma utilizada na fabricação
dos «cochos», um recipiente regionalmente utilizado na zona rural para depositar o sal
e/ou outros alimentos que servem para saciar a fome do gado.
A historiografia aponta referências ao uso da viola-de-cocho em notícias no fi­ nal
do século XIX (1940) nos registros realizados pelo etnólogo alemão Karl Von den S­ teinen
a respeito das festas do cururu e da viola-de-cocho que ocorriam notadamente na r­ egião
de Rosário Oeste e Cuiabá, realizadas pelos índios Guatós. Ela era descrita como um
­violino de cordas de tripa, feito de madeira de salgueiro, chamado Koschó e também
como violino de cordas de arame. Mas foi Max Schmidt, outro etnólogo ­alemão, que
­registrou o que mais se aproximou à versão da viola-de-cocho atual, utilizada pelos
­índios Guatós na prática do cururu1.
Outra versão está relacionada à origem da viola-de-chocho ao legado português.
Anjos Filho2 defende a ideia de que a viola-de-cocho trata-se de uma adaptação da viola
de Braga e da guitarra portuguesa, que se abrasileirou por meio do uso de materiais e de

1
IPHAN, 2005.
2
ANJOS FILHO, 2002.

136
VIOLA-DE-COCHO: O SABER/FAZER QUE DÁ RITMO ÀS CELEBRAÇÕES MATO-GROSSENSES (BRASIL)

referências disponíveis no local à época como o cocho, a cola de póca de peixe e linhas
feitas a partir das fibras de uma palmeira conhecida como tucum3.
Segundo Anjos Filho4, no conhecimento popular é propalado que a viola-de-cocho
passou a ser confeccionada após o contato de um artesão ribeirinho, produtor de canoas
e de outros instrumentos em madeira local, com um viajante que chegou à comunidade
carregando uma viola. A experiência vivenciada fez com que o mesmo se apaixonasse
pela melodia emitida pelo instrumento e o desejo de adquirir um semelhante fez com
que o ribeirinho reproduzisse uma viola similar a partir da matéria-prima existente na
região e de seu conhecimento.
Embora produzida com pequenas variações de material de acordo com o ­artesão,
todos os materiais são típicos da região Pantaneira e do Vale do Rio Cuiabá, o que
­proporcionou o diferencial e reconhecimento da viola-de-cocho cuiabana e seu tomba‑
mento como Patrimônio Imaterial, assim como um elemento catalisador na construção
da identidade ribeirinha e pantaneira.
Tombado como Patrimônio Imaterial Brasileiro pelo Instituto do Patrimônio
­Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como Patrimônio Cultural do Brasil em 14 de
janeiro de 2005, por meio do Decreto-Lei 3551, de 4 de agosto de 2000, esse instru­
mento musical é singular em relação à forma e sonoridade por possuir um formato piri­
forme, de tamanho aproximado de 58 cm a 78 cm de comprimento e 10 cm de lateral e
­composto de cinco ou seis cordas, conforme figura abaixo.

Figura 1. Viola-de-cocho tradicional.


Foto: Antônio Siqueira.

3
IPHAN, 2005.
4
ANJOS FILHO, 2002.

137
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

A viola é composta pelas seguintes partes: palheta, pestana, pontos, cordas, tampo,
cavalete, corpo e cravelhas. Há dois tamanhos de viola-de-cocho, o tamanho padrão ou
standard, com 78 cm de comprimento, e a violinha de 60 cm de comprimento, como
pode ser observado abaixo.

Figura 2. Partes da viola-de-cocho.


Fonte: Joyce Arruda Aquino.

Para a confecção da viola utilizam-se madeiras de espécie regional, sendo as mais


utilizadas: a ximbuva, pinho cuiabano para o corpo e braço da viola; a figueira e o sarã para
o tampo, e o cedro-rosa, que é utilizado para fazer as palhetas, cravelhas e p­ estana. Esse
instrumento é fabricado também de outras madeiras, como a mangueira, cajá-manga,
imbiruçu, consideradas madeiras macias, o que proporciona uma excelente ressonância.
De acordo com Sasso5, a maior parte do processo de construção da viola se dá pelo
corte de uma tora de madeira bruta em pranchas, seguido pelo recorte e escavação dessa
prancha maciça de madeira, onde é desenhado a lápis o contorno da viola a ser escavada
como guia. Essa etapa é o que diferencia a viola-de-cocho das demais violas, que são
montadas de fora para dentro, ao invés da viola-de-cocho, que é montada de dentro
para fora, sendo a escavação que dará forma para a caixa de ressonância e o braço, com
exceção do tampo, como pode ser conferido a seguir.

5
SASSO, 2011.

138
VIOLA-DE-COCHO: O SABER/FAZER QUE DÁ RITMO ÀS CELEBRAÇÕES MATO-GROSSENSES (BRASIL)

Figura 3. Viola-de-cocho secando ao sol.


Foto: Zuleika Arruda.

Há duas etapas no processo de escavação: a primeira é a escavação rústica, que


retira os excessos de madeira dando o contorno à viola feito com a madeira ainda verde,
e a escavação de seu interior deixando uma borda de 1 cm; a segunda etapa é feita após
a secagem da madeira, que pode durar de 10 a 15 dias expostas ao sol, em seguida são
realizados os refinamentos, deixando a faixa lateral da viola com 3 mm de espessura e o
fundo com 5 mm, dando acabamento ao braço e à palheta.
A próxima etapa no processo de fabricação da viola consiste no tampo, retirado da
raiz da figueira, devendo ter aproximadamente 40 cm de largura por 60 cm de compri‑
mento e dois milímetros de espessura. Após a remoção da madeira é feito o contorno do
tampo com lápis usando como molde o bojo já entalhado da viola. Em seguida é feita a
colagem do tampo no bojo e, posteriormente, as partes que irão compor o instrumento
musical, como a palheta, a pestana, os pontos, as cordas, o cavalete e cravelhas.
Até a década de 1980, a viola-de-cocho era feita de maneira tradicional, com a cola
feita de póca (uma membrana respiratória dos peixes que, após fervida, cria uma liga), e
cordas construídas a partir de fibras de coco e, posteriormente, por tripas de pequenos
animais silvestres, como o macaco ou ouriços, que atualmente foram substituídas por
materiais industrializados como as cordas de nylon e colas industriais e instrumentos de
trabalho modernos.
Sasso6 pondera que as ferramentas tradicionalmente utilizadas para a confecção
da viola eram a faca, o enxó, a goiva, a plaina manual e o facão. Porém, atualmente
6
SASSO, 2011.

139
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

essas ­ferramentas tradicionais vêm sendo substituídas por ferramentas elétricas e a


­combustão como furadeira, serra tico-tico e motosserra, que facilitam o trabalho dos
artesãos/cururueiros.

Figura 4. Ateliê do artesão da viola-de-cocho em Rosário Oeste – MT.


Foto: Antônio Siqueira.

Após a confecção da viola, a próxima etapa consiste em lixar a madeira e, poste‑


riormente, envernizá-la ou não, ficando a gosto do fabricante, com ressalva para o tampo
da viola, que não pode ser envernizado, pois pode comprometer o som do instrumento.
Após a secagem do verniz é então colada a pestana, feita com madeira de roxinho, e o
cavalete feito de teca. Na palheta são feitos 8 furos para fixar cravelhas onde serão presas
as cordas. As cravelhas assim como a palheta possuem formatos diferenciados de acordo
com o fabricante, podendo assim identificar quem foi seu criador. As notas são dadas
por três pontos, que equivalem aos trastes, feitos com barbante tratado com cera de
abelha e as distâncias dos pontos em relação à pestana são: o primeiro 3 cm, o segundo
5 cm e o terceiro 7 cm. A última etapa consiste nas cavilhas na pestana para dar p­ assagem
às cordas, quatro cordas sendo de nylon e uma de aço, como pode ser observado na
­figura que segue.

140
VIOLA-DE-COCHO: O SABER/FAZER QUE DÁ RITMO ÀS CELEBRAÇÕES MATO-GROSSENSES (BRASIL)

Figura 5. Cururueiro colocando a corda de nylon na viola-de-cocho.


Foto: Zuleika Arruda.

A primeira corda é chamada de prima, feita com nylon 045; a segunda é chamada
contra e é feita com nylon 070; a terceira, chamada do meio, é feita com nylon 0100;
a quarta, chamada de canotilho, é feita com corda ré do violão de aço; e quinta corda,
­chamada corda de cima, é feita com nylon 080. Após a afinação a viola está pronta para
dar ritmo às festas e aos divertimentos tradicionais.

Figura 6. Cururueiro afinando viola.


Foto: Antônio Siqueira.

141
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

A viola-de-cocho, confeccionada artesanalmente e utilizada por músicos (curu­


rueiros) das camadas populares nas festas católicas da Região do Vale do Rio Cuiabá e
Pantanal Mato-grossense, é a que dá o ritmo às rodadas de cururu, às danças de s­ iriri
e de São Gonçalo e às manifestações do Boi-à-Serra. Embora a viola-de-cocho seja a
­sustentação harmônica do canto, essas manifestações populares apresentam estilos
­próprios no que tange à coreografia, música e poesia.
O cururu ou Função, quase sempre associado ao Siriri é um divertimento típico e
popular dos mais antigos de Cuiabá e de algumas outras cidades de Mato Grosso. Ele
se fez presente em muitas festas devocionais, demonstrando que práticas consideradas
pagãs ou próprias de negros escravizados ou alforriados misturavam-se com manifes‑
tações sagradas. Tocar, dançar e cantar o cururu dizem respeito a uma vinculação do
indivíduo com o santo. Nessa dança, é marcante a presença dos homens no desenvol‑
vimento dessa função. Dele participam pelo menos dois cantadores, um deles tocando
instrumentos musicais, como a viola-de-cocho, e o ganzá (instrumento de percussão
feito de taquara). O cururu é composto por maior número de cantadores, a maioria toca
a viola-de-cocho; os demais, o ganzá e o adufo, que consiste num pandeiro feito de couro
de cotia, veado ou outro animal. Os que não tocavam instrumento seguem dançando.
São comuns nas rodas de cururu os desafios, também chamados de porfias, ocasião em
que um cururueiro desafia, com versos, o outro que, como o primeiro, responde com
outro desafio.

Figura 7. No ritmo da viola, cururueiros dançando, cantando e trovando.


Foto: Zuleika Arruda.

O cururu é cantando sempre a duas vozes, sendo uma mais grave e outra mais
a­ guda. Os cantadores se colocam num semicírculo ou em roda e iniciavam a apresen­
tação com quadrinhas sobre a região.
O siriri é um dos folguedos mais populares do estado de Mato Grosso. Ele faz
parte das festas tradicionais e festejos religiosos que remetem às brincadeiras indígenas,
com ritmo e expressão hispano-lusitanos. Como instrumentos musicais, acompanham a
­viola-de-cocho, o cracacha (ganzá) e o mocho ou tamboril, conforme Figura 8.

142
VIOLA-DE-COCHO: O SABER/FAZER QUE DÁ RITMO ÀS CELEBRAÇÕES MATO-GROSSENSES (BRASIL)

Figura 8. A viola, o ganzá e mocho.


Foto: Zuleika Arruda.

O siriri é dançado em forma de roda, por crianças, homens e mulheres, que p


­ odem
estar sozinhos, em dupla ou em fileiras. Os movimentos são rápidos e ágeis acom­
panhados pelo bater de palmas e dos pés, pelas mãos na cintura, gingadas e rodadas
sobre os pés.

Figura 9. Siriri de Roda x Siriri em Fila.


Foto: Zuleika Arruda.

143
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

A dança reflete o modus vivendi simples e festivo das comunidades ribeirinhas e


sua coreografia transmite o respeito e o culto à amizade presentes nessas comunidades.
A viola-de-cocho, que embala os sons do cururu e as coreografias do siriri, faz parte das
manifestações folclóricas do Vale do Rio Cuiabá e Pantanal Mato-grossense.

DO SABER/FAZER QUE DÁ RITMO ÀS CELEBRAÇÕES


MATO-GROSSENSES AO VALOR SIMBÓLICO, PATRIMONIAL
E IDENTITÁRIO
Embora reconhecida pelo seu modo de fazer, a viola-de-cocho não representa
a­ penas um instrumento musical que embala os sons do cururu e as coreografias do siriri
e dança de S. Gonçalo, as festas de santos, os aniversários, os casamentos e as festividades
organizadas como pagamento de promessas. Ela possui um significado simbólico que
extrapola o lado funcional de um mero instrumento musical e constitui um elemento
catalisador da formação da identidade e manutenção da cultura das comunidades tradi‑
cionais rurais do vale do Rio Cuiabá e pantaneira.

Figura 10. Cururueiros comandando festa de Santo no município de Rosário Oeste (Alto Cuiabá).
Foto: Antônio Siqueira.

A viola-de-cocho, símbolo da identidade mato-grossense, é um objeto imbuído


de signos e significados que vão muito além de um mero instrumento musical. Para
o curureiro, a viola possui um valor simbólico, constituindo um instrumento sagrado
e um meio de contato com o divino. É um instrumento cuidado com muito respeito e
zelo pelos cururueiros, que aprenderam a arte de fazer e tocar com seus pais ou parentes
próximos e assim fazem com seus filhos, perpetuando a cultura.
Daí a relevância do entendimento dos signos existentes no objeto (a viola) como
uma forma de compreender os valores — as representações — dos artesões/curu­rueiros,
bem como os signos existentes nas práticas culturais associadas ao uso funcional da
­viola nos rituais e festas religiosas, nas danças, na música e nas coreografias, que se
constituem em representações do sagrado durante as festividades.

144
VIOLA-DE-COCHO: O SABER/FAZER QUE DÁ RITMO ÀS CELEBRAÇÕES MATO-GROSSENSES (BRASIL)

O processo de produção da viola-de-cocho é imbuído de saberes e fazeres, crenças,


rituais e devoções que estão implícitas no objeto produzido e que foram transmitidos
pela oralidade por diversas gerações evidenciando a relação com a natureza e a religio­
sidade existentes nas comunidades tradicionais do Vale do Rio Cuiabá e Pantanal.
Baudrillard7 chama a atenção para o fato de os objetos possuírem significados
­imanentes em que a funcionalidade não está ligada apenas à finalidade prática dos
­objetos, mas também à sua capacidade de fazer parte de um jogo de relações, ou seja, em
que os objetos passam continuamente do enfoque funcional para o simbólico dentro de
um determinado sistema cultural.
O papel das interações entre indivíduos e grupos constitui uma rede de signifi‑
cações em torno do objeto representado, o qual passa a ser integrado aos valores e às
práticas sociais dos grupos8. Essas representações sociais dizem respeito à produção dos
saberes sociais desenvolvidos no cotidiano e que pertencem ao mundo vivido e consti‑
tuem os modos de conhecimento, saberes do senso comum que surgem e se legitimam
na conversação interpessoal cotidiana e saberes cotidianos que pertencem ao mundo
social das comunidades tradicionais ribeirinhas e pantaneiras.
As comunidades tradicionais ribeirinhas/pantaneiras, com suas características e
especificidades locais, possuem um modo de viver e habitar representativo nos detalhes
arquitetônicos, na configuração espacial dos povoados voltados para o rio, nos quintais
com finais na margem do rio, pela prática de usar o rio como via de deslocamento.
O modo simples de viver, o conhecimento ecológico, os saberes e fazeres transmitidos
ao longo das gerações pela oralidade, a forte religiosidade, os laços prevalecentes de
­parentesco e um imaginário popular permeado de signos e símbolos provenientes da
água e religiosidade, são características prevalecentes nessas comunidades9.

Figura 11. Modus Vivendi Ribeirinho.


Foto: Antônio Siqueira.

7
BAUDRILLARD, 2008.
8
JODELET & PAREDES, 2009.
9
TAMIOZZO, 2019.

145
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

A água faz parte do seu cotidiano, representa-os, sendo dotada de signifi­cado


cultural. […] As comunidades tradicionais que habitam ao longo dos rios ou região
pantaneira, como sujeitos sociais, possuem representações que caracterizam seu
­grupo cultural e que foram instituídas, a partir de um imaginário social, construídas
em sua relação íntima com a dinâmica das águas. […] Para os moradores das comu-
nidades tradicionais ribeirinhas e pantaneiras a água é muito mais que um elemento
da paisagem natural, ela representa fonte de subsistência, de (re)produção da vida;
espaço do ócio e lazer, da religiosidade e das lendas e mitos10.

Assim como a dinâmica das águas, o ciclo das cheias e a seca interferem na vida
dessas comunidades circundadas pelas águas do Rio Cuiabá e do Pantanal, a­ ssociados
ao conhecimento popular, a arte de fazer a viola-de-cocho também está impreg­nada
de representações sociais que o homem tem com o meio ambiente. A retirada das
­madeiras a serem usadas na viola-de-cocho está relacionada à dinâmica da natureza,
pois acredita-se que o corte da madeira sofre influência dos períodos de seca e chuva,
assim ­também como o estágio da lua. De acordo com o saber popular, a madeira deve
ser cortada apenas na lua minguante evitando assim que rachem ou que sofram ataques
de insetos como cupins. Esses conhecimentos estão imbuídos no processo de produção
desse instrumento musical, que vão além do processo de fabricação e contribuem para a
manutenção da cultura e dos saberes relacionados à sua fabricação e execução musical.
A marca da paisagem pantaneira está implícita nas violas que são decoradas com
elementos da fauna e flora local, desenhadas a fogo e pintadas com tinta colorida, ou
bem branquinhas, na madeira crua, regional. Representativa das práticas culturais e
identidade cuiabana, a viola traz signos da religiosidade representados pelos adornos
usados pelos cururueiros. A título de exemplificação é uma prática comum entre os
cururueiros amarrarem fitas coloridas no cabo como da viola-de-cocho. Essa prática
indica o número de rodas de cururu em que a viola foi tocada em devoção a um santo,
conforme imagens abaixo.

10
TAMIOZZO, 2019: 6-8.

146
VIOLA-DE-COCHO: O SABER/FAZER QUE DÁ RITMO ÀS CELEBRAÇÕES MATO-GROSSENSES (BRASIL)

Figura 12. Símbolos e signos da fé e devoção ao santo na viola.


Foto: Zuleika Arruda.

Na simbologia católica cada cor representa a fé e devoção a um santo: o amarelo é


utilizado no dia de Nossa Senhora da Conceição, o verde no dia de São Gonçalo, o ­verde
e vermelho para S. Sebastião, o rosa para S. João, o vermelho para o Divino Espírito
­Santo, a branca para Nossa Senhora das Graças e o azul para S. Benedito.
A viola-de-cocho, desde sua fabricação, como mencionado acima, até o momento de
sua utilização dando ritmo às canções dos cururueiros, constitui um objeto extrema­mente
carregado de signos e de linguajar cheio de expressões e sotaque tipicamente ribeirinho.
Nas festas de santos realizadas nas comunidades tradicionais rurais, a presença dos
cururueiros é garantida. As festas, geralmente organizadas por devotos que se ­reúnem
em casa e convidam um grupo de cururueiros para tocar e dançar, seja para pagar
uma promessa atendida por um santo de sua devoção, seja como forma de demons‑
trar sua fé ou cumprir com a tradição de homenagear o santo de devoção anualmente.
No ­momento da ladainha os tocadores/cururueiros seguem todo um ritual religioso e,
­passado esse momento, eles se divertem fazendo repentes que exigem grande habilidade
para improvisar sobre temas reais de suas vivências.

147
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Figura 13. Participações diversas em rituais e festas religiosas — cururueiros.


Foto: Zuleika Arruda.

As toadas e repentes dos cururueiros são imbuídos de muitos significados (práticas


cotidianas, de fé e devoção ao Santo, etc.) que vão dando direcionamento às festas, desde
o seu início com o levantamento do mastro do santo ao qual é dedicada a festa até o seu
encerramento, com a retirada do mesmo, até os ritmos que comandam a coreografia das
danças. No universo dos cururueiros tocar a viola-de-cocho, dançar e cantar o cururu
diz respeito a uma vinculação do indivíduo com o santo.

148
VIOLA-DE-COCHO: O SABER/FAZER QUE DÁ RITMO ÀS CELEBRAÇÕES MATO-GROSSENSES (BRASIL)

Figura 14. A devoção e homenagem ao santo.


Foto: Zuleika Arruda.

A viola que dá ritmo às toadas dos cururueiros e às danças de Siriri e São Gonçalo
são extremamente constituídas de um linguajar cheio de expressões e sotaque tipica‑
mente ribeirinho. A oralidade, o improviso dos repentistas das trovas e cantorias e a
ritualização do festa também constituem características marcantes nesse grupo social.
Mesmo destituídos do conhecimento formal, reproduzem frases de origem latina nos
rituais religiosos adquiridos pela oralidade. Consideramos que a memória coletiva em
conjunto com a oralidade constitui uma forma de preservação e reprodução da sabe‑
doria do patrimônio cultural local. Além da importância linguística estão envolvidos
diversos significantes relacionados ao lugar de pertencimento desse instrumento, que
são produzidos com materiais disponíveis na região e sofrem influencias geoculturais
do lugar onde são confeccionadas.
De acordo com o dossiê do Iphan11, há dois tipos distintos de tocar a viola-de-­
-cocho: os chamados sotaques rio-acima ou a viola-rio-acima, em referência ao trecho
do rio Cuiabá em direção à nascente e formado por corredeiras que impedem a nave­
gação, e sotaques rio-abaixo ou viola-rio-baixana, que corresponde ao trecho n ­ avegável
do rio a partir da cidade de Cuiabá em direção ao Pantanal e sua foz. No trecho deno‑
minado rio-acima a viola-rio-acima é tocada em ritmo mais lento e, em conse­quência,
o cururu tem também andamento mais moderado. No trecho denominado de rio-
-abaixo, a viola é tocada em andamento mais vivo refletindo no ritmo do cururu.
As diferenças de andamento são acompanhadas por maneiras diferentes de dançar o siriri
nessas localidades.

11
IPHAN, 2005: 25.

149
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Na atualidade, a (re)produção do saber fazer da viola-de-cocho está comprometida


devido à substituição da matéria-prima de origem animal pelos materiais industriali‑
zados e por uma legislação ambiental que determina o corte de árvores à medida que
dificulta o licenciamento e o acesso dos artesãos/cururueiros à matéria-prima neces‑
sária à confecção da viola. Essa questão relacionada ao patrimônio ambiental ocorre
­devido ao fato de a viola-de-cocho ser tradicionalmente confeccionada por madeiras
com ­qualidades muito específicas ou animais silvestres, protegidos por lei.
Outro aspecto está relacionado ao envelhecimento da população masculina e
­portadora desse conhecimento da arte de fazer esse instrumento. À medida que os curu‑
rueiros vêm envelhecendo, reduz-se o número de fabricantes e tocadores e a população
jovem apresenta pouco interesse em dar continuidade ao saber fazer da viola-de-cocho,
assim como a sua musicalização.
Diante desses fatos e, também, do crescente reconhecimento da viola-de-cocho
como um símbolo da identidade do Estado de Mato Grosso, o Centro Nacional de
­Folclore e Cultura Popular/CNFCP utilizou a metodologia do Inventário Nacional
de Referências Culturais/ INRC para a sistematização de dados, levantamento, identifi­
cação e localização de documentos e referências sobre a viola-de-cocho12 necessários
para sua incorporação no Livro de Saberes.
Segundo o Dossiê do IPHAN13 o processo de reconhecimento da dimensão patri‑
monial dos saberes e fazeres engendrados no modo de fazer da viola-de-cocho constitui
um dos caminhos viáveis para o reconhecimento social e da valorização de indivíduos
e grupos que vêm sendo regularmente colocados à margem do processo histórico de
construção da identidade e da cultura brasileira.
O seu tombamento como patrimônio imaterial cultural significou o reconheci‑
mento pelo Estado do valor cultural desse saber/fazer para a construção da identidade
cultural, bem como a consolidação do desejo do poder público de construir uma repre‑
sentação cultural identitária para Mato Grosso.
Com esse processo de patrimonialização e o cenário socioeconômico da socie­
dade contemporânea, a arte de fazer da viola-de-cocho é (re)significada com reflexos na
­produção de novos objetos e expressões culturais a elas associadas como o siriri e o cururu.
O «siriri de fundo de quintal», vinculando as sociabilidades festivas que articulam
em seu interior como as relações de parentesco e vizinhança, se converte na espetacula‑
rização da cultura por meio da representação do modus vivendi e práticas culturais do
ribeirinho representados nos objetos culturais e nos adornos utilizados nas coreografias
como o chapéu, a peneira, a rede, a canoa, o mocho, o pote, o pilão, etc., que passam a ser
representativas nos festivais culturais como símbolo da cultura mato-grossense.

12
IPHAN, 2000.
13
IPHAN, 2005: 19.

150
VIOLA-DE-COCHO: O SABER/FAZER QUE DÁ RITMO ÀS CELEBRAÇÕES MATO-GROSSENSES (BRASIL)

Figura 15. Siriri estilizado (Grupo Flor Ribeirinha).


Foto: Zuleika Arruda.

A representação da viola-de-cocho como símbolo da cultura mato-grossense faz


também com que surja um novo nicho no mercado para a produção padronizada de
novos objetos culturais para atender ao mercado turístico por meio da confecção
de ­souvenir como chaveiros, ímãs de geladeira e pequenas violas com inscrições cripto­
grafadas como recordações para os turistas. A funcionalidade do objeto (viola-de-
-cocho) passa a ser imbuído de novos signos e se converte em uma mercadoria cultural
que passa a ser valorizada como um dos símbolos de identidade mato-grossense.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
É inegável a relevância do tombamento da viola-de-cocho como Patrimônio
Imate­rial Brasileiro e como signo identitário da cultura mato-grossense. Entretanto
o seu tombamento como patrimônio imaterial não deve ser concebido apenas pelo
risco de desaparecimento desse um instrumento musical singular e especial em relação
à forma e sonoridade. O seu valor patrimonial transcende a produção material como
­simples instrumento musical à medida que possui um valor simbólico tanto para o
­artesão/cururueiro quanto para os demais membros da comunidade que participam das
­práticas socioculturais cotidianas mediatizadas pela viola-de-cocho. A viola está presen‑
te nos momentos de lazer e na reza, sofrimento e agradecimento. É um instrumento que
faz parte do cotidiano dessas comunidades, das suas vivências e suas memórias sociais.
Apesar das ameaças de desaparecimento, tanto do instrumento musical quanto da
sua musicalidade e celebrações culturais associadas, a viola-de-cocho vai sendo produ‑
zida e tocada quase que exclusivamente pelas comunidades tradicionais rurais, que têm

151
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

se mantido fiel à sua origem, no seu modo de saber/fazer e cantar presentes nos ritos e
festejos religiosos e profanos. A oralidade presente nesse grupo social, o improviso dos
repentistas das trovas e cantorias e a ritualização da festa também representam uma
forma de manutenção da cultura à medida que (re)produzem um saber transmitido por
seus antepassados.
Nesse sentido é que o saber/fazer da viola-de-cocho que dá ritmos às celebrações
mato-grossense deve ser preservado, pois é por meio da música produzida nessas práticas
culturais que a viola revela a sua identidade e marca a cultura do povo mato-grossense.

BIBLIOGRAFIA
ANJOS FILHO, Abel Santos (2002) — Uma melodia histórica: eco, cocho, cocho-viola, viola-de-cocho.
­Cuiabá: Ed. do Autor.
ARRUDA, Rinaldo (1999) — Populações tradicionais e a proteção de recursos naturais em unidades de
­conservação. «Ambiente & Sociedade». Ano II, n.º 5, 2.º Semestre. Disponível em <http://www.scielo.
br/pdf/asoc/n5/n5a07>. [Consulta realizada em 07/06/2018].
BAUDRILARD, J. (2008) — O Sistema dos Objetos. Trad. Zulmira Ribeiro Tavares. 5.ª Ed. São Paulo:
­Perspectiva.
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN (2000) — Inventário Nacional de Referên-
cias Culturais: manual de aplicação. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
(2005) — Dossiê Iphan: modos de fazer da Viola de Cocho. Brasília: Centro Nacional de Cultura
Popular. Disponível em <http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossie_modo_fa‑
­
zer_viola_cocho.pdf>. [Consulta realizada em 16/09/2018].
(2013) — Educação Patrimonial: Manual de aplicação: Programa Mais Educação/Instituto do Patri­
mônio Histórico e Artístico Nacional. Brasília: Iphan/DAF/Cogedip/Ceduc.
JODELET, Denise; PAREDES, Eugênia C. (2009) — Pensamentos míticos e representações sociais. Cuiabá:
EdUFMT/FAPEMAT/EdUNI, 266 p. (Coleção Educação e Psicologia; v. 13).
SASSO, Wilson (2011) — Manual de construção da viola de cocho. Curitiba: Ed. do Autor.
TAMIOZZO, Letícia Mainardi (2019) — As narrativas dos mitos e lendas como estratégia para a elaboração
de rota turística cultural no vale do rio Cuiabá, Mato Grosso – Brasil. Cuiabá: Instituto Federal Mato
Grosso – Octayde Jorge da Silva. Artigo de conclusão de curso.

152
CARTOGRAFIA DOS LUGARES DE
RESISTÊNCIAS DOS MODOS DE FAZER DA
REDE DE DORMIR: REDEIRAS DE VÁRZEA
GRANDE (MT) — BRASIL
LAURENICE LOPES DE SOUZA*
NADIR F. B. BITTENCOURT**
ZULEIKA ALVES DE ARRUDA***

Resumo: A rede de dormir é um tipo de leito herdado do saber/fazer dos indígenas, originalmente tecida da
fibra da palmeira tucum e buriti, cipós e algodão, de formato retangular e suspenso por duas extremidades
por meio de punhos. A historiografia regista que foram as mulheres dos colonos portugueses que adapta‑
ram a técnica indígena por meio da substituição das fibras vegetais pelo algodão, assim como incorporaram
varandas (guarnições laterais da rede) e franjas ornamentais nas redes. Em Mato Grosso, a tradicional arte
de tecer rede de dormir é evidenciada nos municípios que pertencem ao Vale do Rio Cuiabá, nas comuni‑
dades rurais do município de Várzea Grande. As redes produzidas se diferenciam da produção de outras
redes e tecidos artesanais pela urdidura realizada em teares verticais, com tecedura de baixo para cima e pelo
tecido grosso resultante da trama, um legado da etnia Guaná. O presente trabalho objetiva cartografar os
lugares de resistências, as (re)significações do modo de saber/fazer da Rede Cuiabana e os entraves enfren‑
tados pelas artesãs para a comercialização do produto.
Palavras-chave: rede de dormir; saber/fazer; resistência; (re)significação.

Abstract: The sleep hammock is a type of hanging bed whose knowledge is part of the indigenous ­cultural
heritage in Brazil. Originally these artifacts were made by weaving vegetal fibers as palm trees and c­ otton and
were rectangular shaped objects. The Brazilian historiography also registers that the Portuguese wives were
responsible for adapting the indigenous weaving technology by replacing the palm trees fibers by c­ otton
fibers and introduced the macramé hangings (varandas) in the hammocks sides and decorative fringes as
well. In Mato Grosso State the art still resists in several communities placed around Cuiabá River valley in

* Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso — Campus Cuiabá/Curso de Turismo Bachare‑
lado. Email: lopes.laurenice@gmail.com.
** Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso — Campus Cuiabá/NPGA. Email: nadir.bitten‑
court@cba.ifmt.edu.br.
*** Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso — Campus Cuiabá/NPGA. Email: zuleika.
arruda@cba.ifmt.edu.br.

153
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Mato Grosso State. However, this practice is more intensive in some communities located in the rural area
of Varzea Grande municipality due to their extraordinary artistic beauty. This research aims to map the
­communities where hammocks artisans are still resisting and commercialization.
Keywords: sleep hammock; traditional knowledge; resistin.

INTRODUÇÃO
A rede de dormir é um tipo de leito herdado do saber/fazer dos indígenas, original­
mente tecida da fibra de palmáceas e algodão, de formato retangular e suspenso por duas
extremidades por meio de punhos. A historiografia registra que foram as mulheres dos
colonos portugueses que adaptaram a técnica indígena por meio da substituição das
fibras do tucum pelo algodão, assim como incorporaram varandas (guarnições laterais
da rede) e franjas ornamentais nas redes.
Esse tipo de leito somente passou a ser denominado de rede quando os portu­gueses
adentraram o território brasileiro no ano de 1500. O escrivão Pero Vaz de Caminha, ao
descrever os hábitos e costumes indígenas para o Rei Dom Manuel, a nomina rede em
referência à rede de pescar portuguesa, no dia 27 de abril, sem ao menos considerar que
a mesma pudesse ter outra denominação. Segundo Holanda1 «esses leitos maneáveis e
portáteis constituíram objeto de ativo intercâmbio com os naturais da terra», bem como
foi amplamente incorporado no cotidiano dos recém-chegados por meio da prática do
costume de dormir em rede.
Em Mato Grosso, os disseminadores da rede foram os bandeirantes paulistas que
as carregavam em suas incursões para o interior da capitania mato-grossense no final
do século XVII nos apresamentos indígenas e a partir do século XVIII, durante o ciclo
mineiro. A situação de isolamento geográfico nesse período contribuiu para a produção
de uma rede singela e sem muitos adornos2.
Peça utilitária fundamental em todo o período colonial, «o leito da terra» foi usado
até a primeira metade do XIX por administradores da coroa portuguesa, padres, comer­
ciantes, senhores de terra, bandeirantes, colonos, caboclos e viajantes. No caso de Mato
Grosso, essa utilidade transcorre até a segunda metade do século XX. Com efeito, o
cônego Vicenzi em visita à Cuiabá, no início de 1920, segundo Leonzo3 observa que
não existia o uso da cama como leito por estes ermos. E, que o autor ao descrever o
cotidiano da cidade, pondera «as casas estavam aparelhadas para abrigar, se necessário,
diversas redes armadas, havendo, particularmente em Cuiabá e em Poconé, uma espécie
de ­indústria desses objetos destinados ao repouso».

1
HOLANDA, 2008.
2
HOLANDA, 2008.
3
LEONZO, 2004.

154
CARTOGRAFIA DOS LUGARES DE RESISTÊNCIAS DOS MODOS DE FAZER DA REDE DE DORMIR:
REDEIRAS DE VÁRZEA GRANDE (MT) — BRASIL

Nesse período, até o final da primeira metade do século XX, as artesãs domi­
navam todo o processo produtivo, desde as etapas do plantio do algodão, passando ao
desca­roçamento, cardamento, fiamento, tingimento, enovelamento e, por fim, a própria
­confecção da rede. Toda essa tecnologia resultou num modo de produção singular em
que o tecido artesanal se destacava pela sua firmeza e espessura, característica resultante
do tipo particular da trama sem avesso que era urdida em tear vertical, com tecedura de
baixo para cima.
Signo da artesania mato-grossense, a rede de dormir cuiabana é confeccionada em
uma trama firme e um tipo de bordado denominado de lavrada. A memória coletiva do
modo de saber/fazer da Rede Cuiabana é um legado da etnia Guaná em seu processo
de reterritorialização, por volta da primeira metade do século XIX, na margem direita
do rio Cuiabá, em frente ao atual bairro do Porto4. A territorialidade desse saber/fazer
encontra-se nos municípios que pertencem ao Vale do Rio Cuiabá, mas são nas comu­
nidades rurais do município de Várzea Grande e principalmente na comunidade de
Limpo Grande que a rede conquista o mercado regional pela sua beleza artística.
O presente trabalho objetiva cartografar os lugares de resistências, as (re)signifi­
cações do modo de saber/fazer da Rede Cuiabana e os entraves enfrentados pelas artesãs
para a comercialização do produto.

TECENDO OS CAMINHOS, A TERRITORIALIDADE E AS


URDIDURAS DA REDE CUIABANA: O SABER/FAZER
No imaginário coletivo das comunidades tradicionais e ribeirinhas do Vale do Rio
Cuiabá e, fortemente propalado no município de Várzea Grande, a Rede Cuiabana é de
origem da etnia Chané-Guaná de língua Aruak. Cujo território imemorial era o Chaco
Paraguaio, migrando no século XVIII, para as margens do rio Paraguai e, por volta de
1819 migraram novamente, em processo de (re)territorialização, em aldea­mento volun‑
tário, para a margem direita do rio Cuiabá, atualmente município de Várzea Grande.
­Silva5 analisa o encantamento do desenhista Hercule Florence da Expedição ­Langsdorff
em relação às redes durante sua passagem por Cuiabá em 1827. Sua obra regista esse
saber/fazer de forma detalhada, destacando a originalidade da arte e trama do tecido
da rede e dos «panões» produzidos pelas mulheres guanás, que utilizavam quadrados
e réguas de madeira e empregavam uma técnica única e singular de unir até 1000 fios
verticais, tramados inteiramente na horizontal, formando uma trama fechada. O tecido
poderia ser tingido utilizando-se pigmentos minerais e vegetais. Observa ainda o autor
que as técnicas e os utensílios das mulheres guanás eram os mesmos empregados pelas
mulheres cuiabanas para tecer as redes de dormir.

4
SILVA, 2001.
5
SILVA, 2001.

155
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

A Rede Cuiabana, confeccionada em algodão natural, era produzida em dois


t­ ipos: a lisa feita de algodão cru na cor natural e sem adornos, e a listrada, que ­também
era ­confeccionada a partir de algodão cru, porém tingida com folhas, raízes, cascas
de p ­ lantas locais, como as folhas da negramina e as cascas do chico magro, que eram
­amplamente utilizadas para tingir o tecido tramado. Estes eram os tipos mais comuns,
produzidos para o uso doméstico dos menos abastados.
A partir do acesso aos novelos de linhas industrializadas, na segunda metade do
século XX, as artesãs passam a produzir a rede lavrada, ou seja, bordada, colorida e com
mais adornos. Nesse processo constata-se a ressignificação do saber/fazer da rede
com a presença do uso de amostras de bordados de domínio doméstico de cada a­ rtesã e
de famílias abastadas que tinham sob sua tutela redeiras/artesãs exclusivas para ­tecer suas
redes. De acordo com as habilidades de cada redeira/artesã em manipular os ­bordados e
monogramas, as redes eram confeccionadas como presentes (redes de presente) ou para
uso familiar6.
Palma7 pondera que o modus operandis do uso da Rede Cuiabana também está
na composição do imaginário do século XX, mais precisamente no período de p ­ oderio
das famílias locais, quando a rede passa de peça utilitária para objeto de poder. Em
uma s­emântica imagética, constitui-se em status sendo produzida nas cores branca e
preta a serem presenteadas exclusivamente aos ilustres da terra como políticos, padres,
­médicos, compadres, nubentes e visitantes à cidade de Cuiabá. O mesmo se dava com
a confecção de redes com desenhos tramados/bordados que traziam inscrições com o
oferecimento, datas para serem lembradas, nomes entrelaçados e/ou descrições signifi­
cativas, reservando-se às redeiras mais habilidosas o privilégio de tecer as redes que
­seriam presenteadas.

6
PALMA, 1996.
7
PALMA, 1996.

156
CARTOGRAFIA DOS LUGARES DE RESISTÊNCIAS DOS MODOS DE FAZER DA REDE DE DORMIR:
REDEIRAS DE VÁRZEA GRANDE (MT) — BRASIL

Figura 1. Redes lavradas com amostras (bordadas) permanentes e ressignificadas.


Fonte: Arruda (2018).

Parafraseando Baudrillard8, esse valor simbólico, agregado ao valor funcional


dos objetos de consumo, possui o objetivo de acompanhar as mudanças das estruturas
­sociais e interpessoais premente na sociedade, ou seja, constitui um reflexo da sociedade
e dos seus tempos. No caso da sociedade mato-grossense, a rede constitui um objeto
imbuído de valor funcional agregado ao valor simbólico.

A TERRITORIALIDADE DO SABER FAZER DA REDE CUIABANA


A territorialidade da Rede Cuiabana encontra-se nos municípios que pertencem
ao Vale do rio Cuiabá, mais precisamente nas comunidades de Várzea Grande. ­Nessas
­comunidades foi construída uma teia de relações de poder, primeiro por meio da
reterrito­rialidade dos guanás, segundo por ocupar determinados territórios especiali‑
zados na produção da rede cuiabana e terceiro pelo compartilhamento de saberes de
sua cultura material e imaterial, além de estar manifestada nas relações cotidianas
de trabalho e casamento entre a população tradicional. A comunidade de Limpo Gran‑
de, na atualidade, é a representante da resistência desse saber.
A comunidade rural de Limpo Grande, reduto das redeiras, pertence ao muni­
cípio de Várzea Grande, a 23 km do seu centro urbano. O acesso se dá pela Rodovia dos
­Imigrantes no km 517. Dentro da jurisdição do município de Várzea Grande, a comu­
nidade de Limpo Grande pertence ao distrito de Capão Grande, antiga sesmaria do
Capão do Pequi.
8
BAUDRILLARD, 2000.

157
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Figura 2. Cartografia das resistências das redeiras de Limpo Grande – Várzea Grande MT.
Fonte: Arruda (2018).

Limpo Grande se constituiu por volta de 1946 e, dois anos após o surgimento, foi
incorporado ao município de Várzea Grande. Todavia, a comunidade está culturalmente
mais interligada à comunidade de Ribeirão do Cocais, pois as três principais famílias
formadoras de Limpo Grande derivam desse distrito. Assim, mantêm-se estreitas rela‑
ções de parentescos, obrigações de compadrio e festividades em devoção aos santos(as)
com os antigos moradores de Ribeirão dos Cocais no município de Nossa Senhora
do Livramento.
A prática cultural de fazer a rede, de baixo para cima e sentada no chão junto
ao tear, se faz presente no cotidiano e na paisagem cultural da comunidade de Limpo
­Grande, onde uma parentela e ou comadres se organizavam e ainda se organizam para
confeccionar redes, xales, tapetes ou caminhos de mesa.

158
CARTOGRAFIA DOS LUGARES DE RESISTÊNCIAS DOS MODOS DE FAZER DA REDE DE DORMIR:
REDEIRAS DE VÁRZEA GRANDE (MT) — BRASIL

Figura 3. Artesã tecendo sentada junto ao tear vertical e produção de jogo de mesa, tapetes e xales.
Fonte: Souza (2018).

Compondo o mobiliário da residência dessas artesãs, notadamente na sala, encon‑


tra-se o tear vertical que ocupa um lugar de destaque, juntamente com os novelos de
linha e amostras, apetrechos do tear como a espichadeira, o buriti, a abrideira, as taqua‑
rinhas de trocar os fios, a batedeira e o puçá de fazer a varanda.
Em Limpo Grande, nas casas das artesãs/redeiras mais velhas, há sempre um
nicho/oratório em devoção ao santo(a) da família, juntamente com imagens de Santa
Clara e Santa Luzia, que representam as duas festas religiosas organizadas pela comuni‑
dade. Essas festas são tradições que mantêm, atual, o antigo sistema de relações parentais
e de compadrio, materializado nas obrigações, organização e feitura da festa.
O universo das tecelãs está imbuído de signo, símbolo, significante e significado.
Não é apenas no saber/fazer da rede que estão impressas a cultura e a identidade dessa
comunidade, mas também no linguajar singular que envolve o processo produtivo. Há
um vocabulário específico usado no cotidiano das artesãs como [sic]: enovelar, urdir,
encastôo, troque, lavrado, amostra, bilros, tecer de ganho, rederas, corte de fio, tecer,
punho, sobrepunho, cadarcinho, travessado, canto, liço, puçá, meeiro, limpinho, guarda
ou cercadeira, varanda, urdume, subideira, topinho e, os apetrechos tear, buriti, cunhas,
puçá, tear, abrideira e taquarinhas. Esse linguajar está vinculado ao modo de fazer da
rede e ao cotidiano das redeiras.
A respeito do particular ato de falar, Certeau9 observa que esse ato se produz na
fabricação do cotidiano, mas não se coadunando com as chamadas «normas da língua
culta». Assim é que no cotidiano se constroem ‘performances’ de falas, imagens que

9
CERTEAU, 1994.

159
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

esses usuários criam ao partilharem suas experiências. E ‘essas maneiras de fazer’ consti‑
tuem as mil práticas pelas quais os usuários se (re)apropriam do espaço organizado pelas
técnicas da produção sociocultural.
A matriz cultural que contribui para a transferência e transmissão do saber/fazer
a rede de uma geração para outra é a mesma que medeia as tramas e urdiduras desse
saber/fazer. Holanda10 constatou, no ano de 1946, na paisagem cultural das comuni­
dades produtoras da rede na região de Cuiabá/Várzea Grande, que as artesãs detinham
na memória um variado número de desenhos e demonstravam uma grande perícia e
exclusividade em tramar combinações das amostras. O domínio dessa habilidade era
motivo de honra ou dignidade profissional, possibilitando a posição de destaque como
a «melhor redeira».
Quanto a esse destaque, registra a máxima expressão que «redeira de um desenho
só merece pouco caso», cabe lembrar, que essa expressão somente se adequa, naquele
contexto histórico, pois na atualidade novos rearranjos produtivos surgem na confecção
da rede alterando a paisagem, a dinâmica espacial e produtiva dessa comunidade.
Na realidade, o processo produtivo atual tem se configurado em uma nova d ­ ivisão
social do trabalho, marcado pela especialização de tarefas como: urdir, lavrar, fazer
­punho e sobrepunho, fazer a guarnição da varanda no puçá, tear retangular onde se
executa a técnica de filé e tramar determinadas amostras.

Figura 4. Composição das varandas com motivos tradicionais e (re)significados e um dos tipos de punho trançado.
Fonte: Arruda (2018).

10
HOLANDA, 2008.

160
CARTOGRAFIA DOS LUGARES DE RESISTÊNCIAS DOS MODOS DE FAZER DA REDE DE DORMIR:
REDEIRAS DE VÁRZEA GRANDE (MT) — BRASIL

Esta especialização que surge para atender à lógica de um mercado consumidor


emergente, foi engendrada pelos comerciantes que financiavam a produção da rede,
com a matéria-prima da linha industrializada, como estratégia para reduzir o tempo de
confecção, que acabou por provocar a fragmentação do saber/fazer das artesãs.
Corroborando a lógica desse mercado emergente de outros estados consumi­
dores da rede de dormir, o processo produtivo passou a incorporar o uso de linhas
indus­trializadas com cores vibrantes na confecção das redes, notadamente nas matizes
­verdes, rosas, azuis, amarelas e lilás, e também pela presença de desenhos bordados com
­elementos da paisagem natural e cultural de Mato Grosso.

Figura 5. Rede com elementos da paisagem natural mato-grossense.


Fonte: Souza (2018).

161
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Houve também a mudança dos bordados geométricos gregos existentes na guarda


do meeiros (borda da rede) por flores e aves ou pela combinação dos dois elementos,
como pode ser observados nas figuras 1 e 5.

Figura 6. Rede sendo tecida no tear vertical com motivos da fauna pantaneira e tapete com bordado floral.
Fonte: Souza (2018).

As artesãs/redeiras têm preferências declaradas por cores e desenhos que, no


c­ onjunto, formam um estilo particular que as identificam. São as ‘carreiras’, isto é, a
compo­sição de redeiras que tanto pode ser formada por laços de mãe e filha, nora e
­sogra, quanto por laços de amizade e compadrio, que marcam suas preferências estéticas
e afetivas. Observa-se que essas suas relações interpessoais são construídas no processo
de confeção da rede configurando-se como uma complexa rede de ambiência.
Esse universo feminino de amostras, urdiduras, teceduras, tramas, bordados e
­linhas coloridas, vem sendo mescladas com a presença de tessituras (estratégias) incor‑
poradas à vida cotidiana e ao processo produtivo conferindo no espaço-tempo visibili‑
dades e legibilidades nas relações sociais da comunidade tecelã11.
Parafraseando Certeau12, no cotidiano há sempre atores, no caso as redeiras, que
­seriam esses agentes produtivos que tramam urdiduras nos seus fazeres da vida c­ otidiana,
permeando-as com reinvenções de um «cotidiano que se inventa com mil maneiras de
caça não autorizada».
No processo evolutivo da rede, este objeto inicialmente era caracterizado pela sua
bidimensionalidade estrutural, por ser constituído basicamente por linhas verticais
­(urdidura) e horizontais (trama). Enquanto permaneceu como um utensílio na função
de leito de dormir e transporte, a rede expressava basicamente essa estrutura, sendo
­produzida apenas nas variedades lisa (cor única) ou listrada (duas cores)13.

11
SOUZA, 2018.
12
CERTEAU, 1994.
13
SOUZA, 2018.

162
CARTOGRAFIA DOS LUGARES DE RESISTÊNCIAS DOS MODOS DE FAZER DA REDE DE DORMIR:
REDEIRAS DE VÁRZEA GRANDE (MT) — BRASIL

A partir do momento que a função da rede desloca do valor utilitário cultural/sim‑


bólico para objeto decorativo/estético, novos elementos (signos) são agregados e passam
a compor sua tridimensionalidade, com a urdidura (vertical), trama (horizontal) e o
bordado, terceira dimensão, entremeado na urdidura e trama do tecido, bem como as
varandas que guarnecem suas bordas. Essas dimensões estéticas são corroboradas por
diferentes cores e desenhos (amostras), com apelo da comunicação visual da paisagem
natural do Pantanal, procurando transformá-la em um produto para o turismo. M ­ esmo
com a inserção desses novos motivos, ainda não houve o esperado retorno finan­ceiro
para as artesãs/redeiras de Limpo Grande na comercialização, venda mais célere, e
­visibilidade de produção de uma artesania singular e ímpar do artesanato brasileiro14.
A identificação e a identidade da comunidade de Limpo Grande estão vinculadas ao
saber/fazer da rede cuiabana, uma vez que essa comunidade passa a ser reconhecida e
identificada como o lugar de produção da rede. Se foram as mulheres guanás que ensi­
naram as mulheres de Limpo Grande a tecer ou se esse saber fazer vem de outra ­fonte
não importa, pois a matriz cultural guaná permanece como referência simbólica da
identidade da rede que se tece em Limpo Grande.

O SABER/FAZER DAS REDEIRAS: RESISTÊNCIA E ENTRAVES


PRODUTIVOS
O saber/fazer da Rede Cuiabana perdura há algumas gerações. Até meados da
­segunda metade do século XX, as artesãs dominavam todo o processo de produção
da rede, que consistia em plantar e cultivar o algodão, bem como descaroçar, c­ardar,
­enovelar e tingir o fio. A matéria-prima utilizada pelas artesãs, após o advento da
­linha industrializada, é adquirida nos comércios especializados existentes em Cuiabá e
Várzea Grande.
No processo de produção da rede, os entraves atuais estão relacionados à dificul‑
dade de aquisição da linha industrializada, que é a matéria-prima desse artesanato, e à
comercialização final dos produtos. O alto custo da linha industrializada necessária
à produção de redes de alta qualidade e de preço final elevado acaba diminuindo a renda
das redeiras, o que compromete a sobrevivência do artesanato.

Tabela 1. Resistências e resiliência das redeiras em Limpo Grande – VG 2018.

Concilia a arte Especialista


Ativas Aposentadas Ensina a arte com outra em partes Total
atividade da rede
23 07 02 08 09 49

Número de redeiras resistentes no ano de 2005 80

14
SOUZA, 2018.

163
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

O quadro social atual da comunidade de redeiras de Limpo Grande está resumido


na Tabela 1. Nos levantamentos de campo foram encontradas 49 artesãs em atividade,
um número que representa 60% do encontrado por Campo15, indicando uma tendência
de decréscimo. Por outro lado, o levantamento também indicou que cerca de metade
­delas (23) dedica-se exclusivamente à tecelagem. Quanto ao ensino da arte, foi encon‑
trada uma artesã que ensina na Casa de Artes e Ateliê de Várzea Grande e outra que
ensina na escola municipal da comunidade de Limpo Grande, para o público infantil,
num caráter mais recreativo.
Portanto, o aprendizado mais importante acontece de forma tradicional no âmbito
da família. O levantamento detetou também que algumas artesãs conciliam a tecelagem
com trabalho informal em outras atividades, principalmente como diaristas. Portanto,
no conjunto, percebe-se um quadro bastante precário para a manutenção dessa arte, que
só existe graças à capacidade das artesãs em sobreviver conciliando seus saberes especia‑
lizados com o meio envolvente.
Além disso, o baixo poder aquisitivo da maioria das redeiras gerou uma relação
assimétrica entre esse grupo social e as lojas especializadas na comercialização da ­linha
industrializada. Primeiramente, as redeiras não dispõem de recursos excedentes para
a aquisição da matéria-prima, além disso as artesãs mais jovens, destituídas das estra‑
tégias de reprodução social, passaram a se empregar como trabalhadoras assalariadas
em outras atividades econômicas, desistindo de dar continuidade ao saber/fazer da
Rede Cuiabana.
A falta de ações e projetos que propiciem alternativas para a manutenção da ativi‑
dade, pelos órgãos institucionais do município de Várzea Grande e Secretaria de Cultura
e Turismo do Estado de Mato Grosso, é explicado por Canclini16 como tradiciona­lismo
substancialista, onde pequenas intervenções de garantia de preservação das práticas
tradi­cionais são simuladas em cumplicidade social pelos setores oligárquicos locais.
Precisamente, como prestígio simbólico, dom de saber/fazer, que não cabe discutir e, ou
promover efetivas ações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As artesãs de Limpo Grande, principal polo produtor da Rede Cuiabana no
c­ ontexto da região do vale do rio Cuiabá, que resistem em resguardar seu modo de tecer,
sentadas no chão e/ou em um banquinho, junto ao tear e demais apetrechos, compõem
uma simbologia secular de criatividade artesanal transmitida de geração em geração,
baseada na observação e na prática no âmbito familiar. Prática esta que perdura histori‑
camente, sem perder a originalidade, a qualidade e a singularidade no processo do fazer.

15
CAMPO, 2006.
16
CANCLINI, 1997: 160.

164
CARTOGRAFIA DOS LUGARES DE RESISTÊNCIAS DOS MODOS DE FAZER DA REDE DE DORMIR:
REDEIRAS DE VÁRZEA GRANDE (MT) — BRASIL

A dificuldade de acesso à comunidade, ainda hoje por precárias vias de acesso,


afasta o consumidor/turista, prevalecendo, assim, a vinculação assimétrica do p ­ rodutor
com os diferentes intermediários no processo de confeção e comercialização do ­produto.
No que se refere à possibilidade de visitação turística, outro entrave relevante a ser consi­
derado é a total falta de sinalização turística e ausência total de informações específicas
que deveriam estar divulgadas junto ao trade turístico na área metropolitana de Cuiabá
e Várzea Grande.
Em decorrência dos entraves enfrentados para realização do processo produtivo, as
artesãs criaram subjetividades que (re)produziram em táticas internas de enfrentamento
para a permanência dessa prática cultural peculiar, transformando a rede cuiabana de
peça utilitária em adereço estético voltado ao turismo, com a inserção de detalhes da
fauna e flora mato-grossense tornando-a mais florida e colorida, assim como a produção
de xales, tapetes e caminhos de mesa.
Finalmente, sabendo-se que o artesanato faz parte da cultura e que esta é um dos
componentes mais significativos para o desenvolvimento do turismo cultural/patrimo‑
nial, há que se pensar em inserir a produção da Rede Cuiabana em um programa de
economia criativa, baseada no capital cultural do saber/fazer da comunidade de Limpo
Grande para o seu desenvolvimento e contribuição para a valorização e preservação do
saber/fazer desse objeto representativo na identidade e cultura mato-grossense.

BIBLIOGRAFIA
ARRUDA, Zuleika A. (2018) — Mapa das Redeiras da Comunidade de Limpo Grande. Projeto Cartografias
Culturais dos Municípios do Vale do Rio Cuiabá. NPGA – Instituto Federal de Mato Grosso.
BAUDRILLARD, Jean (2000) — O Sistema dos Objetos. Edição Semiologia. São Paulo: Ed. Perspectiva
S. A., p. 81-114.
CAMPO, Maria Lúcia Coradini (2006) — A paisagem simbólica de Bonsucesso e Limpo Grande, Várzea
Grande – MT. Dissertação de mestrado, Departamento de Geografia, UFMT, Cuiabá, 185 p.
CANCLINI, Néstor Garcia (1997) — Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São
Paulo: Edusp.
CERTEAU, Michel de (1994) — A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, Cotidiano.
HOLANDA, Sérgio Buarque (2008) — Caminhos e Fronteiras. 3.ª ed. São Paulo: Companhia das Letras,
p. 245-264.
LEONZO, Nanci (2004) — Pão e pano ou prato e trato um ensaio sobre a casa mato-grossense. Rev. Territórios
e Fronteiras – Prog. de Pós-graduação em História. UFMT, vol. 5, n.º 1, jan/jun., p. 255-272.
PALMA, Lúcia C. (1996) — Rede de dormir: algumas abordagens interpretativas na semiótica da cultura.
Cuiabá: Especialização Instituto de linguagens. UFMT.
SILVA, Verone C. (2001) — Missão, Aldeamento e Cidade. Os Guaná entre Albuquerque e Cuiabá (1819-­
-1901). Dissertação (mestrado) Cuiabá: ICHS/UFMT.
SOUZA, Laurenice Lopes (2018) — (Des)construindo as tramas invisíveis do modo de saber-fazer a Rede
Cuiabana – Comunidade de Limpo Grande – MT. Trabalho de Conclusão de Curso de bacharelado
em Turismo. Cuiabá: IFMT.

165
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

166
MODOS DE FAZER DA «ANTROPOLOGIA
COLONIAL»: A MISSÃO CIENTÍFICA DE
MENDES CORREIA À GUINÉ PORTUGUESA
(1945-1946)
PATRÍCIA FERRAZ DE MATOS*

Resumo: Entre 1945 e 1946 Mendes Correia, principal mentor da Escola de Antropologia do Porto, esteve
na então Guiné Portuguesa acompanhado pelo seu assistente Amílcar de Magalhães Mateus para preparar
uma missão antropológica. O roteiro denota os interesses científicos de Mendes Correia e o modo como
procurava produzir conhecimento – estabelecendo uma rede de contactos entre cientistas internacionais e
informantes locais. Tal modus operandi, presente em outros países colonizadores, fornece-nos material para
refletir como a antropologia esteve articulada com o projeto colonial português, nomeadamente através
da criação de missões científicas. Esta visita permitiu ainda desmitificar algumas ideias preconcebidas de
­Mendes Correia, nomeadamente as relativas à classificação racial, e suscitou a necessidade de desenvolver
novos campos de estudo, como as línguas nativas e os sistemas de numeração.
Palavras-chave: antropologia colonial; missão científica; Guiné; Mendes Correia.

Abstract: Between 1945 and 1946, Mendes Correia, the principal mentor of the Porto School of Anthropo­
logy, was then in Portuguese Guinea accompanied by his assistant Amílcar de Magalhães Mateus to prepare
an anthropological mission. The script denotes Mendes Correia’s scientific interests and the way he sought
to produce knowledge — establishing a network of contacts between international scientists and local infor‑
mants. Such modus operandi, present in other colonizing countries, provides us with material to reflect how
anthropology was articulated with the Portuguese colonial project, namely through the creation of scientific
missions. This visit also allowed to demystify some preconceived ideas of Mendes Correia, namely those
regarding racial classification, and raised the need to develop new fields of study, such as native languages
and numbering systems.
Keywords: colonial anthropology; scientific mission; Guinea; Mendes Correia.

* Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Email: patricia_matos@ics.ul.pt.

167
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

INTRODUÇÃO
Um dos objetivos do livro do qual este texto faz parte é o de dar conta do que
aprendemos com os «modos de fazer». Partindo da ideia de que «fazer» pode signi­
ficar impor uma forma ou um modo de agir e produzir conhecimento, irei debruçar-­
-me ­sobre alguns dos modos de fazer antropologia, ou do que se entendeu como tal, no
­contexto colonial português. Aí, a tensão entre teoria e prática foi, por vezes, evidente
e só o contacto com o terreno permitiu produzir teorias diferentes. Olhando para esse
período no presente é possível refletir sobre como determinadas práticas estiveram rela‑
cionadas com os recursos disponíveis, humanos e materiais, assim como com o contexto
social, económico e geopolítico envolvente.
A produção de conhecimento sobre as colónias contribuiu para dar visibilidade à
antropologia; embora esta já se diversificasse por vários assuntos, saiu reforçada pelas
investidas neste campo. Em 1875 foi criada a Sociedade de Geografia de Lisboa (SGL)1,
onde foi instituída a Comissão de África e se prepararam as expedições de Hermene­
gildo Capelo, Roberto Ivens e Serpa Pinto, entre 1877 e 1885. Silva Porto tinha empre‑
endido uma expedição de Angola a Moçambique em 1853, mas é a SGL que, de facto,
vem proporcionar novos desenvolvimentos. Em 1883 surgiu a Comissão de ­Cartografia
— o organismo português mais antigo dedicado à investigação em áreas tropicais.
De um modo geral, a presença de Portugal em África foi reforçada entre o final do século
XIX e o início do século XX2. Nesse período, os responsáveis pelas recolhas eram sobre‑
tudo os funcionários administrativos, os missionários, ou os militares, como Fonseca
­Cardoso (1865-1912) na Índia3, e os médicos viajantes, como Américo Pires de Lima
(1886-1966), que integrou uma expedição militar ao norte de Moçambique durante a
Primeira Guerra Mundial (1916-1917)4.
Apesar destas primeiras diligências, foi sobretudo a partir da década de 30 do
século XX, com as missões antropológicas (e em outros domínios) apoiadas pelo
­gover­no, que o investimento no conhecimento científico das colónias foi mais decisivo.
­Nesse processo a atuação de Mendes Correia (1888-1960), mentor da Escola de Antropo­
logia do Porto, revelou-se determinante; dela se dará conta na primeira parte do ­texto,
­exemplificando as iniciativas empreendidas para conhecer as colónias e especificamente
a então Guiné Portuguesa. A segunda parte será dedicada a analisar a preparação da
missão antropológica à Guiné, descrevendo a viagem ao território, realizada entre 1945 e
1946, por ­Mendes Correia, acompanhado de Amílcar de Magalhães Mateus, os c­ ontactos
com a população e os objetivos delineados. No final, apresenta-se a discussão do material

1
GUIMARÃES, 1984.
2
ALEXANDRE, 2000; MARTINS, 2010.
3
ROQUE, 2001.
4
MARTINS, 2006.

168
MODOS DE FAZER DA «ANTROPOLOGIA COLONIAL»: A MISSÃO CIENTÍFICA DE MENDES
CORREIA À GUINÉ PORTUGUESA (1945-1946)

a­ nalisado (relatório oficial5, diário de campo6 e livro sobre a viagem7), p


­ rocurando tirar
conclusões sobre alguns dos modos de fazer da «antropologia colonial».

MODOS DE FAZER DA «ANTROPOLOGIA COLONIAL»


Mendes Correia, formado em medicina, mas cujo trabalho foi dedicado essencial‑
mente à antropologia e à arqueologia, desenvolveu um programa colonial a partir dos
anos 30, que incrementou o ensino e a investigação científica e, adicional­mente, promo­
veu o envio de missões antropológicas às então colónias de África e Timor. A ­ lgumas
­delas estiveram a cargo de investigadores do Instituto de Antropologia da ­Universidade
do Porto (IAUP). No Primeiro Congresso Nacional de Antropologia Colonial, r­ ealizado
no Porto em 1934, Vítor Fontes, presidente da Comissão de Antropologia da SGL,
­apelou para que o pessoal médico e administrativo seguisse algumas instruções antro‑
pológicas para recolher materiais de análise, como «ossos, cabelos e moldes das mãos,
orelhas e pés»8. Mas já em 1931 Mendes Correia tinha considerado que as decisões de
administração pública, ou de fomento, deviam ser tomadas tendo conhecimento não
só dos caracteres físicos, mas também das características psicossociais das populações9.
Por proposta de Francisco Vieira Machado, ministro das Colónias (de 18/01/1936
a 06/09/1944), foram criadas missões antropológicas, dependentes da Junta das Missões
Geográficas e de Investigações Coloniais (JMGIC) — criada em 1936 e que constituía
uma ampliação da já referida Comissão de Cartografia. Esta junta dependia do Minis­
tério das Colónias e foi reformada em 1946 pelo ministro das Colónias Marcelo Caetano
(de 06/09/1944 a 02/02/1947); era independente da Junta de Educação Nacional (JEN),
mas procurou partilhar com esta o pessoal e o equipamento dos institutos universitários
e outros estabelecimentos escolares e científicos metropolitanos10/11. Pelo Decreto-lei
n.º 34.478, de 03/04/1935, o governo era autorizado pelo ministro das Colónias a «orga­
nizar e enviar às colónias missões antropológicas e etnológicas para o estudo das respec­
tivas populações no ponto de vista bio-étnico»12 (Art.º 1.º). A 11/11/1935 a Comissão
­Executiva da JEN, depois Instituto para a Alta Cultura (IAC), adotou um relatório elabo­
rado por Mendes Correia, onde é salientada a «urgência» e a «importância nacional e
cientí­fica do assunto», reforçando não ser «aconselhável separar o Portugal-metrópole
do Portugal-colónias»13.

5
Processo n.º 306 de António Augusto Esteves Mendes Correia, 1.º volume, IICT, Doc. n.º 1.
6
Diário de campo de Mendes Correia sobre a viagem à Guiné (1945-1946).
7
CORREIA, 1947.
8
FONTES, 1934: 189.
9
CORREIA, 1931: 10.
10
Além da antropologia, a JMGIC patrocinou a investigação na área da geografia, geodesia, hidrografia, meteoro­
logia, astronomia, assuntos diplomáticos e de fronteiras.
11
CORREIA, 1945: 4.
12
«Missões Antropológicas e Etnológicas às Colónias, Decreto-lei n.º 34.478», 1951: 146-147.
13
CORREIA, 1945: 4.

169
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Ainda em 1936 foi criada a primeira das missões, pelo Decreto‐lei n.º 26.842, de
28/07/1936, destinada a Moçambique, com seis campanhas entre 1936 e 1956, todas
chefiadas por Joaquim Rodrigues dos Santos Júnior — colaborador do IAUP, bolseiro do
IAC e da JMGIC, e orientando de Mendes Correia. Além desta missão, foram realizadas:
uma à Guiné, chefiada por Amílcar de Magalhães Mateus, com campanhas entre 1945
e 1947; outra a Angola, chefiada por António de Almeida com campanhas entre 1948
e 1955; e a Timor, também chefiada por António de Almeida, com campanhas entre
1953 e 1975.
A 12/03/1941 Mendes Correia estrutura um «plano de estudos antropológicos
­coloniais (antropologia, arqueologia e etnografia) para um período de 6 anos», em
­resposta a um ofício da JMGIC enviado à direção da Faculdade de Ciências da Univer‑
sidade do Porto (FCUP)14. No que respeita à «prioridade de ramos científicos e coloniais
a estudar», refere que: «os estudos de antropologia física estão em primeiro lugar», pois
permitem «estabelecer as características somáticas e as possibilidades psicofísicas dos
diferentes povos»; a psicotecnia procurará averiguar as «características psíquicas, (…)
vocações e capacidades dos mesmos povos»; e «a etnografia surgirá como auxiliar útil
destes estudos». A arqueologia aparece em terceiro lugar, mas não porque «o seu inte‑
resse especulativo seja menor», já que «a arqueologia em geral, e dum modo especial a
pré-história» constituíam uma «base imprescindível para o conhecimento das origens
étnicas e da evolução dos povos»15. Na qualidade de diretor dos desígnios da Escola de
Antropologia do Porto, revela ainda o propósito de encaminhar os seus discípulos e
colaboradores para o trabalho de terreno.
A maioria das campanhas científicas veio a realizar-se depois de 1945, após a
­reforma da JMGIC. Por outro lado, passou a ter como objetivos principais a ­melhoria
das condições de vida de «indígenas» e colonos, a exploração eficiente dos territórios
­colonizados e a contribuição para aumentar o conhecimento científico, contem­plando
sobremaneira os conteúdos socioculturais. Houve um investimento especial em Moçam­
bique, com permanência mais longa no terreno e mais elementos recolhidos16. Este texto
foca-se, contudo, no caso guineense.

O CENTRO DE ESTUDOS DA GUINÉ PORTUGUESA


A criação do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa (CEGP) em 1945 r­ esultou
também do interesse em conhecer melhor este território. Como apontou Clara Carva­
lho, este projeto foi pioneiro relativamente a iniciativas idênticas em outras colónias
portu­guesas, mas anacrónico se tivermos em conta o contexto internacional, «tanto da
dinâmica da colonização que nessa altura chegava ao fim como das formas, meios e
14
Processo n.º 306 de… Mendes Correia…
15
Processo n.º 306 de… Mendes Correia…
16
MATOS, 2018.

170
MODOS DE FAZER DA «ANTROPOLOGIA COLONIAL»: A MISSÃO CIENTÍFICA DE MENDES
CORREIA À GUINÉ PORTUGUESA (1945-1946)

­ rodutos da investigação científica»17. A autora estudou a produção etnográfica deste


p
centro, ­sobretudo no seu principal órgão, o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, que
­contém textos e fotografias reveladores de um olhar colonial — «científico, classifica­
tório, enume­rador e exaustivo», mas também «propagandístico» e «político»18.
Terá sido o contexto de instalação efetiva da organização administrativa e militar
na colónia que permitiu a pesquisa etnográfica. Ao contrário de Angola e Moçambique,
a Guiné trazia um benefício económico fraco. Os interesses portugueses na região foram
revelados logo na Conferência de Berlim (1884-1885). Todavia, a ocupação efetiva do
território apenas ocorreu no século XX, através das campanhas de «pacificação» entre
1913 e 1936. O CEGP acaba por se inserir no projeto colonial na Guiné depois de 1945.
Uma das iniciativas de promoção desta colónia foi a realizada em 1946 no âmbito das
comemorações do 5.º Centenário da sua «descoberta». O governador Manuel Maria
Sarmento Rodrigues, que viria a ser ministro das Colónias, empenhou-se no processo
desde a sua chegada em 1945. Assim, «entre 1945 e 1946 foram lançadas obras públicas
por todo o território guineense, construídas as casas dos membros da administração,
instalados postos sanitários»19. Entre os elementos mais visíveis desta política cultu‑
ral, destaca-se a fundação do Museu da Guiné Portuguesa, em 1945, e a publicação do
­referido Boletim Cultural a partir de 1946 (que até 1973 reuniu mais de 100 números).
O CEGP organizou ainda a II Conferência dos Africanistas Ocidentais, decorrida em
Bissau em 1947, e foi mantendo colaborações com sociedades científicas, como o IFAN
(Institut Français d’Afrique Noire, criado em 1936 e designado por Institut Fondamental
d’Afrique Noire após 1966), em Dakar.
O CEGP promoveu a realização de etnografias locais, tendo estas sido elaboradas,
amiúde, por administradores coloniais. As primeiras foram editadas na sequência do
inquérito etnográfico realizado em 1945 sob a orientação de Avelino Teixeira da Mota,
oficial da marinha e historiador a quem se devem diversos estudos sobre a zona20. Foi
realizado ainda um inquérito à habitação indígena em 1946. Alguns dos resultados dos
inquéritos foram publicados através do CEGP. Este centro não esteve ao mesmo nível
do Rhodes-Livingstone Institute na Rodésia do Norte, criado em 1938, mas através dele
foram criadas redes internacionais de investigadores, sobretudo no âmbito da história.
São de salientar os contactos com os investigadores do IFAN.

17
CARVALHO, 2004: 120.
18
CARVALHO, 2004: 120.
19
CARVALHO, 2004: 123.
20
CARVALHO, 2004: 124.

171
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

A VIAGEM DE MENDES CORREIA À GUINÉ


No mesmo ano em cujo Verão termina a Segunda Guerra Mundial, Mendes ­Correia
desloca-se à Guiné, com Amílcar de Magalhães Mateus, para preparar a ­missão antropo­
lógica ao território, que seria chefiada no ano seguinte por esse colabo­rador do IAUP.
Marcelo Caetano era o ministro das Colónias e Sarmento Rodrigues o gover­nador do
território. A propósito da visita, Mendes Correia elaborou três registos: r­ elatório ­oficial
dirigido à JMGIC, diário de campo e livro21. Antes de chegar à Guiné, p ­ assaram por
­Casablanca (Marrocos), onde Mendes Correia esteve com dois dos seus antigos ­alunos
da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (o cônsul português em Rabat e a sua
esposa). Contudo, como refere no livro, a sua missão era na África Ocidental Francesa
e na Guiné Portuguesa, ou seja, «na África negra e não na África branca»22. ­Estiveram
­depois em Dakar (Senegal) onde visitaram o IFAN, se encontraram com v­ ários profes­
sores e investigadores e se mobilizaram para continuar a estabelecer conexões e p­ ermutar
trabalhos com estudiosos.
Durante a estadia, entre 26/12/1945 e 20/01/1946, Mendes Correia foi ­anotando
tudo o que via, assim como as suas experiências, num diário de campo (Diário de ­campo
de Mendes Correia…). As suas notas dão conta de impressões mais imediatas e de
­registos espontâneos. São estas, porém, que utiliza para a publicação do livro. Apesar da
superficialidade da visita, no sentido em que se tratava da preparação, e não da missão
em si, e não tenha havido um apetrechamento prévio, ao nível teórico ou linguístico,
alguns elementos constituem fontes importantes. No início do livro, Mendes Correia
refere que o mesmo não apresenta «um estudo exaustivo e profundo sobre as gentes
da nossa Guiné, mas apenas das impressões e resultados de uma missão preliminar»23.
Acrescenta que alguns assuntos são alheios aos seus estudos habituais, mas a escassez de
trabalhos publicados a isso o levou. O livro é dedicado aos «indígenas da Guiné», «seres
humanos, almas, portugueses», cuja dignidade elogia, e refere que «defeitos, maldades,
também existem (…) entre os civilizados»24.
O diário de campo inclui descrições de entusiasmo, vontade de estar no local e de
absorver a máxima informação. Ao longo do percurso descreve pormenorizadamente
os sítios por onde passa e os indivíduos que encontra, sobretudo os que revelam ter
determinadas particularidades físicas. Na colónia francesa em Dakar apercebe-se das
mudanças sociais a decorrer:

21
CORREIA, 1947.
22
CORREIA, 1947: 20.
23
CORREIA, 1947: 5.
24
CORREIA, 1947: 6.

172
MODOS DE FAZER DA «ANTROPOLOGIA COLONIAL»: A MISSÃO CIENTÍFICA DE MENDES
CORREIA À GUINÉ PORTUGUESA (1945-1946)

os indígenas abandonaram então todos o serviço doméstico nas casas dos


e­ uropeus. Nos hotéis e restaurantes os criados e cozinheiros negros ausentaram-se do
trabalho. Fazemos nós próprios a cama, servimo-nos a nós próprios no balcão dos
restaurantes. Isto tem o seu pitoresco, mas… não é tranquilizador25.

Enquanto em Portugal se procurava reforçar a presença colonial, no caso francês


avançava-se para a autonomia das colónias: a greve atingia vários serviços e em breve o
ministro estava demissionário com a queda do governo de Charles de Gaulle.
Tanto na ida, como na volta, Mendes Correia e Magalhães Mateus ocuparam parte
do tempo no IFAN, descrito como uma «esplêndida instalação de investigação cientí­
fica» (Diário de campo…), dirigido por Théodore Monod (1902-2000) do Museu de
História Natural de Paris. Com Monod e Léon Pales (discípulo de Paul Rivet e autor
de um volume sobre paleopatologia, que chefiava uma missão científica relacionada com
o IFAN e os serviços coloniais de saúde), visitaram as secções de etnologia, botâ­nica,
­zoologia, antropologia e pré-história, e a biblioteca. Estiveram também com G ­ eorges
Duchemin (chefe da secção de etnologia); com o linguista M. Darot, que mostrou gráfi­
cos de um aparelho de fonética, inventado por si, e sugeriu acompanhar Magalhães
­Mateus à Guiné (ideia aprovada por Mendes Correia, indo a seu turno um português
para o IFAN, o que Monod aceitou); e com M. Joire, pré-historiador e delegado do IFAN
em Conacri, na Guiné Francesa. Mendes Correia aproveita para comparar o trabalho
desenvolvido em Portugal e em França:

Estão em projecto ou em curso investigações científicas nas nossas colónias,


­especialmente na Guiné, inspiradas no mesmo interesse pelas populações indígenas
que se manifesta na actividade do Instituto Francês da África Negra em relação às
gentes das colónias francesas daquelas regiões26.

Para o autor, «França e Portugal são naturalmente ciosos dos (…) direitos sobre os
territórios africanos em que exercem a sua soberania e (…) acção civilizadora»27. Tais
afirmações são, não obstante, proferidas num contexto em que não só a França possuía
mais recursos humanos e materiais para fazer investigação, como em alguns dos seus
territórios já se verificavam movimentos sociais de emancipação.
No Senegal visitaram ainda a Escola de Medicina Indígena e o Instituto de Anato­
mia, onde havia muitos «estudantes negros» dissecando «cadáveres de negros» ­(Diário
de campo…). O professor da FCUP acordou com Monod em estreitar a colaboração
mútua e a troca de publicações. Júlio Martinez de Santa-Olalla (arqueólogo de M­ adrid)

25
CORREIA, 1947: 27.
26
CORREIA, 1947: 34.
27
CORREIA, 1947: 34.

173
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

sugeriu a Monod a participação portuguesa na Conferência Internacional dos Africa­


nistas ­Ocidentais (que o instituto promoveu em Dakar em Janeiro de 1945 — a ­primeira
de uma série a realizar em várias colónias da parcela da África Ocidental a norte do
­Congo e a sul da Mauritânia)28. Portugal não participou nessa altura, mas Mendes
­Correia enviou uma comunicação, sobre os estudos antropológicos nas ilhas de Cabo
Verde e na Guiné, e Judite dos Santos Pereira (assistente da FCUP) enviou um estudo
sobre a geologia da Guiné. Os cientistas trocaram ainda impressões sobre o centenário
da «descoberta» da Guiné (a realizar em 1946) e a possível colaboração do IAUP e da
Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais nesse evento.
Ao longo da visita, Mendes Correia descreve alguns indivíduos de acordo com
a cor da sua pele — mais ou menos escura — e aponta certas características psicoló‑
gicas associadas a determinados grupos, embora estas lhe tenham sido transmitidas
sobretudo pelos interlocutores com quem se cruzou. O seu diário expõe aspetos rela‑
tivos à saúde e a indisposições físicas comuns nos trópicos, assim como a doenças (ou
malformações) como a filariose, lepra, exonfalia (hérnia umbilical), doença do sono,
tuberculose, bouba (doença tropical infeciosa da pele, ossos e cartilagens causada pela
bactéria espiroqueta), bócio, varíola, sífilis, elefantíase ou filária, evidenciando assim os
seus conhecimentos na área médica. Neste âmbito visita ainda o hospital de Bissau. No
campo da antropologia física, observa cerca de duas dezenas de felupes e conclui que
são leptosomas29 e magros, sendo as mulheres mais pequenas. Faz medições de solda‑
dos e recrutas, enquanto Magalhães Mateus copia os registos das inspeções médicas do
­recrutamento militar. Em Bissau ambos examinam «27 Fulas pretos, 3 Futa-Fulas (…) e
1 Futa forro»; em Bolama observam «de manhã no quartel uns 20 Nalús, 12 Biafadas
e 10 Bijagós» (Diário de campo…).
Por outro lado, descreve práticas socioculturais. Refere-as às tabancas (aldeias) e
a algumas situações particulares: monogamia (entre os felupes, onde não é permitido o
adultério); mutilações triangulares dos incisivos superiores (felupes); circuncisão de 30
em 30 anos (felupes); tinham «um chefe para os homens e uma chefe para as m ­ ulheres»
(felupes); são «muito trabalhadores, cultivadores» (balantas); desenvolvimento de que
não estava à espera (papéis); respeitam a mulher (felupes); «não queriam ter um cabo-
verdiano, mas um branco como chefe de posto» (felupes); «o grande lutador da colónia»
(felupes); «as mulheres biafadas têm em média 5 a 6 filhos cada, mas nascem muitos
mortos»; o fanado «é todos os anos segundo o rito islâmico» (biafadas); «as raparigas
­fazem a clitoridectomia» (biafadas); «é pena o biafada não ser laborioso»; «são muito
mais civilizados do que os outros […] quer no vestuário, quer na habitação» (mandin‑
gas); «o fula aprende melhor na escola do que o mandinga» (informação obtida pela

28
CORREIA, 1947: 32.
29
Segundo a classificação do psiquiatra Ernst Kretschmer (1888-1964), o leptossómico é magro, pequeno e fraco.

174
MODOS DE FAZER DA «ANTROPOLOGIA COLONIAL»: A MISSÃO CIENTÍFICA DE MENDES
CORREIA À GUINÉ PORTUGUESA (1945-1946)

­ onitora da escola missionária, filha do administrador de Gabu); «trabalhando nas


m
muitas culturas, bastante pastoreio» (balantas); barqueiros (mandingas); «não parecem
ter animais totens» (banhuns); «alternam arroz, milho preto, milho cavalo, carne do
mato» (banhuns); têm «5 dialectos diferentes: calequisse, costa de baixo, caio, pecixe e
choro» (manjacos); tatuagens muito frequentes (nalus e bijagós) (Diário de campo…).
Em Bolama registam «palavras e numeração (…) verificando que a língua nalu é
banto, a biafada e os dialetos bijagós não»; visitam «as tabancas dos soldados» (que v­ iviam
todos com uma mulher); vêm mulheres bijagós (tatuadas), nalus, manjacos, p ­ apéis e
­balantas, e constatam que não havia «divergências entre eles» (Diário de campo…).
Quanto à ação missionária, Mendes Correia refere que as únicas escolas oficiais
da Guiné são em Bissau, Bolama, Farim, Bafatá e Canchungo: «foram extintas outras e
entregues a missionários, em virtude da concordata»; no entanto, constata que não havia
«escolas missionárias», mas apenas «postos de catequese» (Diário de campo…).
Quando janta com o governador em Bissau, critica a «falta de escolas, o problema
da concordata, a islamização, a assistência sanitária, as distilanas e o alcoolismo», entre
outros assuntos. Depois desta viagem Mendes Correia critica as práticas de missionação
nas colónias; considera que não se deveria destruir a fé religiosa de um ser humano,
mas questiona se será legítima a catequese das crianças e a ação missionária em «popu­
lações indígenas»30. O autor proclama a legitimidade dessa catequese na medida em
que fosse «criteriosa, prudente e lealmente orientada» e não constituísse «apenas uma
lamen­tável substituição de superstições grosseiras, obcecadas e perigosas por outras não
menos grosseiras, obcecadas e perigosas» e duvida que todos os sacerdotes e educadores
­estejam à altura do seu papel31.
Em resultado desta viagem, Mendes Correia ficou mais sensibilizado para a impor­
tância do domínio das línguas nativas. Por essa razão, foi registando tudo o que via,
voltando posteriormente a fazer referência ao assunto nos seus escritos e nas sessões
da Assembleia Nacional enquanto deputado (1945-1957). Conhecer e falar a «língua
dos naturais» era fundamental para a sua compreensão, para ajuizar acerca dos seus
sentimentos e divulgar as histórias do cristianismo em línguas vernaculares dos índios
do Brasil, dos «negros africanos» e de muitas populações orientais32. No caso da ­Guiné,
existiam por exemplo diferenças entre a forma de designar os números pelos felupes,
baiotes, banhuns, nalus ou bijagós. Segundo ele, era necessário estudar as «velhas l­ ínguas
indígenas» enquanto, «como irá sucedendo aos costumes indígenas, não desapare­cerem
ou não se irão confundindo umas com as outras»; além disso, «a linguística dos negros
africanos é do maior interesse científico para esclarecimento dos problemas e­ tnológicos

30
CORREIA, 1946: 150.
31
CORREIA, 1946: 151.
32
CORREIA, 1956: 228.

175
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

mais transcendentes»33. Com o seu apoio foi criado em 1946 o Instituto de Línguas
­Africanas e Orientais na Escola Superior Colonial, onde eram lecionadas cadeiras de
sânscrito, árabe, concanim (Goa), quimbundo (Angola), ronga (Moçambique), teto
­(Timor), entre outras. Para o autor34, os estudos linguísticos tinham ademais um inte­
resse psicológico (conhecer o horizonte mental dos nativos) e ao nível de estrutura cien‑
tífica; além de permitirem utilizar os meios da fonética experimental, gravação, repro‑
dução e análise de sons e fonemas, possibilitavam uma apreciação objetiva, comparativa
e classificatória.

DISCUSSÃO E CONCLUSÃO
Em Portugal, e no entender de Mendes Correia, o estudo das populações coloni­
zadas do ponto de vista físico, mas também o resgate das culturas «primitivas», os seus
modos de vida e os seus artefactos, eram fundamentais para que as gerações futuras
­pudessem conhecer esses exemplos de humanidade quase em vias de extinção. É por isso
que, apesar de ter passado alguns dias em Bissau, o seu interesse esteve mais ­virado para
fora da capital nos meios sertanejos das colónias «em contacto directo com as popula‑
ções», que desejou estudar no seu «ambiente natural, nos seus povoados típicos, o m ­ enos
possível influenciados pela acção deformadora dos núcleos urbanos e civilizados»35.
Por um lado, a sua viagem à Guiné constituiu uma missão exploratória, uma vez
que pouco se conhecia do território, mas, por outro, e também por isso, constituiu
um dos primeiros passos para desbravar terreno no que à ciência colonial no campo
antro­pológico se referia. Foi esse carácter que permitiu a Mendes Correia dar conta da
diver­sidade geográfica e humana da Guiné e perceber as áreas de estudo que poderiam
ali ­desenvolver-se — não apenas a antropologia física, mas também aspetos sociais e
­culturais, a linguística, a geografia, a medicina (com ênfase para a medicina tropical), a
história e a arqueologia, entre outros saberes.
O seu princípio foi conferir alguma autonomia às investigações e tomar conhe‑
cimento, através de autores estrangeiros e de outras instituições científicas, de modos
distintos de abordagem, assim como promover a permuta de estudos com Portugal.
É notório que Mendes Correia valoriza o contacto direto com as populações locais, fica
fascinado com as suas observações e estimula o envio de pessoas (em especial os que
foram seus alunos no Porto) para as missões antropológicas. É esse contacto que lhe
permite discernir o muito que ainda havia por conhecer, tarefa comum a países vizinhos
das colónias portuguesas em África. Esse empreendimento foi encarado pelo professor
como uma missão no sentido mais lato, uma missão nacional na qual se deviam investir
os melhores recursos — humanos e materiais.
33
CORREIA, 1947: 100-101.
34
CORREIA, 1947.
35
CORREIA, 1947: 48.

176
MODOS DE FAZER DA «ANTROPOLOGIA COLONIAL»: A MISSÃO CIENTÍFICA DE MENDES
CORREIA À GUINÉ PORTUGUESA (1945-1946)

No seu caderno de campo utiliza termos nativos e crioulos, o que demonstra o


seu interesse pelas culturas locais, pelos modos de vida e organização social. Considera
que tanto a numeração como os vocábulos deviam ser melhor estudados e que o nalu
tinha caracteres do grupo linguístico banto, enquanto o bijagó não tinha caracteres ­desse
­grupo linguístico. Contudo, utiliza termos pejorativos como «indígena», populações
atrasadas e «raças». A visita ao terreno não lhe permitiu, no entanto, comprovar algumas
suposições que tinha ou existiam na metrópole, como, por exemplo: a ideia da falta de
higiene dos negros («há mais asseio nos negros do que muitos supõem»36; e o entendi‑
mento de que certos grupos africanos estavam em decadência e podiam extinguir-se em
pouco tempo:

Penso no destino desses Biafadas, que alguns supõem condenados à extinção


em algumas gerações mas em cuja sobrevivência e revigoramento tenho fé pelo que vi
e observei, fé aliás condicionada por uma intensificação de providências de carácter
sanitário e social37.

O autor vem a constatar que o imaginário que tinha (ao qual recorreu anos antes
para vários dos seus escritos) não correspondia ao que veio a verificar no terreno. Assim,
profere afirmações como: «tínhamos lido algures que os Felupes eram bígamos. Asseve‑
ram-nos que são monógamos, sendo o adultério severamente punido entre eles»38; «não
vemos em parte alguma os crânios humanos cortados em taças. O chefe diz-nos que esse
uso desaparecera»39. Em outros locais refere:

O que verificámos é que, ao contrário do que nos disseram, também sobre os


Nalús (os quais antigamente bons e fieis, teriam começado agora, sobre a acção dos
sôssos, a ser manhosos e menos dignos de confiança como este) nos pareceram ­antes,
uns e outros, muitos agradáveis e atenciosos. Como essas definições psicoló­gicas
­globais são frequentemente precárias e subjectivas!… (…) Averiguámos que ainda
hoje há os Machol, mas ninguém admite a ideia de que eles pratiquem os actos cani-
balescos que lhes atribuem40.

A estas formulações acresce que a experiência tida com os guineenses levados


para a metrópole, por ocasião das exposições de 1934 e 194041, revelou-se distinta da
sua ­vivência no terreno. Finalmente, e ao contrário das formulações racialistas por si

36
CORREIA, 1947: 68.
37
CORREIA, 1947: 68.
38
CORREIA, 1947: 42.
39
CORREIA, 1947: 42.
40
CORREIA, 1947: 71-76.
41
MATOS, 2014.

177
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

e­ nunciadas previamente42, uma das grandes conclusões da visita é a de que se devia


­banir a palavra raça e a própria ideia de raça, pelo menos no que ao contexto guine­
ense ­respeitava. Era óbvia a dificuldade em caracterizar os tipos físicos: «mesmo com a
pele do negro mais retinto possível, aparecem figuras de um prognatismo reduzidíssimo
ou nulo, de nariz estreito e saliente»; para ele, eram «europeus pintados de negro»43.
Assim, conclui:

Creio que, mesmo que originariamente, os vários grupos da Guiné fossem


­racialmente puros, fossem bem distintos uns dos outros no ponto de vista físico, os
«raptos das sabinas», a exogamia fácil de alguns desses grupos, tornariam no decurso
dos tempos essa pureza um mito. São a língua, a religião, a organização política e
social, que conferem a um indivíduo o direito de se considerar de um grupo étnico
e não de outro. O sangue não basta. (…) Há muitos casos de adopção, e nos m ­ ixtos
­prevalece, para atribuição a um grupo ou a outro, nuns casos a origem paterna,
­noutros a materna. Quem pode, depois disto, continuar a chamar raças aos povos ou
grupos étnicos indígenas, da nossa Guiné? (…) Insistimos, pois, na necessidade de se
não continuar a dar a estes a designação absolutamente descabida de «raças»44.

Mendes Correia chama ainda a atenção para o facto de a «acção civilizadora» p ­ oder
desfigurar ou fazer desaparecer «factos de interesse etnológico», cujo conhecimento se
podia perder se o seu estudo não fosse feito no imediato45. No campo das reformulações,
defendeu ainda a abolição do estatuto de indígena (que limitava o acesso à cidadania
de uma grande parte dos habitantes das colónias portuguesas46) numa das sessões da
­Assembleia Nacional em 1951, proposta que não foi aceite e teria de esperar dez anos
para ser concretizada, já depois do seu falecimento47.
No geral, é notório que esta viagem despertou a revisão de algumas das suas ideias
e preconceitos. Porém, só a partir dos anos 50 os estudos ditos etnológicos passaram a
incluir outros parâmetros científicos, pois, no que respeita a este professor, as abordagens
sobre a realidade social e cultural serviram amiúde para contextualizar as apreciações do
âmbito da antropologia física. As análises de Mendes Correia não se circunscreveram,
todavia, apenas a esse âmbito, como exemplificam algumas das suas elaborações refe­
rentes a outros territórios. É o caso de Timor, por exemplo, que também visitou, cujas
publicações incluem aspetos de contextualização geográfica, histórica e ­sociocultural48.

42
MATOS, 2013.
43
CORREIA, 1947: 127.
44
CORREIA, 1947: 127-129.
45
CORREIA, 1947: 138.
46
MATOS, 2013.
47
MATOS, 2012.
48
CORREIA, 1944, 1955.

178
MODOS DE FAZER DA «ANTROPOLOGIA COLONIAL»: A MISSÃO CIENTÍFICA DE MENDES
CORREIA À GUINÉ PORTUGUESA (1945-1946)

Por outro lado, alguns dos trabalhos produzidos por ele, e por outros seus contem­
porâneos, estiveram relacionados com o carácter do colonialismo português e as polí­
ticas dirigidas às colónias, sobretudo durante o Estado Novo (1933-1974). No conjunto,
estamos perante um projeto colonial frágil forjado num regime autoritário, que veio a
influenciar os modos de fazer e produzir conhecimento científico. A ação de Mendes
Correia, embora indicativa de várias limitações, revelou-se, contudo, pioneira no que
respeita a desbravar novos terrenos no domínio da antropologia.

FONTES
Diário de campo de Mendes Correia sobre a viagem à Guiné (1945-1946), coleção familiar.
Processo n.º 306 de António Augusto Esteves Mendes Correia, 1.º volume, IICT, Doc. n.º 1.

BIBLIOGRAFIA
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(1947) — Uma jornada científica na Guiné Portuguesa. Lisboa: AGC.
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­Humanidade». Lisboa: s.n., 24 p.
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MARTINS, Leonor Pires (2006) — Ossos do ofício: antropometria e etnografia no Norte de Moçambique
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«império» na póscolonialidade. Lisboa: Cotovia, p. 113-139.
MATOS, Patrícia Ferraz de (2012) — Mendes Correia e a Escola de Antropologia do Porto: Contribuição para
o estudo das relações entre antropologia, nacionalismo e colonialismo. Lisboa: ICS, Universidade de
Lisboa. Tese de doutoramento.

179
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

(2013) — The Colours of the Empire: Racialized Representations During Portuguese Colonialism.
Oxford & Nova Iorque: Berghahn Books.
MATOS, Patrícia Ferraz de (2014) — Power and identity: the exhibition of human beings in the Portuguese
great exhibitions. «Identities: Global Studies in Culture and Power», 21 (2), p. 202-218.
(2018) — Conhecimento Científico como Promotor de Potência Colonial: O Caso das Missões Cientí­
ficas de Foro Antropológico. In MARÍN-AGUILERA, Beatriz, coord. — Repensar el Colonialismo:
­Iberia, de Colonia a Potencia Colonial. Madrid: JAS Arqueología, p. 371-400.
ROQUE, Ricardo (2001) — Antropologia e Império: Fonseca Cardoso e a expedição à Índia em 1895.
Lisboa: ICS.

180
PARTE II
PESSOAS, CORPOS,
SUBJETIVIDADES,
REPRESENTAÇÕES,
CONFLITOS

O título desta parte do livro ilustra bem a heterogeneidade de temas que ela ­abarca, desde a
construção das subjetividades até às representações do espaço cole­tivo e aos ­conflitos que
as desigualdades sociais necessariamente geram. Entramos aqui num ­âmbito extremamente
subtil e difícil, porque muitas vezes denegado, recalcado, esquecido por teorias abstratas
dos indivíduos e das comunidades, procurando dar de uns e de outras visões estáticas,
sistemáticas, a-históricas, ou mesmo orgânicas, quando o c­ ontrário parece ser aquilo que mais
­ressalta à vista: não uma simples variabilidade do humano e do social, mas uma i­nquietação,
desassossego, tensão, inerentes a estes ­campos «sensíveis».

181
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

182
CANTANHEZ NATIONAL PARK:
HOW PEOPLE PERCEIVE LANDSCAPES
GONÇALO SALVATERRA*
CATARINA CASANOVA**

Abstract: What we think about nature and landscape is deeply cultural. Habitats are not abstract places.
Many landscapes are produced by human cultures, even the ones named «wild» or «pristine». We iden‑
tify the changes occurred in the landscape of Cantanhez National Park (CNP) according to local peoples’
­perceptions since the period before the «liberation war», until today. We address the influence of hegemonic
development narratives and how these influence the perception of the CNP landscape by locals. Our data
reveals that locals are often influenced by «West» categories: the process of nature commodification accom‑
panies global conservation narratives, which are a product of the dominant socio-economic system. But the
complex knowledge of the landscape assists locals building these «wild» landscapes, which tourists seem to
enjoy. Knowledge transmission cannot only be described as a simple top-down process, since locals adapt
and use/re-shape these concepts in a complex negotiation. Our analysis is based on data mainly collected in
2016, through direct observation and semi-structured interviews conducted in Creole.
Keywords: landscapes; local perceptions; Cantanhez National Park; Guinea-Bissau.

Resumo: O que pensamos sobre a natureza e a paisagem é profundamente cultural. Os habitats não são
­lugares abstratos. Muitas paisagens são produzidas pelas culturas humanas, mesmo as chamadas de ­«habitat
natural» ou até «pristinas». Identificamos as mudanças ocorridas na paisagem do Parque Nacional de
­Cantanhez (PNC) de acordo com as perceções das comunidades locais desde o período anterior à «guerra
da libertação» até hoje. Abordamos a influência das narrativas de desenvolvimento dominantes e como
estas influenciam a perceção da paisagem pelos locais. Os dados revelam que os locais são frequentemente

* PhD Student at ISCTE-IUL, FCSH-UNL. Centre for Research in Anthropology (CRIA), Portugal. Email: goncalosal‑
vaterra@fcsh.unl.pt.
** Research Centre for Anthropology and Health, Department of Life Sciences, University of Coimbra, 3000-456 Coim‑
bra, Portugal. CAPP/Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, Polo Universitário do
Alto da Ajuda, Rua Almerindo Lessa, 1300-663 Lisboa, Portugal. Email: ccasanova@iscsp.ulisboa.pt.

183
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

influenciados pelas categorias «ocidentais»: o processo de mercantilização da natureza acompanha as narra‑


tivas conservacionistas dominantes, que são um produto do sistema político e económico dominante. Mas o
conhecimento complexo da paisagem ajuda os locais a construir essas paisagens «selvagens» que os turistas
apreciam. A transmissão de conhecimento não pode ser vista apenas como um processo simples de cima
para baixo uma vez que os habitantes locais adaptam e usam/reformulam esses conceitos numa complexa
negociação. A nossa análise é baseada em dados recolhidos sobretudo em 2016, via observação direta e
entrevistas semiestruturadas.
Palavras-chave: paisagens; perceções locais; Parque Nacional de Cantanhez; Guiné-Bissau.

INTRODUCTION
The way human communities interact with other living beings is essential for ­human
adaptation. When adapting, human communities enhance their chances to ­persist and
survive for endless generations in world landscapes1. Such adaptation ­implies co-evo‑
lutionary processes that go beyond the human species. It is crucial to have e­ mpirical
­studies on the different ways in which people produce livelihoods, ensuring the repro‑
duction of life. Especially if we are looking to the myriad of ways that human beings and
nature are related and how people of a given society conceived that interaction2. Human
beings produce society when they act on the surroundings and thus produce culture and
create History. According to Ingold3 we live and act upon environ­ments. The ­current
global narratives define environment as «myriads of landscapes, wildlife, and peoples
from around the globe»4. What we think about nature and landscape is deeply cultural.
Habitats are not abstract places. In fact, what we think about nature is deeply
cultural, and landscapes are no exception to this rule5. Ethnosphere encompasses
all ­interactions between ecosystems and human communities6 and can be ­defined as
poli­tical, religious, economical and normative perceptions and attitudes towards eco‑
systems and its wildlife7. It is the sum of all thoughts, beliefs, myths and institutions
made manifest today by the myriad cultures of the world8. Such thoughts incorporate
the c­ omplex web of human-ecosystem relationships9, which include human ­perceptions
of landscapes and wildlife. Humans value ecosystems and wildlife elements d ­ ifferently10.
Most ­landscapes are a product of human cultures, even those that some authors named
«wild» or «pristine»11. Some of these «wild» landscapes are located in the global South

1
GADGIL & BERKES, 1991.
2
GODELIER, 2011.
3
INGOLD, 2011.
4
INGOLD, 2011: 95.
5
NYAMWERU & SHERIDAN, 2008.
6
DAVIS-CASE, 2002; CASANOVA et al., 2014.
7
NYAMWERU & SHERIDAN, 2008.
8
DAVIS-CASE, 2002.
9
GARIBALDI & TURNER, 2004.
10
DAVIS-CASE, 2002; CASANOVA, 2008.
11
ADAMS, 2010.

184
CANTANHEZ NATIONAL PARK: HOW PEOPLE PERCEIVE LANDSCAPES

­ emisphere, where the capitalist mode of production is not in its most advanced develop­
h
mental state. «Wild» landscapes and its wilderness are one of the most powerful ­concepts
in conservation12. One could consider that the last remaining sub-humid f­ orests in West
­African13 fall into the category of «wilderness». Nevertheless, «­ wilderness» is a danger‑
ous concept because in its idyllic roots, it does not conceive human presence and, there‑
fore, it expresses the separation of human society from the realm of nature, which is one
of the two cano­nical characteristics of Western tradition thinking14, common amongst
societies that live under the Christian-Judaic paradigm15. Western conservationist think‑
ing is deeply connected to the worldview of a threatened world. According Leach and
Mearns16 the powerful and well-known picture of environmental change is the driven
force behind many environmental policies.
The concern with global environment, nature and biodiversity conservation is not
a new topic17. However, since the 70s the programs of international institutions, govern‑
ments, State institutions, NGO’s and all the type of formal and informal organizations
from around the globe transformed this concern into a major topic that is present in all
national and international agendas. Although protected areas are not a recent pheno­
menon18, much attention has been paid to the loss of biodiversity since the 1970s until
now. That attention has contributed to the growth of protected areas19. The Stockholm
Conference held by the UN in 1972 was very clear regarding the human responsibility
towards the environment. The fourth principle20 states that:

Man has a special responsibility to safeguard and wisely manage the heritage of
wildlife and its habitat, which are now gravely imperilled by a combination of adverse
factors. Nature conservation, including wildlife, must therefore receive importance in
planning for economic development.

The association between conservation and development is in action. Community-­


-based conservation became one of the most used concepts in conservation projects21 as
well as the key idea of win-win relationships between conservation, development and
local communities. This concept was «beneficial in aggregate terms for ­communities,

12
CRONON, 1995.
13
CASANOVA et al., 2014; IBAP, n.d.
14
INGOLD, 2011.
15
CASANOVA et al., 2014; CASANOVA, 2016.
16
LEACH & MEARNS, 1996.
17
See ORLOVE & BRUSH, 1996.
18
There are several examples of colonial policies in Africa and Asia establishing game reserves and National Parks
(ORLOVE & BRUSH, 1996; WEST et al., 2006).
19
ORLOVE & BRUSH, 1996; WEST et al., 2006.
20
UNITED NATIONS, 1972.
21
BROCKING et al., 2012; COFFMAN, 2006; HULME & MURPHREE, 2001.

185
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

relative to the pre-existing regimes of fortress conservation or purely coercive conser­


vation»22. The proposal for a win-win strategy, where communities and wildlife could
benefit from a harmonious system has fallen successively23.
Environmentalism and community-based conservation constitute a powerful
narra­tive that interferes with the way people perceive their surroundings. Both can be
seen as capitalocenic tools, narratives that were born in the West and that were (and
are being) exported worldwide24. It is important to state that many local communities
in the global South hemisphere have been living, adapting and surviving along thou‑
sands of years and have their own ways of relating with the environment25. In many cases
no l­essons need to be learned from the «West», from the so-called «developed world».
In fact, Western societies should look at the ecosystems where they live for millions
of years and assess the way they have been relating to the environment. The Western
world ­history is known for colonialism, racism, habitat destruction, perceiving nature as
a commodity, and wiping out entire species until extinction26.
More than accidental artefacts of specific cultures, traditional conservation prac‑
tices are probably the result of long reciprocal interactions between sympatric organisms
through out evolutionary history27. Such reciprocal interactions have been changing via
nature commodification that reaches the global South hemisphere via globalization28.
Dualism between humans and nature is the social-construct from most Western civili‑
zation where humans do not recognize their role as mammals and primates and engage
in a constant need to separate themselves from other animals29.
In the present paper we aim to assess how local communities living in Cantanhez
National Park (CNP, formerly known as Cantanhez Forest National Park) perceive and
produce their landscape and how global conservationist narratives30 may influence this
speech and points of view.

STUDY BACKGROUND
CNP — also known by the locals as Cubucaré — is a protected area (lat:
11016’42.78’’N; long: 14054’42.30’’W) officially created by decree in March 200831. The
CNP stretches along a considerable part (105,700 ha) of the Cubucaré Peninsula in the

22
HULME & MURPHREE, 2001: 281.
23
ADAMS & HULME, 2001.
24
MOORE, 2016.
25
E.g. BLACKBURN & ANDERSON, 1993; ANDERSON, 1996; GADGIL et al., 1998; TURNER, 1999; MINNIS
& ELISENS, 2000.
26
MOORE, 2016.
27
GADGIL & BERKES, 1991.
28
MOORE, 2016.
29
CASANOVA et al., 2014; CASANOVA, 2016.
30
See CAMPBELL, 2002.
31
COSTA, 2010; TEMUDO, 2012.

186
CANTANHEZ NATIONAL PARK: HOW PEOPLE PERCEIVE LANDSCAPES

South of Guinea-Bissau. CNP was formed one year earlier in a meeting between tradi­
tional political leaders from all Cubucaré villages, state institutions (IBAP) and a n
­ ational
NGO that worked since the very beggining on the park project . 32

According to INEP’s 2007 demographic data, as well as the data provided by


­Carvalho33, the population living inside CNP increased about 150% in 50 years, having
an estimated population of 25.000 people.
The Cubucaré peninsula is often referred by its inhabitants as Nalu floor («tchon
di Nalu»: c), since this ethnic group was the first to inhabit the region34. Apart from the
Nalu, Cubucaré is home of inumerus ethnic groups such as Balanta, Fula, Sosso and
­Mandinga, among others.

METHODOLOGY
This paper is supported by three months of fieldwork in CNP and by scientific
knowledge about the area of study produced by other researchers35. We carried our data
collection from January to April 2016.
For the present paper we conducted 45 semi-structured interviews, informal
conver­sations and direct observations in order to obtain the qualitative data necessary
to fulfil the proposed goals. The interviews were focused on agricultural practices, feed‑
ing habits, relations with organizations acting inside the CNP (State institutions, NGO’s
and researchers) and local perceptions on landscape change.
An interpreter was used, as many informants did not speak Creole but only other
local languages. Informal conversations were conducted in the last month of the data
collection period.

LANDSCAPES ON THE MOVE


In the present paper the concept «landscape» is used to refer to the myriad of ­living
and non-living organisms that together form the environment, thus including humans
and the ecosystems that support life. The Cubucaré people do not have a word for «land‑
scape». They use the word «matu» (the forest that surrounds the villages) — which is
also where they cultivate crops, orchards, to the places were ritual ceremonies occur
(«matu sagradu» or sacred forest, especially among the Nalu). To simplify, we will use
the word «forest» to refer to the landscape that is beyond the villages («tabankas»).
To distinguish wild animals from livestock, locals call the first ones «limarias
di matu» (bush animals) and «limarias di kasa» (house animals). Every single place
that constitutes their environment is a valuable place. This contrasts with the ­western

32
TEMUDO, 2012.
33
CARVALHO, 1949.
34
FRAZÃO-MOREIRA, 2009; TEMUDO, 2009.
35
E.g. Casanova has been working in CFNP since 2006 and in Guinea-Bissau since 2003.

187
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

«­wilder­ness» visions that exclude humanity from the natural world36. In fact, they
­probably do not conceive the «landscape» as «other» such as anthropologists or ­tourists.
This is due to the fact that they are «victims» — not in the negative sense — of their
condition of existence, a condition as said by Ingold37 of «immersion of the organism-
-person in an environment or lifeworld as an inescapable condition of existence».
Cubucaré people are mainly farmers and forest may be turned into cultivated land.
For tourists who visit the CNP, forests are a product of the sublime land, a p ­ roduct of
nature. Local people tend to speak about forests in two different, even though c­ onnected,
ways. Very often, they talk about its importance to social reproduction and also ­mention
the danger forests face. They see forests as something that is threatened, ironically,
­according to them, due to their own fault. A connection between population growth,
forest depletion as well as hunting pressure is well established in local narratives. It is
very common to hear that the lack of rain is due to deforestation. Many of the Cubucaré
people describe technically the water cycle to explain how deforestation interferes in the
weather and the lack of rain. This technical narrative, carefully explained with all the
details, is a narrative also disseminated by local NGO’s.
In CNP, agricultural production techniques continue to rely on traditional m ­ odels
based on human labour while machinery and animal traction almost do not exist. Rice
is the basis of all Guinean cooking. There are three main agricultural practices: two
are for rice production (mangrove swamp rice and swidden agriculture) and one for
orchard production.
Population growth is a key argument used by local people to resume how swidden
agriculture has increased in the past decades. Informants also pinpoint cashew as the
major force of deforestation:

There are more people than mangrove swamp rice plots. […] some people
s­ tarted cutting the bush, but then we saw the values of the bush and we started to cut
as well, to get cashew. (B11 07/02/2016)

According to our informants, this major change into rain fed rice (swidden
­agriculture) is recent when compared with the mangrove swamp rice (that does not
imply deforestation). Mangrove swamp rice is practiced since immemorial times.
­Meanwhile, since the last decades of colonization, cashew plantations rose. And this
cashew increased not only due to population growth but also due to the decrease of
mangrove swamp rice sites.
Most mangrove swamp rice, locally known as «bolanhas salgadas» (Creole),
was planted by the Balanta ethnic group. According to our informants, nowadays this
36
CRONON, 1995.
37
INGOLD, 2002: 153.

188
CANTANHEZ NATIONAL PARK: HOW PEOPLE PERCEIVE LANDSCAPES

t­echnique is part of an inter-ethnic system of knowledge exchange. Nalu and Sussu


­ethnic groups also produce rice using this system, even though the Balanta are c­ onnected
with the origin and source of the technique, and are usually seen as the ones who master
it. This agricultural technique («bolanha salgada» is the only one capable to produce rice
surplus38. Its use has decreased since the «liberation war» (1963-1974) and never fully
recovered, as one of the informants mentioned:

Before the war, there were many bolanhas salgadas, but then the liberation war
began. In ancient times we planted a lot, because it rained a lot. Then, during the
fighting times, bolanhas salgadas were abandoned. During the struggle for indepen­
dence the Portuguese troops attacked the tabanka and the people move away to live
far away from the roads, in other places […] When the airplanes came, we fled from
the bolanhas salgadas to the bush because when they saw a person in the bolanhas,
they would drop bombs. (B 30/01/2016)

According to Temudo39 the Balanta were the ethnic group that recovered better
from the bombing of mangrove swamp rice fields, mostly due to the fact that they had a
deeper technical knowledge of mangrove swamp rice system. Since historical times this
rice planting technique has always been associated to this ethnic group while for other
ethnic groups, rain-fed rice was a rapid solution. As previously mentioned, rice is the
basis of every meal in the country. The importance of rice can be seen when people say
they starve because there is no rice but other food items are available40. Many factors are
responsible for the lack of mangrove swamp cultivated rice such as the mobilization of
labour force (due to the migration of young people to the capital, Bissau, or other cities)
or the generalization of formal education throughout the country, pushing still more the
Cubucaré people towards the rain-fed rice. According to our informants, rain-fed rice
does not demand such labour force as mangrove swamp cultivated rice.
The liberation war (1963-1974) caused irreparable damage on the mangrove
swamp cultivated fields by damaging the dikes. Furthermore, people turned their atten‑
tion to cash crops (cashew) since, according to our informants; this was being encour‑
aged by the State during the 1980s. Informants referred that cashew cash income has
allowed households to buy rice rather than to produce it, and cashew is much more easy
to grow than to cultivate rice in mangrove swamps.
Balanta people are also cultivating their own cashew orchards and, according to
our informants, the process of acquiring land is not going well since the traditional
agreement between Balanta and Nalu (as previously mentioned, the last are known as
38
TEMUDO, 2009.
39
TEMUDO, 2009.
40
E.g. beans, cassava, fish, among other — see COSTA, 2010.

189
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

the «landowners») established that Balanta should mostly occupy the mangrove areas,
where the could plant rice.

«ENVIRONMENTALIST» VISIONS AMONG THE CUBUCARÉ


PEOPLE
People living in CNP pay attention to the forest, which is the place where they live:
any change is understood as having potential consequences on their lives. According to
our informants, the forest inside CNP was vaster than it is today. Very often, informants
mentioned that:

There was a lot of forest, you could walk on the forest for a long time, and it was
only forest. (B6 04/02/2016)

First, landscapes should be understood and seen inside a specific cultural spectrum.
Cubucaré forest is for many outsiders an idyllic landscape where endangered s­pecies
occur: that is the case of chimpanzees (Pan troglodytes verus) and other species. The
Guinean-Bissau State along with local traditional authorities did agree about creating
the CNP. The forests along with most species that live there are now protected. In 2016
there was still a lack of law enforcement in the area. One must ask, law enforcement for
protection from what or whom? Governmental authorities argue that the forests must
be protected, and it must be ensured that the sustainable exploitation of natural resour­
ces occurs mainly for resident communities. Activities that concern central authorities
range from reducing illegal fishing and hunting; reducing illegal exploitation of forest
resources such as wood; controlling the expansion of slash-and-burn agriculture to the
cashew monoculture control. Central authorities are also concerned with population
growth and the human migration phenomenon that are both responsible for increase
pressure on natural resources. The same concerns are central to the local NGO working
at CNP. In fact, these concerns were also expressed by some of our informants.
Nevertheless, this does not need to be understood as an uncontested truth. Since
undated times, the Nalu have had traditional ways of preserving their landscape and the
forest. As expressed by one of our Nalu elderly informants:

My great ancestors were planting and cutting. But, first of all, our fathers […]
created forests reservations, after that people began to admire the reservations, ­because
our ancestors had reservations. At our parents times, they said to us that what is in the
forest was not to eat at once. (N42 10/03/2016)

190
CANTANHEZ NATIONAL PARK: HOW PEOPLE PERCEIVE LANDSCAPES

But we must also pinpoint different narratives amongst the Nalu people, probably
influence by the entrepreneur narrative that accompanies the globalization process41. In
February of 2007, Casanova & Sousa heard the following from an informant in the CNP:

I sell entrances to people so that they can watch a football game in my TV. I spent
money buying the TV, the parabolic antenna and the generator. I also spent money in
diesel. I have to amortize the equipment and also, I need money. So I charge entrances
in my place because i have a business to run. Others hunt and sell «limaria di matu»
in the city and earn a lot of money… they can even start their own business or buy a
zinc roof; these are not Nalu but others. Everyone needs capital. (N52 02/2007)

In the conservationist dominant narratives42, much emphasis is placed in local


­communities versus natural resources, in which resources are not enough. This would
lead to a stagnation period where human population growth would not be manageable
according to the resources available. Such neo-Malthusian approach has been ­widely
­accepted in conservation43, and Guinea-Bissau is not an exception44. According to
­Temudo45, the connection between population growth and resource over-exploitation
is not based in empirical data; rather it is based on pre-conceived assumptions. Local
people are adopting the same ideas. This can turn into a real problem in the future, if we
think that Nalu resource management is changing with the implementation of the CNP
and with the globalization process. Nowadays we hear locals talking about the «bene-
fits of tourism», and that «biodiversity brings money». The transformation of nature
into a commodity raises other issues that were not problematic a few decades ago but
are now. In the past, a farmer would accept that part of his crop would be lost to wild
animals (crops are right in middle of forests so wild animals would consume part of it).
Nowadays farmers look at that part of their crop (that is lost of wild animals) and they
see money that they do not earn, which results in the death of animals that crop raid.
On the other hand, cashew cash crops have a specific goal: accumulate capital (just like
previous cash crops that used to be more widely present in the past such as peanut, for
example). Thus, promoting the sustainable use of wildlife by via national and interna‑
tional organizations is in part based in the perceived need to give wildlife and economic
value46. Freese47 ­argues that giving wildlife a market value without implementing ­control
regimes might encourage unsustainable exploitation of species. Furthermore, it has ­often

41
CAMPBELL, 2002; MOORE, 2016.
42
CAMPBELL, 2002.
43
LEACH & MEARNS, 1996.
44
TEMUDO, 2009.
45
TEMUDO, 2009.
46
ROE, 1991.
47
FREESE, 1996.

191
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

been assumed — parti­cularly in «developing countries» — that economic benefits are


key to gaining support for conservation of protected areas and species. However, this
­assumption has proven false in some situations48. If economic benefits are not perceived
or valued as signi­ficant by its users, conservation and protected areas will not be suffi‑
ciently supported. In May 2019 Salvaterra had the opportunity to visit some informants
in CNP and heard how in recent times law enforcement has become stronger. The CNP
guards are not community-guards anymore. Now they receive a salary and to each of
them were given a motorcycle to support their daily work. A CNP central head­quarter
was built. Locals perceive this as a sign of money entering but only centered in the people
that work in conservation. The relation between some locals and traditional and n ­ ational
political authorities is tense and marked by conflict and co-existence. ­According to
one informant:

My father worked for the Park in the past 10 years and he doesn’t even have a
proper chair to sit on. We want to change the agreement made by our parents in 2007.
(N3 05/2019)

Also in 2019 a traditional leader in CNP told us what he expects from the conser­
vation institutions to be a priority: schools and water pumps. «The NGO’s and the
governmental organizations are not helping the population as we expect», stated
­
the traditional political leader.
It appears that the win-win strategies, mostly based on the value of wildlife (for
tourists) are not working, in part due to the lack of tourists.

FINAL REMARKS: LANDSCAPES & DEVELOPMENT


The value of forest traditional use, despite being important, is no longer the only
one: the monetary income that forests can provide, through the commodification of
the forest (and its «products»), is now a process spreading throughout the region, and it
can be identified in the local narratives. Social change is a certainty. Communities and
cultures are not static and they have been constantly influencing each other throughout
human history.
«Forests have value» not because «forests give us everything» (S31 01/03/2016)
but also because «animals that tourists want to see live in the forest» (S31 01/03/2016),
moreover, «it is in the forest that we plant cashew» (B23 22/02/2016).
Cashew orchards are seen for some, as development, since via this cash crop,
­motorcycles, zincs roofs, mobile phones, flashlights are bought, but also schools for

48
ROE, 1991.

192
CANTANHEZ NATIONAL PARK: HOW PEOPLE PERCEIVE LANDSCAPES

c­ hildren and medical care can be acquired. Many argue that (cashew) monocultures are
problematic in terms of human security and biodiversity.
Local narratives tell a story where there is a form of nature commodification,
­deeply influenced by State institutions and NGOs. This type of nature commodifi­
cation has b ­ ehind a conservationist win-win strategy, trying to persuade local people to
adopt new narratives and behaviour (e.g. «touristification») with the promise of a future
­income provided by eco-tourism. Many locals now attribute a market value to the forest
and the animals living there.
Use, value and significance of landscape are constantly being shaped in l­ocal
­people’s imaginaries. The same is true for what is considered development. These imagi­
naries express the dualistic vision of nature, produced by the western tradition. We
should keep in mind that the roots of western environmentalism have a connection
with colonialism49.

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195
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

196
ORGANIZAÇÕES DE BASE COMUNITÁRIAS
E DIREITOS À CIDADE EM SALVADOR
(BA – BRASIL): UMA EXPERIÊNCIA DE FAZER
PESQUISA ENGAJADA*
MARIA GABRIELA HITA**
JOHN GLEDHILL***

Resumo: A partir das perspetivas da antropologia urbana e debates sobre desenvolvimento e pobreza, e
com base numa análise longitudinal de um estudo de caso, este artigo visa refletir, desde um foco episte‑
mológico-metodológico, sobre as virtudes e limites do papel do etnógrafo, quando para além de buscar
compreender o contexto e problema de pesquisa desde um ponto de vista externo e acadêmico, ele ou ela
decide fazer parte do processo, ao se envolver afetiva, política e responsavelmente com os seus co-sujeitos
de estudo, comprometendo-se a participar lado a lado e até o fim do processo em curso. Esta abordagem é
fundamental para o diagnóstico dos principais problemas de locais que precisam passar por intervenções
urbanas profundas, e para a formulação de políticas de planejamento urbano mais sensíveis e adequadas às
necessidades de cada cidade.
Palavras-chave: antropologia urbana; etnografia; organizações comunitárias; pesquisa colaborativa.

* Esta é uma versão levemente modificada de um trabalho originalmente publicado em inglês: HITA, Maria Gabriela;
GLEDHILL, John (2019) — Chapter 19: Neighbourhood Grassroots Organizations and Rights to the City in Salvador,
­Bahia, Brazil. In LOW, Setha, coord. — The Routledge Handbook of Anthropology and the City, p. 283-296. London & New
York: Routledge. ©Individual chapters copyright the contributors. Reproduced with permission of the Licensor through
PLSclear. Agradecemos ao licenciante, Informa UK, o ter nos permitido republicar este material em português. Maria
Gabriela Hita agradece ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) no Brasil pela bolsa
de produtividade em Pesquisa recebida para realizar esta pesquisa e a Camila Hita de Aguiar pela tradução do texto.
** Maria Gabriela Hita é Professora Titular do Depto. de Sociologia da Universidade Federal da Bahia (Brasil), e dos
PPGs em Ciências Sociais (PPGCS) e o de Gênero, Mulher e Feminismo (PPGNEIM), Pesquisadora do Conselho
­Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (CNPQ) no ECSAS-PPGCS-UFBA. Atual Coordenadora do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia.
*** John Gledhill é Professor Emérito da Universidade de Manchester (Reino Unido) e membro da Academia de
­Ciências Sociais do Reino Unido e da Academia Britânica.

197
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Abstract: Drawing on perspectives in urban anthropology and debates on development and poverty, and
building on a longitudinal case study, this article aims to reflect, in epistemological and methodological
terms, on the virtues and limitations of the role of ethnographer, when, beyond seeking to understand
the context and research question from an external and academic viewpoint, he or she decides to become
part of the process being studied, involving him or herself emotionally, politically and in terms of personal
­responsibility with the co-subjects of study, committed to participating side-by-side with them until the
end of that process. This approach is fundamental to diagnosis of the principal problems of places destined
to pass through profound urban interventions, and for the formulation of urban planning policies that are
more sensitive and appropriate to the needs of each city.
Keywords: urban anthropology; ethnography; community organizations; collaborative research.

INTRODUÇÃO
O relatório de 2012 da UN-Habitat intitulado Estado das Cidades da América
Latina e do Caribe, observou que aproximadamente 80% do total de habitantes desses
territórios vivem atualmente nas cidades. A Organização das Nações Unidas (ONU)
considera essa transformação urbana ainda relativamente recente, como uma transição
para um «novo tipo de urbanismo» que busca incluir um número cada vez maior de
pessoas na rede de serviços básicos, mas também uma que vem oferecendo uma m ­ elhor
qualidade desses serviços às populações carentes, que foram totalmente excluídas do
acesso a esses bens públicos nas décadas anteriores. No entanto, apesar dos a­ vanços
­significativos, as cidades brasileiras (e as cidades latino-americanas em geral) conti­
nuam sendo muito ­desiguais, segregadas e divididas, tanto espacial quanto socialmente1.
­Segundo o diagnós­tico da ONU, entre os principais problemas das cidades atualmente
em ­expansão, encontra-se a falta de interconexão e integração adequada da infraestru‑
tura de transporte2. Essa avaliação é altamente relevante para a situação atual da cidade
de Salvador, foco de discussão neste capítulo. Salvador vem passando por um p ­ rocesso
acelerado de modernização urbana baseado em diversificadas redes de transporte. Um
processo que foi iniciado efetivamente apenas em 2014, devido aos preparativos para
a Copa do Mundo no Brasil. No entanto, resolver problemas de mobilidade urbana
­implica necessariamente aumentar a complexidade da gestão urbana. Tal incremento na
complexidade da administração exige, por um lado, considerar os distintos processos de
participação popular em debates sobre o tipo de cidade que os setores mais privilegiados
da sociedade querem construir e, por outro lado, entender e ocupar-se de como essas
transformações podem impactar os grupos mais pobres e vulneráveis da sociedade civil.
Neste capítulo, refletiremos sobre como um tipo particular de organização comuni­
tária, o Fórum Permanente de Entidades do Bairro da Paz (FPEBP), criado em um dos
maiores assentamentos irregulares de Salvador, tem mantido relações com entidades

1
GLEDHILL & HITA, 2012.
2
ESTADO DE LAS CIUDADES DE AMÉRICA LATINA Y EL CARIBE, 2012.

198
ORGANIZAÇÕES DE BASE COMUNITÁRIAS E DIREITOS À CIDADE EM SALVADOR (BA – BRASIL):
UMA EXPERIÊNCIA DE FAZER PESQUISA ENGAJADA

governamentais que visam a participação, ainda que limitada, de moradores do bairro


na tomada de decisões acerca das intervenções urbanas que afetam seus membros mais
diretamente. E, mais amplamente, visando também que esses locais ganhem voz na defi­
nição do tipo de cidade e comunidade que desejam ter para suas vidas. Nossa equipe
de pesquisa ajudou a criar o Fórum e o aconselhou desde 2007, permitindo-nos fazer
um estudo longitudinal de um experimento que terminou fornecendo um novo instru­
mento para o desenvolvimento de políticas locais de planejamento urbano para este
bairro, assim como para suas regiões adjacentes e a cidade como um todo. No decorrer
de nossa discussão, refletimos sobre os dilemas enfrentados pelos acadêmicos ao opta‑
rem por desenvolver um relacionamento com um coletivo, especialmente quando este
relacionamento envolve dar conselhos sobre seu processo de organização democrática,
enquanto realiza simultaneamente pesquisas que permitem estudar o desenvolvimento
comuni­tário «de dentro e de perto»3, com vários focos temáticos e ângulos de análise
­diferentes. Ao participar ativamente do processo de desenvolvimento do FPEBP, procu‑
ramos mini­mizar a nossa interferência nos processos de discussão e tomada de ­decisões
do próprio coletivo, mas reconhecemos que não seria possível que a nossa presença e
parti­cipação não tivessem impacto algum. A seguir, argumentamos que o tipo de enga‑
jamento que praticamos não torna, nem tampouco de fato tornou impossível atingirmos
distância crítica nas nossas análises acadêmicas, apesar de membros da equipe, incluindo
os ­alunos que estávamos treinando, haverem se comprometido com as lutas e demandas
de seus interlocutores e da comunidade em geral. Embora tenhamos sido originalmente
solicitados a ajudar na criação do Fórum como contrapartida à nossa pesquisa acadê‑
mica, a relação entre a dita pesquisa e a nossa participação ativa no trabalho do Fórum
se apresentou, por momentos, com um caráter conflitivo. Certos líderes da comunidade
chegaram a reclamar que eles e outros residentes estavam sendo tratados como «ratos
de laboratório». No entanto, o mero fato da presença de sentimentos negativos para com
a pesquisa acadêmica poder articular-se abertamente, tal como o exemplificado acima
(mesmo quando não sejam esses sentimentos amplamente compartilhados por todos),
simplesmente reforça o argumento para que acadêmicos sigam buscando formas mais
próximas de engajamento com a vida da comunidade. Mesmo sabendo que qualquer
engajamento, por mais próximo que ele venha a ser, não poderá garantir relações (entre
os pesquisadores e aqueles que eles pesquisam) sempre tranquilas e livres de conflitos.

3
MAGNANI, 2005: 17.

199
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

SALVADOR E A QUESTÃO DA PARTICIPAÇÃO POPULAR NA


FORMAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO URBANO
A modernização dos sistemas de transporte de massa de Salvador chegou tardia‑
mente e, sem dúvida, foi longamente esperada nesta cidade cuja região metropolitana
tem agora uma população que se aproxima dos quatro milhões de habitantes. Novas
estradas que reduzem o tempo de viagem de carro entre diferentes zonas estão s­ endo
construídas, mas as obras que causam maior impacto nos moradores próximos a elas
são os corredores BRT — sistema rápido de transporte público (Bus Rapid Transit).
­Assim como o das novas pistas sendo construídas para serviços ferroviários leves e os
de uma segunda linha de metrô partindo do aeroporto internacional em direção ao
­centro da c­ idade, com estações de acompanhamento e vias de acesso4. Esses t­rabalhos
­exigiram a remoção e a realocação de famílias advindas das comunidades que habi­
tavam tais ­territórios. Entre outros, o Bairro da Paz foi diretamente afetado pela constru­
ção de uma estação de metrô à sua frente, e pelo alargamento de uma estrada e linha de
BRT (a vermelha) que conectará duas pistas até recentemente separadas pela Avenida
­Paralela (por onde já foi instalado e inaugurada toda a linha 2 do Metrô). Esta comuni‑
dade está localizada na zona mais importante da recente expansão urbana de Salvador,
onde se c­ oncentram novos empreendimentos valiosos de utilidade comercial, privada
e resi­dencial de alto nível. A comunidade do Bairro da Paz surgiu por volta dos anos
de 1980s, através de invasão dessas terras, quando a área ainda estava coberta por mata
atlântica. Mas, agora está completamente cercada de condomínios ocupados por cida‑
dãos ­abastados e estrategicamente localizada no cruzamento da Avenida Paralela que é
a principal artéria de trânsito que liga o aeroporto ao centro da cidade e às duas novas
pistas sendo conectadas pelo novo BRT (perpendicular à Avenida Paralela) do lado mais
próximo à Orla, a avenida Orlando Gomes, que liga a Paralela à rodovia que corre ao
longo da costa do Atlântico, com a Avenida 29 de Março, do outro lado da Avenida Para­
lela, em direção ao Miolo da cidade de Salvador.
Em última instância, quão realmente benéfica será ou não a evolução da mobili­dade
urbana para a população mais pobre da cidade de Salvador, ainda é uma questão que
está para ser comprovada mais adiante. Acreditamos que a renovação das redes de trans­
porte poderão de fato fazer parte do «novo tipo de urbanismo» descrito pela ­UN-Habitat
(ONU-Habitat), melhorando o acesso aos serviços básicos e ­reduzindo os ­problemas
cotidianos que os trabalhadores costumam sofrer diariamente dentro do transporte
­público, tais como o das extensas jornadas de deslocamento (em ­tempo e ­espaço), onde
muitos precisavam pagar até 3 passagens distintas de ônibus, ou mais, para chegarem ao
seu destino final, entrando como lhes era possível e seguindo ­viagem muito apertados
e a pé em veículos coletivos superlotados. Ou problemas como os de falta de segurança,

4
HITA, 2017.

200
ORGANIZAÇÕES DE BASE COMUNITÁRIAS E DIREITOS À CIDADE EM SALVADOR (BA – BRASIL):
UMA EXPERIÊNCIA DE FAZER PESQUISA ENGAJADA

por conta dos frequentes roubos armados no transporte ­público, os quais ­costumam
ocorrer nas zonas consideradas mais perigosas de alguns dos ­trajetos. Mas ­estas ­novas
redes de transporte também incorporam preconceitos de classe, exemplifi­cados pelas
­estradas com pedágio que permitem aos motoristas mais ­abastados acelerarem em
­zonas de privação urbana, e podem servir muito mais a agendas de desenvolvimento
urbano socialmente excludentes. A renovação dos sistemas de transporte também é um
dos resultados do aumento multifacetado das «cidades mundiais», comandando redes
globalizadas de comunicação, transporte e negócios. Muitos estão se perguntando como
cidades históricas que estão agora passando por crescente metropolização, bem
como a de Salvador, estão inseridas nesses processos globais, e o que impacta essas
­diferentes escalas de transformação a nível regional e local5.
Contudo, essas são macro perspectivas globais que analisam a cidade e sua dinâ‑
mica desenvolvimentista como um todo, focando mais a nossa atenção nas relações
­entre diferentes segmentos de uma população diferenciada por classes mas, que tendem
a ser racialmente flexionadas, juntamente com as relações de poder que as estruturam.
­Embora esse tipo de perspectiva realmente informe a nossa pesquisa, a nossa discussão
está baseada em estudos etnográficos feitos no Bairro da Paz. Nosso trabalho seguiu os
­métodos processuais de estudos de casos estendidos e os de análise situacional desenvol‑
vidos pela antropologia urbana inspirados nas metodologias da Escola de Manchester6.
Buscamos aqui elucidar tanto as potencialidades como as dificuldades da pesquisa, que
utiliza métodos reflexivos de observação participante7, e é a realizada em grupo e de
modo longitudinal, com participação de diferentes pesquisadores e estudantes obser‑
vando e conhecendo diferentes interlocutores e setores da comunidade por um longo
período de tempo. O nosso objetivo foi o de estudar o que Norman Long8 denominou «a
interface» entre os atores comunitários e a burocracia do planejamento urbano e outros
agentes do governo, que incluem o comandante de uma base policial permanente insta­
lada na comunidade desde 2012. Nos referimos especificamente ao programa gover‑
namental Base Comunitária de Segurança (BCS). O nosso objetivo foi, principalmente,
o de acompanhar essa interface, mas buscando nos atentar muito mais para as relações
de poder mais amplas de baixo para cima. O que nos traz de volta à questão da «partici­
pação popular» nas decisões sobre o desenvolvimento urbano.
O «Estatuto da Cidade», uma lei federal estabelecida em 2001, teoricamente obriga
governos municipais a implementarem medidas para incluir a participação da socie­dade
civil na elaboração de instrumentos centrais de planejamento urbano, juntamente com a
supervisão de sua gestão. Desse modo pretende-se assegurar um maior consenso social

5
SMITH, 2002; SASSEN, 2011.
6
GLUCKMAN, 1940; VAN VELSEN, 1967; HANNERZ, 1980.
7
BURAWOY, 1998.
8
LONG, 2004.

201
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

sobre as decisões em torno do desenvolvimento urbano e maior controle dos c­ idadãos


sobre o que fazem os funcionários municipais. Os principais instrumentos para este fim
são a LOUS (Lei de Uso e Ocupação da Terra) e o PDDU (Plano Diretor de Desenvolvi‑
mento Urbano). O Estatuto da Cidade se aplica a todas as cidades brasileiras com mais
de 20.000 habitantes, com o objetivo de estabelecer uma participação democrática dos
cidadãos na determinação de seus futuros caminhos de desenvolvimento. No entanto,
urbanistas brasileiros como Raquel Rolnik9, Erminia Maricato10 e Angelo Serpa11, entre
outros, questionam a enorme lacuna existente entre o potencial de organizar o desen‑
volvimento urbano democraticamente, de acordo com o Estatuto da Cidade, e a subse‑
quente legislação acompanhada de práticas que determinam como o desenvolvimento
urbano de fato vem ocorrendo, em cada cidade.
As formas acordadas de planos de intervenção urbana são geralmente dominadas
por interesses imobiliários e de outros grupos privilegiados, que decidem em conjunto
com os políticos que estejam no poder qual será a melhor distribuição de acesso e uso
da terra urbana para a população do país. As revelações da «Operação Lava Jato» da
polícia federal deixaram bem claro como grandes empresas de construção civil proje‑
taram esse tipo de consenso através de um sistema de incentivos e financia­mento de
campanhas ilegais e, por vezes, legais que beneficiaram praticamente todos os m ­ aiores
partidos ­políticos do país. Embora revelações da barganha de chefes de empresas
que termi­naram presos tenham sido usadas de modo muito seletivo, principalmente
­contra o ­Partido dos Trabalhadores (PT) para facilitar o golpe «constitucional» que
­tirou a presidente D ­ ilma Rousseff do poder. A proposta de elaborar um planejamento
­urbano participativo mais democrático permanece longe de ser uma realidade eficaz
e produ­tiva na m ­ aioria das cidades brasileiras. Mesmo naquelas cidades onde autori­
dades l­ocais organizam rituais de participação, estes rituais tendem a ser manipulados
de cima para baixo e, como C ­ aldeira & Holston12 apontam, isso acontece porque todas as
­partes ­interessadas, incluindo promotores imobiliários e grupos de classe média ou alta,
têm o direito de participar «democraticamente» nesse planejamento urbano. De modo
que não haverá garantias de que os resultados poderão vir a favorecer as necessidades
e ­lutas das pessoas da periferia urbana. No entanto, o interessante sobre o FPEBP é que,
em relação às suas lideranças, quaisquer que sejam as diferenças que tenham entre si, e
que são muitas, elas tendem a ser todas fortemente conscientes e contrárias à probabili­
dade de «imposições» vindas de cima. O FPEBP procura reivindicar direitos à cidade
e ­promover as prioridades da comunidade chamando o Estado para prestar contas a
partir de suas demandas construídas desde abaixo, organizando reuniões públicas entre

9
ROLNIK & KLINK, 2011.
10
MARICATO, 2011.
11
SERPA, 2017.
12
CALDEIRA & HOLSTON, 2015.

202
ORGANIZAÇÕES DE BASE COMUNITÁRIAS E DIREITOS À CIDADE EM SALVADOR (BA – BRASIL):
UMA EXPERIÊNCIA DE FAZER PESQUISA ENGAJADA

funcionários públicos e residentes locais para discutirem juntos as melhores soluções ou


algumas das suas demandas. No entanto, este caso também revela alguns dos problemas
que ocorrem na interface desse tipo de relações que se estabelecem entre burocracias
e movimentos «populares».
As reuniões públicas organizadas pelo Fórum revelam a natureza díspar da lógica
da «conversa popular» e os distintos interesses que terminam se expressando quando
se trata das posições de determinados grupos e líderes dentro da comunidade. Repre‑
sentantes do governo muitas vezes têm dificuldade em compreender os modos de auto-
-expressão dos grupos populares e consequentemente se tornam incapazes de inter­
pretar exatamente o que querem. Mas o inverso também é o caso. Os grupos populares
geralmente não entendem como a máquina estatal opera, sem a compreensão de ­lógicas
­burocráticas que facilitariam a obtenção do benefício máximo de seus encontros com
autoridades e especialistas técnicos. Isso dificulta a negociação e a construção de consen‑
sos, tanto durante quanto após o evento, nos casos em que uma abertura para n ­ egociações
é garantida. Ao acompanhar etnograficamente alguns destes processos de negociação,
pudemos documentar casos em que o desentendimento operacional ­produziu resul­
tados menos satisfatórios do ponto de vista da comunidade, justamente por esse motivo.
Assim como também pudemos documentar casos que refletem esforços por parte do
governo para manipular um resultado que lhe convenha. Como, por exemplo, convidar
a participação de representantes da comunidade que de antemão se sabe terem posições
políticas mais conservadoras e maior suscetibilidade à cooptação do que os indicados
para conduzir as negociações lideradas pelo Fórum. Existe agora uma extensa litera­
tura etnográfica a esse respeito, sobre o porquê de algumas insti­tuições p­ articipativas em
­cidades brasileiras que receberam forte promoção política por parte das administrações
do PT, como Porto Alegre e municípios da região do ABC de São Paulo, terem falhado
em produzir resultados mais democráticos como os seus defensores haviam prometido.
Mesmo com o Partido dos Trabalhadores no controle do governo do Estado, Salvador
nunca foi particularmente notável pela promoção política de insti­tuições participativas,
mas sim uma cidade onde houveram fortes iniciativas de base, como as do Bairro da Paz,
comunidade reconhecida pela sua capacidade de luta e resistência, pelo que nenhuma
administração municipal conseguiu ignorá-las completamente, independentemente de
sua complexidade política.
Isso nos leva a argumentar que, apesar das dificuldades que acabamos de e­ sboçar,
incentivar o diálogo com uma interface de baixo para cima entre comunidade e E ­ stado,
procurando diminuir o nível de «ruído» o máximo possível e tentar construir soluções
acordadas, é um importante instrumento de planejamento urbano. Apoiando desta
­forma a realização de um dos pressupostos do Estatuto da Cidade, criando novos c­ anais
de comunicação que favoreçam a ampliação da participação popular e inclusão de t­ odos
os setores da sociedade nas discussões sobre que tipo de cidade as pessoas ­querem

203
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

­ esenvolver para o futuro. Indo além das assembleias de representantes políticos e dos
d
mecanismos políticos de mediação interna associados a elas, aquelas formas de conexão
com o Estado que partem das bases mostram-se mais eficazes para incentivar um tipo
ativo de cidadania.

O PAPEL DOS ACADÊMICOS


É precisamente no enfrentamento de problemas ou dificuldades de comunicação,
falta de tradução de discursos e confronto entre setores do governo e populações-alvo
que impedem o diálogo adequado sobre intervenções, que a participação de acadêmicos
pode ser útil. Produtores de conhecimento relevante e também bons intermediários, no
caso de equipes treinadas por pesquisadores-orientadores, como os que as universi­dades
podem oferecer, o papel da etnografia ocupa um lugar central. Não apenas como facili­
tador desse tipo de intermediação, mas também pelo estímulo à observação participante
e à reflexão crítica que promove. A observação participante é uma maneira de construir
conhecimento prático relevante dos contextos em que a ação ocorre, contribuindo para
que as vozes das comunidades sejam ouvidas e para encontrar soluções que possam
gozar de uma ampla base de apoio. Isto é especialmente importante quando as inter­
venções urbanas podem ter diferentes implicações para distintos grupos, mesmo dentro
da mesma comunidade. Essa possibilidade foi ilustrada no caso do Bairro da Paz por um
assunto ao qual retornaremos mais adiante: embora somente uma minoria de famílias
precisou ser realocada por causa das obras viárias relacionadas à ­construção da ­estação
de metrô, além da compensação oferecida às famílias deslocadas indivi­dualmente
­também foram prometidos novos investimentos a ser feitos pelo governo e empresas
de construção dentro da comunidade, para beneficiar aqueles que ali permanecessem.
Vamos expandir um pouco mais sobre os princípios subjacentes à «etnografia
­participativa» de nosso grupo com referência a debates mais amplos. Como Charles
Hale aponta, podemos distinguir a antropologia «ativista» da antropologia politica­
mente «engajada» baseada na «crítica cultural»13. É possível ser um antropólogo «enga­
jado» e, possivelmente, também um antropólogo ou sociólogo «público» engajado14,
produ­zindo escritos que buscam convencer os colegas, o público e os formuladores de
políticas a favorecer medidas mais prováveis de produzirem sociedades mais justas e
­tolerantes, identificando as causas das contradições e «falando a verdade ao poder»,
criti­cando as relações de poder que, em última instância, produzem situações de injus­
tiça, ­opressão e violência. Mas o ativismo implica um tipo diferente de relaciona­mento
com as ­pessoas que estão sendo estudadas e uma gama mais ampla de expressões de
solidariedade. ­Críticos da antropologia ativista têm apontado, por exemplo, que as

13
HALE, 2006.
14
BESTERMAN, 2013; BURAWOY, 2005.

204
ORGANIZAÇÕES DE BASE COMUNITÁRIAS E DIREITOS À CIDADE EM SALVADOR (BA – BRASIL):
UMA EXPERIÊNCIA DE FAZER PESQUISA ENGAJADA

s­ uposições de f­eministas ocidentais ou ativistas negras dos Estados Unidos não neces‑
sariamente ressoam com as ideias e objetivos das pessoas que participam dos movi‑
mentos sociais do Sul global, e que, por sua vez, diferem quanto à sua própria realidade
­prática em complexas situações de pobreza, conflito e opressão. Mas reconhecer esses
tipos de p ­ roblemas não é realmente um argumento para recusar qualquer tipo de envol‑
vimento com aqueles que estudamos, e então tratá-los apenas como objetos de pesquisa
acadê­mica: é simples­mente um argumento para entender melhor os atores com os quais
­estamos lidando, o que é uma condição fundamental para fazer uma boa pesquisa de
qualquer maneira, para pensar alternativas e opções realistas em um dado contexto, e
para tomar ­decisões sobre que tipos de apoio, e para quais atores, provavelmente fare‑
mos mais bem do que mal, devemos entender que sempre existe algo ou alguma coisa de
uso prático para «eles» que «nós» podemos fazer para contribuir.
Outra contribuição importante para o debate sobre a relação entre «conhecer» e
«fazer»15 veio do trabalho na antropologia do desenvolvimento internacional, especial‑
mente na Grã-Bretanha, onde o desencantamento com as «críticas culturais» puramente
desconstrutivistas cresceu nos últimos anos. Cética quanto ao poder dos textos acadê­
micos para mudar o mundo, Maia Green16 argumenta que os tipos de ­«conhecimento»
que as agências de desenvolvimento e de ajuda social exigem são qualitativamente
­diferentes daquelas que os antropólogos produzem. As agências exigem soluções para
problemas concretos. Contudo, ideias como o valor da «participação» dos beneficiários
no desenho de projetos e a utilidade de incorporar o conhecimento «indígena» tratam,
na verdade, de demandas feitas pelos defensores do «desenvolvimento alternativo»,
­demandas que já foram «incorporadas» pelo aparato internacional de desenvolvimento
em si. Por isso os projetos precisam estar em conformidade com uma lógica adminis‑
trativa que relaciona entradas e saídas; custos e benefícios. Os quais devem, em última
instância, ser indicadores quantificáveis para uma avaliação final do sucesso ou f­ racasso
relativo do projeto e as lições que a experiência pode trazer para o futuro. Assim,
Green argumenta:

Ao contrário da antropologia, que procura descompactar e dissimular através da


crítica e da desconstrução, a competência no desenvolvimento implica fazer o oposto:
usar conceitos construtivamente para modelar e realizar mundos políticos. Conheci-
mento em desenvolvimento é uma forma de ação dentro de uma forma ­associada de
organização social17.

15
YARROW & VENKATESAN, 2012.
16
GREEN, 2012.
17
GREEN, 2012: 45.

205
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Assim, embora o «conhecimento participativo» seja diferente do «conhecimento


especializado», sobre o qual quase todos os projetos de desenvolvimento dependiam
­exclusivamente no passado, e esse «conhecimento interno» pode até ser considerado
mais válido do que o conhecimento produzido por um especialista externo, o «conhe‑
cimento participativo, assim como a experiência viva, deriva sua relevância e utili­dade
de sua situação dentro da organização de desenvolvimento»18. O que conta para os
­avaliadores do projeto é «o processo de produção do conhecimento, mas não a quali‑
dade do conhecimento produzido, que, sendo local, é moralmente incensurável, literal‑
mente além da crítica»19.
Antropólogos contestam essa impossibilidade de censura, apontando, por ­exemplo,
que o «conhecimento» coletado pode não representar uma posição compartilhada e­ ntre
homens e mulheres e pessoas em diferentes posições sociais e de classe. Pode até ser
um artefato das técnicas usadas para coletar informações. No entanto, mesmo que a
sua lógica esteja correta, a linha tênue de Green entre o conhecimento antropológico
e o c­ onhecimento das agências de desenvolvimento não é tão clara na prática. David
­Mosse20, assumindo uma postura de «distância crítica» de um projeto no qual trabalhou
como conselheiro de desenvolvimento social responsável por promover uma espécie
de participação em que as mulheres adquirissem «voz» igual à dos homens, concorda
que a p ­ esquisa antropológica revela um tipo de realidade mais confusa, mais carre­gada
de poder do que a «realidade gerenciável» que é eventualmente fabricada em docu­
mentos de projeto. Os atores locais de maior prestígio social inicialmente dominavam
as discus­sões, os homens achavam mais fácil entender as técnicas usadas na Avaliação
Rural ­Participativa do que as mulheres, e os benefícios direcionados às pessoas mais
pobres e às mulheres eram distribuídos de forma desigual por meio de redes cliente­
listas e de parentesco. No entanto, com o passar do tempo, as coisas melhoraram, porque
a equipe do projeto trabalhou nesses problemas. As atividades sustentadas do p ­ rojeto
acabaram criando novos espaços públicos nos quais o conhecimento das mulheres e
o direito de falar alcançaram maior reconhecimento social. Mas também houveram
consequências não intencionais. Os esforços do projeto para obter conhecimento local
criou um novo grupo de intermediários que se tornaram reconhecidos como «conhece‑
dores». Esses indivíduos recém-empoderados se identificaram com o projeto e procu­
raram ­alcançar mobilidade social pessoal através dele. O projeto, portanto, criou uma
espécie de «conhe­cimento local» que não existia antes, mudando a sociedade local de
uma forma que não havia figurado em seus objetivos originais. Essa é uma consequência
comum de intervenções estatais, que exigem que os membros da comunidade atuem

18
Op. cit.: 50.
19
Op. cit.: 51.
20
MOSSE, 2005.

206
ORGANIZAÇÕES DE BASE COMUNITÁRIAS E DIREITOS À CIDADE EM SALVADOR (BA – BRASIL):
UMA EXPERIÊNCIA DE FAZER PESQUISA ENGAJADA

como ­intermediários em situações nas quais as lideranças tradicionais podem não ter os
tipos de habilidades ou qualidades que os agentes estatais estão procurando.
A análise de Mosse sugere que é possível injetar análises antropológicas no desen­
volvimento contínuo de um projeto. A equipe do projeto respondeu a problemas que
eles próprios reconheciam ao fazerem análise reflexiva, com base nas observações
que faziam como participantes de uma situação social. Isso nos leva a argumentar que os
­pesquisadores podem, e em muitos casos devem, participar dos processos de c­ onstrução
de diferentes tipos de conhecimento, como «especialistas» sobre um tema e como
­pessoas comprometidas em defender os interesses de grupos vulneráveis, que p ­ odem
ser prejudicados por outros interesses dentro de sua própria comunidade. Como, por
exemplo, a cooptação de alguns de seus representantes, preconceitos de classe ou o ­ utros
embutidos nos objetivos do governo e do capital privado em um determinado projeto.
Se só escrevemos sobre problemas academicamente em retrospecto, sem parti­cipar de
debates comunitários ou diálogos entre a comunidade e o governo com base no que
estamos observando e nos problemas que estamos diagnosticando, há menos c­ hance
de que a nossa pesquisa acadêmica influencie os desenvolvimentos em a­ndamento
para o melhor. Melhor aqui definido em termos de incluir os desejos e as necessi­dades
­expressas da maior parte possível da população-alvo. Além disso, como sugerimos
anterior­mente, os acadêmicos podem desempenhar um papel positivo na mediação das
relações e­ ntre ­comunidades e governos, não apenas com base na capacidade de compre­
ender os ­pontos de vista e objetivos de ambos os conjuntos de atores, incluindo os t­ ipos
de conhecimento que as diferentes partes consideram útil e relevante, e fornecerem
«tradu­ções» mutuamente significativas, mas também considerando a maior facilidade
com a qual nós, acadê­micos, podemos pesquisar, ou buscar aconselhamento de especia‑
listas sobre assuntos legais e técnicos de caráter mais independente.

O QUE FIZEMOS NO BAIRRO DA PAZ


O Fórum Permanente de Entidades do Bairro da Paz (FPEBP) surgiu do desejo
compartilhado de vários líderes comunitários, nossa equipe de pesquisa e algumas das
organizações governamentais e não-governamentais que operavam instalações dentro
da comunidade, para formar uma rede mais ampla e permanente de atores sociais inte­
ressados na comunidade. O objetivo final era o de seguir discutindo os seus principais
proble­mas e apresentar com mais eficiência as necessidades e demandas da comunidade
às autoridades públicas. A concretização deste desejo começou após uma primeira e
muito bem-sucedida reunião pública (audiência pública) organizada pelo nosso projeto
de pesquisa. Se levou adiante esforços para unir as organizações comunitárias anterior‑
mente fragmentadas; divididas por fatores como diferenças de orientação religiosa, bem
como função e natureza, reunindo ações díspares que tendiam a ocorrer paralelamente,
sem coordenação, em um consenso mais amplo. O Fórum passou a operar como um

207
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

tipo de poder local que procurava produzir consenso sobre o que era mais importante
negociar com os governos estaduais e municipais, com base no princípio de que lutar
juntos seria mais eficaz do que lutar separadamente.
Esta experiência segue funcionando até hoje, apesar dos altos e baixos, porque o
Bairro da Paz é uma comunidade que sempre se distinguiu pela sua forte organização
popular21. No início dos anos 1980, quando o país ainda era governado por uma dita­dura
militar, essa comunidade, criada pela invasão de terras desocupadas, foi um dos atores
locais mais reconhecidos nos importantes movimentos urbanos de moradores de rua e
moradores de favela nas cidades. A maioria de seus moradores recusou a transferência
das terras que haviam ocupado para a de uma área que já era então considerada como
alta prioridade em futuros investimentos de grandes imobiliárias. Sua tenacidade frente
às tentativas violentas do Estado de despejá-los valeu à invasão o seu primeiro apelido
e denominação de «As Malvinas» (em referência à guerra que a Grã-Bretanha lançou
contra a Argentina para recuperar o controle dessas ilhas no Atlântico Sul, ­devido ao
valor econômico-estratégico da região para a exploração de reservas de petróleo). Uma
mudança de governo estadual levou à aceitação do direito dos invasores de permanecer
nesse território, embora sem fornecer uma resolução satisfatória de longo prazo para
questões de posse da terra, a comunidade foi renomeada como «Bairro da Paz», mas
ainda teve que lutar por investimentos públicos para melhorar a sua infra-estrutura e
­adquirir escolas e instalações médicas. Apesar dos investimentos de organizações não-
­-governamentais, como a Santa Casa de Misericórdia Católica, em instalações de educa‑
ção e treinamento que permitiram a alguns jovens garantir um emprego melhor remu‑
nerado e na formação de cooperativas bem-sucedidas que receberam apoio de agências
governamentais como a Petrobrás, a comunidade ainda possui grandes déficits nas áreas
de educação, atendimento médico, instalações de lazer e infraestrutura básica.
O desenvolvimento do Fórum refletiu as contínuas promessas não cumpridas do
governo, mas também refletiu o surgimento de uma nova geração de ativistas dentro da
comunidade. Jovens organizados em grupos dedicados à realização de música e dança
afro-baiana, além de expressões mais transnacionais da cultura popular negra, como
o Hip-Hop. Esses novos atores comunitários são politizados em torno de uma noção
militante de identidade «negra», a qual contesta o «mito da democracia racial» e suas
políticas têm muito em comum com movimentos americanos de tipo similar; identifi‑
cando-se com demandas de indenização por conta da escravidão e mobilização contra a
violência policial, que mata um grande e absurdo número de jovens negros. Assim, uma
tradição militante se atualizou e se reproduziu. Tudo isso indica que o Fórum ­surgiu
com base no interesse, força e história particular dessa comunidade. Não é algo que

21
HITA, 2012; GLEDHILL & HITA, 2012.

208
ORGANIZAÇÕES DE BASE COMUNITÁRIAS E DIREITOS À CIDADE EM SALVADOR (BA – BRASIL):
UMA EXPERIÊNCIA DE FAZER PESQUISA ENGAJADA

poderia ter surgido em qualquer contexto ou lugar, ou ter sido criado por um processo
de cima para baixo.
Hoje o FPEBP reúne as principais organizações que atuam na comunidade. Muitos
são internos, tais como o seu atual Conselho de Moradores, diferentes grupos religiosos
(católicos, evangélicos e adeptos do Candomblé), grupos afro-culturais já mencionados
acima, o Instituto de Desenvolvimento Social APOMPAZ (orientado para melhorar as
oportunidades educativas dos jovens) cooperativas como A Colibris, que produz roupas
e calçados artesanais, e também professores nas escolas locais, funcionários do posto
médico e o escritório do Centro de Referência para Assistência Social (CRAS). Outros
estão ligados a organizações externas que têm uma participação importante na vida da
comunidade, como a ONG e obra de caridade da Santa Casa de Misericórdia, a univer‑
sidade e, mais recentemente, a base policial. O seu objetivo não é o de simplesmente
discutir questões, mas avançar no sentido de resolvê-las por meio de reuniões com a
presença de autoridades públicas dedicadas a diferentes temas.
O FPEBP foi concebido como uma réplica em microescala dos Fóruns Sociais
Mundiais, lançados no Brasil sob a bandeira de dar voz a uma «sociedade civil global»
que incluiria movimentos sociais populares, a fim de que estes pudessem contestar
­algum poder de reformulação da economia mundial dominada pelos líderes do Norte
global e os interesses corporativos por trás deles. O FPEBP baseou-se em princípios
­particularmente inclusivos e democráticos, mas nem sempre foi possível concretizar
­todos eles na prática. O que geralmente acontece é que uma considerável quantidade
de tempo é gasta tentando-se chegar a algum tipo de consenso, de modo que muitos
grupos se cansam de debates intermináveis e saem ou reaparecem apenas quando têm
inte­resses particulares ou projetos para defender. Portanto, é mais comum que o pesqui‑
sador registre discórdia e conflito, ou lutas pelo poder entre diferentes facções, do que
uma verdadeira luta coletiva por causas e objetivos que interessam a todos. No e­ ntanto,
com esforço, e em determinadas conjunturas, provou-se ser possível chegar a um a­ mplo
­consenso e até ganhar algumas batalhas públicas. Este não é o lugar para entrar em
­detalhes sobre os altos e baixos do Fórum, discutidos em outros lugares22, mas sim para
enfatizar o potencial contínuo desse tipo de organização para promover a participação
popular no desenvolvimento urbano.
Nossa equipe universitária contribuiu para o trabalho do Fórum de duas ­maneiras.
Em primeiro lugar, até pouco atrás, antes de que nossos números fossem reduzidos
por cortes severos em subsídios de apoio ao treinamento de estudantes, fornecemos ao
­Fórum um dos dois representantes da secretaria do coletivo (formada por duas institui‑
ções, membros da Santa Casa de Misericórida, e da nossa equipe da UFBA, por meio
de um dos nossos estudantes atrelados às pesquisas de Hita), órgão responsável por

22
GLEDHILL & HITA, 2014.

209
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

­ reparar e divulgar as agendas e atas das reuniões do FPEBP e organizar seus ­arquivos
p
de documentos. Em segundo lugar, prestamos assessoria em questões técnicas e jurí­
dicas, e em procedimentos oficiais e lidando com burocracias governamentais, enquanto
desempenhamos o papel de tradutores e intermediários. Nossa posição tem sido princi­
palmente a de legitimar e defender as demandas da comunidade. Como pesquisa­dores
que ­trabalham com moradores locais, vimos com nossos próprios olhos problemas
como ruas alagadas e condições degradadas do posto médico, ouvimos funcionários,
pacientes e pais sobre a inadequação dos serviços públicos no bairro. E, no caso de
­nossos alunos, estes tiveram experiências diretas não só da inadequação dos serviços
de transporte público, mas dos perigos de assaltos armados que os moradores enfren­
tavam diariamente enquanto viajavam de ônibus ou aguardavam na parada sua
­chegada. Nos primeiros anos do Fórum, encorajamos os membros do grupo a ­produzir
­diagnósticos comunitários dos vários problemas para os quais a comunidade b ­ uscava
soluções. Desde carências de infra-estrutura e emprego até problemas de falta de
segu­rança, ajudando-os a criar modelos para essas avaliações e a irem melhorando e
aperfeiçoando a apresen­tação desses resultados e exposições e modos de diálogo com
poderes públicos.
Como estávamos seguindo as reuniões e atividades do próprio Fórum etnogra‑
ficamente e como participantes, também ajudamos a organização a se reativar após
­momentos de desilusão e redução de suas atividades. Estes momentos foram frequen‑
temente associados a conflitos entre personalidades, que foram exacerbados d ­ urante os
­períodos eleitorais porque as lideranças estavam associadas a partidos políticos dife­
rentes. E, assim como todos os movimentos sociais, o Fórum também tendeu a ser m ­ enos
­ativo quando esperanças de avanço tornavam-se frustrações, revivendo ­então ­quando
surgiam grandes problemas que reuniam diferentes setores da c­ omunidade. ­Também
procuramos manter viva a intenção original do Fórum de estar a­ berto à ­inclusão de
todas as organizações comunitárias, embora alguns dos grupos fossem parti­cipantes
menos regulares, simplesmente devido ao tipo de organização. Os g­ rupos ­culturais, por
­exemplo, estavam especialmente interessados em garantir patrocínio ­estatal em ­eventos
que oferecessem espaço para suas apresentações. Outros eram ­ativos porque seus repre­
sentantes eram ativos e deixavam de acompanhar as reuniões quando haviam mudan‑
ças de equipe. Etapas de crise e desmobilização também foram ­momentos em que a
Univer­sidade Federal da Bahia procurou desempenhar um papel mediador, mas desta
vez ­dentro da própria comunidade.

O INTERESSE DO GOVERNO
O governo do Estado da Bahia financiou vários projetos que buscavam consolidar
o FPEBP através de recursos do conselho estadual de pesquisa. O Fórum foi visto por
essas autoridades como uma tecnologia social e política de transformação; uma forma

210
ORGANIZAÇÕES DE BASE COMUNITÁRIAS E DIREITOS À CIDADE EM SALVADOR (BA – BRASIL):
UMA EXPERIÊNCIA DE FAZER PESQUISA ENGAJADA

de organizar a representação e participação popular que fortaleceria a responsabilidade


social e serviria como uma ferramenta para defender as preocupações populares legí‑
timas. O que evidentemente poderia servir de modelo para outras comunidades em
circunstâncias semelhantes. Aceitou-se que a pesquisa etnográfica colaborativa era
­metodologicamente apropriada para fomentar esse tipo de experimento e para aprender
sobre seus pontos fortes e fracos e os tipos de problemas que precisavam ser superados.
Deve ser útil para o governo saber se o dinheiro público está sendo investido em ­projetos
que são considerados valiosos e relevantes pelas comunidades visadas ou grupos espe­
cíficos dentro deles, ou pode ser melhor gasto em outras iniciativas, até p­ orque isso pode
pagar dividendos políticos no momento da eleição. No caso do FPEBP, o que está sendo
debatido ou feito ali dentro pode ser muitas vezes comparado com alternativas ­possíveis,
mas que estão sendo negligenciadas ou mesmo desconsideradas pelo Estado, à m ­ edida
que a discussão se concentra no que os membros da comunidade consi­deram suas
­principais prioridades de desenvolvimento social. Também é provável que as s­ oluções
que os próprios membros da comunidade propõem para seus problemas sejam mais
realistas e eficazes do que aquelas propostas por burocracias estatais que não estão fami‑
liarizadas com as condições locais.
As entidades individuais do Bairro da Paz estão ansiosas para atrair projetos e
apoio do governo, e muitas vezes procuram a equipe da universidade para apoiá-las.
Elabo­ramos um projeto de pesquisa e de empreendedorismo social com duas das enti‑
dades deste Fórum para obter financiamento para fomentar um projeto, o de aprender
a projetar e produzir roupas de moda que fundissem os estilos Africano e Hip-Hop, que
também incluiu um apoio para o trabalho contínuo do Fórum e envolveu uma ­avaliação
acadêmica dos pontos fortes e fracos do projeto no intuito de orientar investimentos
futuros. Embora isso tenha fornecido algumas dores de cabeça administrativas para a
nossa equipe, a apresentação pública dos resultados foi um grande sucesso, não apenas
­porque as roupas de fato tinham qualidade, mas também pela forte presença da mídia e
pela oportunidade de mostrar indiretamente outros aspectos da criatividade c­ ultural da
­comunidade, tais como em dança e música e organização de desfiles de moda. ­Também
se mostrou positivo do ponto de vista da contestação da estigmatização social e da trans‑
missão de uma imagem positiva do local e de seu povo para o restante da ­cidade. Mas
as mudanças nas regras para financiar projetos não exclusivamente orientados para a
pesquisa, fizeram dessa experiência difícil de se repetir a partir de uma universidade
pública, nos anos subsequentes. Ainda quando todavia existem o ­ utras fontes públicas e
privadas de financiamento, parece mais desejável que os ativistas comu­nitários apren‑
dam a fazer suas próprias propostas, como muitos já o fizeram depois. O foco principal
da nossa equipe agora é mais a de apoiar a evolução da estru­tura ­organizacional que
fortalece o apoio mútuo entre as entidades comunitárias representadas no FPEBP e a
que reúne a comunidade em questões importantes de interesse c­ omum. Concluiremos

211
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

discutindo a resposta do Fórum aos desenvolvimentos mais ­recentes que se enquadram


nessa categoria, mas antes disso acrescentaremos mais um elemento ao quadro discu‑
tido até agora: o impacto da experiência de trabalhar com o Fórum sobre os alunos
participantes no nosso time.
Os exercícios de pesquisa participativa são especialmente estimulantes para os
­estudantes, promovendo não apenas um envolvimento mais forte com os problemas
­sociais, mas também para estimular neles uma maior capacidade prática de se envolver
efetivamente com esses tipos de problemas. Além das funções de secretariado obser­
vadas anteriormente, alguns de nossos alunos passaram a desempenhar um papel
­significativo no planejamento e administração das iniciativas do Fórum, muito apre­
ciadas pelos ­líderes e residentes comuns. Mesmo aqueles cuja atividade principal era
entrevistar, ­observar e escrever relatórios e dissertações para fins acadêmicos, envolve‑
ram-se profun­damente com os processos que estavam afetando a vida de seus sujeitos de
pesquisa e os altos e baixos do próprio Fórum. Tudo isso os encorajou não apenas a ­ouvir
mais atentamente e dialogar com as pessoas que eles vieram conhecer, mas ­também a
se preocupar mais com o que aconteceu depois com eles. A participação em reuniões e
organização de eventos melhoraram suas habilidades em todos os sentidos, e eles redi­
giram seus textos de uma maneira muito mais processual e crítica do que os alunos
que não tiveram uma experiência desse tipo. O que esse estilo de pesquisa realmente
promoveu foi a capacidade de cuidar (no sentido dado ao termo por Tim Ingold23, como
um dos tantos textos recentes nos que este autor aborda a complexidade, benesses e
­problemas dos modos de se fazer etnografia).

DESENVOLVIMENTOS RECENTES
Como mencionado anteriormente, além do pagamento de indenizações para os
moradores que precisaram ser realocados, agora estão disponíveis compensações de
«contrapartida comunitária» devido aos impactos sofridos no Bairro da Paz por ­causa
das obras rodoviárias e da estação de metrô. A maior parte das reuniões do FPEBP
­durante 2015 e 2016 foram retomadas com discussões sobre quais contrapartes seriam
solicitadas à CONDER, a empresa de desenvolvimento urbano do governo estadual, e
a empreiteira privada responsável, empresa OAS, pelo bairro como um todo, ou para
­grupos específicos dentro do Fórum. No entanto, apesar das demandas de longa data
para a provisão de mais espaços para recreação e instalação da escola secundária Jorge
Amado a fim de lidar com o déficit existente de provisão educacional, pouco capital foi
de fato injetado na comunidade para melhorar a sua infra-estrutura básica. No ­final,
foi a Base Comunitária de Segurança (BCS), não o Conselho de Moradores ou outras
entidades do Fórum, que receberam quantias significativas de dinheiro do governo

23
INGOLD, 2014.

212
ORGANIZAÇÕES DE BASE COMUNITÁRIAS E DIREITOS À CIDADE EM SALVADOR (BA – BRASIL):
UMA EXPERIÊNCIA DE FAZER PESQUISA ENGAJADA

e­ stadual durante as negociações mais recentes. O financiamento foi canalizado através


do ­conselho estadual de pesquisa para organizar e divulgar, em colaboração com univer­
sidades privadas e estrangeiras, um grupo de atividades a serem realizadas na BCS.
Em 13 de setembro de 2016, o quarto aniversário da sua instalação original, a base da
­polícia mostrou o seu papel de «serviço social» ao promover uma «Feira de Saúde e Cida­
dania», que ofereceu check-ups médicos gratuitos, vários tipos de aconselhamento nutri‑
cional e de saúde em geral, e até aconselhamentos legais ou sobre planejamento financeiro.
Este evento ocorreu, provavelmente não por coincidência, apenas dois dias ­antes
de uma reunião pública organizada meses antes pelo FPEBP para divulgar e buscar
­respostas a reclamações de moradores da comunidade contra supostos abusos come‑
tidos por funcionários da BCS e da SUCOM, a Secretaria Municipal de Urbanismo.
Representantes do Ministério Público e da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e
Desenvolvimento Social foram convidados a discutir denúncias sobre assédio regular
de membros da comunidade em procedimentos de parada e abordagem (revistar) e
­outras acusações ainda mais graves contra a polícia ligadas à BCS e à polícia das Rondas
Especiais (Rondesp) que periodicamente entram na comunidade para prender pessoas
­suspeitas de atividade criminosa. O evento de 2016 foi uma continuação de uma ­reunião
pública anterior sobre esse tema, realizada em 2013, por indignação da comunidade
sobre o aparente assassinato extrajudicial do irmão de um dos principais membros
do Fórum. Este foi um caso complicado, discutido em detalhe em outros lugares por
­Gledhill24, quando ainda não havia sido esclarecido através de investigação oficial três
anos após a morte do jovem.
Desde então, o comandante da base, posteriormente promovido ao posto de capi‑
tão, vinha fortalecendo as ações sociais destinadas a conquistar os «corações e mentes»
da maioria da população. O sistema BCS é o equivalente baiano do programa de «pacifi­
cação» da favela do Rio de Janeiro. A instalação de Unidades de Polícia Pacificadoras
(UPPs) no Rio supostamente transformaria um sistema de policiamento notório por
sua corrupção, bem como pela violência que produziu altos níveis de «danos colaterais»
entre moradores não envolvidos em atividades criminosas. Um novo estilo de «policia­
mento de proximidade», que em teoria criará melhores relações entre a polícia e os
residentes, deve ser reforçado pelo envolvimento da polícia em programas sociais de
bene­fício para a comunidade. Foi exatamente isso que o BCS do Bairro da Paz procurou
tentar fazer, oferecendo cursos regulares para crianças, adolescentes e adultos, além de
eventos pontuais como o «Festival de Saúde e Cidadania».
O experimento das UPPs no Rio hoje em dia já é considerado amplamente um
fracasso. No entanto, no caso do Bairro da Paz, essa estratégia policial de «aproxi­mação»
se refletiu no fato de que, desde cedo, o comandante da base insistiu que a BCS d ­ everia

24
GLEDHILL, 2015.

213
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

se tornar um membro reconhecido do Fórum e buscou construir relações com o o ­ utros


líderes do mesmo. Embora essas relações nem sempre tenham sido completamente
­cordiais, ele permaneceu ativo no grupo de discussão do WhatsApp do Fórum, e muitas
vezes se ofereceu para atuar como mediador do governo em relação a vários p ­ roblemas
da comunidade. No entanto, se está longe de esclarecer que esse tipo de d ­ esenvolvimento
será favorável aos interesses da comunidade. Alguns ­líderes do FPEBP expressaram
­preocupação com a concentração de investimentos em desenvolvimento social na BCS,
descrita como uma «mini-prefeitura» instalada no coração do bairro. Além da possi‑
bilidade de uma instituição policial se tornar um instrumento de clientelismo político
para o grupo que governa a cidade, é improvável que tal ­mudança promova um controle
inclusivo e democrático, participativo, sobre a alocação de ­recursos. Pode simplesmente
tornar mais fácil impor esquemas que proporcionem boa publicidade para políticos e
soluções baratas para administradores em um período de austeridade econômica.
A BCS continua sendo alvo de fortes críticas na comunidade. Mesmo alguns dos
líderes do FPEBP, os que estão dispostos a aceitar que o comandante da BCS tem boas
intenções pessoais, permanecem desconfiados do aparato estatal que ele representa e do
plano institucional que está por trás do projeto da BCS. As principais figuras do ­Fórum
têm posições políticas e ideológicas divergentes. Os debates muitas vezes se ­tornam
­acalorados e personalizados a ponto de alguns indivíduos decidirem se ­retirar da orga‑
nização, pelo menos por um período. Aqueles que tendem a ver o Estado como essen‑
cialmente repressivo têm os motivos para fazê-lo, revelados duramente na mais recente
reunião pública sobre segurança e abuso policial. Os mais afetados por atos de v­ iolência
e discriminação por parte da polícia incluem jovens (e, em alguns casos, não tão ­jovens)
membros dos grupos culturais, que celebram sua negritude de maneira ­criativa e poli­
tizada, mas cujos estilos de vida estão supostamente associados ao crime e uso de
drogas nas mentes de muitos policiais. Houve uma série de episódios nos quais a
polícia ­entrou em residências familiares e parece haverem maltratado os pais idosos de
­suspeitos que foram denunciados na reunião pública de setembro de 2016, envolvendo
a mãe de um ex-soldado acusado pelo crime de tráfico de armas. Um de seus outros
­filhos é um m
­ úsico extremamente bem-sucedido, que era, ironicamente, o único músico
da comunidade disposto a se apresentar na cerimônia oficial de inauguração da BCS
em 2012. A senhora idosa expressou seu desgosto de como a polícia se comportou de
maneira tão vigorosa no encontro do Fórum, que provocou muitos aplausos. A série
acumulada de incidentes denunciados pelos residentes foi categorizada como «extre‑
mamente grave» pelo funcionário do departamento de direitos humanos, não só pelo
uso despropor­cional de força (infelizmente habitual) que os policiais revelaram, mas
também pelo ­nível de preconceito que parecia estar por trás deles.

214
ORGANIZAÇÕES DE BASE COMUNITÁRIAS E DIREITOS À CIDADE EM SALVADOR (BA – BRASIL):
UMA EXPERIÊNCIA DE FAZER PESQUISA ENGAJADA

O formato espacial das reuniões públicas do Bairro da Paz se conforma a um


­ odelo típico brasileiro que Albert25 associa ao controle de reuniões participativas por
m
funcionários ou patrocinadores políticos, uma mesa de palestrantes principais voltada
para o público com uma tela de PowerPoint em um dos lados da mesa. Embora esta
­análise da dinâmica espacial esteja normalmente correta, o que é diferente nas r­ euniões
do FPEBP é que são os líderes da comunidade que orquestram a reunião, e estes não
­inibem m ­ embros do seu público de moradores por irem à frente falar longamente
­(mesmo que façam uma persuasão política diferente). Alguns funcionários públicos
­claramente tentam evitar comparecer a esses eventos por causa da grande probabili­
dade de enfrentarem um morador irritado com um microfone, olhando diretamente
nos olhos e apontando-lhes o dedo em modo acusatório, bem de frente para a mesa.
Mas no caso da reunião de setembro de 2016, havia uma razão especial para os líderes
da comunidade desejarem estar no palco, foco de atenções. Muitos moradores temem
represálias por fazerem uma denúncia, com justificativa absoluta com base em expe‑
riências concretas na sua própria vizinhança e na cidade como um todo. Líderes que
arriscam aceitar o calor em nome de outros, frequentemente expressam uma ansiedade
sobre sua segurança pessoal que está longe de ser paranóica em um contexto no qual a
operação de esquadrões da morte dentro da força policial é muito visível26. O dia 15 de
setembro de 2016, foi um sucesso notável para o FPEBP como um veículo que deu voz
à sua c­ omunidade, e nessa ocasião a voz também incluiu pequenos empresários e d ­ onos
de bares que estavam reclamando de intervenções pesadas da SUCOM. No entanto, ao
refletir sobre esse sucesso após o evento, os líderes também expressaram um ceti­cismo
contínuo sobre se as suas queixas realmente seriam devidamente investigadas e se de
fato haveriam ações oficiais posteriores para evitar problemas futuros. O que pode ser
dito, no entanto, é que a persistência dessa comunidade em insistir que os crimes sejam
­punidos, que os direitos de seus residentes sejam respeitados e que suas prioridades de
desenvolvimento social sejam reconhecidas cria uma pressão organizada de baixo que
as autoridades públicas têm encontrado difícil ignorar por inteiro.

CONCLUSÃO
Nossa pesquisa acadêmica no Bairro da Paz mostra como os residentes desenvol­
veram formas cada vez mais sofisticadas e maduras de organização comunitária para
fazerem demandas às autoridades públicas, responsabilizando-as e monitorando o
­progresso das negociações. Embora grande parte do que se chama de «governança
parti­cipativa» no Brasil seja de cima para baixo, de uma maneira que funciona m
­ elhor
sobre a venda de decisões já tomadas do que ouvindo aqueles que são afetados por

25
ALBERT, 2016.
26
GLEDHILL, 2015.

215
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

elas, o FPEBP apresenta a sua contestação de baixo, sendo relativamente inclusivo


de todos os interesses da comunidade e resistente à «imposições» de todos os tipos.
Até que ponto a comunidade pode ir além da contestação e fazer exigências para
­assegurar resultados concretos depende, no entanto, de sua capacidade de assegurar
uma ­resposta ­solidária entre os vários tipos de autoridades públicas que são seus inter­
locutores. É p ­ ossível ­encontrar pessoas que possam atuar como aliados solidários dentro
dessas agências g­ overnamentais, especialmente quando as questões dizem respeito aos
direitos ­humanos básicos. Mas isso não é simplesmente uma questão de comunicação e
de garantir a ­compreensão mútua. As reações do governo estão sujeitas a preocu­pações
políticas s­obre refúgios eleitorais mais amplos e moldados por poderosos interesses
­econômicos. É por isso que formas participativas de governo, mesmo na melhor de suas
intenções, não geram necessariamente os melhores resultados possíveis para os cidadãos
mais pobres. Quando os cidadãos que vivem nas favelas são definidos como uma a­ meaça
à segurança do resto da sociedade, legitimando o policiamento repressivo de suas comu‑
nidades, esse tipo de problema é agravado, porque até mesmo outras pessoas próximas
da classe trabalhadora, atormentadas por problemas de crime e violência podem apoiar
tais políticas, reforçando a probabilidade de que os «excessos» da polícia, como os que os
moradores do Bairro da Paz reclamam, ficarão sempre impunes e sem correção.
Ao observar e refletir criticamente sobre o processo de formação, desenvolvimento
e institucionalização do Fórum por meio da elaboração e debate de regras organiza­
cionais formais e seus momentos de fortalecimento e enfraquecimento, nós, como
­pesquisadores acadêmicos, procuramos fazer tudo que esteja ao nosso alcance para
apoiar os seus esforços de democracia interna e consolidar o seu funcionamento, uma
vez já tendo sido comprovado resultados de desenvolvimentos na sua região e na ­cidade
como um todo. Trabalhamos com as outras entidades, da melhor forma que podemos,
e nem sempre com sucesso, para construir uma organização que verdadeiramente
­reflita sobre os principais interesses da comunidade como um todo e seja consciente
de seu potencial para pressionar as demandas do governo de forma eficaz. Nesse modo
de p ­ roduzir conhe­cimento por meio da imersão e da participação ativa, que também
visa impactar os campos sociais que são objeto de seu estudo, procuramos entender e
­traduzir a realidade social para o modo mais holístico de fazer etnografia, por meio de
relações processuais estabelecidas entre pesquisadores-participantes e interlocutores na
comunidade, ou nas palavras de Tim Ingold27, prestando «atenção» ao outro de maneira
a promover um «cuidado» genuíno com ele.

27
INGOLD, 2014.

216
ORGANIZAÇÕES DE BASE COMUNITÁRIAS E DIREITOS À CIDADE EM SALVADOR (BA – BRASIL):
UMA EXPERIÊNCIA DE FAZER PESQUISA ENGAJADA

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218
WAYS OF MAKING A HUMAN OTHERWISE:
AFTER-ETHNOGRAPHY WITH MIGRANT
LABOURERS IN ITALIAN
AGRO-INDUSTRIAL ENCLAVES
IRENE PEANO*

Abstract: The paper addresses the ways in which the management of migration and of migrant labour, with
particular reference to italian agro-industrial enclaves, has relied upon forms of de-humanisation, whose
targets (mainly West African migrants) identify as forms of animalisation. Manhunts and lynchings are
the crudest forms of such violent exclusions, which however also manifest in more subtle and generalised
­patterns, characteristic of the humanitarian regime of migration management itself. Against what, drawing
on Derrida and Vaughan Williams, I term «zoopolitical» violence, I consider the emergence — in the slums
of agro-industrial enclaves where West African workers live — of relations between humans and animals
that flag the possibility of a human or animal being treated in an equivalent way. Such reflections are the
­result of a protracted engagement in these settings, founded on a form of participant observation which
aims not at neutral description and analysis, in the ethnographic mould, but at actively supporting and
elaborating alternative futures. To do so, the notions of anthropos and ethnos which have informed anthro‑
pological scholarship since its inception also need to be radically rethought, precisely through engagement
with other ways of making and being human.
Keywords: zoopolitics; after-ethnography; human-ness.

Resumo: O artigo aborda as maneiras pelas quais a gestão da migração e do trabalho migrante, com parti‑
cular referência aos enclaves agroindustriais italianos, se tem baseado em formas de desumanização, cujos
alvos (principalmente migrantes da África Ocidental) são identificados com formas de animalização. «Caça
ao homem» e linchamentos são as formas mais cruéis dessas exclusões violentas, que, no entanto, também
se manifestam em padrões mais sutis e generalizados, característicos do regime humanitário do próprio
sistema de gestão das migrações. Contra o que, baseando-me em Derrida e Vaughan Williams, chamo

* Instituto de Ciências Sociais, University of Lisbon. Email: irene.peano@ics.ul.pt. Research for this publication was
conducted thanks to different grants, of which the most recent is the ERC Advanced Grant «The Colour of Labour:
The Racialised lives of Migrants» (grant n.º 695.573), PI Cristiana Bastos.

219
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

violência «zoopolítica», considero o surgimento — nas favelas de enclaves agroindustriais onde vivem @s
trabalhador@s da África Ocidental — de relações entre humanos e animais que sinalizam a possibilidade
de um ser humano (e animal) serem tratados de modo equivalente. Tais reflexões são o resultado de um
engajamento prolongado nesses cenários, baseado numa forma de observação participante que visa não a
descrição e análise neutras, segundo o modelo etnográfico, mas apoiar e elaborar ativamente futuros alter‑
nativos. Para fazer isso, as noções de anthropos e ethnos que informaram os estudos antropológicos desde
a sua criação também precisam de ser radicalmente repensadas, precisamente através do empenhamento
noutras maneiras de criar o ser humano e de se viver como tal.
Palavras-chave: zoopolítica; after-ethnography; humanidade.

This intervention, and more broadly the work underlying it, is born out of a sense
of urgency for new ways of making — that necessarily also go with ways of unmaking, or
more bluntly of actively destroying and taking apart. Specifically, I wish to make visible,
and further, a process of struggle on the edges of the human, for the latter’s remaking and
reinhabiting — a process in which knowledge production plays a fundamental role,
and is itself a site of struggle. I do so from a partial, contingent and situated position, the
one from which I have been conducting engaged, fieldwork-based participant obser­
vation since 2012.
Geographically, the scope of my analysis encompasses several agro-industrial
­enclaves in different locations across Italy. My engagement has taken place particularly
in two open-field farming districts, those of the so-called Tavoliere (which belongs to
the district of Foggia, in the upper part of the south-eastern Apulia Region) and of the
Plain of Gioia Tauro, in the district of Reggio Calabria (the southernmost province of
mainland Italy). Tavoliere, or Capitanata, is the second largest stretch of arable land in
Italy after the northern Po valley. Its farming industry is devoted to a gamut of ­produce,
which has progressively expanded from a traditional vocation to wheat (and now largely
abandoned, transhumant sheep pastures) towards a number of seasonal, labour-inten‑
sive crops: mostly vegetables (with industrial tomato as the lead cultivation, both of the
round and the long variety), olives and grapes. The Plain of Gioia Tauro, on the ­other
hand, represents one of the main districts for citrus-fruit cultivation in the country
(with olive groves also playing an important role), although it is now increasingly seek‑
ing reconversion towards higher-added-value, fruit-tree growing — which entails also
the ever more common practice of felling citrus groves to the ground. Again, these are
labour-intensive crops which demand highly seasonal patterns of work.
A corridor made of seasonal migration flows stretches between the two enclaves,
and some others too, such as the area around Metaponto, towards the Ionian coast of the
Basilicata Region; the so-called Terra di Lavoro, around the city of Caserta, just north
of Naples, which acts as the main hub for all such seasonal movements, being a point of
­reference especially for West African migrants; or the north-western district of Cuneo,
in Piedmont, particularly around the town of Saluzzo, thus the same workers in many

220
WAYS OF MAKING A HUMAN OTHERWISE: AFTER-ETHNOGRAPHY WITH
MIGRANT LABOURERS IN ITALIAN AGRO-INDUSTRIAL ENCLAVES

cases alternate between one and the other according to seasonal labour requirements
and o ­ pportunities: winter for citrus, spring and summer for peach and vegetables,
­autumn for olives, grapes and other fruit (particularly apple and kiwi). Both districts
are among the most emblematic examples of a system of management — of agro-indus‑
trial production in general, and of the workforce and its mobility in parti­cular — that
was progressively restructured through interrelated processes of zoning and of global
supply-chain integration. In turn, these had externalisation effects at various levels,
which ultimately dumps costs on workers, especially when migrants, as the ­weakest
links in the chain1.
In managing the workforce and re-organising agro-industrial production, s­ pecific
articulations, and more poignantly recursive forms of denial, of the human have ­arguably
played a crucial role. In all Italian agro-industrial districts, since the 1970s (time when
these processes of restructuring were set in motion) the majority of the «unskilled»2,
and especially the seasonal, workforce, has been progressively (if not entirely) substi‑
tuted. Where previously made of locals or of internal migrants and often highley femi‑
nised, subsequent waves of international migrants — from Northern Africa and A ­ lbania
first, then from sub-Saharan Africa, the Indian sub-continent and Eastern Europe have
signi­ficantly modified its composition, paralell to profound changes in the forms of
work itself. In this ­context, processes of zoning have been operating not just to (dis)
integrate individual farms into agro-industrial districts, at the mercy of large distri­
bution compa­nies, processing industries and their middlemen, but also to confine and
sort their migrant workforce along racialised and/or ethnicised lines (which are always
also gendered) that fracture and ­hierarchise a supposedly selfsame «human» commu‑
nity. Partially new forms of discri­mination, of exclusion or of «differential inclusion»3,
have built on and remodelled old ones, which at least since the mid-19th century had
­constructed uncouth, ignorant, poor day labourers, especially if southerners, as racially
and culturally inferior4.
In fact, the puncturing and fracturing of an allegedly universal «human» ­condition
respond to an exclusionary logic which has been the constitutive cipher of ­humanism
itself ever since the 17th century, and thus from the very birth of the Enlightenment’s

1
PEANO, 2019.
2
The workforce is here categorised as unskilled by definition, within a bureaucratic as much as a more broadly
­cultural discourse, whilst of course not only a series of complex skills is required to live and work in these contexts,
but in some cases the labour performed by farm workers would legally qualify as highly skilled (I am thinking
for ­example of tasks such as pruning, performed by many workers for the lowest legal wages, corresponding to
­non-skilled jobs, or even below the minimum, but technically categorised as highly skilled). Indeed, this is a conflict
over the valuation of ways of making.
3
MEZZADRA & NEILSON, 2013.
4
For an overview of the dynamics of internal racialisation that have operated in Italy since its unification in 1861, see
SCHNEIDER, 1998; and LOMBARDI-DIOP & ROMEO, 2012, for the postcolonial ramifications of such patterns
of racialisation.

221
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

«Man»5, if not earlier6. Racial/ethnic/national (but also gender/sexual) qualifiers ope­


rate through legal, media, and popular discourses, which materialise in multiple forms:
­spatial arrangements that act as differential forms of containment and socia­bility; subjec­
tive/­affective dispositions that mark relations, representations, entitlements and vulner‑
abilities; wildly unequal forms of resource distribution predicated on such ­dispositions,
discourses and institutional frames. In the contexts at hand, migrants in agro-indus­
trial enclaves are segregated in slums, labour camps, asylum seekers’ reception c­ entres,
abandoned farmhouses or overcrowded apartments without basic utilities. Whilst
­
arran­gements vary according to place and the specific category to which m ­ igrants are
assigned (asylum seeker, EU citizen, undocumented alien, etc.), segre­gation and impo­
verished forms of dwelling are the norm across the spectrum. Legal barriers regulat‑
ing migration — both from outside and inside the EU/Schengen space — and access
to ­municipal residency registries, together with their selective, arbitrary application
­operate to ­produce and reinforce such composite boundaries.
In Capitanata as well as in the Plain of Gioia Tauro, West-African migrants
­employed in the agricultural sector (and in related occupations) may live in asylum-
seeker reception centres (of which the largest is located some few kilometres from the
city of Foggia, nearby a small Fascist-era rural settlement called Borgo Mezzanone);
in large or small self-constructed slums and hybrid settlements, partly sponsored by
­governments themselves (a sprawling shantytown has been growing around the fenced
perimeter of the same reception centre in Borgo Mezzanone, but examples abound); in
abandoned rural settlements, built at the time of the agrarian reform of 1950 (such as
the mostly G­ hanaian hamlet of Tretitoli, near the town of Cerignola) or of the Fascist-era
land-reclamation projects that are scattered across the Tavoliere; in purposefully built
labour camps (such as the high-security tent camp erected in the summer of 2017 in
the Industrial Area of San Ferdinando, adjacent to the port of Gioia Tauro); in empty
warehouses; or in spaces which cannot be easily categorised as one or the other, but
which display features of many. Following partially different trajectories and arrange‑
ments, Eastern European workers (mostly from Romania and Bulgaria) reside either in
slums (especially if they are of Roma origins, as it is often the case), in abandoned farm
– or warehouses or in overcrowded flats, shacks, and containers arranged by farmers or
intermediaries. In all cases, only those workers who, after many years and some luck, are
able to gain some stability (working for the same farmer, with a labour contract and thus,
in the case of non-EU migrants, with legal right to residency) can hope to find rented
accommodation in one of the (agro)towns or villages that dot both enclaves. If, that
is, landlords agree to rent their property to «blacks», «Africans», «immigrants» — and

5
FOUCAULT, 1970; MCKITTRICK, 2015; REES, 2018.
6
AGAMBEN, 2002.

222
WAYS OF MAKING A HUMAN OTHERWISE: AFTER-ETHNOGRAPHY WITH
MIGRANT LABOURERS IN ITALIAN AGRO-INDUSTRIAL ENCLAVES

often they do not, as it emerges from the tales of many prospective tenants, especially if
single men.
Taken together, the two macro-communities (of West Africans and Eastern Euro‑
peans) make up the largest proportion of farm workers in both districts7. Whilst forms
of discrimination, segregation and racism affect both, here I wish to focus specifically on
the dynamics of de-humanisation that invest primarily West-African migrants, both
on account of my longer-term engagement with this group of workers and on the fact
that they arguably undergo specific forms of othering predicated on their blackness.

MANHUNTS, ZOOPOLITICS AND THEIR HUMANITARIAN


SHADOW
Perhaps the most vivid, appalling and dramatic instance of de-humanisation that
(especially African) migrants suffer, in Italian agro-industrial enclaves as in the rest of
the country, is epitomised by the acts of violence they frequently undergo for the mere
fact of being black. Whilst this is hardly a new phenomenon (having been documented
for as long as African immigration started in significant numbers in the late 1970s),
roughly since the weeks preceding the last general election in early March 2018, and
throughout the year, an upsurge in such incidents was reported, denoting a renewed
attention to the phenomenon if not an actual rise in quantitative terms — which is not
only hard to ascertain but also beside the point of my reflections8.
As far as agro-industrial enclaves are concerned, the first and perhaps the most
(in)famous recorded episode of what effectively counts as an act of lynching happened
in August 1989 in Villa Literno, in the district of Caserta, where Jerry Masslo, a south-­
-African anti-apartheid activist who had been denied the right to asylum in Italy, was
murdered in cold blood whilst his fellow farm workers, all African, were wounded by
gunshots. The victims were living in an abandoned country house and were employed in
the tomato harvest9. In the same area, in 2008 six West African men were also shot dead
by mobsters of one of the rivalling Camorra gangs who wished to send an intimidatory

7
The latest available official estimates, referring to 2017 and based on the number of people registered in the muni­
cipal farmworkers’ lists, speak of around 20.000 migrant farm workers employed in Capitanata and of about 6.500
in the Plain of Gioia Tauro (MAGRINI, 2018). About half of these are from Eastern Europe, whilst the number of
West African migrants is harder to aggregate but can be estimated to be around 6000 for Tavoliere and 3-4.000 for
the Plain of Gioia Tauro.
8
For a (very partial) reconstruction of the first instances of racist violence and murder, see <https://www.internazi‑
onale.it/opinione/igiaba-scego/2016/07/07/omicidio-fermo-razzismo-italia>. For (again very cursory) chronologies
of the most recent incidents, see <http://hatecrime.osce.org/italy>; <https://www.radicali.it/cronologia-aggressio‑
ni-razziste-da-inizio-giugno-ad-oggi/>; <https://www.lunaria.org/il-razzismo-nel-2018-on-line-il-nostro-nuovo-
focus/>; for the 2007-2009 period, see ANDRISANI & NALETTO, 2009. These are problematic in a number of
respects, not least because official figures often downplay aggressions, failing to recognize their racist motivations.
Furthermore, no aggregated data is officially collected in Italy about such episodes of racist-inflected violence.
9
For a more thorough treatment of the episode and its implications for anti-racist struggles in Italy, allow me to refer
to an older piece of mine (PEANO, 2017).

223
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

message to the entire community. In this case, and unlike most others, the judiciary
recognised racial motivations underlying the indiscriminate shooting of black people
simply based on the colour of their skin. Just as in the case of Jerry Masslo and of other
similar attacks that had happened in the area between 1986 and 1990, the 2008 mass
shooting also led to a revolt by the local African community and, to some extent, to acts
of solidarity from Italian citizens too.
In the 2000s, in Rosarno (the main town in the Plain of Gioia Tauro), black
­migrants were also targeted by racist aggressions, and again revolted (once in 2008 and
then in 2010). Currently, African people living in the area, mainly in camps and slums,
also report repeated attacks (usually perpetrated by motorists who attempt to run them
over or club them from their cars, mostly at night, but also in broad daylight and by
groups of white men on foot. Since the beginning of 2019 three lifeless black bodies have
been found in Rosarno, whose deaths are shrouded in mystery: once again, they appear
to have been killed for no reason. In the meantime, in 2016, Sekine Traoré, a Malian
resident of the slum of San Ferdinando, later razed to the ground by the autho­rities, was
shot dead by a carabiniere who had been called by Sekine’s fellow inhabitants to calm
him down, after a row had broken out during which he had had a fit and lost c­ ontrol.
The law enforcement agent allegedly felt threatened by a man on the ground, who,
whilst wielding a small kitchen knife, was being held by several other slum d ­ wellers.
In 2018, S­ oumaila Sacko, another resident of the now extinguished shantytown, was
gunned down and killed by the owner of a former cement factory (long confiscated by
the judi­ciary because of severe irregularities), where the young man, also from Mali,
was scavenging for shack-building material together with others, who were also shot
and wounded.
Similarly, in October 2015 three men were shot in the back, and one, Mamadou
Sare, killed, in a field near Foggia, by the owner of a farm and his son, who had hunted
them down for several miles (chasing them from their car, whilst the young men were
running) allegedly because they had seen them stealing some (discarded) melons from
the ground in their property. A demonstration by his fellow workers and slum dwellers
took place a few days after the incident. In the month of July of 2019, at least four violent
attacks were reported by several African workers that live in an abandoned milk factory
in the outskirts of the city of Foggia, who in the wee hours of the morning, whilst riding
their bicycles or scooters to work, were stoned or run over. One of them was hospitalised
and nearly lost sight in his right eye, after being hit by a stone. Two young men were later
arrested on charges of aggression related to those incidents, and are currently awaiting
trial. Finally, 51-year-old Daniel Nyarko, the latest victim in this (certainly partial) list
of horrors, was shot dead in March 2019 in front of the farmhouse where he lived with
his partner near Borgo Mezzanone. The initial version of the incident, provided by law
enforcement agents, spoke of «a brawl among migrants» — which, as it later turned

224
WAYS OF MAKING A HUMAN OTHERWISE: AFTER-ETHNOGRAPHY WITH
MIGRANT LABOURERS IN ITALIAN AGRO-INDUSTRIAL ENCLAVES

out, had indeed taken place, but several miles away from the scene of the murder and
between people of other nationalities. However, Daniel’s close friends speculated that he
was killed as retaliation. Some years previously he had had several people arrested, whom
he had caught trying to steal some agricultural machinery from the owner of the farm
for which he worked as watchman. Also in this case, his skin colour and origin ­certainly
granted for harsher punishment, as a disposable, subhuman body. His employer refused
not only to provide any form of support and compensation to Daniel’s relatives, but also
to correspond his overdue wages to his (Nigerian) partner, who, adding insult to injury,
was drawn out of the house.
In his philosophical study of manhunts, which spans rather large spatiotem­poral
scales, ranging from ancient Greece to 19th century United States, through Biblical
(mythical) times, Medieval and Modern Europe, Grégoire Chamayou10 makes the point
that these practices are not only foundational to what one could label Western poli‑
tics (in a mode which he tags as «cynegetic sovereignty»), but that they are predicated
on a double movement, of expulsion from a common order and thence, by virtue of
such prior expulsion, of capture. The manhunt is an act of domination, one which draws
­particular pleasure from the ambivalent humanity of the prey, at the same time denied
and recognised11.
Indeed, West-African migrants living in slum-camps regularly portray — at the
same time emphatically contesting — their inferiorisation as a form of animalisation.
«They treat us like animals, we blacks — are we not human?», is a ubiquitous refrain
heard at times of indignation, whether collective or individual (cf. Figure 1). Equally,
some farm owners refer to their African workers as «beasts». Yet, beyond a reaction
against explicit acts of violence, and to life in the slums and work in the farms, animali‑
sation for those who live it on their skin and in their flesh, and protest against it, refers
also to the kind of treatment enforced through the very humanitarian regime which
­encroaches upon migrant subjects ever since the start of their journeys, through Niger
and ­Libya, across the Mediterranean, and then in the various spaces of containment
(and ­confinement) to which they are relegated — from hotspots, hubs and asylum-seeker
­reception centres to labour camps that merge into slums, and ultimately also prisons and
migrant detention centres12.

10
CHAMAYOU, 2012.
11
On a related point, with particular reference to the duplicitous status of US slaves in the antebellum south, as both
objects and persons, cf. also HARTMAN, 1997.
12
As far as administrative detention is concerned, in relation to animalisation cf. <https://www.borderline-europe.
de/sites/default/files/features/2014_Final_brochure_at-the-limen.pdf>, p. 24-25; <https://ilmanifesto.it/la-denun‑
cia-di-un-ragazzo-detenuto-nel-cpr-di-corso-brunelleschi-a-torino-la-situazione-e-molto-peggio-di-quello-che-
credete/>; <https://www.fanpage.it/attualita/morto-nel-cpr-di-torino-un-detenuto-ho-denunciato-lo-stupro-ma-
nessuno-e-intervenuto/>.

225
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Figure 1. A placard held by a protester during a spontaneous demonstration which erupted after the killing of Sekine
Traoré by a law enforcement agent (carabiniere) in the tent-camp turned slum of San Ferdinando, Calabria.
The banner reads: «Italy there is much racism! Why did carabinieri kill us? Carabinieri!
In Italy there are no laws between Italians and foreigners. We are not like animals! We are people!».

Following Derrida13, Vaughan-Williams14 identifies the operations of a «zoopoli­


tical» border as «the constitutive outside of humanitarian discourses, the ­application
of human rights, and the citizen as the «proper» human subject in spaces of animali‑
sation across Europe» (2). Animalisation, in other words, «is a necessary condition of
­possibility for humanitarianism» (3). However, whilst this very much resonates with the
protestations of the slum-camp dwellers with whom I have worked and shared struggles
for many years, I would argue that the border between the humanitarian and the zoopo‑
litical is far more complex and blurred, for in the name of humanity some of the worst
abuses, which these same subjects oppose, have been perpetrated and interpreted as acts
of animalisation by those undergoing them.
Aside from the quasi-carceral conditions of asylum-seeker reception centres,
mass-scale evictions have been repeatedly framed by government authorities as «huma­
nitarian» operations, resulting not only in the loss of dwellings, income and sociality
for hundreds of people, but in some cases in the death of some of the slum inhabi­
tants. Such was the fate of two young men (Mamadou Konaté and Nuhu Doumbia)
­during the police dismantlement of a place known as Grand Ghetto, some 10 km from
­Foggia, in March 2017, when a large fire developed that killed them in their sleep.

13
DERRIDA, 2009.
14
VAUGHAN-WILLIAMS, 2015.

226
WAYS OF MAKING A HUMAN OTHERWISE: AFTER-ETHNOGRAPHY WITH
MIGRANT LABOURERS IN ITALIAN AGRO-INDUSTRIAL ENCLAVES

More ­recently, since the beginning of 2019, a piecemeal operation tellingly named
«Law and ­ Humanity» (in English) has been progressively bulldozing shacks and
­houses in another such large settlement, known as Mexico by its inhabitants, where in
fact some of the evicted ­dwellers of the Grand Ghetto had found refuge. Similarly, the
«humani­tarian alternative» to slums has always consisted in what turn out to be equally
inhuman(e) container and tent camps, which easily turn into slums. In the allegedly
high-security tent camp that, by government fiat, finally replaced previous tent-camps-
-turned slums in San Ferdinando, a fire developed in March 2019 that killed yet another
young man, Noumou Sylla.
«Humanitarian reason», that profoundly unequal form of government analysed
by Fassin15 as a compassionate politics of precarious lives, that does not exclude repres‑
sion, might indeed entail necropolitical forms of animalisation as the underside of an
ever u ­ nsteady and dubious compassion. After all, as Hartman16 argued, even when the
­ensla­vement (and thus the objectification) of Africans was institutionally recognised,
the law’s attribution of a residual humanity to the slave acted to intensify «the brutal exer‑
cise of power upon the captive body rather than ameliorating the chattel condition» (5).
At the same time, just as the human is punctured and fractured, but also infested,
by racist and exclusionary logics, African migrants identify a mirror operation at play in
relation to animality. Whilst some humans are animalised, pets are humanised. «Italians
treat their dogs better than us», they contend; «dogs owned by Italian people cannot live
how we do. Even they are given houses»; «Salvini [the previous, notoriously ­anti-migrant
Minister of Internal Affairs] even passed a law to protect dogs» — as indeed he did, as
well as worrying about the fate of the stray dogs from the asylum-seeker reception centre
of Mineo, in the district of Catania, Sicily, which was recently closed down by his minis­
try’s decree. In the summer of 2019, the Minister’s concern for stray dogs was taken
up by a group of people preoccupied with the future of the dozens of animals sharing
their l­iving space with the inhabitants of the asylum-seeker reception centre (CARA)
in Borgo Mezzanone, Foggia. Worried that these animals would have no place to stay
after the announced the evacuation of the centre, they started a Facebook page named
CARABau to find «a new home» for them, and especially for those dogs who, accord‑
ing to the promoters, were the object of abuse from the centre’s hosts. Apart from this
­instance, no mention is made of the latter or of the inhabitants of the large shantytown
that sprawls around it, who not only are themselves going to lose «their home», but are
also, in many cases, actively tending to the dogs themselves, who from this point of view
are indeed not «stray» at all. Indeed, by way of a conclusion, I wish to suggest ways in

15
FASSIN, 2012.
16
HARTMAN, 1997.

227
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

which the human-animal dyad might be re-assembled in less exclusionary forms, which
also interrogate the role of (post)humanist disciplines such as anthropology.

OF DOGS, REFUGEES AND OPEN-ENDED PROCESSES OF


HUMAN EMERGENCE, AFTER ETHNOS
The elaboration of their condition as a form of animalisation, a constant refrain
for African migrants subjected to forms of violent dehumanisation in agro-industrial
­enclaves, might be taken as underscoring a discourse of human exceptionalism. Yet,
I would argue that the relations which these subjects establish with their nonhuman
companions bespeak partially alternative conceptualisations that do not square with
the dominant forms of the human that also exclude them. One specific interaction
crystallised this potential for me, during a visit I paid to a household that hosts ­several
­workers (both men and women) in a hamlet in the district of Foggia. Entering the fenced
­courtyard I and my fellow visitors were greeted by a small, grey-and-white furred dog,
whose «owner», the household head and the senior figure in the whole settlement,
­immediately proceeded to call off as an act of courtesy, in order to deliver us from a
­supposed encumbrance: «Refugee!» he shouted. Stunned by the appellation, I inquired
about the choice of name for the dog. «One day he appeared into the courtyard», his
­human friend explained, «and wouldn’t leave. So after some time, we decided to give
him five years and let him stay». Ample laughter followed from all sides.

Figure 2. Refugee, the dog. Borgo Tretitoli (Foggia).

The mocking, mimetic reference to the asylum system, which entails the ­granting
of five-year-long residency permits to successful applicants, brought into relief for me
an attitude that, through irony, overturned the hierarchies between human and ­animal,
and thus also, by implication, between humans themselves. Being treated «like dogs»
(or worse) by fellow humans, in a system in which many are denied not only refugee
status but also lesser forms of protection and recognition, did not imply these s­ ubjects’

228
WAYS OF MAKING A HUMAN OTHERWISE: AFTER-ETHNOGRAPHY WITH
MIGRANT LABOURERS IN ITALIAN AGRO-INDUSTRIAL ENCLAVES

own mistreatment of animals, on the contrary: in their ironic but real, alternative
­order, n ­ obody, human or not, should be denied the right to stay. In a slight twist to
the same logic, in the temporary tent-camp that was set up in the Industrial Area of
San ­Ferdinando after the eviction of an abandoned warehouse, and which subsequently
hosted for some time those who had lost their homes in the final demolition of the
adjacent slum, a man called his dog: «Salvini!». Whilst the appellative in this case was
an index of the dog’s penchant for misbehaviour, it nonetheless carried, at one and the
same time, a sense of depreciation for the Minister after whom he was baptised, and of
affection for the animal, with whom the man was used to play. The animal version
of the M ­ inister could become a playmate, a life companion, once brought to the same
level as its ­African friend. All African worker slums proliferate with dogs and cats,
­normally fed and cared for by their inhabitants, who in some cases even buy special dog
feed for them. If p­ eople do refer to a few of the animals as «theirs», this entails less a sense
of entitlement and domination than a special form of friendship and attachment. Many
bear Italian names (Sara, Paolo…), building a sort of tongue-in-cheek connection with
people that those who chose the names do not often have the chance of befriending; or
names that r­ ecall cherished people or places (such as «Africa»). Dogs are adopted purely
as friends; they keep being «stray» even when they are somebody’s. Like all relations in
the slums, these are borne of displacements. Not unlike many other settings, the slums
— as spaces which are structurally outside or on the fringes of humanitarian govern‑
ment — thus also emerge as places in which alternative conceptions of the human, and
of its consti­tutive other, may take shape, endure or even thrive despite great hardship
and their mainstream representation as spaces of perdition, oppression and misery.
The human-animal relationships fostered in these spaces are perhaps among the
most vivid, and certainly the most neglected, examples of what alternative conceptions
of the human might look like, if they are by no means the sole ones. The slums that
dot agro-industrial enclaves are, therefore, a powerful epitome of what, after Tobias
Rees17, I would call an after ethnos: spaces where ruptures and mutations of established
­conceptions of the human emerge, which can be rendered visible by an analysis of how
­instances of the here and now «derail and defy the normative conceptions of the ­human
(or other things, really) that are silently transported by the analytical concepts on which
anthropology thus far has relied» (41). This means exposing oneself and one’s analytical
categories, and focusing on emergence. Anthropology’s questioning capacity is borne
not of detached reflection but, necessarily, of active and open engagement with the
world, which in turn leads to a transformation of the predicates of being18. Participant
observation is «a potentially revolutionary praxis»19. Deconstructing the anthropos and
17
TOBIAS REES, 2018.
18
INGOLD, 2014, 2017.
19
SHAH, 2017.

229
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

the ethnos inherent to the discipline, and to the culture which gave rise to it and is still
very much with us, also means engaging in a process of transformation and actively
fostering the emergence of an human otherwise.

BIBLIOGRAPHY
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Niccolò; PEANO, Irene, eds. — Un mondo logistico: Sguardi critici su lavoro, migrazioni, politica e
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SCHNEIDER, Jane, ed. and introd. (1998) — Italy’s ‘Southern Question’: Orientalism in One Country.
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­Journal of Ethnographic Theory», vol. 7 (1), p. 45-59.
VAUGHAN-WILLIAMS, Nick (2015) — “We are not animals!” Humanitarian border security and zoopoli­
tical spaces in Europe. «Political Geography», vol. 45, p. 1-10.

230
COMO SE FAZ O CORPO. A CONSTRUÇÃO
DA ANTROPOLOGIA: DA ANTROPOLOGIA
FÍSICA À ANTROPOLOGIA DA SAÚDE
ÁLVARO CAMPELO*

Resumo: A investigação sobre o corpo tem uma história científica muito particular nos finais do século XIX
e inícios do XX. A construção de uma ciência do corpo, para além da busca do objeto, reflete o mundo das
ideias e os grandes medos da sociedade ocidental. A comemoração dos 100 anos da Sociedade Portuguesa
de Antropologia e Etnologia (SPAE) é a oportunidade para tratar os processos epistemológicos e ideológicos
colocados ao serviço do estudo do corpo, primeiro objeto de estudo da antropologia portuguesa nos seus
primórdios. Será o corpo o «novo» terreno antropológico para evidenciar a pertinência da antropologia na
contemporaneidade? Utilizando o caso particular da relativamente recente afirmação da antropologia da
saúde, superando a longa tradição da antropologia física e médica, queremos problematizar a «ambiguidade»
do corpo como referência para tratar o exercício da antropologia através de uma antropologia da fragilidade.
Palavras-chave: antropologia; corpo; saúde; antropologia da fragilidade.

Abstract: An anthropological body research has a very particular scientific history in the late nineteenth and
early twentieth centuries. The construction of a science of the body, beyond the search for the object, reflects
the world of ideas and the great fears of Western society. The 100th anniversary celebration of the Anthro‑
pology and Ethnology Portuguese Society (SPAE) is an opportunity for the research on epistemological and
ideological processes related to the study of the body, the first object of interest in Portuguese anthropology,
in its early days. Shall the body be the subject the «new» anthropological field to highlight the relevance of
anthropology in contemporary times? The specific case of the recent emergence of anthropology of health,
overcoming a long tradition of physical and medical anthropology, is the opportunity to think the «ambi­
guity» of the body as a reference for the exercise of anthropology through an anthropology of fragility.
Keywords: anthropology; body; health; anthropology of fragility.

* Universidade Fernando Pessoa — CRIA (Centro em Rede de Investigação em Antropologia).

231
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

O corpo em si é a principal instância do ambíguo1.

1. INTRODUÇÃO
A antropologia tem por objeto central as «culturas humanas», o estudo de comu‑
nidades humanas que herdam, vivem, transformam e constroem cultura, no sentido
de que são produtoras e produto dessa cultura. E isto independentemente das várias e
discordantes definições de «cultura». Esta cultura materializa-se em produtos, práticas,
organizações, a que as comunidades atribuem sentido e um ou vários fins estéticos e
utilitários, entendendo nessa utilidade também a fruição gratuita.
Se na era do antropoceno a antropologia se preocupa com o «lugar» ocupado pela
humanidade no oikos, questionando, a partir da crítica à sua singularidade ontológica, o
campo cultural como exclusivo do humano, nos primórdios da antropologia, em finais
do século XIX, as grandes questões colocaram-se à volta da corporalidade humana.
A corporalidade definia desde logo campos para afirmar o que pertencia ao ­animal
e o que era próprio do humano. Thomas Huxley mostrava em Evidence as to Man’s ­Place
in Nature (1863) que a similitude anatómica entre humanos e macacos denun­ciava
um antepassado comum. Por sua vez Darwin (Descent of Man, 1871) propõe serem os
­antigos humanos como os macacos africanos, com a diferença de que eram b ­ ípedes,
tinham um cérebro maior e faziam ferramentas. Reconhecer a faculdade de «fazer ferra­
mentas» (uma singularidade entretanto ultrapassada) distinguia o humano, pois ele
transformava o mundo. Já para Edward Tylor (Primitive Culture, 1871), o que distin‑
gue o homem era o exercício de capacidades herdadas da linguagem, da técnica e do
conhe­cimento, manifestadas numa «cultura ou civilização», que resumia, logo no início
do 1.º capítulo, como sendo «aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença,
arte, ­moral, direito, costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo
­homem como membro da sociedade».
À teoria biológica evolucionista seguiu-se a teoria do evolucionismo social, o
­ pondo
o «selvagem» ao «civilizado». Estava na «fisicidade» do corpo a sua referência base. Isto
porque ao corpo «não evoluído» se associava uma classificação social, entre o selvagem
e a monstruosidade. Assim como os corpos animalescos, bárbaros, informes e monstru‑
osos (a controlar), evoluiriam para corpos humanos, belos (normativos), assim as socie‑
dades selvagens (a dominar) evoluiriam igualmente para as civilizadas (governadoras).
Interessa saber como passamos do campo em que o corpo se «manifesta» ­entre
a normalidade e anormalidade, para um outro onde se olha para os processos e insti­
tuições de tratamento do corpo, onde se manifestam os poderes das autoridades­
políticas e médicas. Ou seja, como serviu a antropologia física para estratificar, pela

1
JAMES, 1907.

232
COMO SE FAZ O CORPO. A CONSTRUÇÃO DA ANTROPOLOGIA:
DA ANTROPOLOGIA FÍSICA À ANTROPOLOGIA DA SAÚDE

t­axionomia, as sociedades onde se inserem determinadas «formas» (sob medidas


padro­nizadas pela «ciência») e como se exerceu e exerce uma «biopolítica» de domí‑
nio da corporali­dade, e como ela se pode refletir nos espaços médicos? Num primeiro
­momento, o corpo é «naturalmente anormal/doente», pelas características anatómicas,
sujeitas a uma taxio­nomia, como leitura evidente e rigorosa da ciência. Num segundo
momento, a antropologia médica interessa-se pelo processo relacional entre médico e
doente (utente/­cliente), e a biomedicina antropológica preocupa-se pelo «gene», infeção
ou pela envolvente contaminante. Já num terceiro momento, na antropologia da saúde
ultrapassa-se o paradigma biomédico, e o corpo é compreendido como realidade física,
mas também social, c­ ultural, ecológica e emocional. O corpo em «contexto» entende-se
dentro do modelo sociocultural e comportamental ecológico. E, assim, redefine-se o
conceito de corpo doente e, principalmente, de «pessoa doente»: as possibilidades de
performance e identidade corporal supõem práticas e sentidos de identidade alterna­
tivos ao «corpo diferente», ao corpo portador da doença crónica ou deficiência, para que
eles tenham «hipóteses de vida»! A grande questão que queremos aqui discutir é esta:
se a base teórica subjacente à primeira abordagem antropológica do corpo definiu, por
longas décadas, a própria antropologia, com consequências ideológicas nas sociedades
da época, será que uma nova abordagem sobre o corpo poderá contribuir para redefinir
a teoria e o papel da antropologia na atualidade?

2. A ANTROPOLOGIA FÍSICA E A ANTROPOMETRIA


A chamada «Escola Antropológica do Porto»2, que esteve na origem da SPAE, e na
institucionalização da antropologia em Portugal, seguiu os paradigmas científicos dos
­finais do século XIX, vindo a ser marcada por fatores de ordem ideológica e polí­tica3.
Mesmo que tenha vindo a ser sustentada pela ideia do domínio colonial, um dos pontos
a merecer maior realce é a investigação desenvolvida com base na teoria evolucionista,
onde à classificação e mensuração do «corpo» se associava o sentido e prática sociocul­
tural do mesmo. Esta familiaridade entre a anatomia e a antropologia é distintiva da
­história desta escola, pois os seus mentores e principais intervenientes conciliavam a
forma­ção e docência médica com trabalhos e reflexões nas áreas das ciências sociais
e humanas (história, arqueologia, etnologia, filologia, etc.). As cumplicidades entre a
Faculdade de Ciências (FCUP), Faculdade de Letras (FLUP) e Faculdade de Medicina
(FMUP) definem os primeiros anos desta escola antropológica do Porto. Se num ­primeiro
­momento se privilegiou o evolucionismo biológico a justificar um evolucio­nismo social,
logo se seguiu o estudo dos «usos e costumes», na busca de uma identidade nacional

2
CORREIA, 1941.
3
MATOS, 2012.

233
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

fundada nos elementos tradicionais do «povo», ou seja, aqueles que p ­ revaleciam numa
sociedade em profunda transformação.
É neste contexto onde a reflexão sobre o «corpo» parte do estabelecimento de uma
«norma», para se avaliar o «desvio». Processo que define o que é mais ou menos e­ voluído,
até ao que é mais ou menos patológico. A imediata associação do menos ­evoluído e do
patológico à anormalidade social estabeleceu que o ser-se ou não civilizado passava por
uma normatividade do corpo. Para se definir a norma com «segurança científica» recor­
reu-se à objetivação do objeto. Corpo e comportamento estavam sujeitos a leis constan‑
tes e verificáveis. Dentro do projeto positivista está a obsessão pelo controlo rigoroso
da relação entre a «animalidade» e o «humano»4. O projeto humanista do positivismo
distingue-se pela possibilidade de uma explicação científica do comportamento e até
pela moralidade desse comportamento. Mas a grande dificuldade foi sempre estabelecer
tanto a separação como a relação entre o biológico (o natural) e o cultural.
Tratar o corpo e suas tipologias antropométricas para estabelecer uma teoria e
­prática da criminologia, foi uma preocupação de investigação dos inícios da antropo­
logia portuguesa, bem de acordo com algumas congéneres estrangeiras. Medir o corpo
e suas partes (principalmente crânios) fazia-se para identificar não só as linhas filogené­
ticas, mas também para catalogar comportamentos e prevenir desvios. O corpo perten‑
cia ao ator individualizado, mas, depois de mesurado, pertencia a um grupo classificado,
ao qual eram atribuídas características comuns, fossem físicas, fossem sócio-compor‑
tamentais. O corpo era ele próprio um possível «mal», «desvio», mesmo não h ­ avendo
qualquer referência a uma morbilidade etiologicamente estabelecida e tratável. Ter um
corpo classificado pela antropometria dentro de um grupo problemático era já, em si
mesmo, um problema, ou seja, a evidência da anormalidade. A antropologia procu­
rava a distinção na diversidade das formas corporais, ao salientar padrões e desvios.
A «fragi­lidade» física e social de certos corpos sobressaía perante a normalidade de
­outros, ­sabendo que era essa fragilidade o objetivo da busca científica para a classificação.
Retenha-se o facto de esta tarefa antropométrica pretender fugir a uma qualifi­
cação/atribuição estética, pois assume dados matemáticos de mensuração, suposta­mente
universais. Se utilizam o termo «raça», fazem-no para com ele designarem um grupo
de pertença sob elementos objetivos, num positivismo científico declarado, ocultando,
assim, a subjacente mentalidade racista perante os que fogem ao padrão ocidental civili‑
zado (pois até em Portugal os corpos de minhotos ou beirões são estudados como se de
primitivos se tratassem). Mas depois de aparecerem os quadros taxionómicos, a leitura
dos números é acompanhada pelas correspondentes narrações estéticas. É então que ao
desvio comportamental se acrescenta a identidade monstruosa. A associação entre a
estética do corpo e as categorias de pureza/poluição reforçam o corpo social. E se essas

4
INGOLD, 1987.

234
COMO SE FAZ O CORPO. A CONSTRUÇÃO DA ANTROPOLOGIA:
DA ANTROPOLOGIA FÍSICA À ANTROPOLOGIA DA SAÚDE

categorias definem todo o detentor do corpo objeto, elas também vão definir partes do
corpo, nomeadamente as mais próximas das necessidades fisiológicas e da sexualidade.
A beleza corporal, sempre proposta como um dado cultural, é atualmente apresen­
tada como tendo um fundamento natural. Haveria uma universalidade para a aprecia‑
ção da beleza, fundada nas estruturas cognitivas humanas estarem organizadas para a
acei­tação dos sentidos das proporcionalidades e do equilíbrio das formas (muito discu­
tida na chamada «regra dourada»). Acrescente-se que a esse equilíbrio de formas e
­proporções corresponderiam corpos saudáveis e benéficos para a perpetuação da e­ spécie
(campos teóricos próximos da antropologia evolucionista e da sociobiologia). Assim, o
cérebro humano faria uma correlação entre a beleza corporal e o corpo saudável, t­ endo
este maior viabilidade reprodutiva, daí a preferência por certos traços corporais que
«indi­cam» a presença da saúde e da capacidade reprodutiva5. Para além dos «sinais» de
capa­cidade reprodutiva, Wald6 diz-nos que as sociedades estabelecem uma relação entre
pessoas atrativas e boas pessoas. A atratividade, também ela definida pela sociedade, é
sancionada com benefícios nas relações sociais, no emprego, etc. Nesta lógica, associar
beleza e bondade, e fealdade com maldade ou incapacidade de sociabilidade, estaria no
subconsciente humano.
O trabalho da antropologia, pretendido como científico, iniciou-se na observação
do corpo, na descrição fenotípica, com as características observáveis e sujeitos a uma
­taxionomia classificativa. Desde esta fase que a antropologia trabalha com a fragili­dade
do corpo, mesmo que pouco consciente disso, numa estratégia de posse e definição do
­mesmo. Esquecia-se que as categorias de «normalidade» e de «deficiência» são constru‑
ídas socialmente, muito para além das evidentes alterações corporais7. Assim se manti­
veram as sociedades «disciplinares», para ordenar o corpo, sujeitá-lo à «vigilância» e
a mecanismos de controlo. Se no passado estas sociedades disciplinares ordenavam
um corpo conforme ao poder estabelecido, na atualidade fazem-no através de sistemas
­médicos de promoção do corpo saudável, «performante» e produtivo8. Até a definição
de um «corpo humano apropriado» se faz debaixo de uma evidência médica, só ela com
capacidade para definir o corpo humano normal9. A relevância que a dado momento
a teratologia teve no discurso médico é disso prova. Os atuais estudos críticos sobre a
­construção do conceito de deficiência relacionaram as narrativas médicas com a dife­
rença corporal e a normalidade10. Por sua vez, a medicina contemporânea, já influen­
ciada pela antropologia da saúde, consciente dos processos sociais de ­construção da

5
BRODY, 2015; WALD, 2015.
6
WALD, 2015.
7
BARNES & MERCER, 2010; FOUCAULT, 1987.
8
ROSE, 2000; 2006.
9
ASBERG & LUM, 2009.
10
CONRAD, 1992; GOODLEY, 2011; GOODLEY & RUNSWICK COLE, 2013; SHILDRICK, 2002.

235
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

­ oença, tem agora sobre a deficiência um olhar dinâmico e não estático, permi­tindo
d
­inserir a «anormalidade» dentro de outras «normalidades», como o de um novo c­ onceito
de doença crónica, de saúde e de qualidade de vida.
Assim, a noção de corpo ultrapassa a fixidez objetal para ser uma experiência
­dinâmica. A dor, o prazer, o sofrimento, a fruição não definem um estatuto do corpo (se
é normal ou anormal, belo ou monstruoso), mas um «estado do corpo» em constante
descoberta, consciente da sua «fragilidade», entre a perda, a superação e a o ­ cultação/
desve­lamento. Neste contexto o sujeito/corpo reescreve-se constantemente, obrigando-
-se à «violência» de pensar e atuar a corporalidade. No entanto, a integridade e liberdade
do corpo só é possível porque uma parte significativa, se não a maior parte, escapa à sua
narratividade. Vive no silêncio da palavra que a denomina, no inconsciente da perfor‑
matividade existencial do quotidiano.
O corpo como objeto de estudo antropológico contextualiza o nosso interesse na
afirmação de a antropologia ser uma «ciência da humanidade»11. O que está em jogo não
é mais a natureza humana, enquanto especificidade determinante da singulari­dade do
homo sapiens, mas como se experiência o corpo humano nas diversas culturas, d ­ entro
das complexas e diversas formas de ser expresso e apreendido em cada uma d ­ elas.
É objeto de estudo não apenas porque, dentro da taxionomia, o fenótipo e genótipo lhe
atribui uma pertença natural e distinta, mas porque nele se manifesta a ­«existência huma­
na», assumindo a condição de precariedade e pluralidade de sentidos, sempre em nego‑
ciação. A antropologia social e cultural encontra no corpo a oportunidade de se r­ enovar
enquanto ciência da humanidade e não já como estudo da «essência do humano»12.
O corpo distingue a pertença à espécie humana, por oposição/distinção a outras espé­
cies animais. Mas a «experiência do corpo» e suas múltiplas manifestações faz-se ­dentro
de sistemas culturais. São elas a singularidade da existência humana e o objeto da
­antropologia do corpo. O mais fecundo desta antropologia é que ela poderá ultrapassar
a clássica dicotomia entre corpo natural e corpo cultural. Formular o ­problema e tentar
resolver a visão dualista obriga a colocar e tratar as chamadas «questões relevantes»,
propostas por Latour.
Para Bruno Latour, científico significa «interessante» e «arriscado», dado o conhe­
cimento ter a obrigação de ser interessante e, para o ser, ter de correr riscos. É nas ­questões
formuladas onde se situa esse risco. E para correr esse risco há que alterar o programa de
investigação, inquirindo sobre a própria forma e sentido da questão: será que ­fazemos as
«perguntas certas»?; estamos conscientes da «resistência» às nossas questões e prontos
a reformulá-las?; a posição e autoridade do cientista é compreendida como um «privi­
légio» na orientação da questão, deixando pouco espaço para outras possibilidades de

11
INGOLD, 2011.
12
INGOLD, 1987.

236
COMO SE FAZ O CORPO. A CONSTRUÇÃO DA ANTROPOLOGIA:
DA ANTROPOLOGIA FÍSICA À ANTROPOLOGIA DA SAÚDE

questões e de sentidos expressos? Ou seja, a questão não se apodera do objeto, mas deve
dar-lhe espaço de evasão, numa desobediência à apropriação. Nesse ­risco ­constante
deve viver a investigação antropológica, mesmo quando a ­«normalidade» científica quer
­objetos obedientes e os investigados esperam dela conclusões fechadas, redun­dantes,
na busca da solidez das ciências naturais. Mas enquanto nas ciências sociais há um
«inte­resse» por parte do objeto, não se «objetando» à pesquisa, nas ciências naturais,
os o ­ bjetos desinteressados «objetam-se» a serem estudados, ou seja, resistem a serem
domi­nados pela pesquisa!
Aparentemente não vemos a resistência dos humanos a ser tratados como ­objetos.
Pelo contrário, vemos a docilidade a integrar o conteúdo do conhecimento legiti­
mado. Mas será essa a missão do trabalho científico? Não será o de «dar voz àquilo
que ainda a não tem»? Não será a missão da antropologia proporcionar a possibi­lidade
de ­diferir do consenso estabelecido?; de rutura e cisão com as conclusões tranquiliza‑
doras e redun­dantes? Ou seja, deixa a hermenêutica antropológica «zonas abertas» ao
objeto em e­ studo, de modo a, evidenciando a rutura, permitir outro possível acesso
ao seu conhecimento, dado aceitar o facto de que essas ruturas possam, elas mesmas,
­propor as suas próprias questões, mesmo que elas estejam contra as proposições iniciais
do investi­gador? Não será a boa ciência aquela que nos permite ter um conhecimento
posterior ao ato de investigação, «distante» ao que existia anteriormente, no início da
­pesquisa? Tal hermenêutica não é possível sem um compromisso de humildade cientí­
fica, de q­ uestionamento da própria «autoridade» no «ato científico», de respeito pelas
questões colocadas pelo «objeto» investigado, da aceitação em «evidenciar» os «­ zonas
abertas», as ruturas aos saberes e proposições tradicionais. Nas ciências sociais o «proto­
colo cientí­fico» existe não só para chegar a proposições articuladas, de forma a ter
­explicações generalizáveis, mas também para deixar espaço de aceitação à criatividade, às
versões alternativas.
Ao tratarmos o corpo, a multiplicação e diversidade das possíveis abordagens não
se esgotam nas múltiplas disciplinas que o têm como objeto de estudo, desde a genética,
até às ciências médicas. Foram as ciências sociais a libertar o corpo do espartilho da
biologia, abrindo a reflexão sobre os estudos de género, a biopolítica, a mercantilização
pela bioindústria, etc. Mas se anteriormente eram as ciências sociais a desconstruir os
processos de controlo, pelas políticas do corpo, até que ponto é possível o corpo afirmar-­
-se como um contrapoder e, nesse processo, reconstruir as ciências sociais?
Para isso ser possível, teríamos de ter uma conceção de «corpo» que não distin­
guisse o corpo natural do corpo cultural/moral. Ou seja, o corpo vivido e experien‑
ciado, e por isso espaço do consciente/inconsciente, onde se atualizam e articulam
os planos simbó­licos da existência quotidiana. Trata-se de um corpo «problema», ou
seja, um c­ orpo «em questão». E é nesta qualidade que ele questiona e se deixa questio‑
nar, ­indomável a conclusões definitivas. Um projeto antropológico sobre o corpo só é

237
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

possível de realizar quando aceita visões alternativas sobre a variedade de existência e a


realidade múltipla das suas manifestações. E se o corpo humano escapa à taxionomia para
definir a singularidade da sua humanidade, também escapa a ser definido pela raciona­
lidade, dado a sua vida subjetiva e simbólica não ser totalmente limitada pela capacidade
do intelecto. É por isso que o corpo desafia a antropologia e a obriga a questionar-se
enquanto projeto científico.
Tratando a «humanidade», a antropologia é questionada pela especificidade refle‑
xiva da narrativa do corpo e pela intencionalidade, partilhada com os outros animais,
enquanto corpo experienciado num determinado contexto. Aceitar a perspetiva feno‑
menológica é opor-se, necessariamente, a uma perspetiva do discurso, ou à proemi­
nência de uma sobre a outra? A história da antropologia teve sempre esta tentação, como
se não fosse possível uma copresença das duas perspetivas. Não aderir à perspetiva onde
se ­supõe a existência de ideias ou discursos pré-existentes à experiência da vivência do
­corpo, ou não aceitar a importância da relação do corpo e sua «experienciação» com o
meio onde age, pode legitimar duas conceções epistemológicas diferentes, mas, prova‑
velmente, pode, uma e outra, serem posições redutoras e inibidoras de abarcar as possi‑
bilidades abertas pela aceitação de ambas. Ou seja, os sentidos a levantar pela pesquisa
antropológica não existem anteriormente à experiência, como se fossem «coisas» objeti­
vadas, mas, tendo em conta a experiência da prática de um corpo implicado com um
meio, essa prática resulta em sentidos e ideias, diversas, mas partilháveis, e pela possibi­
lidade de aptidão humana à cultura simbólica. Assim, constituem-se como elementos
chave para serem usados nas futuras leituras de novas experiências. Ou ainda, reconhe‑
cemos a afirmação de Tim Ingold13 ao dizer que o conhecimento do mundo (umwelt) é
imanente às implicações práticas das pessoas com o meio (dwelling). Mas a sua oposição
ao interpretativismo de C. Geerts, dizendo que o mundo não poderia ser visto como se
fosse coberto por uma rede de significados — como um «texto» a ser lido —, confunde
a ideia de «texto» construído, com a de um «texto» pré-existente, fixo e imposto. Ora o
conceito de «descrição densa» de Geertz14 o que propõe é a necessidade de atenção ao
cruzamento de muitos níveis de sentido (teia de significados), decorrentes da prática
num contexto, que, entretanto, passaram a ser uma «gramática» (modelos de/modelos
para) de leitura e ação cultural. De facto, o ator social, como diria James Gibson15, inspi­
rador de T. Ingold, não tem, para agir, necessidade de aceder ao significado mental‑
mente, dado chegar a ele através dos sentidos. Trata-se de um pragmatismo assumido,
pois agindo no meio, com o qual interage, a pessoa adquire, nessa relação particular,
o conhecimento e sentido do mundo. Mas isso não abarca todos os meios de acesso
ao conhecimento.
13
INGOLD, 2000: 154.
14
GEERTZ, 1978.
15
GIBSON, 1979.

238
COMO SE FAZ O CORPO. A CONSTRUÇÃO DA ANTROPOLOGIA:
DA ANTROPOLOGIA FÍSICA À ANTROPOLOGIA DA SAÚDE

A questão da perceção, elevada a fonte de conhecimento sem o concurso da obser‑


vação reflexiva e análise sustentada em conceitos anteriormente aceites, porque testados
(sustentada numa psicologia ecológica com o acesso direto ao meio e ao conhecimento
através dos sentidos) tem como consequência a apropriação de um «mundo próprio»
(umwelt). Este decorre das diferentes possibilidades das interações concretas, onde se
­expressam os conteúdos segundo a perspetiva da pessoa. O que resulta é uma experiência
individual a escapar a um mundo onde haja significados partilhados. Como é possível,
então, chegarmos a um discurso científico coerente e aceite pela comunidade científica?
Parece-nos haver aqui uma confusão entre a experiência individual — o «mundo
próprio» — da relação com o meio, onde se adquire conhecimento, e a narrativa do
­conhecimento, a qual já exige manejar o conhecimento adquirido na experiência senso‑
rial com o meio, dentro do conhecimento herdado e partilhado. Cada ser experimenta
de forma individual e particular o meio com que se relaciona, mas a «perspetiva» parti­
cular resultante da sua própria abordagem e interpretação do meio inclui não apenas
os resultados proporcionados pelos seus sentidos (experiência empírica), mas também
os sentidos herdados e presentes no meio onde interage (experiência histórica, cultural
e semiótica). Ou seja, os resultados não estão pré-definidos, mas há um meio
cultural pré-existente que dá a possibilidade à pessoa de construir «uma perspetiva
­particular» inteligível dentro do meio e grupo social onde interage. E isso permite o
exercício da interpretação, mesmo que afirmemos não poder ser essa interpretação castra‑
dora das possibilidades abertas pela interação particular, da experiência sensorial, da pessoa
com o meio.
Se Gibson16 tratou especialmente o termo «disponibilidade» («affordance») para
se referir às oportunidades de ação fornecidas por um objeto ou ambiente específico,
devemos dizer que essa «disponibilidade» existe tanto para a possibilidade da existência
de oportunidades várias de ação permitidas pelo ambiente, como para a possibilidade da
existência de oportunidades várias permitidas pela cultura. Existindo vários r­ ecursos no
ambiente a permitirem várias oportunidades de ação, existem também vários r­ ecursos
de património cultural a serem atualizados, ou não, que as permitem também. As possi‑
bilidades do objeto a que acedemos sensorialmente complementam-se com as possibili­
dades de ideias de que dispomos culturalmente. Ambos dão oportunidades de ação e
estão dentro do campo das «disponibilidades» a selecionar, conforme as possibilidades
presentes no meio e na cultura. Neste caso obriga-se a conhecer as seleções feitas pelos
outros membros do seu grupo de pertença, exercendo, tendo-as em conta, uma parti‑
cular interpretação delas e das suas próprias experiências. A aceitação ou a rutura só se
pode entender dentro desta relação.

16
GIBSON, 1979.

239
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

O conhecimento do corpo faz-se tanto na relação com o meio como na relação


com as interpretações praticadas nele e sobre ele. Ele, corpo, é o «lugar» de relação com
o mundo, mas é também um «lugar» de enunciação, onde se resgata o desejo, onde se
narra a história inter-relacional e interpretativa das diferentes enunciações dos sujei‑
tos e produções humanas. E é aí onde esta a sua fragilidade, dada a precariedade de
conhe­cimento total do contexto onde o sujeito/corpo/obra se insere e incide. Num
ato ­próximo do psicanalítico, é aí onde a prática antropológica trabalha: reconhecer as
­fendas e e­ spaços onde se revelam/ocultam os detalhes, para dar possibilidades à dúvida
e à inter­rogação. Só assim é possível a ciência com interesse.
A antropologia, respeitando um objetivo metodológico holista, por exemplo na
descrição densa proposta por Geertz, terá de assumir que dar conta da «totalidade» não
é o mesmo do que tudo descrever e interpretar, mas sim, aceitar que no trabalho de
investigação tudo o que ficou de fora pode vir a ser chamado à análise em ­qualquer
­momento. A profundidade do estudo está nos dados controlados pela observação
­treinada em c­ onceitos reconhecidos, acrescida dos dados surgidos pela experiência do
estranhamento. E o mais interessante na antropologia é ver o «estranho» observado
no espaço do mais familiar! Ou seja, só a «observação antropológica» nos oferece a tal
estupefação inquietante de reconhecer, dentro do familiar e comum ao quotidiano, o
estranho, o outro. Nunca lá chegaríamos se não reconhecêssemos ou provocássemos
metodologias para outras questões, as «fendas» existentes na normalidade objetivada
do mundo. «Fendas» e ruturas que, observadas e trabalhadas, sempre lá permanecerão,
num desafio para novas e futuras questões. É essa a fragilidade do conhecimento antro‑
pológico: suscitar novas fendas e roturas nas suas conclusões, porque nunca pretenderá
(nem poderá) ter a compreensão de tudo o que observa e trabalha.
E se há, paradoxalmente, «lugar» para o estranhamento, esse lugar é o corpo huma­
no! No princípio o estudo antropológico serviu-se do «estranho» e «anormal» para
­definir a pessoa. Valorizando-se o corpo biológico, nele se confundia a existência realista
do corpo-função, corpo-imagem e corpo-vivido. Mas não se pode confundir na biologia
— a materialidade do corpo - a complexidade do corpo: a corporalidade, na sua forma e
materialidade, pode ser muito semelhante em pessoas de idades, géneros e etnias seme‑
lhantes, porém as imagens inconscientes sobre esses corpos mostram-se peculiares, pois
estão vinculadas ao sujeito e à sua história17. Assim, ao corpo biológico, materialidade,
tem de ser acrescido o corpo como linguagem, nascido dentro da psicanálise e o corpo
social e cultural18.

17
DOLTO, 1984.
18
LE BRETON, 1993.

240
COMO SE FAZ O CORPO. A CONSTRUÇÃO DA ANTROPOLOGIA:
DA ANTROPOLOGIA FÍSICA À ANTROPOLOGIA DA SAÚDE

3. A POSSIBILIDADE DA ANTROPOLOGIA NA
ANTROPOLOGIA DA SAÚDE
Ao investigar e trabalhar no campo da saúde, onde o corpo singular e institu­
cional é objeto de estudo, o que identifica e define o contributo do saber antropoló­gico?
Uma nova «ordem de saber» questiona a prática antropológica? O que é continui­dade e
­descontinuidade no «modo de ser da ordem» própria à contemporaneidade, pois cada
tempo epistemológico traz em si uma alteridade que toda a representação p ­ retende
­menorizar, objetivando-a, mas que não consegue sufocar19, terá possibilidade de se expri­
mir numa prática antropológica sobre o corpo? Desde a «descrição densa» de Geertz20
e a teoria crítica, de que forma a prática antropológica (o seu «modo de fazer»), onde
se evidenciam os sentidos do «detalhe», a visibilidade do oculto, as dinâmicas confli­
tuais do poder, pode contribuir para questionar a prática científica?; poderá esta especi­
ficidade antropológica desafiar a sociedade, reivindicando um lugar particular para o
seu exercício?; é possível o conhecimento antropológico?; qual a validade e pertinência
do conhecimento antropológico?; tem, a antropologia, tanto na metodologia, como no
conhecimento produzido ao longo da sua história, alguma originalidade para trabalhar
nos limites do conhecimento? Ao nível axiológico, agora, como interfere o «modo de
fazer» da antropologia na estética e ética da prática sanitária?
O primeiro ponto a debater é a possibilidade da discussão sobre o carácter axioló­
gico da antropologia da saúde. Como se conjuga a questão da relatividade cultural
­quando temos de hierarquizar os valores com que se trabalha em saúde? Qual o sentido
do bem e do belo ao tratar o corpo doente, quando ele está sujeito a poderes estabele­
cidos, detentores das normas de classificação e de ordenamento da prática médica?
Já a nível epistemológico, a prática em saúde faz-se dentro de um conjunto teórico
de conhecimento estável, mas onde será necessário incluir um espaço de pensar a pessoa
doente, a própria comunidade, a partir de uma diversidade de sentidos. Ou seja, precisa
a antropologia questionar-se nesse conjunto teórico estabelecido, para aí libertar e dar
autoridade crítica ao corpo, anteriormente apenas objeto de tratamento.
Será a antropologia o melhor espaço para, escapando à lógica fixista e imutável
das leis e aproveitando o conhecimento produzido ao longo da sua história, o «local»
ideal para trabalhar a originalidade e os limites do conhecimento do mundo? Não será o
­corpo o espaço para pensar e trabalhar esses limites do conhecimento?
Trabalhar a noção de corpo dentro da antropologia da saúde, posterior à institucio‑
nalização da antropologia médica, introduziu novas contribuições científicas no campo
do estudo corpo saudável ou doente. A antropologia médica tinha, essencialmente, uma
preocupação teórica fundada na antropologia filosófica para formular o conceito de ser

19
CERTEAU, 1987.
20
GEERTZ, 1972.

241
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

humano, e uma outra, prática, que no início foi questionar e preparar os profissionais
médicos para a relação médico-doente, para depois tratar as questões da epidemiologia e
da gestão dos serviços de saúde. No caso da antropologia da saúde não há total ­consenso
sobre a totalidade dos objetos de estudo, prevalecendo, como espaço consensual a meto‑
dologia das ciências sociais (havendo opções por várias destas metodologias), neste caso
particular a da antropologia social, onde a construção sociocultural da doença, do corpo
e das emoções têm mais relevo. Se em alguns trabalhos prevalece o carácter operacional
e interventivo, dentro do espaço da «saúde pública», noutros a dimensão mais reflexiva
e critica é central.
Uma das principais consequências da investigação em antropologia da saúde foi
chegarmos a uma pluralidade de conceitos sobre saúde e doença. O mesmo se diga s­ obre
o corpo. Desde a primeira dissecação do corpo, na origem da medicina atual, especia­
lizada, «rigorosa» na «localização» da doença, por uma qualquer «falha» orgânica, até à
afirmação das «diferentes» camadas do corpo (corpo físico, corpo estético, corpo econó­
mico, corpo género, corpo religioso/simbólico, etc.), o significado de «normal» ou pato‑
lógico quase sempre delimitou a intervenção médica e o conceito de cura. Mas o «corpo
sarado» da contemporaneidade não entende a «falta». O significado de «corpo sarado»
tanto volta a estar no âmbito do estético, adequado aos padrões estabelecidos, como
se apresenta sendo o resultado das conquistas da ciência médica. Há uma dificul­dade
de considerar o «mal-estar», o «corpo imperfeito», como inerente à condição ­humana,
­sempre incompleta, sempre manifesta na «falta». Daí a antropologia da saúde e da
­doença ter de questionar o corpo desejado e a condição do sujeito, ao mesmo tempo
desejado e faltoso, na sua manifestação e tratamento dentro das autoridades sociais e
hospitalares. Ao assumir a condição de desejo e de falta no corpo dos sujeitos, a antro-
pologia melhor adequará os objetivos da investigação à critica dos seus resultados.
À incompletude e «falha» do corpo corresponderá a aceitação da incompletude e
­abertura para os resultados da pesquisa antropológica.
Indiscutivelmente, a corporalidade e a experiência da corporificação tornaram-se
pontos de interesse socioculturais, condensando e expressando um vasto repertório de
respostas afetivas e intelectuais à mudança geopolítica e social. O corpo tornou-se cada
vez mais um lugar no qual e através do qual encenamos, executamos ou exibimos nossas
perspetivas individualizadas e corporativas sobre poder, lugar e os processos culturais de
comunicação, acompanhados de narrativas alternativas que abordam as várias encena‑
ções de género, sexualidade e doença.
Se as marcas da doença (no passado, da monstruosidade) são ultrapassadas (não
porque se nega a doença, mas nega-se o conceito de «pessoa doente»), o corpo, enquanto
referência identitária da pessoa, mesmo nas suas partes individualizadas, liberta-se para
configurações diversas e exige da prática e da tecnologia médica uma autonomia
para se recolocar numa nova relação com o sistema de saúde e com a sociedade que

242
COMO SE FAZ O CORPO. A CONSTRUÇÃO DA ANTROPOLOGIA:
DA ANTROPOLOGIA FÍSICA À ANTROPOLOGIA DA SAÚDE

o gere. Sob a tutela do tratamento médico, dócil à multidão dos profissionais que o
­mani­pulam, o corpo tem de escapar à «linha de montagem» que o transforma (para o
curar) em ­matéria passiva. Fá-lo quando exige um lugar de autoridade ontológica frente
à especia­lização do ato biomédico. E isto não se faz unicamente pelo processo dialó­
gico das ­narrativas médicas (medicina narrativa), onde os sentimentos, conhecimentos,
­saberes e os processos de construção da saúde/doença são partilhados pelos atores do
ato médico; faz-se, também, pela imposição de um ato onde o corpo não seja um «­ corpo
em desvan­tagem». O corpo presente continua a ser um corpo com uma história de
­construção corporal, múltipla (o corpo «singular» é um corpo «múltiplo», interpretado,
trabalhado e sempre em reconstrução, mesmo perante a falência física), da qual nenhum
dos atores pode abdicar. O corpo apresenta-se como um «outro», em torno do qual
se contam «estórias», afetado pela linguagem. Mas é sempre um corpo mais «reconhe­
cido» do que «conhecido», dado ele escapar na estranheza e no fascínio das suas brechas,
­enquanto linguagem outra, dentro da leitura de Michel de Certeau ao conceito de palavra
em ­Lacan: «Lacan se fait de la parole une conception proche de cette austérité rabbinique.
Il y a de l’Autre, mais il n’y a rien à attendre sinon le désir qui s’instaure d’en être privé»21.
O corpo escapa ao poder, mesmo que o poder o queira dominar e definir (delimitar):
«Ce n’est pas ça!».
Expressado na fragilidade da doença, na incompletude do humano, o corpo, no
entanto, apresenta-se, enquanto objeto de desejo, como uma força comunicativa, esca‑
pando a qualquer compreensão total. Na qualidade de objeto de estudo da antropologia,
ele já não é dócil a uma taxinomia redutora, senhora dos métodos e dos sentidos já
definidos que o classificam, entre humano e não humano, entre normal e patológico.
Ele já não é também apenas o espaço de exercício dos sentidos, como fonte empírica do
conhecimento, nem apenas o campo para se verificar os resultados das representações
sociais, a interpretar e contextualizar. Assim, o corpo liberta-se da monstruosidade e
­faz-se, ele mesmo, o campo de uma expressão, possivelmente provocatória à norma.
Para Bruno Latour: «o corpo é um interface que vai ficando mais descritível
quando aprende a ser afetado por muitos mais elementos»22. Trata-se de um corpo em
relação e não um corpo objeto ou um corpo morada (a alma imortal ou o pensamento).
Ele ­regista, interfere e sente o que é feito no mundo, sendo, a «trajetória dinâmica», com
que aprendemos o mundo e somos sensíveis a esse mundo. Por isso, não faz sentido
definir o corpo diretamente, só faz sentido sensibilizá-lo para o que são os elementos do
mundo com os quais entra em relação23.
Lidar com o corpo é integrar um espaço de mútua aprendizagem, onde o sensível
é condição para o entendimento do corpo e do contexto. Daí o corpo emocional de
21
CERTEAU, 1987: 173.
22
LATOUR, 2004: 206.
23
LATOUR, 2004.

243
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

William James, pois ter um corpo e trabalhar com o corpo é «aprender a ser afetado»,
posto em movimento. De uma antropologia das emoções a uma antropologia da fragili­
dade: uma antropologia que se assuma cuidadora do inabarcável. Mas não no sentido
pós-modernista, que para superar o positivismo afirma a impossibilidade de propor um
entendimento de como outras culturas constroem os seus mundos e formas de gerir as
vidas quotidianas. O essencial da antropologia continua a ser dar uma compreensão
comparativa da variedade dos modos de vida humano. Tratar o corpo antropologica‑
mente será analisar como, em diferentes sociedades e culturas, o corpo físico é colocado
em movimento (afetado/efetuado), na fragilidade do entendimento das suas expressões,
onde as emoções têm história/estórias, cultura, contextos ambientais e políticos. A expe­
riência do corpo faz-se entre o prazer, o desejo e a violência da dor, entre o que ­pertence
ao «self» e o que lhe é «estranho» (vírus, parasitas, etc.). Se no passado o corpo era s­ ujeito
a uma análise para a estandardização, hoje nele encontramos o espaço manifesto das
desigualdades socioeconómicas, das disputas bioéticas, das tecnologias biomédicas, da
criatividade estética. O corpo humano na saúde e na doença não é já uma realidade
­ontológica definida, mas uma entidade móvel e maleável.
Então, o corpo tem de ter «outras» formas de ser tratado. O tratamento não pode
ser apenas dirigido ao corpo, mas ter em atenção as diversas formas como o corpo é
envolvido nos relatos daquilo que faz. Estamos perante as «conversas do corpo» (body
talks). Há, assim, uma linguagem do corpo, cuja gramática inclui diversas componentes,
dificilmente abarcadas na interpretação do seu sentido ou na etiologia da doença.

4. VIVER O CORPO ENTRE FRAGILIDADES


Várias disciplinas se interessam pelos grupos marginalizados e as dificuldades
­destes no acesso à saúde. A entrada da antropologia neste campo trouxe uma metodo­
logia e um enfoque singular. Por ter uma prática do «detalhe», abrindo espaços para
novas questões, dando visibilidade ao que se apresenta oculto às dinâmicas conflituais
do poder, a antropologia pode ter encontrado no campo da antropologia da saúde e da
doença uma oportunidade para a renovação do seu próprio status científico enquanto
disciplina inovadora, com roturas epistemológicas, como anteriormente já aconteceu
com os estudos da religião, do género e do poder.
O que agora tratamos resulta de material retirado de um estudo mais abrangente
sobre saúde oral em comunidades marginalizadas e com graves problemas de saúde.
O nosso terreno de investigação foi a zona de Campanhã, na cidade do Porto. Ao longo
de dois anos acompanhamos um grupo de pessoas caracterizado por ser composto, na
grande maioria dos seus membros, por toxicodependentes com vários tipos de Hepa­
tites e HIV. O foco da análise era estudar a relação destas pessoas com os serviços públi‑
cos de saúde, especialmente no que diz respeito à saúde oral. Apesar de o grupo obser‑
vado ser um número mais alargado de 11 pessoas, por vezes flutuante, pois as pessoas

244
COMO SE FAZ O CORPO. A CONSTRUÇÃO DA ANTROPOLOGIA:
DA ANTROPOLOGIA FÍSICA À ANTROPOLOGIA DA SAÚDE

apoiadas pela ONG que nos acolheu nem sempre apareciam aos voluntários, havendo
períodos de longa ausência, seguimos de forma mais intensiva três pessoas, duas do
sexo masculino e uma do feminino. Elas foram selecionadas, ao fim de algum tempo de
trabalho de terreno, por oportunidade, dado serem as que mantinham uma relação mais
constante com a equipa de apoio. António24 e Marcos, de 36 e 41 anos, e Ana, de 32 anos
vivem nesta zona da cidade, o primeiro numa barraca e os dois outros numa casa que
nunca quiseram especificar. António, toxicodependente, com hepatite b, não se conhece
no tempo antes de viver na rua, entre seringas e metadona. Alimenta-se com a refeição
fornecida por uma ONG e estranha muito ver recair sobre ele qualquer tipo de atenção.
Marcos e Ana apresentam-se como um casal, de amor forjado nos mesmos problemas
e nas mesmas desilusões. Une-os a cumplicidade das estratégias com que superaram
cada dia, cada noite, num mundo de ausências e saudades. Recordam emoções e rela‑
ções anteriores à dependência da droga, anteriores ao tempo em que se conheceram,
quando a palavra família tinha sentido noutros rostos e histórias. O quotidiano passa,
essencialmente, por garantir dinheiro para a droga, que consomem há muitos anos (não
querem dizer quantos). Ter «a doença», como designam serem seropositivos, pouco
mais interfere do que saberem viver um vazio na esperança: hoje estão vivos e amam-se;
amanhã não sabem!
Quando lhes propusemos estar com eles durante alguns meses, em visitas e
encon­ tros combinados por telemóvel, mostraram uma reticência constrangedora,
­desconfiados e, no início, desafiadores. Precisavam de pensar e falar com as pessoas
com quem normalmente se cruzavam nas suas cumplicidades. Dentro da proposta de
­estudo estava a possibilidade de lhes ser facultada assistência e tratamento em saúde
oral. Esta era a missão de uma ONG que acompanhávamos. Ter uma saúde oral razoá‑
vel não era a principal preocupação destas pessoas! Ao fim de um mês, após a primeira
abordagem, aceitaram o nosso desafio e colocaram as reservas que bem entenderam e
que seriam respeitadas ao longo da pesquisa de terreno: manter o anonimato (o que já
lhes h
­ avíamos prometido), serem sempre eles a marcar os encontros, e terem acesso a
cuidados orais gratuitos.
Era um dia quente e a viela dava para um descampado, propriedade, aparentemente,
sem dono, nas traseiras de prédios degradados. Marcos e Ana sentiam-se ­seguros ­neste
lugar. Com frequência ali encontravam outros toxicodependentes, como o ­António,
com quem comerciavam «coisas», as mesmas aventuras e as mesmas desgraças.

Aqui é a nossa segunda casa. Passamos por muitos sítios, mas é aqui onde
­fazemos o que queremos. Afinal pouco! (Ana)

24
Os nomes são fictícios.

245
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

A gente sofre pr’a caralho. Ninguém liga a estes gajos. Andamos pr’aqui a morrer
aos pedaços. Mas julga que pensamos na doença? Não pensamos! Nós os dois temos
a doença e sabemos o que nos espera. Quando olho para a Ana o que vejo é a mulher
que eu gosto. O corpo dela pode falhar em muitas coisas e não ser o das outras gajas
que andam por aí na rua, mas, para mim, é o corpo da minha gaja. E isso basta!

António segue a conversa… ri-se e acrescenta:

Nós somos fantasmas nesta cidade. Afinal existimos, mesmo que não queiram.
Há dias em que vou ali pela rua e parece que ninguém me vê. Dá-me um gozo filha
da puta obrigar as pessoas a mudarem de passeio para não se cruzarem comigo.
É ­verdade: ocupamos espaço! A única vez que converso com outras pessoas é q­ uando
arrumo carros e quando nos trazem comida. Fora isso… parece que não existo!
­(António)

Entre as várias questões que lhes colocamos, algumas tinham a ver com as doenças
e os tratamentos. Como viveriam eles o estarem doentes e a necessidade de recorrerem
aos serviços públicos de saúde.

Desisti de ser tratado. Sei que estou doente, mas para mim, que sei que estou
fodido, o meu corpo serve para ir andando. Vou morrer e vou… tanto faz agora como
daqui a muitos anos. Há vezes em que até consigo enganar e pareço um gajo cheio de
saúde. A merda é ter este ar de vagabundo [ri-se]. Ainda tenho um corpo de estrela
de cinema! Posso enganar os outros, mas não me engano a mim próprio. Mas na
­verdade só penso nisso agora, ao ouvir a sua pergunta. Mas as dores… essas estão
sempre presentes e não há como enganar aqui o Zé! Acho que tenho dois corpos: o de
fora e o de dentro. Por dentro estou todo fodido! (António)

É pior quando se é mulher. Gostamos que olhem para nós e nos vejam lindas
e atraentes. E ter esta idade e saber que tudo está… como digo, carago… está uma
bosta, é mesmo uma merda! O Marcos disse que gosta na mesma de mim. E eu gosto
dele, mas eu sei o que sinto quando estou na ressaca e na fossa. Já nem me lembro do
tempo em que o meu corpo estava de acordo com a minha idade, com a minha cara.
Parece que sou duas pessoas e agora vivo no corpo de outra. Não quero pensar nisto!
A merda é que quando vem a gente da saúde — desculpem — temos de pensar no
nosso corpo, na causa das nossas dores, na morte que está ali à frente! Porra pá… que
se lixe! Mas há vezes em que gosto que tratem de mim, como quando vou ao Centro
de Saúde. (Ana)

246
COMO SE FAZ O CORPO. A CONSTRUÇÃO DA ANTROPOLOGIA:
DA ANTROPOLOGIA FÍSICA À ANTROPOLOGIA DA SAÚDE

O Centro de saúde funciona como um «lugar outro», com o qual interagem e se


relacionam diferentemente.

Uma vez fui ao Centro de Saúde — estava mesmo mal — e perguntaram se ­tinha
feito análises! Os gajos perguntam pelas análises e eu ali cheio de dores! ­Ninguém me
queria tocar, com medo! Porra, eu quero é que me tirem estas dores… que se fodam
as análises ou outras merdas! (António)

Havia de haver um caixa, como a das bebidas que estão aí na rua, onde um gajo
ia lá e punha um dedo e ela sabia que doença temos e o comprimido que ­precisamos.
Abria uma porta, saía o remédio e íamos à nossa vida. Fico filha da puta q­ uando
vou ter com os médicos ou enfermeiros ao Centro de Saúde e começam a ­fazer
­perguntas, mais perguntas e depois ouvimos o caralho, como se a nossa vida ou o
nosso ­corpo fosse deles. Quando olham para nós só veem seringas nos braços e merda
na cabeça. Há gajos que até seguram os telemóveis e as carteiras com medo de serem
roubados! (Marcos)

Nem quero acreditar que vocês tratariam os nosso dentes. Ó pá, ninguém se
­interessa se temos ou não dentes. Não ter dentes faz parte da vida dos drogados. Por
vezes pensava na doença que tenho e dizia para mim mesma que ter ou não ­dentes
não iria resolver os meus problemas. Mas depois de ter tirados os dentes ­podres que
­tinha, e arranjado os dentes, parece que voltei a uma idade onde me sentia ­gente
e tinha um corpo lindo! Foi uma emoção tão grande! Há luxos de que nem nos
­lembramos já, mas esse momento foi muito importante para mim. Até posso morrer
­amanhã, mas foi uma experiência boa… só queria rir na rua para verem que já não
era a pessoa tão feia em que me transformei com a droga e a má vida! (Ana)

Acompanhamos Marcos e Ana numa visita ao Centro de Saúde «Z»25. Os profis­


sionais tinham sido informados pela ONG da vinda destes utentes e prepararam-se para
os receber, já em posse dos dados pessoais de cada um e do estado de saúde. Já ali tinham
ido no passado, antes de terem sido inscritos pelos voluntários.

Continua a ser um pouco estranho. No passado nem queriam saber de nós e


e­ mpurravam de uns para outros. Só me apetecia partir aquela merda toda… ­olhavam
para nós como se fossemos óvnis. A única preocupação nossa era que tínhamos febre
e estávamos mal… A única preocupação deles era a doença e não se foderem com

25
«Z» é o Centro de Saúde onde os informantes foram inscritos pelos voluntários da ONG que os apoia, próximo da
sua zona de residência.

247
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

ela! O resto do corpo não interessava nada! Agora somos uns animais raros, porque
o pessoal da… (ONG) nos acompanha e já olham para nós como se o resto do corpo
tivesse direito a ser tratado. Eu até fico zonzo com tanta paneleirice! (Marcos)

A mediação feita pela ONG alterava a relação entre estes utentes e os serviços
de saúde. Marginalizados, os corpos entretanto adquiriam novos sentidos, apesar da
­sempre serem olhados numa atenção de excecionalidade e de cuidado diferenciado.
Os três admitiam novos papéis e novas expectativas, mesmo que, depois, tudo voltasse
ao «normal»!

5. CONCLUSÃO. ANTROPOLOGIA DA FRAGILIDADE PARA


CORPOS FRÁGEIS
Entre o descampado, a rua e a sala de espera e os gabinetes do Centro de S­ aúde,
António, Marcos e Ana vão assumindo personalidades diferentes, ora manifestando
o que lhes vai na gana, ora obedecendo às hierarquias e às estratégias públicas sobre
os seus corpos. Nas muitas ocasiões em que estivemos com eles, a mudança de ­registo
­fazia-se rapidamente. Enfrentar as questões dos investigadores ou responder aos ­serviços
propor­cionados pelos voluntários da ONG era a ocasião para se confrontarem com o
próprio corpo. Na maior parte do tempo o corpo exigia o consumo de droga. Mas não
era o corpo, a sua fisicalidade a origem da necessidade. Era a «merda da vida», sendo o
corpo apenas o «meio» através do qual respondiam à «falta» sentida.
Era no interior do corpo que crescia a doença e era desse interior donde vinha
o desejo. Não era o corpo que possibilitava o conhecimento do mundo, pois queriam
­negar a existência do corpo, ao não o colocar no centro das suas preocupações. Não
pensar nele, e viver como se ele não existisse, dava-lhes conforto para aceitar os dramas
e o vazio do quotidiano. Só a dor os obrigava a, ocasionalmente, pensar o corpo, sentir o
gozo da sua ausência, confrontar as opções de vida.
Enquanto objeto de estudo, os nossos informantes foram incluídos em grupos
mais amplos e sujeitos a inquéritos, acompanhados e observados em trabalho de campo
e selecionados para entrevistas abertas e aprofundadas. Nunca o seu corpo foi sujeito
a uma medição taxionómica, onde o investigador procurou classificar a normalidade
ou a monstruosidade, como certamente o faria se estivéssemos no final do século XIX.
­Também raramente os investigadores focavam as patologias de que padeciam, ­mesmo
que a razão do projeto de investigação fosse o acesso aos serviços de saúde oral em g­ rupos
marginalizados. A metodologia aplicada, o trabalho de campo com observação não
parti­cipante e entrevistas extensivas, obrigava a uma «convivência» quase impos­sível,
pois o encontro de dois mundos tão diferentes, em momentos de exceção, deixavam
pouco espaço para abarcar a vida, o «mundo próprio» destas três pessoas. A evidência
da fragilidade destas pessoas, em corpos frágeis e quase não assumidos, dado o «cuidar

248
COMO SE FAZ O CORPO. A CONSTRUÇÃO DA ANTROPOLOGIA:
DA ANTROPOLOGIA FÍSICA À ANTROPOLOGIA DA SAÚDE

do corpo» não fazer parte das suas principais preocupações, desvelava a própria fragili‑
dade da investigação antropológica pretendida. Por um lado, só estávamos presentes em
pequenas partes das suas vidas quotidianas — desconhecíamos o lugar de residência de
Marcos e Ana, por sua própria vontade em não o dar a conhecer —; quando tínhamos
acesso a essas pequenas partes da vida, elas variavam entre diferentes representações26:
para os investigadores; para os restantes parceiros; para relações públicas, entre o anoni­
mato e o reconhecimento esporádico, onde desempenhavam diferentes tarefas, entre a
legalidade e a ilegalidade; para os serviços sociais e serviços sanitários, de que necessi­
tavam ou a que recorriam em casos de urgência. Em cada um deles, os mesmos corpos,
as mesmas pessoas, representavam papéis diferentes e posturas muito diversas.
Em todas estas diferentes situações, praticavam um corpo diverso. Entre os
seus ­pares, para além das conversas sobre as trivialidades da vida, com suas próprias
­urgências, ajudavam-se mutuamente (por vezes com algum conflito) para garantir a
dose diária de consumo, independentemente das consequências para o corpo, já que
a única coisa a ter em conta era um mínimo de segurança na escolha do local onde
­injetar a dose. Na rua e nos locais onde arrumavam carros, o corpo dilacerado era
escon­dido e a doença ­nunca evocada, pois, como dizia António, «Os gajos têm medo de
nós!». T
­ ratava-se de um ­corpo suposto por toda a gente como problemático, mas sobre
o qual nenhum discurso ou ­avaliação se fazia explicitamente nos pequenos diálogos
ence­tados com os «clientes». Quando se encontravam com os serviços sociais propor‑
cionados ­pelas ONGs, supriam as necessidades energéticas e de conforto no agasalho
do corpo. Não havia como fugir a estas necessidades. Era o corpo na sua animalidade
mais ­redonda: garantir sustento e proteger-se do ambiente! Quando os voluntários se
aventuravam por outros temas e questões, interessava apenas um problema: garantir as
seringas para ministrarem a d ­ roga! Tinham de ouvir outros assuntos e até, por vezes, se
comprometiam com ­algumas das propostas e alertas deixados pelos voluntários, mas
sabiam que a obrigação de respei­tarem esses compromissos não colidia com a liberdade
e desleixo dos seus quotidianos. Diferente era a situação em espaços públicos, com orga­
nização e superintendência estatal, como os Centros de Saúde. Ali, a relação entre os
corpos a serem cuidados, as doenças comunicadas, e os procedimentos administrativos,
estavam colados à identidade expressa nos seus documentos de identificação pública.
Esse incómodo era notório em cada ida ao Centro de Saúde. As posturas, a gestualidade
e a comunicação verbal alteravam-se. Os corpos aceitavam uma docilidade à estratégia
da instituição sanitária, mesmo que tacitamente a procurassem contornar. Sabiam que
tinham de a aceitar, pois caso contrário não seriam atendidos. Mas dentro deles a acei‑
tação dessa estratégia era negociada, ou seja, deixavam manipular o corpo e ouviam
as narrativas médicas, mas sabiam que essa aceitação era contextual, não tendo mais

26
GOFFMAN, 1959.

249
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

eficácia, passada a urgência, deixado o edifício sanitário ou escapando ao controlo admi‑


nistrativo. Não raras vezes um olhar de soslaio, uma piscadela de olho para nós, quando
os acompanhávamos a consultas, dizia tudo sobre a sua relação com o médico e a inter‑
pretação que faziam à narrativa do cuidar o corpo ou mudar de vida.
Ana tratava de forma diferente toda a negociação/administração pública do seu
corpo. Estava plenamente consciente da diversidade de narrativas e expectativas sobre
o seu corpo, sendo mulher, mesmo que tivesse os mesmos comportamentos aditivos e
as mesmas patologias dos seus companheiros. Sabia ser o seu corpo e o seu comporta‑
mento interpretado diferentemente, seja pelos seus pares (onde os ciúmes do parceiro
entravam nessa avaliação), seja na rua, entre os demais habitantes da cidade (da qual
esperavam outros serviços para além de ajudar o companheiro a arrumar carros), seja,
por fim, no Centro de Saúde. Aqui era tratada à parte e sujeita a cuidados diferentes, dos
quais depois falava com recato, consciente da especificidade de ter um corpo em idade
reprodutora. Ana era a única pessoa no grupo que gostava de ir ao Centro de Saúde, mas
vivia emoções ambíguas. Por um lado, detestava certas perguntas e ter de confrontar-se
com outras mulheres (médicas e enfermeiras). Essas mulheres funcionavam para ela
como um espelho onde constatava ter uma identidade corporal marcada pela exclusão
e marginalização social; por outro, gostava de ser cuidada, de saber que se preocupavam
com ela, de poder discutir algum tempo «com pessoas normais», como dizia. Era este
o momento em que mais pensava no corpo e na possibilidade de o resgatar à «miséria
de vida» que tinha. Fora do Centro de Saúde, esta corporalidade «normal» desapa­recia
como preocupação, voltando a ter outras mais partilhadas com os companheiros da
­desventura, assumindo o estigma de «uma identidade deteriorada»27!
A cidade funciona para António, Marcos e Ana, como um espaço de identidades
múltiplas. Umas vezes praticam a liberdade dos espaços marginais, noutros os institu‑
cionais e, no entretanto, partilham de todos os outros com os transeuntes em relações
de anonimato e cumplicidades interessadas. Mas o corpo deles é mais livre nos e­ spaços
marginalizados, mais estigmatizado nos das relações quotidianas, mais controlado nos
institucionais. Seria muito errado pensar que é o mesmo corpo de saber, de relação e de
compreensão do mundo. Os espaços da cidade, as pessoas que os frequentam, a p ­ resença
ou ausência de poderes que os controlam ou lhes garantem funcionalidades fazem-nos
sentir diferentemente o corpo. O corpo múltiplo e o mundo vivido interpretam-se pela
experiência de uma prática muito diferenciada. Há sentidos corporais nestes espaços
que pré-existem à prática individual de cada um dos nossos informantes. Eles p ­ raticam
esses espaços dispondo o corpo para a maior eficácia possível em atingir os mais d
­ iversos
objetivos que esperam desses espaços. Mas o mais interessante é verificar que se há posi‑
cionamentos e objetivos relativamente claros em cada um dos espaços praticados, a cada

27
GOFFMAN, 1963.

250
COMO SE FAZ O CORPO. A CONSTRUÇÃO DA ANTROPOLOGIA:
DA ANTROPOLOGIA FÍSICA À ANTROPOLOGIA DA SAÚDE

momento podem alterar os comportamentos e dar uma resposta tática, improvisada,


caso a situação se altere ou os objetivos se modifiquem, por interesse próprio.
Uma ciência social que tenha de descrever e analisar a vida de António, Marcos
e Ana, só o poderá fazer na condição de estar em contínua disponibilidade para ver
estas táticas, o surgimento de novas correlações. Trata-se de um posicionamento cientí­
fico em alerta constante, muito frágil quando se pretende assertivo e conclusivo. Vale
a pena o risco da interpretação, estando consciente do risco de a cada conclusão ou
verificação interessante surgirem outras questões interessantes e sem resposta próxima.
Se a forma como se faz o corpo é múltipla, múltipla terá de ser a abordagem metodo‑
lógica; se é i­mpossível delimitar totalmente a ação e sentido do corpo múltiplo, impos‑
sível é t­ambém, na antropologia, uma teoria total, capaz de capturar os sentidos das
práticas s­ ociais e c­ ulturais. Ter consciência desta realidade é assumir o carácter frágil
da antropologia. E ao assumir esse carácter de fragilidade, isso não significa abdicar do
­exer­cício científico e da excecionalidade do método antropológico. Talvez seja este o
maior contri­buto da antropologia para o século XXI: assumir as fendas e os «silêncios»
presentes no seus objetos de estudo, não os procurando capturar e dominar, deixando-
-os ter uma palavra outra e um lugar outro, ainda não previsto e delimitado pelo conhe‑
cimento e­ stabelecido. E só assim cumprirá uma parte significativa do seu contributo
dentro das ciências sociais: dar espaço e lugar para o que ninguém trata; dar a palavra
ao que a t­ecnologia e o aparelho de poder classificou como «marginal»; dar abertura
para que outros sentidos surjam entre a consensualidade das eficácias noutros campos
cientí­ficos; construir os seus textos, onde não falte o rigor dos dados nem a herança
teórica ­construída ao longos dos anos, mas onde se permita e assuma a abertura para
questões não colocadas, para outras respostas possíveis. Assim, a cada nova investigação
se ­aprofunda o conhecimento e se revelam novas questões e desafios. Aceitar esta fragi‑
lidade é ter consciência do sentido de verdade científica em antropologia.

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252
TECNOLOGIAS DE SI — A MINIATURA,
O GIGANTESCO E O AFETO NA
REPRESENTAÇÃO DA NAÇÃO
PAULA MOTA SANTOS*

Resumo: Em 1940 o Estado Novo celebrava os 800 anos da fundação de Portugal. A construção do parque
Portugal dos Pequenitos em Coimbra inseriu-se no espírito dessas celebrações, tendo sido por isso objeto de
várias análises sobre a sua ligação com o regime de propaganda ideológica do Estado Novo. Este texto não
se debruça sobre esse passado, mas sobre o presente deste espaço tematizado e as relações de afeto que a
maioria dos seus visitantes tem para com este lugar. Analisa o papel que o espaço, nomeadamente as figuras
de ­exagero (a miniatura e o gigantesco) que habitam o parque, têm nessa produção de afeto por uma repre‑
sentação de uma identidade coletiva (o «si»): a nação e/ou a Lusofonia.
Palavras-chave: Portugal dos Pequenitos; miniatura; gigantesco; pós-colonial; afeto.

Abstract: In 1940 the Estado Novo celebrated the 800th anniversary of the founding of Portugal. The
­construction of the park Portugal of the Little Ones in Coimbra was part of the spirit of those celebrations
and as such it has been the subject of several analysis centering on its connection with the Estado Novo
­propaganda regime. This paper does not dwell on this past, but on the present of this themed space and the
relations of affection that the majority of its visitors has to this place. It will analyse the role that space, in
particular the two figures of exaggeration (the miniature and the gigantic) that inhabit the park, have in this
production of affect for a representation of a collective identity (the «self»): the Nation and/or Lusophony.
Keywords: Portugal of the Little Ones; miniature; gigantic; post-colonial; affect.

* Professora Auxiliar, Universidade Fernando Pessoa e CAPP-ISCSP/Universidade de Lisboa. Email: pmsan-tos@ufp.


edu.pt.

253
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

O PARQUE DO PORTUGAL DOS PEQUENITOS


O Portugal dos Pequenitos é um parque temático em miniatura localizado na
­cidade de Coimbra, Portugal. Construído por iniciativa de Bissaya Barreto e com assi­
natura do arquiteto Cassiano Branco, foi inaugurado em 1940, durante o regime dita‑
torial do ­Estado Novo, como parte das celebrações dos oitocentos anos da fundação
da nação e dos trezentos anos da restauração da independência, e visava representar a
nação. T ­ endo o sistema colonial português sido unicamente desmantelado na sequência
da revo­lução democrática de 1974, o país que Cassiano Branco em 1940 plasmou nas
estruturas ­materiais deste parque era ainda uma nação colonial1. Numa área de cerca
dois hectares e meio, este parque oferece hoje ao visitante pratica­mente as mesmas estru­
turas que ­Cassiano Branco projetou: um grande número de minia­turas de arquitetura
principalmente vernacular associadas às várias regiões do país e às suas (agora antigas)
colónias ultramarinas. Inicialmente construído como recreio de uma creche infantil
(o Jardim Raínha Santa Isabel, propriedade, tal como o parque, da Fundação Bissaya
Barreto), o mundo em miniatura criado visava ensinar as crianças sobre a Nação através
do brincar2.
Sendo um espaço que foi concebido para crianças, este mundo em miniatura
­desde cedo atraiu os adultos3: o primeiro registo sobre o cobrar de entrada encontra-
-se nas atas de reunião de Maio de 1945 da instituição que regia o Jardim de I­ nfância e
seu parque. Até recentemente, e mais de 70 anos após a sua abertura oficial, este ­parque
­temático g­ ozou da reputação de ser a atração turística mais visitada em ­Coimbra —
­sendo que esta é uma cidade histórica com uma grande riqueza de património arqui­
tetónico a ser visitado4. Em 2014, o parque perdeu (mas por pouca margem) esse
esta­tuto de local turístico mais visitado de Coimbra para o conjunto arquitetónico de
edifícios histó­ricos da Universidade de Coimbra que em 2013 tinham sido classificados
como patri­mónio Mundial da UNESCO5. De sublinhar de novo que o parque e as suas
­estruturas, ideali­zadas e construídas durante o período colonial, não sofreram alteração
de maior: o que é oferecido ao visitante de hoje é basicamente o que era oferecido há
­décadas atrás. A diferença principal entre o tempo de origem e o presente está no que
é dito ­estar nele representado: já não é o império, mas sim a Comunidade de Países de

1
Para uma análise mais aprofundada do contexto histórico e ideológico aquando da construção do parque ver BABO,
1997; MATOS, 2006; 2010; PAULO, 1990; PORTO, 1994.
2
Para informação mais detalhada sobre a obra social de Bissaya Barreto, bem como sobre a orientação pedagógica
por detrás da construção do Portugal dos Pequenitos ver SOUSA, 1999; MATOS, 2010.
3
Ver, por exemplo o relato de visita em MONTÊS, 1939.
4
Ver FORTUNA et al., 2012.
5
Número de visitantes em 2008: Portugal dos Pequenitos, 300.000; Universidade de Coimbra, 190.000. Em 2014:
Univer­sidade de Coimbra, 293.132 (Universidade de Coimbra 2014, p. 40); Portugal dos Pequenitos, 242.000 (núme‑
ro dos visitantes do parque fornecidos pela diretora).

254
TECNOLOGIAS DE SI — A MINIATURA, O GIGANTESCO E O AFETO NA REPRESENTAÇÃO DA NAÇÃO

­ íngua ­Portuguesa6: nomeadamente os países Africanos de Língua Oficial Portuguesa,


L
mais Macau, Índia, Timor e Brasil7.
Em 2017, dos quase trezentos mil visitantes que visitaram este mundo criado para
pequenitos, 65% eram adultos. Em 2017 também, dos quase trezentos mil visitantes
que pagaram a entrada desta atração turística, a grande maioria (80%) eram cidadãos
portugueses8. Estas proporções de visitantes, que são razoavelmente estáveis ao longo
os últimos dez anos9, denotam uma relação especial do Portugal dos Pequenitos — um
espaço construído há bem mais de três quartos de século durante o período colonial e
com o objetivo de retratar a nação de então — com os cidadãos portugueses do presente.
É sobre as razões desta relação que este texto se debruça10.

AFETO
O Portugal dos Pequenitos é um lugar que visitei várias vezes quando criança, quer
nas férias com a minha família, quer com a escola primária. As minhas memórias de
infância deste lugar são sobretudo de prazer e diversão. E porque as minhas memórias
do Portugal dos Pequenitos eram de prazer, uma vez mãe, levei lá os meus filhos quando
estes eram pequenos. Essa foi a primeira vez que voltei a este lugar desde que lá tinha
ido quando criança. Foi então, enquanto adulta e professora universitária em início de
carreira, que me apercebi do tom colonial do lugar — um tom que me deixou estarrecida
assim que entrei. Foi então que percebi que aquele lugar era bem mais que o «local de
brincar» que habitava as minhas memórias.
Uma década depois deste primeiro reencontro, e já no contexto do meu trabalho
de docente de antropologia do espaço a alunos de arquitetura, e como modo de desen‑
volver a compreensão do espaço como narrativa por parte dos alunos, organizei uma
vista de estudo ao Portugal dos Pequenitos enquanto espaço tematizado. Como parte do
processo de avaliação os alunos tinham que redigir um relatório auto-reflexivo sobre a
experiência da visita.
Ao ler os cerca de vinte relatórios de visita dos alunos, notei a ocorrência frequente
de frases como «e senti-me orgulhoso de pertencer à nação que mostrou o mundo ao

6
Organização intergovernamental criada em 1996.
7
Para análise mais detalhada destas mudanças ver SANTOS, 2014b.
8
Informação em <https://expresso.sapo.pt/sociedade/2018-01-09-Maioria-de-visitantes-do-Portugal-dos-Pequenitos-
sao.-adultos#gs.QFSD95TH>. [Consultado em 18/01/19].
9
Dados sobre visitantes obtidos em 2008 junto da direção do parque revelam uma proporção semelhante (SANTOS,
2014a). No entanto nos anos de 2011 e 2012 o número de visitantes foi ligeiramente inferior (APÓSTOLO, 2013).
10
Este texto pretende principalmente disponibilizar em português uma investigação que tem sido sempre publi­
cada em inglês. Neste texto oferece-se uma versão que interliga (se bem que de modo resumido) aspetos que ­foram
publicados de modo separado. Dos vários textos publicados, e devido à temática do Congresso, este texto em portu­
guês centraliza o seu foco no uso que o parque faz da miniatura (para versão mais aprofundar ver SANTOS, 2014a;
­encontram-se aqui também elementos parte de outros textos igualmente publicados em inglês. Todos os textos
­ingleses desta investigação estão listados na bibliografia final deste artigo.

255
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

mundo». Estas frases revelavam um forte apego emocional ao Portugal em exibição no


parque, o que me surpreendeu, pois todos os estudantes em questão, não só tinham
­nascido cerca de 20 anos após o desaparecimento do império colonial português (logo,
nunca o tendo vivenciado), como estavam a visitar (muitos deles agora por uma ­segunda
vez) um espaço ideologicamente pensado e concretizado há bem mais de sessenta anos,
durante o regime ditatorial do Estado Novo.
Escrevi já11 sobre este parque e sobre as ordens morais de atração12 que ele encap­
sula. Mas neste texto, subordinado à temática geral de uma conferência sobre «Maneiras
de Fazer», quero abordar alguns aspectos das tecnologias do espaço em ação neste lugar
de auto-representação e que produzem os termos de afeto que os visitantes portu­gueses
­parecem ter para com o mesmo. Neste âmbito de análise de tecnologias do espaço,
­presto aqui atenção ao exagero, que é elemento que alimenta figuras de retórica — e a
retórica é a arte de usar a forma para convencer os outros da validade e/ou veracidade
dos ­nossos argumentos. Irei assim abordar a miniatura e o gigantesco, duas formas de
exagero que habitam o Portugal dos Pequenitos. Nesta abordagem destas duas figuras
de exagero i­nspiro-me no trabalho de Susan Stewart13.

A MINIATURA
A miniatura habita o Portugal dos Pequenitos na medida em que todos os pavilhões
que representam os diferentes lugares estão construídos em escala reduzida14. Isto torna
a miniatura o traço que os visitantes mais identificam como característico do parque.
Em termos gerais, a miniatura constitui tanto uma forma específica de represen‑
tação como um modo de experimentar a natureza de uma realidade, que é ela de uma
ordem mais ampla. A produção da miniatura cria um mundo impossível, e por esse
mesmo ato de fazê-lo existir, a miniatura nega a própria impossibilidade da existência
desse mundo impossível. Essa capacidade da miniatura em derrubar a impossibilidade
de existência estabelecida pelas leis do mundo do senso comum, pertence ao domínio
do mágico no sentido antropológico do termo. Entre os «poderes» específicos da minia‑
tura como tecnologia espacial de representação, encontram-se os efeitos da «perícia» e o
da «totalidade na pequenez»15.
A miniatura joga com os limites da habilidade. Os gestos e ações por detrás
da ­criação do diminuto, falam de perícia e disciplina16. Longe de resultar de uma

11
SANTOS, 2018a.
12
MACCANNELL, 1976.
13
STEWART, 1992.
14
Cassiano Branco refere duas escalas para o parque: uma escala de 0,005 p.m. para as classes infantis; e uma escala de
0,025 p.m. para as crianças de mais idade, e que eram áreas do parque que Cassiano designava de mais desenvolvidas
de aspetos e documentação (MATOS, 2010: 8).
15
STEIN, 1990.
16
STEWART, 1992: 39.

256
TECNOLOGIAS DE SI — A MINIATURA, O GIGANTESCO E O AFETO NA REPRESENTAÇÃO DA NAÇÃO

c­ ontingência a­ cidental (um improviso devido à falta de espaço), a pequenez da minia­


tura faz a­ umentar o valor do objeto. Essa valorização da realidade miniaturizada pode
ser encontrada, por exemplo, na velha tradição de jardins em miniatura na cultura
­chinesa — e naquelas por esta influenciadas, como a japonesa, a vietnamita e a tailan‑
desa —, onde os jardins em recipientes são altamente valorizados, sendo-lhes creditadas
propriedades estéticas, filosóficas e mágicas17. Através da habilidade de produzir o muito
pequeno, a miniatura provoca espanto, na medida em que produz um mundo fabu‑
loso e fantástico. A descrição de Alfred Gell do seu encontro, aos onze anos de idade,
com um modelo de fósforos da catedral de Salisbury enquanto visitava o original, ilustra
­claramente a capacidade da miniatura em causar impacto naqueles que a contemplam18.
Além disso, e de acordo com Gell, o poder dos objetos de arte deriva do processo t­ écnico
que eles corporizam: «a tecnologia do encantamento é fundada no encantamento da
tecnologia»19. Este encanto da tecnologia está definitivamente em ação no Portugal dos
Pequenitos, que é frequentemente citado e visitado por arquitetos e estudantes de arqui‑
tetura precisamente por causa da qualidade das suas réplicas, enquanto outros visitantes
costumam referir, maravilhados, a minúcia dos edifícios.
Na consideração aqui do domínio da retórica do espaço e seu entrelaçamento com
a postura fenomenológica que centraliza o corpo, é necessário enfocar o modo parti‑
cular como o Portugal dos Pequenitos faz uso da miniatura. Ao contrário de Bekonscot
(final dos anos 1920, Beaconsfield, Reino Unido) ou de Splendid China (1989, ­Shenzen,
­República Popular da China) — dois parques temáticos que também apresentam
réplicas em miniatura de edifícios reais, mas em tamanho pequeno demais para os
­visitantes neles entrarem —, a escala usada no Portugal dos Pequenitos permite que
os ­visitantes acedam ao interior das réplicas miniaturizadas. As crianças podem fazê-lo
sem esforço em qualquer das miniaturas, enquanto os adultos podem entrar em algumas
das casas se se curvarem – mas noutras nem assim, tendo que ficar de fora a ver a alegria
das crianças de se verem num espaço feito à sua medida. Esta possibili­dade de partici‑
pação, e não unicamente de observação, no universo representado, isto é, os efeitos da
minia­tura como fenomenologicamente vivenciada pelo corpo senciente, é o principal
­elemento da negociação bem-sucedida das ordens morais de atração ­deste lugar colo‑
nial em tempos pós-coloniais — e que é objetivada na qualidade mágica da experiência
da visita, algo frequentemente expresso por quem vai ao Portugal dos P ­ equenitos20. Este
aspeto específico da experiência da visita será desenvolvido mais à frente neste texto.
Há ainda a considerar que mundos em miniatura, qual microcosmos, são um
encap­sulamento do macrocosmos. A miniatura enquanto modo de representação

17
STEIN, 1990.
18
GELL, 1992: 47.
19
Todas as traduções feitas pela autora (GELL, 1992: 44).
20
Para análise detalhada ver SANTOS, 2014a; SANTOS, 2018a.

257
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

­ ermite uma perceção clara da totalidade do objeto observado. No seu livro de 1992,
p
a poetisa e crítica Susan Stewart aborda, entre outros assuntos, a relação entre corpo,
escala e narrativa através da análise de micrografias. Os primeiros exemplos de micro‑
grafia foram de textos com importância social, como por exemplo a Bíblia. Suficiente‑
mente pequenos para serem carregados perto do corpo, os livros em miniatura tinham,
muitas vezes, um objetivo pedagógico: numa pequena quantidade de espaço físico, o
leitor dispunha de informações importantes. Portugal dos Pequenitos pode ser assim
­tomado como um exemplo de micrografia na medida em que retrata, narra e transmite
informações importantes numa compressão espaço-temporal: pequeno em termos de
espaço, mas enorme em termos do seu conteúdo. No Portugal dos Pequenitos enquanto
mundo em miniatura (o parque temático), através de uma experiência única (a visita),
conseguimos captar e aprender sobre uma totalidade que é gigantesca (o império colo‑
nial/nação ou a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) que, se fosse para ser
apreendida através da visita aos lugares reais que as réplicas representam, muito prova‑
velmente nunca seria experienciada, vivida e apreendida, devido à dispersão planetária
desses lugares21.

O GIGANTESCO
Uma vez terminada a sua construção nos anos 6022, Portugal dos Pequenitos deu
corpo a uma representação da nação numa forma exagerada: o imenso império colo‑
nial. Hoje, e porque as estruturas de há 79 anos são basicamente as mesmas, o parque
oferece aos visitantes a exibição do igualmente grande mundo lusófono como consubs­
tanciado da Comunidade de Países de Lingua Portuguesa. Portugal dos Pequenitos
­apresenta-se assim como um espaço muito intrigante na medida em que contém um
paradoxo, pois é habitado por duas entidades metafóricas: a miniatura (a forma usada)
e o gigantesco (o tema exibido, seja o império colonial, seja a Comunidade de Países de
Língua Portuguesa).
O gigantesco, da mesma forma que a miniatura, alimenta-se de exagero. Mas
­enquanto o exagero da miniatura resulta no muito pequeno, o exagero no gigantesco
produz o oposto: o muito grande. Se a miniatura fala de estrutura, o gigantesco fala de
agência23. Os gigantes transformaram a paisagem: os contos tradicionais falam frequen­
temente de características geográficas como tendo resultado da ação dos gigantes —
grandes lagos são formados quando os gigantes deixam a pegada na terra para serem

21
Esta qualidade de réplica e de totalidade estão subjacentes à razão de visita por parte de um grupo de visitantes
portugueses ou de ascendência portuguesa muito específico e revelado pelo trabalho de campo com os visitantes:
aqueles que habitam e trabalham noutros países europeus, e que no seu mês de férias de Verão vêm ao Portugal dos
Pequenitos para mostrar o país todo aos membros mais novos da família.
22
MATOS, 2010.
23
STEWART, 1992.

258
TECNOLOGIAS DE SI — A MINIATURA, O GIGANTESCO E O AFETO NA REPRESENTAÇÃO DA NAÇÃO

preenchidos pela chuva, grandes pedras espalhadas pelo campo sugerem gigantes a
­jogar, e cursos de água são formados a partir das suas lágrimas24.
O projeto colonial é ele sobre ação e transformação: ao alargar-se para além da
sua geografia original (a Europa), o poder colonial (Portugal) foi mudar o mundo
(«desco­brindo» novas terras e «civilizando» os nativos «selvagens»). Segundo Stewart25,
a ­cultura pré-industrial localiza o gigantesco na natureza, enquanto a ascensão do
­capitalismo industrial desloca o gigantesco para o abstrato da economia de troca. Se
a transposição do gigantesco do mundo natural para o meio urbano das relações de
­mercado marca uma transição das forças ambivalentes do natural (produtivo e destru‑
tivo) para as f­orças reprodutivas das sociedades de classes26, então o projeto colonial é
verdadeiramente ­gigantesco na medida em que a sociedade de classes é tanto e­ ssência
­quanto ­consequência da natureza e do destino do empreendimento colonial e seu
­sistema capi­talista. A reali­dade oferecida no Portugal dos Pequenitos é assim gigantesca,
tanto ­enquanto império colonial, tanto enquanto comunidade de países de língua portu­
guesa: ­enquanto império c­ olonial, é a nação exagerada: é um corpo ampliado para além
dos seus limites «naturais» (suas fronteiras e geografia europeias), e enquanto Comuni­
dade de Países de Língua Portuguesa, é imensa, englobando 250 milhões de pessoas nos
­quatro cantos do globo.
Esta qualidade gigantesca do mundo em exposição no Portugal dos Pequenitos é
mais claramente objetificada num elemento particular do parque: o mapa-mundo de
7x4 metros exibido na parede que separa as seções e geografias além-mar das repre‑
sentações baseadas na geografia europeia (Portugal Monumental, conjunto de C ­ oimbra
e Portugal Continental/Casas Regionais). Este é um mapa-mundo gigantesco no qual
são ­mostradas as rotas de «descoberta» percorridas pelos navegadores portugueses, e
onde estão assinalados (a verde) os territórios que constituíram o império, e que hoje
constituem a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Do lado direito desta
­representação do mundo encontra-se uma estátua gigantesca do Infante D. Henrique,
o Navegador, o príncipe português que conduziu Portugal à aventura marítima iniciada
no século XV, e assim iniciou o destino colonial da nação.

24
STEWART, 1992: 72-73.
25
STEWART, 1992: 79.
26
STEWART, 1992: 79-84.

259
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Figura 1. O Mapa Mundo.


(Fotografia da autora).

O gigantesco exterioriza e produz comunidade, sendo análogo a instituições


a­bstratas como Estado ou religião: o gigantesco «enleia-nos e envolve-nos na sua
­sombra»27. E este é justamente o efeito das fotografias souvenir frequentemente ­tiradas
pelos visitantes do parque consigo próprios e em que este mapa gigantesco de um
mundo liderado pelos portugueses é colocado em pano de fundo. Neste espetáculo do
gigantesco, a imensa e gigantesca estátua do infante representa-o colossal, majestosa‑
mente sentado numa postura de autoridade e comando. Ele é gigantesco na sua pose
e volume, tão gigantesco quanto o mapa do mundo ao lado dele, no qual o gigantesco

27
STEWART, 1992: 71.

260
TECNOLOGIAS DE SI — A MINIATURA, O GIGANTESCO E O AFETO NA REPRESENTAÇÃO DA NAÇÃO

e­ mpreendimento colonial da nação Portuguesa é tão claramente exibido. E porque a


escala de representação não pode ser vista separadamente da função social e dos valores
que veicula, o gigantesco utilizado neste parque, enquanto tecnologia espacial do eu,
produz um Portugal dos Pequenitos também ele grandioso e majestoso.

O COLONIAL NO PÓS-COLONIAL
Realismo vs Orientalismo
Um outro aspeto a ser considerado nas tecnologias espaciais do eu em jogo n ­ este
parque são os modos representacionais utilizados. O Portugal dos Pequenitos exibe dois
modos diferentes de representação: um modo hiper-realista (utilizado em todas as ­seções
relacionadas com espaços não coloniais) e um modo Orientalista28 (a área relacionada
com os [ex]territórios coloniais). Se o primeiro, com a sua qualidade de réplica fiel de
estilos construtivos, é uma das razões pelas quais estudantes de arquitetura visitam o
parque, já o segundo encontramo-lo marcado por uma estética modernista, onde os
­elementos arquitetónicos de culturas «exóticas» são interpretados por códigos ociden‑
tais resultando em Áfricas, Índias e Extremo Orientes não reais, mas sim imaginados.
No que diz respeito a géneros, o realismo implica uma organização da infor­mação
claramente semelhante à organização da informação na vida real; mas na verdade o que
o realismo faz, não é ser mimético da vida real, mas da sua hierarquização de infor­
mações29. Além disso, se tomarmos o mundo da miniatura como um mundo metafó‑
rico30 e não como um mundo metonímico, podemos ver como o Portugal dos Peque­
nitos a­ dquire a qualidade de um emblema. Assim, e seguindo a análise de Bourdieu31, tal
como ­acontece com as fotografias de família tiradas em frente à árvore de Natal, o espaço
do Portugal dos Pequenitos, apesar de articular o individual e o histórico, fá-lo de a­ cordo
com um conjunto de convenções. Limitado no espaço (uma versão pequena/compri‑
mida do Império Colonial e/ou da Comunidade de Países de Língua Portu­guesa), o
Portugal dos Pequenitos enquanto miniatura, oferece uma descrição e uma narrativa
­perfeitamente rematadas, oferece um quadro, um tableau.
Segundo Stewart32, um tableau fala da distância entre o narrado (neste caso, o
­próprio parque, seja como império e/ou comunidade lusófona) e o contexto em q ­ uestão
(neste caso, as condições históricas da produção de cada uma das duas entidades geo‑
políticas referidas). Os tableaux «só são possíveis através da representação, uma vez que
[eles] oferecem um fechamento completo de um texto enquadrado a partir da realidade

28
SAID, 2003.
29
LIMA, 1989.
30
STEWART, 1992: 44.
31
BOURDIEU, 1965.
32
STEWART, 1992.

261
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

que o rodeia»33. Assim, as qualidades positivas do império e da história dele resultante


— tal como exibidas no parque e frequentemente expressadas pelos meus estudantes e
outros visitantes portugueses34 — só são possíveis na medida em que a representação
oferecida pelo Portugal dos Pequenitos esconde as condições históricas da produção do
império. O Portugal dos Pequenitos como espaço representacional é, portanto, também
um mito no sentido de Roland Barthes35, ou seja, é um tipo de discurso, uma forma que
visa não a explicação, mas sim a persuasão. É então porque o Portugal dos Pequenitos
naturaliza o império e/ou o mundo lusófono ao ocultar as condições históricas e mate­
riais da sua produção, que assume as qualidades do tableau de Stewart36 e do mito de
Barthes37, dois conceitos imbuídos de um tempo intemporal.

INTEMPORAL E A-HISTÓRICO
Um tempo intemporal é mais uma das características do lugar ritualizado que o
Portugal dos Pequenitos é. O Portugal dos Pequenitos, enquanto narrativa, não só tem um
ponto de vista, como também tem o seu próprio tempo de história. A narrativa perfei‑
tamente rematada oferecida pelo Portugal dos Pequenitos (o império e/ou a comunidade
lusófona) está assim fora da temporalidade do quotidiano.
Os 79 anos (a permanência da existência) deste espaço estruturado que pouco foi
alterado, produz um tempo a-histórico que atribui intemporalidade ao mundo ali retra­
tado e criado. A retórica do espaço do Portugal dos Pequenitos apresenta a nação e/ou
a comunidade lusófona de uma forma exagerada porque comprimida no tempo e no
­espaço (a experiência de visitar este pequeno parque e suas miniaturas). Além d ­ isso,
o parque hoje apresenta o mundo lusófono, que é intrincado e diversificado (como
anterior­mente o império o era), e essa complexidade amplia a dimensão do signifi­cado
do objeto e­ xperienciado/visitado. Assim, o Portugal dos Pequenitos assume a q
­ ualidade de
um lugar grande no que diz respeito ao simbolismo e à representação. A sua g­ randeza, a
sua natureza gigantesca como realidade espacial produzida, é paradoxalmente refor­çada
pela sua redução material, pela miniatura. Esta coabitação dialética de duas metá­foras
opostas (a miniatura e o gigantesco), juntamente com o venturoso encontro do parque
com os tempos da nossa hipermodernidade habitada pelo pós-turista38, traba­lham para
a capacidade que este espaço colonial tem em seduzir os visitantes num t­ empo pós-colo­
nial, negociando com sucesso as ordens morais de atração39.

33
STEWART, 1992: 48.
34
SANTOS, 2014a; 2104b; 2018a.
35
BARTHES, 1976.
36
STEWART, 1992.
37
BARTHES, 1976.
38
FEIFER, 1985.
39
MACCANNELL, 1976.

262
TECNOLOGIAS DE SI — A MINIATURA, O GIGANTESCO E O AFETO NA REPRESENTAÇÃO DA NAÇÃO

Porém, mais do que esta contingência histórica de co-habitações fortuitas, mas


venturosas, argumenta-se aqui que é o uso particular que o parque faz da miniatura e a
maneira como ela interfere na experimentação do lugar pelo visitante, que permite uma
negociação bem-sucedida das ordens morais de atração.

TECNOLOGIAS DO «SI» E REPRESENTAÇÃO


Todos os dispositivos de retórica e tecnologia espacial até aqui enunciados e anali‑
sados contribuem para o trabalho de representação que o Portugal dos Pequenitos é. Este
oferece aos seus visitantes a inteireza da portugualidade e/ou lusofonia como identidade
através da possibilidade de se experienciar a «impossibilidade da totalidade na peque‑
nez», isto é, através da visita ao parque e ao mundo irrealmente real que o habita.
Como já argumentei, os efeitos que emanam da miniatura, nomeadamente o
­maravilhamento perante a perícia e perante a capacidade de ter a totalidade no dimi­nuto,
estão em ação na experiência da visita ao Portugal dos Pequenitos. Além destes e­ feitos,
e como Sontag40 afirmou em relação à fotografia, a miniaturização tem a capacidade de
aumentar o sentido de apropriação, o que por sua vez ajuda a produzir um sentido
de identificação, na medida em que o que sinto ser meu pode ser percebido como parte de
mim. Ao exibir um mundo tão pequeno que a única coisa que os visitantes podem f­ azer
é apontar para as réplicas em miniatura «lá em baixo», tanto Bekonscot quanto Splendid
China produzem o que eu chamo experienciação41 Liliputiana do espaço, e­ nquanto o
Portugal dos Pequenitos produz uma experiência Carrolliana42. Ao aceder ao interior das
pequenas casas através da capacidade de encaixar o corpo dentro do espaço disponível
(mesmo se com dificuldade), os visitantes do Portugal dos Pequenitos passam por uma
experiência semelhante à experiência da Alice (de Lewis Carroll) de mudanças mágicas
do tamanho do corpo. Mas mais importante ainda, essa capacidade de ­aceder ao interior
dos edifícios miniaturizados permite aos visitantes do parque (crianças, adolescentes e
adultos) participarem realmente do mundo em exibição. E através dessa capacidade de
estar no interior desses edifícios miniaturizados, esse mundo deixa de ser uma fantasia e
é uma realidade: eu faço parte dele e ele é parte de mim.
Num dos seus textos, Alfred Gell descreve o poder das belas e habilmente escul‑
pidas tábuas de proa das canoas do kula das ilhas Trobriand que «devem deslumbrar
o observador e enfraquecer o seu controle sobre si próprio»43, fazendo com que este
se comporte com inesperada generosidade, ou seja, fique mais disposto a oferecer aos

40
SONTAG, 1979.
41
«Experienciação» é usado no sentido Kantiano de conhecimento do lugar como conhecimento genuinamente local
«is in itself experiential in the manner of Erlebnis, ‘lived experience’, rather than of Erfahrung, the already elapsed
experience» (CASEY, 1996: 18).
42
SANTOS, 2014a.
43
GELL, 1992: 44.

263
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

parceiros de kula que o visitam os objetos kula de maior qualidade que ele detém44. Essa
disposição de oferecer os seus melhores itens kula ao parceiro visitante é semelhante
à empatia. E empatia é o que os visitantes do Portugal dos Pequenitos experimentam
­quando expressam o seu gosto pelo lugar e o prazer pela visita. As requintadamente
esculpidas tábuas de proa das canoas do kula têm a capacidade mágica de privar aqueles
que as contemplam da sua razão45. Para Gell, esse poder mágico, ou seja, a eficácia do
­objeto de arte como um componente da tecnologia do encantamento, é em si um resul‑
tado do encantamento da tecnologia pois «[é] o modo como um objeto de arte é inter‑
pretado como tendo chegado ao mundo que é a fonte do poder que tais objetos detêm
sobre nós — o seu devir e não o seu ser»46.
O engenho e a complexidade do mundo em miniatura feito existir no Portugal
dos Pequenitos, juntamente com a perceção do elevado nível de dificuldade que a sua
­construção certamente envolveu, tornam mágicos o parque e a sua experienciação
­devido aos seus processos técnicos que transcendem nossa compreensão e nos f­orçam
a interpretá-los como assombrosos, como mágicos47. Assim, tal como os poderes cati­
vantes das tábuas de proa das canoas do kula fazem com que se entregue a razão e se dê
ao parceiro kula os melhores objetos, o Portugal dos Pequenitos, através da sua eston­
teante aparência e qualidade artística, seduz os visitantes fazendo-os comportar-se com
inesperada generosidade, entregando à narrativa do parque o seu maior constituinte de
si próprios: o seu coração.

[Para dizer agora] como me senti sobre o lugar… a representação da ­expansão


marítima… transmite-me um grande orgulho, pois retrata um dos maiores ­momentos
da história portuguesa: as conquistas. Para mim, significa e glorifica a Pátria, p­ resta
homenagem aos portugueses que perderam a vida nos mares em busca de novas
­terras, novos territórios, novas culturas. Desta forma, o seu esplendor estará sempre
presente nas nossas vidas… Adorei a visita e, se já amava o meu país, adoro mais
agora… [estudante de arquitetura, feminino 19 anos, 2008].

Os números de visitantes enunciados no início deste texto, bem como a elevada


­ resença de cidadãos portugueses na sua composição48, denotam uma relação e­ special
p
por parte destes com este parque tematizado e seu sistema representacional. A e­ stes
­números deve-se adicionar o conhecimento obtido através de trabalho de campo ­junto

44
GELL, 1992: 46.
45
GELL, 1992: 46.
46
GELL, 1992: 46.
47
GELL, 1992: 49.
48
Tal foi a perceção obtida nas várias visitas feitas, que foi confirmada pela informação dada pela diretora do
parque. De notar que o estudo quantitativo de Apóstolo indica 85,9% de Portugueses no total de 199 inquiridos
(APÓSTOLO, 2013: 63).

264
TECNOLOGIAS DE SI — A MINIATURA, O GIGANTESCO E O AFETO NA REPRESENTAÇÃO DA NAÇÃO

dos ­visitantes portugueses49, dos quais não só a maioria vai a Coimbra especificamente
para visitar o Portugal dos Pequenitos, como frequentemente o visitaram várias vezes.
E ­tendo sido re-visita ou sendo visita primeira, estes visitantes expressam frequente­
mente a i­ ntenção de repetir a visita em fases posteriores da sua vida, como, por exemplo,
­quando forem pais50.

REMATE
A realidade da relação dos visitantes do presente com um espaço de um c­ erto
­passado que é, não obstante, presente também, é complexo e repleto de nuances, s­ endo
neste texto especifica, mas inevitavelmente limitadamente focalizado. O l­eitor que
­procure maior focalização poderá encontrá-la em trabalho já publicado51, em que ­analiso
em detalhe o modo como jovens adultos portugueses se relacionam com o e­ spaço do
Portugal dos Pequenitos, e do qual o excerto mais acima citado é exemplifi­cativo. Noutro
texto52 analiso como o ensino da história de Portugal no sistema educativo português,
e nomeadamente a afasia53 que recai sobre a escravatura e o tráfico negreiro levado a
cabo por Portugal enquanto potência colonial, não só cria as condições para as dinâ‑
micas ­raciais do presente na sociedade portuguesa54, como leva a cabo um enaltecer
do ­chamado período dos descobrimentos. Esta socialização na escola portuguesa na
metanarrativa do engenho, coragem e abertura ao mundo por parte de um pequeno
e periférico país europeu — narrativa que esconde na maior parte as condições histó­
ricas do projeto colonial como sistema de dominação e exploração de vastos conjuntos
­populacionais — aliada aos poderes da miniatura como aqui retratados, conjugam-se
de modo perfeito no Portugal dos Pequenitos tornando-o um claro exemplo de concreti­
zação de «tecnologias de ‘si’», isto é, de «modos de fazer existir nação e/ou lusofonia» que
produzem o afeto experienciado pela maioria dos seus visitantes.

BIBLIOGRAFIA
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49
Trabalho de terreno em julho de 2012 e de 2016. De notar que o estudo quantitativo de Apóstolo indica 71% dos
inquiridos com indo a Coimbra exclusivamente para visitar o parque (APÓSTOLO, 2013: 67).
50
Além desta informação obtida juntos dos visitantes durante os dois blocos de trabalho de terreno referenciados,
é de notar que o estudo quantitativo de Apóstolo indica 78,4% dos inquiridos como tendo visitado anteriormente o
parque numa média de 2,4 visitas (APÓSTOLO, 2013: 75).
51
SANTOS, 2018a.
52
SANTOS, 2014b.
53
STOLER, 2011.
54
Ver também SANTOS, 2018b.

265
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266
COMO SE FAZ UM «EU». RETORNANDO
SUCINTAMENTE AO PROBLEMA DA
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E DA
SUBJETIVIDADE
VÍTOR OLIVEIRA JORGE*

Resumo: Expõe-se uma muito simplificada introdução a um aspeto da problemática contemporânea do


sujeito e da subjetividade, inspirada na psicanálise lacaniana, a qual tem permanentemente reestruturado o
campo aberto por Freud, uma das maiores «revoluções» de toda a história do pensamento, operada desde
o início do século XX. Opõe-se quer à anunciada «morte do sujeito», quer a uma conceção tradicional,
intei­riça, deste. Atenta embora às perspetivas abertas pelas ciências, a psicanálise resolve-se antes de mais ao
nível individual, e as suas implicações filosóficas, embora indissociáveis da prática clínica, são subversivas.
Resumi­damente, a questão consiste em: como é que cada um de nós, para viver, precisa da ilusão de se enun‑
ciar como «eu»? Que é afinal o sujeito, como se «constrói» essa ficção?
Palavras-chave: sujeito; subjetividade; psicanálise; Jacques Lacan; desejo.

Abstract: This is just a very simplified introduction to an aspect of the contemporary problematic of the
­subject and subjectivity, inspired by Lacanian psychoanalysis, which has been continually restructuring the
field opened by Freud, one of the greatest «revolutions» in the history of thought, active since the begin‑
ning of the 20th century. It opposes either the announced «death of the subject» or a traditional, one-sided
­conception of it. In spite of the perspectives opened up by all sciences, psychoanalysis operates mainly at
the individual level, and its philosophical implications, being inseparable from clinical practice, are ­indeed
­subversive. Briefly, the question is: how do each of us, in order to live, need the illusion of enunciating him‑
self/herself as «I»? What, after all, is the subject, how is this fiction «constructed»?
Keywords: subject; subjectivity; psychoanalysis; Jacques Lacan; desire.

* Instituto de História Contemporânea. FCSH-UNL. Presidente da direção da SPAE. Email: vitor.oliveirajorge@


gmail.com.

267
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

«(…) um animal não finge fingir (…)»


Lacan1

A questão do sujeito é das mais antigas da filosofia. Porém, sofreu alterações ­muito
importantes com a modernidade europeia, nomeadamente, como é bem sabido, a ­partir
de Descartes e de Kant, entre inúmeros outros autores, até à atualidade. Articula-se
­evidentemente com a noção de subjetividade, de «eu», e de toda a constelação concep‑
tual ligada à ideia de pessoa, etc.
A ilusão de que «eu», qualquer um de nós, existo/e como um ser ou agente
­centrado, autónomo, desde que nasci/eu, identificado por um nome, é sem dúvida a
suprema ilusão, embora necessária para orientar a estranheza que em cada um de nós
«mora». Como?
Este modesto texto (que tenta seguir «ao pé da letra» temas em que o autor é um
mero estudante)2 parte da ideia óbvia de que a montante de qualquer «fazer» ­humano
estão indivíduos concretos, inseridos em grupos mais um menos restritos ou alargados,
comunidades essas sem as quais lhes seria impossível sobreviver. E que, assim, nada
pode ser corretamente pensado se não percebermos também como é que cada uma
­dessas pessoas, na sua irredutível singularidade, se constitui, se faz e é feita individual‑
mente — no seio de uma comunidade que a precede, que a lança ao mundo — em dois
planos concomitantes: o consciente, o do eu (ou ego) que atua todos os dias na vida
­corrente (autoconsciência), e o do sujeito do inconsciente. Esta fundamental, consti­
tutiva, cisão do «eu» em dois (como as duas faces de uma moeda) foi a descoberta
­fundamental de Freud, descoberta cuja economia é impossível fazermos, sob pena de
absolutamente nada entendermos sobre o ser humano e a sociedade, deitando a perder
qualquer pesquisa consequente seja em que domínio for. Por isso pensei que era muito
importante trazê-la a este Colóquio, genericamente intitulado «Modos de Fazer», para
que com ele se não desse eventualmente a entender — o que seria erro grosseiro — que
o tema escolhido se esgotaria nas múltiplas atividades correntes do ser humano, através
das quais este lida com o mundo e a sociedade, quando é na interrogação, sempre posta a
si como Outro, ou diretamente posta ao Outro, que ele mais se aproxima da inquietação
que o caracteriza, o individualiza, e o mobiliza em todos os atos, públicos ou íntimos,

1
Écrits II, p. 287.
2
Peço assim a benevolência do leitor para qualquer eventual imprecisão, carácter repetitivo de ideias, e também para
alguma «colagem», típica do iniciado, a matérias expostas pelos autores referidos na bibliografia, o que se deve apenas
à minha inexperiência neste âmbito, e portanto bem longe, evidentemente, de qualquer intenção de «plagiar» (tomar
como meus) o pensamento ou reflexão alheios.

268
COMO SE FAZ UM «EU». RETORNANDO SUCINTAMENTE AO PROBLEMA DA
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E DA SUBJETIVIDADE

da sua existência. O ser humano é o ser da fala, desde que nasce até que morre: ele está
sempre a falar, mesmo que seja apenas «consigo»3.
Tenho ainda na memória o título de um dos livros que me fez «ser arqueólogo»
(com tudo o que de convencional existe na identificação da pessoa com uma disciplina
ou atividade pré-existente, neste caso a arqueologia): O Homem Faz-se a Si Próprio, de
Gordon Childe (cf. bibliografia). Pois é exatamente na mesma senda que prossigo — não
como psicanalista, que não sou, mas como arqueólogo, no sentido estrito da palavra —,
interrogando-me, mais de cinco décadas passadas, sobre o próprio coração do ­problema
que sempre me ocupou: o que é o ser humano, o que o distingue da o ­ rdem natural, o
que é que lhe permitiu, num relativo curto espaço de tempo, mudar a superfície da ­Terra
e praticamente pôr-se a si mesmo e a ela, Terra e outras espécies, em risco ­iminente
de ­destruição? Que estranho animal (para não dizer mesmo, que ser «aber­rante») é
este, que, tendo decorrido da evolução das espécies, nasce prematuro, totalmente desa­
daptado, só sobrevive graças ao amparo dos que o rodeiam, e precisou de milénios
para perceber que, sendo dotado de autoconsciência, isso pressupõe a existência de um
­inconsciente? Que condições propiciaram esta tardia revolução coperniciana? Etc., pois
isto inclui todas as perguntas fundamentais que daí derivam.
Claro, todos o sabemos, o autor dessa revolução foi S. Freud, mas depois, entre
uma plêiade de consequências, veio Jacques Lacan; e este último retornou a Freud para

3
Este meu texto, que não visa mais do que divulgar noções em Portugal pouco debatidas no âmbito universitário,
inspira-se como referi na teoria da psicanálise lacaniana. Trata-se de uma questão antropológica fundamental, a da
constituição do sujeito e da alteridade — do eu e do outro, pois ambos estão sempre em correlação. A este respeito,
Antonio Quinet pôde escrever, em síntese: «Freud revolucionou a subjetividade ao mostrar que o eu não é senhor
na sua própria casa, e Lacan desfez a ilusão da totalidade, a pretensão de síntese e a miragem da unidade do eu,
­mostrando que o eu é — antes de mais nada — outro. Je est un autre, dizia Rimbaud». (Os Outros em Lacan, 2012 —
v. bibliografia). Este ponto é fundamental, pois que é como «eu» — como a ilusão de ser eu, produzindo enunciados
a partir desse lugar simbólico — que eu vivo, aprendo, estudo, investigo, me relaciono com a realidade, em suma, que
eu existo. E, todavia, eu, como entidade autónoma, (in)existo; sou para mim próprio, e para o outro através de quem
especularmente me constituo, um enigma indecifrável, uma falha, e quando muito busco no Outro, movido pelo a,
o objeto causa do meu desejo, algo com o qual me identifique e de algum modo tente preencher o meu vazio. Pois
que, para existir, eu tenho de aprender a desejar. Esse a está no cruzamento das três instâncias — que mutuamente
se entrelaçam — do nó borromeano com que Lacan deu a volta à tópica freudiana: imaginário (constituição inicial
— mas que me acompanha toda a vida — do eu como outro, no chamado estádio do espelho), simbólico (separação
da minha centralidade inicial, do meu narcisismo primário, para absorver as regras do social e do ­sentido, através da
linguagem que me exprime e sempre me frustra, como ser da falta, da castração, que sou); e real, algo que ­procuro
sempre e jamais consigo configurar, sendo essa mesma impossibilidade simbólica o que paradoxalmente me ­permite,
como ser da pulsão, viver. O «eu» jamais está feito, jamais está acabado, não tem uma síntese ­possível, e só se pode
equacionar como sujeito na cena psicanalítica, em que o discurso do psicanalista, através da sua ­interação ­comigo,
me permite «atravessar» o meu fantasma, isto é, construir a minha fantasia, conciliar-me com a minha ­radical
­heteronímia — que não é uma coleção de identidades, mas um contínuo processo de identificação, de aceita­ção do
meu vácuo constitutivo —, e equilibrar-me enfim, de algum modo, num plano que não tem qualquer lei ou regra a
pré-determiná-lo, entre o eu ideal (imaginário) e o ideal do eu (simbólico). Sem o entendimento desta comple­xíssima
— e sempre individualizada, singular — construção do «eu», o ser humano é inconsciente da sua p ­ rópria alienação
(castração) matricial. Incluindo evidentemente a sua posição como sujeito do conhecimento perante o objeto do
mesmo conhecimento. Mas, para lá do conhecimento, a psicanálise instala um certo tipo de saber que é da ordem do
permanente desassossego, típico da modernidade crítica.

269
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

o desprender de todas as interpretações erróneas que muitos outros dele fizeram, e o


prolongar, com as consequências práticas e filosóficas inerentes; e assim precisamos
nós hoje de fazer o mesmo com Lacan, pois o trabalho, tanto na cena clínica como nas
suas consequências filosóficas, é permanente. Estamos de facto aqui em pleno campo
da filosofia; nele, como na psicanálise, sou, como referi, apenas um iniciado, d ­ evendo
muito a diversas leituras inspiradoras, nomeadamente de autores da escola eslovena
de Liubliana, e do que esta tem motivado por toda a parte do mundo; por exemplo,
e só para nomear um livro e um autor, refiro a obra seminal, publicada em 2007, pelo
­italiano Lorenzo Chiesa4. Esta obra está organizada segundo as três ordens de realidade
— Imaginário, Simbólico, Real (que Lacan entrelaçou no nó borromeano) — tratando
sucessivamente do sujeito do Imaginário, do Simbólico, e do Real. E mostrando como
o trabalho de Lacan esteve sempre em plena mutação, sendo o exemplo típico de uma
obra aberta e inacabada, viva, ao longo dos muitos «Seminários» agora já publicados
(por Jacques-Alain Miller, seu genro), e também de artigos básicos que Lacan juntou nos
seus «Escritos»5. Por isso a abordagem, nomeadamente académica, de Lacan, é extrema‑
mente difícil e pode conduzir ao pior dos erros, ou seja, à fossilização de uma pesquisa
que esteve sempre em auto-revisão, em relação com a prática clínica e com a extrema
curiosidade e cultura de Lacan. Longe de estar esgotado, o seu ensino e preocupação
são hoje mais prementes do que nunca: um paredão contra a omnipresença das neuro­
ciências como ideologia exclusiva e portanto redutora, por um lado, e contra as subjeti‑
vidades descontroladas, doentias, produzidas pela sociedade neoliberal do capitalismo,
por outro. Assim, o desenvolvimento da reflexão de Lacan, e do que, com um «bom uso»
dela, se conota, é também uma prática política de resistência.
Cada um de nós, quando nasce, sofre o primeiro trauma: é um ser prematuro.
Como bebé, é totalmente impotente, depende por completo, para as suas n ­ ecessidades
mais básicas, do ambiente e das pessoas que o rodeiam, de todo um ­aparato cultural
qualitativamente diferente de qualquer outra espécie de ser vivo. Nesse aparato integra-
-se obviamente a linguagem (inicialmente parte de um ruído de fundo ininteli­gível para
o bebé)6. Impotente, não individuada, a nova criança é «assujeitada» ao Outro. Aqui
põe-se o problema de como caracterizar este «estádio» inicial (deixando agora de lado o

4
V. bibliografia.
5
Dada a extrema complexidade da teorização deste autor, não poderá aqui tocar-se senão muito incompletamente
em apenas alguns diminutos tópicos, aguçando a curiosidade do leitor português para uma reflexão indispensável;
reflexão essa que, bem ao contrário de estar «desatualizada», é agora, retrospetivamente, que começa a dar todos os
seus frutos, como obra aberta, que esteve sempre em movimento, e que, como todas as grandes construções, ficou
inacabada. Compete-nos a nós a responsabilidade, sempre, de prolongar o pensamento dos que nos antecederam,
pois só retrospetivamente ele ganha, em permanência, o seu (sempre novo) sentido. O baixo interesse por este autor
no nosso país é por si mesmo um triste sintoma de uma ambiência cultural periférica e pobre. O entendimento
­daquilo a que aqui se fará mera alusão exige muitas outras leituras.
6
O que torna a linguística, tal como elaborada por Saussure e reestruturada por Jacobsen e muitos outros, essencial
para o entendimento da construção da subjetividade e das relações intersubjetivas.

270
COMO SE FAZ UM «EU». RETORNANDO SUCINTAMENTE AO PROBLEMA DA
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E DA SUBJETIVIDADE

estádio intrauterino): miticamente, a mãe, o Outro (o primeiro, em princípio, de muitos


outros…), satisfaz inteiramente o bebé, que assim em princípio, no começo dos começos
da sua vida, não conhece uma das formas da falta, a frustração.
Mas esta última — a falta, e a frustração primordial daí resultante — é todavia
fundamental para a emergência de uma dialética mãe-filho(a), e essa dialética inicia-se
quando a mãe eventualmente não responde, por qualquer motivo, à demanda (gritos ou
fonemas desarticulados) da criança. O apelo não (cor)respondido cria um objeto, todo-­
-poderoso para o bebé, de que este tenuemente se apercebe: a mãe, claro. Essa falta, essa
frustração primordial, é fundamental para o começo da construção do sujeito: é uma
falta produtiva. E está ligada à estrutura do narcisismo do indivíduo, pois que a falta do
objeto é matricial também no sentido (só retrospetivamente assumido) de que algo que
era dado e pela primeira vez faltou era algo que lhe era devido, que lhe foi subtraído, ou
roubado7. Narcisismo e agressividade são coetâneos.
Estabelece-se então entre o bebé e a mãe uma dialética da frustração; o grito ou
choro torna-se demanda8. Estamos perante a emergência da simbolização, o primeiro,
ténue ainda, «sinal» da passagem do imaginário ao simbólico; este último ligar-se-á ao
domínio da linguagem e à entrada, por assim dizer, na vida social corrente, na conquista
de uma progressiva «autonomia» por parte do indivíduo.
O sujeito imaginário não é estanque em relação a este sujeito simbólico; e a consti­
tuição do primeiro, sendo matricial, nunca abandonará a pessoa até à sua morte. Em
que medida e como? Para isso temos de aludir ao «estádio do espelho». É que se o ser
humano vem ao mundo com uma total incapacidade, ele tem dotes de visão que cedo
superam a descoordenação motora do corpo, a sua incapacidade linguística, e portanto
a sua possibilidade de se pensar miticamente como um «eu». É entre os seis e os dezoito
meses de idade, aproximadamente, que, em geral amparado por alguém, que o acerca
do espelho, o bebé «se vê» pela primeira vez nesse mesmo espelho; isto é, agitando-se,
percebe que a imagem que o espelho lhe devolve, esse outro, corresponde a si mesmo,

7
É importante ter presentes alguns aspectos: na psicanálise aqui considerada, a falta, ou o trauma, são fatores posi­
tivos, ao contrário das acepções que têm na vida comum; por outro lado, embora os «estádios» «por que passa» o
indivíduo possam ser expostos cronologicamente, muitas vezes a sua verdadeira significação é sobretudo lógica,
porque o tempo linear, dividido em fases, é uma convenção; por fim, dialeticamente, é importante perceber que
habitualmente só no fim de um processo é que ele adquire toda a sua inteligibilidade, ou nitidez, ou efetividade — a
causalidade é retroativa (importância do «futuro composto» ou futur antérieur) e não linear como no pensamento
do senso comum. O acontecimento (conhecimento, consequência) cria retrospectivamente as suas próprias causas.
8
Uma das formas pelas quais a criança lida com a ausência da mãe, o gérmen de um processo de simbolização muito
inicial, pode ser ilustrado pelo famoso Fort!/Da! de Freud: uma brincadeira ou «jogo» que uma criança de um ano e
meio aprendeu a f­azer durante a ausência da mãe, de certo modo para compensar essa ausência (porque quando o
fazia já não c­ horava), atirando e depois voltando a puxar um carrinho de linhas (bobina) preso ao berço por um fio.
Estava ­sempre a repetir esse gesto… quando atirava o objeto, conseguia já emitir o som ó… ó… ó… (que Freud inter­
pretou como sendo uma referência à palavra alemã Fort = ir embora, ausente); e quando puxava de novo o objeto
pelo fio, dizia dá… dá… dá… (Da = alemão «aqui»). Ou seja, a criança estava já a simbolizar a ausência/presença da
mãe (e portanto uma relação de «desemparo»/alegria em relação ao seu objeto primordial, ausente/presente) através
do jogo. Lacan usa este «caso» para ilustrar, entre outros aspetos, a dialética da frustração.

271
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

e confirma isso através do olhar trocado com a pessoa que o segura (supostamente a
mãe, ou alguém muito próximo). Incapaz ainda de se articular, de se autoidentificar,
a criança tem um vislumbre de unidade, de completude, especular, imagética, de si como
outro, ou seja, como objeto (aliás, invertido lateralmente, como sabemos). Esse espelho
permite-lhe uma experiência de cisão, de alienação a um Outro, que irá repetir indefi‑
nidamente perante todos os outros que virá a encontrar na vida, e que lhe servirão de
espelhos: porque o ser humano nunca é capaz de abarcar o seu corpo como um todo.
Todavia, a imagem especular é sempre a de um eu como um outro: Je est un autre, como
escreveu Rimbaud. Ou seja, a identificação é sempre uma alienação. De novo encontra‑
mos aqui o desfasamento, a falta ou falha, como elemento paradoxalmente basilar para a
constituição do sujeito na sua capacidade simbólica de se sentir «eu» e de se integrar na
realidade convencional em que a sua vida vai decorrer.
O sujeito não é a sua imagem especular, com a qual estará aliás sempre em
­confronto (nível imaginário); mas também o sujeito necessita de se destacar da mãe,
através do processo conhecido como «complexo de Édipo»9 e suas fases de resolução,
para se integrar plenamente na ordem simbólica, como sujeito «autónomo», «normal»
(o que nenhum de nós realmente é; no mínimo, somos todos neuróticos)10.
O ser humano é, no sentido mais geral da expressão, um ser da pulsão (descoberta
fundamental de Freud, o seu Trieb, por oposição ao instinto animal) e do desejo (d). Mas
esse desejo constrói-se em relação com o Outro (A, do francês Autre), com uma «outri‑
dade», com cada um (outro sujeito ou qualquer coisa) que se constitua em ­objeto causa
de desejo (uma forma de a) para o sujeito. Ele está dependente dessa multi­plicidade de
«outros» para ser. Instala-se assim uma complexa dialética, pois que funda­mentalmente
o que cada um(a) visa é desejar esse desejar, ou, por outras palavras, cada sujeito, no
processo da sua subjetivação, o que faz é aprender a desejar, a sua busca é a da definição
daquilo que efetivamente lhe possa surgir em cada momento e que, em ­última análise
inexplicavelmente, despolete nele o desejo, a vontade de possuir, de compre­ender, de
preencher o seu vazio, interrogando com inquietação o próprio vazio do Outro, numa
busca sempre em excesso, em que prazer e desprazer se confundem: aquilo a que ­Lacan
chamou gozo, jouissance. Na medida em que o sujeito humano só existe pela lingua‑
gem, pela enunciação, e esta é uma sucessão teoricamente infinda de significantes (de
sons ou sinais inscritos, escritos) que em boa verdade remetem ­sempre para outros
­(cadeia de s­ ignificantes), tem de haver um momento em que ocorra o s­ entido, isto é,
uma ­paragem da sucessão, em que o movimento do desejo do sujeito de algum modo

9
É também importante notar que, ao contrário do senso comum corrente, em psicanálise «complexo» tem uma
conotação, por assim dizer, positiva, pois que é através de complexos — temática que não tenho espaço aqui para
desenvolver — que o ser humano se «desenvolve»: sucessivamente, o complexo do desmame, o complexo da intrusão
e o complexo de Édipo.
10
Não posso desenvolver aqui essa complexa problemática, que, como era de esperar, tem evoluído com o tempo.

272
COMO SE FAZ UM «EU». RETORNANDO SUCINTAMENTE AO PROBLEMA DA
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E DA SUBJETIVIDADE

«corte» o ­contínuo dessa cadeia, produzindo um «nó» de significação. Esse «nó» — ou


melhor, essa sucessão de «nós» — constitui o sujeito, apazigua-o temporariamente na
sua busca, por assim dizer, mas esse apaziguamento ocorre sempre de forma retro­
ativa, quando o sujeito julga reconhecer-se, embora já esteja então «alienado», isto é,
preso à «cadeia de significantes» e com ela a uma significação que em última análise
é deter­minada inconscientemente, mas que ele toma como sua, que ele verbaliza
e ­exprime conscientemente. É isso que o «grafo do desejo» de Lacan, como veremos
adiante, ­exemplarmente tenta exprimir. Trata-se de um momento muito importante da
história do pensa­mento humano sobre os processos da sua própria subjetivação e subje­
tividade, em que se c­ ompreendeu que o sujeito, para o ser, para existir como tal, se assu‑
jeita, por assim dizer, a um significante, a um objeto de desejo, a que se prende e a que
dá significação, assim aprendendo, a­ través desse fantasma, a ser, quer dizer, a desejar.
A raiz hegeliana desta teoria, que Lacan f­ormulou já nos anos 60 do século XX, parece
evidente, na premo­nição da importância que Hegel viria a ter nos nossos dias, e que está
a acontecer agora sob os nossos olhos.
Lacan exprimiu muitas vezes o seu pensamento de forma gráfica (topologia).
­Assim, uma das formas de entrar nesse seu pensamento seria por exemplo mostrar o
modo como expressou graficamente (recorrendo à ótica) a pulsão escópica e a consti­
tuição do Imaginário a partir da experiência inicial acima invocada do chamado «está­
dio do espelho». Mas, porque este texto tem de ser curto, optamos aqui por dar um
pouco de atenção a um dos seus mais famosos grafos, o do desejo. É muito útil a expli‑
cação que dele apresenta Zizek no seu livro «Eles Não Sabem o que Fazem» (cap. V —
cf. Bibliografia). Em vista a uma melhor compreensão didática, a construção desse
­grafo é (por Lacan e autores que o seguem) apresentada em 4 «etapas» ou patamares
de ­complexificação do mesmo; todavia, elas formam uma unidade, que só retrospeti‑
vamente, como acentua o autor esloveno, naquilo que de forma convencional podemos
­designar «etapa final», adquirem todo o seu sentido. De facto, ao longo de todo este
­grafo, que, repito, só se completa no fim (por isso os seus «momentos» mais signifi­
cativos são o grafo 1, ou célula base, e o resultado final completo, o grafo 4) é pois m
­ uito
importante vincar a importância desses processos retroativos, os quais, como Zizek
­lembra frequentemente, são um modo caracteristicamente hegeliano de pensamento
e explicação. Como ele escreve11: «(…) a tese lacaniana fundamental, a propó­sito da
relação significante/significado», resume-se assim: «(…) em lugar de progressão l­inear
(…) segundo a qual a significação se desenvolve a si mesma a partir de um ­núcleo

11
ZIZEK, 2016a: 201.

273
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

inicial, temos antes um processo radicalmente contingente de produção retroativa


de significação»12.
A base desse gráfico (forma convencional de exprimir as ideias em causa — v. pag.
seg.) é o c­ ruzamento de dois vetores: o da intenção subjetiva do indivíduo (que vai em
­sentido retroativo, da direita para a esquerda no grafo, em forma de ferradura) com o
da ­temporalidade da linguagem, ou cadeia de significantes (os quais deslizam, por assim
dizer, em sentido oposto, da esquerda para a direita, em linha praticamente horizontal).
Os dois pontos de encontro dos vetores, chamados «pontos de basta» ou «pontos de
­estofo» (points de capiton), são fundamentais para se perceber o processo de significação,
processo, acentuo mais uma vez, que se dá sempre de forma retroativa, de acordo com o
pensamento dialético hegeliano que influenciou Lacan, pelo que o ponto de cruza­mento
situado do lado esquerdo do grafo é aquele em que a significação verdadeiramente
se produz.
Os significantes (S-S’) são flutuantes, metonímicos (por isso se dizem «em c­ adeia»,
ininterrupta; a fala tem a tendência para continuar indefinidamente) e só a­ través de
­pontos de basta se ancoram à significação. Essa significação é obtida através de um
­processo em que o sujeito da fala cruza o primeiro ponto da cadeia significante, lugar
virtual da linguagem («código», designação que não é muito precisa…) ou do «tesouro
dos significantes», ligado ao Outro (A = grande Outro) para encontrar, do lado ­oposto
(esquerdo) do grafo, o segundo e fundamental ponto de basta, o ponto de signifi­cação
(ou de fim de uma frase, por exemplo, a qual só ganha sentido quando concluída)
[s(A) = a significação como função do Outro, ou seja, só depois de passar pelo «tesouro
dos significantes» e de aí «escolher» os significantes adequados ao que procura expri‑
mir, o sujeito encontra o sentido, expressa algo com sentido]. Assim o sujeito, que parte
de uma intenção mítica pré-simbólica (indicada à direita em baixo pelo triângulo ou
delta Δ ) constituiu-se como sujeito dividido, barrado (S/ – indicado pelo S cortado, à
esquerda, em baixo).

12
A causalidade retroativa é absolutamente crucial para perceber o pensamento de Zizek e de Lacan, ambos (muito
conscientemente no primeiro, de modo diverso no segundo) inspirados, como é bem sabido mas volto a referir, na
filosofia de Hegel. As repercussões de uma tal mudança de perspetiva em relação ao nosso modo linear, habitual, de
encarar a causalidade, são incomensuráveis, revolucionárias.

274
COMO SE FAZ UM «EU». RETORNANDO SUCINTAMENTE AO PROBLEMA DA
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E DA SUBJETIVIDADE

Grafo 1 (seg. Lacan, 1999 – orig. 1966). Célula elementar do grafo, isto é, do desejo — representa a relação
entre significante e significado; há uma dupla interseção do vetor delta (triângulo) – S/
com o vetor S-S’, em sentido retroativo

Como explica Zizek13 esta primeira apresentação diz apenas respeito à relação
entre significante e significado14. Os conceitos expostos tornar-se-ão, segundo espero,
mais inteligíveis no decorrer da explicação, no conjunto do grafo em que se inserem.
De qualquer modo é de relembrar mais uma vez que na constituição do sujeito o
­primeiro momento, situado ao nível do imaginário, é o do «estádio do espelho» —
o ponto de ­encontro do delta, da criança nos primeiros meses de idade, com o A, com
o grande Outro, que de início em geral é a própria mãe, com a qual se confunde intei‑
ramente o novo ser, até que este se vai dela progressivamente descolando, para se vir a
tornar uma pessoa autónoma, um sujeito.

13
ZIZEK, 2016a: 198.
14
Mas os dois vetores paralelos considerados por Saussure são aqui alterados de modo muito mais complexo por
­­Lacan, que os coloca em interseção em dois pontos, os tais «pontos de estofo» («points de capiton»). O vetor da
­intenção subjetiva parte de baixo à direita (do delta), e age retroativamente, mostrando a forma como se vai constituir
o significado e, com ele, o sujeito. Os significantes têm a tendência para continuar sempre, ligando-se uns aos outros,
como acontece com a fala do analisando na experiência analítica — muitas pessoas se não forem interrompidas por
qualquer gesto ou fala do analista, continuam sempre a falar, já que a análise é baseada na sua fala e se lhes pede uma
«associação livre» de ideias — dizerem, de algum modo, «o que lhes vem à cabeça». É a estrutura, a linha diacró­
nica, da fala. Que significa o delta, representado pelo triângulo? «Pedaço de carne», sujeito da necessidade, criança
­«mítica», pré-simbólica, antes de entrar na linguagem. Porquê mítica? Porque na verdade é apenas uma entidade
lógica, teórica, abstrata, na medida em que a criança concreta está já desde sempre imersa na linguagem: ela nasce de
uma mãe que fala, no seio de uma «família» que fala, etc.; cada um de nós vem ao mundo num ambiente linguístico,
mas que, de início, não entendemos, nem muito menos dominamos. O ponto de estofo do lado esquerdo representa
o momento da subjetivação da cadeia significante: é um «ponto de basta», a que também já aludi, em que o sujeito
é «cosido», preso, ao significante». O delta Δ , no fundo, representa a criança antes do seu processo de «reconheci­
mento». Dele parte como vimos um movimento que para já termina, do lado esquerdo, retroativamente, como ,S/ ou
seja, no sujeito barrado, ou cindido. Cindido, como? Pela aquisição e domínio da linguagem, que paradoxalmente
nos exprime, permitindo superar a situação de «impasse» do bebé, mas também nos formata, ou seja, fala por nós,
expressa um sujeito alienado, simbolicamente castrado, um «vazio» da «rede do significante» (cf. Zizek, 2016a).

275
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

O delta, encontrando-se então com o A (cf. grafo 2), começa a produzir um


m (= eu, moi em francês), um sujeito (entidade humana que se reconhece como tal,
­apesar de ainda não falar, não estar articulada fisicamente nem neurologicamente), e é
essa relação com a imagem — i(A) = ideal do eu — que, retro­agindo, permite o começo
da produção do S/ , do sujeito barrado. A imagem aparece ao bebé como estranha, depois
a imagem determina esse sujeito em formação, e finalmente é reconhecida por ele como
a sua representação imaginária. O sujeito começa a poder situar-se, «a saber o seu lugar»,
em relação ao Outro.
O sujeito humano, então, é produto de duas alienações, uma primeira ao nível do
estádio do espelho (imaginária), a outra, posterior, ao nível da aquisição da linguagem
(simbólica), em que a ficção do eu autónomo se completa, em que o indivíduo não só
«dá pelo seu nome», mas se insere já na ordem social pré-estabelecida, como teia de
sentidos. Ou seja, o sujeito precisa do Outro para existir, para ser, para se reconhecer:
primeiro o outro da imagem (entendido como a «sua» imagem, sempre «estranha»),
depois o outro da fala (entendido como a «sua» fala, sempre algo que «o fala»)15.
Portanto, o grafo de desejo, como se vê, põe em jogo toda a conceção lacaniana da
subjetividade, embora esta tenha sofrido modificações importantes ao longo do p ­ ercurso
do autor (o que evidentemente torna muito difícil, senão irrisória, qualquer «introdução
a Lacan»), e que aqui não são possíveis de abordar16. Contentemo-nos, então, com as
várias etapas de exposição do grafo e com o complexo sistema que elas representam.

15
A constituição da subjetividade humana nada tem a ver, por isso, com a maturação dos restantes animais; dentro da
continuidade da evolução das espécies que deu origem ao «homem», produziu-se a certa altura uma descontinuidade
radical; e não sabemos (nomeadamente em resultado da evolução tecnológica) que outras descontinuidades radi‑
cais poderão advir, sendo que só depois de acontecerem se tornarão inteiramente percetíveis. Passa-se no processo
­histórico, como Hegel percebeu, aquilo que afinal se passa na nossa vida quotidiana: a maior parte dos aconteci­
mentos, que ocorrem de forma contingente, só mais tarde vêm a ser completamente inteligíveis. O entendimento,
por exemplo, não é linear, mas retroativo: para dar uma imagem corriqueira, o que lemos num determinado passo de
um livro não se torna por vezes imediatamente claro, antes de passarmos aos passos seguintes, que projetam luz sobre
os anteriores. Assim, saber ler, é saber conviver com estes impasses que, mais adiante, podem vir a ser resolvidos se
prosseguirmos a leitura ou qualquer outra experiência. A causalidade, insisto, é retroativa. Ou seja, uma realidade,
com o devir, transforma-se no que era já antes, a solução do problema sempre esteve aí, a resposta sempre esteve na
própria pergunta, mas só se torna visível depois, mais tarde. E, por isso, é sempre intrinsecamente histórica — daí a
histori­cidade radical do ser humano, inclusivamente no processo da constituição de cada «eu» como ficção consti-
tutiva. Devo todas estas ideias à teorização de Slavoj Zizek, que sigo tanto quanto possível «ao pé da letra».
16
Para esse efeito, da compreensão do «último Lacan», ver por exemplo Jacques-Alain Miller, transcrição do seu
curso de 2006-2007 (cf. bibliografia).

276
COMO SE FAZ UM «EU». RETORNANDO SUCINTAMENTE AO PROBLEMA DA
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E DA SUBJETIVIDADE

Grafo 2 (seg. Lacan, 1999 – orig. 1966).

Neste (grafo 2), na parte de baixo do vetor da intenção subjetiva, à direita, onde
antes estava o ­delta, encontramos agora já o sujeito barrado S/ . A linha do andar inferior
[vetor i(a) ­– m] — corresponde ao «estádio do espelho», em que se forma a identifi‑
cação imaginária do sujeito consigo mesmo; em cima, os dois pontos de basta, ou de
estofo, (A) e s(A), em que aquele vetor de intenção subjetiva corta a sucessão imparável
da ­cadeia dos significantes flutuantes, passa pelo «tesouro dos significantes» ou grande
Outro (A), e vai ­desembocar em s(A) — significado — quer dizer, a significação é, como
explica Zizek17, uma função do Outro; ou seja, um sujeito jamais se constitui ­sozinho,
sem o ­«espelho» do Outro (A). Articulado com o m [moi], o «eu», o movi­mento retro­
ativo dirige-se para I(A), ponto de chegada, na parte inferior à esquerda. Este é o produto
de toda a operação, onde se dá a identificação simbólica do sujeito com um qualquer
elemento significante (I) no grande Outro (A), na ordem simbólica. Como diz Zizek18,
o «sujeito» assim transforma-se em cada etapa no que já era antes, ou seja, na sua ­ficção
constitutiva. O A — grande Outro («código» simbólico e sincrónico) — é o que p ­ ermite
fixar os significantes flutuantes e, por ação retrospetiva, vai «estofar», fixar retroativa‑
mente o significado em s(A), matema que exprime precisamente a dependência do
­sujeito em relação ao «tesouro dos significantes», ao A.
Portanto, revendo os vários símbolos, mesmo que à custa de certa repetição:
m – eu (moi); i(a) – outro imaginário do eu — eu ideal — identificação imaginária,
produzida inicialmente pelo «estádio do espelho». O «eu» estará, ao longo da vida, em
(re)constituição constante nesta dialética com o Outro. I(A) — ideal do eu — ponto da

17
ZIZEK, 2016a.
18
ZIZEK, 2016a.

277
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

identi­ficação simbólica: identificação do sujeito, como diz Zizek19 com qualquer aspeto
do significante — I — no grande Outro, na ordem simbólica. I — segundo a célebre
­frase (um dos seus múltiplos aforismos) de Lacan, o significante é o que representa o
sujeito para outro significante. S/ — sujeito barrado — isto é, o sujeito descentrado de
si mesmo (o total contrário do que proclama e procura a vulgar «psicologia do ego»),
«alienado» pela imagem ao nível do imaginário (confundindo como sua a imagem que
o espelho lhe devolve) e pela linguagem ao nível do simbólico (confundido como seus
os enunciados que pronuncia, de que se autoriza). Voz — como observa Zizek20, a voz é
o que resta depois de termos subtraído ao significante a operação retroativa de fi
­ xação
pelo ponto de estofo (s(A) que produz o significado. A voz é um resto, sem signifi­
cação em si, um objeto parcial, ventríloquo21, mas muito importante como uma das
formas em que ocorre o objeto-causa de desejo, o objeto pequeno a de Lacan, já várias
vezes referido.
Nesta segunda «etapa» convencional de elaboração do grafo (que obviamente
tem apenas valor didático) encontramos já mais elementos, apesar de estarmos ainda
­basicamente no mesmo patamar. Representa uma complexificação da «etapa» conven­
cional anterior22.
A relação entre o eu imaginário, o eu ideal — i — e o ideal do eu, o eu simbó­
lico — I — é fundamental. Porque, como escreve Zizek23, «Este jogo combinado entre
a identificação imaginária e a identificação simbólica, sob o domínio da identificação

19
ZIZEK, 2016a.
20
ZIZEK, 2016a.
21
Ver sobre a voz o interessantíssimo livro de Mladen Dolar, A Voice and Nothing More, Cambridge Massachusetts,
MIT Press, 2006.
22
Que é um ponto de basta, ou ponto de estofo (point de capiton)? Como escreve Zizek (2016a: 199), um ponto de
estofo é o «ponto de subjetivação da cadeia significante», em que o indivíduo é «interpelado», por um significante-
-mestre, enquanto sujeito. O matema A representa, como repetidamente se disse, o Grande Outro (Autre em fran‑
cês). É um «ponto de basta» que interrompe a cadeia contínua dos significantes, um primeiro «ponto de estofo»
(«point de capiton», imagem que Lacan vai buscar a estes botões que, numa almofada ou estofo fixam e «agarram»
os vários pedaços de pano que a/o revestem, permitindo a estabilidade) que fixa de algum modo o significado dos
elementos precedentes, interrompendo o fluxo dos significantes. Esse ponto, o do grande Outro (A), é, também como
já referido, o do «tesouro dos significantes», onde se encontra, por assim dizer, a totalidade infinita do «código»,
dos dizeres possíveis. Por sua vez, s(A), o ponto de «furo» do lado esquerdo (outro «point de capiton»), já figurado
no grafo anterior, representa, lembro, o ponto de significação, lugar da mensagem, por assim dizer, da significação
­obtida retroativamente como função do Outro, do encontro do sujeito barrado (S/), agora na parte inferior direita do
vetor da intenção subjetiva (e que vai atravessar a cadeia dos significantes), com o A (efeito retroativo, portanto, do
que Lacan chamou «capitonnage»). Há aí uma pontuação, um momento que está mais na esfera lógica (escanção)
do que propriamente cronológica (duração), e que produz uma significação a posteriori, um efeito retroativo (pode,
na análise, por exemplo, resultar de um gesto ou algo que o analista pronuncia — é um «ponto de basta», de inter­
rupção», que pode corresponder ao acabar da sessão de análise, a qual, no caso de Lacan, nunca se pautava por uma
duração pré-estabelecida, como na análise tradicional). Portanto, a significação aparece sempre depois, retroativa‑
mente ao significante. Esse aspeto retroativo é, insisto, a noção hegeliana de causalidade, central para compreender
a total revolução que representa Hegel na história do pensamento humano. Dito esquematicamente, sem Descartes
e sem Hegel (como obviamente sem Kant, que este último pressupõe), não haveria Lacan, nem parte do que já está
em filigrana em Freud.
23
ZIZEK, 2016a: 215.

278
COMO SE FAZ UM «EU». RETORNANDO SUCINTAMENTE AO PROBLEMA DA
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E DA SUBJETIVIDADE

simbólica, constitui o mecanismo através do qual o sujeito é integrado num dado ­campo
­socio-simbólico (…)». Mas os «mandatos» desse campo que o sujeito assim assume
(para usar os termos de Zizek), deixam um «resto», um «fosso», onde se instala, para o
sujeito, o enigma daquilo que o Outro espera dele. E é daí que advém a pergunta «Chè
vuoi?», que me queres?, que esperas de mim? Que vês em mim?, que passa a ­sobrevoar
todo o esquema anterior, como se vê (abaixo) representado na terceira elaboração do
grafo. ­Entre a locução, o enunciado, do Outro, e a sua força elocutória, quer dizer, a
enunciação, entre a demanda do Outro e o seu efetivo desejo (d), instala-se a d ­ úvida
para o sujeito: dizendo o que me dizes, que é que de facto tu esperas de mim, que
­desejas fazer comigo?… O sujeito é um vazio, espera que o outro, através do desejo dele,
­desvende o próprio segredo do seu desejo: daí a «ânsia» da interrogação: o desejo do
sujeito é o ­desejo do Outro. Porque há sempre em qualquer sujeito o espelho do Outro,
que lhe devolve essa interrogação, que lhe repete a estranheza primordial da imagem.
E Zizek, que estou a seguir pari passu como se verifica, mostra que esse fosso, essa
­suspeita, por assim dizer, é de carácter histérico, perturba o sujeito de um modo particu‑
lar, ao p
­ onto do sujeito que demanda no fundo e paradoxalmente estar a solicitar que essa
demanda seja recusada, que não haja uma certificação «superior» para a dúvida, porque
tal certificação viria em última análise de um grande Outro (significante-mestre) que
não existe.

Grafo 3 (seg. Lacan, 1999 - orig. 1966). Chè vuoi? — pergunta que o sujeito faz ao Outro,
ao seu enigma (enigma que é também um enigma para o outro…). d – desejo.

279
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

A resposta a essa pergunta que um sujeito faz ao Outro, a solução para p ­ reencher
este hiato inquietante, este vazio, entre o sujeito e o enigma do desejo do Outro, é a
­criação de um «fantasma», quer dizer, de qualquer coisa que para o sujeito sirva de
­solução para de algum modo ele constituir, dar consistência, sentido, a tal desejo (o que
é representado sinteticamente pelo matema S/ ◊ a — sujeito barrado S/ — simbolizada
pelo losango, punção, ou relação com o — objeto pequeno a). No amor, por exemplo,
estamos perante o caso de dois sujeitos, cada um defrontando o enigma do desejo do
outro, e oferecendo-se ao outro para preencher esse vazio, o que na verdade é impossível
— daí a fórmula de Lacan de que «a relação sexual não existe», entendendo-se por tal a
noção de que jamais duas pessoas se poderão «complementar» uma à outra em termos
de auto-reconhecimento do seu desejo, de reconhecimento do desejo do outro, e de
verdadeira adequação entre ambos: na realidade, as pessoas não «funcionam» assim, há
sempre um desfasamento ou disfunção, não há completude. O desejo, como referido, é
sempre o desejo do outro (o que pode ser entendido em vários sentidos… que aqui não
tenho espaço para explicitar…) e… o próprio sujeito (pelo menos numa parte substan‑
cial da trajetória intelectual de Lacan) é um significante para outro significante… (o que
também exigiria muitos desenvolvimentos…).
Por isso o amor é sempre algo de fantasmático, como afirmou o mesmo Lacan,
é procurar «dar algo que se não tem, a alguém que o não quer». Mas, no delírio do
­apaixonamento, esquecemo-nos disso tudo, para poder de algum modo, mesmo que
temporariamente, «habitar a ficção do amor». Como lapidarmente diz Zizek24, e vale a
pena citar extensamente: «(…) O termo “amor” deve ser concebido aqui do modo em
que é articulado na teoria de Lacan, isto é na sua dimensão de deceção fundamental:
nós tentamos colmatar o abismo insustentável do “Chè vuoi?”, a abertura que abre o
buraco do desejo do Outro, oferecendo-nos ao Outro como objeto do seu desejo. É n ­ este
sentido que o amor é, como apontou Lacan, uma interpretação do desejo do Outro: a
resposta do amor é: “eu sou o que falta em ti, eu encher-te-ei, eu completar-te-ei”: o
sujeito colmata a sua própria falta oferecendo-se ao Outro como o objeto que preenche
o Outro e nele falta — a deceção do amor consiste em que este cavalgamento de duas
faltas anula a falta como dimensão de realização mútua, como medida de uma eventual
complementaridade».
A quarta e final elaboração do grafo completa e pressupõe, como se disse, as
­anteriores, implicando uma parte importante da teorização de Lacan, sendo sempre,
e mais uma vez, de relembrar que ela se não fixa num sistema determinado, e que o
autor, na sua última fase, produziu uma importante inflexão na sua orientação teórica,
­dando uma cada vez maior importância ao Real, uma das instâncias entrelaçadas no seu

24
ZIZEK, 2016a: 222-223.

280
COMO SE FAZ UM «EU». RETORNANDO SUCINTAMENTE AO PROBLEMA DA
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E DA SUBJETIVIDADE

nó b ­ orromeano, e, assim, ao «sujeito do Real». Para uma compreensão deste aspeto é


­também importante — para além do estudo dos seminários de Lacan, bem entendido,
e de uma vasta bibliografia que transcende este escrito, etc. —, por exemplo, a obra de
Lorenzo Chiesa já mencionada, que se ocupa numa parte muito importante do estudo
do «sujeito do Real»25. Se a destaco é porque ela é ímpar, em termos filosóficos, na expo‑
sição clara e, ao mesmo tempo, na compreensão detalhada e problematizada de toda a
complexidade e, por que não dizê-lo, de toda a beleza impressionante da grandiosa obra
de Lacan, cuja ressonância é hoje em dia cada vez maior26.
No meu caso pessoal, como arqueólogo pré-historiador (e portanto também
neces­sariamente inserto na problemática-matriz da antropologia), que desde 2006 me
acerco como estudante da psicanálise como prolongamento da minha curiosi­dade pela
«origem do homem» e pelo «processo de hominização», com tudo o que isso ­implica,
este ­trabalho — aqui exposto em apenas alguns tópicos — representou apenas um
­modestíssimo p ­ asso na minha aprendizagem e no desejo de comunicar aos meus c­ olegas
a impor­tância crítica desta complexíssima problemática. Porque, adaptando uma conhe­
cida frase de Abel Salazar, o grande médico e pintor portuense, «quem s­ouber só de
arqueologia nem arqueologia sabe». E eu acrescentaria, atrevidamente: quem não tiver
passado pela psicanálise lacaniana (já não digo como analisando ou analista, mas apenas
como pessoa interessada em compreender o ser humano, o que significa compreender-­
-se também a si) arrisca-se a passar, na vida, ao lado do essencial, a não ultrapassar o
senso-comum27.

25
CHIESA, 2007: 103-192.
26
Por isso, para a elaboração deste modesto texto, ponto de chegada (e de partida…) de aturado e longo trabalho,
traduzi-a completamente do inglês, única língua em que está disponível, para português.
27
Agradeço a todos os que me têm ajudado neste percurso de aprendizagem, nomeadamente aos membros da Antena
do Campo Freudiano, Portugal, nas pessoas de José Martinho e Filipe Pereirinha, especialistas de Lacan. Todos os
eventuais erros deste texto de aprendiz são, evidentemente, da minha exclusiva responsabilidade.

281
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Grafo 4 (grafo completo) (seg. Lacan, 1999 – orig. 1966). Gozo (Jouissance). Trata-se de algo que está para além do
prazer, que é muito diferente deste, e que serve precisamente, como explicou Lacan, para nos defender do prazer.
«Prazer na dor» liga-se ao masoquismo, evidentemente, mas muito para além disso, como escreve ­Chiesa28, «ao gozo
estrutural do objeto a pelo sujeito». É muito importante distinguir gozo, pulsão e prazer29. Castração (Castration) —
ligada à falta, ou falha, constitutiva do sujeito cindido, e inerente a este como ser falante (dividido «ao nível grama-
tical», e de forma muito esquemática e simplista, entre o ser da enunciação, ou do significante — o eu inconsciente
— e o sujeito do enunciado, ou do significado — o eu consciente). Na medida em que fala, (…) o sujeito nunca é
totalmente presente a si mesmo»30. Enquanto que a frustração é uma falta imaginária de um objeto real, a castração
corresponde à falta ­simbólica de um objeto imaginário31.

Este esboço da constituição do sujeito que aqui deixo é apenas um modestís­simo


convite aos meus colegas para que se debrucem sobre uma temática incontornável do
saber contemporâneo: porque, sem entendermos como se constitui o sujeito que ­pensa
(processo que a modernidade instalou, desde Descartes, prosseguiu com Kant e H ­ egel,
e tantos outros…), sem percebermos toda a complexidade desse processo, jamais
pode­remos pensar, já não digo bem, mas menos mal (de forma menos redutora), seja
o que for. A filosofia, o supremo saber para Hegel, consistia nesse estado, a ultrapas­
sagem do senso comum.

28
CHIESA, 2007: 9.
29
Cf. por exemplo EVANS, 1996.
30
CHIESA, 2007: 39.
31
CHIESA, 2007: 64-65. Para uma melhor compreensão do grafo do desejo, ver a sintética explicação de Christian
Dunker no vídeo seguinte: <https://youtu.be/xD_tg-bY1yM>.

282
COMO SE FAZ UM «EU». RETORNANDO SUCINTAMENTE AO PROBLEMA DA
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E DA SUBJETIVIDADE

BIBLIOGRAFIA
ASSOUN, Pierre-Laurent (2003) — Lacan. Paris: PUF.
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Santo António dos Cavaleiros, Loures, 2019


Para a minha mulher, Flor

283
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

284
BIOGRAFIAS TÓXICAS EM PORTUGAL:
CONTAMINAÇÃO, MEMÓRIA E
RESISTÊNCIA
SÉRGIO PEDRO*
LÚCIA FERNANDES**

Resumo: O presente artigo apresenta o projeto internacional TOXIC BIOS, um projeto em formato aberto
que visa co-produzir e visibilizar histórias de contaminação e resistência. A sua metodologia de investigação
assenta na autobiografia tóxica, uma ferramenta-protótipo de contra-história de fenómenos de violência
lenta, que visa possibilitar a intervenção cidadã na primeira pessoa de indivíduos e grupos marginalizados,
denunciando a injustiça ambiental em que se sentem presos.
O presente artigo analisará a experiência do processo de investigação realizado pela Oficina de Ecologia e
Sociedade, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, enquanto dinamizadora do projeto
em Portugal.
Palavras-chave: biografia; contaminação; transdisciplinaridade; violência lenta; metodologia.

Abstract: The present article analyses the research project TOXIC BIOS, an open project that aims to
­co-create and make visible the histories of toxic contamination and resistance.
Its research methodology is based on the toxic autobiography, a prototype tool with the scope to co ­create
a counter-history of slow violence phenomena, and aimed at enabling citizen intervention in the first
person of marginalized individuals and groups, denouncing the environmental injustice in which they
feel imprisoned.
This article will analyse the experience in the research process carried out by the Ecology and Society Work‑
shop, Centre for Social Studies of the University of Coimbra, as facilitator of the project in Portugal.
Keywords: biography; contamination; transdisciplinarity; slow violence; methodology.

* Centro de Estudos Sociais (CES), Universidade de Coimbra. Email: sergiopedro@ces.uc.pt.


** Centro de Estudos Sociais (CES), Universidade de Coimbra. Email: luciaof@ces.uc.pt.

285
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

INTRODUÇÃO
Sendo uma contração da expressão Autobiografias Tóxicas, o TOXIC BIOS é um
projeto do KTH Environmental Humanities Laboratory, em Estocolmo (financiado pelo
Seed Box, Mistra-Forms Environmental Humanities Collaborative) com a participação de
vários países para a co-criação de autobiografias de casos de contaminação tóxica1.
A autobiografia tóxica é um resultado distinto de grupos marginalizados que
­denunciam a injustiça ambiental em que se sentem presos2, quebrando o silêncio das
­vozes subalternizadas e excluídas daquelas/es que experimentam as desigualdades
­desses atos de injustiça e as consequências da colonização do conhecimento3.
Assumindo a produção de conhecimento, na sua perspetiva processual, como um
elemento importante do debate epistemológico sobre a ontologia do conhecimento
­produzido pela academia e o seu engajamento com a realidade contemporânea, este
artigo tem como objetivo apresentar uma reflexão sobre o processo de produção parti­
cipativa de conhecimento por parte da oficina de Ecologia e Sociedade do Centro de
Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (ECOSOC-CES) no projeto transnacional
TOXIC BIOS, coordenado pelo professor Marco Armiero.
Abordando aspetos bem conseguidos e dificuldades, a presente análise visa
contri­buir para a reflexão transdisciplinar sobre o «saber-fazer» de formas alternativas
de comunicação e de pesquisa dentro da academia, em contacto direto, horizontal e
parti­cipado com a sociedade. Nos pontos seguintes do artigo será analisada a matriz
­metodológica do projeto, considerando a sua articulação entre as biografias e temas
abordados, a visão altermundista do mesmo, nomeadamente o seu contributo para a
justiça intergeracional e enquanto mecanismo de empoderamento dos cidadãs/ãos.

MATRIZ METODOLÓGICA DO PROJETO


Visando abordar o estudo das relações entre fatores políticos, económicos, s­ ociais
e questões ambientais, o projeto TOXIC BIOS adota a perspetiva epistemológica da
­ecologia política, designação desenvolvida por Thone4, utilizando como veículo de
comu­nicação a autobiografia, evidenciando assim situações cientificamente relevantes
relatadas na primeira pessoa.
Sendo o seu escopo a análise de situações de contaminação tóxica, a metodologia
de autobiografia tóxica é neste âmbito considerada enquanto uma ferramenta de narra‑
tiva de guerrilha, estratégia que visa contrariar a sedimentação da História através das

1
TOXIC BIOS, 2019.
2
ARMIERO & SEDREZ, 2014.
3
SANTOS, 2010.
4
THONE, 1935.

286
BIOGRAFIAS TÓXICAS EM PORTUGAL: CONTAMINAÇÃO, MEMÓRIA E RESISTÊNCIA

narrativas de opressão, mobilizando as narrativas contra-hegemónicas das experiências


incorporadas de toxicidade e desperdício vivenciadas pelos seus intervenientes diretos5.
O exercício desta última narrativa tem assim subjacente uma estratégia contra­
‑hege­ mónica deliberada, desafiando as narrativas normativas sobre progresso, os
­comuns e ciência.
No âmbito da sua matriz metodológica, o projeto visa 1) a realização da pesquisa
participada sobre contaminação e resistência individual e coletiva; e 2) a valorização da
autobiografia tóxica enquanto criação distinta de grupos marginalizados, denunciando
assim a injustiça ambiental em que se sentem presos. Ademais, a conceção da auto‑
biografia tóxica enquanto narrativa de guerrilha, visa a construção de um protótipo de
­contra-história de fenómenos de violência lenta6, abordando fenómenos de contami‑
nação ambiental de génese humana de impactos verificados no longo termo, frequen‑
temente desconsiderados nos processos de análise de impacto ambiental e tecnológico.
Procurando refletir sobre as barreiras da metodologia científica tradicional, a
­matriz metodológica adotada pelo projeto visa igualmente aprofundar a compreensão
da ciência participativa como resultado da influência de diferentes variáveis sociais,
políticas, culturais e éticas7 e o consequente desaparecimento da distinção entre poder
­(ciência) e verdade (social)8. Ao adotar uma compreensão ontológica da autobio­grafia
como um ato de empoderamento do processo de produção de conhecimento que ­aborda
a exclusão epistémica das pessoas e comunidades afetadas, questionando a dominação
e a cooptação da história, a equipa do ECOSOC-CES9 adotou como diretriz de ação
a linguagem da co-produção10 enquanto processo contínuo de trabalho e mobilização
de diferentes ideias, formas de conhecimento e perspetivas, e de desenvolvimento de
­confiança entre as/os interessados11.
Adotando um contexto geograficamente amplo e cronologicamente ilimitado,
o projeto construiu uma rede de colaboração entre centros de pesquisa, movimentos
­socioambientais de base, jornalistas e profissionais da cultura, visando a coordenação
­local ou nacional do trabalho de pesquisa e recolha de narrativas. Os centros de coor‑
denação existentes até ao momento encontram-se distribuídos em sete países (Brasil,
Grécia, Itália, Portugal, Espanha, Suécia e Turquia), sendo objetivo futuro do projeto a
adesão de novos centros de coordenação em novos países. Apresenta-se em seguida o
mapa geral das biografias de todos os países participantes até final de 2018.

5
TOXIC BIOS, 2019.
6
NIXON, 2011.
7
LATOUR, 1999.
8
CALLON, 1986.
9
Stefania Barca, Lúcia Fernandes, Rita Brás e Sérgio Pedro.
10
JASANOFF, 2004.
11
De MARCHI & FUNTOWICZ, 2003.

287
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Figura 1. Abertura do site TOXIC BIOS12.

No âmbito do trabalho das equipas nacionais, a Oficina de Ecologia e Sociedade


do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (ECOSOC-CES) é a enti­
dade responsável pela coordenação da recolha de autobiografias em Portugal, tendo
­divulgado em início de 2017 um convite público13 para a submissão de autobiografias e
convidado um grupo de pessoas previamente identificadas em projetos de investigação
anteriores liderados pela ECOSOC-CES ([1] EJAtlas e [2] Portugal: Ambiente em Movi‑
mento14) a submeterem a sua autobiografia tóxica.

12
TOXIC BIOS, 2019.
13
O texto do convite pode ser consultado em <https://www.ces.uc.pt/ecosoc/index.php?id=8756&id_
lingua=1&pag=17492>.
14
Mais informações em <www.ambientemovimento.org e https://ejatlas.org/country/portugal>.

288
BIOGRAFIAS TÓXICAS EM PORTUGAL: CONTAMINAÇÃO, MEMÓRIA E RESISTÊNCIA

Figura 2.

Não obstante a reduzida adesão inicial à chamada pública, a equipa nacional reco‑
lheu 13 autobiografias em formato vídeo, texto, som ou imagem (Figura 3) de pessoas de
todo o território continental, tendo algumas das autobiografias recolhidas em formato
vídeo sido realizadas de forma coletiva, dando assim conta das autobiografias tóxicas
de duas, três, ou quatro pessoas que experienciaram os impactos da mesma fonte de
contaminação tóxica15.

Figura 3. Mapeamento das autobiografias recolhidas em Portugal até 31/01/201916.

15
É o caso das autobiografias tóxicas de António Gameiro, Carla Pereira, Manuel Rodrigues e Maria Luísa, sobre a
contaminação da Ribeira da Boa Água, situada no Rio Almonda, Torres Novas. Mais informação sobre estas autobio‑
grafias tóxicas em <http://www.toxicbios.eu/#/stories>.
16
TOXIC BIOS, 2019.

289
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

A construção do mapa português assentou na preocupação da diversidade e


r­ espeito da escolha efetuada pela pessoa retratada quanto ao formato da autobio­grafia
tóxica. Deu-se especial relevância a que as autobiografias tóxicas abordassem os ­vários
tipos de impactos da contaminação antropogénica (via solo, ar, água) nos corpos,
­ambientes e comunidades, bem como situações de justificado receio de contaminação
futura. É o caso da autobiografia tóxica José Luís Almeida, que, em depoimento em
vídeo expõe a história da mobilização da população de Ferrel do concelho de Peniche
contra a ­construção de uma central de energia nuclear, ou a autobiografia de Marisa
Matias, deputada europeia, que retrata em depoimento áudio a história da mobilização
ocorrida em Souselas, Coimbra, contra o uso da tecnologia de co-inceneração de resí‑
duos industriais na cimenteira já existente nessa localidade, que iria trazer ainda mais
impactos ao ambiente e saúde do que já existem com o funcionamento normal desta
atividade industrial17.
Diversidade esta que se manifesta na linha temporal considerada nas autobio­
grafias tóxicas recolhidas, abarcando em algumas situações uma linha temporal de mais
de 20 anos de participação em diversos processos de mobilização ambientalista, como
é o caso das autobiografias tóxicas de José Carlos Marques18 e de José Luís Almeida, ou
uma linha temporal reduzida, como é o caso da autobiografia tóxica de Filipe Veríssimo,
que não tinha anteriormente nenhuma ligação a processos de ativismo ambiental19.
De igual forma, a diversidade também se evidencia no nível de atuação do indiví‑
duo e da situação de contaminação tóxica retratados, apresentando algumas autobio­
grafias tóxicas uma visão/atuação locais, enquanto que em outras se evidencia uma
­atuação simultaneamente local e nacional, interligando-se em alguns casos também a
ligação com as atuações internacionais sobre o tema em causa.
Podendo o processo autobiográfico registar tanto experiências pessoais como
­coletivas, a maioria das autobiografias tóxicas recolhidas pela equipa nacional articulam
a experiência individual e coletiva de mobilização contra o processo de contaminação
tóxica, retratando de forma temporalmente situada ações transformadoras que visam
desafiar o poder20, e que realinham o conceito de sustentabilidade através do seu diálogo
sobre a injustiça ambiental sofrida pelas comunidades subalternas e suas lutas21 contri‑
buindo concomitantemente para a construção de estratégias voltadas para a sustenta­
bilidade no Norte e Sul Globais22.

17
Esta biografia será disponibilizada em breve no site do projeto TOXIC BIOS. Mais informação sobre estas autobio‑
grafias tóxicas em <http://www.toxicbios.eu/#/stories>.
18
Biografia em formato texto (a ser disponibilizada em breve no site do projeto TOXIC BIOS).
19
Mais informação sobre estas autobiografias tóxicas em <http://www.toxicbios.eu/#/stories>.
20
HAIVEN & KHASNABISH, 2014.
21
VELICU & KAIKA, 2015.
22
AGYEMAN, 2008.

290
BIOGRAFIAS TÓXICAS EM PORTUGAL: CONTAMINAÇÃO, MEMÓRIA E RESISTÊNCIA

Através da realização do trabalho da equipa nacional, tornou-se evidente que a


­ etodologia de autobiografia tóxica apresenta características que se adequam à diversi‑
m
dade dos intervenientes e suas formas de expressão, bem como das dinâmicas subjacentes
à memória individual e coletiva de mobilização contra as injustiças ambientais retratadas.
A plasticidade da metodologia adotada permite não só a recolha fidedigna na
­primeira pessoa de memórias pessoais e coletivas, envolvendo atores cujas vozes são
frequentemente desconsideradas no processo de investigação das ciências sociais, como
possibilita de igual forma a adaptação da morfologia processual em razão do objeto
­epistemológico considerado.
Não obstante o facto de a maioria das autobiografias tóxicas recolhidas pela ­equipa
nacional terem sido registadas em formato vídeo, na totalidade das autobiografias regis‑
tadas é possível efetuar a leitura da presença de dados frequentemente desconsiderados
quando comparados com outras metodologias de registo próprias das Ciências Sociais.
O registo das emoções, a articulação entre memórias e temas, a omnipresença de uma
visão altermundista e de justiça intergeracional são alguns dos elementos que desta­
camos em seguida.

a) O registo das emoções através dos diferentes formatos de


autobiografia
Através do registo livre das autobiografias tóxicas recolhidas, tornou-se possível
transmitir de forma direta as emoções dos intervenientes que acompanham o ato de
­relato de memórias de contaminação tóxica. O sofrimento humano, de outros seres
vivos e do ambiente natural, o sentimento de angústia pela desvalorização dos conhe‑
cimentos locais, e o sentimento de impotência pela falta de acesso e participação na
construção da informação que influenciou decisões com impacto no espaço público e
individual, são emoções recorrentes nas autobiografias tóxicas recolhidas.
As autobiografias tóxicas recolhidas revelam testemunhos de contaminação por
diversos tóxicos, bem como a ameaça constante de contaminação, acompanhada pelo
medo e a incerteza do impacto destas forças tóxicas, reportando a uma constante afeta­
ção transcorporal, onde as fronteiras interiores e exteriores de pessoas e corpos não
são rígidas23.
Além do relato da memória de doenças (não só física, mas também mental), os
vídeos, áudios e textos recolhidos evidenciam memórias de histórias, perplexidades e
angústias relacionadas ao território, ao conhecimento, à herança imaterial da comu­
nidade, à aprendizagem e ao senso de conexão existentes e co-construídos com o local,
bem como a construção de alternativas em torno da contaminação.

23
ALAIMO, 2010.

291
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Exemplo desta situação é a autobiografia tóxica de Arlindo Marques, ativista


­ escendente de pescadores que tem vindo a expor publicamente o impacto da ­poluição
d
do rio Tejo decorrente da atividade industrial nas suas margens. Na sua autobio­
grafia ­tóxica, registada em formato vídeo, Arlindo expõe numa margem do rio Tejo as
­ocorrências de descargas ilegais e o seu impacto na flora e fauna do local. Este relata
os aconte­cimentos de forma distante, ainda que visivelmente consternado. Todavia, ao
­minuto 16:50 e seguintes da sua autobiografia tóxica, a sua ação de pegar no leito do rio,
um pargo morto por contaminação e o atirar de forma violenta para trás do seu cami‑
nho (Figura 4) evidencia um conflito entre o eu e o espaço, entre o estado atual daquele
local e as suas memórias de infância de quando ali pescava, com o seu pai de forma
recreativa e para subsistência da sua família.

Figura 4. Arlindo Marques evidencia o impacto da poluição do rio Tejo, resgatando do rio um pargo
morto pela contaminação24.

b) A articulação entre histórias e temas


É possível identificar em várias narrativas biográficas um discurso que articula a
experiência individual com a resistência do coletivo, bem como a articulação de várias
causas, lutas, temas e desejos que levaram à contaminação e/ou mobilização popular,
revelando uma interconexão com o biológico, o económico e o sistema de produção e
consumo industriais, entre outros aspetos.

24
TOXIC BIOS, 2019.

292
BIOGRAFIAS TÓXICAS EM PORTUGAL: CONTAMINAÇÃO, MEMÓRIA E RESISTÊNCIA

Exemplo deste fato é a autobiografia tóxica de José Luís Almeida (Figura 5), jorna‑
lista do Jornal Gazeta das Caldas, que participou no movimento ambientalista da década
de 70 do século XX contra a construção de uma central nuclear em Ferrel, Peniche,
e que relata de forma bem documentada o contexto do movimento ambientalista nos
pós 25 de Abril.

Figura 5. José Luís Almeida relata a evolução da mobilização ambientalista de escala internacional
contra a construção de uma central nuclear em Ferrel, Peniche25.

Ao explorar a interconexão entre história pessoal e história coletiva a metodologia


de autobiografia adotada pelo projeto expõe na primeira pessoa o processo de constru­
ção de cada história, tornando evidente o impacto da intervenção do indivíduo em
rede, em associação com outros/diferentes atores — humanos e não humanos — e as
suas ­dinâmicas — (re)definido o contexto ao se associarem e participarem de alianças,
­conflitos e processos de mediação26.
Não obstante a interligação nacional da maioria dos intervenientes das autobio­
grafias recolhidas pela equipa nacional constatou-se no decorrer do processo de traba­lho,
particularmente numa fase inicial de mapeamento, a existência de um esparso r­ egisto
histórico ambiental de Portugal, nomeadamente antes de 1974 (décadas de ditadura de
1926 a 1974), especificamente no tocante aos seus atores e processos de mobilização cole‑
tiva. Este mesmo facto evidenciou a desconexão histórica entre os movi­mentos de justiça
ambiental em Portugal, em particular no que diz respeito aos processos de d ­ ivulgação da

25
TOXIC BIOS, 2019.
26
CALLON, 1986; LATOUR, 1999.

293
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

situação de rutura da osmose ambiental na esfera pública e à mobilização da sociedade


civil contra ela, representando assim uma perda de conhecimento relevante.

c) A visão altermundista e de justiça intergeracional


Ainda assim, as narrativas revelaram uma porosidade permeada por histórias que
se cruzam e outras que divergem, considerando que o espaço onde se situam representa
uma considerável influência na construção do eu e nos traços de personalidade dos indi‑
víduos. Este elemento é tornado ainda mais evidente através do registo de autobiografias
distintas (registadas em encontro das pessoas e conversa coletiva) sobre uma mesma
fonte de contaminação tóxica, propícias para a criação e verificação da existência de
múltiplos mundos27, como é o caso das autobiografias tóxicas sobre a contaminação da
Ribeira da Boa Água em Torres Novas.

Figura 6. Autobiografias tóxicas de António Gameiro, Carla Pereira, Manuel Rodrigues e Maria Luísa,
sobre a contaminação da Ribeira da Boa Água, situada no Rio Almonda, Torres Novas28.

Tornando visível a ecologia de saberes29, diálogo horizontal de conhecimentos


que valoriza os conhecimentos subalternizados, co-construído pelo conhecimento das
­comunidades locais afetadas pelas fontes de contaminação tóxica, as autobiografias
­coletadas consideram a injustiça intergeracional desse epistemicídio30 face aos saberes
tradicionais locais e práticas não hegemónicas de interação entre humanos e ambiente.

27
ESCOBAR, 2015.
28
TOXIC BIOS, 2019.
29
SANTOS, 2007.
30
SANTOS, 2010.

294
BIOGRAFIAS TÓXICAS EM PORTUGAL: CONTAMINAÇÃO, MEMÓRIA E RESISTÊNCIA

A partilha de memórias na primeira pessoa expõe a voz do descontentamento cívico


pela falta de informações oficiais sobre as consequências da contaminação tóxica que
atinge as pessoas que atualmente vivem com a contaminação, bem como a preocupação
do seu impacto para as gerações futuras e para a perpetuação da injustiça ambiental.
Um ato que contribui para uma mudança de representações simbólicas e concretas da
natureza para os seres humanos31.

d) Um mecanismo de empoderamento das/os cidadãs/ãos e político


A construção por parte das entidades poluidoras e entidades auxiliares no p
­ rocesso
de contaminação, de uma ideologia do otimismo tecnológico32, que defende que a
­própria tecnologia pode controlar e solucionar os impactos gerados pelos processos
de produção industrial e seus produtos, é um elemento frequentemente referido ­pelos
interve­nientes das autobiografias tóxicas recolhidas pela equipa nacional. Em todas
­estas se ­torna evidente que tal construção é paralela a um processo de conscienciali‑
zação individual e mobilização coletiva baseada no entendimento e reconhecimento
que tais atividades económicas que acompanham as atividades poluidoras, promovem
a operacionalização sistémica da natureza como ferramenta para a produção de bens e
crescimento das economias de forma insustentável, dominada por grupos econó­micos
internacionalmente articulados, exercendo a hegemonia do poder para a defesa dos
seus interesses.
A dialética produção-destruição evocada nas autobiografias é entendida ­pelos
­intervenientes enquanto elemento condicionante do direito à dignidade humana, mani­
festando-se na autobiografia tóxica através do relato dos processos quotidianos de
­opressão e colonização dos espaços pela forma mentis do capitalismo.
O caso mais paradigmático deste processo de consciencialização individual e
­mobilização coletiva é sem dúvida a autobiografia tóxica de Filipe Veríssimo, maestro
que relata o seu processo de tomada de conhecimento dos impactos nefastos do pesti­
cida de síntese glifosato através de uma colaboração da Plataforma Transgénicos Fora no
projeto internacional DETOX33.

31
SHIVA, 2009.
32
PORTO & FREITAS, 2006.
33
Mais informação sobre esta iniciativa em <https://www.stopogm.net>.

295
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Figura 7. Na sua autobiografia tóxica, Filipe Veríssimo relata o seu processo de tomada de consciência dos
impactos nefastos do pesticida artificial glifosato e as alterações à sua visão de mundo desde então34.

O ato de contar estórias (storytelling) patente na metodologia da autobiografia


t­óxica adotada pelo projeto não visa apenas coletar histórias de contaminação. Este
­implica igualmente o seu contributo na construção da comunidade. No seu decorrer
são criadas ligações humanas que constroem uma ágora narrativa onde formas não-­
‑normativas de conhecimento e reflexão são transformadas em conhecimento coletivo.
Através do seu foco nas narrativas na primeira pessoa a metodologia adotada contribui
concomitantemente para a compreensão do processo de construção de uma comuni­
dade resiliente35.

CONCLUSÃO
Considerando a existência de um contexto de manipulação da história criada de
cima para baixo, recorrendo a uma lógica opressiva, o projeto TOXIC BIOS visa ­ampliar
o escopo e posicionamento da intervenção académica dentro da sociedade, mobili­zando
metodologias flexíveis, participadas e não opressivas de co-criação de conhecimento.
De forma aberta e plural, o projeto procura mobilizar atores principais cujas vozes
­frequentemente não são ouvidas no contexto académico, possibilitando assim que estes,
na primeira pessoa contem a sua história de contaminação tóxica, contribuindo conco‑
mitantemente para uma mudança de paradigma do contexto de contaminação.

34
TOXIC BIOS, 2019.
35
ARMIERO et al., 2019.

296
BIOGRAFIAS TÓXICAS EM PORTUGAL: CONTAMINAÇÃO, MEMÓRIA E RESISTÊNCIA

Através deste processo, e especificamente no caso do trabalho da equipa no proje­


to TOXIC BIOS em Portugal, ficou evidente a contribuição deste processo de d ­ iálogo
­através da utilização do material produzido para reforçar o movimento pela justiça
­ambiental em Portugal, proporcionando uma avaliação rigorosa de processos históricos
particulares, da perspetiva das pessoas e comunidades afetadas.

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297
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

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298
SCALE AND METAPHOR: THE ROLE OF THE
BODY IN THE PERCEPTION OF SCALE
SARA NAVARRO*

Abstract: Combining my sculpture training with my professional experience in the museum and science
communication areas, in this paper I explore and develop the potential role of contemporary sculpture in
communicating archaeology in the museum context. I study the way how contemporary art — particularly
sculpture — can be included in archaeological research about the human representation in prehistory as
well as the value that this transdisciplinarity can bring to this particular field of study.
Keywords: heritage studies; Art and Archaeology; science communication; prehistoric figurines.

Resumo: Conjugando a minha formação em escultura com a experiência profissional na área da museo­
logia e da comunicação de ciência, no âmbito do presente artigo, exploro e aprofundo o potencial papel
da escultura contemporânea na comunicação de arqueologia em contexto museológico. Estudo a forma
como a prática artística contemporânea — em particular a escultura — se pode integrar no trabalho de
investigação arqueológica sobre a representação humana na pré-história, assim como a valorização que esta
transdisciplinaridade pode trazer a esta particular área de estudo.
Palavras-chave: estudos patrimoniais; Arte e Arqueologia; comunicação de ciência; figuras pré-históricas.

Focusing on scale issues of human representation, I aim to develop innovative


­ useum strategies which, because they include the display of contemporary sculpture
m
in archaeological contexts, can trigger the agency of the visitors so that their expe­rience
becomes more active, free and subjective. Archaeology (as well as the other ­human
and exact sciences) tries to communicate with an ever growing and less specialized

* Universidade de Lisboa/Faculdade de Belas-Artes/Centro de Investigação e de Estudos em Belas-Artes. Email:


­saranavarrocondesso@gmail.com.

299
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

a­ udience1. According to this, museums and archaeological settings — as privileged


­places of ­dialogue between the discipline and society – should provide active and signifi‑
cant heritage-related experiences2. However, I think that the traditional display methods
are not always up to this challenge and end up creating limiting environments that do
not stimulate individual thought3. Therefore, new creative approaches in the exhibition
program could positively enhance the archaeological experience of the public and at the
same time contribute to a new way of safeguarding heritage.
Over the last two decades, dynamics between sculpture and archaeology have been
shifting from the more traditional relationships based on formal analogy and mutual
­inspiration to other — much more interesting in my opinion — relationships that maxi‑
mize and explore the potential of joint research projects carried out by transdisciplinary
teams of artists and archaeologists4. The simple reciprocity relationships between the
two disciplines are becoming much more complex interactions, where both disciplines
address the same issues and adopt working methods of each other5. I believe that the
growth of this trend reflects similar developments that have been happening in cognate
disciplines such as anthropology and corresponds to a significant expansion of the rela‑
tionship between art and science in the field of academic research.
Contemporary sculpture has been changing into what we can describe as a wide
research program that takes a critical look at what we are. Characterised by a m ­ ultiple
or expanded nature, it becomes more and more culturally and socially relevant. The
exploration of ways of thinking, communicating and displaying characteristics of
­contemporary art expands the notion of art beyond visual representation, and makes it
an interesting form of research and communication for the other fields of knowledge6.
The transdisciplinary research I propose makes room for artistic production and
scientific reflection. In the process, it brings together initiatives of several research a­ reas
(sculpture, archaeology, museums) and puts on an equal footing different positions,
practices and methodologies of the arts and the sciences7. One of my main concerns
is to perceive sculpture as a form of research while trying not to fall into the appealing
and simplistic claim that all art is research, nor into the threatening abrasion of art that
results from its subordination to scientific standards. I believe that this path stimulates
the e­ xploration of the specific potential of art in the context of research as well as the
conscious pursuit of new forms of knowledge.

1
MATSUDA, 2009: 90-97.
2
MERRIMAN, 2009.
3
SKRAMSTAD, 2004: 118-132.
4
BAILEY, 2014a: 231-250.
5
REA, 2011: 19-30.
6
FERNANDES DIAS, 2011: 103-129.
7
PALMER, 2004: 145-156.

300
SCALE AND METAPHOR: THE ROLE OF THE BODY IN THE PERCEPTION OF SCALE

Figure 1. Work in Progress, Sara Navarro (2019).


Photograph: Michael Vieira).

Figure 2. Work in Progress, Sara Navarro (2019).


Photograph: Michael Vieira.

301
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Based on previous experiences, I believe that the display of contemporary works


of art in archaeological settings can be, besides good to look at, good to think about8
insofar as it changes the place and challenges the visitors, re-orienting them towards an
innovative commitment between the contemporary and the archaeological character of
the space. To display is to suspend, is to take the objects away from their original context
and make them available for contemplation and thought. More than a static object that
is locked in its material boundaries, the sculpture represents in this context a path, a
­movement between matter and the memory that inhabits it.
Due to the unparalleled visual experience they create and the way they fill the exhi‑
bition space, the three-dimensional works of art (contemporary sculpture/installation)
lead to a strong physical interaction with the public and at the same time have the power
to activate their agency. This way they bring vitality to the museum experience and can
lead the visitors to more active, free and subjective interpretations9. Sculpture makes it
easier for visitors to be physically involved, confronting them with its presence and lead‑
ing them to discover its shape, its matter, its detail. These aspects may draw and keep the
attention of the visitors, encouraging them to independently explore the meanings of the
work and of the archaeological context where it is displayed10.
Due to its important ability to raise doubts (and not give answers), contemporary
sculpture makes the viewer work. By placing visitors in the context of a live archaeo‑
logical setting, the exhibitions that I propose challenge the visitors to think, seeking the
meaning of the material traces that are in front of them. Triggering original dialogues
between the visitors and the material traces of the past, contemporary sculpture may, for
instance, steer them to important topics, concepts or materials that are usually dormant
in the museum space or archaeological setting11. Aiming to get an active answer from the
visitors, the exhibition of contemporary sculpture in archaeological settings contributes
to an inclusive discourse within the scope of heritage-related practices, a discourse that
seeks the equivalence of thought between the public (visitors) and the experts (curators)
or between the non-archaeologists and the archaeologists12.
With this ongoing research project, I try to offer an overall view of the implica‑
tions of scale in human representation in pre-historic times, by analysing not only the
­contextual matters of size and scale of the artefacts but also the metaphors that arise
when we reduce or increase the scale of a representation13. What is reduction and what
is exaggeration as ways of representing or meaning? What changes when we change the

8
WALLIS, 2011: 133-160.
9
ACHESON ROBERTS, 2013: 1-21.
10
ACHESON ROBERTS, 2013: 1-21.
11
ACHESON ROBERTS, 2013: 1-21.
12
ACHESON ROBERTS, 2013: 1-21.
13
STEWART, 1993: 104-125.

302
SCALE AND METAPHOR: THE ROLE OF THE BODY IN THE PERCEPTION OF SCALE

scale of human representation? What is the relationship between the different scales of
human representation and the viewer? The change of the scale of human representa‑
tion, from miniature to giant, will be viewed in this project as something that can both
bring the visitors closer to and drive them away from the sculpture (representation) thus
­eliciting new symbolic relationships between matter (object) and meaning (narrative).
Focusing on the study of particular examples of anthropomorphic figurines that
are characteristic of the Neolithic in central and eastern Europe, I move away from the
more traditional arguments connected with the gender categories that link these repre­
sentations to mother goddesses or to fertility cults. In my opinion, they lead to oversim‑
plification and end up restricting their study. I am not interested in discussing their role
as ritual figures, toys, portraits of ancestors or teaching tools. I am interested instead in
exploring the rhetorical power that the body, and therefore its representation, has as
locus of identity14.
My training in sculpture leads me to see any representation act as an interpreta‑
tion act where, through a given medium, the authors decide on the basis of the model
what they should or should not represent (Figure 1 and Figure 2). In this sense, I do not
see the pre-historic anthropomorphic representation as a representation of something
but ­rather as a representation towards something15. This aspect gives it an agency ability
inside which it acquires the ability to act, affect or build different meanings according to
the different conditions of the viewer/handler. To research through sculpture is to study
the assumptions and the systems that are the building blocks of the way we see the world.
Always taking art practice as the starting point, sculpture is viewed here as both material
object and intellectual research.
In a research that moves away from the archaeologic context, with this paper I hope
to contribute in an original way to the transdisciplinarity between art and archaeology.
I view this proposal as a complex and challenging type of research that uses objects of
the past with a view to their contemporary transfiguration16. In short, I propose to go
­beyond the more usual narratives of art as archaeology or archaeology as art (tradi­
tionally based on formal analogy and mutual inspiration). I propose to explore the
poten­tial of work that goes beyond what is traditionally understood and accepted as
­either artistic research or archaeologic research. A new vision that benefits from the end
of the need for ­interpreting or representing the past in order to open up a whole poten‑
tial of creative action on these particular traces of the past.

14
BAILEY, 2014b: 31.
15
BAILEY, 2012: 249.
16
BAILEY, 2017: 691-701.

303
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

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304
PARTE III
ARTES

As artes da pintura, do cinema, da música, da arquitetura, da cerâmica, do ­design, da ­literatura


(poesia) são abordadas nesta secção de diferentes pontos de vista, em ­diversos contextos,
com intuitos diversificados, mostrando bem a extrema riqueza do mundo da criatividade
artística como expressão do ser humano. Desde a «peça» ou obra isolada, à cidade como
ambiente artificial, desde a aprendizagem de técnicas de outros povos, ao ensino da
arquitetura, esta secção mostra-se rica de ressonâncias e de sugestões para pensar o «fazer».

305
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

306
FAZER COISAS (ABC)
MIGUEL LEAL*

Resumo: Quando alguém me pergunta o que é que eu faço, eu respondo muito simplesmente que faço
­coisas. De facto, seja no estúdio ou noutro sítio qualquer, eu faço coisas, mesmo quando me limito a d
­ eixá-las
­acontecer. Mas o que é que significa que possa definir a minha prática desse modo simples? Como explicar
que mesmo quando não estou a trabalhar estou de algum modo a fazer coisas, e que mesmo antes de as
coisas começarem a existir elas já lá estão, à espera de acontecer? Como explicar que frequentemente não
sou eu que falo, mas sim as coisas que falam através de mim, transformado assim na marioneta falante de
um teatro manipulado por essas coisas que me limitei a activar?
Não há uma única via para nos aproximarmos destas questões. Dizer que Faço coisas é a única forma que me
ocorre neste momento para definir uma prática que não tem um nome ou um propósito claro. Neste texto
tento discutir estes problemas do ponto de vista da prática artística, da minha própria prática.
Palavras-chave: arte; artes plásticas; prática de estúdio; experimentação.

Abstract: When someone asks me what do I do, I often answer most simply that I do things. In fact, either
in the studio or elsewhere, I do things, even when I just let then happen. But what does it mean that I can
define my practice that way? How can I explain that even when I am not working I am somehow doing
things, and that even before things start to exist they are already there? How to explain that it is often not
me speaking, but that things speak through me, the talking puppet of a theater manipulated by those same
things I had just activated?

* FBAUP/i2ADS. Miguel Leal (Porto, 1967). Artista Plástico. Vive e trabalha no Porto. Miguel Leal estudou Artes
­Plásticas — Pintura na ESBAP, História da Arte na Faculdade de Letras da UP e Comunicação e Linguagem na FCSH
da UNL. É professor de Artes Plásticas e Multimédia na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (FBAUP) e
membro integrado do Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade (i2ADS).

307
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

There is not a single way to address these questions and to say I do things is perhaps the only way I could
think of to define a practice that lacks a name and a clear purpose. On this text I will try to discuss these
problems from the point of view of artistic practice, my own practice.
Keywords: art; visual arts; studio practice; experimentation.

Figura 1.

Esta é uma imagem do meu estúdio em Outubro de 2018, dois dias antes deste
colóquio, desarrumado e cheio de coisas mais ou menos ao abandono. Mudei-me para
este espaço há um mês atrás e com a mudança tudo ficou mais caótico. Nos 120 m2 deste
rés-do-chão espalham-se ainda sem uma ordem clara os objetos que chegaram de outros
sítios. Cada incursão no meio deste depósito é surpreendente, até para mim, revelando a
todo o momento coisas que julgava perdidas ou dando como perdidas coisas que julgava
saber onde estavam.
A maior parte do que vemos à direita nesta imagem são os meus objetos ­pessoais:
roupas, sapatos, mobília, louça, panelas ou livros. À esquerda as minhas coisas de t­ rabalho:
arquivos, papéis, livros, desenhos, trabalhos desmembrados ou inacabados, projetos
­antigos e recentes, ferramentas ou máquinas. Há uma linha imaginária que p ­ arece ­dividir
estes dois mundos. Na verdade, são uma e a mesma coisa, sendo difícil s­ eparar estas duas
realidades. Nesta casa junto pela primeira vez um sítio para habitar e um sítio para traba‑
lhar; agora que as coisas se misturam essa indistinção torna-se mais clara.
No entanto, olhando para trás, para os últimos 25 ou 30 anos, reparo que quase
sempre tive um estúdio, um espaço dedicado ao meu trabalho, ainda que a partir de
­certa altura tenha deixado de precisar do estúdio para fazer o trabalho acontecer; ainda
que frequentemente o trabalho tenha acontecido fora do estúdio; ainda que a minha

308
FAZER COISAS (ABC)

­ rática tenha sido em muitos momentos mais extensiva do que intensiva. A partir de
p
­certa ­altura, o estúdio foi apenas um sítio onde as coisas esperaram, mais ou menos
­inertes e ao abandono, pelo momento certo para serem ativadas ou, então, simples­
mente, um espaço de refúgio de outras ocupações do dia-a-dia. Por vezes ia para o
­estúdio apenas para fugir da necessidade constante de trabalhar que parece perseguir os
artistas como uma servidão voluntária e quase compulsiva. Ia para o estúdio para parar
de trabalhar ou, pelo menos, para adiar fazer aquilo que era suposto ser feito. Houve
sempre, é claro, com regularidade, momentos de trabalho intenso mas, tanto quanto me
consigo recordar, esses estúdios que fui tendo ao longo dos anos (assim de repente conto
pelo menos 9 ou 10), foram quase sempre espaços silenciosos e calmos, mesmo quando
partilhados ou usados para trabalho colaborativo, sítios mais ou menos arrumados mas
sempre cheios de coisas, coisas feitas ou coisas à espera de serem feitas.
À primeira vista, essas coisas, à semelhança de todas a imagens (que são também
coisas, na sua materialidade, convém não esquecer) são silenciosas e ali, na imagem com
que comecei, parecem com efeito mudas. Falo incessantemente sobre elas desde o início
deste texto, mas nunca pensamos que são elas que falam. Dessas coisas, e da imagem que
lhes deu corpo, diríamos que não têm língua ou que, no limite, como proporia talvez a
antropologia, são coisas boas com as quais pensar. Ora, o que eu quero sugerir é que
essas coisas não são mudas mas sim entidades falantes. Desatam a língua dos outros e
a nossa em particular mas, sobretudo, falam, e nós quando falamos são elas que falam
através de nós, invertendo os princípios do ventriloquismo.
Esta presença de coisas — objetos vários, nas suas diferentes instâncias — é pois
­essencial para perceber o conjunto de operações a que me refiro quando falo do ­estúdio.
A prática de estúdio ou de atelier é para mim mais sobre essa materialidade falante das
coisas, na sua autonomia, do que sobre produzir qualquer coisa. É mais sobre fazer ­coisas
mesmo quando nada está a ser feito, no sentido dessa inércia que persegue um certo tipo
de trabalho que acredita que as coisas, na sua materialidade, têm uma autonomia e uma
vida própria que irá em grande parte determinar a natureza dos trabalhos.

309
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Figura 2. How to turn dust into gold, 2017 (Hilton levitating the stone). A Glimmer of Freedom,
Campo de Concentração do Tarrafal, Cabo Verde.

Quando estudei Pintura nos anos 80 ensinaram-me um métier. Depois disso a


­ inha prática foi em grande parte um exercício de esquecimento desse métier, num
m
processo de invenção de uma outra forma de fazer (as) coisas.
A repetição dos gestos e a familiaridade com os processos de manipulação dos
­materiais é central para as artes plásticas. Contudo, devemos considerar também o
quanto a deriva operativa, o trânsito e o cruzamento entre diferentes media pode ofere­
cer outras hipóteses de ativação dos processos de trabalho. Muito rapidamente fui
­descobrindo, experimentando e olhando à minha volta, que podia transportar a ideia
de que a arte é coisa feita do seu próprio fazer para fora de um quadro de especialização,
fosse esta oficinal, tecnológica ou medial. Hoje posso dizer que minha prática não é de
estúdio e também que não tem um medium de eleição. Isto não significa que a arte ­tenha
deixado para mim de ser essa coisa que se faz do seu próprio fazer, mas t­ão-só que a
minha prática se tornou extensiva e derivativa, num grau em que a especiali­zação tecno­
lógica ou medial deixou de ser fundamental para o trabalho aparecer. Esse p ­ rocesso
foi lento e fez-se inicialmente do território mais fechado da pintura para o campo
­aberto da imagem e depois, gradualmente, para uma visualidade que procurou pensar
a especi­ficidade material das imagens, na sua relação com o mundo e com os corpos.
De repente, não estava já no território das imagens mas no das coisas, dessas coisas que
convivem connosco.

310
FAZER COISAS (ABC)

Assim, e apesar da necessidade que ia sentindo de ter um sítio de trabalho, com


frequência o estúdio passou a estar fora do estúdio. Aos poucos e poucos, a reconfigu‑
ração do meu próprio trabalho fez com que o estúdio se mudasse para o seu e­ spaço de
apresentação. A não ser pontualmente, já não se tratava de usar o estúdio como o lugar
de produção mas sim como lugar de trânsito no movimento das coisas entre ­diversas
existências. Por um lado, o estúdio manteve para mim uma função convencional,
­muito centrada na ideia de que se trata de um espaço reservado e na sombra, ainda que
hiper­ativo, como os bastidores mais ou menos frenéticos de um teatro onde os atores
­aguardam pelo momento certo de saltar para o palco, onde se preparam os adereços ou
se manipulam as luzes e os cenários. Por outro, o estúdio passou a ser um lugar estranho
onde nada parecia acontecer, de atividade quase igual a zero, entregue apenas às coisas
que aí esperavam pacientemente pelo seu destino. A alternância entre momentos de
inércia e de ação passou a ser fundamental e, por vezes, desequilibrada. O hábito de ir
trabalhar para o estúdio manteve-se durante largos períodos, mas cada vez mais esse
trabalho era entregue às próprias coisas, a essas coisas falantes. Na prática isto significa
que os meus processos de trabalho se tornaram extensivos. Deixei gradualmente de ir
para o estúdio fazer e manipular coisas dia após dia, como tinha aprendido desde muito
cedo. Continuei a fazer coisas mas aprendi a esperar pelo momento certo para as ativar.
Frequentemente, essas coisas, apenas iniciadas ou esboçadas, outras vezes encontradas
ou recuperadas de trabalhos anteriores, precisaram de anos de espera antes de encon­
trarem a oportunidade de serem transformadas numa outra coisa.

Figura 3. Duplo Forró, 2016 (detalhe). Mesas de bilhar, bolas em suspensão e som directo da cozinha.
(Projecto «Regime de meia-pensão», da Mezzanine, no café Ceuta, no Porto).

311
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Degas terá dito um dia a Mallarmé que não conseguia escrever poesia apesar de ter
muitas ideias, ao que Mallarmé terá respondido «Não é com ideias, meu caro Degas, que
fazemos versos. É com palavras».
Como disse, a minha prática não é de estúdio (studio based) e não tem um ­medium
específico (medum based). Ultimamente, quando alguém me pergunta o que é que eu
faço, qual a natureza do meu trabalho, eu começo quase sempre por responder que faço
coisas. De facto, seja no estúdio ou noutro sítio qualquer, eu faço coisas, mesmo quando
me limito a deixá-las acontecer. Mas o que significa então, neste contexto, fazer ­coisas?
Ou, para dizê-lo de outra forma, o que é que significa que possa definir e resumir a
minha prática desse modo simples? Como explicar que mesmo quando não estou
a ­trabalhar estou de algum modo a fazer coisas, que mesmo antes de as coisas come­
çarem a existir elas já lá estão, à espera de acontecer? Como explicar que frequentemente
não sou eu que falo, mas sim as coisas que falam através de mim, transformado assim
na marioneta falante de um teatro manipulado por essas ventríloquas que me limitei
a ativar.
Não devemos confundir fazer coisas com outras ações como produzir, operar,
­atuar, criar, gerar ou agir. Este fazer coisas a que me refiro envolve um largo espectro de
operações, no sentido de uma ação clássica mas também da inação ou da espera. Neste
fazer coisas reúnem-se todos esses verbos, do produzir ao agir, mas ao mesmo tempo
há aí um espaço intersticial e indefinido onde a inércia é também uma forma de ação.
­Assim, não há uma diferença substancial entre a ação e não ação. Nesse espaço inters­
ticial o não operativo é também operativo.
Regressemos então às coisas, feitas e por fazer, sobretudo a essas coisas deixadas
ao abandono anos a fio num canto do estúdio ou entre as páginas de um caderno, para
tentarmos perceber melhor a equiparação da ação à inação. Para mim esta ideia torna-se
mais clara de cada vez que algo desencadeia o trabalho e coisas que apenas esperavam
pelo seu momento de entrar em cena se tornam subitamente operativas, por vezes para
minha própria surpresa. Que isso se faça menos pela minha interferência direta e mais
na dependência das próprias coisas e das circunstâncias do momento, ajuda a perceber
o quanto esses mecanismos de ativação resultam, com frequência, da vontade própria
das coisas.
É por isso que eu digo que muitas vezes o trabalho é feito sem que nada pareça estar
a ser feito. Fazer coisas é também não fazer nada. Significa isto que este fazer coisas inclui
diversas operações, obscuras e invisíveis, que são como que um fluxo subterrâneo que
vem à superfície apenas de tempos a tempos, não como fatalidade ou como algo inexpli­
cável mas enquanto regra que se aplica aos modos de fazer da prática artística, onde o
abandono e a delegação são usuais.
Sem contradição, estou ao mesmo tempo absolutamente comprometido com
a ideia de fazer coisas num sentido mais convencional, a partir de modalidades que

312
FAZER COISAS (ABC)

e­ nvolvem um mantra operativo e uma prática continuada que cruza experiência e expe‑
rimentação, noções que são fundamentais para o meu trabalho. Preciso de manipular e
transformar coisas para fazer outras coisas. O meu trabalho é transformista, resultando
sempre de processos de transformação e mudança: coisas que se transformam noutras
coisas. Isto implica a plasticidade como princípio, entendida como a qualidade de algo
que é capaz de receber e conservar a forma e a informação, mas que é ao mesmo tempo
instável, mutável e, talvez, imprevisível, contra todas as probabilidades.

Figura 4. Cabeças/Heads, 2018 (detalhe). Capacetes, chumbo, agulhas de acupuntura. Dimensões variáveis.
Foto: CIAJG, Guimarães.

Aquilo que quis trazer aqui como tópico foi justamente este movimento entre duas
visões aparentemente contraditórias do meu trabalho: por um lado, a necessi­dade de
­esquecer um métier e aprender a deixar as coisas fazerem-se por si; por o ­ utro, a c­ olocação
dos princípios plásticos da transformação e da mudança no centro da ­minha prática, ao
ponto de a definir a partir da ideia de que, antes de mais, faço coisas. Com efeito, atribuir
um papel central ao estúdio parece ir contra o facto de sentir não ­precisar dele para que
o trabalho se faça; dizer que não consigo imaginar o meu trabalho sem uma experiên‑
cia de manipulação direta das coisas parece ir contra a possibilidade de que as coisas
­possam acontecer em autonomia, apesar da minha interferência nos p ­ rocessos; subli‑
nhar os momentos em que o trabalho está simplesmente à espera de acontecer p ­ arece
contradizer a ideia, que pedi emprestada a Robert Morris, que sempre foi i­mportante
para mim: a arte é feita do seu próprio fazer.

313
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Não há uma única via para nos aproximarmos destas questões. Dizer que Faço
c­ oisas é a única forma que me ocorre neste momento para definir uma prática que
não tem um nome ou um propósito claro e que, ainda para mais, recusa qualquer
tipo de especialização. Mas como falar de fazer coisas sem remeter para essas mesmas
­coisas, que se desdobram em muitas outras coisas e instâncias, como uma matrioshka?
Eu, pelo meu lado, só o posso fazer através da minha própria experiência, da minha
própria prática:

http://ml.virose.pt/
http://ml.virose.pt/blog/
http://ml.virose.pt/blog/talk_to_me/

314
PAINTING/MAKING; THE QUESTION OF
MEANINGS AND VALUES
CRISTINA LOPES*

Abstract: This work seeks to give some contributions related to my painting, the process of making as well
as to my philosophical research. I try that my fields of enquiry, are not just products of complex histori‑
cally contingent circumstances, but constructs of the ontological dimension of my paintings as a medium
of individuation. Therefor I consider that thinking about the meanings and the values and going beyond a
historically and philosophically interrelated conceptual dichotomies is important to increase critical aware‑
ness. The late 20th century saw those dichotomies sometimes come under convergence, in fields as diverse as
those closest to physical science, such as the philosophy of science, and human sciences which traditionally
focused on societies that used to be characterized as lacking science and even history, such as anthropology
(and pre-historic archaeology). Many factors have been involved, including the socio-cultural changes that
have gradually challenged the predominant pictures of the world. Also, sophisticated critiques about human
nature, history and other topics where in argued since the 20th century paradigms for intellectual culture,
as for several colonialist, and nationalist political «meta-narratives»1 and continued to evolve until present.
Something of the difficulty of these challenges, as well as a potential relevance is suggested by the argument:
Going beyond dualism opens up an entirely different landscape, one in which states and substances
are replaced by processes and relations; the main question is not any more how to objectify closed systems,
but how to account for the diversity of the processes of objectification2.
Keywords: making; painting; meanings; values.

* CINSENP International Comission on the Intelectual and Spiritual Expression of Nonliterate Peoples. Email:
clopes99@gmail.com.
1
For instance, BENJAMIN, 1992; FOUCAULT [1972-1977], 1980.
2
DESCOLA & PALSSEN, 1996: 12.

315
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Resumo: Este trabalho procura oferecer algumas contribuições relacionadas com a minha prática de
­pintura, isto é, o processo de fazer, bem como as questões filosóficas que me ocupam. Procuro que a minha
pesquisa e o meu campo de inquérito, não seja apenas produto de circunstâncias contingentes historica‑
mente ­complexas, mas também, construções da dimensão ontológica das minhas pinturas como meio de
individuação. Por isso, considero que é importante pensar sobre o sentido e valor e ir além de uma dico­
tomia conceitual histórica e filosoficamente inter-relacionada. Desde o século XX que certas dicotomias,
por vezes, entraram em convergência, em campos tão diversos quanto aqueles próximos às ciências físicas,
tais como a filosofia da ciência, ou em ciências humanas que tradicionalmente se focavam em sociedades
que antes eram caracterizadas pela ausência de ciência e até de história, como a antropologia (e arqueo‑
logia pré-histórica). Para tal muitos fatores estão envolvidos, incluindo as mudanças socioculturais, que
gradual­mente desafiaram as imagens predominantes do mundo. Também contribuíram para tal mudança,
sofisticadas críticas em que se discutiu desde os paradigmas do século XX, à cultura intelectual sobre a natu‑
reza humana, a história e outros tópicos, assim como várias «metanarrativas» políticas, coloniais e naciona­
listas3 que continuam a evoluir até á atualidade. Algo sobre a dificuldade desses desafios, assim como a sua
­potencial relevância é sugerida pelo argumento:
Ir além do dualismo abre uma paisagem completamente diferente, na qual estados e substâncias são
substituídos por processos e relações; a questão principal não é mais como objetivar sistemas fechados,
mas como explicar a diversidade dos processos de objetivação4.
Palavras-chave: fazer; pintura; sentido; valor.

The lines of analysis treated here are based on a reflective experience and focus on
the process of making my artistic work. My practice is rooted in traditional represen­
tation and methods, but I constantly challenge my understanding of «painting». I e­ xplore
ways in which paint can represent effects such as light, time, movement, ­climate or even
a «sense of place». I use contrast and color, dramatic lighting, and graphic compo­sitions,
which often feature the interplay between man and the environment. I used the lines
and colors available to me, distilling the image/feeling into the work, so that through
­objective representation there is enough room for subjective interpretation. This is ­clearly
stated in some of my Scottish Series paintings, but also in the Italian ­Series or even in
the p ­ ortraits, and a small sample are presented here. I have always been i­nterested
in landscape and the environment, and after concluding my master’s degree at Fine Arts
University of Lisbon I have nurtured also a bigger interest in drawing and ­portraits.
In recent years I have been also developing attention to philosophical issues with a
­special focus to Deleuze theoretical approach related to painting and to the operational
modes of pictorial images. These «image/sensation», function as, self-sufficient devices
that capture and present invisible forces5. My work tries to meditate on the strength
lines of a given device. In each device the lines cross thresholds according to which they
are aesthetic, scientific, political, etc. We emphasize that a device implies lines of forces.

3
Por exemplo, BENJAMIN, 1992; FOUCAULT [1972-1977], 1980.
4
DESCOLA & PALSSEN, 1996: 12. (Tradução da autora).
5
DELEUZE, 1981: 57.

316
PAINTING/MAKING; THE QUESTION OF MEANINGS AND VALUES

In this way «The task of painting is defined as the attempt to make visible forces that are
not visible»6. The purpose of this paper goes along with Deleuze philosophy, and with
the path that contribute to the formation of the concept of image within his thought.
The point of departure would then, be approach the dogmatic image of thought
under his Philosophy, and the alignment between his philosophy of difference and his
studies around the pictorial image, (namely in Logique de la sensation and the modern
cinematic image — Cinéma II: L’image-temps). Understanding how difference manifests
itself throughout Deleuze’s account does, however, require a brief preliminary note on
the distinction between difference and differentiation. As Deleuze explains, we call the
determination of the virtual content of an Idea difference; we call the actualization of
that virtuality into species and distinguished parts differentiation. As such, difference
«resides» at both the virtual and actual aspects of multiplicities. So, Deleuze claims b ­ eing
is nothing but a differentiating process and, for this reason, is synonymous with the
­process of becoming differentiated. Furthermore, being’s differentiating becoming is
thoroughly affirmative and comes first and foremost from the explosive internal force
which life carries within itself. It means, contrary to identity in the sense of the identi‑
cal that posit a unified, transcendental ground, Deleuze claims being’s differentiation
­emanates from an immanent process of becoming.
The series of paintings I produced in recent times under the theme of Landscape,
some of them belong to the «Scottish Series» and gave account of the differentiation
and specific features that we can find in this region. As I am staying for long periods
in Aberdeen and traveling to get know better Scotland I have been developing a better
acknowledgement of the «sense of place» and put it to the series. As Deleuze explains,
«Each series explicates or develops itself, but in its difference from the other series which
it implicates, and which implicate it, (…) the essential point is the simultaneity and
­contemporaneity of all the divergent series, the fact that all coexist»7. Also, this work
is connected to the concept of rhizome on the one hand and virtual on the other. Here
enters the contribution of the concept of rhizome according to Deleuze and Guattari in
which «A rhizome would not cease to connect semiotic chains, organizations of power,
occurrences that refer to the arts, to the sciences, to social struggles. A semiotic chain is
like a tuber that agglomerates very diverse acts; linguistic, but also, perceptive, mimic,
gestural, and cogitative (…)»8. In those works, it was particularly relevant the relation
of the colors, and lights and shadow. Which also alludes to virtual elements and favors
the symbiotic relationship of the different parts that set together to deliver the compo­
sition. It is the relationship of the different element in the image that constitute a kind of
­itinerary for the viewer.
6
DELEUZE, 1981: 57.
7
DELEUZE, 2014: 157.
8
DELEUZE & GUATTARI, 1995-2000: 16.

317
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Photo 1. Left – Glen Spean, Scottish Series, Oil on Canvas. Right – Untitled, Italian Series, Oil on Canvas.

Deleuze’s point out that multiplicities are not fixed or closed beings, but are
­constantly becoming; and formed by coherent, unitary boundaries that distinguish
them from others. While they may appear to be coherent and unified, multiplicities are
­constantly altering wholes composed of various lines which branch out in u ­ nexpected,
non-linear, non-uniform ways9. As the configuration of the multiplicity alters as a ­result
of being’s differentiation, so too does the subject, totality, and identity that result from that
particular multiplicity. Multiplicities are not closed totalities, but are open, ­composed of
different and distinct component parts. Furthermore, it is in the plane of immanence
that are contained the virtual and within itself the actualization as the relation of the
virtual with other terms. Since the relationship between the current and the virtual is
not what can be established between two current ones. The present ones involve already
constituted individuals, while that the relation between the present and the virtual forms
an individuation in act, or an individuation by relevant points.
Through individuation, the individual or being is constituted, but he is neither the
first moment of being, nor the first being, but only a phase of being that constitutes a
field proper to individuation. In the pre-individual field in which intensities and flows,
lines of force, mobile and communicating differences do not cease to be involved and
to be involving, constituting in this way, the vital powers that can emerge from the field.
Thus considered, the principle of individuation presupposes a temporal succession, in
which this principle performs the operation of individuation until the emergence of the
individual itself. Deleuze came from Simondon’s concept of individuation, according
to which the crystalline individuation does not result from the encounter between a
previous form and a matter, constituted before and separately, but rather a resolution
that arises within a metastable system rich in potentials: «Pre-existing form, matter and

9
DELEUZE, 1995: 161.

318
PAINTING/MAKING; THE QUESTION OF MEANINGS AND VALUES

energy in a system»10. But in a differently way from Simondon, he privileges the infor‑
mal values in individuation, the first moment of being, the pre-individual moment, a
philosophy of forces, a metamorphic capacity of thought to attain variance of becoming
and the germinate power of life. In his intuitive and anti-dialetic method, he conceives
the being as a totality that presents itself in multiple variations. Becoming in the light of
Deleuze, implies we must think and create concepts, as devices, tools, as something that
is created, produced from the given conditions and operating under these conditions.
So the concept is a device that makes us think. According to Deleuze and Guattari a
concept works as a re-learning of the lived, a re-signification of the world.
The major importance of my practice, and also its meanings and values stands in
a position where I do not take refuge in just reflection, but operate, create, experiment,
and intervene, through my work, through my paintings. Then in this body of work the
research is direct to approximate and create a transdisciplinary approach, an i­ ntersection
between the areas of art and philosophy. For this reason, the study of Deleuze v­ ision
provides a way to approach these areas, it is not the intention to submit or reduce art
to a philosophical conception. Without being «shaking old stereotyped concepts like
­skeletons…»11 or in other words in making, in developing a practice, we manage to
­escape the cliché. And this struggle against the cliché would be a struggle against an
empty agent of the power of thought, against a kind of image-law, moral-image, that acts
as a standardizing and value-determining mechanism. In this sense is not just a philo‑
sophical ­struggle, but it is also a political struggle.

Photo 2. Portraits, Oil on Canvas.

10
SIMONDON, 1964: 8.
11
DELEUZE & GUATTARI, 1992: 109.

319
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Photo 3. Portraits, Oil on Canvas.

These images are some portraits that I made in recent years and are associated
with the research of light and visibility regimes, on a given device. Visibility that does
not refer to light in general that illuminates pre-existing objects. Is formed of lines of
light, that form variable and inseparable figures of this or that device. Each device has its
light regime, the way it falls, propagates by distributing the visible and the invisible, by
making the object that does not exist without it, that arise or even may disappear. This
dimension of the self, as a line of subjectivities, is a process, a production of subjectivity
in a device. It is a process of individuation of a becoming, as I mention before. In a broad
sense we may address these issues under the process of learning. As Deleuze philosophy,
mainly through the book «Difference and Repetition» well points out, the importance
and dignity of learning are often recognized. «We may well say that learning is, after
all, an infinite task, it is none the less cast with the circumstances and the acquisition
of knowledge (…)»12. We learn when our bodies and our language are transformed in
becoming sensitive to turning points in the systems we come into contact with, when we
can «interpret signs» as Deleuze would say – signs indicating precisely transformations
of systems, when two differential series are placed in communication, resulting in «reso‑
nances» and «forced movements». But we can never predict how learning will take place.
Finally, when we study Deleuze we note how there is no hierarchy between
­philosophy, art and science. This idea is very clear in his book What is Philosophy? In
it, Deleuze defines philosophy as a practice of concept creation, science as creation
of ­functions, and art as the creation of affects and percepts. Between art, science and
philo­sophy there are many possible connections. None of them can claim a privileged
­position in front of the others. For Deleuze, «the sciences, the arts, the philosophies are
equally creative». It is interesting to pose that practice is a way of allowing ­theory to
move f­orward, of solving a theoretical problem that blocks us or that theory is a way
of allowing practice to move forward, of solving a practical problem that blocks us.

12
DELEUZE, 2014: 215.

320
PAINTING/MAKING; THE QUESTION OF MEANINGS AND VALUES

It is a­ ctually a movement from one pole to the other that is constant. Recognizing the
reach of this design, and starting from the Deleuzian idea that it is on the border of
what we think we know, even when we are mostly unaware, «that we imagine we have
something to say» — and because Painting to me always defines an approximation to the
«Meaning» of the object or the concepts, we can still aspire to the work of the Sense, for
although obscure and temporary that it may be. Nevertheless, it allows us to construct a
network of thought, a way of making, a «movement» between the voice and the silence,
that in spite of all continues to project ideas that mark our path. In this case, art is not
only a conducive medium to force thought to think but goes beyond. Deleuze would say
that «the work of art is not only born of the signs as it gives birth».

BIBLIOGRAPHY
BENJAMIN, Walter (1992) — Sobre arte, técnica, linguagem e política. Lisboa: Relógio D’Água.
DELEUZE, Gilles (1981) — Francis Bacon – Logique de la Sensation. Paris: La Différence, 2 volumes (edição
utilizada: Seuil, 2002), p. 57.
(1985) — Cinéma-2: Image-temps. Paris: Éditions de Minuit.
(1995) — L’immanence: une vie. In «Philosophie», n.º 47. Paris: Ed. De Minuit, p. 3-7.
(1999) — Bergsonismo. São Paulo: Ed. 34.
(2014) — Difference and Repetition. Translated by Paul Patton. Series Bloomsbury Revelations:
­Reprinted by Bloomsbury Academic, 2017 p. 157, p. 215.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (1995-2000) — Mil platôs. Introdução: Rizoma. Volume I. Rio de
­Janeiro: Ed. 34, p. 16.
(1992) — O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, p. 109.
DESCOLA, Philippe; PALSSEN, Gisli (1996) — Nature and Society: Anthropological Perspectives. ­Psychology
Press p. 12.
FOUCAULT, Michel (1980) — Power/Knowledge: Selected Interviews and Other Writings, 1972-1977,
­Pantheon Books.
SIMONDON, Gilbert (1964) — Líndivu et sa Genèse Physicobiologique. Paris: PUF, p. 8.

321
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

322
FILMOSOFIA: UMA FORÇA PRODUTOR A DE
SENTIDOS FÍLMICOS
DEISE QUINTILIANO PEREIRA*

Resumo: «Filmosofia» é um «manifesto em favor de uma nova maneira radical de entender o cinema».
É, portanto, um modo particular de vislumbrar um trabalho cinematográfico, ressignificando-o no universo
paralelo da sétima arte. As intenções do cineasta são compreendidas como um tema ousado cuja autonomia
só é adquirida na idade adulta e a camera é interpretada como um olho autônomo, instigando os esforços
criativos do espectador a caminhar pelo telão enquanto articula ligações entre o que é visto no filme e sua
interpretação pessoal do mundo.
Palavras-chave: filmosofia; transdisciplinaridade; cinema; filosofia.

Abstract: «Filmosophy» is a «manifesto for a radical new way of understanding cinema». It is, therefore, a
particular way of glimpsing a cinematographic piece of work, re-purposing it for the parallel universe of the
seventh art. It is a way of approaching filmmaking as a daring subject, reclaiming the independence that is
acquired through adulthood and conceiving the camera as an «autonomous eye», going so far as to oppose
the filmmaker’s intentions. It invites the creative endeavors of the viewer to interpret the signs that walk
freely through the big screen, articulating links between what is seen in the film and the personal interpreta‑
tion of the world that is held by each individual.
Keywords: filmosophy; transdisciplinarity; filmmaking; philosophy.

* Universidade do Estado do Rio de Janeiro — Instituto de Letras. Email: deisequintiliano@uol.com.br.

323
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

INTRODUÇÃO
Inicio minha exposição com uma citação: «A meticulosa e detalhada defesa da
ideia de que o cinema é por si mesmo um tipo de mente, de que o filme pensa de uma
maneira que lhe é própria, mescla-se com o pensamento do cineasta. E embora a ideia
geral de que filmes e cérebros partilhem características essenciais esteja em voga desde
a invenção do cinema, Frampton discorre sobre ela com grande erudição e cuidado,
levando-nos a experienciar o filme do modo como deve ser experimentado — como a
única forma de consciência». A definição laudatória com que Colin McGinn, da Rugters
University decifra o livro de Daniel Frampton, Filmosophy, publicado em 2006, foi um
dos elementos sedutores que me lançaram na estrada ladeada por rolos de celulose.
Em linhas gerais, a filmosofia espelha um estudo do filme como uma ­engrenagem
reflexiva autônoma, na qual o filme-cérebro (filmind)1, contém uma teoria sobre o s­ er-filme
(film-being) e sobre a forma-filme (film form). É seguindo essa trilha que a fi ­ lmosofia
concebe o filme como uma «inteligência orgânica»: um ser-filme que ­reflete sobre os
personagens e temas propostos pelos próprios filmes. Para Frampton: «O ­ser-filme é o
próprio filme»2.
Trata-se, portanto, de um modo particular de vislumbrar uma obra cinemato­
gráfica, fornecendo-nos um aparelhamento distinto de compreensão do universo para‑
lelo da sétima arte, sempre instigante para o espírito escrutador do crítico. É um desafio
lançado à nossa compreensão da realidade «forçando uma consideração fenomeno­
lógica sobre como a realidade é percebida por nossos cérebros»3.
A proposta de Frampton visa, assim, apresentar-nos o filme em detrimento da
­relação engendrada com a realidade circundante do espectador, embora tal conver­
gência dite a tônica de parte significativa da filmografia mundial, conforme atestam os
consagrados Cinefilô e Filosofando no cinema, por exemplo, que analisam pensadores
de épocas distintas, à luz de filmes conhecidos de todos, numa abordagem original, em
clara demonstração da eficácia dessa estratégia. O fato é que se ater tão somente a esse
aspecto, a nosso ver, enfraquece uma possibilidade material de entendimento de que o
cinema é capaz de instituir sua própria realidade, seu próprio mundo, cenas, objetos e
efeitos, como desejar.
Diante da vastidão de maneiras de se conceber criticamente a perspectiva cine‑
matográfica, assumimos a que se apoia no conceito de filmosofia (Filmosophy), tal
qual a concebe seu arquiteto, Daniel Frampton, em comunicação permanente com a

1
Ao término do trabalho, propomos um mini glossário com uma breve explicação sobre os termos cunhados por
Frampton e nossas opções tradutórias para a Língua Portuguesa, considerando-se que, até a presente data, o livro
não foi traduzido para o português.
2
FRAMPTON, 2006: 7.
3
FRAMPTON, 2006: 3.

324
FILMOSOFIA: UMA FORÇA PRODUTOR A DE SENTIDOS FÍLMICOS

abordagem fenomenológica do cinema desenvolvida por Vivian Sobchack, apoiada nas


­reflexões filosóficas de Maurice Merleau-Ponty.
O objetivo de nossa intervenção é, então, sinalizar de que modo os aportes «filmo‑
sóficos» propostos por Frampton, fundamentalmente ancorados numa metodologia de
base fenomenológica, são capazes de gerar novos sentidos, produzindo uma compre­
ensão do cinema como espaço autônomo de criação de jogos significantes hauridos da
relação direta entre a película e o espectador.

FENÓMENO FILMOSOFIA
A partir do delineamento fenomenológico do filme como experiência, formulado
por Vivian Sobchack, tentemos compreender a contribuição dessa metodologia para os
pressupostos da filmosofia. Na qualidade de método filosófico que se propõe a descre‑
ver a experiência vivida na consciência, a fenomenologia ajuda a elucidar a presença do
filme-cérebro, no seu contexto. Todavia, por si só, o filme não é, por definição, fenome‑
nológico, o que torna mais difícil a concetualização do cinema por intermédio de uma
fenomenologia adaptada.
Enquanto seres humanos, podemos nos apoiar em nossa fenomenologia singulari‑
zada para buscar um atalho facilitador de tal compreensão. À medida que nos apresenta
os componentes de sua própria fenomenologia, o filme revela-se, sobretudo, metafeno‑
menológico. O filme-pensamento (film-thinking) não é análogo ao pensamento humano,
apreendendo apenas o que é visível, o que se faz ver, possuindo uma espécie de fenome‑
nologia privada. Na análise de Frampton4: «a fenomenologia refere-se ao engajamento
humano na realidade. O ser-filme não é humano e o filme-mundo (film-world) não é real.
O filme é uma realidade autônoma, é seu próprio mundo […] somos seres subjetivos,
contudo, os filmes parecem ser mais fluidos em seu propósito».
O filme possui, por conseguinte, a necessidade de elementos suplementares na
­propositura de uma análise mais refinada dos fatos que apresenta: ângulo, cor, distân‑
cia. Em outras palavras, embora o aspecto fenomenológico seja profícuo, não é o mais
­valioso para a testemunha-do-filme (filmgoer). Não devemos, pois, utilizar o cérebro para
teorizar, ainda que ele nos leve a sentir e a experimentar, porque não conhecemos sufi‑
cientemente bem o processo mental de organização de um filme: «o filme-cérebro pensa
melhor do que nós»5.

4
FRAMPTON, 2006: 46.
5
FRAMPTON, 2006: 91.

325
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

O CINEMA PENSA
A interpretação conceitual adotada pelo pesquisador inglês, segundo a qual «filmo­
sofia» se apresenta como manifesto em favor de uma nova maneira radical de compre­
ensão do cinema, nos autoriza a compreender o grande écran como um ­pensamento
autônomo, como um modo de conhecer, como um modo de captar e como uma expe‑
riência filosófica que conduz a uma sabedoria singular, afinal é pelo estabelecimento de
relações dialógicas entre os signos projetados no telão que chegamos à constatação
de que o cinema pensa e a câmera… também!
Assim sendo, «filmosofia» pode ser compreendida como um manifesto em d ­ efesa
da inteligência e da independência fílmicas, abraçando um novo sistema de reflexão
e uma nova episteme. Nesse sentido, é possível inferir por que a artilharia pesada de
­muitos conceitos filosóficos encontram o seu paradigma de explicitação no cinema.
­Todavia, a sala escura se revela como muito mais do que um catálogo de abordagem de
problemas metafísicos, questionando conhecidos conceitos filosóficos.
Buscando um entendimento sobre o que pode ser alcançado cinematografica­
mente, a filmosofia visa a descortinar o filosófico no movimento e na forma-filme. Se
essa proposta representa um novo suporte aplicado ao filme, o que significará para o
nosso pensamento e a nossa compreensão de mundo? O que um filme é capaz de imagi­
nar filosoficamente? Quais seriam as implicações filosóficas em se vislumbrar o filme
por intermédio dessa estilização? Como a filosofia pode pensar a partir de imagens?
Em que sentido podemos empregar o filme-pensamento no atual debate de problemas e
discussões filosóficas?
Diante de tantas indagações, propomos uma constatação sintética: filmosofia
­implica uma criatividade investigativa, com claro apelo ora não mais à hermenêu­tica, à
interpretação, mas à semiologia, à construção conjunta de imagens (signos) que t­ ambém
falam. Em avaliação convergente, Daniel Frampton chama atenção para um ­aspecto
não negligenciável do filme-cérebro: o processo de criação de base do filme-mundo, que
­reconhece pessoas e objetos no interior de uma operação de reconfiguração fílmica,
podendo ser intitulada filme-pensamento. É Deleuze quem nos auxilia na clarificação
desse conceito: «Cada imagem no seu enquadramento, por seu enquadramento, deve
expressar uma relação mental. Os personagens podem agir, perceber, sentir, mas não
podem atestar as relações que os determinam. São apenas movimentos de câmera e seus
movimentos em direção à câmera»6.
Deleuze tem razão em estabelecer tal paralelo sob a batuta da cinematografia do
mestre do suspense, sobretudo se nos ativermos à introdução assinada por François
­Truffaut, no livro-entrevista Le cinéma selon Hitchock: «Hitchock é o único cineasta que

6
DELEUZE, 1983: 271-272.

326
FILMOSOFIA: UMA FORÇA PRODUTOR A DE SENTIDOS FÍLMICOS

consegue filmar e tornar perceptíveis pensamentos de um ou vários personagens sem


recurso ao diálogo»7.
De fato, é a câmera e não o diálogo que explica por que o herói de Janela indiscreta
está com a perna quebrada (fotos de carro de corrida no quarto, máquina fotográfica
quebrada). É a câmera, em Sabotagem, que faz com que a mulher, o homem e a faca
não permaneçam numa relação de paralelismo, mas numa verdadeira triangulação:
«A melhor cena é a do jantar, já no fim do filme, depois da explosão da bomba que
­causou a morte do menino, quando Sylvia Sydney decide matar Oscar Homolka.
Há vários ­detalhes e alusões à criança morta e quando, finalmente, ela apunhala o
­marido, é menos um assassinato do que um suicídio»8.
Ainda mais interessante é remontarmos à fonte primária do autor de A corda e
Os pássaros sobre a fragmentação episódica e a ausência de diálogo tanto na Janela indis­
creta quanto em Sabotagem. Ouçamos a explicação técnica de Hitchcock sobre o tema,
em entrevista concedida ao cineasta francês:

A utilização de meios fornecidos pelo cinema para contar uma história […] me
interessa mais do que se alguém perguntasse a Stewart: como você quebrou a perna?
Stewart responderia: «Estava tirando uma foto de uma corrida de carros, uma roda
se soltou e me atingiu»; não é verdade? Essa seria uma cena banal. Para mim, o
­pecado capital de um cineasta revela-se quando discutimos a dificuldade de escamo-
tear o problema, dizendo: «Resolveremos isso com um simples diálogo». O diálogo
deve ser um ruído dentre outros, um rumor que sai da boca dos personagens cujas
ações e olhares contam uma história visual9.

Apostando na força dos signos, das imagens em ação, a filmosofia não instaura uma
analogia direta entre o pensamento e o filme, porquanto este forja um modo d ­ istinto de
nosso discernimento, de nossa leitura do mundo e de apreensão dos aconteci­mentos,
propondo-nos uma nova modalidade de «pensar». Por essa razão, uma metáfora
fenome­nológica da percepção humana poderia restringir as possibilidades de signifi‑
cação do filme. A câmera pode ser interpretada como outro personagem, aproximando
mais o filme-pensamento — isto é, a ação da forma-filme direcionada à intenção dramá‑
tica; espécie de teoria da narração fílmica — de uma ideia, um sentimento, uma emoção
do que da singularidade da reflexão humana.
Efetivamente, o filme-cérebro é o próprio filme. Não o substitui, mas se aproxima
da ideia de narrador, visto que permite ao espectador viver a experiência fílmica como
seu drama pessoal, mais do que extraí-la de uma vivência estranha e exterior à ação dos
7
TRUFFAUT, 1966: 15.
8
TRUFFAUT, 1966: 79.
9
TRUFFAUT, 1966: 165.

327
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

atores, cineastas ou narradores visíveis. Filmosofia é assim designada como uma filosofia
orgânica do filme, uma inconteste ciência dos signos, uma semiologia.

O FILME-CÉREBRO
A partir do advento do cinema, analogias são estabelecidas entre o filme e a
percep­ção humana: os sonhos, as incursões do inconsciente projetando-se na tela, o
modo de apreensão da realidade. Segundo as teorias do polonês Jean Epstein, o e­ studo
de ­Frampton demonstra que o filme detém uma qualidade única de ser «um olho
­independente do olho, escapando ao egocentrismo tirânico de nossa visão pessoal… é a
própria lupa»10. Essa maneira de conceber o filme ultrapassa a ideia do cinema como um
cambaleante sistema de signos e avança em direção a um novo tipo de articulação capaz
de revelar «os mistérios inconscientes da natureza e a natureza humana por intermédio
de sua exploração epistemológica do tempo e do espaço»11.
A filmosofia implica, então, uma filosofia partilhada entre o ser-filme — reconcei­
tualização que conduz à compreensão da película como uma «real» criação de uma
reali­dade própria — e o filme-cérebro. O conceito de ser-filme oferece uma ­ossatura
­conceptual que reverencia a relação som-imagem em detrimento dos diálogos. Sua maior
preocupação é com a questão filosófica concernente ao espectador ao indagar: como o
filme tece significações para além das intenções mecânicas? Essa abordagem oferece a
nítida vantagem de revelar a pura poesia do cinema, antes mesmo que os filmes sejam
mutilados pelo conhecimento contextual.
Em poucas palavras, a preocupação cardinal da filosofia nos parece ser descobrir
o que o filme é capaz de pensar sozinho. Se Frampton adota a terminologia filme-cére-
bro é porque não estamos mais diante de um pensamento humano, mas de um molde
­atípico, que investe no cérebro inovador, insólito, anômalo; de um cérebro fílmico insub‑
misso, numa certa medida, tanto ao cineasta quanto ao espectador: a ação institui sua
­própria consciência e a significação dramática origina-se no filme, mais do que em forças
exteriores a ele.
Filme-cérebro revela-se, assim, o eixo em torno do qual gira o carretel que centri­
fuga todas as considerações observadas no microscópio da refinada sismografia arqui‑
tetada por Frampton. É nesse terreno inóspito que nos cabe o questionamento do que,
definitivamente, distingue o filme-cérebro do pensamento humano. Numa primeira
abordagem, imaginemos que, para além do enredo ou do argumento, o filme-cérebro
não é, por definição, metafórico. A similaridade entre o pensamento humano e o filme-­
-cérebro é funcional (ou paralela) mais do que fenomenológica. Essa é a razão pela qual

10
EPSTEIN, 1981: 19.
11
MERLEAU-PONTY, 1948: 58.

328
FILMOSOFIA: UMA FORÇA PRODUTOR A DE SENTIDOS FÍLMICOS

Frampton não se contradiz ao atribuir o termo «cérebro» a uma entidade que se encon‑
tra dissociada da reflexão humana.
Algumas representações simbólicas evocam significações mais abrangentes, como
montagens específicas que traduzem imagens do pensamento na mente do ­cineasta.
­Nesse sentido, o filme nos faz pensar, convida-nos a relacionar a película com outras
ideias, o que ainda não é razão suficiente para definirmos o filme como uma «coisa
­pensante». O movimento cinematográfico é «afetivo», no sentido etimológico do vocá­
bulo (atingido, tomado por afféctus, afetado de vários modos). O cineasta entra em
­contato com temas, situações, personagens sem a necessidade de qualquer recurso
­externo ao próprio filme, pois tudo já está contido nele. Essa experiência, todavia, só
logrará êxito se efetivamente o cineasta entrar no jogo, movendo suas peças como numa
partida de xadrez, no multifacetado tabuleiro da filmosofia.

TESTEMUNHAS-DO-FILME: A CHAVE DO ENIGMA


FILMOSÓFICO
Retornemos ao ponto nevrálgico de que nos ocupamos, na tentativa de melhor
clarificar seu entendimento. O método da montagem orgânica a que pertinentemente
alude o cineasta russo Sergei Eisenstein concentra-se na revitalização das características
e aspectos inatos, comuns a todo ser humano, tanto quanto é comum a toda humana
e vital forma artística. Se nos concentrarmos numa experiência real do mundo físico e
avaliarmos o que faz dessa experiência algo sui generis, permitiremos que a imagem ou
tema desabroche com intensidade na mente da testemunha-do-filme como que preen‑
chendo um quebra-cabeça.
Com efeito, cada filme é assim expresso como um organismo vivo, espargindo-­
-se sob o modo de imagens e sons. Cada testemunha-do-filme assiste a uma projeção
­diferente porque a forma-filme negocia sentidos de acordo com as inúmeras percepções
implicadas sem contudo realmente alterar sua própria natureza inumana. Cada película
se retroalimenta, se ajusta, se procria, se completa na interação com outros filmes (por
referência, homenagem ou evocação).
O mesmo procedimento acomete as testemunhas-do-filme, desconcertando-as
ou contagiando suas vidas num período de duas horas, na sala escura. Claro está que
cada organismo fílmico «vivo» existe «por si mesmo» — tal qual uma máquina — como
um trabalho artístico original. Acolhemos o investimento filmosófico, portanto, como
uma semiologia fílmica onde signos em liberdade nos permitem promover uma análise
­síncrona com o emaranhado de «textos-tecidos» (no sentido que lhe dá o semiólogo
Roland Barthes) que cada um de nós, na qualidade de espectador, traz consigo.
Conceitos e expressões filmosóficos atuam sobre nossa percepção por um atalho
autônomo, reestruturando nosso contato com o mundo. Filosoficamente, nossa maneira
de vislumbrar a vida é afetada pelos filmes, à medida que eles alteram nossa apreensão

329
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

da realidade. Comumente, somos levados a considerar que vemos tão somente através
da imagem, capturando diretamente as personagens. O filme, entretanto, está sempre
pensando com e por intermédio de nossa percepção. É esse encaixe entre criação fílmica
e percepção humana, como origem de produção de novos sentidos, que nos interessa
destacar em nossas considerações.
A filmosofia move-se no sentido de otimizar uma atenção especial concedida às
imagens cênicas — no cinema, no vídeo game ou na televisão. Melhor: a filmosofia ­busca
implantar e lapidar um método que cresce à proporção que o filme avança, com a possibi‑
lidade de acompanhar o que quer que a cinematografia invente no futuro. Uma vez disse­
cados os alicerces da filmosofia, jamais a testemunha-do-filme se sentirá transtornada por
seus desdobramentos e renovados subsídios, sendo até capaz de antecipar soluções.
Voltemos a Frampton12: «ver o filme como pensamento une conteúdo, forma e
testemunha-do-filme, de modo tal que o espectador capta a totalidade orgânica do filme
graças a seus personagens e acontecimentos, pelo viés das formas dramáticas, mais do
que pelas camadas de história ou estilo». Partindo dessa premissa, compreendemos que
a testemunha-do-filme recebe a montagem de uma maneira tal que as intenções mecâ­
nicas ou artísticas do cineasta não conseguem dominar completamente nem limitar.
Dito de outro modo, se por um lado os cineastas são os verdadeiros artífices de
suas progenituras cênicas — nenhuma dúvida quanto a isso — por outro, são simples
condutores do cinema-pensamento e admiti-lo está longe de tentar solapar a impor­tância
do papel desse ator maior. Tal constatação demonstra simplesmente a aptidão peculiar e
a rentabilidade da filmosofia no processo de revigoramento da experiência fílmica.
Consequentemente, a filmosofia se interessa pela questão filosófica; sobre como
filmes transmitem significados às testemunhas-do-filme para além de qualquer i­ntenção
mecânico-inventiva. Embora as elaborações que enunciamos apoiadas no trabalho de
Frampton possam ser aplicadas a análises fílmicas de qualquer época, são os filmes
contem­porâneos que melhor se adéquam à conceituação do filme como um pensa­mento
autônomo. Tão logo a projeção se inicia, o filme-cérebro está presente e o pensa­mento
põe-se em movimento. O(s) sentido(s) da película ganha(m) vida graças às inten­ções do
cineasta que nela se depositam, mas as transbordam ultrapassando o seu ­«querer-dizer»
preconcebido em favor de um «mais-dizer» criativo porque o cinema sempre diz mais.
Esse movimento se dá na tentativa de auxiliar as testemunhas-do-filme a estabele­cerem
relações vivas e dialógicas entre o que se desenvolve no telão e suas experiências e
­vivências particulares.
A testemunha-do-filme não vê os mentores da película, sejam humanos ou tecno­
lógicos, fato que institui aparatos que nos levam a aceitar sua única forma compro­
vada de existência — enquanto transcendemos nossa fisiologia, o filme transcende

12
FRAMPTON, 2006: 212.

330
FILMOSOFIA: UMA FORÇA PRODUTOR A DE SENTIDOS FÍLMICOS

seu ­maquinismo. O filme confronta-se, então, com a única intenção que lhe é própria:
o filme-pensamento que existe por e para ele mesmo, como uma consciência animada,
que, visualmente, auditivamente e cinematicamente visa ao mundo ou à sua própria
atividade consciente numa estrutura análoga à nossa própria estrutura humana.
A cena conclusiva do filme Blade runner pode metaforizar adequadamente essa
temática: a exemplo da peça de Pirandello, Seis personagens à procura de um autor que
lhes atribua uma realidade efetiva ou dos brinquedos do Toy Story, em sua luta pelo
reconhecimento de se sentirem mais do que rabiscos em movimento, o que interessa é a
existência. As questões trazidas à baila pelos replicantes de O Caçador de androides são
homólogas às indagações mais primitivas sobre a origem do homem, a finitude humana
e a busca do criador. Mundo real e virtual confundem-se até o último instante, quando
descobrimos que também a mocinha… é uma replicante!

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A filmosofia não nos brinda simplesmente com uma chave inédita e invulgar de
compreensão do que se passa no telão, mas palmilha uma rota alternativa de a­ nálise
do filme, partindo de sua própria argamassa constitutiva. Ultrapassando qualquer
­«essência» suscetível de ser atribuída à existência conceptual do filme-cérebro, o que
se anuncia verdadeiramente substancial para nosso conhecimento do cinema é definir
­fenomenologicamente o conceito de «filmosofia». Trata-se de um conceito o ­ peracional
se voltarmos nossos refletores para as fontes primárias produtoras de ricas junções signi­
ficantes extraídas de imagens que ganham vida caminhando livremente no g­ rande écran,
tendo os sentidos co-construídos nos espectadores a partir de sua inscrição c­ ultural
no mundo.
A fenomenologia presta uma excepcional contribuição para o esclarecimento
da relação entre pensamento humano e pensamento fílmico, o subjetivo e o objetivo,
­engajamento humano com a realidade e engajamento cinematográfico. De certo modo,
ao associar a experiência criadora do cineasta à visão humana, numa correlata isomor‑
fia entre existência fílmica corporificada (movimentos, sentidos, direção) e existência
humana efetivamente vivida, filmes podem «pensar» humores e desejos por nossos
movi­mentos, cores, balizamentos etc., mas nunca do mesmo modo como nós experien‑
ciamos nosso humor e desejo. A maneira como o filme «pensa» não traduz fenomeno‑
logicamente o modo como nossa consciência audiovisual pensa.
Todavia, é extremamente limitado conceber que um filme só possa propor ideias
ancoradas em histórias ou diálogos, limitação contida num questionamento lapidar de
Frampton13: «Se o ponto de partida desses filósofos é “o que um filme pode fazer pela filo‑
sofia?” quanto tempo vão levar ainda para compreender que o filme apresenta filosofia?».

13
FRAMPTON, 2006: 9.

331
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Filmosofia firma-se, destarte, como um produto da idade contemporânea, muni­


ciada por copiosos recursos cinematográficos. É uma habilidade, um instrumento, uma
semiologia; uma alternativa que permite construir algo inusitado. É uma estratégia com
o objetivo de assumir uma postura filosófica diante do filme, descortinando, ao ­mesmo
tempo, o filosófico que impregna o filme. É uma estrutura para o presente e para o
­futuro. É um dos possíveis caminhos do nosso pensamento. É onde nascem e morrem
nossas convicções.

GLOSSÁRIO
FILM-BEING — «Ser-filme»: potencialidades que ultrapassam os limites do «filme-mundo». Reconcei­
tualização que conduz à compreensão da película menos como uma reprodução da realidade do que
como uma «real» criação de uma realidade própria. O «ser-filme» não é humano.
FILMGOER — «Testemunha-do-filme»: o espectador que exerce papel ativo no processo de apreensão
da película e que, pela «estética da recepção» (Jauss, Iser), aponta para a mudança do paradigma
da investigação filosófica, literária e discursiva, remetendo o ato de leitura a um duplo horizonte: o
implicado pela obra e o projetado pelo leitor de determinada sociedade.
FILMIND — «Filme-cérebro»: conceito filmosófico do «ser-filme». Não trata de uma descrição empírica do
filme, mas de uma compreensão conceitual das origens das ações fílmicas e dos eventos. Não é uma
força externa ou um ser místico, invisível: o «filme-cérebro é o próprio filme»14. Não o substitui, mas
se aproxima da ideia de narrador.
FILM-THINKING — «Filme-pensamento»: Ação da «forma-filme» direcionada à intenção dramática;
­espécie de teoria da narração fílmica. A «forma-filme», por si só, é incapaz de constituir e reconfi­
gurar o «filme-mundo». Essa é a função do «filme-pensamento», que não se aparenta a nenhum tipo
de pensamento humano, mas encarna uma combinação de ideia, sentimento e emoção.
FILMOSOPHY — «Filmosofia»: estudo do filme como pensamento que contém uma teoria sobre «ser-filme»
e sobre a «forma-filme». Conceptualismo do filme como uma inteligência orgânica – um «ser-filme»
pensante e reflexivo sobre personagens e assuntos apresentados na telona. Avalia a capacidade imagi­
nativa e imaginante do filme.
FILM-WORLD — «Filme-mundo»: reprodução simples e direta da realidade transposta para a tela.
É um mundo plano, organizado e comprimido – parente da realidade. Tem a funcionalidade de um
espe­lho que reflete nossa interação com o mundo. A multiplicidade do movimento das imagens no
­século XXI implica dizer que o «filme-mundo» é uma espécie de segundo mundo no qual vivemos.
O ­«filme-mundo» não é real.

BIBLIOGRAFIA
BARTHES, Roland (1973) — Le plaisir du texte. Paris: Seuil.
DELEUZE, Gilles (1983) — Cinéma 1 – L’image-mouvement. Paris: Minuit.
EISENSTEIN, Sergei (2002) — A forma do filme. Rio de Janeiro: Zahar.
EPSTEIN, Jean (1981) — Bonjour cinéma and other writings. Trans. Tom Milne, «Afterimage Magazine»,
vol. 10, Autumn, London: Afterimage Publishing, p. 19.
FRAMPTON, Daniel (2006) — Filmosophy. London & New York: Wallflower Press.
MERLEAU-PONTY, Maurice (1948) — Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard.

14
FRAMPTON, 2006: 7.

332
FILMOSOFIA: UMA FORÇA PRODUTOR A DE SENTIDOS FÍLMICOS

PIRANDELLO, Luigi (2007) — Sei personaggi in cerca d’autore. Bologna: Editori BUR (Biblioteca Universale
Rizzoli).
POURRIOL, Ollivier (2012) — Filosofando no cinema: 25 filmes para entender o desejo. Tradução: André
Teles. Rio de Janeiro: Zahar Editora.
(2009) — Cinefilô – As mais belas questões da filosofia no cinema. Tradução: André Teles. Rio Janeiro:
Zahar Editora.
SOBCHACK, Vivian (1992) — The Address of the Eye: a Phenomenology of Film Experience. New Jersey:
Princeton University Press.
TRUFFAUT, François (1966) — Le cinéma selon Hitchcock. Paris: Editions Robert.

333
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

334
MODOS DE EXPRESSÃO E RECEÇÃO
SIGNIFICANTES NO CINEMA
PEDRO ALVES*

Resumo: Este texto lança um olhar epistemológico sobre o cinema enquanto modo de expressão e receção
da realidade. A narratividade fílmica promove estruturas de comunicação que, aliadas à ficção, recompõem
e redirecionam a realidade para novos modos de a entender e explorar. Os filmes constituem propostas
fechadas na sua expressão e forma, mas abertas nos sentidos e significados que autorizam. Do espectador
requer-se a participação ativa em processos de leitura do texto fílmico que implicam a sua biografia, as suas
expectativas e o seu contexto vital. O cinema torna-se, assim, campo privilegiado para aprendizagens não-
-formais e formais, onde a criatividade da expressão fílmica e a espontaneidade da vivência cinematográfica
coabitam num processo orgânico e cíclico de comunicação e impacto.
Palavras-chave: cinema; narrativa; realidade; experiência.

Abstract: This text draws an epistemological sight into the seventh art as a way for expressing and expe­
rience reality. Film narrativity promotes communicational structures that, together with fiction, recompose
and ­redirect reality towards new ways for comprehending and exploring it. Films are propositions closed
in their expression and form, but open to the meanings and senses they authorize. Cinema requires from
spectators an active participation in reading processes that implicate their biographies, expectations and
vital contexts. Therefore, films become privileged places for non-formal and formal learning, where the
­creativity of film expression and the spontaneity of cinema experiences cohabit in an organic and cyclic
process of communication and impact.
Keywords: film; narrative; reality; experience.

* Professor Auxiliar Convidado da Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa.

335
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

INTRODUÇÃO
Uma indagação ampla e problematizante sobre aspetos do «fazer» e do «saber-
­-fazer» humanos contempla diferentes materiais e recursos que participam decisiva­
mente em múltiplos modos de atuação, pensamento e comunicação. Estes modos
envol­vem formas — escolarizadas, informais, académicas ou artísticas — de criação
e experi­men­tação de mundos, objetos, seres e ambientes. E, nesse sentido, a arte e o
­cinema e­ ncontram completa pertinência enquanto mecanismos fundamentais de imagi­
nação, ­construção, produção, libertação, transmissão, experimentação e aprendizagem
dos mundos que temos e somos.
Este texto pretende averiguar a configuração da narrativa e da ficção no cinema
como forma de expressar e receber significativamente o real. Focar-se-á no caminho,
denso e complexo, que vai do caos da realidade e da sua reconfiguração expressiva pela
sétima arte até às propostas de experimentação de mundos que referenciam metafo­
ricamente essa mesma realidade e expandem e amplificam as possibilidades de a
­compreendermos, sentirmos e vivenciarmos. Assim, procurará estabelecer um esquema
processual do modo pelo qual o cinema estimula a criação destes mundos interiores e
exteriores, identificando diferentes etapas deste caminho significante de desconstrução
e reconstrução da realidade no e a partir do cinema.

DA REALIDADE AO CINEMA: MODOS DE EXPRESSÃO


A reconfiguração da realidade em modelos de sentido próprio e/ou partilhado e
as oportunidades de comunicação destes mesmo modelos são aspetos incontornáveis
para uma saudável existência do ser humano e um profícuo entendimento do real.
A reali­dade constitui o ponto de partida inevitável para qualquer tipo de e­ ntendimento.
­Qualquer expressão ou comunicação — mais ou menos metafórica, implícita ou explí­
cita — tem o real como referência. Não conseguimos entender algo que escape total‑
mente às suas coordenadas, seja por aproximação, comparação ou contraste. Mas a
reali­dade ­instaura igualmente, na sua forma pura e liberta da intervenção humana, uma
amálgama d ­ esordenada e heterogénea de informação que, ao mesmo tempo que o ­ ferece
múltiplas possibilidades de entendimento, sensibilidade e atuação, dificulta também
consensos e partilhas de cosmovisões e modelos do saber e do fazer.
A comunicação é um eixo fundamental da vida do ser humano. O indivíduo tem
a necessidade de interagir com o seu contexto, com as pessoas que o integram, com
os objetos e ambientes que habitam o seu universo cognoscente. A descoberta da sua
identi­dade está necessariamente relacionada com a ocupação de um lugar dentro do que
é a sua cultura e sociedade. Na procura de um papel e função sociais, e para que cada
individualidade humana possa desenvolver-se de forma saudável e profícua, ­existem
dois elementos fundamentais: a aquisição e utilização de linguagens comuns e parti‑
lhadas (motores da comunicação humana) e a interpretação da realidade através de um

336
MODOS DE EXPRESSÃO E RECEÇÃO SIGNIFICANTES NO CINEMA

equilíbrio entre as perceções individuais e os saberes socialmente partilhados. De uma


combinação feliz destes dois aspetos advém a oportunidade de expressar e receber senti­
mentos, intenções ou ideias. Ambos autorizam o grau de objetividade necessária para
entender e difundir os fatos da realidade experimentada e entendida, abstraindo a expe‑
riência do mundo real e transmitindo-a, individual ou coletivamente, além dos limites e
condições espaciais, temporais, culturais ou pessoais.
Além de uma comunicação equivalente ou objetiva, o ser humano precisa de
­expressar elementos subjetivos, frutos de uma visão própria sobre a realidade. É certo
que o entendimento entre sujeitos e culturas distintos condenar-se-ia ao fracasso se não
fosse pela capacidade de produção e compreensão de metáforas que permitem a criação
de um canal de comunicação síncrono, capaz de ultrapassar as limitações dos juízos e
das cosmovisões parciais. Mas todo o entendimento sobre a realidade advém sempre,
e inevitavelmente, da consideração do que tomamos por plausível, verdadeiro e signifi­
cativo. Por isso mesmo, são múltiplas as configurações possíveis e dissonantes da reali‑
dade. Várias religiões, distintas ideologias, inconciliáveis teorias científicas, ou diferentes
formas de ser, pensar, sentir e agir, provam-nos a inevitabilidade do perspetivismo e do
pluralismo. Ou seja, entendemos o real apenas do ponto de onde o olhamos e enten­
demos, a partir de nós, do nosso contexto e da nossa cultura. Com isso, construímos
«versões-do-mundo»1, diferentes, mas complementares. Uma ideia de verdade abso­
luta ou absolutizante cai por terra, evidenciando-se, ao invés, a necessária articulação
de ­distintas compreensões sobre o ser humano e a realidade como forma de nos aproxi­
marmos de uma «verdade» mais ampla e completa.
Neste diálogo entre o objetivo e o subjetivo, ou entre a necessidade do absoluto e a
inevitabilidade do parcial, ganham particular relevância os modos de articulação, conta­
minação ou dissonância entre ciência e arte. A ciência trabalha sobretudo com proces‑
sos de indagação e construção de mundos assentes na objetivação, na verifi­cação e na
plausi­bilidade. No entanto, frequentemente esquece, evita ou simplesmente vê-se impo­
tente perante os mundos sensíveis, empíricos, emocionais e subjetivos que são ­parte
­inexorável do ser humano e que rejeitam as imposições da objetividade e da compro­vação.
A este respeito, Gonçalo M. Tavares2 aborda uma questão fundamental: «uma ciência
que não investiga os sentimentos serve para quê? Serve tudo aquilo que não é senti­
mento. Serve, pois, o homem? Serve toda a parte do homem que não é sentimento».
Ainda que sejamos ávidos de contínuos e máximas de funcionamento ilimitado3, dificil‑
mente isso traz ao ser humano a possibilidade de se aproximar de uma consciência mais
apurada sobre si mesmo e sobre o seu mundo. Nesse sentido, precisa de uma relação de
proximidade e complementaridade entre arte e ciência nesta indagação da realidade.
1
GOODMAN, 1995.
2
TAVARES, 2006: 18.
3
DUBUFFET, 2005: 40.

337
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

A arte, «mais do que conhecer o mundo, produz complementos do mundo, formas


autónomas que se acrescentam às existentes»4. Nesse sentido, complexifica, densifica,
amplifica e expande as formas do real pela sua reconfiguração e renovação. E, ainda que
constitua um campo transmutável em múltiplas manifestações e aberto na expressão
e receção que permite, a arte aproxima-se da ciência pelo facto de ambas constituírem
«modos de descoberta, criação e alargamento do conhecimento no sentido do avanço
amplo da compreensão»5. Nesse sentido, os artistas, não menos do que os cientistas,
«tomam, desfazem, refazem e retomam mundos familiares, remodelando-os de modos
admiráveis» que nos permitem conhecer e reconhecer a realidade a partir da sua repre‑
sentação e interpelação metafórica6.
Além da preponderância do espectro artístico para uma mais completa i­ndagação
das condições do indivíduo e do mundo real, devemos também ressalvar a importância
da (re)configuração da realidade permitida e operada através da narrativa. A estru­tura
narrativa é uma importante ferramenta para a expressão e representação da experiência
humana, desenhando um mapa dos problemas e aventurando soluções para a ­situação
passada, presente ou futura da realidade7. Por outro lado, autoriza uma abordagem de
«intenções humanas ou semelhantes ao humano e ações e vicissitudes e conse­quências
que marcam o seu curso»8, que podem servir para «julgar as relações e estados do
­próprio mundo real»9. A criação de histórias representativas da ação humana — indivi‑
dual e c­ oletiva — é um importante veículo para a aprendizagem, bem como meca­nismo
essencial para partilharmos experiências em direções intemporais e universais. Ao
­encerrar múltiplos elementos do real dentro de uma representação concreta e refe­rencial
(personagens, ações e contextos), o caráter metafórico da narrativa releva a c­ apacidade
­humana de suplantar o espaço, o tempo e a subjetividade na sua necessidade comu‑
nicativa. A narrativa posiciona-se, assim, como veículo para o ser humano comunicar
todo o tipo de informações cognitivas, emocionais, objetivas ou subjetivas: possibilita a
transmissão de dados sensoriais, subjetivos ou particulares de forma objetiva, ao mesmo
tempo que permite a simbolização e abstração de factos reais através da sua represen­
tação metafórica.
Acima de tudo, «contar histórias é um fenómeno inerente ao ser humano»10, pelo
que a narrativa vai além da função meramente estética da comunicação humana, «confi­
gurando, em grande medida, o nosso pensamento»11. Várias teorias da psicologia têm

4
ECO, 1976: 54.
5
GOODMAN, 1995: 153.
6
Idem: 156.
7
JAMESON, 1995: 23, 29.
8
BRUNER, 1986: 13.
9
DOLEZEL, 1998: 54.
10
GARCÍA GARCÍA & RAJAS, 2011: 9.
11
Ibidem.

338
MODOS DE EXPRESSÃO E RECEÇÃO SIGNIFICANTES NO CINEMA

defendido a importância da narrativa para o conhecimento, para a comunicação ou até


mesmo para abordagens terapêuticas12. Pela narrativa, exploramos o real, ordenamos os
seus dados, selecionamos o seu conteúdo, estruturamo-lo, densificamo-lo, atribuímos-­
-lhe causalidade e direção, de modo a permitir a expressão e extração de determinados
(ou sugeridos) significados e impactos, quer cognitivos quer emocionais. Assim, «ao
narrar, narramo-nos. Narrar é viver, sobretudo na forma pela qual poderíamos viver e
relatar-nos, de uma maneira explícita ou implícita»13.
Se a narrativa nos permite aventurar novas formas de viver, idealizar, sentir e ­atuar,
isso deve-se fundamentalmente à sua ligação próxima com a ficção. A ficção «não é
a criação de um mundo imaginário oposto ao mundo real»14, mas antes a oportuni­
dade de extravasar os limites e imaginar novas possibilidades para o real, sem imputar-­
-lhe ­consequências diretas nesse processo. Desse modo, permite, tal como a narrativa,
­explorar as condições da realidade de forma referencial e representativa, em metáforas
e (re)configurações que multiplicam as suas verdades e direções. Os mundos possíveis
e impossíveis da ficção propõem variações do real que nos permitem imaginar novos
­caminhos e soluções para questões da existência humana e para muitas das suas angús‑
tias e ambições. Ao fazê-lo de forma descomprometida, referencial e simbólica, conse‑
guem abordar a realidade e os seus factos com menor tensão psicológica15. Ao simu­
larem histórias que referenciam com verosimilhança e plausibilidade o real, instauram
as forças autenticadoras e credíveis que fazem a ponte entre a consciência do ficcional e
a crença (ou suspensão voluntária da incredulidade) no mundo não-real exibido.
Esta incorporação da ficção não é própria do cinema (a literatura, por exemplo,
também o permite), mas é na sétima arte (ou através da imagem e do som) que a ficção
ganha uma força incomparável na forma como se mostra ou revela. O cinema, «mais do
que um simples meio de registo de um pedaço bruto de realidade, é um meio de expres­
são que renova as formas mediante o trabalho com os materiais que oferece a p ­ rópria
realidade» . Referenciando esses materiais de forma direta ou metafórica, o ­cinema
16

constitui um veículo importante para a expressão narrativa, pela seleção de t­empos e


momentos históricos. A sua estruturação pelo processo de montagem cria relações entre
os diferentes fragmentos (planos e cenas) e, com isso, propõe ou potencia significados
para as imagens, sons e sequências. A fragmentação e condensação do tempo da ação
narrativa corresponde a essa função do cinema de «substituir a vida real como a vemos e
percebemos», dando origem a «uma vida mais intensa e sobretudo mais densa»17.

12
GREEN, STRANGE & BROCK, 2002.
13
GARCÍA GARCÍA, 2011: 16.
14
RANCIÈRE, 2010: 97.
15
SCHAEFFER, 2002: 308-309.
16
QUINTANA, 2003: 59.
17
MITRY, 2002: 475.

339
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

No que concerne à ficção, o cinema apresenta e atualiza o não-existente pelas


i­ magens e sons, acarretando a aproximação a aspetos invisíveis ou não-concretizados da
realidade. Permite conhecer ou reconhecer o real sob novos moldes e formas, e­ xibindo
o microscópico, o impercetível, o inexistente e o imaginado como matérias de expressão
referenciada da realidade. Tal como o documentário, constrói uma perspetiva a­ utoral
sobre o real, desenvolvida a partir da seleção dos enquadramentos (o campo e o fora de
campo, visuais e sonoros, como decisões subjetivas, mas significativas) e de uma ­relação
com a expressão cultural, social, ideológica e política. Ou seja, o cinema i­ mpõe-se ­sempre
como participante de um diálogo entre o individual e o coletivo, onde as decisões comu‑
nicativas surgem como reflexo de perspetivas e escolhas específicas de um espaço e de
um tempo. No entanto, abrem-se para diferentes oportunidades e direções de receção
e experimentação, que denotam o caráter aberto da obra fílmica e a relevância ativa do
espectador para a construção dos seus significados e impactos.

DO CINEMA À REALIDADE: MODOS DE RECEÇÃO


O cinema instaura uma espécie de jogo ou desafio, proposto por determinado
­autor e direcionado e recebido por (in)determinados espectadores. O filme constitui
uma i­ntenção autoral, fechada na sua materialidade, mas que autoriza um «ato de liber­
dade de procura de sentido (…) porque para o recetor o texto [fílmico] é um campo
de escolhas, orientadas pela ação do autor»18. Ao espectador solicita-se «atar os fios da
­trama» como tarefa fundamental19, aproveitando a abertura deixada pelo filme para a
sua ação subjetiva e particular de perceção, compreensão e interpretação da obra. ­Apesar
de potencialmente imóvel durante a experiência fílmica, o espectador contrapõe à passi‑
vidade física a atividade mental de leitura e deciframento do conteúdo cinematográfico.
A partir da teoria de Hans-Robert Jauss20, podemos considerar três leituras do espec‑
tador durante o processo de receção da obra. Em primeiro lugar, a leitura da imagem
imediata, percebendo as formas sensoriais (visuais e sonoras) que apresentam o ­mundo
fílmico em cada momento singular. Em segundo lugar, a leitura dessa mesma imagem
no c­ontexto das imagens que a antecederam (leitura retrospetiva) e daquelas que a
­podem suceder (leitura antecipatória). Em terceiro lugar, a leitura do conjunto global
das imagens (o filme) no término da sua experimentação, determinando um ­conjunto
de significados globais que excedem a mera soma das leituras parciais.
Estes processos de perceção, compreensão e interpretação naturalmente requerem
e integram o contexto vital do espectador. A sua história de vida, as suas expectativas,
as suas ideologias e as suas perspetivas vitais (passadas, presentes ou futuras) não têm
forma de se afastar do modo pelo qual compreende o que se passa à sua volta. E um filme
18
GARCÍA GARCÍA, 2011: 29.
19
CASETTI, 1989: 26.
20
JAUSS, 1982.

340
MODOS DE EXPRESSÃO E RECEÇÃO SIGNIFICANTES NO CINEMA

não é exceção. De facto, «a nossa experiência cinematográfica é sempre pessoal, uma vez
que nela influem recordações, vivências e experiências únicas que configuram a nossa
consciência»21. E é precisamente a partir do que coloca de profunda e intrinseca­mente
seu no filme que o espectador permite a imersão catártica, projetiva e identifi­cativa no
universo narrativo. Pela escuridão do contexto, pela perda dos referentes ­sensoriais da
sua situação real, bem como pelo fascínio exercido pelas imagens e sons que condu­
zem a sua atenção pela narrativa, o recetor fílmico mergulha na história e nos seus
interve­nientes para mais fortemente relacionar-se com eles. Por um lado, envolvendo-se
­cognitiva e emocionalmente com os elementos narrativos que conduzem aquilo que o
­espectador é para dentro daquilo que o filme oferece (projeção de desejos, frustrações,
medos, ambições, etc., no filme). Por outro lado, retirando do filme exemplos e refe­rên­
cias para aquilo que pensa, sente e faz. Assim, se a projeção oferece o filme como campo
para enfrentar aspetos intrínsecos à vida e situação vital do recetor, a identificação signi­
fica a emersão de oportunidades de aprender com o filme e de dele aproveitarmos infor­
mações para renovarmos os nossos modos de ser, pensar e agir.
No entanto, no final do filme, a luz acende-se e o espectador desperta do seu «­ sonho
consciente», regressando à realidade. Transformado? Quase sempre, sim. E em ­pequenas
doses, é certo. Mas o filme oferece sempre informações — cognitivas, empí­ricas e/ou
emocionais — que o espectador enquadra, consciente ou inconsciente­mente, na sua
identidade individual e social. A qualidade desta intervenção do filme nos rece­tores está
diretamente relacionada com o tipo de identificação e empatia por eles desenvol­vido,
condições decisivas para o impacto de determinada narrativa nas personalidades do
seu público. O filme constitui sempre a transmissão de uma experiência, composta por
ações, personagens e contextos com os quais o espectador pode relacionar-se. Avaliar os
caminhos narrativos e ficcionais significa também perceber os caminhos da nossa defi‑
nição pessoal e coletiva, pelo que o cinema potencia aproximarmo-nos da nossa própria
visão do mundo.
Por tudo isto, o potencial de aprendizagem do cinema é inegável e incontornável.
As narrativas ficcionais e fílmicas são expressão, por parte de um autor ou conjunto de
autores, de histórias que se adequam ao passado, presente ou futuro das ­sociedades onde
são produzidas ou a que se referem. Servem de testemunho e reflexão sobre a época
contemplada pela ação ou pelo contexto de produção, bem como sobre as temáticas
que fazem parte das angústias ou ambições de determinado ambiente cultural, político,
­económico ou histórico. Ainda que estas narrativas se estabeleçam dentro de ­universos
criados enquanto alternativa à realidade, têm sempre origem no real, guardando e
referen­ciando as suas marcas através da verosimilhança e plausibilidade dos eventos
fictícios comparativamente com os aspetos reais. Assim, são um instrumento útil no

21
TRIPERO, 2011: 39.

341
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

momento de indagar os contextos efetivos do nosso mundo e imaginar as soluções ou


alternativas de compreensão e atuação sobre o mesmo.
Por outro lado, o potencial descrito de aprendizagem através do cinema faz s­ entido
apenas quando contextualizado na polissemia e na grande variedade de expressões e
­leituras permitidas. Os filmes encerram uma considerável discrepância de temáticas
e abordagens narrativas, estéticas ou, até, políticas. Constroem e propõem ­diferentes
­trajetos e ferramentas de abordagem e interpretação do real. Assim, a procura de
­modelos universais de exploração didática ou imersão cognitiva nos filmes tendem a
perder ­relevância e eficácia, devendo adaptar-se sempre ao público definido e deixar
margem para que este possa construir o seu próprio percurso de leitura, interpretação e
assimilação crítica dos elementos do filme. Interpretações múltiplas revelam um maior
número de significados potenciais ou implícitos. Diferentes pontos de vista trazem
­consigo vias de acesso a uma maior quantidade e qualidade de interpretações e impres‑
sões. Assim, p
­ otenciar a polissemia fílmica em âmbitos didáticos significa caminharmos
no sentido do Outro, do distante e do desconhecido. Contempla indagarmos opções
que escapam dos nossos limites pessoais, alargando horizontes pessoais e coletivos. No
fundo, contribui para uma saudável pertença e conexão com os seres e ambientes que
nos rodeiam22.

MODO DE FAZER MUNDOS: A SIGNIFICÂNCIA DO CINEMA


PARA A REALIDADE
A partir da relevância do cinema para a construção e desconstrução de modelos
e esquemas de conhecimento sobre a realidade, compreende-se então a sua relevância
e importância para trabalhar competências e conteúdos de acesso ao que define quem
somos e o mundo em que vivemos. Enquanto matéria artística e metodologia reflexivo-­
-criativa, constitui um dispositivo de forte impacto sensorial, imaginativo e narra­tivo,
que participa decisivamente na emersão e manutenção de imaginários individuais
e coletivos.
Olhando para este trajeto que vai da definição da proposta fílmica às m­ últiplas
­possibilidades de receção (não-formal ou formal), identificam-se um conjunto de
­processos que, inexoravelmente, constituem as verdadeiras etapas do que poderia
considerar-se este «modo de fazer/receber mundos» que é o cinema. Além de, no seu

22
Um estudo — ALVES, 2015 — comprovou esta tendência para a aprendizagem não-formal do cinema: cerca de 75%
de 854 participantes num questionário (procedentes de Portugal e Espanha) reconheceram algum tipo de aprendi­
zagem a partir dos filmes habitualmente experimentados. Permitiu também identificar e compreender algumas tipo‑
logias inerentes a esta aprendizagem, que podem ir de âmbitos cognitivos (ideias, teorias, conhecimentos, reflexões) a
espectros emocionais (empatia, esperança, sonho, valores, ideais) ou comportamentais (posturas, comportamentos,
ações, perseverança). Assim, justifica-se o facto de um considerável número de projetos nacionais e internacionais
redirecionarem esta relevância didática do cinema para um âmbito formal, através de estratégias e projetos que v­ isam
ensinar «o cinema», «pelo cinema» ou «com o cinema» (BERGALA, 2007), dentro e fora dos contextos escolares.

342
MODOS DE EXPRESSÃO E RECEÇÃO SIGNIFICANTES NO CINEMA

c­ onjunto, inspirarem uma possível metodologia de trabalho artístico (ou exploração


científica) sobre determinado problema ou assunto, esclarecem esse percurso progres‑
sivo que vai da construção de um discurso até à sua disseminação por diferentes inter‑
pretações e formas de receção. Assim, este esquema contempla as seguintes operações:
• Seleção: filtragem da realidade e escolha de elementos narrativos a tratar (tema);
• Estruturação: ordenação dos elementos narrativos num universo e trajeto (narra‑
tivo) circunscrito;
• Densificação: filtragem dos momentos e eventos narrativos importantes para o
tema e para a estrutura definidos;
• Amplificação: referenciação e interpelação da realidade, amplificando os elemen‑
tos abordados de acordo com a sua intensificação pela narrativa;
• Ampliação: oportunidade de explorar a realidade de acordo com novos cami‑
nhos, novas direções e novas configurações;
• Significação: oportunidade para a construção de novos significados sobre o real,
pelo deslocamento fílmico e através da configuração autoral dos elementos
­narrativos;
• Expressão: configurações visuais, sonoras, verbais, espaciais e temporais (origi‑
nais e significantes) para os elementos narrativos selecionados;
• Materialização: concretização do filme, enquanto proposta fechada na sua mate‑
rialidade, mas aberta para várias (e polissémicas) formas de receção;
• Experimentação: processo de receção do filme, nas várias leituras autorizadas e
influenciado pelo contexto (espacial e vital) de visionamento;
• Interpretação: processo de implicação do espectador no filme, recodificando o
que vê de acordo com características individuais e coletivas que o definem;
• Implicação: projeção, identificação, catarse, emoção: o espectador implica-se no
filme e tem participação ativa no mesmo;
• Amplificação: filme permite amplificar necessidades do indivíduo, resolvendo
ou encaminhando soluções para vários aspetos do ser (novas ideias e reflexões,
­desafios emocionais, incremento da sua bagagem empírica).

Em cada final de trajeto, há sempre a possibilidade (e probabilidade) de um


r­einício deste esquema processual. Neste ciclo de relações entre produção e receção
cinema­tográficas, autores e espectadores vão redefinindo-se pelas propostas e caminhos
anteriormente trilhados, o que condicionará, naturalmente, o retorno às mesmas opera­
ções. O cinema instaura, deste modo, as noções de experiência e de memória como
elementos fundamentais para o desenvolvimento dos entendimentos cognitivos e para
o ­alcance das capacidades afetivas por ele proporcionadas. Em cada ciclo, pela expressão
ou experiência, novas conquistas, novos desafios e novos resultados vão aumentando
em número e densificando em qualidade.

343
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

CONCLUSÃO
A análise dos modos de fazer e receber mundos, dentro e a partir do cinema,
­permite clarificação e consciência face à significância que os filmes encerram para
­explorar, criativa e/ou criticamente, as condições da existência e da atuação humanas
sobre a realidade. O cinema abraça a participação ativa da arte, da narrativa, da ficção
e dos sentidos audiovisuais no desenho de versões problematizantes e desafiantes dos
amplos significados do ser humano e da realidade. Estabelece um campo aberto e labi‑
ríntico para a cognição, emoção e experiência humanas, onde, perdendo-nos, acabamos
sempre por nos encontrar novamente e com novidade.
Todos os filmes constituem fenómenos empíricos, cognitivos e emocionais ampla­
mente marcantes para as cosmovisões, biografias e identidades de quem os desenha e
de quem os interpreta. Afetam os modos de ver o mundo e os comportamentos nele
­adotados. Permitem uma aproximação (expressada ou experimentada) ao nosso interior
idiossincrático, bem como às idiossincrasias de outros seres e contextos que compõem
a nossa realidade. Assim, os mundos do cinema impõem-se como parte integrante da
cultura, das sociedades e dos indivíduos, sendo participantes relevantes e significantes
no contexto das discussões privadas e públicas sobre o lugar do indivíduo e os lugares
do mundo. No trajeto proporcionado por cineastas e acolhido por espectadores, gera-se
não apenas um diálogo entre os polos autoral e espectatorial, mas um confronto profícuo
entre diferentes formas de ver, sentir e pensar. Anima-se o debate entre subjetividades
e sentidos partilhados, entre materialidades e metafísicas, entre estéticas e ideologias,
entre presentes e futuros.

BIBLIOGRAFIA
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GREEN, Melanie C.; STRANGE, Jeffrey J.; BROCK, Timothy C., eds. (2002) — Narrative Impact: Social and
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344
MODOS DE EXPRESSÃO E RECEÇÃO SIGNIFICANTES NO CINEMA

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345
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

346
«NÓS NÃO ESTAMOS ALGURES»
(ERNESTO DE SOUSA/JORGE PEIXINHO):
UM EXERCÍCIO DE RE-INTERPRETAÇÃO
ANA TERESA CANCELA PIRES*

Resumo: Com este artigo pretende-se elaborar uma reflexão sobre a re-interpretação de obras de arte de
­natureza efémera, que combinam variadas formas de expressão artística (literatura, música, arquite­tura,
­vídeo, pintura, escultura), através da apresentação de uma parte do trabalho de pesquisa realizado no
­âmbito do Doutoramento em curso (Artes Sonoras na Performance Art em Portugal: práticas, sinergias e
arquivo). Assim, é no campo da transdisciplinaridade artística que entendemos este projeto na medida em
que exige um trabalho que se debruce pelos aspetos visuais, audiovisuais, sonoros e literários da obra de
arte. Trata-se de um exercício prático de investigação, que tem por objetivo a reconstituição do espetáculo
mixed-media «Nós não estamos algures» da autoria de Ernesto Sousa com direção e composição musical
de Jorge Peixinho.
Palavras-chave: performance; documentação; reinterpretação; preservação; intangível.

Abstract: This article intends to be a critical reflection about the re-enactment and preservation practice of
ephemeral works of art, that combines several artistic expression forms (like literature, music, architecture,
video, painting, sculpture) through the presentation of part of the research work carried out under the PhD
in progress (Sound Arts in Performance Art in Portugal). This is a practical exercise of research, which aims
to reconstitute the mixed-media spectacle «Nós não estamos algures».
Keywords: performance; documentation: reenactment; preservation; intangible.

* Faculdade de Letras Universidade do Porto/Bolseira de Investigação CITCEM, FCT. Email: anacancela@me.com.

347
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Apresentado em 1969 no Clube 1.º Acto em Algés, «Nós não estamos algures»
r­epresenta o primeiro espetáculo mixed-media português. Conjuga elementos perfor­
mativos e cenográficos partindo da exploração de excertos de poemas de Almada
­Negreiros, Mário Cesariny, Herberto Helder, Luiza Neto Jorge (interpretados em 1969
por António Borga, João Luís Gomes, Madalena Pestana e Pena Viçoso), através dos
mais diversos tratamentos sonoros, acontecimentos musicais (gravados, com p ­ ossível
intervenção ao vivo de músicos), teatrais, projeções simultâneas de filme (preto e ­branco,
e cor; sem som de Ernesto de Sousa e Carlos Gentil-Homem, de 1968) e de diaposi­
tivos (preto e branco, e cor de Ernesto de Sousa e Carlos Gentil-Homem) e apresen­
tações de material gráfico impresso (posters e autocolantes de Fernando Calhau e Carlos
Gentil-Homem).
Salientou-se a participação de artistas oriundos de áreas diversas como ­Jorge
­Peixinho, responsável pela direção musical, Helena Cláudio (canto), Clotilde Rosa
­(harpa) e António de Oliveira e Silva (viola de arco) — músicos que em 1970 integra­riam
o Grupo de Música Contemporânea de Lisboa fundado por Jorge Peixinho — F ­ ernando
Calhau autor do design gráfico e iluminação e Carlos Gentil Homem reali­zador dos
filmes em conjunto com Ernesto de Sousa. A apresentação do espetáculo contou com o
apoio técnico e participação de sócios do Clube de Teatro 1.º Acto (Francisco Madeira
Luís, José Luís Madeira e José Torres) e de membros da Oficina Experimental (­ Carlos
Gentil-Homem, Filomena Fernandes, Isabel Alves, Manuel Torres, Maria Manuel
­Torres, Marilyn Reynolds, Peter Rubin e Teresa Pacheco Pereira).
«Nós não estamos algures» divide-se em três partes com as seguintes denomi‑
nações: tempo I – «Não falemos sem alicerces», II – «Barricada» e III – «Difícil falar
de amor». Em cada uma delas inclui a interpretação a solo dos excertos dos poemas
selecionados em contraponto com as intervenções do coro (falas em uníssono). Cada
uma das partes termina com um momento de improvisação musical e de diálogo com
o publico. No guião pode-se ler o seguinte: «os atores vão ter com o público… Expli­
cação (queremos destruir a noção formal do espetáculo, criar um novo ritual, um ritual
de participação)»1.
Deste modo, esta obra é constituída por uma componente de performance ­teatral,
e musical (música improvisada e/ou música gravada em fita magnética) e uma compo‑
nente visual (projeção de filmes, negativos/diapositivos, instalação de cartazes, cortina
— tiras de plástico transparente), configurando uma criação que conjuga várias disci­
plinas artísticas como a música, a performance, as artes plásticas e o cinema. ­Salienta-se
o carácter experimental do espetáculo, que embora seguindo uma estrutura fixa pré-­
-deter­minada, prevê simultaneamente situações aleatórias que podem derivar dos
­artistas assim como do público.

1
SOUSA, 1969b, BNP – Espólio Ernesto de Sousa.

348
«NÓS NÃO ESTAMOS ALGURES» (ERNESTO DE SOUSA/JORGE PEIXINHO): UM EXERCÍCIO DE RE-INTERPRETAÇÃO

Tal como recorda Isabel Alves (viúva de Ernesto de Sousa) «todo o trabalho foi
feito em conjunto: as soluções que encontrávamos para fazer os cartazes, para os depen‑
durar no teto, com as letras pintadas por nós…»2.
Na estreia de «Nós não estamos algures» (1969), o público foi convidado a intervir,
através de improvisações coletivas dirigidas por Jorge Peixinho.
A apresentação de «Nós não estamos algures» questionou a produção teatral
­contemporânea, assumindo-se como um espaço laboratório de criação e experimen‑
tação, onde se operou o cruzamento de várias linguagens artísticas não subjugadas ao
texto dramático, liberto do tradicional sistema de hierarquias. Diluindo fronteiras entre
performance, teatro, artes plásticas, música e cinema, salienta-se que esta obra não só
inaugura a exploração multimédia transdisciplinar, no contexto da arte contemporânea
portuguesa, como representa o início da parceria Ernesto de Sousa e Jorge Peixinho que
se prolongaria pela década de 1970 dando origem à realização de mais duas obras funda‑
mentais: «Almada um Nome de Guerra» (1969-1972) e «Luis Vaz 73» (1975):

O «Exercício de Comunicação Poética — Nós Não Estamos Algures» não é um


todo acabado e fechado, mas cada coisa, ao funcionar por si, tem um valor significa-
tivo estimulante. Trabalho «final» aberto, logo processo, e o processo que nos ­conduziu
ao «exercício» devia ser já fim em si próprio. É privilegiada a comunicação com o
público, mais do que a sua participação. A música de Jorge Peixinho funciona como
qualquer coisa que, embora respondendo a um determinado estímulo que é comum,
se integra independentemente3.

A preservação de obras de arte transdisciplinares de natureza efémera, constitui


uma fonte inesgotável de reflexão conceptual. Os problemas que coloca, têm susci­tado
questões que se prendem sobretudo com a legitimidade da conservação docu­mental,
a validade da reinterpretação4 deste património e inevitavelmente com os problemas
gerados em torno da autenticidade da obra de arte. Procura-se então apurar, se a reinter­
pretação vista como um ato criativo, pode atuar como uma ferramenta de preser­vação
da obra de arte e como as noções de autenticidade e autoria poderão ou não aqui
ser questionadas.
Para clarificarmos um pouco melhor a pertinência destes aspetos, vale a pena
­revermos aqui, considerações teóricas que têm sido produzidas atualmente e que se
debruçam essencialmente sobre os conceitos de artista/performer, público, momento
presente e presença.

2
ANDRADE, 2012.
3
SOUSA, 1969a, BNP – Espólio Ernesto de Sousa.
4
O termo «re-interpretação» é utilizado nesta investigação para referir a reconstrução de obras de arte com compo‑
nentes performativas realizadas após a primeira apresentação.

349
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Peggy Phelan, autora da teoria mais radical, defende que a existência destas obras
se limita ao momento presente da sua apresentação, na medida em que uma posterior
reprodução origina uma obra completamente distinta da primeira. Phelan considera
ainda que a reprodução de obras de performance, através de formas mediadas (docu‑
mentação), apenas traduz retrospetivamente uma leitura da apresentação do evento
­original, em total dependência da interpretação de quem a realiza. Por outras palavras,
a autora defende que o ato performativo está intimamente ligado à dimensão do presente
e da presença e que qualquer tentativa de o preservar ou reproduzir é por si só imper‑
feita ou deficiente: «(…) a performance art ocorre ao longo de um tempo que não será
repetido. Pode ser executada de novo, mas essa repetição em si marca-a como diferente.
O documento de uma performance é, então, apenas um estímulo para a memória, um
encorajamento da memória para se tornar presente»5.
Neste sentido, ao considerar que qualquer reprodução de um ato performativo
é necessariamente distinta do original, Phelan está de um certo modo a relacionar a
­teoria que preconiza, com a definição do conceito de reinterpretação propriamente dito.
Por outras palavras, para Phelan, tendo em conta a impossibilidade de repetir exata‑
mente o que já aconteceu, a replicação de um ato performativo é em si mesma um ato
de reinterpretação.
Neste sentido, o conceito de reinterpretação, sugere, que a reprodução de obras
de performance constitui um ato criativo único e irrepetível, isto é, a reinterpretação do
evento original. Assim, a reinterpretação corresponde ao processo a partir do qual se
procura entender o processo criativo do evento original, que fica agora sujeito a novas
leituras, experiências e contextos. O processo de reinterpretação, é uma criação artís­tica,
que ao invés de pretender reproduzir a obra de arte do passado no presente, ­implica
um processo criativo num novo contexto. Como referiu Georges Didi-Hüberman, «as
obras de arte não têm apenas uma vida. Elas têm a vida que elas mesmo criam, mas
também muitas outras depois disso. (…) Para entender as obras de arte, não devemos
apenas pensar nelas no contexto do domínio artístico, mas também incluir os seus
significados contemporâneos»6.
Este processo envolve, uma reflexão sobre a relação que se estabelece entre a docu‑
mentação associada à performance, (que pode incluir desde inventários de materiais e
especificações técnicas a entrevistas a artistas) e a sua reinterpretação.
De acordo com Philip Auslander, a documentação pode em alguns casos consti­
tuir a própria obra de performance. Como o próprio refere: «a documentação não
gera simplesmente imagens/afirmações que descrevem uma performance autónoma
e ­comprovam o que ocorreu: elas produzem um evento como uma performance»7.
5
PHELAN, 2003: 148.
6
HÜBERMAN, 2016: 120.
7
AUSLANDER, 2006: 5.

350
«NÓS NÃO ESTAMOS ALGURES» (ERNESTO DE SOUSA/JORGE PEIXINHO): UM EXERCÍCIO DE RE-INTERPRETAÇÃO

­ uslander ­identifica duas categorias de documentação — a documental, que ­comprova


A
que ocorreu uma ­performance e a teatral, uma forma de fotografia performativa que
­representa a ence­nação de uma obra de performance concebida apenas para ser foto­
grafada, isto é, as obras que nunca aconteceram na forma como são retratadas —
­performances que e­ xistem unicamente como obras de mediação como o caso de Le Saut
dans le Vide (1960) de Yves Klein, em que a performance acontece unicamente através
da fotografia. Por sua vez, Rebecca Schneider8 sugere que o arquivo, onde as obras de
performance persistem no tempo, deve ser considerado como um lugar performativo.
Schneider considera que a performance é em si mesma uma forma de documentação,
uma vez que é através dela que a prática artística é transmitida.
É neste contexto, que podemos enquadrar teoricamente a metodologia empre‑
gue no processo de reinterpretação de «Nós não estamos algures», que tem como fase
principal a documentação como processo de recolha e de organização das informações
­existentes sobre a obra, não só o conteúdo mas também o contexto em que se enquadra.
Porém, tal como o trabalho artístico que se está a analisar, a metodologia deli­
neada para uma possível reinterpretação de «Nós não estamos algures», encontra-se em
perma­nente atualização e todo o processo depende da viabilidade da documentação,
que impõem uma análise razoável sobre a sua importância no resultado final da investi‑
gação. Com efeito, este processo promove uma proximidade intelectual, que dá à própria
investigação uma plasticidade particular coincidente com o conceito do próprio objeto
de estudo — um work in progress.
A nossa investigação partiu de uma pesquisa arqueológica de fontes primárias,
para que a partir dos documentos (textuais e visuais, testemunhos, entre outros) se possa
construir a re-interpretação da obra, com todas as dificuldades que daí possam suceder,
nomeadamente a sua realização no contexto atual utilizando meios atuais.
Em termos metodológicos, esta investigação desenvolveu-se através de duas fases
de trabalho fundamentais: na 1.ª fase da investigação procurou-se sinalizar a documen‑
tação existente, identificando as linhas conceptuais que se relacionam com as noções
de autoria, identificar e compreender várias tipologias de documentação de modo a
­garantir a autenticidade do registo e conservação da obra, analisar documentos publi‑
cados e eventualmente não publicados sobre a obra, elaborar entrevistas que apoiem a
análise da documentação pré-existente e por fim a análise e interpretação da recolha.
Na 2.ª fase da investigação, procurou-se apurar a viabilidade de reinterpretação,
através da análise anterior e por fim refletir sobre propostas de preservação.

8
SCHNEIDER, 2011: 100-101.

351
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Figura 1. Metodologia do exercício de re-interpretação.

A conservação de obras de arte como «Nós não estamos algures» que congrega
elementos materiais e imateriais, implica a exploração de metodologias que permitam
a sua compreensão, focando a intenção dos artistas de forma a que a obra perdure no
tempo9. Com efeito, a partir do momento em que a obra de arte conjuga as d ­ imensões
espacial, temporal e performativa, as técnicas de conservação deixam de se centrar
­exclusivamente no aspeto material, passando a refletir sobre as formas de preservação
da imaterialidade da obra arte.
Deste modo, através da análise cruzada dos elementos materiais e imateriais da
obra, tornou-se possível identificar a documentação produzida juntamente com a obra.
A sua leitura conduziu, por um lado, à conservação e atualização dos meios tecnológicos
que as suportam e por outro, à identificação da documentação que acompanha a obra.
Assinalaram-se algumas dificuldades acrescidas neste processo, principalmente pela
­obsolescência dos suportes tecnológicos — fita magnética, filmes Super 8 e diapositivos
e negativos analógicos. Alguns deles já se encontram em suporte digital como os filmes
Super 8 e alguns dos diapositivos e negativos que integram a obra.

Figura 2. Diagrama de sistematização características tangíveis/intangíveis e documentação.

9
LAURENSON, 2006: s/p.

352
«NÓS NÃO ESTAMOS ALGURES» (ERNESTO DE SOUSA/JORGE PEIXINHO): UM EXERCÍCIO DE RE-INTERPRETAÇÃO

Por outro lado, tendo em conta a impossibilidade de entrevistar os artistas Ernesto


de Sousa e Jorge Peixinho, a interpretação destas características obrigou a um trabalho
de pesquisa sobre todos os documentos que terão sido produzidos sobre a obra, desde
textos publicados, textos inéditos, registos fotográficos, sonoros e fílmicos à recolha de
testemunhos, de modo a apoiar e a clarificar a sua leitura.
Salienta-se que pelo facto de se reconhecer dois autores (Ernesto de Sousa e Jorge
Peixinho), o processo de identificação e localização da documentação existente revestiu-­
-se de alguns constrangimentos. A documentação de «Nós Não Estamos Algures»
­encontra-se dispersa por várias instituições — Biblioteca Nacional (Espólio Ernesto de
Sousa) e Arquivo Municipal do Montijo (Espólio Jorge Peixinho) e em espólios particu‑
lares — Isabel Alves e Jorge Sá Machado (fieis depositários das obras de Ernesto de Sousa
e Jorge Peixinho respetivamente). Embora reconhecendo o esforço por parte das famí‑
lias dos artistas em manter os documentos em boas condições, os espólios particulares
por vezes carecem de uma organização e catalogação clara, assim como de condições
técnicas especializadas que impeçam a deterioração física dos materiais.
No conjunto dos elementos imateriais da obra, a análise da documentação relacio‑
nada com a performance teatral e a performance musical reveste este exercício de reinter‑
pretação de um maior grau de dificuldade. Com efeito, estas dependem exclusivamente
da leitura e interpretação dos guiões e de outros textos que os artistas possam ter escrito
sobre a obra.
No que diz respeito à documentação relativa à performance teatral, existem q ­ uatro
versões do guião de Ernesto de Sousa, excertos dos textos dispostos pela ordem da
­performance (datilografados) e apontamentos de encenação (manuscritos).
A compreensão destes documentos, revelou-se bastante complexa e insuficiente,
implicando uma leitura cruzada com os registos fotográficos, sonoros e fílmicos reali­
zados na época, que se reportam a momentos dos ensaios e da estreia da obra. Estes
­registos, ao permitirem visualizar parte do envolvimento geral do espaço cénico e
­plateia, são de extrema importância para completar, nalguns casos, a insuficiência da
informação dos guiões.
Contudo, é relevante salientar que embora este conjunto de registos documentais
partilhem o contexto temporal da realização do evento original, são apenas indicações
que fornecem uma informação parcial e fragmentada da obra de arte.

353
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Figuras 3 e 4. Preparação dos envolvimentos no Clube 1.º Acto.

Tal como refere Anne Bénichou10 a propósito dos vários livros de artista de Allan
Kaprow (Days off. A Calendar of Happenings), a documentação assume aqui uma dupla
posição em relação à obra: ao mesmo tempo que constitui uma prova documental da sua
existência, permite reviver o evento original do passado. Por outro lado, a sua reinter­
pretação atua como um mecanismo operativo, que restabelece a memória do evento
original da obra de performance e promove a construção de sucessivos significados ao
longo do tempo.
Nesta linha de raciocínio Rebecca Schneider refere-se à reinterpretação não só como
uma forma de recuperação do ato performativo em si mesmo, mas também como um
mecanismo que possibilita a reflexão critica e histórica sobre a obra de arte em questão11.
No caso de «Nós não estamos algures», a análise da documentação pré-existente,
deve ser complementada com a documentação produzida no presente, fontes secun‑
dárias como: documentos publicados/inéditos e reunião de testemunhos de forma a
­auxiliar a contextualização e garantir a autenticidade da obra de arte. Neste sentido, foi
particularmente relevante, a entrevista a Isabel Alves, proprietária dos diapositivos, e
negativos. A partir do seu testemunho tem sido possível recuperar algumas memórias
essenciais para a compreensão da documentação disponível.
Relativamente à performance musical, Isabel Alves recorda que «o som foi ­gravado
para ser passado nas sessões a seguir à estreia, porque só naquele dia houve música
ao ­vivo»12. Registamos a existência de uma gravação que corresponde à performance
­musical realizada na época, registos fotográficos e fílmicos de excertos da estreia, ­textos
não publicados de Jorge Peixinho13 (depositados na Biblioteca Nacional — Espólio
­Ernesto de Sousa) onde o compositor faz referência à reprodução de música gravada por
músicos profissionais e a execução de acontecimentos musicais improvisados em tempo

10
BÉNICHOU, 2013: 181.
11
SCHNEIDER, 2011: 7.
12
Isabel Alves, mensagem pessoal, Outubro 2018.
13
PEIXINHO, 1969, BNP – Espólio Ernesto de Sousa.

354
«NÓS NÃO ESTAMOS ALGURES» (ERNESTO DE SOUSA/JORGE PEIXINHO): UM EXERCÍCIO DE RE-INTERPRETAÇÃO

real pelos intervenientes e público. Da análise dos apontamentos de Ernesto de Sousa,


tudo indica que haveria a possibilidade de substituir a música gravada pela participação
de músicos em palco. Supõe-se que a gravação tenha sido utilizada na estreia da obra,
não por razões de ordem estética, mas sim pelas implicações logísticas que a presença
dos músicos implicaria na época.
Embora o compositor faça referência a instruções escritas de orientação à impro‑
visação14, desconhece-se a existência de registos documentais (partituras, diagramas de
improvisação) e indicações pré-determinadas de coordenação da performance musical
com os restantes elementos que fazem parte da obra. Por outro lado, no mesmo docu‑
mento, Peixinho refere que as múltiplas repetições dos ensaios promoveram um enten­
dimento e cumplicidade entre o compositor e os músicos, que tornou desnecessário
­registar as instruções. Neste sentido, a performance musical embora se possa assemelhar
a uma improvisação livre, foi bastante determinada pela intenção do compositor, trans‑
mitida pela gestualidade da sua direção.

Nós tínhamos, (…) um conhecimento, uma catalogação (…) na memória dos


efeitos possíveis em determinados instrumentos. (…) Eu próprio pude dar indica-
ções mais precisas (…) rigorosas… mesmo porque estávamos num estado psicológico
de grande intimidade, os mais pequenos gestos tinham um significado, e os músicos
­correspondiam exactamente15.

Assim, para a concretização da reinterpretação da obra, a análise da compo­nente


musical relaciona-se mais com o processo de execução musical do que propria­mente
com o registo textual inscrito numa partitura. Na ausência de instruções escritas, a
­gravação realizada na época pode garantir a autenticidade sonora da obra através de
uma dupla função: a do registo, possibilitando análise da performance musical e a
de fonte sonora, quando utilizada na apresentação da obra em substituição da perfor­
mance executada em tempo real. Contudo, este facto não deixa de originar alguns
constran­gimentos, tendo em conta que a utilização da gravação em substituição de uma
performance em tempo real, para além de condicionar a espontaneidade e imprevisibi­
lidade da execução das ­outras componentes performativas (teatral e visual) com as quais
deverá estabelecer ­interação, não reflete as relações estabelecidas entre os músicos, os
gestos ou os movimentos dos corpos que traduzem muitas das vezes a expressividade
da execução.

14
PEIXINHO, 1969, BNP – Espólio Ernesto de Sousa.
15
PEIXINHO, 1969, BNP – Espólio Ernesto de Sousa.

355
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Figuras 5 e 6. Jorge Peixinho dirige a improvisação musical em «Nós não estamos algures» (1969).
Imagens cedidas pelo Centro de Estudos Multidisciplinares Ernesto de Sousa (CEMES).

No que diz respeito à componente visual Isabel Alves recorda a presença de dois
projetores de filmes e dois projetores de slides que apresentaram em simultâneo os
dois filmes Happy People e Um Homem que corria pelo orvalho dentro e as sequências de
diapositivos e negativos16, os cartazes de dimensões variáveis com frases inscritas, colo‑
cados nas paredes da sala do 1.º Acto e a cortina feita de tiras de plástico transparente
através da qual o público tinha de passar para entrar na sala. Segundo os esclarecimentos
de Isabel Alves, nenhum destes materiais existe, com a exceção dos slides e dos filmes
já convertidos para formato digital. Por sua vez, a documentação que está associada a
esta componente, só contempla a seleção de frases que devem ser inscritas nos cartazes,
com referência aos locais onde devem ser colocados e às suas dimensões. Para a projeção
dos slides e dos filmes não existe nenhum guião, tendo estado a seleção e a escolha das
sequências a cargo dos dois projecionistas que participaram na estreia. Assim, a ausência
destas informações para futuras reinterpretações, implica a realização de novos mate‑
riais adaptados a um novo espaço e uma projeção sempre diferente da primeira. Neste
caso, a autenticidade da obra fica condicionada a decisões tomadas pelos intervenientes,
que passam a ter uma ação criativa que interfere na apresentação da obra.
Tendo em conta a natureza transdisciplinar da obra, importa considerar todas as
características visuais e sonoras, através do recurso a meios tecnológicos analógicos
da época, de modo a garantir um maior grau de semelhança, entre o evento original
­(estreia) e a sua reinterpretação. Na verdade, a efetiva preservação dos registos s­ onoros

16
Isabel Alves, comunicação pessoal, Outubro 2018.

356
«NÓS NÃO ESTAMOS ALGURES» (ERNESTO DE SOUSA/JORGE PEIXINHO): UM EXERCÍCIO DE RE-INTERPRETAÇÃO

e visuais obriga uma constante atualização dos suportes tecnológicos. Contudo, é perti­
nente questionar, se a substituição do equipamento original por uma tecnologia mais
­recente, poderá pôr em causa a autenticidade da produção dos sons e das imagens
­levando à perda do contexto histórico da obra.
O principal constrangimento que esta prática suscita, prende-se com a obsoles­
cência dos suportes tecnológicos. Muitos dos elementos visuais e sonoros de «Nós não
estamos algures» (slides, fita magnética, filmes Super 8) estão em fase de deterioração e ao
inviabilizar-se a digitalização, correm-se sérios riscos de se perderem irremediavelmente.
Para Gaby Wijers, a técnica de emulação poderá constituir uma estratégia possí­
vel de conservação. Neste caso, a emulação pode ser descrita como a forma de garan­
tir a ­aparência original dos elementos visuais e sonoros através de recursos tecno-
lógicos atuais17.
Cumprindo a última etapa do processo, conclui-se, que a documentação que
acompanha a obra não reflete com detalhe as intenções dos artistas e em alguns c­ asos
é mesmo inexistente. Esta análise permitiu constatar a inexistência de um guião que
contemple as instruções para a projeção dos slides18 e documentação que esclareça
­objetivamente quais as intenções de Jorge Peixinho para a performance musical.
Para ultrapassar esta lacuna documental, procuraram-se delinear algumas estra‑
tégias de modo a garantir a viabilidade da reinterpretação. Tratou-se de um trabalho
de análise que cruza, relaciona e contextualiza todos os vestígios documentais tanto da
performance teatral como da musical realizada no evento original.
Na verdade, esta obra nunca chegou a ser recriada por outros artistas, que não
aqueles que participaram diretamente na sua criação19, o que poderá levar a crer que a
produção de documentação com especificações que permitissem uma futura recriação,
não tenha sido uma verdadeira preocupação dos autores.
De acordo com Ernesto de Sousa, esta obra foi pensada como um exercício de
comunicação, um ensaio laboratorial que deu origem à criação de um projeto maior e
mais complexo — o mixed-media «Almada um Nome de Guerra» (1969-72)20. ­Segundo
Isabel Alves, estes dois mixed-media complementam-se e podem ser apresentados
em simultâneo.
Pela primeira vez em 2012, a Fundação Serralves promoveu a apresentação da
­reinterpretação que cruzou os dois mixed-media (dirigido por Jaime Reis e João Sousa
Cardoso), no âmbito da exposição documental que dá conta do processo da sua conceção.

17
WIJERS, 2011: 81.
18
Segundo os esclarecimentos de Isabel Alves, a escolha da sequência dos slides estaria a cargo dos dois projecionistas
que participaram na estreia.
19
Estreado em Dezembro de 1969, apenas contou com mais 5 apresentações.
20
SOUSA, 1978.

357
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Figura 7. Set da performance na Casa de Serralves (2012).


Centro de Estudos Multidisciplinares Ernesto de Sousa (CEMES).

Figura 8. Performance na inauguração na Casa de Serralves (2012).


Centro de Estudos Multidisciplinares Ernesto de Sousa (CEMES).

358
«NÓS NÃO ESTAMOS ALGURES» (ERNESTO DE SOUSA/JORGE PEIXINHO): UM EXERCÍCIO DE RE-INTERPRETAÇÃO

Através de uma adaptação dos guiões reuniu-se numa só apresentação e­ lementos


performativos, sonoros e visuais dos dois mixed-media. Deste modo, embora esta
apresen­tação não corresponda à recriação de «Nós não estamos algures» tal como foi
apresentado em 1969, assume uma importância fundamental na sua preservação. De
facto, esta foi a primeira vez em que se refletiu sobre a documentação existente para a
salvaguarda de alguns materiais21. Por outro lado, o trabalho de pesquisa levado a cabo
pelos autores desta reinterpretação produziu também documentação relevante para
­futuras apresentações.
Como foi já referido, as características especificas de «Nos não estamos algures»
requerem o desenvolvimento de novas estratégias de salvaguarda, para além da docu‑
mentação e armazenamento dos materiais como a reinterpretação e a emulação.
Neste sentido, é a convergência da documentação com a prática de reinterpretação
de «Nós não estamos algures» que poderá preservar a obra para as futuras gerações.
Porém, com a reinterpretação não se pretende reproduzir o evento original passado no
presente, mas sim uma nova criação que contribui para a construção da identidade da
obra sempre em atualização.

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21
SOUSA, 1978.

359
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

MELIN, Corinne (2015) — L’artiste reenactor, la performance historique et la documentation visuelle.


­Echappées Revue annuelle d’art et de design. [Em linha]. Disponível em <https://hal.archives-ou‑
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WIJERS, Gaby (2011) — To Emulate or Not. Conservation Case Studies from the Netherlands. Amsterdam:
Amsterdam University Press.

360
RESIDÊNCIA ARTÍSTICA COMO DESIGNER
NO SENEGAL. DESIGN CULTUR AL
RITA ALMEIDA FILIPE*

Resumo: O trabalho no âmbito do Design Cultural pretende fazer uma atualização formal e concetual
da cultura material atual ilustrando a diversidade e a pluralidade cultural que nos rodeia no quotidiano
doméstico cosmopolita contemporâneo. O trabalho de campo em Saint-Louis du Senegal aproximou-nos
de culturas tradicionais e vernaculares, onde procurámos estabelecer pontes de significados e promover
realidades partilhadas, numa visão do design como instrumento de tradução cultural, sustentabilidade e
coesão social.
Palavras-chave: design produto; globalização; colonialismo; cultura tradicional.

Abstract: The work in the field of Cultural Design intends to make a formal and conceptual update of
today’s material culture illustrating the diversity and cultural plurality that surrounds us in contemporary
cosmopolitan domestic everyday life. The field work in Saint-Louis du Senegal approached traditional and
vernacular cultures, where we tried to establish bridges of meanings and promote shared realities, in a vision
of design as an instrument of cultural translation, sustainability and social cohesion.
Keywords: product design; globalization; colonialism; traditional culture.

INTRODUÇÃO
Propõe-se com este projeto trabalhar com a cultura material existente e a diversi­
dade cultural que nos rodeia, como um facto, no âmbito do Design de Produto. Recu­
perar a beleza, o simbolismo e o significado cultural nos objetos de uso quotidiano.
­Prolongar o seu uso, refreando o consumo e a produção excessiva. Encontrar novos

* CIAUD, Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa. Email: rafilipe@fa.ulisboa.pt.

361
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

s­entidos na cultura tradicional, e traduzi-la para os interesses e práticas contempo­


râneas. Encontrar novas oportunidades para a cultura tradicional local.
O interesse em trabalhar com culturas tradicionais, não ocidentais ou vernacu‑
lares, prende-se também com o seu atual risco de extinção, causado pela globalização,
migração, alterações climáticas, ou conflitos locais. A cultura local está em risco. Não só
pelo proliferar das sociedades de consumo, mas também pela mobilidade constante, por
vezes forçada e sem retorno.
Este projeto constitui uma investigação e experimentação ativa sobre como contri‑
buir para abrandar este processo, num esforço real de partilha da cultura material local e
na sua tradução para as questões e práticas contemporâneas — numa perspetiva cosmo‑
polita — evitando novas narrativas generalizantes, ou um novo colonialismo.
Procura-se reunir conhecimentos, formas e técnicas locais que nos inspirem para
pensar-e-fazer design que espelhe a diversidade cultural em que vivemos — contra­
riando um estilo internacional, e as noções anteriores de funcionalismo — como instru­
mento imperialista de imposição de estilos de vida e de práticas instrumentalizadas.
Trabalhar com a cultura material existente, significa também refletir sobre o
­excesso de consumo, a globalização e a produção industrial de massas.
Uma solução será não enveredar pela procura da novidade constante — de que se
alimentam as sociedades de consumo — mas trabalhar com formas e técnicas da c­ ultura
local existente, transpondo-as para usos contemporâneos, a partilhar como instru­
mentos de difusão cultural, e quebrando o ciclo infinito do consumo e da substituição
compulsiva dos objetos. Procura-se assim reequacionar os pressupostos do design, no
que se refere ao valor cultural e à produção de significado, devolvendo valor intrínseco e
um uso mais duradouro aos objetos de uso quotidiano.

DESIGN E ANTROPOLOGIA
Os designers vêm necessidades e apropriações no uso que as pessoas fazem dos
­ bjetos, para a proposição de novos conceitos. E são dotados de uma capacidade de
o
­análise que integra simultaneamente a observação do consumo e o conhecimento da
produção. Desempenhando um papel crucial na produção de objetos culturais que
­resultam da participação ativa de todos e de cada um. Como autores que, embora não
se definindo como antropólogos, se movem nas fronteiras da antropologia, prati­cando
uma «etnografia espontânea»1. Associar o processo criativo e produtivo ao compor‑
tamento das pessoas constitui um significado em si mesmo. Assim a cultura material
­exprime-se como «uma ação e não uma ideia, uma prática e não uma proposição».
Assim, procura-se investigar como enquadrar a cultura material tradicional no
mundo atual, como a preservar, e como esta poderá traduzir valores em experiências

1
BRITO & LEAL, 1997: 15.

362
RESIDÊNCIA ARTÍSTICA COMO DESIGNER NO SENEGAL. DESIGN CULTUR AL

tangíveis entre as pessoas. Ao mesmo tempo evitar interpretações perigosas ou cono­


tações ideológicas do passado que possam surgir no trabalho com a cultura tradicional.
E nunca procurar aferir metodologias ou regras práticas de investigação passo-a-passo,
ou prever ou antecipar a vida das pessoas, tal como foi refutado por Anthony Dunne2.
Porque a vida e as práticas das pessoas nada têm de previsível, antecipável, lógico ou
matemático. Ao mesmo tempo que se faz o estudo de técnicas e materiais tradicionais
em risco de extinção, em prol do seu valor absoluto e com vista a novas aplicações,
igualmente sustentáveis e que carreguem herança e interesse cultural, numa perspetiva
semelhante ao «estilo baseado no conhecimento» de que nos falam Otto e Smith3.
Mas embora a antropologia se interesse pela mudança social e pela capacidade
de imaginação das pessoas para enquadrar o futuro, a sua ação é não-interventiva. Ao
invés, o papel dos designers é o de intervir ativamente no contexto sobre o qual o ­ peram.
­Portanto, quando ambas as disciplinas estão interligadas, a antropologia pode forne‑
cer instrumentos de análise cultural e o design pode oferecer ferramentas e p ­ ráticas
­integradas para colaborar ativamente com as pessoas na projeção dos seus futuros.
Assim, e simplificando, a antropologia produz conhecimento e o designer é treinado
para intervir.
E enquanto a observação etnográfica me dá instrumentos para observar as m ­ inhas
próprias práticas no meu «grupo de gosto», a antropologia proporciona-me agora a
­possibilidade de teorizar ou estabelecer categorias que estão inevitavelmente associadas
aos objetos, e que os designers não podem ignorar na abordagem contemporânea sobre
os artefactos de produção longínqua, sob o risco de caírem novamente no exotismo ou
na recriação de abordagens universalistas. Ou então caímos no risco de transformar
tudo em ícones pop, como produções «aparatosas» ou como apropriações menos respei‑
tadoras do vernacular por parte da cultura urbana.
No mesmo sentido Caroline Gatt e Tim Ingold4 argumentam que a «antropologia-
-através-da-etnografia» deve ser substituída pela «antropologia-através-do-design».
Vêm a etnografia como estando sobretudo interessada em descrições retrospetivas,
­enquanto a «antropologia-através-do-design» deve ser entendida como uma prática de
correspondência, em sintonia com o fluxo dos acontecimentos, avançando a par das
pessoas que seguem os seus sonhos, em vez de lidarem com acontecimentos que assim
que acabam de acontecer já pertencem ao passado.
Tal como neste projeto, esta correspondência faz-se mais sobre improvisação
do que sobre inovação, e mais sobre antevisão do que sobre predição. É um p ­ rocesso
­próprio da observação participada mas no momento do trabalho de campo proje­
tado para o futuro, nas relações sociais, no conhecimento prático, em diálogo com os
2
DUNNE, 2013.
3
OTTO & SMITH & GUNN, 2013.
4
INGOLD & GATT, 2013.

363
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

a­ rtefactos antropo­lógicos, contribuindo para os efeitos transformadores como observa‑


dores participantes5.
Por outro lado, e sobre a intervenção dos designers em culturas não ocidentais
ou indígenas, Bruce Nussbaum6 coloca a questão inevitável — «será o design huma‑
nitário o novo imperialismo?»7. Colocando questões éticas sobre como os designers,
sendo os novos missionários ou antropólogos, chegam às populações com o intuito de
as ­«compreender» e torná-las melhores, ao seu modo moderno. Esta reflexão p ­ arece
pertinente no sentido em que a intervenção Ocidental parece muitas vezes contribuir
para o desaparecimento das estruturas locais em prole de uma vida «melhor», não
contri­buindo para a recuperação do legado da cultura material, mas substituindo-o
por artefactos modernos. Tal como as tendas do Ikea substituem aldeias abandonadas
forçadamente, que provavelmente se perdem para sempre. Porque por descolonizado
­entende-se o independente e o autogovernado.
A par da visão da globalização como um fenómeno recente, potenciado por uma
sensação de interconetividade global proporcionada pelas novas tecnologias, ­existe
­também a ideia alternativa de que a globalização é um fenómeno prolongado no ­tempo
e que provém da colonização e das migrações forçadas. Assim, o que é r­ ecente será o
­nosso entendimento intelectual sobre a diferença cultural, através do qual é ­urgente
­rever as leituras que fazemos sobre os objetos e que ideias queremos comunicar a­ través
da ­cultura material. Como metodologia descolonizada o design e a antropologia debru­
çam-se sobre um sistema de valores, através do consenso e da transmissão para o f­ uturo,
num processo a que podemos chamar de transculturação. Num sistema dinâmico,
em que cada geração negoceia os elementos que compõem os sistemas de valores e de
­cultura; pelo reconhecimento do empréstimo mútuo entre culturas, mitigando e elimi­
nando circunstâncias desiguais neste processo de empréstimos mútuos. É com esta
­postura que este trabalho de investigação se identifica.
Mas Kobena Mercer8 questiona os discursos atuais sobre a pluralidade e inclusão
multicultural que abraçam um leque enorme de identidades sem tentar explicar histo­
ricamente as suas relações. Relações essas que são por vezes contraditórias entre os
diversos elementos, descontextualizadas da história e colocadas no mesmo plano em
nome da inclusão social e cultural. O resultado é uma ilusão de plenitude pluralista, que
assume que cada uma das partes coexiste lado a lado, mesmo se com pouca dinâmica ou
nenhuma interação entre elas9. Da mesma forma a terminologia do multiculturalismo
pode ser usada para compensar exclusões do passado, não só apontando a diversidade

5
OTTO & SMITH & GUNN, 2013.
6
NUSSBAUM, 2010, in TUNSTALL, 2013: 234.
7
TUNSTALL, 2013: 238.
8
MERCER, 2013.
9
MERCER, 2013: 181.

364
RESIDÊNCIA ARTÍSTICA COMO DESIGNER NO SENEGAL. DESIGN CULTUR AL

cultural como uma mera novidade que só pertence á contemporaneidade, evitando as


questões sobre o colonialismo, mas também operando de forma insidiosa para preservar
os cânones da arte ou do design modernos (ocidentais), onde a autoridade da mono­
cultura se mantém intacta.
Também Sheldon Pollock10 nos indica uma terceira via de resistência — pela
­ligação e preservação afetiva dos objetos e das experiências vernaculares, «mesmo que
as estruturas tenham mudado», libertando os objetos de discursos pré-concebidos,
ou ­produzindo novos discursos sobre os mesmos objetos — resultando que o nosso
­trabalho fica desinstrumentalizado, o que será aqui libertador. Porque a apropriação dos
­objetos pelo seu valor cultural pode pressupor a continuidade da sua forma ou excelên‑
cia das técnicas de fabrico — mas atualizando o seu significado e o seu uso — mantendo
os mesmos objetos mas alterando o discurso, o seu significado, como forma de continui‑
dade e preservação cultural.
Do mesmo modo o investigador sobre estudos culturais Sarat Maharaj11, Sul-afri­
cano a residir em Londres, faz a apologia da ignorância ou do desconhecimento da
­História de Arte que fixa significados, geografias e épocas nos objetos e nos impede
de ter uma visão aberta à interpretação do momento. E fala também de uma «pirâ­
mide ­evolutiva» na qual foram fixados os artefactos de todo o mundo (do indígena ao
urbano). Tal como no trabalho que tenho desenvolvido com o tema Design C ­ ultural,
Sarat ­Maharaj ­questiona-se também sobre o «multiculturalismo e os seus limites e
­deficiências» e «como aprender a viver com a diversidade e multiplicidade», que atraves‑
sam «gastas noções de hospitalidade e tolerância, e sobre a incessante tradução cultural
quotidiana e as forças cosmopolitas — tudo num cenário de aparente racismo, ou de
“racisme sans race”»12. E se «o conhecimento não tem cor»13, então como lidar com a
descolonização do conhecimento? Conduzindo-nos para um conhecimento com mais
tonalidades, longe de «um mundo enciclopédico»14 que fixa e compartimenta os signi‑
ficados, como um conhecimento que deve ser tomado como certo e não interpretativo?
Então «que ideia se poderá enunciar que justifique uma prática e investigação artística,
não apenas como uma produção de conhecimento realista, mas o seu oposto — como
uma ignorância conhecedora, como o modo do “ignorantitis sapiens?”»15.
Avinoam Shalem16, professor de História de Arte na Universidade de Columbia,
questiona-se também sobre como expor os objetos sem ser numa narrativa evolutiva
ao longo do tempo ou definida por territórios que conduzem a um discurso fixo, por

10
POLLOCK, 2002.
11
MAHARAJ, 2017.
12
MAHARAJ, 2017.
13
Idem ibidem.
14
Idem ibidem.
15
Idem ibidem.
16
SHALEM, 2017.

365
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

v­ entura até falso e redutor, e que conduz a uma visão eurocêntrica da cultura? O autor
está interessado na ligação entre a cultura tradicional e contemporânea, mais precisa‑
mente trabalha sobre a arte islâmica antiga e contemporânea. E dá o exemplo do que se
chama agora Arte Islâmica e que era antes apelidada a Arte de Mohamed. São os adje­
tivos do Ocidente. Tal como a Arte Cristã que deriva do nome de Cristo. Uma nomen‑
clatura que antes se referia à religião e agora se refere ao território, mas ambas são turvas
e imprecisas. Do mesmo modo como os museus nacionais apresentam narrativas evolu‑
tivas, da Antiguidade à Idade Média até ao Modernismo, como convenções inventadas.
Mas tal como sugere Sarat Maharaj, surge agora a questão sobre como encenar
o museu global, aquele que evoca um sistema artístico global e as indústrias criativas
que aludem à produção (fácil) de práticas artísticas globalizadas e independentes do
território. É neste sentido que surge o interesse sobre a atualidade do discurso comu‑
nicado pelos objetos, que circulam neste panorama diverso, sem tempo nem terri­tório
defi­nido, mas que continuam a suscitar interesse pela sua origem ou autenticidade,
mesmo q ­ uando olhamos para o futuro. Porque a cultura material, tal como os museus,
constitui um lugar de vivência e de memória, e o seu uso é condicionado por hábitos
que já e­ xistem, mas também pela liberdade da sua apropriação. Será, portanto, desejável
encontrar modelos que produzam museus organizados em função de outras histórias
e outras narrativas. Tal como nos objetos e no refutar do funcionalismo, que promove
uma higiene de vida impositiva de padrões culturais colonizados, ou ocidentalizados.
Mas nas culturas locais não ocidentais, como no Senegal, os museus construídos
pelos colonos ou por organizações sociais influenciadas pelo Ocidente estão abando­
nados, não fazem sentido, porque os mesmos objetos que ali estão expostos estão em
uso nas aldeias e no quotidiano da população. Ali, os objetos tradicionais não ­morreram.
Porque a arte africana tradicional é funcional, e os objetos de uso têm uma impor­tante
carga simbólica. Não existe uma separação entre objetos de arte e objetos de uso, com
uma função utilitária. E a função simbólica dos objetos faz parte do quotidiano das
­pessoas. Estes objetos continuam a ser produzidos e usados, sobretudo nas zonas fora
dos centros urbanos, como as cabaças onde se lavam os recém-nascidos e mais tarde
lhes dão leite, que fazem parte do enxoval de casamento e mantêm os legumes frescos.
Ou os apoios de cabeça, que se revelaram confortáveis e frescos no calor ou as ­cadeiras
em madeira maciça, esculpidas como ossos, baixas e de desenho agradável e fresco, ou
as camas de dia em palha, que nos possibilitam estar no campo sem contacto com o
chão e com os bichos. Todos esculpidos com elementos simbólicos de forte carga v­ isual.
Porque os locais de convívio e sociabilização se situam no exterior das casas e das ­tendas,
tanto no campo, como no deserto, ou nas aldeias construídas em «banco» (­termo
usado para a construção em adobe). Mas todos têm também conotações simbólicas
que desconhecemos.

366
RESIDÊNCIA ARTÍSTICA COMO DESIGNER NO SENEGAL. DESIGN CULTUR AL

Nos centros urbanos o comércio de objetos tradicionais dirigido aos turistas


­ ferece objetos artísticos inspirados nos objetos tradicionais mas que já não sugerem
o
o uso, como os talheres em madeira demasiado trabalhados para serem usados. ­Estão
também em todas as cidades as «village des arts» ou «village des artisans» que são
como um «Portugal dos Pequeninos» onde os artistas e artesãos estão concentrados em
­oficinas com uma arquitetura que simboliza as tradicionais casas redondas em adobe
e palha, em recintos fechados construídos ainda pelos franceses no tempo do colonia‑
lismo, absolutamente isolados da contemporaneidade e vazios de visitantes, tal como
na certificação dos objetos tradicionais feita pelo Estado português. Isto para os povos
sedentários, os agricultores, porque muito artesanato é de tradição nómada, como os
Fulani, os pastores, que se diz serem descendentes dos egípcios, e que escapam absolu­
tamente ao ­controle do Estado. Mas com uma identidade cultural muito forte e viva.
Mas «não basta colocar em pé de igualdade obras de arte de diferentes proce­dências
para tirar de vez as maiúsculas das palavras Arte e Cultura, como o fizeram os surrea­
listas. É preciso estabelecer relações que iluminem a compreensão de ambas as cultu­
ras»17. ­Entender a natureza da produção na sua origem e na sua contempora­neidade.
E estabelecer novos significados e porventura atualizar os usos. Tal como em «ao contrá­
rio da atitude mais etnográfica, adotada pelos folcloristas da época, os artistas moder­
nistas não só pesquisavam e documentavam, mas também criavam em cima do que
descobriam»18. Tal como em Ernesto de Sousa ou Michel Giacometti. Neste s­ entido é
­importante preservar a cultura material no seu estado original, muitas vezes em sério
­risco de desaparecer, mas também estabelecer práticas de dinâmica cultural, que atua­
lizem os objetos e os mantenham vivos. Que parecem tornar-se mais duradouros —
­quando se referem à cultura tradicional e à produção manufatureira. Menos descartáveis.
«A fruição estética está em todas as esferas da vida, tanto nos objetos dos r­ ituais
como nos objetos do quotidiano. Por isso, antropólogos como Els Lagrou [a ­trabalhar
sobre a Amazónia, da Universidade do Rio de Janeiro] acreditam que somente q ­ uando
o design suplantar as “artes puras” ou as “belas-artes” é que teremos na sociedade
­ocidental um quadro semelhante ao das sociedades indígenas»19. Assim, «o design
­talvez seja a alternativa mais próxima a uma linguagem estética comum às duas culturas.
As ­artes indígenas ensinam-nos a aproximar arte e artefacto, contemplação e funciona­
lidade, lembrando-nos da capacidade estética, que tem toda criação humana, de agir e
transformar o mundo»20. O que provavelmente já está a acontecer, porque nem as belas-
-artes são vistas já como artes puras, estando cada vez mais contaminadas por questões

17
BARRETO, 2010: 159.
18
Idem ibidem: 161.
19
Idem ibidem: 163.
20
Idem ibidem.

367
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

sociais, políticas e ambientais, como também o design associa o belo com o útil, agindo
no plano simbólico e funcional em simultâneo — quando se distancia do funcionalismo.
Assim, tal como afirmam Avinoam Shalem e Sarat Maharaj, «O papel do museu
­talvez seja mais o de descolecionar e desierarquizar os gêneros artísticos, como diria
­Néstor Canclini [antropólogo argentino contemporâneo] e fazer com que o p ­ úblico se
reconheça e se identifique nesta ou naquela mistura, vendo-se como uma parte do g­ rande
emaranhado cultural que os diálogos constroem!»21. Um discurso muito ­próximo do
­design que proponho.
Que sentido podemos dar então á cultura vernacular e tradicional, desejavelmente
liberta de narrativas evolutivas e de territórios circunscritos, hoje desejavel­mente viva e
descolonizada? — Eu dei por mim a querer recuperar a cultura tradicional pela exce­
lência das técnicas e como estratégia para refrear o consumo. E para fugir ao exótico ou a
significados conservadores do passado comecei a trabalhar sobre o uso — questio­nando
o funcionalismo como mais uma narrativa fixa — e enveredei pelo aspeto ­cultural e
­simbólico dos objetos, desejavelmente atualizados. Mas também tive que refutar as ideias
sobre autenticidade porque isso me fixava no tempo e no território, e nas identi­dades, tal
como na certificação dos objetos feita pelo Estado. Colocando-se então a p ­ ossibilidade
da apropriação como termos de linguagem acessíveis a todos, praticada em ambos os
sentidos, e na sua atualização — na perspetiva da dinâmica e da transformação cultural,
como um instrumento mais próximo de todos e de cada um, contra­riando a neutra‑
lidade da globalização. Assim, o original aqui não é obrigatoriamente o novo, mas a
­capacidade de rever, de atualizar e interpretar de forma singular os estímulos da reali­
dade. «A originalidade deve ser entendida como a propriedade que algo ou alguém
­possui de se reconhecer nas origens e de criar uma obra que as reflita»22.
Trata-se então de encontrar hábitos comuns para aproximar culturas colocando-
-as em diálogo, numa tentativa de ilustrar dinâmicas culturais existentes ou a promover.
Não em termos de usos pré-determinados, porque essa também constitui uma narrativa
demasiado linear, mas em termos formais e de preciosidade tangível. Porque de facto, tal
como nos autores atrás mencionados, «a visão da cultura que acentua as singularidades
dos diferentes povos sedimentadas ao longo da história, num processo do tipo orgânico
— como aquele que se associa ao cultivo da terra, ao qual o termo cultura está ligado —
é tão restritiva como a visão universalista ou enciclopédica do pensa­mento ­europeu»23,
mas também em termos simbólicos e culturais. Porque a produção de ­objetos e de
­cultura material, tal como os museus, é local e global em simultâneo. Não expomos
nem produzimos para as pessoas nativas do território. Produzimos para os próprios e
para os outros. «A ideia subjacente é identificar a tradição e reinventá-la. Ao conservar e
21
Idem ibidem: 169.
22
NEMER, 2010: 175.
23
MONTES, 2010: 191.

368
RESIDÊNCIA ARTÍSTICA COMO DESIGNER NO SENEGAL. DESIGN CULTUR AL

t­ ransmitir o que se sabe, a sociedade cria a si mesma e faz com que seja, de novo, tanto o
que foi como aquilo que quer ser»24.
Interessa também referir que uma perspetiva evolucionista da cultura (como as
noções de progresso ou sobre a produção de um povo ou de uma civilização) está hoje
posta em causa, porque deixando de ser considerada alta ou baixa cultura, a ­cultura
indígena ou vernacular é hoje vista como mais respeitadora e equilibrada, como a
maior defensora do planeta e dos recursos naturais, podendo-se concluir que o seu
­progresso conduziu a comportamentos mais acertados do que as sociedades vistas como
mais desenvolvidas.
Tal como interessa recuperar a visão de Sarat Maharaj no que se refere á apologia
da ignorância rebatendo o conhecimento enciclopédico, de que nos fala também Maria
Lúcia Montes — como a acumulação num só ponto de vista, do conhecimento universal
e completo do ser humano.
Esta experiência como designer na residência artística em Saint-Louis du S­ enegal,
teve como objetivo iniciar uma investigação ativa e a experimentação sobre como
­partilhar a cultura material local e sobre a possibilidade da sua tradução para as práti‑
cas contemporâneas em contextos culturais diversos, no âmbito do design de produto.
A oportunidade de fazer uma residência artística em África surgiu como a possibili­
dade de contactar com artesãos com uma cultura local diferente, inserida num ambiente
criativo propício à integração de estrangeiros, apoiada por pessoas que conhecem bem
o lugar e os autóctones, num contexto de trabalho onde interagem artistas, escritores,
fotógrafos, etc. em total disponibilidade e em ambiente de entreajuda.
Consciente do método etnográfico e do papel de interlocutora cultural a que me
­tinha proposto, comecei por visitar os mercados, procurando objetos que me c­ hamassem
á atenção, pelas suas qualidades formais e funcionais. Tentando ao mesmo tempo esta­
belecer um diálogo com os artesãos, indagando sobre a origem e uso dos produtos que
vendiam. Procurei formas e técnicas locais, costumes tradicionais e práticas que se
­pudessem revelar pertinentes novamente nos dias de hoje, com vista a novas possibili‑
dades de uso e produtivas. Consegui então estabelecer relações de trabalho com artesãos
locais, explicar a minha ideia, saber a sua opinião, e em conjunto produzir objetos que
refletissem preocupações e usos comuns. O diálogo e o entendimento foi fácil, e todos
trabalhámos em prol da atualização e valorização da cultura vernacular local.

24
MONTES, 2010: 191.

369
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

PROJETOS DESENVOLVIDOS EM SAINT LOUIS DU SENEGAL


A cabaça

Figuras 1, 2 e 3. Cabaça partida cosida com tecido aplicado com a mesma técnica.
Feirante que vendia e me coseu as cabaças.
Fotos da autora.

As pilhas de cabaças que se vendiam no mercado pareceram-me um ótimo substi­


tuto para os sacos de plástico preto que me impingiam constantemente no mercado.
Ao regressar do mercado com uma cabaça cheia de frutas e legumes apoiada na ­cintura,
­experimentei os olhares de novos e velhos, homens e mulheres, que sorriam para mim
ao ver-me com uma cabaça usada da forma tradicional, e resolvi atualizá-la. Fechei a
cabaça com tecido para que os frutos não caíssem no transporte e para que as minhas
compras não fossem tão evidentes. As cabaças são também tradicionalmente usadas
para ­guardar produtos frescos em casa. O tecido foi comprado no mercado e é ­muito
­resistente ­porque serve para trazer as crianças às costas, por isso só se vende em tiras de
10 metros. A s­enhora de vermelho é quem coze as cabaças partidas e quem coseu o
­tecido às cabaças que lhe comprei, acrescentando-lhes alças como mochilas. No fim do
­projeto apertámos a mão como sócias. Este projeto ficou à venda numa loja de ­artesanato
local, revertendo o lucro a favor da proprietária, para reinvestir em possíveis enco-
mendas futuras.

370
RESIDÊNCIA ARTÍSTICA COMO DESIGNER NO SENEGAL. DESIGN CULTUR AL

Mesa Leyu

Figuras 4, 5 e 6. Cestos senegaleses, Mr. Lamin na sua oficina, mesas Leyu na residência
artística em Saint Louis du Senegal.
Fotos da autora.

Foi numa visita guiada ao mercado de Mpal que encontrei uma jovem mulher
que vendia cestos feitos com fibras naturais e fio de plástico com cores vivas. Da beleza
e da perfeição do cesto plano e do contacto com o serralheiro Monsieur Lamin, surgiu
a ideia da mesa Leyu. Esta é uma mesa dobrável inspirada nas mesas de café de Hans
­Wagner (Bauhaus). Elas tornaram-se num arquétipo suficientemente anónimo para
deixar b
­ rilhar a beleza e o significado de um objeto tradicional tão conhecido como
os cestos senegaleses. Pode ser usada como mesa de café, para pousar jornais, crochet,
como vide-poche ou mesa-de-cabeceira, como usos sugeridos por mesas com cestos de
diferentes diâmetros e funduras.

CONCLUINDO
A imagem de um designer como um artista isolado no seu atelier a produzir o
seu próprio trabalho parece-nos agora estéril e sem sentido, por mais utópico ou crítico
que seja o conceito da sua produção. Este é um projeto que se procura afastar de um
funcionalismo universalizante, tentando aproximarmo-nos da vida real das pessoas, da
sua cultura e das suas práticas no quotidiano. Deste modo o designer inserido na socie‑
dade para a qual projeta observa novas práticas no seu próprio grupo de gosto, ao invés
de propor novas necessidades que vão modelar ou formatar artificialmente a vida das

371
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

pessoas. Averiguando sobre o que temos e o que nos faz falta, ou o que deixámos de usar
e porquê. Ou eventualmente, o uso que fazemos de objetos que não foram desenhados
para essa função e que revelam uma nova necessidade, pela alteração do seu uso, e que
seja prolongado o seu tempo em uso, por uma produção concertada no espaço e no
tempo e pelo seu valor cultural. Assim surgiu o método etnográfico de observação dos
comportamentos no uso dos objetos.

QUESTÕES FINAIS
Que objetos podemos redescobrir para que façam novamente sentido, quer pelas
práticas que sugerem, como pelo valor formal ou simbólico implícito, que muitas vezes
desconhecemos? Que novos significados podem adquirir? Como promover este diálogo
e partilha de forma respeitadora e interessante para todos? Como transpor estes ­objetos
para o cosmopolitismo contemporâneo pelo valor cultural que representam? Como
manter vivos e em uso estes objetos no futuro? São estas as questões que me levaram
recentemente a Saint-Louis du Senegal.

BIBLIOGRAFIA
BARRETO, Cristiana (2010) — Os dilemas das Puras misturas. In BORGES, Adélia — Puras misturas. São
Paulo: Pavilhão das Culturas Brasileiras.
BRITO, Joaquim Pais de; LEAL, João (1997) — Etnografias Portuguesas (1870-1970). Cultura Popular e
Identidade Nacional. Lisboa: Publicações Dom Quixote.
DUNNE, Anthony (2013) — Speculative Everything. Londres: Resonate.
INGOLD, T.; GATT, C. (2013) — From description to correspondence: Anthropology in real time. In OTTO,
Ton; SMITH, Rachel Charlotte; GUNN, Wendy (2013) — Design Anthopology, Theory and Practice.
Londres e Nova Iorque: Bloomsbury.
MAHARAJ, Sarat (2017) — O Mundo Virado do Avesso: Arte e Ética na Ascenção da Idade da Pedra no Sul.
Lisboa: Lumiar Cité.
MERCER, Kobena (2013) — Art History after Globalization: Formations of the Colonial Modern. In The
Bauhaus in Calcutá, World Art since 1922: On the topicality of an exhibition. Berlim: Hatje Cantz.
MONTES, Maria Lucia (2010) — Puras misturas. In BORGES, Adélia — Puras misturas. São Paulo: ­Pavilhão
das Culturas Brasileiras.
NEMER, José Alberto (2010) — Fragmentos de um diálogo. In BORGES, Adélia — Puras misturas. São
Paulo: Pavilhão das Culturas Brasileiras.
OFFELEN, Marion van; BECKWITH, Carol (1993) — Nomades du Niger. Londres: Harvill Press.
OTTO, Ton; SMITH, Rachel Charlotte; GUNN, Wendy (2013) — Design Anthopology, Theory and Practice.
Londres e Nova Iorque: Bloomsbury.
POLLOCK, Sheldon (2002) — Cosmopolitan and Vernacular in history. In BRECKENRIDGE, Carol A.;
POLLOCK, Sheldon; BHABHA, Homi K.; CHAKRABARTY, Dipesh, ed. — Cosmopolitanism.
­Durkham: Duke University Press Books.
TUNSTALL, Elizabeth (2013) — Decolonizing Design Innovation: Design Anthropology, Critical Anthro­
pology, and Indigenous Knowledge. In Design Anthropology, Theory and Practice. London and New
York: Bloomsbury.
SHALEM, Avinoam (2017) — Arte islâmica no Museu hoje: uma oportunidade?, conferência. Lisboa:
­Fundação Calouste Gulbenkian.

372
EXISTÊNCIAS E INVISIBILIDADES — A QUESTÃO
DO PROCESSO NO ENSINO/APRENDIZAGEM
EM ARQUITETUR A
MÁRIO MESQUITA*

Resumo: Em Arquitetura, no binómio ensino/aprendizagem, não representando um fim em si, os proces‑


sos de trabalho durante o ato criador são fundamentais para materializar o produto final, o objetivo. Neste
­campo, a interpretação que muitos estudantes fazem da sua produção conduz à necessidade de descons‑
trução do mito de que, num exercício académico, o processo conduz ao sucesso, independentemente do
desígnio, avalizando-o apenas quantitativa ou plasticamente. Faz então sentido perguntar se o que fica do
que se faz entre ideia, conceção e comunicação é suficiente para entender/potenciar/avaliar o que, como e
para que se fez.
Palavras-chave: ideia; processo/projeto/obra; arquitetura; ensino/aprendizagem.

Abstract: In Architecture, in the binomial teaching/learning, not as an end in itself, the working processes
during the creation are fundamental to reach the final product. In this field, the understanding that many
students make of its creation leads to the need to deconstruct the myth that, in an academic study, the
­process itself leads to success, regardless of the goal, considering it only quantitatively or plastically. It makes
sense to ask if what’s left of what you do between idea, conception and communication is sufficient to
­understand/enhance/evaluate what, how and what for it’s made.
Keywords: idea; process/project/work; architecture; teaching/learning.

* Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto. Email: mesquita@arqup.pt.

373
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

1. A QUESTÃO DO PROCESSO NO ENSINO/APRENDIZAGEM


EM ARQUITETURA
Considerando que o «Processo» (segundo os próprios estudantes — e­ntidade/
objeto) é o material que, cronológica e/ou tematicamente se congrega analógica e/ou
digitalmente, de que nos informa sobre o que se pensou e não se registou, do que não
careceu de registo ou do que significou uma alteração de rumo por «não se querer mais
ir por ali», muitas vezes só após o fim, se racionaliza e traduz?
No ensino/aprendizagem, há muito desse processo que permanece nos t­ erritórios
da invisibilidade. Nessa equação, onde a criação é partilha e interação no espaço da
­escola, o que fica do acompanhamento dos professores e colegas em aula? E, se a criação
é, em contexto académico, atenção, absorção e experimentação, o que é «o Processo»
que os estudantes reverenciam e dogmatizam?
Em Arquitetura, espaço de reunião de linguagens e expressões (e.g. desenho e
­palavra; espacialidade e performance), de cruzamento entre escrita e oralidade, de valori‑
zação de conhecimentos e técnicas transversais a áreas que aqui encontram um lugar de
diálogo, como se fixam os modos de fazer na sua globalidade? Será que o que contribui
para o pensamento, conhecimento e expressão/comunicação dessa criação tem de ter
sempre essa concretitude?
Julgando que o produto final numa relação de ensino-aprendizagem em Arquite‑
tura não é a obra, mas a resposta a um exercício, o que podemos revelar da existência
dos vários momentos do processo criador? O que interessa ao criador tornar visível?
E, mesmo, se compreendermos essa necessidade, será que podemos traduzir/comunicar
tantas subjetividades?
Se o processo de trabalho deve ser claro e operativo para o autor, por razões didá­
ticas e pedagógicas, não deverá ser também para outros? Mas não competirá ao profes­
sor ­registá-lo também para esclarecer o percurso do estudante e para reunir m ­ aterial
de análise para as suas sínteses face a outros estudantes, noutros tempos, noutros anos,
eventualmente transformando os próprios modos e formas de fazer, em contexto de aula
e escola?

2. O PROCESSO DO PROJETO E O PROJETO DO PROCESSO —


DIALÉTICAS ENTRE SÍNTESE E ANÁLISE EM METODOLOGIAS
DE INVESTIGAÇÃO EM ARQUITETURA NA FAUP
Um dos traços comuns às metodologias de investigação em Arquitetura é a prece­
dência das sínteses relativamente às análises. Esta relação, essencial na compreensão
da importância da componente processual na singularidade do seu método de ensino,
prossegue, na FAUP, numa afirmação contemporânea, o legado da «Escola do Porto».

374
EXISTÊNCIAS E INVISIBILIDADES — A QUESTÃO DO PROCESSO NO ENSINO/APRENDIZAGEM EM ARQUITETUR A

A sobrevivência desta forma de trabalho intelectual no período pós-adaptação a


Bolonha tornou-se possível pela realização de uma adequação tranquila da herança ­dessa
«Escola» que projetara os seus métodos para a relevância de paradigma internacional.
Todavia, com o desvio do ambiente de pensamento, trabalho e produção em
­Arquitetura do analógico para o digital, muito dessa praxis ameaça perder-se, questio‑
nando a continuidade do carácter distintivo na relação ensino/aprendizagem que lhe
­reconhecemos. Nesse sentido, esta «nova Escola do Porto», por contingência e conjun­
tura, necessariamente no futuro, mais centrada na urgência da afirmação dos seus
­processos científicos/pedagógicos/didáticos (e menos na obra dos seus profissionais),
para se continuar a distinguir, terá de construir novos compromissos metodológicos.
O crescente desenvolvimento de relações de trans/interdisciplinaridade com outras
­áreas afins tem-se demonstrado essencial para essa afirmação — demonstra-o parte
substancial da crítica aos projetos e às dissertações apresentadas hoje, pelos estudantes
no final dos ciclos de estudos.
O processo do projeto e o projeto do processo são dois momentos de uma só realidade:
o ato criador. Coincidentes no tempo, não só propiciam um contínuo de reflexão sobre
as diferentes problemáticas associadas à criação científico-artística como possibilitam
uma circunferência em permanente movimento (centrípeto/centrífugo) que assimila, no
seu curso/discurso, pela sua natureza excêntrica/concêntrica, novos/diferentes/diversos
campos de perceção, onde tempo e espaço se cruzam e são uma e a mesma coisa.
Presente na produção em Arte e Arquitetura, a necessidade de se documentar o
processo, mas também de o transformar num documento, encerra a urgência (perti­
nente para o criador) da consideração constante da dúvida e do erro na afinação do
produto final, o qual se espera que abandone a invisibilidade, que se realize no contexto
da comunidade, num ato comprometido do sujeito. De contrário, a tradução de uma
ideia ou pensamento, caso não encontre forma de expressão, enfrenta a possibilidade de
nunca se tornar pública, frustrando autor e destinatários da mensagem de ciência e arte
que se imaginou, um dia, ser possível de se libertar da esfera do «eu».
Em Arquitetura, a divergência pós-Bolonha (e com a afirmação da Ordem) entre
prática académica e profissional contribuiu fortemente para a desagregação da praxis
consolidada durante décadas do arquiteto-mestre versus arquiteto-aprendiz. A menori­
zação do trabalho laboratorial — em «atelier» — afastou os formandos da realidade da
obra e fomentou a ampliação da burocracia, com reflexos negativos na profissão e na
Academia. Já não falamos mais do tempo em que o «quase arquiteto» passava por um
período experimental de contacto com a realidade extra-escolar e depois regressava para
realizar a sua dissertação. No presente, tal só é possível no pós-licenciatura/mestrado
para os que, passado anos, retomam os estudos frequentando cursos de pós-graduação,
ou para os que, convictamente, atrasam os prazos de entrega visando explorar mais as
matérias, ultrapassando a superficialidade da abordagem.

375
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

De que forma os atuais planos curriculares dos cursos científico-artísticos contem­


plam as condições necessárias para, além dos tempos de contacto, desenvolver a quali­
dade dos tempos sem contacto, de aprofundamento, tempo real de estudo? O exces­sivo
pendor «tarefeiro» dos currículos dos cursos transformou os tempos de estudo em
­tempos de resposta automática aos pedidos. A reflexão (necessária à invenção e à desco­
berta), com a proliferação de plataformas eletrónicas de produção e de replicação de
pensamento, resulta condicionada à partida. Se a isto somarmos tempos e modos de
produção diferentes, a alteração do ambiente de trabalho analógico para digital (que
mudou radicalmente parte substancial do processo de conceção), ao não se proceder a
uma adequada transferência de suportes do estudo/trabalho, poder-se-ão perder séculos
de sedimentação do saber. Contudo, essa variação de procedimentos apenas sublinha a
premência da adaptação do processo a outras ferramentas e plataformas — passo deci­
sivo, se se considerar haver uma novíssima geração de estudantes e profissionais que
já cresceram intelectualmente em ambiente digital. Perante tal cenário (que interessa
­avaliar/afinar), a atitude dos docentes (maioritariamente «analógicos») terá de ser inclu‑
siva, moderadora e aberta à renovação da sua aprendizagem para que não se torne insu‑
perável o fosso geracional, resgatando as potencialidades dos processos de pensamento
e produção analógicos, assimilando-os/transformando-os, permitindo-lhes a sobrevi­
vência, para além de qualquer tipo de imposição ou abnegação.
Ao longo do curso de Arquitetura (licenciatura/mestrado) estamos perante perma­
nentes e contínuos tempos de pesquisa e investigação. As ferramentas de t­rabalho, que
vão propiciando a evolução da autonomia do estudante até ao último ano, a­ judam à
­construção de uma metodologia de pensamento e prática a que chamamos de «­ processo»,
longo por natureza. Mais instrumental no início e quase só conceptual no final, esse
«processo» induz à progressiva aproximação às matérias do abstrato, a qual r­eclama
­formação teórica forte e multidisciplinar bem como, paradoxalmente, a compre­ensão da
complexa teia imbricada da contemporaneidade. Nesse sentido, a transversalidade disci‑
plinar constitui um fator estruturante desse sujeito em formação, pelo que não p ­ odemos
encarar tranquilamente as derivas que, tendencialmente, o r­eduzem à c­ondição de
­técnico executante.
Seguindo processos de pensamento que valorizam a construção de sínteses p ­ révias,
permitimo-nos evidenciar as ideias, criando ambientes tendencialmente mais livres de
criação. Longe de um curso linear (pois os avanços e recuos são cíclicos e recorrentes),
a definição de objeto, objetivo e estratégias a adotar tornam o desenho das ações que
consumam o projeto mais claro e, em convergência com as sínteses e análises, valorizam
aquilo que chamamos «ideia». O formado, fruto desse binómio de geometria variável
entre ensino e aprendizagem, ganha espessura intelectual, realizando-se naquilo para
que foi «treinado» (num meio extremamente exigente): pensar.

376
EXISTÊNCIAS E INVISIBILIDADES — A QUESTÃO DO PROCESSO NO ENSINO/APRENDIZAGEM EM ARQUITETUR A

Todavia, com a atual simplificação e banalização dessa mesma exigência (ofere­


cida pelos ciclos de estudo pós-Bolonha), existe sério risco de que esse vasto património
educativo em construção durante décadas de debate na Academia resulte em meros atos
administrativos de concessão de graus, num vazio de significado e numa pobreza de
conteúdos, gorando as legítimas expectativas da sociedade que nele investiu também.
Na perspetiva de, equacionando o futuro, se avaliar a sustentabilidade das metodo­
logias de investigação reconhecidas como relevantes na formação em Arquitetura, na
FAUP, julga-se premente uma reflexão de fundo.

3. «A MINHA IDEIA É…»


Esta expressão é frequentemente usada no discurso oral dos arquitetos e dos estu‑
dantes de Arquitetura e traduz uma forma de pensar e de focar o cerne da comunicação
das suas criações no próprio conceito que lhe é subjacente, a «ideia forte», regra, matriz
ou estratégia que dominará o seu desenvolvimento, o «processo», e que condicionará
o produto final. De facto, o que aí se inicia é uma narrativa que, articulando abstração
com realidade, confere à criação em Arquitetura uma matriz artístico-científica. Assim,
este «processo», antecipando as sínteses às análises, o abstrato ao real, marca, desde
cedo, a originalidade e a preponderância do sujeito no ato criador. De tempo curto e de
ocorrência intermitente, elas não surgem apenas nas fases iniciais e finais do processo
de t­rabalho, sendo-lhe transversais, reorientando análises subsequentes, consolidando
os momentos de crítica e de autocrítica e, por normalmente serem acompanhadas de
­desenho (por si, um ato máximo de síntese) permitem a passagem daquilo que só o
próprio tem a capacidade de «ver» até à sua materialização em suportes físicos, numa
linguagem que possibilite o seu entendimento por outros e que antecipe a concretização
no binómio das suas dimensões mais relevantes: o espaço/tempo.
Neste campo específico, onde a maturação das ideias é essencial, é frequente a
­necessidade de um tempo mais alargado de estudo e de consequente equação e vali­
dação dos conhecimentos que se vão adquirindo. Como a exploração/investigação/
criação baseada no olhar automático e superficial é redutora, torna-se necessário esse
outro ­tempo longo de trabalho, criando distância face ao objeto em estudo, r­ eavaliando
­constantemente os objetivos e, sempre que possível, mudando de escala e de posição
relativa. Todavia, a velocidade e a urgência da resposta pretendida (tanto no plano
­académico como profissional) raras vezes se coaduna com o necessário e esclarecido
olhar fino do criador, o qual deveria contar, para além da referida distância, com o
­tempo e a oportunidade do erro, fatores essenciais no caminho da cognição, sempre
dependente da relação «tentativa/erro».
Numa era de vertigem e aceleração de processos metodológicos e de forte questio­
namento ideológico, numa sociedade em ritmo de automatização e de ­resposta ­imediata,
cada vez mais se torna importante a ponderação de um tempo alargado de ­pensamento

377
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

s­obre as matérias em estudo, não só para aprender, mas também para ­organizar e
­comunicar o conhecimento. Neste caminho, sujeito e objeto travam uma ­disputa
­constante pelo domínio do processo. A criação tenta, obstinada e sistematicamente,
­vencer o ­criador, ganhar vida, autonomizar-se, organizar, mandar e dispor a (e da) ­ordem.
O controlo escapa amiúde ao criador e, mesmo que, regra geral, saibamos que a obra não
consegue autonomizar-se em definitivo, apenas condicioná-lo ­durante o ­processo de
pensamento/realização, aparentemente, em vários momentos desse c­ aminho c­ onjunto
com o criador, parece mostrar a sua força, alternando entre os d ­ esafios que c­ oloca e a
sedutora tentação de precocemente cristalizar. Pobre do criador que fica ­contente com a
primeira opção, que descansa com a incapacidade de trabalhar uma ideia, dissecando-a,
aprofundando-a, entre constantes sínteses e análises, que não se ­revolta, que não afirma
o seu próprio caminho, que não procura a superação e a inovação.
«A minha ideia é…» não pode constituir um fim quantitativo, delimitado à r­ esposta
automática a listas mais ou menos complexas de objetivos. A exploração qualitativa, o
desenvolvimento metodológico, o crescimento e afinação dos processos de pensa­mento,
a incorporação de outros campos disciplinares na validação e melhoria da equação, o
enriquecimento do processo narrativo com as próprias especificidades do narrador,
marcam a diferença e distinguem a reprodução ou a recriação da transformação e
da invenção.
«A minha ideia é»: formula a essência da história que se quer «escrever» e­ ntre
­palavras e desenhos, desenhando palavras, escrevendo desenhos, transformando-as
em espaços, contando o dentro e o fora, em escorreito discurso do princípio até ao
fim. ­Contudo, como de projeto se trata (o fazer é algo que maioritariamente escapa
ao c­ ontrolo destes criadores — pelo menos o fazer absoluto, o domínio total do processo
idealização/conceção/produção) não contemporiza o uso real, apenas o imaginário, o
sonho de como gostaria que fosse.
A composição das ideias, a sua organização e tradução em matéria legível por
outros, é o último passo da criação antes do regresso ao início. Mas estaremos apenas
perante o esclarecimento do primeiro ato, o que resulta da arte difícil de formalizar as
sínteses, incomensuravelmente mais devedoras de fundamentos mais sensoriais do
que racionais?
As dialéticas entre Arte e Ciência, sujeito e objeto, criador e criação, as intran­
quilas conflituosas relações entre eles, definem a riqueza do processo criador e libertam
os seus protagonistas paradoxalmente para se entregarem de novo às batalhas entre as
­dúvidas e incertezas e as cristalizadoras e redutoras (mas igualmente sedutoras) certezas
das ­aparentemente escorreitas narrativas.
«A minha ideia é»: um ponto de partida para outros olhares, um contributo para
o progresso, não um fim em si mesmo, não uma criação absoluta. Considerando a Arte,

378
EXISTÊNCIAS E INVISIBILIDADES — A QUESTÃO DO PROCESSO NO ENSINO/APRENDIZAGEM EM ARQUITETUR A

e a sua função social, e a Arquitetura como neste binómio incluída, de forma alguma
podemos reduzir a sua dimensão a um sujeito isolado e à sua autorrecriação.
«A minha ideia é»: estudo, atenção, sensibilidade ao meio e ao contexto, de certa
forma é fruto de intersecções, de interdisciplinaridades e de transdisciplinaridades. Mas,
para além de tudo isto, para além de tudo o que a relaciona com a sociedade, com o
mundo, também em Arquitetura ela é individual, do sujeito, expressão da sua liberdade
e autonomia intelectual.
Estes tipos de narrativa que podemos associar ao «processo» em Arquitetura —
cada uma com uma função específica — são interligados pelos sujeitos que as c­ onstroem,
eles próprios personagens de uma narrativa maior. A maior parte dos signos que vamos
aprendendo ao longo da vida, nesse tempo longo de criação, são (em si ou em represen‑
tação) conceitos abstratos. Com o seu emprego na construção das narrativas (permane‑
cendo na esfera da abstração ou caminhando para o concreto) resolvemos problemas,
impossibilidades, num meio dinâmico, cada vez mais frenético e efémero, complexo.
As várias composições que realizamos, as sucessivas associações que formulamos, são
a expressão máxima (para nós) da profundidade invisível do nosso imaginário face ao
real – ele também uma construção da nossa consciência.
O arquiteto, nesse redondo processo de ensino/aprendizagem que é a vida, é, efeti­
vamente, um agente ativo de materialização da utopia, indubitavelmente moderno,
­próprio do seu tempo: o agora.

4. UMA «NOVA» ESCOLA DO PORTO? RETRATO DA PRIMEIRA


GERAÇÃO DE ESTUDANTES DE ARQUITETURA NASCIDA NA
CULTURA DO DIGITAL
Desde 2006 que o curso de mestrado integrado em Arquitetura da FAUP a­ travessa
um processo de adequação a «Bolonha». Foram experimentadas alterações relativa­mente
ao figurino anterior, encontrando-se a Faculdade, no presente, perante uma nova revisão
do plano de estudos deste curso, herdeiro da licenciatura em Arquitetura, eixo funda‑
cional da «Escola do Porto». Contudo, eventualmente pela formação dos seus ­docentes
ou pela convicção no modelo anterior, na nova equação entre ensino/aprendizagem,
apenas o primeiro fator mereceu alguma reflexão, negligenciando-se, no ­processo de
discussão, a maior parte das alterações de paradigma verificadas no segundo, especial‑
mente as que respeitam à diferente base de formação dos estudantes, nascidos e criados
em ambiente digital. O desenvolvimento dos processos relativos às transformações nas
vidas dos estudantes que a era digital aportou e o modo como estes integram a mudança,
significam novos desafios às instituições de Ensino Superior, obrigando a reequacionar
várias dimensões da educação.
O conjunto de equívocos de apreciação desta nova geração conduziu indireta­mente
à compreensão da alteração de paradigma na qual o pendor do fator ­aprendizagem

379
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

­ assou a preponderar no binómio que compõe com o ensino, recentrando o foco


p
no estudante.
Nesse sentido, torna-se importante refletir sobre a alteração do perfil dos estu­dantes
e, por consequência, na transformação do quotidiano, tanto na vertente de contacto
como de não contacto. Tomando como foco de análise as turmas de 1.º ano, regista-se
uma progressiva tendência para a generalização dos comportamentos do ­quotidiano
claramente indexados a uma formação anterior, em ambiente escolar e extra-escolar
­fortemente alicerçada num universo tecnológico que mudou radicalmente o estar e,
subsequentemente, o ser, hoje já não mais só analógico, um «ser digital», superando a
utopia, sendo, indubitavelmente, moderno, próprio do seu tempo: o agora.
Os modos e as dinâmicas de pensamento desta geração, nascida e criada em
­ambiente digital são manifestamente diferentes das anteriores. A sua facilidade em
­desempenhar várias tarefas em simultâneo, combinada com a formação transdisci­
plinar, esbarra com alguma falta de flexibilidade dos próprios currículos do curso
de A ­ rquitetura e, sobretudo, com a ausência da adaptação dos processos e modos de
­criação ­analógica. Essa rigidez resulta da pouca capacidade dos programas curriculares
se adaptarem às novas conjunturas e circunstâncias, mas também ao facto dos responsá‑
veis pela sua revisão ou não se sentirem convictos em regulá-los ou não observarem uma
reta­guarda consistente por parte do contexto em que se movem. Este erro de estratégia
pode s­ ignificar, nos anos mais próximos, a não sobrevivência de modelos de ensino que,
embora contendo inúmeros pontos fortes para a aprendizagem e crescimento intelectual
dos estudantes rumo à autonomia científica, teórica e prática, permitiriam resolver o nó
­górdio da própria área disciplinar face à diferenciação e multiplicidade de solicitações da
sociedade atual, ela própria diametralmente diferente desde há vinte anos a esta parte.
O substantivo valor acrescentado que esses processos de criação representaram
para a afirmação identitária de uma escola como a do Porto merece uma atenção c­ rítica
e uma avaliação sustentada tendo em vista o progresso da própria escola. Todavia, a
necessária transferência de suportes, modos e procedimentos ainda não se realizou,
­significando a resistência e o entrincheiramento de alguns dos seus baluartes apenas e só
o seu esvaziamento natural e biológico. O não aproveitamento e, sobretudo, as vias alter‑
nativas seguidas, com prazo de validade muito curto, acabarão por torná-los obsoletos.
A consciência do valor do fator aprendizagem nesta equação é taxativa: desconside­
rando-se no ensino os novos processos e registos de pensamento desta nova geração
apenas se promove a resposta automática e burocrática dos estudantes interessados
em obter boas classificações e não o avanço no conhecimento e a inovação. A maioria
­responde, porque sim, rapidamente abandonando as metodologias, encontrando o seu
caminho fora da escola, não contribuindo para a sua renovação.
Algumas das mudanças instituídas no ensino secundário nos últimos anos no que
respeita às formas de validação do conhecimento e da construção da a­prendizagem

380
EXISTÊNCIAS E INVISIBILIDADES — A QUESTÃO DO PROCESSO NO ENSINO/APRENDIZAGEM EM ARQUITETUR A

t­ambém fomentaram uma propensão natural dos estudantes para o tipo de resposta
atrás referido, para o estudo por memorização das matérias e para o uso acrítico das
tecnologias. Dado o cariz do curso, onde se valoriza a expressão, o pensamento crítico
e a visão pessoal dos problemas em equação, e se faz deste exercício a base da a­ valiação,
nota-se, pela primeira vez em alguns anos, uma diminuição da prestação curricular
dos estudantes. Assim, aquilo que aparentava ser apenas um problema da instituição
de ­acolhimento e da sua oferta está agora transferido para a esfera dos estudantes,
denotando-se quebra de rendimento e mesmo a dúvida relativamente à sua ­certeza
face à vontade e apetência pela frequência do curso pelo qual optaram no final do
ensino secundário.
Mas, a ação da instituição (das instituições) não se deveria ficar pela intervenção
junto dos estudantes nos «anos propedêuticos» do curso. As pontes de diálogo com o
grau de ensino secundário, resultando em reflexão conjunta e em aproximações curri­
culares permitiriam a eliminação do fosso entre projetos educativos que deveriam
ser sequenciais e atenuariam o drama existencial vivido pelos estudantes no processo
de a­ culturação a uma realidade escolar, muitas vezes confusa face ao seu quotidiano
­anterior. A esta necessidade de diálogo com o exterior penso dever-se acrescentar a
­dimensão interior do processo: a criação de momentos de partilha pedagógica entre as
UC’s, de forma a desenvolver o conhecimento mútuo das diversas práticas e fomentar
as condições para as possíveis reflexões e adequações didáticas e pedagógicas, incluindo
as que advêm de um melhor conhecimento dos estudantes e dos seus contributos para
o sistema.
Como a ação na escola é biunívoca (como gostamos de dizer, aprendemos uns com
os outros, todos os dias), ao invés de diabolizarmos esta diferença trazida por esta nova
geração, de os tentarmos submeter aos nossos métodos, talvez valesse a pena estudar o
seu quotidiano e incorporar as novas formas de pensamento e de ação nas didáticas do
curso, incentivando dinâmicas mais colaborativas entre professores e estudantes, refor‑
mulando o espaço da aula e o próprio espaço da escola, incluindo realmente os vários
atores do processo escolar.
A reflexão sobre as práticas pedagógicas e a didática na Universidade permanece
relegada para segundo plano, mesmo sendo estas a base da transmissão e da partilha do
conhecimento, admitindo-se como urgente tanto no plano dos professores como no dos
estudantes. A reflexão da relação entre o digital e o analógico, pelo facto de, nos últimos
anos se ter, de facto, verificado uma alteração fortíssima das relações de poder entre as
duas e a insuficiência revelada pelos métodos usados para fazer a transição ou, pura e
simplesmente, o espírito negacionista de alguns, faz parte desta urgência.
Mas, como tudo no processo educativo depende diretamente do ser humano ou
das suas realizações, o processo de transformação, levado a cabo de uma forma ponde‑
rada e inclusiva da diferença e do pluralismo, só ocorrerá se se conquistar tempo útil,

381
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

de qualidade, para o fazer. A situação atual não é brilhante: no que respeita à discência,
­releva-se o facto de cada vez mais os estudantes necessitarem de um tempo útil de estudo
e de reflexão sobre as matérias lecionadas, fomentando-lhes a capacidade de construí‑
rem um pensamento próprio, crítico, que os ajude a progredir no conhecimento de nível
superior na área disciplinar de Arquitetura e nas que lhe são transversais. Para além da
organização dos tempos letivos com contacto e da sua possível regulação e compro‑
misso, seria desejável, tanto no plano das instalações como do seu tempo de estudo,
libertá-los o mais possível de forma a que possam construir o seu currículo de formação
em modo complementar à oferta de ensino. Já não basta apenas a informação que lhes é
transmitida e com eles e por eles trabalhada no espaço de aula, sendo de valorizar a sua
iniciativa individual e/ou coletiva também em atividades extracurriculares.
Neste contexto, o fomento de tempos úteis para refletir e pensar, de tempos que
podemos considerar de longo fôlego, pode marcar a diferença na esfera do ensino
cientí­fico-artístico no qual se insere a FAUP. De igual modo, a condição de «ser profes‑
sor» tem-se alterado nos últimos anos, verificando-se um crescente grau de exigência.
Os tempos letivos deveriam ter em conta esta realidade de forma a que, para além, de os
enquadrar, possibilitem, de facto, o estudo e a preparação das aulas, a investigação indi‑
vidual e a participação em atividades extra-escolares, entre outras obrigações ao vínculo
de docência e à instituição.
Atualmente, tudo isto é possível, não por estarem reunidas as condições para tal,
mas porque os professores se «desdobram» para cumprir estas funções. Ora, somando-­
-lhe o cada vez mais absorvente trabalho burocrático, teme-se que, muito rapidamente,
o foco da atividade escolar se possa desviar para outros campos excêntricos à condição
de docência universitária, sendo mesmo uma pecha no sistema capaz de desmobilizar a
comunidade escolar.

5. O DESENHO DO TEXTO — ESCRITA E ORALIDADE NO


ENSINO-APRENDIZAGEM EM ARQUITETURA
Nesta esfera da criação artístico-científica cuja identidade específica se foca no
­ esenho e nas suas diversas dimensões, as ferramentas e as plataformas de pensamento
d
e expressão da ideia através da palavra ganham cada vez mais importância, não a­ penas
como complemento, mas como plataforma essencial de comunicação e difusão das
ideias e, por conseguinte, do ato criador.
Utilizando metodologias de matriz qualitativa, profundamente etnográficas, recor‑
rendo a técnicas de investigação/ação e de observação participante, utiliza-se o ­espaço
de ensino-aprendizagem em Arquitetura da FAUP como laboratório e a realização
dos exercícios práticos. Em cada um deles é solicitado ao estudante que comunique o
­trabalho em três vertentes: desenho, oralidade e escrita. Sendo a tendência maiori­tária
seguida pelos estudantes a sobreposição natural dessas três formas de c­ omunicação,

382
EXISTÊNCIAS E INVISIBILIDADES — A QUESTÃO DO PROCESSO NO ENSINO/APRENDIZAGEM EM ARQUITETUR A

compete ao docente estimular a alteração desta forma quase mecânica e automá­tica de


pensar o t­exto oral e escrito como complemento «legenda» dos desenhos e não como
uma oportu­nidade para ir além do mesmo e expressar a ideia conceptualmente, f­ alando
de princípios, orientações e processos de pensamento e elaboração do trabalho. Por ­outro
lado, como, neste sistema de usar a palavra pelos estudantes predomina a ­descrição,
concretamente do que nos «mostram» pelo desenho, ocorre uma redundância que os
desmotiva na elaboração do texto e sua comunicação. Embora, de início, a fórmula utili­
zada seja semelhante entre todos («a minha ideia é»), o desenvolvimento textual pouco
ou nada acrescenta a esta expectativa inicial que apontava para os conceitos, para as
essências da criação e não para a sua narrativa.
Considerando o quadro atrás referido, admite-se fundamental a realização de
­exercícios de escrita que promovam, nesta área disciplinar a ultrapassagem das «memó­
rias descritivas» dos projetos e o sublinhar da relevância do trabalho em sala de aula
com as palavras, promovendo capacidades de síntese, organização de pensamento e
expressão que estimulem e auxiliem os estudantes a construírem pensamento crítico
sobre as matérias, capacidade de reflexão sobre conceitos, referências e competências de
improvisação, de desenvoltura do discurso oral, definitivamente não repetindo o que já
comunicaram pelo desenho. Tal é perfeitamente possível e já são vários os exemplos de
sucesso das didáticas aplicadas.

6. INVISIBILIDADES, POR ÚLTIMO


Sublinhar a importância do reforço da presença no ensino em Arquitetura da
­reflexão académica sobre a equação das invisibilidades do «processo», materiais e imate­
riais, dos fluxos e das geometrias variáveis na medida do seu potencial para criar condi‑
ções reais para um desenvolvimento mais inclusivo das novas «formas de pensar» e de
processar a ideia durante o ato criador, é uma preocupação que induzirá, possivelmente,
num futuro relativamente próximo, à reinvenção dos métodos/processos didáticos de
forma a captar a atenção e desenvolver o espírito crítico no estudante.
Esbater as fronteiras/barreiras do quotidiano da contemporaneidade, muito
­marcadas por lógicas de zonamento físico e social, de fronteiras e territórios rígidos
na sua intelectualidade e conformação, numa relação tensa entre acesso e exclusão do
sistema, identidade e repulsa, pertença e abandono, podemos auspiciar que, com uma
prática pedagógica associada ao ensino-aprendizagem em Arquitetura potencial­mente
catalisadora e desbloqueadora de construção de posicionamento crítico, se construa
uma dialética no «processo» entre ensino e aprendizagem e entre ensino e investigação.
Para já, as existências, são ainda invisibilidades.

383
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

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EXISTÊNCIAS E INVISIBILIDADES — A QUESTÃO DO PROCESSO NO ENSINO/APRENDIZAGEM EM ARQUITETUR A

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385
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

386
VISTA ALEGRE, MAKING AND THINKING
RITA ALMEIDA FILIPE*

Resumo: Esta investigação debruça-se fundamentalmente sobre duas questões teóricas que vão ao encontro
dos aspetos funcionais e culturais dos objetos. Primeiro, sobre o entendimento do funcionalismo numa
perspetiva modernista globalizada, refutando funcionalidades predeterminadas e fixas que conduzem à
­obsolescência dos objetos — propondo projetar para uma realidade cultural fluida e diversa. Simultane‑
amente, propõe-se trabalhar sobre a possibilidade da renovação do significado e do simbolismo em dife­
rentes contextos culturais ao longo do tempo, questionando sobre o valor que atribuímos aos objetos. Estas
questões conduziram-nos ao interesse pela cultura cosmopolita e vernacular, e ao design cultural.
Este artigo também reflete um trabalho experimental de projeto em design, tendo como caso de estudo a
fábrica de porcelanas Vista Alegre, com um precioso legado cultural tradicional, a transpor para a cultura
material contemporânea e para as práticas domésticas do quotidiano.
Palavras-chave: design; funcionalismo; cultura cosmopolita e vernacular; significado simbólico.

Abstract: The work with Vista Alegre is suggested as a case study for its legacy and high-quality manufac‑
tured porcelain, along with a major industrial sophistication, along with an historical tradition still very alive.
The questions raised concern longevity of objects in use, renewal of its meaning through time, and its trans‑
lation into new markets and today’s cultural diversity.
This research focuses mainly on empirical and theoretical issues, meeting the functional and ­cultural ­aspects
of objects. First, questioning the understanding of functionalism in a modernist perspective, ­perspectives in
opposition to the contemporary view of versatility of cultures and its translation to contem­porary practices.
Then to study key concepts for the renewal of meaning concerning different cultural c­ ontexts and values
through time.
Keywords: design; functionalism; cosmopolitan and vernacular culture; symbolic meaning.

* CIAUD, Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa. Email: rafilipe@fa.ulisboa.pt.

387
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

INTRODUÇÃO
Este artigo parte de um caso de estudo na fábrica de porcelana da Vista Alegre,
com uma abordagem interdisciplinar na qual estão presentes as disciplinas de design de
produto, etnografia e antropologia cultural.
Colocam-se fundamentalmente duas questões teóricas que vão ao encontro dos
aspetos funcionais e culturais dos objetos: sobre o funcionalismo e as reflexões sobre
o uso, no espaço e no tempo; e sobre a cultura contemporânea e as reflexões sobre a
­forma, no que se refere ao seu valor simbólico. O trabalho experimental foi desenvolvido
através de estadias regulares na fábrica que culminaram na realização de modelos. Foi
feito também um estudo sobre as formas e técnicas tradicionais da porcelana e sobre as
influências multiculturais na génese da Vista Alegre.

FORMA/USO
Procurando estabelecer a sequência de raciocínio que deu origem a esta investi­
gação, é de referir que estas questões surgiram com a conclusão do estudo «Transposição
dos Objetos Tradicionais para a Contemporaneidade»1. A partir da ideia de apropriação
criativa dos objetos, enunciou-se a possibilidade de, se os objetos não estiverem vincu‑
lados a uma função pré-definida poderem ser apropriados de diferentes maneiras — de
acordo com a sua escala, material ou a natureza da produção; e por diferentes modos
de vida — e assim manterem-se em uso durante mais tempo. Porque a promessa do uso
implica o prolongamento do seu tempo de vida e a continuidade da manutenção do seu
significado. Essa apropriação pode variar na prática propondo formas mais abstratas no
que se refere à utilidade, escolhidas pelas pessoas em função da sua adequabilidade aos
usos do quotidiano.
Também porque a sociedade de consumo tal como a conhecemos mudou, defen­
demos a necessidade de ir ao encontro de pequenos grupos culturais, reduzindo
­eventualmente a escala da produção, diversificando para encontrar novos mercados; e
ir ao encontro da diversidade da vida das pessoas, das referências e valor simbólico que
atribuímos aos objetos, abrindo o seu uso ou usabilidade a pessoas com experiências de
vida muito diferentes. Havia, portanto, que desenvolver projetos pertinentes, adequados
e valorizadores das caraterísticas da produção tradicional da Vista Alegre, como manu‑
fatura com técnicas altamente sofisticadas e em risco de esquecimento.
Seguindo esta ideia, procedemos a uma investigação teórica sobre o funciona­
lismo, buscando argumentos para refutar a relação forma/função (fixa) e adotar a ­relação
­forma/uso (fluida).

1
FILIPE, 2007.

388
VISTA ALEGRE, MAKING AND THINKING

REFUTANDO O FUNCIONALISMO
Tentando rever os argumentos para este dualismo projetual primordial, o da
­forma/­função, percorremos o pensamento de alguns autores e designers ao longo dos
tempos, desde Emerson (n. 1803) a Sottsass (n.1917). Descobrimos que alguns ­designers
­fizeram um regresso à observação da Natureza como para começar de novo, ­vendo-a
como ­fluida e em constante mutação, fazendo a apologia da arquitetura orgânica
e ­flexível, que se adequa aos usos e ao estilo de vida das pessoas, e de uma «arte que
­viverá porque será das pessoas, para as pessoas e pelas pessoas» como em Sullivan2,
em que a natureza não é visitada como um regresso bucólico ou romântico à natureza,
ou ­meramente pelo estudo das estruturas da biónica, mas como a origem fundamental
e a inspiração dos artistas e arquitetos, numa perspetiva existencialista ou humanista.
Porque a beleza da Natureza apreciada por um «olhar transparente», como argumenta
Emerson3, só pode ser uma miragem destituída de verdade, referindo-se, penso eu, a
um olhar acrítico, desprovido de carater e de emoção. A presença do elemento espiritual
é essencial para a sua perfeição, que interpreto como a apropriação simbólica e criativa
dos objetos – porque «o conhecimento provém da vida e é da sua apreensão que surge
a verdade, porque a natureza em si já contém o seu próprio design»4. E já receavam a
perca da autenticidade nos objetos industriais, e da ligação entre a arte e vida, fazendo a
­apologia do conceito de arte total, como a reunião de todas as artes. Como na C ­ atedral
Gótica, simbolicamente ilustrada desde Ruskin (n. 1819) ao Mani­festo da Bauhaus
(1919), que representa a proximidade entre o artesão e o ­produto do seu próprio traba‑
lho, pela possibilidade de improvisação em contraste com a ­divisão ­social do trabalho
industrial, onde o operário explorado só encontra sentido no consumo do seu próprio
trabalho, que em última análise reinterpreta aquando do seu ­consumo e apropriação.
Já Ettore Sottsass, recorrendo a uma produção de menor escala, tinha a esperança
de fazer cerâmicas que fossem mais do que ornamentos para pôr por cima dos móveis,
e que propusessem uma nova função para a forma. De facto, as peças do Movimento
Memphis parecem peças de rituais, como escultura africana, como objetos simbólicos
ou ritualizados. Porque embora não fossem objetivamente funcionais, também não
eram exclusivamente decorativos — eram peças com um valor emotivo e artístico muito
forte — uma nova função para a forma, que não a função utilitária.
Nada fazia, portanto, prever nas reflexões dos grandes arquitetos e designers
da história do design, a sugestão de uma metodologia projetual única ou um ­estilo
­internacional globalizado. Se por um lado, foi com o argumento da forma-função
que se questionaram os pressupostos historicistas na arte e na arquitetura do p ­ assado,

2
SULLIVAN, 1896: 6.
3
EMERSON, 1836: 6.
4
EMERSON, 1836: 3.

389
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

como em Louis Sullivan com «o projeto do arranha-céus artisticamente ­conside­-


rado»5 — constatando que novos modos de vida requerem novas soluções formais e
funcio­nais —; foi também com este argumento que perdemos o contacto com o caráter
simbólico e o significado dos objetos na sua génese.
Propõe-se assim, não uma critica ao funcionalismo, mas mais uma reflexão para o
seu entendimento, ou um novo apelo ao sublime, que aqui se refere à beleza da adequa-
ção dos objetos do processo de produção e consumo, que resultam de atos cultu­
rais ­intencionais. Porque é a experiência do esforço mental que constitui o sublime,
não o esforço positivo de ganhos cognitivos mesuráveis, mas as ideias intelectuais.
Um ­conhecimento transmitido através da experiência do espírito, e não só através da
raciona­lidade prática da vida, como nos é atualmente proposto pelo capitalismo e pela
cultura popular de massas.
No contexto da Vista Alegre, propõe-se trabalhar sobre as referências culturais que
imprimam qualidades formais reconhecíveis nos objetos. Procura-se revitalizar t­ écnicas
manuais de excelência em risco de extinção, sempre que possível sacrificando a quanti‑
dade pela qualidade — como em Ruskin em The Lamp of Sacrifice (1849); enaltecendo o
valor cultural nos objetos que dê prazer às pessoas usar coisas que têm forçosamente que
usar, como o faz William Morris (1890).

DIVERSIDADE E VALOR CULTURAL


Já o contributo local para a globalização, expresso na cultura material e imaterial,
que eu procurava antes na identidade e nos objetos tradicionais, parece ser ­agora mais
verdadeiro e adequado substituí-lo pela ilustração da alteridade e da diferença ­cultural
que nos rodeia atualmente, através da observação das práticas do dinamismo da ­tradução
cultural. Surge assim o interesse pelo vernacular e pela diferenciação cultural, e por uma
«poesis of factor»6, mais plural e diversa, como em Bhabha. É na diversidade cultural
que se espera conseguir também o prolongamento do uso dos objetos do quotidiano,
não porque façam sentido para todos, mas porque podem funcionar como termos de
linguagem no diálogo cultural, em constante reformulação.

5
SULLIVAN, 1896.
6
BHABHA, 2013: 00:47.

390
VISTA ALEGRE, MAKING AND THINKING

Figuras 1, 2 e 3. Trabalho de campo nos Ceramic Study Rooms, ©Victoria and Albert Museum, Londres.
Fotos da autora.

A meu ver, o design contemporâneo pode encontrar inspiração e justificação na


constatação de desigualdades sociais por um lado, e por um interesse genuíno por ­valores
diversos, por outro. A recuperação do vernacular no pós-colonialismo, surge não como
uma nostalgia do exótico ou como um novo imperialismo, mas porque é anterior ao
colonialismo e ao capitalismo, como a origem cultural primordial dos povos, como uma
herança preciosa e reconhecível por todos, a comunicar e partilhar. O que me afasta
também da ideia de arquétipo em design, que embora se refira á cultura t­ radicional, fixa
uma forma para cada função. Porque, ao falarmos em cultura vernacular e cosmopolita
referimo-nos à crescente mobilidade das pessoas, de grupos de diversas proveniências e
com diferentes histórias de vida. Tal como dizia Stuart Hall, «quando pergunto a alguém
de onde vem estou preparado para ouvir uma longa história»7.
Mas um mundo a que nos habituámos a chamar com alguma tranquilidade —
­plural e diverso — é hoje visto como uma linha gráfica aos bicos, cheia de acidentes, ­picos
altos e picos baixos. Um mundo nem sempre justo e cheio de contradições. No mesmo
sentido habituámo-nos à ideia da livre apropriação e atribuição de signifi­cado aos obje‑
tos nas sociedades capitalistas, mas na verdade o mundo está inundado de o ­ bjetos utili‑
tários supérfluos, e a nossa liberdade não está na nossa capacidade de consumir.
Por outro lado, segundo Homi Bhabha — a igualdade na diferença ou a igualdade
de direitos em pessoas diferentes, coloca também questões de interpretação impor­tantes.
Porque a igualdade de direitos pressupõe igualdade de necessidades e de estilos de vida,
mas essa não é a realidade, e isso não significa desenhar para todos. O mundo pós-colo‑
nial dá agora lugar a um cosmopolitismo vernacular, constituído pela diversidade e pela
diáspora, onde as grandes narrativas dão lugar a mudanças interiores individuais, e não
a novas utopias generalizantes. Onde sentir-se revolucionário é ser-se revolucio­nário,
onde a pessoa é o seu próprio mundo, que age e se move como uma microestru­tura,
como afirma Daniel Miller8, e que pode ser analisado como uma micro sociedade, a uma
escala muito mais pequena, ao nível da antropologia e não da psicologia.
7
HALL in AKOMFRAH, filme, 2013.
8
MILLER, 2012.

391
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Segundo Dori Tunstall9, o design associado à antropologia, tem a possibilidade


de desenvolver metodologias descolonizadoras e comprometidas socialmente, contri‑
buindo para uma transformação genuína das relações sociais. Procura-se aqui investigar
sobre qual o papel da cultura material no mundo atual e como pode traduzir valores em
experiências tangíveis entre as pessoas.

FORMAS E TÉCNICAS TRADICIONAIS


Importa portanto, fazer uma reflexão sobre a tradição formal e as influências
­multiculturais que estão na génese da fábrica da Vista Alegre, tal como Sévres em Paris e
o Oriente, e trabalhar sobre a possibilidade da sua tradução no panorama da diversi­dade
da cultura material contemporânea — concebendo objetos coerentes com a ­história
da sua produção e adequados aos pressupostos atrás abordados, aplicados ao projeto
em design.

Figuras 4, 5 e 6. Trabalho de campo nos Ceramic study rooms. ©Victoria & Albert Museum.
Fotos da autora.

Para além da análise do funcionalismo, interessou-me também revisitar os ­objetos


do passado para perspetivar o futuro. Foi feita uma investigação sobre a produção
­mundial de porcelana, pela análise de bibliografia, mas também desenvolvido trabalho
de campo em diversos museus como os Ceramic Study Rooms do Victoria and Albert
Museum e a Wallace Collection em Londres, ou o Musée Guimet des Arts Orientales,
o Musée du Louvre e o Musée das Manufactures de Sevres em Paris. Não pela procura
de cânones ou receitas formais, mas pelo conhecimento das técnicas e das formas da
­porcelana, desde os vasos de Atenas, os celadons da Coreia ou o Barroco de Sévres.
Onde, em pleno acordo com Maynard10, o sublime se revelou pela emoção da desco­
berta das formas e das motivações do passado, que me pareceram agora deslumbrantes
pela sua pertinência e contemporaneidade.

9
TUNSTALL, 2013.
10
TUNSTALL, 2013.

392
VISTA ALEGRE, MAKING AND THINKING

O CASO DE ESTUDO DA VISTA ALEGRE


É, portanto, também na excelência das técnicas de fabrico da porcelana que se
­espera conseguir o prolongamento do uso, porque estão profundamente marcadas pelo
saber-fazer, e pela ligação entre o tempo de laboração e o tempo de uso. Deste modo a
relação que estabelecemos com os objetos e o valor que lhes atribuímos pode ser propor‑
cional à conveniência do seu fim e à sustentabilidade da produção.
O caso de estudo da Vista Alegre enquadra-se no âmbito das questões enunciadas
porque se trata de uma estrutura produtiva de longa tradição — a trabalhar no âmbito
industrial e artesanal em simultâneo, com uma produção de alta qualidade em ambas as
vertentes, a produzir não só objetos utilitários para uso doméstico e hoteleiro (funcio‑
nais) mas também objetos decorativos e de arte (edições limitadas, escultura) — permi‑
tido simultaneamente um novo olhar sobre as formas tradicionais dos objetos de uso,
no âmbito industrial, mas também um trabalho no âmbito artesanal, indo ao encontro
do conceito de design e manufatura, da experiencia manual, colocando-nos em contacto
direto com o saber-fazer tradicional.
O processo de trabalho prático caraterizou-se por uma grande proximidade e­ ntre
o designer e a produção, pelo planeamento e execução do trabalho manual ao lado
dos ­artesãos, um convívio diário com os técnicos em todos os setores da fábrica e da
­produção, tendo tornado possível um conhecimento profundo da realidade existente,
no que se refere ao testemunho, conhecimento e experiencia pessoal dos operários e
artesãos, e das técnicas de fabrico e de manufatura praticadas, numa atitude de design
fazer-e-pensar.

Figura 7. Serviço de jantar de Madame Pompadour, constituído por múltiplas peças de porcelana com
funções fixas. Sévres 1745. ©Autor da foto não identificado. Fonte: <http://ccilc.pt/imprensa/portugueses-levam-
colecao-de-vasos-de-porcelana-chinesa-de-exportacao-a-maior-feira-de-artes-e-antiguidades-do-mundo/>.

393
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Também o questionar das funções fixas nos objetos parece oportuno fazer-se na
Vista Alegre, pela abundância de serviços de mesa de porcelana, à francesa, que consti‑
tuem conjuntos funcionalmente fixos e que interessa desmembrar para propor objetos
que permitam uma multiplicidade de usos.
Os novos projetos são apresentados sob a forma de uma coleção de referências
multiculturais. Onde os objetos são concebidos a partir da excelência das técnicas obser‑
vadas, e são desenhados expressamente para uso quotidiano, da cozinha (ou do forno)
para a mesa, mas também para o aparador, como objeto cultural ou ritualizado, como
em Sottsass.

Figuras 8, 9, 10, 11 e 12. Novos modelos executados na fábrica da Vista Alegre. 8. Garrafa Sevres, porcelana.
9. L’Écume des Jours, taça com chaminé. 10. Três Taças Lotus. 11. Garrafa Árabe (todos com cores
aplicadas á pistola). 12. L’Écume des Jours, taça com tampa, porcelana com pintura manual.
Fotos de Luisa Ferreira.

DESIGN CULTURAL
Porque questionarmo-nos sobre a forma-função levanta também a questão proje‑
tual essencial: como desenhar objetos sem uma função pré-definida, sem cair no risco de
desenhar objetos exclusivamente decorativos, ou supérfluos? — Onde a inexis­tência
de uma forma original, a apropriação das formas e a mera tradução cultural, pode
­significar a morte do autor?
A opção tomada foi a de sugerir um projeto que ilustre a realidade cosmopolita e
diversa que nos rodeia hoje, nas nossas casas e no mundo. E assim a originalidade deste
trabalho será a visão que propõe sobre a cultura material contemporânea existente no
mundo. Investigando sobre a propriedade dos objetos e a oportunidade de um contri‑
buto cultural heterogéneo, experienciado através da prática da tradução cultural. Como
um desejo de preservação, procurando recuperar formas que possam voltar a fazer
­sentido, a par de um desejo de mudança no sistema de produção e consumo. Virando as
costas ao exotismo como ícone Pop.

394
VISTA ALEGRE, MAKING AND THINKING

Figuras 13, 14 e 15. 13. Novos modelos inspirados em formas tradicionais ou vernaculares: Pyxis circulaire,
Athenes 740 A.C., Musée du Louvre, Paris. 14. L’Écume des Jours, desenho.
15. L’Écume des Jours, modelo da taça com tampa.
Foto da autora.

Assim, em vez de queremos construir um novo estilo, como mais uma ­novidade
que construiria um projeto de natureza tautológica para a Vista Alegre — porque não
iria provavelmente colocar novas questões sobre o sistema de produção e consumo
­atuais — estudaram-se as influências históricas e o panorama cosmopolita da génese da
sua produção, que identifico com a realidade global atual, enveredando assim por um
estilo baseado no conhecimento e por um conhecimento baseado na prática. Tal como
em «os artistas e a arte podem ocupar um lugar de antagonismo em relação aos valores
instituídos da sociedade e criar um lugar de tensão no discurso ideológico unificado
pela criatividade. (…) O artista aparece assim como a figura do curador que encontra
exemplos de criatividade existente no trabalho de outras pessoas, e chama a atenção para
estes modos»11.
Este estilo do conhecimento poderá constituir então uma alternativa ao ­sistema
de consumo de massas porque não apresenta novidades, mas elabora novas ideias
sobre os objetos existentes. Assim, e no que se refere à tradição formal e ao valor dos
objetos, tal como afirma Pollock12, os objetos podem ser os mesmos, o nosso olhar, a
­estrutura ­teórica e prática é que pode ser alterada, equacionado um novo discurso sobre
os ­mesmos objetos.

CONSUMO E SUSTENTABILIDADE
A estética do sacrifício de John Ruskin ou a utopia das Artes e Ofícios em William
Morris são hoje vistas como visões pioneiras de eco-design, porque no seu amago
­fazem a apologia do sacrifício da quantidade em prol da qualidade, muito próximos dos
­parâmetros de sustentabilidade humana e ambiental desejáveis atualmente.
11
BISHOP, 2010: 00:28:46.
12
POLLOCK, 2002.

395
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Porque o sistema de mercado capitalista em que nos movemos atualmente é


c­ araterizado por um — mais do mesmo, diferente e, portanto, igual — p
­ orque os mode‑
los de progresso e desenvolvimento continuam a ser medidos pela capaci­dade produtiva
e pelo acesso das pessoas aos bens de consumo. Também no sentido i­nverso, quanto
mais pobre e menos recursos tiver uma sociedade mais poluente e nociva é g­ eralmente
a sua atividade. Assim, as desigualdades económicas acentuam os problemas na manu‑
tenção sustentável dos recursos naturais e humanos, porque colocam problemas opostos
que confluem na mesma questão: são o excesso de produção e a desvalo­rização da vida
das pessoas por um lado, e o excesso de consumo e a competição irracional por outro,
que levam à sobrecarga e ao esgotar dos recursos no planeta.

CONCLUINDO
O tema proposto e o caso de estudo da Vista Alegre possibilitaram averiguar sobre
o sentido atual da produção de objetos e sobre a real sustentabilidade da aplicação de
técnicas manuais de excelência atualmente em risco de cair em desuso.
Produzir menos e melhor, indo ao encontro de soluções formais e concetuais que
prolonguem a vida dos objetos e lhes restituam autenticidade, implica necessariamente a
desaceleração da produção, numa postura «Buy less, choose well, make it last»13, porque
a pintura manual implica sempre muita mão-de-obra e longos tempos de produção,
­assim como a aplicação de múltiplas cores à pistola no mesmo objeto é muito dispen­
diosa por requerer múltiplas cozeduras.
Mas tal como sugere o filósofo Richard Noble14, trata-se aqui de construir uma
­utopia positiva que traz a vantagem de colocar questões e sugerir possibilidades conce­
tuais e produtivas, colocando-as lado a lado com a produção atual da fábrica. Foi por isso
necessário manter alguma independência concetual das questões práticas da f­ábrica,
­colocando-me numa situação de laboratório conveniente a um exercício criativo livre
das constrições dos interesses comerciais e de mercado da empresa — o que não signi­fica
afastar este trabalho das possibilidades produtivas e do consumo, mas «ir ao ­encontro
dos interesses das pessoas que serão afetadas pelos projetos de design», tal como na
­crítica ao colonialismo por Marion von Osten15. É, portanto, premente uma reflexão
sobre como, porquê e para quem recuperar a produção artesanal ou uma sofisticação
perdida na produção de objetos de uso em porcelana.
Demarcando-me de qualquer tentativa de construir uma nova narrativa, ou meto­
dologia projetual única, propõe-se aqui um empréstimo cultural que é mútuo e dinâ­
mico; que nos aproxima da história da Vista Alegre e da génese da cultura da porcelana;
da esfericidade do mundo, aproximando Oriente e Ocidente, Norte e Sul; e nos p ­ ermite
13
WESTWOOD, 2014.
14
NOBLE, 2013.
15
NOBLE, 2013.

396
VISTA ALEGRE, MAKING AND THINKING

corrigir o discurso do exótico e imperialista da modernidade, aproximando-nos da


­realidade social e cultural cosmopolita contemporânea.
Trabalhando sobre a liberdade da tradução intercultural, pelo exercício da repre‑
sentação multicultural.

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397
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FILMES
AKOMFRAH, John (2013) — The Stuart Hall Project. Reino Unido: Smoking Dogs Films Lina Gopaul.

398
O OLHAR ÚNICO DO DESIGNER NA
OBSERVAÇÃO DA PAISAGEM: O CASO DO
ARQUIVO POÉTICO PORTUENSE
OLINDA MARTINS*
JOANA QUENTAL**
ALICE SEMEDO***

Resumo: O artigo que aqui se apresenta reflete sobre os modos de fazer do Arquivo Poético Portuense,
­enquanto lugar de preservação de imagens do património gráfico da cidade e cujo desígnio é inspirar a
criação de novas narrativas. O projeto de um arquivo aberto e em permanente atualização, que privilegia
o sentido e registado de modo poético, justifica-se pelo potencial de criação de narrativas promotoras de
representações alternativas.
Este estudo parte de uma abordagem de caráter etnográfico que convida os designers a registar as imagens
que são, para si, mais significantes. Assume-se, portanto, que se trata de um processo subjetivo e singular,
que parte de uma observação poética da paisagem pelo designer, registando os elementos que aí sobressaem
como configuradores de novos sentidos.
A reflexão sobre os procedimentos presentes na construção deste arquivo permite a sistematização de
­princípios orientadores, que legitimam o olhar poético do designer na identificação de um património
­gráfico presente na paisagem e potenciador de outras narrativas.
Palavras-chave: observação poética; arquivo poético; paisagem; patrimonialização.

Abstract: The paper presented here reflects on the ways of making the Oporto’s poetic archive, as a place of
preservation of images of the city’s graphic heritage and whose purpose is to inspire the creation of new
narratives. The project of an open and permanently updated archive, that privileges the poetic’s sensed and
the registered way, is justified by the potential of creating narratives that promote alternative representations.
This study is based on an ethnographic approach that invites designers to record the images that are, to
them, more significant. It is assumed, therefore, that it is a subjective and singular process, starting from a
poetic observation of the landscape by the designer, recording the elements that stand out as configurators
of new senses.

* IDmais – Universidade de Aveiro. Email: olinda.martins@ua.pt.


** IDmai – Universidade de Aveiro. Email: joana.quental@ua.pt.
*** CITCEM – Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Email: semedo.alice@gmail.com.

399
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

The reflection on the procedures present in the construction of this archive allows the systematization of
guiding principles, which legitimize the poetic look of the designer in the identification of a graphic heritage
present in the landscape and enhancer of other narratives.
Keywords: poetic observation; poetic archive; landscape; heritagization.

INTRODUÇÃO
Na origem da palavra poesia encontra-se o termo poiesis, que significa «a ativi‑
dade através da qual uma pessoa traz algo à existência que não existia antes»1; mas
­poético é «também o que revela a virtude de criar, o inventivo e engenhoso próprio da
poesia (…)»2. Partindo deste pressuposto, o arquivo poético é compreendido simulta­
neamente como um repositório de memórias e potenciador de novas interpretações
e representações.
O artigo que aqui se apresenta reflete sobre os modos de fazer do Arquivo Poético
Portuense, enquanto lugar de preservação de imagens do património gráfico da cidade
recolhidas por designers, e cujo desígnio é inspirar a criação de novas narrativas.
Este processo de identificação e recolha parte de uma abordagem sensory ethno­
graphy (ou etnografia através dos sentidos)3, em que os designers são convidados a ­registar
as imagens que são, para si, mais significantes — numa observação poética da paisagem.
Assume-se, assim, como um processo subjetivo e singular, em que

(…) os designers foram inspirados pelas suas observações pessoais do mundo e


viram a beleza, poesia ou significado em coisas que outros não tinham visto. Algumas
vezes, as inspirações foram procuradas deliberadamente (…) enquanto que em outras
ela apareceu como resultado da mera curiosidade (…)4.

A reflexão sobre a abordagem metodológica presente na construção do Arquivo


­Poético — amostra, recolha, avaliação e seleção, organização e catalogação dos espé­cimes
recolhidos — permitir-nos-á a sistematização de princípios orientadores sobre as ­questões
de patrimonialização, construção e acesso de um arquivo que não se quer p ­ assivo, mas
em que o sentido e registado se dará a conhecer em representações alternativas.

O ARQUIVO POÉTICO PORTUENSE


Aristóteles refere-se à poética como a «parte dos estudos literários que se p
­ ropõe
investigar os processos que dizem respeito às normas de versificação dos textos, os
­componentes teóricos de que se revestem», quer se trate do sistema poético de um

1
POLKINGHORNE, 2004: 115.
2
PROVIDÊNCIA, 2012: 118.
3
PINK, 2015.
4
SURI, 2011: 30.

400
O OLHAR ÚNICO DO DESIGNER NA OBSERVAÇÃO DA PAISAGEM: O CASO DO ARQUIVO POÉTICO PORTUENSE

e­ scritor, de uma época ou de um país5. Por poético — próprio da poesia — ­entende-se


aquilo que proporciona inspiração, compreendendo a virtude de fazer, de criar, de
­produzir. É na origem do conceito de poesia que encontramos o termo poiesis, que
de acordo com Polkinghorne é «a atividade através da qual uma pessoa traz algo à
­existência que não existia antes6».
Aristóteles identificou três atividades humanas fundamentais: a theoria, a praxis
e a poiesis7. Ainda que praxis e poiesis se encontrem no domínio do fazer, apresentam
diferenças importantes. Apoiando-se em Besnier8, Joana Quental sumariza assim a
­distinção entre os conceitos de praxis e poiesis em Aristóteles:

A poiesis relativa ao fazer, apresenta-se como uma actividade transitiva e


orientada para a produção, dirigida à realização de qualquer coisa que é exterior
ao agente, enquanto que a praxis remete para a actividade imanente de um sujeito
(distinguindo-se da acção transitiva, exercida sobre o objecto) e o seu único intuito
é o próprio desenrolar da acção e aperfeiçoamento do agente (a eupraxia). […] Dito
de forma resumida: enquanto na poiesis o resultado é a coisa produzida, exterior ao
sujeito e que persiste para além da tarefa concluída, na praxis o resultado está para
além do objecto, é o próprio processo (energeia)9.

O conceito de arquivo poético portuense utilizado neste estudo parte, portanto,


dos sentidos potenciados pelas palavras formadas a partir dos antepositivos poet10/poes,
configurando-se como um arquivo que revela as diversas camadas gráficas da paisagem
portuense e que se torna fonte de inspiração para outras criações.

OBSERVAÇÃO POÉTICA
Entende-se, assim, que observar e fotografar a cidade é uma ação que resulta em
poesia (visual), em que os poetas-designers percebem, experienciam, selecionam e
­registam a paisagem, revelando configurações até aí ignoradas e capazes de potenciar
novas leituras sobre o lugar.
A observação poética por designers, tem sido amplamente referenciada por vários
autores11 como sendo muito particular e estando intimamente dependente quer das suas
experiências pessoais, quer da sua formação e prática enquanto profissionais.

5
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2003.
6
POLKINGHORNE, 2004: 115.
7
Pensar, agir, fazer.
8
BESNIER, 1996.
9
QUENTAL, 2009: 300-301.
10
(…) do lat. «poeta, ae “poeta; o que faz, artista”, emprt. antigo e oral do gr. poietés, oû “autor, criador; compositor de
versos, poeta”, (…)». Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2003.
11
MOLES, 1986; NELSON, 2017; POYNOR, 2012; SURI, 2011.

401
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

O designer George Nelson12 que, entre outras coisas, se dedicou à observação


da paisagem urbana, refere que a observação é um assunto profundamente pessoal e
intrans­missível: observa-se e descodifica-se o que nos rodeia à luz de experiências
­acumuladas e da informação que se vai guardando; dos interesses de cada um e das
convicções ­pessoais. A atenção recai em temas que não se fecham sobre uma v­ erdade
­absoluta, mas que, pelo contrário, potenciam a interpretação revelando diferentes
­camadas de s­entidos. Suri13 complementa, afirmando que os designers veem beleza,
­poesia ou significado em coisas que outros muitas vezes nem reparam. Esta observação
sensível pode ser incitada por uma procura sistemática, ou ser apenas o resultado da
curiosidade individual de cada designer.
Assim, o que propomos como ponto de partida para a construção deste arquivo
é a observação poética por parte dos designers para identificar o património gráfico
presente na paisagem portuense, estabelecendo-se assim os conceitos base desta trilogia.

PAISAGEM
A necessidade de encontrar uma taxonomia para catalogar diferentes tipos paisa­
gem — seja natural, urbana ou industrial — dá origem a classificações pouco flexíveis,
que carregam em si uma intenção de delimitar artificialmente fronteiras, já que os
­diferentes elementos que as caraterizam podem conviver em simultâneo, misturando-se
num mesmo lugar.
Assim, sobre a paisagem e de uma forma muito simplificada, considerou-se a
­porção de território que se abrange com um lance do olhar, explorando-se, mais especi‑
ficamente, a ideia apresentada por Álvaro Domingues sobre a paisagem transgénica —
baseada na metáfora da biotecnologia e dos Organismos Geneticamente Modificados,
que partilham genes de várias espécies criando uma outra realidade, distanciada dos
pré-conceitos associados às paisagens (natural, cultural, intocada, entre outras). Aqui,
é possível perceber a existência de elementos pertencentes a realidades conceptual­
mente distintas que, em vez de competirem no sentido de chamar a si o território, criam
­outras possibilidades de leitura e de entendimento, «interpelando, inquietando, c­ riando
e ­distribuindo sentidos e polémicas»14. A paisagem transgénica permite-nos uma aproxi­
mação que explora a simultaneidade de ocorrências, deixando espaço para tratar a
­diversidade de componentes que a constituem, sendo no entanto, a perceção do c­ onjunto
que dá sentido às partes; permite-nos encontrar espaço para a partilha do s­ ensível, sob a
forma de outras referências e de outras formas de ver e de dar a ver, e­ xplorando a alteri‑
dade em si contida; permite-nos discutir sobre a rutura com a ordem natural (previsível

12
NELSON, 2017: 22.
13
SURI, 2011: 30.
14
DOMINGUES, 2013: 234.

402
O OLHAR ÚNICO DO DESIGNER NA OBSERVAÇÃO DA PAISAGEM: O CASO DO ARQUIVO POÉTICO PORTUENSE

e ­consensual) das coisas, constituindo-se até como ferramenta de ­legitimação entre a


­norma e a alteridade; permite-nos a politização da paisagem através do debate social
sobre o que se partilha e como se partilha15.

PATRIMÓNIO GRÁFICO
Como terceiro vetor, estudaram-se as questões ligadas ao património como

(…) o conjunto das obras do homem nas quais uma comunidade reconhece
os seus valores específicos e particulares e com os quais se identifica. A identificação
e a valorização destas obras como património é, assim, um processo que implica a
selecção de valores16.

Para a construção do arquivo poético portuense, estabeleceu-se que o conceito de


património gráfico da paisagem portuense abrangeria dois tipos de conteúdos visuais:
1. Manifestações visuais bidimensionais ou tridimensionais, criadas pelo Homem
e que integrariam, pelo menos, uma das seguintes funções comunicacionais:
­informativa, persuasiva, decorativa, mágica, ou metalinguística e fática17. De
forma sintética, a função informativa pressupõe a transmissão de conteúdos ou
conhecimento. A forma como isso é feito varia, sendo mais ou menos sofisti­
cada, consoante a complexidade da mensagem que se quer transmitir; a função
persua­siva ou retórica tem como objetivo, «persuadir ou convencer, ou simples‑
mente alterar»18 mentalidades ou comportamentos, variando também o nível de
complexidade a que isso acontece; pela função decorativa ou estética é explo‑
rada a ornamentação como fonte de prazer e entretenimento; a função mágica
­trabalha a dois níveis: a) permite o acesso à esfera do sagrado ao tornar presente
algo que está ausente ou distante, b) permite a transformação de algo (uma ideia
por exemplo) noutra coisa (que pode ser concretizada em grafismos diferentes
se desenvolvida por designers diferentes). Por último, a função metalinguís­tica
e fática19: sendo a metalinguagem a linguagem utilizada para descrever ­outras
linguagens, ela pressupõe o conhecimento dos códigos que nos permitem
­
­fazer essa leitura. No contexto do design gráfico isso também se aplica, sendo
­

15
DOMINGUES, 2013.
16
Carta de Cracóvia 2000 Princípios para a Conservação e o Restauro do Património Construído.
17
BARNARD, 2005.
18
BARNARD, 2005: 15.
19
Palavra ou expressão utilizada para estabelecer o ato comunicativo e não para transmitir informação. Diz-se da
função da linguagem que se centra no canal da comunicação e cujo objetivo é assegurar ou manter o contacto entre
o locutor e o interlocutor. FÁTICO, 2017.

403
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

necessário conhecer as cifras utilizadas para descodificar uma imagem especí­


fica20. Na construção de uma narrativa gráfica, tal como acontece no discurso
verbal, incluímos muitas vezes expressões convencionais e previsíveis que ­servem
de alavanca para iniciar, continuar, anuir ou concluir um determinado discurso.
A forma como uma imagem é enquadrada e colocada na grelha de paginação dá
indicações do percurso que devemos seguir na leitura do conjunto. Grafismos
como setas, mudanças de enquadramentos ou de perspetivas, podem também
ser encaixados nesta função.
2. Composições visuais (com um elevado valor gráfico) compostas por e­ lementos
básicos, tais como o ponto, a linha, a forma, a direção, a posição, a escala, o
­volume, a textura, o tom, a cor, o movimento, o contraste.

Aquando a apresentação do conceito de património gráfico aos participantes


do estudo, foi debatido se ainda poderíamos incluir outras ideias/dimensões que não
­estivessem contempladas, mas acordou-se em manter apenas as dimensões anterior‑
mente referidas.

PERFIL DOS PARTICIPANTES E DEFINIÇÃO DOS PERCURSOS


No trabalho de campo participaram designers de comunicação que percorreram
um itinerário pré-definido, registando fotograficamente através de telemóvel com loca‑
lização GPS, a sua observação da paisagem.
Tratando esta investigação o património gráfico, considerou-se que apenas deve‑
riam ser selecionados participantes com formação superior nesta área científica e com
experiência de docência ou experiência profissional comprovada.
Assim, e segundo estes critérios, foram definidos inicialmente 2 perfis de parti‑
cipantes: um, composto por designers de comunicação que desempenham funções de
docência em instituições de ensino superior (Perfil A), o outro composto por designer
de comunicação com mais de 5 anos de experiência profissional e trabalho desenvolvido
na área (Perfil B).

É necessário conhecer o código utilizado num mapa para conseguirmos ler esse mapa. Só depois de percebermos o
20

que significam as cores ou as linhas que o compõem, nos é possível interpretar o seu conteúdo.

404
O OLHAR ÚNICO DO DESIGNER NA OBSERVAÇÃO DA PAISAGEM: O CASO DO ARQUIVO POÉTICO PORTUENSE

Figura 1. Participantes a fotografar o património gráfico.

Sendo a cidade do Porto o local para a recolha do património gráfico, foi necessário
estabelecer percursos específicos que tornassem o estudo exequível, estabelecendo-se
para isso três critérios. Cada um dos percursos deveria:
1. Estar dentro dos limites do Centro (da cidade) anterior ao Plano Auzelle (1962),
e que tinha por limite norte a rua Gonçalo Cristóvão, a sul a praça Almeida
­Garrett e a rua Mouzinho da Silveira, a poente a Cordoaria e a nascente a praça
da Batalha;
2. Incluir pelo menos uma via construída na época do plano dos Almadas
(1758/1813);
3. Ser possível explorar a pé num tempo médio de 120 minutos.

Destes critérios surgiram três itinerários distintos. O percurso 1, partindo da


­Estação de Metro da Trindade em direção a sudoeste terminando na Estação de Metro
de S. Bento.

405
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Figura 2. Mapa do percurso 1.

O percurso 2, em direção a Este/Sul, da estação de metro da Trindade em direção


ao metro dos Aliados.

Figura 3. Mapa do percurso 2.

406
O OLHAR ÚNICO DO DESIGNER NA OBSERVAÇÃO DA PAISAGEM: O CASO DO ARQUIVO POÉTICO PORTUENSE

E o percurso 3, desde o metro dos Aliados para Este e por um trajeto mais sinuoso
até ao metro de S. Bento.

Figura 4. Mapa do percurso 3.

Os materiais que aqui se apresentam e que integram o Arquivo Poético Portuense,


foram recolhidos no Percurso 1, contando com um número superior a 800 fotografias,
ainda em bruto e sem qualquer tipo de filtro ou seleção.

407
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Figura 5. Algumas imagens do arquivo poético.

RECOLHA DE DADOS
Com estas deambulações pela cidade, pretendeu-se identificar e registar fotografi‑
camente as presenças potencialmente significantes na paisagem, e recolher o contributo
dos participantes no que respeita a estabelecer uma definição ampliada do conceito de
património gráfico, identificando possíveis categorias para a catalogação dessas imagens.
No primeiro contacto efetuado com os participantes, foi explicado que se pretendia
que os designers (perfil A e B), através de observação poética da paisagem portuense
(percurso 1), recolhessem os espécimes do património gráfico nela existente.
Dois dias antes do passeio foi enviada aos participantes uma apresentação clarifi‑
cando conceitos ligados à investigação — paisagem (transgénica), observação poética
e património gráfico — deixando espaço para que pudessem pensar e propor ajustes
a esses conceitos pré-definidos. Solicitou-se o preenchimento de um questionário de

408
O OLHAR ÚNICO DO DESIGNER NA OBSERVAÇÃO DA PAISAGEM: O CASO DO ARQUIVO POÉTICO PORTUENSE

caraterização do participante, que ajudou na recolha dos dados pessoais e na relação que
mantêm com a cidade21.
No dia do passeio, o percurso iniciou-se com uma breve conversa sobre o enten‑
dimento de património gráfico e depois de uma troca de impressões partiu-se para o
percurso com uma ideia consensual sobre o tema, muito baseada na apresentação feita
anteriormente, mas quase sempre ampliada com sugestões dos participantes.
A abordagem metodológica a estes passeios, em que participantes e investiga­
dora percorrem a paisagem portuense, teve como sustentação teórica o trabalho de
­autores como Tim Ingold e Sarah Pink, que referem a importância do envolvimento do
­corpo22 e do seu movimento através do espaço, sendo que o ato de caminhar lhe permite
­ficar imerso no território, percebendo a paisagem, sentindo-a multissensorialmente e
­atribuindo-lhe significados23.
Os sentidos funcionam como um todo, interdependentes e complementando-se.
A observação não ocorre apenas através da visão, mas através do envolvimento de
­todos os sentidos e da sua ligação permanente; são os sons, os cheiros, as texturas que
nos transportam, criam e espoletam memórias, posteriormente traduzidas em registos
­visuais. A visão não se limita à observação, sendo apenas uma parte de um processo
multissensorial através do qual interpretamos o ambiente24.
Nestes passeios, foram várias as referências multissensoriais25 que trouxeram à
conversa memórias passadas e vividas pelos participantes: hábitos de infância ou episó‑
dios de um passado mais recente, ou a experiência física do que é caminhar numa cidade
que se encontra em profunda transformação (seja pelos obstáculos criados pela reabili­
tação urbana ou pelo excesso de pessoas nas ruas), tornando evidente a importância que
os fatores internos (cultura individual e experiências pessoais) e externos (condições
climatéricas ou o dia da semana) têm na leitura da paisagem.
A observação sensorial26 por parte da investigadora e o ato de caminhar com os
participantes, permitiu uma maior compreensão sobre a sua experiência, já que foi
­possível testemunhar e registar através de notas de campo e fotografias, os seus comen‑
tários, comportamentos, a linguagem verbal e não verbal ocorrida durante os passeios.

21
Nome, idade, morada, frequência com que visita ou passou no percurso que iria efetuar, entre outros.
22
Aqui o corpo é entendido como uma ferramenta central de investigação, já que as dimensões sensoriais, afetivas e
empáticas do ser humano revelam-se centrais ao processo de investigação. PINK, 2011: 606.
23
INGOLD, 2000; PINK, 2015.
24
PINK, 2011: 605.
25
O cheiro, a luz, a temperatura num determinado momento, que provocou sensações diversas, com impacto,
não só no que é verbalizado e no que é registado, mas também no comportamento do participante (comunicação
não verbal).
26
Termo sugerido por Sarah Pink e que implica uma observação que envolve todos os sentidos (indo para além da
observação participante), bem como o registo em múltiplos meios (e não apenas textual) da recolha de dados.

409
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

São precisamente estas notas que disponibilizam informações complementares à


recolha fotográfica, servindo para enquadrar as imagens recolhidas, perceber a narrativa
por trás de algumas delas e desconstruir o sentido criado por parte de quem fotografou.
Estas imagens são, por isso, «o resultado de contextos, encontros e envolvi­mentos
­multissensoriais» específicos, cujo «ato de fotografar envolve a convergência de um conjun‑
to de elementos sociais, materiais, discursivos e morais, num ambiente multissensorial»27.
Após os passeios, solicitou-se aos participantes que analisassem as suas fotografias
e selecionassem as que pretendiam disponibilizar para o arquivo. O objetivo foi permitir
que individualmente fizessem uma reflexão sobre o material recolhido e que pudessem
descartar os espécimes repetidos, desfocados ou que simplesmente não quisessem apre‑
sentar. Foi-lhes referido que poderiam fazer uma ligeira edição das fotografias, como
reenquadramentos ou ajustes de cor e contraste.
Cerca de dois dias depois enviaram as imagens à investigadora e foi marcada uma
entrevista que pretendia fazer um ponto de situação após os passeios.
Houve, assim, a possibilidade de neste intervalo a investigadora confrontar as
­imagens registadas pelos participantes com os seus próprios registos do passeio (notas
de campo e fotografias dos intervenientes).
Nesta entrevista semiestruturada28 pretendia-se dar voz aos participantes após a
reflexão sobre todo este processo e, em particular, (a) apurar se o ato de caminhar pela
paisagem com o propósito específico de registar o património gráfico, alterou a forma
como veem esse património; (b) identificar quais as imagens que consideraram mais
representativas desse património e porquê; (c) recolher o contributo dos participantes
sobre possíveis categorias emergentes nos espécimes recolhidos.
Durante as entrevistas, foram recordadas várias referências sensoriais (visuais,
­sonoras e tácteis) retidas dos passeios e convocadas algumas imagens para ilustrar os
argumentos apresentados pelos participantes. Foram também usadas fotografias para
evocar situações específicas que ajudaram a aprofundar a reflexão sobre os objetivos
traçados para esta investigação.

AVALIAÇÃO, SELEÇÃO E CATALOGAÇÃO DOS ESPÉCIMES


RECOLHIDOS
Estes registos fotográficos foram posteriormente analisados, eliminados os espé‑
cimes repetidos (presentes na recolha de diferentes participantes) e organizados através
de um processo de inventário e catalogação. Como qualquer outro arquivo, também este

27
PINK, 2011: 602.
28
Entrevista áudio e efetuada à distância (via Skype ou Facetime), de que faziam parte as seguintes questões: 1. Que
ideia faz agora do património gráfico? 2. Após o passeio alterou a sua perceção? 3. Se tivesse que eleger um pequeno
conjunto de imagens representativas do património, quais seriam? 4. Se tivesse que organizar as imagens em grupos,
como o fariam?

410
O OLHAR ÚNICO DO DESIGNER NA OBSERVAÇÃO DA PAISAGEM: O CASO DO ARQUIVO POÉTICO PORTUENSE

resulta de uma seleção feita por especialistas29 que poderá deixar de fora registos igual‑
mente válidos e importantes. Estas são, aliás, caraterísticas basilares dos arquivos: serem
construídos e incrementados através de um processo de seleção, rejeição e ­destruição
de indícios30, sendo a recolha, avaliação, organização e catalogação dos registos deter‑
minante na forma como os utilizadores do arquivo exploram o passado e consequente­
mente como esse passado é «fabricado»31.
Para além das categorias que surgiram da investigação teórica — ponto; linha;
­forma; direção; posição; escala; volume; textura; tom; cor —, identificaram-se um
­conjunto de termos que emergiram dos passeios, das conversas caminhantes e da entre‑
vista final — tipografia; caligrafia; grafiti; sinal; padrão; repetição; ritmo; simetria; luz;
sombra; mancha; camadas; suavidade; rigidez; coexistência; interação; sobreposição;
­orgânico —, e que são a base para uma possível classificação no arquivo.
A definição de categorias é um processo ainda em desenvolvimento e que carece de
uma análise dos dados mais detalhada. Contudo, está já a ser testada em algumas imagens.

Figura 6. Exemplo de catalogação de uma das imagens.

29
No caso do arquivo poético portuense, esses especialistas foram os designers que participaram nos passeios e a
investigadora, também ela designer.
30
BLOUIN JR. & ROSENBERG, 2010: 86.
31
BLOUIN JR. & ROSENBERG, 2010: 2.

411
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Figura 7. Exemplo de catalogação de uma das imagens.

UM ARQUIVO QUE INSPIRA O FAZER


Sendo este um arquivo que inspira o fazer, foi já desenvolvida uma atividade junto
dos estudantes da licenciatura em Design da Universidade de Aveiro, que promove a
sua aplicação no contexto do desenho tipográfico. Neste exercício, pretendia-se que os
estudantes criassem um tipo de letra inspirados por uma imagem do arquivo.
Está também em curso uma outra atividade no contexto do Design de Moda, em
que os alunos recorrem ao arquivo poético portuense como fonte de inspiração para a
criação de peças de vestuário.
Embora estejam previstas outras evoluções, estes dois projetos são já demonstra‑
tivos da ideia que está na origem deste projeto de investigação: legitimar o olhar poético
do designer como modo de fazer a identificação de um património gráfico presente na
paisagem, sendo o arquivo assim construído fonte de inspiração para outras criações.

412
O OLHAR ÚNICO DO DESIGNER NA OBSERVAÇÃO DA PAISAGEM: O CASO DO ARQUIVO POÉTICO PORTUENSE

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413
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

414
CONFIGURAR – DESFIGURAR – TRANSFIGURAR:
DE CONVERSAS COM VERSOS A DIÁLOGO
COM A POESIA
ANA ISABEL GOUVEIA BOURA*

Resumo: Frequente no discurso oral e escrito que enforma as vivências do quotidiano humano, o ­lexema
«fazer» e os seus correspondentes nas de mais línguas distinguem-se por densa polissemia, referen­ciando
numerosos modos de ação. Veiculado sob forma verbal, substantívica, ou adjetívica, o motivo do fazer
­integra vertentes de configuração, mas também de desfiguração e transfiguração, material ou imaterial,
num processo multissensorial e pluriperspetívico, que, convocando veios cognitivos e emocional-afetivos,
entrelaça imaginação e reflexão. E na obra de arte atinge o fazer humano as raias do sublime: pela poiesis se
desafia os contornos da imanência. Eis porque conversas com versos se convertem, no «fazer» artístico de
Maria Alberta Menéres, em diálogo com o transcendente.
Palavras-chave: criação artística; poesia; Conversas com versos.

Abstract: Frequently used in the oral and written discourse which shapes the experience of human daily life,
the lexeme «make» and its correspondents in other languages are characterized by a dense polysemy which
references numerous ways of making. Expressed as a verb, noun or adjective, the theme/motive of «making»
integrates aspects of (material or immaterial) configuration, but also of disfiguration and transfiguration in a
multisensory and multisided process, which, by combining cognitive and emotional-affective strands, fuses
imagination and reflection. In art, human «making» reaches the borders of the sublime: poiesis challenges
the contours of immanence. For this reason, conversations with verses become, in the poetic work of Maria
Alberta Menéres, a dialogue with the transcendent.
Keywords: artistic creation; poetry; Conversas com versos.

* FLUP/CITCEM.

415
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

1. «FAZER» POÉTICO?
O termo «fazer», tal como os vocábulos que lhe correspondem em outros s­ istemas
linguísticos, constitui, como evidenciam os estudos de Jean Piaget e Lev Vygotsky,
uma das palavras que muito cedo se incorporam no acervo linguístico de cada indiví‑
duo falante — a princípio, enquanto esquema sensório-motor, depois, como signo de
repre­sentação mental e de comunicação verbal1. De facto, na interação dialógica com a
­criança, os elementos parentais e outras figuras cuidadoras recorrem amiúde ao verbo
«fazer», utilizando-o, não raro, como «cover term» para numerosos acontecimentos, de
forma a coloquializarem o ato comunicativo sobremaneira assimétrico.
Assim interiorizada, a unidade lexical «fazer» assoma, em devida ou incorreta
­flexão, com notória assiduidade também no quotidiano da comunicação humana ­adulta,
alicerçando e escorando comportamentos, principiando, mediando e ultimando modos
individuais ou sociais, em palcos espacial, temporal e civilizacionalmente diversos.
Não espanta, por isso, a multiplicidade de matizes semânticos que informa tal
­lexema. Significativamente, o Dicionário de Sinónimos da Porto Editora enumera, na
sua primeira edição, com data de 1977, cento e sete sinónimos do infinito verbal «fazer»,
a que junta doze outros sinónimos do verbo na sua forma pronominal2. Por seu turno,
o Dicionário Houaiss de Sinónimos e Antónimos, publicado, em 2007, pelo Círculo de
Leitores, lista sob o termo «fazer» cento e dois verbos que sinonimicamente o definem3.
Nas suas vertentes de engendramento, modelização, ordenamento, funcionali­
zação, ou regeneração, «fazer» pressupõe a cumplicidade de sujeito e objeto, a e­ ntrega
do fazedor ao fazível, material ou imaterial. No princípio, pode ser o sonho — o ­actante
projeta, seleciona e transforma; ou pode estar a perplexidade — o sujeito depara, p ­ laneia
e molda. Em ambos os quadros, «fazer» presume e constitui genuína experiência
­amorosa: seduzido pela matéria, corpórea ou insubstancial, o fazedor aborda, corteja e
fecunda. E da cópula extasiada que entrelaça sujeito e material tangível ou impalpável,
da síntese deleitada que conjuga apropriação e dádiva emerge a criação, que, enquanto
tal, e já por isso, se afigura sempre grandiosa.
Difere obviamente o estatuto ontológico do objeto. Assim, na investida manipu‑
ladora do sujeito sobre a matéria-prima exterior ao indivíduo, ancora-se a produção
utilitária, mas também a experimentação científica, aliando-se, em ambos os casos, a
acoplagem multissensorial ao manuseio pluriperspetívico. Por seu turno, na gestação
intrínseca que vincula entidade fazedora e material incorpóreo, enraízam-se a perscru­
tação científica, o gesto informativo, o propósito didatizante e o rasgo artístico.

1
Sobre o estádio sensório-motor e a emergência da linguagem na criança, vd., entre outros, PIAGET, 1977 e
­VYGOTSKY, 2012.
2
Cf. TERTÚLIA EDÍPICA, 1977: 540.
3
Cf. HOUAISS et al., 2007: 290-291.

416
CONFIGUR AR – DESFIGUR AR – TR ANSFIGUR AR: DE CONVERSAS COM VERSOS A DIÁLOGO COM A POESIA

Imagem, som, odor, sabor, textura e temperatura travejam e secundam a fabricação


manual ou mecânica, como também a construção científica, e, não menos, a ­mensagem
informativa, ou a encenação pedagógica. Tais agentes sensoriais superam, todavia, a
sua essência instrumental no «fazer» artístico, que lhes adiciona, ou antes, lhes sobre‑
põe, à função coadjuvante a valência autotélica, pois que a «feitura» da obra de arte a
esta não outorga outra finalidade que não seja a de simplesmente existir sem serventia.
E precisamente na obra de arte atinge o «fazer» humano a fasquia do sublime, o limiar
do transcendente, a fronteira do divino. Literatura e música, pintura, escultura e arquite‑
tura, teatro e dança, cinema e fotografia exibem, em testemunho quintessencial, a pulsão
genesíaca, a valência epifânica e o lance redentor do «fazer».
Multissecular, a discussão sobre a génese do texto poético confronta dois pólos
binómicos — inspiração e artefacto —, sendo, assim, definida, por uns, como arrebata‑
mento imponderável e incontornável, como fluxo transcendente, como rapto divino, e
apresentada, por outros, como edificação sóbria, premeditada e planificada, como hábil
constructo imanente.
Na tensão dialética de imaginação e reflexão, a poiesis convoca influxos demi­úr-
­gicos, para melhor «fazer» — numa constante e vertiginosa sequência, ora ascendente,
a raiar o infinito galáctico, ora descendente, a tocar as margens abismais; num p ­ rocesso
­incansável de desfazer e refazer, de desconstrução imprevista e inesperada transfigu‑
ração. E ­dessa voragem criadora, que conjuga atos de profunda solitude e lances de
cumpli­cidade i­nédita, que entretece impulsos de egotismo e reflexos de coletivização;
desse encadeamento de ímpeto genético e intervenção remodeladora; dessa pulsão que
estremece os interstícios viscerais e encandeia os recessos anímicos; desse ato a um
­tempo fundador e refazedor se forma, e se afirma, o poema. E eis que, gravado na mate­
rialidade da pedra, da madeira, do papiro e do papel, ou suspenso na virtualidade da
página ­digital, o texto poético se revela multiforme, transgressor de limites materiais
e imateriais, de contornos identitários ou discipli­nares. P ­ orque, na modulação subtil
e na modelação arrojada da língua que lhe serve de m ­ atéria-prima, na convocação e
na g­ eração de sentidos, na interação de vozes ­uníssonas e ­polifónicas, o poema apura
processos sensoriais e intelectivos, sustenta vínculos de ­descoberta, de transmissão e de
partilha, desvela e constrói afinidades de fazeres e s­ aberes, dinamizando imaginários e
repositórios, erguendo ­memoriais de espaços e de tempos próprios e alheios.
Não surpreende, por conseguinte, que o texto poético se afigure ao recetor como
ensejo privilegiado de aprendizagem, como matéria e recurso de formação individual e
social: paleta de sons e cores, mas também de texturas, de odores, paladares e termias, o
poema confronta o ser humano com o universo natural e com o mundo cultural, insi‑
nuando-lhe modos de configurar, desfigurar e transfigurar, sugerindo-lhe percursos de
autenticação e libertação, exacerbando-lhe potencialidades de dialogismo e interação.
E, no diálogo produtivo com o texto poético que o cativa, o recetor textual — l­eitor

417
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

ou ouvinte, infantojuvenil ou adulto, analfabeto ou letrado —, ao invés de sucumbir


à avalanche do ato rececional, longe de se acomodar ao não-fazer da estéril recoleção,
continua, afinal, o itinerário deslumbrado e deslumbrante de renovação interior e remo‑
delação universal que antes animou o sujeito poético.

2. CONVERSAS COM VERSOS?


Atente-se, ilustrativamente, na obra Conversas com versos, da autoria de Maria
­ lberta Menéres, reconhecendo-se, embora, a ousadia duplamente incómoda deste
A
convite. Não que o desconforto de tal sugestão bibliográfica se deva ao perfil da autora,
ou à qualidade da obra mencionada, antes radique no género textual e no escopo rece‑
cional da obra selecionada.
Efetivamente, difícil será, por um lado, escamotear a tendencial desatenção da
­investigação e da crítica especializadas ao modo literário da lírica: indispostos à leitura
morosa, conquanto gratificante, do texto poético, estudiosos da literatura e críticos lite‑
rários geram ou exacerbam, pelo seu alheamento discriminatório da criação poemática,
sentimentos de insegurança, apreensão e recusa no potencial, ou actual público-leitor
de poesia.
Impossível se afigura, por outro lado, ignorar a marginalização a que a ­literatura
de receção infantojuvenil tem sido votada entre a maioria dos investigadores acadé­
micos e críticos literários, uns e outros manifestamente convictos de que a obra literária
­prevista para crianças, adolescentes, ou jovens não proporciona a realização dos códigos
­técnico-narrativos e estilístico-linguísticos que enformam as grandes obras da literatura
feita para adultos. E, contudo, revela-se aqui pertinente o convite à leitura de Conversas
com versos, pois que «fazer» significa também desafio audacioso de expectativas, trans‑
posição obstinada de barreiras — até mesmo quando se não trata de «feitura» artística,
por excelência avessa a conformismos fáceis e violadora de estéreis normativismos.
Nascida em 1930, em Vila Nova de Gaia, Maria Alberta Rovisco Garcia ­Menéres
de Melo e Castro constitui figura cimeira no panorama da cultura portuguesa, quer
pelo êxito da sua obra livresca, quer pela relevância das múltiplas funções que, a par da
­escrita, veio desempenhando, em conjugação dinâmica e fecunda de modos de fazer,
em paradigmática síntese de «fazeres» individuais e sociais. Recorde-se, por um lado,
a extensão e a diversidade da sua produção bibliográfica, que inclui dezenas de ­títulos
­originais, com numerosas edições, nos domínios da poesia, do conto, da novela, do
­teatro e da banda desenhada, mas também consideráveis exemplos de tradução e adap‑
tação ­literária. Lembre-se, por outro lado, a sua atividade docente; a sua colaboração
em jornais e revistas; a sua atividade no Departamento de Programas Infantis e Juvenis

418
CONFIGUR AR – DESFIGUR AR – TR ANSFIGUR AR: DE CONVERSAS COM VERSOS A DIÁLOGO COM A POESIA

da RTP; a sua participação em júris de concursos literários; ou o seu cargo diretivo na


Associação Portuguesa de Escritores4.
Conversas com versos surgiu nos escaparates portugueses no ano de 1968, sob a
chancela da editora lisboeta Afrodite e com desenhos de Manuel Baptista. Em 2005,
a obra, com ilustrações de Rui Castro, veio a lume por iniciativa da Asa Editores, que,
deste modo, acrescentou novo título — o décimo sétimo — à sua coleção «Biblioteca
Maria Alberta Menéres». Também a Porto Editora trouxe a público, em 2014, Conversas
com versos, agregando ao livro, ilustrado por Mariana Melo, neta da escritora, um CD
de poemas selecionados, musicados e interpretados por Eugénia Melo e Castro, filha
da autora, aqui secundada pelas participações especiais de Ney Matogrosso, Cristiano
­Natalino, Camilo Carrara e Nath Calan.
Na contracapa da edição de 2005, segue-se à nota biobliográfica que ­apresenta
­Maria Alberta Menéres um brevíssimo texto da autora, que, em jeito de convite à l­eitura
da coletânea, confessa a sua «paixão», mas também a sua veneração pela poesia, na
qual descortina, como marca essencial, «o sentido novo da vida». E não surpreende tal
defi­nição, só aparentemente presunçosa, porquanto na poiesis se sublima a isotopia da
­criação e da recriação que identifica e sacraliza o «fazer».
A coletânea reúne cinquenta e oito poemas autónomos, individualmente comple­
mentados por ilustrações multicolores, que, a traço de ressonância fantasmagórica
e aproximação caricatural, delineiam, em vínculo dialógico com os textos, cenários
predo­minantemente exteriores e figuras, por maioria, orgânicas, de preferência em
pose atuante.
Os títulos dos poemas referenciam maioritariamente modos de ser, de estar e de
fazer humanos — indicadores de fisionomia, vestuário e parentesco, conteúdos intelec­
tivos, emocionais e afetivos, atos de deslocação, confeção e interação. Destaca-se, segui‑
damente, como referência paratextual, o universo zoológico — mamíferos, aves, ­répteis,
batráquios e peixes. Com menor frequência, assomam, nas inscrições titulares dos
­poemas, referenciais botânicos, ou geológicos. Menos numerosos do que os informantes
orgânicos, ressaltam, ainda assim, nos títulos dos poemas, os referentes inorgânicos, ora
na sua forma original, ora, e sobretudo, em figura manipulada.
Nos textos poéticos, que ampliam exponencialmente o elenco figurativo referen­
ciado em título, contracenam seres racionais, instintivos, vegetativos e inertes, de
­gestos ativos e reativos, que sismicamente abalam, pelo inusitado dos fazeres expostos,

4
Com a vasta produção literária de Maria Alberta Menéres contrasta a escassez de estudos críticos referentes à obra
da escritora. A consulta quer de catálogos em Bibliotecas Públicas, quer de repositórios bibliográficos em Universi‑
dades portuguesas não me revelou ensaios de maior fôlego. E são brevíssimos os elementos biobibliográficos sobre
a autora disponíveis em dicionários de literatura portuguesa. Recolhi as informações documentais acima ­expostas
em FRAZÃO & BOAVIDA, 1983: 282-283; VIANA, 1985: 47; GUIMARÃES, 1996: 313; PIRES, 1999: 680-681;
­BARRETO, 2002: 342-343; FLORES et al., 2009: 188. Para uma fugaz apreciação da obra de Maria Alberta Menéres,
vd. ROSA, 1980: 113-114.

419
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

a ­estabilidade dos saberes convencionais. Pessoas, animais, plantas e objetos ensaiam


comportamentos imprevisíveis e dissonantes, abrindo brechas de questionação, reava‑
liação e remodelação sistémicas.
Na cumplicidade da primeira pessoa gramatical, convocando, ora frontal, ora
­veladamente, o destinatário, ou no pretenso distanciamento da terceira pessoa, o
­eu-lírico vai desdobrando o texto poético, mormente em figurino de estrofes breves —
dísticos, tercetos, ou quadras —, compostas por versos preferencialmente curtos, sem
apertado espartilho métrico ou rimático, para melhor encenarem a fuga esporádica à
tendencial redondilha maior e a livre alternância de versos brancos e rimados. E no ­fluxo
discursivo, de apurada génese, mas de fácil receção, a instância poética entretece, em
malha subtil, recursos estilísticos e retóricos de incidência fónica, semântica e morfos­
sintática, que conferem ao texto poético a supremacia de fazer fundacional, metamor­
fósico e desvelador.
Incluído no Plano Nacional de Leitura e recomendado para o 1.º ano de escola­
ridade, Conversas com Versos não prevê, todavia, mera receção infantil, adequa-se igual‑
mente à leitura por adolescentes, jovens e adultos, porquanto alberga, em cada estrofe,
em cada verso, em cada sintagma, em cada lexema, distintos ensejos de desestabilização
e reajustamento sensorial, de inquirição e desvelamento anímico, de rutura e recons­
trução mundividencial — consoante a fase etária, o estatuto socioeconómico, a identi‑
dade cultural e o momentâneo quadro situacional do recetor.
E na tríade emissor – texto – recetor se consuma, assim, a trajetória trifásica, mas
sempre reiniciada, de ser – fazer – ser. Testemunha-o já o título da coletânea: em tom
coloquial, que justifica a incómoda assonância cacofónica do prefixo con- patente nas
duas primeiras palavras titulares, o título agrega, em curto, quase lacónico, sintagma, os
motivos da interação dialógica e da modelação versificatória, instilando no leitor, ou no
ouvinte, uma dupla expectativa inicial: a de assistir a sucessivos atos comunicativos em
registo integral ou parcialmente poético.
Ao recetor mais informado não escapa, contudo, a ambiguidade da preposição com,
que vincula os motivos da conversação e da versificação: configuradores da mensagem,
os versos poderão ser também um destinatário na situação comunicativa. A conversa
através de versos poderá concomitantemente vir a revelar-se uma conversa com a poesia.
Aliás, a rima interna versas/versos convoca enfaticamente o modo lírico e a ­criação
poética. De facto, o título da coletânea afigura-se, ele próprio, uma estrofe, pois que o
seu corpo textual se deixa, pelo jogo fónico e rítmico, desdobrar em dístico: Conversas/
com versos. O segundo membro da expressão titular resulta, afinal, da cisão do substan‑
tivo inicial, que umbilicalmente se fragmenta (con-versas), para, em estonteante meta­
morfose, se renovar.
Assim cesurado, o título da obra exibe, ainda melhor, a coincidência quase
­perfeita dos fonemas e morfemas que o compõem e a cúmplice vinculação dos seus

420
CONFIGUR AR – DESFIGUR AR – TR ANSFIGUR AR: DE CONVERSAS COM VERSOS A DIÁLOGO COM A POESIA

três ­constituintes lexemáticos. E, tanto na intrincada especularidade fonorrítmica e


morfossintática dos elementos frásicos, como na dupla insinuação de desmembramento
­discursivo, o título Conversas com versos anuncia preambularmente a polissemia auto­
télica do «fazer» artístico.
Também assim as formulações que intitulam cada texto da coletânea. Sem óbvia
conexão com o título da obra, nem imediata evidência de investimento estético, pois que
de fácil mensagem denotativo-referencial, as inscrições titulares dos poemas reduzem-
-se tendencialmente a uma, duas, ou três palavras, mas constituem limiares de expecta‑
tiva, antecâmaras de suspensão, que se abrem para insuspeitadas figurações.
Não surpreende, decerto, que, por impulso personificante, as «manas tartarugas»
se entreguem prazerosamente à leitura e à degustação de chá5; que o grilo «treine sem
descanso»6 e a baleia execute cantos no palco oceânico7; ou que o boi, o burro, o besouro,
o búfalo e a borboleta, mas também o bacalhau, o berbigão, o besugo e o búzio hajam
reparado que «os seus nomes começavam todos» pela mesma consoante8. Nem espanta,
porventura, que «um passador dos de escorrer macarrão», com malmequeres espeta‑
dos, se transforme, por equivalência formal, em chapéu9; que, por fantasia animizante, a
clara fuja do ovo10 e a faneca se evada do forno11; que, em lance metafórico, o bicho-de-
-conta amedrontado se vista de bola12; ou que, por hipálage, as pedras tremam «de frio
e medo» na escuridão noturna13. Mas desafia reconhecer num espantalho fustigado pelo
vento um «sino sem som», um «gesto sem gente», um «navio sem cais»14; perceber num
girassol «um olho aberto», cujas «pestanas» se fecham ao adormecer15; e admitir uma lua
a navegar em doméstico a­ lguidar16; um cesto que «saltou para dentro da casa» e uma casa
que «saltou para dentro da aldeia»17, um fogo que foge da fogueira18, uma bola que se solta
do papel de parede, para «ir brincar no jardim»19, ou uma janela que, «em bicos de pés»,
espreita «pela janela»20. E inquietam a perplexidade do caranguejo azul, ao constatar que,
à exceção de si próprio, «todos andam para trás»21; a disposição do moleiro de inventar

5
MENÉRES, 2005: 28.
6
MENÉRES, 2005: 32.
7
MENÉRES, 2005: 48.
8
MENÉRES, 2005: 26.
9
MENÉRES, 2005: 60.
10
MENÉRES, 2005: 35.
11
MENÉRES, 2005: 57.
12
MENÉRES, 2005: 18.
13
MENÉRES, 2005: 72.
14
MENÉRES, 2005: 24.
15
MENÉRES, 2005: 16.
16
MENÉRES, 2005: 48.
17
MENÉRES, 2005: 55.
18
MENÉRES, 2005: 57.
19
MENÉRES, 2005: 58.
20
MENÉRES, 2005: 58.
21
MENÉRES, 2005: 13.

421
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

o vento, para acelerar a rotação do seu moinho22; a fantasia da menina que, à refeição,
vislumbra um prato dentro do seu prato, outro prato dentro daquele, outro dentro do
anterior, e mais outro e outro, em estonteante perceção concêntrica que lhe distende a
imanência até «ao próprio infinito»23; o arrojo do cavalo que pula «para dentro da histó‑
ria» e, na soleira da ficção, desobedece ao dono que lhe apela ao retorno24.
Desassossegam também a ingenuidade precipitada da pereira, da cerejeira e da
macieira que, gritando, à vez, a superior qualidade dos respetivos frutos, atiçam irreme‑
diavelmente a cobiça predadora dos pardais25; a leviana convicção do corvo de que «tudo
o que é belo conta/e canta na luz do dia», tornando-se, assim, incapaz, apesar da sua
negra penugem, de presumir «a beleza que a coruja vê na noite»26; a ligeireza castradora
da mãe que guarda, «em arca bem fechada», a colcha de chita com bordados de pássaros
e flores, em que a filha criança adivinhava os «risos» e as «vozes» que lhe aconchegavam
o sono noturno27. E perturbam o desejo da perdiz de se transformar em codorniz28 e a
hipotética p ­ referência do esquilo por ser uma ave29; a ousadia reivindicativa do ­paciente,
que, na alteridade do espaço clínico, contrapõe a sua dor à petulância com que o m ­ édico
­exibe a flor colhida no percurso para o consultório e ostensivamente colocada ao ­peito30;
ou a ­precaução experiencial da mãe centopeia, a recomendar à cria que atravesse a
­existência «pé ante pé», em vez de «a pés juntos», para não tropeçar nos equívocos do
curso vivencial31. Estremece, em última instância, indagar, na fronteira do «fazer»
­humano com a insondabilidade universal, «por que razão uma coruja não é uma
cotovia»32, por que motivo um coelho não se chama melão33, ou de que maneira «falam»
as pedras34.
Convocado, por imperativo paratextual, para o diálogo com o texto poético, o ­sujeito
recetor assiste, em Conversas com versos, à refuncionalização do instrumental, à concreti‑
zação do abstrato, à animização do inerte, à personificação do instintivo, do vegetal e do
inorgânico, admitindo a deformação da perspetiva, anuindo à legitimação da inverosi‑
milhança, acolhendo o entretecimento de natureza e cultura, participando na interpene‑
tração de real e irreal. E, no termo da leitura, ou audição, integral, ou parcial, singulativa,

22
MENÉRES, 2005: 14.
23
MENÉRES, 2005: 22-23.
24
MENÉRES, 2005: 38.
25
MENÉRES, 2005: 34.
26
MENÉRES, 2005: 49.
27
MENÉRES, 2005: 19.
28
MENÉRES, 2005: 30.
29
MENÉRES, 2005: 52.
30
MENÉRES, 2005: 11.
31
MENÉRES, 2005: 43.
32
MENÉRES, 2005: 49.
33
MENÉRES, 2005: 64.
34
MENÉRES, 2005: 64.

422
CONFIGUR AR – DESFIGUR AR – TR ANSFIGUR AR: DE CONVERSAS COM VERSOS A DIÁLOGO COM A POESIA

ou reiterativa, a instância recetora preserva, nas malhas da interioridade, as memórias de


interrogação metafísica, que lhe distendem o eu e o catapultam para o outro.
Assim mesmo se constitui, na essência polifónica da produção e da receção t­ extual,
o diálogo com a poesia: apurada mobilização dos sentidos; dinâmica convocação de
saberes; ousado cruzamento de fazeres; deslumbrante trajetória de configuração, desfi‑
guração e transfiguração ôntica.

BIBLIOGRAFIA
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­infantil portuguesa. Porto: Campo das Letras, p. 342-343.
FLORES, Conceição; DUARTE, Constância Lima; MOREIRA, Zenóbia Collares (2009) — Maria Alberta
Menères [sic]. In FLORES, Conceição; DUARTE, Constância Lima; MOREIRA, Zenóbia Collares
— Dicionário de Escritoras Portuguesas das origens à atualidade. Florianópolis: Editora Mulheres,
p. 188.
FRAZÃO, Fernanda; BOAVIDA, Maria Filomena (1983) — Meneres [sic], Maria Alberta. In FRAZÃO,
­Fernanda; BOAVIDA, Maria Filomena — Pequeno Dicionário de Autores de Língua Portuguesa.
­Lisboa: Amigos do Livro Editores, p. 282-283.
GUIMARÃES, Fernando (1996) — Menéres, Maria Alberta. In MACHADO, Álvaro Manuel, org./dir. —
Dicionário de Literatura Portuguesa. Lisboa: Editorial Presença, p. 313.
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mário de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello, dir. (2007) — Dicio-
nário Houaiss de Sinónimos e Antónimos. Lisboa: Círculo de Leitores.
MENÉRES, Maria Alberta (2005) — Conversas com versos. Ilustrações de Rui Castro. Porto: Asa Editores
S. A.
PIAGET, Jean (1977) — La construction du réel chez l’enfant. 6.ª edição, Neuchatel: Delachaux & Niestlé.
PIRES, Maria da Natividade (1999) — Menéres (Maria Alberta). In Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas
de Língua Portuguesa, vol. 3. Lisboa & São Paulo: Editorial Verbo, p. 680-681.
ROSA, António Ramos (1980) — Água-Memória. In ROSA, António Ramos — A poesia moderna e a inter-
rogação do real II. Lisboa: Editora Arcádia, p. 113-114.
TERTÚLIA EDÍPICA, compil. (1977) — Dicionário de Sinónimos. Porto: Porto Editora.
VIANA, António Manuel Couto (1985) — Maria Alberta Menéres. In VIANA, António Manuel Couto.,
org. — Breve Dicionário de Autores Portugueses. Lisboa: Verbo, p. 47.
VYGOTSKY, Lev (2012) — Thought and language. Revised And Expanded Edition, translated by
­HANFMANN, Eugenia; VAKAR, Gertrude; KOZULIN, Alex and forwarded by KOZULIN, Alex.
Cambridge: M. I. T. Press.

423
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

424
PARTE IV
HISTÓRIAS

Neste sector do livro figuram temas que se reportam a períodos antigos da h ­ istória
­humana, um abarcando a área da fachada atlântica europeia e as semelhanças que a
autora ­vislumbra em signos que geralmente se designam como «arte rupestre» ­pré-histó­rica;
outro reportando-se ao Noroeste peninsular e à difícil articulação entre diferentes tipos de
fontes para a reconstituição de povos que aí terão vivido no alvor da História. ­Também são
abordadas problemáticas referentes a momentos mais r­ecentes, como a da «santificação»
de pessoas «virtuosas» no quadro da Contra-Reforma, os ­modos de conversão de nativos
no Brasil por Jesuítas, e, ainda, o facto de pessoas da área ­médico-cirúrgica se terem
dedicado complementarmente a outras atividades, revelando mentalidades e práticas bem
diferentes da atual «especialização».

425
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

426
FAZER E PARTILHAR A ARTE RUPESTRE
ATLÂNTICA: EVIDÊNCIAS DE
CONECTIVIDADES PRÉ-HISTÓRICAS
JOANA VALDEZ-TULLETT*

Resumo: A designação Arte Rupestre Atlântica refere-se a gravuras pré-históricas comuns às paisagens de
vários países do ocidente Europeu. A repetição de características desde a imagética à implantação na paisa‑
gem, sugerem a existência de contactos entre sociedades separadas por largos braços de oceano.
Este artigo sumaria os resultados de um estudo sobre Arte Atlântica, no qual foi aplicada uma metodologia
inovadora e multidisciplinar na análise, a várias escalas, de um corpo de dados empírico, recolhido em
5 ­países. A observação e o escrutínio dos motivos, composições, técnicas de gravação e outras variáveis,
permitiu abrir caminho a hipóteses interpretativas que visam explorar a natureza desta arte rupestre e a
existência de uma rede ativa de agentes de transmissão cultural, que evidenciam a sua expansão por regiões
díspares, lançando luz sobre a temática da conectividade durante a Pré-História.
Palavras-chave: Arte Rupestre Atlântica; transmissão cultural; conectividade pré-histórica.

Abstract: The term Atlantic Rock Art is used to describe prehistoric rock carvings which are common to
the landscapes of Western Europe. The repetition of a number of characteristics, from imagery to landscape
location, suggests the existence of contacts between societies which were separated by large water bodies.
This paper summarizes the results of a study about Atlantic Art, in which an innovative multi-disciplinary
and multi-scalar methodology was applied to an empirical database, recorded in 5 countries. The analysis
and scrutiny of the motifs, compositions, carving techniques and other variables enabled new interpreta‑
tions about the nature of this rock art and active agents of cultural transmission and connectivity which
enabled its widespread.
Keywords: Atlantic Rock Art; cultural transmission; prehistoric connectivity.

* Historic Environment Scotland. Email: jvaldeztullet@gmail.com.

427
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

INTRODUÇÃO
O termo «Arte Atlântica» surge na literatura Europeia em meados do século XX
pela mão de Eóin MacWhite1. Refere-se ao conjunto de gravuras pré-históricas que na
Península Ibérica são comummente conhecidas como «Petróglifos Galegos»2, «Arte do
Noroeste»3, entre outros termos, e nas Ilhas Britânicas como «British Rock Art» (Arte
Rupestre Britânica) ou somente «cup-and-ring marks»4. Embora a expressão tenha
sido modestamente utilizada durante as décadas seguintes, adquire novamente impor‑
tância nos anos de 1990 sobretudo devido ao trabalho de Richard Bradley. Incidindo
maiori­tariamente sobre as áreas de Ilkley Moor (NW de Inglaterra) e na Galiza (NW
de ­Espanha), este autor desenvolveu a primeira abordagem sistemática e de carácter
­inter-regional centrada neste tipo de arte rupestre, comparando as tradições destas duas
­regiões, mas estendendo a sua análise também a outras áreas com importantes ­conjuntos
de gravuras, como Kilmartin na Escócia5. Bradley introduziu o conceito de Arqueo­
logia da Paisagem no estudo da arte rupestre que, aliando novos pressupostos teóricos
a novas metodologias de campo, se tornou praticamente intrínseco à investigação desta
prática artística.
O que une a arte rupestre da fachada Atlântica é sobretudo a iconografia abstrata
e geométrica gravada em afloramentos e penedos, tendencialmente horizontais, e de
ar livre. Covinhas, círculos concêntricos, meandriformes, algumas espirais e labirintos
estão entre os motivos mais comuns do repertório da Arte Atlântica.

Figura 1. Extracto do sistema de categorias utilizado no projecto de estudo da Arte Atlântica abordado neste
artigo. O quadro contempla os principais tipos de motivos representados neste tipo de arte rupestre.

1
MACWHITE,1946, 1951.
2
PEÑA-SANTOS & VÁZQUEZ-VARELA, 1979.
3
BAPTISTA, 1983-84.
4
RAPP, 2000.
5
BRADLEY, 1997.

428
FAZER E PARTILHAR A ARTE RUPESTRE ATLÂNTICA: EVIDÊNCIAS DE CONECTIVIDADES PRÉ-HISTÓRICAS

Na Península Ibérica consideram-se ainda as representações figurativas de armas


e animais, frequentemente gravadas nas mesmas superfícies ou faces rochosas próximas
dos motivos circulares, não obstante a ambiguidade cronológica.
O debate relativamente à datação desta tradição de arte rupestre mantém-se ­ativo,
apesar da sua longa historiografia. De modo geral, durante várias décadas aceitou-se,
de ­forma acrítica, a sua origem e utilização durante um extenso período com início
na I­dade do Bronze e que culminaria na Idade do Ferro. Esta conclusão foi sobretudo
­baseada em argumentos circulares que do lado da Península Ibérica se fundamentaram
na gravura de armas, representadas em paralelo com os círculos concêntricos, e cujo
rigor retra­tado permite traçar comparações com materiais provenientes de contextos
­arqueológicos bem datados. Do lado das Ilhas Britânicas foram considerados blocos
gravados com covinhas e círculos concêntricos encontrados em monumentos funerá‑
rios da Idade do Bronze6.

Figura 2. Bloco gravado num dos monumentos funerários conhecidos como Clava Cairns (Invernesshire, Escócia).

Devido à dificuldade que a arte rupestre em geral, mas sobretudo a gravura, c­ oloca
quanto à definição de cronologias mais específicas, o tema é abordado de forma relu­
tante e teimam em persistir propostas pré-existentes, sem grande discussão por parte
dos investigadores.

6
Por exemplo, os blocos gravados encontrados nos monumentos Clava Cairns em Invernesshire, Escócia.

429
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Apesar de ainda se referir à Idade do Bronze como o principal período cronoló­


gico vigente para a Arte Atlântica, atualmente vários autores reconhecem maior antigui­
dade a estas gravuras, atribuindo a sua génese ao Neolítico. Esta conclusão resulta grosso
modo de estudos comparativos com outros tipos de arte rupestre, dados recolhidos em
escavações arqueológicas, contextualização da tradição de gravura com outras práticas
tecno­lógicas em curso durante o Neolítico7. Embora haja algum consenso neste sentido,
ou seja, de que a Arte Atlântica é um fenómeno com origem no Neolítico, será impor‑
tante ressalvar que esta nomenclatura reflete disparidades cronológicas entre as regiões
da ­Europa Ocidental, já que na Península Ibérica o período se estende aproximada­
mente de 5500 a 2500 AC e nas Ilhas Britânicas de 3800 a 2500/2200 AC, com algumas
­variações regionais.
O artigo que aqui se apresenta sumaria brevemente os resultados de uma investi­
gação focada na Arte Atlântica, caracterizando-a à luz de novos desenvolvimentos
­teóricos, técnicos e novas descobertas de sítios arqueológicos. Aborda a plataforma
comparativa criada para o reconhecimento de semelhanças e diferenças da arte rupestre
numa vasta área, viabilizando a discussão de implicações inerentes a preferências regio‑
nais identificadas. Tem como ponto de partida o trabalho de Richard Bradley8, nomea‑
damente quanto à escala geográfica envolvida e ao carácter inter-regional da abordagem.
O projeto incidiu sobre o estudo empírico de cinco áreas de estudo em diferentes países
europeus, a saber: a península de Machars no SW da Escócia; o planalto de Rombalds
Moor no NE de Inglaterra, a península de Iveragh no SW da Irlanda; a península de
Barbanza na Galiza, Espanha; e o Monte dos Fortes em Valença, Portugal.

7
ALVES, 2003; JONES et al., 2011; FÁBREGAS & RODRÍGUEZ, 2012; O’CONNOR, 2006; VALDEZ-TULLETT, 2019.
8
BRADLEY, 1997.

430
FAZER E PARTILHAR A ARTE RUPESTRE ATLÂNTICA: EVIDÊNCIAS DE CONECTIVIDADES PRÉ-HISTÓRICAS

Figura 3. Localização das áreas de estudo. Fonte do mapa de base: National Geographic, Esri, DeLorme,
HERE, UNEP-WCMC, USGS, NASA, ESA, METI, NRCAN, GEBCO, NOAA, increment P Corp.

O CONTEXTO ATLÂNTICO
My subject matter will be one of the major groups of rock carvings in prehistoric
Europe — the petroglyphs of the Galician-Atlantic style — and my discussion will
range along the western seaways for 1.800 km, from the northern limit of this style in
Scotland and Ireland, to its southern boundary around the border between Portugal
and Spain9.

9
BRADLEY, 1997: 15.

431
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

O estudo extensivo de Arte Atlântica em cinco regiões da Europa ocidental


(­ Península de Machars, SW Escócia; Ilkley Moor, NE Inglaterra; Península de I­veragh,
SW Irlanda; Península de Barbanza, Galiza, Espanha; Monte Faro, Valença, Portugal)
permitiu rever e atualizar o conhecimento acerca desta tradição de arte rupestre, e
­re-definir os seus traços principais. Foram contempladas 263 rochas decoradas e esta
caracterização teve em consideração descobertas e dados originados em projetos de
­investigação recentes (alguns no decurso deste estudo) e sobretudo registos de arte
­rupestre com tecnologias digitais. Estas últimas, em franco desenvolvimento e processo
de democratização quanto à sua utilização, têm sido essenciais para um conhecimento
mais profundo dos grafismos.
A uma escala ampla foi possível concluir que a Arte Rupestre Atlântica a­ presenta
efetivamente semelhanças em todas as áreas de estudo envolvidas. Por este motivo, a
tradição é muitas vezes tida como sendo um fenómeno homogéneo, presente nos
­vários países da fachada Atlântica. No entanto, foram identificadas algumas diferenças e
­pormenores quase impercetíveis, que denotam preferências regionais.
As semelhanças mais óbvias observam-se no inventário iconográfico, com m ­ otivos
tendencialmente curvilíneos, variando desde as covinhas aos emblemáticos círculos
concêntricos com depressão central e os meandriformes, que podem ser acompanhados
por outras variantes como as espirais, rosetas, keyholes (formato de fechadura), entre
outros. Estes motivos foram gravados nas várias regiões desconhecendo-se, até à data, a
aplicação de outras técnicas de execução como a pintura. Foram identificadas dife­rentes
variantes de picotagem e combinações de técnicas nas 5 áreas de estudo10. Também não
poderá ser completamente descartada a possibilidade destes motivos terem sido repro‑
duzidos noutros tipos de suporte, sobretudo de natureza orgânica, que não terão sobre‑
vivido no registo arqueológico.
Finalmente, uma das mais óbvias características da Arte Atlântica, partilhada nas
mais diversas regiões, é sua implantação na paisagem. Com algumas exceções recente‑
mente identificadas (e.g. abrigo de Binn — Fife, Escócia; Ketley Crag — N
­ orthumberland,
Inglaterra; Calderramos — Galiza, Espanha), a Arte Atlântica é essencialmente uma
­tradição de ar livre, ocupando sobretudo vertentes e zonas de vale, onde penedos e
aflora­mentos foram sendo decorados durante vários séculos.

COMPARANDO A ARTE ATLÂNTICA


De uma forma geral, a arte rupestre do arco Atlântico partilha de um ­grande
­sentido de familiaridade entre si, que ultrapassa a morfologia dos motivos. Não o
­ bstante
estas semelhanças, existem também alguns contrastes estruturais que, embora por
­vezes difíceis de identificar, resultam sem dúvida dos contextos culturais diversos das

10
Mais pormenores em VALDEZ-TULLETT, 2019: 75-81.

432
FAZER E PARTILHAR A ARTE RUPESTRE ATLÂNTICA: EVIDÊNCIAS DE CONECTIVIDADES PRÉ-HISTÓRICAS

c­ omunidades que produziram estes símbolos. Por forma a traçar um quadro claro d ­ estas
diferenças, foram feitas comparações em termos do processo e modos de fazer a arte
rupestre e as formas de uso da mesma nas diferentes áreas de estudo mencionadas.
A aplicação de uma metodologia interdisciplinar com várias escalas de análise foi deter‑
minante na identificação de preferências regionais, através do estudo articulado de uma
série de elementos intrínsecos à arte rupestre.

Figura 4. Escalas de análise utilizadas no estudo da Arte Atlântica. Cada uma delas foi explorada de acordo
com critérios específicos que abordam componentes específicas da arte rupestre.

A Arqueologia da Paisagem introduziu importantes avanços para o estudo da arte


rupestre, mas também contribuiu significativamente para a estigmatização das aborda­
gens de teor iconográfico. Embora historicamente o estudo individual dos motivos
de arte rupestre esteja associado a abordagens herméticas e tipológicas do paradigma
­Histórico-Cultural, a integração desta componente analítica neste estudo, nomeada‑
mente através de uma metodologia interdisciplinar, produziu resultados interessantes e
desempenhou um papel fundamental para as conclusões aqui alcançadas.
A escala de análise mais pequena — Escala Gráfica — debruçou-se sobre a obser­
vação minuciosa das gravuras desde as suas formas, às características dos sulcos, suas
texturas e técnicas de execução. Observações minuciosas foram levadas a cabo in situ,
complementadas com modelos digitais criados nomeadamente através de fotogrametria
Structure from Motion (SfM)11 e Reflectance Transformation Imaging (RTI)12. A aplicação
destas tecnologias digitais é sobretudo baseada na captura de sequências de fotografias
com ângulos e propriedades de luz definidas, originando a reprodução tridi­mensional

11
SAPIRSTEIN & MURRAY, 2017.
12
MALZEBENDER et al., 2001.

433
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

das rochas gravadas e suas texturas. Os modelos resultantes exibem, por norma, uma
série de detalhes que frequentemente passam despercebidos com métodos tradicionais
de visualização.
As rochas como suportes de gravação, constituíram o objeto de estudo de uma
­escala intermédia — Escala Sensorial — dedicada à superfície rochosa. O carácter
perma­nente de penedos e afloramentos sugere que a arte rupestre foi criada para preva­
lecer no ­tempo e, pelo menos nos seus momentos iniciais, estar espacialmente a­ ssociada
a ­secções particulares da paisagem. Não obstante, motivações de outra natureza mais
íntima da arte rupestre, como sejam as características físicas, micro-topografia, cor,
­textura, forma, temperatura, brilho, ou até o som emitido durante o ato de percussão
das gravuras, poderão estar subjacentes à seleção dos penedos e afloramentos13. De igual
­forma, esta escolha pode ter sido influenciada pela existência de lendas, mitos, memó‑
rias e contos partilhados por cosmogonias comuns, bem como outras razões de índole
mais funcional14. Considerando a informação adicional e o contexto que estes detalhes
podem conferir ao estudo da arte rupestre, a escala intermédia teve como objetivo a
­avaliação das rochas e suas características físicas, bem como a relação destas com os
­motivos gravados. As irregularidades das superfícies, incluindo as fissuras, fraturas,
­bacias e depressões naturais, os limites das rochas, etc., foram frequentemente incor‑
poradas nas composições. A inclusão deste tipo de elementos em estudos extensivos
de rochas gravadas pode conduzir à colocação de novas questões e promover interpre­
tações quanto à conceção da arte rupestre15. A análise a esta escala permitiu identificar
e documentar sobreposições, justaposições e figuras convergentes, características que
são por norma preteridas nos estudos de Arte Atlântica e até consideradas ausentes.
Este ­reconhecimento é importante para uma melhor compreensão das composições
­temporais e iconográficas e concluiu-se, que a inclusão de elementos naturais como
­sejam fissuras, fraturas, bacias, entre outras convexidades ou concavidades naturais, são
parte integral das composições de Arte Atlântica.
Por fim, a Escala Ambiental, mais ampla e abrangente, contemplou a paisagem.
Como entidades vivas e vividas, as paisagens desempenham papéis essenciais na vida de
indivíduos e comunidades de hoje e do passado16. Por um lado, estes interagiam dire­
tamente com o meio envolvente, que por sua vez fornecia bens essenciais para a sua
­sobrevivência, pontos de referência e marcadores territoriais nos seus contextos cultu‑
rais e sociais17. Por forma a não se perderem detalhes importantes no ­enquadramento

13
BRADLEY, 2009: 45; TILLEY, 2008: 39.
14
VALDEZ-TULLETT, 2019: 61.
15
BRADLEY et al., 2001; CLOTTES & LEWIS-WILLIAMS, 1996; HELSKOG, 1999: 91; LORBLANCHET, 1989;
JONES & TIPPING, 2011: 17.
16
KNAPP & ASHMORE, 1999: 6.
17
VALDEZ-TULLETT, 2019: 61.

434
FAZER E PARTILHAR A ARTE RUPESTRE ATLÂNTICA: EVIDÊNCIAS DE CONECTIVIDADES PRÉ-HISTÓRICAS

da arte rupestre, esta escala de análise foi subdividida entre o entorno imediato das
­rochas (i.e. relativo a agrupamentos de rochas geograficamente próximas) e a ampli­
tude t­otal das áreas de estudo, grosso modo correspondentes a unidades geomorfoló­
gicas (e.g. p ­ enínsulas, planaltos, monte). Esta abordagem baseou-se numa metodologia
multi­disciplinar, com modelos computacionais para análise espacial desenvolvidos com
Sistemas de Informação Geográfica (SIG) e testados com métodos estatísticos, contra‑
postos com resultados obtidos através de uma perspetiva experiencial da paisagem,
­obtida através de trabalho de campo. Em ambos os casos foram exploradas as mesmas
variáveis. A primeira abordagem forneceu uma ideia das potencialidades oferecidas pela
paisagem e permitiu a examinação simultânea de uma série de parâmetros locacionais
que poderão ter estado na origem da seleção das rochas (e.g. bacias visuais, ­orientação
das encostas, etc.). Já o trabalho de campo, não obstante a subjetividade derivada da
­experiência pessoal do investigador e perspetivas modernas da arqueologia da p ­ aisagem,
introduziu uma dimensão social, refletindo a imprevisibilidade da natureza humana, de
outra forma ausente. De facto, os resultados obtidos através das observações de campo
contrastaram, em alguns casos, de forma evidente com aqueles resultantes das análises
computacionais. Por um lado, a paisagem está, hoje em dia, substancialmente alterada
e como tal a nossa experiência da mesma é limitada por uma série de fatores como
muros, casas, carros, etc. Por outro lado, as simulações computacionais por norma não
incluem elementos que interferem no dia-a-dia com a nossa perceção, como sejam as
condições atmosféricas. Esta abordagem combinada permitiu assim colmatar lapsos de
uma e o ­ utra metodologia e forneceu um quadro mais abrangente para a análise da arte
rupestre a várias escalas.
A metodologia descrita produziu uma extensa base de dados. Os resultados o ­ btidos
durante este processo foram estruturados num sistema de classificação que incluiu
11 categorias principais, subdivididas em 341 atributos. Estes serviram para caracterizar
a arte rupestre das áreas de estudo nas suas mais variadas vertentes e escalas, permitindo
uma documentação minuciosa das gravuras, dos seus suportes pétreos e das paisagens
nas quais se inserem. O carácter inter-regional da abordagem facultou um entendi­
mento alargado deste tipo de arte rupestre, ultrapassando constrangimentos geográficos
comummente impostos por fronteiras administrativas modernas, que tendem a limitar
os estudos arqueológicos.
O sistema de categorias foi analisado de acordo com uma Matriz de Presenças/­
Ausências (PAM — Presence/Absence Matrix) que teve como objetivo identificar a
existência de atributos específicos, bem como padrões de preferências em cada área de
estudo. A abordagem desta matriz foi feita de forma faseada, de acordo com três n ­ íveis
diferentes de análise, cada um deles integrando mais atributos do sistema classificativo
de forma paulatina. Por exemplo, na primeira etapa foram utilizados os dados r­ eferentes
apenas às categorias principais, que excluem qualquer variação dos atributos. N ­ este caso,

435
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

consideraram-se os 41 atributos principais, abrangendo simples­mente a ­presença ou


­ausência de características como covinhas, motivos circulares, tipo de s­uporte (e.g.
­penedo ou afloramento), etc. A segunda abordagem incluiu 131 atributos, contando já
com alguns pormenores mais específicos dos motivos, suporte rochoso e até da paisagem
(e.g. vale, meia encosta, planalto, etc.) na qual se inserem os ­conjuntos. Este ­aumento
­demonstrou mais variação entre as áreas de estudo. Finalmente, a ­terceira a­nálise
­abarcou a totalidade da base de dados resultante deste projeto e os seus 341 ­atributos,
compondo um quadro mais detalhado das particularidades da arte rupestre de cada
região18. A complexidade e abundância da informação recolhida requereu a p ­ rocura de
uma metodologia de análise flexível e que permitisse organizar e explorar o potencial
dos dados de forma efetiva e proveitosa. Considerando a hipótese avançada no decurso
do projeto, ou seja, a Arte Rupestre Atlântica como fenómeno global resultante de uma
rede de contactos entre algumas regiões da Europa Ocidental, os dados foram inseridos
e analisados através de metodologias da chamada Ciência de Redes (Network Science).
Esta é uma área interdisciplinar que, tal como o nome indica, tem como ­objetivo estudar
redes complexas. Nos últimos anos a sua aplicação em Arqueologia tem vindo a crescer,
mas a teoria e métodos inerentes a esta área têm aplicação em disciplinas tão díspares
como a Física e a Economia, Ciências Computacionais ou Sociologia19.

COMPARAR A ARTE ATLÂNTICA E OS SEUS MODOS DE


GRAVAR
Conforme descrito na secção anterior, o estudo da Arte Rupestre Atlântica foi
­submetido a uma metodologia a várias escalas. A aplicação de uma abordagem tripar­
tida conduziu à identificação de uma série de semelhanças entre as áreas de estudo, mas
também das suas diferenças. Ao contrário dos tradicionais quadros tipológicos e classi­
ficativos, normalmente rígidos, o sistema de categorias aqui apresentado é de c­ arácter
relacional e dinâmico, considerando todos os atributos analisados nas dife­rentes ­escalas
de análise em simultâneo, desde os mais pequenos pormenores dos motivos às carac‑
terísticas das paisagens20. Para além destes, a análise incluiu outros elementos como o
«comportamento da arte rupestre», ou seja, a relação entre os motivos numa superfície
rochosa, destes e elementos naturais da mesma, ou ainda a transformação de compo­
nentes geológicas em partes integrais das composições. Este sistema de ­categorias
­acentuou as diferenças verificadas entre as várias regiões, inicialmente observadas
­durante o trabalho de campo, realçando preferências regionais, ainda que não tenha
tido em consideração fronteiras modernas, que são frequentemente impostas ao registo
arqueológico. A aplicação deste sistema de categorias facultou então a justaposição de
18
VALDEZ-TULLETT, 2019: 75.
19
BRUGHMANS, 2013; COWARD, 2013; KNAPPETT, 2011.
20
Para uma discussão sobre este assunto, ver VALDEZ-TULLETT, 2019: 138-147.

436
FAZER E PARTILHAR A ARTE RUPESTRE ATLÂNTICA: EVIDÊNCIAS DE CONECTIVIDADES PRÉ-HISTÓRICAS

uma série de componentes da arte rupestre, criando assim novas entidades e abrindo
possibilidades interpretativas21 para a Arte Atlântica no seu contexto, e no âmbito de
uma narrativa mais ampla da Pré-história.
Não obstante a potencial parcialidade deste exercício de classificação, o processo
de análise individual das rochas deu a conhecer esta tradição de arte rupestre de forma
íntima e facultou a identificação de pormenores minuciosos, bem como outras particu‑
laridades que foram fulcrais na comparação das diversas áreas de estudo. Esta aborda‑
gem também permitiu ultrapassar as fragilidades de uma comparação direta entre os
motivos das regiões, assentando num conjunto robusto de elementos que caracterizam
a Arte Atlântica a vários níveis.
Este artigo incide particularmente na Escala Gráfica, da qual fazem parte uma série
de parâmetros definidos para avaliar sobretudo o gesto da gravação, ou seja, o modo de
fazer as gravuras. Inclui elementos como sejam a relação entre as gravuras e o suporte
pétreo, classificada através da categoria Tipo de Representação (Type of Depiction), que
definiu as gravuras como planas, quando simplesmente picotadas e sem relevo, ­plásticas,
quando o resultado final demonstra alguma textura, ou tridimensionais, quando os
­motivos foram completamente moldados à rocha.

Figura 5. Exemplo de motivos tridimensionais, gravados em rocha situada no Monte Faro. Neste exemplo, os largos
sulcos que perfazem os círculos concêntricos acompanham e envolvem a micro-topografia da superfície.

Esta categoria demonstrou algumas das diferenças mais acentuadas entre as áreas
de estudo. Enquanto o primeiro caso é a estratégia mais comum na Irlanda, já o ­Monte
Faro em Portugal e a região escocesa de Machars partilham exemplos de gravuras ­criadas
a partir de um franco aproveitamento da micro-topografia das superfícies, ­resultando

21
HAMILAKIS & JONES, 2016: 79.

437
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

numa simbiose clara entre a rocha e os sulcos gravados. Esta tendência é também
­observada na utilização de características naturais das rochas, como fissuras, fraturas,
bacias e depressões, convexidades, entre outros elementos muitas vezes incorpo­rados
nas composições. Apesar de mais comum numas regiões do que noutras, a interação
entre os grafismos com a face rochosa e elementos geológicos é frequente e, sem dúvida,
parte da identidade da Arte Atlântica.
De igual forma, o estudo da organização espacial das gravuras nas rochas ­forneceu
índices de preferências locais. Este critério foi avaliado de acordo com a posição dos
­motivos entre si, a sua frequência e o relacionamento destes com a superfície pétrea.
O número de motivos gravados por rocha varia consideravelmente numa mesma área de
estudo. Contudo, esta oscilação é mais evidente quando contraposta entre as ­diferentes
regiões. Por exemplo, em Machars (Escócia) os painéis apresentam por norma entre
1 a 2 motivos insculturados, enquanto na Irlanda as faces rochosas são frequentemente
orna­mentadas com composições exuberantes, com mais de 3 a 4 gravuras. No ­entanto,
esta profusão decorativa tende a corresponder a alguma monotonia iconográfica, já que a
­variedade do repertório utilizado é reduzida, prevalecendo o motivo dominante. N ­ outras
regiões as rochas têm frequentemente 2 a 3 (no máximo 4) motivos diferentes. Não
­obstante, é na região irlandesa de Iveragh que se encontram alguns dos exemplares mais
originais de Arte Atlântica, nos quais os motivos são organizados de forma muito parti‑
cular. Em dois casos, círculos e linhas retas dão origem a uma composição c­ ruciforme.
A análise detalhada do repertório iconográfico através de um sistema de catego‑
rias subdivididas por atributos foi fundamental na identificação de variações regionais.
É aqui que a base de dados concentra a maior parte da sua informação, contem­plando
um leque vasto de variação. O sistema foi organizado através da definição de categorias
principais de motivos que incluem as covinhas, círculos, espirais, sulcos radiais (que por
norma partem da depressão central dos motivos circulares), rosetas, animais, a­ rmas,
­antropomorfos, etc22. Estas foram depois desdobradas em sub-categorias que refletem
a variabilidade dos motivos, por sua vez caracterizadas por uma série de atributos.
A categoria dos círculos é, sem dúvida, a mais emblemática da Arte Atlântica, consti­
tuindo uma larga percentagem das suas gravuras. Embora seja essencialmente c­ omposta
por combinações de círculos concêntricos com depressões centrais, a análise atenta dos
­motivos circulares revelou que foram utilizados vários métodos para a criação de ­figuras
visualmente semelhantes. Quer isto dizer que em muitos casos, e contrariamente à­ quilo
que por vezes parece, os motivos circulares não são simplesmente constituídos por
­covinha central rodeada por círculos concêntricos, mas apresentam uma interessante
variação na conceção das figuras (ver Figura 1). Assim, nesta categoria existem uma
­série de mutações morfológicas que ditam se os círculos são abertos ou fechados, se

22
Para consultar a totalidade do sistema de categorias ver Anexo 2 em VALDEZ-TULLETT, 2019.

438
FAZER E PARTILHAR A ARTE RUPESTRE ATLÂNTICA: EVIDÊNCIAS DE CONECTIVIDADES PRÉ-HISTÓRICAS

são abertos apenas de um lado, convergentes, segmentados, ou se um ou os dois lados


fecham sobre si mesmos, etc.23. Cada uma destas teve ainda em conta outros atributos,
nomeadamente o número de círculos ou a orientação das espirais. Por exemplo, em
Valença encontram-se gravados os círculos concêntricos com maior número de anéis,
atingindo os 12, seguido de Machars com 8. Nas restantes regiões de Iveragh e Rombalds
Moor predominam os motivos com apenas um círculo com covinha central. As diversas
estratégias aplicadas na composição dos motivos circulares demonstram uma grande
capacidade de abstração por parte dos criadores desta arte rupestre, que utilizaram uma
série de soluções para desenhar os seus círculos concêntricos sem recorrerem sempre ao
mesmo tipo de design. Estamos, portanto, perante uma Arte de Ilusão24. O que aparente‑
mente são motivos muito semelhantes gravados em faces rochosas de diferentes r­ egiões
geográficas, podem efetivamente apresentar diferenças significativas que, em termos
práticos, poderão corresponder a divergências culturais.
A identificação destes pormenores no modo de fazer os motivos foi determinante
no processo de comparação entre as áreas de estudo. Esteve também na base da hipó‑
tese avançada pelo projeto, em que o carácter global da Arte Atlântica resulta de um
processo de ensino intencional dos princípios básicos da tradição, que terão sido trans‑
mitidos ­através de uma rede de intercâmbio25. Tornaram-se evidentes as preferências
regionais por certos motivos, alguns muito particulares e repetidos em duas ou mais
áreas de e­ studo. Concluiu-se ainda que nenhum dos casos inclui todos os atributos
­definidos no sistema de categorias. Por exemplo, na Irlanda há alguma preferência por
círculos concên­tricos compostos por anéis simultaneamente completos e interrompidos,
­enquanto que na região da Escócia são preferidas soluções mais complexas na conceção
dos motivos circulares. Variações iconográficas entre regiões foram também identifi­
cadas quanto a outras categorias gráficas. É interessante constatar que algumas repre‑
sentações mais irregulares, e como tal difíceis de catalogar, foram registadas nas duas
áreas de estudo da Península Ibérica, que contaram com o maior número de ­motivos
«não identificados». É também nesta região que se encontra maior diversidade tipoló‑
gica, com animais, armas, antropomorfos, quadriculados e até soliformes (entre outros)
gravados nas proximidades, ou inclusive nas mesmas superfícies, dos clássicos círculos
concêntricos. Até à data estes motivos figurativos estão ausentes do registo das Ilhas
­Britânicas, salvo alguns casos muito excecionais e por norma dissociados da restante
Arte Atlântica (e.g. machados gravados em Stonehenge).
Independentemente da iconografia representada, a organização espacial das figuras
nas superfícies rochosas e a forma como estas se articulam entre si e com as carac­terísticas
naturais das rochas também revelou preferências regionais. Esta análise ­beneficiou de
23
Mais pormenores em VALDEZ-TULLETT, 2019, Anexo 2.
24
VALDEZ-TULLETT, 2019: 171.
25
VALDEZ-TULLETT, 2019: 39-41.

439
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

uma combinação de observações in situ das gravuras e modelos tridimen­sionais mani‑


pulados com luz assistida, que permitiram identificar, por exemplo, uma série de sobre‑
posições, por norma consideradas raras ou ausentes na Arte Atlântica. O ­ utros m
­ otivos
encontram-se cuidadosamente adossados uns aos outros, em conver­gência, ou inte­
grados em composições complexas, organizadas através de redes de s­ ulcos lineares ou
ondulados, que os interligam. Confirmou-se a tendência para a u ­ tilização de elementos
naturais integrados nas composições, como sejam pequenas depressões poste­riormente
transformadas em covinhas centrais rodeadas por um círculo (e.g. N ­ orth Balfern na
Escócia); convexidades rodeadas por círculos concêntricos (e.g. Monte dos Fortes II em
Valença); fissuras naturais realçadas através de picotagem e abrasão (e.g. Badger Rock
em Ilkley Moor, Inglaterra); incorporação das extremidades das super­fícies rochosas
para delimitar motivos (e.g. Drumtroddan, Escócia); utilização de fissuras como linhas
radiais dos círculos concêntricos (e.g. Baildon Moor, Inglaterra).

Figura 6. Drumtroddan (Machars, Escócia). Pequeno bloco rochoso gravado com um covinha central e círculos
concêntricos. Neste caso, a gravura do motivo acompanha a configuração da margem exterior da rocha.

Não obstante esta generalização, foram identificadas algumas diferenças, sendo


que em Portugal e na Escócia se encontraram os exemplos de arte rupestre mais reati‑
vos ao suporte, enquanto que na Irlanda os motivos não tendem para a tridimensiona­
lidade e poucas vezes atendem às características naturais das rochas. Esta p­ referência
não é ­condicionada pela geologia local, uma vez que foi identificada nos vários ­grupos

440
FAZER E PARTILHAR A ARTE RUPESTRE ATLÂNTICA: EVIDÊNCIAS DE CONECTIVIDADES PRÉ-HISTÓRICAS

de r­ochas gravadas que se situam em diferentes locais da península, que por si só


oferece uma grande variedade morfológica de afloramentos e penedos, dada a sua
natureza glaciar.
Para além das importantes conclusões retiradas da análise dos motivos, a ­aplicação
da metodologia descrita permitiu identificar diferenças quanto às técnicas de execução,
não obstante limitações impostas pela natureza de algumas rochas, como o granito.
Este é particularmente preponderante na Península Ibérica, e dificulta a preser­vação
dos ­vestígios de gravação. Note-se a exceção do abrigo de Calderramos, em B ­ arbanza
­(Galiza), em que um conjunto de covinhas de vários tamanhos e alguns sulcos se
­encontram em ótimo estado de preservação, graças às condições protegidas em que
se encontram. Pelo contrário, nas áreas de estudo da Irlanda e Ilhas Britânicas, as g­ ravuras
foram executadas sobretudo em grauvaques e outras rochas sedimentares que, pela sua
constituição, preservam os vestígios dos atos de gravação. Desta forma, concluiu-se que
os motivos da Arte Atlântica foram criados através de uma panóplia de técnicas como a
picotagem (a forma de execução mais comum), a incisão, abrasão, mas também combi­
nações destas entre si, ou em associação com a gravação de pequenas covinhas depois
afeiçoadas para criar um sulco. De uma forma geral, a picotagem está ­presente em ­todas
as áreas de estudo, mas existe alguma variabilidade quanto às preferências ­regionais
e combinações utilizadas. Por exemplo, existem vários tipos de incisão na ­Península
de Iveragh (Irlanda), completamente ausente em Monte Faro (Portugal) e R ­ ombalds
Moor (Inglaterra), enquanto a abrasão é quase inexistente em Machars (Escócia).
É nesta ­última região e na área de estudo inglesa onde se encontra maior variabilidade
nas ­técnicas de execução. Finalmente, em várias rochas da Península de Iveragh foram
observadas depressões de configurações e diâmetros semelhantes aos círculos concên‑
tricos, cujo interior fora intensamente picotado. Inicialmente equacionou-se a possibi­
lidade destes elementos se tratarem de motivos removidos. No entanto, a sua frequência,
associação a outros símbolos e posicionamento em composições complexas, sugere que
se trata de um tipo de motivo intencionalmente criado, parte da imagética local26. Esta
técnica foi anteriormente identificada em exemplares de Arte Megalítica na Irlanda27.

26
VALDEZ-TULLETT, 2019: 93.
27
O’SULLIVAN, 1986.

441
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Figura 7. Modelo tridimensional da rocha gravada de Dromtine (Iveragh, Irlanda), com motivos gravados
através de depressões interioes (como que removidos) realçados.

Os acabamentos das gravuras diferem de região para região. O impacto que têm
no resultado visual da iconografia traduz-se numa das maiores diferenças entre as áreas
de estudo. Se, por um lado, em Machars (Escócia) os motivos parecem produzidos e
­refinados com enorme cuidado, sulcos regulares, grossos e fundos, abradidos no interior,
já em Iveragh (Irlanda) a picotagem tem inclusive, por vezes, um aspeto relativamente
negligente. Estas variações sugerem diferentes perceções da arte rupestre. No primeiro
caso parece privilegiar-se o resultado final, simétrico, afeiçoado, com sulcos macios; no
segundo caso os picotados grosseiros que perfazem os motivos parecem enfatizar, por
sua vez, o processo de criação28.

28
VALDEZ-TULLETT, 2019: 78.

442
FAZER E PARTILHAR A ARTE RUPESTRE ATLÂNTICA: EVIDÊNCIAS DE CONECTIVIDADES PRÉ-HISTÓRICAS

Figura 8. Comparação de acabamentos de gravuras entre Drumtroddan (Machars, Escócia) à esquerda e


Derrynablaha (Iveragh, Irlanda) à direita.

Finalmente, quer tenham sido gravados de forma individual ou como parte de


composições mais abrangentes, os motivos foram, em todos os casos, criados em aflora­
mentos ou penedos de ar livre. Esta relação com a ampla paisagem é uma característica
distintiva da Arte Atlântica, não obstante algumas exceções como os abrigos de Ketley
Crag (Nortumberland, Inglaterra), Binn (Fife, Scotland) ou Calderramos ­(Barbanza,
­Espanha). É interessar notar que apesar de cobertos, todos estes casos se referem a
­motivos gravados em superfícies horizontais e rentes ao solo. Esta é, sem dúvida, uma
das principais características pelas quais a Arte Atlântica é conhecida. Contudo, também
sofre regionalismos, sobretudo na Irlanda onde esta regra é menos rígida e os m ­ otivos
são gravados em superfícies planas e rentes ao solo, mas também em faces com ­alguma
inclinação. É na Escócia que se encontra um dos mais emblemáticos exemplos de
­círculos concêntricos gravados numa parede totalmente vertical, embora seja um caso
muito excecional (Ballochmyle).
Embora os motivos se encontrem gravados tanto em afloramentos como em
­penedos, esta opção é, por vezes, ditada pela geologia local. Na península de Iveragh
(Irlanda) há uma maioria de penedos e blocos soltos utilizados como suporte para as
gravuras, provavelmente porque estes são em grande número e parte integral da paisa­
gem. Esta multiplicidade de formatos significa que, conforme referido, é aqui que se
encontram a maior parte das gravuras em faces inclinadas, apesar da preferência para
a horizontalidade. Já em Machars (Escócia) e no Monte Faro (Portugal) privilegiam-se
os afloramentos.
Concluindo, nesta secção descreveram-se sumariamente algumas das compo­
nentes da Arte Atlântica abordadas na Escala Gráfica, dedicada aos pequenos porme­
nores e modo de fazer das gravuras. Estes detalhes encontram-se, sobretudo, na morfo­
logia dos motivos que por vezes se prendem com o design específico dos símbolos que
se ­parecem com círculos concêntricos mas que efetivamente não o são; com a orien‑
tação dos ­sulcos; a forma como são produzidos ou combinados entre si; ou como

443
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

i­nteragem com a ­superfície da rocha. Embora se possam estudar de forma individual,


estes ­atributos são parte integral de um todo que, quando articulado, compõe a tradição
da Arte ­Rupestre Atlântica.

ARTE RUPESTRE ATLÂNTICA COMO ELEMENTO DE


TRANSMISSÃO CULTURAL
Apesar das diferenças enunciadas, o quadro global traçado para a Arte Atlântica
parece sugerir a existência de um entendimento universal dos símbolos que a compõem,
da forma como devem ser criados, utilizados, em que tipos de rochas, com que técnicas
e, possivelmente, quais as ferramentas necessárias para a execução dos motivos.
A análise in situ de mais de 200 rochas nas 5 áreas de estudo mencionadas
­permitiu individualizar um grupo de motivos tipicamente atlânticos, presentes em
­todas as ­regiões. Neste, incluem-se as covinhas, círculos concêntricos, meandriformes,
­círculos ­quebrados. Para além de características consistentemente identificadas em
­todas as ­regiões, o estudo revelou conjuntos diferenciados de atributos em cada área de
­estudo, demonstrativos de personalidades e preferências regionais, que se começaram
a ­evidenciar durante o trabalho de campo. Embora a uma escala ampla a arte rupestre
­pareça muito semelhante, a visita e um contacto mais íntimo com as rochas das dife‑
rentes ­zonas aparentava indiciar algumas distinções, ainda que estas fossem difíceis de
isolar. A i­ dentificação de detalhes particulares quanto ao modo de fazer a Arte Rupestre
Atlântica, repetidos nas diferentes áreas de estudo, sugeriu que esta tradição tenha resul­
tado de uma rede intensa de contactos que deverão ter sido estabelecidos na fachada
Atlântica, durante a Pré-história.
A área da Psicologia do Desenvolvimento tem demonstrado que existem vários
mecanismos de transmissão cultural29. Princípios de emulação, imitação ou ensino
inten­cional foram testados num projeto de Arqueologia Experimental que consistiu na
produção de machados de pedra30. Pessoas de diferentes grupos teriam de ­produzir indi­
vidualmente um destes utensílios, sendo que cada grupo recebeu indicações d ­ istintas
quanto ao seu modo de fazer. Enquanto alguns grupos receberam instruções verbais,
outros receberam apenas indicações visuais e a outros foram apenas mostrados os
­machados como produto final, sendo que os participantes teriam de desenvolver um
processo de manufatura para atingir aquele fim. Este projeto demonstrou que em situa­
ções de imitação de gestos e ensino intencional, o erro na produção dos machados era
substancialmente inferior aos resultantes de emulação, pelo que as primeiras estratégias
estariam na origem da estandardização dos mesmos31.

29
HUANG & CHARMAN, 2005; TOMASELLO, 1996.
30
STADE, 2017.
31
STADE, 2017.

444
FAZER E PARTILHAR A ARTE RUPESTRE ATLÂNTICA: EVIDÊNCIAS DE CONECTIVIDADES PRÉ-HISTÓRICAS

Embora nenhum estudo tenha sido desenvolvido no âmbito da Arqueologia Expe‑


rimental para a Arte Atlântica, o nível de pormenor partilhado e verificado nas gravuras
das várias áreas de estudo, parece sugerir semelhantes processos de transmissão cultural.
De forma a replicar-se esta arte rupestre com o detalhe observado nas diferentes regiões,
os artistas teriam de estar na posse de conhecimento especializado, sobretudo ­quanto:
i) à iconografia e os pequenos pormenores de variação e composição dos motivos;
ii) as técnicas de gravação e, provavelmente, as ferramentas apropriadas; iii) os suportes
e superfícies rochosas; bem como iv) as necessárias configurações da paisagem. Estes
conhecimentos seriam provavelmente transmitidos entre indivíduos através de sistemas
diretos de intercâmbio cultural. Tendo em conta a consistência e o carácter repetitivo
desta tradição, é pouco provável que a disseminação da arte rupestre tenha resultado de
simples imitações ou transmissão verbal. A observação de um motivo e a tentativa
de replica noutro contexto não seria suficiente para produzir um estilo tão homogéneo
e amplo, como o da Arte Atlântica.
Em suma, o nível de repetição e replicação observados nas regiões aqui estudadas
sugere que esta tradição de gravação seria significativamente importante para uma série
de comunidades diferentes que a aprenderam, ensinaram e usaram de forma consistente
durante um extenso período de tempo. A hipótese de um processo ativo de e­ nsino e
aprendizagem que ocorreria entre regiões geograficamente distintas corrobora a ideia
de que existia uma rede consistente de intercâmbio cultural durante o período em ­causa,
em vez de contactos espontâneos. Outros tipos de materialidades (e.g. cerâmicas),
­arquiteturas (e.g. monumentos funerários) e tradições (e.g. formas de enterramento)
partilhadas entre as regiões da fachada Atlântica confirmam esta ideia.
Esta hipótese foi averiguada através da aplicação de métodos das Ciências de ­Redes,
ideais para explorar relacionamentos e interações entre humanos, objetos e as suas
­estruturas sociais32. A variante social destas Ciências de Redes (Social ­Network ­Science
— SNA) foi implementada por forma a explorar as relações inter-sítio e a possibili­dade
de transmissão cultural através da arte rupestre. A agilidade do ­método ­permitiu intro­
duzir e analisar a totalidade da base-de-dados criada no decorrer do ­projeto, que se
­revelou b ­ astante complexa, com milhares de ligações entre as várias r­ochas ­gravadas.
­Incluiu ­todos os parâmetros descritos no sistema de categorias ­desde a morfo­logia e
­design dos motivos, o tipo de suportes utilizados, à implantação na ­paisagem, o ­resultado
das ­análises espaciais, variantes comportamentais, as técnicas de g­ ravação, etc. Em
­termos práticos a base-de-dados foi projetada como uma rede composta por sítios/ro‑
chas (repre­sentados através de nódulos) com arte rupestre interligados entre si q ­ uando
parti­lhando, pelo menos, um atributo (linhas)33. As relações estabelecidas a­ través desta
32
COWARD, 2013: 248; KNAPPETT, 2011: 7-8; 2013: 7.
33
Para mais pormenores sobre este assunto ver VALDEZ-TULLETT, 2019: 138-147, mas também BRUGHMANS,
2014: 51; COLLAR et al., 2015: 24.

445
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

a­ nálise d­ emonstraram um elevado grau de semelhanças entre as cinco ­áreas de ­estudo.


A Arte Rupestre Atlântica surge assim como um fenómeno global, sendo que as suas
características básicas, acima descritas, estão presentes nas várias ­regiões da Europa
­Ocidental. No entanto, foi também através desta análise que se confirmaram e identi‑
ficaram as d ­ iferenças entre as áreas de estudo e as preferências regionais de cada zona.
A abordagem à SNA seguiu o mesmo faseamento definido para a Matriz de Presen‑
ças/Ausências, com uma introdução gradual do número de atributos analisados, o que
­permitiu um melhor entendimento da evolução e composição da tradição. A ­aplicação
do algoritmo de Louvain34 para deteção de agrupamentos, que excluiu as ligações
­ubíquas (com apenas 1 atributo) valorizando as relações mais significativas, definiu três
conjuntos de rochas gravadas, associadas devido ao grau de semelhança entre si.

Figura 9. Comunidades de rochas gravadas identificadas através da terceira fase de análise da SNA e
o algoritmo de Louvain (Blondel et. al., 2008). As gravuras foram agrupadas de acordo
com o número de atributos que partilham entre si.

A composição destes grupos sofreu alterações de acordo com os parâmetros utili‑


zados em cada fase de análise. Enquanto a primeira abordagem demonstrou um carácter
bastante homogéneo da arte rupestre, na segunda fase a introdução de mais atributos
começou a indicar alguma variabilidade e um ligeiro padrão de lógica regional. Intensi­
ficaram-se alguns relacionamentos, nomeadamente entre Machars (Escócia), ­Iveragh
(Irlanda) e Barbanza (Espanha), enquanto Rombalds Moor (Inglaterra) se afastou dos
restantes, revelando maior identidade regional. A terceira e última abordagem, que
­incluiu a totalidade dos 341 atributos definidos no sistema de categorias, demonstrou
um padrão regional claro, individualizando três grupos distintos de rochas gravadas,
34
BLONDEL et al., 2008.

446
FAZER E PARTILHAR A ARTE RUPESTRE ATLÂNTICA: EVIDÊNCIAS DE CONECTIVIDADES PRÉ-HISTÓRICAS

compostos por rochas que partilham entre si um número significativo de atributos. E ­ stes
indicaram uma forte ligação entre Rombalds Moor (Inglaterra) e Iveragh Penin­sula
­(Irlanda), esta última inicialmente mais próxima da península de Machars (­Escócia).
Rombalds Moor (Inglaterra) manteve-se independente das restantes áreas, sendo o
­único grupo que reteve a totalidade das suas rochas no mesmo agrupamento. Apesar das
claras preferências regionais reveladas nesta análise, as restantes áreas de estudo perde‑
ram alguns dos seus sítios que, por partilharem mais atributos com outras áreas, foram
colocados em diferentes grupos.
O desenvolvimento de uma SNA permitiu validar a ideia de que a Arte Rupestre
Atlântica foi inicialmente transmitida através de um conjunto básico de elementos que
evoluiu localmente e de acordo com as diferentes culturas locais, o que explica as l­ igeiras
diferenças regionais. Estas variações deverão representar discrepâncias ideológicas,
­refletindo preferências, culturas e cosmogonias das sociedades passadas35.

Figura 10. Este mapa traduz os resultados da deteção de comunidades representados na Figura 9. A espessura
das l­inhas indica o grau de ligação entre as regiões. É notória a intensidade de semelhanças, resultante do ­número
de ­atributos, que une a região de Iveragh (Irlanda) a Rombalds Moor (Inglaterra), e a de Monte Faro (Portugal)
à de Barbanza (Espanha).

35
VALDEZ-TULLETT, 2019: 146.

447
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

CONCLUSÃO
A Arte Rupestre Atlântica é sobretudo conhecida pela regularidade das suas
­formas, distribuídas por uma extensa área geográfica na Europa Ocidental. Este artigo
explorou uma parte de um estudo mais extenso sobre esta tradição de arte rupestre, que
procurou um entendimento aprofundo acerca destas semelhanças.
A utilização de uma metodologia interdisciplinar a várias escalas e os dados
­adquiridos proporcionaram uma base sólida para a comparação entre grupos de r­ ochas
gravadas fundamentalmente semelhantes, mas geograficamente distantes entre si.
­Facultou um conhecimento detalhado da Arte Atlântica e das suas várias componentes.
A combinação de técnicas computacionais, incluindo levantamentos tridimensionais e
digitais das gravuras e de outras abordagens mais tradicionais, permitiu construir um
quadro pormenorizado da criação e uso da arte rupestre. O estudo comparativo da Arte
Atlântica sugeriu que esta difusão se deveu a uma rede sistemática de contactos estabe‑
lecida durante a Pré-História, corroborada através do estudo de outras materialidades.
A identificação de pequenos pormenores na conceção da arte rupestre, repetidos nas
diversas áreas de estudo conduziu à hipótese de que a Arte Atlântica teria sido difun‑
dida pela Europa Ocidental através de transmissão cultural em redes de intercâmbio.
Estas movimentações são atestadas pela circulação de artefactos como os machados
­polidos de jade36, evidências de construção de embarcações37, monumentos funerários
de a­ rquiteturas semelhantes construídos em diferentes regiões38, mas também análises
de ­isótopos estáveis a vestígios osteológicos39. Efetivamente, a presença destas materia‑
lidades, arquiteturas e até tradições exógenas nas regiões, permitem supor uma rede de
contactos ativa, que se terá desenvolvido desde o Mesolítico. O conceito de Arte Atlân­
tica poderá ter viajado em simultâneo com estas movimentações populacionais e terá
sido partilhado entre pessoas de diferentes grupos geográficos e culturais. Este pacote
incluiria não só as formas dos motivos a gravar, mas também a ideologia subjacente
à sua utilização, técnicas de gravação, modos de criação, produção e uso. Esta ideia é
­corroborada por outros estudos recentes que têm demonstrado que as pessoas se movi­
mentavam frequentemente no passado, inclusive atravessando importantes braços de
água40. Embora não sejam claras as origens das relações culturais e a direção em que
foram estabelecidos estes contactos entre povos distanciados, não restam dúvidas de
que o que é hoje França, as Ilhas Britânicas e a Península Ibérica mantinham algum tipo
de comunicação41. Foi provavelmente este contexto dinâmico que facultou o processo

36
PÉTREQUIN et al., 2012; SHERIDAN, 2010.
37
MCGRAIL, 2009; VAN DE NOORT, 2015.
38
ANDERSON-WHYMARK & GARROW, 2015: 71.
39
FITZPATRICK, 2011.
40
GARROW & STURT, 2015; SHERIDAN, 2004.
41
ANDERSON-WHYMARK & GARROW, 2015: 59.

448
FAZER E PARTILHAR A ARTE RUPESTRE ATLÂNTICA: EVIDÊNCIAS DE CONECTIVIDADES PRÉ-HISTÓRICAS

de partilha e ensino da arte rupestre entre as várias comunidades que habitavam ­várias
partes da fachada Atlântica. Efetivamente, alguns detalhes na criação dos motivos, bem
como a sua utilização, são tão específicos que dificilmente terão sido reproduzidos por
mero acaso, a centenas de quilómetros de distância. A utilização da SNA corro­borou esta
hipótese demonstrando que, pelo menos os elementos básicos deste tipo de arte rupestre
foram intencionalmente ensinados. É provável que durante os primeiros contactos t­ enha
sido apenas transmitido um grupo restrito de características, posteriormente desenvol‑
vidas de acordo com preferências locais e que comunicações posteriores terão permitido
a introdução de outras variantes de motivos. Este espaço criado entre a primeira vaga de
ensino da tradição e posteriores contactos terá conduzido à evolução local das gravuras,
podendo explicar as variações regionais. Algumas destas preferências foram enume­
radas ao longo deste artigo sobretudo dedicado ao repertório iconográfico, ­contudo
­encontram-se refletidas também nas estratégias de gravação e conceção das composi‑
ções, organização dos motivos na face da rocha, entre outras características. Embora
estas sociedades pudessem manter algum contacto entre si, provavelmente mantinham
as suas próprias comunidades de prática, crenças e tradições, que influenciavam a forma
como se relacionavam com a arte rupestre. Estas nuances não nos são necessariamente
óbvias. Para além destes motivos de ordem cultural, outras características como sejam a
geologia local, a disponibilidade de afloramentos e/ou penedos e de matéria-prima para
ferramentas, ou até mesmo as condições geomorfológicas e topográficas locais poderão
ter influenciado a criação das gravuras.
O estudo da imagética na arte rupestre tem sido suprimido pela sua associação ao
paradigma Histórico-Culturalista e abordagens de ordem semiótica que são atual­mente
controversas, sobretudo após a introdução da Arqueologia da Paisagem, hoje quase
­intrínseca à disciplina. Contudo, este estudo demonstrou que a análise porme­norizada
dos motivos, quando desenvolvida de forma crítica e articulada com outras compo-
nentes da arte rupestre, pode fornecer informações muito relevantes e abrir n
­ ovos cami­
nhos na interpretação das práticas artísticas pré-históricas. No caso da Arte ­Rupestre
Atlântica, o regresso ao estudo dos motivos contribuiu com novos dados para um
­conhecimento mais aprofundado da tradição e permitiu incluir esta tradição e prática
artística numa discussão mais ampla sobre a Pré-História Europeia e narrativas emer‑
gentes acerca da conectividade ancestral dos povos.

449
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

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452
FAZER UM POVO
POVO. A CONSTRUÇÃO DOS
CALLAECI ENTRE A ARQUEOLOGIA
E A HISTÓRIA ANTIGA
ANTÓNIO MANUEL S. P. SILVA*

Resumo: Os últimos séculos da proto-história permitem-nos conhecer o nome de um conjunto de


­«povos» que se distribuíam pelo continente europeu, embora na larguíssima maioria dos casos a sua desig­
nação ­inicial nos chegue pela pena dos conquistadores romanos. Entre essas unidades étnicas, de natu‑
reza, d­ imensão ou hierarquia muitas vezes desconhecidas, contam-se os Callaeci, uma das comunidades
do ­Norte de Portugal a cujo nome o destino histórico reservou uma particular perduração temporal e
extensão geográfica.
Este texto aborda as questões de identidade e etnicidade aplicadas às sociedades arcaicas a partir de
uma perspetiva antropológica, na linha de modernos contributos que pretendem equipar a abordagem
­arqueológica com instrumentos de análise que ultrapassem quer as desenganadas narrativas histórico-cul‑
turais, quer o ceticismo dos que duvidam poder ler na cultura material algo mais do que a sua essencial e
radical materialidade.
Palavras-chave: etnogénese; Callaeci; História Antiga; Península Ibérica.

Abstract: The last centuries of proto-history allow us to know the name of a group of «peoples» that were
distributed throughout the European continent, although in the vast majority of cases their initial desig‑
nation comes to us through the pen of the Roman conquerors. Among these ethnic units, whose nature,
size or hierarchy is very often unknown, one can point out the Callaeci, one of the northern commu­nities
of ­modern Portugal whose name the historical fate has reserved a particular temporal endurance and
­geographical extent.
This text deals with the questions of identity and ethnicity applied to archaic societies from an anthro­
pological perspective, along the lines of modern contributions that aim to equip the ­archaeological
­approach with tools of analysis that go beyond both the disillusioned historical-cultural narratives and

* Membro da direção da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia. CITCEM, Faculdade de Letras da Univer‑
sidade do Porto. Email: amspsilva@hotmail.com.

453
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

skepticism of those who doubt that one can read in material culture anything more than its essential and
radical materiality.
Keywords: ethnogenesis; Callaeci; Ancient History; Iberian Peninsula.

Entre os últimos séculos da proto-história e os primeiros da dominação r­ omana,


a História regista pela primeira vez, ao longo do continente europeu, a designação
de um conjunto de «povos» que nos dão a oportunidade — como lembra Kristian
­Kristiansen — para verificar hipóteses sobre a identificação e o significado da etnici­
dade ou das ­próprias migrações1, se bem que acerca de muitas dessas entidades coletivas,
como ­sucede concretamente no Noroeste da Península Ibérica, por vezes se conheça
apenas o nome, e de outras se discuta a localização incerta, sendo anacrónico procurar
objeti­vidade ou distanciamento nas informações que sobre esses «povos» prestaram os
­«geógrafos» e «etnógrafos» da época.
Tradicionalmente, a arqueologia histórico-cultural, na linha de Gustaf Kossina2
e Vere Gordon Childe3, tentou colar «pacotes artefactuais», e logo «culturas», a esse
­mosaico étnico, mas o progresso da investigação e da reflexão arqueológicas viria a
concluir pela ineficácia desse mapeamento e a profunda dificuldade de aproximação do
olhar contemporâneo às etnicidades de há dois milénios.

A ARQUEOLOGIA DOS POVOS E DAS CULTURAS


Os povos não são criação divina nem fenómeno da natureza. Os povos fazem-se
e desfazem-se. Contrariamente ao que defendem certos nacionalismos essencialistas,
pretendendo reunir em coletivos «étnicos» (usando o termo em sentido genérico) uma
população que partilha um mesmo espaço físico, uma língua, uma religião e, por vezes,
outros traços tidos como distintos e distintivos, numa espécie de comunidade «natural»
(quando não, perigosamente, «nação-eleita»), sabemos modernamente que os «povos»
são entidades mais fluídas e mutáveis do que durante muito tempo se pensou, do mesmo
modo como também se criam ou aniquilam.
Não faltam exemplos, em tempos passados como atuais, de genocídios mais ou
­menos brutais e eficazes — o termo foi cunhado no contexto do Holocausto nazi4 mas
aplica-se a etnocídios como o da matança arménia nos começos do século XX ou a
­episódios recentes como os que tiveram, ou têm lugar no Ruanda, na Bósnia ou em m
­ uitas
outras partes do mundo5. Pelo contrário, os processos etnogenéticos ­docu­mentam-se

1
KRISTIANSEN, 2001: 17.
2
KOSSINA, 1911.
3
CHILDE, 1929.
4
LEMKIN, 1944.
5
Cfr. <https://www.genocidewatch.com> para uma panorâmica atual.

454
FAZER UM POVO. A CONSTRUÇÃO DOS CALLAECI ENTRE A ARQUEOLOGIA E A HISTÓRIA ANTIGA

por exemplo em diversos contextos coloniais, no quadro das tensões de p ­ oder, resis­
tência ou assimilação das próprias sociedades colonizadoras6.
Para Norman E. Whitten Jr., aliás, etnogénese e etnocídio podem até ser vistos
como dimensões complementares, uma vez que se fundamentam ambos em episó‑
dios de hegemonia e resistência à hegemonia, ou, noutras palavras, num confronto ou
compe­tição de identidades7. Curiosamente, ambos os processos parecem ter similitudes
nas suas fases iniciais, começando numa progressiva consciência e valoração da alteri­
dade — «nós e eles» — para prosseguir muitas vezes para um patamar de simbolização8,
a vários níveis e de tónica diferenciada conforme a natureza do processo em causa.
Se a abordagem antropológica aos fenómenos de etnogénese possibilita, pelo
­menos em teoria, que se cruzem ou balancem aproximações externas com uma eventual
perceção mais endógena ou «emic» desses processos9; já no que se refere às sociedades
proto-históricas, pelo contrário, dispomos apenas de fontes literárias, «exo-étnicas», na
expressão de certos autores10.
A negação das teorias de Gustaf Kossinna e a sua clássica cartografia de povo‑
amento arqueológico, a Siedlungsarchäologie, baseada na quase automática adscrição
aos povos mencionados nas fontes clássicas (encarados ainda numa visão ingénua e
­romântica) de supostas «áreas culturais» definidas pela dispersão de pacotes de objetos
ou ­outros itens arqueológicos11, mas sobretudo a demonização daquele investigador pela
sua aproximação ao nazismo e manipulação política da ciência arqueológica12, susci­
taram aos temas da etnicidade um longo deserto na arqueologia europeia, levando a que
só nas últimas décadas do século XX recuperassem espaço nas agendas teóricas.
Esta redescoberta da etnicidade, tanto no domínio da arqueologia como no das
ciências sociais em geral13, com fundamentos, no que agora nos interessa, nas obras de
Hodder, Shennan, Jones14 e tantos outros, produziu maiores consequências no plano
teórico que no prático, levando ao que Guillermo Reher designou como a «síndrome da
introdução à etnicidade», ou seja a assunção por parte dos arqueólogos de um para­digma

6
JONES, 1997; HU, 2013; WEIK, 2014; VOSS, 2015.
7
WHITTEN, 1996: 407, referindo-se à sua obra Sacha Runa: Ethnicity and Adaptation of Ecuadorian Jungle ­Quichua
(Chicago/London, University of Illinois Press, 1976), na qual, estudando povos de língua Quichua da região ­oriental
do Equador, observou a paradoxal complementaridade de um processo de etnocídio, na perspectiva nacional,
­corresponder a dinâmicas de etnogénese do ponto de vista dos nativos.
8
STANTON, 2009 [1996]. Disponível em <http://www.genocidewatch.org/images/8StagesBriefingpaper.pdf>. [Con‑
sulta em 01/09/2018].
9
Muitos defendem até que a etnografia é sempre uma translação de cultura baseada nessa tensão entre os modos
interno e externo de definir a identidade cultural (cfr. RACZYNSKA, 2016: 108, com larga bibliografia).
10
FERNÁNDEZ-GÖTZ, 2011: 229; RUIZ ZAPATERO, 2009; WOOLF, 2009 que enquadra as narrativas etnográficas
da Antiguidade no plano das relações «middle-ground» entre colonos e colonizados.
11
KOSSINA, 1911; FERNÁNDEZ-GÖTZ, 2008: 25-30; 2009.
12
FERNÁNDEZ-GÖTZ, 2008: 47-53; 2009.
13
RUIZ-ZAPATERO, 2009: 14.
14
HODDER, 1982; SHENNAN, 1989; JONES, 1997.

455
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

que evoca os avanços teóricos sobre o tema da etnicidade para depois, «­ baixando ao
­terreno» das materialidades, resultar na incapacidade de aplicar ferramentas ­adequadas
à leitura etnológica das ruínas, artefactos, padrões de assentamento ou outras categorias
da evidência material do passado15.
A «síndrome da introdução à etnicidade» acaba por desembocar ou em perspe­tivas
essencialistas e num histórico-culturalismo refrescado, ou no total ceticismo ­quanto ao
potencial informativo dos vestígios materiais para responder à velha questão que Peter
Ucko considerou «talvez a mais fundamental» da pesquisa e interpretação arqueológicas:

What can be legitimately inferred about the social groups which produced
the material culture objects which are the primary evidence of archaeology? More
­particularly, when can such presumed groups of people legitimately be assumed to
have thought themselves to be distinct from other contemporaneous social groups of
human beings?16

Contra essa síndrome da introdução à etnicidade têm vindo a lutar — com


­exemplos e propostas práticas, autores como Sebastian Brather, Jonathan Hall, Stuart
T. Smith ou Nico Roymans17, merecendo destaque ultimamente na arqueologia penin‑
sular os estudos de Gonzalo Ruiz Zapatero e Manuel Fernández-Götz18.
Este último, nomeadamente, assente num sólido aparato teórico, tem p ­ roposto
­metodologias de análise e exemplos concretos de interpretação «progressiva» do r­ egisto
arqueológico para diversos casos da proto-história peninsular, da Gália ou da zona
­centro-europeia19, destacando, na linha dos autores citados, tópicos e abordagens que
passam, nomeadamente, pela revalorização dos mitos de origem e de um antepas­sado
comum, pela leitura profundamente contextual do registo material (sendo por isso
pouco consequentes cartografias de larga escala que apenas sublinham o comum e o
transversal a vários contextos étnicos) e ainda por uma aproximação «multi-escalas» à
etnicidade20, dada a sua reconhecida natureza volátil, variável, heterológica, na expressão
de Siapkas21.

15
REHER, 2011; FERNÁNDEZ-GÖTZ, 2015: 400-401.
16
UCKO, 1989: xiii.
17
BRATHER, 2002; HALL, 1997; SMITH, 2003; ROYMANS, 2004.
18
Cfr. bibliografia final.
19
FERNÁNDEZ-GÖTZ, 2013; 2013-2014; 2014a; 2014b; 2016.
20
REHER & GÖTZ, 2015: 402.
21
SIAPKAS, 2003.

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FAZER UM POVO. A CONSTRUÇÃO DOS CALLAECI ENTRE A ARQUEOLOGIA E A HISTÓRIA ANTIGA

AS FONTES LITERÁRIAS E A SEQUÊNCIA HISTÓRICA


A Península Ibérica entra na órbita do conhecimento greco-latino através de
­viagens de aventura ou exploração e, sobretudo, pelos escritos de autores que, na maior
parte dos casos, não tiveram conhecimento direto das realidades que descre­veram,
­compilando outras fontes e tradições. Nessas descrições, usualmente de pendor mais
­geográfico mas com referência a etnónimos e apontamentos etnográficos mais ou
­menos dispersos, de que são exemplo os escritos de Políbio, no século II a.C., ou um
pouco mais tarde, ­Artemidoro de Éfeso, surgem principalmente referências a entidades
macro-étnicas, como é o caso dos Lusitanos na fachada atlântica da Ibéria22, ou de modo
análogo, noutras regiões, os Galos ou os Germanos.
Essas entidades — correspondentes a conglomerados de unidades étnicas m ­ enores,
como parece ilustrado no que seria a semântica original dos Allamani (all men) —
­traduzem afinal a novidade ou a estranheza da descoberta e contacto com o Outro por
parte dos autores circum-mediterrânicos. Esses bárbaros — designação que rapida­
mente passou de mero designativo a uma evocação de todo um «pacote cultural», ainda
que indistinto e em grande medida fantasioso23 — chegaram ao discurso histórico com
etnónimos talvez auto-identificativos, talvez atribuídos do exterior24, considerando até
a fluidez da comunicação com os informadores e as dificuldades de transcrição para o
grego ou depois para o latim, de nomes por vezes de difícil pronúncia, como se queixou
Plínio25, que evitou citá-los para não maçar os seus leitores.
Além da seca enumeração de acidentes geográficos — rios, serras ou promontórios
— e das gentes que habitariam essas regiões, surgem por vezes exemplos de uma proto-
-etnografia que pela sua raridade e colorido das descrições usamos com abundância —
veja-se a panorâmica dos costumes dos lusitanos e dos galaicos oferecida por Estrabão26
— mas que devemos ler com a prudência de um discurso mediado pela interpretatio
dos autores que, mais que uma mera ferramenta para apresentar crenças, costumes ou
rituais, resultou da radical necessidade de repensar o Outro na alteridade de si e do seu
mundo, como salientaram Bucholz, Kulikowski, Woolf27 e outros autores para a ­antiga
Germânia, ou por exemplo Gonzalo Cruz Andreotti28 e Domingo Placido Suárez29
para a Ibéria, transformando gentes e terras incógnitas — a infinita floresta (Hercynia
silva) que se estendia às partes mais secretas (secretiora) e distantes da Germânia, nas

22
PEREZ VILATELA, 2000: 21-37; PLACIDO, 2004.
23
RACZYNSKA, 2016: 109.
24
Como crê GONZALEZ-RUIBAL, 2006-2007: 454, ao dizer que os galaicos jamais de denominaram a si próprios
como galaicos.
25
Nat. Hist, III; 28.
26
Geogr., III, 3, 5-8.
27
BUCHOLZ, 1968; KULIKOWSKI, 2007; WOOLF, 2009; 2013. Cit. em RACZINSKA, 2016: 111.
28
CRUZ ANDREOTTI, 2004; 2009; 2016; CRUZ ANDREOTTI & MORA SERRANO, 2004.
29
PLACIDO SUÁREZ, 2009.

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MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

e­ xpressões de César e de Tácito30 — num modelo mais familiar e aceitável de otherness,


de alteridade, na formulação de Greg Woolf31.
A certa altura dos registos entram em cena as unidades étnicas menores, recolo­
cando-se mais uma vez a questão de saber quais emergiam de uma ancestralidade
­significativa e correspondiam efetivamente a comunidades que se auto-reconheciam
com uma identidade, traços culturais e porventura nome coletivo próprio e quais terão
sido forjadas na negociação e mediação cultural com os inquirentes «proto-etnógrafos»
ou depois com as necessidades de categorização dos invasores romanos32.
Chegamos assim aos Callaeci. A sua entrada na História ocorreu no quadro da
expedição militar do general romano Decimus Iunius Brutus às terras a norte do Douro,
entre os anos de 138 e 137 antes de Cristo, aparentemente uma ação punitiva na fase final
das guerras lusitanas. Após a travessia do Douro e a chegada ao rio Lethes, ou «rio do
esquecimento»33, com o conhecido episódio do receio das tropas no seu atravessamento,
obrigando o general a fazê-lo em primeiro lugar34, os Callaeci terão sido (já no regresso
para sul das tropas romanas) o primeiro ou o mais aguerrido dos populi da região com
que o procônsul romano se enfrentou em batalha singular. Os autóctones terão convo‑
cado em sua ajuda outras populações do norte, reunindo um efetivo de 60.000 comba‑
tentes que no dizer de Paulo Orósio35, escrevendo quase quinhentos anos depois, foram
praticamente dizimados (50.000 teriam sido mortos e 6.000 feitos prisioneiros) numa
batalha travada nas margens do Douro. Se admitirmos que neste exército indígena esta‑
riam a generalidade dos varões galaicos em idade de combater, naquele dia 9 de junho
de 137 a.C. coincidiu a apresentação étnica desses Galaicos com o seu quase genocídio.
Não obstante a distância temporal deste registo histórico, vários autores gregos ou
latinos fazem eco da campanha do general romano ou deste confronto, todos e­ vocando
essa entidade étnica dos Callaeci ou, na sua variante grega, os kallaikoi, como é o caso,
por exemplo, do já citado Tito Lívio ou de Ovídio36, que escreveram por alturas do
­reinado do imperador Augusto. O certo é que, no seu regresso a Roma, Décimo Juno
Bruto celebrou o imponente triunfo e acrescentou o epíteto de Callaicus ao seu nome,
como era comum aos generais que obtinham vitórias importantes ou a submissão defi‑
nitiva dos povos que o poder romano ia alcançando. Um episódio um pouco anterior a
estes sucessos foi recordado por Apiano de Alexandria no século II, nas suas Guerras da

30
Respetivamente B. Gal, VI, 26-28 e Ger, 41. Cfr. RACZINSKA, 2016: 112-3.
31
WOOLF, 2013: 137.
32
PLACIDO, 2009.
33
Para a generalidade dos autores o rio Minho, embora haja proposta diversa (GUERRA, 1996: 154-159; 2007:
117-118).
34
T. Liv., Perioch, 55.
35
Historiarum adversus paganos, V, 5, 12.
36
Fasti, VI, 461-2.

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FAZER UM POVO. A CONSTRUÇÃO DOS CALLAECI ENTRE A ARQUEOLOGIA E A HISTÓRIA ANTIGA

Ibéria, registando, sem maiores detalhes, que já no ano de 139 a.C. o governador Quinto
Servílio Cipião teria «arrasado os campos dos Vetões e dos Callaicos»37.
Para sintetizar, pois não são propriamente os eventos militares que aqui nos
­importam, na segunda metade do século II antes da nossa era, existia a norte do Douro
– porventura não muito distante do rio – uma entidade «étnica» que se identificava ou a
quem os antigos designaram por Callaeci, kallaikoi, Galaicos. O episódio da «batalha do
Douro», associado à descrição da expedição de Brutus com evidentes tons de epopeia
dramática, levou alguns estudiosos a duvidar quer da quantidade dos opositores indí‑
genas, quer mesmo da própria existência dos Callaeci enquanto efetiva realidade étnica.
Na verdade, Bruto patrocinou a obra de um literato, Lucius Attius, poeta e drama­turgo
de reconhecidos méritos, que poderá mesmo tê-lo acompanhado à Hispânia. Neste
­cenário, não seria de estranhar que a fantasia literária de Ácio exagerasse ou pintasse de
tons mais cenográficos os sucessos do patrono ou mesmo — quem sabe? — ­usasse com
liberalidade apelativos étnicos distantes para distinguir o novo triunfo do cônsul dos
­anteriores que obtivera frente a celtiberos ou lusitanos, porventura igualmente ­relevantes
mas menos coloridos na crueza da própria guerra38.
Não abordaremos aqui as questões filológicas ligadas ao etnónimo Callaeci, o
especu­lativo local da «batalha do Douro» ou sequer a região onde terão tido a­ ssento
primordial estes galaicos, que a maior parte dos estudiosos situa na área do Porto
­(assumindo como Cale a designação do povoado indígena que se instalou no atual
­morro da Sé), mas para os quais interpretação corográfica feita à luz das fontes escritas
parece admitir também localização mais interior39.

37
Iber, 70.
38
Possibilidade que aparentemente G. Pereira-Menaut, notável estudioso da etnogénese galaica, sustentaria (inf.
­pessoal de Fernando Wulff Alonso, que agradecemos).
39
Segundo as propostas de A. RODRÍGUEZ COLMENERO, 1977: 35; 1979: 16; 1996: 245, etc., ultimamente seguido
por REDENTOR, 2011: I, 78, 84.

459
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Figura 1. Localização dos Callaeci segundo A. Rodríguez Colmenero, 1996 (recortado).

Figura 2. Localização dos Callaeci segundo Jorge de Alarcão, 1999 (recortado).

460
FAZER UM POVO. A CONSTRUÇÃO DOS CALLAECI ENTRE A ARQUEOLOGIA E A HISTÓRIA ANTIGA

Figura 3. Localização dos Callaeci segundo A. C. Ferreira da Silva, 2007 (recortado).

Porém, o ciclo cronológico dos Callaeci, dos quais desconhecemos eventuais raízes
anteriores, sofreu notável (e em parte ignorada) aceleração histórica, que porventura
levou o povo na voragem do nome. Na verdade, a sua identidade tópica terá sobrevivido
pouco mais de um século, como sabiamente apontou G. Pereira Menaut40, pois quando,
algures pela mudança de era, na então jovem urbe de Bracara Augusta se epigrafou um
monumento honorífico a um neto de Augusto, selecionou-se, com hábil pedagogia e
aparentemente sem ser caso único na cidade41, uma entidade colectiva, Callaecia, como
dedicante, nada ou pouco tendo já que ver com o primitivo solar do povo ou castellum
epónimos42 mas usando a praxis epigráfica como elemento de reforço da nova identi­
dade étnico-política então em clara afirmação43.

40
PEREIRA-MENAUT, 1984: 281; 1998: 306-7.
41
REDENTOR, 2011: II, 115-6.
42
TRANOY, 1981: 150; PEREIRA-MENAUT, 1984: 280; 1998: 303-4; REDENTOR, 2011: II, 114-5.
43
PEREIRA-MENAUT, 2010: 248.

461
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Pelos meados do século I, Plínio-o-Velho, descrevendo o Noroeste peninsular já


à luz de uma realidade socio-política toda outra — o território totalmente dominado
e pacificado, a província romana dividida em conventvs e estes em civitates (o modelo
administrativo que Augusto aparentemente desenhou, com maior ou menor ajuste, sob
o mapa étnico indígena)44 registou que o conventvs dos Brácaros possuía 24 civitates e
285.000 homens livres, enumerando daquelas apenas as correspondentes a ­diferentes
populi45: os mesmos Brácaros, os Bíbalos, os Coelernos, os Calaicos, os Equaesos, os
­Límicos e os Querquernos46. Seriam estes galaicos os descendentes daqueles que dois
séculos antes haviam liderado a malograda resistência a Décimo Juno Bruto?
É possível que sim, mas já o nome alcançava outras ressonâncias. Pela ­mesma
­altura, nos pórticos de um santuário dedicado aos imperadores julio-claudianos em
Aphrodisias, cidade grega nas extremas do Mediterrâneo, esculpiam-se de forma
­
alegó­rica e com identificação epigráfica pelo menos dezasseis dos povos submetidos
por Roma, onze dos quais sob o imperium de Augusto47. De um deles restou apenas
a ­inscrição basal, registando ethnous kallaikon, o povo dos Galaicos, a única etnia da
Hispâ­nia ali representada, elemento que a par de outra figuração do sebasteion permi‑
tiu que Centeno, Morais e Bartolomé Abraira sublinhassem recentemente48 que nessa
época já o etnónimo Callaeci — ali evidentemente aplicado à ação direta de Augusto na
conclusão das guerras hispanas — se estendera, por sinédoque que escapa ainda à nossa
total compreensão, a todos os populi do noroeste ibérico.
Nesta linha, a proposta de que poderá mesmo remontar ao confronto com D ­ écimo
Juno Bruto a generalização do etnónimo maior a um conjunto de entidades étnicas
­originárias da região a norte do Douro49 suscita hipóteses interpretativas que sugerem
um eventual processo etnogenético muito particular, senão mesmo uma quase inventio
romana dos Callaeci, o que não destoaria, aliás, da futura invenção da Callaecia50. Seja
como for, a circunstância de aos galaicos ter sido adscrito um território e os direitos e
obrigações de uma civitas assinala o sucesso e alguma perenidade do eventual estímulo
dos conquistadores para superar a eventual debilidade das expressões endo-étnicas.

44
O que não significa que, pontualmente, populações não pudessem ser territorialmente deslocadas ou mudadas
de tutela administrativa, como exemplarmente demonstra o bronze de El Bierzo (PEREIRA-MENAUT, 2005; 2015;
DOPICO CAÍNZOS, 2009).
45
Termo neutro, passível de aplicar-se a unidades de diferente grandeza ou hierarquia (OLIVEIRA, 1994; CIPRES,
2014; OSCARIZ, 2012).
46
Nat. Hist., III, 28.
47
SMITH, 1988; RODRÍGUEZ COLMENERO & FERRER SIERRA, 2014: 61-2; CENTENO, MORAIS & BARTO­
LOMÉ ABRAIRA, 2016: 76-7.
48
CENTENO, MORAIS & BARTOLOMÉ ABRAIRA, 2016.
49
CRUZ ANDREOTTI, 2006: 88; CIPRES, 2014: 26, nota 45.
50
PEREIRA-MENAUT, 1984; 1992.

462
FAZER UM POVO. A CONSTRUÇÃO DOS CALLAECI ENTRE A ARQUEOLOGIA E A HISTÓRIA ANTIGA

OS POVOS, ENTRE A LITERATURA E OS RESTOS


ARQUEOLÓGICOS
Rejeitando qualquer equação mais ou menos simplista entre «culturas arqueo­
lógicas» e «grupos étnicos», há que ter presente quer a natureza seletiva e quase infini‑
tamente variável dos «marcadores étnicos», quer a polivalência, semântica e múltiplos
sentidos dos vestígios arqueológicos. Como lembrava, com desarmante simplicidade,
Gerardo Pereira, «não é o mesmo uma casa redonda habitada por galaicos antes da
­conquista, que outra casa também redonda habitada pelos seus netos, falando já sofrivel­
mente o latim e concebendo a vida em termos provinciais romanos»51.
Desde logo, a etnicidade é apenas uma das expressões, correntemente emara­
nhadas, da identidade dos indivíduos e dos grupos, pelo que pode operar a diferentes
níveis e variar consoante as diferentes circunstâncias, interlocutores e situações, intera‑
gindo com outras categorias de identificação como o género, status ou a religião52.
Ainda, e agora considerando o particular momento da etnogénese galaica, para a
qual o papel de Roma parece ter sido fundamental (senão para a primeira, segura­mente
para o seu redimensionamento a uma imprevisível escala regional), haverá também
que ter em conta não só a interação cultural como a modelação política desta «etnogé­
nese aberta», como a classificaram González García e Parcero53, talvez não ao ponto de
­podermos dizer que é a política que, em última análise, define a etnicidade ou que um
poder político é indispensável para configurar, desenvolver e manter o sentimento étnico,
como sugerem Derks e Roymans e Cardete del Olmo54. Na proposta de Marta Raczynska,
seguindo aliás a Woolf55, «the knowledge resulting from literary data and preserved
­elements of material culture should be considered together not as the final e­ xplanation of
the historical process, but as a complementary interpretative framework»56.
Aprofundar os traços históricos dos Callaeci (tivessem de facto esse nome de
­nascença ou o ouvissem da boca dos Romanos), rastrear as suas raízes antes que Roma
inventasse a Calaecia convoca várias aproximações e um contínuo e renovado esforço,
tanto hermenêutico como heurístico, senão para sabermos exatamente quem eram e
como eram, pelo menos para os podermos imaginar com maior segurança, à luz das
ferramentas que a ciência histórica e a arqueologia nos proporcionam.

51
PEREIRA-MENAUT, 1984: 271.
52
DIAZ-ANDREU, 1998.
53
GONZÁLEZ GARCÍA & PARCERO-OUBIÑA, 2007.
54
DERKS & ROYMANS, 2009; CARDETE DEL OLMO, 2009; 2010.
55
WOOLF, 2009.
56
WOOLF, 2009.

463
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

BIBLIOGRAFIA
ALARCÃO, Jorge de (1999) — Populi, Castella e Gentilitates. «Revista de Guimarães». Vol. especial [Actas
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MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

468
ALDEAMENTOS JESUÍTICOS NA AMÉRICA
PORTUGUESA: CONTROLE ESPIRITUAL
E TEMPOR AL (1650-1700)
ANA ELISA ARÊDES*

Resumo: O objetivo deste trabalho é investigar os mecanismos que foram usados nos aldeamentos jesuí­
ticos para conversão indígena. A partir de textos produzidos por jesuítas na segunda metade do século XVII
e das diretrizes que constam na Lei do Regimento das Missões do Maranhão e Grão-Pará (1686), observa­
remos como o quotidiano dos aldeados era construído a fim de ensinar e impor aos indígenas a forma de
viver europeia, bem como analisaremos o modelo de sociedade cristã emulado nos aldeamentos. Desse
modo, priorizamos nesta análise um período em que se intensificou a construção de aldeias no Brasil e
floresceram os debates sobre as missões nos sertões.
Palavras-chave: aldeamentos; jesuítas; América portuguesa; catequização.

Abstract: This work will aim to investigate the mechanisms that have been used in «aldeamentos» to convert
the natives. Based on texts produced by Jesuits and from the guidelines contained in the Law of the Rules of
the Missions of Maranhão and Grão-Pará (1686), we will observe how the daily life of the natives was built in
order to teach and to impose the european lifestyle, as well as analyze the Christian society model emulated
in the «aldeamentos». In this work, we will prioritize an period in which the construction of «aldeamentos»
was intensified in Brazil and the discussions about the villages in the badlands began.
Keywords: mission Villages; jesuits; portuguese America; catechesis.

Fundada em 1534 por iniciativa de Inácio de Loyola, a Societatis Iesu tinha a ­tarefa
do apostolado como seu maior objetivo. Em meio à Contrarreforma, essa proposta
­estava em total consonância com a tentativa de reativação católica em relação à divisão

* Doutoranda em História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Email: anaelisaarede@gmail.com.

469
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

da cristandade. Nos termos das Constituições da Companhia de Jesus (1555): «O fim


desta Companhia não é somente atender a salvação e perfeição das almas com a Graça
divina, mas com a mesma intensidade procurar ajudar na salvação e perfeição das almas
dos próximos»1. Logo, para os jesuítas, a atuação missionária estava conectada a uma
atitude militante e era, não somente uma conquista das almas, mas também uma forma
de devoção, de servir a Deus e à cristandade católica e, consequentemente, de servir à
própria ordem.
A expansão da fé católica na América portuguesa do século XVI significava conso‑
lidar a presença da Coroa e conduzir o Gentio ao grémio da Igreja e ao corpo místico do
império português2. Os poderes secular e eclesiástico eram indissociáveis e, segundo as
regras do Padroado régio, o rei era a maior autoridade da Igreja em território luso, tendo
o «direito de invadir, conquistar, subjugar e submeter todas aquelas pessoas à perpétua
servidão, que se situarem fora dos limites do orbe cristão»3.
A ação catequética da Companhia se expandiu pela América portuguesa, assim
como os modelos de evangelização desenvolvidos por seus religiosos, desde 1549 até
os decretos pombalinos que culminaram na expulsão dos jesuítas em 17594. Os jesuítas
que se envolveram no trabalho catequético junto aos indígenas elaboraram discursos e
debateram entre si a fim de deliberar sobre o que era proveitoso ou não para a evangeli‑
zação dos índios, para a salvação de suas almas e para a consequente elevação espiritual
do pregador que, por meio da dedicação ao trabalho apostólico, buscava servir e louvar
a Deus e receber a Graça para a salvação de sua alma.
Nos aldeamentos missionários, a estratégia evangelizadora dos inacianos se basea­
va no afastamento dos indígenas de suas aldeias de origem enquanto os introduzia
em outra vida, que seria guiada pela fé, doutrina e princípios morais católicos. Para os
­jesuítas, isso significava abandonar o passado devasso e os maus costumes e, simulta‑
neamente, aproximar-se da salvação. Além da razão catequética, essas aldeias tinham
finalidades económicas e políticas associadas ao projeto colonizador, uma vez que, os
jesuítas visavam incorporar os índios ao corpo de súbditos da Coroa portuguesa5.

1
CONSTITUICIONES, 1: 3, ponto 3.
2
HANSEN, 2003: 33.
3
BOOFF, 1992: 52.
4
Em 1549, junto com a armada do Governador-Geral do Brasil, Tomé de Souza, cinco jesuítas liderados pelo padre
Manuel da Nóbrega chegaram ao Novo Mundo para conduzir as Missões Portuguesas do Ocidente. Acolhidos e
protegidos pela Coroa portuguesa, eles fundaram as primeiras missões, igrejas, colégios e aldeamentos destinados
à redução indígena. Passados séculos, o Marquês de Pombal decretou o fim das missões jesuítas no Brasil em 1757,
alegando que os jesuítas tinham poder total sobre os índios e que as reduções jesuíticas desafiavam o poder da Coroa,
por serem autossuficientes e isoladas (CORNELLI, 2016: 37). Nesse ano, o Regimento das Missões (1686) foi revo‑
gado e substituído pelo Diretório dos Índios, que, por sua vez, foi adotado em todas as áreas da América portuguesa
em 1758.
5
MONTEIRO, 1994: 34.

470
ALDEAMENTOS JESUÍTICOS NA AMÉRICA PORTUGUESA: CONTROLE ESPIRITUAL E TEMPOR AL (1650-1700)

Tendo essas questões em vista, este trabalho tem como objetivo investigar os meca‑
nismos usados pelos jesuítas para converter a mente e o corpo dos indígenas, fosse pelo
medo ou pelo amor, como fora enunciado por Nóbrega na década de 15506. A partir
de textos produzidos por jesuítas, em particular António Vieira e Jacob Roland, e das
­diretrizes que constam na Lei do Regimento das Missões (1686), observaremos como o
quotidiano dos aldeados era construído a fim de ensinar e impor aos indígenas a ­forma
de viver europeia, bem como analisaremos o modelo de sociedade cristã emulado nos
aldeamentos. Portanto, produzida no interior da sociedade hierarquizada de Antigo
­Regime, a documentação selecionada foi desenvolvida a partir do ponto de vista de
agentes a serviço da Coroa portuguesa e do papado.
Os jesuítas portugueses, assim como capuchinhos franceses, defendiam que a
­forma autorizada e legítima de construir argumentos sobre os índios e sobre o trabalho
catequético seria a partir da experiência missionária7. Nesse sentido, os discursos produ­
zidos por jesuítas reivindicam as experiências oriundas das situações que os ­padres
­vivenciaram e retiraram conhecimentos particulares sobre os personagens e sobre as
ações humanas. Além disso, os discursos missionários do século XVII compartilhavam
não só os preceituários técnicos retóricos que condicionavam a matéria, o conteúdo e
o formato dos textos, como também uma série de tópicas discursivas e, em especial, de
tópicas missionárias8.
Com o uso dos lugares-comuns associados à prática evangélica, esses discursos
tratavam, sobretudo, de ressaltar a convertibilidade do indígena. Essa questão estava
associada à reafirmação da importância da empresa pedagógico-catequética no Novo
Mundo, que, por sua vez, era constantemente mobilizada para reforçar, como artifício
argumentativo, os pedidos de recursos humanos e materiais que os religiosos faziam a
autoridades régias, eclesiásticas e da administração colonial.
Em contrapartida, a Lei do Regimento das Missões do Estado do Maranhão
e ­Grão-Pará (1686) apresenta normas elaboradas mediante as crescentes queixas

6
A conversão pelo amor e pelo medo foram elaboradas por Nóbrega em missivas que enviou para outros jesuítas e
no Diálogo sobre a conversão do Gentio (1556-1557). A «via amorosa» aplicava o exemplo da pregação evangélica:
desarmada, a catequese deveria priorizar o ensino da leitura e escrita da língua portuguesa e o aprendizado da língua
dos indígenas pelos missionários (para tradução e comunicação do catecismo, dos textos doutrinais, dos cantos,
rezas e sacramentos). Progressivamente, esse método foi abandonado por Nóbrega, que, ao duvidar de sua eficiência,
percebe ser necessário outro caminho para a conversão na América Portuguesa. No entanto, após a morte do Bispo
Sardinha pelos caetés, Nóbrega aponta o caminho da conversão «pela via do medo», em que, por meio de punições
aplicadas a alguns índios, o medo sujeitaria todos ao rei, à lei e à fé. Cf.: NÓBREGA, 1954.
7
Cf.: D’EVREUX, 1615; VIEIRA, 1995.
8
Exemplos dessas tópicas são: o espírito missionário como forma devocional; a inconstância da alma indígena; a
guerra; a fidelidade do missionário à Coroa; a antropofagia; a incapacidade de autogovernança dos índios; a poli­
gamia; as línguas bárbaras.

471
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

a­presentadas, na Corte e nas Câmaras, por missionários e por colonos9. A fim de


­defenderem suas posições, esses agentes engendravam alianças no interior da estru‑
tura administrativa da monarquia corporativa portuguesa. Os colonos recorriam às
­câmaras locais que, por meio de petições, requerimentos e papéis políticos, levavam
as demandas à Corte. Já os jesuítas recorriam diretamente àqueles irmãos que na
­hierarquia da ­Companhia ocupavam posições superiores, aos nobres e, até mesmo, ao
rei. Nesse ­contexto, o Regimento reúne pragmáticas que são resultado da ação media­
dora do Estado, em especial da Junta dos Negócios do Maranhão, em relação aos confli­
tos entre colonos e missionários, sobretudo jesuítas. Desse modo, como enuncia F
­ arage,
a Coroa buscava por soluções de «compromisso entre as demandas dos moradores
e missionários»10.

TUTELA E DISCIPLINA: ESTRATÉGIAS JESUÍTICAS NA


CONVERSÃO DOS «GENTIOS DO BRASIL»
No século XVI, foram instaladas as primeiras aldeias missionárias na América
portuguesa, por iniciativa dos religiosos jesuítas e com o apoio da administração local.
A prática da pregação itinerante foi gradativamente abandonada e os missionários se
concentraram em dois grupos, os que permaneciam nos aldeamentos e aqueles que iam
para as missões em direção aos sertões, sendo seu objetivo, em geral, persuadir os índios,
pela palavra ou pela força, para que abandonassem suas aldeias de origem e descessem
os rios rumo ao litoral, onde seriam assentados nos aldeamentos e convertidos à fé e aos
costumes cristãos. Ao descer para o litoral, os índios abriam espaço para a expansão dos
territórios administrados pela Coroa, uma vez que se estendia a área de penetração das
missões catequéticas e das entradas de exploração, que percorriam o interior em busca
das riquezas da terra e de terras para a criação de gado.
Construídos especificamente para reunir índios, os aldeamentos missionários
eram espaços organizados de modo a converter os «Gentios» em súbditos cristãos e
em força produtiva de trabalho. Segundo o Regimento (1686), os índios que chegassem
às aldeias do litoral deveriam nelas permanecer por dois anos para que fossem doutri­
nados na fé cristã. Nesse período, os índios se dedicariam exclusivamente ao trabalho

9
Enquanto os jesuítas acusavam os colonos de «maus cristãos», movidos pela cobiça, os colonos acusavam os
j­ esuítas de descumprirem as determinações régias sobre a repartição do uso da mão de obra dos indígenas aldeados.
No século XVII, os conflitos entre moradores e jesuítas atingiram pontos extremos, como a destruição armada de
aldeamentos missionários nos sertões (como os casos, estudados por Anne Santos, de seis aldeias no sertão da Jaco‑
bina que foram destruídas por tropas convocadas por membros da elite local, em 1669); e as expulsões de jesuítas de
cidades (em 1640, foram expulsos em São Paulo e, no mesmo ano, os colonos do Rio de Janeiro cercaram o colégio
da Companhia e foram contidos pelo governador Salvador Correia de Sá e Benevides; em 1661, os jesuítas foram
expulsos de São Luís).
10
FARAGE, 1991: 32.

472
ALDEAMENTOS JESUÍTICOS NA AMÉRICA PORTUGUESA: CONTROLE ESPIRITUAL E TEMPOR AL (1650-1700)

nas roças da aldeia e, após esses primeiros anos, eles poderiam vender seus serviços para
os ­moradores das cidades, vilas e lugares próximos às aldeias11.
Como ressalta Almeida, se para os colonos, as aldeias podiam ser vistas como
­redutos de mão de obra, para os índios podiam significar terra, proteção e a ­ocupação
de um espaço de negociação com as autoridades locais e, assim, uma possibilidade de
formar alianças com os portugueses12. No entanto, significava também estar s­ ujeito às
determinações régias, às normas estabelecidas pelos religiosos, à doutrina cristã, aos
trabalhos forçados e castigos determinados por seus tutores, fossem eles religiosos
ou seculares.
Segundo Monteiro, os aldeamentos inseriam os índios na sociedade colonial ao
preservarem alguns aspetos da organização social dos povos indígenas — como a estru­
tura política, a moradia, as técnicas aplicadas nas roças e os géneros alimentares produ‑
zidos — sobre a grade de normas fixadas pelos jesuítas13. Portanto, o estabelecimento
de um sistema de organização temporal e espacial nos aldeamentos ia além da r­ elação
de dependência entre a salvação da alma e o seguimento de um conjunto de regras
­reveladas por Deus nas Escrituras e pela Igreja.
Aos olhos católicos contrarreformados, crer era obedecer e, para garantir a
­remissão dos pecados e a salvação da alma, era necessário cumprir os preceitos e se
afastar dos ­pecados mortais e veniais. Tendo isso em vista, Inácio de Loyola indica que
o bom ­cristão deveria recorrer à vida exemplar, sem excessos, a fim de distanciar as
tentações do inimigo e se aproximar dos exemplos de virtude14. No entanto, a disciplina
estabelecida nas aldeias era o caminho para se cultivar a boa conduta dos aldeados e
ensinar a submissão a regras, sendo que, a partir da introjeção da submissão, os índios
seriam capazes de serem súbditos de Deus e do reino de Portugal.
Além disso, a disciplina, somada à tutela dos jesuítas, seria o remédio para a
­«inconstância da alma selvagem». A necessidade de uma vida regrada nos aldea­mentos
jesuíticos justificava-se como solução dos obstáculos à conversão, como os maus costu­
mes e a inconstância, largamente observados pelos religiosos em seus textos, desde
­Manuel da Nóbrega. Como coloca Eduardo Viveiros de Castro, a inconstância passou
a ser assimilada como uma característica do «caráter ameríndio», associada à noção de
índio «mal-converso», o qual abriria mão da fé e do trabalho para retornar ao sertão e
aos seus antigos costumes selvagens e bárbaros15.

11
Dentre os serviços que poderiam vender, encontram-se atividades com diferentes níveis de especialização, por
exemplo: o trabalho em roças; o remo de canoas; a criação dos filhos dos colonos e a feitura de farinhas.
12
ALMEIDA, 2015: 128.
13
MONTEIRO, 1994: 126.
14
LOYOLA, 2008: 101.
15
CASTRO, 2002: 187.

473
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Em De procuranda Indorum Salute, o jesuíta José de Acosta defende que a conver‑


são era a promoção da salvação das almas indígenas e da superação de «sua ferocidade
­nativa»16. No entanto, a fim de eliminar os maus costumes e a inconstância da alma
nos aldeamentos, tornou-se indispensável que houvesse polícia, ou seja, um conjunto
de ­regras que regesse a coletividade, de modo a se cultivarem costumes honestos nos
índios. Essas regras impostas aos aldeados compartimentavam os momentos do seu dia
em oração e trabalho, fazendo com que os jesuítas tivessem jurisdição espiritual sobre
suas almas e temporal sobre seus corpos.
Em suma, nos aldeamentos, todas as horas do dia eram preenchidas com orações,
missas, trabalho, aulas de ler e escrever, catequeses, ofícios e refeições. Enquanto era
Visi­tador-Geral, António Vieira sistematizou o Regulamento das Aldeias (1658-1660),
em que propunha uma ordenação do funcionamento dos aldeamentos de missão17.
­Segundo o jesuíta, o dia de um índio aldeado deveria começar com uma oração e, em
seguida, uma missa, a qual começaria assim que o sol nascesse. Ao fim da celebração, os
jesuítas ensinariam aos índios a doutrina, especificamente: o Padre-Nosso, a ­Ave-­Maria,
o ­Credo, os Mandamentos de Deus e da Igreja, os sacramentos, o ato de contrição,
­confissão e um diálogo do catecismo breve. Após isso, alguns índios iriam para a lavoura
e outros para a escola, onde, além da doutrina, aprenderiam a cantar, a tocar instru‑
mentos e, aqueles de maior engenho, a escrever e a ler. Antes do pôr-do-sol, a doutrina
deveria ser ensinada para adultos e crianças e, depois de concluída, os meninos, em
ordem, dariam a volta entorno da praça da aldeia cantando o Credo, os Mandamentos,
encomendando as almas do purgatório e rezando um Padre-Nosso e uma Ave-Maria.
Além dessas determinações, Vieira elenca atividades periódicas singulares, as quais
­adequavam a rotina do aldeamento às especificidades dos dias santos, domingos e festi‑
vidades religiosas18.
Com objetivo de converter a mente e o corpo do indígena, a ocupação racional do
tempo era uma estratégia para que fosse eliminada a ociosidade, considerada a origem
de muitos males19 por introduzir a malícia, a suspeita e a mentira20. O combate ao ócio se
dava pelo exemplo de trabalho para que os ociosos imitassem21. Assim, todos aldeados

16
ACOSTA, 1992: 573.
17
VIEIRA, 1984: 75.
18
Assim, diz que, nos domingos e dias santos, todos os aldeados deveriam ouvir a missa juntos e, se algum faltasse,
o padre deveria tomar nota de seu nome e repreendê-lo e, se tornasse a faltar, seria castigado. Na véspera do domingo
e de dias santos, os índios poderiam se reunir para recreação até às 22 ou 23 horas, quando os religiosos tocariam o
sino e os índios se recolheriam às suas casas. Nas segundas-feiras, após a missa da manhã, o padre e os índios deve‑
riam ir rezar na igreja e no cemitério. Durante a doutrina da manhã nos sábados e nos dias de Nossa Senhora, seria
rezado um Salve-Rainha e, nos sábados a tarde e vésperas dos dias de Nossa Senhora, as Ladainhas seriam rezadas
no lugar da doutrina. Em todas as sextas da Quaresma, fariam-se procissões dos Passos acompanhadas pela reza de
Ladainha e da prática da Paixão. VIEIRA, 1984: 80.
19
AQUINO, 2001: 711.
20
VIEIRA, 2000: 522.
21
AQUINO, 2001: 713.

474
ALDEAMENTOS JESUÍTICOS NA AMÉRICA PORTUGUESA: CONTROLE ESPIRITUAL E TEMPOR AL (1650-1700)

deveriam se ocupar continuamente, fornecendo exemplos de constância e de conduta


honrada, o que impediria que a ociosidade fosse plantada.
No Regimento, é estabelecido que os padres missionários cultivassem nos í­ndios
a «vida honesta de seu trabalho», para que eles não vivessem ociosos. A reprodução
­económica da aldeia era garantida pelo do trabalho, principalmente por meio do
­comércio de bens, agropecuários e manufaturados, e da compra e venda do trabalho
dos índios22.
Entretanto, a reprodução do quotidiano regrado não poderia ser unilateral: tanto
índios quanto jesuítas deveriam reiterá-las todos os dias, nos tempos adequados. Nos
momentos em que não havia imposição de ocupações, os índios poderiam escolher
e realizar suas atividades, desde que seguissem os princípios morais que permeavam
o ­restante do dia. Em carta ao Provincial do Brasil, Vieira narra um acontecimento
­decorrido numa aldeia no Maranhão. Ele conta que dois padres testemunharam índios
reunidos em oração no momento dado a passatempos23, o que foi avaliado por Vieira
como um exemplo que demonstrava a frutificação do trabalho missionário nas aldeias.
No entanto, o remetente não avaliou o caso como excecional, pelo contrário:

E posto que esta vez se estimou este caso pela novidade, de então para cá é cousa
tão ordinária nas aldeias, que todos os que vamos a elas [aldeias] experimentamos
esta piedade e curiosidade nos índios; porque depois de lhe ensinarmos a doutrina
rezam em comunidade, como se faz todas as manhãs e tardes na igreja, e recolhidos
à noite a suas casas os ouvimos outra vez rezar, e repetir o mesmo que lhe ensinámos.
Não crera isto destes homens quem de antes os conhecera, e vira quão inclinados são
a gastar as noites em seus brincos e passatempos; mas tanto pode a graça sobre a
natureza. Nem nós lhe tiramos ou proibimos o seu cantar e bailar, nem ainda beber e
alegrár-se, contanto que seja com a moderação devida24.

Assim, demonstrava-se os resultados benéficos da obediência às regras e, conse‑


quentemente, o sucesso do ensino da doutrina, do ódio ao pecado, do temor de Deus
e da valorização da honestidade. É claro que, para os jesuítas, os índios só poderiam
integrar os corpos da monarquia portuguesa e da cristandade católica por meio da
­internalização das regras e, consequentemente, da reprodução da obediência. Portanto,

22
Entendia-se por comércio as trocas, compras e vendas de géneros e a compra e venda do serviço dos índios.
S­ egundo o Regimento, os géneros teriam preço fixo pela Câmara, com assistência do Governador e do Ouvidor geral.
Os salários dos índios seriam determinados pelo Governador com conselho e assistência do Prelado da Companhia
de Jesus e do Prelado dos Padres de Santo António, sendo que o pagamento era dividido em duas partes (a primeira
antes do serviço e a segunda após o fim da tarefa).
23
Os jesuítas não se opunham a jogos ou brincos, desde que fossem honestos, ou seja, que não fomentassem os vícios.
Cf. GUSMÃO, 2004.
24
VIEIRA, 2003a: 172.

475
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

sujeitar-se a uma ordem significava abandonar o passado devasso e ser assimilado pela
república. A aldeia, por seu turno, significava um locus de reprodução do corpo social.
Nesse sentido, as diretrizes de construção do aldeamento correspondiam a um m ­ odelo
de sociedade cristã, que superaria, segundo os discursos jesuíticos, todos os outros,
uma vez que os cumprimentos da Lei e das determinações da Igreja proporcionariam a
­perfeição da sociedade.
Essas conceções perduraram na Companhia mesmo após a expulsão dos ­jesuítas
do reino e dos domínios de Portugal, em 1759. Nesse sentido, verificamos que, em
A ­República de Platão e os Guaranis (1793), o padre inaciano José Manuel Peramás
­descreve os aldeamentos como um modelo de organização social que supera a república
platónica25. Ao elaborar uma utopia guaranítica, Peramás ressalta que, sendo realizados
de modo genuíno e imaculado, os aldeamentos seriam sociedades em que os vícios e
os crimes inexistiriam. Por outro lado, a felicidade, proporcional ao cumprimento dos
mandamentos de Cristo, seria plena, tendo em vista que quanto mais assíduos aos cultos
divinos e firmes na fé são os povos, mais perfeitas e felizes são as sociedades.
Segundo a patrística, a desobediência, pecado contra a vontade divina, era o erro
que caracterizava os descrentes, enquanto que, o mais agudo modelo de obediência
­encontrava-se em Deus Filho, que, obediente ao Deus Pai, morreu na cruz e recebeu
seu prémio na ressuscitação26. Desse modo, a obediência era necessária a todo cristão
e, ­dessa forma, a todo súbdito, uma vez que o governante era causa segunda de Deus.
Pecado e erro político, a desobediência era signo dos vícios e da ruína, ao passo que a
obediência enxertava na alma todas as virtudes27.
A experiência missionária era mobilizada para fundamentar a imposição de
normas pelos jesuítas aos indígenas. Nesse sentido, aos olhos dos missionários, o conjun­
to ­dessas experiências acumuladas pelo tempo evidenciava as demandas, as necessi­
dades e as carências específicas das aldeias. Em carta enviada a D. João IV, em 1654,
­Vieira ­indicou remédios para que os índios fossem governados de forma mais p ­ roveitosa
e fossem eliminadas as dificuldades enfrentadas nas missões28. Dentre as indicações,
Vieira ressalta que era necessário que os índios estivessem «totalmente s­ ujeitos»; e, para
isso ocorrer, seria preciso que religiosos os governassem. Nesse tópico, Vieira reforça
a necessidade da tutela nos aldeamentos: «tem mostrado a experiência que, segundo
o natural e a capacidade dos índios, só por este modo podem ser bem governados e
­conservarem-se em suas aldeias»29.

25
PERAMÁS, 1946: 21.
26
AGOSTINHO, 2007: 158.
27
VIEIRA, 1998: 540.
28
VIEIRA, 2003b: 448.
29
Idem.

476
ALDEAMENTOS JESUÍTICOS NA AMÉRICA PORTUGUESA: CONTROLE ESPIRITUAL E TEMPOR AL (1650-1700)

Apesar de se estabelecer como tradição na prática missionária entre os jesuítas da


América portuguesa, a necessidade de reduzir os indígenas nos aldeamentos foi contes‑
tada pelos padres João de Barros e Jacob Roland. Esses inacianos que, a partir de 1666,
trabalharam como missionários junto aos Tapuias no sertão das Jacobinas, interior da
capitania da Baía, protagonizaram um debate interno na Companhia de Jesus sobre a
continuidade dos descimentos dos índios para o litoral e a criação de novos aldeamentos
no sertão.
Em Quaestio (1667), Roland considera que é uma sentença de morte retirar os
índios de suas terras, pois eles não sobreviviam à fome, à miséria e aos maus causados
pelo ar do litoral. Desse modo, Roland contesta as pragmáticas jesuítas estabelecidas no
século XVI ao afirmar que «não há nenhuma razão de tirar os índios de seus sertões para
iniciá-los nos princípios cristãos»30. Além disso, o jesuíta refutou a argumentação de que
a redução era prática incontestável fundada no costume, pois considerava que existiriam
mais índios e mais perigos em sua época do que nas anteriores. No entanto, as posições
de Roland não convenceram a Companhia em abandonar o projeto dos aldeamentos
no litoral e, de modo reativo, alguns jesuítas chegaram a contestar a legitimidade das
conversões realizadas nas Jacobinas por ele e seu companheiro Barros31.
Essa discussão se alargou entre os jesuítas no Brasil, os quais ficaram divididos
entre os que, como Vieira, defendiam os aldeamentos missionários afastados dos povoa­
mentos como principal estratégia evangelizadora e aqueles que, como Rolland, susten‑
tavam que os descimentos dos índios deveriam ser adotados como estratégia missioná‑
ria predominante. No entanto, entre 1684 e 1694, no Maranhão, foram fundados pelo
menos cinco aldeamentos jesuíticos, sendo três do povo Quiriri, um dos Carurus e um
Acará32. A intensidade de construção de aldeamentos nessa década se deu em resposta
às determinações dos Padres Gerais Charles de Noyelle e Tirso Gonzalez, que promo‑
veram a necessidade de se erguer aldeias junto aos Provinciais do Brasil. Desse modo,
a Companhia, baseada nas questões levantadas por Nóbrega e Anchieta, permaneceu
fiel ao projeto dos aldeamentos, que eram vistos como forma segura de vencer a incons‑
tância da alma indígena e de evitar que os índios voltassem aos maus costumes após
a conversão33.

30
ROLAND apud POMPA, 2002: 92.
31
Como demonstrou Santos, o padre Simão de Vasconcelos, apesar de apoiar as aldeias nos sertões, contestou as
­conversões nas Jacobinas em carta P. João Paulo Oliva, Prepósito Geral da Companhia (1667). Segundo ele, as
conver­sões e os batismos administrados na aldeia deveriam ser postos à prova para verificar se o acontecimento era
casual ou provinha da Graça de Deus. SANTOS, 2007: 66.
32
GUSMÃO, 2011a: 470; GUSMÃO, 2011b: 500.
33
Os padres Roland e Barros contribuíram para a permanência das aldeias das Jacobinas, oito no total. No entanto,
seis das oito aldeias foram destruídas por tropas armadas articuladas por Garcia de Ávila, em 1669. As duas que
resistiram, aldeia de Nossa Senhora de Natuba e aldeia de Canabrava, continuaram a existir até 1758, quando foram
dissolvidas em consequência das determinações pombalinas (SANTOS, 2017: 50).

477
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Apesar de apoiarem as missões nos sertões, as quais estavam fixadas nas aldeias
nativas dos indígenas, os padres Barros e Roland reiteraram a imprescindibilidade da
presença dos jesuítas na região para a administração espiritual e temporal das aldeias e
dos índios. Segundo Ana Santos, os jesuítas nos sertões, de modo análogo ao realizado
nos aldeamentos missionários, garantiam provisões e atuavam na organização «de todos
os aspetos do quotidiano da aldeia»34.
Pela conversão, o índio tornava-se índio cristão, ou seja, súbdito livre. No e­ ntanto,
para António Vieira, a tutela dos jesuítas sobre os «gentios» era condição necessária
para que conservassem a fé e a submissão. Em vista disso, os religiosos actuariam como
­vigilantes da preservação da obediência entre os índios aldeados35. Nesse sentido, os
inacianos, apoiados em Agostinho, defenderam nas comunidades cristãs a máxima
­platônica de que o bem da república depende da boa criação, bem como a má criação
acarreta toda a sua ruína. Desta forma, segundo os jesuítas, a boa criação dependia,
como já visto, da obediência e do ensino dos costumes honestos, como também da vigi‑
lância, indústria e aplicação dos tutores36.
O primeiro ponto do Regimento institui o governo espiritual, político e temporal
das aldeias aos religiosos jesuítas e capuchinhos, que deveriam administrar as aldeias
que integrassem a sua missão. Assim, o Regimento anulou as determinações da Provisão
Régia de 1684, que permitia a divisão da administração das aldeias entre religiosos e
seculares, medida que atendia uma demanda dos colonos que desaprovavam o fato dos
eclesiásticos terem poder temporal e político sobre os índios.
Segundo Vieira, em carta enviada a D. João IV no ano de 1661, os índios ­cristãos
reconheciam a importância do patrocínio dos jesuítas, uma vez que sabiam por expe­
riência que somente estes os defendiam37. Para Vieira, portanto, os conversos eram
­capazes de deliberar e de diagnosticar o que seria mais proveitoso para suas vidas.
­Assim, do ponto de vista dos religiosos, os índios cristãos reafirmariam o poder espiri‑
tual e temporal que os jesuítas excerciam nos aldeamentos, confirmando o domínio que
os inacianos tinham sobre os corpos dos aldeados.

CONCLUSÃO
Como os modelos de Paulo e Agostinho, a conversão figurava uma cruz, em que
o eixo horizontal, que descreveria a trajetória de vida do indivíduo, era dividido pelo
­vertical, que representaria o momento da conversão e, por isso, demarcaria uma cisão: do
lado esquerdo existiria o passado devasso e do direito os efeitos da conversão. S­ egundo
os preceitos teológico-políticos vigentes no século XVII, a empresa da evangelização

34
SANTOS, 2017: 43.
35
VIEIRA, 2003b: 452.
36
Os tutores diferem dos pais no cuidado, mas não na obrigação. Cf. GUSMÃO, 2004.
37
VIEIRA, 2003c: 489.

478
ALDEAMENTOS JESUÍTICOS NA AMÉRICA PORTUGUESA: CONTROLE ESPIRITUAL E TEMPOR AL (1650-1700)

nas Américas não se apresentava como um trabalho simples. As resistências indígenas,


­frequentemente lidas como produto da «inconstância da alma», permaneciam, assim
como a imposição da fé, fosse pela via do amor ou do medo.
Assim, os jesuítas buscaram evangelizar por meio da disciplina e da luta para a
­preservação e controle das vidas dos indígenas. A imposição da racionalização do t­ empo,
em que todos os momentos do dia eram ocupados por atividades pré-determinadas, era
a principal estratégia aplicada nos aldeamentos para a introjecção dos costumes euro‑
peus e da fé cristã nos indígenas. Cabia, portanto, aos jesuítas exercer a vigilância ­sobre
os indígenas aldeados, para tanto mantinham registos em que atualizavam o estado
do aldeamento, bem como avaliavam os frutos e as dificuldades da conversão38. Com
­esses procedimentos, os jesuítas aplicados no serviço missionário tinham como objetivo
­superar a suposta ausência de fé, lei e rei entre os índigenas.

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Universidade do Porto. Tese de doutoramento.

38
Dentre os registos que os jesuítas deveriam manter, destacam-se as cartas ânuas e os registos dos aldeados, nos
quais os indígenas aldeados eram listados e processo de aprendizagem da doutrina de cada um era acompanhado.

479
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

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1613 & 1614. Second Traité. Paris: De l’imprimerie de François Huby.

480
MODOS DE FAZER «SANTOS»: A ESCRITA
DE «VIDAS» DE VARÕES E MULHERES
«ILUSTRES EM VIRTUDE» EM PORTUGAL
(SÉCULOS XVII-XVIII)
PAULA ALMEIDA MENDES*

Resumo: Em Portugal, o período compreendido entre a segunda metade do século XVI e a primeira m ­ etade
do século XVIII foi o palco de uma muito significativa produção e edição de «Vidas» de veneráveis e ­varões
e mulheres «ilustres em virtude» portugueses, cujos objetivos imediatos de glorificação da personagem em
questão, ad maiorem gloriam Dei, de edificação espiritual — e, não raras vezes, de instrumento de ­suporte
aos procedimentos processuais com vista à beatificação ou canonização desse cristão excecional, fale­cido
em «odor de santidade» — não podem, naturalmente, ser dissociados da ofensiva de disciplina­mento,
­acentuada na moldura da Contrarreforma, e de construção de uma história da «santidade territorial».
­Tendo como pano de fundo esta problemática, este artigo procura chamar a atenção para os moldes em que
os autores de «Vidas» de veneráveis e varões e mulheres portugueses «ilustres em virtude» desenvolveram
a sua estratégia, no sentido de fixação da memória e de promoção e sustentação da fama sanctitatis dos
­biografados (P.e João Cardim (S. J.), Infante Afonso Sanches e sua mulher, D. Teresa Martins, Margarida de
Chaves). Neste enquadramento, haverá também que valorizar a crescente inclusão de estampas dos biogra‑
fados que, não raras vezes, se convertiam em instrumentos de devoção, na medida em que formulavam,
por sua vez, «modelos visuais» que apelavam à sensibilidade religiosa e os moldes em que estas se comple­
mentam com os textos, no sentido de, em muitos casos, tornar estas obras uma «alavanca» para que o
­processo tendo em vista a beatificação ou canonização tivesse o desfecho esperado.
Palavras-chave: «vidas» devotas; Portugal; santidade; virtudes heroicas; séculos XVII-XVIII.

Abstract: In Portugal, the period between the second half of the XVIth century and the first half of the
­XVIIIth century was the scene of a very significant production and edition of «Lives» of Portuguese men
and women who were «illustrious in virtue», whose immediate objectives of glorification of the person
in ­question, ad maiorem gloriam Dei, and spiritual edification — and in so many cases as an instrument

* CITCEM — Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Email: paula_almeida@sapo.pt, pmendes@letras.up.pt.

481
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

of support for procedures with a view to the beatification or canonization of this «exceptional Christian»,
who died in fama sanctitatis — can not, of course, be dissociated neither from the offensive of disciplining,
accentuated in the framework of the Counter Reformation, and the construction of a history of «territorial
holiness». Against this backdrop, this communication proposal seeks to draw attention to the ways in which
the authors of «Lives» of men and women «illustrious in virtue» have developed a strategy, in the sense of
memory fixation and promoting and sustaining the fama sanctitatis of some of these figures (Father João
Cardim (S. J.), Afonso Sanches and his wife, Teresa Martins, Margarida de Chaves). In this context, the
increasing inclusion of these men and women printed portraits, which have often become instruments of
devotion, must also be emphasized, as they formulate «visual models» that appeal to religious sensibility
and the ways in which they complement each other in the sense that, in many cases, these works become a
support for the beatification or canonization process.
Keywords: devout «lives»; Portugal; holiness; «heroic virtues»; XVIIth-XVIIIth centuries.

1. «Se la santita ha il suo fondamento in un’esperienza religiosa, che assume nella


comunità di riferimento i caratteri dell’eccezionalità, è evidente il rapporto existente tra
scelta di vita e riconoscimento della santita»1. É com estas palavras que Sofia Boesch
Gajano inicia o capítulo «La fabbrica dei santi», incluído na sua obra La Santità (1999),
que equaciona várias dimensões relacionadas com o fenómeno da santidade, nas suas
múltiplas representações e configurações.
Com efeito, como realçou a mesma autora, o fenómeno — e o problema — da
«santidade» reveste-se de matizes diversos, que declinam molduras de natureza ­vária: e,
nesse sentido, poderemos falar de «santidade vivida», «santidade reconhecida» e «santi­
dade negada»2 . Efetivamente, ainda que a perceção pública, tanto a nível social, como
cultural, tenha um peso fundamental na construção da fama sanctitatis dos ­cristãos
­considerados excecionais — valorizando, especialmente, as virtudes, os milagres, o
­poder taumatúrgico, etc. —, no sentido de reconhecimento de uma «vida perfeita»
nos moldes cristãos, a ratificação da santidade depende, desde a criação do processo
de ­canonização no século XII, por Alexandre III, da Cúria romana. E, não raras vezes,
os processos acabam por não alcançar o desfecho esperado, elevando o candidato aos
altares, embora isso não signifique que muitos desses «santos» tenham deixado de ser
objeto de cultos de natureza local.
É bem sabido como a fixação da memória através do registo escrito, plasmada na
hagiografia e na biografia devota, assim como através do registo visual — sobretudo da
iconografia e da estatuária — se revestiu, desde o cristianismo primitivo, de uma centra­
lidade inegável, na moldura da construção de «santos» e da coagulação de retratos e
modelos de santidade, que se inscreviam, frequentemente, em uma moldura enformada
pela dimensão do «maravilhoso», que seduzia e fascinava fiéis e leitores.

1
GAJANO, 1999: 77.
2
GAJANO, 1999: 77-80.

482
MODOS DE FAZER «SANTOS»: A ESCRITA DE «VIDAS» DE VARÕES E MULHERES «ILUSTRES EM VIRTUDE»
EM PORTUGAL (SÉCULOS XVII-XVIII)

A Época Moderna foi pródiga, não apenas em Portugal, como também em outros
espaços católicos, na «arte de fazer santos», através da escrita de textos de tónica hagio‑
gráfica, que, não raras vezes, eram acompanhados por imagens e estampas, não isentas
de significados e consequências de natureza vária, que contribuíam para cristalizar a
fama sanctitatis de muitos «varões e mulheres ilustres em virtude»3.
Mas, neste enquadramento, importa não perder de vista a larga fortuna que a
­hagiografia vinha conhecendo. A literatura hagiográfica, cujas raízes se ancoram na
Anti­guidade, mais concretamente nos primórdios do cristianismo, em que se come­
çaram a produzir e a divulgar os Acta Martyrum4, constitui um dos subgéneros da litera‑
tura religiosa e de espiritualidade de muito significativo sucesso, deixando um lastro até
à atualidade, que, de resto, é bem ilustrativo da importância de que se reveste o registo
escrito para a fixação da memória em clave de santidade. De facto, as várias e diversas
potencialidades que a hagiografia disponibilizava não deixaram de ser aproveitadas e
­valorizadas pelos autores, que, naturalmente, adaptaram os seus textos à moldura histó‑
rica e cultural dos tempos em que os produziram.
Ao longo da Idade Média, a escrita de «Vidas» de santos será largamente culti­vada5,
privilegiando, sobretudo, o modelo monástico de santidade, que, de certo modo, ­acabou
por ser «institucionalizado» pelo género hagiográfico e se manteve predomi­nante
­durante largo tempo (mesmo para personagens dificilmente canonizáveis), parecendo,
em alguma medida, comprovar que a santidade era uma prerrogativa dos religiosos,
­pesem embora os diferentes matizes e recomposições que esta conceção sofreu, sobre­
tudo na esfera dos leigos6, de que é exemplo a problemática em torno da «santificação
dos casados», estudada por Maria de Lurdes Correia Fernandes7.
Por outro lado, como é bem sabido, os renovados caminhos da espiritualidade
dos tempos pós-Trento foram-se configurando na esteira da herança do ­movimento
­europeu de reforma espiritual que ficou conhecido como Devotio moderna, surgido
na ­segunda metade do século XIV, que se foi afirmando como uma dimensão de peso
­incontornável, no sentido da afirmação de uma espiritualidade mais prática e de contor­
nos afetivos e sensíveis. Neste sentido, os livros religiosos e de espiritualidade, que,
­neste enquadramento, poderão ser considerados uma espécie de «objetos de devoção»,
­assumem um papel importante na moldura das práticas, sobretudo no domínio priva‑
do, potenciando a crescente inculcação de modalidades de leitura silenciosa, em larga

3
MENOZZI, 1991; CHECA CREMADES, 1992: 11-200; NICCOLI, 2011.
4
BARCELLONA, 1994: 9-18; BARCELLONA, 2005: 19-89.
5
LECLERCQ, 1990; BOUREAU, 1993.
6
VAUCHEZ, 1989: 57-66.
7
FERNANDES, 1995.

483
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

­ edida ­favorecidas pela variedade de formatos de livros impressos; lembremos, a título


m
de exemplo, a ­crescente expansão dos livros de bolso8.
De resto, o género hagiográfico vinha recebendo, desde o século XVI, «sopros de
renovação», potenciados pela redescoberta da biografia clássica, no contexto do Huma­
nismo, pela crescente preocupação filológica, arqueológica e historiográfica, direcio­
nada para uma investigação rigorosa das fontes, no sentido de conferir aos relatos uma
maior historicidade, para a qual já havia chamado a atenção Erasmo9, de que é claro
exemplo o contributo dado, posteriormente, por Rosweyde, pelos bolandistas e pelos
benedi­tinos de Saint-Maur, num movimento de erudição eclesiástica10 — não esque­
cendo, natural­mente, os contributos de Georg Witzel, Lippomano11 e Surius12 —, e que
se ­vinha impondo como uma espécie de «literatura alternativa» face ao filão consti­tuído
pela ­literatura de ficção, considerada perigosa sobretudo para mulheres e jovens. Ora,
neste enquadramento, não será despiciendo destacar o peso de que se revestiu o apare­
cimento da imprensa de caracteres móveis, no âmbito da produção do livro, promo‑
vendo uma múltipla difusão de textos de tipologia diversa, que contribuiu, em larga
medida, para que se operasse uma evolução cultural na Europa ocidental13. As obras
que se ­inscrevem no filão da literatura religiosa ou de espiritualidade foram aquelas
que, durante largo tempo, mereceram, muito especialmente, a atenção por parte dos
­prelos: nesta m ­ oldura, destacam-se, muito significativamente, as «Vidas» de santos,
­beatos, vene­ráveis e ­«varões e mulheres ilustres em virtude», cujos propósitos imedia‑
tos de glori­ficação da perso­nagem em questão, de edificação espiritual e de promoção
do seu culto — e, em muitos casos, de estímulo à beatificação ou canonização desse
­«cristão exce­cional» — não podem ser dissociados de uma estratégia que se inscrevia na
­moldura da reorganização e redefinição do culto dos santos, na sequência dos decretos
de Urbano VIII, de 13 de Março de 1625 e de 5 de Julho de 163414.
Por outro lado, haverá que ter em conta que a ofensiva acentuada na Contrarre­
forma, que visava a orientação e a reconfiguração dos comportamentos dos fiéis, na
moldura de uma estratégia de disciplinamento social15, que havia começado com a
­tentativa de reorganização do culto dos santos — lembremos que entre 1523 e 1588 não
houve nenhuma nova canonização sancionada pela Santa Sé e que só em 1588 foi criada
a Congregação dos Ritos Sacros e das Cerimónias, a qual contribuiu para a reafirmação

8
CARVALHO, 2013: 135-161.
9
SPANÒ, 2018: 123-137.
10
NEVEU, 1994.
11
GAJANO, 1990: 111-130.
12
MARTINELLI, 1990: 445-464.
13
BRAIDA, 2000; BARBIER, 2006.
14
DE MAIO, 1992: 253-274; BURKE, 1984: 46-47; SALLMAN, 1994; BURSCHEL, 1996: 309-333; SODANO, 1997:
189-205; GOTOR, 2012: 23-33.
15
CAFFIERO, 1994: 265-278;

484
MODOS DE FAZER «SANTOS»: A ESCRITA DE «VIDAS» DE VARÕES E MULHERES «ILUSTRES EM VIRTUDE»
EM PORTUGAL (SÉCULOS XVII-XVIII)

da autoridade papal no reconhecimento da santidade — potenciou a produção ­maciça


de «Vidas» de santos e de «Vidas» devotas, de função claramente «paradigmática»
e «normativa».
Em Portugal, a partir de finais do século XVI, o número de edições de «Vidas» não
só de santos, como também devotas, foi conhecendo um significativo aumento, reve‑
lando uma claríssima sintonia com o contexto espiritual e cultural da Europa católica
dos tempos pós-Trento, tendo atingido o seu auge no século XVII16. Este amplo filão
literário, constituído por textos de pendor paradigmático, declina, efetivamente, um
significativo conjunto de modelos e práticas religiosos e espirituais que, pelos matizes
que os configuram, escapam, em regra geral, a outro tipo de fontes, de feição sobretudo
institucional ou arquivística. E, nesse sentido, parece-nos que a investigação polarizada
em seu torno, tendo em conta as problemáticas que equaciona, se poderá revelar de uma
centralidade inegável na moldura da compreensão de vários fenómenos sociais, sem
perder de vista a sua dimensão religiosa e espiritual. Assim, elegemos como objeto para
este estudo alguns casos de varões e mulheres falecidos com fama sanctitatis — o P.e João
Cardim (S. J.), a venerável Margarida de Chaves e os infantes D. Afonso Sanches e sua
mulher, D. Teresa Martins, cuja análise se poderá revelar fecunda, na medida em que nos
permite uma aproximação a dimensões da vida religiosa e espiritual da Época Moderna,
em Portugal. Neste sentido, as obras que divulgam as vivências espirituais e morais das
personagens em questão autorizar-nos-ão a auscultar os moldes em que, pela pena de
autores oriundos de estratos sociais diversos, se foi fixando e «construindo» uma memó‑
ria hagiográfica daqueles «varões e mulheres ilustres», propostos aos leitores e aos fiéis
como exemplos reais de «virtude», e que eram emulados como alcançáveis.
Mas esta abundante produção hagiográfica e biográfica devota não poderá
igual­mente ser dissociada do facto de se ter assistido ao que Maria de Lurdes Correia
­Fernandes designa por crescente valorização dos «santos de Portugal e suas ­conquistas»,
não só mártires, religiosos ou eclesiásticos, como também leigos, concretizando, d ­ este
modo, uma estratégia que passava, em larga medida, pela valorização da estreita comple­
mentaridade entre história religiosa e história política17, numa moldura de glorificação
da pátria e de construção de uma «santidade territorial», para utilizarmos a ­expressão de
Henri Fros18. Aliás, no caso português, essa urgência da divulgação dos santos ­nacionais
impunha-se, tanto mais que Portugal fora, desde sempre, e sobretudo desde O ­ urique,
distinguido por dons e sinais divinos de eleição, que claramente mostravam o seu

16
A fortuna editorial das hagiografias e das biografias devotas nos séculos XVI e XVII, em Portugal, pode ser compro­
vada pelos dados quantitativos apresentados em CARVALHO, 1988; MENDES, 2012; MENDES, 2017. Vejam-se
também os balanços de: SANTOS, 2000: 125-130; SANTOS, 2002: 165-169; SANTOS, 2013: 143-158; FERNANDES,
2000: 187-193.
17
FERNANDES, 1996: 25-68; FERNANDES, 2002: 227-240; ROSA, 2002: 326-361.
18
FROS, 1982: 729-735; SANTOS, 2008: 151-166.

485
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

c­ arácter providencial: uma dessas marcas manifestar-se-ia na enorme quantidade de


santos portugueses, pois, segundo António de Sousa de Macedo, «quando en las otras
partes del mundo nacia un Santo, era mucho, y en Portugal no parian las madres menos
de nueue martires cada vez»19. E sobre este «fenómeno» valerá a pena lembrar ainda o
«irónico» comentário de Pero Roiz Soares, no seu Memorial, composto entre finais do
século XVI e inícios do século XVII, segundo o qual, por essa época, «não avia já çidade,
vila nem aldeia onde não houvesse uma santa»20.

2. O equacionamento de vários vetores que enformam a moldura da escrita de


«Vidas» de santos e de «Vidas» devotas deverá, necessariamente, ter em conta os artífices
destes textos, como também os motivos que os levaram a cultivar este filão literário que
conheceu, entre o século XVI e a primeira metade do século XVIII, um sucesso extre‑
mamente significativo.
Os hagiógrafos e biógrafos devotos portugueses que produziram as suas obras ao
longo dos séculos XVI, XVII e XVIII pertenceram, na sua maioria, a ordens religiosas:
efetivamente, este quadro parece refletir uma tendência que se vinha impondo desde a
Alta Idade Média e que terá contribuído para que o modelo hagiográfico de raiz monás‑
tica se mantivesse, durante largo tempo, como o paradigma para a escrita de «Vidas» de
santos, beatos, veneráveis e «varões e mulheres ilustres em virtude», assim como para a
sedimentação da imagem do religioso enquanto «homem de letras». Na maior parte dos
casos, os autores promoviam os santos ou os membros da sua ordem que tinham ­falecido
em «odor de santidade», cuja exemplaridade se inscrevia, muito compreensivelmente,
numa lógica de legitimação e de afirmação das respetivas ordens ou congre­gações reli‑
giosas, ao mesmo tempo que reivindicavam uma identidade intrínseca — quase sempre
escorada no exemplo paradigmático e carismático dos fundadores — ou a nostalgia de
um passado glorioso21.
Neste conjunto, os autores pertencentes à Companhia de Jesus ocupam um l­ugar
de maior destaque, mostrando, claramente, como esta ordem «moderna» investiu na
conser­vação da memória e na promoção da santidade de vários dos seus membros, em
um enquadramento que não pode ser dissociado de uma estratégia de legitimação, que
muito insistiu na promoção da santidade dos seus membros, configurando uma ­moldura
largamente amplificada pelo contexto da evangelização no Brasil e no Oriente. ­Neste
­contexto, as imagens constituíram um importante instrumento que os membros da
Companhia de Jesus souberam habilmente utilizar nas suas estratégias comunicacionais.
Um jesuíta falecido em «odor de santidade» que a História praticamente ignorou
foi o P.e João Cardim (1585-1615), religioso que se distinguiu no exercício das «virtudes
19
MACEDO, 1631: 88 v.
20
SOARES, 1953: 274.
21
SANTOS, 2009.

486
MODOS DE FAZER «SANTOS»: A ESCRITA DE «VIDAS» DE VARÕES E MULHERES «ILUSTRES EM VIRTUDE»
EM PORTUGAL (SÉCULOS XVII-XVIII)

heróicas», cujo exemplo modelar é, praticamente, decalcado de modelos muito recentes


divulgados pela Companhia — a saber, o italiano Luís Gonzaga e o polaco Estanislau
Kostka, beatificados em 1605, por Paulo V — e na participação em missões em ­terras
do interior, embora almejasse imitar o exemplo dos seus tios, enquanto missionário
­além-mar, e de sofrer o martírio, ideal que, todavia, não pode seguir, devido a várias
dificuldades, nomeadamente a sua debilidade física. A sua memória, enformada por
matizes hagiográficos, foi difundida, diversamente, por duas «Vidas», escritas, muito
compreensivelmente, por dois jesuítas: a De vita, et moribus P. Ioannis Cardim Lusitani
è Societate Iesu (1645), escrita pelo P.e Filipe Alegambe, e a Vida, e virtudes do admi­
ravel Padre Joam Cardim da Companhia de Jesu Portuguez natural de Vianna de Alentejo
(1659), ­composta pelo P.e Sebastião de Abreu22.
O modelo de «santidade» espelhado nas «Vidas» do P.e João Cardim é aquele que
se manteve comum e predominante ao longo do século XVII e da primeira metade do
século XVIII em Portugal: um modelo calibrado pela prática de penitências e mortifi­
cações, escorado na capacidade de sofrimento e no rigor das disciplinas, em ­frequentes
e rigorosos jejuns, conduzindo-os a situações pautadas por uma extrema debilidade
e ­magreza, configurando uma moldura amplificada, não raras vezes, por situações de
doença, na frequência e continuidade quase obsessivas da prática sobretudo da oração
mental e das «virtudes heróicas».
Nascido em Bruxelas, em 1592, Filipe Alegambe23 ingressou na Companhia de
­Jesus, em 1613, tendo falecido, em Roma, em 1652. Deste modo, parece-nos muito
­provável que, na época em que corria o processo com vista à beatificação ou canoni­
zação do P.e João Cardim, que tinha sido instaurado pelos «Ordinarios deste Reyno»,
em 1643, Filipe Alegambe se encontrasse já em Roma e o tivesse mesmo acompanhado,
o que lhe permitiria conhecer mais de perto o percurso existencial do P.e João Cardim
e as circunstâncias em que este se desenrolou. Assim, somos levados a crer que a obra
De vita et moribus…, que viu a luz do prelo em Roma, em 1645, terá sido editada com
o objetivo de acompanhar esse processo e constituir mais uma «peça» que contribuísse
para afirmar a «santidade» do P.e João Cardim, se tivermos em conta a sua focalização,
que exalta, sobretudo, a sua exemplaridade espiritual e moral e os milagres post mortem
— que, como é sabido, passaram a constituir, na sequência dos decretos de Urbano VIII,
critérios obrigatórios para que se pudesse dar início aos procedimentos processuais —,
e também a sua proximidade em relação a essas diligências. Aliás, parece-nos até que
a De vita et moribus… terá sido redigida para impulsionar esse processo, independen‑
temente do desfecho positivo ou negativo que este viesse a ter: aliás, o facto de Filipe

22
FERNANDES, 1993: 93-120; MENDES, 2007.
23
SOMMERVOGEL, 1890: col. 151.

487
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Alegembe ter escrito a sua obra em latim sugere, à partida, que o público para o qual esta
estaria direcionada seria o meio eclesiástico, especialmente a Cúria romana.
Apesar do círculo restrito em que, à partida, circularia a obra, a verdade é que
este «livrinho» conheceu um sucesso imediato, conforme nos testemunha Sebastião de
Abreu que, à data, se encontrava em Roma24 e acabaria por conhecer mais três edições
(duas saíram em 1646 e a última em 1649), tendo sido também traduzida em i­taliano
e em francês25. No entanto, esta circunstância não impediu que um outro jesuíta,
­Sebastião de Abreu, desse à estampa uma nova «Vida», em 1659, quarenta e dois anos
após a morte do P.e João Cardim e catorze anos passados sobre a publicação da Vita
de Filipe A ­ legambe, que, a julgar pelas datas das licenças, terá sido redigida nos anos­
anteriores a 1657.
No caso da escrita da obra de Sebastião de Abreu, as motivações parecem terem
sido muito mais amplas e diversas que as de Filipe Alegambe, ainda que, claramente,
não vão de encontro aos intuitos hagiográficos da Vita de Filipe Alegambe: porém, o
realce e a valorização que o biógrafo português confere a determinados aspetos da vida
do P.e João Cardim parecem permitir-nos considerar que aquele não pretendia apenas
exaltar a «santidade» do religioso e, consequentemente, impulsionar o processo para a
sua beatificação ou canonização: de facto, várias dimensões, sobretudo da vida secular
do P.e João Cardim, que são valorizadas pelo P.e Sebastião de Abreu, parecem coadunar-­
-se com preocupações decorrentes do contexto pastoral e espiritual da época em que
foi produzida.
Sebastião de Abreu refere que, no ano em que a Vita de Alegambe veio a lume,
se encontrava em Roma, como Revisor dos livros da Companhia de Jesus, e que pôde
«certi­ficar, como testemunha de vista o aplauso, com que foi recebida, & a fama que de
suas virtudes, & santidade creceo, nam só naquella Cidade Metropole do mũdo, mas
em toda a Italia, & Cicilia, principalmẽte entre os Religiosos da Companhia das S­ inco
­Provincias, que nella ha»26. Esta memória da fama sanctitatis do P.e João Cardim ­ainda
perdurava, segundo Sebastião de Abreu, na época em que redigiu a sua Vida27 (ainda que,
certamente, pudesse vir a ser ameaçada pelo facto de muitas pessoas que c­ onheceram o
religioso e/ou testemunharam no âmbito do processo que tinha em ­vista a sua beatifi­
cação ou canonização virem a falecer) e parece ter sido assim um dos m ­ otivos que leva‑
ram o biógrafo português a levar a cabo a sua empresa, tentando, deste modo, preservar
e, se possível, continuar a fomentar o seu culto.
Neste enquadramento, a escrita da «Vida» de Abreu não se afigura, naturalmente,
como um ato meramente casual: sabemos que, a partir dos decretos de Urbano VIII, os

24
ABREU, 1659: 190.
25
ABREU, 1659: 194
26
ABREU, 1659: 190.
27
ABREU, 1659: 189-193.

488
MODOS DE FAZER «SANTOS»: A ESCRITA DE «VIDAS» DE VARÕES E MULHERES «ILUSTRES EM VIRTUDE»
EM PORTUGAL (SÉCULOS XVII-XVIII)

milagres post mortem passaram a constituir um dos requisitos obrigatórios no âmbito


dos procedimentos processuais. Ora, em 1657, ocorreram vários milagres, sobretudo de
cura, de natureza terapêutica, operados por intercessão do P.e João Cardim: alguns pela
simples invocação do seu nome e outros por intercessão destes retratos e estampas, que
muitas vezes se manifestam através de prodígios de diversa natureza. Neste ­contexto, a
difusão de estampas do P.e João Cardim revestiu-se de uma importância c­ entral no que
diz respeito à coagulação da sua fama sanctitatis. O desejo de promoção da «santidade»
do P.e João Cardim parece ser também o motivo que justifica a inclusão da ­imagem
do jovem religioso nas suas duas «Vidas», visando, desse modo, apelar aos afetos dos
fiéis, mas cumprir também eficazmente os propósitos propagandísticos levados a cabo
pela Companhia de Jesus. Ambas as gravuras, que ostentam a insígnia da Compa‑
nhia de Jesus, retrata o P.e João Cardim, retratado em meio-corpo, vestido com a sua
­roupeta, a orar, chorando, diante de um crucifixo; junto deste, encontram-se um livro e
um barrete.
O primeiro retrato do religioso foi mandado pintar por D. Duarte, tio de
D. João IV, que o deu «ao R. P. Frei Manoel de Iesus Maria Religioso do Carmo
descalço, seu c­ onfessor, pella grande devaçam, que o dito R. Padre tinha ao servo de
Deos, o qual retrato elle mandou como presente de grande estima a Dona Catherina de
Andrada sua mãy, que ella em quanto viveo, teve sempre em grãde veneraçam, & por sua
morte o ­deixou a sua filha a Madre Isabel de S. Francisco Religiosa no Convento de Sam
Jero­nimo de Vianna, no qual se conserva, & tem na mesma veneraçam»28. Depois deste
retrato, foram feitas muitas estampas, de tal modo que, segundo Sebastião de Abreu,

rara he a testemunha em todos os processos, que no anno de 1643 se fiserão


nas principaes Cidades deste Reyno, que nam affirme em seu testemunho, que tem
­algumas das ditas estampas em muita estima, & reverencia, & que todas as pessoas,
que dellas sabem, as procurão, como imagens de hum notavel servo de Deos29.

Por outro lado, por esta época, algumas «Vidas» foram redigidas e editadas por
membros da família do biografado/a «ilustre em virtude» e falecido com fama sancti‑
tatis, com o propósito de exaltar e legitimar o seu prestígio social através do reconhe‑
cimento do seu exemplo como um modelo de «perfeição» espiritual e moral. Artífices

28
ABREU, 1659: 302.
29
ABREU, 1659: 302. VAUCHEZ, 1988: 526, sustenta que, no século XIV, «les images des saints commencèrent à
acquérir une large autonomie et une mobilité qui fit d’elles des instruments privilégiés de la diffusion des cultes.
­Aucune règle disciplinaire n’entravait l’essor de l’iconographie, l’Église considérant qu’il s’agissait d’une manifestation
de dévotion privée, qui demeurait parfaitement licite tant qu’elle ne s’accompagnait pas de signes indus de vénération.
Même dans le cas de représentations de serviteurs de Dieu non reconnus officiellement par la papauté, il n’y avait
guère à craindre d’intervention de la part des autorités ecclésiastiques. Cette grande liberté favorisa une floraison
d’images de toute sorte consacrées aux saints».

489
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

da sua própria «hagiografia familiar», as famílias dos biografados empenharam-se, de


forma constante, nesta estratégia de construção de uma memória hagiográfica, que teria
como objetivo último a abertura de um processo com vista à sua beatificação ou canoni‑
zação. É neste enquadramento que se inscreve o caso da escrita das «Vidas» da venerável
matrona Margarida de Chaves, natural de Ponta Delgada, falecida com fama sanctitatis
em Setembro de 1575, devido ao exercício das virtudes heróicas, nomeadamente a cari‑
dade, e ao amor pelos pobres. Com efeito, conta-nos o biógrafo que

a sua companhia erão os pobres, tratando-os sempre com carinho, & agrado;
recolhia-os em casa, & só com elles se alegrava, dizendo qye o cheyro dos pobres era
cheyro de Deos. […] Visitava repetidas vezes aos prezos levando-lhes esmolas, & a
alguns livrava da justiça. Aos enfermeiros do Hospital da Santa Casa da Miseri­
córdia erão continuas as visitas, levando-lhe alguns mimos, & regalos, confortava-os
nas ­penalidades das doenças. Vendo huma pobre com huma mão feyta huma viva
­chaga, & jà destituída dos Medicos, & Cirurgioens por incurável, lambendo-lha com
a ­língua, com o eficaz remedio da saliva de sua boca lha sarou […] Em certo dia
vio a huma menina nua, asquerosa, chagada; & compadecida do seu mau trato, &
das enfer­midades, que a molestavão, levou-a para sua casa […]. As esmolas erão
continuas, & tinha por perdido o dia, em que não obrava este acto da sua relevante
caridade. […] Tudo quanto tinha repartia com os pobres, & dizia, que senão ­tivera
filhos, havia de vender todas as suas herdades, para repartir o procedido dellas ­pelos
necessitados, de tal sorte, que lhe fosse preciso hir morrer a hum Hospital, aonde
lhe dessem huma mortalha de esmola. […] Todas as esmolas que fazia procurava
occultallas de tal sorte, que senão soubesse que ella as fazia, principalmente as que
dava a pessoas nobres, & recolhidas, & não só ella guardava segredo, mas recomen­
dava a quem as levava o não revelasse. […] Não se satisfazia só com fazer esmolas,
mas também incitava a pessoas ricas, & abastadas que repartissem com os pobres os
seus bens30.

Deste modo, foi aberto um processo, em 1581, com vista à sua beatificação, por
ordem do bispo D. Pedro de Castilho, sustentado pelos seus filhos Manuel Jorge Correia
e Gonçalo Correia de Sousa. Neste sentido, e aproveitando a «Vida» que havia redigido
o confessor Fr. Brás Soares (O. E. S. A.), um dos filhos de Margarida de Chaves, Gonçalo
Correia de Sousa, compôs, em italiano, para sustentar o referido processo, uma «Vida»
da sua mãe, intitulada Breve Compendio de santa vita di Margarida de Chiaves di gloriosa
memoria (1612), editada em Roma e dedicada à infanta D. Margarida de Áustria. Cerca
de um século mais tarde, talvez porque o culto e devoção em seu torno começassem a

30
MELO, 1723: 87-93.

490
MODOS DE FAZER «SANTOS»: A ESCRITA DE «VIDAS» DE VARÕES E MULHERES «ILUSTRES EM VIRTUDE»
EM PORTUGAL (SÉCULOS XVII-XVIII)

perder o antigo vigor, Francisco Afonso de Chaves e Melo, um parente seu, dá à luz do
prelo A Margarita animada, idea moral, politica e historica de tres estados, discursada na
vida da veneravel Margarida de Chaves, natural da cidade de Ponte Delgada na ilha de
S. Miguel (1723), sustentando que a esta santa que, em vida, tinha sido uma «santa viva»,
não se vinha dando o devido valor:

O motivo, que me incitava e desejo, era o ver quam diminuto he o valor, que
dão esta preciosa Perola alguns Escritores, que della fallárão, pois o mais a que se
remontarão os voos das suas penas, foy a dizer, que nesta Ilha [São Miguel] se criára
este grande Thesouro, sem darem huma cabal noticia do seu incomparável valor31.

Mas no panorama configurado pelas «Vidas» devotas editadas em Portugal ­valerá


a pena destacar a Memoria dos infantes D. Affonso Sanches e D. Thereja Martins, funda-
dores do real mosteiro de Sancta Clara de Vila do Conde (1726) de Fr. Fernando da Sole‑
dade (O. F. M.). Efetivamente, as religiosas do mosteiro de Santa Clara de Vila do Conde
foram as grandes impulsionadoras da beatificação dos fundadores desta casa religiosa,
o infante D. Afonso Sanches e sua mulher, D. Teresa Martins: assim, foi graças ao seu
­empenho que, em 1722, foi aberto um processo que tinha em vista o reconhecimento
oficial do seu culto. A abadessa, madre soror Josefa Maria de Jesus, empenhou-se em
dar ao prelo esta obra, cuja redação foi encomendada ao franciscano Fr. Fernando da
Soledade, e terá, muito provavelmente, constituído uma peça de suporte ao processo
que tinha em vista a beatificação dos fundadores do mosteiro de Santa Clara de Vila
do Conde.
Desde logo, no início da obra, Fr. Fernando da Soledade afirma o seguinte:

Não escrevo a vida destes Infantes, mas huma pequena parte da sua Memoria;
porque faltão muitas noticias para se inteirar o discurso dos seus progressos. Mostro
os que pode alcançar o meu cuidado, se diminutos em comparação da sua fama, não
menos limitados à vista das muitas diligencias com que forão aquiridos […] Estas
mesmas se communicarão no momento, que se faz da sua nobreza, e perseverão nos
Titulos diferentes, que a estes servos de Deos se attribuem; porque o povo movido
mais do fervor da devoção, que da luz do conhecimento os appellida Santos Reys32.

A obra constrói, muito compreensivelmente, um retrato modelar deste «­santo


­casal», valorizando, sobretudo, o exercício das virtudes — muito especialmente da
­Caridade — e as suas práticas espirituais e devotas. Efetivamente, esta «Vida» traduz a

31
MELO, 1723: «Prologo ao Leytor».
32
SOLEDADE, 1726: 1-2.

491
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

afirmação de uma faceta ativa dos leigos no domínio das práticas espirituais e devotas,
que se destaca a partir da Baixa Idade Média, na esteira do lastro da Devotio moderna,
mas parece refletir também a influência e o peso de outros exemplos de «bem casados»,
para utilizarmos a feliz expressão de Maria de Lurdes Correia Fernandes, falecidos em
«odor de santidade», e cujo culto tinha sido já objeto de reconhecimento oficial por
parte da Santa Sé. A título de exemplo, lembremos o caso de Élzear de Sabran e de sua
mulher, Delphine de Puimichel. Élzear de Sabran foi canonizado em 1369 e Delphine de
Puimichel seria beatificada em 169433.
A «opinião venerável», no que à virtude e «santidade» diz respeito, que D. Afonso
Sanches e D. Teresa Martins deixaram, após a sua morte, no mosteiro de Santa Clara
extravasaria os muros daquela casa religiosa e alargar-se-ia a Vila do Conde. Como nos
conta o biógrafo,

He antiquissima a devoção, que os moradores de Villa do Conde tem a estes


servos de Deos, a quem ordinariamente chamão os Santos Reys. […] Por este m ­ otivo
no dia, em que as religiosas celebrão suas Exequias, vinha antigamente (e ainda hoje
continua) muito povo pedir aos Sacerdotes, quando acabão de dizer Missa, que em
memoria dos veneráveis Infantes lhes recitem sobre a cabeça os Evangelhos, para
­reparo das dores dellas, & conhecem eficácias neste saudavel remedio. Com estas
­experiencias, cresceo a devoção de modo, que obrou excessos fazendo aberturas nos
sepulchros, donde tirarão alguns ossos, que estimavão como reliquias, e foy neces­
sário cerrar a capella com grades de ferro para suspender os roubos. Já esta diligencia
­estava effeituada no anno de 166634.

3. No período compreendido entre a segunda metade do século XVI e a primeira


metade do século XVIII, a «santidade» constitui um importante referente de prestígio
na moldura dos espaços católicos europeus. O reino de Portugal e «suas conquistas»
não se afastou, compreensivelmente, desta «tendência», como o comprovam a c­ rescente
­produção hagiográfica e biográfica devota, o investimento na difusão de imagens de
natureza devota e o aumento do número de processos com vista à beatificação ou à
canonização de vários varões e mulheres «ilustres em virtude». Disso são exemplo os
casos de «Vidas» devotas que respigámos neste breve estudo, que mostram como a «arte
de fazer santos» se configurou como uma dimensão polarizadora no contexto reli­gioso,
histórico e cultural em Seiscentos e em Setecentos, em Portugal, que contribuíram, em
larga medida, para a cristalização das figuras evocadas enquanto modelos, se não de

33
Sobre estes casados modelares que, muito significativamente, estiveram, desde a infância, muito próximo dos
f­ ranciscanos — que, como é sabido, exerceram um papel muito importante ao nível da afirmação da santidade leiga,
veja-se: VAUCHEZ, 1987: 83-92 e 211-224.
34
SOLEDADE, 1726: 113-114.

492
MODOS DE FAZER «SANTOS»: A ESCRITA DE «VIDAS» DE VARÕES E MULHERES «ILUSTRES EM VIRTUDE»
EM PORTUGAL (SÉCULOS XVII-XVIII)

santidade, pelo menos de virtude. Ainda que os processos com vista à beatificação do
P.e João Cardim, de Margarida de Chaves e de D. Afonso Sanches e D. Teresa Martins
não tenham conhe­cido o desfecho esperado — e, nesse sentido, como já realçou P ­ eter
Burke, seria perti­nente investigar uma «historical sociology of failure»35, no âmbito
do reconhecimento oficial da santidade — o investimento na escrita das suas «Vidas»
mostra como a preservação da memória por meio do registo escrito, cristalizando a­ ltos
­exemplos p ­ aradigmáticos de virtude, se reveste de uma centralidade inequívoca, na
medida em que destacam e emulam a sua existência modelar. Neste sentido, os casos
«corpori­zados» pelas figuras estudadas, propostos à admiração e imitação por parte dos
leitores, esco­rados em dimensões extremamente valorizadas durante a Época Moderna
— de que são exemplo a «heroicidade de virtudes» ou as cruéis práticas mortificatórias
­eivadas de uma clara «espetacularidade», que o Barroco tanto exaltou, pois apelavam à
sensibi­lidade e afetos — permitem auscultar a complexidade que configurava muitos
fenó­menos h ­ umanos, na sua dimensão religiosa e espiritual. E por isso só a revalori­zação
destas vivências e das fontes e documentos escritos que perenizaram a sua ­memória
­permitirá o conhecimento e a compreensão da História religiosa e da História cultural
dos tempos da Contrarreforma, nas suas múltiplas práticas e representações.

BIBLIOGRAFIA
Fontes
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35
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493
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

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494
MODOS DE FAZER «SANTOS»: A ESCRITA DE «VIDAS» DE VARÕES E MULHERES «ILUSTRES EM VIRTUDE»
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495
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

496
DA PR ÁTICA DA CIRURGIA À PESCA DA
BALEIA — MODOS DE FAZER NO BR ASIL
COLONIAL
MONIQUE PALMA*

Resumo: A multifuncionalidade em sociedades de Antigo Regime é um dado adquirido. Iremos aplicar


uma análise em torno deste tópico tomando como objeto de estudo cirurgiões do século XVIII, que parti‑
ram de Portugal para exercer cirurgia em espaços ultramarinos, mas nem sempre se dedicavam apenas ao
tratamento de enfermidades que competiam à arte de cirurgia. Nesta comunicação vamos falar de cirur­
giões, maioritariamente, portugueses, que estiveram na América portuguesa e que se inseriram socioprofis­
sionalmente em atividades diversas das da cirurgia — em alguns casos, por vontade própria e em outros,
porque a necessidade o impunha. Assim acontece com Ildefonso José da Costa Abreu, cirurgião, que num
ofício ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, informou que havia
aprendido a pescar baleias, e que por isso, pedia autorização para se dedicar à pesca, além da prestação
de serviços de tratamentos cirúrgicos. O espólio documental usado para identificar esses modos de fazer
encontra-se no Arquivo Histórico Ultramarino, antigo Conselho Ultramarino, sob a forma de manuscritos,
entretanto catalogados pelo Projeto Resgate Barão do Rio Branco.
A abordagem teórica parte da perspetiva de Mary Lindemann, segundo a qual todo o conhecimento
­produzido não pode ser desvinculado daquele que o produziu. O nosso enfoque pretende revelar como
a ação d
­ esses homens no Brasil colonial revela modos de fazer, aprender e transmitir conhecimentos que
ultrapassam a área médico-cirúrgica a que estavam ligados. As motivações e fatores que contribuíram
para essa interação e relação dos cirurgiões com outras atividades também serão discutidas neste trabalho.
A capacitação desses homens integrava-se num processo complexo de apuração de variados saberes dentro
de um universo multifacetado cuja complexidade importa detetar.
Palavras-chave: cirurgia; história das ciências; américa portuguesa; século XVIII; cirurgiões.

* Doutora em História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Atualmente é investigadora na Faculdade de


Letras da Universidade Lisboa membro do CITCEM e do Centro de História. Email: moniquepalma@hotmail.com.

497
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Abstract: Multifunctionality is a reality in Ancien Regime’ societies. The surgeons who left Portugal in the
18th century to work in overseas territories, namely Brazil, did not always work only within the scope of the
treatment of illnesses requiring surgery. In this presentation, we are going to talk about surgeons, mainly
Portuguese surgeons, who were in Brazil pursuing socio-professional activities other than the practice of
surgery. Some of them did made that by their own will, as it was the case with Ildefonso José da Costa Abreu,
a surgeon who, in administrative proceedings sent to the Secretary of State of the Navy and the Overseas
Territories, Martinho de Melo e Castro, who reported that had learned to whale and, for this reason, in
­addition to his work in the area of Surgery, he wanted to devote some of his time to whaling. In other cases,
it happened because the circumstances raised the urgent need for practising other crafts or offices. Our
research will resort mainly to the manuscripts kept at the Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), formerly
known as Conselho Ultramarino, which integrate the Projeto Resgate Barão do Rio Branco. From the theo‑
retical point of view, we will focus on the assumptions put forward by Mary Lindemann, according to which
an author who produced knowledge cannot be dissociated from the conditions in which it was formulated.
The aim of this paper is to discuss the actions taken by those men in Brazil and how this allow us to identify
different ways of making, learn, and impart knowledge that was beyond their main field of work. Therefore,
the reasons and factors that play a role in this iteration and relation of the surgeons with others activities
will be also addressed in this presentation. On the other hand, we will show how the process of learning
other activities was based on day-to-day practice, on watching, listening to and working with someone who
had that specific knowledge. Those elements are valuable to understand the context of the surgeons and
Surgery in Brazil in the 18th century, as the technical skills of those surgeons are part of a complex process
of i­mprovement of different fields of knowledge into an intricate universe.
Keywords: surgery; history of sciences; portuguese america; 18th century; surgeons.

INTRODUÇÃO
A América portuguesa, território que atualmente identificamos como o Brasil, foi
um catalisador de práticas da saúde adaptadas às particulares exigências e circunstâncias
do território1. Dentro do vasto universo de agentes da Coroa, temos como objeto de
estudo cirurgiões do século XVIII2, que partiram de Portugal para exercer cirurgia em
espaços ultramarinos, mas nem sempre se dedicavam apenas ao tratamento de enfer­
midades que competiam à arte de cirurgia. Neste trabalho não será possível, e não é
objetivo, discutir sobre as diversidades locais de cada capitania que enfrentavam os
­cirurgiões. Vamos falar de toda a colónia e dos casos de cirurgiões que representam
pluriatividade de funções.
Sobre o material utilizado para discorrer sobre esse assunto, destacamos o Dicio­
nário dos médicos e cirurgiões portugueses ou que estiveram em Portugal, de Augusto

1
MONTEIRO, 1926: 192.
2
O presente trabalho faz parte da tese de doutoramento intitulada: Cirurgiões, práticas e saberes cirúrgicos na A
­ mérica
portuguesa no século XVIII, defendida na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em fevereiro de 2019
por Monique Palma sob a orientação da Professora Doutora Amélia Polónia. O desenvolvimento da tese recebeu
finan­ciamento da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), número do processo:
99999.000919/2014-04.

498
DA PR ÁTICA DA CIRURGIA À PESCA DA BALEIA — MODOS DE FAZER NO BR ASIL COLONIAL

da Silva Carvalho, em 11 volumes3, e os manuscritos que se encontram no Arquivo


­Histórico Ultramarino (AHU), disponibilizados no Fundo do antigo Conselho Ultra‑
marino, e digitalizados pelo Projeto Resgate Barão do Rio Branco4. Estes manuscritos
apresentam-se sob a forma de cartas, requerimentos, petições, alvarás e outras tipolo‑
gias documentais. Ao analisar essa documentação foi possível identificar um número
de cirurgiões em exercício na América portuguesa no século XVIII e discutir sobre a
dedicação profissional desses agentes.
O enquadramento disciplinar desta pesquisa é o da História das Ciências. Para
contexto geral do pensamento científico da era Moderna este trabalho estriba-se
­
­também em obras primordiais, nomeadamente as publicadas na Coleção História e Filo-
sofia da Ciência5, de que podemos destacar Ciência e Iluminismo, de Thomas L. Hankins,
A ­construção da Ciência Moderna Mecanismos e Mecânica, de Richard S. ­Westfall,
O homem e a natureza no Renascimento, de Allen G. Debus. Medicina e sociedade no
­início da Europa Moderna6 é outra das obras tidas como referenciais, nomeada­mente
para a análise do perfil e atuação dos cirurgiões na América portuguesa. O quadro
­teórico ­primordial deste trabalho tem como base a obra Medicina e sociedade no início
da ­Europa Moderna (2002), de Mary Lindemann. De entre os vários tópicos discutidos
por Mary Lindemann, a autora enfatiza o facto, nuclear também nesta tese, de que o
conhecimento produzido não é independente daquele que o produziu.
Para contextualizar o nosso leitor, antes de entrarmos no assunto sobre os cirur­
giões que não se dedicavam exclusivamente à Cirurgia, apresentaremos o número
de cirurgiões detetados por nós na análise das fontes em que trabalhamos (Projeto
­Resgate e o Dicionário…). Afim de compreendermos o universo laboral dos cirurgiões,
apresen­taremos também, de forma geral, o enquadramento profissional dos pratican‑
tes de ­Cirurgia. Feita a apresentação, partiremos aos casos específicos que demonstram
as moti­vações e circunstâncias que propiciaram o envolvimento desses homens com­

3
BACL. CARVALHO, Augusto da Silva. Dicionário dos Médicos e Cirurgiões portugueses ou que estiveram em P ­ ortugal.
4
Projeto Resgate Barão do Rio Branco está sob a responsabilidade da Diretoria de Relações Internacionais do Minis­
tério da Cultura do Brasil, e busca resgatar a documentação histórica manuscrita, referente ao Brasil, depositada
em arquivos em diferentes lugares do mundo. Falamos de nove países: Áustria, Bélgica, Espanha, Estados Unidos
da América, França, Holanda, Itália, Inglaterra e Portugal. O Projeto Resgate tem seus princípios na Resolução
4212/1974 da Unesco que tem como intuito fomentar a possibilidade da transferência de documentos, entre os seus
Estados Membros, referentes à História de um país que se encontram no acervo de outro país. O Projeto Resgate
Barão do Rio Branco, com as devidas licenças do Plano Luso-Brasileiro de Microfilmagem, teve início em Portugal,
precisamente, no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), local em que está a documentação que compete às Capita‑
nias Hereditárias do Brasil, e que representa 80% do Projeto Resgate. As informações que apresento foram extraídas
do site da Biblioteca Nacional do Brasil. Para mais esclarecimentos, consultar em <http://bndigital.bn.gov.br/dossies/
projeto-resgate-barao-do-rio-branco>.
5
Trata-se de uma coleção coordenada por Ana Simões e Henrique Leitão, a qual integra obras relacionadas com
múltiplos contextos de estudo na área da História das Ciências e que integra trabalhos como os de BIAGIOLI, 2003;
KRAGH, 2003; WESTFALL, 2003; BASALLA, 2004; GRANT, 2004; HANKINS, 2002; DEBUS, 2004; BROOKE,
2004; INGRAS et al., 2007; SIMÕES et al., 2006; GAVROGLU, 2007.
6
LINDEMANN, 2002.

499
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

outras atividades revelando a pluriatividade desses homens e percebendo o quotidiano


dos ­cirurgiões na América portuguesa.

CIRURGIÕES EM EXERCÍCIO NA AMÉRICA PORTUGUESA


No Dicionário dos médicos e cirurgiões portugueses…, foram identificados 128 cirur­
giões7, que estiveram na América portuguesa. Na análise dos manuscritos do A ­ rquivo
Histórico Ultramarino (AHU), catalogados pelo Projeto Resgate, identificamos 251
cirur­giões. Somando os registos do AHU e do Dicionário… reconstituímos um universo
de 379 cirurgiões8 que exerceram a sua atividade no Brasil colónia no século XVIII9.
Importa ressaltar que não há registos do tipo de vínculo ou do específico enquadra‑
mento institucional de prestação de serviço para todos os cirurgiões detetados. Ainda
assim, temos essa informação para cerca de 96% dos 379 cirurgiões identificados. Nesta
vertente analítica, para além da identificação desse vínculo, pretendemos estabelecer o
perfil socioprofissional dos cirurgiões que estiveram na América portuguesa.
As unidades de enquadramento maioritariamente referidas são as câmaras (com
ou sem partido), as cidades, as capitanias, os conventos, os hospitais, os hospitais mili‑
tares, as unidades de cavalaria, infantaria, praças, e terços que compõem as unidades
militares, as naus (cirurgiões que serviram em embarcações) e os presídios.
Estes cirurgiões podiam estar vinculados a um ou mais do que um dos postos,
sincrónica ou diacronicamente, revelando percursos de mobilidade profissional. ­Estes
podiam ser cirurgiões da câmara com partido, como ocorre com António da Costa,
­cirurgião do partido da câmara da cidade da Bahia10; cirurgiões que por um tempo ­foram
da câmara e também ao serviço dos militares, como António Martins Vidigal, cirurgião
da câmara de sua Majestade, e cirurgião mor da Cavalaria no Regimento de Alcân­tara11;
cirurgião que servia a Casa da Suplicação, de que é exemplo Manuel Gomes de ­Almeida12;
cirurgião de convento, como era Pedro Barreto Freire, cirurgião de partido do Convento

7
Ressalto que é 199 o número total de cirurgiões detetados na análise do Dicionário dos médicos e cirurgiões portu­
gueses ou que estiveram em Portugal. Aqui colocamos o total de 128 pelo facto de que, dos 199, conseguimos confirmar
que 71 cirurgiões eram os mesmos que já havíamos detetado nos documentos do Arquivo Histórico Ultramarino.
8
Embora não seja o objetivo de discussão deste trabalho, é importante frisar que não estamos, porém, absoluta­mente
certas de que o número de 379 cirurgiões seja o exato, que corresponda ao total de cirurgiões que estiveram na
­América portuguesa durante o século XVIII.
9
Laurinda Abreu identifica o número de 677 cirurgiões, entre o período de 1701-1800, a partir da base de dados
resultante dos projetos de investigação que coordenou, as quais se baseiam, primordialmente na sua Base de Dados
sobre as profissões médicas, com dados coligidos para o período de 1430 a 1826. Também segundo Laurinda Abreu,
parte da documentação foi recolhida no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, nas Chancelarias Régias, Hospital de
São José, Desembargo do Paço, Ementas da Casa Real; Tribunal do Santo Ofício e Registo Geral de Mercês, e, ainda,
na Biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Remetemos, para maiores desenvolvimentos desta
matéria, para ABREU, 2016; ABREU, 2018: 493-524.
10
AHU — Baía, cx. 66 doc. 76 AHU_ACL_CU_005, Cx. 63, D. 5337.
11
AHU — Maranhão, N.V. 1925. AHU_ACL_CU_005, Cx. 207, D. 14765.
12
AHU_CU_017-01, Cx. 46, D. 10779-10780.

500
DA PR ÁTICA DA CIRURGIA À PESCA DA BALEIA — MODOS DE FAZER NO BR ASIL COLONIAL

de Nossa Senhora do Desterro13; cirurgiões embarcadiços, tal como ocorre com ­António
Grilo, que era 2.° cirurgião da fragata Nossa Senhora da Graça14 ou com José da Silva
Mata, cirurgião embarcadiço da fragata de guerra Nossa Senhora da ­Nazaré, que exerceu
depois na cidade de Belém do Pará e depois eleito cirurgião da câmara com p­ artido15;
­cirurgiões embarcadiços e também dos militares, tal como se verifica com M ­ anuel ­Ferreira
da Costa, 1.° cirurgião da fragata Nossa Senhora da Palma e cirurgião em um dos ­terços
de Infantaria paga da guarnição da praça da Bahia16; cirurgiões de ­hospital, como Agosti‑
nho Velho, que foi cirurgião do Real Hospital da Villa de Barcellos17; cirurgiões do ­hospital
e também dos militares, como ocorre com Domingos Gonçalves da Cruz, cirurgião-mor
do hospital de Vila Rica e dos Dragões de Minas, com a graduação de capitão18; cirur­
giões do hospital militar, como se constata com Cristóvão Pessoa da ­Silva, cirurgião-mor
do Hospital Real Militar19; cirurgiões embarcadiços e depois eleitos do hospital e também
dos militares, como no caso de Francisco da Costa Franco, cirurgião aprovado de parti­
do do Hospital de São Cristóvão da cidade da Bahia, segundo consta em seu requeri­
mento, o qual já havia sido mandado em várias naus que guardavam as costas do reino
de P ­ ortugal, e em outras que tinham feito viagens ao Estado da Índia e ao presídio de
Moçambique, onde ocupou também o posto de cirurgião-mor.
Houve também os cirurgiões dos militares, como José Filipe de Almeida, cirurgião-­
-mor do Terço de Infantaria Auxiliar20; cirurgiões dos militares com ordenado, como
­Cosme Gomes Pereira, cirurgião aprovado, soldado da Companhia do Terço do Regi‑
mento de Pernambuco21, cirurgiões dos militares e da câmara, como António José Vieira
de Carvalho, cirurgião-mor do Regimento de Cavalaria Regular da Capitania de Minas
Gerais e da câmara de Vila Rica22; cirurgiões de presídio, como Luiz Soares de Sousa
­cirurgião da guarnição do Presídio do Morro de São Paulo23; e cirurgiões com vínculo
real, como ocorre com António Soares Brandão, cirurgião-mor do Reino24.
O que importa reter deste listado é, por um lado, a multiplicidade de instituições
de enquadramento; a possibilidade de se poder atuar em frentes muito diversas, alterna‑
tivamente ou ao mesmo tempo, e a perceção de que não existiam «carreiras» profissio‑
nais que verdadeiramente individualizassem percursos sem retorno ou partilha. Como

13
AHU — Baía, cx. 10, doc. 90 AHU_ACL_CU_005, Cx. 13, D. 1077.
14
AHU_CU_005-01, Cx. 62, D. 11860-11863.
15
AHU_CU_013, Cx. 41, D. 3820.
16
AHU — Baía, cx. 27, doc. 55 AHU_ACL_CU_005, Cx. 32, D. 2891.
17
AHU — Pará, cx. 814. AHU_CU_020, Cx. 3, D. 190.
18
AHU — Minas Gerais, cx. 95, doc. 77 AHU_CU_011, Cx. 95, D. 7700.
19
AHU — Baía, cx. 216, doc. 30 AHU_ACL_CU_005, Cx. 215, D. 15139.
20
AHU_CU_005-01, Cx. 76, D. 14653-14654.
21
AHU — Pernambuco. AHU_CU_003, Cx. 4, D. 354.
22
AHU — Minas Gerais, cx. 135, doc. 58.
23
AHU — Bahia, cx. 123 doc. 19 AHU_ACL_CU_005, Cx. 109, D. 8546.
24
AHU — São Paulo-MGouveia, cx. 35, doc. 2972. AHU_CU_023-01, Cx. 35, D. 2972.

501
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

v­ eremos, porém, o caso do exército, e dos cirurgiões militares, começa a emergir, no


século XVIII, e no contexto do Brasil colonial, como sendo digno de destaque.
Cabe especificar que dos 96% que foram identificados com o respetivo enqua‑
dramento institucional, 85% serviram apenas uma das entidades identificadas, 13%
serviram como cirurgião de duas unidades, e 2% em 3 ou mais unidades na América
­portuguesa. O elemento mais significativo é, como dissemos, a presença de cirurgiões
que serviam os militares. O que não é de estranhar, considerando os contextos em que
se moviam. Dos 96% dos cirurgiões com registos do enquadramento institucional, 46%
tinham vínculo com os militares. A necessidade de cirurgiões pelo exército é lógica e
compreensível. Tentar perceber a atratividade destes por esses postos é outra questão,
quando estes têm diante de si múltiplas áreas de exercício. O fator da estabilidade de
vínculo e de remuneração dos serviços prestados teria, por certo, peso nessa decisão.
As guerras para definição de fronteiras, a presença do exército, de uma forma mais orga‑
nizada e institucionalizada, no Brasil colonial, não teria deixado de criar oportunidades
atrativas para este grupo de profissionais da saúde.

CIRURGIÕES COM OUTRA FUNÇÃO FORA DA ÁREA DA


MEDICINA
Houve cirurgiões que não se dedicaram apenas à cirurgia, o que também se pode
tratar de uma questão de acumulação de saberes. Todavia, aqui importa debater ­questões
relativas a níveis de especialização de funções. Tentando verificar se estes agentes são de
facto vocacionados a esta profissão, em exclusivo, ou se a exercem em combinação com
outras, verificamos que, em 90% dos casos, esse desempenho profissional é identi­ficado
como sendo exercido em exclusividade. Como Francisco José da Costa Alva­renga,
que solicitou pagamento de soldo do serviço de cirurgião à rainha D. Maria I25. Costa
­Alvarenga foi mencionado como Cirurgião Anatómico aprovado incumbido do cura­
tivo dos Escravos. Todavia, também curou no hospital militar, e quando não era possível
fazê-lo no hospital, curava também em sua própria residência, sempre com muito zelo e
prontidão. Nos restantes 10%, verificamos que 5% ocupam a função de Cirurgião e outra
­função na área da Medicina, dos quais não temos espaço para discutirmos neste traba‑
lho, e os restantes 5%, que vamos apresentar com especificidade, compreendem aqueles
que exercem essa função, juntamente com outra função fora da área Medicina.

25
AHU — Maranhão, cx. nv 1898 AHU_CU_016, Cx. 19, D. 981.

502
DA PR ÁTICA DA CIRURGIA À PESCA DA BALEIA — MODOS DE FAZER NO BR ASIL COLONIAL

Cirurgião e outra
função na
Cirurgião e outra
Medicina
função fora da
5%
Medicina
5%

Somente cirurgia
90%

Gráfico 1. Níveis de pluriatividade no exercício da profissão — distribuição percentual.


Fonte: http://bndigital.bn.gov.br/dossies/projeto-resgate-barao-do-rio-branco e CARVALHO, Augusto da Silva.
Dicionário dos Médicos e cirurgiões portugueses ou que estiveram em Portugal. BACL.

Os números são, portanto, eloquentes quanto aos níveis de especialidade e de


e­ xclusividade com que estes homens se dedicavam à sua profissão. De qualquer forma,
a pluriatividade dos cirurgiões corrobora para que seja revista a maneira que a alguns
autores abordaram sobre os cirurgiões. Como fez Lycurgo Santos Filho, que afirmou
que nos três primeiros séculos de presença colonial, a Cirurgia era limitada, tanto em
volume quanto em variedade26. Para Santos Filho, a Cirurgia começou a desenvolver-se
no Brasil no século XIX, quando já era exercida pelos doutores em Medicina e pelos
professores das duas escolas, do Rio de Janeiro e da Bahia. O autor defende que a ­antiga
cirurgia foi eminentemente mutiladora. Cortava-se o membro doente. Extirpava-se a
parte doente, o órgão afetado. Abria-se lancetava-se a tumoração. Com convicção, e
sem demonstrar dados, Lycurgo Santos Filho argumenta que era perigoso intervir no
corpo humano, pois sobrevinha geralmente a infeção pós-operatória. O ato cirúrgico
signi­fica a morte, numa percentagem impressionante. Não pretendo dizer que Lycurgo
­Santos Filho estava certo ou errado em suas afirmações, não é isso que está em discussão.
Todavia, creio que é preferível trabalhar com a informação disponível nas fontes para
falar em percentagens. Assim como o presente trabalho apresenta, e neste contexto, 5%
demonstram-se relevantes. O autor também afirmou que os cirurgiões-barbeiros que
exerceram nos primeiros séculos da colonização do Brasil, igualaram-se todos nas limi‑
tações e deficiências27. Tanto limitação quanto deficiência são conceitos muito delicados
para ser utilizados quando estamos trabalhando com o passado, e ambos podiam variar
de espaço para espaço dentro da América portuguesa. E a palavra todos, certamente,
não é a mais apropriada para utilizar quando nos referirmos a um grupo tão plural.

26
SANTOS FILHO, 1991.
27
SANTOS FILHO, 1991: 226.

503
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Lycurgo Santos Filho28 é um clássico em História da Medicina da historiografia


brasileira. Um clássico nunca perde o seu respeito, o que não impede que possa ser
questio­nado sobre vários ângulos. Neste sentido, a historiografia brasileira em História
da Medicina já possui críticas que estabelecem o valor clássico da obra, mas ­questionam
a validade da mesma, conforme podemos ver com Jean Luiz Neves de Abreu, na sua
tese de doutoramento: «O Corpo, a Doença e a Saúde: O saber médico luso-brasi­
leiro no ­século XVIII»29. Para Neves de Abreu, Lycurgo Santos Filho apresentou uma
­versão generalizada do período colonial, e deixou entendido que havia precariedade da
­assistência médico-cirúrgica por questões de atraso intelectual30. Se pudéssemos falar
em precariedade, dificilmente poderíamos inferir que esta existiu por conta de déficit
de intelecto dos praticantes em ação, formados ou não em Portugal. Os historiadores
da História das Ciências têm vindo a defender que a ideia de um Portugal setecentista
atrasado é controversa31.

PLURIATIVIDADE
Para melhor documentarmos estas realidade, e para darmos aos números conteú­
dos qualitativos, e analíticos, apresentaremos as motivações e o contexto em que os
­cirurgiões António Martins Vidigal, Gregório de Freitas da Fonseca Soares, ­Francisco
Luiz Reina e Ildefonso José da Costa Abreu que dirigem ao Conselho Ultramarino
­dando conta dessas realidades — de resto, esperadas e comuns no contexto do tempo.
António Martins Vidigal era cirurgião da câmara de sua Majestade, e cirurgião-
-mor da Cavalaria no Regimento de Alcântara. Segundo consta em seus registos no
­Arquivo Histórico Ultramarino, serviu, no mínimo, por 14 anos como cirurgião na Amé‑
rica ­portuguesa. Em 1797, ficou registado que António Martins Vidigal tinha 12 filhos
«achando se oito no progresso da Educação, sendo também hum que he mudo e quase
cego»32. O vencimento que obtinha pelo posto de cirurgião não era suficiente para o sus‑
tento familiar, pelo que António Martins Vidigal recorreu à rainha D. Maria I­ , solicitando
poder exercer também o posto de escrivão, ou inquiridor, ou contador, ou distribuidor.
Todos os postos que solicitou já estavam sendo ocupados por outros agentes da coroa.
Gregório de Freitas da Fonseca Soares solicitou ao rei D. José I confirmação no
cargo de cirurgião-mor do destacamento dos Dragões do arraial de São Félix. Confir‑
mação que foi passada por provisão do Conselho Ultramarino em 15 de setembro de

28
SANTOS FILHO, 1991: 226.
29
ABREU, 2006.
30
O espaço que e o enfoque deste trabalho não nos permite dialogar com outros autores que discorreram sobre
os cirurgiões. Para outras argumentações, entre outros, indico: RIBEIRO, 1997; GROSSI, 2005; ALMEIDA, 2010;
­WISSENBACH, 2002; WISSENBACH, 2009; FURTADO, 2002; FURTADO, 2009.
31
BRACHT, 2017; CONCEIÇÃO, 2017.
32
AHU — Maranhão, N.V. 1925. AHU_ACL_CU_005, Cx. 207, D. 14765.

504
DA PR ÁTICA DA CIRURGIA À PESCA DA BALEIA — MODOS DE FAZER NO BR ASIL COLONIAL

176033. Também consta uma carta do Conselho Ultramarino para que lhe fosse paga
a tença que lhe coubesse34. Depois disto, no ano de 1762, foi passada confirmação do
requerimento em que o cirurgião solicitou a mercê de uma tença por ter dado entrada
em mais de dezasseis arrobas de ouro na Casa de Fundição de São Félix35. Disso há carta
patente, passada por D. Álvaro José Xavier Botelho de Távora, Conde de São Miguel,
do Conselho de Sua Majestade, governador e capitão-general da capitania de Goiás e
Minas, em 31 de agosto de 173636. Gregório de Freitas da Fonseca Soares não se dedicou
apenas ao ofício de cirurgião, também esteve, portanto, diretamente ligado a atividades
de mineração do ouro. Em 1758, entregou na casa de fundição 24 arrobas, 42 marcos e
duas onças de ouro. Em 1759, 12 arrobas, 39 marcos, 4 onças, seis oitavas e 12 grãos37. Na
consulta passada pelo Conselho Ultramarino, juntamente com o seu pedido pelo hábito
da ordem de Cristo, de 7 de abril de 1760, diz-se que isso em nada impediu o exercício
da sua atividade de cirurgião38:

E porq o suppte depois q meteu na dita Fundição as sobredita arrobas de ouro,


meteu mais de 9 de janeiro athe 18 de Novembro de 1758 vinte, e quatro arrobas,
­quarenta, e dois marcos, e duas onças, como se manifesta da attestação, e certidão
juntas em 1.° Lugar, e desde 25 de Mayo athé 17 de Dezembro de 1759, dose a­ rrobas,
trinta e nove marcos, quatro onças, seis oitavas e dose graons, segundo consta da
­attestaçaõ; e certidaõ juntas em 2.° lugar, e juntas estas porçoens com a const.(e)
da certidão junta a 2nda consulta, se manifesta o Livro, q o supp. tem dado a Real
­fazenda de VMag(e); e estar o mesmo sspl nos termos do sobredito Alvará, e decon-
seguir as mercês, e graças competentes a seua louvavel exercício e ao numero das
arrobas de ouro, q tem metido na dita fundiçaõ e sobre tudo a incomparavel grandeza
de V. Magde e pela certidão junta em 3.° Lugar consta naõ ser feito merce alguma a
suppl athe o presente, ao que ascresce o ter o suppl servido a V. mage. na occupação
de cyrurgião mor da sobredita 2nda guarnição com o mayor disvello, zelo e caridade
no exercício de minerar o fizesse faltar ao curativo dos enfermos, por o asiso, o acudio
sempre sem descuido, e com felicidade de não morrerem os soldados q curavaos, como
semostra da justificação, e attestação juntas 7.° e 5.° lugar. Consulta passada em 7 de
abril de 1760.

33
AHU — Goiás, AHU_CU_008, Cx. 17, D. 1013.
34
AHU — Goiás, AHU_CU_008, Cx. 17, D. 1013.
35
AHU — Goiás, AHU_CU_008, Cx. 18, D. 1112.
36
AHU — Goiás, AHU_CU_008, Cx. 18, D. 1112.
37
AHU — Goiás, AHU_CU_008, Cx. 19, D. 1138.
38
AHU — Goiás, AHU_CU_008, Cx. 19, D. 1138.

505
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

O texto deixa claro que a mineração não tinha sido um problema para o exercício
da arte de Cirurgia, pelo cirurgião-mor da segunda guarnição, que sempre tratou todos
com muito «zelo e caridade»39.
Francisco Luiz Reina, cirurgião-mor, residente na capitania da Bahia, em requeri­
mento registado no ano de 1799, solicitou que lhe fosse passada provisão para que
­fosse autorizado intentar uma ação contra o procurador da Coroa para reaver terre‑
nos, p ­ ropriedades suas, que estavam sob a posse da Fazenda Real. Na última folha do
­pedido consta uma anotação do Conselho Ultramarino que diz para se passar provisão
ao ­cirurgião nesse sentido40.
Ocupa esta secção também o acontecido com Ildefonso José da Costa Abreu, cirur‑
gião-mor do hospital real militar, quando informou ao secretário de estado da Marinha
e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, que o ajudante das ordens do vice-rei do Estado
do Brasil, Pedro da Gama lhe apresentou um capitão inglês que viera à costa do Brasil
pescar baleias ensinando todas as técnicas de pesca, mostrando todos os seus instru‑
mentos, e pontuando que queria autorização para pescar na costa da América do Sul41.
Também quando o mesmo cirurgião, Ildefonso José da Costa e Abreu, como vimos,
em 1781, informou sobre as sublevações ocorridas nas localidades próximas a Serra da
Cordilheira nos domínios espanhóis a sua chegada ao Rio de Janeiro na nau comandada
por Guilherme Roberts42, assim expressando situações de conflitos para o conhecimento
da coroa, o que certamente, era de interesse do reino de Portugal, pela manutenção das
suas relações políticas com outros países. E ainda Ildefonso José da Costa que por saber
inglês chegou a servir de intérprete.
Os casos de António Martins Vidigal, Gregório de Freitas da Fonseca S­ oares,
­Francisco Luiz Reina e Ildefonso José da Costa Abreu nos demonstram que, em m ­ uitas
circunstâncias, nem remuneração nem mercês eram suficientes (ou tidas como sufi­
cientes) para garantir a subsistência dos cirurgiões, agentes de saúde, na América portu­
guesa, pelo que é facto vê-los associados a outras atividades, que não a Cirurgia. Ajudam-­
-nos também a conhecer parte da realidade dos cirurgiões que estiveram na América
portuguesa durante o século XVIII. As dificuldades, como vimos, de vários vieses que
esses homens enfrentavam incidiram no percurso da Cirurgia, tendo em consideração,
que todo saber produzido não é independente daqueles que o produziram43.

39
AHU — Goiás, AHU_CU_008, Cx. 19, D. 1138.
40
AHU_CU_005-01, Cx. 102, D. 19951-19954.
41
AHU — Rio de Janeiro, cx. 105, doc. 21. AHU_CU_017, Cx. 96, D. 8318.
42
AHU — Rio de Janeiro, cx. 295 doc. 24. AHU_CU_017, Cx. 117, D. 9576.
43
Mary Lindemann, op. cit.

506
DA PR ÁTICA DA CIRURGIA À PESCA DA BALEIA — MODOS DE FAZER NO BR ASIL COLONIAL

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os cirurgiões, os seus percursos, e mais ainda as suas aspirações, documentam e
reforçam os percursos da Cirurgia no século XVIII. Em muitas circunstâncias, ­porém,
nem remuneração nem mercês eram suficientes (ou tidas como suficientes) para ­garantir
a subsistência destes agentes de saúde, pelo que é frequente vê-los associados a outras
atividades, que não a Cirurgia, facto que conduzia os cirurgiões a desempenhos profis‑
sionais marcado por uma notória pluriatividade. Ainda assim, do universo analisado, só
cerca de 5% dos cirurgiões detetados estiveram envolvidos em outro tipo de atividade
laboral na América portuguesa.
Desempenhar uma atividade afeta os que a desempenham, valida os perfis de
quem a realiza, e confere crédito à profissão, estas dimensões de análise não são sepa­
ráveis do exercício da Cirurgia no espaço do Brasil colonial. O estado de pobreza, a falta
de recursos para alimentar a família, a falta de recursos para exercer o ofício de forma
condigna são argumentos, porventura estratégicos, mas que ressaltam também, como
pano de fundo, na retórica daqueles responsáveis por práticas médicas vitais à sobrevi‑
vência de exércitos e de comunidades civis.

DOCUMENTOS DE ARQUIVO
Arquivo Histórico Ultramarino – Projeto Resgate Barão do Rio Branco
ASV — Anagrafi degli Abitanti del Ghetto, o contrada della Riunione, fatta da me Saul Levi Mortera (1797),
Scuole Piccole e Suffragi, b. 736.
AHU — Baía, cx. 10, doc. 90 AHU_ACL_CU_005, Cx. 13, D. 1077.
AHU — Baía, cx. 27, doc. 55 AHU_ACL_CU_005, Cx. 32, D. 2891.
AHU — Baía, cx. 66 doc. 76 AHU_ACL_CU_005, Cx. 63, D. 5337.
AHU — Bahia, cx. 123 doc. 19 AHU_ACL_CU_005, Cx. 109, D. 8546.
AHU — Baía, cx. 216, doc. 30 AHU_ACL_CU_005, Cx. 215, D. 15139. AHU_CU_005-01, Cx. 76,
D. 14653-14654. AHU_CU_005-01, Cx. 62, D. 11860-11863. AHU_CU_005-01, Cx. 102, D. 19951-
-19954. AHU_CU_013, Cx. 41, D. 3820. AHU_CU_017-01, Cx. 46, D. 10779-10780.
AHU — Goiás. AHU_CU_008, Cx. 17, D. 1013.
AHU — Goiás. AHU_CU_008, Cx. 18, D. 1112.
AHU — Goiás. AHU_CU_008, Cx. 19, D. 1138.
AHU — Maranhão, cx. nv 1898 AHU_CU_016, Cx. 19, D. 981.
AHU — Maranhão, N. V. 1925. AHU_ACL_CU_005, Cx. 207, D. 14765.
AHU — Minas Gerais, cx. 95, doc. 77 AHU_CU_011, Cx. 95, D. 7700.
AHU — Minas Gerais, cx. 135, doc. 58.
AHU — Pará, cx. 814. AHU_CU_020, Cx. 3, D. 190.
AHU — Pernambuco. AHU_CU_003, Cx. 4, D. 354
AHU — São Paulo-MGouveia, cx. 35, doc. 2972. AHU_CU_023-01, Cx. 35, D. 2972.
AHU — Rio de Janeiro, cx. 105, doc. 21. AHU_CU_017, Cx. 96, D. 8318.
AHU — Rio de Janeiro, cx. 295 doc. 24. AHU_CU_017, Cx. 117, D. 9576.

507
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa


BACL — CARVALHO, Augusto da Silva. Dicionário dos Médicos e Cirurgiões portugueses ou que estiveram
em Portugal. Livro 1. BACL. Ref. (49-4-1). Livro 2. BACL. Ref. (49-4-2). Livro 3. BACL. Ref. ­(49-4-3).
Livro 4. BACL. Ref. (49-4-4). Livro 5. BACL. Ref. (49-4-5). Livro 6. BACL. Ref. (49-4-6). Livro 7.
BACL. Ref. (49-4-7). Livro 8. BACL. Ref. (49-4-8). Livro 9. BACL. Ref. (49-4-9). Livro 10. BACL. Ref.
(49-4-10).

BIBLIOGRAFIA
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­Ciências ­Humanas, Programa de Pós-Graduação em História. Belo Horizonte.
ABREU, Laurinda (2016) — A Misericórdia do Porto e os seus hospitais como centros de formação de cirur­
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508
DA PR ÁTICA DA CIRURGIA À PESCA DA BALEIA — MODOS DE FAZER NO BR ASIL COLONIAL

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­História e Filosofia da Ciência. Porto: Porto editora.

509
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

510
PARTE V
PROPOSTAS DE REFLEXÃO

Nesta secção procurámos agrupar uma série de trabalhos de pendor mais teórico-
-filosófico e abrangente, dois deles muito influenciados pelo fecundo pensamento de
Tim ­ Ingold ­ (circularidades, formas de aprendizagem colaborativa), outro pondo em
destaque a ­questão do Antropoceno e dos paradoxos inerentes, que desinquietam toda
a proble­mática antiquíssima do «fazer» humano, inquietação essa que leva um outro
texto, inspi­rado em Sennett, a revalorizar a ideia de artesanato e de artesão. Porém, as
perplexidades com que nos confrontamos perante a tecnologia, as suas promessas
altamente ambíguas de «melhoramento» das nossas vidas, etc., levantam problemas de toda
a ordem, que t­ocam em questões éticas e de relacionamento humano, a começar com o
ensino, o ­sentido de comunidade, a criação de novas (e frequentemente «doentias») formas
de subjeti­vidade, etc. Ou seja, o «fazer», que criou o ser humano, parece que se voltou contra
ele e agora o ameaça, individualmente, como espécie, e enquanto habitante de um planeta
em disfunção.

511
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

512
DA SEMENTE À ESTRELA: VARIAÇÕES SOBRE O
TEMA DA CIRCULARIDADE
FRANCISCO ONETO NUNES*

Resumo: Escreveu Tim Ingold em 1991, no prefácio a um dos mais interessantes trabalhos de Antropologia
Marítima dessa época que «… we should turn seawards to rediscover the continuities of the dwelt-in world».
Alargando o âmbito da referência ao mar e estendendo-o à atmosfera e às estrelas, este texto identifica os
domínios da água e da abóbada celeste enquanto protótipos culturais de circularidade. Para tanto, convoca
a teoria autopoiética da Escola de Santiago, a Arqueologia Pré-Histórica e os estudos paleoclimáticos, a
Astro­nomia Cultural e a Etnografia. Este esboço exploratório beneficia do background crítico dos sucessivos
momentos criativos da Antropologia das últimas décadas — fenomenologia, «ontological turn», «affective
turn»… — e trata com um interesse especial algumas das ideias inovadoras da obra de Tim Ingold.
Palavras-chave: protótipos culturais de circularidade; água; skyscape; ontologia política.

Abstract: In the foreword to one of the most interesting works on Maritime Anthropology published in
1991, Tim Ingold writes: «… we should turn seawards to rediscover the continuities of the dwelt-in world».
Broadening the scope of this reference to the sea and extending it to the atmosphere and the stars, this text
identifies the domains of water and sky as cultural prototypes of circularity, summoning the auto­poietic
theory of the Santiago School, Prehistoric Archaeology and paleoclimatic studies, Cultural Astronomy
and Ethnography. This exploratory sketch benefits from the critical background of the successive creative
­moments of Anthropology in the last decades — phenomenology, ontological turn, affective turn … — and
treats with special interest some of the innovative ideas of Tim Ingold’s work.
Keywords: cultural prototypes of circularity; water; skyscape; political ontology.

* CRIA-IUL/ISCTE — Instituto Universitário de Lisboa. Professor Auxiliar, Departamento de Antropologia. Email:


­francisco.­oneto@iscte-iul.pt.

513
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Anthropology is a kind of experimentation within a world that is neither social nor natural,
but implicated in multiple connectivities that we are just now beginning
to understand, and where our edgework takes off1.

1. INTRODUÇÃO
Desde que, nos idos de 90, me deparei diretamente no terreno com o que
­ armelo Lisón Tolosana denominou de «síndroma etnográfico bruxa-olho-inveja»2,
C
que a ecolo­gia das ideias não cessa de me fascinar. Entre os pescadores da arte-xávega
do ­Litoral Central Português, verifiquei a existência de uma conceção do infortú‑
nio assente em duas imagens poderosas, com raízes históricas e culturais profundas3.
A primeira d ­ essas imagens é a da roda — expressão dos revezes periódicos da sorte
e da fortuna, das ­«ruturas do equilíbrio rítmico»4 e da sucessão dos acasos na alter‑
nância entre escassez e abundância associada à imprevisibilidade do mar («rodas de
mar») e à eventualidade da ocorrência de repetidos insucessos na pesca («má-roda»).
A ­segunda é o olho — ou o olhar, a agencialidade da visão — enquanto veículo do
­idioma da inveja em que se e­ xpressam as tensões relacionais entre as companhas, os
seus membros e respetivas ­famílias. Partindo da ideia, assinalada por vários autores
em diversos domínios discipli­nares, de que «o acaso aparece como o dado epistemoló‑
gico fundamental do mundo»5, estes dois pilares da teoria do infortúnio l­evaram-me
a explorar a pervasividade da i­magem da roda a par com a dimensão escópica das
relações socias, abrindo espaço para novos nexos epistémicos, designadamente, o que
conecta o olho, o espelho, a lente e a luz.
Na pesquisa subsequente, já longe das areias do Litoral Central, e sempre em
­diálogo com os conteúdos disciplinares inovadores da Antropologia que vou introdu‑
zindo no âmbito do exercício pedagógico, foram surgindo vários fragmentos conec­
tores do que então designei «protótipos culturais de circularidade». O elemento líquido,
os rios, os mares e os oceanos, muito para além da sua contiguidade metonímica com
o exer­cício da pesca e da navegação, configuram um campo de possibilidades identi­
ficador de um desses protótipos: a água. A abóbada celeste, tal como revelada, por
exemplo, pelas perenes doze figuras astrais da Antiguidade, pelas culturas megalíticas,
ou pelos sistemas de navegação dos povos austronésios, abrem campo para o outro: o
céu. A partir da diversidade e da variedade de expressões culturais ligadas a esses dois
elementos, foram-se então definindo alguns contornos merecedores de uma primeira
investigação exploratória.

1
HASTRUP, 2014: 24.
2
LISÓN TOLOSANA, 1987: 316.
3
NUNES, 2005.
4
LEROI-GOURHAN, 1987: 88.
5
MOLES, 1995: 200.

514
DA SEMENTE À ESTRELA: VARIAÇÕES SOBRE O TEMA DA CIRCULARIDADE

2. CIRCULARIDADE, CICLICIDADE, VERTICALIDADE


Escreveu Tim Ingold em 1991, no prefácio a um dos mais interessantes trabalhos
de Antropologia Marítima dessa época que «… we should turn seawards to rediscover
the continuities of the dwelt-in world»6. Alargando o âmbito da referência aos modos de
vida associados ao mar, é também na forma como se processa a circulação da água entre
os oceanos, a terra e a atmosfera, atravessando diferentes estados, que se exprime atual‑
mente uma perturbação global nos sistemas de suporte à vida, pela perda da biodiver­
sidade e pelos excessos da poluição e da depredação dos recursos terrestres. Em face
do problema das alterações climáticas, é hoje evidente para a Antropologia «the power
of water to make or unmake social worlds»7. Para além do ciclo hidrológico, o tema da
circularidade contamina formas, expressões, ideias, saberes e modos de fazer, na arte,
na ciência e na vida. A recorrência dos motivos circulares subjacentes à pendularidade e
à alternância — das motricidades aos ritmos das sementeiras e das chuvas, das marés
e das rotas dos astros — convoca-nos para um exercício em torno da multiplicidade dos
seus emaranhados criativos, tendo como ponto assente que, no caso da Arqueologia, tal
como noutras áreas disciplinares, «the discoveries of the last two decades have totally
­refocused our perceptions on the central importance of the sea in human development»8.
A relevância do tema da circularidade resulta de múltiplos fatores, desde logo no
plano epistemológico, tal como decorre da exigência reflexiva imposta pela própria
­condição auto-referente de todos os processos em que a consciência se examina a si
própria, ou seja: o que nos é dado averiguar acerca dos processos cognitivos depende do
exercício desses mesmos processos cognitivos ou, como postula a teoria autopoiética,
«tudo o que é dito, é dito por um observador»9. A definição da vida como um fenó­
meno circular10 evidencia a conexão entre o conhecimento e a visão — cumplicidade
que não se situa apenas no plano geral da biologia da cognição e das tecnologias digi‑
tais de matriz escópica mas que é também, e sobretudo, um processo experiencial no
qual emergem, em cada contexto histórico e cultural, as diversas expressões reveladoras
desta «universalidade da forma circular»11. Manuel Lima considera que o círculo é um
­símbolo presente «in all domains of human knowledge, across space and time»12 e em
todas as suas esferas expressivas. A propósito, justamente, do globo ocular e da íris, dirá
que «the circle’s inescapable beauty seems deeply rooted in our biology»13.

6
INGOLD, 1991: X.
7
HASTRUP & RUBOW, 2014: 2.
8
CUNLIFFE, 2017: V.
9
MATURANA & VARELA, 1980; MATURANA, 1988.
10
VARELA, 1984; VARELA et al., 2016.
11
LIMA, 2017: 11.
12
LIMA, 2017: 11.
13
LIMA, 2017: 54.

515
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Os quatro pares de temas dominantes identificados por Lima nos significados


do círculo recobrem a multiplicidade de expressões que apresentarei neste texto como
­exemplos conectores ilustrativos dos dois protótipos culturais de circularidade: simpli‑
cidade e perfeição, unidade e totalidade, movimento e ciclicidade, infinitude e perpe‑
tuidade14 — atributos que facilmente reconhecemos tanto no elemento líquido como
na abóbada celeste, no mar como nos astros do céu, em toda a gama dos seus movi­
mentos, ciclos e ritmos, segundo a experiência vivida das sociedades e dos povos, das
suas ­criações e modos-de-fazer, do trabalho na terra e no mar, da arte e da arquitetura,
do amor e da morte, dos jogos e das narrativas… Nessa medida sempre vasta e impre‑
cisa que é a da própria condição humana, a dança ilustra modos possíveis de pensar
as ­continuidades inextrincáveis entre os domínios a que se referem os dois protótipos
cultu­rais de circularidade aqui identificados. Wendy James usou igualmente o termo
«protótipo» para sugerir que «the analogy of the dance, and of the layered ‘choreo­graphy’
underlying lived activity, can be creatively extended to a whole range of social pheno­
mena»15. Elizabeth Wayland Barber, por seu turno, debruçando-se sobre a Arqueologia,
a Linguística e o Folclore, destaca a originalidade humana no plano sensório-motor e
admite que, do ponto de vista evolucionário, a capacitação para a dança — combinação
rítmica de som e movimento — precede a fala16. Considerando-a como «essência da
vida» a dança é, portanto, irredutível a uma mera forma de arte: «life causes motion, and
motion can give evidence of life»17 — e convém sublinhar que os vários exemplos que
ilustram o seu argumento em torno das deusas dançarinas, apontam recorrentemente
para uma conexão evidente com a água, dada a íntima associação com as temáticas da
fertilidade e a sua inserção no ciclo agrário anual, «it’s goal being an abundance of crops
called luck»18. Barber faz remontar esta associação ao Neolítico e ao recurso aos «espí­
ritos» para o controle da chuva19, mas é possível recuar ainda mais.
À luz da evidência dos estudos paleoclimáticos, a par da Paleontologia Humana, da
Arqueologia Pré-Histórica e da Etnografia, Clive Finlayson defende que a água moldou
a evolução e a expansão da espécie por toda a superfície terrestre, de acordo com a sua
enorme dependência de fontes de água potável, levando à mobilidade de longo alcance e
sempre em ressonância com o ciclo anual das variações sazonais20. Deve salientar-se que
deste dado decorre o aprofundamento de uma dupla dependência, criadora de novos
mundos para a espécie humana: a dependência mútua, pela reciprocidade social, pelo
altruísmo e pela cooperação para a sobrevivência, e a dependência epistemológica face à

14
LIMA, 2017: 32.
15
JAMES, 2014: 91.
16
BARBER, 2013: 338.
17
BARBER, 2013: 3.
18
BARBER, 2013: 3.
19
BARBER, 2013: 40, 332.
20
FINLAYSON, 2014: 151.

516
DA SEMENTE À ESTRELA: VARIAÇÕES SOBRE O TEMA DA CIRCULARIDADE

natureza, pela necessidade de codificação da experiência das variações cíclicas, associan‑


do-as também aos movimentos do sol, da lua e das estrelas. Já no final do Pleistoceno,
após a última grande glaciação e com o início da agricultura, o padrão da dependência
da água acentua-se, sendo precisamente junto dos grandes rios que se encontram as
principais zonas de dispersão populacional e se desenvolvem os mais importantes focos
civilizacionais, no Crescente Fértil e na Mesopotâmia, no vale do Indo, na China, na
América e em África.
A continuidade entre os domínios da água e do céu revela-se na sua complemen‑
taridade cognitiva em práticas tão fundamentais como a transumância, a agricultura
ou a navegação. Um notável exemplo próximo é o trabalho de investigação do astro­
físico F ­ ábio Silva, graças ao qual foi possível desvendar a origem remota da designação
da ­serra mais alta de Portugal: há 6.000 anos, o nascimento heliacal de Aldebaran, na
constelação do Touro, sobre a Serra da Estrela, assinalava o momento da migração anual
para as pastagens de altitude, revelando-se essa orientação na análise dos monumentos
megalíticos da região centro a par com as reconstituições por software da localização
dos astros visíveis no céu para as comunidades neolíticas do vale do Mondego21. No
âmbito da A ­ stronomia Cultural22, o deslumbramento humano face ao intangível céu
estrelado devém inteligibilidade no conhecimento das diversas formas de referenciação
usadas em diferentes latitudes culturais e períodos históricos, assinalando com marca‑
dores ­próprios — inscrições, pedras erguidas ou narrativas — os movimentos cíclicos
de passa­gem, ascensão e oclusão de determinadas estrelas e planetas sobre a linha do
horizonte, como nos ocasos e nascimentos heliacais (nos momentos próximos do n ­ ascer
e do pôr do Sol). O conceito de skyscape fixa assim uma continuidade entre o céu e a
23

­terra através de um ordenamento do tempo do mundo24 a partir da linha do horizonte,


­mapeando o céu e nele projetando a vida dos frutos da terra e dos animais, as ­sementes
e as ­marés, os percur­sos, as construções humanas, os mitos e os calendários. Fábio
­Silva dá o e­ xemplo das huacas andinas e da conceção do ciclo hidrológico expressa nos
­mitos ­dessa área cultural, em que a água circula entre o céu e a terra numa continuidade
­assente na identificação de regularidades e padrões de movimento nos astros — diurnos
e ­noturnos — e na sua associação causal aos lugares e aos modos de vida humanos.
A maravilhosa etnografia dos Barasana Tukano da Amazónia colombiana25 assinala
igualmente esta circulação da água e a sua continuidade entre o mundo subterrâneo, a
terra e o céu, tendo neste caso as Plêiades como marcador dos momentos de t­ransição

21
SILVA, 2012.
22
A Astronomia Cultural compreende três áreas principais de investigação: a história da Astronomia e da Astrologia,
a Etnoastronomia e a Arqueoastronomia (SILVA, 2015).
23
SILVA, 2015.
24
BARBER & BARBER, 2005.
25
HUGH-JONES, 1979.

517
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

sazonal. Assim, a circularidade encontra expressão privilegiada na pendularidade e


na alter­nância rítmica presentes em inúmeros domínios da existência humana, local
e globalmente.
Richard Bradley estudou detalhada e sistematicamente o registo arqueológico do
Neolítico e da Idade do Bronze26. A par com exemplos etnográficos de África (Nuba,
Nankini) e da América (Navajo, Barasana-Tukano), confrontou a presença do «arqué‑
tipo circular» — expressão que usa no sentido de «protótipo», ou «modelo»27 — com as
construções retilíneas no que concerne à sua distribuição geográfica: «curvilinear archi‑
tecture (…) was most apparent in regions which were connected by sea»28, na Europa
mediterrânica e Atlântica, enquanto as construções retangulares encontram-se sobre­
tudo na Europa continental, no centro e no Norte. O primeiro exemplo apresentado
por Bradley (Uisneach, no centro da Irlanda) assinala também a conexão desses monu‑
mentos pré-históricos com a abundância de fontes de água, nascentes de rios e ribeiros,
e com o calendário ritual das festividades dedicadas a Beltene, segundo os mais comuns
marcadores — equinócios e solstícios, os «quatro pilares do mundo»29 unindo o céu
e a terra.
A partir da identificação dessas quatro direções e, concomitantemente, dos
­momentos do ciclo anual que conferem aos movimentos do Sol um papel estrutu­
rante na vida das comunidades do Neolítico e da Idade do Bronze, surge-nos um outro
­elemento fundamental na exploração do protótipo circular: o eixo central, axis ­mundi.
Como ­notou Bradley, «circular constructions reflect a perception of space that ­extends
outwards from the individual and upwards into the sky»30. Assim, estes pontos de
­contacto entre o céu e a terra sobre a linha do horizonte dão expressão e enquadramento
às deslocações sazonais, à perceção dos longes e das distâncias e às viagens aventu­rosas,
permitindo aos heróis e aos antepassados, como sublinha Mary W. Helms, ascender
ao céu ou descer ao mundo subterrâneo31. O sentido da verticalidade, com os cultos
à Luz e ao Sol associados ao ouro e aos heróis míticos, como Ulisses, estão atestados
na ­Idade do Bronze, a par com o extraordinário desenvolvimento das viagens marí­
timas que c­ onsubstanciaram uma complexa rede de trocas que se estendia do Médio
­Oriente ao Báltico32. Se tomarmos em consideração, com Bradley, que muitas escavações
­arqueológicas, do Mediterrâneo ao Atlântico, sugerem uma continuidade do «arquétipo
­circular» entre os últimos caçadores-recolectores e os primeiros agricultores33, estaremos

26
BRADLEY, 1998, 2012.
27
BRADLEY, 2012: 9.
28
BRADLEY, 2012: 213.
29
BARBER & BARBER, 2005: 218.
30
BRADLEY, 1998: 109.
31
HELMS, 1988: 27; Cf. VAZ DA SILVA, 2008.
32
MOHEN et al., 1999.
33
BRADLEY, 2012: 8.

518
DA SEMENTE À ESTRELA: VARIAÇÕES SOBRE O TEMA DA CIRCULARIDADE

melhor preparados para vislumbrar na história e nas imagens das constelações celestes
uma p­ ossível linha de continuidade que mergulha as suas raízes no período Paleolítico
e, depois, «in a unbroken line from the Bronze Age to the Twenty-first Century»34; e
por outro lado, ainda, para reconhecermos o extraordinário potencial das descobertas
arqueológicas de Gobekli Tepe, um suposto «santuário» cuja construção remonta aos
primórdios do Neolítico, cerca de 9.000 a.C.35.

3. ONTOLOGIA POLÍTICA: UM EMARANHADO DE


CONTINUIDADES DIFERENCIADAS
Os dois protótipos de circularidade identificados, a água e o céu, evidenciam, pelo
menos, três características matriciais:

3.1. A de se encontrarem intimamente conectados, tanto na ecosfera e na tropos­fera,


nos processos biofísicos e meteorológicos, como no modo como estes são cultural­mente
experienciados — por exemplo, dilatando as fronteiras do visível muito para além da
atmosfera terrestre, até ao espaço infinito. Deste ponto de vista, o que entendemos como
«meio-ambiente» reporta-se não só ao domínio da experiência de habitar um ­mundo
de textura plástica, de superfícies e materialidades, tal como amplamente explorado
e ­descrito por Tim Ingold36 e desenvolvido por Lambros Malafouris sob a forma de
«mate­rial engagement theory»37, mas também à experiência da Luz no arco maior da sua
abrangência, enquanto fundamento pré-objetivo da existência38. Como ­escreveu Hans
Blumenberg, as condições para a vida na Terra posicionam-nos «entre o essencial e o
sublime», pois se por um lado decorrem do facto de esta estar revestida de uma c­ amada
de gases suficientemente espessa para que não sejamos queimados pelas radiações
­cósmicas e que nos permite respirar, por outro lado, essa camada é também adequada‑
mente fina para que o exercício da visão humana se possa debruçar sobre o infinito no
emaravilhamento do céu estrelado39.
Facilmente se depreenderá do trabalho de Tim Ingold que a experiência da luz
e da atmosfera compreende, necessariamente, o elemento líquido sempre presente no
­«weather-world», estabelecendo na sua circulação uma continuidade entre a terra e o céu,
bem como a própria possibilidade da vida no nosso planeta. Dispomos hoje, ­também,
de vasta informação científica, histórica e etnográfica, que nos possibilita uma adequada
compreensão das qualidades escópicas da água, por evidenciar «a way of ­conceptua­lising

34
BRADY, 2016: 235.
35
BRADLEY, 2012: 43; CAUVIN, 2000: 214-218.
36
INGOLD, 2000, 2011, 2013, 2015.
37
MALAFOURIS, 2013.
38
INGOLD, 2000: 265; INGOLD, 2005; INGOLD, 2011: 96, 128.
39
BLUMENBERG, 1987: 3.

519
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

the ‘substance’ of the self, emotional states of being, and social relationships»40. Nesta
perspetiva, o mar constitui-se como um domínio privilegiado, por ser simultanea­mente
rítmico, regular e imprevisível; por não compreender superfícies retilíneas, mas estabe‑
lecer linhas de movimento; e por ser uma infinitude contígua ao céu no horizonte, onde
aos nossos olhos morrem e renascem os astros celestes.

3.2. A de se desdobrarem sobre si próprios numa multiplicidade de expressões f­ ractais


que pontuam a realidade de ser, estar e habitar o devir do sistema-mundo e dos seus
­inúmeros mundos constitutivos e emergentes, umwelten41, ou pluriverso42, como um
emaranhado de continuidades diferenciadas – um mundo feito de muitos mundos
parti­lhados, de senciência, intencionalidade e inter-agencialidades. Tim Ingold, referin‑
do-se à dimensão afetiva e atmosférica da luz das estrelas e do seu pulsar (estando a uma
­distância infinita, tocam-nos a alma…), propõe uma leitura circular dessas qualidades
fractais — linhas de continuidade e padrões de regularidade, repetições, brilhos, ritmos e
alternâncias — imanentes aos dois protótipos de circularidade aqui identificados: «every
perception of the world, in short, is part and parcel of the world’s perceiving itself»43.
Também Arturo Escobar, apoiando-se na teoria autopoiética da Escola de S­ antiago
(H. Maturana e F. Varela) e na Etnografia, se refere a uma ontologia da «circulação da
vida» entre os povos das montanhas da Colômbia44 e à «recursividade dos ­processos
biofí­sicos e culturais»45 subjacentes — a mesma recursividade fractal e o mesmo princí‑
pio de circularidade que encontramos na filosofia expressa nas palavras do xamã Alce
Negro, dos Oglala Lakota, registadas por John Neihardt: «tudo quanto um índio faz, o
faz num círculo, e isto porque o Poder do Mundo age sempre em círculos e tudo procura
ser redondo»46.

3.3. A de permitirem perspetivar as continuidades do «dwelt-in world» (Ingold) e,


em conformidade, de nos podermos posicionar criticamente face à historicidade dos
­recortes classificatórios percebidos como pontos de rutura nessas continuidades, bem
como às implicações e compromissos éticos, epistemológicos e políticos subjacentes
— tendo como referente narrativo comum, não os humanos enquanto espécie, mas
«a humanidade, como condição»47. Por outras palavras, uma «economia simbólica da

40
STRANG, 2004: 79.
41
VON UEXKULL, 2004.
42
ESCOBAR, 2018.
43
INGOLD, 2016: 226.
44
ESCOBAR, 2018: 75.
45
ESCOBAR, 2008: 43.
46
NEIHARDT, 2000: 194.
47
DESCOLA, 2005: 37.

520
DA SEMENTE À ESTRELA: VARIAÇÕES SOBRE O TEMA DA CIRCULARIDADE

alteridade»48 ou, melhor ainda — assumindo, com Escobar, a imensa ressonância cogni‑
tiva deste imbricamento profundo entre natureza, cultura, poder e política49 — um novo
enfoque de pesquisa muito adequadamente designado por ontologia política.
Tendo presente a emergência de um número crescente de propostas de transição
energética e societal para uma economia circular ecologicamente virtuosa, ­sublinhe-se
que ambos os elementos — a água e o céu — têm vindo a ser afetados sistemica­mente
­pelos gravosos impactos da antropização. Os gases e os plásticos, a poluição a­ tmosférica
e oceânica, são parte de uma dinâmica maior e mais alarmante de perda da biodiversi­
dade e de exaustão de recursos, originando o progressivo colapso dos sistemas de
­suporte à vida na Terra. Assim, os processos biofísicos a que se reportam os dois protó­
tipos de ­circularidade identificados, são parte integrante da dinâmica dos fluxos de
­matéria e energia criados pela lógica dos preços num sistema de troca desigual50. Daqui
se ­depreende, desde já, que o caminho para o desastre ecológico refere-se igualmente
a princípios de circularidade produtores de entropia, estando a transferência de ­custos
ambientais para as periferias dos grandes centros do sistema-mundo assente numa
­estrutura de racionalidade económica e epistémica cuja natureza é indiferente e «cega
para a vida»51 — marcada, portanto, pelas diversas formas de cegueira moral inerentes
à condição líquida da modernidade52. Como propõe Hartmut Rosa, «within this circle
acceleration always and inevitably produces more acceleration: it becomes a self-rein‑
forcing ‘feedback system’»53. Nesta «ontologia da devastação»54 tão caracte­rística do a­ tual
estádio carcinogénico do capitalismo55, os excessos de visibilidade inerentes à acele­
ração energívora da contemporaneidade e da rede digital global são também, p ­ ortanto,
­produtores de invisibilidades alienantes. Recordo, a título de nota, que em Los Angeles,
durante o apagão que se seguiu a um tremor de terra, em 1994, os números de emer­
gência receberam inúmeras chamadas de pessoas que, vendo pela primeira vez a Via
Láctea, haviam entrado em pânico56.
Finalmente, já muito distantes da velha caverna platónica, do dualismo carte­
siano e da obsoleta noção de «representação», os imaginários do paradigma emergente
reve­lam-nos ainda o modo como também na Física teórica se criam mundos definidos
por uma condição de pura circularidade epistemológica, de que é exemplo o p­ rincípio
­antrópico participatório do físico John Wheeler, abrindo caminho para uma reflexão

48
VIVEIROS DE CASTRO, 1996.
49
ESCOBAR, 2018.
50
HORNBORG, 2001, 2011.
51
McMURTRY, 2012.
52
BAUMAN, 2005; BAUMAN & DONSKIS, 2014.
53
ROSA, 2013: 151.
54
ESCOBAR, 2018.
55
McMURTRY, 1999.
56
PINTO, 2017.

521
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

integrada sobre a condição humana, o tempo, a consciência e a luz. Nesta direção, o


paradigma das «atmosferas»57 e o conceito de «ressonância», de Hartmut Rosa58, asseve­
ram-se ­contributos essenciais para um ulterior programa de pesquisa em torno das
­circularidades, da semente à estrela e mais além.

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57
INGOLD, 2012; GRIFFERO, 2017; SUMARTOJO & PINK, 2019.
58
ROSA, 2018.

522
DA SEMENTE À ESTRELA: VARIAÇÕES SOBRE O TEMA DA CIRCULARIDADE

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524
A IDEIA DE TR ABALHO ARTESANAL NO
PENSAMENTO DE RICHARD SENNETT
TERESA VASCONCELOS SÁ*

Resumo: Este artigo parte das ideias que Richard Sennett desenvolve no seu livro The Craftsman, no qual o
autor sustenta que o trabalho artesanal se caracteriza pelo propósito de ser um «trabalho bem feito», desig‑
nando assim uma série de práticas muito mais ampla do que o trabalho manual especializado realizado por
um artesão. O artigo centra-se na definição deste trabalho artesanal, considerando, sobretudo, dois aspetos:
a «maneira de fazer» tendo em conta um conjunto de valores e práticas associadas ao trabalho do artesão
(«fazer bem», habilidade, autoridade, cooperação); e a relação estreita que o artesão mantém entre o pensa‑
mento e a ação, o projeto e a execução.
Ao definirmos as principais características do trabalho artesanal procurámos confrontá-lo com as ­maneiras
de fazer do «trabalho flexível», mostrando como uma certa «maneira de fazer», implica também uma certa
maneira de viver e ver o mundo.
Palavras-chave: Richard Sennett; artesão; trabalho artesanal; sociedade.

Abstract: This article originates from the ideas that Richard Sennett develops in his book The Craftsman,
in which the author claims that craftwork is characterized by its purpose of being «well-done work», thus
designating a much wider range of pratices than the specialized manual work performed by an artisan. The
article is centered on the definition of this craftwork considering two main aspects: the «way of making»,
considering a set of values and pratices related to the work of the craftsman (to ‘make things well’, skill,
authority, cooperation); and the close relation that the craftsman keeps between thought and action, project
and execution.
By defining the main features of craftwork we have sought to confront it with the ways of making in «flexi­ble
work», showing how a certain «way of making» involves a certain way of living and looking at the world.
Keywords: Richard Sennett; craftsman; craftwork; society.

* Doutorada em Sociologia, professora auxiliar na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, investigadora


do CIAUD.

525
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

1. COMO TRABALHA O ARTESÃO?


Tendo como pano de fundo o pensamento de Richard Sennett, sobretudo a sua
ideia de trabalho artesanal apresentada no livro The Craftsman1, analisaremos o trabalho
do artesão, tendo em conta dois aspetos: uma «maneira de fazer» que parte da relação
estreita que o artesão mantém entre o pensamento e a ação, o projeto e a execução; e um
conjunto de valores e práticas intrinsecamente associadas ao seu trabalho. É através de
um fazer lento, repetitivo, técnico e cooperativo, no qual o projetar e o fazer se misturam,
que se vai produzindo o novo objeto. Como veremos, a ideia de Sennett de trabalho
artesanal não se limita ao artesão que produz um objeto, mas a todas as situações em
que o pensamento e a ação se misturam, e que têm subjacente a preocupação de «fazer
bem», mais do que pesar as vantagens ou desvantagens que daí podem advir. Resuma‑
mos assim, algumas práticas que ao longo do tempo têm estado associadas ao trabalho
artesanal: «Fazer bem», habilidade, autoridade e cooperação.

«Fazer Bem» pelo prazer de «Fazer Bem»


Para Sennett2, o trabalho artesanal tem a ver com o desejo de realizar bem uma
tarefa sem nenhuma outra finalidade. Ao referir-se a uma tarefa, Sennett alarga o âmbito
do trabalho artesanal não só a quem produz um objeto — imagem que habitualmente
nos surge quando pensamos num artesão (carpinteiro, oleiro, etc.) —, mas a todos os que
realizam um trabalho em que o fazer e o pensar surgem unidos: maestro de ­orquestra,
programador informático, técnico de laboratório, médico, encenador de teatro, etc.
Fazer bem o seu trabalho pelo prazer de o fazer bem, contraria a lógica da socie­
dade capitalista atual, na qual o que está em causa no trabalho é a sua produtividade,
associada à rápida resolução de problemas. Esta ideia é bem descrita por Zygmunt
­Bauman quando este define o progresso económico da sociedade atual como a «possi‑
bilidade de realizar qualquer coisa com menor esforço e menor aplicação, bem como a
menor custo»3.
Mas, se a perspetiva do progresso económico relativa à organização do trabalho,
não nos satisfaz, a ideia de trabalho artesanal defendida por Sennett — «fazer bem» pelo
gosto de «fazer bem» — não deixa também de ser perigosa. O próprio autor o reconhece
ao apresentar os dilemas éticos de Robert Oppenheimer, o homem que dirigiu o labo‑
ratório que construiu a Bomba Atómica, e a ideia de «banalidade do mal» de Hannah
Arendt, a partir do organizador dos campos de extermínio nazis, Adolf Eichmann. Mas,
até mesmo em casos mais simples, como os que encontramos no trabalho da m ­ aioria

1
SENNETT, 2009.
2
SENNETT, 2009.
3
BAUMAN, 2005: 77.

526
A IDEIA DE TR ABALHO ARTESANAL NO PENSAMENTO DE RICHARD SENNETT

das profissões, esta ideia levanta-nos algumas dúvidas. O livro de Kazua Ischiguro,
Os Despojos do Dia (1991), ajuda-nos a pensar esta questão.
É um romance de uma lentidão assustadora. Não por não acontecerem c­ oisas,
­porque as coisas acontecem, mas no interior de um tempo absoluto — em que a
­profissão é a vida. O protagonista, um mordomo inglês, Mr. Stevens, conta-nos uma
história de vida, a história da sua vida, que é a sua história profissional. Mr. Stevens tem
num dado momento um patrão americano ao qual tem de se adaptar: novos comporta­
mentos, ­novas maneiras de fazer, novos horários, mas o objetivo fundamental da sua
vida e do seu trabalho mantém-se: «fazer o trabalho bem feito pelo prazer de o fazer
bem». Na sua maneira de fazer, estão presentes todos os requisitos de um artesão: habi‑
lidade, autori­dade, cooperação. O problema é que, nessa forma de trabalhar, se por um
lado há um enorme profissionalismo, por outro, há também uma aceitação pacífica do
mundo tal como existe, um desligar de tudo o que não é aquilo que se tornou a nossa
razão p ­ rincipal de viver — fazer bem o nosso trabalho. Mr. Stevens, ao longo do livro,
procura responder à pergunta: O que é um grande mordomo? «Recordo muitas horas
de agradável debate a respeito deste assunto, à volta da lareira da sala dos criados, ao fim
do dia»4.
Se cada um de nós procurasse fazer bem o seu trabalho pelo prazer de o fazer
bem, se cada um «representasse» bem o seu «papel», a sociedade seria um palco onde
tudo funcionaria perfeitamente, como as peças de um puzzle que se vão encaixando
umas nas outras. Mas o desenho final do puzzle já pré-existente nunca seria questionado.
O problema desta atitude é que, ao centrarmo-nos no trabalho, ao transformá-lo na
razão principal da nossa vida, como acontecia com Mr. Stevens, esquecemos o mundo à
nossa volta e permitimo-nos ficar indiferentes relativamente às consequências do ­nosso
trabalho, correndo assim o risco de nos tornarmos, em certos momentos históricos,
perso­nagens como Robert Oppenheimer ou Adolf Eichmann.
Sennett opõe a esse perigo dois aspetos importantes do trabalho artesanal. Um, tem
a ver com a relação muito forte que existia entre o artesão e a comunidade, pois o seu
­trabalho servia diretamente as necessidades da comunidade: «Para os primeiros ­gregos,
o ofício e a comunidade são inseparáveis»5. De facto, Hefesto, o Deus dos artesãos,
­mostra a importância dos artesãos no fabrico de ferramentas e objetos do ­quotidiano
(faca, roda, tear), que são fundamentais para o bem coletivo.
O segundo aspeto, mais difícil de explicar6, tem a ver com a relação que ­Sennett
estabelece entre a maneira de fazer do artesão e o desenvolvimento de um processo
­dialógico, que permite «a atenção e a sensibilidade perante o outro»7. Esta capacidade é

4
ISCHIGURO, 1991: 33.
5
Indra K. McEwen in SENNETT, 2009: 22.
6
Este aspeto será também referido no ponto sobre a cooperação.
7
SENNETT, 2014: 27.

527
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

desenvolvida no trabalho do artesão a partir da atenção que este necessita de ter ao outro,
neste caso o material com que trabalha, distinguindo os pontos em que pode ­facilmente
moldá-lo, e os outros, em que frente à resistência do material a melhor solução é recorrer
à força mínima. Estes dois aspetos, o sentido de comunidade e o desenvolvimento de um
processo dialógico, fazem com que o trabalho do artesão mantenha um laço que o liga
à sociedade.
Mas o que é para o artesão um trabalho bem feito? O trabalho do artesão implica
habilidade, autoridade e cooperação8.

Habilidade
O artesão necessita de um conhecimento técnico e de uma experiência profis­
sional, que só pode ser adquirida ao longo de muito tempo: «De acordo com uma
­medida c­ orrente, para produzir um mestre carpinteiro ou um músico são necessárias
dez mil horas de experiência»9. A aprendizagem de um artesão numa oficina medieval10
durava normalmente sete anos, ao fim dos quais o aprendiz apresentava a obra prima.
Se fosse aprovado, tornava-se oficial, e trabalharia entre cinco ou dez anos mais, até
poder demonstrar por meio uma obra prima superior que merecia ocupar o lugar de
­mestre. A obra prima baseava-se na imitação, remetendo para a aprendizagem como
cópia, ­enquanto a obra prima superior deveria mostrar a competência de gestão e a capa‑
cidade do artesão como futuro líder11.
No tempo de aprendizagem — longo e lento —, não se pretendia apenas que o
aluno assimilasse informações, regras ou regulamentos, mas também que adquirisse um
conjunto de habilidades complexas que à medida que se iam repetindo uma e ­outra
vez, começavam a ser praticadas sem esforço. É exatamente essa repetição, processo
­fundamental para adquirir uma «habilidade» entendida como uma prática treinada12,
que permite o aperfeiçoamento aqui e ali do gesto, da postura, do olhar, e que se c­ onverte
posteriormente num conhecimento fundamental do artesão — o conhecimento táci‑
to13. Há, neste conhecimento tácito, dois tipos de ação: uma, rotinizada, que permite
agir instintivamente, e que é fundamental na nossa vida quotidiana; a outra, relacio‑
nal, que permite uma constante interação entre o conhecimento tácito e o reflexivo.

8
SENNETT, 2009.
9
SENNETT, 2009: 20. É necessário o mesmo tempo para a aprendizagem das seguintes profissões: jogador de basket,
escritor de ficção, patinadores no gelo, grandes criminosos (Daniel Levitin, in SENNETT, 2009: 172).
10
O espaço físico (oficina e habitação) era também o espaço social (trabalho e família). O trabalho artesanal está de
tal modo associado à vida familiar que o mestre é também considerado o «pai adoptivo» do aprendiz, (SENNETT,
2009).
11
Ibid., 2009.
12
Sennett sustenta que no ensino de uma atividade (música, desporto, etc.), é fundamental pensar como se organiza
a repetição: a quantidade de vezes que se repete uma frase musical; a quantidade de vezes que se repete o serviço no
ténis (SENNETT, 2009).
13
Ibid.

528
A IDEIA DE TR ABALHO ARTESANAL NO PENSAMENTO DE RICHARD SENNETT

É a s­ imultaneidade destes dois tipos de conhecimento que leva Sennett a afirmar que a
atividade do artesão «se centra na estreita conexão entre a mão e a cabeça»14.
A aprendizagem numa oficina não partia da palavra, mas do gesto. Observar o
mestre a fazer, procurar fazer como ele, repetir os seus movimentos, e, em cada repe­
tição, melhorar, aperfeiçoar. Pierre Bourdieu, quando se questiona sobre como deve ser
ensinado o ofício de sociólogo (1992), aproxima-se desta maneira de fazer, ao defender a
importância de uma pedagogia do silêncio, que surge pela dificuldade em explicar certos
aspetos fundamentais, mas menos codificados da investigação,

O sociólogo que procura transmitir um habitus científico parece-se mais com


um treinador desportivo de alto nível do que com um professor da Sorbonne. Ele fala
pouco a partir de princípios ou de questões gerais, mas deve proceder por indicações
práticas, tal qual um treinador que exemplifica um movimento, dizendo: no seu lugar
eu faria assim…15

Sennett16 sustenta que as novas formas de organização do trabalho não têm em


conta este conhecimento tácito. Ao procurar maximizar todos os recursos e minimizar
o que são considerados desperdícios, propõe-se constantemente inovações, reformas e
­alterações nas maneiras de fazer. Esta preocupação de fazer cada vez melhor, procu­rando
eliminar os erros e criar novas soluções está de acordo com o princípio do t­ rabalho arte‑
sanal de «fazer bem». Mas o surgimento constante de alterações e reformas, não permite
nem a apropriação das antigas habilidades, nem a aquisição de novas, não permite a
constituição do pensamento tácito cuja aprendizagem requer tempo. A habilidade para
ser aprendida precisa de treino, mas a tecnologia moderna não deixa tempo para esse
treino lento e repetitivo; precisa de ver, mais do que de explicações, mas a tecnologia
moderna explica; precisa de «perder tempo», mas a tecnologia moderna quer rapidez.
Sennett sustenta, a este propósito, que, quando a cabeça e a mão se separam, o resultado
é a deterioração mental.
A racionalidade utilizada para a produção de objetos no capitalismo industrial,
­através da cadeia de montagem, que permitiu a criação da sociedade de consumo,
está ­agora a alastrar a todos os grupos profissionais: os professores universitários têm
de ­publicar um certo número de artigos por ano, cujas citações são contabilizadas; os
traba­lhadores nos call centers têm de atender um certo número de chamadas por dia;
os ­médicos têm de ver um certo número de doentes por manhã, etc. Sennett dá-nos o
exemplo da reforma do Serviço Nacional de Saúde britânico, que fez com que o trabalho
do médico passasse a ser contabilizado em função do número de doentes que trata num
14
SENNETT, 2009: 9.
15
BOURDIEU & WACQUANT, 1992: 194-195.
16
SENNETT, 2009.

529
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

determinado tempo. O resultado é que alguns médicos diagnosticam doenças falsas aos
doentes para terem tempo de os tratar17. Estas situações alertam-nos para o conflito, que
atualmente é muito evidente, entre «fazer bem alguma coisa» ou «simplesmente ­fazê-la»18.

Autoridade
Na oficina do artista do Renascimento, na oficina medieval, no laboratório cientí‑
fico moderno, a autoridade assenta, em todos os casos, num sistema de poder: o mestre
determina como se deve realizar o trabalho19.
A autoridade que emana do mestre é legitimada pelo seu «saber fazer», pelo seu
conhecimento de especialista reconhecido pelos seus pares e pela comunidade. Esta
­autoridade, que é parte integrante da organização do trabalho artesanal, implica um
quotidiano em que mestre e aprendiz se encontram «cara a cara», e em que os erros de
um são emendados pelo saber do outro. O conhecimento, como referimos anterior‑
mente, é transmitido através de uma presença física, e não de uma forma impessoal,
através de regulamentos ou mails, sem se indicar quem é o «mestre», qual o seu saber,
etc. Relativamente a estas duas maneiras de transmitir conhecimentos, Sennett afirma
que é preferível «que estes modelos estejam encarnados num ser humano em vez de
num código de prática inerte e estático»20.
No entanto, como refere Sennett21, ao descrever a oficina de Stradivarius, onde o
mestre estava sempre presente e corrigia cada pequena imperfeição do aprendiz ou do
oficial, a transmissão de conhecimentos não era fácil. E a dificuldade persiste ainda na
sociedade moderna tanto nos laboratórios científicos como nos estúdios dos artistas.
Se, por um lado, é fácil ensinar quais os melhores procedimentos para a execução de
certas tarefas, por outro, é muito difícil transmitir a capacidade para questionar novos
problemas, ou explicar como se chegou à ideia principal de uma investigação. Em todo
o caso, a questão principal não está nessa dificuldade, mas numa outra quase irresolúvel:
se a autoridade do mestre vem de um saber superior — ver o que os outros não vêem,
saber o que os outros não sabem —, como manter essa autoridade, transmitindo esse
conhecimento? Cellini disse na sua autobiografia que «os segredos da sua arte morriam
com ele»22.
A organização da oficina (como a de um laboratório, de uma orquestra, etc.)
­assenta numa organização hierárquica do trabalho, à qual os membros se submetem.
A autoridade que emana do mestre, o pai-adoptivo, implica poder e obediência.

17
SENNETT, 2009.
18
SENNETT, 2009: 46.
19
SENNETT, 2009.
20
SENNETT, 2009: 80.
21
SENNETT, 2009.
22
SENNETT, 2009: 74.

530
A IDEIA DE TR ABALHO ARTESANAL NO PENSAMENTO DE RICHARD SENNETT

O ­trabalho realizado na oficina contém segundo Sennett um paradoxo: por um lado,


o conjunto de regras existentes torna muito claro o trabalho de cada um e permite a
ajuda recíproca e­ ntre os seus membros; mas, ao mesmo tempo, verifica-se a submissão
a uma hierarquia, ao saber do mestre. Cria-se uma forma de viver, simultaneamente
coopera­tiva e passiva. Os artesãos medievais não procuravam a inovação, a mudança
no trabalho artesanal acontecia lentamente e resultava do esforço coletivo23. Segundo
­Sennett: «A oficina do artesão é o cenário no qual se desenrola o conflito moderno, e
talvez irresolúvel, entre autonomia e autoridade»24.

Cooperação
A fotografia de Frances Johnston25, que mostra seis homens a construírem uma
­escada transmite um ambiente de paz, de tranquilidade, de harmonia. O espaço é
­pequeno, nele cada trabalhador ocupa um lugar definido, os gestos são rigorosos, a
concen­tração no trabalho é enorme. Cada operário executa atentamente a sua tarefa, no
entanto, a nova escada construída surge como resultado não do somatório do trabalho
de cada um, mas como o resultado da cooperação de todos.
O trabalho do artesão, daquele que produz um objeto, implica transformar a
­matéria-prima numa outra coisa: a farinha em pão; a argila numa taça. Implica «­ moldar»
o outro, ou seja, o artesão não consegue trabalhar se não encontrar uma maneira de
­vencer as resistências do material com que trabalha. E não o consegue através da utili­
zação da força bruta, que poderia provocar a sua destruição. Tem de dialogar com a
resistência, reconhecer a sua força e fazê-la ceder aos seus objetivos.

No trabalho manual, a força cega, bruta, é contraproducente. Todos estes ingre­


dientes — cooperação com o fraco, contenção da força, libertação depois do ataque
— estão presentes no «poder brando»26.

Esta forma de trabalhar em que o material surge como o outro com o qual é neces‑
sário interagir, negociar, permite desenvolver segundo Sennett uma prática dialógica.
O artesão precisa de saber «escutar», de aprender a ouvir e a sentir o material. A ideia de
«incorporação» significa que os artesãos, ao fabricarem os objetos, adquirem um saber-­
-fazer material que se aplica à vida social — incorporam o social27: o trabalho artesanal
«proporciona uma visão interior das técnicas da experiência capazes de modelar o nosso

23
SENNETT, 2009.
24
SENNETT, 2009: 80.
25
Fig.1, in SENNETT, 2014: 86.
26
SENNETT, 2009: 171.
27
SENNETT, 2014.

531
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

trato com os outros. Tanto as dificuldades como as possibilidades de fazer bem as coisas
aplicam-se ao estabelecimento de relações humanas»28.

2. MANEIRAS DE FAZER: RELAÇÃO ESTREITA QUE O


ARTESÃO MANTÉM ENTRE PENSAMENTO-AÇÃO,
PROJETO-EXECUÇÃO
Analisaremos neste ponto, ainda que brevemente, dois aspetos relacionados com o
trabalho artesanal: o trabalho manual e o seu reconhecimento social; e a relação entre os
dois momentos de produção: projetar e executar.

2.1. Trabalho manual e o seu reconhecimento social


Sennett, numa entrevista online (2014), ao falar do trabalho artesanal, faz a ­seguinte
pergunta: Como reagiríamos se o nosso filho nos dissesse: «Quero ser canalizador»?
Para a classe média, não é esse o futuro desejável para os seus filhos. É o trabalho inte‑
lectual, ou o trabalho à secretária, o trabalho limpo — os colarinhos brancos, como lhe
chamava Wright Mills —, que dá status social. A ideia, mais ou menos consciente, subja‑
cente ao trabalho manual é a de um trabalho inferior, sujo, sem interesse — um trabalho
para indivíduos estúpidos.
Esta forma de pensar, que reflete a cultura ocidental do século XX, aproxima-se
da de Vitrúvio ao declarar: «as diversas artes compõem-se de duas coisas: artesanato e
teoria. (…) o artesanato pertence unicamente a quem está treinado (…) no trabalho;
a teoria é partilhada com todas as pessoas bem educadas»29. A ideia de Vitrúvio é a de
que o trabalho do artesão pode ser feito por qualquer pessoa que seja treinada para tal,
­trata-se de um trabalho repetitivo, sempre igual, fácil, enquanto o trabalho intelectual só
pode ser feito por um grupo restrito de indivíduos na sociedade.
Houve no entanto um período na Europa, a época das Luzes, em que i­ntelectuais
como Diderot, entre outros, defendiam a importância do trabalho útil, do ­trabalho
­manual, e reconheciam que as pessoas simples que faziam trabalhos fáceis como as
­criadas, os sapateiros, os cozinheiros, etc., tinham mais inteligência inata do que
as ­classes superiores queriam fazer crer30. Surge em França, no século XVIII (entre 1751
e 1772), a Enciclopédia de Artes e Ofícios, criada por D’Alembert e Diderot que teve
uma grande divulgação em todo o mundo ocidental31. A Enciclopédia tinha como ator
princi­pal, o artesão; como cenário, o trabalho artesanal; como meio de comunicação, as
palavras e as imagens. Todos estes elementos transmitiam uma ideia comum: valorizar

28
SENNETT, 2009: 289.
29
SENNETT, 2009: 153.
30
SENNETT, 2009.
31
Compõe-se de 35 volumes publicados entre 1751 e 1780, que se converteram num bestseller, lidos por toda a gente
desde Catarina da Rússia até os comerciantes de Nova York (SENNETT, 2009).

532
A IDEIA DE TR ABALHO ARTESANAL NO PENSAMENTO DE RICHARD SENNETT

o trabalho simples e pouco considerado, e criticar o ócio que caracterizava a existência


da elite social:

Numa reveladora ilustração, via-se uma criada trabalhando atentamente num


chapéu de mulher. A criada irradiava interesse e energia, enquanto a sua patroa
­languidez e aborrecimento. A hábil servidora e a sua aborrecida patroa constituem
uma parábola de vitalidade e decadência32.

Ao mesmo tempo que se começa a reconhecer socialmente o trabalho manual e


a profissão do artesão, inventam-se novas máquinas: os replicantes, que não põem em
causa o trabalho do artesão — o Flautista de Vaucanson, era um boneco do tamanho de
um homem que tocava flauta. Não tocava mais depressa nem melhor que um músico;
e o robô, que é já uma máquina diferente cujo objetivo não é imitar o humano, mas
­suplantá-lo. Fazer melhor e mais rápido que ele. Luis XV, em 1745, contratou V ­ aucanson
para fazer uma máquina para a fabricação da seda. Este inventou um tear que fazia
­desenhos complicados e era movido por um burro. Um tear que tornava desnecessário
o trabalho dos tecelões. Quando Vaucanson saía à rua, os tecelões lioneses tratavam-no
mal… ele mal se atrevia a sair33.
Como podiam os artesãos lutar contra estas novas máquinas? A máquina, que,
no início foi usada no trabalho artesanal e foi útil para melhorar o seu desempenho, foi
ganhando protagonismo e apropriando-se do trabalho do artesão, transformando-o em
algo repetitivo e puramente mecânico.
A sociedade capitalista do mundo ocidental construiu-se com a máquina, com a
ideia de especialização do trabalho, e com a sobrevalorização do trabalho intelectual
­sobre o trabalho manual. Ao contrário da posição de Diderot ao sustentar que a m­ áquina
devia ser usada tendo mais em conta os nossos próprios limites que as suas potenciali­
dades34, na sociedade contemporânea a utilização da máquina, foi entendida como
­solução do problema e não como parte dele. A sua utilização vai cada vez mais impor
uma rutura entre os dois momentos da produção: o projetar-pensar e o executar-fazer.

2.2. Projetar e executar: como se foram separando ao longo do tempo


Se hoje em dia nos parece clara a distinção entre estes dois momentos, projetar e
executar, sabemos que nem sempre foi assim. Apresentaremos alguns exemplos, a partir
da arquitetura, para exemplificar esta relação entre o momento criativo (pensar), e o
momento prático (fazer): a construção das catedrais medievais, ilustrada pela Catedral
de Salisbury; o plano de Roma de Sisto V; Alberti e Brunulescci, representantes de duas
32
Ibid., 74.
33
SENNETT, 2009.
34
SENNETT, 2009.

533
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

visões diferentes do trabalho do arquiteto; dois projetos de uma casa: Witgneistein, a


casa perfeita, e Loos, a casa incompleta35.

As catedrais medievais — a Catedral de Salisbury


As catedrais medievais eram construídas sem arquiteto, com a participação de
­diversos artesãos e com toda a comunidade. Estes edifícios, que relevam de uma extra­
ordinária complexidade técnica e riqueza decorativa, refletiam neles um conjunto de
valores profundamente sentidos por todos36/37. A Catedral de Salisbury foi construída ao
longo de três gerações entre 1225 e 1280. Sem nenhum arquiteto a dirigir a obra, sem
um projeto concebido — os construtores tinham apenas uma ideia geral do tamanho
final da catedral. Cada artesão retomava o trabalho do anterior, adaptando-se à obra já
realizada, mas acrescentando sempre algo novo. Deste processo resultou um edifício
surpreendente, portador de uma série de inovações em matéria de construção38.

O Papa Sisto V e o plano de Roma


O Papa Sisto V tinha elaborado um plano para a cidade de Roma, que conse‑
guiu r­ ealizar, durante o seu curto pontificado (1585-1590), com o arquiteto D
­ omenico
­Fontana. O seu plano tinha um objetivo religioso — queria ligar os sete lugares de pere­
grinação da cidade. Mas é por meio de um objeto pagão, do passado arquitetónico
da cidade, que o põe em prática: o obelisco. Tinha pouco tempo para realizar todas
as transformações que desejava, e só o conseguiu explicando as suas ideias principais
e ­deixando uma grande margem de liberdade ao trabalho do arquiteto, engenheiro,
­pedreiro, ­vidraceiro e outros artesãos.

Alberti/Brunuleschi: dois arquitetos, duas visões


Neste exemplo, encontramos claramente a diferença entre um trabalho ­intelectual
que implica a conceção do projeto, e um trabalho manual e menos considerado —
a reali­zação do mesmo. Enquanto Filippo Brunelleschi (1377-1446), representa o arqui‑
teto-artífice cujo trabalho é simultaneamente o de conceber e executar a obra — ­dorme
nas obras, controla preços e contratos, sobe aos andaimes, discute a quali­dade dos
­materiais39 —, Leon Battista Alberti (1404-1472) foi o primeiro artista da I­ dade Moder‑
na a mostrar desinteresse e ignorância perante o momento prático. Ligado à construção,

35
Estes exemplos são apresentados e analisados no livro Crafstman de Richard Sennett.
36
Ao contrário do processo seguido na construção da catedral medieval, o industrial design distingue claramente dois
momentos da produção: o do projeto e o da sua execução (DE SETA, 1984).
37
DE SETA, 1984.
38
SENNETT, 2009.
39
DE SETA, 1984.

534
A IDEIA DE TR ABALHO ARTESANAL NO PENSAMENTO DE RICHARD SENNETT

«Brunelleschi ainda é o artifex da obra medieval; Alberti já é o intelectual moderno que


cria e projeta, mas que evita a todo o custo sujar as mãos»40.

O projeto de uma casa: o perigo de tudo projetar


Comparemos a casa em Viena que Ludwig Wittgenstein, projetou para a sua irmã
(1927 a 1929), com uma outra, também em Viena, construída na mesma época, pelo
arquiteto Adolf Loos41.
Wittgenstein procura construir a casa perfeita. Tudo é pensado ao milímetro.
A execução da obra deve corresponder totalmente ao desenho e às indicações do
­projeto. O trabalho de conceção e o de execução estão completamente separados.
A casa, Villa Moller, do arquiteto Adolf Loos, construída já no final da sua carreira, segue
um p ­ rocesso completamente diferente. Parte de um projeto, que é um esboço do que a
casa p ­ oderá vir a ser, uma proposta que tem em conta as contingências, os obstáculos,
as novas ideias que podem surgir aquando da sua elaboração. Nada, ou quase nada, está
à partida ­pré-definido.
Sennett utiliza estes dois exemplos para mostrar como o bom artesanato se apro­
xima da «maneira de fazer» de Adolf Loos, na qual a conceção e a execução se ­entrelaçam
uma na outra: «Para um bom artesão é necessário evitar a perseguição implacável de um
problema até tê-lo perfeitamente detetado nos seus próprios termos, porque ao fazê-lo,
este perde o seu carácter relacional», como ocorre várias vezes na casa de Wittgenstein42.
Os quatro exemplos apresentados sobre a relação entre o projeto e a sua execução
têm subjacente duas respostas diferentes à pergunta: quem sabe como fazer?
Ao privilegiar a opção em que o projeto comanda, respondemos que são os
­peritos, os técnicos; ao privilegiar a relação em que o projeto e a execução se misturam,
­respondemos que fazer implica uma relação entre nós e os outros, onde o construído está
em relação com o vivido.

BREVE CONCLUSÃO
A partir das ideias que Richard Sennett desenvolve no seu livro The Craftsman,
procurámos neste artigo analisar alguns aspetos que caracterizam o trabalho artesanal.
Como conclusão salientamos quatro ideias que nos parecem muito relevantes ­quanto
à importância das «maneiras de fazer» do trabalho artesanal e a sua relação com a
organi­zação do trabalho na sociedade contemporânea: o trabalho artesanal não tem só
a ver com a produção de um objeto, mas sim com a realização de qualquer tarefa em
que se procure fazer o trabalho bem feito sem outra finalidade; no trabalho artesanal
o ­fazer e o pensar estão simultaneamente presentes; a diferença entre as maneiras de
40
DE SETA, 1984: 97.
41
SENNETT, 2009.
42
SENNETT, 2009: 262.

535
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

fazer do trabalho artesanal e do trabalho flexível; a importância do trabalho artesanal


para ­conseguirmos interagir e sermos solidários com os outros diferentes de nós.
Há em Sennett uma nostalgia do espírito das Luzes, quando o trabalho manual
começa a ser reconhecido como um trabalho em que a cabeça e a mão interagem juntos,
e não como um trabalho de indivíduos incapazes de pensar. Mas não se trata de uma
nostalgia que o leve a querer voltar atrás no tempo; a sua proposta é antes que retome‑
mos alguns dos princípios do trabalho artesanal defendidos pelos enciclopedistas, para
conquistarmos uma outra forma de viver na cidade: «Gostaríamos de recuperar alguma
coisa do espírito das Luzes em termos adequados à nossa época. Gostaríamos que a
habilidade compartilhada no trabalho nos ensinasse a auto-governar-nos e a relacio­
narmo-nos com outros cidadãos num terreno comum»43.

BIBLIOGRAFIA
BAUMAN, Zygmunt (2005) — Confiança e Medo na Cidade. Lisboa: Relógio D’Água.
BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loic (1992) — Réponses. Paris: Éditions du Seuil.
DE SETA, Cesare (1984) — Objecto. In Enciclopédia Einaudi, vol. 3. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da
Moeda, p. 91-114.
ISCHIGURO, Kazua (1991) — Os Despojos do Dia. Lisboa: Gradiva.
MILLS, Wright (1951) — White Colar: The American Middle Classes. Oxford University Press.
SENNETT, Richard (2009) — The Craftsman. Londres: Penguin books.
(2014) — Ensemble. Pour une étique de la coopération. Paris: Albin Michel. [Together. The Rituals,
Pleasures and politics of Cooperation, Yale University Press (2012)].
(2014) — Entrevista, Fronteiras do Pensamento. Disponível em <https://www.youtube.com/
watch?v=o7G-wXk6mHg>. [Consulta realizada em 05/03/2019].

43
SENNETT, 2009: 269.

536
COMPARTILHAR PERCURSOS:
APRENDIZAGEM COLABOR ATIVA NA
PR ÁTICA DA PESQUISA
GRAZIELE RAMOS SCHWEIG*

Resumo: O texto discute a experiência do Laboratório de Aprendizagens Colaborativas, realizado em uma


instituição de educação profissional de um bairro de periferia urbana no Sul do Brasil. Partindo da crítica ao
modelo hilemórfico de criação — muito presente na educação escolar — abriu-se espaço para a vivência da
«criatividade para frente»1. Estudantes do Ensino Médio e Superior desenvolveram investigações e interven‑
ções a partir de questões que os moviam. A metodologia foi desenvolvida colaborativamente, encontrando
na oficina um dispositivo para compartilhamento de descobertas. Como resultado, deslocou-se a ênfase
do produto final da pesquisa para a partilha de processos de problematização, ao instigar uma educação da
atenção ao acontecimento.
Palavras-chave: educação; aprendizagem pela pesquisa; aprendizagem colaborativa; oficina.

Abstract: It discusses the experience of a Collaborative Learning Lab realized in a vocational school in
an urban periphery in southern Brazil. It started from the critique of the hylomorphic model of creation
— quite present in school education — seeking to provide an experiential space of «creativity forwards»2.
­Students from high school and higher education developed researches from questions that moved them.
The methodology was drawn up collaboratively, being the workshop a device for sharing of findings.
As a result, the emphasis on finished research product was moved to the sharing of processes of problemati­
zation, inciting an education of attention to the events.
Keywords: education; research-based learning; collaborative learning; workshop.

* Professora adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Email: grazieleschweig@
ufmg.br.
1
INGOLD, 2012.
2
INGOLD, 2012.

537
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

INTRODUÇÃO
Este trabalho discute os resultados de um projeto de ensino e pesquisa que surgiu
da aposta no papel dos estudantes como autores de seus processos de aprendizagem,
enfatizando a dimensão coletiva e inventiva. Nomeado como Laboratório de Aprendi­
zagens Colaborativas (LAC), o projeto foi realizado durante o ano de 2017 no ­Campus
Restinga do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do
Sul, localizado na cidade de Porto Alegre, Brasil. Nele, estudantes do Ensino Médio e
Superior da instituição foram convidados a compartilharem e (re)descobrirem seus
desejos de aprendizagem por meio do desenvolvimento de projetos de investigação e
inter­venção, alargando as possibilidades do aprender pela pesquisa. A metodologia de
trabalho foi delineada ao longo das atividades e envolveu a participação de estudantes e
professores de diferentes disciplinas como Sociologia, Música e Letras.
Os fundamentos teóricos do projeto residem em três pilares principais. Primeira‑
mente, juntamo-nos à crítica de Tim Ingold ao modelo hilemórfico aristotélico, que se
mostra hegemônico na educação escolar. A partir de sua contribuição, compreendemos
a criatividade não como o ato de imprimir intencionalidades (formas) à matéria inerte,
mas enfatizamos os processos de criação e os fluxos3. Com isso, o processo educacional
passa a ser entendido menos como resultado da intenção de um sujeito (professor), ou
de um currículo, e mais como prática de seguir o movimento de aprendizagem. Como
segunda inspiração, recorremos às ideias de Jean Lave, para quem a educação não se
resume à transmissão de conteúdos ou aplicação de técnicas de ensino, mas c­ onstitui-se
em «modos de participar e de se tornar um participante» em práticas socialmente
­situadas4. Em terceiro lugar, somamos a ideia de «aprendizagem inventiva», desenvol‑
vida por Virgínia Kastrup5. Ao defender um distanciamento com relação ao modelo da
representação, a autora identifica o aprender como um percurso de cocriação no qual o
si e o mundo são produzidos. Essa perspectiva ajudou a abrir possibilidades para outras
formas de fazer pesquisa, indo além da «coleta de dados», improvisando experimen­
tações e intervenções.
Assim, seguimos este texto com uma breve apresentação da história do b ­ airro
­Restinga, local onde o projeto foi desenvolvido, bem como da recente implantação
do Campus do IFRS nessa localidade. A contextualização busca situar os questiona­
mentos que embasaram o surgimento da proposta do Laboratório de Aprendizagens
Colabo­rativas. Em seguida, discutimos mais detalhadamente as bases epistemológicas
que orientaram o percurso metodológico do projeto, além de descrevermos algumas
ações desenvolvidas. Por fim, indicamos alguns elementos de avaliação dos impactos do

3
INGOLD, 2012.
4
LAVE, 1996.
5
KASTRUP, 2005.

538
COMPARTILHAR PERCURSOS: APRENDIZAGEM COLABOR ATIVA NA PR ÁTICA DA PESQUISA

­ rojeto nas trajetórias de seus participantes por meio da análise de entrevistas realizadas
p
com estudantes que integraram o LAC.

CAMPUS RESTINGA DO IFRS: SITUANDO ESTE


TERRITÓRIO
O bairro Restinga está localizado em Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande
do Sul. Sua origem está diretamente vinculada a processos de «higienização» do espaço
urbano, levados a cabo pelo poder público. Desde o final do século XIX, após a abolição
da escravidão, populações negras passaram a viver em casebres instalados em bairros
centrais da cidade de Porto Alegre. A partir dos anos 1960, um projeto de modernização
urbana culminou na remoção forçada dessas comunidades. Famílias, obrigadas a deixar
suas casas, foram levadas para viver em uma região localizada a trinta quilômetros do
centro da cidade, em meio à mata — dando origem ao bairro que posteriormente se
chamaria Restinga6. Atualmente, o bairro se configura como um dos mais populosos da
cidade, contando com mais de 60 mil moradores regulares, além de outras centenas de
moradias irregulares.
Além de ter a violência e o descaso estatal em sua origem, a história da ­Restinga
­também é marcada por processos de mobilização coletiva na exigência dos direitos
que lhe foram negados. Entre os moradores do bairro é comum a ênfase nas histórias
de «luta e conquista do povo da Restinga». Frequentemente, escuta-se o relato sobre
a ­chegada dos primeiros habitantes e do quanto no início «nada havia ali»: não tinha
­energia ­elétrica, escola, serviços de saúde ou transporte público. Os moradores preci‑
saram se organizar e reivindicar — daí o entendimento de que cada equipamento ou
serviço instalado no bairro é uma «conquista da comunidade». Desse modo, essa capa­
cidade de organização andou junto à construção de uma identidade positiva e de um
sentimento de pertencimento ao território, o que tensiona os discursos da grande m ­ ídia,
que tendem a enfatizar casos de violência e aspectos da vulnerabilidade social ao se
­referirem ao bairro7.
A história da implantação do Campus Restinga do IFRS — escola onde realiza‑
mos o projeto — pode ser vista como um exemplo da mobilização coletiva dos mora­
dores. Ele é fruto da articulação de lideranças que iniciaram uma campanha pública
pela ­construção da «escola técnica da Restinga», de modo que os jovens do bairro não
precisassem se deslocar a outras regiões da cidade para terem acesso à educação profis­
sional qualificada. Em maio de 2006, foi criada uma «Comissão Pró-Implantação»,
reunindo representantes de movimentos sociais, militantes da educação, da economia
solidária e de organizações não-governamentais8. Esse movimento acabou coincidindo
6
ZAMBONI, 2009.
7
GAMALHO, 2009.
8
NUNES, 2016.

539
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

com o ­momento político nacional de incentivo à educação profissional, a qual recebia


­grande investimento de recursos por parte do Governo Federal. Em 2008, por meio da
Lei 11.892, foi estabelecida a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecno­
lógica, que cria os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia e unifica as
instituições desta natureza já existentes. O Campus Restinga é aprovado em chamada
pública e passa a integrar o IFRS, tendo como marco de início de suas atividades o ano
de 2010.
Atualmente a instituição oferta quatro cursos técnicos de nível médio (Eletrô­
nica, Informática, Lazer e Guia de Turismo), dois cursos profissionalizantes na modali­
dade Educação de Jovens e Adultos (Comércio e Agroecologia), cinco cursos de ensino
supe­rior (Licenciatura em Letras: Português e Espanhol, Análise e Desenvolvimento
de ­Sistemas, Eletrônica Industrial, Gestão Desportiva e de Lazer, Processos Gerenciais)
e um curso de pós-graduação (Especialização em Educação Profissional Integrada à
­Educação de Jovens e Adultos). Somando-se a isso, são oferecidos cursos e atividades de
extensão, além de projetos de pesquisa9.

O LABORATÓRIO DE APRENDIZAGENS COLABORATIVAS


Com uma origem diretamente ligada ao papel ativo dos sujeitos do bairro, o Campus
Restinga do IFRS surge com o peso simbólico de ser uma vitória coletiva na e­ fetivação do
direito à educação. Nesse sentido, tal contexto nos convoca como educa­dores a r­ espeito
dos modos de se fazer uma educação alinhada a esta herança, ou seja, c­ onectada com
os protagonismos presentes na Restinga. Dessa forma, na prática coti­diana da docência,
­alguns questionamentos emergiam enquanto desafios: em que ­medida a escola tradi‑
cional pode dar a permear os saberes coletivos e protagonismos presentes no território?
Como propor experiências de aprendizagem que partam de demandas dos próprios
­estudantes e não apenas de programas de ensino definidos previamente?
Com isso, delineou-se no início de 2017 a proposta de um projeto extraclasse,
aberto a estudantes de todos os cursos da instituição. Além de buscar conectar-se com as
potencialidades dos sujeitos, a proposta do Laboratório de Aprendizagens Colabora­tivas
objetivou criar um espaço para o desenvolvimento de projetos de aprendizagens não
contempladas pelo currículo escolar oficial. Também buscou estimular a cocriação e a
colaboração entre os participantes, reforçando a dimensão coletiva da aprendi­zagem e o
estímulo a parcerias internas e externas à escola. Com isso, visou inverter certa l­ógica da
pesquisa tradicional, na qual normalmente é o professor quem propõe tema e p ­ roblema
de pesquisa, sendo o estudante um simples auxiliar numa investigação que não tem
­muito de sua autoria. Do contrário, na proposta do LAC, os professores seriam os auxi‑
liares dos projetos levados a cabo pelos estudantes.

9
Informações consultadas em 15 de janeiro de 2019, no site da instituição <https://ifrs.edu.br/restinga/>.

540
COMPARTILHAR PERCURSOS: APRENDIZAGEM COLABOR ATIVA NA PR ÁTICA DA PESQUISA

Em março de 2017 foi feita a divulgação da seleção para constituição de um g­ rupo


inicial composto por três bolsistas. Como resposta à chamada, tivemos a inscrição de
trinta e sete estudantes, do Ensino Médio e Superior da instituição. Para participar da
­seleção, os interessados deveriam apresentar um texto contendo um tema ou questão
a ser transformada em projeto e desenvolvida colaborativamente no LAC. Dentre a
diversidade de temas propostos, foram selecionados projetos que envolveram: escrita
­criativa e cinema, empoderamento digital, musicalidade afro, mapeamento de expres‑
sões a­rtísticas do bairro, investigação sobre etnocentrismo e preconceito. Foi então
­constituída uma equipe básica composta por cinco professores colaboradores — das
áreas de ­Música, Sociologia e Letras — e cinco estudantes do Ensino Médio e Superior,
entre bolsistas e voluntários.

BASES TEÓRICAS E EPISTEMOLÓGICAS


De modo a subsidiar as ações do projeto, situamo-nos na crítica ao modelo hile‑
mórfico aristotélico, o qual entendemos que embasa a educação escolar tradicional. Este
modelo estabelece a união entre forma e matéria como fundamento da criação, sendo
a primeira imposta por um agente com um objetivo pré-determinado a uma matéria
passiva. Ao estabelecer currículos, conteúdos e regulações de tempo e espaço, a escola
tende a enxergar o estudante como alguém passivo a ser moldado a partir da intenciona‑
lidade pedagógica do professor. Posicionando-se na contramão do modelo hilemórfico,
o antropólogo Tim Ingold contribui para pensarmos uma «ontologia que dê primazia
aos processos de criação ao invés do produto final, e aos fluxos e transfor­mações dos
­materiais ao invés dos estados da matéria»10. Pensando a partir desta proposta, enten­
demos a necessidade de uma educação que se abra ao movimento do mundo e dos
­educandos em seus percursos de descoberta.
Também, passamos a ir além da ideia de conhecer como representar um m ­ undo
já existente. Para Ingold, o ato de descrever não deveria envolver uma d ­ iferenciação
em categorias, mas significar o mesmo que «colocar uma questão, a qual só pode
ser ­respondida por meio da observação e de um engajamento com este algo11. Nesse
­sentido, recolocam-se os próprios propósitos da pesquisa científica, para além da «coleta
de ­dados». Sua perspectiva do conhecer por meio do «fazer» soma-se a isso, na medida
em que enfatiza o caráter processual da aprendizagem, a qual se refere menos à aquisição
de representações e mais a um acompanhar desdobramentos, já que as propriedades
dos materiais não são fixas, mas continuamente emergentes12. Desse modo, na proposta
do Laboratório de Aprendizagens Colaborativas, optou-se por não se estabelecer uma

10
INGOLD, 2012: 26.
11
INGOLD, 2013.
12
INGOLD, 2013.

541
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

metodologia de trabalho fixa ou objetivos definidos. A ênfase se deu no percurso das


descobertas, sendo o papel dos professores o de acompanhar processos.
Assim, o foco das atividades não ocorreu a partir da delimitação de temáticas de
trabalho ou das disciplinas de referência dos professores. Considerando o aprender como
um processo de criação de si e do mundo, conhecer passa pela elaboração de problemas,
ultrapassando a ideia de um mundo previamente dividido em áreas do conhecimento.
Sob essa ótica, Virgínia Kastrup caracteriza a «aprendizagem inventiva» como aquela
que não se resume a resolver problemas preexistentes, muitas vezes apresentados pelo
professor. Do contrário, ela inclui experiências de problematização que não se encerram
ao encontrar uma solução, mas fazem «a cognição diferenciar-se permanentemente de
si mesma, engendrando, a partir daí, novos mundos»13. Dessa forma, essa perspectiva
propõe que os professores se desloquem do papel de condutores das atividades educa­
tivas e passem a considerar eles próprios como aprendizes, numa atenção permanente
ao plano de forças e aos devires.
Professores e estudantes, portanto, fazem parte de um coletivo de práticas de
aprendizagem. Distanciando-se de uma concepção individual e mental, consideramos,
com Lave & Wenger, que o aprender envolve tornar-se uma pessoa diferente no que diz
respeito às possibilidades permitidas pelo sistema de relações implicadas numa comu‑
nidade de práticas14. Estabelecer relações, cocriar, participar tornam-se indissociáveis
do processo de conhecer. Desse modo, como veremos, abrir espaço para que os partici­
pantes se conhecessem e criassem identificações foi fundamental para que a metodo­logia
do projeto fosse delineada, para que os subprojetos emergissem e ganhassem c­ ontornos
coletivos, indo além das propostas individuais iniciais.

DESENVOLVIMENTO DE UM «MODO DE FAZER»


Após constituída a equipe básica do LAC, reunimo-nos para discutir sobre a meto­
dologia do trabalho. Nas primeiras conversas surgiram estranhamentos por parte dos
estudantes, que esperavam receber uma lista de tarefas a serem cumpridas. De fato, a
equipe como um todo passou por momentos de ansiedade e expectativa na busca por
um ritmo próprio. Sendo assim, começamos por realizar encontros semanais com
­exercícios de autoconhecimento, compartilhamento de interesses, leituras e produções
escritas. Estes momentos foram importantes na medida em que propiciaram com que
o grupo se conhecesse melhor, delineando possibilidades de articulação e colaboração.
O exercício constante de compartilhamento e elaboração de sínteses reflexivas dos
­percursos de cada um — e do grupo — tornou-se um ponto chave para o desenvolvi‑
mento das atividades, conferindo uma dinâmica própria.

13
KASTRUP, 2005: 1282.
14
KASTRUP, 2005: 1282.

542
COMPARTILHAR PERCURSOS: APRENDIZAGEM COLABOR ATIVA NA PR ÁTICA DA PESQUISA

Nesse processo, iniciamos a realização de oficinas derivadas dos projetos de inves‑


tigação, as quais eram planejadas e executadas pelos próprios estudantes. Essas ­oficinas
eram geralmente realizadas primeiramente no pequeno grupo do LAC, em caráter
­experimental, e posteriormente ampliadas para o público mais amplo da escola e abertas
à comunidade, conforme o objetivo. Desse modo, projetos que haviam sido inicialmente
mobilizados por interesses individuais, tomavam forma a partir da colaboração entre os
participantes. Registramos a seguir quatro dessas iniciativas que emergiram no LAC:
a) Escrevedores da Liberdade: a partir de um exercício de produção de quadri‑
nhos, proposta à equipe do LAC por três estudantes do Ensino Médio, surgiu
a ideia de ampliar a experiência a outros participantes. A iniciativa ganhou o
nome de «Escrevedores da Liberdade» e proporcionou uma série de encontros
abertos a estudantes da escola e outros interessados, desenvolvendo diferentes
linguagens e formas de expressão. Coordenaram esse subprojeto os estudantes
que chegaram ao LAC mobilizados pela escrita criativa e cinema, pela arte e
pela questão do preconceito e etnocentrismo, tendo este último tema permeado
alguns dos exercícios propostos. O «Escrevedores da Liberdade» ganhou um
formato próprio a partir da contribuição dos três estudantes que se conectaram
na composição desse espaço;
b) Laboratório de Empoderamento Digital: uma estudante do ensino superior
chegou ao LAC preocupada com a dificuldade que os alunos da Educação de
Jovens e Adultos (EJA) enfrentavam para lidar com recursos de informática.
Ela havia trabalhado como monitora de informática e tinha acompanhado de
­perto alguns estudantes. A partir dessa experiência, elaborou uma metodologia
e ­materiais didáticos próprios que, segundo ela, facilitariam a aprendizagem.
Realizou, então, oficinas iniciais com os participantes do LAC, colheu sugestões,
e propôs a criação do «Laboratório de Empoderamento Digital», que ofereceu
um curso de três meses direcionado aos estudantes da EJA da escola, tendo
como ponto de partida suas principais dificuldades;
c) Conectando a Arte: outro estudante do Ensino Médio, bastante interessado
em arte e teatro, apresentou como desejo inicial realizar um mapeamento das
­expressões artísticas da Restinga. Segundo ele, havia uma série de grupos e
cole­tivos artísticos no bairro, os quais enfrentavam certa invisibilidade e pouca
­articulação. O mapeamento visava conectar esses diferentes artistas e produ­tores
da Restinga, fortalecendo o vínculo entre seus trabalhos e o território. Como
ponto de partida, o estudante propôs uma atividade em escala menor, na ­própria
escola, a partir da identificação e conexão de colegas que produziam algum tipo
de arte. Com isso, elaborou uma oficina na qual cada estudante ­ensinaria o que
sabia a um outro colega, com o objetivo de criarem performances a partir de
poemas produzidos por colegas e professores da escola. Participaram dessa

543
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

a­ tividade mais de quarenta pessoas, que produziram sete performances, as quais


mesclaram música, dança, teatro, poesia e pintura;
d) Oficinas de Cinema e Produção Audiovisual: o interesse pela linguagem audio‑
visual, e a vontade de produzir as próprias narrativas, era comum não só entre
os participantes do LAC, mas também com outros estudantes da escola. Além
disso, a equipe entendia que o domínio das ferramentas do audiovisual poderia
auxiliar os estudantes em seus diferentes projetos. Assim, a partir da criação
de uma parceria externa com a LORA — Curadoria de Cinema Independente,
foram realizadas oficinas abertas à comunidade, sobre os seguintes aspectos da
produção audiovisual: roteiro e direção, direção de fotografia, direção de arte,
som e montagem, direção de produção e produção executiva.

LAC — UM ANO DEPOIS


A metodologia de trabalho do LAC e os subprojetos que surgiram ao longo de
2017 deram consistência à aposta no protagonismo dos estudantes quanto à realização
de seus próprios percursos, com suporte coletivo. De modo a refletir sobre os ­impactos
do ­projeto nas trajetórias dos estudantes, foram realizadas entrevistas com alguns
parti­cipantes do LAC. Tivemos como objetivo compreender de que forma, em suas
percep­ções, as aprendizagens e os modos de fazer desenvolvidos no projeto permeiam
seus cotidianos, um ano depois de encerradas as atividades. Selecionamos trechos de
­depoimentos de dois estudantes, que sintetizam alguns elementos para reflexão. Ambos
cursaram o último ano do Ensino Médio Técnico em 2018, tendo as entrevistas sido
realizadas em setembro daquele ano.
Endrius, 18 anos, ressalta as aprendizagens oriundas do trabalho coletivo realizado
no projeto:

O LAC entendia as individualidades e as singularidades de cada pessoa e conse-


guia trabalhar essas diferenças no coletivo. Para mim foi interessante porque pegava
essas individualidades e fazia com que elas conversassem com a minha. […] Também
aprendi a ver o professor não como uma figura que está acima de mim, mas ao meu
lado e que nós podemos trabalhar juntos. E isso também aconteceu com o pessoal do
Ensino Superior. Para mim eles eram sérios, não podiam socializar. E foi exatamente
o contrário disso. Vi que eles eram tão inquietos quanto eu que sou do Ensino Médio.
[…] Outra coisa que aprendi foi a não monopolizar. Antes eu sempre monopolizava
as coisas. Eu acabava fazendo tudo por todos, quando os outros estavam desinteres-
sados. Mas foi a partir do LAC que eu aprendi que todo mundo tem a contribuir para
o coletivo. Hoje eu trabalho assim: eu trabalho para que todo mundo traga alguma
coisa sua, senão não faz sentido.

544
COMPARTILHAR PERCURSOS: APRENDIZAGEM COLABOR ATIVA NA PR ÁTICA DA PESQUISA

Seu relato remete à percepção de que o aprender é intrínseco aos modos de parti‑
cipar — ao estabelecimento de vínculos e relações. Ele demonstra ter desenvolvido uma
sensibilidade para propor práticas que levam em conta o desenrolar da produção de
sentidos — individuais e coletivos — e não apenas o sentido pedagógico dado por um
plano anterior. Nesse movimento, a fala do estudante também reflete o deslocamento
operado com relação ao papel dos professores, bem como a desmistificação do lugar
dos estudantes do Ensino Superior diante do Ensino Médio, borrando hierarquias de
saber pré-estabelecidas. Endrius complementa, indicando outras aproximações com a
­dimensão processual e inesperada da criação:

Aprendi também que estar perdido, ter dúvidas, não se achar é supernormal.
É só se permitir criar, que a gente acaba descobrindo que o ser humano é muito
­criativo. (…) Também aprendi que minha ideia não é só uma ideiazinha, um proje-
tinho, mas que tudo pode ser ampliado, dependendo do ponto de partida e onde vou
desenvolver.

Por sua vez, Geovana, 18 anos, identifica continuidades entre as práticas desenvol‑
vidas no projeto e suas atividades atuais, em distintos âmbitos. Nesse sentido, traz a ideia
de que o LAC não se encerrou, mas continua reverberando:

Eu consegui organizar melhor as coisas, conversar melhor em grupo e isso se


tornou um ponto mais que positivo. Eu não acho que ele tenha tido um fim para
mim, porque o LAC se fez presente na minha vida em diversos aspectos. Exemplos:
meu projeto final, diversas pesquisas que tive que efetuar depois, como amadurecer
questões minhas e de outras pessoas e de outros lugares. Ele não teve fim e toda vez
que paro para pensar ele está ali, numa mini influência.

Em específico, a estudante relaciona sua participação no LAC à execução de sua


proposta de trabalho de conclusão do curso Técnico em Eletrônica, evidenciando o
­impacto da prática da «invenção de problemas», explorada em diversos momentos ao
longo das atividades do LAC:

Meu projeto final é um mapa tátil com descrição de voz para deficientes visuais
desenvolverem o sentido do tato e da audição, abordando as colônias africanas e a
geografia de Porto Alegre. No LAC tinha toda a questão de projetos, de elaborá-los,
etc. Então ele me ajudou muito em perceber uma falha social (a ausência da história
negra de Porto Alegre e o ensino de matérias básicas para pessoas com algum tipo
de necessidade específica) onde um projeto poderia ser colocado para resolver este
­problema. O LAC desenvolveu esta visão em mim.

545
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Assim, sem ter o objetivo de apresentar elementos conclusivos sobre o projeto, as


reflexões de ambos os estudantes apresentam pistas sobre o impacto que atividades como
as desenvolvidas no LAC podem resultar — ou seja, práticas que proporcionem espaços
de «criatividade para frente»15. Temos como hipótese que o exercício de sustentar um
percurso sem finalidade previamente definida — propiciado pelo projeto — caminhou
na direção de uma «educação da atenção»16 aos processos e fluxos, um descentramento
da noção de sujeito racional focado em sua «intenção». Endrius passou a assumir uma
predisposição de maior composição com os outros; Geovana identificou elementos de
sua realidade aparentemente distintos e reuniu-os na criação e no engajamento com
uma problemática. Dessa forma, as percepções dos estudantes evidenciam movimentos
de consulta ao mundo e abertura ao «acontecimento»17, em contraposição à ideia de
uma realidade fixa ou já dada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em um percurso de pouco menos de um ano, o Laboratório de Aprendizagens
Colaborativas serviu como uma experiência piloto, que deixou algumas sementes.
Neste caminho, o projeto transcendeu fronteiras disciplinares e barreiras entre Ensino
­Médio e Superior, além de ter retirado a centralidade do professor como responsável por
­conduzir o processo de aprendizagem. Em vários sentidos, foram experimentadas possi‑
bilidades de ruptura com o modelo de ensino e pesquisa tradicional — o qual se orienta
a partir de uma questão concebida previamente pelo professor, possuindo o estudante
uma função subordinada (ou auxiliar) na investigação. Primeiramente, inverteu-se esta
lógica ao instigar os estudantes a desenvolverem suas próprias questões, exercitando a
«invenção» — e não apenas a resolução de problemas18. Em segundo lugar, o trabalho
coletivo e colaborativo permitiu o contínuo compartilhar de percursos de investigação,
o que transformou os questionamentos iniciais, fazendo com que trajetos individuais
pudessem se encontrar e compor novos movimentos.
Assim, no LAC, o foco se deslocou do produto acabado da pesquisa para a partilha
de processos de descobertas, hesitações, redefinições e abertura ao improviso. Deslo­
cou-se a ênfase das estratégias de transmissão de conteúdos já definidos para o acompa‑
nhamento de processos de desenvolvimento, dando aos estudantes acesso às práticas de
produção de conhecimento por meio de ferramentas de pesquisa e intervenção. Desse
modo, ao invés de apresentar seus resultados na forma de dados descritivos de uma
reali­dade, o LAC produziu subprojectos nos quais os estudantes puderam se exercitar
como autores, agindo em respostas aos questionamentos que eles mesmos se ­engajaram

15
INGOLD, 2012.
16
INGOLD, 2010.
17
DELEUZE, 2003.
18
KASTRUP, 2005.

546
COMPARTILHAR PERCURSOS: APRENDIZAGEM COLABOR ATIVA NA PR ÁTICA DA PESQUISA

na formulação. Nesse sentido, a experiência do LAC, ao se abrir aos protagonismos


­presentes no território — e que atravessaram a prática docente — buscou reinventar a
própria escola.

BIBLIOGRAFIA
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GAMALHO, Nola Patrícia (2009) — A Produção da periferia: das representações do espaço ao espaço de
­representação no Bairro Restinga – Porto Alegre/RS. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio
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NUNES, Sula Cristina Teixeira (2016) — O perfil dos estudantes do curso Técnico em Recursos Humanos do
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ZAMBONI, Vanessa (2009) — Construção social do espaço, identidades e territórios em processos de remoção:
o caso do bairro Restinga – Porto Alegre/RS. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Dissertação de Mestrado em Planejamento Urbano e Regional.

547
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

548
WAYS OF NOT MAKING ANYTHING:
A CRITICAL POINT OF VIEW CONSIDERING
SINGULARITY
PAULO ALEXANDRE E CASTRO*

Abstract: In the generic notion of «ways of doing» (synthesized in the French expression as savoir-faire)
is, as we all know, implied the cultural conception of a world made by humans, as thought by anthropo­
logy, sociology or phenomenology. In such conception, it is implicated two fundamental notions (which are
­interconnected) and from which rises the world as a whole: human action and the transmission of knowl‑
edge (whether by cultural tradition, by the colleges or the general media). However, the quick development
of autonomous artificial intelligence became an uncanny possibility for this human world, since it seems to
lead to the worst case scenario and, for the second time, to the threat (the first would have been with the
atomic bomb) of the extinction of the human species. Thus, starting from what we can consider the last great
invention, and therefore for this scenario described as singularity, we will try to rethink the essence of the
ways of making the human world, and asking, therefore, if in the heart of this essence some solution will be
able to be found.
Keywords: human world; cyberculture; singularity.

Resumo: Na noção genérica de «modos de fazer» (sintetizada na expressão francesa de savoir-faire) está
­implícita, como se sabe, a concepção cultural de um mundo feito por humanos, tal como é pensada pela
antropologia, pela sociologia ou pela fenomenologia. Nessa conceção estão implicadas duas noções funda­
mentais (que estão por sua vez interconectadas) a partir das quais surge o mundo como um todo: da ­ação
humana e da transmissão de conhecimento (quer seja pela tradição cultural, pelos meios académicos
ou ­pelos media). Contudo, o rápido desenvolvimento da Inteligência Artificial autónoma torna-se uma
possi­bilidade estranhamente familiar para este mundo humano, uma vez que parece conduzir ao pior dos
­cenários e pela segunda vez, à ameaça (o primeiro teria sido com a bomba atómica) da extinção da espécie
humana. Assim, partindo do que podemos considerar como a última grande invenção e, portanto, para esse

* Instituto de Estudos Filosóficos — Universidade de Coimbra. Email: paecastro@gmail.com.

549
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

cenário descrito como singularidade, procuraremos repensar a essência desse fazer do mundo humano, e
por isso, perguntar se no coração dessa essência poderá residir alguma solução.
Palavras-chave: mundo humano; cibercultura; singularidade.

In the beginning, it was the verb and the verb was «done». And it was also «to do».
The verb had many forms and it assumed the entangled essences of the human world:
creation, invention, transformation, transmutation. To create, to imagine, to make it
happen, that would gradually become the wisdom of knowing exactly how and what
to do, that would define much of what would be the destiny of man. In fact, that would
even define the very essence of (what does it mean) being human: the achievement of
wisdom and the way of doing that could be, somehow, transmitted to others. That is
in fact what art was all about, the way of knowing how to do with téchne. One major
question should be putted: what happen between those initial ideas (the early stages
of human kind) and what is our reality today? Certainty there are many theories and
many arguments can be expressed to tell the story — the story of evolution, the story
of civilization, the story of progress — but maybe one can just recall of something that
is (somehow) self-evident: progress has never been so accelerated as in the last century
and specially in the last three/four decades. As we all know, ways of doing something
start changing with industrial revolution but it was in the early twentieth century that
becomes clearer the impact and feelings about it. If we regress for only a few decades we
can see that most of the craft or arts that demanded accumulated knowledge, such as
cobbler, blacksmith, carpenter, etc., are practically lost.
Nowadays, the scenario it is even worst. Everything is produced according
to ­computer programs and robot’s machinery and even those who still need human
­presence, are reducing the participation to mere spectators of panels. So, from cars to
smartphone’s, from education to jobs, everything changed (and continuous to change).
Modern jobs are now quite different from three decades ago. And this brings new
­challenges, even to what it means to be human in a less human world. Maybe cyber
culture can provide a few answers.
Things are rapidly and technologically evolving, and with it, changing our own
perception of time and space (what we may call the alteration of neuronal structures)
and therefore, changing the way we feel and think about life itself. It seems clear that
one can see the quick development of technology and specially in the field of artificial
intelligence and the implications that this will produce (because it is already producing)
in our systems, that is in the social, economic and political organization, in changing the
environment and natural resources (for instance, the production of lithium batteries is
not only changing our own habitat and of several other species, but also creating new
forms of exploitation of work or even slavery).

550
WAYS OF NOT MAKING ANYTHING: A CRITICAL POINT OF VIEW CONSIDERING SINGULARITY

As Baumann would say, we live today in a kind of liquid modernity in which, the
spectacular society born in the neoliberal model of hyper consumption and pseudo-
-hedonistic illusion1 led to an unprecedented and vertiginous way of life, that is, led to
a ­certain technologization of life, our life, if you prefer, led into the mechanization of
the feelings and thoughts, to the simultaneity speed of everything in all2. Daily life is
­managed between work and home, and leisure time is conditioned, ironically, to seek to
do nothing. This has led to social ties had become diluted and different kinds of commu­
nication weakened (which is most cases led to increase the social feeling of insecurity
and, in most cases, of loneliness), which is also an interesting paradox of modern times:
never men could be so close to each other and never felt so lonely. Loneliness and not
knowing what to do, become a paradigm of our times. Take, for instance, how everything
seems to escape in front of your eyes. Take, for instance, the way in which we incorporate
in our daily lives the artificial intelligence, all those algorithms, in our credit card, in our
computer, in our Smartphone, in our GPS, in the way we drive, etc., changing the way
we could think and act. Like Yuval Harari points out, the more scientists understand the
way humans make decisions, the greater the temptation to resort to algorithms, and thus
to reprogram that human decision and behavior, making Big Data more reliable than
human feelings3.
With these new realities come new forms of living and new pathologies, such as
the internet addiction4. The strange obligation of continuous online presence that the
social network encourages to do, as if it was a form of affirmation of existence, replac‑
ing the omnipresence of (an absent) God, create new challenges of what it means to be
modern, of what it means to be human in a virtual world. But it is not only that. In 1997,
George Steiner was already aware of the upcoming revolution, when he wrote: «Silences,
the art of concentration and memorization, the luxury of the time necessary for great
reading, are already greatly compromised5. Strange neuroses become more present in
everyday life as that of the internet addiction. Nicholas Carr is clear when he says that
«the internet may well be the most powerful technology of mental change»6. In fact,
many studies show that intensive use of the internet has neurological consequences7. Put
it in d
­ ifferent words, people «know» the way to information but doesn’t know the infor‑
mation which means to «know» nothing. The author points out the following example:
how hypermedia (using hypertexts with multimedia) limits us more than it stimulates us

1
BAUDRILLARD, 1991; DEBORD, 1971; LIPOVETSKY 2007, 2011.
2
EAGLETON, 1998; VIRILIO, 2000.
3
HARARI, 2018: 79.
4
CARR, 2012.
5
STEINER, 1997.
6
CARR, 2012: 146.
7
SMALL & VORGAN, 2008.

551
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

to learn (according to several studies in the area8: «the division of attention motivated by
­multimedia requires the maximum of our cognitive skills, weakening our learning and
our understanding»9.
So, if this is already a dramatic scenario for our society, how is changing and how
will it change with the fast development of Artificial Intelligence or even worst, with
the possibility of dystopian scenario such as the Singularity? There are different ways of
­providing an answer, but first let us look to is call singularity and what can be the dysto‑
pian scenario for a near future (as some authors have diagnosed).
As it is known, Raymond Kurzweil10 suggested the brilliant notion of «Singularity»
to refer to the point at which artificial intelligence has surpassed human intelligence,
and Nick Bostrom11 poses the possibility of this superintelligence to escape human
control. We must not think that this is science fiction. The well-known «brain emulation»
hypothesis puts the hypothesis of mind-building scenario as real.
We see that the characteristic attributed for centuries to human beings — intel‑
ligence —, came to be attributed very easily to any instrument. So it is legitimate to
conceive the appearance of an «artificial consciousness» as one might think of «artificial
life», or even the possibility of this vocabulary disappear, since terms like artificial, life,
mind can become other «things», can assume different meanings in a near future, that
we cannot conceive now (it is possible that we do not have cognitive abilities to conceive
such concepts).
So we can imagine an optimistic scenario, a scenario where a perfect world exists,
where there are no wars, racism, sorrows or diseases, and in which humans do not need
to use their brains or minds, like we find in different science fiction movies. So, taking
this optimistic scenario that is a world where an Artificial Intelligence Entity would serve
humankind, one would have a world full of androids but as we could guess, there will
be no place for artisans. One can argue that this is not a necessary condition, since they
are free from obligations and so they could dedicate their free time to create (produc‑
ing films, paintings, sculptures, poems, etc.). But we must recall that humans no longer
need to use their abilities (and so, their cognitive and intellectual capacities, and even as
we can see in the movie The Giver, the absence of feelings). This means that everything
will be planed according to what that Entity provided of Artificial Intelligence consider
impor­tant to develop and that all human activities would be reduced to essential func‑
tions, and therefore, reducing brain/mind activity.
There is, however, another possibility which is the dramatic scenario of «Singu­
larity» where humans can become an inferior species, can become slaves of that A ­ rtificial

8
DESTEFANO & LEFEVRE, 2007; ROCKWELL & SINGLETON, 2007.
9
CARR, 2012: 162; see also HEMBROOKE, 2003.
10
KURZWEIL, 2006.
11
BOSTROM, 2014.

552
WAYS OF NOT MAKING ANYTHING: A CRITICAL POINT OF VIEW CONSIDERING SINGULARITY

Intelligence Entity or even disappear. What is curious — and we think that this as not
yet been thought —, is that in such a scenario, humans would return to those ways of
doing, to that old wisdom of crafting, of téchne. When thinking about ways of survival
­humankind proves to be alert and inventive. It is natural to ask: have these scenarios
some plausibility, can they be admitted? Or in other words: have these scenarios some
plausibility, can they be admitted? Well, they can. So, what can be done to save us from
those kinds of scenarios? Well, one possible way is to continue with the educational
programs and preserving traditional ways of doing things, taking the advantage of tech‑
nology, to spread by all social networks those skills and abilities. Another way is the
demand to move forward with the construction of a friendly artificial intelligence, as
suggested by Armstrong12 and Bostrom13, among many others. This could be fundamen‑
tal to save us from ourselves and from our ambitions of a brave new world. Humankind
has the duty to preserve all the things that came to be considered as part of the human
world, even if some of those things are just ways of not doing anything.

REFERENCES
ARMSTRONG, S. (2014) — Smarter Than Us. The rise of machine intelligence. MIRI, Berkeley.
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12
ARMSTRONG, 2014.
13
BOSTROM, 2014.

553
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

554
RESPONSABILIDADE RELACIONAL E A
CONSTITUIÇÃO DE UMA ÉTICA RELACIONAL
DO CUIDADO NO PENSAMENTO BIOÉTICO
STELLA ZITA DE AZEVEDO*

Resumo: Ultrapassando a ideia de que a Bioética é apenas corte epistémico do conhecimento, propõe-se
uma reflexão centrada na inseparabilidade dos problemas bioéticos de problemas antropológicos funda‑
mentais, como os da finitude e da vulnerabilidade. O conceito existencial de «fim» contém mais do que
o conceito epistemológico de «limite», razão pela qual a compreensão da finitude não pode ser extraída
dos saberes «positivos» sobre o corpo, nem da análise do valor epistemológico cognitivo do corpo. Essa
­compreensão precede toda a biologia e ontologia da vida.
Existência, facticidade, perda, caracterizam a finitude, e são constitutivos dos conceitos existenciais de
saúde, contingência, doença, morte, sofrimento, e de responsabilidade relacional. Rejeita-se, portanto, a
­redução da bioética ao lugar de encruzilhadas de paradigmas logocráticos, denunciando-se o acantona‑
mento do debate bioético contemporâneo a uma simplificação de prós e de contras dominante no d ­ iscurso
anglosaxónico. Ao contrário da instrumentalização biotecnológica nas sucessivas reconfigurações dos
­modelos pós-humano, inumano e transumano, com pretensões aprioristas e universais absolutos, a Bio­
ética necessita de uma viragem quântica. Propõe-se que esta se venha a situar num novo modo de pensar a
diferencialidade corpórea, os problemas de saúde pública e ambientais, a imortalidade, para além do saber
epistémico e da desvalorização do sofrimento enquanto conhecimento encarnado, sob o olhar de uma Bio‑
ética da Finitude.
Palavras-chave: vulnerabilidade; boética da finitude; responsabilidade relacional; ética relacional do
cuidado.

Abstract: Going beyond the idea that Bioethics is just an epistemic cut of knowledge, it is proposed a reflec‑
tion centered on the inseparability of the bioethical problems of fundamental anthropological problems.
It is because the existential concept of «end» contains more than the epistemological concept of «limit», the
understanding of finitude cannot be extracted from the «positive» knowledge about the body, nor from the

* Instituto de Bioética — Universidade Católica Portuguesa.

555
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

analysis of the epistemological-cognitive value of the body. This understanding precedes all the biology and
ontology of life: existence, facticity, loss, characterize finitude, and are constitutive of existential concepts
of health, contingency, illness, death, suffering, relational responsibility. It is therefore rejected to reduce
bioethics to the place of crossroads of logocratic paradigms. It is therefore rejected to reduce bioethics to the
place of crossroads of logo paradigms, denouncing the cantonment of the contemporary bioethical debate
to a prolonged simplification of pros and cons in the Anglo-Saxon discourse. Unlike the biotechnological
instrumentalization in the successive reconfigurations of the posthuman, inhuman and transhuman, with
absolute a priori and universal pretensions, Bioethics needs a quantum leap. It is proposed that this situation
should be envisioned according to a new way of thinking the corporeal differentiality, the problems of public
and environmental health, and immortality, beyond the sheer constrains of epistemic knowledge and the
devaluation of suffering as incarnate knowledge, under the seeing of a Bioethics of Finitude.
Keywords: vulnerability; bioethics of finitude; relational responsibility; relational ethics of care.

I. O HORIZONTE ÉTICO DA BIOÉTICA: DESAFIOS E DILEMAS


O termo «Bioética» foi utilizado pela primeira vez pelo pastor protestante a­ lemão
Fritz Jahr1 no editorial da revista Kosmos, onde reflete sobre o impacto dos ­modelos
­positivistas e biologistas do século XIX no estudo do ser humano. Na década de 70,
o uso termo pretende deslocar a discussão acerca dos novos problemas impostos pelo
desenvolvimento tecnológico para um caminho pautado pelo humanismo, supe­rando a
­dicotomia entre o método explicativo-experimental científico e o método compreen­sivo-­
-inter­pretativo ético-filosófico. A biossegurança, a edição genética em seres h ­ umanos,
para além das tradicionais controvérsias morais sobre o aborto (IGV) e a eutanásia,
­requeriam «novas» abordagens e respostas da parte de uma ciência transdisciplinar e
dinâmica por definição. Nesta década, o neologismo foi proposto pelo médico oncolo‑
gista Van Rensselaer Potter2 tendo como objetivo articular o conhecimento biológico e
os valores humanos.
Um ano depois, Hellegers, ao criar o Kennedy Center for Bioethics, falará de ­Bioética
como uma nova ética médica. A publicação, em 1978, de Enciclopédia de Bioética d ­ efine-a
como estudo sistemático das dimensões morais — incluindo a visão moral, as decisões,
os comportamentos e as políticas — no campo das ciências da vida e dos cuidados de
saúde, perspetivados interdisciplinarmente à luz dos valores e princípios morais. Foram,
por conseguinte, os filósofos do Instituto Kennedy que tentaram sistematizar a Bioética,
criando um conjunto de processos bioéticos destinados a serem aplicados a diferentes
casos e, acima de tudo, que fossem úteis para a urgência da decisão do «aqui e agora»,
nos contextos clínicos e hospitalares.
O primeiro trabalho bioético que sistematizou esses princípios foi o de ­Beauchamp
e Childress, Principles of Biomedical Ethics, publicado em 1977, no qual os autores
­tentaram articular quatro princípios que constituíram aquilo que, posteriormente, os

1
JAHR, 1927.
2
POTTER, 1971.

556
RESPONSABILIDADE RELACIONAL E A CONSTITUIÇÃO DE UMA ÉTICA RELACIONAL
DO CUIDADO NO PENSAMENTO BIOÉTICO

seus críticos chamaram de «o mantra de Georgetown»: autonomia, não maleficência,


beneficência e justiça. Tais princípios tornar-se-iam uma ferramenta operacional para a
avaliação e decisão dos dilemas éticos decorrentes de «casos», outro conceito importado
da ciência jurídica e com uma enorme capacidade de reduzir a ética a um tipo de técnica
de resolução de conflitos binários.
Herdeira deste pensamento, a matriz bioética é ainda hoje essencialmente princi­
pialista na sua abordagem padrão dos problemas bioéticos. Os princípios bioéticos
­postulados por Beauchamp e Childress3, além de pretenderem ser guias eficazes para a
intervenção da ética na medicina, têm a pretensão de articular uma totalidade ­coerente,
na qual cada um deles tem o mesmo peso no momento da consideração do caso espe‑
cífico, ainda que não escape aos autores a dificuldade da sua conflitualidade intrínse‑
ca. Face à intenção explícita dos dois autores de não darem proeminência a nenhum
dos princípios isoladamente, uma das críticas mais persistentes a esta matriz tem sido
a ­incapacidade do principialismo em articular estratégias de decisão entre princípios
conflituais, aquando da decisão aplicada a variados casos.
Apresentando os seus princípios como prima facie vinculadores e não hierarquica‑
mente organizados, Beauchamp e Childress procuram a sua operacionalidade ­deixando
aberta a possibilidade de um «pluralismo moral». Daí que Wolpe4 tenha assinalado que
essa aspiração é suficientemente problemática, pelo que aqueles princípios abstratos
tendem a ser orientações operativas muito pobres para os dilemas micro-morais que a
medicina enfrenta na sua prática diária.
A prática terapêutica quotidiana não enfrenta o tipo de dilema para o qual os g­ randes
princípios bioéticos parecem ter sido pensados; ela não é constituída por casos excecio‑
nais. Além do mais, apesar de Beauchamp e Childress5 terem insistido na não hierarqui‑
zação dos princípios, a biomedicina norte-americana discrimina-os e ­hierarquiza-os: a
autonomia tornou-se o princípio mais poderoso da Bioética norte-americana.
A autonomia do paciente chegou inclusive a ser o princípio «por defeito» quando
os restantes princípios conflituam entre si. A consistência epistemológica da Bioética,
fundamentada em investigações permanentes, levou vários autores a propô-la como
paradigma científico. Essa natureza paradigmática residiria no facto de que a Bioética
«[ser] um sistema de argumentação moral com quatro níveis de justificação (­teorias,
princípios, regras e casos ou juízos particulares), aplicado na resolução de conflitos
­edilemas morais da experiência clínica»6.
À Bioética tem sido pedido que «reaja aos desenvolvimentos científicos e às poten­
cialidades técnicas que os possibilitam ou que possibilitam o conhecimento, quando se

3
BEAUCHAMP & CHILDRESS, 2009.
4
WOLPE, 1998.
5
BEAUCHAMP & CHILDRESS, 2009.
6
MAINETTI, 1991: 35.

557
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

vislumbra tratar-se de possibilidades reais, exequíveis»7. A crítica epistémica e intrin‑


secamente interessada de que os Comités de Ética seriam «uma espécie de travão ao
­conhecimento científico ou ao seu progresso»8. Reside uma sobreposição e confusão
entre p­ rogresso e evolução. A ideia de progresso segue um pensamento de natureza calcu­
latória, de natureza organizacional ou tridimensional (técnica, económica, bioindus‑
trial). A ideia de evolução é de natureza qualitativa (o ser e os seus modos, em termos
espinosistas), de natureza autoorganizacional ou poiética, baseando-se no ­movimento
(temporalidade) de superação dialética da consciência relativamente ao seu ethos
(dialó­gica, plural). Não obstante, os avanços tecnocientíficos e biotecnológicos das
­últimas ­décadas não param de suscitar perplexidade em determinadas situações que
se ­apresentam como fronteira e encruzilhadas que tocam os conceitos comuns sobre o
valor da vida e do humano, de que resultam neologismos como os de vulnerabilidade
cyborg9, de singularidade10.
Genericamente, a Bioética trilhou o mesmo caminho das éticas de inspiração
aristo­télica: a busca de soluções moralmente aceitáveis que possam ser transfor­madas em
critérios de ação para situações semelhantes, permitindo a constituição de um ­quadro
jurídico-legal regulador de litígios. A influência kantiana e liberal norteia até hoje o
modo de compreensão do agente moral, do paciente moral e da própria moralidade,
delimitando as fronteiras desta enquanto comunidade moral, excluindo do c­ ampo das
suas preocupações os restantes animais e a natureza, as obrigações e exigências m ­ orais
que devemos uns aos outros. A figura do sujeito autónomo, o reconhecimento da nossa
igualdade e do direito de realização da nossa própria conceção do bem, além de terem
invadido todo o espaço moral, são claramente insuficientes no campo de reflexão sobre
as questões morais11. As relações assimétricas entre pessoas dependentes e não autó‑
nomas foram sempre invisíveis no campo epistémico, logo afastadas das preocupações
morais: é a «posse das capacidades cognitivas que determina o valor do homem»12.
A rigorosidade da deontologia kantiana está hoje dissolvida na transcendentali­dade
dos aspetos processuais do consenso linguístico e formal. Não há nenhuma referência a
um critério transubjetivo do bem e do mal, já que toda a problematização se confina à
definição consensual. Por outro lado, existem princípios bioéticos que conflituam entre
si. A título de exemplo, o princípio bioético da autonomia, segundo o qual a pessoa é o
valor supremo, não se articula com o princípio da beneficência, cujo requisito de maxi‑
mização do benefício global instrumentaliza em certa medida a pessoa. Os princípios

7
MENDONÇA, 2010: 36.
8
MENDONÇA, 2010: 36.
9
COECKELBERGH, 2013.
10
KURZWEIL, 2005.
11
HELD, 2006.
12
CALLAHAN, 2000: 117.

558
RESPONSABILIDADE RELACIONAL E A CONSTITUIÇÃO DE UMA ÉTICA RELACIONAL
DO CUIDADO NO PENSAMENTO BIOÉTICO

são eles próprios objetos de negociação e de consenso quanto ao seu alcance. Weber13
já tinha assinalado que os legisladores de hoje são «políticos profissionais», pessoas que
vivem não só para a política como também da política. Assim, com alguma frequência
a adoção de uma lei é acompanhada de uma ordem eleitoralista, e não de uma ordem
ética ou científica. A estas dificuldades junta-se o da eticidade da Bioética. Na procura de
soluções éticas, a ética transmuta-se «crisalidamente» em hermenêutica jurídica, apesar
das diferenças entre ética e direito.
A perfeição e a virtude moral não podem ser juridicamente exigíveis. A ética
­move-se no e pelo ethos da ação e da sua temporalidade; é ecuménica, enquanto o direito
se move nos limites jurídico-legais de natureza situacional e contextual. Inspirando-se
neste modo de interpretar e aplicar a lei e a jurisprudência, a Bioética perde a articulação
com o referente moral da lei, uma vez que se esgota no horizonte das questões procedi‑
mentais ou na garantia de defesa de direitos.
Uma ética bem fundamentada Pincoffs14 proporciona o desenvolvimento da
sensi­bilidade moral e desencoraja as condições de formação de dilemas morais, que,
em ­muitos casos, dependem diretamente da inépcia moral ou de uma má formação
do ­caráter. Se os valores pessoais e as próprias conceções sobre si mesmo devem ser
­excluídos do raciocínio moral, por serem meramente pessoais, e se o que deve apenas
permanecer são as considerações cuja origem é de ordem externa, então o processo de
decisão será irremediavelmente distorcido. O facto de se ter em consideração a interio‑
ridade moral como um elemento tão importante na tomada de decisões, como a ­própria
situação problemática externa, muda radicalmente a ideia de que existem critérios
­universais para a resolução de conflitos morais.
A abordagem de um problema ético advém sempre a partir de um quadro de refe­
rência específico no qual o próprio carácter tem um papel essencial, e onde a retidão
da ação também depende da própria conceção moral de si mesmo. O reconheci­mento
­destas considerações põe-nos ao abrigo da tipificação da ética dilemática. Não há, por
conseguinte, um critério unívoco e universalizável de bondade ou maldade, sem que isso
implique, no mínimo, um questionamento dos absolutos morais. Nem toda a conside­
ração por tais absolutos torna o agente que os venera moralmente bom. Uma pessoa é
louvável por fazer o que pensa ser bom, ou fazer algo que ele próprio não pode c­ onceber
não fazer. Neste caso, o agente vai muito além da possibilidade de u ­ niversalização da
norma. A pessoa quer saber não só o que teria feito alguém no seu lugar, como o que
ela própria deve fazer, independentemente de a sua decisão poder servir como regra a
­terceiros. Às perguntas de «Como é chegámos ao ponto de estreitar a questão da ética até
a reduzir a uma questão de resolução de conflitos?» e «Como é possível que t­enhamos

13
WEBER, 1986.
14
PINCOFFS, 1986.

559
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

empobrecido um campo historicamente rico e complexo?», Pincoffs15 ­responde que,


­provavelmente, devido à obsessão por dilemas, inventou-se a ideia de que existem instru­
mentos por meio dos quais tais dilemas podem ser analisados, dissecados e resolvidos: as
teorias éticas. Na pretensão de conceder à ética um estatuto científico a ­qualquer ­preço,
não temos feito mais do que privar brutalmente a sua origem e fontes na concretude da
vida e em pessoas singularmente reais e únicas.
A urgência de um novo enquadramento para a Bioética por retirá-la do seu ­contexto
ético norte-americano, repensando-a numa nova possibilidade capaz de compre­ender
que o ato moral não é um ato individual. A focalização nos direitos individuais d ­ issolveu
uma potencial articulação entre esses direitos e o bem comum. Tendo a ética apenas
sentido na sua manifestação e expressão comunitárias, do mesmo modo a Bioética
conso­lidará os seus alicerces científicos quando ultrapassar reducionismos. Para além
do substrato biológico da consciência, emerge a intencionalidade, a memória, a corpo‑
reidade, a finitude, a doença e a morte que se inscrevem no pensamento do tempo, e que
não foram refletidas pela Bioética no seu início: «A doença é um ‘assalto ontológico’:
ela obriga a mudanças drásticas no estilo de vida, afeta profundamente a identidade do
doente, a imagem que tem de si mesmo e a que os outros têm dele»16.
As atuais discursividades no seio da Bioética revelam dificuldades em assumir o
compromisso com a perspetiva comunitária, uma vez que a ligação «natural» da ­ética
com a política sofre do sintoma da economia da saúde e do bem-estar, da economia do
ser e do dever ser. Esses sintomas ocorrem porque, especialmente na paradigmática
­versão norte-americana de Engelhardt17, a Bioética nasceu num solo cultural herdeiro da
­fratura renascentista entre ética e política. Numa era em tudo parece propício ao ­reinado
do individualismo mais descarnado e à consagração definitiva da autonomia, existem,
porém, muitas restrições para o ideal da liberdade individual necessária às ­decisões
­objetivamente autónomas. As situações humanas concretas em que um ­doente terminal
se pode encontrar fazem com que seja muito difícil pensar que se possa propor­cionar
um processo autónomo de tomada de decisão com absoluta independência do ­conselho
e exortações de médicos, familiares e amigos. Pode-se acrescentar outros f­ atores: sociais,
religiosos e até étnicos que influenciam as decisões. Para Wolpe18, estas forças sociais e
outras mais trabalham no sentido de mitigar a confiança na autonomia para f­ undamento
a uma bioética pós-principialista.

15
PINCOFFS, 1986.
16
PELLUCHON, 2009: 38-39.
17
ENGELHARDT, 1995.
18
WOLPE, 1998.

560
RESPONSABILIDADE RELACIONAL E A CONSTITUIÇÃO DE UMA ÉTICA RELACIONAL
DO CUIDADO NO PENSAMENTO BIOÉTICO

II. DO ECLIPSE LOGOCRÁTICO: A RESPONSABILIDADE


RELACIONAL COMO NÚCLEO DA ÉTICA RELACIONAL
DO CUIDADO
A fenomenologia do reconhecimento da vulnerabilidade do ser humano estabe­
leceu a ética do cuidado como instrumento de reflexão bioética do ponto de vista sócio
e biopolítico. Como superar a vulnerabilidade inscrita na corporeidade para a inves‑
tir numa consciência ética? Curar os corpos implica curar a fragilidade e vulnerabi-
lidade humanas?

Todas as discussões sobre os problemas particulares da bioética remetem-nos


para um antigo debate substantivo sobre o homem. Como me posiciono na frente
dos outros homens? Sou a medida do outro? As disciplinas biomédicas não estão em
condições para dar por si só uma resposta final a estas questões. (…) a única questão
real colocada ao político é: que tipo da sociedade queremos promover?
[…] Expressas em termos positivos, essas tarefas do político são resumidas a
uma: salvaguardar um requisito fundamental de justiça, cujo princípio e fim é o
­respeito incondicional de todo o ser humano19.

A ultrapassagem do pensamento das ideias de liberdade e de autonomia, como


autodeterminação de uma vontade, para a sua significação como expressão radical
de processos argumentativos e deliberativos, alicerça-se no reconhecimento de que a
­vulnerabilidade partilhada é intrínseca à condição humana de finitude. Defendemos, por
conseguinte, a ideia de uma revolução coperniciana na ética relacional do cuidado: cuidar
corresponde à exigência de reconhecer a finitude e as suas próprias capacidades, e as do
outro. Cada capacidade humana corresponde a uma forma particular de vulnerabilidade.
A responsabilidade relacional como núcleo fenomenológico-hermenêutico onde
se permite transformar uma vulnerabilidade em capacitação recíproca, opera uma revo­
lução coperniciana na relação clínica. As experiências de falibilidade e de vulnerabilidade
situam-nos na necessidade e reconhecimento do outro no seio de uma relação reversível
e recíproca. Tal é o fundamento da solidariedade social. Os princípios de autonomia, de
dignidade, de consentimento informado, de vulnerabilidade, nomeadamente, querem-­
-se universais, mas vivem-se de modo subjetivo. A definição de vulnerabilidade é aqui
apresentada como preconceito positivo na conceção de paciente moral e nas definições
de dignidade e de pessoa. O estatuto do vulnerável qualificador de todo o ser humano é
extensível a todos os seres privados de agência ou de direitos, fazendo dela uma noção
ambígua, por vezes mesmo confundida com a noção de capacidade ou capacitação, com
implicações muito pouco negligenciáveis, essencialmente do ponto de vista político.

19
SCHOOYANS, 1986: 113-115.

561
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Antes de ser um princípio ético, a vulnerabilidade é uma característica ontológica


da vida humana:

A noção de vulnerabilidade conserva uma relação íntima entre os princípios


éticos clássicos, quer se trate do de autonomia (e da autodeterminação humana), da
dignidade (do valor intrínseco do indivíduo) ou da integridade (da coerência da sua
vida). É que não é possível compreender esses princípios clássicos, a sua força e os seus
limites, sem referir a ideia de vulnerabilidade. E esta ideia não tem sentido senão
como fundamento daqueles conceitos éticos20.

A vulnerabilidade remete para uma fragilidade potencial e universalmente parti­


lhada pelo ser humano, enquanto a suscetibilidade (o ser que padece já de uma defici‑
ência ou incapacidade) define os indivíduos atualmente incapacitados, estigmatizados,
­segundo Kottow21. O fascínio da atual civilização pela ciência enraíza-se num esque‑
cimento p ­ rofundo Gadamer22: o da finitude humana (falibilidade, vulnerabilidade e
­sofrimento) e o da sua irredutível passividade como traço hermenêutico-fenomeno­lógico
concreto da vida concreta. Para além do sofrimento experienciado pelo corpo subjetivo e
pelo «corpo coletivo»23, existe a indiferença com que esse sofrimento é praticado.
A categoria de vulnerabilidade generalizou-se e impôs-se, inclusive, narrativa­
mente nos textos internacionais de bioética e das ciências sociais de forma a repensar-se
a ideias de solidariedade face à excessiva transferência de responsabilidades (e.g. ao nível
do princípio de autonomia) para os sujeitos mais frágeis e dependentes.
O modelo aristotélico de racionalidade permite a aproximação éticoantropológica
ao solo da solidariedade prática na qual a compreensão e autocompreensão humana se
transformam em reconhecimento e proximidade: solidariedade vivida (sentido comum)
e responsabilidade histórica na defesa das prioridades ética, cultural, política e ontoló­
gica do outro. Neste sentido, as problemáticas levantadas circunscrevem-se à ­eticidade
da praxis biotecnológica naquilo que colateralmente implicou a reconfiguração do
­humano através das ideias de Care, Souci ou Sorgen, e a consequente jornada para um
pós-principialismo, impressa nos desafios antropológicos de uma educação bioética e
na defesa de um discurso bioético alicerçado na finitude (vertente antropológica) e na
vulnerabilidade (vertente ética).
Na ética do cuidado tal como a concebemos, o outro não é um alter-Ego: é um
outro implicado na relação desigual face à vulnerabilidade e sofrimento do outro e que
o expõe à exterioridade e ao risco de não saber responder, que paradoxalmente permite

20
KEMP & RENDTORFF, 2001: 869-876.
21
KOTTOW, 2003.
22
GADAMER, 2009, 1998, 1992, 1988.
23
SOUSA SANTOS, 2018.

562
RESPONSABILIDADE RELACIONAL E A CONSTITUIÇÃO DE UMA ÉTICA RELACIONAL
DO CUIDADO NO PENSAMENTO BIOÉTICO

uma reciprocidade entre seres humanos desiguais, abrindo-os ao desejo ético de justiça
como seres singulares e incomparáveis.
Com a viragem epistemológica de Broekman24 questionou-se a necessidade de a
filosofia da medicina regressar à pessoa: entre vulnerabilidade, a fragilidade e a possi­
bilidade joga-se a ética do cuidado, espaço onde cada cuidador, na reserva da sua
­consciência, guiado por valores e dúvidas, pode reconfigurar sentido(s) ao cuidado,
­devolver confiança ou presença àquele que vive o insuportável.
Partindo-se do solo que marcou estruturalmente a constituição da identidade do
sujeito pós-moderno e o sofrimento/morte, exige-se uma ética apropriada à vida no
­regresso à experiência fundamental e originária do agir humano bem como às condi‑
ções de vida do homem contemporâneo. Se há uma «cultura científica» é porque está
enrai­zada numa protocultura que tem a originalidade de se experienciar como «nós
mesmos». Daí o aspeto intersubjetivo ou comunitário de todo o ethos, ou seja, a c­ ultura
é ela própria uma ética porque releva de um ethos e de um pathos. A cultura não é só
a ­geração e reprodução da vida numa ordem temporal; ela é, também, a narração do
­pathos prático, alimentado pelo sentimento fundamental do «Eu posso»25 ­enquanto
­potencialidade e capacidade do vivente. Donde a necessidade de uma rutura com a
tradi­cional exploração antropológica da Bioética e a defesa do paradigma médico pós-
-moderno que vincula o ethos hermenêutico e o pathos prático à medicina.
A necessidade de uma ética do cuidado antecede a avaliação política e ética das
­situações e contextos afetivos do reconhecimento nos quais reconhecemos a nossa
­«carência e incompletude relativas a elementos que não controlamos na totalidade»26.
Por referência à ideia de uma determinação inteligível da humanidade, o modelo
substancialista pós-humano da Pós-Modernidade permite aos indivíduos inserirem-
-se na sociedade global, mas sem lhes proporcionar a construção de representações do
seu lugar. A exclusão da vulnerabilidade (a doença, a velhice e dependência de outrem)
­subentende a parca solidariedade de grupo, a rejeição social no seu todo, e que é substi­
tuída por uma exclusão de ordem simbólica: poucos valores comunitários e nenhum
valor de ordem societária. É neste quadro teórico que aqui se apresenta o problema
do lugar que tem ocupado a ênfase da ideia de certeza da vida nos objetos de estudo
­(objetalidades) das várias regiões do discurso biotecnológico. A Modernidade predispôs
o pensamento para procurar as diferenças que separam as pessoas do outro (o estran­
geiro), enquanto a Pós-Modernidade indica o caminho das semelhanças, da ­mesmidade.
A Modernidade buscou as marcas da distância, enquanto a Pós-Modernidade sugere a
proximidade num só e mesmo ritmo de temporalidade.

24
BROEKMAN, 1998, 1996.
25
RICOEUR, 1990.
26
NUSSBAUM, 2004: 184.

563
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

O conceito de temporalidade crísica27 refere a perturbação temporária de um dado


sistema e, ao mesmo tempo, a oportunidade de o melhorar. Boaventura de Sousa Santos
distingue radicalmente a «crise ocasional» de «crise permanente»: a primeira tem de ser
explicada e, por isso, é portadora de alternativas para a superar, segundo uma lógica do
pensamento crítico. A segunda, explica tudo e justifica o estado de coisas atual como
sendo o único possível, a todo o custo e valores. É necessária uma viragem epistemo­
lógica que correlacione a atividade cognoscitiva (saber) e o seu produto (conhecimento),
que transforme a corporeidade ou corporalidade do conhecimento28. «Sentir» e «ser-se
sentido» é uma experiência de natureza assimétrica e problemática da dualidade sujeito
e objeto que põe em causa o primado da racionalidade instrumental e tecnológica da
Modernidade nos seus principais eixos: a unidimensionalidade e a linearidade episte‑
mológicas. Ser-com é mais do que conhecer-com.
A racionalidade operatoriocrática funda contemporaneamente a distância entre o
nós e os outros, com consequências para as práticas discursivas nomeadamente sobre a
solidariedade, a partilha, a cooperação e a justiça. A imediatidade do cuidado p ­ ermite
­expandir a proximidade e a familiaridade humana muito para além das possibilidades
da racionalidade discursiva ou linguística. Será difícil compreender, interpretar um
mundo, e uma realidade, que não passe pelas ideias de conhecimento e de experiência
corporizados (encarnados), materializados entre estruturas físicas, vitais e humanas.
O século XXI representa o radicalismo do parricídio do pós-modernismo, na sua
marcha para a destruição da discursividade narrativa mediante o corte e cola, a página
em branco, daquilo que será a representação do transumano29:

[…] os piores diagnósticos de cada época são, justamente, os contempo­râneos.


Os meus gigantes ensinaram-me que existem espaços de transição, nos quais as
coorde­nadas desaparecem, não se vê bem o futuro e ainda não é possível compreender
as astúcias da Razão e as conspirações imperceptíveis do Zeitgeist.
[…] Talvez gigantes que ainda ignoramos se estejam já a mover nas sombras,
prontos a sentar-se aos nossos ombros de anões30.

Agrupadas sob a sigla NBIC (tecnologias nano-bio-info-cognitivas) as promessas


aí veiculadas abrangem o melhoramento da precisão dos diagnósticos, deteção precoce
do cancro e derivações genéticas, regeneração celular, implantação de n
­ anodispositivos
cibernéticos no sistema sanguíneo e digestivo, aumento substancial da longevidade,
­melhoramento da cognição, comunicação e das interações sociais, das capacidades

27
SOUSA SANTOS, 2018.
28
SOUSA SANTOS, 2018.
29
ECO, 2018.
30
ECO, 2018: 36.

564
RESPONSABILIDADE RELACIONAL E A CONSTITUIÇÃO DE UMA ÉTICA RELACIONAL
DO CUIDADO NO PENSAMENTO BIOÉTICO

f­ísicas, da saúde humana, da segurança nacional (e.g. o cyborg warrior), a unificação


da ciência com a educação (melhoramento performativo nas áreas das competências
linguís­tica e cibernética sob a égide da unificação de sistemas complexos através de
tecno­logias convergentes). Em muitos contextos, a relação da sociedade global com a
vulnerabilidade e o sofrimento (física, emocional e espiritual, social, económico-polí­
tica) não apresenta nem uma imagem positiva, nem um valor universal; logo, um valor
social. A descontextualização da experiência singular humana é um facto. Apesar de
requerer a categoria de intersubjetividade, o discurso simplista da atual Bioética ­desagua
no esquecimento de uma antropologia fundamental que pensa a passividade origina‑
riamente constitutiva do ser humano, confundindo o eidos de Humanidade com as
­respostas que as ciências biotecnológicas dão ao problema da sua definição. A natureza
desse discurso é a da ordem da replicabilidade e da reprodução: tomem-se os exemplos
da clínica entendida como uma estatística aplicada que elimina o indivíduo, descreve a
causalidade (órgão/função; doença/etiologia), afirma ténues correlações.
Fruto de uma nova mathesis, essa simplificação prescreve a passividade h ­ umana
como atributo da humanidade, e não como o núcleo da sua própria instauração.
­Esquece-se a complexidade e a irredutibilidade da humanidade, naquilo que ela tem de
morada, matriz.
A Bioética da Finitude, na sua vertente de responsabilidade relacional, pretende-se
como ultrapassagem da ideia de uma vida individual ou comunitária de uma ideia de
responsabilidade absoluta do Si mesmo. O domínio do intersubjetivo nos fenómenos
sociais não são da ordem da episteme. No positivismo e no estruturalismo revela-se uma
intrínseca incompetência: a verdade (independentemente do campo epistémico) excede
o que é verificável. Há bases não racionais que sustentam as crenças e a transformação
das crenças e das convicções. Portanto, além de ser imensurável, o grau de evidência é
indeterminado, com consequências determinantes para a previsão e controlo do que
é singular e particular.
Em última instância, o primado da ética da responsabilidade relacional constitui o
núcleo da aplicação e da apropriação do sentido da experiência do mundo como uma
responsabilidade pessoal, na imediatidade da relação de cuidado. A obsessão pela ­ordem
e significado no social, veste a metáfora do «obscurantismo» como representação da
representação. A formação e a evolução das normas sociais e os seus mecanismos de
criação de equilíbrios são, ainda, pobremente compreendidos, pelo que o «tempo das
ciências sociais ainda não chegou, e talvez não chegue»31.
A pergunta moderna O que é o homem? desloca no futuro de hoje os problemas
antropológicos sobre a subjetividade, a vulnerabilidade, a finitude, a vida e a morte, para
soluções compreendidas e traduzidas primeiramente nos interstícios da estrutura e da

31
ELSTER, 1992: 1.

565
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

função e mais recentemente neuro-algoritmicamente. O reaparecimento na ­Europa de


uma corrente filosófica baseada na crítica aos humanismos enquadra-se na tese da «pós-
-humanidade», publicada no The National Interest32. O teor de tal tese tem um ­interesse
mais ideológico do que teórico, pois expressa o ponto de vista de um dos intelectuais
­orgânicos (no sentido gramsciano do termo) com maior visibilidade no seio do capita‑
lismo contemporâneo. Depois de confirmar o seu discurso sobre a conclusão da ­História
pelo capitalismo, Fukuyama33 denuncia o seu equívoco, uma vez que a revolução biotec‑
nológica criará as condições para «uma história pós-humana». O pano de fundo desta
sua tese são as interações entre duas grandes revoluções: a das tecnologias da infor­mação,
de um lado, e a das biotecnologias, de outro, com o seu impacto na ordem mundial. Se
a primeira é mais visível, é a segunda que provavelmente produzirá os problemas mais
impor­tantes. A natureza aberta da ciência da natureza contemporânea permite antecipar
que nas próximas gerações a biotecnologia dará as ferramentas que permitirão realizar
o que anteriormente os especialistas em engenharia social não conseguiram fazer. Neste
panorama, Fukuyama34 não se contenta em anunciar a saída da era humana.
Duas razões principais encorajam a lucidez sobre a crise do humanismo da Moder­
nidade35. Uma diz respeito à sua insuficiente tomada em conta quer da mutação infor‑
macional, quer da revolução biológica. Outra, mais histórica, é devida às deficiências do
tríptico indivíduo, razão e progresso, tal como foi construído a partir do Iluminismo.
As grandes catástrofes éticas e humanitárias do século XX, assim como o caráter
desumano do capitalismo industrial do século XIX, poderia encontrar no humanismo
da Modernidade dois grandes pontos de fragilidade. Em primeiro lugar, a fragilidade
ecológica. Fazendo do homem cartesiano «o senhor e possuidor da natureza», sem
­questionar a sua responsabilidade para com o seu ambiente, o humanismo, fascinado
pelo ­progresso técnico e depois pelo novo tríptico ciência, tecnologia e mercado, não
estava protegido contra o que Illich36 chamaria «parte contraproducente». Em segundo
lugar, a fragili­dade antropológica. Após o colapso das «sociedades da ordem», a refun‑
dação de q ­ ualquer laço social apenas no indivíduo racional ignorou a inscrição cole‑
tiva e organizou o confronto entre o indivíduo e o Estado, facilitando as abordagens
capitalista e estatista e subestimando as questões emocionais e espirituais da condição
humana37. Diante desses dois desafios, um novo humanismo deverá pensar as tensões
­dinâmicas entre o indivíduo e a comunidade, entre a razão crítica e a procura de signi‑
ficado, ­entre a transformação da natureza e o respeito pela biosfera, entre o progresso

32
FUKUYAMA, 1989.
33
FUKUYAMA, 1989.
34
FUKUYAMA, 2002.
35
VIVERET, 2001.
36
ILLICH, 1976.
37
GUILLEBAUD, 1999.

566
RESPONSABILIDADE RELACIONAL E A CONSTITUIÇÃO DE UMA ÉTICA RELACIONAL
DO CUIDADO NO PENSAMENTO BIOÉTICO

t­écnico e c­ ientí­fico e a vigilância dos seus potenciais efeitos destrutivos. Para resistir
às especulações de uma pós-humanidade, qualquer refundação deve ter em conta a
­mutação informa­cional38 e a revolução bio-orgânica que perturbou profundamente os
padrões de referência do h ­ abitat humano. É, de facto, o modo de viver no mundo e
de ­habitar o ­próprio ­corpo, que se transforma até se toca o mais íntimo, a partir do
­momento em que se passa ­incautamente da ajuda à procriação da vida humana à sua
fabri­cação. A ­adaptação do humano a produtos artificiais ou coisificação artificial do
­humano ­(construção, quanti­ficação, simbolização na relação com a natureza e o ­mundo)
desloca a ­fronteira identi­tária e pluralista da humanidade para o fluxo ­indeterminado
de informação, dos big data. Há dimensões irremovíveis da experiência humana,
­nomeadamente formas de vida e de morte, de salvação e de sofrimento de costumes
ou tradições e de ­revoluções ­civilizacionais. É possível inferir que o desenvolvimento
­exclusivamente técnico condu­zirá inevitavelmente ao desmantelamento da diferen­
ciação linguística, cultural e ­humana, anulando a historicidade, a consciência histórica e
as suas tensões intrín­secas? O ­problema de fundo das teses do pós-humanismo reaviva
o velho c­ onfronto entre ciências naturais (natureza e determinismo) e ciências do espí‑
rito (liberdade e i­ndeterminismo)? No âmbito do discurso bioético, pode-se dizer que
o transuma­nismo e o póshumanismo são fenómenos intrínsecos à tessitura epistémica
da ciência, ou seja, a possibilidade do seu objeto (o melhoramento ou a superação do
­humano) é do domínio «invisível» ou do impensado. A visão já não é o facto do sujeito
individual; a visão é o facto das suas condições estruturais, a visão é uma relação de refle‑
xão imanente do campo da problemática sobre os «seus objetos e os seus problemas»39.
Já não é um ­sujeito reflexivo que vê o que existe no campo definido por uma proble­
má­tica teórica: é este campo que se vê nos objetos ou os problemas que ele define.
No campo teórico, o invisível não é mais função da visão do sujeito do que do visível.
O invisível é o não ver da problemática teórica sobre os seus não-objetos. Mas o
invisível é definido pelo visível como seu invisível; o invisível é interior ao próprio visível,
já que é definido pela estrutura do visível. O paradoxo do campo teórico é, assim, o ser
um espaço infinito porque definido e a sua definição (operação científica) é o que exclui
dele, nele, a sua própria definição. O invisível esconde-se na sua ausência, falta ou em
sintomas teóricos. E para ver este invisível é preciso um olhar «instruído», ele próprio
produto, por uma reflexão da «transformação de terreno» sobre o exercício do ver.
À semelhança do humanismo, pode-se defender que as figuras do pós-huma­
nismo e do desumanismo são «fenómenos históricos de data recente»? Saber que
­somos ­«falados» mais do que «falamos» é, segundo Foucault40, o fim de uma ilusão que
o Huma­nismo inculcou. As ciências humanas explicitam a dispersão intrínseca do ser
38
ROBIN, 1999.
39
ALTHUSSER, 1969.
40
FOUCAULT, 2014a, 2014b.

567
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

humano, existindo elas mesmas em função de um homem que é um «par empírico-­


-transcendental»41, uma «reduplicação empíricotranscendental»42 que tanto se confi‑
gura na sua positividade aparente como no papel de condição de toda a experiência e
toda a cultura. Contemporaneamente, a extinção ou niilização da ideia de humanidade
­pretende dar lugar a uma reconfiguração do humano sem mundo, sem vivido e cultura,
repercutidas nas teses do transumanismo. Compreende-se o abalo que o pensamento de
Nietzsche produziu quando anunciou, sob a forma de um acontecimento iminente, o da
promessa-ameaça, que o homem em breve deixaria de existir, e que o homem em breve
­deixaria de existir, e que o substituiria o super-homem; queria isto dizer, numa filosofia
do ­retorno, que o homem já havia muito desaparecera e não cessava de desaparecer, e
que a nossa conceção moderna do homem, a nossa solicitude por ele, o nosso huma­
nismo dormiam serenamente sobre a sua retumbante inexistência43.
À semelhança do conceito metafísico de Super-homem, a posição do transuma­
nismo depara-se com o problema do homem total44. Não é paradoxal que os ­conceitos
de transumanismo e de pós-humanismo tenham surgido no seio da substituição de
uma sociedade plural e globalizada por uma sociedade virtualizada e viral onde o poder
do global (o Mesmo) se opõe à singularidade e à pluralidade (o Outro). O global é o
­idêntico que desmembra, estilhaça a singularidade e a alteridade porque estas ­ameaçam
a circu­lação da informação, a massificação e a monolitização da comunicação e do
­capital. ­Neste sentido, «o pensamento moderno avança nesta direção em que o Outro
do homem se deve tornar o Mesmo que ele»45. O ser humano nunca existe no singu‑
lar: «O pluralismo não é uma multiplicidade numérica. Para que se realize um plura‑
lismo em si […] é preciso que se produza em profundidade o movimento de mim ao
­outro, uma atitude de um eu em relação a Outrem […] O pluralismo supõe uma alte‑
ridade radical do outro que eu não concebo simplesmente em relação a mim, mas que
­encaro a partir do meu egoísmo. […] Tenho acesso à alteridade de Outrem a partir da
sociedade que mantenho com ele e não abandonando essa relação para refletir sobre os
seus termos»46.
O horizonte teórico do pressuposto de que será a revolução biotecnológica a criar
as condições de uma história «pós-humana» reside na especificidade da relação que a
breve trecho poderão ter a biotecnologia e a engenharia social. Pressente-se em toda a
sua argumentação que a afirmação da pós-humanidade releva de um anti-humanismo
teórico e prático destinado a justificar a desordem mundial estabelecida que conduz à

41
FOUCAULT, 2014b.
42
FOUCAULT, 2014b.
43
FOUCAULT, 2014b.
44
NIETZSCHE, 2000.
45
FOUCAULT, 2014b: 432.
46
LEVINAS, 1988: 112.

568
RESPONSABILIDADE RELACIONAL E A CONSTITUIÇÃO DE UMA ÉTICA RELACIONAL
DO CUIDADO NO PENSAMENTO BIOÉTICO

manutenção de cerca de três bilhões de seres humanos em condições de grave pobreza,


numa combinação entre os dilemas da crise ecológica global e os dilemas da desigual‑
dade global.
Repensar o humano evoca as tensões dinâmicas entre indivíduo e comunidade,
entre razão crítica e procura de sentido, entre transformação da natureza (progresso
tecnocientífico) e respeito pela biosfera. A responsabilidade relacional é, em última
­instância, o telos de uma Bioética da Finitude.

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570
O «MELHOR AMENTO HUMANO» E A
DISCUSSÃO SOBRE OS LIMITES DO FAZER
MARTA DE MENDONÇA*

Resumo: O texto aborda a questão do melhoramento humano e da sua singularidade. Começa por consi­
derar a dificuldade em fixar com precisão o sentido do termo, imprecisão que em boa parte explica as
inúmeras controvérsias em torno deste tema que existem na atualidade. De seguida, aborda algumas das
principais razões que justificam as diversas e incompatíveis apreciações éticas que recaem sobre o projeto de
«melhoramento humano». A comparação entre os critérios de excelência com que se julgam habitualmente
os objetos técnicos e até os organismos vivos, conduzem-nos, por fim, a sustentar que o ‘melhoramento
humano’ pode ver-se como um limite do fazer.
Palavras-chave: ética; manipulação; melhoramento humano; técnica.

Abstract: The text addresses the issue of human enhancement and its uniqueness. It begins by consider‑
ing the difficulty in accurately fixing the meaning of the term, imprecision which in large part explains the
­numerous controversies around this subject that exist today. Secondly, it addresses some of the main reasons
for the various and incompatible ethical judgments on «human enhancement» project. Finally, the compa­
rison between the criteria of excellence with which technical objects and even living organisms are usually
judged leads us to consider that human enhancement should be seen as a limit of making.
Keywords: ethics; human enhancement; manipulation; technique.

* NOVA FCSH e CHAM — Centro de Humanidades. Email: mmendonca@fcsh.unl.com.

571
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

1. INTRODUÇÃO
As técnicas dirigidas a aperfeiçoar artificialmente o organismo biológico dos seres
humanos — habitualmente designadas como técnicas de «melhoramento humano» —
resultam de um alargamento aos membros da nossa espécie de um procedimento que
desde há muito se vem aplicando a outros organismos vivos, tanto animais como plantas.
Charles Darwin foi talvez o primeiro autor a debruçar-se sobre o sentido deste «modo de
fazer», ao considerar que o processo de aperfeiçoamento de determinadas espécies ou
raças — artificialmente induzido pelos seres humanos nos animais que domesticam
ou nas plantas que enxertam — é similar ao usado pela própria natureza para diversificar
e aperfeiçoar as espécies naturais não manipuladas artificialmente. Afinal, o que os seres
humanos fazem de forma artificial já o fazia a natureza desde sempre e sem que nós o
soubéssemos1. Mais de século e meio passado sobre a Origem da Espécies, o juízo sobre
as intervenções técnicas manipuladoras da natureza e dos seus organismos vivos é hoje
mais cauteloso. Ganhámos recuo suficiente para saber que a «otimização» representa
um risco, que esse risco é impossível de avaliar com rigor e que pode eventualmente ser
demasiado alto. Cabe perguntar, portanto: a natureza pode, sem perda, ser objeto de
manipulação em grande escala? Faz sentido que a relação humana com a natureza seja
predominante ou exclusivamente técnica? E se não for técnica, o que é que pode ser?
Não é difícil admitir que a pertinência de colocar a questão sobre o sentido da
­técnica cresce e se interioriza quando o que é objeto deste tipo de intervenção é o próprio
ser humano e quando, graças à radicalidade dessa intervenção, o que se altera é a própria
identidade dos seres assim manipulados e dos seus descendentes. A questão adquire
então contornos especificamente éticos: temos direito a alterar artificialmente os nossos
descendentes ou essa intervenção representa um abuso de poder?
No texto abordam-se as técnicas de melhoramento humano, considerando-­
-as como «modos de fazer» de que resulta uma manipulação artificial do organismo
­humano que visa capacitar os seres humanos para desempenharem funções não inscri‑
tas no seu organismo natural ou otimizar as que já possuem. Consideram-se, por um
lado, as ­afinidades e diferenças existentes entre o «melhoramento humano» e o melho‑
ramento de outras espécies vivas e, por outro lado, reflete-se sobre o sentido e sobre os
eventuais limites deste tipo de intervenção.

2. TÉCNICA E MANIPULAÇÃO
É um lugar comum, mas não é por isso menos verdade, que vivemos numa ­cultura
estruturalmente marcada pela técnica. Tanto o diálogo entre a razão humana e a natu­
reza, como a capacidade dos seres humanos para porem ao serviço de objetivos h
­ umanos
o seu saber sobre a natureza, são todos os dias postos em evidência e revelam-se m
­ uito

1
DARWIN, 1859: 7-43.

572
O «MELHOR AMENTO HUMANO» E A DISCUSSÃO SOBRE OS LIMITES DO FAZER

superiores aos que intuitivamente tendemos a pensar que seriam possíveis. Temos a
­impressão de ser controlados em todos os gestos da nossa vida, e de esse controlo ser
tanto mais eficaz quanto menos conscientes somos de que ele condiciona a maioria das
interações em que tomamos parte.
O sonho moderno de conquistar a natureza parece ter-se cumprido muito para
além do que sonharam alguns dos seus idealizadores. Antecipamos eficazmente cená­rios
e defendemo-nos dos seus potenciais efeitos nefastos. No entanto, os dois últimos s­ éculos
fizeram-nos olhar para o poder demiúrgico da técnica com menos e­ ntusiasmo. É óbvio
que a técnica nos libertou de muitos aspetos árduos do trabalho e que ­proporcionou às
mulheres o acesso a áreas em que até então não podiam estar presentes, porque a força
física deixou de ser um aspeto essencial desses trabalhos; mas é igualmente ­evidente
que teve também efeitos nefastos: fez diminuir drasticamente os ­postos de trabalho,
­eliminou profissões, mecanizou outras, desequilibrou a distribuição da população,
inter­veio drasti­camente destruindo culturas pré-industriais, etc. Sobretudo, sobrecar‑
regou a natureza e ameaçou o seu equilíbrio: equilíbrio de recursos, ­contaminação dos
existentes, equilíbrio ecológico, etc. Desta forma, o senhorio do homem sobre a natu‑
reza — saudado inicialmente como uma libertação — foi pouco a pouco assumindo
a forma de um poder que se vislumbra como tendo algo de despótico, de destruidor,
de nefasto. Em consequência destes processos, o juízo sobre a intervenção humana na
natureza oscila entre as afirmações entusiastas dos que alcançam uma nova descoberta
ou fazem uma nova invenção e as afirmações alarmadas ou pessimistas dos que consi‑
deram, como Heidegger2 ou Zygmunt Bauman3, que a intervenção técnica humana é
radicalmente negativa e deveria ser travada.
Esta discussão sobre os limites do fazer atravessa pelo menos toda a segunda
­metade do século XX e o que levamos do século XXI; trata-se de uma discussão que vai
muito para além da questão da intervenção técnica sobre o organismo humano. Está
presente e põe em causa, por exemplo, o modo como julgamos a nossa relação com o
mundo físico e com o mundo vivo, humano ou não humano. Mas pode-se dizer que
adquiriu contornos novos, ou uma nova acuidade, ao estender-se aos seres humanos.
A descodificação do genoma humano e o desenvolvimento da capacidade técnica de o
manipular fez-nos sonhar com a possibilidade de intervir intencional e tecnicamente
sobre ele para eliminar progressivamente as limitações que o ser humano experimenta
naturalmente: cansaço, dor, doença, morte, etc. E fez-nos sonhar até com a possibilidade
de alargar o âmbito das capacidades humanas para além dos seus limites naturais. É a
esse sonho de «aperfeiçoamento da espécie» artificialmente induzido que responde o

2
HEIDEGGER, 1993: 311-341.
3
BAUMANN, 2000.

573
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

projeto do «melhoramento humano». Nas últimas duas décadas este é um dos temas
bioéticos sobre o qual mais se tem escrito4.

3. O QUE SE ENTENDE POR MELHORAMENTO HUMANO?


Uma das razões deste facto – de que o tema do human enhancement seja tão
abundan­temente tratado na literatura bioética — prende-se com a dificuldade em fixar
o sentido preciso do que está em causa. O termo «melhoramento humano» tem tanto de
sugestivo quanto de impreciso. A literatura mais recente regista até 7 sentidos diferentes
do termo5/6, do que resulta que algumas intervenções técnicas, que seriam consideradas
«melhoramento» segundo uma determinada definição, não o sejam se acolhermos outra
definição do termo.
Pode parecer que esta questão é irrelevante e que o que interessa é a realidade e não
a designação que lhe damos. Mas a verdade é que as implicações práticas decorrentes do
modo como se define o «melhoramento» são relativamente complexas. No horizonte da
definição de «melhoramento» — e contrastando-se com ela — está a noção de «terapia»:
pelo menos inicialmente, consideram-se formas de «melhoramento» as intervenções
não diretamente terapêuticas7. Ora esta distinção é significativa e tem implicações rele‑
vantes na gestão da saúde: foi levantada, por exemplo, pelas companhias de seguros dos
EUA, que comparticipavam ou pagavam intervenções terapêuticas, mas não o faziam
se se tratasse de intervenções de «melhoramento», consideradas supérfluas do ponto de
vista da saúde.
Evidentemente, a distinção entre «melhoramento» e «terapia», usada inicial­mente
para caracterizar negativamente o melhoramento — é «melhoramento» o que não é
­«terapia» — não resolve completamente o problema da definição, dado que o próprio
conceito de «terapia» tem contornos pouco rigorosos: está dependente do que enten‑
damos que é a «saúde» e da possibilidade de a definir rigorosamente. Ora, não existe
um conceito de saúde que seja totalmente consensual, e a própria definição da OMS

4
Cf., entre muitos outros, BATEMAN et al., eds., 2015; CLARKE et al., eds., 2016; HAUSKELLER, 2013; KOOPS
et al., 2013.
5
GYNGELL & SELGELID, 2016: 111-126.
6
Os autores distinguem os seguintes sete sentidos possíveis do termo, decorrentes da perspetiva adotada: abordagem
construtivista: alterações benéficas do funcionamento que não tratam a doença, sendo a doença entendida como
­estados desvalorizados pela sociedade; abordagem do funcionamento normal: alterações benéficas do funciona­
mento que não tratam a doença, sendo a doença entendida como desvios negativos do funcionamento normal;
aborda­gem para além do típico da espécie: alterações que levam as pessoas a ultrapassar os valores típicos da espécie
em traços particulares; abordagem para além do máximo da espécie: alterações que levam as pessoas a ultrapassar
os valores máximos da espécie em traços particulares; abordagem do bem estar: alterações que aumentam o bem
estar; abordagem fundada numa conceção modificada do bem estar: alterações que dão aos indivíduos um funciona­
mento biológico não normal e aumentam o bem estar; abordagem funcional: alterações que aumentam algum tipo
de desem­penho. Para uma síntese de todas as abordagens, vide p. 121.
7
Daí o título de uma das primeiras grandes obras que se debruçou sistematicamente sobre a questão do «melhora‑
mento humano»: Beyond Therapy. Biotechnology and the Pursuit of Happiness.

574
O «MELHOR AMENTO HUMANO» E A DISCUSSÃO SOBRE OS LIMITES DO FAZER

a­centuou muito significativamente a dimensão subjetiva desta noção, ao entendê-la


como «um estado de completo bem-estar físico, psíquico e social e não apenas ausência
de doença ou enfermidade»8.
Aquilo em que todos coincidem, no entanto, é em considerar que o «melhora­mento
humano» é sempre uma intervenção técnica sobre o organismo biológico dos s­eres
­humanos de que resulta uma capacitação para desempenhar funções que não ­poderia
realizar ou para alcançar desempenhos a que não poderia aspirar sem essa ­intervenção
técnica. Também coincidem em ressaltar a intenção benevolente dessas ­intervenções.
O procedimento pode ser de diverso tipo — químico, cirúrgico, genético — e o «melho‑
ramento» alcançado pode também ser diferenciado: basicamente, estru­tural ou funcio‑
nal. Além disso, alguns consideram que as intervenções — tal como ocorre na evolução
biológica natural — têm que ter um efeito permanente sobre o organismo, de tal modo
que, se a eficácia da intervenção for temporária, embora as outras características estejam
presentes, não se deve falar propriamente de «melhoramento humano». Isto significa
que o melhoramento humano se pensa como uma alteração estável das capacidades
­humanas — em princípio uma potenciação dessas capacidades — ou, a contrario, como
uma eliminação de algo que é natural, mas que é experimentado como uma limitação
da natureza.
Como indicámos, nem todas as intervenções técnicas sobre o organismo bioló­
gico têm estas características: continua a fazer sentido distinguir este tipo de intervenção
daquelas intervenções, também de natureza técnica, que visam repor o funcionamento
dito «normal» do organismo biológico, recuperando a distinção entre «melhoramento»
e «terapia» nos casos em que é incontroversa. Uma intervenção cirúrgica que corrige a
miopia é terapêutica, uma intervenção que aumenta o ângulo de visão de um indivíduo
humano, permitindo-lhe abranger os 360° do que está à sua volta seria uma forma de
melhoramento. A administração de ferro a alguém que sofre de anemia é terapêutica,
a administração de doping a um desportista será melhoramento; o mesmo se poderia
dizer — se fosse possível — da intervenção genética conducente a corrigir a trissomia 21
ou outra doença do mesmo tipo, por contraste com a intervenção genética que visasse
proporcionar-nos uma configuração orgânica como a de Mark Felps, por exemplo.
De forma pouco rigorosa, a distinção parece óbvia. Mas a impressão de evidência é
mais aparente do que real. Onde acaba uma intervenção terapêutica e onde começa uma
intervenção de melhoramento? Porque é que corrigir uma catarata é terapia e fazer
uma operação estética é «melhoramento»? E as intervenções preventivas: são terapêu­
ticas ou de melhoramento?

8
WHO, 2014: 1.

575
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

4. MELHORAMENTO E EXCELÊNCIA
Deixando de lado a questão sobre o que define o melhoramento e como pode ele
ser identificado com rigor, vale a pena deter-se a considerar o modo como esta possibi­
lidade foi avaliada. É interessante observar que o melhoramento foi sobretudo objeto
de juízo ético. As posições adotadas foram todas as que, de um ponto de vista ético,
são ­possíveis: há autores que consideram que se trata de um procedimento eticamente
neutro, isto é, que as intervenções tendentes a alterar o organismo biológico são lícitas
sem serem obrigatórias; há os que as consideram como um procedimento devido; há, por
último, os que as consideram como algo indesejável e que deveria ser proibido.
A primeira perspetiva — a daqueles que consideram que o melhoramento é etica‑
mente neutro — é talvez a menos interessante do ponto de vista reflexivo e argumenta­
tivo: o que sustentam os seus defensores é que o «melhoramento» não constitui nenhum
novo objeto de reflexão. Através do «melhoramento» os seres humanos fazem o que
sempre fizeram: intervir sobre a natureza para a aperfeiçoar. Antes, os bons pais — ou
os que assim eram considerados — procuravam proporcionar aos filhos boas ­condições
para o seu desenvolvimento: levavam-nos, se podiam, por exemplo, a um bom ­colégio
ou à ginástica; agora, visto que esta possibilidade existe, podem proporcionar-lhes inter‑
venções de «melhoramento» que os capacitem o melhor possível para a vida. À questão
sobre o sentido do melhoramento apresentam apenas o argumento retórico de «qual é o
mal»? Nesta linha de argumentação está, por exemplo, o Prémio Nobel James ­Watson,
o qual sustenta: «If we could make better human beings by knowing how to add
­genes, why shouldn’t we do it? What’s wrong with it? Who is telling us not to do it?»9.
Ad­ imensão ética do melhoramento humano resumir-se-ia, portanto, à seguinte ­questão:
o que tem de mau querer criar uma coisa melhor?
O segundo caso — o dos que consideram que o «melhoramento» não é apenas
algo possível, mas até algo desejável e que deve, por isso, ser promovido — deu origem
à chamada posição «melhorista»10. É frequente que os próprios títulos das obras dos
autores que defendem esta posição, ou o modo como formulam as questões pertinentes,
orientem já no sentido da solução pretendida. É o que se observa, por exemplo, no título
da obra de John Harris, Enhancing Evolution. The Ethical Case for Making Better People11;
ou, por citar apenas mais um exemplo, o que transparece na formulação do problema
por Savulescu e Bostrom, que colocam nestes termos a questão ética sobre o sentido do
melhoramento: «Are we good enough? If not, how may we improve ourselves?»12.
A própria maneira de formular o problema leva a pensar que quem considere que
o «melhoramento» não é desejável deva ser visto como insensato ou como mau. Entre

9
STOCK & CAMPBELL, 2000: 79.
10
De meliorism — termo acunhado por Caplan; cf., por exemplo, CAPLAN & ELLIOTT, 2004: 169-172.
11
HARRIS, 2007.
12
SAVULESCU & BOSTROM, 2009: 1.

576
O «MELHOR AMENTO HUMANO» E A DISCUSSÃO SOBRE OS LIMITES DO FAZER

outras razões porque, se a intervenção for má, não se qualifica como melhoramento e,
ser for realmente um melhoramento, não pode ser má. Assim considerada — d ­ iz-se
— a i­ntervenção deve ser promovida como um dever ético: do mesmo modo que julga­
ríamos que são maus os pais que não se preocupam com a capacitação dos filhos, que
não os levam à escola ou, podendo fazê-lo, às aulas de ginástica ou de línguas, pode­
remos dizer que são maus pais os que não se preocupam em capacitá-los da melhor
forma possível ao seu alcance, designadamente através dos melhoramentos disponíveis,
para os diversos desafios que a vida coloca.
A terceira posição — a dos que consideram que o melhoramento constitui tenden­
cialmente um abuso de poder — é a que, por razões óbvias, desenvolveu mais argu‑
mentos: tinha que justificar que algo que é tecnicamente possível não é humanamente
desejável. O elenco de argumentos apresentado é muito vasto e impossível de expor aqui
com algum detalhe13.
Limitar-me-ei a apresentar brevemente dois desses argumentos. Um primeiro
­argumento, invocado com frequência, está habitualmente associado à ideia de que ao
agir sobre a própria natureza «we are playing God»14. O argumento sustenta que, mesmo
que fosse desejável, o «melhoramento» não é tecnicamente possível, por duas razões:
1) porque o conjunto de conhecimentos que o tornaria possível é virtualmente impos­
sível ou inabarcável; e 2) porque o progresso nesse conhecimento exige a manipulação
de seres humanos. Assim, o domínio da natureza biológica dos seres humanos corres‑
ponderia a um aumento (inseguro) das capacidades de uns à custa de outros: seria —
como já advertiu C. S. Lewis na década de 40 do século passado — não a expressão de
que atingimos o último elo da cadeia do nosso domínio sobre a natureza — ao dominar
o próprio organismo biológico —, mas corresponderia antes ao domínio de uns homens
sobre outros, servindo-se da natureza como meio15.
A questão do domínio sobre os seres humanos agudizou-se sobretudo por duas
­razões: por um lado, pela radicalidade das intervenções para que aponta o melhora­
mento, dado que parecem pôr em causa a identidade humana daqueles sobre quem
­agimos e, por outro lado, pela irreversibilidade dessas intervenções. Mesmo que nos
mova a melhor das intenções, temos realmente o direito de correr riscos e de manipular
os outros, fazendo-os ser ou intervindo para que sejam à imagem dos nossos sonhos, ou
do que nós gostaríamos de ter sido?
O segundo argumento, a que gostaria de aludir para concluir estas páginas,
­questiona a própria noção de «melhoramento» quando aplicada aos seres humanos.
Deu origem a um conjunto de reflexões desenvolvidas na literatura bioética mais

13
Para uma consideração mais detida dos principais argumentos de cada uma das posições referidas, cf. ­MENDONÇA,
2008: 205-230.
14
WECKERT, 2016: 87-99.
15
LEWIS, 1943: 33.

577
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

r­ ecente16. Como é evidente, o desejo e a intenção de intervir sobre a natureza humana,


tal como ­estes se equacionam no projeto do melhoramento humano, pressupõe não só
que os seres humanos são diferentes mas também que os há melhores e piores: uns são
bons e outros nem tanto. Ora, o que é que isto quer dizer? O que quer dizer «melhora‑
mento humano»? Em que sentido, ou por que razão, são melhores, enquanto humanos,
determinados indivíduos capacitados tecnicamente para determinados desempenhos?
A analogia vem evidentemente da produção técnica e das intervenções em ­torno
do chamado «apuramento da raça» praticado natural ou artificialmente em animais
e plantas.
Quando falamos de um «computador melhor» sabemos o que estamos a dizer: o
computador é concebido e desenhado para desempenhar uma função, para cumprir
uma finalidade, e o último modelo cumpre-a melhor; desempenhar essa função é a sua
razão de ser e fazê-lo de forma mais eficaz constitui uma razão de excelência. Noutros
casos, o juízo é menos simples. É o que acontece, por exemplo, quando consideramos
simultaneamente vários critérios. O que é melhor para um portátil: ser mais rápido, mais
leve ou ter maior autonomia? Não sendo possível ter tudo ao mesmo tempo, ou havendo
a possibilidade de que estas características desejáveis se condicionem reciprocamente
de forma negativa, a decisão sobre a excelência obriga a hierarquizar os critérios. Mas
a hierarquização pressupõe inevitavelmente uma apreciação subjetiva, isto é, obriga a
­determinar o que é mais importante para o utilizador. Ora, como é evidente, os critérios
de importância não residem no objeto, dependem totalmente dos nossos interesses e,
por esta razão, a excelência dos objetos técnicos define-se em termos instrumentais.
Voltemos então ao melhoramento: o que seria um «ser humano melhor»? E é
­melhor para quem? Se quiséssemos transferir para os seres humanos o mesmo tipo de
juízo acerca da excelência que realizamos quando nos referimos aos objetos ­técnicos,
teríamos que dizer que o melhor ser humano seria aquele que melhor cumprisse a fina­
lidade para a qual existe. Mas que finalidade é essa? É ela de natureza técnica ou tecni‑
camente otimizável? É ver mais, recordar mais, pensar mais, viver mais? Parece claro
que o acordo sobre o nível mais elevado de perfeição — sobre o que é melhor —, que
é relativamente consensual quando falamos de objetos técnicos, não é transferível para
os seres humanos, e não o é porque os seres humanos não são criados com uma finali‑
dade extrínseca: cada um deles pode fazer muitas coisas e não há uma que seja suposto
que tenha que realizar. Assim, embora a capacidade de fazer raciocínios abstratos seja
parte do bem humano, a produção de pensamentos abstratos não se apresenta como o
propósito da nossa existência. Igualmente, poder usar todos os órgãos de acordo com
a sua finalidade pode ser parte do bem humano, mas nenhum deles (nem nenhuma
­

16
HAUSKELLER, 2013.

578
O «MELHOR AMENTO HUMANO» E A DISCUSSÃO SOBRE OS LIMITES DO FAZER

outra habilidade) pode identificar-se com o propósito da nossa existência, pelo que a sua
poten­ciação não pode ver-se como um fim que se justifique por si próprio.
O caso dos animais e das plantas resulta sugestivo. Também eles têm fins intrín­
secos e também eles carecem de um propósito ao surgir: não surgiram para cumprir
uma finalidade imposta pelos seres humanos, como acontece com os objetos técnicos.
Somos nós que lhes atribuímos finalidades extrínsecas e por isso fazemos enge­nharia
­genética. Definimos padrões externos de excelência ou de bondade: dar mais leite,
crescer mais rapidamente, resistir a certas bactérias, etc. Mas, também neste caso, só
podemos ­assimilar o melhoramento de uma capacidade ao melhoramento do animal
ou da planta como tais se identificarmos o fim do animal com o fim que nós próprios
lhe assignámos.
Voltando ao caso dos seres humanos: a maioria de nós resiste a identificar os
indivíduos humanos com os fins particulares que eles próprios servem, quer se trate
de fins escolhidos pelos próprios indivíduos quer se trate de fins atribuídos sem esco‑
lha. Não identificamos os seres humanos com o papel que desempenham e tendemos
a consi­derar que identificá-los com esses papéis seria uma forma de manipulação ou
de instrumentalização.
Tendo em conta este tipo de limitações sobre o sentido do «melhoramento» ­quando
aplicado aos seres humanos, Allen Buchanan17 sustenta que a tentativa de melhorar os
seres humanos pode correr mal pelo menos por duas ordens de razões: 1) porque pode
falhar o objetivo; e 2) porque pode alcançar o objetivo visado, mas tornar-nos piores e
não melhores. Não sabemos que melhoramentos podem ser considerados «melhora‑
mentos humanos» e quais não podem ser assim considerados, e também não é claro que
tipo de melhoramento e de que capacidades nos faria melhores seres humanos e porquê
exatamente. Ora, se não sabemos definir o que faz um ser humano bom do ponto de
vista técnico, como saber o que o faz melhor?
Talvez a única resposta aceitável e não extrinsecamente manipuladora fosse
­sustentar que é objetivamente um melhoramento aquilo que promove a própria felici‑
dade. Com efeito, a felicidade parece ser o único fim intrinsecamente valioso, enquanto
tudo o mais ou é valioso como meio para alcançar a felicidade ou não é em absoluto
valioso. Mas, também aqui — prossegue Buchanan18 — a solução não é a que tendem a
antecipar os promotores do melhoramento humano: com efeito, a felicidade e o bem-
-estar dependem de muitas coisas, e é tudo menos óbvio que aquela dependa essencial‑
mente de intervenções de natureza técnica ou que tenha que passar por elas. Os planos
mais altos da realização humana — e, portanto, da felicidade — não parecem situar-se
em ações de natureza técnica, mas sim em ações de natureza ética e teórica: a felicidade

17
BUCHANAN, 2011: 4.
18
BUCHANAN, ibid.

579
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

parece ter mais que ver com esse tipo de vivências do que com a perfeição física tecnica‑
mente induzida; e é ainda mais claro que esta perfeição física não a assegura. Mais ainda:
habitualmente a felicidade nem sequer parece requerer o refinamento das capacidades
cognitivas ou emotivas de que somos portadores. Subjetivamente considerada, a felici‑
dade tem mais que ver com a capacidade de protagonizar a própria vida e de a conduzir
de acordo com um sentido do que com a possibilidade de a manipular para que em nós
se realizem sem esforço os fins a que aspiramos.

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580
O «MELHOR AMENTO HUMANO» E A DISCUSSÃO SOBRE OS LIMITES DO FAZER

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[Consulta realizada em 12 /08/2018].

581
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

582
AS CRISES DO FAZER NO ANTROPOCENO
JORGE LEANDRO ROSA*

Resumo: Na sua forma infinitiva, o fazer manifesta a pandemia metafísica que mobilizou as técnicas
­humanas em torno de uma produção de impotência generalizada dos sujeitos movidos por necessidades.
O fazer passou a abranger tanto os processos técnicos que lhe são adequados como a produção do ambiente
propício a essa infinitização. Neste texto, esboçam-se alguns dos traços de uma época de mercantilização/
geologização do âmbito do homo faber.
Palavras-chave: Antropoceno; mundo; physis; técnica; produção.

Abstract: In its infinitive tense, making brings to light the metaphysical pandemics that mobilizes ­human
technologies in order to produce generalized impotency of those agents compelled by necessities. As it
nowadays presents itself, making contains both adequate technical procedures and the production of
an adequate environment to such infinitization. This essay sketches some traces of such a time defining
­commodification/geological becoming of the homo faber scope.
Keywords: Anthropocene; world; physis; technics; production.

A era moderna é uma guerra conduzida sem descanso há cinco séculos


para destruir as condições do ambiente da subsistência e substituí-las
por mercadorias produzidas no quadro do novo Estado-nação.
Ivan Illich

* Instituto de Filosofia da Universidade do Porto. Email: jorgeleandro.rosa@gmail.com.

583
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

INTRÓITO
Algo vai sendo feito dentro do «fazer». E algo é aí desfeito. Só através da sua norma­
lização social é que o fazer pode manifestar-se a partir de uma unicidade operativa e
teleológica. É o discurso ideológico segregado pela mercantilização da produção que
apresenta o fazer como um todo constituído em torno da práxis articulada com o v­ alor.
Poucos discursos críticos foram capazes de voltar a articular práxis e subsistência,
­poucos foram os autores que pensaram a multidimensionalidade da necessidade do fazer
no seu confronto com o fazer da necessidade. Na sua crítica da sociedade dominada pela
proliferação de mercadorias, geradora do que então chamou a «crescente desutilidade
da produção industrial», Ivan Illich definiu a «pobreza modernizada»1 como condição
da grande maioria da população que havia entrado nalguma fase da era industrial. Não
nos enganemos: a «pobreza» designa neste autor um resultado da potenciação industrial
do fazer alimentado pela sua própria contra-produtividade. A «pobreza» não ­reside na
­insipiência que estivesse associada ao «fazer» mas antes na sua exponenciação s­ egundo os
protocolos do sistema industrial. Estes protocolos vão hoje muito para além da c­ adência
e da diversificação do que é produzido: formam um agregado pré-individual, um meio
altamente favorável à gramatização2, quer dizer, ao domínio de regularidades nas produ‑
ções e à discretização dos fluxos onde se encadeiam atos simbólicos e materiais.
Eram as engenharias da produção, do abastecimento, da circulação que estavam na
sua mente. Mas a definição illichiana pode ser hoje alargada a uma animação geral, não
só do sistema social, económico e tecnológico, mas igualmente implantada em camadas
profundas dos sistemas, incluindo o sistema-Terra: alguns autores têm vindo a designar
como Antropoceno a temporalização dessa animação generalizada. Se perspetivarmos
essa animação na sua complexidade, perceberemos que ela não se conforma à genera‑
lidade dos conceitos antropológicos do «fazer»: será necessário, para além das ruturas
paradigmáticas neste, como aquelas que têm construído a história da técnica, incluir aí
mudanças mais radicais que nos orientam para uma redistribuição das «potências do
agir»3, para o alargamento da intencionalidade a atores não-humanos, assim como para
a diluição da intencionalidade totalizada.

1. Recorremos demasiadas vezes a conceções herdadas do fazer que, além de


i­gnorarem o trabalho filosófico que a seu propósito foi realizado nos últimos dois
­séculos, deixam de lado toda a analítica das ações e retroações do meio pelo qual o f­azer
humano se tem vindo a constituir e a transformar. Com efeito, o fazer humano e o agir
não-humano necessitam de ser hoje considerados na metamorfose da sua implicação

1
ILLICH, 1978.
2
STIEGLER, 2004.
3
LATOUR, 2015: 132.

584
AS CRISES DO FAZER NO ANTROPOCENO

mútua, o traço ontologicamente mais surpreendente da hipótese do Antropoceno.


O nosso propósito está centrado na reavaliação filosófica dessa complexidade ôntico-
-dinâmica. Sublinhe-se que a descrição filosófica dos processos que convocam simulta­
neamente o mundo e o sujeito humano se encontra sobrecarregada de pressupostos
metafísicos. De entre esses conceitos, aquele da «produção» anuncia-se como o mais
essencial e o mais eivado de equívocos. A descrição da organização técnica e económica
da produção, entendida como uma unidade ontológica formada em torno da vontade,
tem ocupado o horizonte da interrogação, sem que sejam aí consideradas as formas da
passibilidade viva e inorgânica.
A metafísica da vontade — que tão embebida está nos nossos processos sociais e
técnicos — promove uma objetivação radical de todas as coisas. Como escreve ­Michel
Henry, «de tudo o que é ela faz um objeto, um objeto para um sujeito, um objeto ofere­
cido ao domínio e à ação de um sujeito, esse sujeito que representa para si essa coisa e se
assegura dela na sua própria representação»4. Ora, interessar-nos-á interrogar as r­ elações
profundas da vontade com o que dela se apresenta desprovido, embora seja suposto dela
derivar: a representação na sua relação de implicação com o próprio fazer. Hegel, que
entendia a vontade como produção da objetividade, coloca por isso ­mesmo a estrutura
interna da ação na dependência da representação. Esta deve aqui ser compre­endida no
seu sentido mais abrangente: como uma representação do ser enquanto ente que se faz
objeto de um sujeito. Ao almejar alcançar as coisas no seu aparecer, a ­produção, na era
das teorias do conhecimento, desdobra-se no fazer aparecer a coisa e no fazer ver esse
aparecimento. Nada compreenderemos da entrada do fazer no campo da p ­ rodução se
não tivermos em conta um desdobramento que virá a abolir, após uma fase de agudi­
zação do debate epistémico entre ciência e técnica, toda a distinção entre a teoria e
a prática.
A prática, no sentido propriamente práxico em que um Marx virá a entendê-la,
precede essa construção metafísica, dado que foi ela que instalou a existência dos que
são dotados de agir neste mundo. Mas sendo essa prática aquela de indivíduos concre‑
tos empenhados na conservação da própria vida, nenhuma razão haverá para entender
que exista uma práxis disponível para o trabalho unificador da teoria. De certa forma, a
prática é já uma recusa da teoria, mesmo quando esta ainda não se encontra formulada.
O fazer que age sem vislumbre da teoria não é aquele que ignora mas o que resiste.
Resiste, obviamente, à sua cisão interna. Porque, ao contrário de certas ações, não há fazer
que não comporte um saber que nele se desdobra como intuição. É esse, aliás, o segredo
da produção: ela necessita de uma teoria mas não a procura senão na práxis pela qual
se desenvolve.

4
HENRY, 1975: 194.

585
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Acontece, contudo, que o segredo da produção pode ser traído, o que corresponde
às circunstâncias históricas em que ela se industrializa e globaliza. O seu segredo —
um segredo feito de agenciamentos — só pode ser traído quando a sua reprodução é
­entregue ao trabalho morto dos dispositivos (Marx diria «das máquinas»). O trabalho
das máquinas está morto porque coloca uma operação teórica (alguns dirão «­ técnica»,
o que é um erro, já que todo o trabalho humano se entrelaça necessariamente com
­alguma técnica) no fundamento da prática. É que a máquina afirma, pelo seu funcio‑
namento, uma teoria que, não apenas sustenta o seu lugar na produção, como o orienta
prescin­dindo da «visão» intuitiva que a práxis abria no fazer humano. Ao fazê-lo, faz
entrar o fazer numa nova era, letal para o pensamento daqueles que pretendem ver aí o
casa­mento exemplar da teoria e da prática. É o que Marx diz brutalmente na Ideologia
­Alemã: «Feurbach fala em particular da conceção da ciência da natureza, evoca segredos
que só se fazem manifestos aos olhos do físico e do químico; mas onde estaria a ciência
da natureza sem o comércio e a indústria? Mesmo para esta ciência da natureza dita
«pura», não serão somente o comércio e a indústria, a atividade material dos homens,
que lhe atribuem um fim e lhe fornecem os seus materiais?»5. E noutra passagem do
mesmo livro, ele acrescenta que Feuerbach «capta o mundo apenas enquanto objeto
sensível e não como atividade sensível»6.
Segundo Marx, a atividade industrializada é aquela que tende para um valor «zero»
precisamente por circunscrever o fazer a uma coordenação do humano e do natural. Na
sua situação industrial, o fazer está necessariamente limitado por um incessante ajusta­
mento mútuo do humano e do natural: ele não pode singularizar o valor de um ente
natural, mas também lhe está vedado atribuir-se uma singularidade que possa exibir
no produto do seu trabalho. Todas essas singularizações — arrancadas a processos de
estabilização teórica — obstaculizam a rotina indispensável ao trabalho industrializado:

Esta atividade, este trabalho, esta criação material contínua dos homens, em
suma, esta produção é a tal ponto o fundamento de todo o mundo sensível atual­mente
existente que, caso ela se interrompe-se, mesmo que fosse por um só ano, não apenas
­Feuerbach viria a encontrar uma enorme mudança no mundo natural, como não
tardaria a ­constatar que estaria a faltar-lhe todo o mundo humano e a sua p­ rópria
faculdade de intuição, se não mesmo a sua própria existência7.

Ainda hoje parece notável que a crítica dirigida por Marx aos modos de ­produção
industriais se dirija, precisamente, aos pressupostos ­teóricos que os orientam para a
­unificação, quer dizer, à suposta essência comum do humano e da natureza, que aí se
5
MARX, 1846: 55-56.
6
Ibid., p. 56.
7
Ibid., p. 56.

586
AS CRISES DO FAZER NO ANTROPOCENO

faria visível através de um processo de objetivação que a ambos atingiria. Marx, é preciso
dizê-lo, criticou a oposição do humano e da natureza, não para assim abrir uma unici­
dade ontológica do mundo, mas para sublinhar a h ­ eterogeneidade ontológica da prática
e da teoria, caminho que mais nos aproximará da experiência do fazer.

2. Existe um pequeno e luminoso texto de Castoriadis simplesmente intitu­lado


Physis, criação, autonomia8 que toca o fundo (no sentido ontológico do termo) do
que aqui queremos dizer. Afirma aí o autor dos Carrefours du labyrinthe que um dos
­momentos decisivos do pensamento grego é aquele em que se estabelece a distinção e,
até certo ponto, a oposição entre physis (o crescimento das coisas, o seu auto-engendra‑
mento) e nomos (a lei da repartição, a instituição, o uso). Aristóteles quis ultra­passá-la,
mas confrontou-se com dificuldades epistémicas, culturais e mesmo linguísticas aparen­
temente insuperáveis. Julgamos que essa distinção se veio a colocar no centro do que
podemos entender como um «fazer» ocidental, no núclo da sua construção técnica,
­embora seja necessário sublinhar que a técnica se pode conformar a essa constituição
mas pode também assumir, de um modo que seria irreconhecível para o Estagirita, o
projeto aristotélico.
A nossa pergunta visa, aqui e hoje, no Antropoceno, essa ultrapassagem da
distin­ção, a obsolescência da oposição physis/nomos. Perguntamos se será a entrada
no A ­ ntropoceno, não tanto o resultado da potenciação do velho jogo da physis com o
­nomos, em que estas se co-delimitam, mas sobretudo a realização tecno-científica de um
sonho de infinitização das duas dimensões. Perguntá-lo significa já dizer que a pergunta
pelo fazer contém um quiasmo, um X, que nos subtrai à suposta linearidade do fazer/
fazer-se. Acreditamos que temos, no debate que aqui estamos a realizar em torno dos
«modos de fazer», a oportunidade de prolongar esta interrogação.
Para aqueles que foram educados na constituição physis/nomos, a súbita animação
do Antropoceno, problematizadora das noções de sujeito e agente, é chocante e indu‑
tora de uma perceção de denegação geral da sociedade. É verosímil que o problema
do agencia­mento esteja no centro deste panorama que nos deveria encher de ­espanto
se ­fossemos sociedades autónomas e auto-reflexivas. Relembremos em que sentido se
usam aqui os termos physis e nomos: a physis tem duas aceções: (1) como telos, signifi­
cando que a ­natureza é aquilo que tem em si o fim de se fazer ou de se constituir;
(2) como movi­mento, significando que a physis é a essência das coisas que têm em si o
­princípio do movimento, ou seja, que têm em si a própria origem. O que move a natu­
reza é Eros, puro desejo (e não amor do outro, no sentido cristão). É natureza o que
se move por si, o que se origina por si, o impulso para a forma presente na matéria.
Signi­fica isto que a natureza «tende a ser o que era». Por seu lado, o nomos ­acompanha

8
CASTORIADIS, 1997: 236-249.

587
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

este ­engendramento mas sob o termo da «autonomia», que seria exclusiva do u ­ niverso
humano. Mas ­Francisco V ­ arela, um biólogo conhecedor destas questões, fala de «auto‑
nomia ­biológica», ­denotando as relações que podem ser detetadas entre a auto-geração
da p­ hysis e a autonomia do nomos. O vivo cria o seu mundo na medida em que é fim de
si mesmo (enquanto indivíduo, espécie, meio ambiente ou planeta). Também o ­humano
cria o seu mundo, a sua auto-finalidade, de que o Ocidente ouve falar apenas numa
­aceção hegeliana ou neo-hegeliana.
No seu esteio maioritário, o Ocidente acreditou que este auto-engendramento era
sucessivo, uma passagem de testemunho entre a finalidade da natureza e a finalidade da
humanidade, em que a primeira poderia ser substituída com vantagem por ­processos
provenientes da segunda. O cristianismo foi, aliás, capaz de introduzir o auto-engen­
dramento na heteronomia da criação. No Antropoceno, o pressuposto da sucessão
parece em grande medida anulado: os engendramentos entrecruzam-se. ­Entramos,
aparentemente, numa era da geração híbrida. Esse hibridismo tem uma consequência
maior: se a nós, humanos, a auto-formação da physis nos pareceu sempre obscura e
de d ­ ifícil apreensão, a sua introdução nos processos socializados da tecnociência vem
alargar dramati­camente essa obscuridade ao fazer humano, subsumindo-o. ­Entramos
numa situação em que, como disse Hannah Arendt, os que têm o poder de fazer já
não têm o poder de compreender o que fazem. Se se quiser assim formular, p ­ assamos
da era prometeica à era epimeteica. É aqui que lembramos Castoriadis e a sua aproxi­
mação — sem as confundir — das dimensões de autocriação na natureza com a dimen‑
são da autonomia no nomos: a sociedade autónoma, de que estamos tão longe e que é
mais do que a sociedade d ­ emocrática, toca e precisa da natureza que tem os seus fins
­próprios. É aliás de ­sublinhar que Arendt não está a falar de uma sociedade onde só os
especialistas ­compreendem a ­ciência, onde há uma divisão entre profanos e sábios: ela
fala de um mundo onde os sábios (figura evidentemente devorada pela tecnociência)
não ­compreendem, eles próprios, o que fazem. E lembra Schrödinger, que dizia que o
­universo da física quântica não era pensável no sentido próprio do termo. Mas aí ainda
subsistia, em fundo, a divisão entre o profano e o especialista. Ora, nós estamos num
mundo — o Antropoceno — em que o choque da incompreensão está entrelaçado com
as ações da tecnociência.
O fazer humano é, por definição, um gesto em crise, quer dizer, o movimento
de uma oportunidade, a necessidade suscitada por um obstáculo, por uma falta, uma
neces­sidade de adaptação. Mas esse tipo de crise era desencadeada pelo encontro com
uma esfera exterior à técnica, o que ancorava a técnica numa relação com a finitude
humana. O que se passa nesta fase da tecnociência pode ser descrito, como o fez Peter
Sloterdijk, como construção da esfera: é preciso desanimar o mundo «real», o ­mundo
da physis, com a profusão de finalidades estranhas que o habitam, a fim de animar uma
esfera de intimidade narcísica, uma bioesfera que seja melhor e mais obsidiante do que

588
AS CRISES DO FAZER NO ANTROPOCENO

qualquer ecosistema. «Os homens são as criaturas que estabelecem mundos c­ irculares
e daí olham para o exterior, para o horizonte»9. Como preferem habitar a esfera, uma
esfera gnóstica que, ao fim e ao cabo, é feita para que aí se possa pôr a pergunta «o
que é o mundo?», os humanos não parecem existencialmente interessados no mundo
como physis. Mas ­também o mundo do nomos se encontra fratalmente estilhaçado pela
tecno­logização da esfera imunológica, o processo definidor da modernidade industrial.
Sem uma relação com a alteridade da physis ou com o político da autonomia, a tecno­
ciência tem vindo a assumir as tarefas de definição de ambas as dimensões. Encon‑
tramo-nos hoje numa crise diferente de todas as outras — poderemos explicitar essa
­diferença mais adiante —, uma crise que não deixa de ser característica da hominização,
quer dizer, da temporalização do humano na sua relação com a técnica, mas uma crise
que não pede nenhum agir decisivo, nenhuma interpretação, que não possui nenhum
­exterior. A catástrofe fundamental, de que as crises não são mais do que a emergência
de ­algum aspeto, é essa dupla desistência das sociedades: abandonaram toda a relação
cultural ou simbiótica com a physis e desistiram da autonomia construída por meios
políticos. Necessariamente, e dada a húbris que nos caracteriza, tal teria de desembocar
numa nova era geológica, único estrato taxionómico cuja profundidade temporal abre
esse abandono.
Na sociedade moderna, a técnica estava integrada num dispositivo de condução do
mundo que incluía a ciência (na sua autonomia) e a política. Hoje, a coerência simbólica
e prática desse dispositivo está rompida: sabemos que as nossas operações no mundo já
não apresentam uma coerência visível. A nossa determinação de valores não é acompa­
nhada pela nossa determinação dos factos. Esta dissociação abriu o caminho à fragili­
zação dos acordos, que configuravam o trabalho político da aproximação ao acordo
dos que discordam. Agora, os desacordos transformaram-se numa matéria plástica que
pode tanto ser expandida como anulada, mas que funciona bem como motivo plástico
que não é simétrico nem repetitivo.
Subitamente, nesta fragilidade simbólica, o colapso da ordem natural foi «naturali‑
zado», ou seja, a natureza deixou de ser a alteridade, aquilo em que estamos de passagem,
e passou a ser ela mesma pura passagem, elemento instável cujos desacordos ­internos
podem ser aproveitados produtivamente. Nessa insubstancialidade da natureza, ela que
é o sinónimo do que pode manifestar-se imprevisivelmente, a natureza passa a ser o
que não existe. Não existe mas ameaça regressar, como o recalcado que está sempre a
manifestar a sua presença, presença tanto mais insidiosa quanto é a presença do que
não tem existência. Nesta ordem de ideias, a Terra transformou-se toda ela na América
pré-colombiana: uma não existência que só pode passar a existir através da rasura do

9
SLOTERDIJK, 1998: 31.

589
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

que nunca aí poderia ter existido. Por isso, o Antropoceno é a era geológica do homem:
passará a haver Terra depois deste geo-fantasma ser conduzido ao seu destino.
Ponham-se de lado os problemas epistemológicos e as questões estritamente polí‑
ticas que conduzem a esta observação. O sistema coerente que governou o mundo desde
o século XVII até ao XX ficou exposto a uma série de perplexidades e a um conjunto
de efeitos inesperados que vieram modificar o papel e a imagem da técnica. Esta pôde
­assumir a sua pluralidade constitutiva, abandonando a vigilância de programas meta­
físicos que a constrangiam. Mas esse processo não significa que a técnica tenha entrado
em autogestão ou se tenha constituído segundo as velhas representações da soberania.
A sua autonomização é relativa, já que leva consigo fragmentos, por vezes farrapos,
de ­velhos programas científicos, políticos e metafísicos. Esses farrapos são expostos às
­misturas que estão ativamente a ser injetadas nas velhas sociedades humanas. O que a
técnica ­adquiriu foi a capacidade de se apoiar no que resta desses programas para incre‑
mentar a sua autonomia, a sua própria experimentação dos domínios. De certa forma, é
ela que tem impedido a reconstituição desses programas na sociedade, já que lança sobre
eles a sombra da sua presença incontornável. O complexo técnico regula hoje as socie‑
dades sem precisar de se apresentar como um regulador. Propõe uma criativi­dade social
precisamente porque prescinde da ideia de sociedade ou de uma conceção do p ­ olítico.
Age sectorialmente, na certeza de que as ligações que a partir daí se farão comportam
um modelo favorável à migração dos modelos entre sectores. Já não é a sociedade que
cria o seu mundo com vista à autonomia, que o preenche de sentido e a­ rmazena ­reservas
de significação a que possa recorrer quando o imprevisto se apresenta. O complexo
­técnico incorpora elementos das antigas instituições do sentido, mas está também vigi‑
lante para que estas não se reconstituam e não voltem a autonomizar-se. Nesse sentido,
a técnica está hoje ligada a um infra-poder, a um imaginário que nunca explica — tal
seria a proposta do imaginário político ou cultural —, mas que mostra, e mostra deslo‑
cando os seus ­investimentos e os seus resultados. A magia da técnica (que volta a ser um
dispo­sitivo de aparições inopinadas) age pela deslocação, manifesta-se pelo fetichismo
da deslocação. Desde logo, grandes deslocações das funções simbólicas e sociais: que
não provêm já dos valores herdados mas de uma dinamização dos seres e das forças.
E, em paralelo, grande deslocação da ética e da estética, que dissolvem a atribuição de
forças aos seres, passando a fazer dos seres forças e das forças seres.
A técnica fica portanto desinibida diante dos traços ontológicos dos seres com
que interage. Estes aparecem como elementos de um contínuo legível e controlável:
­infindáveis processos de transformação e substituição das espécies. Podemos dizer
que esta ultrapassagem do modelo ambientalista, que estava bloqueado na preser­
vação, vem i­ncrementar o puro agir técnico, que é da ordem da invenção, incluindo a
­invenção do e­ stado natural. No fim de contas, trata-se mais de criar o meio ambiente
favorável à p­ rópria técnica do que de obrigá-la a agir para sustentar um ambiente que

590
AS CRISES DO FAZER NO ANTROPOCENO

favoreceu outras e­ spécies. Para compreendermos o espaço que estamos a dar à técnica,
e enter­radas que estão as conceções instrumentais dela, teremos de percebê-la como
um ser que necessita de um contexto favorável aos seus possíveis. Fazendo este pequeno
exer­cício, veremos que nenhum contexto é mais favorável ao seu desabrochar, ao seu
­épanouissement, do que os cenários catastróficos onde se dissolvem finalmente os cálcu‑
los dos agentes racionais que tinham por hábito manter hierarquias ontológicas rígidas.
Diante da contradição atual — (1) preserva-se este estado do ambiente para estes
seres; e (2) preserva-se o agir do complexo técnico, incluindo o seu motor térmico —
podemos perguntar-nos qual dos dois modelos está na mente dos decisores políticos,
militares e económicos. Suspeita-se, contudo, que ninguém tenha tomado uma d ­ ecisão,
já que todos se foram apercebendo de que as deslocações da técnica transportam em si
um contra-modelo sempre mais poderoso do que qualquer modelo em que se queira
intervir. Do poder dessas deslocações depende o seu poder — mesmo patético, m ­ esmo
simbólico. Bruno Latour escreveu que «os modernos querem o impossível e têm ­razão».
Mas acrescentou que era necessário mudar de impossível. Tratar-se-ia, portanto, de
­deslocar os pactos, criando uma nova topologia dinâmica que permita aos modernos
(ou aos «ex-modernos») subsistir fisicamente neste mundo. E que lhes permita desco‑
brirem, talvez, que «afinal nunca terão sido modernos»10.
É verdade que não basta saber o que uma técnica faz para sabermos o que ela signi‑
fica. Mas é também verdade que a sua semiologia, a sua representação e i­ nserção cultural
não chegam para deter o decurso da sua tecnicidade. A evolução técnica d ­ ecorre de um
acoplamento do humano e da matéria mais complexo e ontologicamente mais profundo
do que a simples relação entre sujeito e objeto. Não é fácil elucidar esse laço porque ele
não parece estável. Não acreditamos que se possa hoje repetir a simples a­ firmação de
que a técnica vem prolongar a relação orgânica com o mundo material. Pelo ­contrário,
­julgamos que o dilema da técnica reside no âmago da condição do ­humano como ser
vivo, do seu dilema de ser vivo dotado de linguagem ou de um certo tipo de c­ onsciên­cia
que se abisma na inadequação. Ainda assim, o humano estabelece uma relação zootec­
nológica com a matéria, que, sendo inerte, não deixa de possuir uma organização ­própria
que se transmite ao objeto técnico.
Há um enigma do mundo material que tocamos pela técnica. Essa matéria que é
tecnicamente alterada (tecnomorfologicamente organizada) não é passiva: o ­princípio
técnico não é simplesmente introduzido por uma força organizadora — o humano —
que seria expressão de uma intenção anterior à frequentação da matéria. Na relação
com a matéria, o tempo opera selecionando formas técnicas ou manifestando a tecni‑
cidade dos materiais e das morfologias. Trata-se ainda da presença do hilemorfismo
aristo­télico, mas aqui reanimada pelo desenho profundo que a techné lhe imprime.

10
Cf. LATOUR, 1991.

591
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Os ­críticos do ­hilemorfismo, que aí viram uma dualidade entre forma e matéria, não se
­terão aperce­bido da relação íntima que essa tese mantém com a teoria do movimento do
Estagirita: todo o corpo em repouso se encontra em relação com o movimento, ou, como
diz Aubenque, «está sempre inquieto»11. Pela mesma razão, o mundo, no seu ­conjunto,
comporta sempre movimento. A coextensividade da natureza e do movi­mento permite
o devir técnico do mundo.

3. As crises do fazer são também as crises de alguns pares antropológicos bem


conhecidos: o par da cultura/natureza; o par humano/não-humano; o par produção/
crescimento; mas também os pares intencionalidade/não-intencionalidade; espécie/in‑
divíduo; vivo/inerte, etc. Bernard Stiegler, na sua onto-história da técnica (e s­ eguindo
Heidegger), acrescentaria o par Prometeu/Epitemeu, que muito sumariamente lembra­
remos constituir a oscilação entre a técnica como projecção egológica do sujeito h ­ umano
e a técnica como formalização do esquecimento e da ausência de qualidades do ente
humano. O fazer humano pode, assim, ser tanto a manifestação do animal sábio como
do animal na sua idiotia. O idiotès é aquele que se esquece. Mas é também aquele que
­encontra algo à mão, a que vai recorrer, não só porque está ali, mas porque o que assim
está aparece como dádiva inesperada, surpresa vinda da Terra-mãe, da deusa ctónica.
Este tempo inicial do fazer humano, o tempo das surpresas onde se mistura oportu‑
nidade e terror, húbris e ingenuidade, será progressivamente substituído pelo tempo
da engenhosidade, da procura da boa matéria para os artefactos, dos transportes e do
­comércio dos materiais. Será o tempo do faseamento dos processos técnicos, o tempo da
infinitização do esquecimento que, em vez de percorre a práxis e a alimentar, nela passa
a agir como motor.
Esta é uma boa caracterização do fazer humano enquanto técnica: encontrar o que
está à mão; moldar o que está à mão; transformar o que está à mão: nos humanos, o gesto
da mão é um gesto ontológico que define o seu ser e a relação com os outros seres. Todos
os seres vivos se constroem a partir do seu entorno, que pode ser permanente ou ­variável,
abundante ou escasso. Mas o humano parece encontrar, antes de qualquer coisa, uma
falta que o projeta para além da abundância e da escassez. Esta falta não é uma e­ scassez
temporária, já que a falta nunca é colmatada: a uma falta sucede outra, p ­ arecendo que a
primeira nesta permanece sob a forma do esquecimento. O ­humano acumula faltas e essa
acumulação tanto pode ser o objeto de dispositivos míticos ­quanto da técnica. ­Apanhar
o que está à mão favorece a dívida e a culpa, por exemplo, o ­«de-feito». Em P ­ rometeu, o
ser aparece indefinidamente remendado, acidental por ­essência (quase j­ulgamos ouvir
«ocidental»). Passar de ser uma coisa a ser um quem parece exigir ao humano esta tecni‑
cização culposa. As técnicas de si (Foucault) desdobram-se como t­ écnicas da natureza.

11
AUBENQUE, 1962: 426.

592
AS CRISES DO FAZER NO ANTROPOCENO

A ciência virá a tentar superar essa falta da manipulação. Nasce com a suspensão
do gesto da mão, não agarra no que está à mão. Ou não agarra de imediato, antes institui
uma reserva, uma suspensão. Esta suspensão foi lida de várias maneiras ao longo dos
cinco séculos do projeto científico moderno. É claro que suspender o gesto não significa
retirar-se de alguma relação com a tecnicidade. Vemos hoje como que uma intersecção
em ciclos cada vez mais rápidos entre o gesto da manipulação e a sua suspensão. Como
no movimento aparente aquando da projeção do filme analógico.
Pode-se deduzir destas observações que não entendemos o fazer como aquilo que
encontra em si mesmo a sua origem e o seu fim.
Todos sabemos que os humanos transformaram o meio ambiente, a fim de o
­adequar aos seus interesses e necessidades. Esse meio deixou de ser «natural» num
­sentido da visualidade e da topologia: se sairmos de uma sala antropologicamente
propor­cionada, veremos árvores, mas estas foram dispostas em espaços pré-determi­
nados. Em contrapartida não veremos quase nenhuns animais, e aqueles que vemos
­estão confinados a uma certa existência doméstica ou são habitantes clandestinos.
­Fazemos o meio ambiente e, neste, também fazemos as formas das coisas e as e­ spécies
que nele se encontram. Autores como James Lovelock estendem esta capacidade de
transformação do meio a todos os agentes vivos. A capacidade dos humanos refazerem
tudo à sua volta é uma propriedade geral do vivo. Esta generalização do fazer — que sai
da antropologia e se estende à ecologia — tem sido avançada como um contra­ponto
ao a­ ntropocentrismo presente nas ciências naturais e nas ciências humanas. Mas há
­também um reverso: um agenciamento generalizado pode ser entendido como uma
potenciação do agencia­mento direcionado dos humanos. Quanto mais generalizamos a
noção de intencionalidade a todos os agentes menos estaremos em condições de detetar
a intencionalidade na sua totalidade12.
O conceito de Antropoceno, embora não inédito, começou a adquirir foro cientí­
fico com uma nota publicada no ano 2000 por Paul Crutzen (prémio nobel da q ­ uímica)
e Eugene Stoermer no boletim do International Geosphere-Biosphere Programme.
A eles veio a juntar-se Will Steffen, que esteve em Portugal e é o co-autor da investi­
gação seminal que resultou nas chamadas fronteiras planetárias (planetary boundaries),
os intervalos de variação dos nove parâmetros que estabelecem o desvio do estado do
­Sistema Terrestre das condições existentes no Holoceno e que permitiram, nos últimos
12000 anos, o desenvolvimento da civilização humana.
Aí afirmavam:

Tomando em consideração estes e muitos outros impactos ainda em ­cresci­mento


das atividades humanas na Terra e na atmosfera, e isto em todas as escalas, i­ ncluindo

12
LATOUR, 2015: 133.

593
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

as globais, parece-nos mais do que apropriado enfatizar o papel central que a


­humanidade assume na geologia e na ecologia propondo o uso do termo a­ ntropoceno
para designar a atual época geológica. O impacto das atuais atividades humanas
prolongar-se-á por longos períodos de tempo13.

Tudo isto foi precedido por um artigo de Crutzen na Nature. Neste estudo, ele
­propõe o ano de 1784 como data de demarcação entre o Holoceno e o Antropoceno.
Desde aí, o debate sobre o Homem enquanto «força geológica global» não tem parado
de crescer e tem vindo a penetrar outros domínios científicos e saberes. Porquê 1784?
Porque é o ano da patente da máquina a vapor desenvolvida por Watt. A data, s­ endo
simbólica, tem a vantagem de ancorar firmemente o Antropoceno no processo de
­associação da técnica humana a novos usos dos recursos energéticos predominantes na
modernidade. A ideia de que o mundo moderno é um engenho ou uma bomba de calor
adquire aqui o seu sentido.
Embora ainda não tenha sido ratificado pela União Internacional das Ciências
Geoló­gicas, as sociedades científicas têm vindo a constituir sub-comités dedicados ao
Antropoceno. Falando com Steffen, o autor destas linhas pôde perceber que o debate se
tem orientado para estabelecer a Grande Aceleração, quer dizer, o pós-guerra, por volta
de 1950, como a data privilegiada para a datação do Antropoceno. Este acerto tem algo de
vertiginoso, que aqui se sublinha: na década de 1950, muitos de nós já eram deste mundo.
Decorreram desde aí duas ou três gerações. Mas a espantosa e informe acele­ração que
se deu desde meados do século XX abrange tanto o aumento vertiginoso do d ­ ióxido de
carbono e do nível dos oceanos, como a extinção em massa das espécies, a transfor­mação
dos solos aráveis e a desflorestação extensiva. Tudo isto e muito mais ­marca o fim do
­período de inusitada estabilidade climática que foi o Holoceno, 12000 anos onde flores‑
ceram todas as civilizações conhecidas. A Terra encontra-se modificada a um tal ponto
que o Holoceno — o tempo com forma — deve dar lugar ao Antropoceno.
O planeta entrou numa animação que é inédita numa escala de centenas de ­milhar
ou de milhões de anos. Essa animação geral é dita antropogénica, provocada pelo
­Homem. O que significa isto? «Antropogénico» designa aqui o efeito direto do disposi­
tivo técnico instalado pelos seres humanos, quer dizer, um produto direto do movi­
mento próprio da técnica, uma manifestação intrínseca do «fazer» humano? Ou será,
pelo contrário, um efeito espúrio e não-intencional desse «fazer», algo que lhe é estranho
e que não deve ser tomado em conta na definição do agir técnico dos humanos?
Temos assistido ao que parecem ser efeitos públicos desta pergunta. Mas na
­verdade, a pergunta não é aí objeto de nenhum esforço reflexivo, muito menos filosó­
fico. É o que se passa com o «debate» sobre as causas antropogénicas da mudança

13
STEFFEN, 2007: 614.

594
AS CRISES DO FAZER NO ANTROPOCENO

climá­tica. Trata-se de uma manifestação da fase crítica em que a sociedade industrial


entrou ­recentemente, não só conduzida pelas alterações climáticas, mas também ­pelos
­indicadores de deca­dência de vários sectores energéticos, pelos impactos brutais da
­chamada quarta ­Revolução Industrial e do tipo de inovação que lhe está associada,
­assim como pelo desman­telamento das estruturas sociais do pós-guerra. Estas crises têm
­vindo a convo­car reações políticas, socioeconómicas, militares e geoestratégicas aparen­
temente d ­ ispersas, mas que possuem uma unidade ainda pouco legível. Transversal a
todas elas, encontramos as transformações rapidíssimas que se dão no sistema técnico-
-científico global, quer dizer, na techné enquanto agenciamento singular que agora
­encontra uma figura globalizada.
Como escreveu Heidegger, a techné «revela aquilo que não se manifesta por si
­mesmo e não está ainda diante de nós enquanto tal». O que é decisivo na techné, ­segundo
este, não é um processo de fabrico ou um tipo de manipulação, mas um processo de
manifestação. Esta caracterização pode abranger todas as técnicas, das mais arcaicas às
mais modernas, mas a modernidade técnica contém uma inflexão, que também ela se
dá como manifestação. O antropoceno pertence inteiramente à fenomenologia da mani­
festação. Há limites endógenos e exógenos para o sistema técnico. Os novos sistemas
técnicos nascem com a aparência dos limites dos sistemas a que sucedem, o que nos diz
que o progresso das técnicas encontra momentos em que é essencialmente descontínuo.
O progresso técnico — que está tanto ligado a ecossistemas como a sócio-sistemas —
consiste em sucessivas deslocações dos seus limites: o limite é o principal fator explica‑
tivo da transformação do sistema técnico. Há muitas ordens possíveis do limite de um
sistema técnico: seja a quantificação de recursos, pelo decréscimo destes ou pela sua
expansão, os custos que lhe estão associados, os desequilíbrios entre capital natural e
capital financeiro ou humano.
Designa-se como Antropoceno a temporalização dessa animação generalizada.
Se perspetivarmos essa animação na sua complexidade, perceberemos que ela não se
conforma à generalidade dos conceitos antropológicos do «fazer»: será necessário, para
além das ruturas paradigmáticas no fazer, como aquelas que têm construído a história da
técnica, incluir aí mudanças mais radicais que nos orientam para uma redis­tribuição das
«potências do agir»14, para o alargamento da intencionalidade a atores ­não-humanos,
­assim como para a diluição da intencionalidade totalizada. Assim, o Antropoceno
pare­cer-nos-á um conceito viável se for entendido como um registo do paradoxo do
fazer: não só assinalando a marca geológica do fazer autónomo da técnica humana, ou
­mesmo uma nova partilha da potência do fazer com outros agentes, manifestando a
perda de autonomia do fazer técnico, mas também marcando a entrada na expropriação
do f­azer. Esta dá-se por duas vias: (1) pela retroação ambiental, ou seja, pelo d
­ espertar

14
LATOUR, 2015: 132

595
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

de Gaia, como diria Lovelock, e que aqui entendemos como uma gigantomaquia de
indivi­duações; (2) através da «singularidade tecnológica», quer dizer, na ­passagem
de um ­crescimento tecnológico linear, baseado na intensidade energética, a um cresci­
mento tecnológico baseado na imprevisibidade da chamada inteligência artificial.
A indi­viduação15, ela própria, seria aqui operação adequada à incompletude ontológica
dos indivíduos técnicos.

4. Há uma ironia que talvez tenha escapado aos acima mencionados proponentes
do conceito de Antropoceno, uma ironia relativa à Era do Homem enquanto marca de
autor. Embora aí sejam referenciadas ações antropogénicas que modificam exponen‑
cialmente o sistema-Terra, a sua presença maciça e o seu crescimento exponencial, essas
ações, de altíssimo impacto e penetração, encontram-se divorciadas de toda a perceção
social de uma implicação dos seres humanos. A ironia é portanto esta: é quando a­ tinge a
sua láurea geológica que a espécie aparece desprovida de discursividade histórico-teoló‑
gica capaz de dar conta desta sua potenciação. Há uma potência inédita na história deste
planeta (de entre todos os sistemas planetários?), diretamente associada aos ­humanos
em diversos graus, que surge inteiramente desumanizada e sem responsáveis racio‑
nais à vista. Podemos dizer que essa potência aparece aqui mais associada ao devir da
physis do que à soberania do sujeito transportado pelo devir histórico. Essa a­ ssociação
à auto-geração da physis é, aliás, o dispositivo tecno-político em que o Capitaloceno
(a outra face do Janus geológico) preserva a aceleração autotélica em que se encontra.
Toda a alteração climática é uma oportunidade para a capitalização de recursos. Como o
­capitalismo funciona como uma rede, ele assume a continuidade dos processos incons­
cientes do ceticismo climático, pouco importando que este seja tão profundamente
­caricatural no plano político e mediático. Há muito que esta rede assumiu o grau zero da
herança ocidental.
Mas talvez fossemos ainda mais exatos se disséssemos que o Antropoceno confi‑
gura também uma hibridação da mudança do sistema-Terra, hibridação plenamente
adequada ao extrativismo e produtivismo globais. Embora a Antropogenia seja indis‑
putável, os sujeitos humanos (individuais e coletivos) caíram na anomia mais ­profunda.
É ainda a anomia dos modernos, mas transposta para uma escala geológica. Talvez uma
variante do «suicídio anómico» de Durkheim. O sujeito aceita agora a tradução climá­tica
e ambiental do movimento em aceleração que era já parte da sua condição e­ xistencial e
social. Se a sociedade hiper-industrial era já aquela que fazia caber os fenó­menos suces­
sivos no plano do simultâneo, ela faz agora entrar no seu experimento de uma efeti­vação
simultânea o que antes eram fenómenos sucessivos da natureza. A a­nomia ­decorre
da ­simultaneidade dos possíveis em que a técnica nos mergulhou. É bem conhe­cida

15
SIMONDON, 1958.

596
AS CRISES DO FAZER NO ANTROPOCENO

a ­relação da anomia sociológica com a aceleração dos processos. Na aceleração antro‑


pocénica, o futuro catastrófico não impressiona verdadeiramente ninguém porque ele
está já presente e nada pode realmente vir a acontecer sob uma forma narrativa. Toda a
representação do devir temporal foi submetida à anomia da disponibilidade das c­ oisas,
que se encontram subtraídas à experiência no tempo. Todo o possível está alinhado
diante de nós: 1,5º C de aumento de temperatura, 2º, 4º, 6º ou 8º C. Todos os valores
(do que já foi o nosso futuro) podem ser trocados porque para tudo há já um presente
técnico que disso toma conta. Quem se deu ao trabalho de ler o quase defunto Acordo
de Paris, percebeu isso precisamente: o duplo objetivo de 2º e 1,5º C tornava manifesto
que todo o processo negocial assentou numa radical impotência para habitar ativamente
o tempo, para fazer «tempo» a partir do tempo, o que seria a essência da ação na história.
Tal acontece porque a técnica não se limita a ser uma simples produção de coisas:
ela é uma produção temporal integral. As temporalidades possíveis são o seu ­mercado
virtual mais cobiçado. Ela produz um tempo integral que vem substituir o tempo real, o
tempo dos processos da autotelia da physis, o tempo que passa. Indignamo-nos quando
percebemos que decorre agora este experimento a céu aberto que são as emissões de CO2
ou de metano, um experimento que inclui no seu dispositivo o laboratório climático-
político das COP. Foi Bruno Latour quem definiu a dificuldade intrínseca à r­ elação polí­
tica-ciência aí presente: «Trata-se da questão do valor, que os ocidentais têm t­ endência a
universalizar, mas sem se colocarem questões sobre a logística necessária para entregar
valores em toda a superfície do planeta»16. As COP são a versão climática e deveras
melancólica do modelo político-representativo que emergiu das revoluções do século
XVIII. A frágil ecologia da política representativa é ameaçada pela ecologia «hard» da
mudança climática. Daí as COP se transformarem tanto em exercícios de preserva‑
ção do planeta quanto em exercícios de preservação da política da representatividade.
O estranho corpo do político é uma das categorias coletivas mais rapidamente ameaça‑
das pela mudança climática: os esforços para o salvar estão interligados com os esforços
para salvar as centenas de espécies vivas que se extinguem todas as semanas. Tanto um
como o outro parecem igualmente submetidos à anomia: o corpo político está incluído
no rol das espécies ameaçadas pela Sexta Extinção.
É técnico aquilo que é sempre possível. Ao contrário dos seres da physis ou das
­sociedades do nomos, que pertencem ao tempo que vão formando na sua constituição.
O técnico transforma sempre as causas em efeitos, que podem assim ser subordi­nados
aos corpos modificados, categoria que abrange hoje todos os corpos, da mais í­nfima
­célula ou configuração molecular à Terra. Conduzida pelos seus próprios ­progressos —
que não é já possível confundir com o Progresso —, para vir a ser a­ plicada à totalidade das
coisas do mundo, a técnica reúne o conjunto das causas materiais necessárias à p ­ rodução

16
LATOUR, 2015.

597
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

de um dado efeito, cujo desencadeamento é agora o efeito de um comando que não está
aí para esse efeito em particular, mas para a totalidade dos efeitos possíveis. Tudo está
em reserva dessa produção de efeitos, e a mudança climática ou os grupos sociais não
estão dela apartados. Essa reserva (que se desdobra em a­ rquivo) é p ­ ossível na ­medida
em que a técnica contemporânea retira o acontecimento à l­inguagem, ­fechando-o num
dado estado de coisas. Mas no seu estado técnico as coisas mostram um brilho que não
possuem na sua existência na physis ou no nomos. Se nestas dimensões elas são a sua
própria transformação, o devir que lhes é próprio, na técnica elas aparecem perfeita‑
mente concretizadas, na medida em que são produzidas. As duas dimensões do real que
foram o nosso ponto de partida — a physis e o nomos — não são produzidas e nunca
chegam sem um desejo ou um terror reais que as antecipem.
A gigantesca aceleração do fazer da técnico-ciência está a transformar o constran‑
gimento político em constrangimento técnico. Era Arendt quem falava de «constrangi­
mento científico». Como ela assinalava, as leis da História e da Natureza foram colo‑
cadas ao serviço de um acelerador que não obedece a uma ou a outra. Esta gigantesca
acele­ração — onde tudo parece parado porque não há já pontos de referência para o
­movimento — traduz-se mundialmente pela desaparição do político em favor do
­policial, do plural em favor do homogéneo, do outro em favor do mesmo, da hospita‑
lidade, s­ ubstituída pela integração, da lei, substituída pela norma, da saída do ecocídio,
substituída pela remediação infinita.
O fazer efetivo tornou-se, no tecido financeiro-industrial, a mais irrelevante das
promessas. Não é tanto a experiência que é desejada mas a promessa da disponibili‑
dade da coisa. Não há o facto singular do que aparece no mundo, mas a singularidade
do que é requerido para a esfera produtiva. A experiência real expõe-nos a uma estra­
nheza real que aqui não é admitida. Empresas como a Tesla tornam manifesto o que está
­frequentemente disfarçado nos meandros dos circuitos produtivos globalizados. A Tesla
é o fantasma do fordismo, ou melhor dizendo, é a forma fantasmática do ciclo produtor-
-consumidor que nos chegou a dar a ilusão de que o capitalismo industrial seria, de facto,
uma cornucópia que associava as sociedades ao mundo material. O carro e­ létrico é uma
imagem, um design vindo do futuro que não precisará de chegar às estradas para povoar
o imaginário e realizar a capitalização. Pouco importa que os objetivos de p ­ rodução não
passem de números no papel: trata-se, no fim de contas, de assegurar que nada chegará,
já que nada pode existir no seu devir, na sua potência, seja pelo nomos ou pela physis.
Trata-se, isso sim, de assegurar que tudo já aqui se encontra e que todo o fazer é irrisório
e tendencialmente gratuito.
No seu plano simbólico, o Antropoceno é, antes do mais, o indicador de que o
discurso filosófico e político sobre o fazer encontrou hoje a linha de separação que
o conduzirá a regressar ao espaço público, — a um espaço público heterogéneo e rein‑
ventado —, ou a resvalar para a pura enunciação de um enigma histórico. Conservam-se

598
AS CRISES DO FAZER NO ANTROPOCENO

intactos, se não reforçados, certos sistemas de crença na potência da tecnociência, na sua


capacidade para enfrentar as alterações do mundo físico que nos atingem ou ameaçam.
Mas é agora um sistema de crença que está instalado em circunstâncias muito diversas,
circunstâncias que são fruto de diversos ciclos de alargamento da sua presença e pene‑
tração. É um sistema cujo reforço constante parece ter tornado verosímil o seu colapso,
mas, paradoxalmente, mais inverosímil a sua substituição. É o jogo da verosimilhança,
um aspeto fundamental das técnicas que, perdendo o sujeito e o objeto da sua eficácia,
são ainda eficazes porque parecem sê-lo.
«Pela construção, o coletivo alimenta-se do que permanece no exterior, do que
ele ainda não coligiu»17. O coletivo — Marx diria «o homem e a natureza» — está hoje
diante de uma rarefação inédita do «exterior», que rapidamente penetra o coletivo e
perde a sua categorização alimentar ou energética. Mistura de natureza e sociedade, o
coletivo que agora se forma só corresponde ao anthropos epocal a partir de uma ilusão
antropocêntrica. «Nem o mononaturalismo nem o multiculturalismo podem resumir a
situação arriscada em que o coletivo se encontra agora colocado»18. Quantos coletivos
— conhecidos e desconhecidos — estão a entrar de supetão naquelas áreas que conside‑
rávamos feitas por uma decisão antropológica e se revelam afinal mundos por fazer? Esta
pergunta só poderá ser respondida por aquilo que, mais do que «crises», passaremos
talvez a designar como convulsões do fazer.

BIBLIOGRAFIA
AUBENQUE, Pierre (1962) — Le Problème de l’être chez Aristote. Paris: PUF, 1997.
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HENRY, Michel (1975) — Le concept de l’être comme production [tr. port.: O conceito de Ser enquanto
­produção. «Phainomenon. Revista de Fenomenologia», n.º 13, Lisboa, Centro de filosofia da FLUL,
2006. Tr. de Jorge Leandro Rosa].
(1976) — Marx. Paris: Gallimard, 2009.
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LATOUCHE, Serge (1989) — L’Occidentalisation du monde. Paris: La Découverte, 2005.
LATOUR, Bruno (1991) — Nous n’avons jamais été modernes. Essai d’anthropologie symétrique. Paris: La
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­Découverte.
(2015) — Face à Gaïa. Huit conférences sur le nouveau régime climatique. Paris: La Découverte.
MARX, Karl (1846) — Die deutsche Ideologie. Tr. Fr.: Idéologie Allemande. Paris: Éditions Sociales, 1968.
SIMONDON, Gilbert (1958) — Du mode d’existence des objets techniques. Paris: Aubier, 2001.
SLOTERDIJK, Peter (1998) — Sphären I. Blasen. Tr. Fr.: Bulles. Paris: Fayard, 2002.

17
LATOUR, 1999: 245.
18
LATOUR, 1999: 245.

599
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

STEFFEN, Will et al. (2007) — The Anthropocene: Are Humans Now Overwhelming the Great ­Forces
of ­Nature? «Ambio», Dez., 36, 8; Sciences Module, Royal Swedish Academy of Sciences,
p. 614-621.
STIEGLER, Bernard (1994) — La Technique et le Temps, 1 [tr. ing.: Technics and Time, 1. The Fault of
­Epimetheus. Stanford: Stanford University Press, 1998].
(2004) — Mécréance et discrédit, 1 [tr. port.: Descrença e Descrédito, 1. A decadência das democracias
industriais. Lisboa: Vendaval, 2006].

600
CONFERÊNCIA

601
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

602
ART AND ANTHROPOLOGY FOR A
SUSTAINABLE WORLD*

TIM INGOLD**

Abstract: Both art and anthropology, this chapter proposes, are future-oriented disciplines, united in the
common task of fashioning a world fit for coming generations to inhabit. The first step in establishing this
proposition is to show how the objectives of anthropology differ from those of ethnography. Anthropology,
it is argued, establishes a relation with the world that is correspondent rather than tangential, that priori­
tises difference over alterity, and that places presence before interpretative contextualisation. The second
step is to rethink the idea of research — to show how, as an open-ended search for truth and a practice of
corres­pondence, research necessarily overflows the bounds of objectivity. Art and anthropology, then, and
not natural science, are exemplary in the pursuit of truth as a way of knowing-in-being. The third step is
to show that only if it is conceived in this way can research be conducive to the processes of renewal on
which our collective futures depend. Thus research as correspondence is a condition for sustainability. But
sustaina­bility is nothing if it is not of everything. We have to begin, therefore, with the idea of everything as a
­plenum, in which each apparent addition is really a reworking. The chapter concludes with some reflections
on the proposed synergy of art and anthropology for education, democracy and citizenship.
Keywords: art; anthropology; research; education; democracy; citizenship.

* This article is the text of the keynote address, presented to the Royal Anthropological Institute Conference on Art,
Materiality and Representation, at the British Museum, London, on 1st June 2018. I am especially grateful to the RAI,
and to the organisers, for giving me the honour of addressing the conference. Much of the thinking behind my presen­
tation was developed within the project Knowing From the Inside: Anthropology, Art, Architecture and Design, funded by
an ­Advanced Grant from the European Research Council (323677-KFI, 2013-18). I am grateful to participants in the
­project for ideas and inspiration, and to the Council for its support.
** Department of Anthropology, School of Social Science, University of Aberdeen, Aberdeen AB24 3QY, Scotland, UK.
Email: tim.ingold@abdn.ac.uk. Tim Ingold is Emeritus Professor of Social Anthropology at the University of Aberdeen.
He has carried out ethnographic fieldwork in Lapland, and has written on environment and social organization in the
circumpolar North, on evolutionary theory in anthropology, biology and history, on the role of animals in human
­society, on language and tool use, and on environmental perception and skilled practice. He is currently exploring issues
on the interface between anthropology, art, architecture and design.

603
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

Resumo: A arte e a antropologia, segundo este capítulo propõe, são disciplinas orientadas para o futuro,
unidas na tarefa comum de criar um mundo adequado para as próximas gerações habitarem. O primeiro
passo para estabelecer essa proposta é mostrar como os objetivos da antropologia diferem dos objetivos
da etnografia. A antropologia, segundo aqui se defende, estabelece uma relação com o mundo que é mais
de correspondência do que tangência, que dá prioridade à diferença em relação à alteridade e coloca a
presença antes da contextualização interpretativa. O segundo passo é repensar a ideia de pesquisa — para
mostrar como, como busca aberta à verdade e como uma prática de correspondência, a pesquisa ultrapassa
neces­sariamente os limites da objetividade. Assim, a arte e a antropologia, e não as ciências naturais, são
­exemplares na busca da verdade como uma maneira de conhecer-enquanto-ser. O terceiro passo é m ­ ostrar
que somente se concebida dessa maneira a pesquisa poderá conduzir aos processos de renovação dos quais
o nosso futuro coletivo depende. Assim, a pesquisa entendida como correspondência é uma condição da
sustentabilidade. Mas a sustentabilidade não vale nada se não se referir a tudo. Temos que começar, ­portanto,
pela ideia de tudo como algo pleno, em relação ao qual cada adição aparente é realmente uma reformulação.
O capítulo conclui com algumas reflexões sobre a sinergia entre arte e antropologia que propõe, tendo em
vista a educação, a democracia e a cidadania.
Palavras-chave: arte; antropologia; pesquisa; educação; democracia; cidadania.

«Art does not reproduce the visible but makes visible». So declared that most
a­ nthropological of artists, Paul Klee, in his Creative Credo of 19201. In this chapter I want
to propose two things. First, I contend that Klee’s Credo applies just as well to anthro‑
pology as it does to art. It is no more for anthropology than for art to hold a mirror to
reality. It is rather to enter into the relations and processes that give rise to things so as
to bring them into the field of our awareness. Secondly, only so long as these relations
and processes carry on can the world offer a sustainable abode for its inhabitants. «Form
is the end, death», as Klee put it; «form-giving is life»2. I hold that the commitment of
anthropology, as of art, must be to the reality of a world of life, one that is never finally
formed but ever in formation. To establish these twin propositions, I shall proceed in
three stages. I begin by reimagining the discipline of anthropology as fundamentally a
speculative and experimental endeavour, oriented as much to the future as to the past,
but by the same token, radically distinct in its objectives from ethnography. I then go on
to consider what we mean by research. I shall argue that research has been diminished
by its assimilation to the protocols of positive science, and that it is for art and anthro‑
pology to demonstrate its true promise. Finally, I return to the theme of sustainability,
and to the question of how to imagine a world with room for everyone and everything.
To do so, I argue, we must approach it, as artists and anthropologists do, from within.
I shall conclude by reflecting on the implications of the proposed synergy of art and
­anthropology for education, democracy and citizenship.

1
KLEE, 1961: 76. In the original German, Klee wrote: «Kunst gibt nicht das Sichtbare wieder, sondern macht sichtbar».
This lends itself to translation in many ways; the one I use here comes from the English-language version of his
notebooks.
2
KLEE, 1973: 269.

604
ART AND ANTHROPOLOGY FOR A SUSTAINABLE WORLD

JOINING THE CONVERSATION


Ostensibly, the disciplines of art and anthropology face in opposite directions: the
first dedicated to describing and comparing forms of life as we find them; the second to
the invention of forms never before encountered. This has not always been so, however.
It was, after all, the Dutch masters of the seventeenth century, practitioners of what has
aptly been called «the art of describing»3, who set the standards of observational accu‑
racy and depictive fidelity, in their painterly compositions, which ethnographers would
seek to emulate, three centuries later, in the medium of words, in effect by substituting
verbal «thick description» for the opacity of oils4. But these standards hold little appeal
to an art of the contemporary that is nothing if not speculative. We are inclined nowa‑
days to judge a work as art not by the accuracy of its depiction but by the novelty of its
­conception. Yet no practice of art could carry force that was not already grounded in
careful and attentive observation of the lived world. Nor, conversely, could anthropolo­
gical studies of the manifold ways along which life is lived be of any avail if not brought
to bear upon speculative inquiries into what the possibilities of life might be. Thus far
from the one looking only forward and the other only back, contemporary art and
­anthropology have in common that they both observe and speculate. Their orientations
are as much towards human futures as towards human pasts: these are futures, however,
that are not conjured from thin air but forged in the crucible of collective lives. I contend
that for both art and anthropology, the aim is — or at least should be — to join with these
lives in the common task of fashioning a world fit for coming generations to inhabit.
This task, I believe, is the most pressing and critical for our times. How ought we
to live, so that there can be life for those that come after us? It is not as though anyone
­already has the answers. Human ways of life — of doing and saying, thinking and know‑
ing — are not handed down on a plate; they are neither preordained nor ever finally
settled. ­Living, we could say, is the never-ending process of figuring out how to live,
and harbours at every moment the potential to branch along different ways, no one of
which is any more normal or natural than any other. Every way, then, is in the nature
of a c­ ommunal ­experiment. It is no more a solution to the problem of life than is the
path a s­ olution to the problem of how to reach a destination as yet unknown. But it is
an a­ pproach to the problem. Anthropology, as I speak for it here, is a field of study that
takes upon itself to learn from as wide a range of approaches as it can; one that seeks
to bring to bear, on this problem of how to live, the wisdom and experience of all the
world’s i­nhabitants, whatever their backgrounds, livelihoods, circumstances and places
of abode5. Of course, were I a practising artist rather than a professional ­anthropologist,

3
ALPERS, 1983.
4
The idea of «thick description» comes from the philosopher Gilbert Ryle (1971), and was famously introduced into
anthropology by Clifford Geertz (GEERTZ, 1973: 6). On the comparison with oil painting, see INGOLD, 2011: 222).
5
INGOLD, 2018a.

605
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

I might well be thinking along parallel lines. I might even want to make the same claims
for art that I have just championed for anthropology. After all, is art not also an experi­
mental inquiry into the conditions and possibilities of life? Does it not also pose the ques‑
tion of how to live? I have no wish to be deflected into the academically specious e­ xercise
of distinguishing what is art from what is not. I do however think it is worth enumerating
the principles upon which art and anthropology might potentially c­ onverge.
These, in my view, are fourfold. The first is generosity. This means listening and
­paying attention to what others do and say, receiving with good grace what is o ­ ffered
­rather than seeking by subterfuge to extract or elicit what is not. Enshrined in the
­principle of generosity is an ontological commitment, to give back what we owe to ­others
for our own intellectual, practical and moral formation, indeed for our very ­existence as
beings in a world. The second principle is open-endedness. An inquiry that is ­open-­ended
seeks not to arrive at final solutions that would bring life to a close but to reveal ways
along which it can keep going. Far from rendering the world habitable for some to the
exclusion of others, it is about making room for everyone and everything, both now and
for the indefinite future. That is what I mean by a sustainable world, and I shall return
to it. The third principle is comparison. It is to recognise that no approach to life is the
only possible one, and that for every approach you take, others could be taken which
lead in different directions. Thus the question «why this direction rather than that?»
is always uppermost in our minds. The final principle calls on us to be critical, for we
cannot be content with things as they are. By common consent, the organisations of
­production, distribution, governance and knowledge that have dominated the modern
era have brought the world to the brink of catastrophe. In finding ways to carry on, we
need all the help we can get. But no-one — no science, no philosophy, no indigenous
people — already holds the key to the future if only we could find it. We have to make
that future together. And this can only be achieved through conversation.
In short, where art joins with anthropology is in making a conversation of ­human
life itself6. Not all art, of course, is anthropological in its orientation or philosophy, nor
is it invariably signed up to the four principles I have just enumerated. But of art that is
­anthropological we can say that it, too, is generous, open-ended, comparative and ­critical7.
Such art does not take a stand, or adopt an offensive or defensive posture ­towards others.
It does not impose itself, or seek to intimidate by shock and awe. It does not set out to
make a statement. It is inquisitive rather than interrogative, offering a line of questioning
rather than demanding answers; it is attentional, rather than fronted by prior intentions,
modestly experimental rather than brazenly transgressive, critical but not given over to
critique. Joining with the forces that give birth to ideas and things, r­ ather than seeking to

6
INGOLD 2018b: 158.
7
Here and in what follows, I am returning to, and extending, an argument originally set out in INGOLD, 2018c: 65-8.

606
ART AND ANTHROPOLOGY FOR A SUSTAINABLE WORLD

express what is already there, it conceives without being concep­tual. Art that is anthro‑
pological is curious; it rekindles care and longing, allowing knowledge to grow from the
inside of being in the conversations of life. Like a living, breathing body, what art takes
in, it also gives out. It is vividly present yet intimately enmeshed with its surroundings.
To echo Klee’s Credo, it does not reproduce the sensible, but makes ­sensible. That’s why
practices like walking, drawing, calligraphy, instrumental music, dance, ways of m ­ aking
and working with materials — ways that tend to get bracketed at the «craft» end of the
spectrum — are exemplary for me. Artists engaging in these practices come closest,
in my view, to doing anthropology, even if they do not self-consciously present their
work as such.
But what of anthropologists themselves? Are they doing anthropology in the sense
I have outlined, of calling on the wisdom and experience of people everywhere in the
task of fashioning a common future? Have they joined the conversation? For the most
part — at least until recently — I fear they have not. In a conversation, lines twist around
one another as they go along, both answering and being answered to in a relation of what
I have called correspondence8. The majority of practising anthropologists, ­however, have
preferred to come at other lives along a tangent, momentarily aligning with them only
to veer aside into the stance of interpretation and analysis. This is the stance of ethno­
graphy. Thus whereas anthropology carries on a correspondent relation with the world,
ethnography’s relation is tangential. Its objective is not to study with people but to make
studies of them. It is to listen to what they have to say, and to observe what they do, for
what it tells us about them. Now I am not saying that ethnographic studies are wrong;
indeed they have added immeasurably to the library of human knowledge. But their
­objectives are not those of anthropology, and to conflate the two is to the detriment of
both. For where anthropology seeks to open up to coeval lives and differing ways
of ­being, and to bring them into dialogue with our own, ethnography’s aim is to wrap
them up into an account that transports us into a world whose contrived otherness leaves
ours intact. As Stuart McLean has recently put it, the effect of collapsing anthropology
into ethnography is to downsize questions of ontology, by confining them within the
expla­natory or interpretative horizons of «society», «culture» or «history»9.
Now art, too, can be either tangential or correspondent. A tangential art seeks to
describe what it sees: such, indeed, was the art of the Dutch master-painters to which
I have already referred. It touches the world only to draw away and put it in the frame.
This is an aspiration shared by the ethnography for which it set a precedent. But an art that
is truly anthropological — that makes sensible, in Klee’s terms, rather than reproducing
the already sensed — is one that joins with the forces and flows of an ever-forming world.

8
INGOLD, 2017.
9
MCLEAN, 2017: 147-55.

607
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

It is, in short, an art of correspondence. Yet most contemporary art that self-consciously
presents itself as anthropological has taken ethnography to be the glue that holds art and
anthropology together. The resulting unions have been ill-matched, to say the least, for
the very reasons that render art compatible with anthropology also make it incompatible
with ethnography. An art that is speculative and experimental, that explores the possibi­
lities of being through open-ended conversation and comparison, cannot meet the stand‑
ards of accuracy, of empirical depth and detail, expected of ethno­graphy. C ­ onversely, an
ethnographic stance that gazes rearwards, to capture the already sensed in all its r­ ichness
and complexity, cannot simultaneously join in the forward-going ­process by which the
past — in the inimitable words of Henri Bergson — «gnaws into the future and… swells
as it advances»10. Moreover, contemporary art’s embrace of ethnography brings in train
two preoccupations that do much to undermine its anthropological promise. Already
spelled out over twenty years ago by the art historian Hal Foster11, these are first, an
obsession with alterity, and second, an insistence on placing everything in its social,
­cultural and historical context.
Let me begin with the problem of alterity. Anthropologists like to impress their
friends with stories of their encounter with what they call «radical alterity». For some
it is almost a badge of honour that confers the right to speak of otherness — of its poli­
tical force or transgressive potential — with an authority denied to their less seasoned
or adventurous cousins. It is a badge that many artists, consumed by what Foster calls
«ethnographer envy», would dearly love to wear. This does beg the question, however,
of how «other» the people have to be in order that their alterity should count as radical.
The phrase «radical alterity» in fact comes from the philosophy of Emmanuel Levinas.
It connotes an ethical stance which requires you to let others into your presence, to be
themselves, without entertaining any preconceptions about the kinds of selves they are,
and without in any way prejudging the terms in which you might begin to engage or
converse with them12. Thus otherness, at least initially, is absolute. It cannot admit to
differences of degree, such that some people are more other than others. Yet in the very
instant that anthropologists introduce society, history or culture into their conception
of alterity, this absoluteness is compromised. For to say that people are of another social
background, historical provenance or cultural tradition than one’s own is immediately to
encompass their difference within the horizons of an imposed frame. There are people
of our kind, and people of this other kind. We are setting them, the others, a priori, on

10
BERGSON, 1911: 5.
11
FOSTER, 1995.
12
The key passage is perhaps the following: «Pluralism implies a radical alterity of the other, whom I do not simply
conceive by relation to myself, but confront out of my egoism. The alterity of the Other is in him and not relative to
me; it reveals itself. But I have access to it proceeding from myself and not through a comparison of myself with the
other. I have access to the alterity of the Other from the society I maintain with him, and not by quitting this relation
in order to reflect on its terms». (LEVINAS, 1979: 121, original emphases).

608
ART AND ANTHROPOLOGY FOR A SUSTAINABLE WORLD

the opposite side of a frontier between worlds, ours and theirs. And this, of course, is to
prejudge how we engage with them.
That people are different goes without saying. But does their otherness make them
so? Which comes first, alterity or difference? For Levinas, alterity is given from the start.
But I am more inclined to the contrary view, which we owe to Gilbert Simondon and
— after him — Gilles Deleuze, namely that otherness is ever-emergent from within the
matrix of relations within which all are immersed ab initio. That is to say, it is a function
of ontogenesis, the becoming of being13. Here, differentiation is prior, alterity derivative.
We are dealing, then, not with a world of beings radically other to one another, as with
Levinas, but with a world of becomings that, like voices in a conversation, are ever differ­
entiating themselves from one another even as they emerge and go along together. Karen
Barad14 calls this «cutting together-apart». People are different, then, not because they
belong to other worlds but because they are fellow travellers with us in the same world,
a world — nonetheless — of inexhaustible and interminable differentiation15. Ethno­
graphy, however, predisposes its practitioners to put alterity ahead of difference. There
is, in what is often called the «ethnographic encounter», an inherent schizochrony — to
­borrow a term from Johannes Fabian16. In an encounter marked as ethnographic, we
turn our backs on people even as we open out to them. This, in effect, is to convert o­ thers
into surrogates for an idealised project of the anthropological or artistic self. It leads
to the coding of difference as manifest identity and of otherness as outsideness. And
as ­Foster intimates, this can be but a prelude for a politics of tangentialism that places
others on the margins, rather than one of correspondence in which all can join on an
equivalent footing17.
This marginalisation of others is further compounded by the insistence on placing
them in context. This, too, is to put them into the frame, and in so doing to neutralise
the force of their presence. What applies to people, here, applies equally to what they
do and make: to performances and works of art. The ethnographic impulse is always to
subject them to analysis. Thus understood and accounted for, disarmed and embedded,
laid to rest, we are no longer troubled to attend to them or to what they have to tell. Their
contextualisation does not bring them forth to be themselves, but refers them back, to
what Alfred Gell18 has called the «complex intentionalities» of which they are alleged

13
SIMONDON, 1993, equated this becoming of being, or ontogénèse, with the process he otherwise called «indivi­
duation». For Deleuze, it leads to an insistence on the distinction between difference and diversity: «Difference is
not diversity. Diversity is given, but difference is that by which the given is given, that by which the given is given as
diverse» (DELEUZE, 1994: 222).
14
BARAD, 2014.
15
INGOLD, 2018b.
16
FABIAN, 1983: 37.
17
FOSTER, 1995: 303.
18
GELL, 1996: 37.

609
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

to be the material expression. Gell’s view — to my mind entirely mistaken — is that for
any work to qualify as art, it must be possible to trace a chain of causal connections, in
reverse, from the final product to the initial intentions that motivated its production.
It is then the specific job of the anthropologist-as-ethnographer to provide an «inter‑
pretative context»19 that unlocks the significance of the work by revealing the intentions
that lie behind it. It is to join with the masters of contextualisation, the art historian and
the c­ ritic, as self-appointed gatekeepers to meaning. For anthropology to join with the
practice of art, however, is to proceed in precisely the opposite direction. It is to engage
in what Tobias Rees20 has recently called «the subtle art of decontextualization». This is
an art not of extraction but of unwrapping, of peeling away the layers of interpretative
context so as to restore the work to presence, in a world that is ours as well, so that we
can once again feel its force, and correspond with it.

RESEARCH AS EXPERIMENTAL PRACTICE


I would like now to turn to the second part of my argument. This is about the call
of research, and about what happens to research in anthropology when its vocation is
aligned with that of art. Nowadays, of course, the default setting for research is science.
Thus the researcher is presumed to be a scientist unless proven otherwise. And scien‑
tific research is normally taken to be a specialised mode on inquiry dedi­cated to testing
­hypotheses through the collection and analysis of data under controlled condi­tions, and
to the advance of theory through conjecture and refutation. Even where practice ­deviates
from these ideals, any scholar who purports to be engaged in a project of research is still
expected to explain what it is intended to show, how the work will be carried out, and
the anticipated contribution of its results to knowledge. Anthropologists have always felt
uneasy about these expectations, knowing full well that the destination of their research
can never be known in advance, that the conditions under which it is carried out are
largely beyond their control, and that it never really reaches any conclusion. They worry
obsessively about what counts as «anthropological knowledge», and what it means to
produce it. By the standards of science, anthropological research looks weak indeed.
Yet anthropologists are still inclined to dress their inquiries in a scientific garb, mask‑
ing ­conversation as elicitation, experiences of life as data for analysis, lessons learned
as final results. As for artists, who find increasingly that they have to present what they
are doing as research in order to access the institutional and financial support on which
they ­depend, to present and justify their work as research takes an even greater stretch
of credibility. Must they pretend to behave like scientists? If so, what are they trying to

19
GELL, 1996: 36.
20
REES, 2018.

610
ART AND ANTHROPOLOGY FOR A SUSTAINABLE WORLD

find out, and what kinds of knowledge do they think their art can contribute that science
cannot?
My aim in what follows is to reset the default. I want to show that art, and not
­science, is exemplary in the practice of research, and that anthropology could do well
by explicitly following art’s example. Instead of expecting artists and anthropologists
to be doing science, we should put the boot on the other foot. The onus should be on
­scientists to explain how what they are doing, in the harvesting and analysis of data,
and in its ­industrial conversion into knowledge products, can conceivably be regarded
as research. If scientists were really researchers, would we not expect them to act more
like artists, or at least like anthropologists? Rather than seeking to hold the world to
­account, or to e­ xtract its secrets through force or deception, research would then mean
going along with it, entering into its relations and processes and following their evolu‑
tion from the inside. Some scientists, of course, are already doing this, but they remain a
dissenting minority, swimming against the currents of the mainstream. Of scientists, it
seems that these dissenters alone have absorbed the lesson that Alfred North Whitehead
taught almost a century ago, in his Tarner Lectures of 1919, namely that «there is no
holding n ­ ature still and looking at it»21. For them, as indeed for artists and anthropo­
logists, r­ esearch is an experimental practice, but one in which every experiment is not
just an ­action done but an experience undergone, leaving neither the experimenter nor
the things touched by it unchanged. Both have moved on, along with the world of which
they are intrinsically part. In this, each move both doubles up on what was done before,
but is yet an original intervention that invites a double in its turn.
This, after all, is what the word «research» literally means: it is a second search,
an act of searching again. To search again is not to repeat, exactly, what you did before.
Between one search and the next there is always a differential. It is like walking the same
path, or playing the same piece of music, over and over. No walk, no performance, can
ever be identical to what went before. Every step is a new beginning. Or to adopt a handy
distinction from Gilles Deleuze and his collaborator, Félix Guattari, research is a process
not of iteration but of itineration22. It carries on, as life does, not closing in on solutions
but ever opening to new horizons. As you move, so does what you seek. But you press on
undeterred, driven by a desire that seems as insatiable, and indeed as imperative, as the
will to live. You call it curiosity. But you could also call it care, for both words are derived
from the same Latin root, curare. It is about looking after, tending to things. Research,
then, is not a technical operation, a particular thing you do in life, for so many hours
each day. It is rather a way of living curiously — that is, with care and attention. As such,
it pervades everything you do. And what are you looking for, that so evades your grasp?

21
WHITEHEAD, 1964: 14-15.
22
DELEUZE & GUATTARI, 2004: 410.

611
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

What is it that always escapes, always overflows your most determined attempts to pin
things down, and ever recedes beyond the horizon of conceptualisation? I want to argue
that this slippery, fugitive and ineffable quality is truth. In a world that is sustainable
­research never ends because it is, most fundamentally, a search for truth.
For many today, truth is a scary word, better kept inside quotation marks. It c­ onjures
up terrifying images of the violent oppression wreaked, in the name of truth, by those
who have appointed themselves as its worldly ambassadors. We should not, h ­ owever,
blame truth for the wrongs committed in its name. The fault lies in its totali­sation; its
conversion into a monolith that stands eternal like a monument, timeless and fully
formed. This rests on a delusion, on the part of its self-appointed guardians, that they
are themselves above truth, that they are the masters of it, and truth theirs to ­command.
Human history is studded with delusional projects of this kind, each catastrophic for
those subjected to it, and each ultimately smothered by the sands of time. Research, to
the contrary, rests on the acknowledgement that we can never conquer truth, any more
than we can conquer life. Such conquest is for immortals. But for us, mortal beings, truth
is always greater than we are, always beyond what — at any moment — can be physi‑
cally determined or grasped within the categories of thought. Truth is inexhaustible.
Wherever or whenever we may be, we can still go further. Thus research affords no final
release into the light. Remaining ever in the shadows, we stumble along with no end in
sight, doggedly following whatever clues afford a passage23. This is hardly conducive to
optimism, to the belief — common among theorists of progress — that the best of all
worlds is only just around the corner, pending one or two final breakthroughs. But while
it may not be optimistic, research is always hopeful. For in converting every closure into
an opening, every apparent solution into a new problem, it is the guarantor that life can
carry on, of its sustainability. For this very reason, research is a primary responsibility of
the living24.
Now if research, as I maintain, is the pursuit of truth, and if truth ever exceeds the
given, then there must always be more to research than the collection and analysis of
data. It must go beyond the facts. The fact stops us in our tracks, and blocks our way.
«This is how it is», it says to us, «proceed no further!» But even if the facts of a case may
be incontrovertibly established, its truth lives on. This is not to suggest that truth lies
behind the facts, calling for a superior intelligence armed with theoretical power-tools
capable of breaking through the surface appearances or ideological mirrors that deceive
the rest of us into thinking that we can already tell reality from illusion. We have no
need of theorists with heavy duty equipment to clear the obstacles. Nor is it to suggest
that truth lies within the facts, as some kind of unfathomable essence that will forever

23
LEWIS, 2011: 592.
24
INGOLD, 2018c: 71-4.

612
ART AND ANTHROPOLOGY FOR A SUSTAINABLE WORLD

hide from us, sunk into itself, as self-proclaimed advocates of so-called «object-oriented
ontology» like to tell us25. It is rather to insist that what appear to us, in the first instance,
as stoppages turn out, when we search again — that is, in our re-search — to be openings
that let us in. It is as though the fact rotated by ninety degrees, like a door on opening,
so that it no longer confronts us face-on but aligns itself longitudinally with our own
­movements. And where the fact leads, we follow. «Come with us», it says. What had
once put an end to our search then reappears, in re-search, as a new beginning, a way
into a world that is not already formed, but itself undergoing formation. It is not that we
have broken through the surface of the world to discover its hidden secrets. Rather, as
the doors of perception open, and as we join with things in the relations and processes of
their formation, the surface itself vanishes.
The truth of this world, then, is not to be found «out there», established by refe­
rence to the objective facts, but is disclosed from within. It is indeed the very matrix of
our existence as worldly beings. We can have no knowledge of this truth save by being
in it. Knowing-in-being, in short, is of the essence. This conclusion will of course be
anathema to those who hold that true knowledge of the world can be had only by taking
ourselves out of it and by looking at it from a distance. For them, objectivity is the very
hallmark of truth. It is indeed understandable that in a world where facts often appear
divorced from any kind of observation, where they can be invented on a whim, propa‑
gated through mass media, and manipulated to suit the interests of the powerful regard‑
less of their veracity, we should be anxious about the fate of truth. To many, it seems that
in this era of post-truth, we are cast adrift without an anchor. We are right to insist that
there can be no proper facts without observation. But we are wrong, I believe, to suppose
that observation stops at objectivity. For to observe, it is not enough merely to look at
things. We have to join with them, and to follow. And it is precisely as observation goes
beyond objectivity that truth goes beyond the facts. This is the moment, in our observa‑
tions, when the things with which we study begin to tell us how to observe. In allowing
ourselves into their presence rather than holding them at arm’s length — in attending
to them — we find that they are also guiding our attention. Attending to these ways,
we also respond to them, as they respond to us. Research, then, becomes a practice of
­correspondence, and of care. It is a labour of love, giving back what we owe to the world
for our own existence as beings within it.
Research as correspondence, in this sense, is not just what we do but what we
­undergo. It is a form of experience. For in experience, things are with us in our thoughts,
dreams and imaginings, and we with them. It is here, I believe, that we can begin to see
where science can align with art, and indeed with anthropology. It means calling into

25
Advocates of object-oriented ontology have been vociferous and prolific, and a large literature has grown up around
it. A useful summary can be found in Harman, 2011.

613
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

question the division between fact and fantasy, truth and illusion, which has under‑
pinned the development of science ever since the days of Francis Bacon and Galileo
Galilei26. «Let us learn to dream», declared the chemist August Kekulé, in a lecture to
celebrate his discovery of the structure of the benzene molecule, «then perhaps we shall
find the truth. But let us beware of publishing our dreams till they have been tested by
waking understanding»27. For Kekulé, and for the majority who think like him, if s­ cience
needs art it is to fantasise, to give the mind freedom to roam, to come up with novel
ideas. But only when tested against the facts can ideas born of the imagination lay any
claim to truth. Now were research only about the establishment of such truth claims,
then indeed, it would admit to neither imagination nor experience in its experimental
operations. But if truth lies beyond the facts, then science can become research only
­insofar as it is willing to forgo objectivity and follow the way of art, and of anthropology,
into a correspondence that unites experience and imagination in attending to a world
that also attends to us. It would be for science, too, to join in the pursuit of truth as a way
of knowing-in-being, through practices of curiosity and care. Therein, I contend, lies the
proper vocation of research.

THE SUSTAINABILITY OF EVERYTHING


I now turn to the third part of my argument. I mean to show that only if it is
c­ onceived as a conversation, or as a practice of correspondence, can research be condu­
cive to the continuation of those relations and processes, of world-formation or r­ enewal,
on which our collective futures depend. In short, research as correspondence is a condi­
tion for sustainability. For many of us, I admit, the notion of sustainability has been
­devalued by overuse, and compromised through its co-option by powerful interests
whose overriding concern has been for their own survival in a world of ever more
­intense competition for dwindling planetary resources. Yet I believe it is a notion we
cannot do without, and that to give up on it would be tantamount to the abandonment of
our responsibility towards coming generations. The challenge, then, is to give meaning
to a term that paradoxically combines the idea of an absolute limit with the limitless‑
ness of carrying on forever. Real sustainability, I argue, begins at the moment when the
doors of perception swing open, when objectivity gives way to the search for truth, or
finality to renewal, whereupon what appears from the outside as a limit opens up from
within into a space of growth, movement and transformation, to limitless possibility, or
in a word, to everything. Sustainability cannot be of some things and not others; it can
countenance no boundaries of inclusion and exclusion. It must be of everything, or it
is nothing. What kind of everything, then, can always surpass itself, always have room

26
INGOLD, 2013a.
27
The citation is from an English translation of Kekulé’s address by BENFEY, 1958.

614
ART AND ANTHROPOLOGY FOR A SUSTAINABLE WORLD

for more, without at any moment appearing partial or incomplete? What follows is my
attempt at an answer.
For those of us educated into the ways of modern science, our inclination is to
conclude with everything rather than to begin from it. And we can reach a conclusion,
we think, only by adding things up. We add and we add: numbers of people, numbers
of species, numbers of objects of this or that kind, numbers of characters on the page,
numbers of stars in the sky, numbers of cells in the body, numbers of atoms in a pinhead.
We are bamboozled by numbers, many of a magnitude that defy comprehension. But to
add things up, they have first to be broken off from the processes that gave rise to them,
from the ebbs and flows of life. You must be able to tell where one thing ends and a­ nother
begins. The world must be rendered discontinuous. We soon discover, however, that
some things are difficult if not impossible to enumerate. Try counting clouds in the sky,
waves in the ocean, trees in the woods, fungi. The difficulty is that these things are always
forming and dissolving, growing and decomposing, appearing at some times to merge,
at other times to break up. Take clouds, for example. Clouds are not discrete ­objects,
suspended in the sky. They are rather folds of the sky itself — moisture-laden forma‑
tions of the turbulent and crumpled mass of atmospheric air28. Waves, too, are folds,
­ever-forming at the surface where the ocean, in its intercourse with the sky, is whipped
up by the wind. You could perhaps count waves as they wash up upon the shore, much as
you could count footsteps, breaths or heartbeats. But what would they amount to? A life,
perhaps, with breaths, steps and heartbeats; all eternity with the waves. Counting would
not be adding up a world but the rhythm of time passing.
With trees and fungi, addition is just as impracticable. Who can say how many
trees there are in a wood? True, you could measure up, as foresters do, estimating the
number and volume of trunks in the stack when a plot is felled. But in so doing you
have already, in your mind’s eye, cut each and every tree from all that nourishes it and
gives it life: the soil, the fungi that wrap around its roots, the air and sunlight that fuel
its growth. And to count fungi is merely to enumerate the fruiting bodies, ignoring the
underground mesh of the mycelium from which they spring. But is it really any different
with people? Are they any easier to add up than clouds, waves, trees and fungi? Can you
arrive at everybody by counting heads? The head, after all, is part of a body that, topo‑
logically, is not a closed container but an open vessel, its surfaces so intricately infolded
that it is practically impossible to distinguish its interior and exterior regions. Normally,
we see only one part of every person — namely, the fleshy part. The part we don’t see is
the breath, the air we inhale and exhale, and without which we could not live. Like trees
in the wood, people intermingle with one another — they «go in and out of each ­other’s

28
INGOLD, 2015: 90.

615
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

bodies», in Maurice Bloch’s29 beguiling phrase — even as they breathe the air. And their
voices, ­carried on the breath and permeating the atmosphere, mingle also, sometimes
joining, as in the unison of song, sometimes splitting apart as they ­«lift-­up-over» one
another without ever separating into discrete sounds30. You may, through an act of
­differential attention, be able to tell one voice from another, to split them along the grain
of their becoming. But you cannot count them up.
In the correspondence of voices — in the conversation — everyone, like everything,
is an intermingling: not a totality, arrived at by the addition of its individual elements,
but what I shall call a plenum. The plenum is not a space filled up to capacity with things.
It is fullness itself. The things we find there — as we have seen with clouds, waves, trees
and people — emerge as folds, ever-forming by way of the turbulence of lively materials.
We have many words to describe the plenum: world, cosmos, nature, earth. But does
the world contain holes that remain to be filled? Are there gaps in the cosmos, voids in
nature, empty spaces in the earth? We might regard a patch of ground as a site on which
to build. It must first be cleared of obstructions like trees and boulders, foundations must
be dug, materials gathered and assembled. To clear the ground, however, is not to leave a
void but to smooth it out, as when you remove a crease from a fabric. And to build is not
to refill the space but once again to crease the ground, pressing it into the rising forms of
walls and the vault of the roof. Thus every infill is, in reality, a reworking, a doubling up
that introduces a kink, twist or knot into the very fabric of the earth. To put it in the terms
of physicist David Bohm31, the order of the plenum is implicate. In the implicate order,
according to Bohm, «everything is enfolded into everything»32. Things that to our s­ enses
might appear solid, tangible and visibly stable — a building here, a tree or a ­boulder
there, each occupying its particular region of space or moment in time — are truly but
the envelopes of the spatiotemporal «holomovement» wherein everything is formed.
I would like to take Bohm’s insight one step further, however, to argue that the
­order of the plenum is not so much implicate as complicate. Whereas implication
­connotes a folding inward, from side to side, complication carries the sense of folding
forward — that is, of things convoluting longitudinally, braiding or plaiting along the
lines of their own growth and movement. This is material folding on itself as it goes
along33. As it does so it endlessly overflows any formal envelopes within which it may
appear temporarily to have been pulled aside or detained. The plenum, then, is limit‑
less, not because its capa­city can always be increased, but because it forever carries on.

29
BLOCH, 2012: 120.
30
FELD, 1996: 100.
31
BOHM, 2002.
32
BOHM, 2002: 225. Bohm’s Wholeness and the Implicate Order was first published in 1980.
33
In The Fold, his study of Leibniz and the Baroque, Deleuze depicts matter thus as a maelstrom of vortices within
vortices, yielding an «infinitely porous, spongy or cavernous texture… caverns endlessly contained in other caverns»
(DELEUZE, 1993: 5).

616
ART AND ANTHROPOLOGY FOR A SUSTAINABLE WORLD

We do not ask the ocean whether it has room to accommodate a few more waves; nor
does the ocean respond like an overbooked hotelier: «Unfortunately we are full up».
For the waves are ever forming, even as they break on the shore. The plenum, in short,
belongs to time; perhaps, indeed, it is time. Everything, in the sense of the plenum, is
not an ultimate conclusion, not the sum total when all is added up, but pure beginning.
Let us recall Whitehead’s words: «there is no holding nature still and looking at it». For
Whitehead, nature was always self-surpassing, or in a word, concrescent34. «Con» literally
means together, «crescent» means undergoing creation rather than already created. In a
concrescent world, then, everything is perpetually undergoing creation together: trees
growing together in the wood, people living together in society, their voices carrying on
together in conversation. This does not mean, of course, that the plenary world is only
half-formed, or incomplete. For incompletion can only be judged in relation to a state of
finality. In the plenum, by contrast, nothing is final, and every ending is an unfinishing.
To return to my theme of sustainability, and to the question with which I began:
how can we imagine a world that is sustainable for everyone and everything, for now
and evermore? William James, in a lecture delivered in 1908, already gave a hint as to the
answer. We have to think of the world, he said, as a pluralistic universe, or in short, as a
pluriverse35. The pluriverse is not many rather than one, a collection of separate worlds
rather than a singular universe. It is rather one in its openness, in its admission to infinite
differentiation — that is, in its multiplicity. This world, as James put it, is «not rounded
in and closed», like a globe, but «strung along», ever ramifying along the multiple kinks,
creases and folds of emergent form36. For Arturo Escobar, writing for us today but with
acknowledgement to James, sustainability is precisely about designing for a pluriverse —
in his words, for «the Earth as a living whole that is always emerging out of the manifold
biophysical, human, and spiritual elements that make it up»37. Far from ending with the
world as a totality, joined up and complete, this would be a practice of design that begins
with the world as a plenum whose very mode of existence lies in the perpetual unfinish‑
ing of things, in the digestion of ends and their extrusion into pure beginning. And at the
threshold, turning endings into beginnings, easing the passage of things from old life to
new, stands the figure of the designer, the maker or the artist38. In design for a pluriverse,
sustainability is not about the preservation of form. It is about the continuity of life.
The contrast between this view and the mainstream, science-based rationale
of s­ ustainability could not be more extreme. For the aim of the latter is to harness or
­capture the power of world-renewal, and to put it to use in the production of so-called

34
WHITEHEAD, 1929: 410.
35
JAMES, 2012.
36
JAMES, 2012: 170.
37
ESCOBAR, 2011: 139; ESCOBAR, 2018.
38
INGOLD, 2015: 120-123.

617
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

renewables. This is to turn beginnings into endings, the transformative power of a living
earth into goods and services for human consumption. In the rationale of sustainable
development, the world is understood not as a plenum to be inhabited but as a totality to
be managed, much as a company manages its portfolio, by balancing the books. At the
point of balance, the supply of renewables precisely matches consumer demand. Now in
theory, if the world and everything in it could be poised on this point, then it could be
kept forever in a state of dynamic equilibrium. Sustainability, however, would then have
been bought at the expense of putting life and history permanently on hold. The future
could be no more than a protraction of the present. To design for such a future would,
indeed, be self-defeating. If our predecessors had succeeded in designing a sustainable
world, what future would remain for us, save to fall in line with their already imposed
imperatives? Alternatively, were it to fall to us to design sustainability for our successors,
then they in turn would become mere users, or consumers, tied to the implementation of
a design already made for them. Design, it seems, must fail if every generation is to look
forward to a future that it can call its own: that is, for every generation to begin afresh, to
be a new generation. To adapt a maxim from the environmental pundit ­Stewart Brand:
all designs are predictions; all predictions are wrong39.
This hardly sounds like a formula for sustainable living. The sustainability of
­everything, I have argued, is about keeping life going. Yet design based on the s­ cience
of sustainability seems intent on bringing life to a stop, by specifying moments of
­completion when things fall into line with prior projections. If design brings predicta­
bility and f­oreclosure to a life-process that is inherently open-ended, then is it not the
very anti­thesis of life? Remember Klee: «form is the end, death… Form-giving is life»40.
How, then, can we think of design as part of a process of life whose outstanding charac­
teristic is not that it tends to a limit but that it carries on? To do so, we will have to
think differently of the world and of our place in it. Let me remind you of my earlier
obser­vation, that in the plenum every apparent infill is really a reworking. What goes for
building in the plenum also goes, as I have shown, for research. The claim of scientific
research — that it aims to fill the gaps in understanding — rests on a logic of addition,
on the idea that our knowledge of the world, though currently incomplete, will ultima­
tely add up to a totality. But for an itinerant practice of research that follows the ways
of the world from within, there are no gaps to fill. Every journey, as we have seen, is
both an original movement and a doubling up, a reworking, in which we differentiate
­emergent phenomena even as we join with them. It is, to recall the words of Karen ­Barad,
a ­«cutting together-apart». To research the plenum, as she writes in another context, is to

39
BRAND, 1994: 75, see INGOLD, 2013b: 233.
40
KLEE, 1973: 269.

618
ART AND ANTHROPOLOGY FOR A SUSTAINABLE WORLD

become «part of the world in its differential becoming»41. Experienced thus, as a way of
life, ­research continually surpasses itself. It is not an addition but a concrescence.

EDUCATION, DEMOCRACY AND CITIZENSHIP


With that, we can return to anthropology, and to art. I have just three final points
to make concerning, respectively, education, democracy and citizenship. First, research
in art, as in anthropology, would be mere solipsism — a gratuitous journey of self-disco­
very — were it not more fundamentally a practice of education. It is incumbent on us to
give to the coming generation in return for the gift we have received, in our own forma‑
tion, from the past. The commitment of education, as John Dewey taught more than a
century ago, is to the continuity of life42. This however is to take the meaning of education
quite literally, as a way of «leading out» (from the Latin ex, meaning «out» plus ducere,
«to lead»), a de-positioning or exposure, the aim of which is not to furnish every student
with a destiny in life but rather to undestine and unfinish, so that each can begin anew.
In the words of educational philosopher Jan Masschelein, it is to seek after truth: «not
the truth about the real, but the truth that comes out of the real… in the experience»43.
It is for art as it is for anthropology to offer experience as an imaginative opening to
truth. This does not amount to a programme of emancipation, or for transforming the
world. Art and anthropology, in their educational mission, are rather touchstones for
the world’s transformation of itself. This transformation, as we have seen, unfolds along
multiple pathways. It is, in essence, a conversation. Like life, conversations carry on; they
have no particular beginning point or end point, no-one knows in advance what will
come out of them, nor can their conduct be dictated by any one partner. They are truly
collective achievements. But they are potentially life-changing for all involved.
Let us think of the art of sustainability, then, as a conversation, embracing not
only human beings but all the other constituents of the living world — from non­
human a­ nimals of all sorts to trees, rivers, mountains, and the earth. This brings me to
my ­second point, namely, that the conversation is not only processual and open-ended
but fundamentally democratic. I do not mean democracy in the sense of a head-count,
which sorts everyone into those with common or opposed interests. In a sustainable
democracy — one with room for everyone and everything, now and forever — people
cannot be counted, and nor can things. Yet in their conjoint action and affective reso‑
nance, they constitute a public. As Jane Bennett writes, after Dewey, «publics are groups
of bodies with the capacity to affect and be affected»44. Whether human or non-human,
these are bodies in correspondence, not yet separated from their voices or from medium

41
BARAD, 2007: 185.
42
DEWEY, 1966: 2.
43
MASSCHELEIN, 2010: 285.
44
BENNETT, 2010: 101. Dewey’s essay, The public and its problems, was first published in 1927 (DEWEY, 2012).

619
MODOS DE FAZER/WAYS OF MAKING

in which they mix and mingle. In the democratic conversation, each has something to
give, something to contribute, precisely because all are different. Together they comprise
what Alphonso Lingis45, in an apt turn of phrase, calls «the community of those who
have nothing in common». My third point follows from this. It concerns citizenship. For
within a democratic community that is open-ended and unbounded rather than closed
in the defence of common interests, citizenship arises not as a right or entitlement, given
from the start, but as something you have to work at. This is the work of commoning,
not the discovery of what you have in common to begin with, but the imaginative act of
casting your experience forward, along ways that join with others in carrying on a life
together. Only then can citizenship be truly sustainable. The road to sustainability, in
short, lies in correspondence46.
Art and anthropology, I suggest, potentially afford new ways of thinking about
­democracy and citizenship — ways that could give hope to future generations. At the
present juncture, however, they have been pushed to the margins, above all by
the ­relentless expansion of big science, aided and abetted by multinational corpora‑
tions and neoli­beral globalisation. And with them has gone the question from which all
­inquiry must begin and indeed from which I began this lecture: how ought we to live?
Big ­science is not interested in this question because it believes it can already deliver the
answers, or if not already, then within the not too distant future. These answers offer
­totalising solutions that would fix the planet, once and for all, for the benefit of humanity.
But ­mega-projects of geoengineering, were they ever implemented, will not secure the
sustainability of everything but more likely its opposite, the ultimate extinction of life.
When the dinosaurs went extinct, it was the small mammals that inherited the earth,
among them the weasel. Perhaps the most famous weasel in history will turn out to
be the one that bit through an electric cable, putting the largest machine ever built —
CERN’s large hadron collider — out of action for a week47. The collider is perhaps the
greatest expression of scientific hubris we have yet seen, dedicated as it is to discovering
the final truth of the universe, one that will leave us mortals with no place to be. It is the
delusional project of our time, truly a machine for the end of the world. But when big
science collapses — as it is bound to do, along with the global economy that sustains
it — art and anthropology, like that famous weasel, will hold the future in their hands.
We must be ready for it.

45
LINGIS, 1994.
46
INGOLD, 2017: 14-15.
47
The animal in question was in fact a beech marten, a member of the weasel family. This attack, on 29th April 2016,
was in fact only the first. A few months later, on 21st November, another marten struck. Instantly electrocuted on
contact with the 18,000 volt cable, the animal’s singed body was recovered and put on display at the Rotterdam Natu‑
ral History Museum. See <https://www.theguardian.com/science/2017/jan/27/cerns-electrocuted-weasel-display-
rotterdam-natural-history-museum>.

620
ART AND ANTHROPOLOGY FOR A SUSTAINABLE WORLD

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