Sinara passa 47 dias de isolamento social e completa 47 anos. Ela decide extrair felicidade do dia, como quem encontra uma agulha no palheiro. Prepara um pudim mas descobre que não tem leite condensado, o que a faz chorar copiosamente.
Sinara passa 47 dias de isolamento social e completa 47 anos. Ela decide extrair felicidade do dia, como quem encontra uma agulha no palheiro. Prepara um pudim mas descobre que não tem leite condensado, o que a faz chorar copiosamente.
Sinara passa 47 dias de isolamento social e completa 47 anos. Ela decide extrair felicidade do dia, como quem encontra uma agulha no palheiro. Prepara um pudim mas descobre que não tem leite condensado, o que a faz chorar copiosamente.
Sinara passa 47 dias de isolamento social e completa 47 anos. Ela decide extrair felicidade do dia, como quem encontra uma agulha no palheiro. Prepara um pudim mas descobre que não tem leite condensado, o que a faz chorar copiosamente.
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Felicidade crocante – Carla Madeira
Quarenta e sete dias de isolamento.
Sinara acordou com os olhos inchados. Tinha chorado na noite anterior. Que ela se esquecesse de dar água para as louças que se acumulavam na pia, tudo bem, mas para a samambaia? Único ser vivo ao lado dela no isolamento? Aquilo foi a gota d'água. Naqueles dias, sempre que olhava para a samambaia, vibrava certa promessa (nunca diria a ninguém) de que não lhe faltaria ar. Sinara chorou de gratidão. Poucos dias antes, tinha chorado de desconcerto. Decidira fazer as unhas para levantar o astral. Encontrou, no balaio de coisas torturadas que imploravam para serem jogadas fora, um esmalte velho. Vermelho escarlate. Ótimo: cor quente, energia, luta, igualdade social. Passou o esmalte na mão esquerda. Depois, veio o desafio da direita. Um desastre. Nunca suportou a direita. Deu problema. Enrolou o algodão no pauzinho de laranjeira e, mal começou a consertar as coisas, derramou a pouca acetona que ainda tinha, virando o vidro sobre a mesa. Nesse caso, chorou dias seguidos enquanto durou o mandato. Uma eternidade. Só parou de chorar por esse motivo quando arranjou outro: o vizinho. O vizinho de cima morreu de covid, soube pelo porteiro. O vizinho que escarrava em sua varanda e a chamara de velha, justamente quando ela aparentava ser tão mais nova. Nunca o perdoou por isso. O idiota saíra em carreata de verde e amarelo gritando: fora, gripezinha! Ela não ia ser falsa, queria, sim, que ele morresse, mas mordendo a própria língua, não de covid. Chorou, nesse caso, pelas estatísticas. A considerar o nível das motivações, não faltariam lágrimas... até aquela manhã em que completava 47 dias de isolamento e 47 anos de idade. Só podia ser um sinal. Não a coincidência propriamente dita, mas o fato de que ela a notara (andava tão sem pé nem cabeça). “Vou extrair felicidade do dia de hoje a fórceps”, encheu-se de propósito. Depois considerou fórceps bruto demais para se metaforizar com felicidade. Palavra fagueira que não suporta alicates. Refez a promessa: “Vou extrair felicidade do dia de hoje como quem encontra agulha no palheiro”. Achou linda a visão. Bater o olho no risco prateado, rátilo, em meio a uma montanha de palha. Depois suspeitou (insegurança) evocar uma imagem desanimadora, mas manteve, nunca tolerou ilusões adocicadas. Coisas como oásis, em tempos de pandemia, desaparecem ao toque da primeira linha do noticiário. Alucinados! Teve vontade de chorar pelos elefantes, 47 no jogo do bicho. Mas se controlou. Saiu da cama, antes arredou para o lado a manta de piquet que já, há alguns dias, dormia com ela. O inverno estava vindo... teve ânsias de adiá-lo. Outros vírus, senhor! Esse, sim, seria um bom motivo para chorar, mas Sinara sacudiu o corpo em descarrego. Decididamente: hoje não! Começou a abrir gavetas. Lembrou-se de um sabonete líquido, de espuma macia, que comprara antes de tudo começar. Que sorte: achou no armário do banheiro debaixo da pia. Para Sinara, era sempre impressionante achar as coisas onde elas deveriam estar. Levou a espuma ao rosto e começou a girar, de leve, as bolhinhas aeradas com cheiro de alecrim. Depois abriu a torneira e viu a felicidade jorrar em estado de água. Farta. “Posso até viver sem felicidade, mas como viver sem água?”, pensou, enxugando o rosto e se lembrando das estatísticas nacionais. Nunca a falta de água alheia fora suficiente para que Sinara chamasse de felicidade sua sorte. Mas hoje... água encanada, esgoto, despensa cheia e toalha limpa deram um soco nela. Depois gritaram: encontre a agulha! Sinara tinha pão de sal no congelador. Ligou o forninho e, em segundos, tinha um pão crocante capaz de derreter uma bela lambida de manteiga. Fora um rapaz que entregara o pão, de bicicleta, pedalando sem garantias. Tanto morro pra subir, que não restava a ele fôlego para ter direitos. Sinara mordeu o pão crocante que fez um barulho crocante, e ela, de súbito, absorveu um aspecto físico da felicidade. Mesmo confusa sobre se deveria ou não comer com tanto prazer um pão tão suspeito que segurava com a mão tão direita, Sinara se agarrou à descoberta: a felicidade é crocante. Depois, ligou o computador. Tinha emprego e tinha sorte: podia trabalhar a distância. Achava seu trabalho muita palha para pouca agulha. Mas, mesmo assim, não esmoreceu. Hoje o dia estava repleto de propósito. E depois, se bem se lembrava, seu office já era desanimador bem antes do seu home, mas... ela tinha plano de saúde, vale-refeição e CLT. Felicidade, felicidade, felicidade. Concluiu, provisória. E assim o dia foi passando. Já desembaraçada das estroboscópicas videoconferências que, em dias anteriores, a levaram o pranto diurno, Sinara foi atrás de um pouco de distração. Passou longe do noticiário e nem chegou perto do grupo da família, onde não faltava amor, mas sobrava contrariedade. Sequelas eleitorais. Caiu nas redes sociais. Todas as liquidações começaram a perseguir Sinara. “Tudo pela metade do preço”. “Logo agora, que não tenho aonde ir, esses sapatos querem andar comigo?”. Sinara resistiu, depois de ver pela sétima vez um vestido de linho branco, caimento perfeito, teve necessidade de falar em voz alta com a samambaia: “Serei feliz nos trapos, mas serei feliz, hoje”. Talvez ajudasse se Sinara tirasse o pijama. E foi o que ela fez. Vestiu um vestido novo, bem passado, e enfrentou com coragem a mãe onipresente: hoje não, mamãe! Hoje vou usar roupa de sair, em casa! Agora, Sinara também falava com os mortos. Com dedos frenéticos, ela caminhou pelo mundo. E distraída, já quase em estado de agulha, foi vítima da crueldade dos algoritmos: deu de cara com ele. Eugênio. Tremeu dos pés à cabeça e gemeu: hoje não! Há muito não podia mais beijá-lo. Nem ficar a seguros dois metros dele. Estavam isolados há um ano, dois meses e seis dias. Não era culpa do vírus, foi outra mulher. “Farei um pudim”, decidiu Sinara. Quebrou os ovos, a receita levava oito gemas. Detestava separar a clara das gemas, e, então, se concentrou na primeira colherada. Outro aspecto da felicidade: é cremosa. Já estava entardecendo, e Sinara sentiu que havia espetado o dedo na agulha que procurava. Doia. Eugênio parecia feliz na foto e não escondia mais, nem ela nem a felicidade. “Ela é feia”, vingou-se Sinara. “Quer saber? Posso sentir a crocância dessas palavras: ela-é-muito-feia.” Pronto: gemas separadas, amarelinhas como o sol. “Há de brilhar mais uma vez...”, cantarolou Sinara, invocando, sem convicção, uma esperança de luz para seu coração. Foi até a despensa buscar uma lata de leite condensado, e aí sim, aí sim, a vida apelou! Aconteceu o insuperável, o abalo momumental, o desmoronamento estupendo: não tinha leite condensado na despensa. Sinara começou a chorar. “Que se dane a felicidade!”, bradou. Chorou de perder o fôlego, chorou de fazer barulho e sacudir o ombro, chorou de escorrer na roupa de sair. Chorou de molhar todo o palheiro. Chorou. Depois faria uma omelete. Mas por hoje, chorou.