Mori e Curvelo 2021
Mori e Curvelo 2021
Mori e Curvelo 2021
1590/1980-6248-2019-0058
e-ISSN 1980-6248
ARTIGOS
6301-2795, rafael.mori@ufabc.edu.br.
Universidade de São Paulo – USP, São Carlos, SP, Brasil. https://orcid.org/0000-0003-0377-7707,
(ii)
aprigio@iqsc.usp.br.
Resumo
A obra O livro didático de Ciências no Brasil, organizada por Hilário Fracalanza e Jorge
Megid Neto, foi publicada em 2006. Mais de 10 anos após sua publicação, algumas
de suas proposições precisam ser reanalisadas, dadas as alterações sofridas pelo
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que geraram impacto nos próprios
livros. Este trabalho compara enunciados dos capítulos do livro com guias do livro
didático produzidos pelo Ministério da Educação, pesquisas sobre o livro didático
de ciências e manuais escolares produzidos durante a vigência do PNLD. Em que
pesem as desatualizações da obra de Fracalanza e Megid Neto, muitos de seus
apontamentos permanecem válidos, embora necessitem ser relativizados à luz das
complexas relações enunciativas em que se situam os manuais escolares atualmente.
Palavras-chave: livro didático, ensino de ciências, políticas educacionais,
enunciados, PNLD
e-ISSN 1980-6248
Abstract
More than ten years after the publication of the book “O livro didático de Ciências no Brasil”
[The Science textbook in Brazil], edited by Hilário Fracalanza and Jorge Megid Neto, in 2006,
some of its propositions require a reanalysis due to changes in the National Textbook Program
(PNLD). This paper compares excerpts from the book’s chapters with Didactic Book Guides
produced by the Ministry of Education, researches on Science textbooks, and textbooks produced
during the term of the PNLD. Despite the outdated assertions in the book of Fracalanza and
Megid Neto, many of their statements remain valid until the present days, requiring but a
relativization in light of the complex enunciative relations in which school textbooks are currently
situated.
Keywords: textbooks, science teaching, educational policy, utterances, PNLD
Introdução
Em 1972, anos antes da constituição do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD)
e do boom de pesquisas sobre o manual escolar, Dermeval Saviani já antevira nesse objeto um
assunto complexo. Então, com o texto “Subsídios para o equacionamento do problema do livro
didático em face da Lei n. 5.692/71” (Saviani, 2009), o formulador da pedagogia histórico-crítica
propôs uma reflexão cujos eixos permaneceriam norteando estudos sobre o livro escolar: a
consideração desse objeto como mediador de uma relação comunicativa, e a consciência de que
tal relação se situa num contexto politicamente determinado.
Esses dois eixos são identificáveis nas principais produções brasileiras sobre o livro
didático de ciências. Nos anos iniciais deste século, surgiram duas obras que aglutinam estudos
sobre o tema: focando no eixo “político”, O livro didático de Ciências no Brasil (2006), organizada
por Hilário Fracalanza e Jorge Megid Neto, então pesquisadores da Faculdade de Educação da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); e enfatizando o eixo “comunicativo”, O livro
didático de Ciências: contextos de exigência, critérios de seleção, práticas de leitura e uso em sala de aula (2012),
coordenada por Isabel Martins, Guaracira Gouvêa e Rita Vilanova, do Programa de Pós-
Graduação Educação em Ciências e Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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3 Este texto se orienta pelo seguinte padrão, quanto à grafia de nomes de disciplinas. As menções a campos
disciplinares específicos, tais como referidos pela pesquisa acadêmica (por exemplo, “educação em ciências”), ou a
um conjunto de disciplinas (por exemplo, “ciências”), empregaram apenas letras minúsculas. Já as menções a
componentes curriculares da educação básica são demarcadas por letras maiúsculas (como “Ciências”, “Física” e
“Química”). Em que pese o fato de a obra analisada – O livro didático de Ciências no Brasil – tomar como objetos os
textos escolares do componente curricular Ciências, entendemos que alguns de seus apontamentos são válidos para
os livros de ciências em geral (considerando, assim, também as obras dirigidas ao ensino médio).
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Quadro 1 – Divisões de O livro didático de Ciências no Brasil, seus autores e as origens dos
textos
Divisão Autor(es) Origem
Hilário Fracalanza, Jorge
Apresentação Original
Megid Neto
1. A trajetória do PNLD do
Eloísa de Mattos Höfling Original
MEC no Brasil
Resultados da dissertação de
mestrado de Leão – “O que avaliam
2. Avaliações oficiais sobre o Flávia de Barros Ferreira
as avaliações de livros didáticos de
LD de Ciências Leão, Jorge Megid Neto
Ciências – 1ª a 4ª séries do Programa
Nacional do Livro Didático?” (2003)
3. Os fundamentos do ensino Ivan Amorosino do
Original
de ciências e o livro didático Amaral
4. O ensino de ciências no
Hilário Fracalanza Original
Brasil
5. O livro didático de ciências: Jorge Megid Neto, Hilário Artigo publicado no periódico
problemas e soluções Fracalanza Ciência & Educação (2003)
6. Livro didático de ciências:
Hilário Fracalanza Original
novas ou velhas perspectivas
Ivan A. do Amaral, J.
7. Avaliando livros didáticos Relatório elaborado para FAE/MEC
Megid Neto, H.
de Ciências. Análise de (1996), mais trabalho publicado nos
Fracalanza, Antonio
coleções didáticas de Ciências anais do Encontro Nacional de
Carlos Rodrigues de
de 5ª a 8ª séries do ensino Pesquisa em Educação em Ciências
Amorim, Sílvia Maria
fundamental (1999)
Serrão
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Na próxima divisão, escrita por Fracalanza, essa reflexão prossegue em discussão sobre
como inovações difundidas no século XX a partir dos chamados “projetos de ensino” foram
incorporadas à educação brasileira. Observa-se também que, na produção acadêmica sobre
materiais para o ensino de ciências, dos anos 1970 até 2000, os projetos de ensino foram
cedendo espaço aos livros escolares.
Com mais um texto na coletânea, Fracalanza discute no capítulo seguinte que, apesar da
farta literatura sobre o manual escolar, os estudos parecem não impactar em sua melhoria. O
que as pesquisas evidenciam é a padronização dos textos escolares.
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Provavelmente não foi intenção de Choppin ressaltar a autonomia relativa das quatro
funções umas em relação às outras, mas convém explicitarmos como elas se imbricam.
Primeiramente, se a função referencial diz respeito aos conteúdos e, a instrumental, às formas,
de antemão já está posta sua inseparabilidade. Saviani (2008) nos lembra que forma e conteúdo
só se dissociam a partir da lógica formal; do ponto de vista de uma lógica concreta – a lógica
dialética –, tal separação é impossível. O autor traz como exemplo o ensino de história: se o
fundamental é que o estudante apreenda o método – o situar-se historicamente –, isso só é
possível por meio da familiaridade com a história propriamente dita e, logo, com os conteúdos
históricos. Do mesmo modo, separar as funções referencial e ideológica e cultural supõe
considerar o currículo como um artefato neutro – mas há décadas sabemos que não se trata
disso: o que se ensina para quem não é uma decisão orientada apenas epistemologicamente e, no
mais das vezes, o currículo constitui um “arbitrário cultural”, nos termos de Bourdieu e Passeron
(2014), que traduz a aspiração de uma determinada classe para que tudo fique tal e qual. A
função instrumental também é constituída por um componente ideológico e cultural, pois todo
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Essa tipologia, apesar de seus limites, é útil para explicitar o hibridismo discursivo do
livro didático. Assim, partindo dessas funções e orientando-nos pelo chamado “Círculo de
Bakhtin” e por seus comentaristas, consideraremos o livro escolar como composto por diversos
tipos de enunciados. Na perspectiva de Voloshinov (Bakhtin, 2004), o enunciado é a unidade
concreta da língua, enquanto palavras e orações são unidades linguísticas abstratas, possuidoras
apenas de um potencial comunicativo. A comunicação se dá efetivamente a partir da enunciação,
inerentemente dialógica – todo enunciado é orientado responsivamente a um enunciado anterior
e antecipa a réplica de um próximo enunciado –, constituindo a cadeia da comunicação verbal,
em que cada enunciado, demarcado pela alternância dos sujeitos falantes, é um elo. Ainda, a
enunciação não ocorre num vácuo linguístico, antes, responde a estruturas estabilizadas
historicamente como gêneros do discurso (Bakhtin, 2011). Os gêneros surgiram de forma a
integrar, e mesmo viabilizar, determinadas práticas sociais. Observa-se comumente a
constituição de híbridos enunciativos nos objetos da cultura contemporânea e, como afirmamos
no início deste parágrafo, o livro didático é um exemplo: suas páginas materializam a
composição, a interseção e mesmo o conflito entre enunciados provenientes de gêneros
diversos. Parafraseando Machado (2012), o livro é produto da prosificação da cultura letrada,
em que formas e gêneros insurgem dialogicamente uns nos outros.
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vozes
público
Figura 1 – Relação, para três gêneros, entre vozes composicionais e públicos-alvo
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(2011), “bater em retirada” (p. 65). Na Figura 1, a orientação do vértice para o público
representa esse isolamento do leitor e o fato de o auditório do artigo científico ser restritíssimo.
Entre esses dois gêneros de qualidades opostas, como se comporta o livro didático?
Nota-se sua representação como um trapézio, sendo a base larga (não tão grande quanto a da
figura da divulgação científica), com um lado oposto menor, mas também largo (maior do que
o lado análogo do artigo científico). Isso representa seu direcionamento a um público amplo e
diverso – todos os sujeitos em idade escolar –, embora mais restrito que o conjunto total da
sociedade, alvo da divulgação científica. O lado orientado para as vozes é quase tão amplo
quanto o lado orientado para o público, justamente pelo livro ser um texto híbrido, composto
pelo discurso paradigmático das ciências de referência, pelo discurso pedagógico que traduz a
intencionalidade educacional da autoria e pelo discurso político (assumido explícita ou sub-
repticiamente) na função ideológica e cultural.
Essas três ordens de discurso formam apenas o núcleo composicional do texto didático.
Neste artigo, mostraremos que múltiplos tipos de enunciados, pertencentes a diversos gêneros
e oriundos de variadas práticas sociais, participam atualmente da produção do livro escolar
brasileiro. A tese resultante será a de que, hoje, é cada vez mais difícil identificar
inequivocamente os autores de uma dada publicação didática. Pode-se verificar, ao menos no
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caso da produção dos livros de ciências no Brasil, uma espécie de “autoria dissolvida” ou
“difusa”.
3. O livro didático de ciências no Brasil – um objeto em evolução?: nesta última subseção, emergem
novas fontes documentais, com especial apreço pelos próprios livros didáticos,
considerando as possíveis mudanças que o processo de avaliação oficial do PNLD possa
ter imposto às sucessivas edições das obras distribuídas pelo programa. Para investigar
essa possível evolução histórica, foram analisadas coleções que permaneceram
distribuídas nas duas fases do PNLD – como aponta Cassiano (2013), fases
compreendidas nos períodos 1985-1994 e 1995-atualidade, respectivamente. Como
fontes documentais auxiliares, quando não foi possível consultar os próprios livros,
foram eleitas as pesquisas recentes que os tomaram como objeto.
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Segundo Cassiano (2013), de 1985 a 1991, 64 editoras participaram do PNLD, sete delas
concentrando o fornecimento de 84% dos livros. Nos guias do PNLD dessa época (intitulados
Manual para indicação de livro didático), constam obras variadas de 18 componentes curriculares:
além de parte daqueles presentes nas células finais da Figura 2, registram-se, no manual de 1992,
Francês, Alemão, Educação para o Lar, Programas de Saúde, Educação Ambiental e livros
multidisciplinares e profissionalizantes (com três componentes, Técnicas Agrícolas, Técnicas
Comerciais e Técnicas Industriais). Ainda, esse manual foi o primeiro a não contemplar a
Educação Moral e Cívica. A exclusão desses componentes reduziu a participação das editoras a
25 empresas, em anos iniciais da segunda fase do PNLD (1997-1998), ainda conforme Cassiano
(2013). A autora aponta uma nova redução nos anos 2000, sendo que, em 2006, apenas 13
editoras participaram do programa e “das 64 editoras que disputaram uma fatia do mercado nos
primeiros anos do programa, apenas 12 editoras permaneceram”, havendo também
“incorporação das menores editoras pelas maiores” (p. 72).
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1997
1999
2002
2004
2005
2006
2007
2008
2009
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Os dados de Cassiano (2013) a respeito da presença cada vez mais marcante de grupos
estrangeiros no nosso mercado editorial mantêm atuais as conclusões de Höfling (Fracalanza &
Megid Neto, 2006, p. 29):
Quanto aos mecanismos a que Höfling se refere no fragmento acima, ao menos duas
alterações sofridas pelo PNLD contribuíram para desestabilizar o círculo vicioso de
fortalecimento dos grandes grupos editoriais (que, dotados de maior capital, dispõem de mais
recursos para compelir as compras de seus produtos pelo governo). Primeiramente, a Portaria
MEC n. 2.963/05 disciplinou as relações entre editoras e consumidores de livros didáticos,
vedando, por exemplo, o oferecimento de vantagens, a escolas e professores, que pudessem
induzir a adoção de obras no momento das escolhas do PNLD. Apesar dessas restrições,
Cassiano (2013) reporta as estratégias de um grande conglomerado participante do PNLD para
permanecer em “contato” com os professores – por exemplo, veiculando propagandas em
programas televisivos, com a participação de um famoso cartunista atestando a qualidade dos
produtos. De qualquer forma, apesar do MEC interditar a presença das editoras nas escolas, não
é proibido que encaminhem amostras de livros “para análise do professor” diretamente a elas,
considerando a tendência dos docentes em escolher obras que tenham em mãos, em detrimento
daquelas apenas resenhadas nos guias. A segunda alteração no PNLD, quanto a esse aspecto,
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tem justamente a ver com o acesso dos professores às obras resenhadas. Agora, com o Guia
digital do livro didático, os professores podem “folhear” virtualmente os livros resenhados,
acessando coleções cujas amostras não foram enviadas às escolas – mitigando desigualdades
entre editoras grandes e pequenas.
Nesse panorama, propomos mais uma atualização no texto de O livro didático de Ciências
no Brasil. O capítulo 5, dos organizadores da obra, apresenta um quadro das influências de
diversos agentes sobre o manual escolar no Brasil (Fracalanza & Megid Neto, 2006, p. 162). Ali
consta que as editoras executam ações de produção editorial, marketing e pressão para definir
normas, políticas e ações públicas. Podemos acrescentar, então, as ações de crítica e colaboração
para o aprimoramento das políticas e, contraditoriamente, desqualificação, questionamento e
formulação de alternativas ao livro. Não se pode ignorar, também, que esse agente atua
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Alterações sofridas pelo PNLD, desde o início dos anos 2000, neutralizaram parte das
críticas de Leão e Megid Neto. Os autores consideraram uma incoerência que, em sucessivas
edições do programa, variassem as menções recebidas pelos volumes individuais de cada coleção
didática. No entanto, desde o PNLD 2002, as coleções são avaliadas e resenhadas como um
todo, e não mais por volumes. Ainda, Leão e Megid Neto consideraram preocupante a própria
existência das menções atribuídas aos livros nos guias – não recomendados, recomendados com ressalvas,
recomendados e recomendados com distinção –, uma estratificação que induziria a escolha dos
professores por obras mais bem avaliadas. Tal hipótese acabou questionada por Castanheira e
Evangelista (2002), que observaram que, ao contrário, os professores tendiam a adotar livros
com menções mais baixas, com os quais já estavam mais familiarizados. De qualquer forma, isso
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também foi superado: desde o PNLD 2005, constam nos guias apenas obras aprovadas na
avaliação, sem menções, interditando-se a escolha por coleções não recomendadas.
A escassez de critérios específicos para o ensino de ciências nas séries iniciais do ensino
fundamental, preocupação central desse capítulo de Leão e Megid Neto (e tematizada no
capítulo seguinte, “Os fundamentos do ensino de ciências e o livro didático”, de Amaral),
também foi corrigida ao longo da trajetória do PNLD. Já no edital do PNLD 2004 houve maior
preocupação com os temas ciência e ambiente, como reconhecem os autores;
Porém ainda não se propõem como critério de análise: as concepções de saúde, de corpo
humano, de seres vivos. Apesar de no Guia de 2004 haver a preocupação em analisar os
fenômenos por diversos aspectos, há uma nítida ênfase na Biologia.… No entanto, não
especifica as áreas da Química e da Física, por exemplo, bem como não contempla questões
relacionadas às Geociências e à Saúde. (Fracalanza & Megid Neto, 2006, pp. 77-78)
A análise dos guias seguintes, do componente Ciências das séries iniciais do ensino
fundamental, revela a absorção de tais críticas pelo PNLD. No guia de 2007, há um critério que
aponta geologia e saúde como áreas em que os alunos devem ser iniciados, ao lado de
astronomia, biologia, ecologia, física e química. Esse descritor continuou presente, praticamente
nos mesmos termos, nas edições de 2010, 2013 e 2016 – nesta última, referindo-se a geociências,
e não apenas geologia. Ainda, nas edições de 2007 a 2016, nota-se a progressiva incorporação
de temas específicos das pesquisas sobre educação em ciências: analogias e animismos,
linguagem das ciências e gênero textual científico, questões sociocientíficas e natureza da ciência,
articulação do ensino escolar com a visitação a outros espaços, recurso a laboratórios virtuais e
demais tecnologias. Também evoluiu a concepção da educação ambiental: se, nos primeiros
guias, o respectivo critério se reporta às vertentes conservacionistas e pragmáticas, na edição de
2016, já se insinua a perspectiva crítica. Procedendo com a mesma análise, mas com os guias de
Ciências para as séries finais do ensino fundamental (2008, 2011, 2014 e 2017), percebe-se um
movimento semelhante. No entanto, Gramowski et al. (2017), examinando esses guias a partir
de 1999, concluem que, até 2014, os critérios específicos de Ciências, embora não rarefeitos,
permaneciam minoritários, corroborando os apontamentos dos capítulos 2, 3 e 5 de O livro
didático de Ciências no Brasil.
Como mencionado, Leão e Megid Neto sugerem que descontinuidades nas comissões
avaliadoras podem fragilizar o PNLD. Os guias de Ciências (séries iniciais e finais do ensino
fundamental) fornecem os seguintes dados: de 2005 a 2017, houve 231 avaliadores de livros e,
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140
quantidade de avaliadores
120
100
80
60
36
40
22
20
4 5
1
0
1 2 3 4 5 6
quantidade de participações
Gráfico 1 – Avaliadores e suas quantidades de participações no PNLD-Ciências (2005-2017)
Fonte: Guias do livro didático5.
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81%
80%
20%
0%
2008 2010 2011 2013 2014 2016 2017
Por outro lado, não se deve desprezar as comissões coordenadoras, que ajudam a mitigar
a renovação dos avaliadores. De 2005 a 2017, houve continuidade na Comissão Técnica (2007-
2014), na Coordenação Institucional (2010-2014) e na Coordenação de Área (2010-2013), para
citar alguns exemplos. Além disso, avaliadores experientes podem ascender às posições
coordenadoras (uma avaliadora, com cinco participações no programa, alcançou a Comissão
Técnica em 2017) e vice-versa (um coordenador em 2007 e 2014 atuou como avaliador em 2011
e 2013).
Revisemos os dados desta subseção. Como foi exposto ao final da subseção anterior, o
capítulo 5 de O livro didático de Ciências no Brasil apresenta um quadro sobre os agentes que
influenciam a conformação dos manuais escolares brasileiros. Segundo esse quadro (Fracalanza
& Megid Neto, 2006, p. 162), as instituições de pesquisa executam ações de produção de
alternativas aos livros, assessoria à elaboração de propostas curriculares, atualização de
professores e, finalmente, análise e divulgação de aspectos relacionados aos livros didáticos. De
acordo com nossa análise, as instituições de pesquisa podem exercer mais uma função:
identificar limites e vícios do PNLD, visando seu aprimoramento – como atesta a absorção,
pelo programa, das próprias críticas de O livro didático de Ciências no Brasil.
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Notamos que para todos os livros existem elogios, geralmente propostos à acuidade conceitual
ou à metodologia. No entanto, para os livros classificados apenas com duas e uma estrela
[respectivamente, livros recomendados e recomendados com ressalvas], o parecer destaca os
problemas e sugere ao professor que faça as adequações necessárias para a melhoria da obra.
Entretanto, deve-se convir, isso sobrecarrega o professor enquanto alivia o trabalho de autores
e editoras, uma vez que, se o livro não é rejeitado, não há a obrigação de corrigi-lo.
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para os manuais excluídos do PNLD: é de se supor que, com base nos pareceres de reprovação,
autores e editores reformulem suas criações. Assim, os avaliadores têm um papel considerável
na conformação dos produtos que chegam ao mercado ou às escolas da educação básica,
configurando uma autoria não reconhecida. Oliveira e Rosa (2016) mostram que os elaboradores
de livros reconhecem essa interferência autoral das comissões do PNLD, que representam
valores e expectativas do MEC – nas palavras de um autor, “O MEC é autor do livro, porque
fala como deve ser o material” (p. 279).
Cassiano (2013) relaciona a questão autoral com o mercado. Para a autora, estamos
importando um modelo de produção textual dos países dos grupos editoriais que vêm se
fortalecendo pela compra de editoras brasileiras – o modelo de obras coletivas, em que “os autores
passam a ter posição diferente no processo produtivo dos livros, que têm a estrutura
predeterminada …” (p. 280). Dessa forma, vários colaboradores (muitos deles, oriundos de
universidades, docentes ou pós-graduandos) compõem o livro coletiva, mas não conjuntamente.
O nome de um autor estampado na capa do produto acaba não refletindo o processo global de
sua produção, adquirindo o status de marca comercial ou nome fantasia.
Cassiano (2013) elenca uma lista semelhante de agentes do “ciclo vital do livro”,
acrescentando a participação da mídia. Às vezes como porta-voz das editoras, em suas queixas
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… como as diversas forças que atuam no sentido da padronização do sistema escolar [ênfase
adicionada] também atuam na produção dos livros escolares, há de se convir que essas forças
acabam por amalgamar os manuais que, então, são organizados conforme padrões preestabelecidos [ênfase
adicionada]. Assim … os textos didáticos se encaminham para o invariável e seus autores, nos
aspectos gerais, acabam por se confundir (Fracalanza & Megid Neto, 2006, pp. 176-177).
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1991). O caso dos livros de Química fornece também um exemplo de pesquisa em educação
em ciências incorporada a um material escolar – fato que, para Freitag et al. (1997), era possível
apenas em “países economicamente mais avançados” (p. 23). Trata-se do livro de Mortimer e
Machado (2016), que recorre à noção de perfil conceitual para organizar a sequência e a
abordagem dos conteúdos. Compare-se, por exemplo, os perfis conceituais de átomo e calor
(Mortimer & El-Hani, 2013), respectivamente, à sequência de conteúdos de atomística e à
introdução à termoquímica nessa obra.
Recentemente (2017) surgiu outra antologia, O livro didático de Física e de Ciências em foco:
dez anos de pesquisa, organizada por Nilson M. D. Garcia. Nela constam 41 estudos, muitos
confirmando que o manual de ciências evoluiu. Esses resultados mostram, por exemplo, que a
física moderna se incorporou aos livros, atendendo a reivindicações curriculares antigas de
especialistas; que os conteúdos são geralmente acompanhados de uma abordagem histórica,
embora se possa questionar a perspectiva historiográfica adotada; e que as obras têm se
apropriado das multimídias, indicando links para os alunos acessarem outras imagens e textos.
Esse último resultado demonstra como o livro de ciências é, cada vez mais, inacabado em termos
bakhtinianos: a enunciação, de que participa, já não se circunscreve às páginas impressas,
avançando para outros suportes, com os quais interage dialogicamente e se enriquece
polifonicamente.
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orientações curriculares oficiais, mas as reinterpreta (Cassiano, 2013; Fracalanza & Megid Neto,
2006; Garcia, 2017; Martins et al., 2012; Oliveira & Rosa, 2017).
A propósito, Gramowski et al. (2017) afirmam que “A presença de pelo menos uma
coleção com organização de conteúdos diferenciada em cada processo do PNLD-Ciências
demonstra que algumas editoras se arriscam mercadologicamente, desenvolvendo coleções com
outras perspectivas” (p. 16). Um dos estudos do livro de Garcia (2017) também afirma ter
encontrado currículos inovadores de Física em duas das 10 coleções do PNLD-2011. Assim, os
comentários de O livro didático de Ciências no Brasil a respeito da padronização dos manuais
brasileiros permanecem atuais, mas devem ser relativizados.
Considerações finais
A questão do livro escolar brasileiro ficou mais complexa. Foi-se o tempo em que eram
válidas as críticas de Bonazzi e Eco (1980) e Faria (1986), denunciando o discurso cínico, elitista
e preconceituoso dos manuais. Faria (1986), por exemplo, identificou uma visão estereotipada
do mundo rural, em livros brasileiros de 1977: “É como se todas as pessoas do campo fossem
pobres, simples, atrasadas. É como se não existissem classes sociais no campo” (p. 61). Não
seria impensável, à época, que hoje essas pessoas seriam contempladas com livros específicos
para sua realidade, desde o primeiro PNLD-Educação do Campo (2013)?
A partir do início do século XXI, o PNLD passou por transformações velozes, daí o
fato de O livro didático de Ciências no Brasil, em pouco mais de 10 anos de existência, soar datado
em algumas passagens. No entanto, vários dos posicionamentos expostos na obra permanecem
mais ou menos atuais – em que pese a necessidade de aliar sua leitura com a consulta a outras
obras, como as antologias mais recentes (Garcia, 2017; Martins et al., 2012).
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Todos são enunciados e, como tais, possuem autorias e transmitem valores (Bakhtin, 2004),
atritando-se com o diálogo mais amplo de que o livro participa – cujos agentes vão além
daqueles enumerados no capítulo 5 de O livro didático de Ciências no Brasil.
Finalizemos, assim, atualizando o quadro ali exposto (Fracalanza & Megid Neto, 2006,
p. 162), à luz do percurso que percorremos neste texto (Quadro 2).
Quadro 2 – Múltiplas influências que diversos segmentos exercem sobre o livro didático no
Brasil. Os conteúdos em vermelho se referem a atualizações da fonte à luz das conclusões do
presente artigo.
Instituições Segmentos Ações
• Seleção de títulos e censura
INSTITUIÇÕES • Padronização editorial
Políticos, Governantes,
PÚBLICAS • Financiamento à produção/distribuição das obras
Membros de equipes
(Executivo- • Financiamento de estudos e pesquisas
técnicas
Legislativo) • Ampliação da participação de vozes na elaboração
discursiva dos livros
• Produção editorial
• Marketing
• Pressão para a definição de normas, políticas e ações
Editores, Autores, públicas
EDITORAS
Associações de livreiros • Crítica e colaboração para o aprimoramento das políticas
• Desqualificação e questionamento das ações públicas
• Produção de propostas alternativas ao LD ou ao seu uso
no ensino
• Seleção/avaliação
• Utilização
Técnicos, Professores,
ESCOLAS
Alunos e pais • Produção de propostas alternativas ao LD ou ao seu uso
no ensino
• Assessoria à elaboração editorial de LD
• Produção de propostas metodológicas e/ou material
alternativo, por vezes na forma de LD
• Assessoria à elaboração de propostas curriculares
GRUPOS/IES
• Atualização de professores em conteúdos e metodologias
OU
INSTITUIÇÕES
Pesquisadores • Análise e divulgação de diversos aspectos relacionados ao
DE PESQUISA LD
• Crítica e colaboração para o aprimoramento das políticas
• Assessoria (nem sempre reconhecida) à elaboração
editorial de LD
• Denúncias de insuficiências e irregularidades nos
Jornalistas, Editores de
programas
MÍDIA veículos de grande
circulação • Vigilância e patrulhamento da ação de outros agentes,
notadamente as instituições públicas e de pesquisa
Fonte: Fracalanza & Megid Neto (2006, p. 162).
e-ISSN 1980-6248
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