Terra Linha Planta Oração FINAL
Terra Linha Planta Oração FINAL
Terra Linha Planta Oração FINAL
LINHA
PLANTA
ORAÇÃO
TERRA
LINHA
PLANTA
ORAÇÃO
CHÃ
coletiva da terra
Apresentação
O cordão da história 9
Nota editorial
Terra Linha Planta Oração 17
Primeiro Fio
Construindo uma chã de terra aprendiz
para um bem viver 23
Segundo Fio
Das mãos. Jeito especial de cuidar.
Das mulheres. 29
Raízes Pivotantes
Dona Maria de Lourdes 37
Dona Maria Djesus 45
Dona Maria Ferreira 53
6
Dona Maria Benedito 59
Dona Maria Bezerra 67
Dona Neli 75
Maria Silvanete 85
Ramificações
Catarina 107
Moisés 113
Francisco Carlos e Maria Ni 119
Cidália 127
Os Bordados
Narrar o tempo, curar os sonhos 134
A Equipe 160
Créditos 164
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APRESENTAÇÃO
O cordão da história
Maria Silvanete Benedito de Sousa Lermen
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o bordado – esse trabalho cotidiano que é tão bonito e
quase nunca é reconhecido.
Nós temos aqui mulheres com vários filhos, com
doze, dezoito, vinte filhos. São mulheres que guardam
muitos saberes, que são farmácias vivas, farmácias que
conduzem seus filhos. São também essas mulheres que
conduzem seus estoques de alimentos, que vão atrás,
que dão um jeito, que manejam o alimento e a saúde de
suas famílias. Mulheres que aprendem com a Caatinga
resistência e resiliência.
Nesse sentido, registrar essas mulheres é dizer
que somos tudo isso, que carregamos toda essa história
de luta. É dizer, também, que somos fortes, que somos
muitas e que resistimos. Ouvir suas histórias e registrá-
las é necessário para que a gente possa continuar a
dizer que somos filhas dessa terra, assim como são os
nossos filhos, netos e bisnetos. Então, registrar toda essa
existência, tudo isso que pulsa em nosso território, é
essencial – é o princípio da vida. E o princípio da vida
está nessas mulheres.
Transformar essas histórias em um caderno que
vai adentrar suas casas, que vai circular nos celulares
dos seus filhos, dos seus maridos, dos seus vizinhos,
nas escolas do nosso entorno é, também, uma forma
de manter esses ensinamentos vivos, uma maneira de
fazer com que essas crianças e esses jovens sintam a
força dessas mulheres e as reconheçam em toda sua
potência. É somente nesse encontro de gerações que se
torna possível a irradiação desses saberes que também
constituem a identidade do nosso território.
Eu sempre conto as histórias dos lambedores que
mãe fazia. Eu gostava muito de tomar esses lambedores,
porque tinham o gosto da malva-do-reino. Como a gente
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morava longe dos médicos, mãe tinha sempre em casa
um quintal cheio de plantas: era arruda, era alfazema,
era losna, era mostarda, eram as plantas que ela pegava
e fazia os remédios. Pegava girassol e fazia café pra
dor de cabeça, malva-do-reino pra fazer lambedor, chá
de pitanga para dor de barriga. Antes, o remédio e a
farmácia do povo eram essas plantas.
Quando eu comecei a fazer meus próprios
lambedores, mãe me perguntou com quem eu tinha
aprendido e eu respondi: “e não foi com mãe!?” Ela não
se lembrava mais. Por isso a importância desse trabalho,
dessa partilha. São essas as histórias que contamos e
relembramos nessas rodas. Contar essas histórias, bordar
essas histórias é como um benzo, é como uma oração, é
um processo de cura de nós mesmas.
Cada pequeno passo desse, cada um desses
pequenos reavivamentos, isso que a gente busca de
volta em cada uma dessas mulheres, é a nossa história.
E trazer isso de novo para perto de nós mesmas é algo
tão profundo – são saberes que aprendemos com nossas
mães, que por sua vez aprenderam com nossas avós,
que aprenderam com nossas bisavós. É esse o cordão da
nossa história. Quando nos juntamos para trocar e reunir
nossos saberes numa roda de conversa, numa roda de
bordado, estamos falando de uma construção muito
antiga, é do nosso povo que estamos falando, da nossa
identidade.
Independente da idade, estamos sempre
aprendendo e ensinando. Quando buscamos essa
identidade enquanto comunidade, percebemos que ela
está fortalecida, está enraizada, está nos galhos, nas
raízes, nas sementes. Está, também, nesses desenhos
que fizemos agora e que a gente percebe que eram os
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mesmos rabiscos que as mulheres faziam para bordar no
cueiro das suas crianças.
Isso me lembra muito minha mãe, ela sempre
fazia ramos de flores, riscava com carvão e bordava no
paninho. Nesse sentido, esse nosso trabalho perpassa
gerações - crianças, adolescentes, gente mais jovem,
gente mais velha e as mulheres que guardam esses
saberes. Os bordados que fizemos para o caderno nos dias
que passamos juntas estão na nossa memória, trazem as
mesmas plantas com que se fazia um chá quando alguém
estava com dor de barriga, o mesmo vasinho de flor que
se bordava no vestido de uma criança. São histórias que
trouxemos de volta aqui, suas ramificações. A memória
desses gestos permitiu que cada uma dessas mulheres
se lembrasse da saúde, dos sonhos, de si mesmas. Esse é
o processo de nossa cura, nosso benzo coletivo.
É isso o que trabalhamos no nosso dia a dia: a
planta que você cultiva é a mesma que você prepara o
chá, é a mesma que você usa de alimento, é a mesma
que você faz o risco para bordar, é a mesma que você
se lembra que sua mãe usava, está tudo entrelaçado. É
muito bonito quando vemos um jovem ou uma criança
que borda uma planta que faz parte do seu imaginário,
que vem de uma história que é a história do nosso
território, que é a história construída por nossas mães,
nossas bisavós e nossas avós.
São bordados que saem das entranhas das
famílias, do povo de um lugar, rabiscos que estão lá,
adormecidos, e que aqui, a gente fez renascer, fez
continuar, e que também reinventamos. Porque contar
essas histórias, no presente, junto com os mais jovens,
é trazer também novos detalhes, novos rabiscos – como
uma borboleta no meio dos cachos de flor, da menina
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Roseli. As flores estavam lá atrás, nos bordados das
nossas mães, mas as borboletas só chegaram agora. Isso
é a ancestralidade: aquilo que vem desde muito tempo,
mas que continua e se transforma.
Quando um jovem borda a mangueira do seu
quintal, você compreende que aquela mangueira diz da
sua infância, diz da mãe dele, que sempre trazia manga
da cidade e plantava as sementes no entorno da casa.
Essa semente está incorporada na história dele, no seu
imaginário. Quando ela se transforma em bordado,
entendemos que isso é nossa identidade, aquilo que nos
constrói enquanto sujeitos, enquanto comunidade. Cada
um que desenhou e bordou para este caderno, desenhou
baseado na sua história, na sua meninice – seja um
quintal, a casa antiga da avó, ou um raminho de flores
do altar.
Isso quer dizer que nosso território está nas mãos
de cada um de nós, atravessa as mãos de cada um de
nós. Construir essa história é trazer esse gesto dos dedos,
das mãos, mesmo quando não enxergamos mais, mas
temos a memória do ponto, do caseado, assim como
conhecemos a lida de todo dia e as histórias de antes.
Quem constrói essa história é quem a faz. Então, nossas
rodas, esse caderno, são lugares de sabedoria muito
profundos, de partilha, de renascimento. São, também,
rodas de saúde, de produção de vida e de alegria.
Gosto de pensar como estamos interligadas,
como uma rede. Pensar essas mulheres que impulsionam
a vida em comunicação com a natureza. Lembrar suas
histórias de vida e como geram vida também. De como,
ao mesmo tempo que são dor, são remédio e acalento.
Uma planta é também uma beleza, que traz o belo, que
harmoniza um lugar, que traz o remédio que cura.
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Quando uma mulher costura, quando ela faz um
chá, quando ela borda, o que vemos é essa alquimia,
que é conexão, que é vida e reencontro consigo mesma.
Dessa maneira, esse caderno é também a alegria do
encontro que vem da conversa, do trabalho com as
mãos, o domínio das plantas nas mãos, a sabedoria que
ganha corpo através das mãos.
Estou muito feliz por essa construção, por
pensarmos juntas onde o ramo se comunica com o
benzo, onde o benzo se comunica com o rezo, onde o
rezo se comunica com o alimento, com a cura, com o
nosso cotidiano, com o nosso dormir e acordar, com o
nosso fazer e os nossos desenhos, onde se comunicam e
dizem, afinal, da nossa existência.
É isso o que nos dá força para dizer que nós somos
a Serra dos Paus Dóias, que somos Exu, Pernambuco, que
somos o território Sertão do Araripe, esse sertão que se
abriga dentro desse país chamado Brasil.
Nossa história é essa.
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NOTA EDITORIAL
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anteriormente pela Chã – coletiva da terra, em parceria
com Maria Silvanete Lermen, agroflorestora, benzedeira
de mãos postas e educadora popular na Serra dos Paus
Dóias, o projeto propôs a realização de uma oficina
de troca de saberes entre as mulheres detentoras dos
saberes de cura e uma oficina de bordado, realizada
junto às anciãs, jovens e crianças da comunidade.
Desses encontros nasceu o caderno Terra Linha
Planta Oração, resultado do trabalho dedicado de
cada uma das mulheres e participantes das oficinas, na
partilha de suas histórias e criação coletiva dos bordados.
A publicação está organizada como uma planta – raízes,
caules e ramificações, tal como propõe Maria Silvanete
em sua reflexão sobre a ancestralidade e a irradiação
dos saberes:
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cultivo e regeneração da terra, dos corpos, da memória
e da identidade coletiva da Serra dos Paus Dóias.
A primeira parte da publicação é dedicada
à apresentação, nota editorial, e textos críticos,
contextualizando o projeto, suas ações, princípios e
parcerias. A segunda parte é dedicada às narrativas das
mulheres, todas elas Marias, agricultoras, benzedeiras,
raizeiras e curandeiras da Serra dos Paus Dóias. A partir
de suas vozes, numa língua viva, conhecemos suas
histórias, suas trajetórias como avós, mães, mulheres e
filhas, profundas conhecedoras das práticas e saberes
de cuidado, de cura e de alimento junto à sua família,
vizinhos e comunidade. São elas que falam do benzo,
das orações, das suas plantas de convivência e uso,
da luta pela terra e da lida do dia a dia em suas casas.
Farmácias vivas, essas mulheres são plantas-mestras,
raízes irradiadoras de tudo o que é vivo e pulsa no
território.
Na sequência, apresentamos as suas ramificações,
homens e mulheres mais jovens, que aprendem com
suas mães e avós o cultivo e o uso das plantas. Galhos
e pássaros dispersores, que guardam em seus quintais
sementes, mudas de plantas, árvores e ervas de cura que
são ofertadas aos vizinhos, aos parentes, aos que vêm de
fora em busca de cuidado. Pessoas que aprendem com
os mais velhos que conhecimento é o que se vive no dia
a dia, observando, fazendo junto, trocando e dialogando
com práticas novas, mas sem perder os laços que os
conectam com aquilo que vem antes de cada um deles.
Por fim, apresentamos os bordados. Rabisco
e linha que durante os dias em que estivemos juntos
alinhavaram sonhos e histórias. Foi ao redor do fogão
a lenha da casa de Maria Silvanete, numa semana fria
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e chuvosa de maio, que reunimos jovens, crianças,
homens e mulheres para a oficina. A linha e o fogo como
tecnologias do encontro - o movimento das mãos como
gesto de partilha e memória, a cozinha como espaço de
candura, quentura e acolhimento. Bordados que trazem
histórias pessoais - uma memória da infância, uma
planta de predileção, uma flor de devoção – perpassadas
por uma memória coletiva que atravessa cada uma das
mulheres, seus filhos, netos e bisnetos – uma ladainha,
uma história de luta e de conquista, uma oração, as
vivências que compõem o território.
Terra Linha Planta Oração é, assim, como tão
lindamente nos fala Silvanete, nosso benzo coletivo,
nosso partejar comunitário, nossa contribuição e
colaboração para o fortalecimento e reconhecimento
dessas mulheres que são verdadeiros livros vivos,
desse território que é cura, resistência e resiliência.
Uma celebração à coletividade, à convivência entre
os seres, às comunidades de vida e de cuidado, aos
saberes e línguas vivas, a todas essas mulheres, homens
– e suas ramificações - que narram, bordam, curam e
reinauguram, dia após dia, outros mundos possíveis.
________
As primeiras articulações e mobilizações que fomentam este caderno aconteceram em novembro
de 2021, no contexto do projeto Cosmonucleação Regenerativa e Encantamento no Manejo de
Territórios Tradicionais em Pernambuco, realizado pela Chã – Coletiva da terra, e financiado pelo
GRRIPP - Gender Responsive Resilience and Intersectionality in Policy and Practice. • Os textos que
compõem a publicação foram editados a partir dos depoimentos coletados entre maio e novembro
de 2022, no contexto do projeto Caderno de Plantas e Ervas Medicinais das Mulheres da Serra dos
Paus Dóias, realizado pela Chã – coletiva da terra, em parceria com a Agrodóia – Associação de
Agricultoras(es) Familiares da Serra dos Paus Dóias e Espaço de Vivência Maiêutica, com o incentivo
do FUNCULTURA-PE e durante a vivência e ciclo Mulheres, Plantas e Cura, realizada em parceria
com o Selvagem - ciclo de estudos sobre a vida, em setembro de 2022.
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PRIMEIRO FIO
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vivem cerca de 300 famílias. Entre a comunidade, todas as
famílias vivem da agricultura familiar, ou se relacionam
historicamente com a agricultura familiar na região.
Junto às mulheres agricultoras, em significativo
número, benzedeiras, rezadeiras, raizeiras e
mezinheiras , que se fez este projeto e se faz a vida na
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24
espinhela caída, para doenças de pele, assim como há
para apagar incêndios, e para uma gama de outras coisas
que norteiam e assolam a vida em comunidade. Junto
ao manejo de crenças, rezas, bênçãos, e preparados
de remédios feitos do que a terra dá, mulheres vêm
historicamente, passando de geração a geração um
conhecimento de um poço profundo, como diz Maria
Silvanete Lermen, uma de nossas maiores narradoras-
interlocutoras na Serra dos Paus Dóias, nessa lida
com o território que vivem e por onde e como foram
construídas.
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co-produzimos a intersecção com as sabedorias típicas
do território entre as/os raizeiras/os, benzedeiras/os,
rezadeiras/es e mezinheiras, além de buscar investigar
a transmissão e legitimação dos saberes das plantas,
animais e seres não visíveis presentes na sabedoria
e ciência daquele lugar, e entre as mulheres que se
entrecruzam por gerações.
É no contato com a redescoberta ou
reacordamento de sabedorias populares e ancestrais,
advindas das histórias orais familiares das pessoas e do
território da Serra dos Paus Dóias, e também da Chapada
do Araripe, que abrimos espaço para outras perspectivas
de mundo e (re)criação de outros futuros possíveis,
individuais e coletivos tomarem cada vez mais corpo.
É dentro de um emaranhado2 de fios de
conhecimentos e entre mulheres que costuram suas
experiências de vida no mundo a partir da produção
do que se pode chamar de uma saúde comunitária, e
conhecimentos populares sobre cuidado humano e do
ambiente, que podemos elaborar a experiência do Terra
Linha Planta Oração na Serra dos Paus Dóias.
Entendendo que o mundo não é ou não deveria
ser objeto de estudo ou pesquisa, mas sim o nosso meio
de aprendizagem para vivermos comunitariamente
melhor, é que reafirmamos em coletivo que presenças
e aprendizagens são nossas maiores ferramentas, ou
tecnologias sociais, diante da experiência que tem
fomentado outras maneiras de ver ou viver o mundo.
Entre nosso mundo do limite, do viver em estado
de crise, a nós, torna-se de suma importância que
multipliquemos experiências comunitárias, horizontes
2 INGOLD, Tim. Estar Vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição.
2015. 5a imp. Petropólis: Vozes, 2021.
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e paisagens que estão fazendo esperanças em mundos
outros que não o da terra arrasada e entre ruínas3 que
estamos acostumados a vislumbrar. O que não é um
esforço novo, mas é um esforço urgente e necessário
para que possamos co-produzir outras formas de ser,
viver e produzir mundos.
Terra Linha Planta Oração é uma reza
bordada em conjunto, dentre o movimento de busca
pelo reencantamento do mundo diante antigas e
novas práticas populares de subjetivação de nossas
existências. Precisamos pôr em prática outros projetos
de organização social e sociedade, visibilizando práticas
de cuidado e busca de bem viver, iluminando o que
está sendo gerado em nossos campos de experiências
coletivas, comunitárias e de produção de relações multi-
dialógicas e multi-espécies desde os sertões brasileiros,
produzindo outros sentidos no e para o mundo.
A nós é latente a percepção que as chaves mestras
para as mudanças epistemológicas e de entendimento do
mundo estão dentre as sabedorias populares de nossos
povos e experiências comunitárias, dentre as mulheres
e pessoas comuns. As práticas e saberes populares são,
senão os maiores, os mais efetivos vetores, enquanto
tecnologias sociais, de transformações sociais. E por
esse motivo é que lançamos atenção e energia coletiva
em fortalecer, visibilizar e fomentar a atuação de quem
está nas bases do mundo (re)existindo e (re)elaborando
a todo momento essas tecnologias, sobretudo se
tratando de tecnologias do cuidado com a vida e a suas
existências.
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SEGUNDO FIO
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nativo, também de um Esù, orixá que chega, protege,
abre fecha, que cuida. Igual às mulheres. Porta. Entrada
e saída para a vida humana aqui na terra.
Essas terras que primeiro e sempre foram
abençoadas pela força encantada dos espíritos nativos,
adotaram quem chegou também em sofrimento das
lâminas e correntes e ainda assim conseguiu germinar
encantos com seus orixás, inquices e deuses de África.
Pintando o sertão de um nordeste alto e farto com suas
cores de luta, lida e labuta.
Essas mãos carregam histórias, transportam
caminhos, contam possibilidades. Pode ser que esse jeito
especial seja também consequência de um peso, um fardo
imposto durante anos-séculos ao feminino daqui, do lado
colonizado dessas terras que resistem. Pode ser que a
força do lado colonizador do oceano impôs às mulheres
do lado de cá serem grandes cuidadoras. Pode ser. Fato é
que são. Hoje e há séculos são. Homens também cuidam
e devem cuidar. De maneiras diferentes mulheres e
homens cuidam e devem cuidar. Porém, homens foram
muito desensinados. A tarefa da maternidade e de ser
casa, de continuação da vida, firmou as mulheres como
cuidadoras de mão cheia. E essa mão cheia de cuidados
é voz de cada mulher no encontro dessas páginas.
São mãos-mulheres que aprenderam por
necessidade, por herança, pelo “dom que Deus deu”, por
sabedoria nata ou aprendida, pelo jeito, pela entrega,
por aceitar estar à serviço, pela certeza da fé, pela
intuição. Pelo feminino. Essas mãos que agradecem pela
vida mesmo dura, sacrificada, lutada... agradecem!
Nessas páginas vemos palavras de mulheres
que, de sol a lua, mexem na terra, cuidam dos bichos,
da roça, da casa, brocam, fazem coivara, arrancam
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mandioca, cavam, plantam, arrumam goteiras, arrancam
venenos, espanam, varrem, cozinham, limpam sujeiras,
levantam paredes, cobrem telhados, benzem, rezam,
aparam vidas, tecem cestos, balaios, costuram roupas,
rezam o terço, bordam, crocheteiam, tricoteiam, fazem
remédios, constroem mundos possíveis desde seus
próprios. Caminham pela linha da vida recebendo nomes
em violência apenas pelo fato de cuidar. Feiticeiras,
macumbeiras, catimbozeiras... como xingamento de
humilhar, de entristecer, de pesar o coração.
São sábias. Parteiras, raizeiras, meizinheiras,
rezadeiras, benzedeiras, agricultoras, plantadeiras,
cuidadoras.
Com as mãos movimentam mundos outros que
o tempo conhece pela cura da fé. Cada conta rezada
junta palavras de poder que saem dos lábios tecidas
pela memória dos dedos no terço. Essa é uma das tantas
formas. Rezar costurando com agulha e algodão é mais
uma forma. São muitas. Aprendidas, ensinadas, recebidas,
dadas. Reza de “atar sangue”, de curar bicheira, de salvar
bicho e gente, de tirar engasgo da garganta e de levar
embora dor de dente, reza boa em hora que não sobra,
falta, reza pra cuidar de qualquer ser vivente.
E cada remédio de mãos, de toque e rezo junta-
se às folhas, às ervas porque não existe nenhuma planta
que não sirva: “a gente é que não sabe como é que faz e
pra quê serve” (dona Maria Djesus), mas todas as plantas
servem pra muitas curas diferentes, a gente só precisa
conhecer, aprender. E esse saber que é de cura por
tantos caminhos percorridos por essas mãos mulheres
do sertão, da chapada, do Araripe estão aqui bordados
nesse livro. Em cor, em poema, em alegria, em presente.
Das mulheres. Cuidar de jeito especial. Das mãos.
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Raízes Pivotantes
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Dona Maria de Lourdes
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criança que hoje está de cabeça branca já. Meus filhos
todos foi ela quem pegou, do primeiro ao derradeiro.
Tive vinte e cinco filhos, treze mulheres e doze homens.
Só teve dois que ela não pegou – Cosme e Damião – que
precisei ir pro hospital. Hoje tenho sete mulheres e dez
homens vivos. Minha mãe rezava também, fazia reza de
ventre caído, de atar sangue, e rezava nas pessoas. Mãe
tinha muita caridade, era uma mãe da pobreza, quem
ela via que precisasse de ajuda ela ajudava. Eu nunca
deixei o pé de meu pai e de minha mãe.
Uma vez, na Semana Santa, quando eu ainda
morava com minha mãe, chegou um velhinho que vinha
toda semana lá em casa e que mãe dava comida. Eu era
bem nova, devia ter uns oito anos. Ele chegou na janela
e disse: “Dona Maria, alevante a bandeira de Nossa
Senhora que ela abençoa!” E mãe disse que não sabia
rezar. “Mas a senhora alevante a bandeira mesmo assim,
que Nossa Senhora passa nas casas rezando.” A gente
via que quando era a época das rezas ela abençoava a
gente. E eu fiquei com isso na cabeça.
Quando me casei, tomei conta de minha casa.
Já tinha meus cinco filhos. Eu comprava as roupinhas,
cueiro, lenço, tudo branquinho, e riscava com carvão
pra bordar. Quando uma vez, era dia da Santa Cruz, eu
com aquela ideia antiga na cabeça... fui olhar na minha
mala, que naquele tempo não tinha armário, e tava lá
o lencinho bem branquinho, dobrado. Eu pensei: “vou
fazer minha cruz e levantar minha bandeira!” Apanhei
umas folhinhas de mato, fui até o pinhão, tirei o leite pra
desenhar e levantei a minha cruz. Minha reza foi a graça
que Deus e minha mãe me deram. Eu rezo todo mês de
maio. Quando é junho, derruba a bandeira. Se não souber
rezar, reza um terço, que mesmo assim Nossa Senhora
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abençoa. Meus filhos eu criei e eduquei nesse caminho.
Todo mundo gosta dos meus filhos e admira. Eles me têm
respeito, eles são a minha vida!
Uma vez eu acordei e vi, naquela hora da vigília,
às cinco horas, quando o dia tá clareando. Vi uma mulher
do cabelo branquinho, de roupa azul, sentada numa
cadeirinha. Ela me disse: “filha de Nossa Senhora, não
chore, você sabe rezar um Pai Nosso, uma Ave Maria,
um Salve Rainha.” Me deu um raminho e disse que eu
rezasse sete crianças. Por isso rezo com ramo, foi Nossa
Senhora que me deu na minha mão. Se for preciso, vou
para a mesa dos santos e acendo uma vela pro anjo da
guarda daquela pessoa. Não rezo pra mim não, só pro
bem das pessoas. Mas por causa disso eu recebo nome
de feiticeira. Me dá um desgosto. Se eu fosse feiticeira
acendia vela para enricar e fazer dinheiro, mas eu cuido
das pessoas. Essa é a minha fé.
Eu costumava rezar meu rosário na casa de um
rezador. E toda vez que eu rezava eu desmaiava. Um
dia ele me perguntou: “Qual foi o centro de luz que lhe
limpou? Quem lhe rezou?” Eu disse que ninguém me
rezava, só eu mesma que rezava pra Nossa Senhora do
Rosário. “Então a senhora mesma se limpou.” Foi o que
ele me disse.
Um dia, num bar, tinha uma mãe com uma
criancinha doente no colo. A mãe me perguntou se eu
rezava e me pediu pra rezar. Eu tive medo, vergonha, e
disse que não rezava não. Então Nossa Senhora me deu
castigo. Caí três dias de cama. Ela me disse que eu tinha
que rezar, se não me castigaria. Meu velho me ouvia
falando dormindo e dizia que era sonho, mas era Nossa
Senhora. Essa graça foi Deus quem me deu, Deus, minha
mãe, e Nossa Senhora. As pessoas não aprendem não,
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elas nascem com o dom. Eu não fui pro rezador aprender,
já nasci com esse dom. Foi o que uma senhora me disse:
“A senhora tem um dom que ninguém lhe compreende.
É um dom da igreja!”
Ainda hoje eu rezo criança. Quando eu era mais
nova eu ia pra casa da minha sogra, que era bem pertinho
do hospital. Era eu ver menino chorando, que eu pegava
e sarava. Às vezes, a criança, o que carece é de uma reza!
Às vezes entra na agulha e só o que precisa é de rezar.
Eu rezo criança e mulher. Homem eu não rezo, não. Não
pode forçar a sua natureza, fazer aquilo que não é pra
fazer. Nossa Senhora me deu a parte dela, pra rezar nas
crianças e nas mulheres. Os homens quem reza é Deus e
Nosso Senhor Jesus Cristo.
A reza que a gente faz pras crianças é o Pai Nosso,
é o Creio em Deus Pai, é uma Ave Maria, uma Santa Maria.
São essas as rezas. Eu já nasci com esse dom, mesmo
sem ter leitura. Só estudei quinze dias, no catecismo. Nos
meus cadernos eu escrevo. O que escrevi foi a minha neta
que me ensinou. Eu via mãe bordando, e quando eu via
umas florezinhas, eu tirava o desenho. Fazia os desenhos
da própria cabeça. Sei tirar os desenhos, mas letra de
leitura eu não sei não. Minha neta diz que conheço todas
as letras. Quer dizer, conhecer eu conheço, mas eu não
sei ajuntar. Uma palavrinha pequena eu ajunto, outras eu
não sei não. Eu não podia estudar, porque dava destrato
no trabalho. Hoje eu sinto uma dor tão grande porque
não sei formar palavra.
Em minha casa a gente não sabe o que é uma
injeção. Nunca levei meus filhos pro médico, nunca que
agulha furou eles, nem tomaram nenhum comprimido.
Criei todos com remédio do mato. Ensinei minhas
filhas a botar mamona na cabeça: é pra dor de cabeça
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e quentura de sol. Às vezes a pessoa tá com a pressão
meio ruim e é só botar a folha de mamona na cabeça.
Eu não tenho mais as plantas no meu quintal, carece de
comprar. No inverno a gente planta, mas quando chega
a seca fica ruim. Aquela planta que a gente mais adora?
As que eu tenho amor mesmo é o alecrim, o manjericão
e a alfavaca, que são as plantas da saúde da mulher.
Todo mato é planta que serve de remédio. Mas pra gente
que é mulher, tem essas bem específicas.
Sábado é dia de rezar meu terço. Graças a Deus,
todo sábado, até hoje, eu tiro minha reza. Na igreja, o
padre distribuía a folha pra acompanhar os cantos. Mas
como eu não sei ler, minhas meninas cantavam. No
rádio também dizia quais as páginas do livro que tinha
o bendito e elas liam e acompanhavam. Minhas filhas
ainda hoje têm o livro de reza: Maria, Celma, Mocinha,
as três tiram a reza com o livro. Minha leitura foi pouca,
então aprendi a fazer cesto, balaio, crochê, bordado. O
que Deus quer é o que a gente faz. A minha vida é um
romance, um jornal desde quando eu nasci até hoje.
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Dona Maria Djesus
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roça, das 6h às 6h. Às vezes, a gente ficava na roça até
de noite, vigiando as formigas. Essa era a necessidade
da gente. Os meus pais eram fracos, então botavam
todos na roça pra trabalhar. Meu pai era Pedro Germano
e minha mãe Maria Francisca de Souza, Maria Dino.
Ela ganhou esse nome por conta de meu avô que era
Manuel Félix Ferreira, mas criou-se com o apelido de
Dino, então minha mãe era conhecida por Maria Dino.
Mãe era assistente de muitos anos, assistia o parto com
as mulheres. Nunca morreu uma só criança ou mulher
nas mãos dela, com a graça de Deus.
Já vou para setenta e três anos, sou agricultora,
sozinha mais Deus e Nossa Senhora, que me protege.
A gente tem que se conformar com a pouca sorte que
ganhou, que mereceu. Tudo o que aconteceu, a gente
tem que ficar atento, agradecer, tocar o pé pra frente e
esperar o dia em que Ele disser: “Parou-se aqui! Vamo-se
embora!” Tenho um casal de filhos e muito neto, o que
mais tenho é neto. Deus criou e nós ajudamos. A gente
criou duas sobrinhas e elas tiveram bastante filhos. Meus
netos mesmo tenho é quatro. Mas os que foram criados
mais a gente a consideração é a mesma.
Na minha correria, o dia é curto e a luta é comprida.
Cuido da casa, cuido da roça, cuido das galinhas, dos
meus porcos e das vaquinhas. Pra mim não sobra hora
não, que a hora não dá. Quando chega às 17h eu rezo o
Terço das Almas. A lida é pesada, graças Deus. Mas o que
eu mais gosto, o que eu mais prezo nessa vida é a saúde,
a união e o rezar. Eu rezo o terço, que rica eu não sou.
Sou rica é da graça de Deus. Rezo o Pai Nosso, o Creia
em Deus Pai e o Rosário. Todo ano rezo o mês de maio,
levanto a minha bandeira com a imagem do Senhor e o
Cruzeiro, que a gente levanta com um pauzinho e põe
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na frente da porta principal da casa. Rezo os trinta e
um dias de maio. Levanto a bandeira no dia primeiro da
consagração e derrubo no dia da renovação.
Eu não me curo com remédio de farmácia não,
só com remédio do mato: folha de manga, alecrim,
eucalipto, cidreira, boldo, todas são medicinais. O chá
da folha de urucum é bom pra infecção, gripe, coração
crescido. Faz o chá com três folhas. O chá se toma frio
e sem doce. Toma por quatro dias, de depois, varia. Na
minha mente, o que eu queria pra meninada mais nova
era botar tudo pra saber rezar, respeitar e amar a Deus.
Porque hoje em dia os meninos são desrespeitosos. O
que o diabo quer, o diabo é, não sabem mais nem rezar
nem se benzer.
A maioria não quer saber de remédio do mato,
mas todas essas ervas que nós temos aqui, todos esses
matinhos que nós temos aqui são medicinais. O que a
gente não sabe é a gente que não sabe decifrar e usar.
Por exemplo, o cipó de caititu, que faz cesto, é remédio.
Tem o cruapé, que come a roça toda, é remédio também.
Todas as ervas servem de remédio. A gente é que não
sabe explicar como é que faz e pra quê que serve. Mas
esse conhecimento é coisa que não se acaba nunca!
Quem se interessar e quiser saber, não se acaba nunca,
porque da mãe fica pra filha, da filha fica pra neta, da
neta fica pra bisneta, da bisneta pra tataraneta. Se toda
vida ficar se relembrando, não vai se acabar nunca! Se os
mais novos vierem nos perguntar, a gente sabe ensinar!
Antigamente a pessoa quebrava uma perna e
não dava defeito nenhum, hoje em dia se o cabra der
uma estrepada já dá um mal perigoso! Naquele tempo,
a gente não sabia o que era isso, se curava em casa. Hoje
se come os produtos envenenados, não sei o que é isso!
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Esse mal perigoso [a COVID-19], os remédios do
mato já tinham curado muita gente e ia curar muito
mais. Já tinha morrido muita gente, e ia morrer muito
mais, porque o povo não se tratava mais com as ervas do
mato, só com remédio da farmácia. Remédio da farmácia
também é feito com erva do mato, mas tem tóxico.
Quem estava no começo do mal podia tomar o
chá da casca do ipê roxo e a folha da graviola. Se estivesse
no começo, a pessoa se curava. Mas se tivesse avançado,
não tinha mais cura, pois quando o mal tá avançado, ele
toma conta de tudo. Só a vontade de Deus mesmo. É que
hoje em dia o tempo tá mudado. Quer dizer, o mundo é
o mesmo, mas o gesto do mundo tá mudado.
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Dona Maria Ferreira
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adoecem eu falo pra fazer um lambedor de malva-do-
reino, hortelã, espinho de cigano, malva-branca, mas
eles correm logo pro hospital. Hoje em dia não querem
mais fazer as meizinhas do mato. Mas se quiser eu passo
tudo o que aprendi com minha sogra!
Ela fazia café de mirassol pra quem tava com
dor de cabeça, ela botava nove sementes misturadas.
Ainda hoje eu faço meu café de mirassol quando eu
estou tonta: coloco semente de mostarda, semente de
quiabo, semente de jerimum, semente de imburana, noz
moscada pisadinha. Tudo isso ela fazia. Minhas filhas
precisam aprender o que aprendi com minha sogra,
que era a avó delas. Esse conhecimento que a avó delas
passou pra mim. De mim qualquer uma pessoa que
quiser aprender, aprende.
Eu andei com meu pai por dez anos. Ele adoeceu
da trombose. Eu só sustentava ele no café de mirassol.
Passaram remédio de farmácia, mas não estava fazendo
bem pra ele, então, comecei a dar o café pra ele, tirei o
remédio e ele melhorou. Depois de um tempo morreu na
caminha dele, bem sossegado, não teve desinquietude
nenhuma mais. Foi através do café de mirassol. Esse é
um saber que não se acaba nunca!
Faz pouco tempo quebrei meu braço, fui para
o Crato. Chegando lá o pessoal disse que eu tinha que
fazer cirurgia. Eu logo disse: “rapaz, antigamente quando
a gente quebrava um braço, o meu pai dizia que cortava
umas palhinhas de banana, forrava o braço, enchia de
mentruz, amarrava e a pessoa se curava.” Se era um
pintinho que quebrava a perna e a gente fazia esse
serviço, quando matava o bicho pra comer, tava bem
emendadinho os ossos. Então a enfermeira me disse:
“eu também quebrei um braço, ficou torto.” Ela me
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disse que o pai contava que antigamente quebradura
se emendava era com mentruz. Me contou que seu pai
falava o mesmo. Não carece de colocar meu braço cheio
de ferro não, quebradura a gente cura é em casa.
Eu não bordo nem costuro. Costumava costurar
em máquina, remendava as roupas de meus filhos,
mas alinhar pra bordar, eu nunca aprendi. Eu acho
muito bonito, acho lindo a pessoa que borda. A minha
cunhada bordava os cueiros dos meus menininhos, tudo
bordadinho, branquinho. Se eu ainda enxergasse podia
até ser de bordar, mas meus olhos hoje só enxergam
feito neve. Conheço as pessoas pela voz, pelo jeito, mas
pra decifrar não consigo mais não.
Qualquer mal que acontece com a gente é minha
cunhada Djesus que reza, entrega a gente pra Deus, e a
gente vai vivendo sempre assim, na oraçãozinha dela, no
rezo dela.
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Dona Maria Benedito
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minha mãe, aos meus irmãos, mas quando era de noite
tava todo mundo junto de novo. E de dia eu tava pela
roça trabalhando: era brocando, era fazendo tudo!
Teve um ano que teve uma seca grande e deram
um trabalho pro povo. A gente foi fazer. Paulo pegou a
foice e eu também. Ele ia brocando o mato mais grosso
e eu o mais fino. O dia todinho, o dia todinho... Sábado,
domingo, quando foi segunda a broca tava derrubada.
Me machuquei, passei mais de mês com o pé pra cima.
Nessa época eu não era muito de pegar remédio do mato,
morava perto da rua [a cidade de Exu]. Tomava remédio
de médico mesmo. Hoje eu uso remédio do mato. Faço
meizinha. Ainda faço panela de lambedor, panelada de
chá. Nessa pandemia, era panela de chá de todo bicho
que é mato! Eu rezo o terço também, ajudando o povo
por aí, nas casas do povo, pedindo a Deus pela saúde das
pessoas da família.
Antes de vir morar na Serra, a gente morava
em Exu, mas trabalhava pros lados de cá, onde passa
um açude que hoje está seco. Depois dava uma volta,
outra volta, e passava pelo segundo açude, que dizem
que também está seco, o açude dos Amaro. Dali, a gente
entrava pro pé da Serra, a gente trabalhava lá. Era tão
longe! A gente trabalhava na terra dos outros, botava a
roça direitinho, mas quando tava pronta, o dono dizia:
“tá madura já a roça, desocupa que os meus bichos tão
morrendo de fome!” Ah! Eu tinha uma tristeza tão grande
com isso, uma tristeza tão grande que terminei andando
com os Sem Terra, pelejando pra gente arrumar um
pedacinho de terra pra botar meus filhos pra trabalhar.
Onde a gente estava, o dono da terra não ia
vender, mas também não ia botar a gente para ir embora.
A gente criava uns gadinhos. Falaram que o dono tinha
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que desocupar. A gente saiu de lá e ficou zanzando.
Paulo tinha colocado uma roça lá embaixo, pro pé da
serra, mas não deu muito nada de futuro. E foi chamado
pra trabalhar aqui no alto. Ele veio e botou a rocinha
dele aqui. Chamaram ele pra comprar essa terrinha. Ele
dizia que não tinha como comprar não. Era oito mil reais.
Tinha umas cisternas, tinha algumas coisas boas.
Eu não queria deixar meus filhos lá na rua, o
derradeiro já tinha nascido. Eu trabalhava no mato,
mas os meninos ficavam na rua. Eu não queria criar eles
assim. A gente só tinha a casa de morada. Então a gente
vendeu a casa pra morar na Serra. Eu vim com Daniel,
José, Luís, Edite e Zé Carlos. Os outros filhos já tinham
procurado seu lugar no mundo. Então, por uma graça
de Deus, pelo que nós sofremos, Deus Pai nos deu esse
pedacinho de terra aqui. A vida melhorou muito depois
que a gente veio pra cá. Hoje a gente tem o direito de
viver do jeito que a gente quer.
Quando a gente morava no Exu ainda, a gente já
fazia algumas lutas, acompanhava alguns grupos. Depois
que chegamos aqui, também acompanhamos alguns
grupos. Eu me sinto muito satisfeita de ter participado
de um bocado de luta. Eu agradeço a todos aqueles que
hoje estão reiniciando a luta, eu agradeço! Porque eu
mesma gostava muito de pisar na luta, de acompanhar!
E eu sinto assim, que o que eu tenho hoje faz parte de
uma luta, faz parte de uma vida caminhada, sofrida. Mas
a gente só arruma as coisas lutando. Até a salvação a
gente tem que arrumar com luta! A gente deve lutar
para chegar lá.
Naquela época, eu tinha ouvido dizer que vinha
um padre pra cá, que era um padre da luta. Eu disse: “eu
agradeço padre, porque só tenho fé naquele que bota
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a pessoa pra trabalhar, naquele que bota a luta!” Eu já
acompanhei essa luta. Deixava os filhos presos dentro
de casa, porque nesse tempo era perigoso o Exu: “nós
podemos morrer, mas vocês ficam aí escondidos!” Eles se
queixam, porque eles tinham vontade de ir junto e não
sabiam por que a gente segurava eles em casa. Eu ia e
danava no meio do mundo! Mas graças a Deus nunca
aconteceu nada com a gente, e hoje nós estamos todos
aqui. Tudo fez parte de uma luta. É como diz o dizer do
outro.
Isso dos rastros... eu me lembrei de quando a
gente lutava aqui na capela. A gente convidava o povo
e dizia que era muito importante. Eu não falava dos
pés, dos rastros, mas eu falava das pegadas. Eram as
pegadas! Nossas pegadas ficavam da nossa casa até a
igreja. “Vamos gente, caminhar, que mesmo que a gente
vá embora, nossas pegadas nunca vão se acabar!” Então
eu acho muito importante aqueles que fazem essa luta
e que fazem essas pegadinhas, porque serve pro irmão,
pros outros irmãos. Hoje tudo isso passou. Se acalmou.
Hoje eu vejo a luta muito gostosa.
A Deus querer, com o esforço do meu velho e
dos meus filhos a gente chegou até aqui. Depois que
a gente veio pra cá, a gente trabalhou que nem gente
grande. E acabou fazendo a casa de farinha. Pra mim
foi muito importante a gente ter chegado até aqui pelo
aviamento da farinha. Essa moradinha onde a gente
mora foi construída com o dinheiro da farinha, fez parte
de uma luta de Deus. Era uma casa pequena. A gente
foi levantando. Primeiro eu não entendi por que levantar
uma casa desse tamanho, mas meu velho disse: “tem
os netos, tem os filhos e o pessoal que vai chegando.” E
graças a Deus já tem aparecido tanta gente nessa casa!
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Eu fico feliz quando acontece, quando meus filhos vêm
pra cá. Ajuntou-se quase tudo! Faltou muito pouco pra
ficar todo mundo junto.
Eu também gosto muito do meu jardim! Gosto da
minha rosa rosa, mas não sei o nome de nenhuma dessas
plantas. Já tirei tanto retrato nesse jardim! Eu digo assim
que eu plantei essas plantas pra quando eu morrer.
Quando eu morrer, eu quero me achar no meio das
minhas plantas. Na vontade de Deus, eu tô representada
no que eu fiz nesse mundo.
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Dona Maria Bezerra
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Um dia, a gente lavando roupa nas pedras ali pra cima,
uma pedra caiu na perna de minha mãe e machucou. Ela
disse assim: “Ei Maria, vem aqui, minha filha!” Cheguei e
vi o pé dela machucado e então ela me pediu pra rezar
nela. Disse a ela que eu não podia, porque ela não tinha
me ensinado e eu não sabia rezar. E fiquei com medo
de inventar, e o povo ficar me mangando: “aquilo é uma
doida e não sabe de nada!” Então ela me disse: “vem e
reza com fé em Deus, que fica bom.” Pronto! Eu devia
ter uns quarenta anos já. E desde esse dia eu comecei a
rezar.
Depois que ela morreu, eu fiquei rezadeira. Passei
a rezar o povo. E todo mundo logo soube. Quando foi
um dia, eu estava na Capela de Santo Expedito e minha
irmã falou assim: “olha esse menino chorando com o pé
inchado!” O menininho chorando com o pé inchado, a
mãe querendo levar ele pro hospital. O pezinho dele não
tava quebrado, nem tava fraturado, só machucado. A
mãe então disse: “mas não tem quem reze!” E minha irmã
falou: “essa mulher aqui reza!” apontando pra mim. E eu:
“deixe de disso, que eu não rezo!” Então a mãe foi pegar
uma agulha na casa de uma mulher que era vizinha,
que a gente reza com a agulha e o algodão, e eu rezei
no pé do menino, rezando e costurando. Quando foi no
outro dia, ela me procurou e disse: “melhorou, porque
essa noite o menino não chorou de jeito nenhum, se ficar
mais inchado eu trago pra tu rezar.” E ele ficou bom. Foi
aí que começou.
Tem, também, uma ciência que a gente faz, a
gente faz uma compressa d’água assim: minha mãe
pegava uma panelinha de barro assim pequena, colocava
um pouco de água dentro e botava no fogo pra ferver.
Quando tava fervendo, minha mãe tirava, colocava
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numa vasilhinha e botava com aquela água. Fazia uma
rodelinha com um paninho, colocava no fundo da panela
e a gente colocava o braço, se tivesse machucado o
braço, se fosse o pé, botava o pé. Tinha aquela força,
chupava tudinho pra dentro da panela. Quando acabava,
ela tirava. Ela gostava de fazer mais de noite, por causa
do vento. Ela rezava e fazia esse remédio. Eu olhava e
perguntava: “isso é verdade, mãe?” Dizem que quem
nasceu na sexta-feira tem pouca fé. E ela dizia: “não está
vendo que é verdade, minha filha?” Às vezes, minha mãe
pegava um bocadinho de sal e colocava dentro daquela
água. Molhava o paninho com aquela água, torcia um
pouquinho e cobria o pé machucado. Quando tirava o
pano, que a quentura já tinha ido embora, ela tirava e
fazia de novo. Fazia três vezes. Quando era em poucas
horas, já estava caminhando. Ela fazia isso com meus
irmãos.
Então, quando ela morreu, eu fiquei cuidando do
povo. Mas eu não queria essa profissão não. Porque é
assim: a gente reza o Pai Nosso todo dia e pede a Deus
saúde, paz, harmonia. Reza pra São Sebastião, que é o
santo que livra de doença, de peste, de fome, de guerra,
de doença contagiosa, e de mal sem cura, porque a
gente sabe que existe mal sem cura. Eu fiquei rezando
de peito aberto. O povo vem chegando e procurando.
Às vezes, Dona Lourdes manda alguém pra eu rezar de
peito aberto. Eu digo: “comadre, tu manda o povo lá pra
casa pra rezar!” E ela me diz: “se tu rezar, fica bom!”
Uma vez veio um senhor e o problema que ele
tava eu não sabia rezar. Eu disse a ele: “esse sofrimento
eu não sei rezar não, meu senhor. Me perdoe, que eu só
sei rezar de peito aberto, esse problema que o senhor tá
eu não sei rezar.” Fui em comadre Lourdes e ela me disse
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que eu devia ter rezado o Padre Nosso. Essa é a oração
que eu tenho mais fé! Eu aprendi assim, minha avó rezava
e passou pra minha mãe, e eu rezo porque minha mãe
rezava. Nunca cobrei dinheiro de ninguém! Porque eu
acredito que com as palavras de Deus ninguém ganha.
Eu aprendi que não pode cobrar as palavras de Deus.
A reza de peito aberto é porque às vezes tem
gente que sente esmorecimento do corpo, sente os
braços esmorecidos, as pernas desequilibradas, fracas, e
o povo fala que é porque está de peito aberto. A gente
reza porque às vezes a pessoa está assim, a gente reza
e as pessoas dizem que ficou bom. Mas eu não prometo
cura, porque eu não sou Deus. Mas eu peço a Ele todo
dia: “Deus, se alguém que vem pedindo pra eu rezar, dê a
fé em nós, que Você pode curar, mas eu não posso.”
Eu peço aos meus santos, à minha devoção, para
curar as pessoas. São Sebastião, São Francisco, Santa
Terezinha, Nossa Senhora da Conceição, Santa Luzia,
Santo Expedito, Santo Antônio, Virgem Pai Eterno, Nossa
Senhora da Saúde, meu Padre Cícero, Nossa Senhora
do Desterro, Nossa Senhora das Dores. Todos os dias de
manhã eu venho pro meu altar e peço a benção ao meu
padrinho Cícero. Essa é a minha vida, meu todo dia.
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Dona Neli
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Eu rezo de noite e rezo de dia! Se eu lhe contar o
milagre que Deus me deu, eu não sei! A reza é boa, é forte.
Eu rezo com fé. De noite, as mulheres vão chegando lá
em casa, e eu digo: “quando precisarem de mim, batam
aí na janelinha da área.” E elas vêm. Toda reza é boa se
rezando com fé. A fé é que cura. Se você não tem fé em
um santo, pra quê vai fazer promessa? Deus dá, Deus
tira.
Em casa eu rezo meu terço toda tardezinha, toda
manhã. Rezo na meninada que vem toda, e graças a Deus
até hoje estou aqui, eu mais o Valdemar, meu velhinho.
Estamos com 65 anos de casado, nunca nos separamos,
nunca brigamos. Eu tive dez filhos de tempo, se criou oito
e ainda criei três dos outros. E não estou arrependida,
porque todos são bons e me seguem.
Eu não conhecia a Serra. Eu vim pra cá meu filho
mais velho tava com dezesseis anos e seis meses. Eu
tenho uma casa no Exu, e fico um tempo lá e outro aqui.
Mas não desapego daqui não. As coisas quando vem pro
lado da melhora se encaminham. Quando eu era moça,
eram sete irmãs, hoje só tem eu. Graças a Deus eu ainda
tô viva, que prezo demais a vida. Deus já levou os outros.
Eu tenho uma saudade dos meus irmãos! Eu fiquei dez
dias de dieta quando minha mãe morreu. Achavam que
eu ia morrer, ficar doida. Fiquei não, Deus é quem nos
protege. Eu morava no terreiro dela, todo dia pedia
a benção. Troquei uma casa boa por um rancho para
cuidar de minha mãe, pra ter a sorte de morar mais ela.
O nome dela era Ana. Eu criei a primeira filha e botei
de Ana, e a minha filha que me deram com onze dias de
nascida também.
Eu nasci na seca de 1932, fiquei sem pai com onze
dias. Minha mãe criou sete filhos trabalhando na roça.
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Ela era batalhadora, a minha mãezinha. A gente morava
na Saudade. Tinha uma irmã minha, era quem cuidava de
mim. Disse que torrava o milho, pilava, me dava pipoca
e eu cuspia. Porque me deram pipoca tão nova se eu não
queria!
Me criei numa lida tão grande, que eu nunca tive
tempo quase nem de comer. Não tive tempo de aprender
as coisas. Só aprendi a ler porque a cabeça era boa.
Quando fui pra escola, era uma professora particular, e
mãe não podia pagar. Era a vida do outro tempo. Essa
professora era muito boa e me queria muito bem, e eu
fui pra escola dela. Ela me ensinou e eu aprendi, primeiro
a cartilha, depois o manuscrito.
Aqui eu faço toda a luta, eu acabo de almoçar, eu
varro minha casa, eu lavo as minhas louças, lavo minhas
panelas de noite para o outro dia, e varro esses terreiros
tudinho, limpo os terreiros.
Das plantas, eu tinha um pezinho tão lindo de
losna! Todos os dias eu tomo o chá de girassol, mostarda
e noz moscada. Todo dia faço esse chazinho. Torra a
mostarda e a semente de girassol no fogo bem baixinho,
pouco pra não queimar, quando vê que torrou direito
você pisa no pilão, a noz moscada eu ralo bem raladinho,
coloco num vidro e todo dia vou fazendo o chá. É bom
pra tremura.
A imburana de cheiro eu tomo quando estou
gripada, e pra lavar machucado e pancada eu uso a
aroeira.
A minha primeira reza, que foi no meu filho, foram
três orações: três Pai Nosso, três Ave Maria, três Glória ao
Deus Pai e oferecer à Nossa Senhora.
O de quebranto tem raminho. O de quebranto e
ventre caído é assim:
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Raio do sol quando nasce
Levais contigo
Quebranto
Olhado
E ventre caído
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Maria. Com quinze anos me casei e comecei a rezar a
Renovação com légua de distância da minha casa. O
marido ficava com os meninos para eu rezar. Dizem que
morto não precisar rezar, mas meu Deus, depois que a
gente morre é que precisa de reza! Eu sei que sou muito
devota dos meus santos e rezei muito.
É tanta coisa na vida da gente! A gente que tem
essa idade conta muita coisa, mas já está se esquecendo.
A coisa mais que eu tenho medo é perder minha
memória. Porque eu sou tão rezadeira! Eu sei de tanta
reza decorada! Quando é de noite, eu rezo o terço e rezo
tanta oração bonita. É Deus que me ensina! Quando eu
vou me esquecendo vem a lembrança, porque eu me
criei com minha mãe me ensinando. Ela me ensinou uma
reza de Nossa Senhora da Conceição, que essa reza eu
nunca deixo de rezar. Eu era menina quando minha mãe
me ensinou essa oração e eu nunca mais me esqueci.
Eu acho tão bom viver, quero tanto bem a
essa vida! Estou nessa idade, já sofrida, porque não é
brincadeira. Uma pessoa como eu, não sei não como
foi minha vida, Deus é quem sabe. Mas eu nunca pedi a
morte em minha vida, nem hei de pedir. Eu vou morrer
quando Deus quiser, não vou pedir uma coisa que eu
tenho por certeza. Eu sempre fui muito alegre. Enquanto
eu for viva, a alegria está aqui comigo.
Hoje amanheci com vontade de cantar, que eu
sou cantadeira. Canto tanto no mundo que nem sei dizer!
Maria de Nazaré
Maria me conquistou
Fez mais forte a minha fé
E por filho me adotou
Às vezes eu paro e fico a pensar
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E sem perceber, começo a rezar
O meu coração se põe a cantar
À virgem de Nazaré
Maria que Deus amou e escolheu
Pra mãe de Jesus, o filho de Deus
Maria que só viveu pra seu Deus
Maria do povo meu
Ave Maria
Ave Maria
Ave Maria
Mãe de Jesus
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Maria Silvanete
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que mãe já morava aqui. Viemos embora de Bom Jardim,
em Pernambuco, para cá.
Eu nasci em uma comunidade chamada Batedor,
aqui em Exu/PE. Me vi criança passando por várias
comunidades, por não ter terra. E esse lugar aqui é onde
as minhas raízes se fincam, se estruturam, se expandem.
É onde estou fincando a raiz pivotante dos meus filhos.
Porque a minha já foi fincada, eu sou a ramificação
dela, mas preciso fincar a dos meus filhos, para que eles
também se ramifiquem.
Quando chegamos aqui, este espaço onde hoje
temos essa mata de paus dóias era bem pequeno,
as árvores eram bem baixinhas, todas muito feridas.
Então, fizemos um trabalho grande de restauração e
regeneração dessas árvores, fizemos muita lama, muito
barro para cobrir os caules, porque a gente queria ver
elas crescerem. A gente sabia que elas não completariam
mais o seu ciclo, porque estavam muito machucadas
pelo mau uso, mas a gente queria que elas crescessem. E
elas cresceram.
Ao mesmo tempo que mostram a força do nosso
cuidado, nos mostram também o que é isso de uma ferida
aberta na natureza. Essa ferida que a gente abre sem se
tocar, sem perceber, e que nos mostra que é necessário
repensar o nosso movimento na Terra, nossa passagem
por ela. Essas árvores contam sua história, anunciam e
denunciam sua condição.
As cascas dos paus dóias são usadas para
lambedor, tintura, tratamento dos pulmões, dores na
coluna, ferimentos, disfunção sexual – possuem um
universo grande de usos. Falamos muito do poder da
natureza, mas não enxergamos esse uso irresponsável
dela. Hoje, fazemos um trabalho muito forte no sentido
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do cuidado na retirada da casca do pau dóia, no sentido
de proteger o caule principal, sem matar a planta,
retirando os galhos, entendendo a poda como processo
de renovação. Isso também é ancestralidade: saber usar
as plantas, fazer seus ritos, utilizar de seus cuidados, mas
sem matá-las.
Nesse sentido, é esse o anúcio que esse ambiente
nos traz – o anúncio de regeneração e de continuidade.
Desde que chegamos aqui que fazemos esse trabalho
de regeneração e de plantio, incentivamos cada família,
cada pessoa da comunidade, a plantar um pau dóia no
seu quintal, ao redor da sua casa, socializamos sementes,
para que a gente possa repovoar nosso território, trazer
de volta a árvore que dá nome à nossa comunidade,
cobrir com seu manto verde a nossa terra.
Partejar o mundo,
afagar a terra
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tecemos redes, como uma parteira, que costura os
cuidados para o nascimento de uma criança com todas
as pessoas ao redor. Quando uma parteira cuida de uma
gestante, ela está cuidando de uma comunidade inteira,
mobilizando toda a rede de cuidados ao redor dessa
mulher. Assim, o que temos é uma gestação conjunta,
uma orientação tecida coletivamente, uma costura
bem-feita, onde todos cuidam dessa gestante. Isso é
um trabalho belíssimo, e quando aprendemos com
esse afeto, entendemos que somos parteiras também,
que quando uma próxima vizinha estiver grávida, vou
saber qual o alimento, qual vitamina, qual erva, qual
chá, qual cuidado ela precisa. Pois a parteira já fez um
trabalho de preparação envolvendo toda a comunidade,
a vizinhança.
Uma parteira sabe que precisa de outras pessoas
para cuidar da gestante, para quando ela não estiver ali.
Para essa vizinhança acontecer, a comunidade precisa
se sentir grávida também, e ao mesmo tempo se sentir
parteira. É isso o que mobiliza o cuidado coletivo, a
gestação compartilhada - é este ato de partejar sendo
partejada.
Desde pequenos aprendemos a dar a benção à
nossa mãe de umbigo. Eu não entendia exatamente o
que significava quando mãe dizia: “dê a benção à mãe,
foi ela quem ajudou você a nascer”. Depois de um tempo
a gente entende, e você começa a compreender por que
a mãe de umbigo é também minha mãe, e mãe de minha
mãe.
É a mãe de umbigo quem ensina quais são os
primeiros cuidados, quais os melhores banhos de assento
pra cicatrização, como banhar a criança para sarar o
umbigo, o peito, qual óleo usar com qual planta para
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fazer relaxar a criança. A mãe de umbigo tem todo esse
cuidado. E assim você entende o porquê de dar a benção
a ela. Minha mãe é também a mãe que me cuidou, a
mulher por quem eu passo a ter uma grande admiração
e elo. Ela é a mãe das mães, aquela que perpassa o
cordão umbilical e se estende para além dele, desde há
muito tempo. Esse cordão atravessa nossa origem, nossa
identidade e quem somos nós numa comunidade.
É esse o nosso aprendizado. Precisamos nos tornar
parteiras, parteiros, partejar, cuidar, nos responsabilizar
pela vida uns dos outros, compartilhar o mesmo amor
pela vida e pelo nascimento de todos os seres – de um
pintinho a uma criança. Assim nos tornamos parteiras,
benzedeiras, curandeiras. Assim nos tornamos essa raiz
mestra, a raiz pivotante que está dentro de cada um
de nós, nossa ancestralidade. A partir do momento em
que identificamos essa raiz e que ela passa a existir,
ramificamos.
E o que é a ancestralidade? A resposta me veio
num sonho: a ancestralidade sempre será ramo, sempre
será semente, sempre será flor, sempre será folha, e
sempre será galho – uma continuidade constante, sem
fim. A ancestralidade é esse galho que comunica e nos
deixa livres, que guia e ramifica, como numa agrofloresta,
onde tudo está sempre interligado, onde as plantas, o
plantio e o manejo estão entrelaçadas com toda a rede
de saberes de um povo e de um território, porque se não
for assim, ela não existe, não tem razão de existir. Isso é
o saber em rede, a nossa diversidade, o que cada um de
nós traz a partir de nossas árvores matrizes, de nossas
mães, nossas avós - nossas raízes pivotantes.
Nos ensinaram a chegar somente até o marco dos
quinhentos anos. Nos ensinaram a chegar somente até
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as nossas avós, até as nossas bisavós. E nos esquecemos
da raiz pivotante, que é mais profunda, que vai além da
bisa e que continua para além dela.
Tratam nossa história como de nada mais
existisse antes dela, mas tudo o que é vivo, tudo o que
vive e permanece, vem de muito antes. E é justamente
desse antes que vem o cordão, este cordão umbilical
ancestral que nos une e que nos fortalece.
Eu sempre digo que quem tem a oportunidade de
afagar a terra, afaga também os seus males. Quando eu
faço um processo de benzo estou fazendo uma cura em
mim mesma. E a partir de mim, faço esse irradiamento
para a outra pessoa. Com a terra não é diferente. Quem
trabalha a terra consegue minimizar esse monstro que
nos esmaga dia a dia e, regenerando a terra, regenera a si
mesmo. Nesse sentido, o ato de cuidar da terra, o ato de
partejar, é coletivo - o parto da vida, da nossa existência.
Essa é a nossa forma de enfrentar os desgovernos, as
violências, os apagamentos premeditados da memória.
Essa é a nossa resistência.
O benzo, o fogo,
a mãos e a mata
90
dentro de nós mesmas. Tudo fica tão leve, tudo flui
tão leve, que você se percebe conduzido – é esse o
nascimento de si consigo mesma.
Então, a benzedeira é essa busca pelo equilíbrio,
é ela quem faz esse trabalho de reequilibrar a energia
entre o medo e a ação. Estamos desequilibrados quando
o medo chega primeiro que a ação, quando ele nos
barra e impede o gesto. Hoje o benzimento está na
fogueira, é tido como errado, nos faz sentir medo de
todo esse potencial de cura e cuidado que nós somos.
Por isso é importante escrever, registrar, deixar para
as futuras gerações o trabalho de cada um, de cada
uma, o detalhe daquilo que é próprio de cada pessoa,
o benzo que é próprio de cada um de nós. Esses são
ensinamentos que não se encontram na internet, isso é
próprio de cada mulher, de cada homem, de cada lugar,
de cada comunidade e território. Todos nós temos essa
capacidade de conduzir o cuidado. Cuidar do outro
é cuidar de si mesma, cuidar da terra, cuidar do fogo,
manter a vida viva e a chama acesa.
Costumamos ter muito medo do fogo, porque
ele queima, mas o fogo é o que conduz, o que faz a
purificação, o que nos aquece e nos alimenta. Todos
os povos utilizaram o fogo. A chama, a fogueira eram a
forma de comunicação com outros povos, com outros
territórios, com outros planos.
Hoje utilizamos o zap e isso se dá de forma muito
rápida. Mas antes a principal forma de comunicação se
dava através do fogo. A capacidade de ler esse fogo, a
fumaça, era a mensagem – um pedido de socorro, um
anúncio de uma vida que chegava. A gente acabou se
distanciando de tudo isso. Precisamos lembrar do que
esquecemos.
91
O fogo não é só de uma única comunidade, de
um único território. O fogo é nosso, é dos povos. Ao redor
do fogo festejamos, dançamos, contamos histórias.
Ele não era utilizado só para cozinhar o alimento, era
também uma forma de fazer as limpezas espirituais, as
purificações.
O fogão a lenha da minha cozinha vem pra
dentro de casa porque ele me traz boas lembranças.
Quando eu era criança era assim: se tivesse fogo, se o
fogão estivesse aceso, eu sentia uma paz muito grande,
porque era como se tivesse comida. Se não tivesse fogo,
era como se tivesse tristeza. O fogão aceso me dava paz,
me trazia segurança. Era o fogo alimentando a minha
alma.
A defumação traz esse poder das ervas para a
fumaça. As ervas que eu uso nos chás do dia a dia são as
mesmas que eu utilizo na defumação, para a purificação
do ambiente. As ervas que estão do chá são aquelas
que perfumam a defumação. São ervas que trilharam o
mesmo rio nas nossas vidas, a mesma condução. Cada
vez que se trabalha um incenso, ou uma defumação,
utilizamos também o mel, a cera de abelha, porque isso
traz doçura, traz amor, traz coletividade, que é o que as
abelhas representam.
Trabalhar a defumação com suas próprias ervas,
aquelas que te rodeiam, que você faz uso cotidiano,
são essas as suas ervas de defumação. São elas quem
demarcam seu território, sua condução. Por isso não
vendo incensos, por isso eu estimulo que cada um faça
o seu próprio incenso, que potencialize seus territórios,
seus entornos. O cheiro que buscamos numa defumação
é o cheiro do nosso lugar, é o cheiro do que somos na
mata.
92
Na mata existem várias árvores, uma dessas
árvores somos nós lá dentro. É necessário nos
encontrarmos enquanto mata, pois somos filhos da
mata, somos filhos da terra. Mas quem somos nós na
mata? Essa pergunta me leva a pensar qual cheiro me
habita, me fortalece, me preenche - esse cheiro sou eu
na mata.
Mas como eu consigo perceber que ali sou eu?
Quando esse cheiro te traz firmeza, quando te preenche,
quando te traz esse potencial de equilíbrio, de renovação.
Essa árvore é você na floresta. Não podemos nos perder
de nossas essências, do que somos nós enquanto
mata, enquanto semente, enquanto cura, enquanto
regeneração e fortalecimento. Não podemos nos
esquecer que viemos das matas, porque se esquecemos
isso, não somos mais nada.
O caminho da murta
e da nossa existência
93
não sendo registrada, todas as pessoas aqui sabem,
e já sabiam, que a murta é rica em ferro, que contém
muita vitamina A. As pessoas sabem e orientam seu
uso. No período da fruta, quando chega alguém de fora,
o pessoal vai logo orientando: “coma, mas não coma
demais, porque vai lhe dar gastura, ela tem muito ferro”.
A murta tem uma frutinha roxa, muito rica em
tanino e contém muito flavonóide também. Quando
você faz uma busca pelas propriedades da murta, você
compreende por que as mulheres dizem que essa planta
é excelente, que serve para a saúde da família, que
com ela se faz banho de assento pra agonia nas partes.
Quando você vai atrás dessas informações, desses
palavreados científicos, você compreende por que ela é
tão potente: é que o flavonóide faz todo esse trabalho
de reconstrução, de restauração, tanto no homem
quanto na mulher. Quando foi feita uma pesquisa pela
professora Márcia Vanuza, que trabalhou junto com a
gente, foi identificado que o creme vaginal da murta
é excelente, melhor que os cremes de farmácia. E isso
o povo daqui já falava há muito tempo: que a folha é
excelente para banho de assento. Pra gente isso é muito
importante.
E por que eu estou sempre trazendo isso do
saber popular e do saber científico? Nós fizemos um
levantamento aqui, fizemos um seminário onde fizemos
a identificação de quarenta plantas, onde cada pessoa,
cada família, foi trazendo uma, duas, três plantas e
dizendo para o que servia. Então a gente aproveitou
essa parceria com o IBAMA, e agora com o ICMBio e a
Universidade Federal de Pernambuco, e fizemos esse
encontro reunindo todos esses poderes de pesquisas
– a pesquisa científica e a pesquisa científica-popular.
94
Reunimos as mulheres daqui, e cada uma foi dando seu
depoimento, as raizeiras, as benzedeiras – Dona Djesus,
Dona Maria Bezerra, mãe, Dona Lourdes - mas também
os seus filhos e os seus netos. Foram contando suas
histórias e sendo registradas. Foi muito bonito.
Quando foi a devolução, reunimos todo mundo
de novo. E o mais bonito pra gente era ouvir as mulheres
se reconhecendo: “aquilo ali fui eu que disse! Aquilo fui
eu!” Então, pra gente, foi uma realização! Toda vez que
lembro disso me emociono. Eu me emociono não pelo
momento em si, mas pela importância da gente dar vida
a essas mulheres, a importância da gente dar nome às
nossas mães, a importância da gente dar nome às nossas
avós, às nossas bisavós. A importância de trazer cada
uma dessas mulheres e registrar suas histórias, de dizer
que cada uma delas existe e que nós estamos vivos. Isso
é importante demais!
Para nós, ocupar esses outros espaços, ocupar
os espaços universitários, não é exatamente um
lugar de orgulho, mas é principalmente um lugar de
responsabilidade, de nos afirmarmos e dizermos quem
nós somos e de onde nós viemos. Isso é muito profundo.
De que adianta ser doutor se você não sabe nem de onde
você veio, de onde você surgiu? O que você sabe de tudo
isso? Qual a sua base de fato? De que servem todos esses
títulos se eu não sei quem eu sou? Muitas vezes sou eu
mesma que posso assassinar minha própria mãe, minha
própria avó, ou o meu próprio bisavô, simplesmente
porque os esqueci, porque deixei de ouvi-los.
Então, pra gente, trazer isso de volta pra dentro das
comunidades e ouvir essas mulheres se reconhecendo,
seus netos, seus sobrinhos as reconhecendo, dizendo
alto que foi a avó, a tia quem contou essa história, é
95
bonito demais. Quer dizer que eu estou plantando um
novo, que estou semeando, ramificando. Quer dizer que
nós podemos sim continuar com todos estes saberes.
Mostrar isso para o mundo lá fora é, também, uma
forma de lembrar de todas essas histórias e de todos
esses povos, ontem e hoje. Se não estivermos atentos a
isso, somos massacrados. Por isso essa provocação de
sempre buscarmos quem somos, de onde viemos, os que
estamos construindo. Só assim manteremos vivo aquilo
que querem matar dentro de nós.
Existe um processo histórico de desqualificação
dos nossos saberes, dos nossos cientistas, da capacidade
da existência dos nossos povos e dos nossos territórios.
Uma desqualificação promovida pela grande mídia,
pela indústria farmacêutica, pelas universidades sem
compromisso com o seu próprio povo e sua própria
história.
O conhecimento não é uma luz que se acende
e do nada se faz. Ele sempre parte de um princípio, de
uma base. E essa base está no campo, nas matas, nas
comunidades. E muitas vezes é sobre essa base que se
passa o borrão, que se apaga e se senta em cima. Portanto,
fazemos também um trabalho de desconstrução desse
conhecimento único nas universidades. Precisamos
ocupar estes espaços e dizer que existimos, fazendo
um trabalho de reavivamento dos saberes medicinais e
alimentares dos povos.
Nós somos da nação Cariri, que são vários povos
indígenas. Sabemos muito pouco dessa história, porque
alguém fez questão que ela não fosse registrada, que
não fosse contada. A gente vai repetir esse apagamento
novamente? Nós não temos o direito de repetir isso
novamente. Principalmente porque hoje sabemos quem
96
somos e de quem somos filhos e filhas. Então, quando
falo da murta, ela vem com todo esse potencial. Quando
trazemos sua essência, sua história na comunidade,
percebemos que ela é muito mais que um frasco de
remédio da prateleira de uma farmácia. É esse potencial
de reavivamento da identidade desse lugar a partir da
murta que estamos buscando quando falamos da murta.
Nesse sentido, é muito importante fortalecer a
nossa farmácia viva, essa que está em nosso entorno, a
farmácia dos povos, o alimento dos povos. Na pandemia
orientamos muito o uso dos lambedores, assim como
de alguns procedimentos das universidades. É este
encontro das duas medicinas que precisa acontecer.
Não podemos deixar que um saber seja anulado pelo
outro, mas sim perceber a importância de cada um. Nos
aproximar dessa medicina não significa que estamos
perdendo os nossos princípios, mas que estamos agindo
em diálogo, de maneira complementar, de acordo com
a necessidade. Foi isso o que aconteceu na pandemia.
E é isso o que precisamos compreender, que estamos
sempre nascendo, nos atualizando, mas nunca negando
a nós mesmos e nossos conhecimentos.
E quem somos nós afinal? Somos esse povo que
vem buscando essa essência, que vivemos estes saberes
no nosso dia a dia. Foi justamente na pandemia que
recolhemos mais de um milhão de assinaturas no Brasil
inteiro para um abaixo-assinado dizendo que o governo
precisava reconhecer a importância das ervas medicinais
e dizer que o povo podia sim utilizar as plantas como
medicina complementar ao combate à COVID-19. Somos
muitas lanternas e torres, só precisamos nos alinhar.
Este levante foi tão importante, foi nesse período
que nos mobilizamos, que organizamos lives aqui em
97
Exu para apresentar as ervas, como usar, como fazer o
acompanhamento coletivo das famílias, uma vez que
o isolamento nas casas era quase impossível, dado o
número de pessoas numa mesma casa. Então fizemos
uma orientação que fizesse sentido na na nossa
realidade, fizemos essas conversas, esse enfrentamento,
dizendo dos protocolos que nossos pais e avós sempre
fizeram no combate às epidemias, quando toda a família
era cuidada e tratada, num acompanhamento coletivo.
Estamos nos Brasis, não tem como termos protocolos
iguais para todos. E quem nos ensina isso? Os mateiros,
as curandeiras, as raizeiras, as benzedeiras.
Nosso levante é também esse voltar-se para
nossas próprias raízes, esse caminho que fazemos de
volta pra casa. É na volta pra casa que a gente vai se
encontrando com aquilo que nos deixa em paz – um
cheiro que nos fortalece, uma lembrança, tudo aquilo
que nos mostra que somos capazes de mergulhar mais
profundo no caminho que buscamos. Não temos um
norte se não temos base. E voltar pra casa não é voltar
para um lugar específico, mas para um território, as
plantas que habitam esse território, são elas que nos
acompanham. Basta observar nosso entorno. Quando
uma planta chega no nosso quintal, precisamos saber
para o que ela serve. Fazer o histórico dessa planta é
importante, porque às vezes é você quem vai precisar,
ou seu vizinho. É só olhar ao redor e entender essa
vizinhança com as plantas, sentir sua presença, entender
os seus usos.
O que nossos inimigos desejam é que nos matem
a esperança. Então, uma roda de troca de saberes, pra
mim, é fundamental. É quando os territórios se encontram
para a promoção da vida, para a promoção do existir,
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para aquilo que podemos fazer. Eu não posso ir sozinha,
eu preciso de mais gente, preciso de mais força. Preciso
ir além do meu território e da minha comunidade. Eu
preciso ir além, para que a gente consiga fazer com que
nosso cordão fique mais forte. Cada pessoa que chega
aqui não chega por acaso. Chega porque nós precisamos
nos fortalecer, precisamos compreender que nós estamos
no caminho e que não estamos sós. Essa é a construção,
a busca de vários territórios. E cada um tem uma forma
de chegar. É essa diversidade que nos torna fortes, o que
nos torna resilientes.
O que a gente está tentando mostrar é que muitas
vezes o simples fato de compreender que existimos
é suficiente, é necessário e impulsionador para que a
gente sonhe e tenha esperança, para que isso não morra
ou não nos matem dentro de nós mesmos. Este é o nosso
trabalho, a nossa responsabilidade – o cuidado coletivo
com o chão, com o território, com a terra, com as pessoas,
porque disso depende a continuidade da vida nas nossas
comunidades e no nosso planeta.
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Ramificações
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Catarina
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todas são boas pra remédio. A hortelãzinha pequena eu
gosto demais do cheiro. É tão gostoso! Tenho sempre
losna também, gosto de plantar. O manjericão, a malva-
santa eu tenho tudo lá no meu quintal.
Desde pequena que via minha mãe plantar, ela
gostava muito, sempre tinha plantas no seu quintal, ao
redor da casa. O nome dela era Maria da Conceição, nós
éramos sete irmãos, três mulheres e quatro homens. Foi
com ela que aprendi.
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Moisés
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pessoa precisando do remédio e a gente já tem ali no
quintal, a gente não deixa faltar. A nossa farmácia é a
nossa própria casa.
Minha avó falava que quando fosse o tempo, o
pessoal ia adoecer quase todo de uma vez só, que é o
que nós estamos vivendo hoje, com essa pandemia. As
pessoas estão correndo para os médicos e não estão
encontrando cura. Veio muito médico aqui pro interior
pedir informação sobre as plantas medicinais quando
a pandemia estava mais forte. Muitas pessoas vieram
atrás dessas plantas.
Outro mal que a gente tem é a depressão. E
quais são as plantas pra cuidar junto da depressão? São
plantas bem fáceis, todo mercado tem, que é a erva doce,
a camomila e o endro. Essas plantas acalmam aquela
depressão que a pessoa tá.
A gente fala muito disso, porque onde a gente
chega tem alguém doente, que está indo pro médico e
não tem resultado. Vai ao médico, toma duas injeções,
um remediozinho e acha que está ficando bom, mas
quando vê, continua doente.
Hoje as pessoas estão procurando muito as
plantas medicinais. E a gente ter isso em nossas casas,
nos nossos quintais, a gente sente o privilégio de poder
ensinar um pouco dessa sabedoria, dessa cultura que a
gente tem tão forte aqui na comunidade.
O remédio não é só pra mim, é pra quem chega e
precisa daquilo que veio buscar. O remédio é pra gente
passar para mais pessoas. Era isso o que a gente aprendia,
o que a gente ouvia falar de primeiro: “taí a farmácia de
vocês, não deixem faltar, levem de geração em geração.”
Até hoje Deus não permitiu que a gente perdesse essas
sementes.
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Hoje poucos cultivam, mas às vezes, faltou numa
casa, a gente já vai atrás de um vizinho, já traz uma
mudinha, e assim vai zelando, cuidando ali daquela
farmácia. Nosso saber é esse. E a gente vai vivendo nessa
alegria, nesse trabalho, que é o conhecimento da Serra
dos Paus Dóias.
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Francisco Carlos e Maria Ni
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planta serve pra muitas coisas. Tem, ainda, o pinhão-
roxo, o leite dele é cicatrizante, você pode beber.
Do algodão crioulo, daqueles pés roxos, de
antigamente, você faz o leite do caroço e bebe. Fica bem
um leite mesmo, é bom para hemorroida. De primeiro,
quando não tinha energia aqui, pisava no pilão. É bom
pra quem sai muito caroço na pele, na coxa, em todo
canto, cabeça-de-prego. Pra quem bota sangue pelo
nariz, é só esmagar a folha e cheirar. [Dona Maria Ni]
Batata-de-purga você seca, e pra quem tá ruim
da barriga, resolve. Cajueiro é cicatrizante. E também o
ipê-roxo. Os paus dóias, a copaíba, você tira o óleo dele.
O lambedor é bom pra tosse.
A alfazema de caboclo a gente bebe o chá. O
boldo é amargo e é bom pra dor de barriga. O chá de
mamão usa pra diabetes. A malva-corona a gente toma
com mastruz e leite, trata inflamação e pancada.
O melão São Caetano minha avó usava muito,
porque ela inchava os pés. Fazia o banho com uma
colher de chá de sal, uma colherzinha de vinagre, as
folhas do melão e deixava o pé de molho.
E, por último, o cedro medicinal. Ele é bom pra
coluna. Você põe a entrecasca na cachaça, porque se
for pra beber com água não desce não. Tem que botar
na cachaça. É amargo e fedorento. Quando tá perto de
chover, o cheiro dá engulho. É muito forte o cheiro. [Dona
Maria Ni]
Mas a planta que eu gosto mesmo é o cipó caititu,
porque eu aprendi a fazer cesto, artesanato com ele.
Era uma terapia pra mim. E quando eu cheguei aqui
eu descobri que o chá dele é calmante também, mais
calmante ainda! O que eu prendi primeiro foi fazer o
caçuá, pra botar milho na roça. Ele tem dois cambitos
120
de madeira que você coloca na cangalha e carrega
em jumento. Eu aprendi olhando meu pai fazer, e com
minha avó. Mas depois de uma certa idade ela disse
que não conseguia mais fazer, por causa da vista, mas
conseguia me orientar. Você olha e parece uma coisa
simples, mas às vezes eu fico imaginando como foi que
meus ancestrais fizeram, como pensaram em pegar o
cipó, secar e fazer o cesto. É muito bonito isso.
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Cidália
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Os Bordados
Narrar o tempo, curar os sonhos
Ana Paixão de Carvalho e Pepa Mattos
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o ramo de flores que orna o altar, a árvore do futuro,
criada coletivamente pelas crianças, a partir das plantas
que suas mães e suas avós cultivam em seus quintais.
Gesto atualizado, porque antigo, troca sensível
entre gerações. O fogo como elemento que reúne, que
aquece e que acolhe. Que cozinha o alimento e defuma
a casa. O cheiro dos sonhos esquecidos, as histórias
rememoradas, porque vivas dentro de cada um de nós.
Linhas que costuram redes e constróem laços.
Nestes dias de maio, vivemos e reafirmamos
aquilo que nos têm ensinado as comunidades e povos
tradicionais: o futuro é ancestral. E seu tecido, a
coletividade. Este é o convite que fica: vamos sentar
ao redor do fogo, é tempo de ouvir e fiar histórias,
reinaugurar com elas, a muitas mãos, os nossos sonhos,
e o mundo vivo que habitamos.
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A EQUIPE
160
quatro filhos, Makambi, Malaika, Malakai e Aluandê, vive
em comunidade com sua família no Sítio Malokambo em
Tracunhaém, Zona da Mata de Pernambuco.
161
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163
CRÉDITOS
O Projeto
Articulação Territorial
Maria Silvanete Benedito de Sousa Lermen
Pesquisa
Ana Paixão de Carvalho
Helena Tenderini
Maria Silvanete Benedito de Sousa Lermen
Marília Nepomuceno Pinheiro
Pepa Mattos
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Consultoria
Helena Tenderini
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Maria Ni Gonçalves da Silva
Maria Silvanete Benedito de Sousa Lermen
Moisés de Oliveira
Otávio de Souza Benedito
Pedro de Sousa Lermen
Roseli dos Santos
Simão Gonçalves da Silva
Imagens de divulgação
Fernanda de Sousa Lermen
Marília Nepomuceno Pinheiro
Marcenaria Olinda
Divulgação
Giuseppe Bandeira - Agência Motyrõ
Coordenação de Produção
Marília Nepomuceno Pinheiro
Produção
Ana Paixão de Carvalho
Jeferson de Sousa Lermen
Maria Silvanete Benedito de Sousa Lermen
Assistência de Produção
Fernanda de Sousa Lermen
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Pedro de Sousa Lermen
Roseli dos Santos
Vilmar Lermen
Cozinheiras
Leiliane Batista de Morais
Jeferson de Sousa Lermen
Realização
Chã - coletiva da terra
Parceria
Agrodóia – Associação de Agricultoras/es Familiares da
Serra dos Paus Dóias
Espaço de Vivência Maiêutica
Selvagem – Ciclo de Estudos sobre a Vida
Apoio
Ateliê Josefa
Escola Waldorf Rural Turmalina
Marcenaria Olinda
Miriti - Escola do Comum
O Praialta
Incentivo
Funcultura-PE
167
O Caderno - Terra Linha Planta Oração
Coordenação editorial
Ana Paixão de Carvalho
Organização
Ana Paixão de Carvalho
Maria Silvanete Benedito de Sousa Lermen
Marília Nepomuceno Pinheiro
Autoras
Maria da Silva Bezerra
Maria Djesus de Souza Ferreira
Maria de Lourdes Souza da Silva
Maria de Souza Benedito
Maria Ferreira Gonçalves
Maria Neli Ferreira da Cruz
Maria Silvanete Benedito de Sousa Lermen
168
Maria Silvanete Benedito de Sousa Lermen
Moisés de Oliveira
Ilustrações | Bordados
Agna Ribeiro da Silva
Ana Paixão de Carvalho
Arthur Batista Ferreira
Francisco Carlos Gonçalves Barbosa
Catarina Gomes de Viveiros
Cícero Souza da Silva
Cidália Ferreira de França
Davi Domingos de Sousa
Débora de Sousa Lermen
Fernanda de Sousa Lermen
Gabriel Wesley Ferreira de Moraes
Gilson Levy Benedito Santana
Maria Isabel Ferreira de Morais
Maria de Souza Benedito
Maria de Lourdes Souza da Silva
Maria Silvanete Benedito de Sousa Lermen
Marília Nepomuceno Pinheiro
Otávio de Souza Benedito
Pedro de Sousa Lermen
Pepa Mattos
Roseli dos Santos
Retratos e fotografias
Ana Paixão de Carvalho
Raiz pivotante (p.132) – imagem gentilmente cedida por
Elisa Mendes para bordado sobre fotografia, de Pepa
Mattos
Retrato de Moisés (p.116) - publicado originalmente
no Caderno 2 - As filhas da terra da Serra dos Paus
169
Dóias, realizado no âmbito do projeto Cosmonucleação
Regenerativa e Encantamento no Manejo de Territórios
Tradicionais em Pernambuco, realizado pela Chã – coletiva
da terra, e financiado pelo GRRIPP - Gender Responsive
Resilience and Intersectionality in Policy and Practice.
Acessibilidade
Mundo Grande Acessibilidade
Consultor cognitivo – Ednilson Sacramento
Audiodescrição – Cauê Maia
Agradecimentos
Nosso mais profundo agradecimento às detentoras e
detentores dos saberes tradicionais de cura da Serra
dos Paus Dóias, que também desenvolvem a agricultura
de baixa emissão de carbono na perspectiva da
agrofloresta na comunidade, por manterem seus saberes
e seu território vivos e pulsantes. Agradecemos, ainda,
à comunidade, pelo acolhimento, construção coletiva e
dedicação ao projeto. Por fim, agradecemos a todes que
de alguma maneira colaboraram no seu desenvolvimento
e apoio, em especial à Anna Dantes, Conceição de Maria
Freitas Nepomuceno, Cristina Calheiros, Elisa Mendes,
Fernando Ancil, Kássio Almeida, Madeleine Deschamps,
Maria Lúcia Carvalho, Pedro Jaime Ziller, e ao Selvagem
– Ciclo de Estudos sobre a vida.
170
Realização
Parceria
Incentivo
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Vários colaboradores.
ISBN 978-65-00-56729-8
22-135845 CDD-616.024
NLM-WB-100
Índices para catálogo sistemático: