O Vocabulário Metapsicológico de Sigmund Freud
O Vocabulário Metapsicológico de Sigmund Freud
O Vocabulário Metapsicológico de Sigmund Freud
Revista de
Estudos Germanísticos
E-ISSN: 1982-8837
pandaemonium@usp.br
Universidade de São Paulo
Brasil
Abstract: The following article aims to discuss the ground vocabulary of Freudian
Metapsychology, beyond the conception of a simple and stiff collection of technique terms.
Facing the fact that Freud was a brilliant writer and a keen explorer of the resources provided by
the German language, we intend to demonstrate some distortions his vocabulary and style
underwent after its passage through internationally influent translations into English and French.
Therefore, since recently his work went into the public domain and finally it begins to be
directly translated into Portuguese, it is a capital challenge to Freud´s translators in Brazil to
recover the lifelike face of his words not disregarding the accuracy of his propositions.
Key-words: Freud’s Vocabulary – Freud’s Translations – Freud and the German language –
Translation and Psychoanalysis.
2 Apontamos a proximidade entre Wüster e Freud por se tratarem de concidadãos contemporâneos e não
por ter havido alguma referência de um acerca do trabalho do outro.
3 As duas compilações disponíveis da obra de Freud em língua portuguesa ao longo do século vinte foram
elaboradas de modo indireto, a partir do francês (Editora Delta) e do inglês (Editora Imago).
4 “Freud escreve de modo geral em uma prosa de forte cunho ilustrativo, é um artista do pensamento tal
qual Schopenhauer e, como ele, um escritor europeu.”
5 “Admiro especialmente sua produção/realização (Leistung), como a todos os seus escritos, do ponto de
vista literário. Não conheço nenhum contemporâneo nosso que apresentou seus objetos de investigação
com tanta maestria na língua alemã.”
6 “Sua obra desperta convicção também fora do seu milieu devido às suas elevadas qualidades tanto
humanas quanto literárias. [...] O Freud pesquisador esmerado, lógico da clareza, criou um instrumento
privilegiado em uma linguagem altamente intelectualizada, mas também de um agudo esplendor, de exata
definição, bem como de lúdica capacidade combatida e satírica.”
o Prêmio Nobel por ter sido “demasiado médico” para receber o de Literatura, e
“demasiado literário” para receber o de Medicina.
Freud foi agraciado na quarta edição do Prêmio Goethe, segundo Alfons Paquet,
membro do Kuratorium responsável, muito mais em decorrência de sua “afinidade
espiritual” com o talentoso, ousado e influente Goethe do que unicamente por seus
méritos como escritor: “Die Ihnen zugedachte Ehrung gilt im gleichen Masse dem
Gelehrten wie dem Schriftsteller und dem Kämpfer, der in unserer, von brennenden
Fragen bewegten Zeit dasteht als ein Hinweis auf eine der lebendigsten Seiten des
Goetheschen Wesens7” (in FREUD 1930: 546). Talvez aí a identificação com o
pensamento do inquieto, combativo, polêmico Freud mais lembre uma personagem de
Goethe, seu Fausto, do que o próprio intelectual que dá nome à premiação.
Goethe, autor do drama sobre o doutor pactário, foi o “autor literário” mais
citado por Freud em seus símiles teóricos, mas era também o grande investigador da
natureza (Geologia, Botânica, Teoria das Cores) contribuindo com tais características
para se tornar, ao lado do também tão genial como polivalente Leonardo, um modelo
intelectual para Freud desde os tempos de juventude. A bem da verdade, são os três,
Goethe, Leonardo e Freud, espíritos fáusticos que não se conformam aos limites
acadêmicos, estilísticos dessa ou daquela área específica do saber ou do fazer.
Não à toa utilizei como epígrafe ao livro Versões de Freud – Breve panorama
crítico das traduções de sua obra um dos mais famosos versos do Fausto de Goethe:
“Du gleichst dem Geist, den du begreifst, nicht mir”, sem apresentar uma tradução. O
verso perde muito em qualquer tradução e não somente em sua beleza sonora e
aliterantes. Se numa tradução mais direta teríamos: “Igualas o espírito que apreendes,
não a mim”, não seriam essas uma solução simples, na passagem de uma língua à outra,
para os dois verbos e para o único substantivo aí presentes. Pedimos aqui licença para
certa digressão no tocante aos elementos dessa frase que nos serão úteis em nossas
questões sobre o vocabulário freudiano.
Comecemos pelo complexo caso do substantivo Geist, vocábulo tão comum para
o falante nativo da língua alemã e ironicamente tão fugidio para aquele que busque
traduzi-lo. Na passagem do drama em que aparece a frase, Fausto se vê desiludido por
7 “A homenagem que lhe é destinada, vale tanto ao intelectual, quanto ao escritor e ao combatente, que
em nossos tempos abalados por cáusticas questões, afirma-se como referência de uma das faces mais
vivas do espírito/ser (Wesen) goethiano.”
somente no Faust – Erster Teil (Primeira Parte) setenta e nove ocorrências de palavras
com o étimo gleich e vinte e cinco com greif ou grif. No Zweiter Teil (Segunda Parte)
chegam a cem as ocorrências para variantes de gleich e quarenta e oito para greif/grif
(GOETHE 1996). Quer dizer, mais do que uma mera citação, a frase reproduz algo de
essencial do drama e da personagem hibridística em questão, numa dicotomia que nos
parece fundamental ao espírito epistemofílico de Freud.
Se a frase citada vem no início da Primeira Parte, lembremos que no segundo
Fausto aparece o paradigmático episódio do Grifo (Greif) na Noite de Walpurgis
clássica, que com suas garras nada apreende/agarra (greift) que lhe traga satisfação;
passagem que nos remete à melancolia do velho Fausto no início do drama. Igualmente
paradigmática seria a conclusão do drama, quando nos versos finais aparece também um
derivado de gleich, a saber, Gleichnis (parábola, símile, metáfora).
Alles Vergängliche
Ist nur ein Gleichnis;
Das Unzulängliche,
Hier wird`s Ereignis;
Das Unbeschreibliche,
Hier ist`s getan;
Das Ewig-Weibliche
Zieht uns hinan.
[Tudo que transcorre
Não passa de um símile
O inacessível
Aqui torna-se fato
O indescritível
Aqui é elaborado
O eterno-feminino
Atrai-nos para si]
A prosa de Freud não apenas dramatiza e reflete ela tem também valor racional
e reflexivo. Mais do que qualquer outro analista, a prosa de Freud é bilateral,
como o rosto de Jano, anfíbia, equilibrando-se entre mostrar e fazer, entre
desempenho e descrição, refletindo e dando testemunho, processo primário e
secundário, afeto e racionalidade, impulso e análise. Ela paira entre o consciente
e o inconsciente é uma prosa limítrofe, por isso autenticamente “psicanalítica”.
Janela e espelho juntos constituem a imagem apropriada para caracterizar sua
prosa especulativa. (MAHONY 1989: 59)
hier keinen Schritt weiter. Leider sind die Auskünfte der Hexe auch diesmal weder noch
klar noch sehr unschätzbar” (Id.) [Sem especulação e teorização metapsicológicas –
quase diria: fantasiar/devanear – não se consegue aqui sequer dar um passo adiante.
Infelizmente as informações da bruxa não são também desta vez nem tão claras nem tão
minuciosas.]
MUSCHG (1930), novamente mostrando a singular posição de Freud entre o
científico e o literário, afirma que Freud teria usurpado a palavra “sonho” (Traum) dos
poetas. O que não diz é que o psicanalista a submeterá a uma sintaxe ou gramática da
ciência em enunciados tais como “Der Traum ist die (verkleidete) Erfüllung eines
(unterdrückten/verdrängten) Wunsches” (O sonho é a realização [disfarçada] de um
desejo [reprimido/recalcado]) (1900: 166), afirmação tão próxima em forma da
axiomática “A soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa”.
Quer dizer, ele faz por vezes uso de um léxico literário numa sintaxe científica em
ocasiões como essa, enquanto nos seus casos clínicos (Krankengeschichten) apresentará
toda a descrição dos sintomas com conceitos em preciso Medizinerdeutsch (alemão
“medicinal”), porém dentro de uma tão elaborada estrutura narrativa, que cativará
leitores interessados nas qualidades literárias desses historiais, lidos como verdadeiros
romans-à-clefs.
No primeiro dos Artigos sobre Metapsicologia, destinado ao conceito de Trieb,
teria deixado claro que mesmo procurando a maior objetividade possível, seus
Grundbegriffe são conceitos inexatos em constante re-elaboração, e assim adverte seu
leitor:
Wir haben oftmals die Forderung vertreten gehört, dass eine Wissenschaft über
klaren und scharf definierten Grundbegriffen aufgebaut sein soll. In
Wirklichkeit beginnt keine Wissenschaft mit solchen Definitionen, auch die
exaktesten nicht. Der richtige Anfang der wissenschaftlichen Tätigkeit besteht
vielmehr in der Beschreibung von Erscheinungen, die dann weiterhin gruppiert,
angeordnet und in Zusammenhänge eingetragen werden. (1915: 81)
[Com frequência ouvimos a exigência de que uma Ciência deve ser erigida
sobre conceitos fundamentais claros e precisos. Na realidade nenhuma Ciência,
nem mesmo a mais exata, começa com tais definições. O verdadeiro princípio
da atividade científica consiste sobretudo na descrição de fenômenos, que então
posteriormente são agrupados, organizados e dispostos em determinada
correlação.]
É curioso que tenha começado a sua coletânea, justamente com o seu conceito
fundamental de definição mais fugidia e de mais difícil apreensão: o Trieb. Trata-se
afinal de uma noção cujas concepções viriam a sofrer uma grande reviravolta em
Jenseits des Lustprinzips (1920), publicado dois anos após o final da guerra. Não à toa
parece ser esse também o conceito, cuja tradução até hoje mais determinantemente
marca as divisões entre os psicanalistas e demais leitores de Freud. O que estes acabam
muitas vezes por querer esquecer é o quanto, mesmo na obra do autor, seus conceitos
eram um work in progress que provavelmente não terminou com a obra por ele legada.
(BARROS 2005: 68). O primeiro intento nesse sentido se deu na própria língua alemã sob
a coordenação de Richard STERBA, que iniciou seus trabalhos no Handwörterbuch der
Psychoanalyse (dicionário “manual” da Psicanálise) em 1931, sendo interrompido em
1938 quando a redação, progredindo em ordem alfabética, encontrava-se na letra L
(apud ROUDINESCO & PLON 1997: VII).
Em decorrência da eclosão da segunda guerra e do falecimento de Freud um ano
mais tarde, tal como aliás ocorreu com a organização e publicação de suas obras, os
grandes léxicos de Psicanálise vieram a ser redigidos em inglês e francês e não no
alemão, na língua a partir da qual Freud formulou suas proposições e da qual retirou
seus Grundbegriffe. No ano de 1968, trinta anos após a interrupção do intento inaugural
de Sterba, vimos surgir três influentes léxicos em língua inglesa e um, talvez o
mundialmente mais influente, em língua francesa. Nos Estados Unidos a American
Psychoanalytical Association, através de M. D. MOORE e D. Bernard FINE, apresenta
com A Glossary of Psychoanalytic Terms and Concepts, segundo ROUDINESCO & PLON,
um freudismo “pragmático e medicalizado” (idem, p. VIII). No mesmo ano Ludwig
EIDELBERG, austro-húngaro refugiado nos Estados Unidos, organiza sua Encyclopedia
of Psychoanalysis e Charles RYCROFT lança na Inglaterrra A Critical Dictionary of
Psychoanalysis. No tocante aos franceses, em 1968 surge o Vocabulaire de la
Psychanalyse, projeto iniciado por Daniel LAGACHE, mas levado a cabo por Jean
LAPLANCHE e Jean Bertrand PONTALIS.
Voltaremos, sobretudo, ao último dos léxicos citados, mas caberia aqui
mencionarmos talvez aquele que, mesmo sem uma grande pretensão lexicográfica de
apontar definições para a “terminologia” freudiana, teve uma influência capital para a
difusão de sua obra a partir de suas traduções. Falamos do Glossary for the use of
translators of psycho-analytical works, organizados por Ernest JONES e publicado em
Londres em 1924 no International Journal or Psycho-Analysis.
Ernest Jones foi afinal o grande responsável pela organização daquela que seria
a edição mais divulgada e influente das obras de nosso autor: a Standard Edition
inglesa. Mesmo tendo como principal tradutor James STRACHEY, a edição e, como seu
nome indica, o fato de ter se tornado um modelo (standard) para o freudismo, deve seus
méritos e críticas fundamentalmente a Jones, o grande político da Psicanálise após a
morte de seu fundador. O fato de Freud ter se exilado em Londres no último ano de sua
vida e de lá ter encontrado refúgio para sua família e seus escritos ajuda-nos a
compreender parte da influência que teve a língua inglesa na difusão de sua
terminologia. Mas a isso certamente se soma o fato de que não somente na Inglaterra,
mas sobretudo nos Estados Unidos, grande potência emergente no pós-guerra, houve
uma avidez pelo o legado sobre uma promissora e lucrativa prática clínica.
BETTELHEIM (1983) e LACAN (1964), entre muitos outros, criticarão o crivo
cientificista – voltado sobretudo para uma Medicina ou Psicologia tecnocráticas – pelo
qual passaram a recepção dos textos e os conceitos fundamentais da Psicanálise entre os
anglófonos. Apesar de Freud ter escrito Die Frage der Laienanalyse [A questão da
análise leiga], como declarara, para proteger a Psicanálise do domínio dos médicos
(FREUD 1928 apud BETTELHEIM 1989), seu destino na grande potência do novo mundo
será o de incorporar-se à Ciência Médica, destino que teve grande amparo no viés que
sua tradução sofreu para a língua inglesa. No mesmo ensaio, aliás, aparece a
preocupação com a compreensão de seus conceitos por parte dos beneficiários do
método terapêutico por ele criado (seus pacientes), mais do que simplesmente por uma
restrita e fechada comunidade de iniciados em seus estudos (os psicanalistas).
O uso de termos coloquiais, de uso cotidiano, é uma das principais marcas
distintivas do vocabulário freudiano quando comparado aos inúmeros teóricos do
psiquismo que o sucedem. Como aponta Uwe PÖRSKEN em seu estudo Zur
Terminologie der Psychoanalyse, publicado em 1973, nosso autor se distancia da
proposição de um jargão para iniciados, sem abrir mão de uma descrição comprometida
com precisão e clareza:
Essa característica tão distintiva da escrita freudiana começou a ser dissipada a partir
das proposições de traduções de seu vocabulário fundamental para a língua inglesa. O
pioneirismo de Jones na “standartização” da terminologia psicanalítica levou-o ao
recurso universalizante às “línguas mortas”, línguas que tanto servem historicamente à
Terminologia. Haja vista aqui o feito do naturalista Karl von Linné (Lineu) e sua
sistematização para a nomenclatura das espécies (Botânica e Zoologia) a partir das
designações binomiais greco-latinas. Assim como a Medicina se vale do grego antigo
ou do latim para nomear suas entidades clínicas em casos como pneumonia, glossite,
xeroftalmia, Jones propõe, desde seu Glossary de 1924, um caminho semelhante para
vocábulos freudianos com sentidos muito “vivos” e de direto acesso para os falantes da
língua alemã. Assim, os pronomes pessoais Ich (eu) e Es (isso) passaram a se chamar
Ego e Id; a Besetzung (ocupação, investimento) da libido tornou-se cathexis; as
Fehlleistungen (realizações falhas/atos falhos) tornaram-se parapraxis; além do mais o
forçoso caso do uso de instinct para verter Trieb.
Na França foi considerável a oposição aos rumos que a Psicanálise teve nos
países de língua inglesa e a aderência da Psicanálise à Medicina e ao discurso das
Ciências Naturais. No sentido terminográfico, entretanto, ao “libertar” a Psicanálise das
amarras da Medicina, ironicamente se fez pendê-la para uma nova aderência: ao
discurso filosófico. Filósofos de formação, Jean LAPLANCHE e Jean-Bertrand PONTALIS
organizaram o mais influente léxico internacional da Psicanálise sob forte influência do
modelo do Vocabulaire technique et critique de la Philosophie de André LALANDE.
Trata-se do há pouco mencionado Vocabulaire de la Psychanalyse de 1968. Não
somente pela proximidade de seus autores com o lacanismo, o léxico se tornará uma
referência sobretudo em países como o Brasil, que careciam de uma boa tradução das
obras de Freud. O peso de sua influência internacional se deve principalmente ao fato de
apresentar uma minuciosa busca por uma definição inequívoca dos conceitos freudianos
e alternativas de tradução aos vocábulos em cinco línguas europeias modernas, a saber:
francês, alemão, inglês, espanhol e português.
Certamente em decorrência do prestígio de que gozava o léxico, um de seus
autores, Jean Laplanche, ao lado de Pierre COTET e André BOURGUIGNON, será o
encarregado pela coordenação do primeiro projeto de tradução sistemática das obras
completas de Freud para o francês. No Vocabulaire se percebe a clara influência da
leitura francesa do vocabulário filosófico de língua alemã como uma espécie de
terminologia fechada, monossêmica e novamente distanciada da experiência comum e
cotidiana. Veja-se o caso da tradução de Angst (medo/angústia/ansiedade)
invariavelmente por angoisse; de Vorstellung (representação/ideia/noção),
Quanto ao Brasil, com a prescrição dos direitos autorais sobre a obra de Freud em 2009,
vemos finalmente surgirem versões diretas ao português como é o caso da tradução
coordenada por Paulo César de SOUZA (Cia. das Letras), Luiz Alberto HANNS (Ed.
Imago), Renato ZWICK (L&PM), bem como dos textos traduzidos na década de 1980
por Marilene CARONE (Cosac & Naify). Certamente outras versões a cargo de outros
tradutores deverão surgir nos próximos anos, mas se observa uma atenção especial às
duas primeiras mencionadas por serem Souza e Hanns, além de tradutores, importantes
estudiosos da escrita freudiana ao longo das últimas décadas, tendo ambos dedicado
suas teses de doutorado ao assunto e publicado importantes livros e artigos a respeito da
temática.
Com relação às tão difundidas influências inglesas e francesas, poder-se-ia se
dizer o seguinte a respeito do rumo dado por Souza às traduções dos conceitos
metapsicológicos desde sua tese publicada sob o título Palavras de Freud – o
vocabulário freudiano e suas versões. O tradutor se mostra um ferrenho crítico,
sobretudo da inflexibilidade da tradução coordenada por Laplanche e tão próxima do
Vocabulaire de la Psychanalyse, do qual é co-autor. Para Souza a opção inequívoca
pela equivalência entre termos alemães e franceses seria a grande fragilidade das
propostas francesas. Critica igualmente na tradução francesa o recurso a neologismos
desnecessários e à ilegibilidade decorrente da opção por uma tradução termo a termo,
gerando no francês estranhas construções sintáticas.
Por outro lado, grande admirador do feito de Strachey como tradutor, Souza se
apropriará de cognatos de origem latina na língua portuguesa em muitas das soluções da
Standard inglesa. Serão os casos de repression (repressão), suppression (supressão),
civilization (civilização), e até mesmo o tão polêmico instinct (instinto) para traduzir o
Trieb. Quanto aos “neologismos clássicos” sugeridos por Jones, no entanto, Souza os
recusa, procurando alguma equivalência no vocabulário comum da língua portuguesa,
traduzindo assim Anlehnung por apoio, Besetzung, por investimento e Fehlleistung por
ato-falho, para retornarmos aos exemplos anteriormente citados.
Luiz Alberto Hanns, conforme demonstrado em Versões de Freud (TAVARES,
2011) diferentemente do viés dado por Souza, tão preocupado com o resgate do escritor
Freud é, por sua vez, um grande estudioso justamente de seu vocabulário fundamental.
Por isso afirmamos ser Souza um mestre do sintagmático, na sua hábil retextualização
das frases e do estilo freudianos, ao passo que Hanns seria um mestre do paradigmático,
na sua cuidadosa relação com a terminologia do autor. Quanto a Hanns, sua grande
contribuição nesse sentido foi o criterioso Dicionário comentado do alemão de Freud
de 1996, no qual busca familiarizar o leitor de língua portuguesa com as especificidades
dos vocábulos coloquiais utilizados por Freud em sua empresa teórica tais como Lust,
Reiz, Trieb, Angst, Drang etc.
Como tradutor, no entanto, Hanns, muito diferentemente de Souza e de sua
maior proximidade das opções difundidas através da edição inglesa, fará uso de opções
mais difundidas no meio psicanalítico brasileiro. Indiretamente, portanto, dada a forte
influência do lacanismo e do léxico de Laplanche e Pontalis no meio especializado em
estudos freudianos, suas opções de tradução muitas vezes se aproximam muito das
opções francesas. Nesse sentido, ele opta pelo uso de pulsão para traduzir Trieb; e
recalque, para Verdrängung, destinando repressão para a tradução de Unterdrückung.
Não adere, entretanto, à tradição lacaniana de traduzir Verwerfung por forculsão,
preferindo rejeição, ou de verter Phantasie por fantasma, propondo fantasia.
Um dado curioso, porém, está no destino dado por ambos os tradutores às
instâncias da segunda tópica Ich e Es. Através da influência da Standard popularizou-se
no Brasil o uso dos termos latinos Ego e Id, respectivamente, para sua tradução.
Opondo-se a essa solução e comprometidos com o retorno à coloquialidade freudiana,
muitos psicanalistas brasileiros fazem uso dos relativos pronomes Eu e Isso para vertê-
8
Forma mais utilizada pelo tradutor, que aponta alternativas como ideia, imagem, concepção, etc.
Referências
ALTOUNIAN, Janine. L’écriture de Freud - Traversée traumatique et traduction. Paris : Presses
Universitaires de France, 2003.
BARROS, Lidia Almeida. Curso Básico de Terminologia. São Paulo: EdUSP, 2004.
BETTELHEIM, Bruno. Freud and man’s soul. Nova Iorque: Knopf, 1983.
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Triebschicksale (1915) - Über die Psychotherapie (1905)
GOETHE, Johann Wolfgang. Faust I und II. Colônia: Könnemann, 1996.
GOLDSCHMIDT, Georges-Arthur. Quand Freud voit la mer - Freud et la langue allemande 1.
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MUSCHG, Walter. Freud als Schriftsteller. In Die Zerstörung der deutschen Literatur. Berna:
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ROUDINESCO, Elisabeth & PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Tradução de Vera
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SCHÖNAU, Walter. Sigmund Freuds Prosa - Literarische Elemente seines Stils. Giessen:
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SOUZA, Paulo César de. As palavras de Freud - O vocabulário freudiano e suas versões. São
Paulo: Ática, 1999.