A Arquitetura Jesuítica... - Sérgio Gorjão
A Arquitetura Jesuítica... - Sérgio Gorjão
A Arquitetura Jesuítica... - Sérgio Gorjão
2019
1
A arquitetura jesuítica ao modo-nostro
e a génese do Real Edifício de Mafra
Resumo:
2
Índice
Introdução ..................................................................................................................................... 4
Os Jesuítas e a afirmação da arquitetura barroca......................................................................... 6
Dom João V - enquadramento histórico ....................................................................................... 9
A tratadística jesuítica na Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra ........................................... 15
A tratadística de arquitetura - influência no Palácio Nacional de Mafra .................................... 24
Conclusão .................................................................................................................................... 29
Fontes Bibliográficas e Bibliografia Crítica .................................................................................. 31
3
Introdução
4
desenvolvendo o seu trabalho de forma mais ou menos isolada, mas nestes casos
quase sempre suportada em sólidas redes de patronato sociais e familiares.
Para uma compreensão do que seria o exercício da arquitetura na época barroca, há
que considerar algumas variáveis importantes numa atividade em mutação. A
arquitetura barroca era relativamente diversa da abordagem conceptual dos
renascentistas e maneiristas, inspirados em modelos clássicos rígidos; tendo
oportunidade de, dentro de uma moldura relativamente rígida (em termos de modelo
teórico e de capacidade construtiva), estabelecer processos criativos, inovadores,
teatrais e desafiadores dos limites materiais… longe ainda, porém, da prática
prospetiva da arquitetura do século XIX, ou da assunção de novos valores de desenho
com a aplicação de novos materiais e tecnologias (como a arquitetura do ferro), e
ainda mais distante dos múltiplos conceitos que no século XX se fizeram, projetando a
arquitetura e os arquitetos em várias direções, desde uma dimensão criativa e
artística, a áreas mais ligadas ao domínio da economia ou dos novos materiais, como o
betão, polímeros, etc.
5
Os Jesuítas e a afirmação da arquitetura barroca
A Companhia de Jesus, estabelecida por bula de Paulo III, em 1540, desde cedo se
revelou uma sociedade com um âmbito de ação muito ligado à Contrarreforma e à
obediência ao Papa, estando particularmente voltada para as questões doutrinárias e
ensino académico, bem como à assistência espiritual.
A proeminência que os jesuítas tiveram nos reinados de Dom João III e Dom Sebastião
é evidente, mantendo-se um pouco mais vigiado no período filipino e pós-restauração.
No reinado de D. João V a relação com os jesuítas é aparentemente boa, mas
“controlada”, tendo o rei valorizado as residências e colégios desta congregação, talvez
por influência da própria rainha, D. Maria Ana de Áustria.
Outro aspeto relevante para este mau estar face aos jesuítas era a
desproporcionalidade, motivada pela quantidade de membros da sua “ordem” e o
peso sócio-religioso que lhes dariam um imenso poder. Estas características eram
sublinhadas por uma eficiente máquina de doutrina e propaganda, vocacionada para a
6
comunicação com uma vasta massa populacional, tanto de carácter urbano e
metropolitano, com a existência das suas casas próprias em meio rural (onde
procediam a recrutamentos significativos); como colonial, voltada para o contacto e
conversão dos indígenas das missões existentes em territórios asiáticos e americanos.
Ao invés de alguma literatura alemã do século XIX, não se considera hoje a existência
de um “estilo jesuítico” autónomo, no entanto é frequente e aceitável a caracterização
das obras desta congregação como de “arquitetura jesuítica”, ou seja, na qual se
evidenciam características próprias que servem de padrão ao desenvolvimento, mais
ou menos adaptado às condições de cada território, de uma linha programática e a
uma retórica concretas, sucessivamente adotadas na Europa e em muitos territórios
ultramarinos. No entanto, do ponto de vista estilístico e apesar de dominar uma
tendência ligada ao classicismo romano, na verdade os Jesuítas nunca impuseram ou
se fecharam numa “ortodoxia” das ordens arquitetónicas clássicas, embora tenham
tido por base de trabalho as teorias de arquitetura, as relações geométricas e métricas
“canonizadas” por Vitrúvio e revisitadas por vários tratadistas, como Vignola.
7
Deste modo, a Igreja de Jesus em Roma, primeira igreja dos Jesuítas, é um “modelo”
síntese que influencia largamente as opções arquitetónicas usadas na edificação de
muitas outras igrejas na Europa e nos territórios ultramarinos.
No caso dos colégios existiam alunos internos e externos. Para os internos os espaços
deviam ser hierarquizados, devia haver aposentos para os mestres, padres e para
noviços, salas de recreio, jardins, horta, capelas destinadas aos exercícios espirituais e
diversas divisões usadas para as diversas funções diárias (cozinhas, despensas, oficinas,
barbearia, etc.). Já os alunos externos deveriam ter acesso através do exterior às salas
de aula, sem necessidade de interagir com a vivência das casas religiosas; bem como
existência de salas específicas como a Sala de Atos Literários ou de Conclusões
(destinadas à defesa das teses e exames finais), casas de estudo e livraria, etc. Todas
estas características são encontradas em Mafra, como expressão da aplicação dos
princípios de edificação postulados pelos jesuítas.
8
Dom João V - enquadramento histórico
império; bem como com a expressão de poder de uma monarquia absoluta encarnada
na pessoa do Rei, que urgia assumir no contexto interno e também como sinal de
prestígio externo.
Desde cedo, o rei estuda a hipótese de construir um novo palácio na capital, a edificar
no Terreiro do Paço (por ampliação do velho Paço da Ribeira), ou no sítio de Buenos
9
Aires (hoje entre a Estrela e o Bairro da Lapa), um lugar
sobranceiro ao Tejo, com um parterre natural e formando
uma encosta em anfiteatro, até ao rio.
Projetos de Filipe Juvarra para palácios na baixa e no sítio de Buenos Aires, em Lisboa (c.1719)
10
do Paço, então transformada em sede patriarcal, porém, é em Mafra que melhor se
cumpre o desígnio de criação de uma majestosa basílica ao modo romano.
O projeto de Buenos Aires foi abandonado ou protelado “sine die”, embora a
necessidade de albergar condignamente a Família Real e a corte em Lisboa se
mantivessem, dando origem à ocupação de áreas no alto das Necessidades, entre a
Ajuda e Belém (consolidando-se como alternativas a Buenos Aires).
Subsistem várias dúvidas quanto à edificação do palácio, convento e basílica de Mafra.
A primeira tem a ver com a decisão de edificação fora de Lisboa, depois a escolha do
local, por último a questão da autoria do projeto. Para compreendermos melhor as
questões colocadas há que ter presente o enquadramento cultural da época e os
“exemplos” europeus.
Os territórios nos arredores de Lisboa (na margem norte do Tejo: Loures, Vila Franca,
até Santarém; ou na margem sul: Alcochete, Almada, Azeitão, etc.) estavam já
tomados por uma rede urbana e rural muito sedimentada, não havendo, por isso,
possibilidade de agregar uma área adequada para uma grande propriedade régia. As
antigas quintas existentes eram pertença da grande nobreza e alto clero, muitas delas
constituíam vínculos perpétuos, as zonas francas eram habitadas por população que
tinha aí as suas residências e modos de vida… a aquisição de quintas (como se fez em
Belém), era excessivamente onerosa; a opção dos arredores imediatos de Lisboa era,
assim, inexequível. A opção de Sintra também não seria útil. Aí já existia um Paço Real,
nada ao gosto do rei nem do tempo, e a topografia do solo era excessivamente
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acidentada, não permitindo um assentamento expressivo e cenográfico, conforme à
sensibilidade barroca.
Embora as outras propostas não tivessem sido aceites, ainda assim é de considerar que
as opções formais básicas possam ter sido aproveitadas por Ludovice, dada a aparente
proximidade às opções propostas por Juvarra. Neste caso Ludovice surge “em cena”
dando voz a opções projetuais que seguramente foram inspiradas noutros projetos ou
modelos, e passados pelo fino olhar do monarca, porém o projeto de Mafra também
tem muito de “autoral”, dado que Ludovice desenvolve detalhadamente o projeto
para todo o palácio e convento (ampliado).
12
Carta topográfica… pormenor da marcação da Estrada Real de Lisboa a Mafra e
do assentamento do palácio de Mafra, Manuel da Maia, c. 1754
Do ponto de vista propagandístico e político podemos dizer que Mafra não tende a
copiar o Escorial mas, se tal abordagem puder ser feita, seria muito mais uma forma de
integrar uma linguagem de manifestação de poder face a Espanha e à restante Europa,
como estratégia de afirmação de Portugal como reino independente e assinalando a
legitimidade da Dinastia de Bragança.
13
Dado que em Mafra confluem várias funções: palácio,
basílica e convento, é também normal que se explorassem
várias fontes de inspiração para o desenho e execução desta
obra, aqui entrando a influência clara da arquitetura italiana
(note-se a forte influência borrominiana, mas também a
participação clara dos arquitetos jesuíticos, nomeadamente
através de Ludovice, com formação germânica e romana).
Planta do Mosteiro
de São Lourenço do Escorial
Palácio Nacional de Mafra – Volumetria e áreas funcionais Palácio Nacional de Mafra - Planta do piso 1
(incluindo basílica e área conventual)
14
A tratadística jesuítica na Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra
1
Ao denominarmos o monumento de Mafra por “Real Edifício de Mafra”, estamos a usar uma terminologia
abrangente designado o imóvel e as suas várias valências: um espaço palaciano, um espaço de culto, uma casa
religiosa (depois adaptada a quartel militar), um jardim de apoio à residência palaciana e ao convento e uma tapada
de uso exclusivo da Família Real. Independentemente desta circunstância podemos usar no texto outras
designações mais restritas, como “Palácio de Mafra”, ou “Convento”, etc., quando nos referirmos a partes
específicas do imóvel relativamente às suas funções.
2
Considerámos nesta abordagem a obra de Martino Bassi: Dispareri in materia d’architettura et perspettiva…,
datada de 1572, única obra do século XVI na secção de arquitectura existente nesta biblioteca, dado que a mesma
ainda tinha aceitação no século XVIII, tendo tido, por exemplo, uma reedição da mesma publicada em Milão, em
1771.
15
e políticos, mas também para o conhecimento do que mais relevante poderia haver na
constituição de uma base de dados útil para a prática da arquitetura e da engenharia.
3
Destacamos essencialmente dois importantes autores de catálogos iconográficos, nomeadamente os produzidos
por Borromini e pelos impressores Rossi (cf. bibliografia).
4
BETTINUS, Mario – Apiaria universae philosophiae mathematicae in quibus paradoxa et nova pleraque
machinamenta ad usus eximios traducta & facillimis demonstrationibus confirmata... . Bolonha, Ionannes Baptistae
Ferronij, 1642
16
mathematicae deve ser tida em dois contextos distintos: por um lado, internamente, a
obra é um articulado compilado por Bettini, mas ao qual não é alheio o génio científico
de Christoph Grienberger; por outro lado, trata de vários assuntos, dos quais ressalva a
leitura matemática e astronómica, facto importante nos estudos prévios e formação
polifacetada dos arquitetos do tempo, em especial daqueles que, como João Frederico
Ludovice, provinham dessa estrutura eclesiástica (simultaneamente filosófica e
científica).
As obras constantes em Mafra são uma súmula dos seus tratados, nomeadamente:
Elementa Geometriae (Antuérpia, 1654), Arithmeticae Theoria et Praxis (Louvaina,
1656), Cylindricorum et annularium, (Antuérpia, 1659) e Elementa Euclideae,
geometriae (Amsterdão, 1725), escritos sobretudo de
apoio às aulas de matemática nos colégios jesuíticos
alemães. De todas as obras referidas, a Elementa
geometriae foi aquela que, por cerca de 100 anos, foi
tida como elementar, tendo tido várias traduções e
edições. Tratando de um tema fulcral para a formação
de arquitetos, alguns deles também comentaram a
obra de Euclides à luz da interpretação de Tacquet,
refletindo sobre as questões do rácio e das
proporções em arquitetura. Além dos títulos
referidos, Tacquet escreveu também sobre
astronomia, trigonometria, geometria prática e sobre
fortificações, temas extremamente importantes para
o contexto formativo dos arquitetos de final do século Juan Caramuel Lobkowitz (1606-1682)
5
TACQUET, André – Opera Matemática. Antuerpia, Henricus & Cornelium Verdusen, 1707
17
De Juan Caramuel Lobkowitz, nascido em Madrid em 1606 e falecido em 1682,
contemporâneo de Tacqet, há que referir que, na Biblioteca do Palácio de Mafra,
consta de vasta coleção de 40 obras dedicados a vários temas, uma parte ínfima do
número de títulos que publicou (cerca de 262 obras conhecidas), abarcando vários
domínios como a teologia, direito canónico, lógica, metafísica, ascetismo, gramática,
poesia, oratória, política, sinologia, chegando à matemática, astronomia e física. Este
vasto conhecimento de tantas matérias valeu-lhe o reconhecimento de Doutor na
prestigiada Universidade de Lovaina (1668) e como tal também a fama na Europa e em
especial nos territórios dos Habsburgo espanhóis.
Caramuel redigiu três volumes Architectura civil recta y obliqua (Vigevano, 1678), que
se manteve como o mais significativo tratado espanhol sobre arquitetura e que não
deixou, seguramente, de ser observado pelos arquitetos e engenheiros portugueses ao
tempo de Mafra, pese embora não tenha sido, a nosso ver, uma peça determinante
em termos de influência no Real Edifício, apostada que estava numa abordagem
arquitetónica diversa em estreita associação à arquitetura moderna jesuítica. Apesar
de tudo a obra de Caramuel é relevante, já que, tendo como ponto de partida a obra
de Vitrúvio, analisa as questões ligadas à afirmação da arquitetura como ciência, facto
que não é despiciente no panorama formativo do século XVII.
6
No século XV foram descobertos cerca de 15 tratados parcelares sobre arquitetura, alguns deles levantando
dúvidas quanto à autoria. O tratado de Vitrúvio, também não totalmente isento de problemas de autoria, manteve,
contudo, uma coerência e foi a principal fonte para a reapreciação da arquitetura clássica.
18
Embora tendo vivido num contexto pré-barroco,
Vignola assume um papel de destaque na
implementação dos valores da arquitetura clássica e
pela sua expansão no contexto europeu quer em
outros pontos do mundo (de que Goa, Macau ou
algumas cidades brasileiras são exemplo).
Ambas as estruturas (cúpula de São Pedro e Igreja de Jesus) são muito relevantes para
o projeto mafrense, já que no que respeita à Basílica aí edificada, muitas das opções
advêm desta autoridade.
A Regola (ou regra) de Vignola é um tratado dirigido aos profissionais e num contexto
extremamente prático, permitindo, assim, a partir de um único elemento e sabendo-se
a que ordem pertence a construção, determinar com exatidão as dimensões das
7
A edição presente em Mafra é muito posterior: VIGNOLA, Jacomo Barocci da – Regla de las cinco ordenes de
architectura de Jacome da Vignola… . Madrid, Isidro Colomo, 1702
19
restantes partes, o que era francamente relevante se considerarmos que muitas das
obras eram geridas a grande distância e os elementos construtivos eram, muitas vezes,
trabalhados nas pedreiras e não em estaleiro de obra.
Pozzo revela, na sua obra, estar perfeitamente familiarizado com os grandes tratados e
com a obra dos maiores arquitetos antecedentes e do seu tempo. Assume-se, assim,
8
POZZO, Andrea (Andreas Puteus) – Perspectiva pictorum atque architectorum. Augsburgo, Peter Detleffaen, 1719.
20
como herdeiro de uma tradição, mas estabelece um novo patamar de abordagem à
arquitetura ao tratar de um aspeto muito relevante e que estava a emergir,
nomeadamente a necessidade de oferecer ao olho humano um conjunto de valores
(reais ou ilusórios) que vincassem o carácter das obras de arquitetura; ou seja, tende a
tratar os temas da arquitetura não no plano bidimensional, mas tridimensional, o que
obrigou a uma nova conceção teórica e formal a que se associava a necessidade de
conhecimento profundo da matemática e da geometria.
O domínio das técnicas construtivas seria um dos campos mais relevantes para a
formação dos engenheiros e arquitetos, dada a complexidade e magnitude de obras de
grande volumetria, como Mafra.
21
Jean du Breuil (1602-1670) que escreveu, com o pseudónimo de Bitainvieu Silvère, a
obra L’art universel des fortifications9, recebeu a sua formação em Roma e dedicou-se
à análise das fortificações militares das principais potências militares europeias do seu
tempo, criando, assim, um compêndio para o estudo e ensino desta matéria, além do
que este mesmo tratado cumpria, possivelmente, uma missão mais ambígua (de dar a
conhecer as vantagens e fragilidades dos sistemas militares existentes em cada um dos
países que aborda, nomeadamente França, Holanda, Espanha e Itália, classificando as
estruturas em quatro tipos). Este tratado, no entanto, reveste-se de uma natureza
prática também associada ao ensino da matemática, da geometria e do desenho, e
particularmente dirigida aos membros da nobreza que tinham a missão de servir
militarmente os seus estados.
9
BITAINVIEU, Silvère de (BREUIL, Jean du) – L’art universel des fortifications françaises, hollandoises, espagnoles,
italiennes et composées. Paris, Jaques Du Breuil, 1674
10
CASSANI, José – Escuela militar de fortificación ofensiva y defensiva, arte de fuegos y escuadronar. Madrid,
González de Reyes, 1705
22
jogos de água e fontanários, dos quais em Mafra se sente uma falta relativa por
comparação a outros palácios seus contemporâneos na Europa11.
Outros nomes serão de considerar para áreas concomitantes à arquitetura, mas cuja
relação nem sempre é linear. Uma destas autoridades será o sábio alemão jesuíta
Athanasius Kircher (1601-1680), renomado
matemático, físico e alquimista, que em Mafra tem
várias obras em diversas secções, duas delas sobre
obeliscos egípcios e hieróglifos, e outra sobre a
China e seus monumentos; obras que
aparentemente não influenciam a obra de Mafra,
mas que ainda assim são testemunho de um tipo de
conhecimento que poderia não ter estado distante
dos interesses do Rei. Note-se que muitas vezes os
obeliscos eram, por exemplo, usados como
ornamentações de espaços públicos e geralmente
associados a jogos de água, modelo aliás seguido no
11
A questão do abastecimento de água ao Palácio era muito relevante, pois além dos mananciais naturais
existentes nas suas imediações, foi ainda necessário captar águas de outros pontos e canaliza-las para serviço dos
vários tanques existentes, e para os 66 pontos de fornecimento de água existentes em várias dependências do Real
Edifício (cozinhas, lavatórios, etc.), conforme notícia de Guilherme José de Carvalho Bandeira, no seu manuscrito
Relação do Convento de Santo António de Mafra suas Oficinas e Palácios que se fundaram místicos ao dito
Convento…”, no qual se coligem notas recolhidas cerca de 1744. É também sabido que estava prevista a construção
de um grande fontanário com figuras a jorrar água frente à fachada do palácio, facto coerente com outros
monumentos idênticos e que nitidamente se encontram em falta em Mafra.
12
Também deste autor, em Mafra, existe um outro tratado, La science des ingénieurs dans la conduite des travaux
de fortification et d'architecture civile, de 1729.
23
A tratadística de arquitetura - influência no Palácio Nacional de
Mafra
A tratadística, como vimos, era uma das bases de formação dos arquitetos do século
XVII e XVIII e invariavelmente, no caso do Palácio-convento de Mafra, a sua influência
terá sido muito grande.
A dimensão deste imóvel e o rigor sob o qual ele foi projetado e construído, implicam
um profundo conhecimento das várias áreas temáticas que assinalámos no contexto
da coleção de tratados na secção de arquitetura da biblioteca palatina de Mafra, sendo
notável a existência de mais de mais de meia centena de autores representados nesta
biblioteca, que refletem, através das suas obras, sobre o estatuto do arquiteto;
filosofia e matemática; tratados clássicos, ordens arquitetónicas; catálogos
iconográficos; engenharia e métodos construtivos; arquitetura militar e geografia;
hidráulica e jardins; e arquitetura de interiores, arquitetura efémera e decoração.
A mera existência de tantas obras literárias sobre arquitetura (de carácter teórico e
prático) é, por si só, um sinal da grande importância dispensada a este assunto e da
relevância que a mesma deverá ter tido nesta e noutras construções.
Para além da grande experiência em obra tida por Ludovice, arquiteto responsável
pelo acompanhamento da obra de Mafra, ou outros grandes mestres que nela
trabalharam, como o arquiteto e engenheiro Custódio Vieira (c.1690-c.1744); ou ainda
outros que se presume estarem a ela ligados como os italianos Carlo Fontana (1634-
1714), Filipo Juvarra (1678-1736) e António Canevari (1681-1764), o húngaro Carlos
Mardel (c.1695-1763), o maltês Carlo Gimac (1655-1730), entre outros; é de considerar
a importância das suas formações teóricas, facto que, apesar das diversas origens,
ainda assim lhes dá alguma coerência como seguidores de uma mesma corrente
barroca.
Ao que se supõe, foram vários os projetos apreciados pelo rei, até que este tomou a
decisão de se guiar pelo que foi proposto por Ludovice, eventualmente dado a sua
presença na corte e pelos contactos formais com a arquitetura romana jesuítica.
Infelizmente não chegaram até aos dias de hoje os desenhos originais, perdidos no
grande terramoto de 1755 ou já mais recentemente, matéria que seria preciosa para
24
avaliar alguns aspetos do raciocínio, hesitações, correções, etc., que presidiram às
opções tomadas.
Todas estas construções romanas do final do século XVI e de todo o século XVII, são já
a clara afirmação de uma “reforma” dos valores renascentistas que tinham sido
preconizados por Alberti (1404-1472), Bramante (1444-1514), Rafael (1483-1520) e
Michelangelo (1475-1564), Baldassare Peruzzi (1481-1537), Serlio (1475-1554) ou
Palladio (1508-1580), agora sedimentados num “estilo” com forte peso dramático e
expressão máxima do poder terreno e Divino, cujos protagonistas são Vignola (1507-
1573), Della Porta (1535-1615), Domenico Fontana (1543-1607), Carlo Maderno (1556-
1629), Bernini (1598-1680), Borromini (1599-1667), entre outros. Vignola surge, no
entanto, assim, como um marco na afirmação do Barroco, estabelecendo regras
estéticas e formais que passam a ser indefetíveis na prática da “boa” arquitetura até
final da Idade Moderna.
Mafra é um espelho das doutrinas arquitetónicas expressas, entre outras, no uso das
ordens arquitetónicas, sendo de referir que o uso das mesmas é realizado de acordo
com a métrica de Vignola.
25
As ordens arquitetónicas são sistemas arquitetónicos que detêm particulares
diferenças nas proporções e de linguagem estilística, remetendo para duas origens:
grega e romana, nomeadamente nas ordens jónica, dórica e coríntia, ou toscana (uma
versão simplificada do Dórico) e compósita (que integra o Jónico e Coríntio),
respetivamente.
A Ordem Toscana simplifica o modelo Dórico, deixando o fuste liso, mas usando
também o friso com métopas e tríglifos, exemplo que podemos observar nos dois
claustros palatinos a norte e a sul do complexo palaciano.
26
Claustro palatino sul (Ordem Toscana adaptada da Ordem Dórica)
27
Maquete em madeira 1:1, para capitéis da basílica de Mafra
(Ordem Jónica moderna)
Basílica de Mafra – Fachada principal, piso da Galeria das Bênçãos (Ordem Coríntia moderna)
Basílica de Mafra – torres sineiras e zimbório, pormenor do sistema de colunas (Ordem Coríntia moderna)
28
Conclusão
Esta arquitetura “nova”, barroca, foi promovida sobretudo pelos Jesuítas, cuja
presença social e religiosa se torna galopante nos séculos XVI e XVII. A expressão
arquitetónica jesuítica (que não é um estilo, mas um “modo”), passou a ser um
instrumento de grande eficiência em termos de afirmação de uma imagem.
29
Note-se que a arquitetura jesuítica é um instrumento da própria contrarreforma, na
qual se pretendia uma maior depuração. O desenho de plantas, alçados e diversos
elementos constitutivos do espaço de culto (ou de áreas residenciais ou educativas),
obedecia, assim, à regra da utilidade.
Embora não possamos dizer que Mafra é uma obra destinada aos Jesuítas em Portugal
(pese embora a sua relação com a Aula dos Estudos que aqui se desenvolveu), é
postulável que esta obra integre não apenas os princípios que esta congregação seguia
nas suas edificações, como ainda é notório o lastro de conhecimentos do arquiteto
responsável, com uma formação teórica e prática colhida no contexto jesuítico,
sublinhado pela sua passagem por Roma, centro de emanação da arquitetura barroca,
algo propagandística e associada ao poder da Igreja Católica, no contexto da
contrarreforma. Em Mafra inteligentemente adotam-se os mesmos princípios
arquitetónicos (construtivos, estilísticos, e também simbólicos e propagandísticos),
associando este poder da Igreja ao poder do próprio monarca.
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Fontes Bibliográficas, Bibliografia Crítica e Fontes Iconográficas
FONTES BIBLIOGRÁFICAS:
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d'architecture civile. Paris, Claude Jombert, 1729
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machinamenta ad usus eximios traducta & facillimis demonstrationibus confirmata... . Bolonha, Ionannes Baptistae
Ferronij, 1642
BITAINVIEU, Silvère de (BREUIL, Jean du) – L’art universel des fortifications françaises, hollandoises, espagnoles,
italiennes et composées. Paris, Jaques Du Breuil, 1674
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Amsterdão, Joannem Janssonium & Elizeum Weyerstraet, 1667
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intentata obelisci hieroglyphici quem non ita pridem ex veteri Hippodromo Antonini Caracallae Caesaris, in Agonale
Forum transtulit, integritati restituit, & in vrbis aeternae ornamentum erexit Innocentius X, Pont. Max. In quo post
varia Aegyptiacae, Chaldaicae, Hebraicae, Graecanicae antiquitatis, doctrinaeque quà sacrae, quà profanae
monumenta, veterum tandem theologia, hieroglyphicis inuoluta symbolis, detecta è tenebris in lucem asseritur.
Roma, Ludovici Grignani, 1656
POZZO, Andrea (Andreas Puteus) – Perspectiva pictorum atque architectorum. Augsburgo, Peter Detleffaen, 1719
TACQUET, André – Opera Matemática. Antuerpia, Henricus & Cornelium Verdusen, 1707
VIGNOLA, Giacomo Barocci da – Regla de las cinco ordenes de architectura de Jacome da Vignola… . Madrid, Isidro
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