A Harmonia Do Mundo - Marcelo Gleiser
A Harmonia Do Mundo - Marcelo Gleiser
A Harmonia Do Mundo - Marcelo Gleiser
Vidas não podem ser fielmente
registradas em papel, sobretudo
aquelas que merecem ser recontadas.
Mas, se cabe ao escriba, honesto em
seu propósito, a missão de relatar
uma vida, o relato, inevitavelmente
desfigurado e incompleto, consistirá
na soma de várias histórias.
PARTE I
Tübingen
Quando a furiosa tempestade ameaça
naufragar o Estado, nada mais nobre nos resta
fazer senão ancorar nossos estudos no chão
firme da eternidade.
Johannes Kepler, carta a Jakob Bartsch,
6 de novembro de 1629
1
“ M estre,
ombros.
mestre, acorde!”, gritou Maria, sacudindo Maestlin pelos
28 de abril de 1594
Minha viagem foi ruim como eu imaginava e durou
quase um mês inteiro. As estradas estavam péssimas,
lama misturada com restos de neve e gelo, poça atrás
de poça. Como é distante essa Estíria, meu novo lar
só Deus sabe por quanto tempo! Ao chegar a Graz,
confesso que me surpreendi. Suas altas muralhas
dão-lhe uma dignidade inesperada. Construída sobre
uma colina, cortada pelo rio Mur, a cidade lembra
um pouco minha adorada Tübingen. Contudo, se a
geografia me traz boas lembranças, não posso dizer
o mesmo das pessoas. Ninguém aqui parece
interessar-se por astronomia ou por qualquer assunto
remotamente ligado à filosofia natural. Os habitantes
de Graz encaram os céus como uma espécie de
oráculo, querem horóscopos e prognósticos baseados
em superstições infantis. Embora eu veja com
otimismo o lado financeiro disso — farei muitos
mapas astrológicos —, sei que depressa me cansarei
da companhia das pessoas deste lugar…
Com um bocejo, Maestlin fechou o livro. Era tarde. Não tentaria resistir,
tivera um longo dia. Ademais, queria absorver cada página, cada palavra, com
a mente fresca.
Na manhã seguinte, quando o velho mestre se levantou, ainda de
madrugada, o filho de Kepler já havia partido. O quarto estava perfeitamente
arrumado, tudo no devido lugar, como se ninguém tivesse dormido ali.
Maestlin olhou em torno, perplexo, e se perguntou se o episódio tinha de fato
ocorrido ou se fora mais um de seus sonhos, ainda que perversamente real.
Qualquer que fosse a explicação, o diário estava onde ele o deixara, no topo
da pilha, esperando para ser lido.
9
21 de julho de 1595
Deus seja louvado! Após horas e horas de agonia,
finalmente encontrei a resposta que procurava, a
solução para o mistério cósmico! Eu, Johannes
Kepler de Weil, humilde mortal que sou. Havia
tentado inscrever e circunscrever triângulos,
quadrados, pentágonos, variando a ordem,
calculando, para cada arranjo, as distâncias ao
centro. Nada funcionava, nenhum arranjo reproduzia
as distâncias medidas pelos astrônomos. Exausto,
lembrei-me de que o número de figuras planas é
infinito: em princípio, deveriam existir infinitos
arranjos, um absurdo. Como Deus escolheria um
determinado arranjo? Não, a solução tinha de ser
única, absolutamente incontestável, digna da
elegância da mente divina. Foi então que percebi
minha própria estupidez. Deus não usaria figuras
planas, bidimensionais, para criar um cosmo que
existe em três dimensões! Claro! Usaria a geometria
dos sólidos tridimensionais, de modo que forma e
simetria preenchessem todo o espaço. E quantos
sólidos perfeitos existem em três dimensões? Cinco!
Apenas os cinco sólidos que Platão considerava as
formas mais puras, os arquétipos da Criação. Não há
dúvida de que foram essas as figuras que Deus usou
para construir o cosmo, uma dentro da outra,
separadas por esferas ocas, onde os planetas giram
em suas órbitas em torno do Sol, que, do centro,
espalha sua gloriosa luz por todo o espaço.
Nenhum arranjo poderia ser mais elegante e
perfeito por ser único! Miraculosamente, encontrei
as respostas para as questões que me afligiam. Sim,
digo que foi um milagre, uma revelação de Deus a
este humilde servo. Existem apenas cinco sólidos
perfeitos. Portanto, apenas seis esferas podem ser
interpoladas entre eles: esfera – sólido – esfera –
sólido etc., começando pela de Mercúrio, a mais
próxima do Sol. A conclusão era inevitável: o número
de planetas é consequência do número de sólidos
perfeitos! Qual outro arranjo poderia ser mais
harmonioso? Qual outro arranjo é mais digno da
mente de Deus? E, como se por mágica, as distâncias
entre os planetas, sim, mesmo elas, fixadas pela
geometria, concordam com as observações! Após
algumas tentativas, encontrei a ordem correta: o Sol,
no centro, seguido da esfera de Mercúrio, cercada
por um octaedro. Depois, a esfera de Vênus, cercada
por um icosaedro. A da Terra, cercada por um
dodecaedro. A de Marte, por um tetraedro. A de
Júpiter, por um cubo. E, por fim, a esfera de Saturno.
É essa a solução do mistério cósmico!
Este é o dia mais feliz da minha vida! Chorei como
um bebê, e jurei devotar a vida a Deus através de
minha astronomia. Serei um apóstolo da razão, longe
do altar mas perto Dele, de Sua mente. Quando
retornar a Tübingen, será como astrônomo, não
como teólogo.
Tenho de escrever imediatamente para Maestlin,
meu amado mentor. Ele sabia, tinha previsto que isso
iria acontecer…
Maestlin olhou para a pilha de cartas enviadas por Kepler, nas quais este
relatava os detalhes de sua descoberta, solicitando dados astronômicos,
fazendo inúmeras perguntas. “Uma mente magnífica, única”, pensou,
“alimentada pelo amor a Deus, como um profeta, um santo. Ele foi o
escolhido, o que enxergou mais longe que todos… E, em meio ao êxtase
criativo, pensou em mim, em seu ‘amado mentor’. Esqueceu-se apenas de
acrescentar ‘medíocre’, ‘amado e medíocre mentor’.”
28 de setembro de 1595
Eu saboreei a ambrosia dos deuses, mas não me
satisfiz. Meu arranjo cósmico explicava por que
havia apenas seis planetas girando em torno do Sol.
Justificava também, com precisão razoável, suas
distâncias ao Sol. Porém, razoável não é suficiente
para o que foi criado por Deus. A compatibilidade
tem de ser total! Qual, então, a razão da
disparidade? Será que vem do sistema desenhado por
Deus, baseado somente na razão e nas proporções
perfeitas da geometria, ou das medidas tomadas por
homens falíveis, que medem os céus com seus olhos
imprecisos? Claro, a razão só poderia ser essa.
Tenho de escrever a Maestlin solicitando melhores
dados.
1º de outubro de 1595
Desde quando defendi as ideias de Copérnico no
debate em Tübingen, suspeitava que devia haver uma
relação entre as órbitas e os movimentos dos
planetas, entre suas distâncias ao Sol e o tempo que
levam para circundá-lo. Mais uma vez, Deus
iluminou minha mente com Sua sabedoria, e
encontrei a resposta! Creio que existe uma alma, um
espírito, no centro do Sol, responsável pelos
movimentos dos planetas. E, como o Sol é a fonte de
toda a luz, talvez seja ela a manifestação desse
espírito, a causa dos movimentos. Enquanto refletia
nessas questões, olhei para a vela sobre a mesa e,
pondo as mãos em volta dela, vi como seu calor e sua
luz enfraquecem ao distanciar-se do centro. O mesmo
deve ocorrer com a fonte dos movimentos que emana
do Sol! Brilhando no coração do cosmo, a força da
luz divina diminui inversamente com a distância, o
que explica por que os planetas mais distantes se
movem mais devagar.
Um planeta distante não só viaja num círculo maior,
como também recebe menor influência do Sol: seu
movimento é duplamente enfraquecido. Mais uma
vez, ao comparar as previsões dessa hipótese com as
observações astronômicas, obtive excelente
compatibilidade! Não me resta dúvida de que a
geometria é a linguagem usada por Deus para
estruturar o cosmo. E Sua luz determina os
movimentos das esferas celestes. Tudo agora faz
sentido! O cosmo é um reflexo da Santíssima
Trindade: Deus, o Sol, no centro; o Filho, a esfera
das estrelas fixas, e o Espírito Santo, o espaço que
une o centro à periferia, a ligação que dá unidade a
tudo o que existe.
Maestlin balançou a cabeça, discordando. Nem mesmo agora podia aceitar
a obstinação de Kepler, a insistência dele em encontrar a causa física dos
movimentos celestes ou, pior ainda, sua causa metafísica. “Que espírito é esse
que emana do Sol como a luz de uma vela? Não, isso não é astronomia, nunca
foi e nunca será! Astrônomos medem os céus, não procuram causas. Mas
Kepler nunca me ouviu: sua visão falava sempre mais alto. Queria
transformação, mudança. E eu, com medo, recusei-me a segui-lo. Conhecia os
riscos, o preço a ser pago. Enquanto escolhi a tradição, ele escolheu o
caminho do novo, sem medo de arriscar… ‘Mestre, precisamos urgentemente
de melhores medidas das distâncias! Tenho certeza de que, com elas, seremos
capazes de demonstrar que minha solução para o mistério cósmico é perfeita!’
E eu o ajudei… calculei as distâncias, colhi e analisei dados, e até
supervisionei a publicação do livro dele, que poderia ter sido nosso. ‘Esses
resultados vão torná-lo famoso, mestre, imortal…’ Não, Johannes, o único
imortal aqui é você… eu fui apenas o parteiro que deu à luz sua fama.
Continuo e continuarei a ser um desconhecido, um mero apêndice de sua
magnífica obra.”
Fechou o livro e ergueu os olhos para a corda que pairava, impassível,
sobre sua cabeça. Maria devia chegar a qualquer momento.
11
F azia mais de uma semana que Maestlin não tocava no diário. Irritava-se
ao pensar no que lera da última vez, na audácia de Kepler, nas
divergências de opinião, na discórdia que o afastara dele. Escondeu o
pequeno livro numa gaveta, tentando esquecer-se de sua existência. Será que
Ludwig tinha razão? Será que devia parar de revirar o passado? Sentiu o
mesmo conflito, as mesmas dúvidas de décadas antes. A diferença era que,
agora, sua raiva não se dirigia apenas a Kepler; dirigia-se a ele mesmo, por
não ter entendido o novo, por não ter tido coragem de aceitá-lo, por ter sido
humilhado pelo pupilo, que via tudo tão nitidamente, enquanto ele via cada
vez menos, cego de orgulho e preconceito. Procurou lembrar-se do momento
em que ocorrera a ruptura: talvez após a publicação do Mistério , ou até antes
disso. Já no debate as coisas estavam bem claras. Sentiu-se usado por Kepler,
sempre pedindo favores, querendo isso ou aquilo, sempre com pressa, tão
enervante. E as disputas teológicas não ajudavam; Kepler questionava as
doutrinas luteranas, ameaçava a hegemonia delas. Juntar-se a Kepler seria
sacrificar a estabilidade, o conforto, a paz artificial que covardes como
Maestlin cultivam tão avidamente. Sentia raiva por ter sido vítima da própria
mediocridade, por ter destruído a única chance de imortalizar-se. E, agora,
Kepler estava morto, e ele continuava vivo, sozinho, em busca de redenção.
Mas os mortos não perdoam os vivos…
Pelo menos havia o diário, sua última ligação com Kepler. Não repetiria os
mesmos erros, não tinha tempo para isso. Procurou por algo escrito no início
de 1596, pouco antes de Kepler ir a Tübingen.
26 de fevereiro de 1596
Esse projeto estúpido ainda vai me deixar louco!
Por que tive de inventar isso? Sempre querendo
agradar a nobreza… Mas que posso fazer? Preciso
encontrar patronos, sujeitar-me à ignorância deles.
Meu modelo, a maravilhosa réplica do arranjo
cósmico, transformou-se num pesadelo. Aqui estou,
preso em Stuttgart, dividindo aposentos com os
empregados do palácio, perdendo tempo com
artesãos incompetentes. E isso depois de passar uma
semana inteira construindo um modelo de papel. O
duque queria que construísse um de cobre. E com que
dinheiro, Vossa Excelência, com que dinheiro?
Desculpe-me, senhor, mas vai ter de ser de papel
mesmo!
Não fosse a generosa carta de meu mestre Maestlin,
explicando-lhe a elegância de meu modelo cósmico,
nem isso eu teria conseguido. Finalmente, o duque
deu permissão para um modelo bem mais humilde,
apenas de prata. Não quero parecer ingrato, mas o
projeto agora é praticamente inútil. Mesmo que
venha a ser construído, não se comparará à ideia
original, que era fazê-lo em ouro e prata, os espaços
entre as esferas cheios de bebidas diversas e
conectados por tubos para que as pessoas pudessem
bebê-las: o Sol, aguardente; Mercúrio, conhaque;
Marte, vermute… O signo zodiacal de cada planeta,
esculpido em pedra preciosa, adornaria sua esfera:
Saturno, em diamante; Júpiter, em jacinto; a Lua, em
pérola…, refletindo a graciosidade de um cosmo
criado pela mente de Deus.
Ainda assim, não vou desistir!
15 de abril de 1596
Esses artesãos vão acabar comigo. Não aguento
mais ficar aqui, sinto a mente murchar como planta
sem água. Vou até Tübingen saciar essa sede, visitar
meus mestres, supervisionar a publicação de meu
livro. Tenho certeza de que mestre Maestlin me
ajudará. Depois volto e tento concluir esse projeto
dos infernos, antes de retornar a Graz. Peço a Deus
que Bárbara perdoe minha ausência prolongada…
O velho mestre sorriu. “Projeto dos infernos, deveras…” Após anos de
frustrações, nunca foi concluído, pobre Johannes! Dirigiu-se à estante sobre a
lareira, onde guardava diversos livros de astronomia, os de Kepler e outros.
Pôs uma acha no fogo. Lá estava ele, o Mistério cosmográfico , a descrição da
geometria cósmica. Abriu-o na primeira página. Maestlin fez de tudo para dar
vida a este volume, corrigindo-o, embelezando o texto e os diagramas,
divulgando-o entre homens que, como nós, ocupam-se dos segredos do céu.
Seu entusiasmo inicial, tão importante, levou este pequeno livro a ser enfim
publicado em 1596… “Esta é a segunda edição, de 1621”, pensou Maestlin.
“Esta nota não se encontra na primeira edição. Nem poderia! O ‘entusiasmo
inicial’ transformou-se em raiva apenas alguns anos mais tarde… E pensar
que o parteiro deste livro fui eu, que ia à gráfica duas vezes por dia conversar
com os editores, resolver problemas, enquanto Kepler me bombardeava lá de
Graz com suas cartas e pedidos.” — “Este livro o fará imortal, mestre…”
Maestlin fechou o volume, olhou para o fogo e invejou a inquietação das
chamas, a energia que ele já não tinha. Dançavam com tal entusiasmo que
pareciam ter um objetivo; cada padrão momentâneo parte de uma mensagem,
uma letra num alfabeto infinito de formas. “Talvez as chamas dancem para
celebrar sua liberdade, sua fuga da matéria, que as aprisiona”, pensou. “Cada
dança conta uma história, jamais a mesma, da transformação gradual da
madeira em fogo e cinzas. Não é o que acontece com os homens? Não somos
também invólucros de carne e osso feitos para conter as chamas de nossas
almas, evitando que escapem, cada uma contando sua história, diferente da
história das outras? Não ardemos também até se extinguir a última chama?
Até que nossas almas deixem sua prisão material, até que, finalmente livres,
ascendam aos céus, juntando-se às chamas que lá brilham por toda a
eternidade, e unam-se a Deus?… Os que vivem mais tempo são aqueles que
mais sofrem, os últimos a consumar sua união com Deus. Seria uma dádiva se
nossas chamas pudessem brilhar com a mesma intensidade todos os dias de
nossas vidas, em vez de sofrer esse obscurecimento inexorável. Essa é a
agonia da velhice, a vida reduzida a mera fagulha, fraca demais para brilhar
com a incandescência do novo mas ainda enclausurada no corpo, incapaz de
ascender aos céus, de gozar a prometida paz eterna.”
Uma acha rolou para perto das brasas e começou a chiar, interrompendo os
pensamentos de Maestlin. A sala inteira brilhava com a intensidade das
chamas, como para provar ao velho mestre que estava errado, que chamas que
parecem quase mortas podem ainda ser atiçadas. Ele não conseguia desviar os
olhos da lareira. Os tons de vermelho e de laranja misturavam-se em formas
pontiagudas, imagens revolviam-se na mente dele, ora nítidas, ora turvas. Viu
uma nuvem incandescente, uma casa, um anjo de asas abertas, uma esfera
com olhos e barba, um sorriso, um rosto familiar… Um rosto? Não, não podia
ser! Maestlin ficou horrorizado. No meio das chamas flutuava o rosto de
Kepler, era feito delas, e sorria, demoníaco, provocando-o, humilhando-o. O
mestre enfim desviou os olhos da lareira e cobriu a face com as mãos. Sua
testa ardia, sentiu-se tonto, enfraquecido. Pensou em atirar o livro ao fogo,
exorcizar o demônio que o possuíra. Mas não poderia fazê-lo, era escravo do
texto, das respostas que lá estavam. Em vez disso, atirou-o ao chão.
Após três longos e inúteis meses em Stuttgart, Kepler não via a hora de
conversar novamente com seus mestres, para discutir temas mais profundos
que o preço da prata ou a forma dos moldes para os sólidos platônicos. Parou
em frente à casa de Maestlin, e tentava controlar a emoção antes de bater à
porta, quando Margaret a abriu.
“Ora, ora, se não é o jovem Johannes, recém-chegado do palácio ducal!
Entre, entre. Michael está à sua espera, não fala em outra coisa.” Kepler
sorriu, intrigado. Margaret não era das pessoas mais efusivas que conhecia.
“Ah, finalmente você chegou!”, exclamou Maestlin, abraçando-o.
“Caríssimo mestre! Mil perdões pelo atraso. Minha mula, coitada,
enlouqueceu com tantos trevos e flores crescendo nos campos; parava a cada
minuto. A primavera está belíssima e me faz sentir muitas saudades daqui.”
“É verdade, o clima tem estado excelente, sobretudo após outro terrível
inverno. E então, Johannes, como anda o projeto do cálice cósmico? Ficou
sabendo que enviei uma carta ao duque, dando meu apoio a você, não?”
“Ah, mestre, nem me fale. Sua carta ajudou muito, sem dúvida, mas o
duque no final optou por um modelo de prata, e os artesãos simplesmente não
têm a menor ideia de como fazêlo. Mais uma vez fica provada a inteligência
superior de Deus, se nem mesmo os melhores artesãos conseguem reproduzir
Sua obra.” Kepler suspirou. “Não, mestre, vamos falar do que é realmente
importante: a publicação do manuscrito.”
“Recebi a cópia que me enviou”, disse Maestlin, subitamente sério. “Você
sabe o quanto admiro seu modelo cósmico baseado nos sólidos platônicos. No
entanto, como tenho certeza de que também sabe, o livro contém algumas
ideias que causarão problemas. Aliás, Hafenreffer gostaria de conversar com
você hoje após o jantar.”
“Ótimo, mestre, com prazer.” Kepler tentou disfarçar o nervosismo.
“Esperava mesmo problemas. Não esqueci o debate de 1593…”
“Eu tampouco. De qualquer modo, está na hora, devemos ir andando. O
conselho deliberativo está ansioso por revê-lo.”
Uma vez mais, mestre e pupilo andaram pelas ruas de Tübingen. Um
carrilhão badalava em uníssono, parecendo celebrar o retorno de Kepler. Ou
estaria prevenindo-o? O mesmo carrilhão havia soado quando sua vida
deixara de ser sua, quando seu destino fora retraçado pelos mestres a quem
veria dali a instantes. Em breve teria uma resposta…
Maestlin e Kepler cruzaram o portão principal do Stift e dirigiram-se ao
refeitório. Lá estavam eles, com suas batinas e boinas pretas. Hafenreffer foi o
primeiro a reconhecê-lo: “Johannes, seja bem-vindo à sua alma mater ”.
Kepler quase mencionou que, formalmente, não havia terminado a graduação
e que, portanto, não tinha uma alma mater , mas achou melhor não polemizar
tão cedo. “Em nome do resto do conselho deliberativo, digo que estamos
muito felizes em revê-lo.”
Kepler baixou a cabeça, tímido. “Caros mestres, fico honrado em ser
recebido tão calorosamente no coração da instituição pela qual guardo tanto
carinho. Confesso sentir muita falta de todos os senhores e desta escola, onde
tanto aprendi.”
Hafenreffer convidou-o a sentar-se entre ele e Maestlin. Kepler, ainda sem
graça, mal podia acreditar que jantaria à mesa do conselho deliberativo,
juntamente com seus mestres. A comida era bem mais farta do que imaginara:
perdiz assada e truta, regadas com muito vinho. A conversa fluía leve,
tocando superficialmente nas tensões entre católicos e luteranos, as quais
cresciam em toda a Europa Central, sobretudo na Áustria.
“Ouvimos dizer que o jovem Ferdinando provavelmente será o novo
arquiduque e que vão prepará-lo para assumir o trono. Sabe de alguma coisa,
Kepler?”, perguntou Hafenreffer.
“Infelizmente, é bem provável”, respondeu Kepler em tom sombrio. “Ele
foi posto sob a tutela dos jesuítas pela mãe, uma católica fervorosa. Se subir
ao trono da Áustria, teremos problemas sérios. Sabe-se lá o que vai ser dos
luteranos de Graz… Pelo menos sei que, se algo ocorrer, e tenho certeza de
que se trata de mera questão de tempo, terei o apoio dos senhores aqui em
Tübingen.” Falou, e lançou um olhar esperançoso na direção de Maestlin, que
sorriu sem grande entusiasmo. Hafenreffer, por sua vez, manteve-se
indiferente.
“Por ora, deixemos esses problemas”, disse Maestlin. “Johannes, fale-nos
um pouco de suas pesquisas.”
Kepler pôs-se diante dos mestres. “Venho estudando o arranjo dos céus
segundo a hipótese copernicana”, começou. “Mais especificamente, tenho
tentado encontrar uma explicação para o número de planetas no cosmo. Por
que seis, e não três ou vinte? Como podemos determinar, a priori , suas
distâncias ao Sol? Com a ajuda de mestre Maestlin, cuja sabedoria vem
iluminando meu caminho há tempos, obtive uma solução que me parece
elegante em extremo. Tão elegante que não vejo como o Criador não a teria
usado. Baseia-se nos cinco sólidos platônicos, um dentro do outro, com
esferas interpostas entre cada um deles. Cada esfera carrega um planeta em
sua órbita em torno do Sol. O modelo concorda esplendidamente com as
observações, mesmo que não perfeitamente, ainda. Mas acho que isso é um
problema das observações, as quais não são muito precisas, não do modelo
em si. É belo demais para estar errado…” Dito isso, curvou-se, respeitoso, e
voltou a sentar-se, satisfeito com sua exposição.
Hafenreffer foi o primeiro a falar. “Caro Johannes, sem dúvida esse arranjo
é mesmo muito elegante, mais do que todos os apresentados por seus
predecessores. Devo felicitá-lo pela criatividade. Todavia, algo me preocupa.”
Interrompeu-se e encarou Kepler, com os olhos faiscando. A tensão cresceu,
antecipando o conflito. “Gostaria de saber se, na sua opinião, esse é de fato o
arranjo dos céus ou se é apenas um modelo matemático, próprio para cálculos
de posições planetárias.”
Como Kepler imaginara, o teólogo não esperou pelo fim do jantar para
começar a sabatina. “Mestre Hafenreffer, meu sistema é completamente
coerente. O Sol controla os movimentos celestes a partir do centro, emitindo
sua luz tal qual uma vela, iluminando todo o espaço. Encontrei uma relação
matemática entre o tempo que um planeta demora para completar uma
revolução e sua distância ao Sol. O número de planetas é fixado pela
geometria. Por que não devo considerar esse o arranjo concreto dos céus? Por
que Deus optaria por algum outro?” Ajeitou-se na cadeira, tentando manter
uma expressão de dignidade; sabia bem o que estava por vir. Nada havia
mudado desde o debate de 1593.
“Porque”, replicou Hafenreffer com inflexão solene, “está escrito na Bíblia
que a Terra permanece fixa no centro do mundo e que os céus giram à sua
volta. Essas são as palavras sagradas de Deus. Não cabe aos homens, nem
mesmo aos mais brilhantes entre eles, contradizê-las.” Olhou
desafiadoramente para Kepler e continuou: “No Salmo 104 está escrito:
‘Assentaste a terra sobre suas bases, inabalável para sempre e eternamente’.
Existem muitos outros exemplos, mas esse basta. A mensagem é clara”.
“Mas, mestre, será que os homens que interpretam as Escrituras não podem
se equivocar? Afinal, apenas Deus é perfeito, infalível.” Kepler surpreendeu-
se com as próprias palavras. Quando iria aprender a ficar calado?
“De modo algum! A interpretação teológica das Escrituras não está aberta
para debate, menos ainda para debate entre amadores.”
Kepler quase revidou, lembrando a Hafenreffer que, se não se tornara
teólogo, fora por culpa dele, mas preferiu silenciar. Esses eram problemas do
passado, quando ainda pensava no púlpito como seu destino. Sabia agora que
palavras e interpretações não revelariam a natureza de Deus, que apenas a
matemática, a linguagem comum entre a mente divina e a dos homens,
poderia fazê-lo. A previsão de Maestlin havia se concretizado: a astronomia
era o único caminho viável. Hafenreffer jamais entenderia por quê.
Vendo que Kepler não responderia, Hafenreffer prosseguiu: “Sei que
Maestlin supervisionará a impressão de seu livro. O conselho deliberativo
exige que o manuscrito seja examinado e aprovado antes disso”.
Kepler olhou para Maestlin, cuja irritação era visível. “Certamente,
senhor”, respondeu em tom resignado. “Gostaria de propor um brinde aos
meus caros mestres, que me guiaram por tantos anos com infinita paciência,
ensinando-me tudo o que sei.” Ergueu o cálice e tomou um gole, tentando
afogar a frustração. Não fazia sentido confrontar-se com Hafenreffer e os
demais teólogos de Tübingen, ao menos não naquele momento. Sua
prioridade era a publicação do Mistério , mesmo que censurado. Sabia que a
verdade não pode ficar oculta por muito tempo: mais cedo ou mais tarde
escapa da cela onde os opressores a prenderam. Ou porque eles mesmos
abrem a porta, ou porque outros o fazem.
No dia seguinte, retornou à casa de Maestlin para acertar alguns detalhes.
O mestre continuava irritado com o teólogo, convencido de que aquela
discussão não devia ter ocorrido durante o jantar, na presença de todos os
professores. Ademais, ao exigir que o manuscrito fosse examinado pelo
conselho deliberativo, Hafenreffer demonstrou que não confiava nele.
“Atitude típica de um teólogo, que só confia em outro teólogo”, vociferou, e
Kepler não o contradisse. “De qualquer forma, Johannes, você não pode fazer
uso de nenhum argumento que tenta provar ser o modelo copernicano
coerente com as Escrituras. Eles não vão permitir que passe por teólogo,
posso garantir-lhe.” Fitou o pupilo com olhar sombrio. “Sugiro também que
explique com mais clareza as ideias de Copérnico. Nem todo mundo as
conhece tão bem quanto você.” Kepler concordou com um movimento de
cabeça. “Mais uma coisa”, continuou o mestre. “Sabe muito bem que não
concordo com suas explicações físicas para os movimentos celestes. A
insistência em incluí-las no trabalho comprometerá a credibilidade deste. Os
astrônomos dirão que são absurdas e os filósofos naturais, que contradizem os
ensinamentos de Aristóteles. Por que cargas-d’água insiste nisso? Já não basta
explicar o número de planetas e suas distâncias?”
Kepler sentiu-se abandonado, órfão. Entendeu que dali em diante a jornada
seria apenas sua, que o mestre havia ficado para trás. “Mestre”, murmurou, “a
Natureza ama a simplicidade, a unidade. Nada existe sem alguma razão de
ser, nada é supérfluo. Fenômenos aparentemente diversos são em geral
explicados por uma causa apenas, feito o vento, que move navios, folhas,
nuvens e tanto mais. A meu ver, o cosmo é como a Trindade, a pluralidade
contida na unidade. Se, tal como Copérnico, proponho desmantelar a física de
Aristóteles deslocando a Terra do centro do cosmo, tenho de oferecer alguma
explicação alternativa. É questão de coerência, de completude. E a que faz
sentido para mim, a que condiz com a noção da unidade de todas as coisas, é
que todos os movimentos são causados pela mesma fonte. E qual seria essa
fonte se não o Sol? Separar a astronomia das causas físicas viola minha fé na
unidade da criação divina. Não saberia como nem por que fazê-lo.” Disse as
últimas palavras quase num sussurro, ciente do efeito que teriam.
“Vejo que nunca o farei mudar de ideia, Johannes. Mesmo assim, sugiro
que só discuta isso no fim do livro, depois de ter apresentado o arranjo
geométrico dos céus e a justificativa do número de planetas. Talvez desse
modo consiga evitar problemas com o conselho deliberativo.” Maestlin mal
podia olhar para Kepler. Sentiu-se ultrapassado, velho. O pupilo havia
amadurecido intelectualmente, e só lhe restava deixá-lo continuar a traçar,
sozinho, seu caminho. A relação entre eles jamais seria a mesma. Em silêncio,
talvez não completamente conscientes disso, eles lamentaram essa perda.
14
29 de agosto de 1596
Quantas decepções! Uma atrás da outra. Primeiro,
meus problemas com o conselho deliberativo em
Tübingen e todas as alterações que tive de fazer no
manuscrito: omitir explicações teológicas
justificando a posição do Sol, esconder os
argumentos sobre as causas físicas no final do livro
etc. Depois, meu projeto com o duque, que não está
dando em nada — uma grande perda de tempo. Os
artesãos continuam mais confusos do que nunca, e,
do jeito que as coisas vão, esse magnífico cálice
jamais será concluído. Não bastasse isso, Herr
Müller decide cancelar o voto de casamento! Acho
que meu destino é mesmo nadar sempre contra a
corrente… Mas não desistirei assim fácil, esse
moleiro não me conhece! Não abandonarei minha
noiva sem lutar. Sua filha, Herr Müller, o senhor
querendo ou não, será minha. Ainda vou beijar
aquelas mãos novamente, e o resto do corpo também.
E agora, mãos à obra!
Kepler recortou um pedaço de papel em forma de coração e nele colou uma
mecha de cabelo. Apesar de considerar excessivo tanto romantismo, sabia que
não tinha opção. No verso, escreveu: Se o que recebes é apenas este humilde
coração de papel, é porque o verdadeiro já pertence a ti. Em cada estrela que
cintila vejo a luz de teu olhar, no canto de cada pássaro ouço o doce som da
tua voz. Não há um momento único em que eu não pense em ti, amada, e não
sonhe com a vida que teremos pela frente. Eternamente teu, Johannes. Selou
cuidadosamente o envelope e partiu à procura de um mensageiro.
Maria bateu à porta pela segunda vez. Nenhuma resposta. Decidiu
perguntar ao padeiro. “Não, não vi o mestre hoje”, resmungou ele. Era um
raro dia de fevereiro, quando já se sentia um prenúncio de primavera, o sol
quente incitando as pessoas a sair pelas ruas, a buscar, sorridentes, o que fazer
após meses de hibernação. Maria espiou pela fresta da janela, talvez Maestlin
cochilasse na poltrona. Nada. Resolveu, então, procurar ao longo do rio; tinha
visto algumas pessoas sentadas nos bancos, atirando pedaços de pão aos
cisnes. E, de fato, lá estava ele, imóvel, segurando um pequeno livro.
“Mestre! Finalmente o encontrei!”, exclamou ela, aliviada. “Já estava
ficando preocupada com o senhor.”
O velho mestre voltou-se lentamente na direção da criada. “É, acho que me
esqueci de avisar o padeiro”, disse, quase num sussurro. Um pombo pousou
próximo ao seu pé, procurando migalhas. Maestlin olhou distraído para ele.
“O senhor parece muito cansado, mestre. Vamos para casa, vou preparar
alguma coisa bem gostosa. Depois, se o senhor tiver forças, voltamos para
cá.”
“Não, Maria, obrigado. Quero ficar ainda mais um pouco.” Maestlin olhou
para o livro em suas mãos.
“Desculpe a curiosidade, senhor, mas esse livro aí, foi aquele homem que
trouxe outro dia, não foi? Ele me assustou. Parecia o Diabo. Juro, senhor,
desapareceu bem na minha frente. puf! Deus nos guarde!” A criada cobriu a
cabeça com o xale.
“É, Maria, foi ele mesmo quem trouxe o livro. Mas não precisa ficar com
medo. Trata-se do filho de Kepler.”
“Não sei, não, senhor. Perdoe-me, mas esse tal de Kepler continua
arrumando encrenca, mesmo depois de morto. Tem algo de muito errado
nessa história, sinto isso nos ossos.”
Maestlin bufou. “Maria, pode ir. Daqui a pouco estarei em casa.” A criada
partiu a passos resignados, resmungando uma prece só por via das dúvidas. O
velho mestre jamais admitiria, porém estava tão amedrontado quanto ela,
especialmente após a visão da noite anterior: a cabeça de Kepler flutuando
nas chamas. Aproximou-se da água, onde dois garotos jogavam pedras,
tentando respingar sua babá, que roncava na relva ainda amarelada. Um casal
já bem idoso descia o rio numa canoa, acompanhado por uma família de
cisnes. Andorinhas sobrevoavam a água, ocasionalmente tocando-a com a
ponta das asas, como se escrevessem poemas. Maestlin estendeu o braço,
deixando o diário pairar acima do rio turbulento. Seria tão fácil soltá-lo e vê-
lo cair, afundar, desaparecer para sempre… Mas de que adiantaria? Cada
palavra não lida seria um fantasma esfomeado alimentando-se de sua paz.
O velho mestre olhou para as águas escuras, depois para a capa do diário
— sua única ligação com Kepler, com a vida. Retraiu lentamente o braço e
retornou ao banco.
9 de fevereiro de 1597
Que dia maravilhoso, embora seja fevereiro!
Finalmente, depois de resistir por meses aos nossos
avanços, com a obstinação desesperada de um
general turco, Herr Müller voltou atrás e mais uma
vez deu seu consentimento. Os documentos foram
assinados e aprovados pelos oficiais da corte
municipal. O casamento será no dia 27 de abril. Após
a cerimônia na igreja, iremos todos para a casa de
Bárbara, em Stempfergasse, onde comemoraremos
com muita comida e muita bebida. Aliás, esse será
também meu novo endereço, nada mau, nada mau. Só
espero que a casa não seja assombrada pelas almas
dos falecidos maridos dela… Meus dias de pobretão,
cheio de ideias e com os bolsos vazios, estão
contados! Enfim viverei com a dignidade que mereço.
Até recebi um pequeno aumento de salário. E para
completar, mestre Maestlin me diz que o Mistério
cosmográfico está pronto para ser distribuído! Mente
e coração unidos em festa. Sinto-me outro homem,
com uma nova vida pela frente. Que minha felicidade
seja duradoura.
Maestlin interrompeu a leitura e olhou furtivamente ao redor. Não viu
nenhuma face demoníaca se materializando do nada, nenhuma mensagem do
além, nenhum mau agouro. Apenas o pombo, insistente, aproximara-se de
novo do seu pé, sem dúvida imaginando que havia um mundo de migalhas
debaixo dele. Maestlin sorriu, aliviado. “Que tolo sou”, disse consigo mesmo,
e pôs-se a caminhar em direção à sua casa.
Koloman bateu impacientemente à porta. “Johannes, você está pronto? Ou
quer chegar atrasado à sua própria festa de casamento?”
“A porta está aberta, Koloman. Pode entrar.” Kepler ofegava, vasculhando
a sala em busca de alguma coisa, enquanto tentava abotoar o colete de veludo
verde-musgo, importado da Itália especialmente para a ocasião. “Não sei onde
pus meu rufo… Diabos! Por que o noivo tem de mudar de roupa depois da
cerimônia na igreja? Quem inventou essa besteira?”
Koloman olhava com expressão carinhosa para o amigo, contente de vê-lo
feliz. Kepler até ganhara peso, seu rosto tornara-se mais arredondado. “Talvez
Bárbara seja boa para ele”, pensou Koloman, “talvez o faça descer dos céus
com mais frequência, prestar mais atenção no que acontece à sua volta.”
“Tantos detalhes!”, disse Kepler. “Imagine o que não estará pensando
Bárbara, que passa por tudo isso pela terceira vez! Ah, você viu os olhos dela
na igreja, como brilhavam? Tenho certeza de que, agora, ela está muito mais
entusiasmada, pois finalmente terá um marido da sua idade, não velho como
seu pai. Mal posso esperar para…”
“Da mesma idade e cheio de fogo”, interrompeu Koloman, sorrindo. “De
qualquer forma, jovem, é melhor irmos. Você não quer irritar seu maravilhoso
sogro, quer? Ele poderia decidir cortar o dote da filha pela metade…”
“Quê? Ele pode mesmo mudar o arranjo pré-nupcial?”
Koloman caiu na gargalhada. “Não se preocupe, Johannes, seu dinheiro,
quer dizer, o dinheiro dela, está são e salvo”, brincou, pegando o amigo pelo
braço e puxando-o para fora do quarto.
Um grupo de músicos, assim que viu o noivo, começou a tocar seus
alaúdes, tambores, flautas, sinos e pratos. O cortejo saiu dançando e cantando
pelas ruas, recolhendo convidados no caminho até chegar à casa da noiva.
Jobst Müller, que esperava à porta, acenou aos músicos para que parassem
de tocar. Sua expressão de insatisfação era ainda mais fria que de costume.
“Que horror”, Kepler sussurrou no ouvido de Koloman, “se eu não soubesse,
diria que o velho está indo a um funeral.”
“Esquece esse infeliz, Johannes. Olhe a sua noiva, como está linda!”
Bárbara estava no meio do salão, cercada por convidados e familiares. Ela
mesma tinha adornado o rico vestido com o brocado de seda que Kepler
trouxera de Ulm. Um véu de renda e pérolas cobria seus cabelos, dando-lhe
um aspecto quase virginal. Embora fosse um tanto atarracada, ela se movia
com a leveza de uma mulher bem mais atraente e esbelta.
“Olha, Koloman, ela parece flutuar, como uma fada!”, exclamou Kepler.
Acenou para a noiva, o rosto explodindo num sorriso. Regina correu a atirar-
se nos braços dele, que a jogou para o ar várias vezes, girando pelo salão ao
som de melodias inexistentes. Bárbara, ainda flutuando, olhava para Regina
com o alívio da viúva que encontra um novo pai para a filha, um bom pai:
nem com o avô a menina mostrava tal desenvoltura. Jobst Müller assistia a
tudo de um canto, imóvel como uma gárgula.
Após alguns minutos de conversa e vários apertos de mão, o criado
anunciou o jantar. Os convidados, cerca de quarenta, foram conduzidos a um
salão comprido, onde quatro mesas haviam sido dispostas lado a lado. Os
músicos começaram a tocar uma melodia suave, enquanto um pequeno
exército de serviçais trazia um número incontável de bandejas abarrotadas de
comida e garrafas de vinho: faisões, perdizes, trutas e lúcios, assados e
acompanhados de repolho e beterraba; nenhum cálice ficava vazio por muito
tempo. Sentado entre a enteada e a noiva, Kepler falava animadamente com
Papius e Koloman sobre seus planos para o futuro, a nova casa, a nova vida.
No final da refeição, antes de servirem a trufa regada a vinho e o Lebkuchen ,
Herr Müller, com tons rosados transparecendo por trás da máscara mortuária,
levantou-se e soou uma sineta, pedindo silêncio. A música cessou. Kepler
tomou um gole de vinho, preparando-se para o pior. Até Bárbara parecia
preocupada. Encontrou a mão do noivo sob a mesa e apertou-a ternamente.
Ele retribuiu o gesto, tentando disfarçar sua apreensão.
Jobst Müller pigarreou e olhou em torno, certificando-se de que a atitude
intimidadora surtira efeito e saboreando seu momento de poder. “Caros
convidados, é um prazer recebê-los hoje, nesta data abençoada. Vamos todos
desejar uma vida repleta de alegria e felicidade a minha filha e a seu noivo.
Deus os abençoe e proteja.” Ergueu o cálice e, sorrindo pela primeira vez,
brincou: “E que esta seja a última festa de casamento que pago!”. Depois
tomou um demorado gole de vinho. Todos os convidados o acompanharam.
Kepler e Bárbara entreolharam-se com alívio.
Agora era a vez do noivo. Com o cálice na mão, o corpo oscilando
ligeiramente por causa do vinho, ele disse: “Como nenhum membro de minha
família pôde estar conosco hoje, em nome dos Kepler gostaria de agradecer a
todos pelo apoio e generosidade. Que seria da vida sem amigos e parentes? E
ao senhor, Herr Müller, gostaria de agradecer por ter me aceitado no seio de
sua honrada família. Prometo fazer tudo o que estiver a meu alcance para
proporcionar o que há de melhor a sua filha e a sua neta, dando-lhes todo o
amor e conforto que merecem”. Levou o cálice aos lábios e acenou aos
músicos para que recomeçassem a tocar.
“Vida longa ao noivo e à noiva!”, gritou Koloman.
“Vida longa a Bárbara e Johannes Kepler”, ecoou Papius, erguendo o cálice
na direção dos noivos.
Em seguida, serviu-se a sobremesa, regada com vinho doce da Alsácia.
Kepler olhou impaciente para Bárbara, perguntando-se quando estariam
finalmente a sós, quando ele iria tocar sua pele, beijar-lhe os lábios, saciar o
desejo que, durante tantos meses, dominara suas fantasias e sonhos.
15
5 de fevereiro de 1598
Sinto-me em falta com você, caro diário, por este
prolongado silêncio. Infelizmente, ou felizmente, não
sei, minha família tem me mantido tão ocupado que
mal tenho tempo de pensar em outra coisa, muito
menos de escrever. Deixei de lado até a astronomia;
só continuo a me corresponder com mestre Maestlin.
Bárbara tem feito o possível para que eu fique longe
de minha mesa e dos meus cálculos, enchendo-me de
tarefas. É incapaz de entender como posso interessar-
me pelos pormenores dos movimentos celestes
quando, na Terra, reina o caos total. A infeliz não
consegue ver além de sua vidinha em Graz. É igual
ao pai: só se preocupa com assuntos ligados a
dinheiro e com frivolidades. Uma enorme tempestade
aproxima-se, tal qual os astros previram no dia de
nosso matrimônio. Mas hoje não é dia de
comiseração. É dia de festa: finalmente sou pai!
Heinrich nasceu há três dias, depois de um parto
muito sofrido. O menino está bem, e como suga os
peitos da mãe! Tivemos até de contratar uma ama
para ajudá-la a amamentá-lo. A escolha do nome foi
a parte mais difícil. Como poderia seguir a tradição,
dar a meu filho o nome de meu odioso pai? Bárbara,
obviamente, jamais consideraria quebrar uma regra;
imagine o que as pessoas não diriam… Resultado:
depois de lutar por dois dias, convencido de que a
lembrança de meu pai só nos traria má sorte, resolvi
ceder. É bem mais fácil quebrar as regras dos céus e
enfrentar a oposição dos colegas astrônomos do que
quebrar regras aqui, na Terra, e enfrentar a ira de
minha mulher.
Regina enche-me de alegria. Como é curiosa! Adora
pintar, ler histórias, adora música; o oposto da mãe.
Estou ensinando-a a ler e escrever; também lhe passo
algumas noções de matemática. A menina tem a
inteligência e a determinação de um filósofo. Semana
passada, enquanto passeávamos por um campo
nevado, perguntou-me por que todos os flocos de
neve têm seis pontas. Que excelente observação! Fez-
me pensar de onde, deveras, vem essa belíssima
simetria da Natureza: todos os flocos de neve têm
seis pontas, e, no entanto, nenhum é igual a outro:
variação e uniformidade ocorrendo conjuntamente. O
mais interessante é que isso também acontece com
outras formas, por exemplo, os homens: cada um
com dois olhos, duas pernas, duas orelhas, dois
braços, e nunca dois exatamente iguais (com exceção
dos gêmeos, claro…). Os mesmos padrões parecem
repetir-se, deixando apenas que ocorram variações
superficiais. Será que existe um número finito de
padrões que reaparecem sempre em formas diversas?
Quais seriam eles? Seria possível identificá-los? E
por que esses padrões e não outros? Tenho de
retornar a essa questão um dia. Suspeito que
revelará, aqui na Terra, algo da mente do Criador.
Maria pôs na mesa a travessa com o peixe assado, graciosamente decorado
com cenoura e nabo, sem dúvida esperando que a mágica de sua culinária
pudesse dispersar a ira do patrão. Maestlin limitou-se a encará-la com frieza.
Não a deixaria safar-se assim tão fácil. Maria sorriu, tímida, e voltou para seu
esconderijo, torcendo o avental.
“Então, pai”, Ludwig cortou bruscamente o silêncio, “o texto do seu amado
Johannes me parece bem leve, não? Quase trivial, diria.”
“É verdade.” Maestlin mal acreditou na sua sorte. Parecia até que o livro
sabia se esconder de olhos inadequados… “Mas, se eu tivesse lhe dito que o
texto é um tanto irrelevante, detalhes da vida diária, nada de especial, você
não acreditaria. Pois aí está.”
“Nesse caso, pai, imagino que o senhor não se oporá a emprestá-lo por
alguns dias, certo?”, perguntou Ludwig, com sua típica expressão de desdém.
O velho mestre permaneceu em silêncio por alguns instantes, tentando
controlar a raiva. Que insolente! Não, seu filho jamais voltaria a pôr as mãos
no livro. Aquele tesouro não pertencia a mais ninguém. Maestlin segurava os
lados da cadeira com tal força que chegou a fincar as unhas na madeira.
Queria fazer o mesmo no rosto de Ludwig, que continuava calado,
impassível, esperando sua reação. “Se não se incomodar”, disse, um leve
tremor nos lábios traindo suas emoções, “gostaria de terminar de lê-lo antes.
Perfeitamente razoável, concorda?, visto que Kepler deixou o livro para
mim.”
Ludwig demonstrou sua frustração apenas com os olhos. Sabia que não
tinha alternativa. “Claro, pai, faz sentido. Talvez eu possa lê-lo quando vier
visitar o senhor.”
Maestlin saboreou calado a vitória. Levou um pedaço grande de peixe à
boca e mastigou-o lentamente. Enfim, disse: “Se faz tanta questão…”.
Sentiu uma dor aguda na mão direita. A unha do polegar estava
ensanguentada. Urânia pôs-se a lamber o dedo do mestre, e Ludwig não
percebeu. Comeram em silêncio; o tilintar dos talheres e o ronronar contente
da gata eram os únicos sons na sala.
Após alguns minutos, Maria reapareceu, dessa vez com um bolo de mel
regado a vinho. Sabia que a ira do mestre não resistiria àquela sobremesa.
“Espero que gostem, senhores. Achei que seria uma boa ideia para celebrar a
chegada da primavera assim tão cedo.” Maestlin, revigorado, sorriu. Mas pai
e filho terminaram a refeição em silêncio.
O velho mestre suspirou aliviado quando viu o filho partir. Se Ludwig
tivesse se apoderado do livro, jamais o traria de volta. Sem dúvida, leria a
carta, sem o menor escrúpulo, violando o segredo dele. Não se afastaria mais
do diário. Dormiria com ele debaixo do travesseiro, iria escondê-lo sob as
roupas durante o dia. Não podia confiar em ninguém.
“Mestre, o que aconteceu com sua unha?”, perguntou Maria.
“Ah, não é nada, deixe para lá.”
“Vou fazer um curativo agorinha mesmo.”
“Não precisa, Maria.”
“Mas, mestre, não para de sangrar!”
Maestlin estendeu o braço, derrotado. Assim que Maria o deixou em paz,
olhou em torno, certificando-se de que ninguém o espiava, e apanhou o livro.
Estava mais do que na hora de continuar sua leitura.
20 de maio de 1598
Que terrível desgraça me aflige! Nem sei pôr em
palavras minha dor. Nosso pequeno Heinrich morreu,
sua vida foi interrompida após apenas sessenta dias.
A casa parece um túmulo. Bárbara está
horrivelmente abalada, achando que ele morreu por
culpa sua; sabe-se lá de onde tirou essa ideia. Passa
os dias vagando pela casa como uma alma no
Purgatório. Por que Deus nos trata com tanta
indiferença? Será que é assim que seleciona aqueles
que merecerão a paz eterna a Seu lado, os que
suportam todo sofrimento sem perder a fé? Ou será
que está me chamando de volta aos céus, a seus
mistérios, longe do caos humano, das privações do
espírito?
Suspeitei que havia algo errado com Heinrich logo
que ele nasceu: sua genitália era deformada, parecia
um casco de tartaruga. Talvez por isso é que Bárbara
se sinta tão culpada… Também deve ter notado a
deformação, e considerou-a uma punição de seu
pecado, de sua gula, na carne inocente do filho.
Contudo, o menino mamava com tal voracidade que
me convenci de que sobreviveria e cresceria com
muita saúde. Como me enganei… Mal resistiu ao
assédio da febre, sucumbindo em poucas noites ao
frio abraço da morte. Ainda escuto seus gritos
angustiados ecoando pela casa, a pobre criaturinha
lutando pela vida. Digo a Bárbara que tentaremos
novamente, que Heinrich repousa agora ao lado de
Deus, feliz, em paz. Porém, nada consegue tirá-la de
seu torpor. Receio que jamais volte a ser a mesma:
não demonstra o menor interesse em estar comigo,
nenhum sinal de afeto. Pior, parece quase enojada de
qualquer contato físico: um beijo inocente, até o leve
toque de meu nariz no rosto dela, é uma tortura
intolerável… Que me resta fazer senão retornar aos
meus cálculos, aprimorar meus conhecimentos
matemáticos? A tempestade sobre nosso matrimônio
ganha força a cada dia, já posso ouvir os trovões à
distância. Ergo, então, os olhos para o firmamento,
onde a ordem e a beleza reinam supremas. Onde mais
posso encontrar alguma paz?
15 de junho de 1598
Tenho excelentes notícias! Meu livro finalmente
chegou às mãos de algumas das maiores mentes da
Europa, e já recebo comentários. Adeus ao
anonimato! O matemático de Pádua, Galileu Galilei
(engraçado esse nome, que ecoa a si próprio),
mandou-me uma mensagem que, apesar de curta,
contém uma revelação maravilhosa: ele também é um
copernicano, se bem que às escondidas. Respondi
imediatamente, dando-lhe todo o apoio para que
assuma sua posição, dizendo que lutaremos juntos
pela verdade. Lineu escreveu também, empolgado
com minha solução do mistério cósmico,
cumprimentando-me por ter revivido a tradição
platônica na filosofia. Já o idiota do Pretório, de
Altdorf, discorda, infelizmente por razões muito
semelhantes às de meu mestre Maestlin. A verdade,
quando ainda é jovem, nem sempre é transparente.
Maestlin, completamente absorto na leitura,
interrompeu-a apenas para endireitar o corpo.
Pretório afirma que é futilidade buscar causas
físicas em astronomia, pois estas são parte da
filosofia natural e as duas devem ser mantidas
separadas. Tenho muito trabalho pela frente, se
pretendo convencer meus críticos… Preciso achar um
método que torne clara a necessidade de liberar a
astronomia das correntes que a aprisionam há mais
de mil anos, que mostre como é imprescindível sua
união com a filosofia natural. A busca pelo
conhecimento deve juntar ideias, não separá-las!
Será que ninguém vê isso? Na verdade, apenas a
opinião de meu mestre me importa. Se algum dia
conseguir convencê-lo, darei por cumprida minha
missão. Infelizmente, até o momento meus esforços
fracassaram.
Finalmente, Tycho Brahe, quem diria, o maior
astrônomo da Europa, também me escreveu. Como
minhas mãos tremiam quando abri a carta dele!
Imagine, receber correspondência do grande homem
que deixou recentemente sua ilha na Dinamarca e se
encontra em trânsito pela Alemanha, visitando os
nobres nos castelos. Ouvi dizer que está a caminho
da corte de Rodolfo ii, em Praga, para servir como
matemático imperial. Ninguém em todo o continente
é mais digno dessa posição.
Claro, antes que Tycho possa ser o novo matemático
imperial, Ursus terá de morrer, ou ser deposto pelo
imperador. Espero que isso não demore! Mais uma
vez, meti-me numa grande embrulhada por causa do
meu estúpido desejo de agradar a todos. Tycho está
furioso com Ursus, e com toda a razão. O mau-
caráter acaba de publicar um livro acusando-o de ter
plagiado suas ideias; afirma que foi ele quem
inventou o modelo tychoniano, aquela construção
horrenda com a Terra no centro e o Sol girando à sua
volta, enquanto os planetas giram todos em torno do
Sol. Eu, que não tinha a menor ideia de que os dois
estavam quase aos tapas, escrevi uma carta para
Ursus dizendo o quanto admirava sua “graciosa
ideia”. Sou um idiota, e ainda por cima hipócrita!
Sabia muito bem que o modelo era de Tycho,
monstruoso ou não: mestre Maestlin mencionara-o
em sua casa. E agora, para piorar, o canalha do
Ursus publicou minha carta no livro como prova de
meu apoio às ideias dele. Tenho certeza de que Tycho
está furioso comigo também! Que humilhação, que
humilhação. (Mas devo confessar, ao menos a este
diário, que me sinto honrado de fazer parte da
disputa entre os dois astrônomos famosos, mesmo
que do lado errado. Vaidade, vaidade. Tudo é
vaidade.)
De volta ao Mistério , Tycho não gostou muito de
minha hipótese em relação ao uso dos sólidos
platônicos. Julga a ideia interessante, mas critica-me
por ter usado os dados de Copérnico, que, de fato,
não são muito precisos. Para desvendar o arranjo
dos céus, são necessários dados da maior precisão e
qualidade possíveis , escreveu na carta. Concordo
plenamente! E agora, a melhor parte: Tycho quer que
eu vá visitá-lo, quem sabe até passar uma temporada
com ele, para trocarmos ideias sobre nossas teorias
astronômicas. Talvez eu possa até usar seus dados
para confirmar meu arranjo cósmico. Ah… isso seria
a realização de meu sonho! Nunca houve, em toda a
história da astronomia, dados de melhor qualidade:
três décadas de trabalho extremamente detalhado,
medidas das posições de todos os planetas, de mais
de mil estrelas! Difícil acreditar que eu, o pequenino
Johannes de Weil, poderei um dia trabalhar ao lado
do célebre príncipe dos astrônomos… Se tivermos de
nos mudar, o desafio maior será convencer minha
esposa semimorta. Só Deus sabe o quanto ela odiaria
sair da terra natal, poderia ser seu fim. Bem,
veremos. O importante é que meu nome agora é
conhecido pelos maiores astrônomos da Europa e
que pelo menos alguns deles não me consideram um
idiota completo.
Maestlin fechou o pequeno volume e vasculhou sua coleção de cartas;
procurava uma que Tycho lhe escrevera, comentando o livro de Kepler,
expressando sérias dúvidas… Identificou-a, no meio da pilha, pelo brasão da
família Brahe estampado no papel de alta qualidade. Seria para mim muito
surpreendente se, de fato, esse novo estilo de estudar astronomia a priori
pudesse revelar algo de novo. Afinal, seu resultado maior seria provar que
nosso trabalho de anos é basicamente inútil, que a astronomia é
simplesmente produto da geometria. Parece-me que, ao contrário, sem dados
observacionais é impossível tentar compreender os mistérios celestes. Que
seria da astronomia se cada um pudesse imaginar seu cosmo preferido, se
fôssemos incapazes de discernir entre verdade e fantasia? Não, Deus criou os
céus para que sua beleza pudesse ser apreciada e mensurada, e não apenas
sonhada pela imaginação ousada de um matemático.
O velho mestre sorriu, olhando para as mãos enrugadas, cobertas de
manchas, as unhas amareladas e sujas. “Tycho, meu caro”, pensou, “nós
somos de outro tempo, quando o mais importante era medir os céus, e
rechaçávamos como podíamos as investidas da nova astronomia, da
astronomia de Kepler. Trabalhamos com ele, ensinando-lhe o que sabíamos,
esperando formar um aliado, e não nosso carrasco. Contudo, fomos
subjugados, ofuscados por sua mente, que brilhava mais que o próprio Sol.
Que opção temos senão aceitar que pertencemos ao passado, que o futuro é
dele, da sua astronomia? Saudações, velho amigo, sentinela cega dos céus,
como você chamava a todos nós.”
17
15 de fevereiro de 1599
Sinto-me um prisioneiro, trancado numa cela sem
janelas nem teto. Enquanto apodreço, um tribunal
invisível, que não me escuta, decide meu destino. Só
o que posso fazer é olhar para cima, para os céus. As
cartas que tenho trocado com Herwart são minha
única salvação, a luz que dispersa as trevas ao redor.
O interesse dele por astronomia, pela relação entre
eventos históricos e eventos celestes, mantém minha
mente viva, abre novos caminhos para investigações
futuras. Claro, tenho também Koloman, meu caro
amigo, para conversar sobre assuntos mais práticos,
e Bárbara e Regina, para lembrar-me dos laços
familiares e das coisas simples porém não menos
importantes da vida. Nas ruas reina o mais completo
caos, estou convencido de que o pior ainda está por
vir, temo por minha vida.
O ventre de Bárbara cresce a cada dia. Deus zele
por essa criança. Não sei se minha mulher suportaria
outra perda. O inverno tem dificultado a vida de
todos. O dinheiro de Bárbara, concentrado em
imóveis, está desaparecendo rapidamente, por causa
dos impostos absurdos sobre as propriedades
pertencentes a luteranos. Estão fazendo de tudo para
tornar insuportável nossa vida aqui. Maestlin não
responde mais às minhas cartas, aos meus pedidos de
emprego, o que quer que seja, em Tübingen ou
mesmo em Württemberg. Só o que obtive dele foi um
pronunciamento absurdo afirmando que a Igreja
Católica está a serviço do Diabo, tentando destruir
os luteranos. Como sofro ao ver meu querido mestre,
homem conhecido por sua clareza de pensamento e
pela força de seu intelecto, sucumbir à propaganda e
ao extremismo religioso que corrói nossa Alemanha.
Por que me abandonou assim? Será que minhas
ideias são tão ameaçadoras?
Evito sair, evito ver o que se passa lá fora, a
censura, as torturas, as execuções públicas.
Enquanto o mundo segue afundando nas tenebrosas
águas da intolerância, busco com energia redobrada
as verdades que Deus imprimiu nos céus, verdades
imunes à estupidez humana. Busco a harmonia
secreta que controla tudo o que existe no cosmo.
Harmonia! Os pitagóricos já sabiam que a estrutura
mais íntima do mundo vem da combinação de música
e movimento. É essa a revelação que tenho de
encontrar, o êxtase vislumbrado por Pitágoras. Meu
Mistério foi apenas um modesto primeiro passo em
direção ao meu destino: desvendar a mente de Deus.
Quando olho para os céus, não vejo as paredes da
minha cela, cada vez mais próximas. Ah, como a
fraqueza dos homens é ridícula, desprezível, quando
vista do altar eterno da harmonia cósmica!
Maestlin interrompeu a leitura e ergueu os olhos. Viu o sol, que brilhava
com intensidade, já na metade de seu arco, cada dia mais alto, através do
firmamento. Viu a sombra espectral da lua crescente, uma mancha sutil no
fundo azul, suas imperfeições plenamente visíveis, as mesmas que os
aristotélicos diziam ser vapores atmosféricos, os luteranos, os pecados dos
homens condensando-se nos céus, e Galileu, a sombra de vales e montanhas
como os que temos aqui na Terra. Maestlin sabia que Kepler concordava com
o italiano, ou com quem quer que discordasse das posições peripatéticas.
Quanto a ele, por toda a vida tinha medido os céus sem se preocupar com as
causas por trás dos movimentos. Nunca teria ousado voar tão alto, questionar
o estabelecido. E, ainda que o tivesse feito, jamais teria elaborado a pergunta
certa, a que levaria ao novo… Veio-lhe à mente a imagem de um cavalo preso
por rédeas e com viseiras que só lhe permitiam olhar para a frente. A vida
inteira o animal trotou para cima e para baixo na mesma estrada, sem ver a
relva viçosa dos campos em volta. Às vezes, quando o vento soprava até ele o
perfume fresco do pasto, o pobre, tremendo de prazer, punha-se a trotar na sua
direção. Contudo, o chicote do dono rasgava-lhe a carne, forçando-o a
continuar na estrada. Um dia, depois de anos de servidão, quando as pernas
do bicho já estavam tão cansadas que mal se moviam, suas viseiras e rédeas
foram finalmente retiradas. Mas era tarde. Ao ver o que o cercava, o que
sempre o havia cercado, o cavalo sofreu um choque tão grande, que caiu
morto. Maestlin sentiu-se amaldiçoado por não ter morrido ainda.
21 de julho de 1599
Que mais pode acontecer para desgraçar minha
existência? Que fiz para merecer tal punição? Minha
pobre Susanna, tão fraquinha, pereceu após somente
trinta e oito dias, consumida por uma febre. Bárbara
está perdida em sua melancolia, incapaz de
comunicar-se, quase não come; é praticamente uma
morta viva. Regina, assustada e confusa, agarra-se a
mim, sem saber o que fazer. Como poderia entender
tanto sofrimento?
Não foi apenas em frente à minha casa que o Diabo
amarrou seu cavalo. Calamidades e pestilência vêm
ocorrendo em toda parte. Na Hungria, pessoas têm
sido afligidas por uma misteriosa doença que
provoca feridas avermelhadas em forma de cruz no
corpo inteiro. Alguns relatos dizem que manchas
semelhantes, pintadas pelo anjo da morte,
apareceram também na porta das casas dos doentes.
Que eu saiba, sou o primeiro em Graz a sofrer do
mesmo mal: ontem vi uma ferida em forma de cruz
em meu pé esquerdo, no começo vermelha e agora
amarelada. Não é esse o símbolo do Judeu Errante,
condenado a vagar pela Terra até o dia do Juízo
Final? Será esse o meu destino?
As autoridades católicas apertam o cerco a cada
dia. Negaram-me o direito de enterrar minha filhinha
segundo os ritos luteranos. E, quando descobriram
que desobedeci à ordem, obrigaram-me a pagar uma
multa de cinco coroas pela “transgressão”! A
quantia era ainda maior inicialmente, dez coroas; só
consegui diminuí-la depois de protestar muito. Um
ultraje! Que sua pobre alma possa descansar em paz.
Preciso sair daqui, encontrar refúgio em algum outro
lugar antes que seja tarde. A luz da razão tem de
continuar a brilhar, não pode ser ofuscada pela
ignorância dos homens. Está na hora de escrever
uma carta a Tycho, lembrando-lhe seu convite…
Meu único consolo é o trabalho. Tenho passado os
dias no escritório, mergulhado em cálculos com
intensidade proporcional à da dor que insiste em
querer destruir minha vida. No capítulo 10 do livro i
de Sobre as revoluções, Copérnico escreveu que uma
das vantagens do sistema heliocêntrico é revelar
“uma maravilhosa comensurabilidade no arranjo dos
céus, uma harmonia expressa na relação entre os
movimentos dos planetas e suas distâncias ao Sol,
que não é encontrada em nenhum outro arranjo”. Ele
havia entendido que o conceito-chave na construção
do cosmo é a harmonia, o casamento entre a
geometria e o movimento. A isso, acrescento que o
fato de sermos capazes de perceber a beleza dos
padrões geométricos, de sermos enfeitiçados por
eles, não é uma coincidência: fomos criados assim
para que nossa mente pudesse ler a escrita divina.
Deus pôs uma centelha de Sua luz criadora em
nossas almas, iluminando-as com a chama da
geometria. Agora é claro para mim por que
Pitágoras tanto buscou as harmonias do mundo. Não
foi ele quem descobriu que, quando duas cordas são
soadas conjuntamente e seus comprimentos estão na
proporção correta, seus sons ressoam em harmonia?
Não era ele capaz de ouvir essa mesma harmonia
ressoando em tudo o que existe, das oscilações do
relvado ao vento à coreografia das esferas celestes?
A chave do mistério cósmico está na música. É ela
que faz a alma ressoar em harmonia, transformando
geometria em sensação, criando uma ponte entre o
mundo das Formas Puras e o mundo dos homens.
Nós a sentimos presente nos ritmos das danças e nas
batidas dos tambores, nas rimas do poeta e na
imensa variação de cheiros e gostos, nas proporções
dos prédios e das estátuas, na intensidade do amor,
do ódio e de todos os sentimentos. É essa a ligação
que procuro, a lei universal que expressa a harmonia
entre cosmo e alma, a dança do ser e do devir. Os
planetas oferecem a primeira pista, encontrada no
significado astrológico de seus aspectos: 0º, 60º, 90º,
120º e 180º. Apenas em ângulos bem determinados,
harmônicos, existe uma ressonância entre a posição
dos corpos celestes e nossas almas, exatamente como
a encontrada nas cordas, que vibram em consonância
somente em certas proporções: 1:2, 2:3, 3:4, 4:5 etc.,
mas não, por exemplo, 5:7 ou 7:8.
Será, portanto, tão absurdo imaginar que nossas
almas são feitas de cordas, não aquelas reais, mas
aquelas feitas de um material imponderável, etéreo,
capazes de ressoar com a música das esferas, de
vibrar apenas em determinados arranjos? Qual outra
explicação para a astrologia, qual outra justificativa
teria ela se não a de ser expressão dessa harmonia
cósmica?
Aos meus críticos, incluindo Herwart von
Hohenburg, o qual afirma que isso tudo não passa de
adivinhação inspirada, digo que minhas ideias não
têm nada de misticismo numérico; ao contrário,
insisto que elas revelam a ordem que vemos no
mundo, resultando da cuidadosa aplicação de
princípios geométricos. Sei que um dia encontrarei o
que procuro, a Lei Harmônica, a harmonia do
mundo. Recentemente, comparei a escala das notas
musicais baseadas nas harmonias pitagóricas com as
razões das velocidades máximas e mínimas dos
planetas em torno do Sol. Os resultados não foram de
todo absurdos, uma pista de que estou na direção
certa. Se ao menos tivesse dados melhores, medidas
mais precisas das posições planetárias, sei que
triunfaria, sei que revelaria ao mundo a beleza da
harmonia cósmica. Ah, como preciso de dados, dos
dados de Tycho…
Alguém bate à porta de minha cela. É Regina,
dizendo que a mãe não saiu do quarto o dia inteiro e
que não responde aos seus chamados… Vivemos
todos em celas aqui: a minha, aberta para os céus, e
a de Bárbara, para um desespero que parece não ter
fim.
Maestlin ouviu Maria chamá-lo, estava na hora de comer. Tentou mover-se,
mas a má circulação paralisara-lhe as pernas. Olhou para o diário
reverentemente antes de fechá-lo e pô-lo de volta no esconderijo. Maria foi ao
encontro dele, levando uma bengala. Ajudou-o a levantar-se e disse algo que
ele não ouviu. Só o que o velho mestre via era o cavalo, morto na beira da
estrada, cercado pelos campos viçosos. Também era prisioneiro numa cela,
procurando as harmonias que haviam lhe escapado, buscando entender por
que ainda vivia e Kepler já morrera.
19
“ J ohannes, pelo amor de Deus, saia daí, ao menos por algum tempo”,
Bárbara gritou da porta. “Preciso falar-lhe!”
Kepler fingiu não ouvir. Havia horas estava imerso num mar de cálculos,
projetando os trânsitos planetários para o ano seguinte. Detestava ser
interrompido, pois isso significava repetir dezenas de passos, páginas e mais
páginas de números representando as posições angulares dos planetas em
relação às constelações do Zodíaco. Não lhe restava muito tempo; o século ia
terminar, e as pessoas, tomadas por temores apocalípticos, solicitavam os
serviços de seu astrólogo provincial. Estranhas aparições tinham surgido nos
céus: imagens múltiplas do Sol circundadas por auras de luz intensa, arco-íris
em forma de cruz, inúmeras estrelas cadentes. Parecia mesmo que os céus
estavam prestes a cair, prenunciando o Fim. Na Terra também, maus agouros
assustavam a população. Na semana anterior, um fazendeiro levara um
bezerro de duas cabeças para o mercado; num vilarejo vizinho, uma mulher
dera à luz duas crianças de aspecto monstruoso, unidas entre si pelo fígado e
pelo cérebro. Até a água nos poços apresentava uma coloração avermelhada,
como se houvesse sido tingida de sangue. Será que o Juízo Final se
aproximava? Cada vez mais desesperadas, as pessoas ajoelhavam pelas ruas
pedindo piedade, confessando seus pecados, pagando dívidas. As igrejas
estavam cheias como nunca, abarrotadas de almas angustiadas.
“Johannes, por favor!”, insistiu Bárbara.
Percebendo que não tinha escapatória, Kepler abriu a porta. Havia meses
que quase não se falavam, meras sombras cruzando-se esporadicamente pela
casa, indiferentes. Desde a morte de Susanna, Bárbara afundara ainda mais
em sua melancolia, e Kepler em seu trabalho. Para eles, por motivos muito
distintos, pouco do mundo importava. Nas raras ocasiões em que se
comunicavam, Kepler tentava injetar um pouco de energia na esposa,
despertá-la da apatia. Nada surtia efeito. Quando se queixava de que ela não
se interessava por seu trabalho — por nada, na verdade —, Bárbara replicava
que ele se interessava apenas pelo que era inútil e impraticável. “O mundo
está caindo aos pedaços, e só o que você faz é se esconder atrás desses
planetas e estrelas estúpidos!” Kepler ouvia os insultos em silêncio,
estupefato, mal acreditando que alguém pudesse ser tão ignorante do que
realmente importa à mente e ao espírito. Regina era o único elo entre eles,
embora cada vez mais fraco. Os dois pareciam marcar passo, esperando que o
destino determinasse o que seria de suas vidas.
Como havia meses não fazia, Kepler olhou para a mulher. Bárbara tinha
um aspecto mais vivo, a face rosada, a pele viçosa, convidativa. Usava seu
vestido favorito, de tom bege, enfeitado com rendas finas e brocados belgas.
Não havia dúvida: ela emergira da longa hibernação.
Kepler sorriu, sua concentração despencando do ar rarefeito das esferas
celestes à região entre as pernas da esposa. “Bárbara, você voltou do mundo
dos mortos!” Ela respondeu com um resmungo, irritada. Ele se levantou e pôs
as mãos em seus ombros. Sentiu-se eletrizado ao tocar sua pele, com o calor
que dela provinha.
Bárbara não retribuiu o sorriso do marido. “Johannes, precisamos
conversar sobre nossa vida, nosso futuro”, disse, baixando os olhos. “Estou
preocupada demais, minhas propriedades não valem mais quase nada, e seu
salário não ajuda muito. Sei que você ama sua astronomia e seus cálculos,
mas está na hora de fazer algo mais concreto. Já não posso viver assim, à
beira da miséria, sem saber o que será de nós amanhã!”
Kepler soltou um leve gemido, mas procurou manter um tom animado.
“Não se preocupe, Bárbara. Estou quase terminando o calendário para 1600 e
tenho certeza de que ganharei um bom dinheiro com ele, a maioria das
pessoas está apavorada com o suposto fim do mundo…” Sabia que tentava
tapar um vulcão com simples tábuas.
“Será possível que me casei com uma criança irresponsável?”, gritou
Bárbara. “Não entende que não será um calendário que vai fazer diferença?
Precisamos de uma fonte de renda estável, que nos dê segurança, não de uma
esmola aqui e ali.” Kepler, sem saber bem por quê, sentiu-se excitado com a
raiva da mulher; queria lembrar quando fora a última vez que tinham estado
juntos. Meses… nem sabia mais quantos… “Você precisa fazer alguma coisa,
homem!” A inflexão desesperada da mulher tirou-o de seu transe. Ele tentou
acalmá-la, acariciando-lhe os ombros. Ela corou, mas deu um passo para trás.
Kepler aceitou a derrota.
“Está bem, Bárbara, está bem”, disse com impaciência, “vou conversar
com algumas pessoas, ver o que posso arranjar. No entanto, você precisa
entender que a situação está muito ruim para todos e que as chances de eu
conseguir algo são mínimas, mesmo que tenha…” Batidas na porta
interromperam-no. Bárbara olhou para ele, indagando quem poderia ser.
Kepler deu de ombros, não esperava ninguém aquela noite. Regina voou em
direção à entrada. Adorava receber pessoas, fingia ser a dona da casa. Um
jovem mensageiro entregou-lhe uma carta de Herwart von Hohenburg. A
menina agradeceu, mal escondendo o desapontamento. Àquela altura, cartas
de Herwart não eram mais novidade. Kepler rompeu o selo e pôs-se a ler.
Num certo momento, assobiou, incrédulo.
“Que é? Fale, homem!”, exigiu ela.
“É a resposta às nossas preces!”
“Que é? Que é? Vamos, diga logo!”
“Herwart conta que Tycho assumiu o posto de matemático imperial em
Praga. Sabe o que isso significa?”, perguntou Kepler. Bárbara deu de ombros.
“Lembra quando Tycho escreveu, sugerindo que eu fosse visitá-lo, que talvez
até pudesse colaborar com ele? Pois bem, esta é minha chance, a
oportunidade que pode mudar a minha vida, a nossa vida!”
Bárbara gelou. “Quer dizer que teremos de nos mudar sabe Deus para
onde?”
Kepler acenou com a cabeça, feliz. “Exatamente! Escute, Bárbara, não
temos opção. Permanecer na Estíria como luterano é uma atitude suicida. Não
tenho dúvidas de que em breve seremos todos expulsos, os poucos que
restamos. Ou pior ainda…” Fitou a esposa com olhos sombrios. “Maestlin
recusa-se a responder às minhas cartas, a ajudar-nos. Que mais posso fazer?
Você prefere ficar aqui e morrer de fome, ser assassinada por algum fanático?
Quer me ver ser queimado vivo? Enviuvar pela terceira vez?”
Bárbara não conseguiu se conter. Correu para o quarto, aos prantos, e bateu
a porta com violência. Kepler continuou no mesmo lugar por alguns instantes,
balançando a cabeça e olhando para Regina. A pobrezinha, que ouvira tudo,
não sabia se ria ou se chorava. Como sempre, decidiu optar pela alegria.
“Quer dizer que vamos morar num castelo de verdade, papai?”, perguntou, já
vislumbrando as muralhas, os soldados, as carruagens estacionadas no pátio
interno, as esposas dos nobres com seus vestidos bordados e joias caras, os
criados correndo de um lado para outro.
“Ah, minha pequena, ainda não sei. Espero que sim! Tycho vive num
bonito castelo chamado Benátky. Ouvi dizer que foi presente do imperador.
Imagine só, um astrônomo ganhar um castelo do Sagrado Imperador
Romano!” Regina correu a abraçar o padrasto. “Bem, mocinha, de qualquer
modo, está mais do que na hora de a senhorita ir para a cama.” Enquanto a
enteada se afastava, Kepler abriu de novo a carta e terminou de lê-la. Herwart
chegaria a Graz dali a dois dias para comemorar o Natal e gostaria de fazer-
lhe uma visita.
Depois disso, Kepler foi ao quarto de Bárbara para tentar acalmá-la. Ela
estava encolhida na cama, soluçando. Kepler perguntou-se se passaria o resto
da vida lutando contra a melancolia da esposa. Aproximou-se e sentou-se a
seu lado. “Bárbara”, disse, quase num murmúrio, “as coisas não são tão
terríveis assim. Veja só meus pobres colegas da escola, todos exilados,
vivendo na Hungria ou sabe-se lá onde, longe da família e dos amigos, sem
dinheiro.” Ela se encolheu ainda mais. Kepler tocou-a de leve, brincando com
os cabelos finos da sua nuca. Bárbara permanecia rígida.
“Herwart vem nos visitar daqui a dois dias. Esse é um gesto muito corajoso
da parte dele, dada sua posição no governo e na corte católica.” Os soluços
cessaram. Kepler sorriu: sabia o quanto a esposa gostava de receber nobres e
dignitários, ou qualquer um que impressionasse os vizinhos. “Acho que ele
tem alguma proposta em mente, quem sabe até um novo cargo? Tenha fé,
querida, as coisas vão melhorar. Pare de chorar e reze para que Deus nos
ajude.”
Deitou-se ao lado da mulher e beijou a pele macia de seu pescoço. Aos
poucos, Bárbara deixou-se relaxar, uma flor desabrochando pétala por pétala,
até parecer ter adormecido. Kepler virou-a de frente, como a uma boneca sem
vida. Ela se rendeu às insistentes carícias do marido. Olhou para fora. A neve
caía pesada, distante. Kepler sentiu-se envergonhado com o assédio,
instigado, parecia, por algum animal que vivia dentro dele, uma besta que mal
conhecia. Mas precisava daquilo, do contato físico, das peles se tocando, do
clímax. O corpo sob o dele podia ser o de qualquer mulher, não importava.
Talvez fosse esse o desejo de Bárbara, negar sua presença, ser só corpo, um
repositório oco, sem espírito. Kepler montou-a como a uma cadela, sua
mente, opaca, dominada pela besta. Penetrou-a com um movimento brusco,
quase com fúria, os olhos voltados para cima, fitando o vazio do teto,
enquanto os de Bárbara fitavam ainda a neve fria, resignada, que caía lá fora.
Os dois dias seguintes foram dedicados à preparação da casa para receber o
ilustre chanceler. Bárbara parecia transformada, cheia de energia, fazendo
compras, limpando, cozinhando. Causaria excelente impressão, tinha certeza.
Herwart, apenas de passagem, não ficaria para o jantar. Bárbara decidiu então
fazer um bolo de mel, que serviria com vinho, a sobremesa favorita dela.
Kepler contava os minutos, feliz de que finalmente conheceria seu fiel
correspondente e mentor, que não media esforços para apoiá-lo perante as
autoridades da Estíria. Sabia que a relativa paz que havia gozado nos últimos
meses era consequência das manobras de Herwart. Sabia também que ele era
uma exceção, que a situação piorava a cada dia para os que ainda não tinham
se convertido. Herwart era um desses raros indivíduos que acreditam na
aliança intelectual dos homens, mesmo que estes escolham seguir credos
diferentes. Para ele, assim como para Kepler, o Livro da Natureza estava
aberto a todos que quisessem encontrar nele o caminho até Deus.
No dia marcado, Kepler lavou-se bem e vestiu sua melhor roupa, um
casaco de veludo preto com listras verticais e botões de seda, uma blusa de
linho branco com gola de renda enfeitada de detalhes triangulares e um cinto
com fivela de prata. Usava também o medalhão de Sebald, com o brasão da
família. Ocasionalmente, o medalhão ainda se aquecia por si só: “Sempre que
minha mãe pensa em mim”, murmurou Kepler, olhando-se no espelho.
Imaginou-a em seu laboratório improvisado, feliz da vida, preparando poções
exóticas e elixires mágicos, panelas borbulhando, a fumaça espalhando-se, as
janelas embaçadas, o cheiro insuportável. Jurou que em breve a visitaria. Será
que ela o reconheceria, agora que estava tão diferente, com seu cavanhaque
cuidadosamente aparado e os cabelos castanho-escuros penteados para trás?
“Quase atraente”, disse para sua imagem, “a cara de um príncipe espanhol!” E
foi para a sala atiçar o fogo.
Bárbara também caprichara: usava seu vestido bege com brocados florais e
os cabelos presos no alto da cabeça. Kepler sorriu ao vê-la entrar na sala,
ainda espantado com a recente transformação da mulher. Ela baixou os olhos,
encabulada. A seu lado, Regina sem dúvida imaginava-se uma princesinha no
vestido de renda branca com listras de seda azul-clara, a mesma seda que
revestia seus sapatos e da qual era feito o grande laço que lhe cingia a cintura.
Seu rosto parecia incandescente, os olhos também. Ela ia toda hora à janela
para ver se a carruagem havia chegado. Não perderia a oportunidade de abrir
a porta para o convidado ilustre, de ser a primeira a vê-lo. A neve continuava
a cair, mais leve agora, brilhando em tons violeta contra o céu que escurecia.
“Ele chegou, ele chegou!”, gritou Regina. “Olha, mãe, que cavalos lindos!”
A carruagem, ricamente decorada com detalhes florais pintados em ouro,
puxada por dois enormes cavalos negros mais bem tratados do que a maior
parte da população da Bavária, estacionou em frente à casa dos Kepler. Um
lacaio, de uniforme azul-marinho e chapéu de abas largas que o protegiam da
neve, desceu do veículo e abriu a porta com toda a pompa que o chanceler
merecia. Herwart von Hohenburg era um homem alto, esguio, com a
expressão triste de quem costuma passar longos períodos ponderando as
grandes questões metafísicas, as que jamais podem ser respondidas. Tinha o
aspecto que a bondade e a sabedoria teriam se assumissem a forma humana.
De seus olhos escuros emanava um brilho terno, que inspirava confiança e até
reverência. Sua aparência era complementada pela roupa elegante e discreta:
um colete de veludo preto sob uma comprida capa da mesma cor, presa nos
ombros por broches de ouro. Um colar de prata quase lhe tocava a cintura, de
onde pendia um medalhão de ouro com o brasão de sua nobre e antiga
família.
Rapidamente, Kepler abriu a porta e desceu os três degraus até a rua. Por
alguns instantes, os dois homens entreolharam-se, tímidos, dando vida a uma
amizade que existia apenas no papel. Enfim, abraçaram-se como velhos
amigos. Kepler, que tinha ensaiado várias vezes o que diria ao distinto
convidado, espantou-se com sua informalidade.
“Meu caro Johannes, finalmente nos encontramos!”
“Ah, finalmente! Fico muito feliz por o senhor ter vindo, chanceler”, disse
Kepler, inclinando-se.
“Eu também, meu caro. Havia muito desejava conhecê-lo, apertar a mão de
um jovem tão talentoso. Após tantas cartas, já era mesmo hora.”
“É verdade, senhor, é verdade.” Kepler sorriu, orgulhoso. “Por favor,
vamos entrar, sentar perto do fogo, onde estaremos mais confortáveis. Minha
esposa está ansiosa para conhecê-lo.” Estendeu o braço em direção à entrada
da casa, dando passagem a Herwart. Regina, à porta, não sabia se olhava para
o chanceler ou para os cavalos.
“E esta adorável donzela, Herr Kepler, quem é?”, perguntou Herwart,
piscando para o amigo. “Qual o seu nome, formosa senhorita?”
“Sou Regina, senhor, às suas ordens”, respondeu a pequena, fazendo
reverência e correndo para dentro.
Bárbara, sentada num amplo sofá ao lado da lareira, parecia uma matrona
romana à espera da aia. Herwart foi ao seu encontro e curvou-se
respeitosamente. Ela baixou os olhos, envergonhada, sem saber o que dizer. O
chanceler, que tudo percebia, tomou a iniciativa: “Frau Bárbara, fico
embevecido pelo fato de a senhora ter aberto as portas de sua belíssima casa
para me receber. É uma grande honra estar aqui, finalmente conhecer esta
distinta família”.
“Caro chanceler”, devolveu Bárbara, tentando soar o mais requintada
possível, “eu é que fico honrada com sua presença. Raramente recebemos
visitas, sobretudo agora, que a maioria dos amigos de meu esposo vive longe.
Por favor, vamos até a mesa. Pedirei à criada que nos traga bolo de mel e
vinho.”
À mesa, discutiram a situação política na Estíria, o clima frio, que ainda
duraria dois ou três meses, os temores apocalípticos da população em razão
do fim próximo do século, as novas ameaças de invasão dos turcos no sul. Ao
terminarem, Herwart ergueu o cálice: “Ao meu caríssimo amigo Johannes,
uma das mentes mais brilhantes a dignificar este Império”. Kepler baixou os
olhos e balançou a cabeça negativamente. “Não, não, não negue essa
verdade”, disse o chanceler. “Não é minha opinião apenas. Você tem muitos
amigos aqui na Estíria. E estamos todos preocupados com sua situação.”
Tomou um gole de vinho e olhou paternalmente para Kepler. “E isso leva ao
motivo de minha visita. Consegui transporte para que você vá a Praga visitar
Tycho Brahe. Meu caro amigo, barão Hoffmann, um eminente diplomata da
corte imperial, partirá no dia 11 de janeiro e conta com sua companhia.”
Kepler teve de se controlar para não ir até Herwart e abraçá-lo. “Claro que
irei a Praga com o barão. Não sei como agradecer-lhe, chanceler, por essa
chance de encontrar o maior astrônomo de nossos tempos, talvez de todos os
tempos. Só espero que ele ainda se lembre de mim…”
“Não se preocupe, Johannes. Sei que Tycho ficará muito feliz em conhecê-
lo. Não me surpreenderia se ele acabasse por convidá-lo, e também a sua
família, para viver em Praga, agora que a situação dele por lá é mais estável.”
O chanceler voltou-se para Bárbara, que olhava para ele, pálida. “Frau
Bárbara, espero que não fique preocupada com o paradeiro do seu marido.
Essa viagem será curta, uma sondagem apenas, para que se façam arranjos
futuros.” Ela permaneceu imóvel. Herwart entendeu que teria de argumentar
mais. “Johannes me diz que a senhora é muito ligada à sua cidade, o que não
admira, visto que Graz é mesmo a pérola da Estíria. Porém, compreenda,
minha distinta senhora, que não exagero ao dizer que seu marido corre grave
perigo nestas terras. Infelizmente, estes são os tempos que vivemos, em que
vidas e destinos são determinados pela intolerância religiosa.” Bárbara
aquiesceu levemente com um gesto de cabeça, sem saber se continuava a agir
como uma dama da alta classe ou se explodia em prantos. Resolveu controlar-
se, acenando à criada para que recolhesse os pratos. Kepler, por sua vez, mal
podia falar, de tão emocionado. Agradeceu muito ao chanceler pela
oportunidade e, quando por alguns instantes a esposa lhe deu as costas, por
ajudá-lo a explicar a situação a ela.
Herwart não demorou a partir. Kepler passou a noite em claro, andando
pela casa como um animal enjaulado prestes a ser solto, já sentindo o cheiro
da liberdade. Sua mente fervilhava: insegurança, medo, mais uma mudança e
a promessa de uma nova vida. Que seria dele e de sua família? Não devia
pensar assim, aquela era uma oportunidade única. Ele, que no passado não tão
distante fora apenas um humilde estudante de teologia, iria ao encontro do
maior astrônomo da Europa, o único que possuía os dados de que tanto
necessitava, que tornariam possível realizar seu sonho, que o ajudariam
finalmente a desvendar a estrutura cósmica em todo o seu esplendor.
Ninguém havia medido os céus como Tycho. As possibilidades eram infinitas.
Pensou também em Maestlin, em sua mágoa por ter sido abandonado pelo
querido mentor. Que fosse assim, precisava seguir seu caminho, mesmo que
este o levasse para mais longe ainda de Tübingen. Talvez um dia se
reencontrassem e então se abraçassem como pai e filho, dispostos a reatar os
laços do passado. Agora, tinha uma missão a cumprir.
As duas semanas seguintes foram as mais lentas de sua vida.
PARTE III
Praga
Descrevo, nesses cinquenta e um capítulos, meu
caminho solitário, como me choquei com mil
muralhas até alcançar meu objetivo. Uma
coisa, porém, é certa: existe uma força vinda do
Sol que compele os planetas a girar à sua volta.
Johannes Kepler, carta a Longomontanus,
sobre seu livro Astronomia nova ,
início de 1605
Sempre que reflito sobre a belíssima ordem que
observamos no mundo, como cada coisa se
origina de outra, sinto-me como se estivesse
lendo um texto divino, escrito não com letras
mas com objetos, que dissesse: “Homem,
amplia tua razão, para que possas
compreender”.
Johannes Kepler, calendário de 1604
20
25 de janeiro de 1600
Chegamos a Praga após dez longos dias. O barão,
sempre extremamente gentil, hospeda-me em sua
mansão enquanto arranja um encontro com Tycho.
Infelizmente, a peste forçou-o a ausentar-se de
Benátky por tempo indeterminado. Um péssimo sinal,
a peste logo agora… Mas o barão me assegura que
não é coisa séria e que logo ele estará de volta.
Praga é majestosa. Nenhuma cidade se compara a
ela. O castelo do imperador, chamado Hradschin,
domina a vista do alto de uma colina, cercado de
casarões e palácios pertencentes à nobreza local. O
barão vive perto da catedral de São Vito, uma
enorme estrutura gótica cuja torre pode ser divisada
a léguas de distância. Os católicos certamente sabem
como celebrar a glória de Deus em seus templos…
Nos primeiros dias, explorei as vizinhanças do
castelo, que a população local chama de Hradcany.
Uma larga avenida desce até o rio Moldau, de onde
uma ponte leva à Cidade Velha. Pretendo visitá-la em
breve. Nunca vi tantas pessoas, ricas e pobres,
católicos e protestantes, reunidas no mesmo lugar.
Vendedores que oferecem de tudo um pouco —
comidas, tapetes, joias, objetos vindos de terras
próximas ou longínquas — enchem as ruas e vielas
estreitas. Odores exóticos escapam de sacos repletos
de sementes e iguarias as mais diversas. Mendigos
dormem nas calçadas, competindo por espaço com
músicos, mágicos e dançarinos. Graz, em
comparação, lembra um pequeno vilarejo. As ruas de
Praga parecem esconder a solução de antigos
mistérios esculpida em suas sombras, cada esquina
apresentando infinitas possibilidades, perigosas e
promissoras. Esta cidade é uma feiticeira: ela nos
seduz com seus encantos até apossar-se de nossas
almas. Pulsa com vida, como se o próprio tempo
tivesse feito dela sua moradia e ocultado sua
essência nas fachadas dos prédios que se debruçam
tristes sobre as calçadas.
Christian olhou para o avô, a fim de certificar-se de que podia continuar.
“Tenho de visitar Praga quando terminar a guerra”, disse, esperançoso.
Maestlin permaneceu calado. Olhava para fora, para a pequena e orgulhosa
Tübingen, onde passara quase toda a vida. Sentiu-se limitado, provinciano,
tão conservador em suas viagens quanto em sua astronomia. “Que triste ironia
dar-me conta de como desprezei as coisas boas da vida, agora, que já estou
quase morto, tão fraco que mal posso caminhar sozinho até o rio”, pensou.
Ergueu os olhos tristes, indicando a Christian que prosseguisse. Ao menos ele
tinha tempo pela frente, talvez aprendesse algo e não arruinasse sua
existência.
31 de janeiro de 1600
Que felicidade! Finalmente recebi notícias de Tycho,
que acaba de retornar a Benátky: Venha não como
um mero convidado, mas como um caro amigo e
colaborador de nossos estudos e observações
celestes… “Amigo e colaborador”! Nobre senhor,
não tenha dúvida de que em breve estarei a seu lado.
Mal posso esperar para mergulhar nos dados que
vão confirmar meu arranjo dos céus. Sinto-me como
um beduíno que, depois de passar dias atravessando
o mais seco dos desertos, avista, enfim, o oásis ao
longe.
2 de fevereiro de 1600
Enquanto espero os emissários de Tycho, continuo a
explorar Praga. Ontem, cruzei a magnífica ponte
Carlos em direção à Cidade Velha. A beleza desta
cidade é extasiante, a começar pela praça Central e
seu relógio astronômico, uma maravilha mecânica
que mostra os movimentos da Lua e dos céus e marca
a passagem das horas com o anjo da morte tocando
um sino lúgubre, lembrando-nos, a cada badalada,
de nosso destino. Se o castelo imperial é a cabeça de
Praga, a Cidade Velha é seu coração, e suas vielas e
ruas, as veias por onde flui seu sangue. Em frente ao
relógio, encontra-se a sinistra igreja de Tyn, na qual
repousam os restos mortais de muitos nobres da
Boêmia, um colosso gótico cujos pináculos gêmeos
parecem desafiar os céus.
Hoje à tarde, na praça, avistei um homenzinho
vestido de preto, com um chapéu também preto e um
xale de seda branca amarrado à cintura. Uma
comprida barba castanha com fios grisalhos em
torno da boca cobria seu rosto pálido. Pequenas
tranças espiralavam das orelhas, dançando à sua
volta enquanto ele caminhava a passos largos na
direção norte. Murmurava algo ininteligível, talvez
uma prece; uma aura cercava-o. Movido por uma
curiosidade incontrolável, decidi segui-lo à distância.
Raramente via judeus como aquele em Graz ou em
Tübingen, apenas quando pousavam nessas cidades
durante suas viagens. Em Praga, contudo, havia
muitos deles vivendo na região que chamavam de
gueto, de onde quase nunca saíam. Parece que foram
postos lá à força, após um decreto papal de 1179. Um
tanto absurda tal segregação, sobretudo
considerando-se que o ministro das Finanças do
imperador é o prefeito do gueto, Mordechai Maisel,
supostamente o homem mais rico da cidade. É
evidente que Rodolfo ii não vê problemas em
contrariar as instruções do papa. Bom sinal.
A estranha figura deixou a praça e andou por vielas
até chegar a um portão de metal, a única passagem
numa muralha alta como três homens: a entrada do
gueto. Voltando-se, encarou-me em silêncio e me
examinou de cima a baixo. Estava claro que sabia
que eu o havia seguido. “Posso ajudá-lo, jovem?”,
perguntou em alemão. Surpreendi-me de que
conhecesse minha nacionalidade. Envergonhado,
pedi desculpas e apresentei-me. “Ah, um astrônomo!
Excelente, excelente. Talvez um dia o senhor possa
nos visitar, conversar com o rabino Gans.” Indaguei
quem era o rabino Gans. O minúsculo judeu
balançou a cabeça, mal acreditando que eu não
soubesse de quem se tratava. “O rabino é um grande
estudioso, um conhecedor da astronomia, o braço
direito do notável rabino Loew, o mais sagrado dos
homens.” Considerei pretensiosa sua afirmação.
Talvez outros homens também fossem tão sagrados,
mas respondi que teria imenso prazer em visitar o
rabino Gans. Expliquei que partiria em breve para
trabalhar com Tycho Brahe e que, portanto, seria
melhor visitálo o quanto antes. À menção do nome do
matemático imperial, o homem sorriu, animado.
“Bem, bem, nesse caso é melhor que o senhor me
acompanhe imediatamente.” Olhei ao redor, sem
saber se devia ou não penetrar naquele mundo tão
distinto do meu. Meu guia, vendo que eu hesitava,
acenou-me para que o acompanhasse, mantendo boa
distância entre nós.
Todos os homens se vestiam da mesma forma que
ele; já as mulheres usavam vestidos longos e cobriam
a cabeça com lenços. Observavam-me, curiosos, e
faziam comentários. Uma menina de uns oito anos,
com enormes olhos negros, sorriu e acenou para
mim. Quando retribuí o sorriso, ela veio mostrar-me
sua boneca, feita de retalhos. Vendo meu interesse,
pôs-se a contar uma longa história com grande
entusiasmo, provavelmente as aventuras da boneca.
Pena que eu não tenha entendido uma palavra ao
menos. Ela falou animadamente até sua mãe gritar
de uma janela que se calasse, enquanto sorria para
mim, desculpando-se. Curvei-me respeitosamente à
senhora e fui atrás de meu impaciente guia, a quem
quase perdia de vista.
Ele parou em frente a uma construção singular, uma
estrutura gótica com uma única torre. “Essa”, disse,
“é a sinagoga que chamamos de Alt Nay. Foi
construída com as pedras do templo do Rei Salomão.
Quando o Messias chegar e o templo for reconstruído
em Jerusalém, serão usadas essas mesmas pedras.”
Bateu três vezes na enorme porta de madeira e, assim
que ela foi aberta, adentrou o local. Do lado de fora,
ouvi vozes agitadas, bem como passos lentos e
pesados subindo degraus. Minha inesperada visita
aparentemente causou alvoroço. Tive a impressão de
que objetos eram escondidos às pressas, que portas
se fechavam. Por fim meu guia reapareceu,
acenando-me para que entrasse. Conduziu-me a uma
sala iluminada por tochas suspensas em paredes de
pedras grandes e amareladas, as pedras de Salomão.
Após alguns instantes, passamos por um corredor
estreito que nos levou ao salão principal da
sinagoga. Senti-me tomado por uma sensação de paz,
de união com o divino. Ouvia um murmúrio contínuo,
persistente, como se as próprias paredes rezassem,
ecoando séculos de devoção, de entrega ao Criador.
Duas colunas octogonais sustentavam o salão como
dois braços erguidos em prece. Uma estrutura
retangular, da altura de um homem, feita das mesmas
pedras que o restante do templo e cercada por um
elaborado muro de ferro batido com detalhes florais
intrincados, ocupava o centro do espaço. No lado
oposto, sobre um altar bem simples, uma espécie de
armário guardava o que — via-se por uma fresta —
parecia ser um rolo de textos sagrados protegido por
uma capa de veludo vermelho.
Alguém tossiu levemente. Quando me voltei na
direção do som, vi um homem alto e magro, de barba
comprida, quase toda branca. Seus olhos brilhavam
com uma luz pálida, testemunhas de coisas que
poucos homens imaginam possíveis. “Meu nome é
David Gans”, apresentou-se com voz quase gutural.
“O rabino Josué me conta que o senhor é astrônomo.
Tenho imenso prazer em conhecê-lo”, continuou,
inclinando-se. Uma paz profunda irradiava daquele
homem, que inspirava confiança de imediato.
Que circunstância extraordinária, pensei. Apenas
alguns dias em Praga, e aqui estou, na presença de
um dos grandes líderes intelectuais da comunidade
judaica, um interessado em astronomia. O rabino
levou-me a um escritório, onde me ofereceu um cálice
de vinho adocicado e perguntou sobre meu trabalho,
em particular sobre Copérnico. Cada vez que eu
mencionava meus argumentos justificando a posição
central do Sol, seus olhos faiscavam. Após uma hora,
o rabino Josué informou a Gans que eu devia partir.
“Sinto muito pela interrupção, Herr Kepler, e espero
que tenhamos outra oportunidade para continuar
essa conversa. Talvez vá visitá-lo, em Benátky…”
Respondi que teria enorme prazer em revê-lo, mas
que ele devia consultar Tycho sobre uma eventual
visita. Gans sorriu. “Decerto, Herr Kepler. Acho
pouco provável que Tycho Brahe não se interesse
pela minha visita.” Falou e curvou-se. Meu guia
bufou e lembrou ao rabino que o Sol estava se pondo.
“Que Aquele Que Não Tem Nome ilumine seu
caminho com a luz de Sua infinita sabedoria”, disse
Gans.
O rabino Josué conduziu-me de volta à sala de
entrada. No caminho, notei uma escada à minha
direita, que levava até a torre. A porta de um quarto
no segundo andar estava entreaberta. Lá de dentro
surgiu uma figura colossal, maior do que qualquer
ser humano que eu já vira, coberta por trapos
enlameados. Seus ombros deviam ser ao menos duas
vezes mais largos que os meus. Tinha uma corda
amarrada à cintura. O rosto… talvez fossem meus
olhos ou a luz fraca das velas… Vi apenas traços
grosseiros, amorfos. Parecia… sei que isso é
absurdo… parecia que a criatura não tinha rosto ! E
o que eram aquelas inscrições em sua testa? Letras
do alfabeto hebreu? Alguém gritou do interior do
quarto, e o gigante recuou, desaparecendo da vista.
Fiquei parado ao pé da escada, até sentir meu guia
me puxar pelo braço e quase me empurrar para fora
do templo. Fosse lá o que fosse, aquela estranha
aparição não era humana.
Christian olhou assustado para o avô. Maestlin deu de ombros. “Sabe-se lá
o que se passa entre as muralhas desses guetos”, disse. “Talvez fosse apenas
um brutamontes estúpido.”
“Não sei, senhor, essa história me parece bem estranha. Espero que Kepler
nos conte um pouco mais sobre essa criatura.”
“Mas não hoje”, disse Maestlin. “Estou muito cansado.”
O neto devolveu-lhe o diário. “Volto amanhã, então?”
“Sem dúvida! Pedirei a Maria que prepare mais um Kuchen para você.”
Ambos ouviram passos. Era Maria que procurava a farinha.
21
19 de março de 1600
Um mês já se passou desde que cheguei a Benátky.
E, a cada dia, minha alma fica mais pesada.
Desdenho os banquetes e os excessos daqui,
tentações pecaminosas que me distraem de minha
missão. O vinho enfraquece-me a mente, tornando-
me lento de raciocínio e agressivo. Temo ter feito
apenas inimigos. Tycho finge não me ouvir, e
continuo no mesmo quarto miserável, apesar dos
protestos. Seu filho e Tengnagel, aquele idiota
pretensioso, tornam quase insuportável meu dia a
dia. Longo-montanus é um pouco mais agradável,
mas é óbvio que se ressente de minha presença —
considera-me um intruso — e vem se afastando. Acho
que planeja retornar à Dinamarca em breve.
A única boa notícia é que venho progredindo nos
cálculos sobre a órbita de Marte, embora tenha
perdido a aposta que fiz com Tengnagel (mas não lhe
dei uma garrafa sequer!). Descobri que os dados de
Tycho fazem muito mais sentido quando o centro da
órbita é o Sol, não a Terra. Exatamente o que eu
esperava: o Sol como centro de todas as órbitas, a
fonte dos movimentos planetários. Para confirmar
minha hipótese, demonstrei que a órbita da Terra
também se comporta desse modo. Tal como Marte,
nosso planeta move-se mais rápido quando mais
próximo do Sol. Suspeito que exista uma relação
matemática entre a velocidade orbital de um planeta
e sua distância do Sol… Tycho tem razão: talvez seja
mesmo melhor concentrar-me na órbita de um
planeta apenas. Na verdade, minha cobiça pode me
cegar.
26 de março de 1600
Tycho continua a ignorar-me. Nunca tem tempo
para conversarmos, especialmente depois que soube
de meu progresso com Marte. Teme que seus dados
acabem provando que seu sistema geocêntrico está
errado, como sei que está. Por outro lado, insiste que
eu seja fiel aos seus dados. Estou sendo fiel aos seus
dados, senhor, e o que eles me dizem, cada dia com
mais clareza, é que o Sol é o centro das órbitas de
Marte e da Terra. Se pudesse pôr as mãos nos dados
dos outros planetas, tenho certeza de que provaria
que também giram em torno do Sol. Infelizmente, isso
me parece impossível no momento, já que Tycho os
protege mais do que Jobst Müller protegia Bárbara.
O trágico é que sei o quanto ele precisa de minha
ajuda (e eu da sua!). Vejo isso nos olhos dele, um
lampejo somente, uma luz incerta por trás de sua
postura intimidadora. Como na fábula do leão ferido,
paralisado por um espinho na pata, e do
camundongo insignificante que o socorre, Tycho
necessita de um arquiteto que dê vida ao seu
trabalho, e sabe que sou o único capaz de fazê-lo,
ainda que possa causar o colapso de sua visão do
mundo. Preciso dele, respeito-o pelo grande
astrônomo que é, mas meu compromisso é apenas
com Deus e Sua verdade. Só espero que o leão,
movido pelo orgulho, não devore o camundongo
antes mesmo de se recuperar. Ou depois.
Maestlin olhava pela janela, distraído. Christian pigarreou, tentando
chamar sua atenção. “Por que Tycho se recusou a dar seus dados para Kepler?
Do que tinha tanto medo?”
“Não condene precipitadamente os atos de Tycho, Christian. Ele sentia o
peso da idade, sabia que não viveria por muito mais tempo. Como poderia
entregar o trabalho de toda a sua vida nas mãos de um estranho, um jovem
pretensioso que se julgava capaz de desvendar um dos grandes mistérios da
astronomia em uma semana?” O jovem fitava constrangido os olhos
atormentados do avô. “Além do mais, ele não confiava em Kepler.”
“Por que não? Kepler fez algo de errado?”
“Kepler havia escrito uma carta apoiando as ideias de Ursus, o grande rival
de Tycho.”
“O senhor se refere a Ursus, o matemático imperial?”
“O próprio, aquele salafrário. Como Tycho podia entregar seu maior
tesouro a Kepler depois disso? E para quê? Para que alguém com metade da
idade dele revelasse seus erros ao mundo? Para ser desmoralizado por suas
ideias antiquadas? Ele, o príncipe dos astrônomos? Não, você não deve
condenar os atos de Tycho. Às vezes, é melhor morrer negando o fracasso do
que aceitá-lo. Garanto-lhe que é uma opção bem menos dolorosa… Tycho
demonstrou coragem ao convidar Kepler para ir a Benátky. Uma coragem que
nunca tive.” Maestlin baixou a cabeça. Christian viu em seus olhos o
sofrimento que carregava havia trinta anos. Sentiu imensa pena do avô, de
Tycho, daqueles que, no fim da vida, olham para seu passado, seus erros, e
sabem ser tarde demais para repará-los, derrotados pelo tempo, que derrota a
todos.
Maestlin pediu-lhe que prosseguisse a leitura.
4 de abril de 1600
Não posso continuar assim, sendo ignorado por
Tycho, sendo tratado como um mero aprendiz! Ele
incumbiu Longomontanus de ser meu mentor, mesmo
sabendo muito bem que sou mais competente. E o
meu futuro? Quanto tempo terei de ficar aqui como
hóspede, sem salário, sem perspectiva nenhuma, sem
minha família? Essa incerteza corrói minhas
entranhas, deixa-me nervoso. Toda noite brigo com
alguém durante a ceia, ou para defender-me dos
ataques injustos de Tycho Junior e Tengnagel, ou
para provocar a ambos. E o pior é que Tycho parece
divertir-se com isso, limitando-se a sorrir
perversamente da cabeceira da mesa, enquanto seus
cães de estimação se devoram. O tirano alimenta-se
da miséria dos outros!
Hoje, solicitei ao bom dr. Jesensky que me
represente nas negociações com Tycho. Se até o
imperador confia nele, espero que possa me ajudar a
resolver minha situação. Entreguei-lhe uma lista de
pedidos endereçados a Tycho. É bom que meu plano
funcione!
Kepler e Jesensky encontraram-se na antessala da biblioteca de Tycho.
Alguns minutos depois, um lacaio anunciou que o astrônomo estava pronto
para recebê-los. Kepler balançou negativamente a cabeça. “Julga-se o próprio
imperador”, murmurou. Jesensky fitou-o, apreensivo.
“Herr Jesensky, Herr Kepler, por favor, entrem. Sentem-se aqui, perto do
fogo”, disse Tycho, vestido como se fosse a uma audiência com o imperador,
o peito coberto de medalhas. Até seu nariz parecia brilhar com mais
intensidade.
“Nobre senhor”, começou Jesensky com voz insegura, “Herr Kepler
gostaria de saber se teve oportunidade de ler sua lista de pedidos.”
Kepler tentou esconder o nervosismo, evitando os olhos de Tycho. Este,
por sua vez, parecia muito calmo. “Sim, li a lista, e creio estar de acordo com
quase tudo”, respondeu.
“O senhor poderia, talvez, dizer primeiramente com o que concordou?”,
sugeriu Jesensky.
“Sem dúvida. Entendo que Herr Kepler queira morar em sua própria
residência, com a família. Não vejo problema nisso, contanto que a casa se
localize nas proximidades de Benátky. Não sei, exatamente, por que ele
precisa ter liberdade de ir a Praga quando bem entender, mas atenderei
também a esse pedido. Ademais, em razão de sua visão reduzida, não
participará de nossas observações astronômicas, reservando seu talento para
os cálculos necessários, como já vem fazendo.” Tycho interrompeu-se,
fitando Kepler com firmeza. “Em troca, Herr Kepler deve jurar que não
revelará, em nenhuma circunstância, o que se discute neste castelo. Além
disso, exijo que ele redija um documento esclarecendo sua posição sobre
minha disputa com aquele desgraçado do Ursus.”
Kepler estourou: “O senhor obviamente não confia em mim. Pior, acusa-
me de ser um espião!”.
“Jovem, até o momento não tenho nenhuma prova em contrário”, replicou
friamente Tycho, e, embora Jesensky ameaçasse dizer algo, continuou:
“Tampouco posso garantir-lhe um salário no momento. Infelizmente, a
generosidade do imperador não se estende ao seu tesoureiro. Eu mesmo não
recebo há meses”.
“Quê?”, berrou Kepler. “O senhor quer que eu fique aqui, longe de minha
família, trabalhando como um escravo com seus assistentes incompetentes?
Considera-me um tolo?”
“Sua remuneração, o senhor recebe em moradia, sustento e aprendizado.
Gostaria também de lembrar-lhe que ninguém que está sob minha supervisão
é incompetente. Sua ingratidão e seu desrespeito são injustos e
desnecessários.” Jesensky olhou surpreso para Tycho, que normalmente já
teria chutado o insolente para fora da sala.
“O senhor chama de ‘moradia’ o buraco fedorento onde durmo? Recuso-me
a ser humilhado desse jeito. E que ‘aprendizado’ é esse? Aprendi muito mais
com mestre Maestlin do que com o senhor ou com qualquer outro neste
castelo. Na verdade, julgo minha estada aqui uma grande perda de tempo!
Vou-me embora amanhã de manhã. Deixo-lhe com seus assistentes
competentes.” Kepler levantou-se e se dirigiu à porta, ignorando os apelos de
Jesensky.
“Sua insolência, Herr Kepler, será o seu fim”, gritou Tycho. “Será um
alívio tê-lo longe daqui.”
Kepler bateu a porta do quarto com violência. Fizera de tudo para evitar
aquele conflito, mas sua paciência tinha limite. Sentia-se culpado, com a
consciência pesada. A raiva, porém, consumia-o. Seu corpo inteiro tremia.
Precisava acalmar-se, pensar no que fazer. Foi até a cômoda, onde ficava a
pequena bacia com água, e lavou o rosto. Olhou-se no espelho e se perguntou
como podia ter se transformado em tão pouco tempo naquele monstro
intransigente, egoísta. Estava confuso, desejava que Maestlin estivesse por
perto, que o aconselhasse e tranquilizasse. A quem recorreria agora? “Feliz é
a criança que chora sabendo que os pais estão próximos para ouvi-la”,
lamentou-se, as lágrimas escorrendo.
Decidiu caminhar, clarear os pensamentos. Atravessou rapidamente a área
central do castelo em direção à trilha que descia para o vale. Era primavera, o
campo inteiro cobria-se de flores selvagens — amarelas, cor de laranja,
vermelhas. Havia quanto tempo não prestava atenção nas criações da
Natureza, prisioneiro da obsessão por Marte e sua órbita. Olhou em torno:
tudo parecia estar no lugar, como se uma mão mágica houvesse arranjado o
mundo da forma mais harmoniosa possível. O sol surgiu repentinamente de
trás de uma nuvem, enchendo de luz o vale. Pela primeira vez em um mês,
Kepler sentiu-se em paz. Teve a impressão de que os pássaros gorjeavam em
coro para lembrá-lo do que realmente importava: o Mistério cosmográfico ,
decifrar o plano divino da Criação, sua missão sagrada. Sabia que estava mais
próximo que nunca de cumpri-la, agora que os dados de Tycho tinham
confirmado que o Sol era o centro da órbita de Marte e da Terra. Mas… como
continuaria seu trabalho? Sem os dados de Tycho, só o que podia fazer era
especular. E sabia muito bem que, em filosofia natural, especulações somente
são aceitas se forem comprovadas.
Kepler deteve-se, pensando na estupidez de seus atos. Cuspira no único que
o acolhera, um dos maiores astrônomos de todos os tempos, talvez o maior.
Havia enlouquecido? Preferia voltar de mãos vazias para Graz, dedicar a vida
a tarefas medíocres, produzir calendários e mapas astrológicos para a nobreza
da Estíria? Não, não e não! Não fora para isso que tinha vindo ao mundo! Não
morreria frustrado. Precisava encontrar uma saída, um gesto de reconciliação.
Mas como? Tycho não perdoaria aquela afronta. O homem perdera o nariz
num duelo!
Viu uma nuvem de poeira ao longe, uma carruagem na estrada que vinha
de Praga. Sentou-se na relva, esperou que ela se aproximasse. Era a
carruagem do barão Hoffmann, a mesma que o trouxera de Graz. “Obrigado,
Senhor!”, berrou para os céus. O barão era o único que podia ajudá-lo naquele
momento.
“Caro Johannes, que alegria revê-lo! E antes de chegar ao castelo! Que
coincidência!” Kepler entrou no veículo e tentou sorrir. “Mas você está
pálido… Que houve? Está doente?”
“Barão”, balbuciou Kepler, “o senhor precisa me ajudar. Estou em apuros.”
O sorriso do barão desvaneceu-se. “Conte-me o que aconteceu.”
Escondido em seu quarto, já que não podia correr o risco de encontrar-se
com Tycho nem com seus assistentes, Kepler aguardou ansiosamente notícias
do barão. No quinto dia, viu pela janela a carruagem de Hoffmann partir bem
cedo. O barão retornou no dia seguinte, acompanhado de Tycho; eles haviam
feito uma breve viagem, provavelmente até Praga. Kepler mal podia conter a
curiosidade, mas Hoffmann ordenara-lhe que só aparecesse quando a situação
estivesse resolvida. No fim da tarde, um lacaio foi buscá-lo no quarto e o
levou à biblioteca. Dessa vez, o mediador seria o barão.
Como na outra ocasião, Tycho usava suas roupas da corte. Hoffmann,
sentado ao lado dele, olhava distraído para a lareira. Kepler entrou de cabeça
baixa. O barão quebrou o silêncio: “Johannes, Herr Tycho, demonstrando sua
generosidade, aceita receber carta sua desculpando-se da conduta lastimável,
contanto que de hoje em diante se comporte como um pupilo obediente.
Prontifica-se a fazê-lo?”.
“Sem dúvida, meu senhor”, respondeu Kepler com voz trêmula.
Tycho permanecia impassível. Os dois entreolharam-se, e Kepler pôde ver,
ainda que por um breve instante, a mesma insegurança que já percebera, a
rachadura nas paredes da fortaleza.
“Em troca de seus serviços e lealdade”, continuou o barão em tom
obsequioso, “Herr Tycho conseguiu com o imperador um emprego
temporário para você.” Hoffmann sorriu pela primeira vez. “Tenho o prazer
de anunciar que o imperador consentiu em dar-lhe apoio financeiro por um
período de dois anos, contanto que trabalhe sob a supervisão de Herr Tycho.
Entretanto, ele insiste que você mantenha seu posto de matemático oficial da
Estíria e adicionará cem coroas ao seu salário anual. Esperamos que esse
arranjo seja satisfatório.”
“Meu senhor, estou profundamente grato a mestre Tycho por sua bondade”,
disse Kepler. “E, claro, também ao senhor e ao imperador. Minha carta
deixará claro meu arrependimento. Prometo provar que sou um trabalhador
dedicado e leal. Mas algo me preocupa: por que o arquiduque Ferdinando e as
autoridades da Estíria concordariam com tal arranjo?”
“O próprio imperador reivindicará sua licença com vencimentos. Julgamos
pouco provável que o arquiduque ou as autoridades da Estíria se oponham ao
desejo de Sua Alteza.” Hoffmann falou com a confiança de quem conhece a
extensão de seu poder e influência.
Kepler inclinou-se e suspirou. Sua situação estava resolvida.
Enfim, Tycho manifestou-se: “Johannes”, disse, “espero ter o prazer de sua
companhia hoje no jantar. Receberemos um convidado especial, alguém que
gostaria muito de encontrá-lo”.
“Terei imensa honra, nobre senhor.” Kepler sorriu. Os olhos de Tycho
pareceram-lhe aliviados.
Quando o sino anunciou a ceia, Kepler já havia escrito a carta. Ao chegar
ao salão, notou a ausência de Longomontanus e perguntou por ele. “O traidor
decidiu deixar-nos”, respondeu Tengnagel. Kepler sentiu-se culpado. “Será
que ele se ofendeu quando ouviu que eu é que seria pago diretamente pelo
imperador?”, indagou-se. Percebeu que vencera uma batalha tática: com a
partida de Longomontanus, seria o assistente principal de Tycho, já que Tycho
Junior e Tengnagel se interessavam mais por cartas e vinho do que por
astronomia. Entendeu o motivo do alívio nos olhos de Tycho. Era hora de
voltar a Graz para buscar Bárbara e Regina.
As portas do salão foram abertas por dois lacaios. Tycho entrou,
acompanhado do rabino Gans e de seu nervoso assistente. Kepler curvou-se
diante deles, sorrindo. Os judeus saudaram-no com uma leve inclinação de
cabeça. Kepler jurou que beberia pouco.
Terminada a ceia, os quatro dirigiram-se a uma saleta, onde sentaram em
círculo. Tycho foi o primeiro a falar. “Caro rabino Gans, como já lhe disse,
tenho imenso prazer em recebê-lo em Benátky. Sou um grande admirador da
obra intelectual judaica e de seu líder, o rabino Loew.” Gans inclinou a
cabeça, agradecendo. Para ele, ninguém era mais sábio do que o Grande
Rabino Loew de Praga, o Maharal, seu mestre adorado, para quem os portões
celestes estavam perpetuamente abertos.
Gans fitou Tycho e Kepler por alguns momentos, procurando as palavras
adequadas. “Há uma antiga controvérsia entre os sábios de meu povo sobre a
interpretação dos movimentos celestes”, disse com sua voz gutural. “No
Talmude, os comentários das leis sagradas do Eterno, está escrito que os
sábios de Israel aceitaram os ensinamentos dos sábios de Alexandria de que
as estrelas são carregadas pelas revoluções das esferas celestes. No entanto, a
doutrina original judaica afirma o contrário, que são as estrelas que se
movem, enquanto as esferas celestes permanecem fixas.” Kepler sorriu para
Tycho, e ia falar, mas o pequeno rabino ergueu a mão: Gans não terminara.
“Mesmo que o Grande Rabino considere a controvérsia indigna da astronomia
judaica, continuo preocupado com a questão e gostaria de ouvir a opinião dos
senhores.”
“Explique-me uma coisa, rabino Gans”, arriscou Kepler, “o que o senhor
quer dizer com ‘astronomia judaica’? Certamente, todos os homens podem
observar os céus e contemplar sua beleza, não?”
“Certamente, Herr Kepler”, respondeu Gans. “Todavia, o Grande Rabino
não crê que o pensamento judaico deva envolver-se com as causas materiais
das coisas, o que costuma chamar de conhecimento horizontal. Aceita o
entusiasmo e a proficiência com que sábios não judeus se dedicam a essas
questões, mas pensa que a astronomia judaica deve concentrar-se na busca da
essência oculta de todas as coisas. Seria uma meta-astronomia, digamos, sem
considerações sobre as relações materiais e causais do mundo sensorial. Sua
astronomia é uma investigação do espírito humano, e sua relação com o
Eterno, uma indagação metafísica da primeira causa, a verdade absoluta, que
transcende nossa realidade imediata.”
Kepler notou um leve tremor na voz de Gans, quem sabe um conflito entre
sua lealdade ao Grande Rabino e sua simpatia pela astronomia convencional.
Sem perder tempo, disse: “Não foi o grande sábio judeu Moisés Maimônides
que afirmou que a razão deve ser usada para desvendar os mistérios do mundo
natural? Que os textos sagrados não devem ser vistos como tratados
científicos, pois esse nunca foi seu papel? Que, para compreendermos a
natureza de Deus, precisamos estudar os céus, como parte do poema da
Criação?”. Gans concordou, inclinando levemente a cabeça. “Nesse caso”,
continuou Kepler com entusiasmo, “podemos concluir que existe apenas uma
astronomia, a que busca aproximar-se da mente divina pelo estudo dos céus.
Só assim o homem em sua insignificância pode ascender à essência do
Divino, banhar-se em Sua glória.” Gans fitou-o com admiração, talvez inveja.
O jovem astrônomo tinha resolvido a tensão entre seu livre-arbítrio e seu
amor pelo Criador. Usava a razão como instrumento de devoção e
liberdade…
“Herr Kepler mais uma vez demonstra a profundidade de seu
conhecimento e erudição. No entanto, podemos também argumentar, como
imagino que faria o Maharal, que a natureza transcendental Daquele Que Não
Tem Nome jamais poderia ser compreendida por meio do conhecimento
material das coisas e de suas causas. Somente na Cabala podemos encontrar a
chave para o mistério do Eterno.”
“Mas Deus é a Natureza”, replicou Kepler, impaciente. Gans apenas
inclinou a cabeça.
Tycho, que não estava habituado a ser um mero observador, interrompeu:
“Voltando à sua pergunta inicial, rabino Gans, imagino que os sábios judeus,
ao optar pela interpretação dos alexandrinos, adotaram as ideias de
Ptolomeu”. Gans confirmou. “Nesse caso”, prosseguiu Tycho, “tenho
novidades. A doutrina antiga de seus predecessores estava correta desde o
começo! Eu provei, usando inúmeras observações extremamente precisas de
movimentos de cometas e outros fenômenos celestes, que não existem esferas
cristalinas. As estrelas viajam pelos céus sem nenhum suporte. Caso
contrário, um cometa, ao viajar além da Lua, colidiria com várias esferas em
seu trajeto através do cosmo. E, como sabemos, isso ainda não ocorreu.
Estilhaços de cristal nunca choveram dos céus…” Tycho sorriu, obviamente
orgulhoso de sua argumentação. Gans retribuiu o sorriso com inesperada
intensidade. “Decerto, sua consciência está bem mais leve”, pensou Kepler.
“Mas, agora, basta de conversa!”, exclamou Tycho. “A noite está clara,
esperando pelos nossos olhos. Vamos medir a posição de algumas estrelas
para o meu globo celeste. Afinal, sem medidas precisas, a astronomia não
passa de mera especulação.”
“Maimônides, a paz esteja com ele, certamente concordaria”, disse Gans.
Mas Kepler sabia que ele tinha querido dizer: “Eu certamente concordo”.
23
15 de fevereiro de 1601
Depois de passarmos três meses na residência do
barão Hoffmann, mudamos para a casa de Tycho em
Praga. O imperador havia lhe pedido que ele e a
família deixassem Benátky e se juntassem à corte.
Tycho reclamou muito comigo, dizendo que o
imperador queria exibir seus instrumentos como
troféus, pouco se importando com o fato de os céus
de Praga serem péssimos para observações
astronômicas: o ar, poluído pela queima excessiva de
madeira, dificulta medidas precisas.
Tenho enfrentado vários problemas desde que
cheguei a Praga. Como esperava, não encontrei
carta de Maestlin em Linz. Quando finalmente recebi
algo dele, em dezembro, foi pior que seu silêncio. Sua
carta fez-me perder todas as esperanças de obter um
cargo em Tübingen. Só o que ele disse foi que rezaria
por mim e por minha família. A reza pode aliviar sua
culpa, senhor, mas não encherá nossas barrigas.
Nosso dinheiro está sendo rapidamente devorado
pelos preços exorbitantes da cidade. Para completar,
desde o outono estou doente, com uma febre e uma
tosse que não me deixam em paz. Deus tenha piedade
de mim.
10 de abril de 1601
Meu trabalho com Tycho tem progredido muito
pouco, vítima de minha péssima saúde e de sua
avareza. Ele continua a negar-me seus dados, dando-
me num dia uma posição, noutro dia, outra,
insistindo que devo concentrar-me na órbita de
Marte. Infelizmente, tenho pouco a dizer sobre o
assunto.
A morte de Jobst Müller no mês passado contribuiu
para aumentar a melancolia de minha esposa.
Somente a este diário confesso que não chorei a
morte de meu sogro. Sinto apenas pela dor de
Bárbara.
Vou a Graz para cuidar das propriedades que
restaram. Pretendo vender todas, converter tudo em
dinheiro. Estou cansado de depender da
benevolência inconstante de Tycho, que se proclama
meu “benfeitor”. Pode ser, mas eu também sou
benfeitor dele! Sem meus cálculos, ele estaria
perdido. Sou o único aqui capaz de ajudá-lo. Até
Tengnagel partiu — agradeço a Deus por isso — com
Elisabeth. Tycho Junior é inútil. No mais, Regina,
com sua singular generosidade, tornou-se
companheira inseparável de Jepp, que a segue pela
casa como um cãozinho de estimação. Bárbara tem
medo dele, do seu corpo deformado, e evita-o como
se o anão fosse o próprio Diabo. Outro dia, disse-me
que é por causa do seu mau-olhado que não
engravida. Que mulher ignorante fui encontrar!
Maestlin não respondeu a nenhuma das minhas
várias cartas. Será que ele me abandonou tão
cruelmente somente em razão de nossas diferenças
filosóficas? Imagino que não. Seu silêncio é a maior
punição para mim.
Quando for a Graz, não passarei por Tübingen,
onde obviamente não sou querido, embora me parta
o coração admiti-lo. Na verdade, estamos todos sós
no mundo. Apenas Deus nos acompanha. Se em Sua
sabedoria Ele deseja que doravante minha vida seja
aqui, assim será.
Christian interrompeu a leitura e voltou-se para o avô, que parecia
distraído, fitando o rio com olhos vagos. “Por que, vovô, o senhor abandonou
Kepler? Por que não o ajudou quando mais precisava?”
Flutuando entre sonho e realidade, Maestlin olhou para o neto e viu apenas
os contornos do seu rosto, os olhos castanhos, a barba. “Você esgotou minha
paciência, Johannes”, disse com voz trêmula. “Eu lhe ensinei o que sabia,
confiava em você. Mas você ignorou tudo, resolveu seguir seu próprio
caminho, humilhou-me. E para quê? O que ganhou com sua traição?”
Christian hesitou. Havia lido o Mistério cosmográfico , conhecia bem a
razão da disputa. Só agora compreendia a dimensão do desespero do avô.
Devia responder-lhe? Será que tinha o direito de fingir ser quem não era, de
intrometer-se no mundo particular do velho mestre e de seu pupilo?
“Mestre, jamais tive intenção de traí-lo. Amei-o como se o senhor fosse
meu pai. Nunca poderia esquecer-me do quanto lhe devo, como mentor e
amigo. Nunca.”
“Mas então por quê, Johannes? Por que não me ouviu? Por que decidiu ir
em frente com suas ideias, sua física celeste, sabendo muito bem o quanto
elas contrariavam a tradição astronômica, o quanto contrariavam tudo aquilo
em que eu acreditava?”
“Não tive outra saída, mestre, precisava seguir meu destino. Meu amor e
minha devoção ao senhor e à tradição astronômica são muito importantes,
mas acima deles está meu amor a Deus e à verdade.”
“E quem é você para decidir qual a verdade de Deus?”
“Não me julgo melhor que ninguém, porém senti que a verdade veio até
mim, senti isso com uma intensidade avassaladora. Senti que ela me foi
revelada como a um profeta, um emissário de Deus. E minha convicção
apenas cresceu quando vi quão bem os céus eram retratados pela hipótese do
Mistério , quão bem a dança orbital dos planetas era descrita por uma causa
física, uma força vinda do Sol. Tive de escolher entre ser fiel ao senhor e ser
fiel à verdade de Deus. E foi o que fiz, mestre, ainda que meu amor e minha
admiração pelo senhor jamais tenham se alterado.”
Maestlin estremeceu, como se algo houvesse se partido dentro dele. “E
você tinha razão o tempo todo”, murmurou, suspirando. “Idiota que sou, não
tive coragem de aceitar isso. Mas como podia admitir que você havia me
superado, que seu conhecimento era maior que o meu? Que a obra da minha
vida inteira não chegava aos pés daquela que você produziu apenas no início
da sua? Não, não podia suportar a humilhação. E quanto aos teólogos de
Tübingen, todos contrários às suas ideias? Devia me opor a eles, meus
colegas de décadas? Espero que um dia você compreenda minhas razões…”
Interrompeu-se e fitou Christian, os olhos cheios de lágrimas. “Espero que um
dia você me perdoe.”
“Basta, meu mestre, esqueçamos essa dor. Estou aqui, pronto para perdoá-
lo.” Christian abraçou ternamente o avô e sentiu o corpo dele tremer. Mas um
abraço, apenas, não poderia apagar décadas de culpa e ressentimento. Com
um movimento brusco, Maestlin afastou-se. Sua penitência ainda não
terminara.
24
A pesar de ser bem curta a distância entre sua casa e o castelo imperial,
Tycho preferiu usar a carruagem, escoltada por quatro soldados.
Aquela era uma reunião importante, merecia um pouco de pompa,
ainda que o imperador não fizesse caso de formalidades e protocolos. O
objetivo não era impressionar seu patrono, mas os conselheiros dele, pois o
grande astrônomo considerava fundamental lembrar-lhes com quem estavam
lidando. Kepler, sentado ao lado do mentor e já acostumado aos seus
exageros, divertia-se em silêncio com a ostentação desnecessária. Tycho
chegara a instruí-lo sobre que roupa vestir e como comportar-se.
Kepler mal podia acreditar que aquele era o mesmo Tycho que conhecera
no início do ano de 1600. Ele finalmente agia como um verdadeiro mentor,
preocupando-se com o bem-estar do pupilo em sua casa em Hradcany e até
pagando-lhe um pequeno salário. Infelizmente, sua generosidade não se
estendia aos seus dados: continuava a combater as ideias de Kepler e a criticar
o modelo de Copérnico, insistindo que as medidas dele deveriam ser usadas
para provar a veracidade do seu próprio sistema, não a do sistema do polonês.
Por outro lado, quando Kepler reclamava de falta de dinheiro ou solicitava um
arranjo mais formal, ele dizia que se tranquilizasse, pois todos os seus
problemas logo seriam resolvidos. Naquela mesma manhã, durante uma
rápida refeição, afirmou que a reunião com o imperador iria mudar sua vida.
Kepler fez de tudo para extrair alguma informação do mentor.
“Venha comigo ao castelo, Johannes, e verá do que se trata”, disse Tycho,
polindo o nariz metálico com o guardanapo.
A carruagem parou em frente ao portão principal do castelo. Kepler
acariciava o anjo de asas abertas no medalhão do avô. Sentiu emanar calor do
metal e murmurou: “Mãe, sei que a senhora está comigo”. Dois guardas de
porte avantajado puseram-se um de cada lado do veículo, inspecionando-o.
Terminada a vistoria, curvaram-se respeitosamente perante Tycho e deram
sinal para que o portão fosse aberto. A carruagem desfilou lentamente ao
longo dos palácios e mansões dos súditos mais importantes da corte. Kepler
olhava para tudo, deslumbrado com a riqueza do local, uma pequena cidade,
residência para milhares de pessoas, de barões e condes a servos e
cavalariços.
Depois de passar as enormes portas da catedral de são Vito, orgulho dos
católicos da Boêmia, a carruagem finalmente estacionou diante do Palácio
Real, onde Rodolfo ii concedia suas audiências. A arquitetura sólida e
despojada do palácio parecia criticar os excessos góticos da catedral. Os
soldados de Tycho abriram as portas para que os astrônomos descessem.
Barvitius, o secretário imperial, cumprimentou-os com sua notória frieza. Os
três atravessaram inúmeras salas e corredores, todos com tetos decorados de
cenas mitológicas que se perdiam nas alturas. Quadros de pintores ilustres —
Ticiano, Parmigianino, Dürer, Bruegel — dividiam as paredes com tapeçarias
de Flandres. O entusiasmo de Rodolfo ii por obras de arte e por objetos
mecânicos de funções dúbias era motivo de constante desespero para seus
tesoureiros. Por isso o imperador queria Tycho por perto, para que os
instrumentos astronômicos pertencentes a ele se somassem à sua coleção.
Tycho viu-se forçado, muito a contragosto, a pô-los no terraço da casa de
veraneio imperial, localizada na periferia de Hradcany e com péssima
visibilidade para o sudoeste.
Quando o trio enfim chegou à sala de audiências, dois guardas abriram as
portas. Barvitius anunciou a presença do matemático imperial e de seu
assistente. Do fundo da sala, Rodolfo ii acenou aos astrônomos para que se
aproximassem. Os dois inclinaram-se e iniciaram a longa caminhada até o
trono, procurando manter sincronia entre os passos. Tycho pegou
delicadamente a mão do patrono e beijou-lhe o anel imperial. Kepler limitou-
se a ajoelhar, com a cabeça baixa, tentando controlar o tremor. Com alguma
dificuldade, Tycho ajoelhou a seu lado.
“Basta, basta”, disse o imperador num tom surpreendentemente suave.
“Chega de cerimônia. De pé, os dois.” Eles obedeceram. “Diga-me, meu
matemático, é esse o talentoso alemão de quem você me falou?” Mas, antes
que Tycho pudesse responder, o imperador continuou: “Não, espere!
Primeiro, preciso saber se os astros estão favoráveis. Caso contrário, devemos
interromper esta audiência imediatamente”.
Tycho baixou os olhos, impaciente. “Estão, Alteza, este é um dia muito
propício, com Júpiter em seu signo. Nossos atos deverão ter consequências de
grande importância.”
“Excelente, excelente!”, exclamou Rodolfo, aliviado como uma criança em
cujo quarto escuro a mãe acende uma vela.
Kepler tomou coragem e olhou pela primeira vez para o Sagrado Imperador
Romano. “Que aparência estranha”, pensou. Ele tinha o queixo pronunciado
dos Habsburgo, um nariz comprido e retilíneo, meio achatado, enormes olhos
redondos, dos quais emanava uma luz cinza, triste, como se quisessem
vislumbrar outras coisas, coisas que se encontravam longe dali. Aquele era
um homem enfadado com os afazeres do Estado, a quem apenas a solidão
trazia paz; preferia passar os dias cercado por seus objetos excêntricos e
meditando sobre as grandes questões do espírito.
“Muito bem, então”, continuou Rodolfo, “diga-me a que devo o prazer de
sua esplêndida e iluminada visita.”
“Vossa Alteza sabe que tenho em mãos os dados astronômicos mais
precisos jamais coletados na história da humanidade.”
“Sim, sim, e foi por isso que o contratei como meu matemático, o grande
orgulho de minha corte.”
“Pois bem. Vossa Alteza também sabe que a astronomia e a astrologia
dependem de tabelas que contêm, com a maior precisão possível, as posições
dos corpos celestes.” O imperador aquiesceu com um gesto de cabeça.
“Proponho”, continuou Tycho, “que Herr Kepler trabalhe como meu
assistente na produção de uma nova tabela que tornará completamente
obsoletas as tabelas Alfonsina e Prutênica usadas hoje em dia.” O imperador
sorriu, meneando a cabeça com mais intensidade. O coração de Kepler
disparou. Ele por fim entendeu o plano do mentor. “Ademais”, prosseguiu
Tycho com inflexão vitoriosa, “proponho que a chamemos de ‘Tabelas
Rodolfinas’, para imortalizar a sabedoria de Vossa Alteza, bem como seu
amor pela nobre ciência dos céus.”
“Magnífica ideia, caro Tycho, simplesmente magnífica!”, exclamou
Rodolfo, batendo palmas. “Diga-me apenas quais seus termos e condições e
quando espera completar a tabela. Barvitius, anote tudo.” O secretário
imperial acenou rigidamente com a cabeça.
“Como já temos os dados”, disse Tycho, “só o que peço a Vossa Alteza é
que designe Herr Kepler como meu assistente oficial, com um salário pago
pelos cofres imperiais. Espero que, com a ajuda de Deus, a tabela esteja
pronta dentro de dois anos.”
“Tycho e Herr Kepler, os senhores têm a minha bênção. Que suas mentes
continuem a iluminar o mundo para a glória de nosso Império.”
Os astrônomos curvaram-se mais uma vez perante Rodolfo, deram dez
passos para trás e se voltaram em direção à porta, sorrindo triunfantes para
Barvitius.
Kepler quase tropeçou em sua alegria. Finalmente teria acesso a todos os
dados de Tycho, e com a sanção do imperador, seu novo patrono. “Mestre
Tycho, não sei como agradecer-lhe. Sinto vergonha de, no passado, ter
duvidado de suas intenções”, confessou, depois de entrar na carruagem. O
mentor sorriu e ergueu a mão, indicando que aquilo não tinha a menor
importância. Apesar do sorriso, os olhos dele pareciam tristes, derrotados. O
brilho frio que tanto aterrorizara seus inimigos havia desaparecido. Kepler
notara isso ao retornar de Graz, em setembro. Raramente se ouviam as
gargalhadas de Tycho; ele preferia passar os dias sozinho, entre os livros, e, à
noite, já não ia até os instrumentos observar os movimentos celestes. Algo
acontecera, algo que lhe roubara o apego que sempre havia tido à vida. A
morte do irmão mais novo no inverno anterior afetara-o muito. Com exceção
de Kepler, todos os seus assistentes tinham partido. Embora jamais o
admitisse publicamente, Tycho sabia que seu sistema geocêntrico estava
errado, que seu legado se limitaria aos dados que coletara durante a maior
parte da vida. “Deve ser por isso”, pensou Kepler, “que enfim permitiu que eu
os usasse. Quem mais resgataria sua obra depois da sua morte? Sou a última
esperança dele.” E declarou: “Prometo que não vou desapontá-lo, mestre”.
“Assim espero, Johannes”, disse friamente Tycho, apertando a mão de
Kepler como se para selar um pacto. Este percebeu a familiar fagulha de
medo atravessando os olhos do mentor. Pareceu-lhe uma estrela cadente a
surpreender a noite com seu rasgo efêmero de luz.
Alguns dias após a audiência, pouco antes da meia-noite, bateram
furiosamente à porta da residência dos Brahe. Era Minckwicz, o conselheiro
imperial, amparando Tycho, que estava embriagado. Os urros do grande
astrônomo acordaram a casa inteira: “Preciso mijar! Se não mijar, vou
explodir!”. Kirsten, de camisola, desceu as escadas às pressas, seguida por
Tycho Junior e Kepler. Jepp pôs-se a dançar ao redor de seu mestre. Criados
espreitavam assustados detrás de portas entreabertas.
“Desta vez Tycho passou dos limites”, disse Minckwicz. “Consumiu mais
vinho do barão Rozmberk do que cinco homens. Pedi-lhe que se controlasse,
mas, teimoso como sempre, ele não me deu ouvidos. Resultado: no fim do
jantar, mal podia ficar em pé. Agora está pagando o preço.”
“Cale a boca, seu tolo, e ajude-me a subir as escadas. Se não mijar, vou
explodir, juro!”
“Não fale assim com seu amigo!”, gritou Kirsten. “Se não fosse ele, você
estaria caído na sarjeta feito um mendigo. Por que não urinou antes?”
“Ora, mulher estúpida, você não entende nada!”, rosnou Tycho, apertando
o abdome logo acima da bexiga.
Minckwicz balançou a cabeça. “A senhora deve saber que é quebra de
protocolo deixar a mesa antes do anfitrião. E o barão estava muito inspirado
hoje, contando histórias de suas campanhas contra os turcos nos Cárpatos.
Tycho bebia sem parar, esperando que o barão se levantasse. Acho que
calculou mal…”
“Deus tenha piedade de sua alma”, rogou Kirsten. “Johannes, Tycho Junior,
ajudem-me, rápido! Levem-no para o quarto, enquanto preparo um banho
quente.” Bateu palmas para chamar os criados. “Obrigada, conselheiro. Estou
profundamente envergonhada da conduta de meu marido. Nem sei o que
dizer.”
“Não se preocupe, senhora. Acredite, Tycho não é o único na corte que não
sabe se controlar diante de uma garrafa”, disse Minckwicz, com o sorriso
orgulhoso de quem nunca perdia o controle. “Por favor, mantenha-me
informado do progresso dele. Talvez um pequeno sangramento o ajude a
dormir esta noite.” Em seguida, fez uma reverência e partiu.
Tycho, dobrado sobre si mesmo, urrava de dor cada vez que seu filho e
Kepler o forçavam a ficar ereto para subir as escadas. Foi uma luta chegar ao
quarto, e outra, despi-lo.
“Vou deixá-los agora. Se precisarem de ajuda, estou à disposição.” Kepler
falou, e aproximou-se de Tycho, tentando confortá-lo, mas ele havia perdido a
consciência.
Ninguém dormiu. Os gritos de Tycho sacudiram as paredes a noite inteira.
Ele não conseguia urinar, e, quando acontecia de expelir algumas gotas, sentia
uma dor insuportável. Os dias foram passando, o pobre dr. Jesensky tentando
de tudo: sangramentos, compressas quentes e frias, infusões de ervas, mas
nada parecia funcionar. Para piorar a situação, nas raras ocasiões em que a dor
o esquecia, Tycho comia e bebia furiosamente, como se a estivesse
cortejando.
“Por que está fazendo isso, homem?”, gritava Kirsten, exasperada. “Está
cansado da vida? É isso? Quer morrer? Como pode ser tão egoísta?”
Ele fitava a mulher com olhos vagos, enquanto mastigava como um animal.
Só encontrava paz nos longos períodos de delírio. No décimo primeiro dia,
começou a sofrer de insuficiência respiratória. Jesensky solicitou a Kirsten,
Tycho Junior e Kepler que fossem até o quarto. Os quatro cercaram o leito do
moribundo, rezando em silêncio para que sua alma encontrasse o merecido
descanso eterno. Jepp, encostado na parede, de cócoras, gemia como um
bicho ferido. Aos prantos, Kirsten pegou na mão trêmula do marido e sentiu
seu calor pela última vez. De súbito, Tycho abriu os olhos e vasculhou o
quarto até encontrar Kepler. Este foi tomado pela emoção. Um brilho que
vinha de um lugar além deste mundo iluminava os olhos do mentor, que
estendeu os braços para ele, pedindo-lhe que se aproximasse. O assistente
atendeu-o. Reunindo todas as suas forças, Tycho pôs as mãos nos ombros de
Kepler e disse: “Não deixe que minha vida tenha sido em vão. Por favor , não
me deixe ter vivido em vão…”.
Kepler ajoelhou a seu lado e, apertando a mão do grande astrônomo contra
o peito, respondeu: “Não deixarei, mestre. Prometo-lhe”.
Dois dias depois da morte de Tycho, Barvitius foi à residência dos Brahe.
Pediu ao criado que o atendeu que chamasse Johannes Kepler.
Kepler desceu a escada correndo, abotoando o colete. “Excelência, perdoe
meus trajes. Não esperava visitantes.”
O secretário de Rodolfo ii ignorou as palavras de Kepler e, secamente,
declarou: “Estou aqui para anunciar-lhe que Sua Alteza, o Sagrado Imperador
Romano, acaba de nomeá-lo sucessor de Tycho Brahe. O senhor é o novo
matemático imperial”. Kepler ficou boquiaberto. “Sua Alteza pede-lhe que
prepare uma proposta salarial com urgência, para que possamos cuidar dos
necessários arranjos contratuais.”
Kepler teve uma vertigem. Precisou sentar-se, respirar fundo. “Matemático
imperial? Eu? O posto mais prestigioso para um astrônomo em toda a
Europa?” Barvitius bufou.
“Perdoe-me, Excelência, mas a notícia pegou-me de surpresa. É uma honra
servir nosso amado imperador. Prepararei uma proposta o quanto antes.”
“Sua Alteza deseja que o senhor cuide dos instrumentos de Tycho e termine
os trabalhos já iniciados. Em particular, insiste que as Tabelas Rodolfinas
sejam concluídas o mais rápido possível.”
Kepler sorria como uma criança. Nem mesmo a arrogância do secretário
imperial o incomodava. “Terei o maior prazer em cumprir as ordens de Sua
Alteza.”
“Muito bem, Herr Kepler. Agora, se me permite, devo partir. Tenho ainda
muito que providenciar para o funeral de Tycho.”
Assim que Barvitius se foi, Kepler voou escada acima, gritando: “Bárbara!
Bárbara!”.
Bárbara saiu do quarto, assustada. “Que aconteceu?”
“Ah… uma coisa maravilhosa, querida, uma coisa maravilhosa…”
“Diga logo, homem!”
“Acabo de ser nomeado sucessor de Tycho! Sou o novo matemático
imperial de Sua Majestade Rodolfo ii, Sagrado Imperador Romano!”
Bárbara correu ao encontro do marido e abraçou-o. “Johannes, estou tão
orgulhosa de você! Será que finalmente teremos nossa própria casa?”
“Sim, querida, vamos começar a procurar uma imediatamente! O secretário
imperial solicitou-me que propusesse um salário, imagine só! Preciso escrever
logo para Herwart, pedindo sua orientação.”
“Que nossos tormentos tenham chegado ao fim”, rogou Bárbara.
“Chegaram, querida, chegaram”, disse Kepler, abraçando uma vez mais a
esposa.
No dia do funeral, milhares de pessoas reuniram-se na praça central da
Cidade Velha, esperando a procissão que levaria Tycho ao local de seu
repouso eterno, na catedral de Tyn. Ao meio-dia, o corneteiro imperial
anunciou o início da cerimônia. Guardas organizaram a multidão em duas
fileiras, formando um corredor de mais de três quilômetros. Uma companhia
de cem guardas da cavalaria imperial foi a primeira a cruzá-lo, seguida por
número idêntico de soldados que soavam tambores. Dois guardas com
armadura completa, portando as bandeiras do Império, marcharam
solenemente diante do cavalo de Tycho. Depois, pelo corredor humano
passou o caixão, carregado por doze homens e coberto por um manto de
veludo negro com o brasão da família Brahe bordado a ouro. Atrás do caixão
vieram Kirsten, Tycho Junior e demais membros da família, Kepler e outros
assistentes, dezenas de dignitários da corte, e, finalmente, nobres e amigos
mais próximos. Fechando a procissão, um grupo de vinte meninos e meninas,
todos vestidos de preto, com uma rosa vermelha nas mãos encostada no peito.
A catedral estava abarrotada. As cadeiras destinadas aos membros da
família foram revestidas do mais fino tecido inglês, tingido nas cores da
Dinamarca. Rosas brancas espalhadas sobre o altar imitavam as estrelas. Os
restos mortais de Tycho foram depositados numa tumba ao lado de seu amado
globo celeste. “Acompanhou os astros durante a vida, será acompanhado por
eles na morte”, murmurou Kepler, ensaiando sua fala. “Viveu como um
príncipe e morreu como um príncipe, o príncipe dos astrônomos.” Falou, e
segurou a mão da esposa.
“É verdade, Johannes. Mas agora é a sua vez, a vez do astrônomo plebeu”,
disse Bárbara.
“Sim, querida, agora é a minha vez.”
25
15 de agosto de 1602
Tantas coisas aconteceram neste último ano, que
mal tive tempo de trabalhar ou escrever neste diário.
Sinto-me abençoado! Bárbara deu à luz uma menina
saudável, Susanna! Talvez Deus finalmente deixe
nossa criança viver. Bárbara está feliz, claro, mas
não descansará até ter um menino. Quanto a mim,
confesso que também me alegraria ver um pequenino
Johannes correndo pela casa.
Acho que desta vez Marte enfim se renderá às
minhas investidas. É chegada a hora! Se Marte não
nos revelar os segredos da astronomia por meio de
seus movimentos celestes, eles ficarão ocultos para
sempre. Estou convencido de que o Sol é o centro de
sua órbita. E o centro da órbita da Terra também.
Por que a Terra deveria ser diferente dos outros
planetas? Se uma força que emana do Sol controla as
órbitas planetárias, então o Sol tem de ser o centro, e
sua força tem de agir em todos os planetas,
tornando-se mais fraca à medida que estes se
afastam dele. Tem de ser assim, e eu sabia disso
desde que cheguei a Benátky, há mais de um ano.
Mas preciso provar minha hipótese com muito
cuidado, mostrando que os dados de Tycho não
estariam de acordo com nenhuma outra. Sei que ele
queria que eu os usasse para comprovar o seu
modelo cósmico. Porém, seus dados é que são seu
legado imortal, e revelarão ao mundo a verdadeira
estrutura do cosmo. Decidi proceder por eliminação,
até encontrar a resposta correta. Pela reação de
meus colegas, sei que será mais fácil convencê-los se
me mantiver o mais próximo possível da tradição
astronômica, ao menos no início. Esse é decerto o
caminho mais diplomático.
Resolvi começar conciliando as ideias de Ptolomeu
às de Copérnico. Como fiz isso? O cosmo de
Ptolomeu não era estritamente geocêntrico: ele
deslocou a Terra do centro, opondo-a ao equante. No
meu esquema, desloquei o Sol ligeiramente do centro,
também opondo-o ao equante: substituí a Terra de
Ptolomeu pelo meu Sol. Cada planeta tem sua órbita
e seu equante, cuja posição deve ser ajustada para
coincidir o máximo possível com as observações.
Foi mesmo genial a ideia de Ptolomeu de criar o
equante. Assim sua teoria pode descrever a variação
nas velocidades orbitais dos planetas à medida que
eles viajam pelos céus. Quando os planetas
circularem em torno do equante com velocidade
uniforme, um observador sentado no Sol vai vê-los
com velocidades variáveis, mais rápida ao se
aproximarem dele e mais lenta ao se afastarem. O
desafio é encontrar a posição correta para o equante,
de modo que o esquema reproduza o mais
satisfatoriamente possível as observações de Tycho.
Passei meses tentando encontrar a posição do
equante para Marte. Os cálculos são infernais,
absurdamente complexos, e tive de repeti-los mais de
setenta vezes! Quase cheguei à loucura! Ah, como as
coisas seriam fáceis se o Sol estivesse de fato no
centro geométrico do círculo…
Após incontáveis horas de agonia, por fim encontrei
a posição do equante que gera uma órbita para
Marte com uma precisão de 2 minutos de grau, ou
seja, 1/30 de 1 grau, exatamente a precisão dos
dados de Tycho! Será então essa a resposta? Será
que os equantes sobrevivem na nova astronomia
heliocêntrica? O grande Copérnico certamente não
gostaria nada disso… Antes de comemorar, é bom
testar meus resultados para outros pontos ao longo
da órbita de Marte. Bendito Tycho, e benditas as suas
medidas!
3 de setembro de 1602
Cantei vitória cedo demais! Ao contrastar meu
modelo com dados de Tycho ao longo de outros
pontos da órbita de Marte, obtive resultados
desastrosos: uma discrepância de 8 minutos de grau,
tão ruim quanto na época de Ptolomeu ou no modelo
de Copérnico. Não, os dados de Tycho merecem
muito mais que isso. O modelo cósmico deve, a todo
custo, estar de acordo com as observações. Pois, se é
por meio delas que os homens calculam como Deus
construiu o mundo, é por meio da matemática, da
razão, que podemos descrevê-lo. Os dois, dados e
modelo, têm de concordar. Fui vítima desse planeta
traiçoeiro, e devo começar tudo de novo. Oito
minutos de grau! Eu sinto, sei que esses 8 minutos
escondem a nova ciência dos céus. Afinal, meu
modelo com o equante para Marte não tinha o Sol
como centro. Talvez esse tenha sido o meu erro. Deus
me dê forças para prosseguir.
“Devo continuar, vovô?”
“Claro, claro”, respondeu Maestlin, impaciente. “Esta não é hora de parar.”
10 de outubro de 1602
Meu objetivo é calcular onde Marte estará em sua
órbita num dado momento. Desenvolvi uma
estratégia que, acho, vai me ajudar. Devo agradecer
ao velho e sábio Arquimedes: para calcular a razão
entre a circunferência de um círculo e seu diâmetro
— o número pi —, o grego dividiu o círculo em
pequenos triângulos, como dividimos uma torta.
Portanto, imaginei linhas originando-se do Sol como
aros de uma roda, uma a cada grau, tocando o
círculo da órbita de Marte (a roda). Levei em conta
que o Sol não deve estar exatamente no meio do
círculo. Para facilitar, considerei apenas meio
círculo, ou seja, 180 graus, gerando 180 linhas.
Afinal, a outra metade tem de ser idêntica. Deus pode
ser sutil, mas malicioso não é.
Calculei, então, o comprimento de cada linha, a
distância entre Marte e Sol, à medida que o planeta
avança em sua órbita, como uma pérola num colar. A
matemática é terrível, em virtude da excentricidade
do Sol. Meus dedos estão repletos de calos. Bárbara
não tem dúvida de que enlouqueci de vez. Talvez ela
esteja certa!
Mais uma vez, devo agradecer ao gênio de
Arquimedes. Ele usou essa partição em triângulos
para calcular a área do círculo. Fiz o mesmo, cada
triângulo contribuindo com sua pequena área, que
está diretamente relacionada ao tempo que o planeta
demora para ir de triângulo a triângulo: 10 graus, 10
triângulos; 50 graus, 50 triângulos, e assim por
diante. Será que existe uma regra simples entre a
área dos triângulos e o tempo que Marte demora
sobre eles em sua órbita em torno do Sol? Por
tentativas, obtive o seguinte resultado: a linha que
liga o Sol ao planeta varre áreas iguais em tempos
iguais. Se estiver correto, que belíssima regularidade
a lei revela nos movimentos celestes!
17 de maio de 1611
Faz quase dez anos que rabisquei algumas linhas
neste diário. Nem sei por onde começar. Os últimos
seis meses foram os mais trágicos da minha vida.
Logo depois da publicação do Astronomia nova, tudo
se tornou um caos. A Morte parece seguir-me como
minha própria sombra, obstinada.
Meu querido Friedrich morreu, vítima de um ataque
de varíola. Nem tentarei descrever minha dor, pois sei
que falharei. Ainda ouço as risadas dele enchendo a
casa de vida, sua voz chamando por mim. Lembro-me
de quando o punha na cama e ele me puxava pelas
roupas, implorando que ficasse mais um pouco, que
contasse outra história… É impossível recuperar-se
de uma perda como essa. Peço apenas para aprender
a viver com ela, mantendo meu filho vivo na
lembrança. Seu sorriso radiante jamais me
abandonará. Toda noite, procuro sua estrela no céu.
A Morte só vence quando nos esquecemos.
Bárbara jamais será a mesma. Caiu num profundo
abismo, de onde já não vê o resto do mundo. Está
somente meio viva, cuidando de Ludwig e Susanna
com tanta indiferença que os pobrezinhos se sentem
culpados do que aconteceu. Não sei o que será dela.
Parto em breve para Linz. Atendendo os pedidos
insistentes do barão Hoffmann, meu querido amigo,
procurei outro emprego, agora que Matias se tornou
o novo imperador. Encontrei um posto numa escola
luterana em Linz, semelhante ao que ocupei em Graz
no início de minha carreira. Não tive escolha. A paz
entre católicos e protestantes é extremamente frágil.
Exércitos estão sendo mobilizados nas duas frentes.
Uma grande conflagração parece-me inevitável. E
Praga fica no coração do conflito.
O pobre imperador Rodolfo tem me chamado com
frequência para ouvir meus conselhos astrológicos. É
triste ver o grande líder nesse estado, abandonado às
suas fantasias, vida e mente destruídas. Faço o que
posso para livrá-lo das tolas superstições em que
insiste em acreditar. Temo, contudo, que a alma dele
já o tenha deixado quase por inteiro e que reste
apenas uma mera chama queimando precariamente
em seu coração.
Recebi outras ofertas, da Inglaterra e até da Itália.
Recusei todas. Está na hora de levar Bárbara para a
Estíria. Talvez assim ela volte a ser quem era. Afinal,
até as estrelas renascem nos céus, brilhando com
nova luz. Matias concordou em manter-me como seu
matemático. Mas nada de salário. Que ironia, um
título tão pomposo para um professor de uma
escolinha situada num lugar ermo… Não importa. A
calma de Linz ser-me-á útil. Preciso concluir as
Tabelas Rodolfinas, provar ao mundo que todos os
planetas seguem órbitas elípticas, honrar meu
imperador, que tanto me apoiou, honrar Tycho. Tenho
quase quarenta anos e sei que a saúde pode
abandonar-me a qualquer momento; está na hora de
retornar à minha busca pela harmonia, a harmonia
do mundo, as leis com que Deus construiu o cosmo.
Christian olhou para o avô. Maestlin dormia, a cabeça apoiada no ombro.
Chamou Maria, pediu uma almofada e um cobertor, certificou-se de que o avô
estava confortável. Assim que ele partiu, Maria sentou-se ao lado do patrão e
ficou raspando nabos para o jantar.
Kepler entrou em Praga pelo sul, numa noite quente de junho. A viagem a
Linz tinha sido um sucesso, e ele ganhara um novo título: matemático oficial
da Áustria Superior. Agora, era matemático imperial e provincial, títulos que
na verdade significavam muito pouco.
Praga ainda se recuperava das batalhas da primavera. As tropas austríacas
de Matias, espalhadas em grupos pela cidade, lutavam contra bandos de
rebeldes protestantes e de mercenários que insistiam em pilhar igrejas e
mosteiros católicos. A ponte Carlos estava bloqueada. O acesso a Hradcany
era limitado. As ruas da Cidade Velha, focos de várias batalhas, achavam-se
em estado execrável, repletas de lixo e dejetos. Havia mendigos por toda
parte. Mutilados pediam esmolas. Kepler seguiu cavalgando lentamente,
tentando controlar seu horror. Diversos prédios tinham sido destruídos.
Carcaças de cães, ratos e cavalos acumulavam-se nas esquinas. O odor era tão
forte que Kepler cobriu o rosto com um trapo para não desmaiar. Um cartaz
alertava a população sobre o perigo de doenças. A água na maioria dos poços
estava contaminada. As tropas tinham disseminado febre tifoide pela cidade.
Centenas haviam morrido, e muitos mais iriam morrer. “Se possível”, sugeria
o cartaz, “abandone a cidade e busque refúgio no campo.” A majestosa Praga
sucumbira à loucura dos homens. Kepler lembrou-se dos amigos no gueto.
Estariam bem?
A casa estava às escuras. Susanna e Ludwig brincavam no chão da sala. Ao
ver o pai, correram para ele e cobriram-no de beijos, como faziam quando
despertavam de um pesadelo. A criada não se encontrava em parte alguma. As
crianças estavam sujas e cansadas. “Onde está a mãe de vocês?”, perguntou
Kepler.
“A mamãe está cuidando dos doentes”, respondeu Susanna. “Ela só faz isso
agora, papai, quase nunca vemos ela. Vai à igreja todo dia.”
Kepler abraçou os filhos. “Escutem, crianças, tenho de encontrar sua mãe.
Volto já, já. Não abram a porta para ninguém, certo?”
“Sim, papai. Mas, por favor, não demore!”, pediu Susanna. “Estamos com
medo.”
“Eu sei, querida, eu sei. Prometo não demorar. Mas preciso que vocês
sejam corajosos agora.”
Deixou seus pertences no escritório e partiu empunhando uma tocha. Ao
entrar na igreja, levou as mãos à cabeça, horrorizado. O local havia sido
transformado em hospital e necrotério. Cadáveres amontoavam-se à esquerda
do altar, sob o rosto sofrido de Cristo, que tudo via de sua cruz, enquanto, do
lado direito, fileiras de leitos acolhiam os doentes e feridos, pessoas de todas
as fés e classes sociais. Kepler viu Bárbara pondo compressas na testa de um
ancião desdentado.
“Bárbara!”, exclamou, pegando na mão da esposa, que se limitou a sorrir.
O rosto dela estava coberto de feridas, os cabelos sujos, despenteados; seu
aspecto era pior que o de alguns dos enfermos. Sua expressão, porém, era
pura. Kepler achou que ela não o reconhecera. “Bárbara, vamos para casa!
Quem precisa de ajuda é você!” Puxou-a pelo braço para longe dos doentes.
O ancião limitou-se a olhar para eles com olhos vazios, fraco demais para
protestar.
Kepler não entendeu como Bárbara conseguira chegar à igreja, já que mal
parava em pé. Carregou-a nas costas, como soldados carregam feridos. Ela
ardia em febre. “Susanna, ferva água. Temos de lavar sua mãe, isso vai ajudar.
Ela está muito doente.” A menina correu até a cozinha. Kepler deitou a esposa
na cama. “Bárbara, o que você fez? Você tem duas crianças para criar, pelo
amor de Deus!” A mulher tentou responder, mas sua voz falhou. Após alguns
minutos, Susanna voltou com um balde de água quente. Kepler lavou a esposa
e vestiu-a com uma camisola. Quando a deitou novamente, ela o fitou com os
olhos vítreos de quem já não via as coisas deste mundo e murmurou: “É esta a
roupa da minha redenção?”. Ele balançou a cabeça, aturdido, procurando
conter as lágrimas.
Por volta da meia-noite, Bárbara começou a tremer sem parar. Kepler
cobriu-a, mas ela empurrava os cobertores. Tentou acalmá-la com compressas
frias na testa e nos braços. Sangrou-a, esperançoso de que a febre baixaria.
Forçou-a a beber água. No entanto, de nada adiantaram seus esforços. Bárbara
passou a noite gemendo de dor, lutando para respirar. Deu seu último suspiro
ao nascer do Sol, morrendo com um sorriso congelado nos lábios. Finalmente,
havia encontrado a paz que tanto buscava.
PARTE IV
Linz
Antes da origem de todas as coisas, a
geometria coexistia com a mente de Deus.
Johannes Kepler
É hora de desprezarmos, unidos, os gritos
selvagens que ecoam por estas terras nobres!
Exaltemos nossa compreensão e nosso encanto
pelas harmonias do mundo!
Johannes Kepler, dedicatória
das Efemérides de 1620 a John Napier
28
K epler mal pôde festejar a liberdade da mãe. Alguns dias após seu
retorno a Linz, um mensageiro de Regensburg informou-o de que
Regina, sua adorada enteada, havia falecido.
“Tinha apenas vinte e sete anos”, balbuciou Kepler, desolado, para
Susanna. “E era tão brilhante… Foi a única que me trouxe alguma alegria
durante meu período mais difícil em Graz e em Praga.”
“Sinto muito, Johannes, muito mesmo.” Susanna sentou-se ao lado do
marido e pegou em sua mão.
Kepler olhou para a jovem esposa, apenas três anos mais velha que Regina:
ela podia adoecer, morrer a qualquer momento; ele também. “Philip está
desesperado”, disse. “Não sabe o que fazer sem Regina. O pobre coitado
implorou que deixasse minha Susanna ir a Regensburg para ajudá-lo a cuidar
dos três filhos.”
Susanna permaneceu calada por um tempo. Depois protestou: “Mas ela tem
apenas quinze anos, Johannes. Não é responsabilidade demais? E Ludwig?
Morrerá de saudades… os dois são inseparáveis”.
“Infelizmente, querida, a vida nem sempre nos dá o privilégio da escolha…
Susanna não é mais uma criança. Meus netos precisam de sua ajuda. Tenho de
fazer isso por Regina, pela memória dela.”
“Entendo, Johannes. Talvez não seja por muito tempo. Quem sabe Philip
não se casa em breve?”
“Do jeito que ele está, acho que vai demorar muito para encontrar outra
esposa. E, depois, como podemos garantir que as crianças serão bem tratadas
pela madrasta? Nem todo mundo tem a minha sorte…”
“Nesse caso, temos de falar com ela”, disse Susanna, baixando os olhos.
Encontraram-na deitada ao lado de Margarethe Regina, que estava de cama
havia dias, com sarampo.
“Filha, tenho uma notícia triste. Nossa querida Regina morreu subitamente.
O marido dela, Philip, perguntou-me se você poderia ir morar em Regensburg
por um tempo, para ajudá-lo a criar seus três priminhos.”
“Pobre Regina”, disse Susanna, sem muita emoção. Não via a meia-irmã
desde os cinco anos. “Mas, pai, quem cuidará de Margarethe Regina? Ela está
tão fraquinha…”
“Não se preocupe com Margarethe. Nós cuidaremos dela, de Ludwig e da
pequena Katharina. Você precisa ser forte.” Susanna tentou conter as
lágrimas. “Ah, filha, não fique assim. Pense nessa viagem como uma grande
aventura! Regensburg é muito bonita, e o Danúbio, de que você tanto gosta,
passa bem pelo centro da cidade.”
“Mas quando voltarei a vê-lo, a ver todos vocês?”
“Prometo que iremos visitá-la. E você também virá a Linz. É muito fácil
hoje em dia, de barco, pelo rio. Um belíssimo passeio!”
Margarethe começou a choramingar. Kepler pôs a mão em sua testa: a
menina ardia em febre. “Rápido!”, gritou. “Precisamos cobri-la com
compressas bem frias.”
As duas Susannas dispararam para a cozinha. Kepler tentou ninar a filha,
que tinha o corpo coberto de feridas purulentas como as que deixaram
cicatrizes nas mãos dele, quase aleijando-as. Sentiu que não estava sozinho no
quarto e olhou em torno. Em meio à penumbra, viu seus três filhos mortos.
Friedrich, espada na mão, rindo, e Regina, sentada a seu lado, com Heinrich e
Susanna, recém-nascidos, no colo. “Todos fantasmas”, pensou, “queridos e
adorados fantasmas.” Margarethe, pobrezinha, não passaria daquela noite.
Mais uma vez, teria de enterrar uma criança sua.
O funeral foi simples, numa fria manhã de outono, o vento forçando as
folhas a tecer espirais no ar. Georg era o único amigo presente. Kepler teve de
enterrar a filha num vilarejo vizinho, já que Hitzler não o deixaria seguir os
ritos luteranos em Linz. Susanna ajoelhou diante do túmulo e atirou uma rosa
vermelha sobre o caixão já na cova. Uma ruga havia surgido na sua fronte, o
selo do pacto entre a alma, o corpo e o tempo, do qual ninguém escapa.
Kepler olhou com admiração para ela, que demonstrava elegância até no
sofrimento. A energia da mulher inspirava-o, instigava-o a viver, a voltar ao
trabalho, a criar o novo. Ele sentiu que devia retomar a busca pela música das
esferas, a qual ressoava nos céus junto às suas crianças mortas. A morte fazia-
o olhar para o firmamento, para o eterno. Decidiu consultar suas antigas
notas, que compilara em 1599, após a morte da primeira filha. Jurou que o
faria ainda naquela noite. Era hora de encontrar as leis que regem a harmonia
do mundo.
Depois de procurar pela casa inteira sem sucesso, Christian foi encontrar
Maestlin sentado num banco à beira do rio, com o diário junto ao peito. O
velho astrônomo parecia completamente alheio ao que o cercava, os olhos
fixos na água. Desde que estivera doente pela última vez, preferia passar com
Kepler a pouca vida que lhe restava.
“Vovô?”, chamou Christian. “O senhor está me ouvindo?”
Maestlin virou-se devagar para o neto, aparentemente sem reconhecê-lo.
Christian pegou em seu braço e insistiu: “Vovô? O senhor está bem?”.
A mente do velho mestre parecia protestar contra a intromissão, tal qual um
moinho abandonado que o vento força a girar. “Ah, Christian, é você…
Estava mesmo à sua procura…”
O jovem olhou com ternura para o avô. “Eu sei, vovô querido. Desculpe-
me pelo atraso.”
“Não há de ser nada. O tempo para mim passa de forma diferente… Trouxe
o diário. Aqui, pode começar.” Maestlin entregou o pequeno volume ao neto.
Estavam quase terminando a leitura.
“O senhor tem certeza de que quer ler hoje? Talvez fosse melhor descansar.
Posso voltar amanhã cedo.”
“Nada disso. Sinto-me perfeitamente bem. Por que esperar?”
“Se o senhor insiste… Mas antes vamos para casa!”
1º de fevereiro de 1618
Meu coração está dividido: de um lado, as tristezas
que a vida me traz e, do outro, a alegria que sinto ao
contemplar as verdades escritas nos céus. Depois de
sofrer terrivelmente, minha mãe — ou o que restou
dela — enfim foi libertada. Mal festejamos, minha
enteada e uma filha minha morreram, e outra teve de
mudar-se para longe. Susanna e eu temos tentado
lidar da melhor forma possível com essa sucessão de
tragédias. Ludwig e Katharina são nossa única
inspiração nestes dias difíceis. Não sei o que
faríamos sem os dois… Deus os proteja!
Quando posso, fecho-me no escritório e procuro as
harmonias do mundo. Voltei a estudar os
ensinamentos de Pitágoras e de seus discípulos sobre
as relações entre os números e os sons harmônicos.
Benditos sejam nossos antepassados da Grécia!
Descobriram, soando as cordas da lira, que os sons
são agradáveis, ou melhor, harmônicos, apenas
quando o comprimento de duas cordas satisfazem
razões simples entre si — 1:2 (uma corda duas vezes
mais longa que a outra), 3:4, 5:8 etc. Ao refletir
sobre isso, perguntei-me por que razões envolvendo o
número 7, como 1:7 ou 3:7, criam sons dissonantes.
Descobri a resposta usando a geometria! Quais as
figuras geométricas que cabem dentro de um círculo,
dividindo-o em arcos de tamanhos iguais? Resposta:
as que dividem os 360 graus do círculo em partes
iguais! O triângulo, por exemplo, divide o círculo em
arcos com 1:3 e 2:3 de sua circunferência; o
quadrado, em arcos com 1:4, 1:2, 3:4; o pentágono,
com 1:5, 2:5…; o hexágono, com seus seis lados,
1:6…, 5:6. Pois são justamente essas razões que
criam as notas harmônicas! O mesmo já não ocorre
com o heptágono (1:7…, 6:7). E por que não?
Porque o heptágono é uma das figuras que não
podem ser construídas usando-se um compasso, uma
régua e as regras da geometria de Euclides. O
mesmo ocorre, por exemplo, com o polígono de onze
lados. Isso não é uma coincidência! Ambas são uma
aberração geométrica, justamente chamadas de
formas “incomensuráveis”. Portanto, não podem
pertencer aos arquétipos harmônicos com que Deus
construiu o cosmo.
Sabemos disso porque nós, humanos, temos a
habilidade instintiva de perceber ordem, em
particular a ordem geométrica das coisas. É como se
Deus nos houvesse dado o dom de enxergar o mundo
como uma combinação de formas e proporções
determinadas pelas leis da geometria. A música,
como demonstraram os pitagóricos, foi o primeiro
exemplo. E não é necessário que sejamos músicos
para compreender isso: uma pessoa que não entende
de música nem de matemática sabe, ou melhor, sente
quando um instrumento está desafinado. Sua alma
ressoa apenas quando aqueles sons são
harmônicos… Sons dissonantes criam antagonismos,
influências negativas. Conforme argumentei acima,
os sons harmônicos têm representações geométricas,
dadas pelos polígonos “comensuráveis”. São esses
os átomos que Deus usou para construir o mundo, os
átomos da harmonia cósmica.
Afinal, não demonstrei no meu Mysterium que as
órbitas dos planetas são descritas pelos cinco sólidos
platônicos? E como são construídos esses sólidos?
Com base em polígonos comensuráveis! Sim, existem
discrepâncias entre os dados de Tycho e minha
hipótese poliédrica. Mas quão ínfimas são quando
consideramos a vastidão das distâncias cósmicas! Só
o que podemos fazer é usar nossa mente imperfeita
para imitar a perfeição divina. A astronomia e a
filosofia natural devem ser vistas assim, como
representações imperfeitas da obra perfeita de Deus.
Continuarei a buscar as relações harmônicas que
regem as órbitas planetárias e as interações entre o
cosmo e o homem. Se Deus usou arquétipos
geométricos para construir o mundo, essa harmonia
não se limita à música. Tudo o que existe, do
comportamento humano aos movimentos celestes,
deve obedecer às mesmas regras fundamentais.
Preciso apenas encontrá-las!
“Que mente privilegiada!”, exclamou Christian.
“Platão foi o último a tentar unificar todo o conhecimento num único
sistema”, disse Maestlin. “Que bela a ideia de que tudo pode ser explicado
pela geometria, de que tudo é geometria. Ela seduziu Kepler por toda a
vida…”
“E ao senhor?”, provocou o jovem.
Maestlin olhou furtivamente para o neto, tentando ler suas intenções. “Ah,
sou um homem bem mais simples, Christian, de ambições humildes. Conheço
bem a geometria, é verdade. Mas usei-a apenas como uma ferramenta, sem a
intenção de construir teorias que unificassem todo o saber.”
“É mesmo?”, insistiu Christian. “É difícil imaginar que um astrônomo
possa resistir à tentação de procurar um sistema tão elegante…”
“Pois este astrônomo jamais esteve interessado nisso.” Maestlin irritou-se.
“Para começar, a lógica de Kepler nunca foi muito transparente. Ele sempre
achava justificativas para seus preconceitos. Por exemplo, um polígono de
quinze lados é ‘comensurável’. Porém, não encontro nenhum em sua obra.
Tenho certeza de que ele tinha uma boa desculpa para isso.”
“Bem, pode ser que às vezes Kepler levasse um pouco longe demais seus
argumentos. Mas o que importa não é a busca, a ânsia de encontrar a
Verdade? Não é preciso sonhar, arriscar, para criar o novo?”
“Está insinuando que nunca fiz nada de novo, Christian? Que passei a vida
fuçando detalhes inúteis, enquanto Kepler decifrava a obra divina?” Maestlin
olhou para a estante sobre a lareira, onde seus livros repousavam ao lado dos
de Kepler. Sabia bem a resposta.
Christian fitou o avô, entristecido. O velho mestre decretara a própria
sentença: havia fracassado como astrônomo e mentor. Sua covardia levara-o a
tentar destruir o que lhe era mais caro. “Não pensaria isso do senhor jamais!”,
protestou o jovem. “Sabe o quanto o admiro, e também ao seu trabalho. Caso
contrário, por que voltaria aqui todos os dias? Venho porque quero saber mais
da sua vida, das suas experiências.”
“Se é esse o motivo das suas visitas, está desperdiçando a juventude na
companhia de um péssimo exemplo.”
“Não devia falar assim, vovô! Pense em tudo o que fez, nas suas
descobertas, no livro que escreveu, lido em toda a Europa…”
“Um livro antiquado, e errado ainda por cima, cheio de asneiras
aristotélicas”, interrompeu Maestlin, olhando para sua cópia da Epítome
astronômica , que estava ao lado da Astronomia nova , de Kepler.
“Pense nas observações que o senhor fez da estrela nova de 1572 e do
cometa de 1577, comprovando que Aristóteles estava errado ao insistir que os
céus eram imutáveis.”
“As observações de Tycho foram infinitamente superiores às minhas.”
“Pense nos seus alunos, no quanto foi importante para eles, para Kepler,
nas portas que abriu.”
“Exatamente! Fui apenas isso, um porteiro. Um mentor teria orgulho dos
pupilos, do que alcançaram em suas carreiras. Eu abandonei o meu. Fui um
covarde.”
“Não diga isso, vovô! O senhor inspirou muitos, é querido por muitos!”
“Pode ser, caro neto, mas não vejo as coisas assim. Você é tudo o que me
resta agora…” Maestlin fitou-o com uma ponta de malícia nos olhos. “E sei o
quanto está interessado em Kepler. Afinal, a companhia dele é mesmo
instigante. Sei que é por isso que volta aqui todos os dias.”
“Não é verdade! Venho para estar com o senhor!”
“Não se preocupe, eu faria o mesmo se fosse jovem como você.”
Christian baixou os olhos, envergonhado. O avô tinha razão. Kepler
seduzira-o. Voltava para estar perto dele, da sua sabedoria, da sabedoria de
Deus. Se Maestlin via em Kepler a vida que tinha desperdiçado, o jovem via
nele a vida que almejava.
“O senhor… quer que continue a leitura?”
“Hoje não, meu caro. Preciso ficar só. Por que não volta em dois dias?”,
sugeriu Maestlin, os olhos fixos na estante.
31
23 de maio de 1618
Desde fevereiro que procurava a música oculta no
movimento dos planetas. Se Deus usou os mesmos
arquétipos geométricos para criar o mundo, as
mesmas leis que regem as órbitas celestes têm de
reger as harmonias da música. Minha missão é – e
sempre foi – encontrar essas leis. Às vezes, sinto-me
como o viajante que deixou a tudo e a todos em busca
das terras de seus sonhos. Amigos e parentes diziam-
lhe que morreria antes de achar algo, que havia
perdido a razão, que era loucura aventurar-se rumo
ao desconhecido. Sozinho em seu barco, ignorando a
todos, o viajante partiu, inspirado pela visão de
terras mágicas, lutando contra o frio e a fome,
enfrentando tempestades terríveis. Durante anos
prosseguiu corajosamente, sem nada descobrir. Até
que, um dia, Deus presenteou-o. Seu tesouro não
consistia em montanhas de ouro e diamantes ou em
mulheres belíssimas. Não, o viajante encontrou uma
pequena janela, uma janela que lhe permitiu
vislumbrar, por um breve momento apenas, a mente
do Criador. E a luz que viu, a beleza que lhe foi
revelada, transformou-o para sempre. Ele não se
importou quando retornou à aldeia e ninguém
acreditou nele, acusando-o de ter enlouquecido de
vez; sabia que era uma questão de tempo, que no
futuro as pessoas lhe dariam ouvidos e sua visão
seria celebrada por toda a eternidade.
Primeiro, tentei encontrar padrões harmônicos nos
períodos orbitais dos planetas. Usando os dados de
Tycho, experimentei tomar razões entre os diferentes
períodos, comparando os resultados com as razões
harmônicas das escalas musicais. Não tive êxito.
Tentei então encontrar relações entre as distâncias
dos planetas ao Sol, novamente comparando-as às
razões entre as notas musicais. Mais uma vez,
fracassei. Comecei a entrar em pânico. Será que
estivera errado todos aqueles anos? Será que minha
busca obsessiva por uma lei harmônica era o
devaneio de um louco? Será que o viajante terminara
seus dias espatifado contra um recife? Não, não era
possível. Eu não podia viver num cosmo dissonante.
A sabedoria de Deus tinha de estar oculta na
estrutura do Universo, eu estava convencido disso.
Não podia desistir, precisava continuar a navegar.
Talvez as razões harmônicas estivessem entre as
velocidades mais extremas das órbitas dos planetas:
a mais rápida no ponto mais próximo ao Sol, e a
mais lenta no ponto mais distante dele. Outro
fracasso. Dias se passaram. Faltavam-me ideias.
Foi então que aconteceu. Resolvi, numa intuição
louca, transferir-me dos planetas para o Sol,
imaginando como os movimentos cósmicos seriam
percebidos por um observador solar. Mas claro!
Afinal, o Sol não era o centro dos movimentos? Nesse
caso, lá é que devia residir o segredo da harmonia do
mundo. Comecei por Saturno: em relação ao Sol, sua
velocidade mais lenta é de 106 segundos de arco por
dia, e a mais veloz, de 135 segundos de arco por dia.
A razão entre as duas é 0,785, muitíssimo perto de
4:5 (ou 0,8), uma terça maior! Minha mão tremia,
mal conseguia segurar a pena. E os outros planetas?
Todos satisfazem razões semelhantes às notas
musicais: Júpiter, uma terça menor; Marte, uma
quinta. Podia ver as notas dançando diante de mim.
Em seguida, comparei as mesmas duas velocidades
extremas entre pares diferentes de planetas, usando
os resultados para construir escalas harmônicas para
cada planeta, a música que criam ao girar pelos
céus, a harmonia cósmica. É essa a sinfonia de Deus,
a música eterna da Criação, que revelarei ao mundo
para que todos possam deleitar-se com suas
harmonias. Seria impossível tentar expressar minha
felicidade… Apenas aqueles que passaram longos
anos buscando a verdade, imersos na escuridão da
ignorância, podem compreender o júbilo
transcendente da descoberta.
Maestlin interrompeu a leitura, aguçando os ouvidos. Nada. Nenhum som
ecoava em sua mente. Fechou os olhos para aumentar a concentração. Ouviu
então algo, um zumbido incessante. Não era, porém, nada de novo: era o
ruído da audição cansada de tantos sons frívolos por toda uma longa vida. A
outra melodia, a que importava, escapava-lhe. Não conseguia ouvi-la, não
fora abençoado como Kepler. Sabia apenas que ela existia e ressoava pelas
esferas celestes. Deus, em seu desdém, fizera-o surdo às Suas harmonias.
Para completar minha obra, restava uma última
tarefa: encontrar a lei que relaciona a distância do
planeta ao Sol (d) ao tempo que ele leva para
completar sua órbita (t). A razão entre os dois
números, expressão máxima da harmonia cósmica,
tinha de ser a mesma para todos os planetas.
Comecei com a razão mais simples, t/d. Não
funcionou: para Mercúrio, obtive 0,62, e, para
Saturno, 3,10. Tentei, então, a combinação t/d2. De
novo, não obtive sucesso. Mercúrio contava agora a
maior razão, e Saturno, a menor. Em seguida,
calculei t2/d2. Nada. Por fim, já quase sem
esperanças, tentei t2/d3. E funcionou ! A razão é
igual a 1 para todos os planetas! No início, pensei
que se tratava de um sonho. Confirmei e reconfirmei
os números freneticamente, e não encontrei erro
algum! Uma única lei relaciona distância e tempo,
revelando em sua simplicidade a concepção
harmônica do cosmo. É essa a lei que tanto procurei,
a lei que liga cosmo e mente, que demonstra que toda
a Criação provém da unidade de Deus. Minha busca
está encerrada.
Termino este diário com uma oração:
Que a unidade revelada nestas páginas, expressão
da perfeição divina, ilumine o espírito enfraquecido
dos homens, alimentando o amor ao próximo e
restaurando a paz entre todos os credos. Que a
harmonia que rege o mundo conforte nossos pesados
corações e desperte os homens para uma nova era,
baseada na liberdade e no respeito à vida.
Maestlin fechou o diário. A sala estava escura. Apenas duas velas ardiam
na mesa ao lado. Sua cabeça latejava. Um cão latia ao longe. Ele aguçou mais
uma vez os ouvidos. Somente o mesmo ruído, familiar… incessante.
Era hora. Com um movimento brusco, tirou a carta do diário.
Caro mestre,
Peço-lhe que leia esta carta apenas depois de terminar o diário.
Sei que o senhor compreenderá.
Eternamente seu, Johannes
Eternamente seu, Johannes… Com a mão trêmula, Maestlin correu o dedo
indicador sob a dobra do papel até atingir o selo. Um gesto rápido, e o
quebraria. O velho mestre hesitou. Não conseguia fazê-lo, seria fácil demais.
Dessa vez, ao menos dessa vez, não fugiria à sua responsabilidade, não
deixaria que Kepler o perdoasse. Recolocou a carta no diário e o pôs na mesa.
Com enorme esforço, segurou a ponta da corda, levantando-se. Queria ver o
céu. Foi devagar até a janela e abriu-a. A noite quente, sem lua, penetrou na
sala. Ele procurou algum planeta, mas não avistou nenhum. Tentou ouvir sua
música, mas apenas o silêncio chegou-lhe. Uma brisa vinda dos campos trazia
o aroma de flores silvestres e esterco. Pensou em Margaret. Pensou em
Ludwig e em Michael. Pensou em Maria. E pensou em Christian, na sua alma,
que ardia com a fúria da juventude à procura de algo maior que a vida, à
procura do que Kepler havia encontrado.
Deixou a janela aberta para que a noite continuasse a fazer-lhe companhia.
Era hora. De volta à poltrona, agarrou-se à corda com as duas mãos. Dessa
vez, porém, não a usou para sentar-se. Amarrou-a num laço e certificou-se de
que era forte o suficiente. Urânia roçou em suas pernas, pedindo carinho.
Mais uma vez, foi ignorada. O velho mestre segurou a corda acima do laço e,
reunindo todas as suas forças, subiu na poltrona. Ajustou o nó pacientemente,
de modo que o laço ficasse na altura do rosto. Num gesto solene, pôs a corda
em torno do pescoço, assegurando-se de que não havia folga, e sorriu. Olhou
para o céu, deu um passo adiante e, lutando para manter os olhos abertos, viu
as estrelas multiplicarem-se, milhões delas, até que o céu inteiro se encheu de
luz, a luz mais pura que jamais vira. Então, vislumbrou os contornos de um
rosto que sorria. Era o rosto do seu adorado Kepler, convidando-o a ouvir a
harmonia celeste. E, dessa vez, Maestlin finalmente a ouviu.
Nota do autor
E ao senhor, em primeiro lugar,
caro mestre, em tua velhice feliz:
pois foste tu quem me inspirou,
com palavras e esperança.
Johannes Kepler, na conclusão
d’A harmonia do mundo,
Livro V, capítulo X
A dedicatória acima encontra-se, quase imperceptível, numa anotação
marginal no final da grande obra de Kepler sobre as harmonias do mundo. É a
expressão derradeira do apreço que ele tinha por seu mentor, o homem
melancólico que o introduziu na beleza da astronomia copernicana. Embora a
relação profissional dos dois tenha sido interrompida ainda no início da
carreira de Kepler, a relação afetiva sobreviveu até o fim de suas vidas.
Neste romance, todos os eventos são factuais, com exceção dos que
envolvem as únicas personagens fictícias, Maria e Christian. O diário de
Kepler também é fictício. As circunstâncias da morte de Maestlin, pelo que
pude descobrir, continuam ignoradas. Kepler faleceu em 1629 e foi enterrado
em Regensburg. Seus restos mortais desapareceram quando o cemitério foi
destruído, durante a Guerra dos Trinta Anos. Nem mesmo após a morte ele
deixou de errar pelo mundo. Sua fé no poder da razão e sua devoção à
verdade e à justiça merecem ser permanentemente celebradas.
Devo agradecer em primeiro lugar a generosidade do Dartmouth College,
que, através de uma bolsa (Wilson Faculty Fellowship), permitiu-me seguir os
passos de Kepler na Alemanha, na Áustria e em Praga. Ulrich Gebhardt
concedeu-me acesso ilimitado à preciosa coleção de livros raros da biblioteca
da Universidade de Tübingen. Frau Renate Gnad permitiu que eu visitasse a
casa de Kepler em Weil der Stadt com a liberdade de que precisava. Ricardo
Hoineff abriu-me as portas da maravilhosa biblioteca do mosteiro de Strahov,
em Praga, onde pude estudar manuscritos originais dos séculos xvi e xvii.
A lista de amigos que bondosamente me cederam seu tempo e sua
sabedoria durante os três anos que dediquei a esta obra seria extensa demais.
Entre eles, menciono com gratidão Louis Begley, K. C. Cole, Jonathan
Crewe, Orrin Devinsky, Owen Gingerich, David Glass, Luiz Gleiser, Roald
Hoffmann e Oliver Sacks. Na versão em português, meu eterno
agradecimento a Luis Giffoni, Sonia Gleiser e, em particular, a Rodolfo
Franconi, que leu cuidadosamente o original, cedendo-me um pouco do seu
vasto conhecimento gramatical e estilístico. À minha agente, Agnes Krup,
pela inspiração e apoio. E, por fim, a Kari, minha sábia Susanna, pela
paciência em ler, reler e criticar as várias versões do manuscrito.
Bibliografia
MARCELO GLEISER, nascido em 1959 no Rio de Janeiro, doutorou-se
em física teórica pelo King’s College da Universidade de Londres.
Depois de atuar como pesquisador no Fermilab, nos arredores de
Chicago, e no Instituto de Física Teórica da Universidade da Califórnia,
em Santa Bárbara, é hoje professor de física e astronomia do Dartmouth
College, em New Hampshire. Pela Companhia das Letras, publicou A
dança do Universo , O fim da Terra e do Céu (ambos ganhadores do
prêmio Jabuti),Retalhos cósmicos e O livro do cientista .
Copyright © 2006 by Marcelo Gleiser
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor
no Brasil em 2009
Capa
Mariana Newlands
Imagem de capa
O astrônomo (1668), óleo sobre tela
de Johannes Vermeer (1632-75). Museu do Louvre, Paris.
Ilustrações
Mariana Newlands
Preparação
Márcia Copola
Revisão
Arlete Sousa
Carmen S. da Costa
Atualização ortográfica
Página Viva
EDITORA SCHWARCZ LTDA .
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
04532-002 — São Paulo — SP
Telefone (11) 3707-3500
Fax (11) 3707-3501
www.companhiadasletras.com.br
Sumário
Capa
Rosto
Parte I
1
2
3
4
5
6
7
Parte II
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
Parte III
20
21
22
23
24
25
26
27
Parte IV
28
29
30
31
32
Nota do autor
Bibliografia
Créditos