Disserta o Lucas Pardini Gon Alves 2017650468 PDF
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Disserta o Lucas Pardini Gon Alves 2017650468 PDF
FACULDADE DE DIREITO
Belo Horizonte
2019
LUCAS PARDINI GONÇALVES
Belo Horizonte
2019
LUCAS PARDINI GONÇALVES
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Orientador: Prof. Dr. Luís Augusto Sanzo Brodt
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Professora Convidada: Dra. Heloisa Estellita
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Professor Membro: Dr. Frederico Horta
Key words: willful blindness; dolus; ignorance; mistake; mistake of fact; improper
omissive crimes; Corporate Criminal Law.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 9
2.2 Condensado histórico da willful blindness doctrine: precedentes mais relevantes ...... 21
1 INTRODUÇÃO
A teoria da cegueira deliberada tem sido objeto de constante polêmica, que a acompanha
desde suas primeiras enunciações pela jurisprudência. Embora já conhecida há algum tempo,
ainda se discutem seus contornos, conteúdo e, até mesmo, aceitabilidade e natureza jurídica.
Seria a cegueira deliberada um novo título de imputação subjetiva, ao lado das categorias já
conhecidas no âmbito tanto do common law, quanto do civil law? Seria ela, na verdade, não
mais que uma forma de atendimento in concreto a alguma dessas categorias abstratas? Antes
disso, seria ela juridicamente admissível ou configuraria indevida abertura à responsabilidade
penal objetiva?
Esses questionamentos não estão ainda aclarados e as incertezas são compreensíveis.
Afinal, está-se a tentar comparar um conceito relativamente novo à luz de parâmetros que,
embora já sejam clássicos, continuam sendo, eles próprios, objeto permanente de divergências.
Para se responder à primeira indagação acima posta, seria necessário ter por delimitado,
previamente, o conceito de cada uma das categorias de imputação penal já reconhecidas (no
sistema romano-germânico, dolo e culpa) para, somente então, poder se examinar se a cegueira
deliberada (uma vez entendido o que é isso) se insere em alguma delas. Contudo, já esse
primeiro estágio do raciocínio traz problemas, diante da multiplicidade de abordagens e teorias
que se apresentam quanto às referidas categorias de imputação, sendo temerário apontar, até
mesmo, um eventual denominador comum entre elas.
A segunda indagação é decorrência da primeira. Se os conceitos abstratos já são objeto
de infindáveis divergências doutrinárias, sua materialização, em um caso concreto, está ainda
mais distante de ser pacífica. Em abstrato, às vezes não se detectam problemas e colisões entre
diferentes proposições que só se apresentam mesmo diante de uma situação prática.
A terceira indagação não destoa das anteriores, também tomando como parâmetro um
conceito que talvez mereça uma revisitação, para se questionar seu real conteúdo. O que quer
dizer, em verdade, responsabilidade jurídica subjetiva? Seria isso, simplesmente, a restrição da
responsabilidade pessoal a atos praticados pelo sujeito com conhecimento e vontade? Ou, quem
sabe, só o conhecimento já bastaria? Ou, por que não, talvez nem mesmo o próprio
conhecimento, por parte do agente, se faça invariavelmente necessário?
As interrogações são muitas e irresolutas.
A presente Dissertação se propõe a trabalhar esse tema, buscando conceituar cegueira
deliberada e analisar as respostas que o Direito Penal pode oferecer para o tratamento de
situações englobas no conceito.
10
Ainda que as conclusões a que se vier a chegar neste trabalho possam, em alguma
medida, ser generalizadas para o Direito Penal como um todo, a pesquisa efetuará um recorte
metodológico voltado, especificamente, ao caso dos crimes omissivos impróprios no contexto
empresarial. Assim, de forma ainda mais precisa, seu objeto de estudo será a análise da
possibilidade de imputação penal por dolo no caso do agente garantidor, em uma estrutura
empresarial, postado em estado de cegueira deliberada quanto à situação típica de perigo.
A justificativa desse recorte deve ficar clara ao longo da exposição, podendo-se já
adiantar, a título introdutório, que tal espécie delitiva possui características peculiares que a
tornam um locus especialmente propenso à conformação de um estado de cegueira deliberada
pelo sujeito, em especial no contexto empresarial. Dessa forma, o estudo da figura mediante
sua aplicação a esse tipo de crime é proveitoso, na medida em que permitirá explorar situações
realistas e hipóteses factíveis de cegueira deliberada com relevância penal, buscando-se, assim,
sair do já batido caso do agente que prefere não saber o que há dentro da mala e sofisticar o
debate, analisando a cegueira deliberada em contextos mais complexos, para os quais a doutrina
e a jurisprudência ainda estão à busca da consolidação de respostas mais satisfatórias.
Com esse intento, a exposição começará, no Capítulo 2, pela abordagem da willful
blindness doctrine no contexto do common law, buscando trazer, sucintamente, as categorias
de imputação subjetiva com que lá se trabalha e a evolução jurisprudencial da doctrine,
especialmente nos Tribunais dos Estados Unidos da América (EUA), com vistas a identificar o
porquê de seu surgimento naquele sistema jurídico.
Feito isso, o Capítulo 3 terá por objeto a cegueira deliberada no Direito romano-
germânico, objetivando identificar se a teoria, tal como alhures construída, é de interesse para
esse sistema jurídico ou se sua importação seria despropositada, o que se fará à luz da imputação
subjetiva nesse sistema, que se difere daquela do common law.
O Capítulo 4 encerrará essa primeira parte da pesquisa, mediante a formulação de um
conceito autêntico de cegueira deliberada que pretende não se ater ao campo jurídico, ou seja,
não se buscará a estipulação de critérios para uma teoria jurídica da cegueira deliberada, mas,
sim, entender o que é esse ser, não se atendo, neste momento da pesquisa, com o que deve ser
dele.
Feito isso, chegar-se-á àquele capítulo que, à primeira vista, pode parecer um ponto fora
da curva, destoando da temática de todos os demais, mas que, em verdade, tem sua razão de
ser. No Capítulo 5, serão trazidas noções preliminares do crime omissivo impróprio no contexto
empresarial, expondo-se elementos do delito que antecedem a fase de imputação dolosa e que,
portanto, devem ser percorridos para que se chegue a esta, verdadeiro objeto do estudo. Para
11
o trabalho já terá valido todo o esforço. Por outro lado, se a leitura só trouxer ainda mais dúvidas
e nada resolver, o leitor será merecedor de um pedido de desculpas pelo tempo tomado, pois o
trabalho não terá sido digno de sua atenção.
A aplicação a casos concretos, portanto, longe de mera formalidade acadêmica, visa a
pôr o trabalho à prova e testar se ele é prestável, assim entendido aquele que, ainda que
minimamente, traz alguma luz para o trato das situações problemáticas que o motivaram.
Aquele que nada trouxer ou, pior ainda, que trouxer não luz, mas trevas, deve ser rechaçado,
por ter fracassado.
Passa-se, portanto, à exposição do caso proposto, com suas variações, ao qual se buscará
dar uma resposta quanto à imputação penal, ao final, após ter sido percorrido o caminho aqui
delineado.
No âmbito de uma instituição financeira (Banco A), foi criado um produto (“X”), similar
a uma conta remunerada, por meio do qual os valores ociosos depositados por clientes em suas
respectivas contas-correntes poderiam ser transferidos para outra instituição financeira
(Corretora de câmbio B) do mesmo grupo, em que viriam a ser aplicados em opções flexíveis
de ouro e dólar, mediante emissão de notas de negociação de título.
Um diretor do Banco, em exercício efetivo de suas atividades, esteve presente à reunião
do comitê gestor em que foi aprovada a criação desse produto, sendo que, naquela ocasião, ele
foi apresentado e aprovado sem qualquer aparência de irregularidade, tendo sido previsto que,
como qualquer outra aplicação desse tipo, seria colhida prévia autorização do correntista e a
movimentação seria feita no seu interesse.
Passado algum tempo, sem que aquele diretor recebesse qualquer informação sobre o
andamento das operações do produto “X”, o setor de compliance detectou um desvio no
manuseio do produto por parte de ocupantes de níveis hierárquicos inferiores na estrutura
operacional do Banco. Na prática, ele vinha sendo manipulado como forma de fraude à base de
cálculo do depósito compulsório do Banco A junto ao Banco Central (BACEN), consistindo,
em verdade, em uma simulação destinada a possibilitar que recursos depositados pelos clientes
deixassem de estar sujeitos ao recolhimento compulsório. As aplicações vinham sendo
realizadas sem a autorização dos correntistas e a remuneração paga a estes não era a contratada,
1
O caso é uma adaptação de um julgado do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3): Apelação Criminal
0002883-06.2005.4.03.6181, 11ª Turma, Rel. Des. Fed. Fausto de Sanctis, j. 30/01/2018, p. 23/02/2018.
13
sendo que, em caso de necessidade de cobertura do saldo devedor nas contas dos clientes,
procedia-se ao resgate imediato dos valores aplicados pela Corretora B e ao repasse ao Banco,
para crédito em favor do cliente.
O setor de compliance do Banco elaborou minucioso relatório da situação e o
encaminhou à diretoria que o referido diretor compunha, o qual, entretanto, não chegou a tomar
efetiva ciência dos fatos, pois, ao receber o envelope com o relatório que os denunciava
claramente, decidiu descartá-lo sem nem mesmo o abrir, pois não queria se envolver com outro
problema naquele momento, já muito atribulado que estava com outros projetos, tendo pensado:
“Seja lá o que for, que outra pessoa cuide disso. Não é justo que tudo caia em mim nessa
empresa e eu tenha que resolver tudo. Deixe que alguém olhe esse expediente aí e faça o que
for necessário”.
A situação se manteve por determinado tempo depois disso, até que uma fiscalização do
BACEN a identificou e determinou a imediata suspensão das operações do produto X.
Esse diretor cometeu gestão fraudulenta dolosa de instituição financeira, em omissão
imprópria (art. 4º, caput, da Lei 7.492/86, c/c art. 13, §2º, do Código Penal brasileiro – CPB)?
Variação 1: Nesse mesmo cenário, o relatório foi enviado ao diretor em uma sexta-feira,
quando ele se encontrava em viagem profissional, pelo que o envelope foi deixado sobre sua
mesa. O diretor retornou da viagem no domingo e, já na segunda-feira, voltou à sede do Banco,
onde topou sua mesa abarrotada com pilhas de documentos, os quais ele começou a analisar
por aqueles que lhe pareciam mais urgentes. Até o final do dia, tamanha a quantidade de
material que se acumulou, ele não havia ainda conseguido chegar àquele envelope, o qual
permaneceu fechado, em meio a tantos outros expedientes. Na terça-feira, esse diretor passou
o dia todo em assembleia-geral de acionistas agendada meses antes, em que sua presença se
fazia obrigatória, pelo que não foi ao seu escritório naquele dia. Na quarta-feira, ao chegar a
seu escritório objetivando atacar aquela papelada, já foi recebido, na porta, com a notícia de
que uma fiscalização do BACEN conduzida na véspera havia detectado a fraude no produto X
e paralisado as operações a ele relacionadas.
Repete-se a pergunta: nesse novo cenário, o diretor cometeu gestão fraudulenta dolosa
de instituição financeira, em omissão imprópria (art. 4º, caput, da Lei 7.492/86, c/c art. 13, §2º,
do CPB)?
haviam feito serviços como aquele por algumas vezes no passado, sem ocorrência de
problemas, não detectou a irregularidade, redigindo um relatório conclusivo de acordo com o
qual as operações dos diversos produtos do Banco, inclusive o problemático, estariam regulares.
Tal relatório foi enviado ao diretor que, de pronto, o analisou e, diante de sua aparente higidez
formal e material, apenas o arquivou.
As fraudes continuaram ocorrendo por determinado tempo depois disso, até que uma
fiscalização do BACEN as identificou.
Repete-se, novamente, a pergunta: diante desse cenário, o diretor cometeu gestão
fraudulenta dolosa de instituição financeira, em omissão imprópria (art. 4º, caput, da Lei
7.492/86, c/c art. 13, §2º, do CPB)?
Variação 3: Nesse mesmo cenário, ao invés de não ter tido qualquer informação quanto
às operações do produto desde sua criação, o diretor já vinha sendo exposto a indícios da fraude.
Certa feita, um subordinado seu, ao final de uma reunião, lhe disse que tinha se deparado com
algumas movimentações estranhas relacionadas àquele produto, porém ainda não havia
entendido bem do que se tratava. Em outra oportunidade, ao conferir o montante atual do
depósito obrigatório do Banco junto ao BACEN, o diretor percebeu que ele vinha em declive
ao longo dos últimos meses, em função de uma redução da base de cálculo, o que contrastava
com o crescimento do Banco, que, exatamente nesse mesmo período, aumentou sua carteira de
correntistas. Por fim, em outra oportunidade, ao conferir um balancete enviado pela Corretora
B com o valor total de repasses recebidos do Banco, o diretor deparou-se com um incomum
crescimento nas operações de remessa.
Após tudo isso, o mesmo relatório redigido pelo setor de compliance lhe foi enviado,
noticiando, detalhadamente, tudo que vinha ocorrendo, com a seguinte identificação no exterior
do envelope: “Ref.: produto X”.
Ao se deparar com aquilo, o diretor logo ligou os pontos e desconfiou que aquele produto
poderia estar sendo manipulado de forma indevida, o que explicaria as movimentações
estranhas de que falara seu subordinado, a redução da base de cálculo do depósito obrigatório
do Banco e o aumento dos repasses à Corretora. Diante disso, pensou: “Tem alguma coisa
errada aí... Melhor deixar quieto, não vou me envolver”. E não abriu o envelope.
Uma semana depois, uma fiscalização do BACEN constatou a fraude.
Repete-se, uma vez mais, a pergunta: diante desse cenário, o diretor cometeu gestão
fraudulenta dolosa de instituição financeira, em omissão imprópria (art. 4º, caput, da Lei
7.492/86, c/c art. 13, §2º, do CPB)?
15
2
O trabalho acolhe a observação de Guilherme Brenner Lucchesi quanto ao emprego do termo common law no
gênero masculino para se referir ao Direito consuetudinário anglo-saxão, em oposição ao seu emprego no gênero
feminino, referente, por sua vez, à tradição common law (LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como
dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 67. nota 11).
3
Não se desconhece a advertência de Lucchesi, no sentido da incorreção de se referir à willful blindness doctrine
como uma teoria, esclarecendo o autor que doctrine significa, em verdade, a coleção de regras que sintetiza o
conjunto das decisões judiciais em determinada área, sendo que a willful blindness jamais teria tido
desenvolvimento teórico ou acadêmico, tratando-se de construção prática (Ibid., p. 128-9). Entretanto, mesmo
conhecendo-se a falsa cognação entre doctrine e doutrina, no Direito nacional, aqui não se vê razão para não se
valer do termo teoria, visto que se trata, sim, de uma proposição teórica que não deve ser desmerecida só por ser
obra da jurisprudência, e não da academia, como se esta detivesse exclusividade no desenvolvimento de teorias.
Por estarem em contato direto e diuturno com casos concretos, acontece, com frequência, de serem exatamente os
Tribunais os primeiros a desenvolver formulações jurídicas para as situações que o dia a dia lhes apresenta, as
quais podem, eventualmente, ser refinadas pelo rigor acadêmico. Assim, em que pese a tradução de doctrine, aqui
reconhece-se tratar-se de uma teoria jurídica.
16
4
SALES, Sheila Jorge Selim de. Anotações sobre o estudo da recklessness na doutrina penal italiana: por uma
terceira forma de imputação subjetiva?. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 137, 2017. Acesso digital;
PIÑA ROCHEFORT, Juan Ignacio. La estructura de la teoría del delito en el ámbito jurídico del “common law”.
Granada: Editorial Comares, 2002. p. 13-8. Paul H. Robinson sustenta a inconveniência da distinção entre os dois
conceitos, por entender que, dentro de cada um, há diversas doctrines, com requisitos e funções diferentes, não
havendo, assim, unidade conceitual, pelo que propõe a quebra do conceito de actus reus em cada uma de suas
doctrines e a substituição do conceito unitário de mens rea por culpability requirements (ROBINSON, Paul H.
Should the Criminal Law Abandon the Actus Reus-Mens Rea Distinction?. In: SHUTE, Stephen; GARDNER,
John; HORDER, Jeremy (Orgs.). Action and Value in Criminal Law. Oxford: Clarendon Press, 1993. p. 187–211).
5
PIÑA ROCHEFORT, op. cit. p. 21-61.
6
“The ‘actus reus’ of an offense typically is described as including the conduct constituting the offense, as well as
any required circumstances or results of the conduct. The conduct must include a voluntary act. Where a result is
an offense element, proof of the actus reus requires proof that the person's conduct and the result stand in a certain
relation, as defined by the doctrine of causation: the conduct must have caused the result. Not every offense is
defined in terms of conduct, however. In the absence of an act, liability may be based upon an omission to perform
a legal duty of which the person is physically capable, or upon a person’s knowing possession of contraband for a
period of time sufficient to terminate the possession; these elements are part of the actus reus of the offenses. Thus,
the actus reus of an offense commonly is said to include the doctrines of causation, voluntary act, omission,
possession, and the conduct, circumstance, and result elements of the offense definition” (ROBINSON, Paul H.
Mens Rea. Faculty Scholarship, University of Pennsylvania Law School, paper 34, 2002. p. 997-8).
7
PIÑA ROCHEFORT, op. cit. p. 63-107; ROBINSON, Mens Rea. p. 995–1006. Para uma análise histórica do
surgimento e desenvolvimento do conceito, cf. CHESNEY, Eugene J. Concept of Mens Rea in the Criminal Law.
Journal of Criminal Law and Criminology, v. 29, n. 5, 1939. p. 627–44.
8
PIÑA ROCHEFORT, op. cit. p. 18-20.
9
Documento redigido pelo American Law Institute e publicado em 1962, com o objetivo de auxiliar os Legislativos
estaduais na atualização e uniformização, em alguma medida, da legislação penal do país. Para uma apresentação
do trabalho e análise de seus principais aspectos, bem como da influência sobre o Direito Penal americano, cf.
17
ROBINSON, Paul H.; DUBBER, Markus D. The American Model Penal Code: a brief overview. New Criminal
Law Review, v. 10, n. 3, 2007. p. 319–41.
10
Piña Rochefort se refere à figura por intent (PIÑA ROCHEFORT, op. cit. p. 80-5), o que, de acordo com
Lucchesi, não seria correto, pois intent seria um conceito superior que englobaria tanto purpose, quanto knowledge,
sendo que “a distinção residiria no objetivo consciente proposto pelo autor do fato, existente apenas no purpose e
não no knowledge” (LUCCHESI, Punindo a culpa como dolo... p. 78). Robinson, contudo, também usa intention
e purpose como sinônimos (ROBINSON, Should the Criminal Law... p. 189).
11
Conforme definição do MPC, “A person acts purposely with respect to a material element of an offense when:
(i) if the element involves the nature of his conduct or a result thereof, it is his conscious object to engage in
conduct of that nature or to cause such a result; and (ii) if the element involves the attendant circumstances, he is
aware of the existence of such circumstances or he believes or hopes that they exist” (AMERICAN LAW
INSTITUTE. Model Penal Code. Filadélfia: American Law Institute, 1962. § 2.02(2)(a)).
12
LUCCHESI, Punindo a culpa como dolo... p. 82.
13
A diferenciação entre as acepções psicológico-descritiva e normativo-atributiva do termo será trabalhada em
seção posterior do trabalho (Capítulo 8).
14
Com a advertência de Lucchesi, opositor de tais comparações, aqui feitas, repita-se, assumidamente sem
precisão: “Não se pode chamar de dolo direto – principal categoria de imputação da tradição jurídico-penal
germânica – uma categoria de imputação que apresenta hipóteses restritas de aplicação. Enquanto no Brasil o dolo
direto é o elemento subjetivo essencial da maioria esmagadora de delitos – sendo excepcional a punição sem dolo,
baseada em categorias inferiores (sic) imputação –, no Código Penal Modelo dos Estados Unidos são raros os
crimes que exigem purpose para a punibilidade da conduta” (LUCCHESI, Punindo a culpa como dolo... p. 74-5).
15
Piña Rochefort considera questionável a classificação de knowledge como uma categoria autônoma de mens rea,
entendendo que o conhecimento seria um requisito integrante de todos as disposições mentais, excetuadas apenas
aquelas em que se buscam parâmetros objetivos para a classificação da conduta (PIÑA ROCHEFORT, op. cit. p.
104-7).
16
Pela previsão do MPC, “A person acts knowingly with respect to a material element of an offense when: (i) if
the element involves the nature of his conduct or the attendant circumstances, he is aware that his conduct is of
that nature or that such circumstances exist; and (ii) if the element involves a result of his conduct, he is aware that
it is practically certain that his conduct will cause such a result” (AMERICAN LAW INSTITUTE, op. cit. §
2.02(2)(b)).
18
17
ROBINSON, Mens Rea. p. 999.
18
A definição do MPC é a seguinte: “A person acts recklessly with respect to a material element of an offense
when he consciously disregards a substantial and unjustifiable risk that the material element exists or will result
from his conduct. The risk must be of such a nature and degree that, considering the nature and purpose of the
actor's conduct and the circumstances known to him, its disregard involves a gross deviation from the standard of
conduct that a law-abiding person would observe in the actor's situation” (AMERICAN LAW INSTITUTE, op.
cit. § 2.02(2)(c)). Para uma análise crítica do tratamento da figura pelo MPC, cf. SIMONS, Kenneth W. Should
the Model Penal Code’s Mens Rea Provisions Be Amended?. Ohio State Journal of Criminal Law, v. 1, 2003. p.
188-95.
19
Lucchesi, por exemplo, a traduz ao português como imprudência (LUCCHESI, Punindo a culpa como dolo... p.
72. nota 49), o que não parece ser o melhor caminho, por poder passar uma incorreta mensagem de que a figura
corresponderia, diretamente, à culpa, conforme definição do art. 18 do CPB. Lorena Varela, por sua vez, a traduz
ao espanhol como desconsideración (VARELA, Lorena. Strict-Liability como forma de imputación jurídico-
penal. InDret: Revista para el Análisis del Derecho, v. 3, 2012. p. 5), o que, igualmente, não parece ser a melhor
opção, por poder levar a entender que, na recklessness, o agente desconsidera o risco advindo de sua conduta no
sentido de ignorá-lo ou menosprezá-lo, o que nem sempre é o caso.
20
PIÑA ROCHEFORT, La estructura de la teoría del delito... p. 85.
21
SALES, Anotações sobre o estudo da recklessness... Acesso digital.
22
Ibid. Acesso digital.
23
Ibid. Acesso digital; PIÑA ROCHEFORT, La estructura de la teoría del delito... p. 90-1.
24
SALES, Anotações sobre o estudo da recklessness... Acesso digital.
19
Por fim, o grau mais fraco de ligação do indivíduo com o fato é negligence25,
configurada, de forma excepcional26, nos casos em que o agente não é ciente de um risco
substancial do qual, pelos padrões normais de comportamento, deveria ter se dado conta27, ou,
conforme lições de Piña Rochefort, nos casos em que o risco é previsível a uma pessoa racional,
tendo o agente concreto falhado em apreciá-lo e tomar as medidas para a correção da situação
ou, tendo previsto as consequências possíveis, não tenha tomado as medidas necessárias à sua
evitação, exigíveis de uma pessoa racional28.
Diante desse quatro kinds of culpability previstos pelo MPC, vê-se que, conforme
notado por Robinson, purpose e knowledge descrevem situações empíricas, preocupando-se
com o que a pessoa busca ou tem praticamente certeza de causar com sua conduta, ao passo que
recklessness e negligence trazem critérios normativos, preocupando-se com o grau de
reprovabilidade de um descuido ou de uma não percepção de risco evidente, não se limitando
a uma simples constatação de estado mental do agente29.
Necessário mencionar, ainda, que o princípio actus reus non facit reum nisi mens sit rea
comporta uma exceção, consistente nos strict liability crimes, em que se dispensa a presença de
aspecto subjetivo (mens rea) para a configuração do crime, sendo que, nos excepcionais casos
de vicarious liability, tida como espécie da strict liability, dispensa-se também o próprio actus
reus – ou seja, responsabilidade penal por fato alheio30.
25
Conforme definição do MPC, “A person acts negligently with respect to a material element of an offense when
he should be aware of a substantial and unjustifiable risk that the material element exists or will result from his
conduct. The risk must be of such a nature and degree that the actor's failure to perceive it, considering the nature
and purpose of his conduct and the circumstances known to him, involves a gross deviation from the standard of
care that a reasonable person would observe in the actor's situation” (AMERICAN LAW INSTITUTE. Model
Penal Code. § 2.02(2)(d)).
26
A punição por negligence é excepcional, cabível somente em determinados crimes (PIÑA ROCHEFORT, La
estructura de la teoría del delito... p. 103; ROBINSON, Mens Rea. p. 1001), e requer previsão expressa, nos
termos do MPC: “When the culpability sufficient to establish a material element of an offense is not prescribed by
law, such element is established if a person acts purposely, knowingly or recklessly with respect thereto”
(AMERICAN LAW INSTITUTE, op. cit. § 2.02(3)) – ou seja, a negligence deve estar prescrita em lei.
27
ROBINSON, Mens Rea. p. 1000. Em sentido aparentemente distinto, Sheila Jorge S. de Sales entende que,
mesmo em negligence, exige-se alguma previsão do risco, pontuando que “a inadvertent negligence, que equivale
à culpa inconsciente no sistema romano-germânico, não é uma espécie de mens rea” (SALES, Anotações sobre o
estudo da recklessness... Acesso digital). Seu entendimento se afasta do de Piña Rochefort, para quem “el
conocimiento de las circunstancias forma parte del mismo concepto de intención y de recklessness subjetivo,
mientras que se renuncia a él en el recklessness objetivo y en la negligencia” (destaques no original) (PIÑA
ROCHEFORT, La estructura de la teoría del delito... p. 106), e, novamente, do de Robinson, quem pontua que
“Negligence is neither subjective nor a state of mind, of course, but rather a failure to meet an objective standard”
(ROBINSON, Should the Criminal Law… p. 189).
28
PIÑA ROCHEFORT, La estructura de la teoría del delito... p. 103. O próprio autor reconhece, contudo, que,
por essa definição, negligence assemelhar-se-ia muito a recklessness.
29
ROBINSON, Mens Rea. p. 1001.
30
VARELA, op. cit. p. 1–25; PIÑA ROCHEFORT, La estructura de la teoría del delito... p. 71-8.
20
31
Em virtude do desenvolvimento desses diferentes tipos de culpabilidade, refere-se, atualmente, a diferentes
mentes reae, e não mais a um único conceito de mens rea, indistintamente aplicável a qualquer caso (ROBINSON,
Mens Rea. p. 996). Daí, também, ser mais apropriado se lhes referir como tipos diferentes de culpabilidade, e não
apenas níveis, o que poderia passar uma equivocada imagem de se diferenciarem entre si apenas quantitativamente,
quando, em verdade, se trata de estados mentais qualitativamente diferentes. Nesse sentido, questionando,
inclusive, a rígida hierarquização do MPC, de acordo com a qual knowledge é sempre mais grave que recklessness
e esta, por sua vez, sempre mais grave que negligence, cf. SIMONS, Should the Model Penal Code’s... p. 195-200.
32
Para uma extensa conceituação de knowledge, distinguindo-o de recklessness, cf. CHARLOW, Robin. Wilful
Ignorance and Criminal Culpability. Texas Law Review, v. 70, n. 6, 1992. p. 1372-82.
33
AMERICAN LAW INSTITUTE, op. cit. § 2.02(7). Essa previsão é usualmente apontada como legitimadora da
equiparação entre willful blindness e knowledge (SIMONS, Should the Model Penal Code’s... p. 187; ROBBINS,
Ira P. The Ostrich Instruction: Deliberate Ignorance as a Criminal Mens Rea. Journal of Criminal Law and
Criminology, v. 81, n. 2, 1990. p. 193-4; JACKSON, Atossa Katharine. Willful Blindness: the Threat to Innocent
Property Owners of Recent Federal Drug Law Amendments. Thomas Jefferson Law Review, v. 31, 2008. p. 198-
9). Contudo, como se verá, a definição de willful blindness estabelecida pela Suprema Corte dos EUA em Global-
Tech Apliances v. SEB vai além.
34
Frans J. von Kaenel entende haver mesmo um hiato entre knowledge e recklessness e aí insere a ignorância
deliberada, ao dizer que “The willful blindness doctrine defies categorization because it occupies the attenuated
middle ground between actual knowledge and recklessness” (KAENEL, Frans J. von. Willful Blindness : A
Permissible Substitute for Actual Knowledge Under the Money Laundering Control Act ?. Washington University
Law Review, v. 71, n. 4, 1993. p. 1213).
21
common law encontram resposta mais ou menos pacífica no âmbito do civil law, dentro do
conceito de dolo eventual35, o qual não exige o knowledge do common law quanto aos fatos.
Passar-se-á, a seguir, a uma breve exposição da evolução histórica da teoria no Direito
anglo-saxão, com o objetivo de demonstrar o que já foi aqui adiantado e fundamentar essa
premissa inicial: em regra, os casos em que se aplica a willful blindness doctrine não devem
trazer maiores problemas no Direito Penal continental, incluídos que estão, sem grandes
esforços hermenêuticos, no conceito de dolo eventual.
Quanto à origem histórica da teoria, a doutrina aponta o caso Regina v. Sleep, julgado
na Inglaterra em 1861, como o primeiro precedente a abordá-la36. Tratava-se de imputação da
prática de crime definido à época como a posse de determinado objeto marcado como de
propriedade do Estado, com ciência dessa circunstância. Entendeu-se não ter sido provado que
o réu sabia desse fato (tratar-se de bem público) ou, intencionalmente, se abstivera de adquirir
tal conhecimento, pelo que foi ele absolvido. Porém, já ali se sinalizou que a ignorância
intencional poderia equivaler ao conhecimento, para fins de responsabilidade penal.
Já nos EUA, aponta-se o caso Spurr v. United States, em que o réu era acusado de
certificar um cheque sem suficiência de fundos na conta do correntista, julgado pela Suprema
Corte em 1899, como o primeiro precedente jurisprudencial sobre a teoria da cegueira
deliberada37.
É polêmico, contudo, se, naquele julgamento, a Corte realmente abordou a questão,
acolhendo ou rejeitando a teoria, ou se apenas a mencionou, sem decidir, propriamente, quanto
à sua adoção.
Robbins entende que a Suprema Corte sinalizou aprovação da teoria38, similarmente a
Kaenel, que sustenta que a Corte endossou o entendimento das Instâncias inferiores, no mesmo
sentido39. From, de forma totalmente oposta, entende que a Corte rejeitou a teoria40.
Lucchesi ajuda a compreender o real teor da decisão e a variedade de leituras que dela
se faz. Em verdade, o autor demonstra que, naquele julgamento, a Suprema Corte apenas
35
O ponto será destrinchado em seção posterior do trabalho (Capítulo 3).
36
ROBBINS, op. cit. p. 196; FROM, Justin C. Avoiding Not-So-Harmless Errors: The Appropriate Standards for
Appellate Review of Willful-Blindness Jury Instructions. Iowa Law Review, v. 97, n. 1, 2011. p. 282.
37
LUCCHESI, Punindo a culpa como dolo... p. 90.
38
ROBBINS, op. cit. p. 197-8.
39
KAENEL, op. cit. p. 1200. nota 65.
40
FROM, op. cit. p. 282.
22
transcreveu, em sua decisão, o teor das instruções dadas pelo Juiz de Primeira Instância aos
Jurados41, pelas quais deveriam eles condenar o réu caso entendessem que sua ignorância
quanto à insuficiência de fundos na conta do correntista cujo cheque certificou era deliberada,
tendo ele, de forma planejada e de má-fé, fechado os olhos ao fato e, propositadamente, se
abstido de questionar ou investigar o aspecto, objetivando, assim, evitar conhecer. Contudo, ao
fazer tal transcrição, a Corte não emitiu juízo sobre tais instruções, tendo cassado a condenação
proferida em Primeiro Grau por vício processual, ao entendimento de que o Juiz se equivocara
ao ser questionado pelo corpo de Jurados, não tendo lhes exposto, adequadamente, a normativa
aplicável ao caso42 (ou seja, não teria havido, nesse sentido, pronunciamento da Suprema Corte
sobre o mérito da imputação).
Spurr v. United States é apontado pela doutrina como um exemplo de duty-to-know case,
em que se reconhece que o agente possui um dever legal e moral de pesquisar e se certificar de
algum aspecto relevante de sua conduta antes de adotá-la, revelando-se a ignorância, em um
caso tal, mais reprovável do que seria, caso ausente tal dever43.
Seguiu-se, na linha histórica, a disseminação do emprego da teoria pela jurisprudência
dos EUA, em especial após a edição do Comprehensive Drug Abuse Prevention and Control
Act of 1970, que punia a importação e a posse (com objetivo de distribuição) de drogas ilícitas,
requerendo knowledge como state of mind44.
Foi nesse contexto que a Court of Appeals for the Ninth Circuit julgou, em 1976, o
emblemático caso United States v. Jewell, no qual a condenação de Charles Jewell se baseou
na teoria da cegueira deliberada.
Charles Jewell foi condenado por tráfico de drogas por cruzar a fronteira do México
com os EUA transportando grande quantidade de maconha em um compartimento fechado, no
porta-malas do veículo que dirigia, a qual foi ali colocada pelo indivíduo que lhe cedeu o
veículo. Foi provado no processo que Jewell estava em um bar em Tijuana, quando foi abordado
por um desconhecido que lhe ofereceu maconha para uso, o que foi rejeitado por Jewell. Em
seguida, o sujeito ofereceu cem dólares americanos para que Jewell conduzisse seu veículo até
41
Procedimento adotado no Direito americano, em que os Jurados apreciam as provas e, ao final, condenam ou
absolvem o acusado, cabendo ao Juiz lhes explicar o Direito aplicável, instruindo-os sobre como proceder e
respondendo a eventuais questionamentos ou dúvidas.
42
LUCCHESI, Punindo a culpa como dolo... p. 90-4.
43
CHARLOW, Wilful Ignorance... p. 1403-10.
44
ROBBINS, The Ostrich Instruction... p. 199-201; KAENEL, Willful Blindness... p. 1200. Para uma análise
crítica da teoria sob a égide do Illicit Drug Anti-Proliferation Act, de 2003, cf. JACKSON, Willful Blindness...
p. 191–218.
23
Los Angeles, onde deveria deixá-lo em um endereço indicado, com as chaves no cinzeiro, o
que, então, foi aceito.
O Tribunal ressaltou que um dos elementos que levavam a entender que o acusado agira
em cegueira deliberada quanto ao transporte de drogas, o que justificava a equiparação dessa
situação ao conhecimento real, era o fato de Jewell possuir elementos que indicavam a alta
probabilidade da ocorrência do elemento típico em sua conduta (transporte de drogas ilícitas),
em virtude, exatamente, de ser o indivíduo que lhe ofertou o carro para a viagem um conhecido
traficante, o que já constituiria algo como uma red flag, pelo que deveria Jewell ter desconfiado
da generosa proposta e obtido maiores informações quanto ao fato. Além disso, o acusado
confessou ter desconfiado da ilegalidade da conduta, tendo feito buscas por todo o veículo, à
procura de material ilícito, sem nada encontrar, senão, apenas, o tal compartimento fechado no
porta-malas, tendo ele dito que, como ele próprio não conseguiu identificar o conteúdo, assim
também ocorreria em eventual busca pelos agentes de fronteira, pelo que acreditou que, ainda
que houvesse, ali, algum objeto ilícito, ele não teria problemas45.
Tal precedente é apontado pela doutrina daquele país como leading case sobre a willful
blindness doctrine46, o que gerou, inclusive, o termo Jewell instructions, a designar, em síntese,
a orientação dada pelo Juiz aos Jurados, na sistemática do processo penal do país, esclarecendo-
lhes que a condenação pode se basear no que configuraria a cegueira deliberada 47, tendo se
adotado, naquela oportunidade, a teoria da igual culpabilidade entre a cegueira deliberada e o
conhecimento real48.
Trinta e um anos depois, em 2007, o mesmo Tribunal, analisando a aplicação da teoria
da ignorância deliberada a casos de tráfico de drogas, reviu parcialmente seu posicionamento,
no caso United States v. Heredia, em que foi afastado o requisito à punição por cegueira
deliberada, estabelecido em United States v. Jewell, referente ao motivo subjetivo da
45
Para mais detalhes quanto a United States v. Jewell, cf. ROBBINS, The Ostrich Instruction... p. 203-10;
CHARLOW, Wilful Ignorance... p. 1419-23.
46
FROM, Avoiding Not-So-Harmless Errors... p. 284-5; KAENEL, Willful Blindness… p. 1202-4; O’TOOLE,
Timothy P. Patently Unusual: How a Recent Supreme Court Patent Decision Alters the Landscape for Proving
Criminal Knowledge. Westlaw Journal White-Collar Crime, v. 25, n. 12, 2011. p. 1; GROSS, Barry; STROUP,
Stephen G. Has the Legal Threshold for ‘Willful Blindness’ Really Changed Since Global-Tech?. White Collar
Crime Report, BNA, 2015. p. 2.
47
A instrução dada aos Jurados em United States v. Jewell tinha a seguinte redação: “The Government can
complete their burden of proof by proving, beyond a reasonable doubt, that if the defendant was not actually aware
that there was marijuana in the vehicle he was driving when he entered the United States his ignorance in that
regard was solely and entirely a result of his having made a conscious purpose to disregard the nature of that which
was in the vehicle, with a conscious purpose to avoid learning the truth” (ROBBINS, The Ostrich Instruction... p.
204).
48
SARCH, Alexander F. Willful Ignorance, Culpability, and the Criminal Law. St. John’s Law Review, v. 88, n. 4,
2014. p. 1043-5, 1052 e ss.
24
ignorância. Nesse julgamento, estabeleceu-se não ser necessário que o agente, ao fechar seus
olhos às evidências, fizesse-o visando a se livrar de eventual responsabilidade penal49.
A atual jurisprudência dos EUA sobre a willful blindness doctrine se firmou a partir do
julgamento do caso Global-Tech Apliances v. SEB, pela Suprema Corte, em 2011, tido como o
principal precedente quanto à teoria50.
Interessante notar que tal leading case é de natureza cível, referente a descumprimento
de normas de patente e proteção à propriedade intelectual. No entanto, foi ali que a Suprema
Corte fixou as balizas a guiarem a aplicação da willful blindness doctrine em todos os campos
do Direito, inclusive o criminal.
A Corte reconheceu, no julgamento, que havia diferenças entre as formas com que a
teoria vinha sendo aplicada pelas Instâncias inferiores e entre os requisitos exigidos à
configuração de cegueira deliberada passível de legitimar uma condenação criminal. No
entanto, identificou dois pontos recorrentes: a exigência de que o acusado acreditasse,
subjetivamente, na alta probabilidade da existência do fato, e a de que ele, deliberadamente,
tivesse adotado medidas para evitar conhecer cabalmente tal fato51.
A Suprema Corte destacou a importância deste segundo requisito, o qual, por vezes, era
olvidado por alguns tribunais regionais do país, especialmente em white-colar cases, em que se
vinha utilizando um conceito excessivamente fluido de ignorância deliberada. A necessidade
da adoção deliberada de medidas ativas no sentido da evitação do conhecimento pode ser
apontada como o traço de maior relevo do precedente, tendo se esclarecido que willful blindness
não poderia ser confundida com recklessness ou muito menos com negligence52.
Dane C. Ball, comentando a decisão da Suprema Corte logo após sua publicação, anota
que, à luz do precedente firmado, as willful blindness instructions deveriam se adequar e passar
a ser mais favoráveis à defesa, exigindo para a condenação, concorrente e expressamente, a
crença subjetiva de uma alta probabilidade de existência do fato; a adoção de ações ou esforços
49
JACKSON, Willful Blindness... p. 200-4.
50
O’TOOLE, op. cit. p. 2-5; GROSS; STROUP, op. cit. p. 1–9; BALL, Dane C. Improving ‘Willful Blindness’
Jury Instructions In Criminal Cases After High Court’s Decision in Global-Tech. The Criminal Law Reporter,
BNA, 2011. p. 1–4.
51
GROSS; STROUP, op. cit. p. 3; O’TOOLE, op. cit. p. 3.
52
O’TOOLE, op. cit. p. 3-5.
25
53
BALL, op. cit. p. 4.
54
O’Toole, logo após o julgamento, previu que a teoria seria, a partir de então, empregada com menor frequência,
diante do estabelecimento de requisitos mais rígidos para a configuração de cegueira deliberada equiparável a
knowledge, especificamente aquele referente à adoção de medidas ativas para se evitar o conhecimento
(O’TOOLE, op. cit. p. 3-4).
55
GROSS; STROUP, Has the Legal Threshold… p. 4-6.
26
Contudo, como as categorias de imputação subjetiva nos dois sistemas jurídicos aqui
referidos não são diretamente equiparáveis, sendo inadequada, conforme já posto, a
identificação de knowledge com dolo, ou de recklessness com culpa, é necessário avaliar,
primeiramente, se aquele problema que alhures reclamou a criação da teoria existe também no
sistema de imputação subjetiva romano-germânico.
A doutrina já identificou que não. O Direito Penal continental não apresenta o problema
que, no common law, incomodava os Tribunais e os levou a buscar uma nova via, por uma razão
simples: os casos em que se aplica a willful blindness doctrine neste último já encontram
resposta satisfatória naquele, sob o rótulo do dolo eventual56.
Não é este o momento adequado para uma profunda imersão na figura do dolo, o que
será feito em seção posterior do trabalho. Nesta fase, de estudos ainda comparatistas, importa
apenas salientar que aquela suspeita da ocorrência de um fato, que, no common law, não basta
à configuração de knowledge, já aperfeiçoa o dolo eventual no sistema romano-germânico.
O agente que, suspeitando da concorrência de uma elementar típica em sua conduta,
decide prosseguir mesmo assim, assumindo o risco de cometer o crime, atua com dolo
eventual57, sem necessidades de maiores esforços argumentativos, embora não possa ser
reconhecido propriamente knowledge do Direito anglo-saxão, pois inexiste o conhecimento
psicológico, real, efetivo e acabado do que se faz, senão uma suspeita.
Retome-se, por exemplo, o caso United States v. Jewell: um homem é abordado, em um
bar em uma cidade fronteiriça mexicana, por um desconhecido que tenta lhe vender drogas
ilícitas, o que ele não aceita. Logo em seguida, o mesmo desconhecido retorna e, desta feita,
oferece-lhe determinado montante de dinheiro, em espécie, para que ele cruze a fronteira com
os EUA na condução de um carro que lhe seria cedido, devendo estacionar este, posteriormente,
em uma dada rua de uma cidade americana, deixando as chaves no cinzeiro. Essa proposta,
56
LUCCHESI, Punindo a culpa como dolo... p. 119-32; COSTA, Pedro Jorge. Dolo penal e sua prova. São Paulo:
Atlas, 2015. p. 267. Analisando a imputação especificamente do crime de lavagem de capitais pela cegueira
deliberada, Sérgio Moro entende que “[a] cegueira deliberada assemelha-se, de certa forma, ao dolo eventual da
legislação e doutrina brasileira. Por isso e considerando a previsão genérica do art. 18, I, do CP, e a falta de
disposição legal específica na lei de lavagem contra a admissão do dolo eventual, podem elas ser trazidas para a
nossa prática jurídica” (MORO, Sérgio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 69).
Frise-se que dizer que a maioria os casos em que os Tribunais americanos aplicam a willful blindness doctrine não
seriam problemáticos à luz do Direito Penal continental não implica dizer que a cegueira deliberada lá teorizada
equivale, pura e simplesmente, a alguma figura dogmática já aqui estabelecida. Quanto à incorreção de se
identificar, tout court, a cegueira deliberada, no common law, e o dolo eventual, no civil law, cf. LUCCHESI,
Punindo a culpa como dolo... p. 153-65.
57
A afirmação pode parecer infundada neste ponto do trabalho, porque a questão será trabalhada em seção
posterior. Aqui, cuida-se ainda de estudo de Direito comparado, sem imersão na matéria do Direito Penal
continental. Ademais, a expressão em destaque, de imprecisão já denunciada pela doutrina, foi empregada de
propósito, apenas para replicar a previsão do art. 18 do CPB.
28
diferentemente da primeira, vem a ser aceita pelo sujeito, o qual, antes de assumir a direção,
faz uma inspeção pelo veículo, à procura de algo ilícito, pois suspeita haver algo errado. Suas
buscas não encontraram nada de mais, senão, apenas, um compartimento estranho no porta-
malas do carro, lacrado, cujo conteúdo ele preferiu não averiguar. Diante disso, o agente pensa
que não haverá problemas, pois, se é que há algo de errado no carro, não será descoberto pelas
autoridades de fronteira, assim como não o foi por ele próprio, nas buscas que conduziu.
Entretanto, as autoridades alfandegárias descobrem que, dentro daquele compartimento no
porta-malas, estava grande quantidade de drogas ilícitas58.
Diante desse caso concreto, o posicionamento aqui adotado é o de que Jewell, à luz do
Direito brasileiro, cometeu, dolosamente, tráfico de drogas, na medida em que havia diversos
indícios da concorrência da elementar típica “drogas ilícitas” em sua conduta de transporte,
mais que suficientes à conformação do dolo59.
Luís Greco entende ser impossível afirmar-se o dolo em Jewell60, no que é acompanhado
por Gisele M. de Carvalho e Gerson F. Rosa61, sustentando que, naquele caso concreto, o agente
poderia até saber que havia algo errado quanto ao compartimento, porém jamais poderia saber
se se tratava de drogas, de armas, de pornografia infantil, de órgãos humanos etc.
O entendimento, não obstante o peso de quem o sustenta, não parece ser acertado, vez
desconsiderar diversas peculiaridades do caso que merecem atenção. Afinal, não se trata,
simplesmente, de uma pessoa que recebe dinheiro para cruzar a fronteira dirigindo um carro
com um compartimento secreto no porta-malas, como foi o caso simploriamente reproduzido
pelos referidos autores. Na verdade, conforme aqui posto, Jewell aceitou a proposta de um
traficante de drogas (e aqui não vai nenhuma estigmatização, mas apenas constatação fática –
o sujeito havia acabado de lhe tentar vender drogas em um bar) que abordou um total
desconhecido em uma cidade fronteiriça e, de forma absolutamente suspeita, lhe ofereceu
dinheiro para cruzar a fronteira na condução de um carro que, ainda por cima, nem mesmo seria
entregue a alguém, mas, apenas, deixado estacionado na rua em uma cidade do outro lado da
divisa, com as chaves dentro.
58
Vide referências listadas na nota 45.
59
Ragués i Vallès também sustenta ser mais que provável que o caso Jewell teria sido punido a título de dolo
eventual pelos Tribunais espanhóis (RAGUÉS I VALLÈS, Ramon. La ignorancia deliberada en Derecho penal.
Barcelona: Atelier, 2007. p. 99). Lucchesi colaciona julgado do Tribunal Regional Federal da 4ª Região referente
a fato bastante similar ao do caso Jewell, em que o Tribunal condenou o acusado por tráfico de drogas, por dolo
eventual (LUCCHESI, Punindo a culpa como dolo... p. 180). Trata-se da Apelação Criminal 5002824-
35.2014.4.04.7006, Sétima Turma, Rel. Des. Fed. Sebastião Ogê Muniz, j. 09/12/2014.
60
GRECO, Luís. Comentario al artículo de Ramón Ragués. Trad. María Valentina Risso. Discusiones XIII,
EdiUNS, v. 13, n. 2, 2013. p. 70-1.
61
CARVALHO, Gisele Mendes de; ROSA, Gerson Faustino. Uma análise crítica da teoria da ignorância
deliberada à luz do princípio da imputação subjetiva. Quaestio Iuris, v. 11, n. 03, 2018. p. 1603.
29
62
Ragués i Vallès também chega a essa conclusão: “En muchos de los supuestos en los que se aplica por los
tribunales estadounidenses la willful blindness sirve para colmar la laguna punitiva que en aquel sistema parece
surgir cuando un sujeto, contando ya con un nivel básico de conocimientos acerca de las características de su
comportamiento, ha renunciado a conocer más de lo que ya sabía. Por ello, de ser puristas cabría incluso
cuestionar que en estos supuestos pudiera hablarse estrictamente de ignorancia, por la sencilla razón de que en la
gran mayoría de ellos el sujeto activo cuenta con un grado importante de conocimientos que, en los sistemas
continentales, suele bastar por sí solo para apreciar dolo eventual” (destaque no original) (RAGUÉS I VALLÈS,
op. cit. p. 99-100).
63
“(...) a cegueira deliberada parece encontrar espaço potencial na jurisprudência pátria” (destaque no original)
(BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro na APN 470/MG. Revista dos Tribunais, v. 933, 2013. Acesso
digital).
64
Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Processo: 200581000145860, ACR5520/CE, Rel. Des. Fed. Rogério
Fialho Moreira, Segunda Turma, j. 09/09/2008, p. 22/10/2008.
65
“Em segunda instância, o TRF da 5ª Região afirmou expressamente que ‘a doutrina da cegueira deliberada é
aplicável a todos os delitos que admitam o dolo eventual’. Contudo, como a imputação dizia respeito ao artigo 1º,
§ 2º, inciso I, da Lei de Lavagem de Dinheiro, que só admitiria o dolo direto, reformou-se a sentença de primeira
instância” (LAUFER, Christian; SILVA, Robson A. Galvão da. A teoria da cegueira deliberada e o direito penal
brasileiro. Boletim IBCCRIM, v. 204, 2009. p. 10). Para uma completa análise do caso, cf. LUCCHESI, Punindo
a culpa como dolo... p. 29-42.
30
Curiosamente, esse primeiro caso seguiu a mesma tônica de Regina v. Sleep, primeiro
caso apontado pela doutrina anglo-saxã de abordagem da teoria: em ambos, a referência à
cegueira deliberada não passou de obiter dictum, constituindo argumento hipotético (“se o réu
tivesse, porventura, feito isso ou aquilo, poder-se-ia pensar em condenação”) sem influência no
caso concreto, pois, em ambos, a decisão foi absolutória66.
Posteriormente, e com muito mais notoriedade, houve o emprego da teoria pelo
Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da Ação Penal nº. 470 (Mensalão)67 68, em que
ela foi admitida como suporte à condenação de acusados da prática de lavagem de capitais,
sendo equiparada ao dolo eventual69.
66
Um breve registro: embora se adote, aqui, Regina v. Sleep como o primeiro caso referente à teoria em sede de
common law, considerando as especificidades do sistema de precedentes lá vigente, não se compreende, por outro
lado, a fixação que os autores brasileiros insistentemente mantêm em relação ao caso do Banco Central de
Fortaleza, que chega a ser classificado como um leading case (CARVALHO; ROSA, Uma análise crítica... p.
1598). Ora, trata-se de uma sentença singular que foi reformada pelo Tribunal, pelo que, em decorrência do efeito
substitutivo do julgamento do recurso, aquela decisão não subsiste para fim absolutamente algum, nem mesmo no
próprio processo em que proferida, e muito menos fora dele, como suposto precedente. Não obstante isso, a
sentença reformada tem sido merecedora de longas divagações pela doutrina (LUCCHESI, Punindo a culpa como
dolo... p. 31-9; SYDOW, Spencer Toth. A teoria da cegueira deliberada. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016. p. 216-
20).
67
Supremo Tribunal Federal. AP 470, Rel. Min. Joaquim Barbosa. Tribunal Pleno. j. 17/12/2012, p. 22/04/2013.
68
Para uma análise pormenorizada do emprego da teoria nos votos dos Ministros, cf. BURGEL, Letícia. A teoria
da cegueira deliberada na Ação Penal 470. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 129/2017, 2017. p. 479–
505.
69
Analisando o ingresso da teoria na jurisprudência brasileira a partir desses dois casos concretos, Silveira pontua:
“Poucas são as menções da chamada cegueira deliberada na discussão jurisprudencial brasileira. (...) De fato, são
vistos dois casos de destaque. Primeiramente, postulou-se sua aplicação no conhecido caso do assalto ao Banco
Central em Fortaleza (...). Aplicada a teoria para sustentar condenação em primeiro grau de alguns réus, a sentença
faz interessante menção à teoria da cegueira deliberada (willfull blindness), chegando a mencionar que ‘é
importante destacar que ‘ignorância deliberada’ não se confunde com negligência, havendo aqui a mesma fronteira
tênue, ao menos do ponto de vista probatório, entre o dolo eventual e a culpa consciente’. Ocorre que a mesma
decisão, em momento posterior, chega a pontuar que a willful blindness doctrine tem sido aceita na realidade
estadounidense quando houver prova, no caso concreto, que o agente tinha conhecimento da elevada probabilidade
de que bens, direitos ou valores pudessem ser provenientes de crime; e de que o agente tivesse agido de modo
indiferente a esse conhecimento. A partir daí, de modo pontual, assevera que essa construção assemelha-se da
conceituação do que seria o dolo eventual na realidade brasileira. Autorizada estaria, assim, a aplicação do dolo
eventual no crime de lavagem de dinheiro. Essa decisão não se manteve, tendo sido afastada pelo Tribunal
Regional Federal da 5.ª Região (...). Mais recentemente, durante as discussões da AP 470, perante o Supremo
Tribunal Federal, o tema voltou a ser presente. Conforme divulgado pelo próprio Pretório Excelso, após a menção
da teoria da cegueira deliberada pelo Ministro relator, na sessão plenária de 17 de outubro de 2012 o Min. Celso
de Mello teria mencionado admitir ‘a possibilidade de configuração do crime de lavagem de valores, mediante o
dolo eventual, exatamente com apoio no critério denominado por alguns como ‘teoria da cegueira deliberada’,
que deve ser usado com muita cautela’. O julgador explicou que, conforme essa teoria, o agente finge não perceber
determinada situação de ilicitude para alcançar a vantagem pretendida. Parece claro que em ambas as situações,
bem como em colocações de comentaristas sobre o tema, incorre-se em pretensa equiparação da cegueira
deliberada com o dolo eventual. Essa, a questão problemática” (destaques no original) (SILVEIRA, Renato de
Mello Jorge. Cegueira deliberada e lavagem de dinheiro. Boletim IBCCRIM, v. 246, 2013. p. 4).
31
70
Para uma análise do emprego da teoria nos casos da Operação Lava-Jato, cf. Id. A aplicação da teoria da cegueira
deliberada nos julgamentos da operação lava jato. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 122, 2016. p. 255–
80.
71
LUCCHESI, Punindo a culpa como dolo... p. 175-8.
72
Ibid. p. 175 e ss.
73
Ibid. p. 190.
32
A similar conclusão chega Renato Silveira, para quem todo caso de dolo eventual se
encaixaria dentro do conceito de cegueira deliberada, não sendo a recíproca verdadeira, ou seja,
haveria casos de cegueira deliberada que fugiriam ao conceito de dolo 74, pelo que descaberia,
em tais hipóteses, a imputação do delito no Direito brasileiro, quando ausente a tipificação na
modalidade culposa.
Comentando a aplicação da teoria especificamente nos processos da Operação Lava-
Jato, conclui o autor pelo desacerto da forma como isso tem se dado, entendendo que o conceito
de cegueira deliberada empregado não tem sido devidamente esclarecido e que não foi sopesada
a peculiaridade do ordenamento brasileiro, consistente na “expressa previsão típica do conceito
de dolo no Código Penal, situação completamente diversa da vista e encontrada na Espanha”75.
Sobre essa colocação, algumas observações se fazem necessárias.
Silveira refere-se à Espanha por ser o país de tradição jurídica romano-germânica em
que, pode-se dizer, a teoria da cegueira deliberada mais tem encontrado espaço na
jurisprudência e sido objeto de debates pela doutrina.
Ragués i Vallès informa que o primeiro pronunciamento do Tribunal Supremo do país
quanto à teoria se deu na Sentencia de 10 de enero de 2000, referente a caso de acusação de
receptação contra indivíduo que alegava desconhecer a origem ilícita das somas de dinheiro
que transportou para Andorra. Naquele julgamento, o Tribunal admitiu a doutrina da ignorância
deliberada como a situação em que o agente não quer saber aquilo que pode e deve conhecer,
caracterizando um estado de ausência de representação em relação a um determinado elemento
do tipo, não obstante a capacidade do sujeito de abandonar tal situação e o dever de buscar tais
conhecimentos. Foi adicionado, ainda, um último elemento, consistente na obtenção, pelo
agente, de algum benefício a partir dessa situação, sem se precisar, contudo, se a natureza desse
benefício haveria necessariamente de ser econômica, como era naquele caso concreto76.
Esse entendimento se manteve nas SSTS de 16-10-2000 e 22-5-2002, referentes a tráfico
de drogas em que a teoria foi aplicada, respectivamente, quanto à qualidade e à quantidade da
droga. Em ambos os casos, era incontestado que o agente sabia estar traficando drogas; porém,
no primeiro, o acusado alegava desconhecer que se tratava de cocaína (o que, no Direito
espanhol, altera a tipificação da conduta, de tráfico de drogas que não causam grave dano à
saúde para o de drogas que o causam), e, no segundo, a exata quantidade de drogas, sendo que,
neste último julgado, a cegueira deliberada já foi tratada como um substitutivo do dolo,
74
SILVEIRA, Cegueira deliberada... p. 4.
75
Id., A aplicação da teoria da cegueira deliberada... Acesso digital.
76
RAGUÉS I VALLÈS, La ignorancia deliberada... p. 23-5.
33
77
Ibid. p. 25-9.
78
Ibid. p. 30-1.
79
SYDOW, A teoria da cegueira deliberada. p. 215.
80
Os dispositivos legais pertinentes prevêem, apenas, que “Art. 5: No hay pena sin dolo o imprudencia” e “Art.
10: Son delitos las acciones y omisiones dolosas o imprudentes penadas por la ley”.
81
RAGUÉS I VALLÈS, La ignorancia deliberada... p. 193-6.
82
“Art. 18 - Diz-se o crime: I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo.”
83
“(...) a lei penal, principalmente o art. 18 do Código Penal, define crime doloso como aquele ocorrido ‘quando
o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo’. A abertura feita pela teoria da cegueira deliberada,
nos moldes em que vem sendo aplicada, abre a porta ao ativismo judicial” (CALLEGARI, André Luís; WEBER,
Ariel Barazzetti. A cegueira deliberada da common law à civil law e a apropriação (indébita) da teoria pelo
Judiciário: nova oportunidade ao ativismo judicial e o retorno à jurisprudência dos valores. Revista Brasileira de
Ciências Criminais, v. 133, 2017. Acesso digital).
84
GRECO, Luís. Algumas observações introdutórias à “Distinção entre dolo e culpa”, de Ingeborg Puppe. In:
PUPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. Trad. Luís Greco. Barueri: Manole, 2004. p. XVII-XVIII. A
questão será ainda aprofundada em seção posterior do trabalho.
85
“(...) o Código nada estabelece a respeito de quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de o produzir.
Não há indicação sobre esses elementos volitivos: inexiste definição, por exemplo, sobre se o ‘querer’ e o
‘assumir’ o risco devem ser entendidos em sentido psicológico (e, nesse caso, seria de se perguntar a qual corrente
34
previsão legal, já rendeu a formulação de diversas teorias a respeito da sua natureza, estando-
se ainda longe, até os dias atuais, de qualquer consenso doutrinário quanto ao que, realmente, é
dolo eventual.
Para Eduardo Viana, o legislador deixou esses questionamentos em aberto, não tendo,
realmente, conceituado dolo, senão, apenas, previsto que a ausência de querer ou assunção de
risco impede a imputação a título de dolo, sem, porém, definir o que são essas figuras, pelo que
se faz necessário concretizar a determinação legal, o que o autor põe como um dever da doutrina
penal, mediante formulação de teorias do dolo86.
Da mesma forma, Greco entende que o art. 18 do CPB “não resolveu nada”, possui
palavras ambíguas e é “completamente inconclusivo”87, na mesma linha seguida por Pedro
Jorge Costa, para quem o alcance do conceito de dolo, no Direito brasileiro, é uma questão em
aberto88.
Segue-se, aqui, esse posicionamento a respeito da redação do art. 18 do CPB, que, de
fato, não parece ter resolvido nada. Prova disso é o fato de ser o dolo um dos temas mais
polêmicos de toda a teoria do delito, fonte de uma miríade de teorias a seu respeito89.
Ora, se fosse verdade que a questão já está resolvida pela Lei, por certo não haveria
tanto questionamento ao redor da figura, valendo frisar que as diversas teorias de dolo não são
trabalhadas, no Brasil, meramente a título de lege ferenda (o que poderia ser um argumento
contrário ao que aqui posto), mas de lege lata.
psicológica se referiria o Código) ou em sentido jurídico (e aqui o ponto seria saber o conceito jurídico desses
termos)” (COSTA, Dolo penal... p. 14).
86
VIANA, Eduardo. Dolo como compromisso cognitivo. São Paulo: Marcial Pons, 2017. p. 285. No mesmo
sentido, entendendo que o Código Penal traz não mais que uma moldura que não completa o retrato fiel do conceito
de dolo, o qual deve ser preenchido pela jurisprudência a partir de critérios fornecidos pela doutrina, cf.
LUCCHESI, Punindo a culpa como dolo... p. 154-5.
87
GRECO, Algumas observações... p. XVII. Por outro lado, o autor sustenta haver, sim, óbice legal à adoção da
teoria da cegueira deliberada tanto na Espanha, quanto no Brasil, não por supostas definições legais de dolo, mas
pela previsão legal, em ambos os países, do erro de tipo (art. 14, 1, do Código Penal espanhol: “El error invencible
sobre un hecho constitutivo de la infracción penal excluye la responsabilidad criminal. Si el error, atendidas las
circunstancias del hecho y las personales del autor, fuera vencible, la infracción será castigada, en su caso, como
imprudente”; art. 20 do Código Penal brasileiro: “O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui
o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei”), a qual, de acordo com o autor, estatui que
o desconhecimento de circunstância do tipo exclui o dolo, pelo que a cegueira deliberada poderia, no máximo, ser
encarada como proposta de lege ferenda (Id., Comentario al artículo... p. 76-7). Quanto a essa colocação, remete-
se a leitura a seção posterior deste trabalho (Capítulo 7), em que o tema será abordado em profundidade.
88
COSTA, Dolo penal... p. 11-6.
89
“Um dos problemas mais importantes do direito penal é a correta determinação do conceito de dolo (...).
Cotidianamente nos deparamos com situações em que não é possível valorar com clareza se a hipótese
consubstancia um comportamento doloso ou um comportamento culposo. Isso ocorre tanto naqueles países nos
quais a legislação prevê um dilatado parâmetro legal para qualificar como doloso determinado comportamento, a
exemplo da brasileira, da portuguesa ou da italiana, quanto naqueles em que a legislação prevê apenas um ‘mínimo
suficiente’, a exemplo da alemã e da espanhola. Isso indica ser, no mínimo, duvidosa a ideia segundo a qual
somente uma determinação conceitual legal de dolo seria capaz de reduzir a insegurança jurídica daquela fronteira”
(destaque no original) (VIANA, op. cit. p. 31-2).
35
90
O primeiro já foi aqui brevemente analisado, no ponto que ora interessa, ao passo que o segundo será objeto de
exame aprofundado em seção posterior do trabalho (Capítulo 7).
91
A assertiva será comprovada em seção posterior do trabalho (Capítulo 6).
92
PRADO, Rodrigo Leite. Dos crimes: aspectos subjetivos. In: CARLI, Carla Veríssimo de (Org.). Lavagem de
Dinheiro: prevenção e controle penal. 2. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2013. p. 296.
93
Disponível em: www.scm.oas.org/idms_public/PORTUGUESE/hist_03/cicad01437p06.doc. Acesso em
23/10/2018. Destaques acrescentados.
36
As situações, contudo, que podem trazer maiores problemas e suscitar mais profundas
reflexões no Direito romano-germânico também o fazem em sede de common law, não estando
abarcadas, lá, pela teoria da cegueira deliberada desenvolvida.
São os casos em que a adoção do estado de cegueira deliberada antecede a obtenção de
qualquer indício do fato, pelo que o agente não chega a formular qualquer representação
concreta, vez ter decidido pela ignorância de forma genérica. Aqui, o indivíduo decide,
realmente, não saber nada, e não, apenas, não saber mais, após já ter alguma desconfiança,
baseada em indícios que já chegaram a seu conhecimento94.
Ragués i Vallès identifica situações tais, com conteúdo objetivo de relevância jurídico-
penal, que, conforme sustenta, merecem axiologicamente a mesma punição de casos
classicamente dolosos, agrupando-as sob o conceito de ignorância deliberada stricto sensu e
delimitando-as nos seguintes termos:
(...) el sujeto que realiza una conducta objetivamente típica sin representarse
que concurren en ella los concretos elementos de un tipo penal, pero
sospechando que está actuando de manera potencialmente lesiva para algún
interés ajeno y que, pudiendo desistir de tal conducta, prefiere realizarla
manteniéndose deliberada o conscientemente en una ignorancia prolongada
en el tiempo como medio para obtener algún beneficio, sin asumir riesgos
propios ni responsabilidades, muestra un grado de indiferencia hacia el
interés lesionado no inferior al del delincuente doloso-eventual y, en términos
preventivos, merece la misma pena que éste.95
Seguindo esse raciocínio, entende-se, aqui, não haver óbice à discussão no Direito
brasileiro, não parecendo, de forma alguma, ser contra legem uma proposição no sentido da
admissão do dolo nos casos de desconhecimento provocado, desde que bem delimitada essa
possibilidade, com critérios extraídos do próprio sistema penal.
Contudo, para se analisar o tratamento penal de casos de cegueira deliberada à luz do
Direito brasileiro, buscando responder à indagação quanto à possibilidade ou não de imputação
dolosa, mostra-se mais importante um exame apurado do conceito de dolo, de forma que,
estabelecido o que se entende por dolo, basta cotejar um caso concreto de cegueira deliberada
com o conceito fixado.
94
A questão será retomada no capítulo seguinte, em que se diferenciarão a cegueira deliberada absoluta e parcial.
95
RAGUÉS I VALLÈS, La ignorancia deliberada... p. 192-3. Trecho em itálico no original.
37
Lucchesi acerta, nesse sentido, ao dizer que “a identificação do dolo nas situações de
cegueira deliberada depende menos da definição de um conceito de cegueira deliberada que do
conceito de dolo adotado”96.
O debate quanto ao correto tratamento jurídico, no Direito brasileiro, de casos de
ignorância deliberada, não deve, portanto, se cingir à willful blindness doctrine, figura
estrangeira de duvidosa utilidade no Direito Penal continental, mas sim ao conceito de dolo.
Sendo assim, a presente pesquisa passará, doravante, ao exame dessas duas figuras objeto do
cotejo analítico necessário: no capítulo seguinte, será exposto o que aqui se entende por
cegueira deliberada, com independência de influência deste ou daquele sistema jurídico; e, nos
capítulos que se seguirão, serão trabalhados os aspectos necessários a uma fixação do conceito
de dolo, observado o recorte metodológico voltado aos crimes omissivos impróprios, para, ao
final, aplicar-se este conceito àquele, concluindo pela possibilidade ou não de imputação dolosa
na cegueira deliberada.
96
LUCCHESI, Punindo a culpa como dolo... p. 163. Destaques no original.
38
It’s so much easier to imagine that what we don’t know won’t hurt us.97
97
HEFFERNAN, Margaret. Willful blindness: why we ignore the obvious at our peril. Nova York: Bloomsbury,
2012. p. 91.
98
Este trabalho adota todos esses termos como sinônimos e os usa indistintamente, até mesmo para evitar
repetições, sem se ater a supostas filigranas semânticas que talvez mais confundam do que esclareçam.
99
Como faz Margaret Heffernan, ao afirmar que a cegueira deliberada nasceu como um conceito legal no século
XIX, nesse precedente (Ibid. p. 2).
39
subjetivo objeto da construção teórica, por outro lado, já era trabalhado desde muito antes,
especialmente no campo da Filosofia.
A obra aristotélica já aludia à ignorância buscada pelo indivíduo, classificando-a como
uma ignorância responsável que afastaria a característica geral dos atos praticados em
ignorância: a involuntariedade.
Para Aristóteles, seriam involuntários os atos praticados por força ou em ignorância100,
ao passo que a voluntariedade estaria em atos partidos do próprio agente, com poder de decisão
sobre sua realização (em oposição aos atos forçados, cujo princípio é externo ao homem, sem
influência sua) e com conhecimento do que faz (em oposição aos atos praticados em
ignorância)101.
Contudo, nem toda ignorância causaria o involuntário, devendo se examinar sua origem.
Aristóteles chega, assim, à divisão da ignorância entre responsável e não responsável102: aquela
seria partida da própria pessoa, sendo, assim, de sua responsabilidade103, ao passo que esta não
dependeria da pessoa, atingindo-a sem sua participação.
A ignorância responsável de Aristóteles não gera atos involuntários, pois seria, ela
própria, algo voluntário, vez que advinda da própria pessoa104. A involuntariedade dos atos em
ignorância restringir-se-ia, assim, às hipóteses de ignorância não responsável, que, tal como a
força externa, tem por princípio algo alheio à pessoa.
Essa modalidade de ignorância assemelha-se sobremaneira à cegueira deliberada, já
sendo reconhecida, desde a Ética a Nicômaco, a possibilidade de a pessoa buscar um estado de
desconhecimento quanto a algo.
Também nos escritos de São Tomás de Aquino já se faziam presentes diversas menções
à chamada ignorantia affectata, ou seja, o desconhecimento provocado pelo sujeito, e, à
semelhança da obra aristotélica, também se analisavam os efeitos peculiares dessa espécie de
ignorância sobre a voluntariedade dos atos a ela relacionados.
100
ARISTÓTELES. Ética a Nicómaco. Trad. José Luis Calvo Martínez. Madrid: Alianza Editorial, 2001. p. 94.
1110a.
101
Ibid. p. 99. 1111a.
102
SPANGENBERG BOLÍVAR, Mario. La ignorancia responsable en Aristóteles. Una solución al atolladero
dogmático penal en los casos de ignorancia deliberada. Revista de Derecho, Empresa y Sociedad, v. 11, 2017. p.
72.
103
Aristóteles aludia a uma espécie de ignorância de que é culpável o próprio sujeito e que, por isso, não afastaria
sua responsabilidade, ao reconhecer que os legisladores castigam aqueles que cometem ações más, salvo se o
fazem por força ou uma ignorância de que não sejam eles mesmos culpáveis, bem como sancionam a própria
ignorância culpável, dando, como exemplo, o caso dos ébrios, para quem diz ser a pena dobrada, pois, sendo cada
um o dono de se embriagar, a origem da ignorância daí advinda estaria na própria pessoa (ARISTÓTELES, op.
cit. p. 106-7. 1113b).
104
SPANGENBERG BOLÍVAR, op. cit. p. 73.
40
Em sua Suma Teológica, São Tomás já dizia que, em regra, a ignorância causava o
involuntário, na medida em que privava do conhecimento necessário para se querer algo;
todavia, isso não se verificaria, conforme as lições tomistas, na ignorância em si voluntária105.
O reconhecimento da ignorância deliberada, independentemente de pequenas alterações
na nomenclatura empregada em cada período, já é, assim, milenar na Filosofia ocidental,
antecedendo, em muito, qualquer construção teórica que se assemelhe ao que hoje se refere por
dolo, culpa, erro de tipo ou, genericamente, por imputação subjetiva no campo penal.
Em verdade, foi o Direito que tardou bastante para se dar conta de que essas situações
realmente existem e reclamam resposta normativa apropriada, sob pena de se conviver com
uma lacuna jurídica106.
Nesse sentido, buscando um conceito ontológico, e não jurídico, de cegueira deliberada,
pode-se partir da noção de que se trata de um estado subjetivo de desconhecimento fático.
Esse desconhecimento, por sua vez, pode estar precedido de algum conhecimento sobre
o tópico já assimilado pelo sujeito ou, por outro lado, ser absoluto, barrando qualquer ligação
subjetiva da pessoa com o fato ab initio, ainda antes da formação de qualquer suspeita, dúvida
ou juízo de possibilidade em algum sentido definido.
Para se formar o conceito almejado, soma-se a esse primeiro elemento (que,
metaforicamente, encerra a cegueira, ou seja, a não percepção do fato) o segundo e igualmente
essencial traço da figura: a deliberação da pessoa pela ignorância.
Não se trata de um desconhecimento fortuito, surgido por acaso, proveniente do
esquecimento da atividade que conduziria ao conhecimento; refere-se, em verdade, a um estado
subjetivo de desconhecimento em que o agente deliberadamente se pôs.
Para que se possa falar em uma decisão pelo desconhecimento, a possibilidade do
conhecimento deve ser um claro pressuposto: se, em uma dada situação, o conhecimento em
causa se revela inatingível, o desconhecimento não é deliberado, senão necessário – e o
necessário não é escolhido.
Já se excluem do conceito de cegueira deliberada, assim, casos em que o conhecimento
faltante à pessoa lhe era impossível de ser atingido: aquele que, por exemplo, está velejando em
alto mar, sem qualquer tipo de comunicação com quem quer que seja, ignora a condição
meteorológica, naquele momento, em determinada cidade situada do outro lado do mundo,
105
AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Vol III. São Paulo: Edições Loyola, 2003. p. 132-3.
106
E não apenas legal, necessário salientar, pois a falta de respostas seguras e adequadas do Direito Penal a tais
situações não marca só os Códigos Penais, mas também a doutrina jurídica, a qual, conforme se expôs nas páginas
anteriores, contorce-se em busca de soluções, ainda não encontradas.
41
porém não de forma deliberada, vez que se trata de um desconhecimento que lhe é imposto.
Ainda que essa pessoa queira, realmente, permanecer em ignorância quanto ao fato, essa será
uma disposição interna de todo irrelevante, pois a necessidade natural do desconhecimento, ou
seja, a impossibilidade do conhecimento, não deixa qualquer espaço para se querer ou se decidir
em qualquer sentido.
Mas, como dito, a possibilidade do conhecimento não basta, sendo apenas um
pressuposto. Afastam-se da figura da cegueira deliberada, ainda, casos de desconhecimento não
advindos de uma decisão em seu favor: pode-se desconhecer, por exemplo, por esquecimento
de se conhecer, como no caso da pessoa que, estando muito ocupada para ler instantaneamente
uma mensagem recebida, a reserva para ler em seguida e acaba se esquecendo, por lapso,
permanecendo em ignorância, assim, quanto ao seu conteúdo; ou, ainda, por displicência ou
falta de atenção, como no caso daquele que, recebendo uma grande quantidade de documentos
de uma só vez, os analisa apressada e descuidadamente, não se dando conta de ter passado duas
folhas ao mesmo tempo e, assim, permanecendo em ignorância quanto ao conteúdo daquela
folha que lhe passou despercebida.
Esse segundo elemento do conceito de cegueira deliberada é da mais absoluta importância
para o desenvolvimento deste estudo e deve ser sempre lembrado ao se referir ao conceito, nos
capítulos seguintes, para que não haja incompreensões e se pense, erroneamente, que a pesquisa
terá por objeto casos como os idealizados acima, de desconhecimento fático proveniente de
negligência ou algo que o valha107.
É necessário que se sublinhe, desde já, que a cegueira deliberada é um estado subjetivo
fruto de uma decisão da pessoa, de uma tomada de posição ante o cenário, no sentido da
refutação de informações e não obtenção de conhecimento sobre a situação, o que pode se dar
de duas formas: a ausência de pesquisas e a blindagem ao conhecimento.
Pela primeira, o sujeito decide não ir atrás de informações relevantes sobre o fato em
questão e, assim, o ignora. Pela segunda, a postura é mais veemente, consistente não só na
ausência de pesquisa, mas, também, no efetivo bloqueio de informações que porventura
pudessem chegar a si; o sujeito, nesse segundo caso, não apenas não vai atrás do conhecimento,
como também impede que este chegue até ele108.
107
María Laura Manrique sustenta, inclusive, haver um consenso doutrinário e jurisprudencial no sentido de que,
em casos de cegueira deliberada com relevância jurídico-penal, é mais importante destacar o papel da
intencionalidade que o da ignorância (MANRIQUE, María Laura. Ignorancia deliberada y responsabilidad penal.
Isonomía, n. 40, 2014. p. 166).
108
Heffernan traz o depoimento de uma diretora de agência de aconselhamento para superendividados que relata
que seus clientes não abrem correspondências, evitam atender o telefone e não escutam mensagens gravadas, por
42
A postura de cegueira deliberada pode ser adotada, conforme dito linhas acima, tanto após
a obtenção de indícios ou informações incompletas, capazes de gerar alguma desconfiança ou
dúvida em determinado sentido, mas não conhecimento pleno, quanto antes mesmo da obtenção
de qualquer elemento indiciário e da formação de qualquer suspeita. Em ambos os casos, pode
ser adotada qualquer das posturas indicadas: a cegueira deliberada passiva (não realização de
pesquisas possíveis) e a ativa (efetiva oposição de barreiras à chegada do conhecimento a si).
Os motivos pelos quais as pessoas assim se comportam são variados e, em geral, se
relacionam à indisposição para encarar situações desagradáveis 109. Normalmente, busca-se o
desconhecimento em relação a pontos que, por serem tristes, tormentosos, polêmicos etc.,
prefere-se ignorar, com a crença de que, assim, eles desaparecerão110.
Para Spangenberg Bolívar, a inclinação à cegueira deliberada é própria da natureza
humana, consistindo em uma estratégia hedonista de evitação de aflições ou problemas, ante o
risco de sua eventual confirmação cognitiva111.
São vários os exemplos da experiência humana nesse sentido: o cônjuge que, tendo
constatado indícios de uma possível infidelidade do outro, decide por fechar os olhos e não ir
atrás de os confirmar ou refutar, optando pela ignorância e pela conservação do status quo, em
vez do confronto112; ou, ainda, aquele que desconfia da licitude das atividades do outro, diante
da incompatibilidade entre sua renda declarada e o padrão de vida que proporciona à família, e
opta por assim permanecer, sob pena de, se pesquisar a verdade, vir a descobrir algo que lhe
incomode; um sócio que, diante de indícios de condutas criminosas conduzidas por outro sócio
no seio da empresa e valendo-se dela (como uma estrutura de lavagem de dinheiro, por
exemplo), prefere não saber ao certo o que se passa e, além de não ir atrás da verdade, faz com
medo de quem estará do outro lado (HEFFERNAN, Willful blindness... p. 89), ou seja, além de não irem em busca
do conhecimento, também se blindam daquele que terceiros tentam fazer com que lhes chegue.
109
“We know – intellectually – that confronting an issue is the only way to resolve it. But any resolution will
disrupt the status quo. Given the choice between conflict and change on the one hand, and inertia on the other, the
ostrich position can seem very attractive” (Ibid. p. 96). A referência ao avestruz se deve a uma lenda de que o
animal enterraria a cabeça no solo, supostamente para não ver situações desagradáveis, quando, em verdade, o
avestruz apenas deita sua cabeça e seu pescoço rentes ao solo, em situações aleatórias, fazendo parecer, à distância,
que ele teria escondido a cabeça, cujos tons claros comumente mimetizam com os do solo (LUCCHESI, Punindo
a culpa como dolo... p. 110. nota 267). Precisamente por ser uma metáfora equivocada e um tanto estranha, aqui
não se utiliza o termo ostrich instructions, que é encontrado em diversos trabalhos sobre o tema, para se referir a
nada relativo ao objeto de estudo.
110
“Ignore it and it will go away – that’s what we think and hope. It’s more than just wishful thinking. In burying
our heads in the sand, we are trying to pretend the threat doesn’t exist and that we don’t have to change. We are
also trying hard to avoid conflict: If the threat’s not there, I don’t have to fight it. A preference for the status quo,
combined with an aversion to conflict, compels us to turn a blind eye to problems and conflicts we just don’t want
to deal with” (HEFFERNAN, Willful blindness... p. 87).
111
SPANGENBERG BOLÍVAR, La ignorancia responsable... p. 65.
112
“It’s a truism that love is blind: what’s less obvious is just how much evidence it can ignore” (HEFFERNAN,
Willful blindness... p. 3).
43
que esta não chegue a si, fugindo de conversas que supõe serem a respeito dos fatos, tudo por
temor de suas suspeitas se confirmarem e ele se ver envolvido com as ações do sócio ou se
sentir obrigado a intervir, gerando desgastes na sociedade.
Entretanto, a motivação em si da cegueira deliberada, embora possa ser de interesse para
outros ramos do conhecimento (talvez, principalmente, a Psicologia), não traz maiores
consequências para o Direito, vez que “o componente motivacional não é um elemento do
dolo”113.
Em virtude disso, afasta-se, aqui, de formulações da teoria da cegueira deliberada que se
prendem à motivação do sujeito, por se entender que esse aspecto foge, em absoluto, à
tipicidade subjetiva e, portanto, não deve ser considerado114.
No mesmo sentido, outro elemento que alguns trabalhos incluem no conceito de cegueira
deliberada e que aqui se refuta é um suposto dever de conhecer115. Pelo que já foi exposto e
conforme demonstram os exemplos trazidos, está claro que a cegueira deliberada não exige
qualquer tipo de relação de vigilância ou de fiscalização do sujeito sobre o fato, de modo que
se pudesse afirmar que ele tinha uma obrigação de saber. Pelo contrário, a figura pode
perfeitamente se manifestar quanto a situações deontologicamente neutras.
A inserção de categorias estranhas ao juízo de tipicidade proposta em algumas definições
de cegueira deliberada relevante para o Direito Penal, como se vê nos trabalhos de Ragués i
113
LUCCHESI, Punindo a culpa como dolo... p. 161.
114
Em sentido contrário, sustentando a necessidade de se considerar a motivação do estado de cegueira deliberada
no campo penal, sob pena de, supostamente, se igualarem situações essencialmente distintas, cf. MANRIQUE,
Ignorancia deliberada... p. 179-83. A autora critica o entendimento adotado em United States vs. Heredia, no
sentido do afastamento do requisito dos motivos quando da redação de uma ostrich instruction, e traz, em
fundamentação ao seu posicionamento, um exemplo que parece absolutamente inadequado. Refere-se ela a um
caso de um agente que é obrigado a transportar uma mala, recebendo, ainda, graves ameaças contra sua família,
caso a abra. Sustenta a autora que, nesse caso, o sujeito não merece punição, ante a legitimidade dos motivos de
sua ignorância quanto ao conteúdo da mala, que estaria, portanto, justificada (Ibid. p. 181). Ora, nota-se, na
formulação, uma total e absolutamente criticável confusão entre as categorias da teoria do crime, parecendo a
autora entender que, ao se sustentar uma imputação dolosa no caso de cegueira deliberada, está-se,
automaticamente, a reconhecer o caráter criminoso do fato e a condenar o agente. Olvida-se de que o juízo
afirmativo da imputação, no campo da tipicidade, encerra apenas um dos elementos do crime, ao qual devem ainda
se somar a ilicitude e a culpabilidade, para que se possa falar em crime. A cegueira deliberada pode conformar, no
máximo, a imputação dolosa, não, por óbvio, toda a responsabilidade penal pelo fato, em atropelo às categorias
do delito. O exemplo imaginado é, assim, totalmente impróprio, pois a hipótese, por certo, é de inexigibilidade de
conduta diversa, a afastar a culpabilidade, nada justificando o que parece defender a autora, no sentido de que, se
o mesmo agente conhecesse o conteúdo da mala, a conduta seria típica, ilícita e não culpável; estando, porém, em
cegueira deliberada, não seria já típica.
115
Heffernan alude a uma responsabilidade de estar informado (HEFFERNAN, Willful blindness... p. 3).
44
Vallès116 e Spencer Sydow117, parece sobrecarregar o juízo de imputação com aspectos que não
deveriam lhe dizer respeito118, chegando, em alguns casos, a tender à ultrapassada figura de um
dolus malus ou algo que o valha, ao incluir, na categoria da tipicidade, questões axiológicas do
comportamento, como a motivação119.
Quanto a essas formulações, é de se indagar quais seriam, então, as consequências da
ausência de tais elementos na cegueira deliberada, em um caso concreto. Ragués i Vallès, por
exemplo, insere o egoísmo do sujeito como traço da cegueira deliberada equivalente ao dolo120,
116
Como já posto no capítulo anterior, o autor insere no conceito de cegueira deliberada que julga merecedora da
mesma pena que o dolo uma motivação egoística, estabelecendo que o agente deve decidir por se manter em
ignorância para, assim, obter algum benefício, sem assumir riscos próprios ou responsabilidades (RAGUÉS I
VALLÈS, La ignorancia deliberada... p. 192-3).
117
O autor propõe um conceito de cegueira deliberada penalmente relevante ainda mais imbricado, integrado por
não menos que oito requisitos: “(1) deve se estar numa situação em que o agente não tem conhecimento suficiente
da informação que compõe o elemento de um tipo penal em que está inserido; (2) tal informação, apesar de
insuficiente, deve estar disponível ao agente para acessar imediatamente e com facilidade; (3) o agente deve se
comportar com indiferença por não buscar conhecer a informação suspeita relacionada à situação em que está
inserido; (4) deve haver um dever de cuidado legal ou contratual do agente sobre tais informações; (5) é necessário
se identificar uma motivação egoística e ilícita que manteve o sujeito em situação de desconhecimento; (6)
ausência de garantia constitucional afastadora de deveres de cuidado; (7) ausência de circunstância de isenção de
responsabilidade advinda da natureza da relação instalada; (8) ausência de circunstância de ação neutra” (SYDOW,
A teoria da cegueira deliberada. p. 258-9). O conceito surpreende o leitor ao surgir apenas nas conclusões do
trabalho, sem qualquer fundamentação, ao longo da obra, para muitos dos requisitos postos, os quais ficaram
realmente incompreensíveis. O que seriam os requisitos (6) e (7) não está nada claro, assim como a inserção de
uma categoria própria da imputação objetiva (8), que parece não ter nada a ver com a matéria.
118
Também Lucchesi analisa criticamente as propostas de Ragués i Vallès e Sydow, entendendo que elas
desnaturam o conceito supostamente trazido do common law e não ajudam a identificar os casos em que caberia a
imputação dolosa (LUCCHESI, Punindo a culpa como dolo... p. 158-62).
119
Por ainda trabalhar com a noção de dolus malus, incluindo-o na culpabilidade, Sousa Neto, à sua época, defendia
a influência dos motivos do crime sobre o dolo, dizendo que “a influência dos motivos determinantes se exerce,
pois, na culpabilidade. O dolo se exclui quando a ação resulta de ações nobres, altruísticas, patrióticas, sociais, em
suma. (...) o motivo social deve ser inserido, no dolo, em sentido negativo, isto é, para exclui-lo. Ao contrário, o
motivo anti-social atua de modo positivo, caracterizando o dolus malus ou dolo com consciência de ilicitude”
(destaques no original) (SOUSA NETO. O motivo e o dolo. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1956. p. 95-7).
A noção, contudo, já está absolutamente superada, não havendo espaço para a inserção de elementos dessa natureza
na categoria do dolo. Para uma análise da legitimidade da valoração dos motivos em Direito Penal, sob uma
perspectiva liberal, sem os confundir com o dolo, cf. MONTENEGRO, Lucas. Por que se qualifica o homicídio?:
um estudo sobre a relevância da motivação em Direito Penal, por ocasião da Lei do Feminicídio (Lei 13.104, de
2015). São Paulo: Marcial Pons, 2017. p. 113-27. Ressalva seja feita quanto à teoria de Gabriel Pérez Barberá, a
qual leva em conta os motivos para fins de imputação dolosa ou culposa, porém sob um viés diferente, reputando-
os relevantes apenas enquanto gênesis de outros estados mentais que informarão o juízo de imputação, sem se
afastar da doutrina majoritária em relação à desconsideração dos motivos enquanto explicação de ações: seriam
relevantes, assim, os motivos (ou melhor, as razões, as explicações) pelos quais o agente tem determinado
conhecimento ou desconhecimento, ou, ainda, uma confiança em determinado sentido, mas não os motivos pelos
quais agiu de forma objetivamente típica (PÉREZ BARBERÁ, Gabriel. El dolo eventual: hacia el abandono de la
idea de dolo como estado mental. Buenos Aires: Hammurabi, 2011. p. 805-11). A teoria deste autor será objeto de
detida exposição em seção posterior deste trabalho (Capítulo 8).
120
O que é objeto de acertadas críticas por Greco: “(…) la distinción entre dolo e imprudencia no tiene nada que
ver con la estructura más o menos altruista de la motivación del autor. Hay dolo altruista e imprudencia egoísta.
(…) Motivaciones de un lado, dolo / imprudencia del otro, se encuentran en planos distintos. Estos últimos tienen
que ver con el riesgo creado por el autor, es decir, guardan en última instancia una íntima relación con la idea de
que el fundamento del injusto penal es la lesión a un bien jurídico; aquellos por su lado son a primera vista un
cuerpo extraño en la teoría del injusto (y hasta de la culpabilidad) (…)” (GRECO, Comentario al artículo... p. 73-
4).
45
como visto. Ora, será mesmo que a motivação influi no juízo de tipicidade? O agente que, com
pleno conhecimento do que faz, transporta um grande volume de drogas ilícitas para repassar a
outrem após cruzar uma fronteira internacional, comete, em tese, o crime de tráfico de drogas,
sendo irrelevante, para fins de aferição do dolo, se o faz movido pela retribuição econômica
prometida; pela disposição desinteressada em ajudar um amigo que lhe pede o favor; pela
expectativa de receber parte da droga ao final da operação, seja para seu consumo pessoal, seja
para que possa vender por conta própria, enfim. Por outro lado, no caso daquele que,
objetivamente, pratica a mesma conduta, porém em cegueira deliberada, seria de se examinar o
porquê de tê-lo feito ou o que ele buscava ao fazê-lo?
Decididamente, não. A motivação para a conduta não influi na sua imputação penal e,
portanto, neste trabalho, não se preocupará com esse elemento, que parece ter sido introduzido
em formulações da teoria da cegueira deliberada de forma indevida, inserindo na tipicidade
dados que, quando muito, podem se relacionar à culpabilidade.
Por fim, uma última e necessária observação ainda se impõe: como dito, a cegueira
deliberada pode ser parcial ou absoluta, a depender do momento em que é adotada, se quando
o agente já possui alguma suspeita, calcada em indícios, e opta por não adquirir mais
informações, ou quando ainda realmente nada sabe121.
Conforme pontuado no capítulo anterior, a cegueira deliberada parcial não traz maiores
problemas quanto a condutas penalmente relevantes no Direito de tradição continental, já que
nada mais é do que o próprio dolo eventual.
Nesses casos, o sujeito já conhece por alto os fatos, já tem uma suspeita formada, e
decide, apenas, não adquirir mais informações; não se trata, propriamente, de não saber, mas
de não saber mais. É uma deliberada reticência cognitiva, na expressão de Spangenberg
Bolívar122, consistente em deixar em aberto, sem resposta, uma suspeita já formada.
121
Há quem diga que a cegueira deliberada absoluta é uma contradictio in terminis, pois “se há a intenção de
ignorar, é porque, na realidade, se sabe o que se ignora” (CARVALHO; ROSA, Uma análise crítica... p. 1610). A
afirmativa não parece correta em medida alguma, vez que, como posto no texto, é perfeitamente concebível a ideia
de se optar pela ignorância de forma genérica e irrestrita, sem nada conhecer previamente quanto ao campo sobre
o qual se prefere ignorar. Ora, apenas para permanecer no campo extrajurídico, na linha do presente capítulo, pode-
se pensar no exemplo de uma pessoa que recebe um pacote contendo um presente de aniversário enviado por um
amigo, o qual lhe pede, por mensagem, que não o abra antes da festa naquela noite, pois gostaria de estar presente
para ver sua reação. A ignorância do aniversariante é deliberada, pois ele decidiu assim se manter, em atendimento
ao pedido do amigo, e é absoluta, pois ele não tem a menor ideia do que seja o presente, sendo praticamente
infinitas as opções do que esteja ali dentro. Como se dizer que, por ter escolhido ignorar o conteúdo do pacote,
essa pessoa já sabe o que ignora? A contradição parece estar, na verdade, nessa frase dos referidos autores, a
menos que com ela se queira dizer que, ao optar por ignorar o conteúdo do pacote, a pessoa sabe que ignora o
conteúdo do pacote, o que seria uma tautologia sem sentido.
122
SPANGENBERG BOLÍVAR, La ignorancia responsable... p. 65.
46
O presente estudo não se ocupará desse tipo de cegueira deliberada, que, como já posto,
pode trazer problemas ao Direito Penal anglo-saxão, quanto a crimes em que se exige
knowledge, mas não ao Direito Penal romano-germânico, em que a figura do dolo eventual já
bem responde à situação.
A cegueira deliberada que aqui interessa, na linha do que ressaltado por Ragués i Vallès,
é a absoluta, para a qual a teoria da willful blindness não traz respostas prontas e que constitui
um problema irresoluto tanto no common law, quanto no civil law.
Tendo tudo isso dito, é possível formular, nos seguintes termos, um conceito de cegueira
deliberada que servirá de base para os seguintes capítulos, sempre que o texto se referir à figura:
cegueira deliberada é o estado mental formado a partir de uma decisão do sujeito pela não
obtenção de conhecimento possível em relação a um fato e, assim, pela sua manutenção em
ignorância; pode ser parcial, se adotada após o contato com indícios e a formação de algum
tipo de suspeita inicial, ou absoluta, se inviabilizadora da obtenção de qualquer grau de
suspeita; e, ainda, passiva, se consistente na mera inércia e ausência de iniciativa de se buscar
o conhecimento, ou ativa, caso inclua, também, a efetiva oposição de barreiras a que o
conhecimento chegue ao sujeito.
47
Essa conduta humana, por sua vez, pode consistir em um comportamento ativo, no
sentido do desprendimento de energia por parte do indivíduo para a realização de algo novo
que venha a lesionar ou periclitar um bem jurídico, ou, também, em um comportamento passivo,
consistente, opostamente, na ausência de desprendimento de energia, concretamente factível123,
diante de determinada situação concreta de lesão ou perigo a um bem jurídico que se apresenta
ao indivíduo124.
Na primeira hipótese, tem-se uma ação que, situada no primeiro estágio da estrutura
analítica do delito, originará, desde que a ela se somem diversos outros caracteres de tipicidade,
ilicitude e culpabilidade125, um crime comissivo. Na segunda hipótese, há uma omissão que,
mediante os mesmos requisitos, dará lugar a um crime omissivo126.
123
Tem-se a capacidade de ação como o ponto em comum entre a ação e a omissão, não havendo que se falar em
não realização de ação impossível ao indivíduo, no cenário concreto de que se trate: TAVARES, Juarez. Teoria
dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 351-4; PRADO, Luiz Regis. Tratado de direito penal
brasileiro: parte geral. Vol. 1. 2. ed. São Paulo: RT, 2017. p. 512; RODRIGUES, Marta Felino. A teoria penal da
omissão e a revisão crítica de Jakobs. Coimbra: Almedina, 2000. p. 39-40; NOVOA MONREAL, Eduardo.
Fundamentos de los delitos de omisión. Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1984. p. 70; CEREZO MIR, José.
Derecho penal: parte general. São Paulo: RT, 2007. p. 1129-31; LACRUZ LÓPEZ, Juan Manuel. Comportamiento
omisivo y Derecho Penal. Madrid: Editorial Dykinson S.L., 2004. p. 424; STRATENWERTH, Gunter. Derecho
Penal. Parte General I: el hecho punible. Trad. Manuel Cancio Meliá e Marcelo A. Sancinetti. Navarra: Editorial
Aranzadi, 2005. p. 399-400; GALLAS, Wilhelm. La teoría del delito en su momento actual. Trad. Juan Cordoba
Roda. Barcelona: Bosch Casa Editorial, 1959. p. 55-6; KAUFMANN, Armin. Dogmática de los delitos de omisión.
Trad. Joaquín Cuello Contreras e José Luis Serrano González de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2006. p. 99;
WESSELS, Johannes. Direito Penal: parte geral (aspectos fundamentais). Trad. Juarez Tavares. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Editor, 1976. p. 161-2. Jescheck/Weigend veem a capacidade de ação genérica como
elemento da omissão, exigindo a capacidade de ação concreta, específica, para a caracterização do crime omissivo
(JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas. Tratado de Derecho Penal: parte general. Trad. Miguel
Olmedo Cardente. 5. ed. Granada: Editorial Comares, 2002. p. 241, 664). Em posicionamento absolutamente
minoritário na doutrina, Baumann vê na impossibilidade de ação uma causa justificante de conduta omissiva típica
(BAUMANN, Jurgen. Derecho Penal: conceptos fundamentales y sistema. Buenos Aires: Ediciones Depalma,
1973. p. 148-53).
124
“Se no campo fenomenológico ou ôntico, ação e omissão diferem, no campo das valorações político-criminais,
ou seja, normativo, é possível encontrar um denominador comum entre as duas formas de realização da conduta
típica, ambas são formas de ofender o bem jurídico protegido. Em uma delas, há a criação do risco por meio de
um movimento corporal; na outra há um dever de atuar como meio de proteção de bens jurídicos ameaçados e o
desatendimento a esse dever por meio da falta de prática da ação legalmente devida” (ESTELLITA, Heloisa.
Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão: estudo sobre a responsabilidade omissiva
imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados
por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. p. 77). No mesmo sentido, Juarez Cirino pontua que “o
Direito Penal utiliza duas técnicas diferentes para proteção de bens jurídicos: em regra, a norma penal proíbe a
realização de ações lesivas de bens jurídicos; por exceção, a norma penal ordena a realização de ações protetoras
de bens jurídicos” (destaques no original) (SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. 3. ed.
Curitiba: Editora Fórum, 2004. p. 128).
125
“La acción ha de cumplir en primer lugar la función de elemento básico, unitario, de la teoría del delito, al que
se añadan, como atributos o predicados todas las comprobaciones (descriptivas) o valoraciones del enjuiciamiento
jurídico-penal. (…) La acción ha de cumplir, además, una función de elemento de unión o enlace de todas las fases
del enjuiciamiento jurídico-penal (tipicidad, antijuridicidad y culpabilidad)” (CEREZO MIR, op. cit. p. 390).
126
“Cuando un hombre desobedece una norma jurídica de mandato, su comportamiento real se traduce en un no
hacer aquello que le imponía su deber jurídico con fines bien perfilados de colaboración activa a las exigencias de
la organización social establecida. El sujeto ha rehusado, en tal caso, obrar de la manera determinada que le estaba
impuesta jurídicamente y ello constituye una conducta contraria al Derecho. Esta explicación corresponde a una
consideración de la responsabilidad jurídica que deriva de una omisión (…). En todos aquellos casos en que
49
semejante falta de colaboración activa a las exigencias de la organización social es tenida por el legislador como
gravemente perturbatoria del orden de la sociedad, puede él acudir al Derecho Penal como ultima ratio y acuñar
la conducta desobediente como un tipo penal” (NOVOA MONREAL, op. cit. p. 45). Já para Silva Sánchez, a
omissão não é algo pré-existente ao juízo de imputação típica, vez que surgiria exatamente de tal juízo, por meio
do qual se atribui à conduta do sujeito o signo da não realização de uma prestação positiva que se reputa necessária
à salvaguarda de um bem jurídico. As bases desse juízo seriam, portanto, a conduta efetiva e a pretensão,
estabelecida no tipo, de se assegurar uma proteção positiva ao bem jurídico (SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. El
delito de omisión: concepto y sistema. 2. ed. Buenos Aires: B de f, 2003. p. 194-5).
127
“De acordo com este princípio, nenhum dano, por mais grave que seja, pode-se estimar penalmente relevante,
senão como efeito de uma ação. Em consequência, os delitos, como pressupostos da pena, não podem consistir em
atitudes ou estados de ânimo interiores, nem sequer, genericamente, em fatos, senão que devem se concretizar em
ações humanas – materiais, físicas ou externas, quer dizer, empiricamente observáveis – passivas de serem
descritas, enquanto tais, pela lei penal. Os fundamentos deste princípio, também fruto da elaboração iluminista,
são os mesmos que encontramos como fundamento da garantia de lesividade: o utilitarismo jurídico e a separação
axiológica entre direito e moral” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana
Paula Zomer Sica et al. 4. ed. São Paulo: RT, 2014. p. 440-1). O autor, ao tratar do princípio da materialidade
(Ibid. p. 440-7), não menciona, expressamente, a omissão. Contudo, suas proposições, desenvolvidas para a ação,
lhe são aplicáveis.
128
PRADO, Luiz Regis. op. cit. p. 480
129
A doutrina tem, majoritariamente, se posicionado pela impossibilidade de se chegar a um conceito genérico
que englobe as duas categorias. Nesse sentido, cf. CEREZO MIR, op. cit. p. 413-4; FRAGOSO, Heleno Cláudio.
Lições de direito penal: parte geral. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 182. Jescheck/Weigend, adotando
um conceito de ação social, entendem que essa impossibilidade se dá apenas no plano ontológico, apontando o
conceito de comportamento como categoria genérica integrada pela ação e omissão, como espécies, no plano
valorativo (JESCHECK; WEIGEND, op. cit. p. 238-40). Igualmente Gallas, apontando que o conceito de conduta
humana, tido como ponto comum entre as duas figuras, somente incide no plano de valoração jurídica (GALLAS,
op. cit. p. 18-9). Em sentido contrário, Regis Prado: “são elas (ação e omissão) diferentes e autônomas realidades
e como tal devem ser tratadas, tanto no plano do ser como no do dever ser” (PRADO, Luiz Regis. op. cit. p. 511-
2). Kaufmann, por sua vez, vê, no conceito de comportamento, o comum e o distintivo entre a ação e omissão:
nele, se destacaria a capacidade de ação como unidade do conceito, sem se afastar, ainda assim, a contradição entre
a ação e a omissão, pelo que entende que o conceito se presta, apenas, a expor a raiz comum das duas figuras, sem
conseguir nivelá-las (KAUFMANN, op. cit. p. 100-2).
50
que, por seu teor, configura um crime contra a honra; a retirada de coisa alheia móvel da esfera
de disponibilidade do titular do direito real, alteradora da situação do bem e configuradora de
um furto; um disparo de arma de fogo contra alguém que, atingindo a vítima, retira-lhe a vida
etc.). Os segundos, a seu turno, consistem na passividade do indivíduo diante de uma situação
lesiva ou perigosa a um bem jurídico que se lhe apresenta, na qual o ordenamento jurídico
impõe à pessoa o dever de agir, dever este cujo conteúdo pode variar, dando lugar, assim, à
classificação desses delitos em próprios e impróprios, analisada a seguir.
A distinção estrutural entre as duas modalidades comportamentais (ativa e passiva) se
reflete diretamente na valoração de que são objeto por parte do Direito, havendo, por
conseguinte, diferença igualmente estrutural entre a norma penal subjacente a um tipo de delito
comissivo e a um omissivo.
A primeira possui caráter proibitivo, é dizer, proíbe uma ação. A segunda possui caráter
mandamental, ou seja, impõe uma ação.
Assim postas as coisas, é certo que, quantitativamente, a tipificação de crimes
comissivos é bastante superior à de omissivos, e não poderia mesmo ser diferente. Afinal,
relembrando o princípio geral da legalidade no Estado Democrático de Direito, de acordo com
o qual ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de Lei (art. 5º, II,
da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 - CRFB/88), vê-se que, ao proibir
determinada conduta, a norma jurídica deixa em aberto ao indivíduo toda a gama de
possibilidades fáticas que se lhe apresentam naquele contexto, excluindo, apenas, a proibida.
Por outro lado, ao impor determinada conduta, a norma jurídica limita sobremaneira o leque de
possibilidades de atuação do indivíduo no contexto em que se encontra, já que este a afrontará
caso se comporte de qualquer outra maneira, que não a imposta130.
A norma penal subjacente ao tipo do art. 121 do CPB, v.g., ao proibir ao indivíduo que
mate alguém, permite-lhe que, diante de outrem, se comporte de absolutamente qualquer outra
maneira, que não a vedada131.
130
KAUFMANN, Dogmática... p. 102; ZAFFARONI, Eugenio Raúl; SLOKAR, Alejandro; ALAGIA, Alejandro.
Derecho Penal: parte general. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002. p. 571.
131
Juarez Tavares reconhece uma relação dialética entre a norma proibitiva e a mandamental, em que a proibição
e o mandamento seriam algo como duas facetas da mesma norma: “(...) entre norma mandamental e norma
proibitiva subsiste uma relação dialética, de modo que a norma mandamental, ao mesmo tempo que impõe uma
atividade, proíbe outra. Assim, a norma proibitiva: ao mesmo tempo em que proíbe uma atividade, por exemplo,
a atividade de matar, impõe, também, uma atividade, a atividade de respeito à vida humana. Isso está implícito na
norma proibitiva. (...) o dever decorrente de uma norma mandamental, que se encontre inserida na norma proibitiva
de um delito comissivo, deve ser visto como dever complementar, cujo cumprimento se torne necessário como
ponto de referência da proibição” (TAVARES, Teoria... p. 295-6). No fim das contas, chega-se ao mesmo
resultado, por caminhos mais ou menos tortuosos. Mais simples (e igualmente correto) é falar em permissão, como
aqui se propõe, do que em mandamento de atividade oposta à proibida, mesmo porque a imprecisão do que seria
51
Diametralmente oposto, por exemplo, o caso da norma penal subjacente ao tipo do art.
269 do CPB, a qual, ao impor ao médico que denuncie à autoridade pública doença cuja
notificação é compulsória, não lhe permite, diante desse contexto fático (constatação de uma
moléstia tal em um paciente), que adote qualquer outro comportamento, que não o imposto.
Nesse sentido, nota-se que, dado um cenário fático objeto de valoração pela norma
penal, uma norma mandamental se mostra muitíssimo mais limitativa da liberdade individual
do que uma proibitiva, pelo que o princípio da liberdade impõe maior grau de racionalidade à
tipificação omissiva132, sendo de se exigir da Lei mais parcimônia e uma observância ainda
mais inflexível ao princípio da proporcionalidade quando da criminalização de uma omissão,
terreno em que se redobra o caráter de ultima ratio do Direito Penal, dada a magnitude com que
esse procedimento legislativo interfere na liberdade de atuação individual.
Interessante observar a existência, no ordenamento jurídico, de tipos penais que
preveem, alternativamente, condutas comissivas e omissivas133, como é o caso, v.g., do delito
de prevaricação (art. 319 do CPB), cujo tipo penal traz as condutas de retardar, indevidamente,
ato de ofício, e de praticá-lo contra disposição expressa de lei - comissivas, portanto -, ao lado
da de deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, tudo para satisfazer interesse ou
sentimento pessoal - omissiva, a seu turno -, o que demonstra que a classificação de um crime
em comissivo ou omissivo não pode se orientar pelo nomen iuris do tipo penal, devendo
essa atividade (no exemplo dado pelo autor, atividade de respeito à vida humana) recomenda seu tratamento como
objeto de uma permissão, não de um mandamento. Nesse sentido, Zaffaroni et al. pontuam: “El acotamiento de la
reducción recíproca de los enunciados no tiene carácter lógico, sino que proviene de una ineludible limitación de
lenguaje (no matarás no es idéntico a cuidarás la vida del prójimo) que no puede ser desconocida ante el
requerimiento de observancia del principio de reserva o de clausura, cuya estructura permite suponer que
privilegia primariamente el enunciado prohibitivo de la norma deducida del tipo, y sólo por excepción admite el
imperativo” (destaques no original) (ZAFFARONI; SLOKAR; ALAGIA, op. cit. p. 571).
132
Stratenwerth deriva a excepcionalidade da criminalização da omissão do princípio da responsabilidade, segundo
o qual o indivíduo, dada sua autonomia, seria exclusivamente competente quanto ao seu próprio âmbito de
domínio, pelo que o dever de se ocupar de interesses ou bens jurídicos alheios, mediante condutas ativas, restringir-
se-ia a casos especiais (STRATENWERTH, Derecho Penal... p. 104). Em sentido similar, também
Jescheck/Weigend pontuam que a predominância de normas proibitivas em Direito Penal se justifica por não ser
missão essencial da sanção incentivar os destinatários da norma a intervir pessoalmente em prol de bens jurídicos
periclitados (JESCHECK; WEIGEND, Tratado... p. 648).
133
Cf. NOVOA MONREAL, Fundamentos... p. 49. Há, ainda, os casos peculiares lembrados pelo autor sob a
classificação de descrições de duplo sentido: “(…) la situación cuando el tipo correspondiente emplea formas
verbales que pueden significar, de hecho, tanto una acción como una omisión, cual ocurre, por ejemplo, con los
verbos ‘ocultar’ y ‘abandonar’, profusamente empleados en varias legislaciones penales positivas. Porque se puede
ocultar algo activamente y también no dando a conocer a otro, que lo ignora, dónde se halla lo que está oculto, y
se puede abandonar algo activamente y también no prosiguiendo una actitud de atención y cuidado en relación con
aquello que no se debe abandonar. Será una correcta interpretación de estos tipos la que va a determinar si ellos
incluyen o no una actitud omisiva” (Ibid. p. 48).
52
considerar, em verdade, as formas pelas quais podem se dar, no plano fático, o cumprimento
do tipo e, por conseguinte, o descumprimento da norma penal que lhe subjaz134.
Delineada, nessas breves linhas, a distinção dos crimes entre comissivos e omissivos135,
importa ao presente trabalho analisar, em seguida, o conteúdo do dever de ação cujo
descumprimento configura infração penal desta última modalidade, em relação ao qual os
crimes omissivos se dividem em próprios e impróprios.
134
Nesse sentido, Fernando Galvão pontua: “(...) a ação é a forma de conduta humana que viola a norma jurídica
proibitiva e a omissão, por sua vez, é a forma de conduta humana que viola a norma jurídica mandamental. Para
saber se a conduta deve ser entendida como comissiva ou omissiva é necessário identificar a norma jurídica que
incide sobre a situação concreta em que se encontra o sujeito” (GALVÃO, Fernando. Direito Penal: parte geral.
9. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017. p. 368).
135
Criticando a classificação, Gracia Martín pontua: “Esta clasificación, sin embargo, no me parece correcta si con
ella se pretende abarcar a todos los delitos. El concepto de delito es único, mientras que la acción y la omisión son
dos tipos de comportamiento distintos idóneos para realizar el delito. En rigor, por lo tanto, solo podría ser válida
la expresión ‘delitos de acción’ para designar a aquellos que única y exclusivamente pueden ser realizados
mediante una conducta positiva, es decir: por una acción y, por lo mismo, de delitos de omisión únicamente cabría
hablar en relación con aquellos que única y exclusivamente pueden realizarse mediante una omisión. Hay delitos,
sin embargo, que pueden realizarse tanto mediante una acción como por una omisión y por ello no puede decirse
que sean ni delitos de acción ni delitos de omisión en sentido estricto. Es en estos delitos donde, a mi juicio, se
inscribe la llamada comisión por omisión” (GRACIA MARTÍN, Luis. La comisión por omisión en el derecho
penal español. Nuevo Foro Penal, n. 61, 1999. p. 126). Por essa lógica, descaberia a classificação do homicídio
(art. 121 do CPB), por exemplo, como crime comissivo, já que poderia ele se dar, também, mediante omissão
imprópria (comissão por omissão). Em verdade, quando aqui se diz crime comissivo, na linha da doutrina
majoritária, refere-se a delitos que admitem a forma comissiva (à qual a omissão imprópria se iguala
normativamente, conforme se demonstrará à frente), o que não implica reconhecer ser esta a única via de sua
prática. Omissivo é, assim, o crime que somente se materializa mediante omissão.
136
Como acertadamente reconhecem Jescheck/Weigend, os vocábulos próprio e impróprio, com que usualmente
se adjetivam os crimes omissivos, não se mostram semanticamente adequados no atual estágio da dogmática penal,
em que não mais subsiste sua fundamentação originária, no sentido de ser o delito de omissão imprópria um
autêntico crime comissivo (daí a impropriedade dessa omissão). De fato, mais adequada seria a classificação dos
delitos omissivos em simples e qualificados, como propõem. Contudo, conforme reconhecem, a nomenclatura
habitual já se encontra tão arraigada que não se justificaria seu abandono (JESCHECK; WEIGEND, Tratado... p.
653), mesmo porque mais importantes que os significantes são, em verdade, os significados, aos quais devem se
voltar as atenções.
137
TAVARES, Teoria... p. 307-8.
53
Não parece ser este o melhor critério, dada sua tautologia: é crime omissivo impróprio
porque exige a qualidade de garante do sujeito ativo; porém, exige-se a posição de garante
exatamente por se tratar de crime omissivo impróprio138. Ademais, tachar o crime omissivo
próprio de crime comum quanto ao sujeito ativo139 não se mostra correto, sendo necessário
lembrar que há crimes omissivos próprios especiais quanto ao sujeito ativo140, como é o caso
do já aqui referido crime de omissão de notificação de doença (art. 269 do CPB), do qual
somente pode ser autor o médico.
Outra proposta de critério diferenciador é o tipológico, que conta com a adesão de
Kaufmann141, de acordo com o qual os crimes omissivos próprios estariam expressamente
tipificados em Lei, ao passo que os impróprios decorreriam de construção doutrinária ou
jurisprudencial praeter legem, o que, igualmente, não se mostra o melhor caminho.
Além de o critério se mostrar meramente formal, não se importando com qualquer
conteúdo material da conduta em relação ao bem jurídico142, é necessário reconhecer que os
crimes omissivos impróprios também são legalmente tipificados143 (ainda que de forma
indireta, como se verá), mesmo porque, não fosse assim, sua própria existência afrontaria o
princípio da legalidade (nullum crimen sine lege).
Há, ainda, o critério do resultado, que propõe diferenciar as duas modalidades de crimes
omissivos a partir da necessidade de os impróprios produzirem um resultado naturalístico.
Enquanto, por certo, todos os crimes possuem resultado normativo ou jurídico,
consistente na lesão ou exposição a perigo de bem jurídico - decorrência direta do princípio da
ofensividade, nem todos possuem resultado naturalístico, consistente na alteração fática,
material, decorrente do ilícito. Os crimes, em geral, dividem-se, assim, em materiais, de um
138
“(…) la cuestión de si es o no necesaria la infracción de un deber de garante no puede suministrar el elemento
diferenciador, pues lo que se busca es precisamente la respuesta a la pregunta de cuándo y por qué se exige la
posición de garante como elemento adicional del tipo para la punibilidad de la omisión” (destaques no original)
(JESCHECK; WEIGEND, Tratado... p. 654).
139
ZAFFARONI; SLOKAR; ALAGIA, Derecho Penal... p. 575.
140
COSTA, Victor Cezar Rodrigues da Silva. Crimes omissivos impróprios: tipo e imputação objetiva. Belo
Horizonte: D’Plácido, 2017. p. 106-8; KAUFMANN, Dogmática... p. 282-3. Para Kaufmann, ainda, crimes
comuns e especiais (quanto ao sujeito ativo) se diferem estruturalmente, o que sustenta não ocorrer entre os crimes
omissivos próprios e impróprios, cuja diferença se daria apenas no plano axiológico (Ibid. p. 283). Em sentido
contrário, sustentando haver uma diferença estrutural entre os crimes omissivos próprios e impróprios: WESSELS,
Direito Penal... p. 157.
141
“(…) estas infracciones de mandatos de garante son ‘impropias’ en tanto que no están tipificadas en la propia
ley y su concepción y delimitación, por ello, sigue siendo difícil desde el punto de vista de la política jurídica, y
problemática desde el del principio de legalidad” (itálico no original) (KAUFMANN, Dogmática... p. 284).
142
COSTA, Victor C. R. da S., op. cit. p. 100-2.
143
RODRIGUES, A teoria penal da omissão... p. 16-9.
54
144
Nesse sentido, Tatiana Badaró preleciona: “O Código Penal brasileiro parte do princípio de que não há crime
sem resultado: os institutos da tentativa (art. 14, inc. II, do CP) e do crime impossível (art. 17 do CP) demonstram
que não existe crime sem, no mínimo, perigo para o bem jurídico; o art. 13 do CP, primeira parte, afirma
textualmente que a existência do crime depende do resultado. A Exposição de Motivos também reafirma a
inexistência de crime sem que ocorra, pelo menos, perigo de lesão ao bem jurídico (...). Ressalta-se que o resultado
em questão não é o resultado material, mas o resultado jurídico. Como visto, o resultado material é a modificação
no mundo naturalístico, materialmente distinta da ação ou omissão em si, presente nos crimes materiais ou de
resultado, mas ausente nos crimes de atividade ou formais. Por outro lado, o resultado jurídico, consistente na
lesão ou ameaça de lesão ao bem jurídico, deve existir, obrigatoriamente, em todo e qualquer crime. O resultado
jurídico como elemento indispensável ao conteúdo material do crime constitui imposição da vertente
principiológica do modelo de crime como ofensa a bens jurídicos: o princípio da ofensividade” (BADARÓ,
Tatiana. Bem jurídico penal supraindividual. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017. p. 249).
145
É o critério adotado, por exemplo, por Marta Felino Rodrigues (RODRIGUES, A teoria penal da omissão... p.
19-20). Tavares, não obstante rechaçar o critério do resultado e defender a adoção do critério da natureza da norma
violada conjugado com o do sujeito, sustentando que “a diferenciação assentada na simples inatividade ou no
resultado, que ensejaria as respectivas modalidades de dever, se geral ou especial, tem apresentado alguns
problemas, porque nem sempre as descrições legais contemplam nitidamente o evento a que se referem, como
elemento da lesão de bem jurídico. (...) somente através da análise (...) da estrutura normativa e da especial posição
de garantidor, que integram conjuntamente o tipo dos delitos omissivos, é que se pode traçar uma diferença correta
entre delitos omissivos próprios e impróprios” (TAVARES, Teoria... p. 308-9), parece, em seguida, misturar as
coisas e acabar flertando com o critério do resultado, ao concluir que “haverá crime omissivo próprio toda vez
que, além da generalidade do sujeito, a não realização da ação possível implique por si mesma a violação de uma
norma mandamental. Haverá, por outra parte, crime omissivo impróprio toda vez que a não realização da ação
possível, por parte de um sujeito na posição de garantidor, implique o não impedimento do resultado, na mesma
medida de sua produção por ação” (destaque acrescentado) (Ibid. p. 309).
146
“A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado (...).”
147
ESTELLITA, Responsabilidade penal... p. 236-9.
55
estrutura da tipificação legal, não de uma diferença essencial do crime, a ponto de justificar que
uns admitam a figura da omissão imprópria, e outros não148.
Por fim, a doutrina elabora, ainda, o critério referente à natureza da norma penal violada
pela omissão: o crime omissivo próprio configuraria descumprimento de norma mandamental,
pura e simplesmente, ao passo que o impróprio consistiria na “violação de uma norma proibitiva
mediante o desatendimento de uma norma mandamental”149.
A ideia mostra-se, contudo, problemática, na medida em que qualquer crime omissivo
constitui, invariavelmente, violação a uma norma mandamental150. Não obstante isso, a
proposição tem certa utilidade, ao destacar que, no crime omissivo impróprio, a violação da
norma mandamental equivale, axiologicamente, perante o ordenamento jurídico, à violação da
norma proibitiva que visa a evitar o mesmo resultado (normativo, frise-se), ao qual se chega,
no primeiro caso, por meio de uma omissão, e, no segundo, de uma ação 151. Diversamente, no
crime omissivo próprio, a norma mandamental violada não está referida, axiologicamente, a
uma proibitiva.
Propõe-se, aqui, a adoção desse último critério de distinção, feita a devida adaptação,
pelo que se entende que é próprio aquele crime omissivo consistente na violação de uma norma
mandamental que não possui outra, de caráter proibitivo, a ela referida. Por outro lado, é
impróprio o crime omissivo consistente na violação de uma norma mandamental referida a uma
proibitiva, hipótese em que o Direito reconhece o mesmo desvalor da conduta e do resultado,
148
Nesse sentido, é a lição de Zaffaroni et al.: “(...) lo decisivo no es la producción de un resultado material, sino
la equiparación a la conducta que viola la norma prohibitiva (la conducta que viola la norma imperativa es
equiparada a la que viola la prohibitiva, y por ende, se requiere la misma afectación – puesta en peligro o lesión –
del bien jurídico y, sólo cuando el tipo lo demanda, que la conducta vaya acompañada de un resultado material
determinado). En los propios delitos de omisión, tal equiparación no existe y esto nada tiene que ver con el
resultado material, sino que, simplemente, no están equiparados (…)” (ZAFFARONI; SLOKAR; ALAGIA,
Derecho Penal... p. 576).
149
TAVARES, Teoria... p. 309. Também Wessels, que, comentando hipóteses de homicídio mediante comissão e
mediante omissão imprópria, pontua: “Em todos os casos infringe-se a proibição de matar; no deixar esfomear-se
ou afogar-se, se lesa igualmente um dever jurídico de agir” (WESSELS, Direito Penal... p. 158). No mesmo
sentido, Baumann: “Existen, pues, dos formas de delitos de omisión: delitos propios de omisión, en que se infringe
una norma preceptiva mediante omisión, y delitos impropios de omisión, en que se trasgrede mediante omisión
una norma prohibitiva (que se contraviene, de lo contrario, con una acción positiva)” (destaques no original)
(BAUMANN, Derecho Penal... p. 137).
150
Nesse sentido: RODRIGUES, A teoria penal da omissão... p. 15-6; JESCHECK; WEIGEND, Tratado... p. 648;
PRADO, Tratado... p. 568; ZAFFARONI; SLOKAR; ALAGIA, Derecho Penal... p. 576. Também criticando o
critério normológico e demonstrando a bilateralidade da norma penal incriminadora, sendo possível encarar a
proibição e o mandamento como dois sentidos de uma mesma norma, cf. COSTA, Crimes omissivos impróprios...
p. 96-9.
151
Heleno Cláudio Fragoso reconhece a existência, nos crimes omissivos impróprios, de uma norma implícita
preceptiva situada paralelamente à proibitiva, constituindo a transgressão daquela o crime comissivo por omissão
(FRAGOSO, Lições... p. 285-6).
56
seja este advindo de uma ação (violadora da norma proibitiva), seja de uma omissão que não o
impede (violadora da norma mandamental).
152
Galvão aborda a figura do garante de forma absolutamente diferente e sem posicionamentos similares
encontrados na doutrina nacional, enunciando o que intitula de princípio da posição de garantidor (GALVÃO,
Direito Penal... p. 348-52, 364-75), algo como um subprincípio derivado do princípio maior da adequação social,
o qual estabeleceria o “critério fundamental para a atividade valorativa que permite a imputação objetiva” (Ibid.
p. 349), concluindo o autor que “o princípio da posição de garantidor, como regra de toda a construção normativa
para a incriminação da conduta omissiva, deriva da consideração de que em algumas situações especiais a
sociedade pode exigir do sujeito um comportamento ativo direcionado a proteger o bem jurídico” (Ibid. p. 364).
153
JESCHECK; WEIGEND, Tratado... p. 668; PRADO, Tratado... p. 570; GRACIA MARTÍN, La comisión por
omisión... p. 130.
154
“§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever
de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu
a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do
resultado.”
155
“O princípio da posição de garantidor não encontra materialização apenas no art. 13, § 2º, do Código Penal.
Também estabelecem especial dever de agir o art. 25 da Lei n. 7.492/86; o art. 75 da Lei n. 8.078/90; e o art. 2º da
57
assiste o dever de agir para impedir determinado resultado. O referido artigo da Parte Geral do
Código Penal, contudo, não traz maiores delimitações, como, por exemplo, quais crimes,
especificamente, admitem a comissão por omissão, ou quais bens jurídicos estão protegidos
pelo dever de garantia.
Disso advêm as críticas da doutrina quanto à vagueza da tipificação legal dos crimes
omissivos impróprios e, até mesmo, posições pela sua inconstitucionalidade, por afronta ao
princípio da legalidade156.
Também por força desse quadro, a doutrina formula variadas teorias quanto à figura do
garante, buscando-se estabelecer critérios para o reconhecimento e a delimitação do dever de
agir para impedir um resultado lesivo a um bem jurídico-penal.
As linhas teóricas podem ser agrupadas em duas grandes vertentes: as formais, que
fundam o dever de garantia em previsões legais ou contratuais ou, ainda, na ingerência (atuar
precedente gerador do risco de produção do resultado lesivo futuro), e as materiais (ou
funcionais), que o fundam em uma especial relação de proximidade do agente (garante) com o
bem jurídico a ser protegido ou a fonte de perigo potencialmente ameaçadora a bens
jurídicos157.
A insuficiência das primeiras logo se fez notar, havendo situações que, do ponto de vista
estritamente formal, configurariam posições de garantia sem substrato material, bem como
outras que não atenderiam aos requisitos formais para a configuração da figura, não obstante,
materialmente, encerrarem quadros de legítimos deveres de proteção ou vigilância158.
Lei n. 9.605/98. Em todos esses casos, a norma jurídica identifica pessoas que, devido à posição especial que
ocupam, têm especial dever de proteger o bem jurídico” (GALVÃO, Direito Penal... p. 374).
156
Nesse sentido, por exemplo, Tavares aponta, como solução mais consentânea com o princípio da legalidade, a
previsão expressa, na Parte Especial, dos delitos que admitam a comissão por omissão (TAVARES, Teoria... p.
313). Sheila Bierrenbach entende que o rol do art. 13, §2º, do CP, é importante, porém não suficiente, para que se
respeite o princípio da legalidade, fazendo-se necessários critérios adicionais, e conclui que a falta de precisão
quanto a que crimes de resultado poderiam admitir a comissão por omissão gera problemas, mesmo entendendo
que a tipificação expressa seria impossível (BIERRENBACH, Sheila. Crimes omissivos impróprios: uma análise
à luz do Código Penal Brasileiro. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 102-6). Rodrigues, em sentido similar,
acusa um déficit de legalidade quanto à tipicidade dos crimes omissivos impróprios, especificamente no que tange
aos elementos constitutivos da cláusula geral, a qual a autora reputa omissa quanto a um catálogo completo de
posições de garante ou de possíveis origens do dever de garantia (RODRIGUES, A teoria penal da omissão... p.
48). Também Cerezo Mir entende que uma cláusula genérica da posição de garante na Parte Geral amplia
demasiadamente a criminalização da omissão imprópria, defendendo a previsão específica, na Parte Especial, de
delitos que admitam a figura, como se dá quanto ao crime culposo (CEREZO MIR, Derecho penal... p. 1140-1).
Em sentido similar aos referidos posicionamentos, ainda, Stratenwerth pontua ser tarefa da jurisprudência e da
doutrina o estabelecimento dos pressupostos do dever de garantia e da equiparação da omissão à ação, sob pena
de desrespeito à proibição de preceitos penais indeterminados, a gerar “sérias dúvidas” quanto à
constitucionalidade dos crimes omissivos impróprios (STRATENWERTH, Derecho Penal... p. 383).
157
RODRIGUES, A teoria penal da omissão... p. 54-65; SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral.
4. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010. p. 201-2.
158
CEREZO MIR, Derecho penal... p. 1144-5.
58
Assim é que, hodiernamente, trabalham-se com destaque as teorias que buscam uma
fundamentação material para o dever de garantia159, reconhecendo-o em hipóteses em que o
resultado lesivo a um bem jurídico possa ser imputado a alguém por não o ter impedido (fosse
protegendo o bem, fosse controlando a fonte de perigo), com a mesma intensidade com que se
dá em hipóteses de produção do mesmo resultado mediante condutas comissivas, o que se
reflete na identidade entre as sanções do crime omissivo impróprio e do correspondente crime
comissivo, não obstante propostas doutrinárias no sentido da atenuação das primeiras160.
Nesse terreno, a classificação dos deveres de garantia se dá, basicamente, desde
Kaufmann161, entre garantes de proteção e garantes de vigilância162, segundo a qual os
primeiros são responsáveis pela proteção de bens jurídicos específicos contra perigos advindos
de qualquer origem, dada sua relação de proximidade com o titular dos bens tutelados, enquanto
os segundos responsabilizam-se pela adequada vigilância de potenciais fontes de perigo a bens
jurídicos, assistindo-lhes controlá-las com vistas a impedir que delas advenham danos ou
perigos a quaisquer bens jurídicos, dada sua relação (necessariamente fática, e não apenas
jurídica, como se verá) de proximidade com ou de controle sobre tais fontes163.
Essa relação de proximidade (com o titular dos bens jurídicos protegidos, em casos de
garantes de proteção, ou com a fonte de perigo, em casos de garantes de vigilância) é de absoluta
importância para uma fundamentação material do dever de garantia, o qual não pode ser
estendido indistintamente. Por essa razão, causa estranheza, por exemplo, a previsão
constitucional constante do art. 5º, XLIII, ao estatuir que responderão pelos crimes enumerados
(tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e os definidos como crimes
hediondos) os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem. Afinal,
159
WESSELS, Direito Penal... p. 163; ESTELLITA, Responsabilidade penal... p. 84-8; TAVARES, Teoria... p.
316-7. Este último autor, entretanto, entende que o critério material para a delimitação das posições de garantia
atende de forma ainda mais precária ao princípio da legalidade, comportando “extensões intermináveis que tornam
incerta a segurança jurídica” (Ibid. p. 317), pelo que propõe sua combinação com o critério formal (Ibid. p. 319).
Cerezo Mir também assim se posiciona, entendendo que, com base no Direito positivo espanhol, não é possível
adotar um critério puramente material, já que a lei exige o dever jurídico, propondo, assim, uma interpretação da
lei de modo a, ao lado do dever jurídico específico de evitar o resultado, exigir-se a assunção fática de uma posição
de proteção do bem jurídico ou controle da fonte de perigo, formulando-se uma delimitação mista, formal-material,
da posição de garante (CEREZO MIR, Derecho penal... p. 1145).
160
KAUFMANN, Dogmática... p. 306-8. Também Tavares, para quem há “uma diversidade de conteúdo de injusto
entre os delitos omissivos e os comissivos”, defendendo que a atenuação da pena nos primeiros atende ao princípio
da culpabilidade e pode se encaixar na previsão do art. 66 do CPB (TAVARES, Teoria... p. 349).
161
KAUFMANN, Dogmática... p. 289-90.
162
ESTELLITA, Responsabilidade penal... 95-103; WESSELS, Direito Penal... p. 163-5.
163
“A especial posição de defesa de certos bens jurídicos pressupõe, ademais, que alguém se encontre incapacitado
ou sem condições de proteger seus próprios bens jurídicos e que, assim, outra pessoa esteja disso encarregada.
Nessa situação, a primeira pessoa espera e pode confiar que a outra a protegerá. Já a responsabilidade pelas fontes
produtoras de perigo pressupõe um dever de vigilância referido a objetos ou pessoas, que se encontrem a ele
subordinados, de modo que se possa esperar, em virtude disso, um estado de segurança” (TAVARES, Teoria... p.
316).
59
ausente uma relação de peculiar proximidade do sujeito, seja com o titular dos bens jurídicos
protegidos, seja com uma fonte de perigo, não se mostra adequado atribuir-lhe o dever de
impedir qualquer resultado lesivo, em indevido alargamento das hipóteses de garantia164.
Assim, seriam garantes de proteção, por exemplo, os pais quanto aos filhos menores,
incumbindo-lhes proteger os bens jurídicos destes (vida, integridade física etc.) contra
quaisquer perigos. Daí a justificação para, no exemplo mais emblemático de omissão imprópria,
constituir crime de homicídio a conduta da mãe ou do pai que, podendo, não impede o
afogamento de sua filha ou seu filho menor de idade, ao passo que a mesma conduta, praticada
por outra pessoa que não guarde tal relação de responsabilidade sobre o menor, configuraria,
apenas, omissão de socorro (crime omissivo próprio).
Garante de vigilância seria, por exemplo, o proprietário de um prédio, o qual se
responsabiliza pela adequada manutenção da estrutura, contendo os riscos dela advindos dentro
dos níveis tolerados juridicamente165, sob pena de, em não o fazendo e vindo a construção a ruir
e desabar sobre alguém, causando-lhe a morte ou lesões corporais, responder ele por homicídio
ou lesão corporal, respectivamente, em comissão por omissão.
A justificativa para o reconhecimento do dever de garantia nessa segunda hipótese (que
mais interessa ao presente estudo, como se verá) decorre da circunstância de o garante deter
exclusividade sobre o domínio e a organização da fonte de perigo, do que deve decorrer,
também, sua responsabilidade sobre ela, atuando na forma de uma “barreira de contenção”166
dos riscos produzidos.
164
Comentando o dispositivo constitucional, Galvão pontua: “A responsabilidade dos mandantes e dos executores
não apresenta qualquer problema, devendo-se observar as regras do concurso de pessoas. Já a responsabilidade
estabelecida para os que se omitirem, quando poderiam evitar esses crimes, essa não pode ser aceita. A previsão
coloca todo e qualquer cidadão na posição de garantidor, dirigindo-lhe o dever especial de agir para impedir a
prática do tráfico ilícito de drogas, do terrorismo e dos crimes hediondos. O fundamento da posição de garantidor
é a especial relação de proteção que esse mantém com o bem jurídico, relação que distingue o garantidor dos
demais indivíduos. No caso, não é possível conceber-se que todos estejam em posição especial que os obrigue a
impedir a prática de crime. Não se pode admitir que o Estado obrigue toda a população a combater crimes,
exercendo verdadeira função policial. A previsão constitucional concebeu um dever geral de agir para impedir a
ocorrência dos crimes que menciona. A incriminação relativa à inobservância do dever geral de agir somente pode
materializar-se em norma definidora de crime omissivo próprio. Isto é, a criminalização da omissão que desatende
ao dever geral de agir pressupõe a existência de tipo penal incriminador, cujo núcleo seja constituído por verbo
que descreva a inatividade que se pretende proibir. Não havendo previsão infraconstitucional para a omissão
própria, não se pode admitir a responsabilização” (GALVÃO, Direito Penal... p. 374-5).
165
ESTELLITA, Responsabilidade penal... p. 118.
166
“El compromiso puede ir también referido a la vigilancia y control de una fuente de peligro, abarcando la
prevención y evitación de determinados procesos causales peligrosos que puedan provenir de la fuente de peligros
controlada; esto es, el compromiso de garante consiste, en estos casos, en actuar a modo de barrera de contención
frente a aquellos peligros que representen el desarrollo natural del riesgo ínsito a la fuente de peligro cuyo control
se asume” (RODRÍGUEZ MESA, Maria José. La Atribución de Responsabilidad en Comisión por Omisión.
Navarra: Editorial Aranzadi, 2005. p. 128).
60
Daí porque, no mesmo exemplo dado, não constituir crime a conduta de um vizinho
residente do outro lado da rua que, ciente da precariedade do prédio, nada faz, sobrevindo a
morte ou a lesão corporal de um pedestre atingido pelo desabamento, pois não possui ele direito
ou dever algum sobre o bem (a fonte de perigo), situado este fora de sua esfera de
responsabilidade.
Importante destacar que essa fundamentação da posição de garantia não vem em total
substituição às teorias formais, abrindo mão do fundamento jurídico para o reconhecimento do
dever de garantia. Em verdade, a teoria material não afasta a necessidade de fundamentação
jurídico-formal, senão a pressupõe167, diferenciando-se das teorias formais ao não se satisfazer
apenas com esta para reconhecer a posição de garantia, acrescentando outro requisito, além da
conformação formal – o aspecto material da assunção do dever de proteção ou de vigilância.
Essa proposta de fundamentação e classificação para os deveres de garantia não está
imune a críticas pela doutrina.
Stratenwerth, por exemplo, entende que a classificação funcional entre garantes de
proteção e garantes de vigilância não significa a sedimentação de uma teoria material das
posições de garantia168.
Rodrigues critica a classificação, ao entendimento de se tratar, na verdade, de duas
formas de se enxergar o mesmo objeto, argumentando que “a vigilância de uma fonte de perigo
também é uma forma de proteger bens jurídicos e a protecção destes também é uma maneira de
vigiar fontes de perigo”169.
A autora encampa a crítica inicialmente formulada por Jakobs, para quem a proteção,
quanto a uma pessoa, nada mais seria, que não a vigilância, em seu favor, dos perigos que a
ameaçam, da mesma forma que a vigilância de uma fonte de perigo não passaria da proteção às
pessoas expostas àquele perigo, pelo que a distinção não traria consequências sistemáticas170.
Em seguida, ilustrando seu argumento, Rodrigues e Jakobs trazem dois exemplos: o de
um professor de natação (Rodrigues), indagando se deve este proteger seus alunos da fonte de
perigo piscina ou se deve controlar tal fonte de perigo, e o de um salva-vidas (Jakobs) de um
clube ou hotel, indagando se deve este proteger os hóspedes dos perigos derivados da água ou
ser vigilante desta fonte de perigo.
167
JAKOBS, Günther. Derecho penal: parte general. Fundamentos y teoría de la imputación. Trad. Joaquin Cuello
Contreras et al. 2. ed. Madrid: Marcial Pons, 1997. p. 969.
168
STRATENWERTH, Derecho Penal... p. 384.
169
RODRIGUES, A teoria penal da omissão... p. 63.
170
JAKOBS, op. cit. p. 969.
61
Essa crítica, entretanto, parece não proceder, visto decorrer de uma desajustada
compreensão da proposta de Kaufmann. Afinal, entre garantes de proteção e garantes de
vigilância, não obstante consistir o dever de ambos na evitação de resultado lesivo a bem
jurídico, a diferença encontra-se na alocação dos vocábulos de especificidade e de
generalidade: enquanto o garante de proteção protege bens jurídicos específicos contra perigos
gerais, o de vigilância controla fontes de perigo específicas em prol de bens jurídicos gerais171.
Não se trata, assim, de dois lados da mesma moeda, mas de verdadeira diferença estrutural entre
as duas situações.
Nos exemplos aventados pelos autores, portanto, certo é que o professor de natação é
garante de proteção, incumbindo-lhe proteger os bens jurídicos de seus alunos (notadamente, a
vida e a integridade física) não apenas contra a fonte de perigo piscina, mas, em verdade, contra
quaisquer perigos que possam lhes advir durante o período da aula (como se dá em qualquer
relação professor-aluno incapaz), sem jamais se responsabilizar por perigos possivelmente
advindos da piscina sobre outros bens jurídicos que não os por ele tutelados (por exemplo, a
vida de um terceiro, não aluno, que ali se afoga, hipótese em que o professor, caso se omita em
socorrê-lo, praticará, apenas, omissão de socorro, e não homicídio, como ocorreria caso a vítima
fosse um de seus alunos).
Já o salva-vidas é garante de vigilância, responsável por controlar a fonte de perigo
piscina em prol de quaisquer bens jurídicos que possam ser por ela lesados, incumbindo-lhe
salvar qualquer um que nela se afogue, e não por proteger, diga-se, os hóspedes ou os sócios de
um clube contra quaisquer perigos, vez não ter o dever de, por exemplo, socorrer um hóspede
que enfarta na quadra esportiva ao lado da piscina, hipótese em que, caso se omita em socorrê-
lo, praticará, apenas, omissão de socorro, e não homicídio, como ocorreria caso o resultado
lesivo morte adviesse de afogamento na piscina sob sua responsabilidade.
A manifestação de Jakobs e seu exemplo do salva-vidas parecem contraditórios, ainda,
com o que o autor defende, inclusive, no mesmo parágrafo em que os traz, quando reconhece
que a divisão dos deveres de garante entre proteção e vigilância, de acordo com a teoria
material, traz precisão aos deveres inerentes à posição de garantia na medida em que, no lugar
de um dever difuso quanto à sua direção, situa-o de forma orientada, ilustrando com o exemplo
de que, ao se reconhecer ser um cônjuge garante de proteção quanto ao outro, não se reconhece
qualquer dever de vigilância em favor de terceiros, se o outro cônjuge, de qualquer forma, os
põe em perigo172.
171
SANTOS, A moderna teoria do fato punível. p. 135.
172
JAKOBS, op. cit. p. 969.
62
173
Ibid. p. 972-93.
174
Ibid. p. 993-1009.
63
Aqui, a questão se revela mais simples: brevemente, é dever do garante fazer o que lhe
for possível para impedir o resultado lesivo, desde que este se dê sobre bens jurídicos que deve
ele proteger (na modalidade de garantia de proteção) ou decorra da fonte de perigo que lhe
incumbe vigiar (na modalidade de garantia de vigilância), configurando, nessa última hipótese,
perigo oriundo de descontrole quanto à manutenção dos riscos produzidos pela fonte vigiada
dentro dos níveis permitidos.
O primeiro requisito (a possibilidade de ação) é o mais elementar, estando expresso no
art. 13, §2º, do CPB. Diz-se elementar por ser, em verdade, antes mesmo de um elemento do
dever jurídico de agir, um pré-requisito seu, pois o Direito não pode exigir do indivíduo o
impossível, conforme brocardo ultra posse nemo obligatur.
Assim é que o referido dispositivo da Parte Geral comete um ligeiro deslize ao estatuir
que a omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o
resultado, afinal, correto seria o contrário da ordem dos verbos175, somente cabendo falar-se
em dever de agir quando se pode agir176.
O segundo elemento do dever de ação refere-se à qualidade do bem jurídico a ser
protegido, na modalidade de garantia de proteção, ou à do risco a ser controlado, na modalidade
de garantia de vigilância.
A relação de proximidade que justifica o estabelecimento da posição de garantidor de
proteção, já aqui analisada, não se dá sobre a pessoa, de forma genérica, mas sobre
determinados bens de seu interesse relacionados com a atuação do garante e, portanto,
acobertados pela aludida proximidade.
Exemplificativamente, no caso do professor de natação, os bens jurídicos de seus alunos
que se encontram acobertados pelo dever de garantia seriam, apenas, sua vida e sua integridade
física, e não, v.g., seu patrimônio, visto que, quanto a este, não há uma relação de proximidade
com a atuação do professor. Destarte, não há omissão penalmente relevante por parte deste na
hipótese de, mesmo podendo, não impedir um furto cometido por outrem que, durante a aula
de natação, subtrai bens deixados por um aluno sobre uma mesa, à beira da piscina, na presença
do professor.
Em sentido análogo, nas hipóteses de garantes de vigilância, a relação de proximidade
entre o garante e a fonte de perigo refere-se aos riscos específicos sobre os quais exerce ele
175
SANTOS, A moderna teoria do fato punível. p. 133.
176
A questão já foi tratada em seção anterior do trabalho (item 5.1.1), oportunidade em que se esclareceu que, em
verdade, ausente o poder de agir, não há, nem mesmo, omissão, vez ser aquele o elemento em comum entre ação
e omissão.
64
poderes de domínio e organização, não abarcando outros que, ainda que advindos da fonte
vigiada, não se refiram ao aspecto desta sobre o qual o garante exerce suas funções.
Para exemplificar o que se vem de dizer (e já introduzindo a temática do tópico
subsequente), tem-se que, no caso do dirigente empresarial - garante de vigilância sobre a fonte
de riscos empresa, o dever de garantia se restringe aos riscos típicos da atividade empresarial
(sobre a qual ele exerce poderes de domínio e organização), no que se inclui, como se verá,
perigos advindos de determinadas condutas de seus subordinados. Excluem-se, contudo,
resultados lesivos decorrentes de condutas de subordinados no contexto da empresa, se estas
não se referirem à atividade empresarial em si, fugindo, portanto, à zona de vigilância do
garante.
Assim é que, por um lado, o dirigente pode ser responsabilizado, em comissão por
omissão, por um ato de corrupção ativa (art. 333 do CPB) cometido por um subordinado no
exercício da atividade empresarial, conduta esta que lhe competia impedir177. Por outro lado,
não há que se falar em responsabilidade do superior se este mesmo subordinado, valendo-se do
momento em que um cliente se ausenta, deixando em sua mesa uma carteira, subtrai para si os
valores ali existentes, conduta praticada à margem da atividade empresarial, não se tratando se
risco abarcado pelo dever de garantia, ainda que, de forma remota, possa se sustentar advir,
também, do estabelecimento da fonte de perigo empresa.
Portanto, em delimitação objetiva aos deveres do garante, é de se ter, como pressuposto,
a factibilidade da ação de impedimento do resultado, ao que se deve somar a qualidade do bem
jurídico protegido ou do risco controlado, somente sendo abarcadas pela posição de garantia
situações fáticas sobre as quais possua o garante um domínio que lhe possibilite e, ademais, lhe
imponha intervir para evitar um resultado típico, o que dependerá de sua relação com o bem
protegido ou a fonte de perigo vigiada178.
177
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal empresarial: a omissão do empresário como crime. Belo
Horizonte: D’Plácido, 2016. p. 219-23.
178
Cerezo Mir pontua que o fundamento da posição de garante não pode ser meramente formal, mas material,
sendo critério a assunção fática, no caso concreto, de uma função de proteção de bem jurídico ou de controle da
fonte de perigo (CEREZO MIR, Derecho penal... p. 1142). No mesmo sentido, Rodríguez Mesa: “Dado que lo
que se trata es que mediante la asunción del compromiso el sujeto ostente, al igual que en la comisión activa, un
dominio específico de un riesgo concreto; es el ámbito del compromiso de cada garante el que va a determinar las
situaciones de garantía que le competen. Pero a su vez, el ámbito concreto del compromiso del garante dependerá
de la naturaleza específica de su relación con la fuente de peligro o con el bien jurídico afectado. (…) con
independencia de que la función asumida sea calificable de protección o de vigilancia, al sujeto sólo se le podrán
imputar los resultados típicos que sean consecuencia de la realización de un riesgo concreto que previamente se
había comprometido a neutralizar. (…) Lo relevante en todo caso es que tanto en los supuestos de protección de
un bien jurídico, como en los del control de una fuente de peligro, la asunción material e inequívoca de tales
funciones genere en el titular del bien jurídico o en terceros la confianza de que determinado sector de riesgo se
encuentra bajo control, y en consecuencia, no se adopten otras medidas de protección. Es en este sentido en el que
65
Nos itens anteriores deste capítulo, buscou-se tecer algumas breves notas quanto à
temática dos crimes omissivos; sua divisão em próprios e impróprios; e as subdivisões destes
últimos, a partir das características do dever de agir com que onerado o sujeito ativo do delito,
ao que se procedeu com o fito de apenas introduzir e situar a discussão a que ora se lança, em
raciocínio dedutivo do que até aqui enunciado de forma geral e abstrata quanto à figura da
omissão imprópria: o crime omissivo impróprio no Direito Penal empresarial, sendo garante o
empresário, dirigente empresarial ou superior hierárquico na estrutura organizacional da
sociedade empresária.
Para tanto, aplicar-se-ão a essa situação específica as noções acima trabalhadas, o que,
novamente, aqui se faz ainda a título meramente informacional, vez não ser este o cerne do
presente trabalho, mas a imputação dolosa do crime omissivo impróprio no Direito Penal
empresarial, especificamente em casos de cegueira deliberada do garante quanto à situação
típica.
Com esse intento, a temática será aqui introduzida, buscando-se delimitar, subjetiva e
objetivamente (como acima feito quanto à figura da omissão imprópria de forma genérica), a
posição de garantia no Direito Penal empresarial, com a profundidade estritamente necessária
para o desenvolvimento do estudo e ulterior prosseguimento para seu verdadeiro objeto.
se puede decir que el sujeto que se ha comprometido, al tomar en sus manos el control del riesgo, domina
totalmente el acontecer típico” (RODRÍGUEZ MESA, La Atribución de Responsabilidad... p. 126-8).
66
que desse novo ser normativamente reconhecido podem advir não só benefícios, mas também
riscos, muitos dos quais com repercussão penal.
Sendo sujeito passivo da obrigação tributária, a empresa é um locus potencial à
ocorrência de crimes contra a ordem tributária (Cáp. I da Lei 8.137/90). Desenvolvendo
atividades potencialmente danosas ao meio ambiente, a empresa se mostra como fonte potencial
de ilícitos ambientais (Lei 9.605/98179). Desempenhando atividades que possam vir a lesionar
fisicamente consumidores ou empregados, a empresa pode estar relacionada à eventual prática,
por exemplo, de crimes de homicídio ou lesão corporal; não sendo física a lesão a tais pessoas,
mas incidente sobre outros interesses jurídicos seus, pode-se aventar a eventual ocorrência de
crimes contra a relação de consumo (Cáp. II da Lei 8.137/90 e Título II do Código de Defesa
do Consumidor - CDC) e a organização do trabalho (Título IV da Parte Especial do CPB).
Isso sem falar de outros crimes que pressupõem, essencialmente, o contexto de uma
empresa: crimes falimentares (Cáp. VII da Lei 11.101/05), crimes contra o sistema financeiro
nacional (Lei 7.492/86), art. 177 do CPB (fraudes e abusos na fundação ou administração de
sociedade por ações), para nomear alguns.
Sendo, portanto, uma fonte de perigo, o responsável sobre a empresa, ou seja, aquele
que mantém sobre ela uma relação juridicamente fundada de controle e faticamente
assumida180, posta-se na posição de garante penal181.
Sob o aspecto material, o dever de garantia do empresário encontra fundamentação,
configurando hipótese de garante de vigilância, assistindo-lhe o dever de vigiar a empresa,
enquanto fonte de perigo, para que dela não advenham resultados danosos a terceiros182.
179
Não sendo demais lembrar que aqui reside a única hipótese positivada, no ordenamento jurídico brasileiro, de
responsabilidade penal da própria pessoa jurídica.
180
“Serão garantidores originários aquelas pessoas que tenham uma relação juridicamente fundada de controle
sobre a fonte de perigo empresa, que tem de ser confirmada pela assunção fática dessas tarefas. Essa relação dá
origem ao dever especial de vigiar pessoas, ou seja, um dever de garantidor. Com isso, estabelece-se o fundamento
material e legal da posição de garantidores dos dirigentes de empresas” (passagem destacada no original)
(ESTELLITA, Responsabilidade penal... p. 132).
181
“(...) también forma parte del contexto del dominio sobre una fuente de peligro la llamada responsabilidad del
titular de la empresa. A este respecto, se trata de la cuestión de si – y en caso afirmativo, en qué medida – el titular
o director de una empresa puede ser hecho responsable por un delito cometido en esa empresa, cuando, si bien no
lo ha promovido activamente, no lo ha fomentado, tampoco lo ha impedido. Los delitos de estas características –
teniendo en cuenta las condiciones de una amplia división del trabajo – raramente son ejecutados en forma personal
por el ‘titular de la empresa’; en muchas ocasiones, no se podrá probar su intervención activa. En estos casos, la
responsabilidad penal presupone un deber de garante de aquel que habría podido impedir la comisión del delito
mediante un acto de autoridad. (…) El único punto de conexión adecuado para un deber de garante en estos casos
podría residir, justamente, en la circunstancia de que los delitos son cometidos desde un ámbito de actividad
cerrado al exterior, sobre el que domina en exclusiva el director de la empresa” (destaque no original)
(STRATENWERTH, Derecho Penal... p. 395-6).
182
“El dueno del negocio solo tiene que vigilar los eventuales focos de peligro explotados por su empresa, a fin
de impedir, en lo posible, que puedan resultar de ellos lesiones de bienes jurídicos” (GIMBERNAT ORDEIG,
67
O dever de garantia do empresário abarca, portanto, os riscos não permitidos que possam
advir da empresa em si. Ficam excluídos riscos que, em que pese poderem se verificar no seio
da atividade empresarial, não configurarem expressão desta e não estiverem ligados
essencialmente à empresa183, como já se expôs alhures.
Nesse sentido, o resultado típico que deve o dirigente empresarial impedir é aquele
advindo da própria atividade empresarial184, impondo-se a limitação de tal dever de garantia
em função da natureza do risco de que se cuida.
Enrique. Omision impropia e incremento del riesgo en el Derecho penal de empresa. ADPCP, v. LIV, 2001. p.
18).
183
“(…) o empregado é um sujeito auto-responsável, de forma que ele deverá responder exclusivamente pela
comissão de fatos puníveis quando atua inteiramente como particular, mesmo no contexto fático da empresa.
Diferente é que o empregado cometa o delito utilizando o específico potencial de atuação – material ou jurídico –
que lhe é conferido enquanto membro da empresa. Em tais casos, de serem conhecidas as intenções delitivas do
subordinado, a cúpula da empresa não pode apelar àquela auto-responsabilidade nem ao âmbito do penalmente
permitido” (destaques no original) (ROBLES PLANAS, Ricardo. O “compliance officer” frente ao Direito penal.
Trad. Marília Bassetto. In: ROBLES PLANAS, Ricardo. Estudos de dogmática jurídico-penal: fundamentos,
teoria do delito e direito penal econômico. 2. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016. p. 250)
184
Ao que Renato Silveira se refere como delitos vinculados ao estabelecimento, expressão cunhada por Demetrio
Crespo, em oposição aos fatos cometidos com extralimitação: “(...) qual seria a obrigação do empresário? Evitar
qualquer delito cometido dentro da empresa ou somente delitos vinculados à empresa? Sem dúvida, e imaginando
o que se pode ter por liberdades perigosas em conflito, somente os chamados delitos vinculados ao
estabelecimento. (...) Outra situação existe nos fatos cometidos e praticados com extralimitação, nos quais o
funcionário age de forma independente, e não se verifica responsabilidade para o dirigente empresarial. Nesse
caso, o funcionário atua no exercício de sua esfera de liberdade, mesmo dentro de um contexto empresarial, não
sendo, no entanto, considerado como ato vinculado à empresa, ou, ao menos, ao seu interesse. Essa distinção diz
respeito, em última análise, ao domínio que os superiores têm sobre a base da organização hierárquica da empresa,
e pode, em que pese uma possível e eventual dificuldade conceitual, servir adequadamente para evitar uma
sobrecriminalização indireta do próprio dirigente” (SILVEIRA, Direito penal empresarial... p. 145-6). No mesmo
sentido: “Esta posición de garante no implicaría en cualquier caso la obligación de evitar cualquier delito cometido
en la empresa, sino sólo los llamados ‘delitos vinculados al establecimiento’. (…) la posición de garante de los
directivos de una empresa por los hechos penales cometidos por sus empleados, no es ni puede ser una de carácter
general, ni puede derivar de la mera infracción de un deber de vigilancia” (DEMETRIO CRESPO, Eduardo. Sobre
la posición de garante del empresario por la no evitación de delitos cometidos por sus empleados. Doutrinas
Essenciais de Direito Penal Econômico e da Empresa, v. 5, 2011. Acesso digital).
68
185
“La delegación es una técnica a través de la cual quien la acciona (delegante) tiene la posibilidad de
‘descargarse’ de sus funciones y competencias iniciales traspasándolas o transfiriéndolas a otra persona
(delegado). Con ella, tiene lugar una transformación de las esferas de responsabilidad individual tanto del sujeto
delegante como del delegado” (destaques no original) (MONTANER FERNÁNDEZ, Raquel. El criminal
compliance desde la perspectiva de la delegación de funciones. Estudios Penales y Criminológicos, Universidade
de Santiago de Compostela, v. XXXV, 2015. p. 742).
186
Rodríguez Mesa ressalta que a delegação de tarefas pode ser exatamente um meio para que se cumpra, de
maneira mais efetiva, a obrigação de tutela dos bens jurídicos (RODRÍGUEZ MESA, La Atribución de
Responsabilidad... p. 130), e, por certo, também da obrigação de controle da fonte de perigo.
187
ESTELLITA, Responsabilidade penal... p.145-6.
188
Ibid. p. 147-66.
189
Ibid. p. 154-60; SILVEIRA, Direito penal empresarial..., p. 156-64.
Em sentido contrário, Rodríguez Mesa entende que a delegação faz surgir novas posições de garante, inclusive
com a exoneração do garante primário (RODRÍGUEZ MESA, La Atribución de Responsabilidad... p. 130).
69
190
“(...) con la delegación el empresario no extingue su posición de garante, sino que la modifica. Así, los que eran
deberes de control y eyitación de sucesos lesivos pasan a convertirse en deberes de supervisión y vigilancia de la
labor del delegado” (DOPICO GÓMEZ-ALLER, Jacobo. Posición de garante del compliance officer por
infracción del “deber de control”: una aproximación tópica. In: ARROYO ZAPATERO, Luis; NIETO MARTÍN,
Adán. El derecho penal económico en la era compliance. Valencia: Tirant lo Blanch, 2013. p. 172-3).
191
“(...) a delegação corretamente efetuada modifica a posição jurídica do delegante, liberando-o dos deveres
inerentes ao âmbito de competência de que se trate, pois, do contrário, careceria por completo de sentido que se
realizasse a delegação. Agora, o delegante mantém o poder de revogação da delegação, o que significa que de
algum modo lhe incumbe aquilo que o delegado organize” (ROBLES PLANAS, O “compliance officer”... p. 251).
192
“A delegação constitui novo garantidor. É caso clássico de posição de garantidor por assunção, prevista
expressamente no art. 13, §2º, b, do CPB. E como em toda assunção, ela só se conforma quando o delegado passa
a exercer a atividade assumida, com o que deixa o delegante de praticar pessoalmente as funções e tarefas que
delegou. (...) é essa ideia de assumir o feixe de atividades e deveres com o correlato abandono, pelo garantidor
originário, das atividades delegadas, que fundamenta a constituição da posição de garantidor no delegado, que
recebe, assim, os deveres de proteção e/ou vigilância e controle inerentes às atividades e funções assumidas. Essa
transferência de funções e tarefas implica, de um lado, a constituição de um novo garantidor (o delegado/garantidor
secundário), de outro, a exoneração parcial do delegante (garantidor originário). No âmbito das estruturas verticais,
pois, o fundamento da constituição de garantidores por excelência é a assunção” (destaque no original)
(ESTELLITA, Responsabilidade penal..., p. 148).
193
Ibid. p. 145 e ss.
70
domínio, com exclusividade, sobre a fonte de perigo, por força dos fluxos decisórios no seio da
empresa (foca-se, aqui, na possibilidade de agir, apenas para se demonstrar que a distância física
pode não afastá-la; contudo, convém lembrar que a possibilidade de intervir para evitar o
resultado não basta à configuração do crime omissivo impróprio, devendo a ela se somar o
dever de fazê-lo)194. Assim, exemplificativamente, o dirigente empresarial, ainda que esteja na
sede da sociedade, tem plenas condições de, mediante um comando, impedir que se materialize
um ilícito ambiental decorrente de conduta de empregados de uma planta industrial situada em
outro Estado.
Portanto, necessário que se fixe como premissa que a distância entre o dirigente
empresarial (garante) e a situação típica de perigo, tanto objetiva (física), quanto subjetiva
(existência de interpostas pessoas na estrutura empresarial), para que caiba falar-se em crime
omissivo impróprio, deve ser tal que, diante dos poderes diretivos do sujeito, não lhe torne
impossível, do ponto de vista objetivo, a atuação no sentido de evitar o resultado advindo da
situação fática de perigo.
O aspecto mostra-se polêmico e renderia pesquisas adicionais, incabíveis nesta
Dissertação por fugirem de seu objeto, pelo que, para se aprofundar o estudo na imputação
dolosa do crime omissivo impróprio do dirigente empresarial, tomar-se-á, doravante, como
premissa superada o atendimento a todos os requisitos de tipicidade e imputação objetivas da
conduta omissiva, sem os quais, por certo, não haveria que se analisar o dolo, dada a ordem de
prejudicialidade das questões.
Assim, ao se discutir, a seguir, a imputação por dolo, necessário deixar claro, desde já,
que se toma por atendida a imputação objetiva, é dizer, não mais se discutem a configuração de
uma conduta omissiva, a posição de garantia penal do indivíduo e seu dever (do qual é
pressuposto o poder fático, objetivo, de atuar, conforme já posto) de agir para impedir um
resultado típico configurador de risco não permitido gerado pela empresa.
194
Ibid. p. 109-17, 131-4.
72
195
Ibid. p. 79.
196
COSTA, Dolo penal... p. 236; ZAFFARONI; SLOKAR; ALAGIA, Derecho Penal... p. 583.
197
HORTA, Frederico. Elementos normativos das leis penais e conteúdo intelectual do dolo: da natureza do erro
sobre o dever extrapenal em branco. São Paulo: Marcial Pons, 2016. p. 161-6; SERRA, Teresa. Problemática do
erro sobre a ilicitude. Coimbra: Almedina, 1985. p. 26-30; FELIP i SABORIT, David. Error iuris: el conocimiento
de la antijuricidad y el artículo 14 del Código Penal. Barcelona: Atelier, 2000. p. 39-43.
198
BRODT, Luís Augusto Sanzo. Da consciência da ilicitude no direito penal brasileiro. Belo Horizonte: Del
Rey, 1996. p. 91-6; HORTA, op. cit. p. 145-53; TOLEDO, Francisco de Assis. O Erro no Direito Penal. São
Paulo: Saraiva, 1977. p. 6-14; GOMES, Luiz Flávio. Erro de tipo e erro de proibição. 5. ed. São Paulo: RT, 2001.
p. 66–75; BITENCOURT, Cezar Roberto. Erro de tipo e erro de proibição: uma análise comparativa. 3. ed. São
Paulo: Saraiva, 2003. p. 89-90; DUARTE, José A. Caetano. O erro no Código Penal. Lisboa: Vega Universidade,
1984. p. 32-3, 35-6; FELIP i SABORIT, op. cit. p. 28-31, 34-8; MUÑOZ CONDE, Francisco. El error en derecho
penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1989. p. 25-32; ARIAS EIBE, Manuel José. El error en Derecho Penal en el
Código de 1995. Madrid: Editorial Dykinson S.L., 2007. p. 43-7; DÍAZ y GARCÍA CONLLEDO, Miguel. El
error sobre elementos normativos del tipo penal. Madrid: La Ley, 2008. p. 165-7.
199
HORTA, op. cit. p. 166-73, 201-12; GOMES, op. cit. p. 97-111; BITENCOURT, op. cit. p. 90-4; DUARTE,
op. cit. p. 33-5; MUÑOZ CONDE, op. cit. p. 32-41; ARIAS EIBE, op. cit. p. 47-53; DÍAZ y GARCÍA
CONLLEDO, op. cit. p. 167-73. Comentando as teorias da culpabilidade (p. 97-105), Luís Augusto Sanzo Brodt
sintetiza: “O conhecimento da ilicitude, para essa teoria, é elemento da culpabilidade, autônomo em relação ao
dolo. O dolo, conceituado naturalisticamente, ou seja, como consciência e vontade de praticar o tipo objetivo é
deslocado da culpabilidade para o tipo penal. A consciência da ilicitude, assim, desvinculada do dolo, não necessita
apresentar-se no mesmo grau que o conhecimento dos elementos sobre os quais o dolo incide. Entende-se, então,
que à culpabilidade basta a potencial consciência da ilicitude. Nesse contexto, a falta de consciência da ilicitude
acarreta a exclusão da culpabilidade (se inevitável) e a atenuação da pena (quando evitável). O dolo não é afetado
pela ausência do conhecimento da ilicitude, que não mais faz parte do seu conteúdo” (BRODT, op. cit. p. 97).
Também Assis Toledo: “As denominadas ‘teorias da culpabilidade’ (Schuldtheorien) têm como pano de fundo a
doutrina finalística de Welzel. Decompõem o dolo da (...) concepção normativa e dele extraem a ‘consciência da
ilicitude’ que é inserida na culpabilidade. O que resta, isto é, o ‘dolo do fato’, (...) é transferido para o interior do
injusto como elemento direcional, finalístico, da ação” (TOLEDO, op. cit., p. 20). Para uma análise crítica do atual
estado das teorias da culpabilidade no Direito Penal brasileiro, cf. HORTA, Frederico. Da limitada teoria estrita
da culpabilidade: crítica ao tratamento das descriminantes putativas no projeto de Código Penal (Projeto de Lei
236/2012). Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 113, 2015. p. 15–39.
200
Assis Toledo traz a origem do termo do latim, em que o dolus bonus designaria a astúcia e o dolus malus seria
o engano a que se seguia um proveito ilícito ou, também, “a intenção perversa que dirige um ato delituoso”
(TOLEDO, op. cit. p. 10).
74
com o dolus naturalis: axiologicamente neutro, tendo por objeto, unicamente, fatos, sem
abarcar a ilicitude destes201.
Absolutamente necessário distinguir, portanto, os pressupostos fáticos da posição de
garantia e o dever de garante, na medida em que cada um constitui objeto de uma categoria
distinta – aqueles, do dolo; este, da consciência da ilicitude202.
Nesse sentido, relacionado ao dever de garante, há o erro de mandamento, em
paralelismo ao erro de proibição – neste, o agente erra quanto a uma proibição, entendendo
permitida uma conduta, em verdade, proibida; naquele, o omitente erra quanto a um
mandamento, entendendo livre uma conduta obrigatória203.
Estabelecido que a referência do dolo são os elementos do tipo objetivo, e não incluído,
dentre estes, o dever de agir em si, mas apenas seus pressupostos fáticos, conclui-se que, de
fato, o dolo não há de se integrar por aquele, mas apenas por estes, sendo um problema de
culpabilidade a questão da consciência do dever de agir e da ilicitude do não agir.
Posto isso, esclareça-se que não constitui objeto de estudo o erro de mandamento, pois
a cegueira deliberada que aqui interessa se dá quanto a fatos, não quanto ao dever jurídico de
agir, pelo que se pode sintetizar, por ora, que a referência do dolo no crime omissivo impróprio
é o conjunto dos elementos típico-objetivos, já acima enumerados, sublinhando-se que, quanto
à posição de garantia penal, importam, aqui, os fatos que a conformam, não o dever que destes
exsurge204.
201
Em sentido diverso, Luiz Flávio Gomes: “Se de um lado é certo que o dolo natural refuta a consciência da
ilicitude em seu conteúdo, de outro, tampouco parece correto afirmar que o conceito de dolo seja neutro
(axiologicamente). Dolo natural, portanto, significa realizar uma conduta (com consciência e vontade) que foi
valorada (negativamente) pelo legislador. Dolo, em suma, sempre revela uma carga negativa. Sempre significa
realizar algo que não é permitido” (GOMES, op. cit. p. 65). Parece haver alguma confusão na proposição do autor,
pois, ao se falar em neutralidade axiológica do dolo, por óbvio não se está a falar que a conduta em si é
axiologicamente neutra, sendo certo que ela foi valorada negativamente pelo legislador, inclusive da forma mais
extremada que se conhece no Direito, qual seja, a tipificação como crime. A neutralidade axiológica do dolo refere-
se, apenas, à sua separação da consciência da ilicitude. O desencontro na passagem está em que a “carga negativa”
reside não no dolo em si, mas na conduta criminosa como um todo. Inclusive, não pode passar despercebida a
absoluta impropriedade da afirmação de que o dolo “sempre significa realizar algo que não é permitido”,
olvidando-se o autor de que condutas típicas (portanto, dolosas), porém acobertadas por alguma causa justificante
a afastar sua ilicitude (legítima defesa, por exemplo), são permitidas.
202
“El deber de garante no es objeto del dolo de tipo. La consciencia de contravenir un mandato es la consciencia
del injusto del delito de omisión, al igual que en el delito de comisión la consciencia de infringir la prohibición es
la consciencia del injusto; ambas pertenecen a la culpabilidad (teoría de la culpabilidad). Ahora bien, el
conocimiento de la posición de garante, como conocimiento de los elementos que caracterizan al garante, pertenece
al dolo (…)” (destaques no original) (JAKOBS, Derecho penal... p. 1015-6).
203
TOLEDO, op. cit. p. 63-5, 105-7; BRODT, op. cit. p. 77-8; BITENCOURT, op. cit. p. 110-1; BIERRENBACH,
Crimes omissivos impróprios... p. 114-5; ZAFFARONI; SLOKAR; ALAGIA, Derecho Penal... p. 584;
WESSELS, Direito Penal... p. 166. Diferenciando o erro de tipo do que intitula erro sobre a ilicitude, cf. SERRA,
op. cit. p. 66-8.
204
ESTELLITA, Responsabilidade penal... p. 286; TAVARES, Teoria... p. 393-4.
75
É oportuna uma breve exposição quanto ao dolo nos crimes omissivos para a teoria
finalista, visto que, a despeito de todo o mérito do Finalismo em fundamentar o deslocamento
do dolo para o âmbito do tipo205 e sua separação da consciência da ilicitude, no que é digno de
reconhecimento pelo salto qualitativo que imprimiu ao debate em comparação às proposições
do sistema causalista, tem-se que, especificamente quanto aos crimes omissivos (próprios e
impróprios, indistintamente), os finalistas, de uma forma geral, se perderam em meio a
dificuldades por eles mesmos criadas, falhando em formular um conceito metodologicamente
adequado de dolo nessa espécie delitiva e chegando a conclusões que merecem algumas
considerações.
Como se sabe, no Finalismo, em que a ação é tida como o exercício de uma atividade
final, a vontade ocupa posição de destaque no juízo de tipicidade, integrando o dolo, ao lado do
conhecimento do fato. Essa vontade é vista como o móvel de uma conduta desencadeadora de
um processo causal que se desenvolve em direção ao fim visado pelo agente: a vontade de que
a vítima morra guiaria, assim, a conduta de matá-la; a vontade de ter, para si, coisa alheia móvel
guiaria a conduta de dela se apropriar206.
Entretanto, como aqui já se pôde perceber, a conduta omissiva, diferentemente da
comissiva, nada cria por si só, não desencadeia um processo causal novo; em verdade, ela
apenas permite que cursos causais já em desenvolvimento, alheios ao omitente, prossigam sem
a intervenção deste, sem os auxiliar ou os prejudicar.
Assim sendo, o Finalismo, ainda preso a uma concepção volitiva do dolo, encontrou
aqui uma encruzilhada relativa a como reconhecer a vontade, vista como fator de
desencadeamento e direcionamento de cursos causais207 e elemento essencial do dolo, em uma
conduta passiva, que não cria ou interfere em um curso causal 208, sendo que, a se admitir pela
205
WELZEL, Hans. El nuevo sistema del derecho penal: una introducción a la doctrina de la acción finalista. Trad.
José Cerezo Mir. Buenos Aires: B de f, 2004. p. 97-105.
206
Ibid. p. 41 e ss.
207
“Este dirigir el acontecer causal externo a un fin, el configurar el proceso causal, es esencial para la voluntad
de realización. Tal operar en el proceso causal externo falta desde un principio en el ámbito del omitir”
(KAUFMANN, Dogmática... p. 90).
208
“(…) desde el momento en que la naturaleza del delito omisivo se caracteriza precisamente por la no ejecución
de una acción, parece faltar aquí desde un principio la finalidad y, con ella, el punto de partida para el
desplazamiento del dolo al ámbito del injusto” (destaque no original) (GALLAS, La teoría del delito... p. 55).
Também Bacigalupo, ao pontuar: “El concepto de dolo de los delitos de comisión, entendido como voluntad de
realización del tipo, no puede pasar directamente a los delitos de omisión, pues la categoría de la finalidad depende
de la causalidad y si falta esta última no habrá ‘voluntad de realización de la omisión’” (BACIGALUPO, Enrique.
Delitos impropios de omisión. Buenos Aires: Ediciones Pannedille, 1970. p. 168).
76
inexistência de vontade, a inferência lógica seria, conforme a própria teoria, a ausência de dolo
nos crimes omissivos209.
Propôs-se então, como saída, a ideia de que o dolo no crime omissivo seria, em verdade,
um quase dolo, vez que desprovido de um de seus elementos essenciais – a vontade210.
Trata-se de uma discussão afeta ao campo das teorias volitivas do dolo, pois são elas
que criam essa dificuldade, ao incluírem a vontade psicológica como elemento essencial do
dolo211. Superadas tais teorias, mediante afastamento da vontade psicológica do posto de
elemento indispensável ao dolo212, o problema não mais subsiste.
Em verdade, interessa mesmo à pesquisa não tanto esse aspecto do trato finalista do dolo
na omissão, mas um segundo problema criado pelos proponentes da teoria, este sim influente
mesmo fora das teorias volitivas do dolo.
É que, com Welzel e Kaufmann, o conhecimento da situação típica foi posto como
elemento da capacidade de ação, sendo esta, a seu turno, conforme já visto, um elemento
essencial da omissão penalmente relevante.
209
“O princípio vigorante para os delitos comissivos, de que o dolo é a ‘consciência e vontade acerca da realização
do tipo’ (...), só serve analogamente para a omissão, pois aqui falta um fazer ativo conduzido pela vontade de
realização” (destaque no original) (WESSELS, Direito Penal... p. 166). No mesmo sentido: “Al no existir en la
omisión ni relación de causalidad ni voluntad de realización, el dolo en los delitos de omisión tendrá que ser
concebido de un modo diferente que en los delitos de acción. El dolo, en la omisión, consistirá simplemente en la
conciencia de la no realización de una acción con conocimiento de la capacidad concreta de acción” (CEREZO
MIR, Derecho penal... p. 1130-1). Há, contudo, posicionamento no sentido de ser possível falar-se em vontade
também no dolo em crimes omissivos, a qual consistiria na decisão pela inação, diante da situação típica (nesse
sentido, cf. BIERRENBACH, Crimes omissivos impróprios... p. 95). Note-se, contudo, que aqui o sentido
conferido ao termo vontade é diferente.
210
KAUFMANN, Dogmática... p. 127-43, 313-6. Regis Prado propõe a substituição da vontade, no dolo do crime
omissivo, pela consciência da situação de perigo ao bem jurídico e do modo de realização da ação que pode evitá-
lo, à qual se resumiria o dolo na omissão, composto apenas por um elemento intelectual. Contudo, adotando o
entendimento, já criticado em seção anterior deste trabalho (Capítulo 3), de que o art. 18 do CP conceitua dolo,
busca reconhecer, também nos crimes omissivos, um elemento intelectual e um volitivo, identificando este como
a vontade de não realização da ação mandada (PRADO, Tratado... p. 566-7). Tavares segue o mesmo caminho,
sustentando que, pela redação do Código, não se prescinde jamais do elemento volitivo na configuração do dolo,
o qual o autor identifica, no crime omissivo, na decisão pela não execução da ação possível e necessária
(TAVARES, Teoria... p. 393).
211
“Como consecuencia de la influencia de la teoría de la voluntad, se consideró que las reglas del dolo
desarrolladas para los delitos de comisión no podían aplicarse al dolo en los de omisión, por lo que se sostuvo la
necesidad de una adaptación ante la inexistencia de un hacer positivo que fuera portador de una voluntad de
realización. Así, la negación de una intención omisiva fue decisiva para que se considere que no debía hablarse de
dolo en la omisión, optándose por la expresión cuasidolo, para aludir a una voluntad equivalente en el ámbito del
tipo subjetivo del delito omisivo, cuya concurrencia fue afirmada tanto en los casos de dolo directo como eventual.
Con el acotamiento del concepto de dolo que es consecuencia de la adopción de la teoría de la representación, se
admite que también en el delito de omisión el dolo es la apreciación seria de que la realización del tipo objetivo es
(al menos) probable, a lo que se agrega que la conciencia en la omisión no tiene que ser reflexiva, por lo que al
igual que en dolo del delito de comisión, basta la conciencia como imagen mental fáctica” (RIGHI, Esteban. La
imputación subjetiva. Buenos Aires: AdHoc, 2002. p. 85-6).
212
O ponto será objeto de exposição em seção posterior deste trabalho (Capítulo 8).
77
213
WELZEL, Hans. Derecho Penal Aleman: parte general. 11. ed. Santiago: Editorial Juridica de Chile, 1976. p.
277, 282-3, 291-2.
214
KAUFMANN, Dogmática... p. 57.
215
SANTOS, A moderna teoria do fato punível. p. 132-3.
216
WESSELS, Direito Penal... p. 162.
78
droga ilícita, caso o pó branco que ali esteja acondicionado não seja o produto imaginado, mas
sim cocaína.
Não há dúvidas de que, nesse exemplo, fazem-se presentes a ação de transportar droga
ilícita e a tipicidade objetiva da conduta prevista no referido dispositivo legal, estando ausente,
apenas, o dolo, dada a configuração, nesse exemplo, do erro de tipo; e, estando presente a ação,
por corolário, há a capacidade de ação, já que aquela, conforme dito, é a efetivação desta.
Basta, portanto, trasladar a proposição de Kaufmann ao âmbito dos crimes comissivos
para se deixar clara sua impropriedade: se a capacidade de ação é pressuposto comum tanto da
ação, quanto da omissão, e se o conhecimento fático é pressuposto daquela, então jamais se
caracterizaria o erro de tipo – ou o sujeito teria conhecimento do fato e, portanto, não estaria
em erro, ou não o teria, formulando uma representação equivocada da realidade, e, assim, seria
incapaz de ação, nem mesmo se chegando ao exame da tipicidade, portanto.
Reafirma-se, assim, a ideia de que a capacidade de ação deve ser entendida de forma
objetiva, despida de qualquer influência de aspectos subjetivos, como o conhecimento 217. Um
sujeito que não possui porção alguma de substância entorpecente ao seu alcance não é capaz de
transportar droga ilícita218, por mais que o queira ou que pense se tratar de substância tal o
material que possui em suas mãos e que, na verdade, droga não é; um sujeito que possui uma
porção de droga é capaz da ação de transportar esse objeto, por mais apartado que esteja da
ciência acerca de sua real natureza, crendo tratar-se de coisa diversa, que não droga ilícita.
A exigência do conhecimento como pressuposto da capacidade de ação se mostra
incompatível não só com a figura do erro de tipo (que pressupõe a prática de uma conduta
penalmente relevante e objetivamente típica), mas, também, com a culpa inconsciente, como
adverte Silva Sánchez:
217
Lacruz López entende que a capacidade de ação exige a mera possibilidade de conhecimento do fim da ação,
sendo desnecessária a representação efetiva (LACRUZ LÓPEZ, Comportamiento omisivo... p. 429, 454-9).
218
Por óbvio, não se cogita, aqui, de concurso de agentes ou autoria mediata.
79
Oportuno observar, ademais, que a confusão entre objetivo/subjetivo nesta seara não
está superada ou contida nas proposições teóricas do Finalismo, mas ainda se faz notar
hodiernamente, inclusive nos casos de crimes omissivos impróprios no âmbito empresarial, em
que, não raro, há o (falso) entendimento de que o dever de agir nasce com o conhecimento da
situação fática, ou seja, o garante deveria atuar, apenas, em relação àquelas situações de que ele
tivesse conhecimento220.
Nada mais impróprio, na medida em que, assim como a capacidade de ação, o dever de
agir, próprio da figura de garantia penal, é objetivo, antecedendo todo e qualquer elemento
subjetivo, como o conhecimento.
Ora, não é o fato de conhecer a situação de perigo que torna alguém garante221; a pessoa
já ocupa essa posição previamente, em virtude da posição de proximidade com o titular do bem
jurídico que reclama proteção ou de controle sobre uma fonte de perigo, estando a questão do
conhecimento acerca da situação fática afeta, unicamente, ao dolo, jamais à tipicidade objetiva,
locus adequado do dever de agir, integrante que é, repita-se, do tipo objetivo do crime omissivo
impróprio222.
Corrigem-se, assim, os dois problemas postos pelo Finalismo quanto ao dolo no crime
omissivo: quanto à questão da vontade psicológica, fica ela afastada do conceito de dolo,
adotando-se uma teoria normativa que não a põe como elemento essencial do dolo; quanto à
219
SILVA SÁNCHEZ, El delito de omisión... p. 46-7. Se o caso do sujeito que, desconhecendo a existência de
uma situação de perigo para um bem jurídico (embora podendo conhecê-la), não atua, configura hipótese de culpa
ou dolo, é questão que se reserva para momento posterior neste trabalho (Capítulo 8). Por ora, o que se busca
demonstrar, apenas, é que hipótese de ausência de omissão isto não é.
220
Parece seguir essa linha Letícia Burgel, para quem “no momento em que o agente tivesse conhecimento da
conduta típica de terceiro ele passaria a figurar como garante” (BURGEL, A teoria da cegueira deliberada... Acesso
digital).
221
Discorda-se em absoluto, assim, da lição de Welzel, para quem “El deber de garante, como deber de ejecutar
una acción voluntaria, no nace, como la obligación jurídico-patrimonial de prestar alimentos del progenitor, ya
con la existencia de los presupuestos externos de la posición de garante (o sea, por ejemplo, con el nacimiento del
niño), sino sólo en el momento en que el afectado toma conocimiento de los presupuestos de la posición de garante,
o sea, conocimiento de que ha sido padre (…). Si la relación del garante con el bien jurídico concreto es de carácter
totalmente individual, el deber de garante como deber especial de impedir el resultado nace sólo en el instante en
que el omitente ha reconocido el bien jurídico en su individualidad: El padre queda obligado a impedir el resultado,
en el sentido de un delito de omisión impropio doloso, sólo cuando reconoce como hijo propio al niño que se está
ahogando” (WELZEL, Derecho Penal Aleman... p. 301).
222
“É evidente, pois, que, para que o dirigente garantidor possa intervir na situação de perigo criada por um
integrante da empresa, terá de ter conhecimento da situação típica (...), já que um dos elementos do tipo objetivo
dos crimes omissivos. Poderia parecer que o conhecimento ‘faria surgir’ o dever de agir (...). A impressão é
equivocada e manifesta confusão entre pressupostos do tipo objetivo e do tipo subjetivo (doloso). O dever de agir
existe objetivamente a partir do momento em que surge a situação típica, independentemente do conhecimento
que dela tenha o garantidor” (ESTELLITA, Responsabilidade penal... p. 289).
80
questão do conhecimento da situação típica, integra este o dolo, jamais a capacidade de ação223,
que é puramente objetiva.
223
“En definitiva, el concepto de omisión que parece más factible no precisaría del conocimiento de la situación
típica, en contra de lo señalado por la tesis finalista” (SILVA SÁNCHEZ, El delito de omisión... p. 52).
81
224
ESTELLITA, Responsabilidade penal... p. 287-9, 291-2.
82
tratamento, diretamente no leito de um rio próximo à fábrica) está um ponto geográfico, qual
seja, a fábrica, e o sujeito se encontra em outro, qual seja, a sede da empresa, situada em outra
cidade.
Assim, para que dados desse fato cheguem ao sujeito, deverão ser por este buscados
(exercendo atividades de vigilância e controle próximo, com inspeções pessoais, por exemplo)
ou a ele levados (estabelecimento de canais de denúncia de irregularidades, cobrança de
relatórios dos empregados, contratação de agentes intermediários com a específica função de
controlar as atividades e reportar os problemas etc.); naturalmente, sem qualquer esforço
humano nesse sentido, isso não acontecerá, e o garante não virá a ter qualquer dado referente à
situação típica, prejudicando a conformação do dolo do correspondente crime omissivo
impróprio.
Ocorre que, tratando-se de pessoas livres, responsáveis pela condução de suas próprias
vidas, podem escolher não tomar efetivo conhecimento de um fato que lhes seja apenas
acessível (nem imposto, nem inacessível) e não permitir que dados referentes ao ocorrido lhes
sejam participados, como já foi aqui tratado (Capítulo 4).
Uma pessoa que esteja no Brasil, com acesso a um dispositivo eletrônico conectado à
internet, pode vir a saber como está a movimentação da Bolsa de Valores de Nova York naquele
instante, porém, caso não queira saber, basta não procurar a informação; um pai ou uma mãe
que deixa seus filhos, crianças, sozinhos em casa, e vai para o trabalho, pode vir a ter
conhecimento da situação dos menores, seja telefonando periodicamente para casa, seja
deixando seu telefone sempre ligado, pronto para receber qualquer ligação dos filhos, seja
instalando câmeras de vigilância na casa e assistindo às imagens em tempo real. Contudo, caso
decida não ter tal conhecimento, pode, também, não ir à sua procura e, ademais, bloqueá-lo,
não telefonando, desligando seu telefone e não instalando câmeras de vigilância ou, ainda,
instalando-as, mas não assistindo às imagens.
O conhecimento (possível, por óbvio) de fatos tais está, portanto, nas mãos do sujeito
racional, que pode escolher obtê-lo ou não.
Puppe, comentando o difundido exemplo de cegueira diante dos fatos aventado por
Jakobs, referente ao caso de um terrorista que lança seu carro sobre um policial que lhe ordena
a parada, sem sequer considerar a possibilidade de lesão ou morte - pois a vida de um policial
não lhe parece digna de consideração, observa, com propriedade, que a questão se relaciona,
em verdade, com o aspecto volitivo do dolo (é dizer, se essa indiferença em relação ao resultado
83
desnaturaria ou não o dolo), não com o cognitivo225, pois o fato está escancarado, bem à sua
frente.
Assim, em um caso como esse, é certo que, como aqui dito, o conhecimento se impõe
de forma natural ao agente, conforme também observado por Puppe. Entretanto, sua conclusão
de que “o autor (...) não é senhor a respeito daquilo que ele conhece ou deixa de conhecer”226
não pode ser geral, como se pretende, merecendo uma ressalva: quanto a fatos fisicamente
distantes do autor, é possível que ele seja, sim, senhor do que conhece ou deixa de conhecer,
ou, conforme posto por Gabriel Pérez Barberá, “el autor es soberano para representarse lo que
quiera (o lo que pueda)”227, e fatos dessa natureza são de especial importância para o Direito
Penal nos casos de crimes omissivos impróprios.
O estado de cegueira deliberada, que, como aqui já se expôs, pode se manifestar das
mais variadas formas e em relação às situações fáticas mais distintas, não necessariamente de
conteúdo jurídico-penal, pode, igualmente, ser adotado pelo agente garantidor, ao optar por não
tomar conhecimento de determinado fato.
Heffernan reconhece esse fenômeno, especificamente no âmbito empresarial, e pontua
que, apesar de muitos dirigentes empresariais admitirem que um dos maiores desafios ao se
comandar uma grande empresa é, exatamente, saber o que se passa dentro dela, muitos adotam
estilos de liderança que asseguram que ninguém jamais lhes dirá a verdade. A autora
exemplifica suas observações com o caso real de Roger Smith, CEO da General Motors durante
a década de 1980, que diz ter sido notório por se livrar de qualquer executivo ou board member
que lhe levasse informações ou pontos de vista difíceis ou dissonantes228.
A resposta penal adequada a essa situação desafia uma revisitação dos institutos
correlatos de Direito Penal, sendo necessário avaliar o grau de conhecimento que requer o dolo
e as consequências de diferentes níveis de déficit cognitivo, diferenciando, ainda, aqueles
controlados pelo agente dos não controlados.
Com esse intento, algumas premissas sobre a matéria devem ser esclarecidas.
Conforme já posto no Capítulo 4, podem ser classificadas como sendo de cegueira
deliberada situações que encerram diferentes níveis de conhecimento, desde a dúvida, a
suspeita, fundada em indícios cuja confirmação o agente decide não buscar, até o absoluto
desconhecimento, fruto da decisão consciente de não conhecer.
225
PUPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. Trad. Luís Greco. Barueri: Manole, 2004. p. 10-1.
226
Ibid. p. 10.
227
PÉREZ BARBERÁ, El dolo Eventual... p. 675.
228
HEFFERNAN, Willful blindness... p. 95.
84
apenas aquele advindo de uma delas – a deliberação do agente em não obter conhecimento.
Destarte, qualquer caso em que o garante não tenha conhecimento da situação típica por outras
razões está fora do conceito de cegueira deliberada e, portanto, não constitui objeto desta
pesquisa.
Prosseguindo, ainda, no mesmo exemplo do diretor de segurança ambiental, este pode,
por hipótese, desconhecer a situação típica ativadora do seu dever de atuação devido a um
deficiente programa de compliance, em que a informação não chega a si por falta de previsão
de canais de comunicação ou de meios de fiscalização; devido a mero esquecimento ou
negligência no exercício de suas funções, na hipótese de a informação chegar a si (por
comunicação interna ou e-mail, por exemplo) e ele, por lapso ou incompetência, deixar para
abri-la logo em seguida a determinada tarefa mais urgente e vir a se esquecer de fazê-lo; ou
devido à má fé de algum empregado que, de posse da informação, obsta a que esta chegue ao
superior (o empregado que pratica a conduta comissiva geradora do resultado lesivo o faz de
forma absolutamente escondida e indetectável pelo sistema de fiscalização da empresa ou,
ainda, o compliance officer, de posse da informação, decide não a apresentar ao superior,
enviando-lhe relatórios que omitem o dado e dão a imagem de tudo estar regular no setor
controlado).
Portanto, de suma importância, neste ponto, a observação feita no Capítulo 4, ao se
conceituar cegueira deliberada: ao se tratar da cegueira deliberada do agente garantidor, refere-
se, sempre, às hipóteses de desconhecimento provocado, consciente, produto de uma decisão
do sujeito no sentido de não obter a informação que lhe é acessível, jamais a casos de
desconhecimento fruto de negligência, de incompetência, da má-fé de terceiros, de caso fortuito
etc., cujas respostas penais hão de ser distintas e não constituem objeto específico desta
pesquisa.
Delimitado está, nesses termos, o que aqui se chama de cegueira deliberada do garante:
situações em que o agente garantidor (na hipótese de estudo, o garantidor por vigilância no
contexto empresarial) não possui conhecimento da situação típica de perigo apenas porque
decide, consciente e livremente, não permitir que ele chegue a si, conhecimento este que lhe é
acessível e que, não fosse essa barreira deliberadamente oposta, chegaria regularmente.
Artigo 28
Responsabilidade dos Chefes Militares e Outros Superiores Hierárquicos
Além de outras fontes de responsabilidade criminal previstas no presente
Estatuto, por crimes da competência do Tribunal:
a) O chefe militar, ou a pessoa que atue efetivamente como chefe militar, será
criminalmente responsável por crimes da competência do Tribunal que
tenham sido cometidos por forças sob o seu comando e controle efetivos ou
sob a sua autoridade e controle efetivos, conforme o caso, pelo fato de não
exercer um controle apropriado sobre essas forças quando:
i) Esse chefe militar ou essa pessoa tinha conhecimento ou, em virtude das
circunstâncias do momento, deveria ter tido conhecimento de que essas forças
estavam a cometer ou preparavam-se para cometer esses crimes; e
ii) Esse chefe militar ou essa pessoa não tenha adotado todas as medidas
necessárias e adequadas ao seu alcance para prevenir ou reprimir a sua prática,
ou para levar o assunto ao conhecimento das autoridades competentes, para
efeitos de inquérito e procedimento criminal.
b) Nas relações entre superiores hierárquicos e subordinados, não referidos na
alínea a), o superior hierárquico será criminalmente responsável pelos crimes
da competência do Tribunal que tiverem sido cometidos por subordinados sob
a sua autoridade e controle efetivos, pelo fato de não ter exercido um controle
apropriado sobre esses subordinados, quando:
a) O superior hierárquico teve conhecimento ou deliberadamente não levou
em consideração a informação que indicava claramente que os subordinados
estavam a cometer ou se preparavam para cometer esses crimes;
b) Esses crimes estavam relacionados com atividades sob a sua
responsabilidade e controle efetivos; e
c) O superior hierárquico não adotou todas as medidas necessárias e
adequadas ao seu alcance para prevenir ou reprimir a sua prática ou para levar
o assunto ao conhecimento das autoridades competentes, para efeitos de
inquérito e procedimento criminal.229
Vê-se que tal dispositivo delimita os requisitos da responsabilidade penal por omissão
de superiores hierárquicos em relação a condutas de seus subordinados com uma precisão tal
que a presente pesquisa não encontrou nada similar em ordenamentos jurídicos positivos
229
Texto disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm. Acesso em 29/07/2018.
87
internos, muito menos, diga-se, no brasileiro, em que os critérios para a punição da omissão
imprópria, tal como trazidos pelo art. 13, §2º, do CPB, não se mostram, de modo algum, tão
claros quanto os do referido Tratado internacional230.
O dispositivo acima transcrito, em sua alínea “a”, item “i”, traz o requisito subjetivo da
responsabilidade penal do chefe militar por crimes cometidos por seus subordinados, qual seja,
que tal agente superior tenha conhecimento do fato ou, pelas circunstâncias, deva ter tal
conhecimento. É dizer, há a previsão expressa de responsabilização por fato desconhecido pelo
agente, desde que ele devesse tê-lo conhecido, diante das circunstâncias concretas.
Quanto à responsabilidade do superior hierárquico civil, o dispositivo prevê, como
requisito subjetivo (alínea “b”, item “a”231), o conhecimento do fato, por parte de tal agente
superior, ou, então, que este deliberadamente não leve em consideração a informação que
indique claramente o fato (qual seja, que os subordinados estão a cometer ou se preparam para
cometer os crimes a que se refere o Tratado), estatuindo, uma vez mais, o cabimento da
responsabilidade penal daquele a quem incumbe vigiar a conduta de seus subordinados, mesmo
se, subjetivamente, não conhecer o fato.
Entende-se que, em relação ao superior hierárquico militar, o Estatuto prevê, nesse
dispositivo, a punição a título de negligência, em relação a fatos sobre os quais o agente não
tinha conhecimento, apenas por ter falhado no exercício de suas funções, não se inteirando de
circunstâncias sobre as quais deveria ter se inteirado.
230
Analisando a responsabilidade penal de superiores hierárquicos por omissão no Estatuto de Roma, Kai Ambos
pontua: “(...) command responsibility establishes liability for omission. The superior is punished because of his or
her lack of control of the subordinates and a failure to prevent or repress their commission of atrocities. Certainly,
the superior is only responsible in case of effective authority and control – this is especially so in the case of the
civilian superior (art. 28(2)(b)) – and only if he or she failed to take all necessary and reasonable measures; yet,
the superior is still conceptually liable for an omission, for doing nothing to prevent the atrocities committed by
his or her troops, and fundamentally for losing control over the troops in the field if it was possible to retain control.
Such a liability for omission is unique in international criminal law. The Rome Statute confirms this rule since a
general provision on act and/or omission was deleted based on the argument that only article 28 creates and should
create liability for omission. However, such liability for a non act stands and falls – on an objective level – with
the effective authority and control of the superior; the possibility of control forms the legal and legitimate basis of
the superior’s responsibility, it justifies his or her duty of intervention (Garantenpflicht) and, finally, it implies the
moral equivalence between the failure to prevent harm and the active causation of harm” (destaques no original)
(AMBOS, Kai. General Principles Of Criminal Law In The Rome Statute. Criminal Law Forum, v. 10, 1999. p.
19).
231
A falta de critério na ordenação das alíneas e itens, em que a alínea “a” é especificada em itens “i” e “ii” e a
“b” o é em itens “a”, “b” e “c”, consta do texto oficial do Decreto Legislativo 112, de 06 de junho de 2002, e do
Decreto Presidencial 4.388, de 25 de setembro de 2002, que, respectivamente, aprova e promulga o Tratado de
Roma no Direito interno brasileiro.
88
Trata-se, portanto, de uma punição pelo descontrole sobre suas tropas, pela
incompetência enquanto superior a quem incumbe vigiar seus subordinados e ordenar suas
ações232.
Diversamente, entende-se que os requisitos subjetivos para a punição do superior
hierárquico civil, nos termos do art. 28 do Estatuto, são mais qualificados, não se satisfazendo
com a mera negligência, mas exigindo mais: a doutrina enxerga, na expressão deliberadamente
não levou em consideração a informação que indicava claramente, exatamente a previsão da
cegueira deliberada233.
Nesse sentido, Marie-Pierre Robert pontua que, em relação ao superior civil, o Tratado
não se refere a conhecimentos que o agente teria obtido, se não fosse relapso na coleta de
informações (como é o caso do superior militar), mas, sim, a dados que já estavam à sua
disposição, aos quais ele, deliberadamente, fechou os olhos, o que ocorreria, conforme exemplo
trazido pela autora, no caso de relatórios informando claramente a ocorrência do fato (ou seja,
que os subordinados estavam a cometer ou se preparavam para cometer os crimes sujeitos à
jurisdição internacional, nos termos do Tratado) terem sido enviados ao escritório de tal
superior, independentemente de ele os ter lido ou não234 (desde que, é necessário acrescentar, a
não leitura do conteúdo do documento seja deliberada, e não fruto de negligência, desatenção,
esquecimento ou algo que o valha).
O art. 28 do Estatuto de Roma pode contribuir, portanto, na busca pela diferenciação
entre a mera negligência e a cegueira deliberada, precisamente em relação à conduta
fiscalizadora de superiores hierárquicos, responsáveis pelas ações de seus subordinados235.
A negligência, suficiente à punição do superior militar, relaciona-se a casos em que este
falha no seu mister de fiscalização e controle das tropas, não de forma deliberada, mas por lapso
232
“(…) the ICC Statute in some cases makes allowance for liability based on a lesser form of fault. For example,
command responsibility in a military setting can be based on negligence, namely if forces under the effective
command, authority or control of the accused have committed a crime within the jurisdiction of the ICC as a result
of the commander's failure to exercise proper control over such forces and he or she, ‘owing to the circumstances
at the time,’ did not actually know but ‘should have known’ that the forces were committing or were about to
commit the crime” (VYVER, Johan D. van der. The International Criminal Court And The Concept Of Mens Rea
In International Criminal. U. Miami Int’l & Comp. L. Rev., v. 12, 2004. p. 66).
233
VETTER, Greg R. Command Responsibility of Non-Military Superiors in the International Criminal Court
(ICC). Yale Journal of International Law, v. 25, n. 1, 2000. p. 123-4. Kai Ambos entende que “Wilful blindness
and thereby the new standard of article 28(2)(a) stands between knowledge and recklessness. In other words, the
provisions require a higher threshold than negligence” (AMBOS, op. cit. p. 18). Há, por outro lado, o entendimento
de a previsão se referir a recklessness, figura já abordada em seção anterior deste trabalho (nesse sentido, cf.
BADAR, Mohamed. The Mental Element In The Rome Statute Of The International Criminal Court: A
Commentary From A Comparative Criminal Law Perspective, Criminal Law Forum, v. 19, 2008. Acesso digital).
234
ROBERT, Marie-Pierre. La responsabilité du supérieur hiérarchique basée sur la négligence en droit pénal
international. Les Cahiers de droit, v. 49, n. 3, 2008. p. 422-5.
235
Para uma comparação entre as previsões correspondentes à responsabilidade dos superiores militares e civis no
Tratado, com análise de precedentes de Cortes Internacionais, cf. VETTER, op. cit. p. 120-3.
89
ou incompetência, não chegando a ter conhecimento de fatos que, dada sua posição de superior,
deveriam ser por ele conhecidos, vez ser essa a sua função: vigiar e coordenar os subordinados.
A cegueira deliberada vai além: nela, o superior hierárquico também não tem
conhecimento do fato, porém não por lapso, mas, sim, por uma decisão consciente de dele não
se inteirar236.
A previsão da cegueira deliberada no Tratado, como um estágio intermediário entre a
mera negligência e o conhecimento psicológico efetivo (knowledge), não foi impensada; pelo
contrário, decorreu, exatamente, de uma conciliação entre duas propostas distintas.
Kai Ambos traz o histórico de elaboração do art. 28 do Estatuto e informa que, de início,
os primeiros rascunhos não diferenciavam os requisitos subjetivos para a punição do superior
hierárquico civil e militar, o que somente foi introduzido por uma sugestão da delegação dos
EUA, que propunha que o militar fosse responsabilizado mediante knowledge ou negligence
quanto ao fato, ao passo que o civil respondesse, apenas, por knowledge. Uma contraproposta,
então, foi apresentada pelas delegações da Alemanha, da Argentina e do Canadá, sustentando
a suficiência da negligence para ambas as espécies de superiores hierárquicos. O resultado final
das tratativas foi o meio-termo entre as duas ideias que se viu materializado na redação
aprovada do art. 28237.
Essa explicação histórica é bastante interessante e merecedora de atenção, pois expõe
que a cegueira deliberada realmente não se confunde com a negligência, tampouco com o
conhecimento psicológico (knowledge), estando, em verdade, entre os dois238.
Vyver observa, ainda, que o fato de o desconhecimento ser atribuível ao agente retira
deste a possibilidade de alegar, em seu favor, a defense of mistake de que trata o art. 32 do
236
“A superior other than a military commander can likewise be held responsible for crimes committed by his or
her subordinates if, inter alia, he or she did not actually know but ‘consciously disregarded’ information indicating
that the subordinate was committing or was about to commit the crime. Here, negligence will not suffice. Liability
can, on the other hand, be based on intent in the form of dolus directus, dolus indirectus or dolus eventualis. The
superior who consciously disregarded information (willful blindness) will be liable if the information he
disregarded indicated as a certainty or as a possibility that his or her subordinates were up to no good” (VYVER,
op. cit. p. 66-7).
237
AMBOS, General Principles... p. 16-8.
238
A presente pesquisa não se satisfaz, apenas, com essa constatação. O que interessa é saber se a ignorância
deliberada, embora não se identifique com o conhecimento psicológico, pode configurar dolo, no Direito Penal
brasileiro – em outros termos, é saber se o dolo exige, invariavelmente, conhecimento psicológico, ou se é possível
sua configuração diante do desconhecimento. É isto que se busca aqui definir.
90
Estatuto239 (figura equivalente ao erro, no Direito Penal brasileiro)240 – questão esta que já foi
tangenciada neste trabalho e será ainda objeto de maiores considerações em seção posterior.
Contudo, faz-se o alerta de que o autor parece adotar uma concepção de willful blindness
diferente da aqui proposta, pois, para ele, a figura seria indicativa de intent, nas categorias de
mens rea do common law, configurando-se no caso de o agente saber algo que não queria ter
ficado sabendo241.
Por essa lógica, obviamente não cabe a defense, pois a cegueira deliberada é posta como
não mais que uma mentira formulada pelo sujeito, uma tática processual defensiva, o que não
é, de forma alguma, a conceituação que se adota neste trabalho, como já se pôde expor.
Portanto, ainda que se concorde com a afirmação de que a ignorância deliberada, por
ser imputável ao próprio agente, não pode dar lugar à figura do erro de tipo, chegar-se-á a essa
conclusão por fundamentos distintos dos utilizados por Vyver, conforme se exporá em seção
posterior do trabalho.
Por ora, o que importa é a observação de que, tanto na negligência, quanto na cegueira
deliberada, falta o conhecimento subjetivo do fato concreto. Contudo, o porquê desse
desconhecimento é essencialmente diferente nas duas situações, na medida em que ele é fruto
do descontrole do agente sobre o que chega ao seu efetivo conhecimento, no caso da
negligência, e, de forma diametralmente oposta, do controle do agente sobre o que chega ao
seu conhecimento, no caso da cegueira deliberada.
Quanto à questão, necessário abordar, ainda, a previsão do art. 30 do mesmo Tratado,
com a seguinte redação:
Artigo 30
Elementos Psicológicos
1. Salvo disposição em contrário, nenhuma pessoa poderá ser criminalmente
responsável e punida por um crime da competência do Tribunal, a menos que
atue com vontade de o cometer e conhecimento dos seus elementos materiais.
2. Para os efeitos do presente artigo, entende-se que atua intencionalmente
quem:
a) Relativamente a uma conduta, se propuser adotá-la;
b) Relativamente a um efeito do crime, se propuser causá-lo ou estiver ciente
de que ele terá lugar em uma ordem normal dos acontecimentos.
239
“Artigo 32 Erro de Fato ou Erro de Direito 1. O erro de fato só excluirá a responsabilidade criminal se eliminar
o dolo requerido pelo crime. 2. O erro de direito sobre se determinado tipo de conduta constitui crime da
competência do Tribunal não será considerado fundamento de exclusão de responsabilidade criminal. No entanto,
o erro de direito poderá ser considerado fundamento de exclusão de responsabilidade criminal se eliminar o dolo
requerido pelo crime ou se decorrer do artigo 33 do presente Estatuto.”
240
“Willful blindness might also refute the defense of mistake. If ignorance of the perpetrator is attributable to his
or her willful blindness to the facts or the law, he or she cannot credibly claim ignorance as a defense” (VYVER,
op. cit. p. 76).
241
Ibid. p. 75, 115.
91
Mutatis mutandis, pode-se dizer, sem maiores preocupações com um absoluto rigor
técnico na comparação, que esse dispositivo, no contexto do Estatuto de Roma, equivale ao art.
18 do CPB no Direito interno brasileiro, arrolando os requisitos subjetivos para a imputação
penal e valendo-se, textualmente, dos vocábulos vontade e conhecimento.
Chama a atenção, contudo, a exceção. O próprio dispositivo prevê que se exigem
vontade e conhecimento, salvo disposição em contrário, sendo certo que a previsão de punição
tanto da negligência do superior hierárquico militar, quanto da cegueira deliberada do superior
hierárquico civil, é tida pela doutrina como uma dessas exceções243.
Considerando que o Estatuto foi aprovado e promulgado pelo Brasil sem reservas (até
mesmo porque estas são vedadas, conforme art. 120 do diploma), integrando, portanto, o
ordenamento jurídico interno, mediante Decreto Presidencial de execução, percebe-se que, a
bem da verdade, o Direito positivo brasileiro não é de todo estranho à possibilidade de punição
por dolo em casos de desconhecimento subjetivo do fato244.
Fecha-se, assim, esse brevíssimo excurso no campo do Direito Penal Internacional, cujo
objetivo foi apenas pontuar que, nessa seara jurídica, já se atentou, há tempos, para a
necessidade de se admitir a responsabilização penal do superior hierárquico deliberadamente
cego quanto a crimes praticados por seus subordinados, havendo norma positivada que, em
casos tais, excepciona a regra dos requisitos subjetivos de imputação.
242
Texto disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4388.htm. Acesso em 29/07/2018.
243
BADAR, The Mental Element ... Acesso digital; AMBOS, General Principles... p. 20-1.
244
“Na verdade, o Direito nacional já convive com a teoria da cegueira deliberada, não só a título de soft law (...)
mas também de hard law, consistente no citado art. 28, ii, ‘b’ do Estatuto de Roma, incorporado ao ordenamento
pátrio com status de lei ordinária em 2002” (PRADO, Dos crimes... p. 300).
92
7 O ERRO DE TIPO
245
BITENCOURT, Erro de tipo... p. 96. Destaque no original.
246
SANTOS, A moderna teoria do fato punível. p. 80-2. Destaque no original.
247
Ibid. p. 140. Destaque no original.
94
conhecimento; entretanto, entende, igualmente, que, “em Direito Penal, qualquer diferença que
se queira fazer entre erro e ignorância carece de valor prático”248.
Enéias Xavier Gomes, também sem se ater ao ponto, apenas põe que “o artigo 20 do
Código Penal brasileiro diz que a ausência de conhecimento exclui o dolo (...)” 249, em similar
entendimento ao de Lucchesi, para quem, “de acordo com o art. 20 do CP, conhecimento é o
dado essencial a partir do qual pode-se efetuar o juízo de atribuição de responsabilidade”250, e
“conhecimento é um requisito indispensável do dolo nos termos do art. 20 do CP”251.
Considerando que, em verdade, o que a Lei prevê, textualmente, como causa de exclusão
do dolo, é o erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime, conclui-se que, para os
autores, erro e desconhecimento só podem, então, ser sinônimos.
Também Frederico Horta, que adota “(...) uma definição ampla de erro, que não inclui
apenas a falsa ou equivocada representação mental de um determinado objeto, mas também a
ignorância ou completa ausência de representação desse objeto”252.
Por sua vez, Luiz Flávio Gomes, em obra específica sobre o tema, embora reconheça a
diferença essencial entre erro e ignorância, conceituando o primeiro como um falso ou
equivocado conhecimento (estado positivo) e a segunda como a ausência de representação
(estado negativo), não foge à regra de postular uma identidade de efeitos jurídicos entre os dois,
apontando para uma prevalência, no Direito, da teoria unificadora, e defendendo que o Código
Penal brasileiro, ao fazer referência ao erro, engloba, também, a ignorância253.
Parecem caminhar no mesmo sentido Paulo José da Costa Jr. e Fernando José da Costa,
os quais, após reconhecerem que erro e ignorância são coisas diferentes, simplesmente os
igualam perante o Direito:
248
VARGAS, José Cirilo de. Instituições de Direito Penal: parte geral. Tomo I. Belo Horizonte: Del Rey, 1997.
p. 302.
249
GOMES, Enéias Xavier. Dolo sem vontade psicológica: perspectivas de aplicação no Brasil. Belo Horizonte:
D’Plácido, 2017. p. 173, nota 319.
250
LUCCHESI, Punindo a culpa como dolo... p. 147. Destaque no original.
251
Ibid. p. 159.
252
HORTA, Elementos normativos... p. 117, nota 1.
253
GOMES, Erro de tipo... p. 25–6.
95
Nota-se que a passagem se mostra até mesmo contraditória, pois, poucas linhas depois
de assentar a diferença essencial entre as figuras, parece pô-las em relação de gênero-espécie,
sem qualquer explicação para essa proposta.
Não discrepa, ainda, a lição de Paulo Busato, para quem “o erro, em termos jurídico-
penais, inclui a ignorância. Portanto, é tão relevante para o direito penal ter compreendido uma
situação equivocadamente quanto não tê-la, absolutamente, compreendido ou percebido”255.
Essa abordagem ao tema, reconhecendo-se a dessemelhança ôntica entre as duas figuras
e, mesmo assim, lhes assinalando os mesmos efeitos jurídicos, já é clássica na doutrina nacional,
fazendo-se presente desde as lições de Aníbal Bruno, para quem não haveria interesse na
distinção, dado que a exclusão do dolo “pode ocorrer na ausência de representação ou na
representação não conforme com a realidade, isto é, na ignorância e no êrro pròpriamente dito,
duas situações psicologicamente distintas – o não conhecimento ou o conhecimento falso, que
no Direito se reúnem para tratamento comum”256.
Por fim, ainda da doutrina nacional, faz-se necessária alusão à lição de Munhoz Netto,
para quem ignorância e erro são dois estados metafisicamente distintos, impassíveis de
equiparação psicológica ou união sob um mesmo conceito, salvo no campo jurídico, em que tal
procedimento se mostraria possível em virtude de uma suposta identidade de efeitos que trariam
ambas as figuras, consistentes na deturpação do elemento intelectivo, induzindo “o sujeito a
querer coisa diversa da que teria querido, se houvesse conhecido a realidade”257.
A doutrina estrangeira também costuma igualar os dois conceitos para fins jurídicos.
Entre os clásicos italianos, Maggiore dizia, de forma um pouco confusa, que “error es
el conocimiento deficiente o insuficiente de la verdad, es decir, una desviación del juicio.
Comprende, pues, también la ignorancia, que es un error total, así como el error es una
ignorancia parcial”258.
254
COSTA JR., Paulo José da; COSTA, Fernando José da. Código Penal comentado. 10. ed. São Paulo: Saraiva,
2011. p. 121.
255
BUSATO, Paulo César. Direito Penal: parte geral. Vol 1. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2017. p. 596.
256
BRUNO, Aníbal. Direito Penal: parte geral. Tomo 2 - fato punível. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959. p.
109-11.
257
MUNHOZ NETTO, Alcides. A ignorância da antijuridicidade em matéria penal. Rio de Janeiro: Forense,
1978. p. 1-3.
258
MAGGIORE, Giuseppe. Derecho Penal. Trad. José J. O. Torres. Vol. I. Bogotá: Editorial Temis, 1954. p. 518.
96
Quanto a essa passagem, observa-se que o argumento trazido pelo autor, no sentido de
que a ignorância, por ser um estado negativo, não pode ser causa de ação, parece se aproximar
da doutrina de Kaufmann, já aqui analisada, a qual põe o estado mental negativo (ignorância)
como óbice ao reconhecimento da própria capacidade de ação, pelo que são replicáveis, aqui,
as críticas alhures tecidas a essa construção teórica, para as quais se remete a leitura (seção 6.2).
A tais críticas soma-se, também, a necessária consideração de que, ainda que se
entendesse que do negativo (ignorância) não pode advir algo positivo (ação) - o que aqui se
refuta -, esse raciocínio somente se aplicaria à comissão, não à omissão, que é, por essência,
algo negativo (a ausência da ação positiva), não trazendo, portanto, a impossibilidade de se
reconhecer a omissão por ignorância261.
Também em Portugal a doutrina parece preferir a teoria unificadora.
Exemplificativamente, Teresa Serra entende que o agente pode errar por desconhecimento ou
por falso conhecimento dos elementos do tipo262; José Caetano Duarte não inova, engrossando
259
CARNELUTTI, Francesco. Teoria generale del reato. Pádua: CEDAM, 1933. p. 166-9. n. 61.
260
CARRARA, Francesco. Programa de Derecho Criminal: parte general. Vol I. Trad. José J. O. Torres e Jorge
Guerrero. Bogotá: Editorial Temis, 1972. p. 185. §§ 252 e 253. Destaques no original.
261
Munhoz Netto aponta essa impropriedade do argumento de Carrara, esclarecendo que “em si, como lacuna, a
ignorância, analogamente à omissão, pode ter eficácia jurídica causal, por não modificar o curso da vontade,
quando este podia ser positivamente modificado pelo estado de conhecimento” (MUNHOZ NETTO, op. cit. p. 3-
4).
262
SERRA, Problemática do erro... p. 66.
97
as fileiras daqueles que entendem serem o erro e a ignorância coisas distintas, porém, dotadas
dos mesmos efeitos jurídicos, ao pontuar que a “distinção entre erro e ignorância, apesar de
importante, não tem relevância prática na medida em que a doutrina e as legislações, desde
sempre, trataram igualmente aqueles que agem ignorando e os que actuam movidos pelo
erro”263.
Na Espanha, Manuel J. Arias Eibe também adota a teoria unificadora, defendendo,
apenas, que “el error es la falsa representación, la suposición equivocada o la ignorancia acerca
de esa realidad”264.
Díaz y García Conlledo, desenvolvendo um pouco mais o tema e trazendo farta
indicação bibliográfica, também sustenta a igualdade de efeitos jurídicos entre as duas figuras:
Una definición amplia de error sería aquella según la cual existe error cuando
el conocimiento del sujeto y la realidad no coinciden, de manera que existe un
conocimiento y falta la realidad a la que cree referirse o existe al revés una
realidad que no se conoce. Es decir, que esta discrepancia entre realidad
objetiva y conocimiento puede deberse a que el sujeto no tiene representación
alguna de la realidad (ignorancia, error negativo) o a que tiene una
representación falsa de la realidad (equivocación, error positivo).
(...) el error de tipo es el desconocimiento de o la equivocación sobre la
concurrencia en el hecho de aquellos elementos que pertenecen al tipo
objetivo de delito (y por tanto fundamentan la prohibición de la conducta), lo
que aún más abreviadamente (aunque probablemente de modo más incorrecto)
se explica como falta de conocimiento o conocimiento equivocado de los
elementos del tipo.265
263
DUARTE, O erro no Código Penal. p. 11.
264
ARIAS EIBE, El error… p. 9.
265
DÍAZ y GARCÍA CONLLEDO, El error… p. 140–9.
266
DÍAZ PITA, María del Mar. A presumida inexistência do elemento volitivo no dolo e sua impossibilidade de
normativização. Trad. Paulo César Busato. In: BUSATO, Paulo César (Coord.). Dolo e direito penal: modernas
tendências. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 4.
267
JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. Tratado de Derecho Penal. Tomo VI. Buenos Aires: Editorial Losada, 1962. p.
313.
98
Da mesma forma, em monografia sobre o erro em Direito Penal, Lucio Eduardo Herrera:
268
HERRERA, Lucio Eduardo. El error en materia penal. 2. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1991. p. 11-3.
269
ZAFFARONI; SLOKAR; ALAGIA, Derecho Penal... p. 532-3. No mesmo sentido, no Brasil, Estellita entende
que “o reverso do conhecimento das circunstâncias do tipo objetivo, como se sabe, é o erro sobre alguma ou várias
delas (novamente, art. 20, CPB)” (ESTELLITA, Responsabilidade penal... p. 287).
99
soubesse, estava atrás do arbusto. Nesse caso, o agente representa sua ação como um disparo
de arma de fogo em direção a um arbusto e se orienta de acordo com essa representação; erra,
portanto, ao praticar a conduta de efetuar um disparo de arma de fogo em direção a uma pessoa,
matando-a, exatamente da mesma forma que erra o outro agente exemplificado, que representa
um disparo em direção a um animal, representação esta que se mostra equivocada, por se tratar,
em verdade, de um disparo em direção a uma pessoa. Ignorância é algo diverso.
Curiosamente, o mesmo exemplo, em essência, é trazido por Hernando L. Londoño
Berrío, o qual, em obra específica sobre o erro na teoria do delito, à luz do Direito Penal
colombiano, reconhece uma clara diferença entre o erro e a ignorância, do ponto de vista da
Psicologia e da Filosofia, porém sem efeitos jurídicos, afirmando ser indiferente ao Direito que
um sujeito que mata outrem com um disparo de arma de fogo o faça sem tê-lo visto ou tendo-o
confundido com um boneco270.
Ora, o agente que dispara em direção ao nada, sem saber que ali há uma pessoa, não
simplesmente ignora a presença da pessoa, mas, em verdade, erra quanto ao ponto: ele crê que
está disparando em direção ao nada.
Para que o exemplo estivesse correto, poder-se-ia imaginar, então, o caso de uma pessoa
que veda seus olhos, dirige-se à janela de sua casa, em uma rua movimentada de um centro
urbano, e efetua um disparo. Essa pessoa, sim, ignora a presença de alguém na trajetória do
projétil, pois não sabe se há alguém ou não. Veja-se: não é que ela creia estar disparando em
direção ao nada, como no exemplo aqui criticado; na verdade, ela não sabe se dispara em
direção ao nada ou em direção a alguém, a um animal, a uma árvore, a um carro, a um poste
etc.
Feita essa crítica, prosseguindo na exposição da doutrina adepta à teoria unificadora em
diferentes ordenamentos jurídicos, tem-se, por fim, que os autores alemães também costumam
adotar esse entendimento.
Exemplificativamente, para Roxin, “el error de tipo no presupone ninguna falsa
suposición, sino que basta con la falta de la correcta representación”271 – ou seja, o erro seria a
falta da representação correta, pouco importando se, em seu lugar, há uma falsa suposição ou
a ausência de qualquer representação.
270
LONDOÑO BERRÍO, Hernando León. El error en la moderna teoría del delito. Bogotá: Editorial Temis, 1982.
p. 11-2.
271
ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña et al. 2. ed. Madrid: Civitas
Ediciones, 2008, p. 458–9.
100
272
JESCHECK; WEIGEND, Tratado... p. 329. Destaques no original.
273
STRATENWERTH, Derecho Penal… p. 154.
274
WESSELS, Direito Penal... p. 56. Destaques no original.
275
Greco entende que o dispositivo legal “consagra o efeito excludente de dolo do erro sobre um elemento do tipo
legal” (GRECO, Algumas observações... p. XVI), pelo que parece acertada a inclusão do autor dentre os adeptos
da teoria unificadora, vez que lê erro onde a Lei fala desconhecimento.
101
276
FROSALI, Raul Alberto. Sistema penale italiano. Parte prima: diritto penale sostanziale. Vol. II. Turim: UTET,
1958. p. 205-11.
277
TOLEDO, O Erro... p. 3. Assis Toledo deixa claro seu entendimento pela diferença essencial entre as duas
figuras; contudo, seus escritos não esclarecem se dessa diferença adviriam efeitos jurídicos também distintos, pois,
em outras passagens da obra (p. 1 e 23, por exemplo), incorre em alguma contradição, igualando a ignorância e o
falso conhecimento e apontando ambos como hipóteses de erro. A classificação da obra como adepta da teoria
diferenciadora, portanto, é dúbia. Aqui optou-se por assim fazer em virtude da força dos argumentos trazidos no
trecho citado, que tão bem fundamentam a diferença entre erro e ignorância para o Direito.
278
HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Vol. I. Tomo II. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983. p.
181-3.
279
Categoria então adotada, que, embora não seja integralmente identificável com o hodierno erro de tipo, dele
não se afasta em relação ao aspecto aqui estudado, pelo que permanecem atuais, nesse ponto, as lições de Hungria.
102
Assim, parece que, pela lição de Hungria, a ignorância pura não estaria abarcada no
conceito de erro de tipo.
Também no Direito espanhol (cuja previsão legal do erro de tipo, diferentemente da
alemã e da argentina, é similar à brasileira280) se colhem da doutrina posicionamentos em favor
da teoria diferenciadora.
Ragués i Vallès aponta para a diferença, já aqui ressaltada, entre o Direito positivo
alemão e o espanhol quanto ao ponto ora tratado e, após registrar que a doutrina alemã não
hesita em igualar, para efeitos legais, a ignorância e o erro, ante a previsão do § 16 do Código
Penal do país, reconhece que a questão há de ser tratada de forma diversa no Direito espanhol,
entendendo que, ante a previsão do art. 14 do Código Penal de seu país, não parece descabido
afirmar-se que quem não conhece porque não quer conhecer não se encontra propriamente em
uma situação de erro281 (já tratando, portanto, especificamente da ignorância deliberada) e, de
forma geral, que tal dispositivo da Lei espanhola não traz qualquer impedimento para se
diferenciarem ignorância e erro282.
No mesmo sentido, para David Felip i Saborit, o conceito de erro pressuporia um
mínimo interesse em conhecer, expressado externamente na comissão do fato, entendendo o
autor que quem não sabe por carecer de qualquer interesse em conhecer, seja por rejeição,
indiferença ou intencional falta de aquisição do conhecimento, não incorreria em erro283.
Trata-se, como dito, de doutrina minoritária, possivelmente desestimulada pelo estado
da arte na Alemanha, na medida em que, no país de maior influência no Direito Penal
continental, a Lei impõe a adoção da teoria unificadora, somente sendo possível uma defesa da
diferenciadora a título de lege ferenda.
O problema está em se deixar colonizar pela doutrina alemã e replicar suas proposições
em ordenamentos jurídicos diferentes, como o brasileiro e o espanhol, em que a previsão
normativa é outra: nestes, a Lei não estatui que o dolo se afasta ante o desconhecimento do fato,
mas, sim, ante o erro quanto ao fato284.
280
Vida nota 87.
281
RAGUÉS i VALLÈS, Ramon. El dolo y su prueba en el proceso penal. Barcelona: Jose Maria Bosch Editor,
1999. p. 440.
282
Id. La ignorancia deliberada... p. 198.
283
FELIP i SABORIT, Error iuris… p. 263.
284
A influência do Direito alemão, às vezes, se faz tão forte, que se chega ao ponto de afirmar, na doutrina nacional,
que a conceituação legal de erro de tipo no Código Penal brasileiro “guarda muita semelhança com a do Código
Penal alemão, que lhe teria servido de modelo” (GOMES, Erro de tipo... p. 117), ou, ainda, que o §16 do Código
Penal alemão é “o dispositivo equivalente ao nosso art. 20” (GRECO, Algumas observações... p. XVI). Enfrenta-
se, aqui, alguma dificuldade em se encontrar a grande semelhança ou a equivalência entre as duas previsões, a
que os autores se referem. Afinal, se é que a Lei alemã serviu de modelo à brasileira, parece, então, que a cópia
foi muito malfeita, resultando em algo bem distinto.
103
285
Nas lições de Frosali, ignorância pura, sem erro (FROSALI, Sistema penale italiano... p. 209).
104
286
Vide nota 259.
287
No mesmo sentido: VARELA, Lorena. Norma e imputación en el conocimiento del tipo. Tese de Doutorado
(Direito). Universitat Pompeu Fabra, Barcelona, 2015. p. 161.
105
O indivíduo que está em seu quarto, em Belo Horizonte, esforçando-se para escrever
uma Dissertação de Mestrado e concentrado apenas nessa tarefa, está em ignorância quanto ao
fato de que, naquele dia, a Bolsa de Valores de Nova York opera em forte queda.
Referido agente não possui qualquer representação subjetiva quanto a tal fato, não faz a
menor ideia do que ocorre no mercado de capitais naquele dia. Não está, portanto, em erro: não
representa o cenário fático como um dia de operações em alta na bolsa, enquanto, em verdade,
há uma vertiginosa queda. Ele não representa nada quanto a isso e, portanto, admite tudo como
possível: é possível que as operações estejam em forte alta, em alta moderada, estáveis, ou
queda moderada, em forte queda ou, ainda, que, por qualquer motivo, a Bolsa nem mesmo
esteja em funcionamento naquele dia288.
A situação é absolutamente distinta daquela do agente de segurança que, trabalhando na
sede da transportadora de valores, monitora o interior de um carro-forte a serviço da empresa
em outra cidade por meio de uma câmera de segurança instalada no veículo e, com base nas
imagens a que assiste, representa o cenário fático como sendo de uma absoluta normalidade,
com os empregados da empresa e os malotes de dinheiro seguindo em direção ao destino
programado, quando, em verdade, aquilo a que assiste é uma encenação, inserida na rede de
transmissão de imagens por um grupo criminoso que, enquanto as falsas imagens são
transmitidas à sede da empresa, está a roubar os valores, mantendo os empregados com as mãos
atadas e as bocas vedadas dentro do carro-forte.
Nesse caso, o agente possui uma representação subjetiva dos fatos, a qual, porém, não
corresponde à realidade: ele está em erro, e, como tal, não admite como possível (obviamente
dentro dos limites da razoabilidade) nada diferente do que representa (até mesmo porque a
dúvida afasta o erro, como se verá à frente). Para ele, o que está acontecendo no carro-forte é o
que as câmeras estão lhe transmitindo, com certeza.
A ignorância implica a aceitação de qualquer possibilidade de realidade; já o erro, não.
O ignorante admite a possibilidade de a realidade possuir múltiplas formas e se apresentar de
diferentes maneiras. Quem está em erro, não: para ele, a realidade é, firmemente, aquela que
representa, e nenhuma outra (daí, como já dito, Frosali falar em uma persuasão e Hungria em
uma certeza subjetiva, ambas dissonantes da realidade – efeito absolutamente inexistente no
estado de ignorância).
288
Pelas lições de São Tomás de Aquino, essa situação configuraria hipótese de nesciência, não de ignorância.
Para ele, aquela é a simples negação da ciência; esta, a ausência da ciência sobre coisas que naturalmente se deveria
saber, dentre as quais há as que se é obrigado a saber, sob pena de não se poder fazer corretamente o que é devido.
Neste último grupo, São Tomás inclui, quanto ao âmbito particular de cada um, o que diz respeito ao seu estado e
sua função (AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Vol IV. São Paulo: Edições Loyola, 2005. p. 373).
106
289
Assis Toledo pontua que não se pode estar voluntariamente em erro (TOLEDO, O Erro... p. 3).
107
que se pode e se deve considerar não geram o involuntário, por serem, em si mesmas,
voluntárias290.
Por todos esses aspectos, parece ser certo que erro e ignorância são dois conceitos
distintos, inexistindo relação de sinonímia entre eles, mas, apenas, de conexão: na feliz metáfora
pensada por Frosali, as duas noções podem ser representadas como dois círculos concêntricos,
dos quais o erro tem um raio menor291.
E isso em qualquer campo do conhecimento humano e científico, sem exclusão do
Direito, pelo que se discorda, neste trabalho, das afirmativas de que erro e ignorância são a
mesma coisa e, também, de que são a mesma coisa para o Direito.
Ora, quando alguns dos textos proponentes da teoria unificadora, aqui analisados, põem
que ambas as figuras, ainda que diferentes em si, são uma e só coisa para o Direito, cometem
uma impropriedade de compreensão do fenômeno da regra jurídica.
O Direito trabalha no nível do dever ser, imputando consequências normativas aos fatos
do mundo natural, verificados no nível do ser; o Direito não tem, de forma alguma, o poder ou
a capacidade de alterar o ser, no máximo, pode ele imputar as mesmas consequências
normativas a dois seres diferentes, igualando, assim, apenas seus efeitos jurídicos, mas não os
igualando em si.
Se A ≠ B, o máximo que o Direito consegue fazer é estabelecer que tanto A, quanto B,
devam ser C; jamais consegue alterar a realidade, no sentido de transformar um A ≠ B em um
A = B.
Assim, a rigor, o que é possível à teoria unificadora propugnar é, no máximo, uma
igualdade de efeitos jurídicos entre os dois seres, mas não uma suposta igualdade dos seres para
o Direito, pois este não pode passar por cima da realidade e estatuir que são iguais duas coisas
que são diferentes.
Nesse sentido, o que o Código Penal argentino faz nessa matéria é adotar uma teoria
unificadora metodologicamente correta: reconhece tratar-se de duas coisas distintas (pois,
repita-se, se a Lei não contém palavras inúteis e a Lei argentina traz os termos erro e ignorância,
a inferência é de que são ali tidos, de fato, como dois conceitos não ligados entre si por relação
de sinonímia), porém lhes confere a mesma consequência normativa.
Atribuir ao erro e à ignorância os mesmos efeitos jurídico-penais é uma escolha de
política criminal, encerrando uma decisão acerca de como os dois estados de ser hão de ser
tratados pelo Direito Penal.
290
AQUINO, Suma teológica. Vol III. p. 132-3.
291
FROSALI, Sistema penale italiano... p. 209.
108
Ocorre que o mesmo não faz o Código Penal brasileiro, o qual, repita-se, refere-se,
apenas, ao erro como causa de exclusão do dolo, no art. 20.
A corroborar a afirmação de que, pela redação do Código Penal brasileiro, erro não se
identifica com ignorância, basta analisar-se o §1º do próprio art. 20, o qual, ao tratar do erro
sobre discriminantes putativas, dispõe que “é isento de pena quem, por erro plenamente
justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima
(...)”.
Vê-se, portanto, que o art. 20 do CPB, em si mesmo, já deixa absolutamente claro que,
para o Direito brasileiro, erro é a suposição de fato inexistente, ou seja, a representação
equivocada da realidade com base na qual o sujeito age (enganado, portanto); não é,
seguramente, a simples ausência de representação.
Nesse sentido, Frederico Horta, ao analisar o dispositivo legal em questão, pontua que
“ao atuar, o agente que supõe uma descriminante putativa revela uma decisão subjetiva que,
considerados os seus pressupostos imaginários, não é objetivamente injusta”292. É dizer, o que
explica, em um caso tal, a não imputação subjetiva (em que pese a conformação da tipicidade
objetiva da conduta), é a presença, no âmbito subjetivo do agente, de uma representação que o
leva a entender, de forma plenamente justificada (conforme dicção legal), pela ocorrência de
fato que legitimaria sua ação.
Dado que, pela teoria limitada da culpabilidade293, tida pela doutrina majoritária como
sendo a adotada pela Lei brasileira no dispositivo legal aqui referido294, o erro sobre
discriminantes putativas tem, para todos os fins, a mesma natureza e o mesmo efeito que o erro
sobre elementos constitutivos do tipo legal, sendo, ambos, autênticas modalidades de erro de
tipo, soa coerente a adoção do mesmo entendimento quanto aos dois, parecendo paradoxal a
adoção da teoria unificadora entre ignorância e erro para o caput e, simultaneamente, da
diferenciadora, para o §1º, ambos do art. 20 do CPB.
Portanto, eis aqui o problema: uma vez assentada a premissa de que, no plano do ser,
erro e ignorância são distintos, pode-se até admitir que a Lei lhes atribua as mesmas
consequências jurídicas (lhes assinale o mesmo dever ser), como se dá na Argentina, mas não
que a Lei os iguale a nível de ser, estabelecendo uma (inexistente) relação de sinonímia de
292
HORTA, Da limitada teoria estrita da culpabilidade... Acesso digital.
293
Vide referências constantes da nota 199.
294
Com destaque, cf. BRODT, Da consciência da ilicitude... p. 98-119, e HORTA, Da limitada teoria estrita da
culpabilidade... p. 15–39.
109
modo a, ao mencionar erro, se referir, em verdade, tanto a erro, quanto a ignorância, conforme
propugna a teoria unificadora na doutrina brasileira.
Uma saída, em tese, possível, seria não o simplismo trazido pela doutrina aqui analisada,
de dizer, tout court, que o vocábulo erro do caput do art. 20 do CPB engloba também a
ignorância, mas, sim, a fundamentação de uma hermenêutica analógica in bonam partem ou,
talvez, apenas uma interpretação extensiva, propondo-se que o dispositivo legal, aplicável, por
sua literalidade, ao erro, seja analógica ou extensivamente aplicado também, à ignorância.
Não se encontra, em qualquer das obras aqui referidas, tal esforço hermenêutico, tendo
a questão sempre sido um pouco relegada, minimizando-se a discussão mediante a inclusão,
infundada, da ignorância no conceito legal de erro, ainda que se reconhecendo serem, na
realidade, coisas distintas, o que não parece ser o melhor caminho.
A analogia e a interpretação extensiva se diferenciam, sucintamente, na medida em que
a primeira se dá extra legem, diante de lacuna legal, permitindo a transferência da “solução
prevista para um determinado caso a outro não regulado expressamente pelo ordenamento
jurídico, mas que compartilha com o primeiro certos caracteres essenciais ou a mesma ou
suficiente razão”295, ao passo que a segunda se dá intra legem, em casos de hipóteses concretas
que, não estando previstas na literalidade do texto legal, o estão no seu espírito, pelo que, em
face da insuficiência verbal da Lei, amplia-se a significação das palavras para se alcançar a
mens legis296.
Para a aplicação de qualquer das duas, entretanto, é necessário se estabelecer uma
similitude de fundo entre a hipótese de aplicação literal da Lei e aquela não regulada pelo
ordenamento, no caso da analogia, ou aquela abarcada pela mens legis, mas não pela
textualidade legal, no caso da interpretação extensiva (gênero do qual a interpretação analógica
seria uma espécie297), reconhecendo-se que os fundamentos jurídicos do tratamento legal da
primeira, extraídos das qualidades do ser e da principiologia orientadora do ordenamento
jurídico em questão, são juridicamente aplicáveis, também, às segundas. Para tanto, necessário
haver, entre os dois seres, uma similitude ontológica que justifique a construção de uma
identidade deontológica (sendo A≈B, tanto A, quanto B, devem ser C).
É o que preveem duas antigas regras de hermenêutica jurídica, segundo as quais onde
houver o mesmo fundamento, haverá o mesmo direito (ubi eadem ratio ibi idem jus) e onde há
295
PRADO, Luiz Regis. Argumento analógico em matéria penal. Doutrinas Essenciais de Direito Penal
Econômico e da Empresa, v. 1, 2011. Acesso digital.
296
Ibid. Acesso digital.
297
Ibid. Acesso digital.
110
a mesma razão de ser, deve prevalecer a mesma razão de decidir (ubi eadem legis ratio ibi
eadem dispositio).
Nesse sentido, passa-se, na seção seguinte, à análise da figura de erro de tipo no Direito
brasileiro, buscando-se identificar a ratio do não reconhecimento do dolo nas situações de erro
sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime e, em seguida, analisar se tal racionalidade
seria aplicável, também, às hipóteses de ignorância.
verdade, pratica conduta objetivamente típica, perigosa ou lesiva a bem jurídico penalmente
tutelado.
Se se está diante de conduta perigosa ou lesiva a bem jurídico penal, que atende a todos
os requisitos do respectivo tipo objetivo, há de se encontrar uma fundamentação adequada para
a não imposição da pena correspondente ao crime doloso e para a imposição, quando muito,
daquela correspondente à modalidade culposa (invariavelmente muitíssimo mais branda), acaso
tipificada e decorrente o erro de culpa.
Em termos concretos, o agente que pratica ato libidinoso com menor de 14 (quatorze)
anos de idade lesa o bem jurídico tutelado da mesma forma, com a mesma intensidade, faça-o
ciente da real idade da vítima ou em erro quanto ao aspecto, pensando tratar-se de alguém com
mais de 14 (quatorze) anos; objetivamente, do ponto de vista do titular do bem jurídico ou de
um terceiro observador, membro da sociedade, a conduta, nas duas hipóteses, é rigorosamente
a mesma.
Não obstante isso, o Direito confere uma enorme importância ao dolo, impondo, no
exemplo acima, uma pesada pena de 08 (oito) a 15 (quinze) anos de reclusão ao primeiro agente
e garantindo a impunidade, a não incidência da Lei penal, ao segundo (ante a ausência de
tipificação da modalidade culposa do crime), em que pese, repita-se, o fato de, objetiva e
externamente, ambos praticarem o mesmo ato.
A fundamentação dessa brutal diferença de tratamento penal a situações objetivamente
iguais há, necessariamente, de levar em conta o descontrole em que age o sujeito em erro, de
um lado, contraposto ao domínio que tem o agente que age mediante correta representação da
realidade, de outro.
A pessoa que conhece a realidade que a circunda e sabe o que faz ou deixa de fazer
possui domínio sobre sua conduta comissiva ou omissiva, ou seja, pode guiá-la de modo
consciente, sendo senhora do seu proceder. Assim, ciente de se tratar de pessoa menor de 14
(quatorze) anos de idade, o sujeito pode decidir, de maneira informada, se pratica ato libidinoso
com menor de 14 (quatorze) anos de idade ou não; ciente de ser alheia a coisa, o sujeito pode
decidir, previamente a agir, se destrói, inutiliza ou deteriora coisa alheia ou não298.
298
Greco, embora defendendo a imprescindibilidade de conhecimento psicológico para a configuração do dolo, o
que será objeto de críticas em seção posterior deste trabalho, trilha, neste ponto, o mesmo caminho: “Aquele que
sabe o que faz e o que pode decorrer de seu fazer controla, em um certo sentido, aquilo que faz e o que pode
decorrer de seu fazer. (...) aquele que atua com domínio, por deter em suas mãos o poder de decidir que curso de
ação tomará e, em certa medida, que conseqüências daí decorrerão, possui ceteris paribus uma muito maior
responsabilidade pela prática dessa ação e pelas conseqüências que venham a produzir-se do que aquele que atua
sem esse domínio” (destaques no original) (GRECO, Luís. Dolo sem vontade. In: SILVA DIAS et al. (Org.). Liber
Amicorum de José de Sousa e Brito. Coimbra: Almedina, 2009. p. 891-2).
112
O agente que, nessas condições, decide pela agressão ao bem jurídico, ou seja, decide
pela prática da conduta prevista pelo tipo penal299, manifesta, por meio de sua conduta, um
distanciamento da norma jurídico-penal e um repúdio à sua validade300, de modo que esta deve
responder de modo proporcional, reafirmando-se.
Nisto consistiria, para aqueles que a admitem (não sendo escopo deste trabalho adentrar
em tão polêmico tema, que foge ao objeto delimitado da pesquisa), a função preventiva geral
positiva da pena, nos casos dolosos: a reafirmação da norma violada, mediante imposição de
sanção à conduta que nega sua validade301, ou, na síntese de Demetrio Crespo:
299
“(...) do dolo e da culpa emanam uma distinta atitude interior do agente diante do bem jurídico (...). Do dolo
configurador do fato típico (consciência e vontade de realizar os requisitos objetivos do tipo) sobressai uma
especial atitude interior de menosprezo ou indiferença à violação ao bem jurídico; da culpa decorre uma atitude
de descuido, de leviandade” (destaques no original) (GOMES, Erro de tipo... p. 170).
300
VARELA, Norma e imputación... p. 308-9.
301
“A prevenção geral positiva funda-se no fato de que a sanção constitui a afirmação simbólica das normas,
favorecendo o processo de integração social; a restabelecer a confiança institucional afrontada pela conduta
contrária ou infidedigna ao direito. Em conformidade com a perspectiva positiva, a pena passava a ter uma
finalidade revalidadora do ordenamento jurídico, a demonstrar existência na comunidade, reinstaurando-se o
direito com a aplicação da sanção” (FERRARI, Eduardo Reale. Medidas de segurança e Direito Penal no Estado
Democrático de Direito. São Paulo: RT, 2001. p. 50-1). Roxin identifica três efeitos distintos dentro da finalidade
preventiva geral positiva da pena: “En realidad, en la prevención general positiva se pueden distinguir a su vez
tres fines y efectos distintos, si bien imbricados entre sí: el efecto de aprendizaje, motivado socialpedagógicamente;
el ‘ejercicio en la confianza del Derecho’ que se origina en la población por la actividad de la justicia penal; el
efecto de confianza que surge cuando el ciudadano ve que el Derecho se aplica; y, finalmente, el efecto de
pacificación, que se produce cuando la conciencia jurídica general se tranquiliza, en virtud de la sanción, sobre el
quebrantamiento de la ley y considera solucionado el conflicto con el autor” (ROXIN, Derecho Penal... p. 91-2).
Críticas à teoria da prevenção geral positiva em TEIXEIRA, Adriano. Teoria da aplicação da pena: fundamentos
de uma determinação judicial da pena proporcional ao fato. São Paulo: Marcial Pons, 2015. p. 86-8.
302
DEMETRIO CRESPO, Eduardo. Prevención general e individualización judicial de la pena. Salamanca:
Ediciones Universidad de Salamanca, 1999. p. 109.
303
Analisando a diferença entre o dolo e a culpa também por esse viés, Jakobs pontua que “los hechos imprudentes
afectan a la validez de la norma menos que los hechos dolosos, ya que la imprudencia pone de manifiesto la
incompetencia del autor para el manejo de sus propios asuntos” (destaque no original) (JAKOBS, Derecho penal...
p. 312).
113
304
Cf. DEMETRIO CRESPO, Prevención general... p. 100-9. O autor assim sintetiza os vieses positivo e negativo
da prevenção geral: “Se puede decir con carácter general que la prevención general positiva difiere de la negativa
en que mientras que ésta explica la relación pena-inhibición de delitos de una forma lineal según el esquema
estímulo-respuesta, aquélla alude a conceptos como ‘incidencia en la conciencia jurídica’, o ‘activación de
mecanismos de autocontrol valorativos’. En segundo lugar, la prevención general positiva toma en cuenta aspectos
no advertidos por la negativa como la pacificación del sentimiento jurídico o la defensa del ordenamiento jurídico.
Por último se diferencian respecto al destinatario porque la prevención general negativa dirige su intimidación a
la colectividad en cuanto delincuentes potenciales, y la positiva se proyecta sobre la comunidad social” (Ibid. p.
112-3).
305
“A primeira modalidade de prevenção aparece historicamente com o fundamento da intimidação. Percebendo
que a cominação da pena poderia ter um fim de temorização ao delinquente, surgiu a concepção prevencionista-
geral, denominada de exemplaridade, depois conhecida como prevenção geral negativa. (...) a sanção era imposta
não mais por mero castigo, mas para demonstrar aos outros delinquentes que as pessoas eram punidas, adquirindo
efeito inibitório à reiteração delituosa, objetivando a coletividade como destinatário” (FERRARI, op. cit. p. 49-
50). Contundentes críticas à função preventiva geral negativa em STRATENWERTH, Derecho Penal... p. 34-6,
para quem a teoria, embora ainda desempenhe um papel relevante na opinião pública e, provavelmente, na
jurisprudência, em matéria de dosimetria de penas, já perdeu todo o crédito da ciência. Em sentido oposto,
reconhecendo-lhe validade, TEIXEIRA, op. cit. p. 88-9.
306
Não se fala, aqui, em prevenção especial, por não se reconhecer sua validade já a nível teórico e, com muito
mais razão, a nível prático, beirando a alienação falar-se em ressocialização ou reeducação do submetido ao
sistema prisional brasileiro. Criticando a teoria, cf., exemplificativamente, ROXIN, Derecho Penal... p. 88-9;
DEMETRIO CRESPO, Prevención general... p. 64-5; TEIXEIRA, op. cit. p. 49-50, 85-6.
114
dificilmente passível de prevenção, de decisão no sentido da sua evitação (como prevenir o que
nem mesmo se controla?).
Greco parece, até aí, concordar, ao pontuar que “condutas (...) dominadas são (...) mais
passíveis de virem a ser repensadas e abandonadas pelos agentes que estão a ponto de as
praticar. A existência de um domínio sobre a realização do fato gera, portanto, maior
necessidade de prevenção”307.
Absolutamente distinta é a situação do sujeito que age em verdadeiro descontrole da
situação fática, visto que aquele que faz um juízo equivocado da realidade não possui controle
sobre seu comportamento e sobre o potencial lesivo deste, pois não é capaz de direcioná-lo;
como já dito, é verdadeira vítima de seu equívoco.
Assim, o agente que nem mesmo considera a possibilidade de estar diante de alguém
menor de 14 (quatorze) anos de idade, pois tem a certeza subjetiva de se tratar de alguém maior
dessa idade, não pode direcionar seu comportamento, de modo informado, no sentido da prática
de ato libidinoso com menor de 14 (quatorze) anos de idade ou não, é dizer, não pode decidir,
de forma livre, pela prática ou pela abstenção dessa conduta, já que ela se lhe afigura impossível
- para ele, aquela não é uma pessoa menor de 14 (quatorze) anos de idade308.
Da mesma forma, aquele que nem cogita estar diante de coisa alheia, por estar certo de
ser seu o bem em questão, não detém o poder de decidir pela destruição, inutilização ou
deterioração de coisa alheia.
É possível dizer que, nos casos de erro quanto a elemento constitutivo do tipo, o crime
que objetivamente se verifica é, para o agente, subjetivamente, um verdadeiro crime impossível
por absoluta impropriedade do objeto: para o agente que tem a certeza subjetiva de estar
praticando ato libidinoso com alguém maior de 14 (quatorze) anos de idade, afigura-se
impossível estar, naquele mesmo momento, praticando ato libidinoso com menor dessa idade,
307
GRECO, Dolo sem vontade. p. 892. Destaque no original.
308
Interessante mencionar que, em regra, no common law, o crime correspondente ao estupro de vulnerável do
Direito brasileiro é um exemplo de impure strict liability crime, em que se exige do agente state of mind (mens
rea) apenas quanto a alguns elementos do crime (no caso, a prática de ato libidinoso), remanescendo os demais
(no caso, a idade da vítima) sob a responsabilidade penal objetiva (strict liability) (VARELA, Strict-Liability... p.
3-6). É dizer, “(...) a mistake as to the age of a female is not a defense to the crime of statutory rape. It has been
followed even though the defendant had a reasonable belief, had exercised care to find out her age, or had been
told by the female that she was over age. This rule is an exception to the general defense of mistake of fact, which
states that if the defendant believed there existed certain facts, which had they been true would have rendered the
action lawful, then he was not guilty because he was incapable of entertaining the intent necessary to constitute
the crime” (BUMGARDNER III, Rudolph. Mistake of age as a defense to statutory rape. Washington and Lee
Law Review, v. 22, n. 1, 1965. p. 119-20). Para uma análise crítica da jurisprudência dos EUA quanto à questão,
defendendo a admissibilidade da mistake of fact defense, cf. Ibid. p. 119–26, e, em maior profundidade, trazendo
precedentes mais recentes e apresentando o tratamento da matéria em cada Estado do País, com base em extenso
levantamento jurisprudencial, cf. CARPENTER, Catherine L. On statutory rape, strict liability, and the public
welfare offense model. American University Law Review, v. 53, n. 2, 2003. p. 313–391.
115
pois a pessoa não pode ser as duas coisas ao mesmo tempo – maior e menor de 14 (quatorze)
anos de idade são qualidades mutuamente excludentes; para o agente que tem tal certeza no
sentido de estar a inutilizar coisa própria, figura-se impossível estar, naquele instante,
inutilizando coisa alheia, pois, novamente, própria e alheia são qualidades mutuamente
excludentes, ou seja, o agente que entende pela configuração de uma está, automaticamente, a
entender pela não configuração da outra.
Daí falar-se, com acerto, que o erro quanto a elemento constitutivo do tipo é o inverso
da tentativa inidônea (ou que esta é um erro inverso de tipo309): nesta, a conduta, do ponto de
vista objetivo, não atende aos requisitos do tipo penal suposto pelo agente, tratando-se,
materialmente, de crime impossível, não obstante o agente ter a certeza subjetiva de estar a
cometer uma conduta que, tal como representada, atende a tais requisitos.
Falta-lhe, portanto, a tipicidade objetiva, o que já implica, por si só, a irrelevância penal
do fato, independentemente de qualquer consideração acerca do aspecto subjetivo da conduta.
Afinal, o Direito brasileiro não pune a tentativa inidônea, conferindo caráter de absoluta
prejudicialidade à tipicidade objetiva sobre a subjetiva, é dizer, ausente a primeira, não se chega,
nem mesmo, ao exame da segunda, na teoria analítica do delito310.
É a situação inversa dos exemplos aqui referidos recorrentemente: o agente tem a certeza
de estar praticando ato libidinoso com menor de 14 (quatorze) anos de idade quando, em
verdade, a pessoa é maior dessa idade; o agente está seguro de que o objeto que está a inutilizar
é alheio, quando, em verdade, é próprio.
Em ambos os casos de impossibilidade (real ou representada) de produção de um
resultado penalmente típico (erro quanto a elemento constitutivo do tipo – possibilidade real e
impossibilidade representada; tentativa inidônea – impossibilidade real e possibilidade
representada), percebe-se uma incongruência entre o plano fático e o subjetivo, não
correspondendo um ao outro, sendo que, em ambos, o Direito afasta a possibilidade de punição
a título de dolo (no caso da tentativa inidônea, afasta a punição peremptoriamente, seja a que
título for, conforme dito).
Analisando essa relação de desencontro entre os planos objetivo e subjetivo nas
hipóteses de tentativa inidônea e erro de tipo, Arias Eibe fala, respectivamente, em erro por
excesso e erro por defeito:
309
DÍAZ y GARCÍA CONLLEDO, El error... p. 181-2.
310
Pelo que, ao menos no Direito brasileiro, descabe falar-se, como faz Díaz y García Conlledo (Ibid. p. 181), que
na tentativa inidônea há dolo, mas não tipicidade objetiva: ausente esta, não se prossegue no exame das categorias
do delito, não havendo sentido em se examinar dolo de conduta tida por objetivamente atípica (assim como não se
examinam ilicitude de conduta atípica e culpabilidade de conduta lícita).
116
O tratamento penal dispensado aos casos de erro quanto a elemento constitutivo do tipo
não poderia mesmo ser diferente. Afinal, diversamente do que se dá quanto ao sujeito que age
com domínio sobre sua conduta, aquele que labora em erro não comunica, com seu proceder,
um distanciamento da norma jurídico-penal e um repúdio à sua validade tão intensos quanto
aqueles comunicados pela conduta do sujeito que age com domínio, pelo que a resposta penal,
para ser proporcional, realmente não pode ser da mesma intensidade.
Como não há, no erro quanto a elemento constitutivo do tipo, uma verdadeira decisão
de agressão contra o bem jurídico, a qual acaba por ocorrer sem que o agente decida por ela, a
norma penal não precisa se reafirmar com o mesmo vigor312, inexistindo, assim, a função
preventiva geral positiva da pena, ao menos no patamar verificado no caso inverso.
No mesmo sentido, como o agente vítima de erro não comunica aos membros da
sociedade um discurso de invalidade da norma, mas, apenas, um discurso de descuido, de
equívoco na percepção da realidade, não se perfaz, assim, a função preventiva geral negativa
da pena, não sendo necessária a associação desta a um comportamento tal, como modo de
incutir temor nos destinatários da norma, já que aquela conduta, que é descuidada, acidental,
incontida e descontrolada, não é o que a norma penal incriminadora visa a coibir.
311
ARIAS EIBE, El error... p. 28.
312
“(…) una comprensión comunicativa del injusto y de la pena sí proporciona una explicación satisfactoria de tal
diferencia agravatoria; a saber, de acuerdo a esta tesis, el fundamento de la pena de los delitos dolosos es garantizar
la vigencia de una expectativa normativa que ha sido conscientemente desautorizada; mientras que en los delitos
culposos el fundamento de la pena viene dado por la necesidad de asegurar estándares objetivos de peligro. La
imposición de una pena por la comisión dolosa de un hecho expresa que la norma defraudada sigue siendo la pauta
que rige la comunicación en el plano normativo, de modo que las personas en sociedad deben seguir orientando
su comportamiento de acuerdo a dichas expectativas. Por su parte, la pena a imponerse por la comisión culposa de
un hecho debe ser menos drástica que la prevista para el autor doloso, pues con ella se pretende asegurar estándares
objetivos de peligro” (REAÑO PESCHIERA, José Leandro. El error de tipo como reverso del dolo. Ius la revista,
n. 37, 2008. p. 307).
117
mesma forma como faria se efetivamente conhecesse a concorrência das elementares típicas
quando da prática da conduta.
Não é dado ao agente agir na suspeita de cometer, objetivamente, uma conduta típica,
lesionando ou expondo a perigo, assim, um bem jurídico-penal313; nessa hipótese, o Direito
reconhece o mesmo desvalor da conduta verificado na hipótese de plena ciência do contexto
fático314, trazendo como resposta, portanto, a mesma consequência jurídica315.
Também não é dado ao agente agir de forma descuidada, perder o controle sobre seu
atuar, gerando dano a ou expondo a perigo bem jurídico, hipóteses em que o Direito Penal há
de se manifestar; entretanto, reconhecendo um menor desvalor da conduta quando comparada
àquela fruto do pleno domínio do agente, o Direito reserva a essa hipótese uma resposta mais
branda – a culpa316.
O dolo eventual, inclusive, é de grande importância para a conceituação do erro quanto
a elemento constitutivo do tipo que aqui se propõe, mediante fundamentação da figura não
como um desconhecimento, puro e simples, da realidade fática, mas, sim, como uma
representação equivocada dos fatos, fruto do descontrole do agente sobre seu próprio
comportamento.
Afinal, à configuração do dolo eventual basta, conforme já aqui dito, a mera suspeita, a
dúvida quanto à concorrência das elementares típicas317, dúvida esta que Frosali define como
uma ignorância qualificada resultante de uma cognição ou hipótese específica que se pensa
poder, com maior probabilidade que outra, estar conforme a realidade318 (sem, porém,
313
VARELA, Norma e imputación... p. 689-90.
314
Ragués i Vallès critica tal equiparação, sustentando que, no dolo eventual, não há uma decisão contrária ou um
ataque frontal ao bem jurídico, mas apenas uma indiferença em relação a ele (o agente, no dolo eventual, não
atuaria contra o bem tutelado, mas apesar dele), pelo que sua distinção em relação à culpa seria meramente
quantitativa, não reclamando a mesma pena do dolo direto de primeiro grau (RAGUÉS i VALLÈS, La ignorancia
deliberada... p. 173-82).
315
“Quien ante el peligro de realización del tipo de la acción punible actúa de ese modo, demuestra un menosprecio
reprochable del bien jurídico protegido a causa de que el dolo eventual en su contenido de culpabilidad puede ser
equiparado a la intención y al dolo directo” (destaque no original) (JESCHECK; WEIGEND, Tratado... p. 321).
316
Lembre-se que o menor vigor da resposta penal à culpa não se resume à mais esparsa tipificação penal ou às
penas quantitativamente inferiores às correspondentes à conduta dolosa, manifestando-se, também, na ampla
possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos, independentemente do
quantum de pena, quando, em relação a condutas dolosas, há um limite de 04 (quatro) anos para tal procedimento
(art. 44, I, do CP); na possibilidade de concessão de perdão judicial em determinados casos (art. 121, §5º, e art.
129, §8º, ambos do CPB, por exemplo) etc.
317
“(...) es suficiente para el conocimiento la representación de que el propio actuar conducirá posiblemente a la
realización de un tipo. El conocimiento sólo falta por tanto cuando quien actúa no ha incluido en absoluto en su
representación un elemento del tipo” (destaque no original) (ROXIN, Derecho Penal... p. 458). Em sentido
diverso, adotando posicionamento absolutamente minoritário, María Laura Manrique entende que “en los casos
del dolo eventual el sujeto sabe exactamente aquello que hace y de hecho quiere hacer lo que está haciendo, pero
entiende que de esa acción es probable que se generen determinadas consecuencias dañinas que no desea”
(MANRIQUE, Ignorancia deliberada... p. 176).
318
FROSALI, Sistema penale italiano... p. 212.
119
segurança ou certeza subjetiva de tal conformidade), sendo certo que o sujeito que assim agir,
acabando por cometer, objetivamente, a conduta típica suspeitada, responderá perante o Direito
Penal a título de dolo, não lhe aproveitando a figura do erro de tipo.
Nesse sentido, preleciona Munhoz Netto:
Disso se extrai que o Direito admite a aplicação de pena referente ao dolo a casos de
ausência de conhecimento pleno dos fatos. Em outros termos, o
conhecimento/desconhecimento fático não pode ser o elemento diferenciador entre o dolo e o
erro de tipo, já que o dolo eventual desafia essa demarcação, atraindo para a zona do dolo, e
não para a do erro de tipo, hipóteses de conhecimento apenas indiciário.
No exemplo a que sempre se retorna, o agente que desconfia que a pessoa com quem
está prestes a praticar ato libidinoso é menor de 14 (quatorze) anos, ou seja, tem esse fato como
possível, não sabe que a pessoa é menor de 14 (quatorze) anos; em um caso como United States
v. Jewell, já analisado, o agente, diante dos indícios, não sabe que transporta droga, apenas
desconfia disso.
Apesar dessa ausência de conhecimento pleno, aqui se entende que esses casos
encaixam-se no conceito de dolo eventual.
Portanto, a nota diferenciadora entre o dolo e o erro de tipo há de ser, em verdade, na
linha do que aqui posto, a presença ou a ausência de domínio do sujeito sobre sua conduta: a
conduta plenamente dominada pelo agente não se encaixa no conceito de erro de tipo, ainda
que lhe falte conhecimento perfeito e acabado de todas as elementares típicas; tal conceito
engloba, apenas, condutas fruto de descontrole por parte do agente sobre a percepção dos fatos
que lhe circundam e do próprio sentido social de seu comportamento, descontrole este que
somente se manifesta por meio da equivocada representação da realidade fática, mas não da
ausência de representação, ou seja, do desconhecimento.
319
MUNHOZ NETTO, A ignorância da antijuridicidade... p. 4.
120
Nesse sentido, é de se observar que, nos casos de dolo eventual, não obstante faltar
conhecimento perfeito ao sujeito, há, inegavelmente, pleno domínio sobre a conduta: esta não
se baseia em qualquer equívoco do agente, o qual não pensa estar cometendo algo diferente do
que realmente comete; antes disso, se baseia, em verdade, na suspeita do fato, residindo o
desvalor da conduta na sua prática mesmo diante dessa dúvida, ou seja, no fato de o sujeito,
mesmo suspeitando que, ao assim agir, lesionará ou exporá a perigo bem jurídico digno de
tutela pelo Direito Penal, optar pela prática, e não pela investigação prévia ou pela abstenção,
em prol do bem jurídico.
Faz-se presente, portanto, o domínio sobre a conduta. Aquele que não sabe se a pessoa
com quem está prestes a praticar ato libidinoso é maior ou menor de 14 (quatorze) anos de
idade, suspeitando ser menor (ou seja, não laborando com base em errônea representação da
realidade, tendo uma certeza subjetiva de ser a pessoa maior quando, de fato, ela não o é), tem
a capacidade de decidir não praticar ato libidinoso com menor de 14 (quatorze) anos, podendo
exercê-la seja averiguando a realidade com afinco, seja se abstendo de praticar a conduta e,
assim, não correndo o risco de praticar o previsto pelo tipo penal.
Da mesma forma, aquele que transporta um recipiente sem saber, com segurança, que
seu conteúdo é de drogas ilícitas, porém suspeitando ser (ou seja, não possuindo errônea
representação da realidade, crendo verdadeiramente tratar-se de material lícito quando, de fato,
não o é), tem domínio sobre sua conduta e capacidade de decidir não transportar drogas ilícitas,
podendo exercê-la, novamente, tanto por meio de averiguação, quanto por meio de abstenção,
fugindo, assim, do risco de cometer a conduta objetivamente típica.
Conclui-se, na linha do que aqui defendido, que, no Direito brasileiro, diferentemente
do que pode se dar em outros ordenamentos320, o erro não é a cara negativa do dolo, como
dizem Zaffaroni et al., ou seja, não é um conceito derivativo, no sentido de que dolo é X e o que
não for X é erro. O erro, conforme previsto pelo Código Penal brasileiro, é, em verdade, um
conceito primário, que existe por si só, e não em função do dolo; não é, simplesmente, o não
dolo, mas uma figura autônoma com traços próprios, um ser cuja consequência normativamente
atribuída (dever ser) é o não reconhecimento do dolo, mas que não é, em si mesmo,
simplesmente o oposto do dolo.
320
No Direito peruano, por exemplo, José Leandro Reaño Peschiera entende que o erro é o perfeito reverso do
dolo, de modo que afirmar a configuração de um equivaleria a negar a configuração do outro. Esclarece, entretanto,
que, de lege lata, o único dispositivo capaz de fornecer um conceito legal de dolo seria o art. 14 do Código Penal
do país, que conceitua o erro e, assim, permitiria a conceituação do dolo, a contrario sensu (REAÑO PESCHIERA,
El error de tipo... p. 303-9). Essa circunstância do Direito positivo pode justificar tal forma de trabalhar a relação
entre o dolo e o erro; contudo, atente-se que a situação é diferente no Direito brasileiro, ante as previsões dos arts.
18 e 20 do CPB.
121
Tenha-se sempre em mente que a teoria do erro protege a boa-fé; não é uma brecha no sistema
penal por onde possam transitar os espertos.322
Estabelecida a distinção essencial entre ignorância e erro e delimitados, nos termos aqui
propostos, o conceito de erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime e a ratio do
seu tratamento legal, ainda pende de exame a questão de se saber se, mesmo não se encaixando
na previsão normativa do erro de tipo, mediante interpretação literal, seria possível incluir a
ignorância (especificamente a deliberada, objeto deste estudo) sob a norma, mediante analogia.
É dizer, mesmo sendo coisas distintas, é necessário examinar se a lógica subjacente à disciplina
legal do erro de tipo pode ser analogicamente transferida aos casos de ignorância deliberada
quanto a elemento constitutivo do tipo.
Na linha do que posto na seção anterior, parece não haver essa possibilidade
hermenêutica.
Já se estabeleceu, como fundamento do não reconhecimento do dolo nos casos previstos
pelo art. 20 do CPB, o descontrole do agente sobre sua própria conduta, sua condição de
verdadeira vítima de um engano.
321
FELIP i SABORIT, Error iuris... p. 263. Pedro Jorge Costa também entende que “o art. 20 do Código Penal
não traz conceito de dolo” (COSTA, Dolo penal... p. 14). Em sentido oposto, Lucchesi, ao entender que o conceito
legal de dolo, no Direito brasileiro, se dá mediante conjugação do art. 18 com o art. 20, ambos do CP: “Tomando-
se os próprios dispositivos do CP, pode-se perceber, em verdade, que o art. 18 não esgota o conceito de dolo; deve
ser complementado pelo caput do art. 20, que define erro de tipo. Ao estabelecer a lei penal que ‘[o] erro sobre
elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo’, coloca-se o conhecimento do autor a respeito das
circunstâncias elementares do crime como elemento essencial do dolo” (LUCCHESI, Punindo a culpa como dolo...
p. 136. Destaques no original). Greco vai além, defendendo que o conceito de dolo no Direito brasileiro pode
começar a se extrair não tanto da conjugação entre os dois dispositivos, mas, sim, do próprio art. 20: “(...) o
principal dispositivo do qual realmente se pode deduzir algo sobre o conceito de dolo em nosso direito positivo
não é o art. 18, I, mas sim o art. 20, que fala do erro de tipo. Daí deriva que a falta de conhecimento exclui o dolo;
logo, dolo pressupõe, no mínimo, conhecimento” (GRECO, Algumas observações... p. XVII). Semelhante
posicionamento adota Díaz Pita, que deduz a definição positiva do dolo no Direito espanhol indiretamente do art.
14 do CP do país – este sim, lembre-se, equivalente ao art. 20 do CP brasileiro -, entendendo que “se nos casos de
erro, ou seja, de conhecimento defeituoso ou ausência de conhecimento, o legislador, através da norma, exclui ou
atenua a responsabilidade do sujeito por ficar excluído o dolo, isso permite extrair a conclusão de que o dolo é só
conhecimento” (DÍAZ PITA, A presumida inexistência do elemento volitivo no dolo... p. 4). Repita-se que o
presente trabalho sustenta algo diverso: o que exclui o dolo não é a falta de conhecimento, mas o erro, não é a
falta de algo, mas a presença de algo, qual seja, a representação equivocada da realidade.
322
TOLEDO, O Erro... p. 105.
122
Tal fundamento não se faz presente, em grau absolutamente algum, nos casos de
cegueira deliberada, já definidos no Capítulo 4: nestes, o sujeito não é vítima de nada, posto
que a situação verificada é obra sua (no máximo ele seria, então, vítima de si mesmo); não
labora em engano, pois não representa os fatos de forma diversa da realidade; por fim, e este é
o ponto mais importante, ele não está em descontrole, mas em absoluto controle da situação,
dominando-a, tanto que esta é fruto de sua decisão consciente – o domínio é requisito para que
se possa decidir sobre algo.
O estado de cegueira deliberada, tal como definido neste trabalho323, revela não um
descontrole do agente sobre a situação, mas, em verdade, um absoluto domínio, exatamente,
sobre seu conhecimento324.
Conforme já aqui dito, o conhecimento sobre sua conduta propicia domínio ao agente,
que, assim, pode decidir pela sua prática ou abstenção. Contudo, parece claro que esse
conhecimento, em si mesmo, já pode ser objeto de domínio: especialmente quanto a fatos que
não ocorrem diretamente diante dos olhos do sujeito, tais como, em regra, são aqueles
relacionados à temática da omissão imprópria do dirigente empresarial, a pessoa detém pleno
domínio sobre a obtenção de conhecimento ou não sobre o fato, podendo decidir pela sua
obtenção, mediante busca de informações, ou pela sua alienação, mediante inércia e, ainda mais
efetivamente, construção de barreiras ao fluxo de informações até si.
Diante dessa constatação, mostra-se possível que o domínio sobre a conduta não seja
fruto do conhecimento dos fatos, somente nascendo mediante conformação deste, mas, em
verdade, o anteceda logicamente, o que ocorre naquelas hipóteses em que o indivíduo pode
decidir se o obtém ou se permanece em ignorância.
O descontrole do atuar em erro, justificativa racional do não reconhecimento do dolo,
não se faz presente em casos tais, revelando-se contraditório a aplicação da pena referente ao
crime culposo a um agente que domina absolutamente a situação e a sua conduta, não havendo,
em um cenário tal, nada de involuntário.
Nesse sentido, relembrando-se as lições de São Tomás de Aquino, já alhures referidas,
a ignorância causa o involuntário, pois priva do conhecimento que é exigido para o voluntário;
323
A definição de cegueira deliberada, constante do Capítulo 4, deve ser sempre lembrada ao longo do texto, para
se evitarem equívocos de compreensão: não se fala, aqui, de desconhecimento derivado de negligência, de
incompetência, de caso fortuito ou força maior, mas do desconhecimento deliberadamente provocado e buscado
pelo sujeito.
324
O domínio sobre os fatos, relativo, no crime omissivo impróprio do garante de vigilância, ao poder fático e
jurídico de agir para impedir o resultado, relaciona-se à tipicidade objetiva e, portanto, é tomado como pressuposto
neste trabalho.
123
entretanto, como, ainda de acordo com suas lições, o voluntário não gera o involuntário, o
próprio São Tomás já aponta para uma exceção à primeira assertiva: a ignorantia affectata.
Sua obra defende que o que advier de um estado voluntário não pode ser tido como
involuntário, ou seja, o agente não pode se furtar das consequências advindas de uma postura
voluntariamente adotada, sob o pretexto de involuntariedade daquelas: a voluntariedade da
causa acarreta a voluntariedade das consequências.
Assim, se o estado de ignorância é, em si, voluntário, o que dele advier não pode ser
afastado da responsabilidade do sujeito, estando abarcado pela sua decisão, expressada pela
vontade na causa:
De forma bastante resumida (até porque não é objeto deste estudo a temática das teorias
volitivas e cognitivas do dolo), é exatamente nessa linha que se desenvolveram as teorias
cognitivas do dolo326, reconhecendo-se a irrelevância de vontade psicológica em relação à
conduta e ao resultado dela advindo, desde que praticada com conhecimento dos fatos (esse
último ponto, sim, é o problema desde estudo).
A lógica subjacente a toda a construção teórica da irrelevância da vontade em sentido
psicológico-descritivo para fins de determinação do dolo é, precisamente, a de que o sujeito é
responsável pelo que advém de sua conduta conscientemente tomada, com pleno domínio da
situação: se o agente pratica A, sabendo o que faz, e, pelas leis naturais e universais, A produz
B, então B é imputável ao agente, independentemente de este, a nível psíquico, realmente querer
tal resultado327.
Adota-se, assim, a concepção normativo-atributiva de vontade, em que esta não é
detectada no plano do ser, no psiquismo do agente, mas lhe é atribuída, com base em uma
325
AQUINO, Suma teológica. Vol III. p. 269.
326
VIANA, Dolo como compromisso cognitivo. p. 251-95; GOMES, Dolo sem vontade psicológica... p. 97 e ss.;
GRECO, Dolo sem vontade. p. 885–903.
327
Interessante notar que mesmo Kaufmann, no contexto do Finalismo, já deixava transparecer, em sua obra, a
polissemia do termo querer, ao argumentar que, quando se fala em omissão querida, está-se a referir, em verdade,
à omissão acompanhada, apenas, do conhecimento do poder fático final, vez não haver vontade de omissão
(KAUFMANN, Dogmática... p. 90-7).
124
328
GRECO, Dolo sem vontade. p. 887.
329
PUPPE, A distinção entre dolo e culpa. p. 45-6.
330
SANTOS, Humberto Souza. Elementos fundamentais de um conceito de dolo político-criminalmente orientado.
Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 97, 2012. Acesso digital.
331
GRECO, Dolo sem vontade. p. 887-8.
332
GOMES, Dolo sem vontade psicológica... p. 99-100.
125
Contudo, ao abrir mão da vontade psicológica, por um lado, e manter-se fiel à exigência
de um conhecimento psicológico, por outro, conforme posicionamento veementemente
defendido por Greco333, para fins de reconhecimento do dolo, a teoria cognitiva parece ter ido
só até a metade do caminho proporcionado pela ratio em que se funda: requer-se o
conhecimento, ao entendimento de que é ele, e somente ele (com independência de qualquer
aspecto volitivo), que proporciona ao agente domínio sobre sua conduta, sendo este domínio
que permite que se reconheça o dolo; não se atenta, contudo, para a possibilidade de o domínio
não advir do conhecimento, mas o anteceder.
A ignorância deliberada há de ter um tratamento diferenciado334 exatamente por isso:
nela, o sujeito não possui qualquer déficit de domínio sobre os fatos, se comparado ao que teria
se obtivesse o conhecimento, sendo certo que a este não chega exatamente em virtude desse
domínio sobre o contexto fático em que inserido.
São Tomás de Aquino fundamenta, com absoluta propriedade, a necessidade de se dar
à ignorantia affectata um tratamento distinto do atribuído ao mero desconhecimento:
333
GRECO, Dolo sem vontade. p. 889-93.
334
É o que defende Reaño Peschiera, ao sustentar o reconhecimento não do erro de tipo, mas do dolo, em casos de
falta de conhecimento provocada pelo próprio agente. O autor critica a redação do atual Código Penal peruano,
que afasta o dolo em qualquer caso de erro, conforme põe, e sustenta o acerto da redação do Código revogado, de
1924, a qual “negaba expressamente efectos atenuantes a las apreciaciones erróneas de los hechos atribuibles a la
negligencia del autor, y al error sobre el carácter delictuoso del acto que sea imputable al propio autor (...)”
(REAÑO PESCHIERA, El error de tipo... p. 304).
126
335
AQUINO, Suma teológica. Vol IV. p. 376-8. Concorda-se integralmente, aqui, com a observação de Lorena
Varela, no sentido de que o Direito Penal continental tem muito mais a se beneficiar caso recorra à doutrina tomista
para lidar com os casos de ignorância deliberada do que à willful blindness doctrine, cuja inutilidade, em grande
medida, no Direito continental, já foi demonstrada, em seção anterior deste trabalho (Capítulo 3). Assim, “urge
relativamente la necesidad de desarrollar la teoría de la ignorancia voluntaria de Santo Tomás de Aquino en la
doctrina continental, puesto que esta contiene postulados teóricos mucho más compatibles que la de la teoría
angloamericana con el resto de las figuras subjetivas de imputación, como el dolo, el error y la temeridad”
(VARELA, Norma e imputación... p. 361-2. nota 1376).
336
Vide nota 257.
337
Em sentido diverso, entendendo que o agente que age em erro seguramente alteraria seu comportamento, se o
percebesse de antemão, ao passo que o indiferente seguiria seu caminho, cf. REAÑO PESCHIERA, El error... p.
305. Igualmente, Hungria, ao afirmar que o erro cria representação que determina conduta diversa da que o
agente teria seguido, se tivesse conhecido a realidade (HUNGRIA, Comentários... p. 181-3).
127
338
“(...) nada parece oponerse a que (...) se excluyan del concepto de error los casos de desconocimiento provocado
o ignorancia deliberada justificando esta conclusión en la idea de que no puede errar aquél que no tiene interés en
conocer. En otras palabras, quien no tiene la más mínima intención de saber no se equivoca con su
desconocimiento, o no emite ningún juicio falso sobre la realidad, precisamente porque lo que busca es no tener
que emitir juicio alguno” (destaque no original) (RAGUÉS i VALLÈS, La ignorancia deliberada... p. 197).
339
Vide nota 283.
340
FELIP i SABORIT, Error iuris... p. 263.
128
de convencimento sobre seu procedimento, ele não teria se posto em estado de ignorância
deliberada, ele teria ido atrás da informação.
É de se ter em mente, ainda, que o agente que está em erro jamais se planejou para tanto;
sua representação errônea da realidade deve-se a defeito de percepção, não a uma decisão de
errar, a qual, em verdade, seria até mesmo inconcebível. Afinal, em termos bem simplistas, para
que alguém possa decidir errar quanto a algo, é necessário, logicamente, que esse alguém saiba
o que é o certo e, então, siga o oposto. Ocorre que, se o sujeito conhece a realidade, já estará
afastado o erro.
Já o agente que está em cegueira deliberada decidiu ocupar essa posição e adotou
técnicas voltadas, especificamente, à blindagem da informação, seja não indo em busca desta,
quando tal empreendimento lhe era plenamente factível, seja obstando a chegada desta a si.
Trata-se, portanto, de uma situação sobre a qual ele detém absoluto domínio, tanto que como
tal a conformou, de acordo com a sua deliberação, e, frequentemente, a mantém dominada ao
longo do tempo, sendo-lhe possível, caso assim decida, passar a agir em sentido contrário e
adquirir o conhecimento que até então vinha bloqueando341.
Fixado o descontrole como elemento essencial do erro de tipo, a partir da oposição entre
domínio e descontrole, ressai clara a distinção entre tal figura e o estado de cegueira deliberada,
não podendo este ser encaixado dentro daquele: trata-se de situações distintas, causadas por
eventos também distintos.
Afirmou-se, aqui, que, nos casos de erro de tipo, não se faz presente a função preventiva
geral da pena (ao menos não com a intensidade própria dos casos dolosos), já que a conduta
não comunica aos membros da sociedade um discurso de invalidade da norma jurídico-penal e,
portanto, não reclama a pena como reafirmação da norma (prevenção positiva) ou temor
difundido pela inobservância desta, posta a pena como consequência (prevenção negativa) 342.
Nos casos de cegueira deliberada, por outro lado, não se pode dizer o mesmo. Afinal, a
conduta daquele que decide se postar em situação proposital de desconhecimento e age ou se
omite independentemente de haver, em tal conduta, lesão ou exposição a perigo de bem
jurídico-penal, comunica aos demais um discurso de invalidade da norma de proteção do bem
341
“A ignorância é criada e, portanto, a deliberação por si só parece ter em si inerente a característica da
evitabilidade” (SYDOW, A teoria da cegueira deliberada. p. 190).
342
“(…) el comportamiento realizado por un sujeto inmerso en una situación de defecto cognitivo absoluto e
inevitable, no puede interpretarse como defraudador de las expectativas garantizadas en las normas penales. Quien
no sabe lo que hace no puede cuestionar la pretensión de vigencia normativa que posee el ordenamiento jurídico,
a menos que el Derecho le exija alcanzar el conocimiento ausente” (destaques acrescentados) (REAÑO
PESCHIERA, El error de tipo... p. 306).
129
vulnerado, devendo esta, a princípio, se reafirmar por meio da pena, efetivando-se, assim, as
duas referidas facetas da prevenção geral343.
Esse aspecto se faz presente com especial vigor em casos de crimes omissivos
impróprios, objeto específico deste estudo.
Por meio de tal figura dogmática, o Direito Penal cria ao sujeito, conforme já visto, um
plexo de obrigações de proteção ou de vigilância, o que, muitas vezes, pode, de fato, representar
um pesado fardo para a pessoa, a qual se vê obrigada a agir no sentido da neutralização de
cursos causais externos que se mostrem perigosos a bens jurídicos alheios.
Não obstante esse ônus, o Direito, diante dos fundamentos que legitimam o
reconhecimento de uma posição de garantia, reputa adequada a imposição desse conjunto de
deveres de atuação, por meio de uma norma mandamental que impõe o agir a seu destinatário
– o garante.
O estado de cegueira deliberada, portanto, comunica um discurso de invalidade dessa
precisa norma mandamental, na medida em que, por ele, o sujeito decide-se pelo
desconhecimento, pelo não acompanhamento da atividade que lhe incumbia vigiar.
A princípio, então, a função preventiva geral da pena (novamente, nos moldes em que
reconhecida por seus defensores) se faz presente nos casos de cegueira deliberada, sendo
necessária a reafirmação da norma mandamental que o discurso transmitido pela conduta
deliberada do garante pinta como inválida, determinando-se o fracasso dessa conduta
atentatória aos bens jurídicos dignos de proteção pelo garante, bem como o estabelecimento de
temor à norma, por meio da sanção aplicada, sob pena de se passar aos membros da sociedade
uma mensagem de tolerabilidade da conduta, ou seja, de admissibilidade do não cumprimento
deliberado dos deveres inerentes à posição de garantia.
Igualmente do ponto de vista da prevenção especial a pena, em casos tais, se justificaria,
a princípio.
Assim como dito que o sujeito que, contando com representação adequada da realidade,
decide pela agressão ao bem jurídico, o faz por ver alguma vantagem a si na conduta, permitindo
a conclusão pela possibilidade de reiteração, caso não haja intervenção estatal, exatamente o
mesmo pode ser dito quanto ao agente deliberadamente cego.
Se o sujeito decidiu por esse estado, o qual, frequentemente, requer, além da decisão
pela sua manutenção, a adoção de medidas efetivas para a blindagem à informação, conforme
343
“(…) difícilmente puede afirmarse que quien no conoce porque no quiere conocer fracase en su planificación
individual y que no niegue con su desconocimiento deliberado la norma penal que venga al caso” (RAGUÉS i
VALLÈS, El dolo y su prueba... p. 439).
130
já dito, por certo o fez em seu próprio interesse, ou seja, reconhecendo alguma vantagem a si
no procedimento.
Assim sendo, caso não haja qualquer reprimenda e o Estado, instituidor do dever
inobservado, nada faça para reafirmar ao sujeito a obrigatoriedade de observância deste, é
cabível entender-se pela possibilidade de reiteração da conduta, não havendo motivos para o
agente não repetir o que julga ser de seu interesse e que não trouxe qualquer prejuízo a si,
mediante punição.
Em conclusão, parece que nada que fundamenta o não reconhecimento do dolo nos casos
de erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime encontra similar nos casos de cegueira
deliberada, os quais, assim, não poderiam se encaixar na previsão do art. 20 do CP, seja por
analogia, seja por interpretação extensiva344.
Na síntese de Felip i Saborit, “quien no sabe por carecer de interés alguno en conocer,
por rechazo o indiferencia o, incluso, por falta intencional de adquisición del conocimiento no
incurre en error”345.
344
Pedro Jorge Costa reconhece que, trabalhando-se com a distinção entre erro e ignorância, não subsistem
“problemas de compatibilização entre a ignorância deliberada e o conceito de erro de tipo do art. 20 do Código
Penal” (COSTA, Dolo penal... p. 269. nota 191).
345
FELIP i SABORIT, Error iuris... p. 263.
131
O capítulo anterior foi dedicado ao erro de tipo e seu cotejo com a cegueira deliberada,
tendo chegado à conclusão pela essencial diferença entre as duas figuras e, por corolário, pela
inaplicabilidade, ainda que mediante analogia, da regra do art. 20 do CPB aos casos de cegueira
deliberada.
Contudo, reconhecer que não se trata de hipótese de erro de tipo não implica,
diretamente, reconhecer o dolo, vez que, conforme aqui posto, um não é, pura e simplesmente,
o reverso do outro, senão duas figuras que, se bem sejam mutuamente excludentes, não exaurem
as possibilidades de conformação de um indivíduo ante um fato penalmente relevante.
Para que este trabalho atinja o objetivo a que se propôs, ainda pende de resposta a
indagação quanto à possibilidade de imputação dolosa em casos de ignorância deliberada.
Para tanto, propõe-se, a seguir, uma breve justificação do princípio da culpabilidade no
Direito Penal, com o limitado escopo de se identificarem as razões pelas quais a
responsabilidade nesse campo do Direito há de ser subjetiva e o que, exatamente, isso quer
dizer, para, em seguida, se fundamentar o tratamento penal que aqui se defende, quanto à
possibilidade de imputação dolosa do crime omissivo impróprio ao agente garantidor, no
contexto empresarial, deliberadamente cego quanto à situação típica de perigo.
346
SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Fundamentos del derecho penal de la empresa. Buenos Aires: B de f, 2013.
p. 27.
132
manuseio de um conceito teórico com finalidades às quais ele não se presta ou em situações em
que ele não se encaixa lhe é tão maléfico e afrontoso quanto sua própria negação.
Nessa linha, pontua-se que a exigência do aspecto subjetivo da responsabilidade penal
tem por fim, basicamente, o não reconhecimento do caráter criminoso do fato com fulcro, pura
e simplesmente, no mal causado, com independência de qualquer ligação subjetiva do indivíduo
com o acontecido.
Assim é que, de acordo com Ferrajoli, pelo princípio da culpabilidade, “nenhum fato ou
comportamento humano é valorado como ação se não é fruto de uma decisão;
consequentemente, não pode ser castigado, nem sequer proibido, se não é intencional, isto é,
realizado com consciência e vontade por uma pessoa capaz de compreender e de querer”347.
A responsabilidade objetiva, admitida em outros ramos do Direito (e, conforme visto
em seção anterior deste trabalho, também no próprio Direito Penal, no âmbito do common law,
por meio dos strict liability crimes), não se coaduna com o Direito Penal de origem romano-
germânica e com as finalidades da pena, já aqui brevemente apontadas, na medida em que
legitima o estabelecimento de responsabilidade por situações não controladas e, mais ainda, não
controláveis, pessoalmente, pelo indivíduo.
Em hipóteses tais, como já se expôs acima, ao se tratar do erro de tipo, a pena não se
justifica, sob qualquer viés que se a analise. Se o mal causado era absolutamente incontrolável
por parte do agente, a função retributiva da pena não passaria de crueldade e desumanidade,
vez que se estaria a retribuir um mal que a pessoa não podia impedir.
O Direito Penal não cobra de ninguém que evite o inevitável e não pune ninguém por
não ter feito o impossível. O dever jurídico-penal imposto a cada um circunscreve-se ao seu
domínio pessoal, é dizer, o indivíduo só pode responder por aquilo que domina.
Nesse sentido, Gabriel Pérez Barberá, comentando os princípios nullum crimen sine
culpa e nullum crimen sine lege, os condensa ao enunciar que “no son reprochables acciones
no evitables, ni tampoco acciones evitables, pero no expressamente prohibidas”348, deixando
claro, assim, que a garantia da culpabilidade relaciona-se com a evitabilidade do fato, valendo
repetir que o domínio sobre algo é pressuposto para que se possa evitá-lo.
Ressai claro o porquê, então, de não se admitir a responsabilidade penal nos casos de
erro de tipo invencível, pois se trata de verdadeira impossibilidade de compreensão, pelo agente,
do conteúdo de sua conduta, não podendo ele, portanto, ser responsabilizado por algo que lhe
era absolutamente inacessível e, por isso mesmo, incontrolável.
347
FERRAJOLI, Direito e razão.... p. 447.
348
PÉREZ BARBERÁ, El dolo Eventual... p. 666.
133
Daí Hungria ponderar, com o usual acerto, que “não pode ser reconhecido culpado o
agente quando lhe era impossível cuidar que estava incorrendo no juízo de reprovação que
informa o preceito incriminador”349: a punição pela incursão no juízo de reprovação
configuraria, no erro de tipo invencível, responsabilização pelo incontrolável.
Por óbvio, o domínio sobre algo não acarreta, necessariamente, o dever jurídico-penal
sobre a situação: ainda que um agente, diante de um ferido que necessita de socorro imediato,
tenha, dentro de sua esfera de domínio, a possibilidade de evitar o resultado morte, seja lá por
que meio for, não tem, pelo Direito Penal, o dever de assim agir, se não for garante de proteção
dessa pessoa ou garante de vigilância da fonte de perigo que a atingiu – tem o dever geral de
assistência e solidariedade de, em um caso tal, prestar socorro, mas não de evitar o resultado,
ainda que este lhe seja dominável.
Assim, necessário esclarecer: o domínio do sujeito sobre o fato é condição necessária,
mas não suficiente, ao estabelecimento de um dever jurídico (ao menos na seara penal) relativo
a este. Ao domínio, devem se somar outros elementos que conformem o dever, tais como a
relação de proximidade e de proteção entre o sujeito e o titular do bem jurídico periclitado ou a
relação de vigilância entre aquele e uma fonte determinada de perigo, que justificam o
estabelecimento de um dever jurídico a esse sujeito diferente do imposto à coletividade em
geral.
Na síntese de Barberá, acima referida, o domínio subjaz ao princípio da culpabilidade,
ao qual ainda se soma o estabelecimento desse dever jurídico, necessariamente previsto por Lei,
conforme o princípio da legalidade, sendo cabível a atuação do Direito Penal apenas mediante
atendimento a esses dois requisitos.
Além da função retributiva, também o viés preventivo da pena falha por completo diante
de situações indomináveis pelo agente: o que é indominável, por essência, foge ao controle da
pessoa e, uma vez repetidas, no futuro, as causas que, no passado, o originaram, voltará a
ocorrer, independentemente de qualquer postura do sujeito. Não há o que se prevenir diante de
situações incontroláveis.
Ferrajoli vê aí um dos fundamentos externos da garantia da culpabilidade, constituído
pelo viés utilitarista da prevenção geral da pena, reconhecendo que a cominação de pena
somente tem função de intimidação sobre condutas culpáveis, não sendo possível prevenir-se
penalmente fatos não culpáveis, em relação aos quais, por serem inexigíveis, a pena seria
supérflua350.
349
HUNGRIA, Comentários... p. 181-3.
350
FERRAJOLI, Direito e razão... p. 451.
134
O primado da responsabilidade penal subjetiva radica suas raízes nesse preciso ponto: o
sujeito só é responsável por aquilo que domina; o que foge ao seu domínio não pode lhe ser
imputado, sob pena de quebra de toda a lógica do Direito Penal.
É a noção de domínio que subjaz à ideia de responsabilidade subjetiva, e não meramente
a de conhecimento, a de vontade ou qualquer outra metonímia daquela351. Sustentar que a
responsabilidade penal é subjetiva implica dizer que a pessoa pode ser penalmente
responsabilizada pelo que ela domina, sem maiores especificações.
O domínio pessoal como nota fundamental da responsabilidade penal subjetiva se
manifesta por meio de diferentes institutos da teoria do delito, relacionados tanto ao juízo de
tipicidade, quanto ao de culpabilidade. Exemplo disso é o não reconhecimento do caráter
criminoso de ato cometido por pessoa inimputável por sofrimento mental (art. 26 do CPB) ou,
também, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior (art. 28, §1º, do
CPB).
Nesses casos, o ilícito cometido era incontrolável pelo agente, dado que fugia, em
absoluto, do seu domínio. A imposição de pena por um fato tal, da mesma forma que por fato
cometido em erro de tipo invencível, não se justifica sob qualquer viés que se a analise: a
retribuição reduzir-se-ia a uma maldade e a prevenção seria inócua, conforme já aqui visto.
Em verdade, a noção de domínio já se faz presente, ao longo das categorias da teoria do
delito, antes mesmo de se ingressar no juízo de tipicidade, permeando indissociavelmente o
próprio conceito de ação, já abordado em seção anterior deste trabalho, o qual pode, sem
grandes complicações, ser tido como sinônimo de conduta dominada pelo sujeito.
Daí, por exemplo, o não reconhecimento de ação nos casos de sonambulismo, ato
reflexo ou coação física irresistível. O que todas essas hipóteses têm de semelhante é a ausência
de domínio do sujeito sobre o ato, sendo seu corpo instrumentalizado, seja por terceiros, seja
por forças naturais ou fisiológicas, e levado a dar causa a resultados que, portanto, fugiam do
seu controle.
No âmbito da tipicidade, a observância ao critério do domínio se faz notar não apenas
na imputação subjetiva, mas também já na objetiva, o que se constata, com especial relevância,
nos crimes omissivos impróprios. Afinal, como já visto, a evitabilidade do resultado, dadas as
circunstâncias pessoais e concretas do agente, é elemento da própria tipicidade objetiva da
351
COSTA, Dolo penal... p. 213-9. O autor conclui que “não há nenhuma ofensa ao princípio da culpabilidade
entendido como vedação à responsabilidade objetiva pela tese do dolo consistente em juízo de reprovação e que
tem por conteúdo inclusive elementos mentais constituídos ou significados pela conduta e seu contexto” (Ibid. p.
218). Tal abordagem ao dolo, a que se refere o autor, será trabalhada na seção seguinte.
135
conduta, não podendo o garante ser responsabilizado por um resultado que ele não podia, no
caso concreto, impedir.
Nesse sentido, o poder de agir a que se refere o art. 13, §2º, do CPB, pode ser visto
como mais uma manifestação do princípio da culpabilidade, por afastar a responsabilidade
penal em relação a fatos incontroláveis pelo agente, ainda que se trate de lesão a um bem
jurídico que lhe competia proteger ou advinda de uma fonte de perigo que lhe competia vigiar.
Em conclusão, o princípio da culpabilidade, ao estabelecer que a responsabilidade penal
é subjetiva (ou, em outros termos, depende de culpa lato sensu), a nada mais alude, que não o
domínio pessoal do sujeito sobre um fato. Dizer que a responsabilidade penal é subjetiva é dizer
que a pessoa só pode ser responsabilizada, no âmbito do Direito Penal, pelo que ela domina,
sem mais.
Seria absurdamente ambiciosa a construção de uma teoria própria de dolo, o que este
trabalho não objetiva, de forma alguma (e nem mesmo poderia fazê-lo). O que se pretende,
nesta última seção, é, tão somente, partir-se de teorias já estabelecidas para se buscar uma
resposta aos casos de cegueira deliberada do dirigente empresarial quanto à situação típica de
perigo reclamadora da sua intervenção, como agente garantidor.
A definição de dolo é, certamente, um dos temas mais conturbados do Direito Penal,
permanecendo o debate em aberto. O longo embate entre as diversas teorias volitivas e as
cognitivas demonstra que os elementos integrantes do conceito são amplamente discutidos, ao
que se soma, ainda, a moderna tendência de objetivação do dolo, que introduz restrições
normativas à vontade e ao conhecimento enquanto puros estados mentais ou, em abordagens
mais extremadas, chega a deles prescindir, trazendo, assim, propostas de solução ao irresoluto
non liquet entre as teorias clássicas352.
A esse movimento, José Carlos Porciúncula se refere como intersubjetivação,
exteriorização ou, simplesmente, objetivação do dolo, consistente na paulatina substituição de
seu antigo entendimento como uma entidade psicologicamente real, situada no âmbito interno
do sujeito, pela sua noção enquanto componente de um sentido exteriorizado; abandona-se,
assim, o que se designa pela metáfora de uma caça ao fantasma na máquina (ou seja, uma
352
RAGUÉS i VALLÈS, Ramon. De nuevo, el dolo eventual: un enfoque revolucionario para un tema clásico.
InDret: Revista para el Análisis del Derecho, v. 3, 2012. p. 1.
136
353
PORCIÚNCULA, José Carlos. Lo “objetivo” y lo “subjetivo” en el tipo penal: hacia la “exteriorización de lo
interno”. Barcelona: Atelier, 2014. p. 301-2.
354
Ibid. p. 308.
355
Ibid. p. 309-10.
356
PÉREZ BARBERÁ, El dolo eventual... p. 46-7. Referindo-se à classificação de ambos como conceitos
normativos, pondera: “Posiblemente (...) esto sea más sencillo de aceptar justamente para la imprudencia, a la que
se está más acostumbrado a observar como un constructo normativo. Pero la cuestión no tiene por qué ser diferente
para el dolo. No hay ninguna razón dogmática, ni normativa, ni epistémica ni ontológica que justifique tal
diferenciación entre ambas categorías. Ni, mucho menos, para justificar cierta equiparación ontologizante:
igualmente injustificada es la tendencia de los últimos años, conforme a la cual se retoman las ideas de la segunda
posguerra y de algunos autores del período clásico en orden a, por así decirlo, ‘psicologizar’ la imprudencia,
equiparándola a desconocimiento o error, esto es, identificando también a ella con un determinado indicador
empírico de índole psíquica” (Ibid. p. 668).
137
357
Ibid. p. 48-9.
358
COSTA, Dolo penal... p. 201.
359
PÉREZ BARBERÁ, El dolo Eventual... p. 644. Em similar sentido, Pedro Jorge Costa, também se afastando
do posicionamento de Porciúncula, entende que “sintaticamente, o dolo é condição para aplicação de determinadas
sanções penais. Metodologicamente, isso implica que o dolo não é fato empírico a ser subsumido em um conceito:
é parte dos conceitos que subsomem um caso individual. Logo, ao contrário do que defende a doutrina dominante,
o dolo não se cuida de fato, nem psicológico, nem físico, nem institucional. (...) O dolo, conceito normativo,
jurídico, não é propriedade empírica a se atribuir ao agente. Não há propriamente dolo in re ipsa nem in actio ipsa”
(COSTA, Dolo penal... p. 202).
360
“(…) a diferenciação entre elementos descritivos e normativos vem sendo relativizada pela doutrina, uma vez
que tem-se identificado que inúmeros elementos típicos podem ser considerados em parte descritivos e em parte
normativos – se é que isso não ocorre em todos os elementos do tipo penal. Tome-se como exemplo a palavra
pessoa, utilizada na maioria dos códigos penais para identificar o sujeito passivo nos crimes contra a vida. No
homicídio, é um claro exemplo de elemento descritivo do tipo e, no entanto, em suas ‘zonas limite’, quais sejam,
o início e o fim da vida humana, o elemento passaria a ser normativo, pois a mera apreensão sensorial não nos
indicará se estamos diante de uma pessoa, mas deverá ser realizada uma valoração apoiada em normas jurídicas”
(GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Teoria geral da parte especial do direito penal. São Paulo: Atlas,
2014. p. 105-6).
361
“(…) tanto el dolo como la imprudencia se aplican a casos individuales conformados por una serie de datos,
pero ni el dolo ni la imprudencia son ninguno de esos datos. (…) el dolo es algo distinto, que no coincide con el
138
Em um caso concreto, o que se tem é a pessoa A, com conhecimento do que faz, que
efetua disparos de arma de fogo à curta distância contra o peito da pessoa B, levando-a a óbito.
Nesse fato, o elemento típico matar encontra-se preenchido pelos disparos de arma de fogo
contra o peito, com geração de óbito; o elemento alguém encontra-se preenchido por pessoa B;
e dolosamente está preenchido pelo conhecimento do que se faz, aliado às circunstâncias
objetivas do caso.
O ponto para o qual Barberá chama a atenção é que, assim como matar não é efetuar
disparos de arma de fogo contra o peito e alguém não é a pessoa B, dolosamente não é
conhecimento do que se faz: os disparos, a pessoa B e o conhecimento são dados empíricos que
fazem com que aquele caso concreto se conforme à moldura legal; não são, porém, os elementos
do caso genérico.
Sintetizando esse ponto da teoria em exame, o que o autor propugna é que, no exemplo
dado, da mesma forma que o elemento do caso genérico matar poderia ser atendido por outro
elemento empírico que não os disparos de arma de fogo (golpes de arma branca, por exemplo)
e o elemento alguém poderia ser atendido por outro ser, que não a pessoa B, também o elemento
dolosamente poderia se configurar mediante outras circunstâncias concretas, que não,
necessariamente, o conhecimento do que se faz362.
O autor chega, assim, à definição de dolo como “reproche objetivo a la acción que se
aparta de una regla jurídico-penal, mediando ex ante una posibilidad objetivamente
privilegiada de que su autor prevea ese apartamiento”363, diferenciando-se da culpa apenas
quanto ao grau dessa possibilidade de que o agente preveja, ex ante, seu afastamento da norma,
o qual, na culpa, seria objetivamente atenuado.
Aclarando-se os termos dessa definição, tem-se que o juízo de valor negativo (reproche)
é objetivo por se fundar em padrões gerais do Direito (e não em um parecer subjetivo-
conocimiento, la voluntad, etcétera; estos datos, llegado el caso, pueden conformar un supuesto de hecho
subsumible en el concepto de dolo, pero el dolo no se identifica con ellos” (destaques no original) (PÉREZ
BARBERÁ, El dolo Eventual... p. 749-50).
362
“El dolo, entonces, no puede ser un hecho (ni psíquico, ni físico, ni institucional) (…). Pues ‘dolo’ no es una
propiedad empírica que se atribuye a una persona, sino una propiedad (normativa) que caracteriza al presupuesto
abstracto previsto en una norma genérica como condición para la aplicación de una solución determinada. Lo que
se atribuye a una persona, en todo caso, es la posesión de determinados datos psíquicos al momento de la acción,
como, v.gr., conocimiento, intención, etcétera. Pero ninguno de esos datos (...) es el dolo. Ellos, simplemente,
contribuirán a conformar el caso individual a subsumir en un caso genérico doloso, siempre y cuando el concepto
que dé contenido semántico al dolo como propiedad definitoria de ese caso genérico permita considerar a tales
datos como relevantes: per se, la presencia o ausencia de conocimiento y otros datos empíricos no dice nada acerca
de la presencia o ausencia de dolo” (Ibid. p. 644).
363
Ibid. p. 648. Trecho em itálico no original.
139
individual) e, também, por ser referir à ação praticada, não à pessoa (reservando-se o reproche
individual ao juízo de culpabilidade)364.
A esse singular aspecto ainda se retornará com maior atenção, importando, aqui, apenas
destacar que, por essa ponderação do autor, o que se sublinha, em termos bastante simples, é
que cabe ao Direito, e não ao indivíduo, decidir se determinada conduta praticada por este se
encaixa ou não em um caso genérico (tipo penal) doloso. É um juízo objetivo, trazido pelo
Direito, não subjetivo, ditado pelo indivíduo.
Quanto ao grau de possibilidade objetiva de previsão de afastamento da norma, nota
distintiva, na teoria de Barberá, entre dolo e culpa, esclarece-se que ele determina o nível de
evitabilidade da conduta e do resultado por ela produzido, o que explica a diferença quantitativa
entre a punição a título de dolo e de culpa, posta a evitabilidade como medida da
culpabilidade365.
Ademais, o autor pontua que essa possibilidade é objetiva, determinada por padrões
racionais, e não aquela que o autor representa subjetivamente. Esta, em verdade, “no se la toma
‘como viene’; ella es sometida a un juicio objetivo de relevancia, igual que todo otro dato
empírico, psíquico o físico”366.
Quanto a este ponto, discorda-se, no presente trabalho, da leitura que Jorge de la Rúa
faz da teoria de Barberá: para o orientador da tese de Doutorado que resultou na obra aqui tão
referida, a previsibilidade objetiva de afastamento da norma penal, para seu orientando, traria
uma exigibilidade de saber, um dever de conhecimento, sendo que a intensidade desse dever é
que definiria o cabimento do juízo de reproche doloso ou culposo367.
A interpretação parece incorreta porque a teoria de Barberá, em absoluto, não institui
um dever de saber e filia o juízo de reproche à sua inobservância, como se, em termos simples,
o dolo coubesse nos casos em que o agente soubesse ou devesse saber. Essa linha de
entendimento soa inconciliável com a teoria do autor, na medida em que se centra, ainda, na
relevância do conhecimento, fundando o dolo ou na sua presença, ou, em caso de ausência, no
dever de que ele se fizesse presente.
O que Barberá põe é que, conforme se exporá em detalhes à frente, o conhecimento per
se não é o dolo e não é condição necessária ao dolo. Ora, se não é condição necessária, descabe,
por lógica, atribuir consequências a um suposto dever de sua presença, pois apenas há de estar
364
Ibid. p. 663-4.
365
Ibid. p. 667-8.
366
Ibid. p. 674.
367
DE LA RÚA, Jorge. Prólogo. In: PÉREZ BARBERÁ, Gabriel. El dolo eventual: hacia el abandono de la idea
de dolo como estado mental. Buenos Aires: Hammurabi, 2011. p. 36.
140
368
PÉREZ BARBERÁ, El dolo Eventual... p. 669-70.
369
Ibid. p. 752-4.
370
Ibid. p. 754-5.
141
371
Ibid. p. 755. O autor entende, nesse sentido, que “quien irracionalmente no prevé, axiológicamente actúa
(siempre desde un punto de vista objetivo) de manera no menos reprochable – al menos no en una medida relevante
– que quien prevé racionalmente. (…) a mayor intensidad comunicativa del apartamiento de la regla, mayor
reproche objetivo. ‘Reprochabilidad objetiva’, aquí, significa únicamente capacidad comunicativa objetivamente
suficiente contra la regla. (…) tanto quien actúa conociendo racionalmente como quien lo hace no conociendo
irracionalmente se encuentran, objetivamente, en mejores condiciones (= con mejores posibilidades) de poder
prever el apartamiento de la regla que quien actúa no conociendo racionalmente o quien lo hace conociendo
irracionalmente” (Ibid. p. 650).
142
perderá seu caráter de objetivo e passará a funcionar como uma reprovação pessoal, dosada para
aquela pessoa específica, levando-se em conta suas vicissitudes e circunstâncias concretas, o
que, conforme já dito, se reserva ao juízo de culpabilidade, não ao de tipicidade, em que inserido
o dolo.
Essa racionalidade subjaz, por exemplo, em alguma medida, à formulação da teoria de
dolo de Puppe, especificamente no que tange ao critério da qualidade do perigo representado,
pelo qual se analisa, objetivamente, a representação do autor, tal como por ele formulada, para,
então, se qualificar o perigo por ele conhecido como doloso ou culposo, a depender de sua
aptidão objetiva à produção do resultado proibido pela norma penal372.
Afinal, por essa lógica, eventual representação irracional do indivíduo é desconsiderada
e não afeta a imputação: é o caso, por exemplo, do agente que, ciente do que faz, esconde uma
bomba de alto poder de destruição em baixo da cama do melhor amigo e a detona quando este
se deita, representando subjetivamente, como resultado dessa conduta, nada mais do que uma
brincadeira, tendo a intenção de, apenas, dar um susto no amigo, o qual, de forma objetivamente
óbvia e previsível, morre com a explosão373.
Em um exemplo tal, parece que o que a teoria de Puppe faria, mutatis mutandis, ainda
que não se valendo desses específicos termos, é desconsiderar essa valoração subjetiva
irracional que o indivíduo formulou de sua própria conduta e, com base no seu conhecimento
sobre os fatos, reconhecer, ali, a criação consciente de um perigo objetivamente doloso.
Até aí, a teoria da autora parece se aproximar da de Barberá, ao também tratar
normativamente os fatos, em alguma extensão. A distinção entre as duas construções reside em
que, em Puppe, somente se chega a essa normatização a partir do que conhecido subjetiva e
empiricamente pelo sujeito374, ao passo que, em Barberá, a normatização já engloba esse prévio
372
Nesse sentido, a autora pontua que o agente não tem “competência de decidir de modo irrecorrível sobre a
relevância de um risco por ele conhecido” (PUPPE, A distinção entre dolo e culpa. p. 102).
373
Pela teoria de Barberá, “una ausencia de intención de realizar un peligro resulta epistémicamente irracional – y
por tanto irrelevante para la formulación de la pertinente hipótesis de probabilidad – si la magnitud de aquél es tal
que la falta de intención de ninguna manera podría contribuir a modificarla” (PÉREZ BARBERÁ, El dolo
Eventual... p. 774).
374
“O autor deve conhecer tantos fatores integrantes do risco de realização do tipo por ele criado quantos sejam
necessários para qualificar esse risco como um risco doloso. Ele não precisa, contudo, valorar o perigo como um
método idôneo para a realização do tipo, pois se trata de uma questão de direito, e não de fato. Ele deve, todavia,
saber da existência de um perigo de realização do tipo. Se lhe falta, por qualquer razão que seja, essa consciência,
então pode-se-lhe formular o reproche da cegueira diante dos fatos, mas não do dolo de realização do tipo”
(destaques no original) (PUPPE, A distinção entre dolo e culpa. p. 87-8), e, também, “O conhecimento tem função
constitutiva para o injusto, o que se pode verificar na constituição dos deveres de cuidado, que dependem de que
se parta de determinados conhecimentos do autor” (Ibid. p. 105).
143
estágio, sendo possível, como dito, desconsiderar-se até mesmo um desconhecimento ou uma
falta de representação do fato, se irracionais375.
Também a jurisprudência brasileira, ainda que sem o assumir, já encampa essa regra de
relevância enunciada por Barberá sem maiores dificuldades. Basta pensar, por exemplo, nos
inúmeros casos de receptação que, diariamente, passam pelos Tribunais, nos quais, a pretexto
de se reconhecer que o agente sabia que o bem que adquiriu era produto de crime (art. 180 do
CPB), o que se faz, a bem da verdade, é afastar eventual desconhecimento (falta de
representação) tido por irracional ou inaceitável.
Pense-se no caso, por exemplo, de uma pessoa que é abordada na rua, no centro de uma
grande cidade brasileira, por um transeunte que aparenta nervosismo e pressa e não traz
qualquer identificação comercial ou algo que o valha, e adquire deste, após segundos de
conversa superficial, o produto que ele lhe oferece de forma absolutamente furtiva, retirando-o
sorrateiramente de dentro de sua calça, onde o trazia escondido, junto à cintura (após tê-lo
furtado de outro pedestre, minutos antes): um smartphone de última geração, desacompanhado
de qualquer acessório (carregador, fones de ouvido etc.), caixa ou nota fiscal, pagando pelo bem
o que tinha em sua carteira naquele momento (R$ 80,00, R$ 100,00, que seja), quando, em
verdade, o valor de mercado do aparelho gira em torno de R$ 4.000,00.
Pode-se afirmar, com segurança, que, em um caso tal, a jurisprudência brasileira, em
regra, não hesitaria em placitar uma condenação nos termos do caput do art. 180 do CPB, e não
no §3º do dispositivo376, ainda que, genuinamente, o agente não tivesse representado a origem
375
Em crítica ao que considera o ponto mais questionável da teoria de Puppe, Barberá sustenta, com propriedade,
que: “(...) la conceptualización del dolo como conocimiento de las circunstancias que permitan afirmar,
objetivamente, la existencia de un peligro de dolo, como Puppe de hecho propone, importa identificar el concepto
(supuestamente normativo) de dolo con un dato empírico: el conocimiento, entendido por Puppe como dato óntico
(psíquico). Y ello es, en definitiva, lo más cuestionable de la tesis de esta autora: pese a todo el esfuerzo invertido
en demonstrar que su tesis importa un cambio de paradigma, conforme al cual se deja de lado la situación fáctico-
psicológica del autor para poner en primer plano el valor expresivo de su comportamiento dentro de un proceso de
comunicación entre seres racionales, etcétera, se insiste no obstante con la idea de que dolo es conocimiento, i.e.,
un estado mental, un fenómeno empírico” (destaque no original) (PÉREZ BARBERÁ, El dolo Eventual... p. 495-
6). Não obstante essa crítica, com a qual aqui se concorda, Barberá reconhece o valor da teoria de Puppe, dizendo
ter sido a mais estimulante construção teórica para o desenvolvimento de sua própria concepção de dolo (Ibid. p.
489). Para as críticas daquele à teoria desta, cf. Ibid. p. 489-99.
376
Como dito, são numerosíssimos os casos em que isso se dá na jurisprudência brasileira, não sendo esta a sede
adequada para um exaustivo levantamento jurisprudencial. Apenas para se comprovar o que dito no texto, vejam-
se, a título exemplificativo, os seguintes julgados, todos trazidos apenas dos Tribunais de Justiça de Minas Gerais
e de São Paulo, referentes a apelações julgadas em 2018 e a casos concretos muitíssimo próximos do aventado no
texto (compra de telefone celular produto de furto/roubo nas mãos de pessoa descredenciada para tanto,
normalmente na rua, sendo a tese defensiva, rejeitada em todos os julgados, a ausência de dolo), do que já se pode
ter uma dimensão da frequência das ocorrências:
TJMG: Apelação Criminal 1.0183.17.008734-4/001, Relator(a): Des.(a) Flávio Leite, 1ª Câmara Criminal, j.
17/07/2018, p. 25/07/2018; Apelação Criminal 1.0114.15.007845-8/001, Relator(a): Des.(a) Wanderley Paiva, 1ª
Câmara Criminal, j. 10/07/2018, p. 18/07/2018; Apelação Criminal 1.0024.17.070884-6/001, Relator(a): Des.(a)
144
criminosa do bem, por se tratar, por exemplo, de pessoa com pouca experiência de vida e
nenhuma malícia, que, sinceramente, acreditou ter sido sortudo o bastante para encontrar
tamanha barganha377.
Os Tribunais o fazem, contudo, sem o assumir abertamente, fundamentando as decisões
condenatórias, usualmente, sob o pretexto de que a questão se resolve em discussão
probatória378 e que, dadas aquelas circunstâncias fáticas, era impossível que o agente não tivesse
a referida representação subjetiva, estando ele, assim, mentindo ao dizer que não sabia ser o
celular produto de crime (“sabia sim!”, diria o Judiciário).
Ocorre que, raramente ou não (a frequência das ocorrências não é o relevante aqui), o
réu, em casos assim, tal como no exemplo aqui aventado, não está mentindo: ele realmente não
formulou a representação da origem criminosa do bem que adquiriu.
O que, honestamente, subjaz a uma condenação por receptação dolosa em um caso tal
é, exatamente, a ideia de que o Direito não pode aceitar uma ingenuidade tão absurda, ou seja,
um estado mental tão apartado dos padrões normais da sociedade, uma ausência de
representação de circunstância fática tão irracional (“pouco importa se, de fato, sabia ou não:
naquelas circunstâncias, a aquisição do celular configura uma receptação dolosa!”, pensaria o
Judiciário).
Nesse sentido, da leitura do inteiro teor dos acórdãos referidos na nota 376, constata-se,
inegavelmente, que todas as condenações não se preocuparam com o conhecimento dos réus
quanto à origem criminosa dos celulares, mas sim com as circunstâncias fáticas de cada caso, a
Júlio Cezar Guttierrez, 4ª Câmara Criminal, j. 04/07/2018, p. 11/07/2018; Apelação Criminal 1.0145.16.015165-
3/001, Relator(a): Des.(a) Catta Preta, 2ª Câmara Criminal, j. 03/05/2018, p. 14/05/2018.
TJSP: Apelação 0020679-14.2016.8.26.0114, Relator(a): Des.(a) Otávio de Almeida Toledo, 16ª Câmara de
Direito Criminal, j. 24/07/2018, r. 25/07/2018; Apelação 0001167-91.2016.8.26.0616, Relator(a): Des.(a) Juvenal
Duarte, 5ª Câmara de Direito Criminal, j. 05/07/2018, r. 05/07/2018; Apelação 0000271-54.2017.8.26.0635,
Relator(a): Des.(a) Márcio Eid Sammarco, 9ª Câmara de Direito Criminal, j. 28/06/2018, r. 29/06/2018; Apelação
0043902-33.2012.8.26.0050, Relator(a): Des.(a) Alexandre Almeida, 11ª Câmara de Direito Criminal, j.
20/06/2018, r. 22/06/2018; Apelação 0009292-45.2016.8.26.0229, Relator(a): Des.(a) Silmar Fernandes, 9ª
Câmara de Direito Criminal, j. 14/06/2018, r. 15/06/2018; Apelação 0000719-25.2017.8.26.0571, Relator(a):
Des.(a) Sérgio Coelho, 9ª Câmara de Direito Criminal, j. 24/05/2018, r. 15/06/2018.
A metodologia de pesquisa consistiu em, simplesmente, inserir os termos apelação, receptação, celular e dolo nas
ferramentas de pesquisa de jurisprudência dos sites dos referidos Tribunais, não havendo qualquer outro
direcionamento quanto aos termos pesquisados, pelo que se pode afirmar ser esse o padrão de decisões nessa
matéria.
377
“En casos difíciles, en donde no es del todo claro si debe condenarse por dolo o por imprudencia, o si debe
absolverse en el supuesto de que no esté previsto el correspondiente delito imprudente, lo cierto es que los jueces
sólo condenan por dolo cuando la argumentación a favor de la imprudencia o de la irrelevancia jurídico-penal les
resulta irracional o directamente inatendible” (PÉREZ BARBERÁ, El dolo Eventual... p. 812).
378
Exatamente por isso, a matéria dificilmente chega aos Tribunais Superiores, incidindo o enunciado pela súmula
nº. 7 do Superior Tribunal de Justiça (nesse sentido, cf. AgRg no AREsp 1232360/GO, Relator(a): Min.(a) Jorge
Mussi, Quinta Turma, j. 22/05/2018, p. 01/06/2018), o que explica o recorte do breve levantamento jurisprudencial
constante da nota 376 à Instância ordinária.
145
Percebe-se que o que orienta a decisão condenatória pelo crime doloso não é nenhum
dado psicológico subjetivo daquele réu em específico, mas, sim, padrões normativos
socialmente estabelecidos, de acordo com os quais se entende que, dado um determinado
cenário fático, a possibilidade objetiva de previsão do afastamento da norma penal era
privilegiada.
Interessante trazer, no mesmo sentido, a redação do Regulamento Modelo Sobre Delitos
de Lavagem de Ativos Relacionados com o Tráfico Ilícito de Drogas e Outros Delitos Graves,
da Comissão Interamericana para o Controle do Abuso de Drogas (CICAD), órgão da
Organização dos Estados Americanos (OEA), já alhures referido, que, em seu art. 2º, ao traçar
balizas orientativas para a atividade legiferante dos Estados signatários quanto à tipificação do
379
Acórdão disponível em:
http://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaNumeroCNJEspelhoAcordao.do;jsessionid=1D939C0F88D45A
D16CD63A1D5D183EE7.juri_node1?numeroRegistro=1&totalLinhas=1&linhasPorPagina=10&numeroUnico=
1.0145.16.015165-3%2F001&pesquisaNumeroCNJ=Pesquisar. Acesso em 29/07/2018.
380
Acórdão disponível em:
http://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia/pesquisaNumeroCNJEspelhoAcordao.do;jsessionid=1D939C0F88D45A
D16CD63A1D5D183EE7.juri_node1?numeroRegistro=1&totalLinhas=1&linhasPorPagina=10&numeroUnico=
1.0114.15.007845-8%2F001&pesquisaNumeroCNJ=Pesquisar. Acesso em 29/07/2018.
146
crime de lavagem de capitais nos ordenamentos internos, dispõe textualmente, em seu item 5,
que “o conhecimento, a intenção ou a finalidade exigidos como elementos de quaisquer dos
delitos previstos neste artigo, bem como que os bens e os instrumentos se achem relacionados
com atividades delituosas graves, poderão ser inferidos das circunstâncias objetivas do caso”381,
a corroborar o acerto de se trabalhar o dolo não a partir de dados psíquicos ou subjetivos,
pretensamente extraídos da mente do indivíduo, mas como um juízo valorativo objetivo de uma
dada circunstância fática.
Veja-se que, ao assim se proceder, não se incorre, de forma alguma, em responsabilidade
penal objetiva, vez que há, aí, respeito ao poder de domínio do agente e a parâmetros normativos
racionais.
Apenas para se permanecer no exemplo e completar o raciocínio, responsabilidade penal
objetiva haveria no caso de se condenar por receptação dolosa aquele que se dirige a uma loja
regularmente constituída e instalada em um shopping center e lá adquire um celular seminovo,
em bom estado de conservação, acompanhado de documentação fiscal sem vícios formais ou
materiais aparentes, estojo e acessórios, pagando o equivalente a cerca de 50% (cinquenta por
cento) do que custaria o mesmo bem novo, sendo tal aparelho, contudo, produto de crime, vez
que, posteriormente, veio à tona a descoberta de o proprietário do estabelecimento integrar
organização criminosa cuja atividade consistia na comercialização, sob fachadas de legalidade,
de produtos eletrônicos furtados/roubados, tendo aquele específico celular sido roubado de um
pedestre, poucos dias antes.
Nesse caso, o estado mental em questão (ausência de representação da circunstância
fática – origem criminosa) é absolutamente racional e objetivamente justificável, pelo que a
segunda regra de relevância de Barberá impõe sua consideração para fins de imputação penal,
sendo certo que, nesse exemplo, a teoria de dolo do autor conduziria, como qualquer outra, à
impossibilidade de imputação da conduta, tanto por dolo, quanto por culpa, diante do inegável
erro de tipo invencível382, não havendo, na situação fática, qualquer grau considerável de
previsibilidade objetiva do afastamento da norma penal.
Fez-se esse brevíssimo excurso jurisprudencial apenas para se demonstrar que esse
ponto da teoria de dolo aqui exposta apenas oficializa o que já é a praxis jurisprudencial em
381
Disponível em: www.scm.oas.org/idms_public/PORTUGUESE/hist_03/cicad01437p06.doc. Acesso em
30/07/2018.
382
Frise-se que o agente não ignorava a origem criminosa do bem, ele representava sua origem lícita, vez que
adquirido em estabelecimento regular, com documentação fiscal sem vícios aparentes.
147
muitos grupos de casos383, trazendo-lhe fundamentos teóricos honestos que, exatamente por
isso, podem causar algum susto à primeira vista, reação esta que parece não resistir a um exame
mais calmo das questões trazidas.
Prosseguindo, tem-se que uma hipótese de estado mental irracional expressamente
reconhecida por Barberá configura-se nos casos em que dito estado se mostra “objetivamente
incompatible con las normas de conducta elementales características de la generalidad o de la
actividad específica de que se trate, que garanticen un desarrollo de esa actividad acorde a
estándares mínimos”384.
Essa colocação se mostra de interesse para o problema da presente pesquisa, na medida
em que, conforme já se expôs em capítulo anterior, aquele que ocupa uma posição de garantia
penal se vê sujeito a todo um plexo de deveres próprios dessa posição específica, sendo que, no
caso de garantes de vigilância, incumbe-lhes o dever de efetivamente fiscalizar a fonte de perigo
a eles submetida, de modo a manter a atividade desta dentro de padrões mínimos de segurança
e evitar possíveis resultados advindos do desrespeito a tais estandartes.
O estado mental de ignorância dominado pelo autor é essencialmente incompatível com
tais normas, na medida em que estas determinam ao agente exatamente o oposto: que vigie a
fonte de perigo, sendo impossível vigiar algo sem saber como este algo está385.
Seguindo essa linha, os casos de cegueira deliberada quanto à situação típica de perigo,
por parte do garante, encontram resposta fundamentada na teoria de Barberá386, posto que,
383
Barberá também tem a mesma percepção quanto à jurisprudência alemã e argentina, pontuando que “(...) en
todos los casos lo que ha hecho realmente los tribunales al momento de decidir los casos reales es evaluar pautas
de racionalidade respecto a la alegación real o posible de la concurrencia de determinados estados mentales. (...)
De allí nuestra conclusión en el sentido de que la presente investigación no sólo intenta reconstruir qué es el dolo,
sino que de hecho importa también una reconstrucción de lo que los tribunales implícitamente hacen en la práctica.
Nuestra concepción, de hecho, permitiría a los jueces fundamentar adecuadamente sus conclusiones sin tener que
caer en burdas hipocresías o ficciones, como cuando, por ejemplo, para poder afirmar el dolo sostienen que el
autor se representó la posibilidad del peligro aun cuando es evidente que ello no ha sido así (…). Mucho más
honesto intelectualmente y adecuado científicamente es admitir que también es posible condenar por dolo aun
cuando no exista representación efectiva, y dar las razones de por qué ello es así” (destaques no original) (PÉREZ
BARBERÁ, El dolo Eventual... p.797-8). Entende o autor, ainda, que sua teoria “constituye una reconstrucción
analítica de lo que realmente sucede en la práctica, aunque ella no lo asuma explícitamente” (Ibid. p. 812).
384
Ibid. p.767. Destaque no original.
385
“(…) el directivo de una empresa que organiza su estructura de subalternos de forma a asegurarse no saber lo
que éstos hagan para no enterarse de eventuales conductas delictivas que aquellos cometan y de esa forma escapar
de posibles incriminaciones a él (ejemplo de Ragués i Vallès (…)), actúa en contra de las normas elementales que
permiten caracterizar a su actividad como la propia de un directivo de empresa (es decir, las que definen su posición
de garante como tal): un directivo que obrara así no sería, en verdad, un directivo, que debe estar informado de lo
que hacen sus subalternos para poder ejercer ese cargo (…)” (Ibid. p. 798. nota 387). Vide, contudo, observação
na nota seguinte.
386
Registre-se que essa resposta é aqui extraída dos enunciados da teoria do autor como um todo, vez que seu texto
não trata, especificamente, do caso da ignorância deliberada, abordando-o apenas en passant na nota de rodapé
referida na nota anterior e, ainda, de forma um pouco confusa e até mesmo contraditória. Afinal, após o trecho
citado na nota anterior, o autor dá a entender, de forma infundada, que não caberia o juízo de reproche doloso no
caso de representação subjetiva de não mais do que condutas típicas indeterminadas. Tal afirmação colide com
148
sendo este um estado mental irracional, vez que objetivamente incompatível com as normas
elementares da atividade específica, deve ele, conforme a segunda regra de relevância
enunciada, ser desconsiderado para fins de formação do juízo de reproche objetivo.
Após essa desconsideração, o juízo deve se formar, então, a partir dos demais elementos
do caso concreto, de modo a identificar se este se subsome a um tipo penal doloso, a um culposo
ou, ainda, se é atípico, sendo estes elementos que demonstrarão se, naquele caso, cabe o
reproche objetivo, diante de uma possibilidade, também objetiva, de o autor prever, ex ante, o
afastamento da norma penal, e, em caso afirmativo, se esta possibilidade era objetivamente
privilegiada (dolo) ou atenuada (culpa).
Portanto, tratando-se os casos objeto deste estudo pela ótica da teoria de Barberá, vê-se
que não será em todo e qualquer caso de cegueira deliberada do garante que caberá o
reconhecimento do dolo387, mas apenas naqueles em que, em que pese a ausência de
conhecimento e, portanto, de possibilidade subjetiva de previsão do ilícito, se constate uma
possibilidade objetivamente privilegiada388 de tal previsão.
Não se trata, destarte, de fundar a imputação, simplesmente, naquilo que o agente
poderia vir a conhecer, como se vê em algumas críticas (superficiais e simplistas) à teoria da
cegueira deliberada389, mas de trazer à formação do juízo de imputação aquilo que o agente
decidiu não conhecer.
Pense-se, por exemplo, em um crime cometido por um empregado no contexto
empresarial, crime este que se insere na zona de vigilância do dirigente da empresa que o
supervisiona (o qual, portanto, deveria, enquanto garante, ter evitado o resultado advindo do
ilícito), sendo que a empresa em questão instalou e mantém em funcionamento um
rigorosíssimo programa de integridade, em que as atividades dos supervisionados são
acompanhadas de perto e se guiam por códigos de conduta estabelecidos pela direção
empresarial. Não obstante tudo isso, dito empregado chegou a cometer o crime, escapando ao
rígido controle de seus supervisores, somente tendo o fato vindo à tona após consumado.
Em um caso tal, verifica-se a tipicidade objetiva do crime omissivo impróprio, vez que
atendidos todos seus requisitos, inclusive a capacidade de ação (valendo lembrar, neste ponto,
toda a racionalidade de sua teoria, conforme reconhecido em crítica de Ragués i Vallès à referida nota de rodapé
de Barberá (RAGUÉS i VALLÈS, De nuevo, el dolo eventual... p. 9. nota 20), reclamando ulteriores
esclarecimentos por parte do autor, não apresentados na obra aqui referida.
387
PÉREZ BARBERÁ, El dolo Eventual... p. 791.
388
Note-se que Barberá usa o termo privilegiada em sentido oposto ao que ele usualmente tem no Direito Penal:
quer dizer algo como favorecida, especial, e não atenuada, de menor gravidade ou desvalor, como se faz ao se
falar, por exemplo, em um tipo penal privilegiado. Em verdade, atenuada é o adjetivo com que o autor qualifica a
possibilidade objetiva de previsão caracterizadora da culpa.
389
LAUFER; SILVA, A teoria da cegueira deliberada... p. 11.
149
o que já dito em capítulo anterior do trabalho, no sentido de, contrariamente ao que propugnado
pela doutrina finalista, não ser o conhecimento da situação típica elemento da capacidade de
ação, a qual é objetiva). Não se verifica, contudo, o dolo, ante a ausência de uma possibilidade
objetivamente privilegiada de previsão ex ante do fato típico.
E isso, vale frisar, se dá com independência da disposição subjetiva do garante - ou seja,
esteja ele em cegueira deliberada ou não -, pois, repita-se, o juízo de possibilidade de previsão
é objetivo.
Adotando-se os parâmetros trazidos pela teoria de dolo desenvolvida por Barberá, como
aqui se propõe, chega-se, portanto, à conclusão de que a imputação dolosa do crime omissivo
impróprio ao garante em cegueira deliberada não é irrestrita, como se a decisão pela ignorância
fosse uma espécie de carta branca a permitir com que tudo pudesse ser imputado ao agente.
Afinal, se, em uma análise objetiva, a possibilidade de previsão, pelo garante, do afastamento
em relação ao comando da norma penal, é inexistente ou desprezível, a conduta será atípica, e,
se for atenuada, dará lugar ao reproche culposo. Somente caberá o reproche doloso se tal
possibilidade for objetivamente privilegiada, quando, então, a ausência de sua formulação a
nível subjetivo, por irracional (como no estado de cegueira deliberada), deve ser
desconsiderada.
Descobre-se, assim, uma resposta ao problema da pesquisa, mediante formulação de
uma proposta de tratamento penal que se reputa adequada para casos de cegueira deliberada do
garante quanto à situação típica de perigo, em um contexto empresarial.
Na síntese de Barberá, aqui incorporada, tem-se que:
390
PÉREZ BARBERÁ, El dolo Eventual... p. 43. Destaque no original.
391
Em sentido contrário, Estellita entende que, à luz do art. 20 do CPB, o conhecimento das elementares do tipo
objetivo é componente sine qua non do dolo (ESTELLITA, Responsabilidade penal... p. 288).
150
pois dolo é juízo objetivo, conceito normativo que, como tal, há de se pautar pela racionalidade,
inadmitindo-se premissas irracionais no silogismo, sob pena de se chegar a uma conclusão
também irracional392.
Este trabalho defende que é uma conclusão irracional negar-se o dolo diante do
desconhecimento fático de forma peremptória e açodada, independentemente de se analisar
mais nada, entregando-se, assim, na mão do indivíduo decidir se sua conduta, objetivamente
típica, será ou não criminosa.
Um dos argumentos que os textos que sustentam teorias cognitivas do dolo
recorrentemente erigem contra as teorias volitivas é, exatamente, de estas atribuírem ao sujeito,
e não ao Direito, a competência para decidir o que é dolo, ao que fatalmente se chega, se se
entender dolo como conhecimento e vontade, esta última em sentido psicológico-descritivo.
Empregam, assim, as teorias cognitivas, em regra uma concepção normativo-atributiva de
vontade, o que, supostamente, resolve o problema.
Resolve-o, contudo, pela metade: ao se manterem firmes na exigência de um
conhecimento psicológico para fins de conformação do dolo, restringindo a abordagem
normativa do conceito apenas ao aspecto volitivo, tais teorias, ainda que digam o contrário393,
continuam deixando nas mãos do indivíduo, e não do Direito, decidir o que é dolo394.
392
Pedro Jorge Costa sustenta a inaplicabilidade desse ponto da teoria de Barberá ao Direito brasileiro, entendendo
que, à luz do Direito positivo, a representação subjetiva do fato é sempre necessária à imputação dolosa (COSTA,
Dolo penal... p. 206 e ss.). Assim o faz por adotar a teoria unificadora entre erro e ignorância (embora talvez o
faça sem se dar conta, pois há passagem na obra em que afirma não ser seu objeto de estudo o erro e sua relação
com a ignorância – p. 296, nota 191), entendendo que “o art. 20 (do Código Penal) traz consequências em favor
do autor para a ausência de representação, qual seja, a exclusão do dolo por erro de tipo” (Ibid. p. 208). A
conclusão, contudo, parece contraditória com a seguinte passagem da mesma obra: “(...) o art. 20 do Código Penal
não traz conceito de dolo. Verdadeiramente, apenas institui a impossibilidade de imputação dolosa se o agente
não representa os elementos constitutivos do tipo. Nada trata a respeito da possibilidade de impor condições ao
erro como excludente da tipicidade dolosa se as condições se dessumirem do sistema penal vigente. Pode-se,
perfeitamente, interpretar a norma no sentido de que o erro de tipo não beneficia o autor se ele o provocou ou se o
erro não é de ser racionalmente aceito. Se essa interpretação é a melhor, é questão distinta (...)” (destaque
acrescentado) (Ibid. p. 14). Contraditórias as passagens porque, enquanto nesta o autor reconhece que o art. 20 do
CPB ao menos possibilita a adoção do ponto da teoria de Barberá de que aqui se trata, naquela, afirma que a teoria
é de todo inaplicável ao Direito brasileiro (o que não é o mesmo que dizer que ela não é a melhor). Ademais, a
segunda passagem transcrita mostra-se contraditória em si mesma, pois afirma que o art. 20 do CP impossibilita a
imputação dolosa se o agente não representa os elementos do tipo, para, logo em seguida, dizer exatamente o
contrário.
393
“Como argumento adicional pode-se recordar a crítica feita por Herzberg e acolhida por Puppe contra a doutrina
dominante. Considerar decisiva para o dolo a vontade de quem atua significa, em última análise, atribuir a quem
atua a competência para decidir se há ou não dolo. Ocorre que não é o agente, e sim o direito quem tem de exercer
essa competência. Não se pode relegar ao arbítrio do autor essa decisão, doutro modo (...) todo aquele que
conscientemente realiza uma ação perigosa para a vida da vítima pode escapar da responsabilização por dolo, se
tiver uma segunda intenção incompatível com a morte da vítima, como por ex. a intenção de cometer um estupro”
(GRECO, Dolo sem vontade. p. 896).
394
Em crítica, especificamente, à teoria de Puppe, Barberá pondera: “Según esta postura doctrinaria, em tanto el
autor sea consciente de uma determinada situación fáctica, ella será valorada conforme a los parâmetros objetivos
del derecho, no según los parámetros subjetivos del autor. Pero si el autor no se representa algo, entonces queda
excluida ya toda posibilidad de imputar dolo a partir de lo no representado. La no representación no se enjuicia,
151
sólo se enjuicia la representación. Aquí, en cambio, (…) lo que resulta es que también la ausencia de representación
debe enjuiciarse conforme a parámetros objetivos” (destaque no original) (PÉREZ BARBERÁ, El dolo Eventual...
p. 674-5). Pedro Jorge Costa observa, com acerto, que Barberá, em verdade, nada mais faz, senão levar a teoria de
Puppe às últimas consequências (COSTA, Dolo penal... p. 206).
395
Vide nota 226.
396
De fato, os crimes omissivos possuem peculiaridades que reclamam uma adaptação dos institutos construídos
com base nos crimes comissivos. Nesse sentido, Stratenwerth pontua: “Ambas formas de conducta son
esencialmente diferentes en su estructura: en el delito de omisión, el autor, en lugar de actuar, precisamente no
lleva a cabo una acción (mandada). De allí que los principios de la imputación jurídico-penal tengan que ser, en el
delito de omisión, esencialmente distintos a los del delito de acción. Sin embargo, la dogmática penal se ha
orientado durante mucho tiempo, predominantemente, según el modelo del delito de acción, de manera que los
presupuestos y las formas de la responsabilidad penal en el delito de omisión son aún extremadamente dudosas en
muchos aspectos” (STRATENWERTH, Derecho Penal... p. 379).
152
última análise, se o Direito Penal pode alcançá-lo ou não. É tornar o Direito refém do
indivíduo397.
A se seguir esse entendimento, aqui tido por inadequado, pode-se dizer que tudo que o
Direito Penal busca fazer por meio da tipicidade objetiva do crime omissivo impróprio de um
garante de vigilância se esvaece pela tipicidade subjetiva que costuma se exigir para o delito.
Pelo tipo objetivo, o garante é incumbido de uma série de deveres cujo estabelecimento não se
dá em vão, mas em decorrência de o Direito reconhecer que há, ali, uma fonte de perigo que
essa pessoa domina, com exclusão das demais, pelo que é ela responsável pela sua vigilância e
contenção, de modo a que sua liberdade de conformação de uma fonte de perigo não afete a
liberdade e o direito de terceiros de não se verem lesados por essa fonte. Pelo tipo subjetivo, tal
como desenhado pela doutrina majoritária, tudo isso cai por terra e se entrega exatamente a essa
pessoa, onerada com os referidos deveres, decidir se tais ônus poderão ou não lhe ser exigidos,
se poderá ser punida ou não pela sua inobservância.
A prevalecer isso, ingênuo é o empresário que sabe, que fiscaliza sua empresa, que
estabelece canais efetivos de denúncia interna de irregularidades, que faz tudo de natureza
preventiva que lhe cabe, na qualidade de garante. Esse empresário, se, em meio às suas
atividades de vigilância, tomar conhecimento de uma situação típica de perigo, deverá agir para
evitar o resultado, sob pena de ser penalmente responsabilizado.
Já o empresário esperto cuidará, sem dúvida alguma, de se pôr em estado de ignorância
e, assim, poder permanecer inerte e, maravilhosamente, intocável pelo Direito Penal, ainda que
não tenha cumprido qualquer parcela de seus deveres, enquanto agente garantidor.
É necessário ter-se em conta que, quando se fala em agir para evitar o resultado, não
se está, muitas das vezes, a se referir a algo simples ou economicamente indiferente, como um
telefonema que o dirigente possa dar a um empregado, ordenando isto ou aquilo, e pronto.
Frequentemente, no contexto de grandes empresas, essa ação de evitação de resultados típicos
é algo bastante trabalhoso, custoso e economicamente desinteressante. Pode-se estar falando,
por exemplo, em alterar o funcionamento de uma fábrica poluidora mediante instalação de
equipamentos de tratamento de resíduos, filtros em chaminés, máquinas menos poluidoras,
emprego de matérias-primas limpas, contratação de outras empresas especializadas na
397
“(...) não é demais pontuar que as figuras da ignorância deliberada e da actio libera in causa, prevista no art.
28, II, do Código Penal, ecoam uma mesma ratio: a regra de que ninguém pode desfrutar de uma causa
de exclusão de responsabilidade penal provocada em benefício próprio” (destaques no original) (PRADO, Dos
crimes... p. 300). O tema da actio libera in causa e sua aplicabilidade à categoria da tipicidade, em casos de
cegueira deliberada, é instigante, porém foge ao escopo deste trabalho, merecendo reflexões à parte. Para um breve
paralelo entre as duas figuras, cf. VARELA, Norma e imputación... p. 662-4, e SYDOW, A teoria da cegueira
deliberada. p. 245-54.
153
prevenção de poluição e coleta de resíduos tóxicos, tudo com custo elevado e possível redução
da produtividade da fábrica. Pode-se, também, estar falando no desmantelamento de todo um
setor de propina estruturado e voltado a práticas corruptas das mais variadas formas, no seio de
uma empreiteira cujo bilionário faturamento depende, em grande parte, de contratos com a
Administração Pública.
Tudo isso para se demonstrar que o cumprimento dos deveres de garante penal no
contexto empresarial é onerosíssimo e, assim sendo, qualquer alternativa para se escapar dessa
verdadeira cilada que o Direito Penal criou para os ocupantes de posições de garantia dentro de
empresas se mostra interessantíssima tanto do ponto de vista pessoal, quanto institucional e
econômico.
A exigência de conhecimento subjetivo, sob pena de atipicidade penal, é um verdadeiro
oásis para o garante que, após se assustar (com razão) ao se dar conta do que o Direito lhe cobra,
encontra uma luz salvadora no fim do túnel: basta não saber, e tudo estará resolvido.
Sydow chama a atenção para esse ponto, destacando as vantagens econômicas que o
sistema de imputação subjetiva clássico, ao exigir a presença de estados psicológicos
(conhecimento real e efetivo, vontade, intenção...), acaba por atribuir ao estado de ignorância.
O autor observa que uma alternativa interessante ao sujeito racional seria, exatamente, seu
distanciamento físico em relação à consequência material da conduta, de modo que ele possa
colher os proveitos econômicos, sem saber o que se passa na outra ponta da operação398.
O aspecto também é trabalhado em profundidade por Hamdani, que, escrevendo no
contexto do common law, classifica como ponto negativo do conceito de mens rea o potencial
efeito de desincentivo que este tem em relação à obtenção de conhecimento sobre aspectos
penalmente relevantes da conduta, vez que, tendo conhecimento, o agente se expõe à
responsabilidade penal pelo ato que cometer, ao passo que a ignorância lhe asseguraria os
benefícios da conduta, sem riscos de responsabilização penal, sendo, portanto, a melhor
398
SYDOW, A teoria da cegueira deliberada. p. 101-4.
154
estratégia a ser adotada pelo sujeito racional399, em um sistema que exija a presença de
conhecimento subjetivo400.
O autor observa que mesmo a formulação da willful blindness doctrine, mediante os
requisitos postos pela jurisprudência americana, já examinados em capítulo anterior deste
trabalho, não chega a oferecer uma solução satisfatória para o que considera o defeito
fundamental da noção de mens rea. Para Hamdani, a exigência de suspeitas e consciência
subjetiva da alta probabilidade de ocorrência do fato torna a teoria ineficiente em relação ao
sujeito que, estrategicamente, se distancia da informação, não chegando a formular,
subjetivamente, a representação nem mesmo dessa alta probabilidade401, pelo que conclui que
a teoria formulada no seio do common law, por seu limitado escopo, traz poucos incentivos ao
indivíduo, para que este supere a ignorância e atinja o conhecimento402.
Neste trabalho, defende-se, na linha do que apontado por Hamdani, que a admissão da
ignorância como alternativa segura e intocável à responsabilização penal gera um sistema penal
irracional403, sendo exatamente isto o que Barberá denuncia e busca evitar com sua teorização
do dolo - e consegue: a irracionalidade de uma premissa (desconhecimento) a contaminar todo
o silogismo e conduzir a uma conclusão também irracional (inflexível ausência de dolo).
Defende-se, portanto, que o indivíduo pode ser senhor do seu conhecimento e realmente
o é, quanto a fatos fisicamente distantes de si, objeto de conhecimento possível, mas não
naturalmente necessário; que o dolo não é conhecimento; que o desconhecimento na cegueira
deliberada do garante é irracional, vez que objetivamente incompatível com as regras
elementares da atividade específica de garante penal no contexto empresarial; que estados
mentais irracionais não podem informar o juízo de reproche objetivo, sob pena de este se
contaminar pela irracionalidade; que, por fim, há de se exercer o juízo objetivo de reproche
399
Veja-se que o termo racional, aqui, não tem o mesmo significado com que Barberá o emprega, já explanado
acima. A racionalidade a que aqui se refere é aquela própria da Teoria dos Jogos, “que consiste em se admitir que
cada jogador, em sua decisão, escolherá a alternativa mais adequada aos seus objetivos, isto é, buscará o melhor
para si considerando as restrições existentes” (CARVALHO, José Augusto Moreira de. Introdução à teoria dos
jogos no direito. Doutrinas Essenciais de Direito Empresarial, v. 6, 2010. Acesso digital). Importante registrar
que essa racionalidade a que se alude na Teoria dos Jogos não diz respeito ao fim em si, sobre o qual não se deve
emitir juízo de valor, mas à escolha dos meios para se atingi-lo. Assim, estabelecida a não responsabilização penal
como objetivo do indivíduo, a escolha racional deste, em um sistema jurídico que exija seu conhecimento efetivo
quanto ao fato, será se manter em ignorância, vez ser um meio idôneo para se atingir o fim almejado, descabendo
considerações quanto à racionalidade deste.
400
HAMDANI, Assaf. Mens Rea and the Cost of Ignorance. Virginia Law Review, v. 93, 2007. p. 425-6.
401
O que corrobora o entendimento, já fundamentado em seção anterior deste trabalho (Capítulo 3), de que as
situações que constituem o problema da presente pesquisa não são aquelas que, no common law, comportam a
aplicação da willful blindness doctrine, estando fora da área de abrangência delimitada pelos requisitos postos pela
jurisprudência.
402
HAMDANI, op. cit. p. 452-3.
403
Aqui já empregado o termo, novamente, na acepção que lhe confere Barberá.
155
doloso sobre a conduta omissiva do garante no contexto empresarial que nada faz para impedir
um resultado típico que acaba por se verificar, quando se constatar uma possibilidade objetiva
privilegiada de previsão ex ante, pelo garante, de tal resultado, independentemente de ele ter ou
não conhecimento psicológico da situação típica, faltando-lhe competência para decidir se sua
conduta objetivamente típica é dolosa ou não.
As teorias cognitivas retiraram do sujeito grande parte da competência que as teorias
volitivas lhe asseguravam, para decidir o que é dolo. Aqui se propõe, com embasamento na
teoria de Barberá, a retirada do que ainda ficou. Dolo é um conceito normativo que cabe ao
Direito, de forma racional, definir e aplicar. Na síntese de Ragués i Vallès, “no existe un ‘dolo’
ajeno al Derecho penal, sino que todo concepto de dolo es per se normativo”404.
Encerra-se a exposição com a perfeita metáfora de Roxin: “el dolo no se forma en la
cabeza del autor, sino en la cabeza del juez”405.
404
RAGUÉS i VALLÈS, De nuevo, el dolo eventual... p. 2-3.
405
ROXIN, Claus. Prólogo. Trad. José Milton Peralta e Gabriel Pérez Barberá. In: PÉREZ BARBERÁ, Gabriel.
El dolo eventual: hacia el abandono de la idea de dolo como estado mental. Buenos Aires: Hammurabi, 2011. p.
33.
156
Antes de se partir para a resolução do caso à luz de toda a exposição aqui feita, relembre-
se que, ao se discutir, neste trabalho, a imputação dolosa no crime omissivo impróprio, tomam-
se como dados inquestionados e superados a tipicidade e a imputação objetiva do crime, é dizer,
parte-se do pressuposto de que, em todas as situações examinadas, encontra-se conformada a
tipicidade objetiva do crime omissivo impróprio do garante de vigilância, cingindo-se a análise
à imputação por dolo.
Assim, ao se tratar, a seguir, da possibilidade de imputação dolosa do crime de gestão
fraudulenta de instituição financeira, não há preocupação com a tipicidade objetiva da conduta,
não sendo objeto deste trabalho adentrar à discussão a respeito do número de atos necessários
à configuração desse crime (se seria necessária toda uma gestão da instituição de forma
fraudulenta ou se bastaria um único ato fraudulento).
Feito esse registro, parte-se à resolução proposta.
No âmbito de uma instituição financeira (Banco A), foi criado um produto (“X”), similar
a uma conta remunerada, por meio do qual os valores ociosos depositados por clientes em suas
respectivas contas-correntes poderiam ser transferidos para outra instituição financeira
(Corretora de câmbio B) do mesmo grupo, em que viriam a ser aplicados em opções flexíveis
de ouro e dólar, mediante emissão de notas de negociação de título.
Um diretor do Banco, em exercício efetivo de suas atividades, esteve presente à reunião
do comitê gestor em que foi aprovada a criação desse produto, sendo que, naquela ocasião, ele
foi apresentado e aprovado sem qualquer aparência de irregularidade, tendo sido previsto que,
como qualquer outra aplicação desse tipo, seria colhida prévia autorização do correntista e a
movimentação seria feita no seu interesse.
Passado algum tempo, sem que aquele diretor recebesse qualquer informação sobre o
andamento das operações do produto “X”, o setor de compliance detectou um desvio no
manuseio do produto por parte de ocupantes de níveis hierárquicos inferiores na estrutura
operacional do Banco. Na prática, ele vinha sendo manipulado como forma de fraude à base de
cálculo do depósito compulsório do Banco A junto ao Banco Central (BACEN), consistindo,
em verdade, em uma simulação destinada a possibilitar que recursos depositados pelos clientes
deixassem de estar sujeitos ao recolhimento compulsório. As aplicações vinham sendo
realizadas sem a autorização dos correntistas e a remuneração paga a estes não era a contratada,
sendo que, em caso de necessidade de cobertura do saldo devedor nas contas dos clientes,
157
procedia-se ao resgate imediato dos valores aplicados pela Corretora B e ao repasse ao Banco,
para crédito em favor do cliente.
O setor de compliance do Banco elaborou minucioso relatório da situação e o
encaminhou à diretoria que o referido diretor compunha, o qual, entretanto, não chegou a tomar
efetiva ciência dos fatos, pois, ao receber o envelope com o relatório que os denunciava
claramente, decidiu descartá-lo sem nem mesmo o abrir, pois não queria se envolver com outro
problema naquele momento, já muito atribulado que estava com outros projetos, tendo pensado:
“Seja lá o que for, que outra pessoa cuide disso. Não é justo que tudo caia em mim nessa
empresa e eu tenha que resolver tudo. Deixe que alguém olhe esse expediente aí e faça o que
for necessário”.
A situação se manteve por determinado tempo depois disso, até que uma fiscalização do
BACEN a identificou e determinou a imediata suspensão das operações do produto X.
Esse diretor cometeu gestão fraudulenta dolosa de instituição financeira, em omissão
imprópria (art. 4º, caput, da Lei 7.492/86, c/c art. 13, §2º, do CPB)?
Como premissa inicial, é de se notar que o agente não tem conhecimento do fato (gestão
fraudulenta da instituição, em virtude da manipulação do referido produto), nem mesmo
qualquer suspeita a seu respeito, vez que, dentro daquele envelope, poderia haver notícia de
uma infinidade de cenários. Ele está, portanto, em verdadeira ignorância quanto ao estado da
operação daquele produto do Banco, do qual ele já não recebe notícias há algum tempo.
Contudo, vê-se que esse desconhecimento tem por origem sua decisão por se manter
ignorante em relação ao conteúdo do documento que recebeu, o qual narrava precisamente a
situação.
Essa conduta do garante é objetivamente incompatível com as normas elementares de
sua atividade específica, que asseguram o desenvolvimento de tal atividade em atenção a
padrões mínimos, conforme posto na obra de Barberá, abordada no Capítulo 8. Afinal, enquanto
diretor de uma instituição financeira, ocupante de uma posição de garantia penal na modalidade
de vigilância sobre tal fonte de perigo, o Direito entende que, para que aquela atividade seja
admissível, faz-se necessário que esse agente cumpra seu papel de fiscalização.
A decisão pela violação frontal de tal comando normativo, mediante opção deliberada
pela não leitura de um documento que lhe foi enviado para sua consulta, dá lugar a um estado
mental objetivamente incompatível com esse plexo de normas e, portanto, irracional, não
podendo, assim, integrar o juízo de imputação.
158
Variação 1: Nesse mesmo cenário, o relatório foi enviado ao diretor em uma sexta-feira,
quando ele se encontrava em viagem profissional, pelo que o envelope foi deixado sobre sua
mesa. O diretor retornou da viagem no domingo e, já na segunda-feira, voltou à sede do Banco,
onde topou sua mesa abarrotada com pilhas de documentos, os quais ele começou a analisar
por aqueles que lhe pareciam mais urgentes. Até o final do dia, tamanha a quantidade de
material que se acumulou, ele não havia ainda conseguido chegar àquele envelope, o qual
permaneceu fechado, em meio a tantos outros expedientes. Na terça-feira, esse diretor passou
o dia todo em assembleia-geral de acionistas agendada meses antes, em que sua presença se
fazia obrigatória, pelo que não foi ao seu escritório naquele dia. Na quarta-feira, ao chegar a
seu escritório objetivando atacar aquela papelada, já foi recebido, na porta, com a notícia de
406
Observe-se que, ao se abordar o dolo pelo viés aqui proposto, torna-se até mesmo desnecessário lembrar que,
no crime de gestão fraudulenta de instituição financeira, o que é ou não fraudulento cabe ao Direito definir, não à
pessoa. Trata-se de elemento valorativo global do fato, sobre o qual é irrelevante qualquer juízo axiológico por
parte do indivíduo. Diz-se ser desnecessária a observação pois, se a própria ignorância quanto ao fato em si é de
ser desconsiderada, se irracional, com muito mais razão é se de negar qualquer relevância a uma eventual valoração
axiológica subjetiva sobre os fatos que não se compatibilize com o Direito objetivo. Sobre esse aspecto no crime
de gestão temerária de instituição financeira (art. 4º, parágrafo único, da Lei 7.492/86), porém com fundamentos
perfeitamente trasladáveis ao crime em questão, cf. GRECO, Luís. Dolo e gestão temerária (art. 4o, parágrafo
único, Lei 7.492/86). Boletim IBCCRIM, v. 229, 2011. p. 7–8.
159
que uma fiscalização do BACEN conduzida na véspera havia detectado a fraude no produto X
e paralisado as operações a ele relacionadas.
Repete-se a pergunta: nesse novo cenário, o diretor cometeu gestão fraudulenta dolosa
de instituição financeira, em omissão imprópria (art. 4º, caput, da Lei 7.492/86, c/c art. 13, §2º,
do CPB)?
Como premissa inicial, tem-se que, tal como no caso original, o agente, nessa situação,
não tem conhecimento do fato, nem mesmo qualquer suspeita, estando em ignorância quanto
ao estado da operação daquele produto do Banco, do qual ele já não recebe notícias há algum
tempo. Esse desconhecimento, contudo, advém de excesso de trabalho e de outros
compromissos inadiáveis e obrigatórios aos quais ele tinha que se fazer presente (a viagem e a
assembleia-geral), pelo que acabou por não atingir o conhecimento quanto ao que noticiado
pelo documento contido naquele envelope.
Essa conduta do garante, de buscar ao máximo atender às suas obrigações perante a
empresa, dispondo-se a viajar a trabalho, a passar todo um dia em assembleia-geral com
acionistas e, no intervalo, a procurar, na medida do possível, se inteirar dos expedientes que
estão ao seu aguardo, é objetivamente compatível com as normas elementares de sua atividade
específica, sendo exatamente isso o que o Direito lhe cobra.
A conduta desse sujeito deu lugar, assim, a um estado mental em relação ao fato em
questão que se mostra racional, pelo que deve ser considerado para a formação do juízo de
reproche.
Considerado, portanto, todo o conjunto de elementos empíricos que devem informar
esse juízo no caso, vê-se que há um documento, recebido pelo agente, que informava claramente
a ocorrência do fato. Por outro lado, esse documento se encontrava em meio a diversos outros,
aparentemente tão importantes quanto, tendo o agente, cumprindo seu papel, buscado se inteirar
do conteúdo de todos aqueles expedientes, sem ter ainda chegado àquele específico, quando da
operação de fiscalização que interrompeu a fraude. Há, ainda, o excesso de trabalho, que
dificultou, legitimamente, a formação de qualquer previsão quanto à situação, vez que a não
leitura do documento se mostrou racional.
Nota-se, assim, que não havia uma elevada possibilidade objetiva de previsão do
afastamento da norma penal, vez que, analisada objetivamente a situação específica em que se
encontrava o agente, era pouco provável que se previsse o fato, já que este se encontrava em
meio a diversos outros, com pouco intervalo de tempo para exame de tudo e, ainda, realização
de outras tarefas.
160
Percebe-se, ainda, que esse agente não está em domínio da situação, mas sim em
descontrole, não tendo conseguido cumprir todas suas obrigações a tempo e modo. Não era este
o seu plano; a situação saiu do controle.
Conclui-se, assim, pelo descabimento do reproche objetivo doloso, diante de um baixo
grau de previsibilidade objetiva do fato penalmente relevante.
Tal como nos cenários anteriores, aqui também o agente não tem conhecimento do fato.
Contudo, já de início esse caso se afasta dos demais, pois, aqui, o agente não está em ignorância
pura quanto ao estado das operações daquele produto, mas em verdadeiro erro.
Esse diretor, diferentemente daquele do caso original, tem interesse em conhecer a
verdade e em exercer suas funções, tanto que, assim que recebeu a documentação, prontamente
se inteirou de seu conteúdo. O diretor da hipótese anterior, tal como o desta, também tinha
interesse em conhecer a verdade, porém não chegou a tanto e permaneceu em ignorância, sem
ter qualquer ideia de como estava operando aquele produto. Diversamente, o presente diretor
não se encontra mais em ignorância pura, vez que incorreu em erro: agora, ele possui uma
representação quanto ao fato, representação esta, contudo, que não corresponde à realidade.
Está, portanto, enganado e, o que é o mais importante, seu comportamento se pauta por
essa representação equivocada. Ele está seguro, vez que assim fora informado pelo confiável
setor de compliance, que tudo estava regular, e, portanto, deixa de agir para evitar um resultado
que ele pensa ser inexistente.
161
O descontrole dessa situação é notório, não tendo essa pessoa qualquer domínio sobre
o fato, vítima que é da informação falsa com base na qual formulou sua representação.
Além do erro de tipo verificado, nota-se, igualmente, uma baixíssima, praticamente
desprezível, possibilidade objetiva de previsão do fato, já que, naquela situação específica em
que ele se encontrava, não havia, objetivamente, nada que o indicasse, nada que pudesse apontar
para a possibilidade de sua ocorrência.
Conclui-se, assim, pelo descabimento do reproche objetivo doloso, diante da
configuração do erro de tipo (art. 20 do CPB) e de um baixíssimo grau de previsibilidade
objetiva do fato penalmente relevante, hipótese em que o reconhecimento do dolo configuraria,
aqui sim, responsabilidade penal objetiva407.
Variação 3: Nesse mesmo cenário, ao invés de não ter tido qualquer informação quanto
às operações do produto desde sua criação, o diretor já vinha sendo exposto a indícios da fraude.
Certa feita, um subordinado seu, ao final de uma reunião, lhe disse que tinha se deparado com
algumas movimentações estranhas relacionadas àquele produto, porém ainda não havia
entendido bem do que se tratava. Em outra oportunidade, ao conferir o montante atual do
depósito obrigatório do Banco junto ao BACEN, o diretor percebeu que ele vinha em declive
ao longo dos últimos meses, em função de uma redução da base de cálculo, o que contrastava
com o crescimento do Banco, que, exatamente nesse mesmo período, aumentou sua carteira de
correntistas. Por fim, em outra oportunidade, ao conferir um balancete enviado pela Corretora
B com o valor total de repasses recebidos do Banco, o diretor deparou-se com um incomum
crescimento nas operações de remessa.
Após tudo isso, o mesmo relatório redigido pelo setor de compliance lhe foi enviado,
noticiando, detalhadamente, tudo que vinha ocorrendo, com a seguinte identificação no exterior
do envelope: “Ref.: produto X”.
Ao se deparar com aquilo, o diretor logo ligou os pontos e desconfiou que aquele produto
poderia estar sendo manipulado de forma indevida, o que explicaria as movimentações
estranhas de que falara seu subordinado, a redução da base de cálculo do depósito obrigatório
do Banco e o aumento dos repasses à Corretora. Diante disso, pensou: “Tem alguma coisa
errada aí... Melhor deixar quieto, não vou me envolver”. E não abriu o envelope.
Uma semana depois, uma fiscalização do BACEN constatou a fraude.
407
Reserva-se para uma pesquisa posterior a possibilidade de se punirem os subscritores daquele relatório,
enquanto agentes causadores do erro de terceiro, com base no art. 20, §2º, do CPB.
162
Repete-se, uma vez mais, a pergunta: diante desse cenário, o diretor cometeu gestão
fraudulenta dolosa de instituição financeira, em omissão imprópria (art. 4º, caput, da Lei
7.492/86, c/c art. 13, §2º, do CPB)?
Esse cenário é, por certo, o de mais fácil resolução. Tal como nos anteriores, o diretor
não tem conhecimento perfeito do fato, do qual ele apenas suspeita. Assim como essa suspeita
poderia ser procedente, também poderia não ser: aquele relatório poderia atestar,
acertadamente, a total regularidade das operações do produto X, e os indícios que já haviam
chegado a si poderiam se referir, em verdade, a pequenas irregularidades na contabilidade, sem
reflexos na esfera penal.
O que se tem nesse caso é, precisamente, uma dúvida: o agente formulou subjetivamente
uma hipótese específica que pensa poder, com maior probabilidade que outra, estar conforme a
realidade – é a ignorância qualificada, a que se referia Frosali408.
Essa dúvida, aliada aos demais elementos do caso concreto, conforma um caso doloso.
Está-se, aqui, diante da cegueira deliberada parcial, em que o agente, ante indícios que já
formam uma dúvida em determinado sentido, decide não conhecer mais e permanecer sem a
formulação de uma representação segura (correta ou não) do fato (deliberada reticência
cognitiva, nos dizeres de Spangenberg Bolívar409). Trata-se, claramente, de hipótese de
aplicação da willful blindness doctrine, sob a ótica do common law.
A possibilidade objetiva de previsão de ocorrência do fato é, aqui, elevadíssima, estando
o agente em uma posição em que o fato estava praticamente delineado para si, tendo ele optado,
apenas, em permanecer em dúvida, em um procedimento incompatível com as regras de
regência de sua posição jurídica, conforme posto no caso original, formando-se, assim, um
estado de ausência irracional de conhecimento efetivo, a ser desconsiderado.
Conclui-se, assim, pelo cabimento do reproche objetivo doloso, diante da elevada
possibilidade objetiva de previsão do afastamento da norma penal.
408
Vide nota 318.
409
Vide nota 122.
163
10 CONCLUSÃO
3. A Lei brasileira não define dolo, havendo amplo espaço para a formulação de
proposições teóricas a respeito do conceito. O estudo de casos de ignorância deliberada deve se
preocupar mais com a formulação ou a adoção de uma teoria de dolo do que de uma teoria de
cegueira deliberada, já que, estabelecido o que se entende por aquele, a resposta penal a esta
defluirá logicamente. Os casos de ignorância que realmente desafiam um tratamento penal
diferenciado no civil law e reclamam a formulação de uma teoria de dolo que lhes traga uma
resposta adequada não são aqueles aos quais, no common law, se aplica a willful blindness
doctrine, mas aqueles em que o agente decide pela ignorância antes mesmo de contar com
qualquer suspeita, em qualquer sentido.
164
8. É dever do garante fazer o que lhe for possível para impedir o resultado típico,
desde que este se dê sobre bens jurídicos que deve ele proteger (na modalidade de garantia de
proteção) ou decorra da fonte de perigo que lhe incumbe vigiar (na modalidade de garantia de
vigilância), configurando, nesta última hipótese, perigo oriundo de descontrole quanto à
manutenção dos riscos produzidos pela fonte vigiada dentro dos níveis permitidos.
9. Sendo a empresa uma fonte de perigo, o responsável por ela, que mantém sobre
sua atividade uma relação de controle juridicamente assentado e exercido efetivamente no plano
fático, é posto na condição de agente garantidor, na modalidade de vigilância sobre tal fonte de
perigo, assistindo-lhe o dever de vigiar a empresa para que dela não advenham resultados
danosos a terceiros. Tal dever abarca os riscos não permitidos que possam advir da empresa em
si, com exclusão daqueles que, embora possam se verificar no seio da atividade empresarial,
não configurem expressão desta. O resultado típico que o dirigente empresarial deve impedir,
enquanto agente garantidor, é o que advém da própria atividade empresarial, limitado em
função da natureza do risco de que se cuida.
(apesar da capacidade real do sujeito de agir nesse sentido). Essa diferente estrutura do tipo
objetivo produz reflexos sobre o juízo de imputação dolosa, dado que o dolo nessa espécie
delitiva não foge à regra geral de se referir a todos os elementos do tipo objetivo, dentre os
quais não se inclui o dever de agir em si, mas apenas seus pressupostos fáticos. O dolo no crime
omissivo impróprio, portanto, não deve abarcar o dever de agir, que é problema afeto à
culpabilidade, por meio da consciência da ilicitude e da figura do erro de mandamento.
12. Conceituada a ação, pelo Finalismo, como o exercício de uma atividade final,
com proeminência para a vontade enquanto elemento integrante do dolo, ao lado do
conhecimento, faltaria, por corolário, dolo na omissão, vez que nesta faltaria, igualmente, a
vontade, vista esta como o móvel de uma conduta desencadeadora de um processo causal que
se desenvolve em direção ao fim visado pelo agente. O problema se supera facilmente, mediante
a adoção de uma teoria cognitiva ou uma normativa do dolo, que não exigem vontade
psicológica, no sentido em que conceituada pela teoria finalista.
13. Deve ser refutada a proposição finalista de acordo com a qual o conhecimento
da situação típica seria requisito da capacidade de ação, visto que esta, elemento comum entre
a ação e a omissão, efetivada na primeira e deixada em potência na segunda, é puramente
objetiva, despida de qualquer influência de aspectos subjetivos, como o conhecimento. Nos
crimes omissivos impróprios, o dever de agir é objetivo e antecede qualquer elemento subjetivo,
pelo que não é o fato de conhecer a situação de perigo ou os pressupostos fáticos de sua posição
de garante que põe alguém nessa posição, a qual a pessoa já ocupa em virtude da proximidade
com o titular do bem jurídico que reclama proteção ou do controle que exerce sobre uma fonte
de perigo, independentemente de saber disso, o que pode afetar, quando muito, o dolo, jamais
a tipicidade objetiva.
permitir que ele chegue a si, conhecimento este que lhe é acessível e que, não fosse essa barreira
deliberadamente oposta, chegaria regularmente.
16. No que tange à relação entre a ignorância e o erro e seus respectivos efeitos
legais, há duas correntes teóricas: a unificadora, que se caracteriza pela equiparação legal dos
dois estados subjetivos, dando importância à ausência da representação subjetiva correta dos
fatos e não se importando se, no lugar da representação faltante, há um vazio ou uma
representação equivocada; e a diferenciadora, que se caracteriza por reconhecer que os dois
estados são diferentes tanto a nível de ser, quando perante o Direito, não podendo ser a
ignorância incluída no vocábulo “erro”, quando este constar do texto da Lei. Adota-se o
segundo posicionamento: na ignorância, estado negativo, não há representação alguma da
realidade, ao passo que, no erro, estado positivo, não se verifica esse vazio mental, mas a
presença de uma representação equivocada da realidade, pela qual se orienta a conduta do
agente. Entre a ignorância e a realidade, há uma diferença quantitativa, vez que não há, na
mente do sujeito ignorante, nada conflitante com a realidade, apenas faltando-lhe a
representação. Já entre o erro e a realidade, há uma diferença qualitativa, vez que há, na mente
do sujeito em erro, algo que discrepa da realidade. A ignorância, assim, está mais próxima do
conhecimento real do que o erro. A ignorância implica a aceitação de qualquer possibilidade de
realidade. Já o erro não, pois ele implica a formação de certeza subjetiva em um determinado
sentido, dissonante, contudo, da realidade. A ignorância pode ser consciente e até mesmo
deliberada. O erro, por outro lado, é, por essência, inconsciente e involuntário, desvanecendo-
se ante a consciência da mera possibilidade de sua existência.
168
17. O erro de tipo, no Direito brasileiro, não engloba a ignorância, pois sua ratio
reside não simplesmente no desconhecimento, mas no fato de o agente ser vítima de um engano,
pautando sua conduta por uma representação que o ilude e agindo, portanto, em descontrole,
não comunicando, com seu proceder, um distanciamento da norma jurídico-penal e um repúdio
à sua validade tão intensos quanto aqueles comunicados pela conduta do sujeito que age com
domínio. Para a configuração do dolo eventual, basta a dúvida quanto à concorrência das
elementares típicas na conduta, sendo que o sujeito que assim agir, acabando por cometer,
objetivamente, a conduta típica suspeitada, responderá perante o Direito Penal a título de dolo,
não lhe aproveitando a figura do erro de tipo. Portanto, o Direito admite a aplicação de pena
referente ao dolo a casos de ausência de conhecimento pleno dos fatos, do que se conclui que o
conhecimento/desconhecimento fático não pode ser o elemento diferenciador entre o dolo e o
erro de tipo. O erro, no Direito brasileiro, não é a cara negativa do dolo, ou seja, não é um
conceito derivativo, mas um conceito primário, que existe por si só, e não em função do dolo.
21. A posição de garantia penal traz todo um plexo de deveres, incumbindo aos
garantes de vigilância efetivamente fiscalizar a fonte de perigo, de modo a manter a atividade
desta dentro de padrões mínimos de segurança. A ignorância dominada pelo garante quanto à
situação típica é essencialmente incompatível com tais normas, as quais determinam ao agente
exatamente o oposto: que ele vigie a fonte de perigo. Trata-se de um estado mental irracional,
vez que objetivamente incompatível com as normas elementares da atividade específica, não
devendo ser considerado para fins de formação do juízo de reproche objetivo, o qual deve levar
em consideração, então, os demais elementos do caso concreto, de modo a se identificar se,
naquele caso, cabe o reproche objetivo, diante de uma possibilidade, também objetiva, de o
autor prever, ex ante, o afastamento da norma penal, e, em caso afirmativo, se esta possibilidade
era objetivamente privilegiada (dolo) ou atenuada (culpa).
conduta objetivamente típica é dolosa ou não. Dolo é um conceito normativo que cabe ao
Direito, de forma racional, definir e aplicar.
171
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